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GLOBALIZAÇÃO, PÓS-MODERNIDADE E A QUESTÃO POLÍTICA.

Eridan Passos

Este texto pretende refletir sobre a seguinte questão: O que seria

uma prática política transformadora em um mundo global e pós-moderno? Ao

tentar articular os dois conceitos – globalização e pós-modernidade -estaremos

discutindo duas outras questões embutidas na primeira. Uma delas pergunta se o

processo econômico, político e social da atualidade gera a necessidade de se

construir novos conceitos que dêem conta do mesmo. A outra questão investiga a

relevância do debate sobre a pós-modernidade, quando ela discute as

configurações sociais, políticas, econômicas e culturais da contemporaneidade. Ao

analisarmos essas configurações, estaremos enfatizando seus reflexos na

construção das subjetividades. A idéia de indivíduo é uma construção moderna.

Ela passa necessariamente pela liberação do homem dos laços de controle

tradicionais, da religião, da família e da comunidade, e pela introdução da idéia de

construção autônoma de si mesmo. Mas em que deu a construção autônoma do

sujeito?

Por agora, cabe reter que a análise aqui desenvolvida tem um visar

específico. Pretendemos pôr em discussão a questão da prática política

transformadora, em um mundo de indivíduos atomizados, submetidos à pressão

esmagadora de “um pensamento único”, onde a utopia foi destituída de seus

poderes mágicos e o pensamento totalizante soçobra diante da fragmentação e


pluralização dos discursos e nós parecemos sucumbir à força de um presente que

parece repetir-se continuamente.

Não negamos que já estavam embutidas no projeto da modernidade – com

sua incansável fuga para a frente, simbolizada na idéia de progresso, a sua busca

da ordem, representada pelos avanços da ciência e da técnica e a crença no

domínio da Razão - todas as vertigens, políticas, sociais e econômicas, que

resultaram das conquistas materiais, tecnológicas, científicas e culturais, que se

processaram a partir do século XVI/XVII e que se consolidaram no século XIX com

o casamento perfeito entre modernidade e capitalismo. A frase “tudo que é sólido

desmancha no ar”, que já aparece no Manifesto Comunista, caracteriza a

destruição criadora que está na base do processo capitalista. E continua

absolutamente atual.

Mas entendemos, como colocado por Luis Carlos Fridman, que estão

ocorrendo “enormes mudanças no dinamismo institucional e nas bases de

reprodução do sistema, atingindo as esferas da economia, da cultura, da política e

da subjetividade. Se não delineia uma nova ordem, esse conjunto de fenômenos

provoca alterações de tal magnitude que solicitam considerações e teorias

compatíveis com esse transtorno de vida social”1.

Aqui gostaríamos de explicitar que nos colocamos numa posição crítica

não só em relação à modernidade – na medida em que abrimos espaço para o

pensamento pós-moderno que se produz no bojo da crise da modernidade, cujas

promessas ambiciosas não se cumpriram , bem como nos colocamos ao lado

daqueles que não vêem na atualidade apenas os desdobramentos de um mesmo


1
Fridman, Luis Carlos. Vertigens Pós-Modernas: Configurações Institucionais Contemporâneas.Rio de
Janeiro, Relume Dumará, 2000, pág 15.
processo que se realiza historicamente sob o hegemonia do capitalismo. Por outro

lado, mantemos uma posição crítica em relação ao pensamento pós-moderno,

pelo menos em sua vertente majoritária, que se despede dos projetos de

emancipação e se contenta em celebrar o hoje.

Como entendemos que não há perguntas descomprometidas, a pergunta já

indicando “de que lado estamos”, devemos logo de início colocar duas premissas

básicas assumidas aqui:

A primeira, a de que sendo a nossa preocupação central discutir a

possibilidade de intervenção dos indivíduos, num quadro de globalização, há dois

vieses assumidos claramente no texto. O viés da possibilidade da ação, para

além dos limites impostos pelas determinações estruturais, elas mesmas

dinâmicas e voláteis, e o viés da possibilidade efetiva de práticas políticas

transformadoras, já que estamos interessados em práticas que possam

contrapor-se à política hegemônica.

A conhecida frase de Marx, que cito de memória, de que os homens fazem

a história não nas condições que querem mas nas condições que lhe são dadas,

por certo pretende pôr limites ao voluntarismo inconseqüente. Mas não elimina a

possibilidade do agir transformador. Utilizando os termos de Boaventura de Souza

Santos, deixamos claro que estamos falando de/para sujeitos orientados para

identificar possibilidades e não de/para sujeitos que consolidam determinações.

Falamos de/para sujeitos que, ao fixar fronteiras, exploram seus limites.

A segunda premissa é a de que a história está em aberto. Seguimos

portanto uma linha de pensamento que se despede – não sem algumas lágrimas

de sofrimento – dos “grandes relatos”, entre os quais aquele que foi apropriado
pelo marxismo – que tornava inexorável o caminho para o socialismo. A crise final

do capitalismo, essa sim inexorável, posto que o capitalismo é um fenômeno

histórico e como tal sujeito ao desaparecimento/superação, não levará

necessariamente ao socialismo ou ao comunismo, com ou sem etapa da ditadura

do proletariado. Pode levar também à destruição da humanidade, à volta a uma

nova Idade Média, ao Admirável Mundo Novo de Huxley ou a qualquer outra

configuração possível. Nada está dado na história. E se a crise do capitalismo é

pensável, o que virá depois dele terá que ser construído. O futuro, sendo uma

construção, ainda que não aleatória, é um empreendimento de homens concretos

em suas lutas e práticas concretas.

Mas ao se definir por um pensamento que não pode mais submeter-se aos

“grandes relatos” ,não exclui de dentro de si “um sonho de futuro”. Como conciliar

então duas coisas aparentemente inconciliáveis - um realismo que nos atém ao

concreto e um “sonho de futuro” que nos lança para fora do que existe?

Assumindo claramente a contradição. A necessidade da imaginação utópica, já

que nada se transforma por força da ação humana sem um projeto de futuro. Mas

alimentando-o do concreto. Ou seja, uma utopia que não se apresenta com um

conteúdo pronto e acabado “que acontecerá no futuro” (que caracterizou a

modernidade com seu projeto ambicioso de razão). Mas uma utopia,

parafraseando Boaventura de Souza Santos, realista.Uma utopia que bate e

rebate no real concreto. O alimenta e dele se alimenta. Uma utopia

desesperançada do encontro final consigo mesma mas que se constrói a partir de

uma tomada de posição consciente em favor da emancipação. E o que é

emancipar? perguntamos. Emancipar é trabalhar dentro de um processo que


percorre o caminho que vai do colonialismo (o reconhecimento do “outro”, como

objeto) para a solidariedade (o reconhecimento do outro como sujeito).

Propugnamos uma prática política que, a cada momento, se pergunte pela sua

capacidade de inclusão de contingentes cada vez maiores e de reconhecimento

do outro como sujeito.

É claro que não há práticas políticas transformadoras sem subjetividades

que escolham a transformação. A construção de práticas políticas emancipatórias

e de subjetividades que trabalhem em direção a essas práticas são pólos de um

mesmo processo. As estruturas não mudam sem que os homens mudem mas os

homens não mudam sem que as estruturas mudem. É uma falsa questão priorizar

um dos pólos.

Entende-se aqui como prática política aquela que se desenvolve não

apenas no campo da cidadania, das relações dos indivíduos com o Estado, mas

aquela que se desenvolve em todas as estruturas sociais, sejam no campo

doméstico, no campo da produção, ou no campo mundial, só para citar alguns

deles. O conteúdo dessa prática não está dado, seus contornos são inimagináveis

a priori. Por isso é uma prática em permanente construção e sem solução final.

Como diz Boaventura de Souza Santos, no último parágrafo de seu livro, A Critica

da razão Indolente, “não é uma tarefa fácil nem uma tarefa que alguma vez possa

concluir-se. É este reconhecimento, à partida, da infinitude que faz desta tarefa

uma tarefa verdadeiramente digna dos humanos” 2 .

GLOBALIZAÇÃO
2
Santos, Boaventura de Souza Santos. A Critica da Razão indolente: contra o desperdício da experiência. São
Paulo, Cortez Editora, 2000, pág. 383
Partimos da análise da globalização porque ela é uma palavra-fetiche da

atualidade. Por isso mesmo tem seu lado perverso, porque mais esconde que

revela. Associado aos conceitos fundamentais do neoliberalismo – “mercado auto-

regulado, a concorrência e a competitividade criativas e modernizadoras; o livre-

comércio como fator de desenvolvimento das sociedades; a moeda forte como

vínculo de estabilidade e harmonia sistêmica; a desregulamentação; a

privatização; a liberalização; o “estado mínimo”, etc” 3 – e transformado em senso

comum, o conceito de globalização carrega uma conotação naturalista, em que

capitalismo e mercado são concebidos como uma espécie de “estado natural” da

sociedade.

Cabe, portanto, logo de início, historicizar o conceito. O que significa dizer

com todos os “efes” e “erres” que a era do globalismo ainda é a era do capital: “da

conformação mundializada de suas bases produtivas; da centralização

transnacional da propriedade dos meios de produção; do alargamento e

aprofundamento ainda maior do mercado mundial, da supranacionalidade

institucional dos organismos de administração e gestão das políticas garantidoras

da acumulação; da refuncionalização- em função das estratégias oligopólicas do

lucro – do sistema mundial de nações( agora organizadas em blocos regionais);

da globalização das estruturas, processos e movimentos sociais formatados e/ou

movidos pelos dilemas e contradições da civilização planetária da mercadoria.

Vive-se o domínio do industrialismo mundial, da riqueza concentrada em mãos do

capital centralizado, da propriedade privada do mundo, do capital em geral como

uma gigantesca cia. ltda; enfim, da subordinação de todo trabalho humano, de

3
Melllo, Alex Fiuza. Marx e a Globalização.São Paulo, Boitempo Editorial, 1999 , pág 255
todas as raças, credos e nações, em todo o globo, a um mesmo e único senhor.

Uma era em que o capital em geral- como uma gigantesca força social de

incidência mundial – sob o qual nem mesmo mais o produtor[individual] é livre

para produzir o que quer – assume, com uma força sem precedentes , uma

dimensão institucional em que extrapola o controle de agentes isolados

( capitalistas, cidadãos ou Estados-Nação), impondo-se sobre os mesmos como

um poder autônomo, um fetiche, uma coisa, um sistema. 4.

A linha de argumentação de Alex Fiuza de Mello, de quem reproduzimos o

texto acima, formulada a partir da leitura de Marx, é que o globalismo (termo que

o autor utiliza em lugar de globalização) nada mais é que uma etapa do

capitalismo em seu processo ininterrupto de mundialização da economia. O

capitalismo é um modo de produção que se articula e se constitui, desde as suas


5
origens num patamar mundial, supranacional de dinamicidade . Diz ele: “o

conceito de globalismo vem se conformando somente na fase mais recente do

desenvolvimento do capitalismo (particularmente nas duas últimas décadas),

associado (como idéia) à hipótese de emergência de um novo patamar de

ordenamento da vida social, institucionalmente articulado em plano supra-

nacional, em que o centro das atenções se volta para a constituição de uma

realidade (relações, processos, estruturas) não mais simplesmente determinada

( como no passado) pela exploração e/ou difusão horizontal/centrífuga de ações

econômicas, políticas e culturais entre nações( sob o impulso e a primazia

daquelas hegemônicas) – internacionalização - mas configurada por meio de uma

dinâmica progressivamente transversal/centrípeta de efetividade social, plasmada


4
idem, ibidem, pág 259
5
Idem ibidem, pág 20
em plano concretamente trans-nacional /global de materialidade “ 6. E ainda: A

verdade é que o mundo em que vivemos é cada vez mais dominado pelo capital e

pela lógica da mercadoria, o que faz com que, longe da ilusão do pós-capitalismo (

ou da pós-modernidade e de tantos outros pós) ainda estejamos atravessando um

longo período( ainda não concluído) da consolidação, isso sim, da sociedade

burguesa em escala mundial”7 .

Como uma etapa de um processo que ainda se efetiva sob a vigência da

regra do capital, diferente, no entanto, do Imperialismo, não constitui no entanto o

“fim da história”, uma idéia cara a certo tipo de pensamento que pretende

transformar capitalismo e mercado em etapas finais da história humana. Muito

pelo contrário, com a globalização( ou o globalismo) “reacendem-se as crises de

caráter mundial, as epidemias de super-produção e de sub-consumo; projeta-se o

desemprego estrutural , a massificação da miséria, da fome, da violência e da

exclusão social, pré-anunciando novas ondas de turbulência que apenas fazem

demonstrar que a história da luta de classes, ainda que sob novas roupagens,

continua e assumindo, cada vez mais, um caráter também global 8 .

Definida a globalização, em sua dimensão econômica, uma questão se

impõe. Ao se cingir a essa dimensão, não se estaria naturalizando demasiado o

conceito de globalização, deixando de ver a economia como um processo social,

cuja dinâmica define determinações mas também abre possibilidades? Não seria o

caso de se perguntar se seu conceito não deveria ser mais sensível às suas

dimensões sociais, políticas e culturais?

6
Idem, ibidem, pág 197/198
7
Idem, ibidem, pág. 265
8
Idem , ibidem pág 259/260
Valemo-nos aqui da análise feita por Boaventura de Souza Santos 9.

Ampliando o conceito, esse autor assim define a globalização: “a globalizacão é o

processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende sua influência

a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local

outra condição social ou entidade real” 10. Partindo dessa definição de globalização

o autor retira duas implicações: a primeira, é que na verdade não existe

globalização genuína, mas a globalização bem sucedida de determinado

localismo. A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização.

Vivemos num mundo tanto de localização como de globalização. Exemplos não

faltam: a língua inglesa ao ser considerada “língua franca”, implica a localização

de outras línguas, potencialmente globais, como locais. A globalização do sistema

de estrelato Hollywoodiano contribui, por exemplo, para a etnização do cinema

indiano. Os camponeses da Bolívia, Peru e Colômbia que plantam coca

contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles próprios

permanecem localizados nas suas aldeias e montanhas onde sempre estiveram;

lugares exóticos hoje têm de vincar seu caráter exótico e tradicional para serem

atrativos para o mercado global de turismo11.

Quando ampliamos o conceito de globalização ,o que entendemos como

globalização passa a ser diferentes conjuntos de relações sociais que dão origem

a diferentes fenômenos de globalização. Nestes termos, não existe uma entidade

única chamada globalização. Existem, em vez disso, globalizações.

9
Santos, Boaventura de Souza .As tensões da modernidade(cópia xerox) Texto publicado no site do Forum
Social Mundial, realizado em Porto Alegre, em janeiro/2001.
10
Idem, ibidem, pág 4
11
Idem, ibidem, pág 5
Para Boaventura de Souza Santos há quatro modos de produção da

globalização: O primeiro modo é o do localismo globalizado, processo pelo qual

determinado fenômeno local é globalizado com sucesso – o fast food americano, o

inglês como língua franca, a atividade mundial das multinacionais. O segundo é o

globalismo localizado. Este se refere ao impacto específico de práticas e

imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são por essa via

desconstruídas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos

transnacionais. Inclui os enclaves de comércio livre ou zonas francas; destruição

maciça dos recursos naturais para pagamento da divida externa; uso turístico de

tesouros históricos, lugares ou cerimônias religiosas, artesanato e vida selvagem;

conversão da agricultura de subsistência para exportação como parte do

“ajustamento estrutural”, etc. O autor considera esses dois processos como

processos de globalização de cima-para-baixo, hegemônicos, o primeiro, típico

dos países centrais e o segundo, dos países periféricos.

Mas há dois outros processos de globalização que o autor considera como

contra-hegemônicos, ou de baixo para cima: são eles o cosmopolitismo,

representado pelo processo de organização de Estados-Nação, regiões, classes

ou grupos sociais subordinados, na defesa de interesses percebidos como

comuns, usando em seu benefício as possibilidades de interação transnacional

criadas pelo sistema mundial. Caracterizam esse processo as organizações e

diálogos Norte-Sul, organizações mundiais de trabalhadores, redes internacionais

de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos

humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizações não-

governamentais transnacionais de militância anticapitalista, redes de movimentos


ecológicos, etc. O último processo de produção da globalização seria o patrimônio

comum da humanidade. Trata-se de temas que apenas fazem sentido quando

reportados ao globo em sua totalidade. Exemplos são as questões ligadas à

sustentabilidade da vida humana na terra, por exemplo, os tema ambientais da

proteção da camada de ozônio, a preservação da Amazônia, da Antártida, da

biodiversidade ou dos fundos marinhos. Também estariam incluídos a exploração

do espaço exterior, da lua e de outros planetas.

Em nosso entender, ao ampliar o conceito de globalização, Boaventura

ilumina a dinâmica do processo que, de um ponto de vista exclusivamente

econômico, parece naturalizar-se. Ele nos fala de relações assimétricas, de

tensões e contradições produzidas pelo e no processo de globalização. O autor,

sem dúvida, torna o conceito mais complexo. Mas, ao mesmo tempo, nos faz ver a

globalização como um processo dinâmico, histórico, incerto e contingente, enfim.

Vejamos alguns reflexos dessa ampliação do conceito no enriquecimento

da análise da globalização. O primeiro deles é a questão da tensão entre

local/global. Colocando essa questão sob um prisma individual, podemos dizer

que se somos “do mundo”, não vivemos “no mundo”. Quando acordamos, não

acordamos um dia em Bagdá, o outro em Paris ou Berlim e o terceiro em Nova

Iorque ( alguns poucos têm essa vivência de compressão de tempo e espaço, mas

não estamos pensando exclusivamente nessa pequena parcela da humanidade).

Nós, os mortais, acordamos em nossa casa, andamos por nossas ruas,

participamos do dia a dia local, por mais ligados que estejamos na Internet.

Portanto é aqui -e não lá ou acolá – que vivemos. É aqui e não lá ou acolá que

produzimos ações políticas transformadoras. O que nos interessa pertencer por


exemplo à Anistia Internacional se não transformarmos essa nossa participação

numa luta concreta aqui? O que nos interessa, por exemplo, pertencer ao

Greenpeace, se não “traduzirmos” suas propostas gerais em propostas concretas

para o nosso ambiente? Portanto, em meu entender, a globalização não nos faz

“cidadãos do mundo”. Na globalização ainda estamos atados ao local em que

vivemos e é nesse local que teremos de gerar práticas transformadoras.

É claro que não estamos negando a influência do processo de globalização-

na sua face de acesso à rede mundial de informações - na ampliação da nossa

percepção do mundo. Hoje vemos em tempo real as guerras, massacres,

derramamentos de óleo, a violência e a exploração de crianças e mulheres, as

guerras étnicas, etc . Em tempo real, conhecemos as condições de vida das

mulheres no Iraque e tomamos conhecimento da miséria da África; em tempo real,

podemos falar e conversar com pessoas de culturas bem diferentes.

Mas quais são as efetivas implicações disso? O acesso à rede mundial de

informação pode desenvolver em nós um sentimento de “solidariedade” com

outros seres humanos distantes. Mas pode trazer também, e esse parece ser o

efeito mais comum, um sentimento exacerbado de impotência e de inanidade –

envolvido em tantas demandas e com tantos problemas, como podemos agir? A

apatia é tão possível quanto o engajamento. Também é possível que o contato

com outras culturas – há de se pesquisar ainda a profundidade e amplitude

desses contatos - produza a “relativização” de nossas próprias experiências e

valores, o que se de um lado aumenta a autonomia do sujeito – não há mais

verdades oraculares, elas têm de ser criadas – e o respeito pelas diferenças, por

outro pode gerar e aumentar o nível de insegurança. Nem a abertura para o outro
é uma conseqüência automática do acesso a outras experiências. Como diz

Boaventura de Souza Santos partilhar experiências diferentes das nossas exige

um processo de “tradução” entre as culturas, ou seja, que elas se tornem

inteligíveis umas para as outras, sem o que o resultado pode ser não a partilha e

a construção de um novo senso comum mas a indiferença. E traduzir uma cultura

na outra não é um processo simples.

Também o avanço tecnológico que caracteriza os tempos atuais, se de um

lado possibilitou à ciência desbancar os “poderes tradicionais”, sujeitou os

indivíduos ao poder dos peritos – aqueles que detêm a informação e administram

a nossa vida, em quase todas as dimensões, desde os profissionais que cuidam

do nosso corpo àqueles que administram nossas mentes e bens. Na verdade não

produzimos conhecimentos, recebemos conhecimento já pronto, caixas-pretas que

utilizamos, sem que sejamos capazes de qualquer visão crítica sobre o mesmo. A

falta de controle aumenta a nossa incerteza em vez de diminuí-la.

Essas são algumas questões que um conceito “ampliado” de globalização

traz para o debate. Se o que ganhamos com a ampliação do conceito de

globalização é uma visão mais clara dos grandes implicações do processo atual,

principalmente no que tange ao processo social, político e cultural, o que

perdemos quando ampliamos o conceito? Sem dúvida podemos perder o pé e nos

deixar afundar no mar de “configurações”, vagando de uma para outra, sem

perceber o fundamento último da globalização. Mas o que queremos dizer com “o

fundamento último”? Se, numa perspectiva marxista, estamos alertando de que é

preciso dirigir nosso olhar atento para o que ocorre no âmbito da infra-estrutura

econômica e não nos deixar iludir pelas miragens das “novidades” . Se queremos
chamar a atenção para o fato de que qualquer transformação só ocorrerá quando

as bases econômicas dessa estrutura entrarem em crise – o que significa quando

o capitalismo desaparecer da face da terra – não temos por que nos contrapor, em

princípio, a esse argumento. Mas se retrospectivamente a história humana “se

explica” e portanto tende a ser vista como determinada, não há como estender

este olhar para o presente e muito menos para o futuro. Esse tipo de argumento

estruturante baseia-se em um pensamento que “define limites. Contrariamente, se

entendermos que a economia é antes de mais nada um sistema de relações

sociais e, como tal, tem uma dinâmica que resulta do próprio fazer histórico do

homem, estaremos trabalhando com um pensamento que “abre possibilidades”.

Nessa perspectiva, dizer que o fundamento último é a economia pouco diz sobre a

ação do homem na história. Ou seja, pouco esclarece sobre o que se move. E o

que se move é processo e não estrutura.

Parece, portanto, que entender a globalização apenas na sua dimensão

econômica empobrece o tema, já que nos coloca numa camisa-de-força. Ao se

cingir ao seu aspecto econômico, pode-se obscurecer o fato de que também a

economia é um processo social e não natural, ou seja, é um processo cuja

dinâmica cria determinações/possibilidades. Pensar na crise final do capitalismo,

reatualizar as leis tendênciais de sua superação não deve significar a inércia da

ação. Até porque , numa escala mínima, há de se pensar, numa prática política

transformadora, em ações que acelerem sua crise. E no limite máximo, pode-se

imaginar que as leis tendenciais que apontam para o fim do capitalismo são leis

“pensáveis” mas não necessariamente realizáveis, num tempo em que no próprio


seio da ciência – de onde o marxismo retirou o seu ideal de “ciência da história”-

instaurou-se a incerteza.

Mas em que sentido globalização e pós-modernidade se articulam? Somos

de opinião de que os dois fenômenos se correlacionam na medida em que é o

processo de globalização, entendido de modo ampliado, que vem gerando

mudanças nas configurações econômicas, políticas, sociais e culturais na

atualidade , mudanças essas que têm sido objeto do chamado pensamento pós-

moderno. É sobre isso que falaremos a seguir.

PÓS-MODERNIDADE

Pós-modernidade é um conceito no mínimo ambíguo. Nascido do debate

em torno da cultura (arquitetura, pintura, romance, cinema, música), ela se

estendeu aos outros campos da filosofia, da economia, da política, da

antropologia, da psicanálise e da sociologia. Se a idéia pode-se prestar a

discussões inócuas – num conceito tão amplo cabe qualquer coisa 12, não basta

simplesmente desqualificá-la. Descartar simplesmente o termo é fugir da questão

principal: em que medida essas novas configurações da atualidade são meros

desdobramentos de processos já conhecidos ou há fenômenos novos a exigir a

construção de teorias que os iluminem ? Luis Carlos Fridman cita alguns desses

fenômenos:o declínio da esfera pública e da política nos moldes consagrados, a

crise ecológica, o impasse histórico do socialismo, os tribalismos, a expansão dos

fundamentalismos, as novas formas de identidade social ou as conseqüências da


12
diz um dicionário de cultura moderna, definindo pós-modernismo: Esta palavra não tem sentido. Use-a
freqüentemente ( citado em Luis Carlos Fridman,op. cit. pág.14)
informatização sobre a produção material e sobre o cotidiano” 13. Por certo há

quem diga que ainda estamos em plena discussão da modernidade. Que seja.

Mas o que não se pode é fugir ao debate.

Pós-moderno, pode-se dizer de um modo bastante simplista, é todo

pensamento, gerado na crise da modernidade, que quer dar conta das novas

configurações institucionais da contemporaneidade. Entenda-se aqui

modernidade14 como o processo sócio-cultural que se iniciou a partir dos séculos

XVI e XVII com um ambicioso e revolucionário projeto baseado numa tensão

dinâmica entre regulação social (com seus princípios do mercado, do estado e da

comunidade) e emancipação social (com os princípios da racionalidade cognitivo-

instrumental, estético-expressivo e da moral prática).Embora autônomo em

relação ao capitalismo, com ele casou-se, um casamento selado no século XIX, e

do qual resultou a hegemonia do pilar de regulação, representado pelo paradigma

dominante da ciência como força produtiva. A modernidade, com a hegemonia da

regulação, traz em seu bojo, a idéia de uma completa e final racionalização da

vida humana ( mesmo na sua face esquerda, a marxista, que na sua utopia do

mundo do futuro propugnava a substituição do Estado pela administração das

coisas).

Em sua origem, o projeto de modernidade tinha contradições internas,

tentando harmonizar princípios irreconciliáveis entre si, como igualdade e

liberdade, justiça e autonomia, solidariedade e identidade, harmonia essa que se

suponha alcançar através dos princípios de emancipação (da racionalidade

13
Fridman, Luis Carlos. Op. cit. pág. 14
14
este entendimento da Modernidade se baseia na análise feita por Boaventura de Souza Santos, no seu livro
Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da Experiência, principalmente na Introdução à Parte I
técnico-instrumental da ciência e da tecnologia; da racionalidade moral prática da

ética e do direito e da racionalidade estético-expressiva, das artes e literatura).

O pensamento gerado na “crise da modernidade”, quando se percebe que

ela não foi capaz de cumprir suas promessas ( sejam as promessas de igualdade,

de liberdade, de paz e de controle da natureza) se auto-denomina de “pós-

moderno”. O pensamento pós-moderno, no entanto, não é homogêneo. Há

aquele, talvez majoritário, que Boaventura chama de pós-modernismo

celebratório, um pós-modernismo que reduz a transformação social à repetição

acelerada do presente e se recusa a distinguir entre versões emancipatórias e

regulatórias. Para essa vertente não há problemas modernos nem promessas da

modernidade.Há pois que aceitar o que existe. Mas haveria uma outra vertente do

pensamento pós-moderno (onde Boaventura se situa), que se autodenomina de

pós-modernismo de “oposição”, um pós-modernismo comprometido com a crítica

radical do projeto de modernidade e com a descoberta dos sinais de um novo

paradigma e para o qual a idéia de uma sociedade melhor é central 15.A

ambigüidade do conceito é clara. Em um, abdica-se. Em outro, rebela-se.

Mas que novas configurações são essas? Retiramos de Luis Carlos

Fridmam16 os elementos dessas novas configurações: a sociedade da imagem, a

sociedade do conhecimento, a flexibilidade do trabalho e a subjetividade

fragmentada. Apresentamos a seguir um resumo delas:

O que caracteriza o mundo da imagem é a onipresença da midia, a

inundação de imagens e a integração entre vídeo, som e banco de dados. A

15
Idem, ibidem, págs 29 e 37
16
Fridman, luis carlos. Vertigens Pós-Modernas: Configurações Institucionais Contemporâneas.Rio de
Janeiro, relume dumará, 2000.
produção de narrativas midiáticas cria uma “realidade à parte” e constitui o

ambiente em que se processa a atual expansão do capitalismo através do

consumo. No campo da dinâmica do modo de produção, as mercadorias “falam”

outras coisas além daquelas que puderam ser lidas através de O Capital. Elas não

falam apenas do trabalho, enquanto equivalente universal de todas elas e do

tempo necessário para produzi-las. Falam de sexo, corpos bonitos, sorrisos

radiantes, estar à vontade no mundo, ser charmoso, cativante, “elaborado”,

desembaraçado e tudo o mais. Esse mundo da imagem articulou cultura e

economia num processo que não ocorria antes e pessoas talentosas criam

“narrativas midiáticas” que produzem permanentemente desejos, os quais nunca

são saciados já que novas mercadorias são apresentadas para satisfazê-los.

Linguagens estéticas cada vez mais sofisticadas atingem dimensões humanas

antes não colonizadas pelo universo das mercadorias. Vendem-se estilos de vida,

modos de existir ou estar no mundo e não apenas produtos. Além de seu papel no

processo de produção e circulação de mercadorias, no mundo da imagem o

experimentado, o vivido é substituído pelo contemplado; tudo vira espetáculo e

cindem-se espetáculo e realidade, possibilitando a fragmentação, a

superficialidade, a dissipação e inibindo-se o sentimento do encadeamento

histórico.

No mundo da sociedade do conhecimento, o que o caracteriza é a

expansão do conhecimento às mais variadas esferas da vida social. A informação

é incorporada e estendida a todas as esferas da vida coletiva. O mundo deixou de

ser “familiar” e as verdades oraculares que forneciam respostas para as pequenas

e grandes questões da vida foram sucessivamente ultrapassadas pela difusão de


padrões críticos e racionais; desfazem-se os laços seguros e duradouros da

religião e parentesco, vizinhança, comunidade e local de trabalho. Os laços de

confiança agora se estabelecem entre os indivíduos e os peritos, responsáveis

pela administração da vida coletiva em dimensões cada vez mais amplas. É uma

sociedade que se aumenta a autonomia do sujeito, aumenta o nível de risco e

insegurança.

O mundo da especialização flexível, resultado da assimilação da tecnologia

da informação à atividade produtiva, permite a “satisfação do freguês” em

mercados cada vez mais segmentados em nichos com demandas específicas.

Observa-se ainda a desintegração das empresas e a descentralização da

produção, deixando para trás os modelos taylorista e fordista de produção. Isto

exige a adaptação dos trabalhadores. Torna-se necessário criar novas motivações

para o trabalho, onde se promove indivíduos capazes de viver em um ambiente de

equipes que se fazem e desfazem continuamente, gerando a não-durabilidade dos

laços de trabalho, onde os que não se adaptam padecem de angústia, medo,

ansiedade, porque se perde o senso da auto-identidade sustentável produzida por

laços permanentes. Ao lado desses e cada vez maior, o mundo dos “excluídos”

que já não se resumem ao exército industrial de reserva. Cria-se um novo

lúmpem, pessoas sem lugar na sociedade, oriundas das mais diversas classes.

Este refugo global está em toda parte ( há um “Sul”no Norte, tanto quanto há um

Norte no Sul).

Quais os reflexos dessas configurações na auto-constituição da identidade

(subjetividade)? Ela se encontra assoberbada pelas determinações da sociedade

da imagem e do conhecimento, o que implica na fragmentação da subjetividade,


diluída entre imagens e informações. O eu torna-se errático pela multiplicidade e

pela fluidez. O processo de se “inventar a si mesmo” torna-se ele mesmo múltiplo

e fluido. Entre a exposição à oferta de mercadorias, que se descartam

sucessivamente, a autenticidade e o senso de uma interioridade auto-sustentável

se converte em vivências desagregadas ou para quem não agüenta o tranco em

insegurança e angústia. A identidade, transitória, não se completa. Estamos na era

da plasticidade e do pastiche, da bricolage. O indivíduo torna-se um “colecionador

de experiências e sensações” ·.

Nesse mundo alterado por essas novas configurações, em que “novas

formas de perversão social combinam tecnologia de armamentos, reordenamento

dos espaços urbanos, privatização da sociabilidade e uma cultura de redefinição

permanente do”outro” ameaçador cujo limite é a negação cognitiva dos

contingentes imprestáveis”17, quais são as possibilidades de intervenção política

dos indivíduos? Até que ponto essas novas configurações apontam para um

“outro lugar” das lutas políticas, que agora já não se efetivam através do

entendimento de que há um único agente de transformação ( o proletariado), um

único princípio de transformação ( o desenvolvimento das forças produtivas) e

uma única direção da transformação ( o socialismo)?.Este é o tema da terceira

parte do texto.

A POLÍTICA NA ÉPOCA DA GLOBALIZAÇÃO

17
Idem, ibidem. Pág 20
Quais as possibilidades de uma prática política contra-hegemônica e quais

os agentes sociais que podem realizar essa prática? Embora saibamos que

nenhuma transformação se realiza completamente, ou porque ao se realizar

aponta novos problemas a serem enfrentados ou porque ela é postergada para

além da existência da geração que a postulou, entendemos que a prática política

necessariamente se realiza no espaço de uma geração, pois cada geração se

coloca problemas sobre os quais reflete e age na busca de solucioná-los. Assim,

entendemos que o futuro – do qual pouco, ou nada, sabemos - virá, mas não

compactuamos com um tipo de razão que Boaventura de Souza Santos,

inspirando-se em Leibniz, chama do paradaxo da razão indolente, aquela razão

que diz a si mesma: se o futuro é necessário e o que tiver de acontecer acontece

independentemente do que fizermos, é preferível não fazer nada, não cuidar de

nada e gozar o prazer do momento. Essa razão indolente está presente no mundo

atual, diz Boaventura, por duas razões aparentemente contraditórias: a primeira

por se sentir inerme perante a necessidade ( que ela imagina que lhe é totalmente

exterior, e não fruto de sua própria história, construída por ela mesma e portanto

passível de ser transformada também por ela); e a razão displicente, que não

sente necessidade de se exercitar por se imaginar incondicionalmente livre e

portanto livre da necessidade de provar sua liberdade.

Partimos, portanto, da premissa de que os homens são capazes de

começar algo novo e conseqüentemente não nos colocamos ao lado daqueles que

“naturalizam” as estruturas, ou seja, as tornam impermeáveis a qualquer ação

humana. Para nós, não há dicotomia insuperável entre estrutura e ação,

determinação e contingência nem primazia causal de uma estrutura sobre outras.


Seguindo o pensamento de Boaventura de Souza Santos, há ,em toda sociedade,

uma proliferação de estruturas e elas mesmas são “momentos ou marcos sólidos

na corrente fluida da prática, e o seu grau de solidez só pode ser determinado em

situações concretas, estando condenado a modificar-se à medida que as

situações se desenrolam”18. Diz ainda Boaventura:”Em abstrato, nenhum espaço

estrutural estabelece, em separado, mais limites ou limites mais importantes do

que qualquer outro. Os seis espaços estruturais[o espaço doméstico, o de

produção, o de mercado, o da cidadania, o da comunidade, o espaço mundial],

tomados em conjunto como constelações de ações sociais, estabelecem o

horizonte de determinação, os limites estruturais externos da vida social nas

sociedades capitalistas. Dentro dos limites estruturais, há um oceano de

contingência. As diferentes formas estruturais de poder social, de direito e de

conhecimento desenvolvem-se segundo dois modos contrastantes (...): fixação-

de-fronteiras e abertura-de-novos-caminhos. Enquanto fixação de fronteiras,

estabelecem limites, e enquanto abertura-de-novos-caminhos criam contingência

e podem deslocar limites. Na medida em que são habitados por contradições

parciais( a produção sistemática de uma certa forma de desigualdade), os

espaços estruturais desenvolvem-se também de maneira contraditória. Daí a sua

reprodução funcional não possa ser garantida a priori ou para sempre. Pelo

contrário, ela é intrinsecamente problemática” 19. E conclui:“as sociedades

18
Santos, Boaventura de Souza Santos. A crítica da Razão indolente: contra o desperdício da experiência. Pág
262. Boaventura define seis espaços estruturais( o doméstico, o da produção, o de mercado, o da cidadania, o
da comunidade e o espaço mundial) autônomos e articulados, cada um gerando suas formas específicas de
poder, direito e de conhecimento e constelações jurídicas, políticas e epistemológicas que caracterizam a
sociedade como um todo.
19
Santos, Boaventura de Souza . A crítica da Razão indolente: contra o desperdício da experiência. Pág
308/309
capitalistas do sistema mundial são constituídas por seis espaços estruturais, seis

conjuntos básicos de relações sociais que definem o horizonte da determinação

relevante. Esse horizonte estabelece os limites e as possibilidades de uma ordem

minimalista, uma ordem tolerante para com o caos, um princípio ordenador que

atua através da complexidade, da fragmentação, da hibridação e, sobretudo, da

constelação. Esse horizonte estrutural comporta e promove a contingência e a

criatividade.”20

Posta a premissa, é preciso de pronto dizer que, se a discussão da

chamada “pós-modernidade” ainda se encontra incompleta e insatisfatória, quadro

não muito diferente , senão ainda mais confuso, se apresenta quando se pretende

discutir a possibilidade e o grau de intervenção de agentes sociais , classes,

grupos e setores, num mundo globalizado.

Posta a premissa da globalização, a questão da intervenção política dos

agentes sociais passa necessariamente pela resposta à seguinte indagação; até

que ponto a “mundialização da economia” acarretou a mundialização da política.

Esta questão nos parece relevante na medida em que através dela se discute o

lugar das práticas políticas contemporâneas: se ele passou para o plano mundial,

só podendo então se pensar em práticas políticas globais ou se o global ainda é o

local, ou seja, se no processo de mundialização do capitalismo o que ocorre na

verdade é a inserção do sistema mundial nas relações locais e nacionais e não a

dissolução dessas últimas. O sistema mundial aparece então como “o outro” do

local e não o seu duplo.

20
idem, ibidem, pág 325
Iniciando a discussão e sem pretender esgotar o tema, apresentamos aqui

o pensamento de Antonio Negri e Michael Hardt que, em livro de sua autoria, com

o sugestivo título de Império, aponta para a existência já agora de um Estado

Global. O livro foi resenhado pela revista Mais (Folha de São Paulo, em

24.09.2000) que também apresenta uma entrevista com os autores e dois artigos

comentando o seu conteúdo.

O termo Império quer significar para seus autores a forma política da

globalização capitalista. Inspirada em Roma, o Império seria ilimitado em três

sentidos: no sentido espacial, nada está fora de seu domínio; no sentido temporal,

o seu domínio é posto como necessário e eterno, e em sentido social, porque

busca controlar toda experiência social. Distingue-se do imperialismo porque neste

havia uma luta entre estados- Nação europeus, cada um pretendendo estender o

seu domínio sobre outras nações e territórios. O Império atual é único e não tem

competidores. Há uma estrutura hierárquica dentro desse império, no qual os

Estados Unidos tem um papel privilegiado, seguido do grupo dos G-7. Vêm depois

as grandes corporações multinacionais e na base da pirâmide os Estados

Nacionais e as organizações não-governamentais.

Para eles, o Império é irreversível. E não é possível sair dela. Apenas o

êxodo é a única via de liberação que o Império nos deixou. Êxodo, resistência e

construção de territórios liberados, em nível mundial. Nesse mundo, os sujeitos da

história seriam as multidões de trabalhadores e hoje - sempre mais- a dos

trabalhadores intelectuais. Diz Negri: “Não creio que existam propostas que a

esses sujeitos, a essa multidão, possam ser feitas. Pode-se no máximo pedir a

eles que escutem as recomendações do “Intelecto geral” que constitui hoje o


trabalho vivo. Dizem essas recomendações: reúnam e organizem politicamente na

cooperação do trabalho cada forma de trabalho vivo , ou seja, o trabalho material

dos escravos, o trabalho intelectual dos pesquisadores, o afetivo da reprodução

doméstica da vida, o imaterial dos serviços superiores, etc. Todo trabalhador

explorado deve encontrar, na sua própria dignidade de trabalho vivo e no

reconhecimento da tendência de se tornar plenamente cooperativo e intelectual, a

força de desatrelar-se do capital, de ir embora, de levar a luta a um ponto final” 21.

Dois artigos comentam o livro. Em um deles, André Singer, procura mostrar

qual seria a prática de um militante comunista diante do quadro proposto pelo

Império. Diz ele que a primeira é não tentar girar para trás a roda da história . Para

os autores, na Constituição do Império, embora embrionária, mas cujo modelo é a

dos Estados Unidos, o poder é imanente, isto é, a multidão, mergulhada no fértil

mundo da vida, pode gerar formas de contrapoder que são alternativas ao vazio

de sentido produzido e reproduzido pelo capital. Uma vez que o poder constituinte

se encontra disperso na multidão, ela pode utilizá-lo para gerar o contra-império,

cuja configuração os próprios autores não ousam dizer. A segunda tarefa de um

comunista é andar por aí como um São Francisco redivivo. Não é por acaso que

os autores evocam um santo da Idade Média. Não se deve esquecer que por ser

um pré-estado Nacional, o medievo ainda guarda muito do período imperial

anterior. Francisco de Assis decidiu mergulhar na vida do povo, de modo a

reencontrar nele uma nova fé. A forma que terá o Contra-Império nascerá da

prática da multidão. Ao comunista cabe, portanto, estar no meio dela.

21
Folha de São Paulo, Revista MAIS, 24.09.2000
O outro artigo é de Slavoj Zizek. Considera o livro como pré-marxista porque não

tem fôlego na sua análise fundamental: de que modo o processo

socioeconômico global poderia abrir espaço para medidas radicais

comparáveis à revolução proletária que, na visão de Marx, superaria o

antagonismo fundamental do modo de produção capitalista? Os três

conselhos práticos que fecham o livro, diz o comentador, soam como

anticlímax. Os autores propalam a luta política por três direitos globais: o

direito à cidadania global, o direito à renda mínima e a reapropriação de

novos meios de produção (isto é o aceso e o controle da educação, da

informação e da comunicação). O problema dessas exigências é que elas

pairam entre o vazio formal e o radicalismo impraticável. Tomemos o

exemplo do direito à cidadania global que nos levaria, se não significar

apenas uma declaração ao estilo da ONU, ao desmoronamento geral,

passando pela promulgação de leis globais e pela dissolução das fronteiras

nacionais. Na prática isso implicaria a invasão dos EUA e da Europa

Ocidental pela mão-de-obra barata da Índia, China e da África, seguido de

um levante popular contra os imigrantes .

Pelo que se lê na resenha e comentários, observa-se que ,na verdade, os

autores simplesmente explicitam uma estruturação desse Império, perceptível por

qualquer observador mais atento. Entendo essa configuração mais como uma

análise de uma ordem “geopolítica” mundial do que uma tentativa bem sucedida

de formular um conceito de Estado Mundial. Na verdade, aí estão os nossos

velhos conhecidos Estados-Nação, ainda que estruturados hierárquica e


funcionalmente. Mas até que ponto essa ordem geopolítica não é ela mesma

sujeita a contradições? Até que ponto os autores hipostasiaram uma situação,

transformando-a indevidamente num quadro conceitual? Por outro lado, sua visão

do império é bastante claustrofóbica, restando como saída o “ êxodo”, ou seja, a

criação de “espaços alternativos”, saída no mínimo curiosa, que lembra as

comunidades alternativas surgidas nos anos 60.

Outros autores existem que sem tentar formular o conceito de “estado

global” apontam para práticas políticas internacionais como solução para as

questões da contemporaneidade.

Luis Carlos Fridman, analisando o pensamento de Anthony Giddens e

Zygmunt Bauman, mostra que ambos enfatizam a necessidade da construção de

instituições democráticas supranacionais, embora partam de análises bem

diferentes da pós-modernidade. O primeiro tem uma visão bastante otimista da

dinâmica da sociedade de informação, capaz de gerar “trocas” entre pessoas de

diferentes culturas, possibilitando uma “abertura para o outro” que pode

fundamentar pressões e práticas políticas emancipatórias, emancipação que

passa pela maior autonomia dos indivíduos, liberto dos entraves das tradições e

das verdades oraculares, produzidas pela religião, comunidade e família. Como

diz Luis Carlos Fridman, Giddens parte do pressuposto de que indivíduos da

sociedade de informação têm uma mentalidade do “eu me importo” capaz de

produzir pressões na direção de políticas que sejam democráticas e universais. Já

Zygmunt Bauman, embora também propugne por instituições republicanas

internacionais, essas instituições seriam regeneradoras, num quadro de um novo

internacionalismo, destinadas a transformar o medo em solidariedade e a incluir os


“excluídos”.Para Bauman, o quadro dos indivíduos é de apatia, do “eu não me

importo” e as instituições republicanas internacionais tenderiam a reverter esse

quadro.

Em meu entender, embora não se possa negar a importância de “práticas

mundiais” há de se aprofundar a discussão. Porque o mundo global não é um

mundo homogêneo nem mesmo um “um só mundo”. Muito pelo contrário, é

assimétrico e fragmentado. E essa assimetria e fragmentação é imanente a ele.

Citando Alex Fiuza de Mello:

A globalização é um processo eivado de contradições. “um processo de

criação de nichos de desenvolvimento, cercado de oceanos de miséria por todos

os lado: a “Industrialização endividada” da periferia, a “modernização negativa”

que só faz destruir as estruturas tradicionais sem oferecer em troca para a maioria

da população qualquer perspectiva de vida humanamente digna – apresenta-se

para dois terços da humanidade como uma longa e tortuosa travessia, sem luz ao

final do túnel. Some-se a tudo isso,a recente política neoliberal de abertura de

mercados, motivada pela acirrada concorrência entre firmas multinacionais e que

vem , ultimamente, constituindo-se em motivo de contestação por parte de grupos

nacionalistas e de setores populares que se vêem ameaçados em seus empregos

e/ou ofícios tradicionais... Inclua-se ainda no quadro geral dessas novas

contradições(...)os movimentos ecológicos que se interpõem às pretensões da

impunidade do lucro a qualquer preço... paralelamente ao internacionalismo

capitalista, emerge, como demonstram esses movimentos ambientalistas, novas

formas de consciência social que vão sendo forjadas também elas em escala

global e revelando-se como espécie de novas forças ideológicas de resistência,


que abrem um novo ciclo de unidade e cooperação entre os povos para além das

fronteiras dos Estados –Nação22

Da leitura desse texto percebe-se que o ponto central da discussão, quando

se enfatiza o espaço mundial como a arena privilegiada de prática política, passa

pela percepção da erosão do Estado-Nação, foco privilegiado de análise da

modernidade, erosão essa que levaria à submissão dos estados a uma estratégia

mundial. Mas há efetivamente uma erosão do Estado-Nação e em que nível? Para

nós, faz mais sentido uma análise que privilegie não a erosão mas a tensão entre

sistema mundial e o Estado-Nação. Tensão significa exatamente não a eliminação

de um dos elementos do par, mas sua existência mútua, complementar e

contraditória. Estado-Nação e sistema mundial se enfrentam. Não há ainda

vencedor e vencido nem esta batalha teve ainda um fim nem mesmo se sabe qual

será. Faz mais sentido falar, como Boaventura de Souza Santos, de espaço

mundial como “ matriz organizadora dos efeitos pertinentes das condições e das

hierarquias mundiais”sobre os demais espaços 23. Embora certamente a tensão

entre Estados-nação e globalização seja uma das tensões típicas da

contemporaneidade, esta tensão significa exatamente a explicitação da tensão

global/local já analisada anteriormente, quando se falou de globalização.

Boaventura de Souza Santos dá um exemplo bastante significativo dessa

tensão quando analisa a política de direitos humanos que no quadro atual

tenta se revestir de uma conotação de política mundial. Mas, pergunta com muita

acuidade, em que termos se pode transformar uma política que é cultural, e

22
Mello, Alex Fiuza. Ibidem. Pág 263/265
23
Santos, Boaventura Souza . A crítica da Razão indolente: contra o desperdício da experiência. Pág 278
conseqüentemente “local”, no sentido de que pensar a cultura é pensar a

diferença, o particularismo em uma política global? 24 Usando os “modos de

produção”da globalização, citados pelo mesmo autor, o que se vê aqui é um

localismo globalizado ( a idéia de “direitos humanos”tal qual formulada pela cultura

ocidental) tendo como resposta um “globalismo localizado”, ou seja, culturas não-

ocidentais contrapondo-se ao ideário ocidental em nome de outros princípios.

Mesmo uma análise mais restrita do jogo político entre Nações, o que se

vê não é a eliminação do Estado-Nação mas sua reorganização em “grupos de

Estado” que regionalizam o poder para fortalecer-se. É claro que se pode dizer

que isso aponta para o enfraquecimento de uma idéia de Estado-Nação soberano,

e nisso estaremos todos de acordo, o exacerbamento da tensão entre os dois

pólos mas não para a eliminação do Estado-Nação.

No campo da cultura também existem relações contraditórias entre Nação e

Sistema mundial. O fundamentalismo, exemplo mais visível, é a outra face da

globalização. Através dele, sistemas sociais locais reagem à “invasão’ de práticas

culturais que não fincam pé nas tradições de determinada cultura. Portanto

globalização e localismo são duas faces de uma mesma moeda e pensar-se na

mundialização de práticas políticas , como se o mundo fosse um todo homogêneo

e não um sistema contraditório, assimétrico e fragmentado me soa mais como um

recurso ideológico dos setores hegemônicos, na sua busca incessante de eliminar

os entraves à exploração capitalista que hoje, sem dúvida, invade todo o globo.

Mas essa invasão não se faz sem conflitos, lutas e perdas.

24
Ele dá uma resposta a este dilema no texto As tensões da modernidade, já indicados em nota anterior. O que
nos interessa aqui é mostrar como ele aponta nào para uma eliminação do estado-Nação mas par uma tensãp
entre os dois polos: estad0-naçào e sistema mundial
Um exemplo recente e muito badalado me ocorre agora: a recepção

acalorada do líder do campesinato francês, Bové, no Forum Mundial Social de

Porto Alegre, que pretendeu aglutinar interesses contra a globalização tal qual

vem se impondo no mundo. Seria Bové um representante de uma prática política

internacionalista? É claro que de um ponto de vista da mídia, sua visibilidade é

mundial. Também suas ações podem eventualmente servir de inspiração imediata

para outros grupos. Mas o que me interessa perguntar é se ele estaria

representando os interesses “de todos os agricultores do mundo” – uma resposta

afirmativa poderia nos levar a concluir que realmente estaria surgindo o “agente de

transformação universal”. Sua entrevista no programa Roda Viva é nesse sentido

muito esclarecedora: disse ele que sua postura era de defesa de todos os

produtores que têm sua agricultura destruída pela entrada de produtos do

estrangeiro, a preços menores, o que causava a desestruturação da produção

local. Mas a idéia geral - proteção para a agricultura - transforma-se no entanto em

uma prática local - porque conclui ele, assim como os agricultores franceses

devem proteger sua produção, cada um dos países deve fazer o mesmo. Usando

a terminologia de Boaventura de Souza Santos, trata-se na verdade da reação a

um “globalismo localizado” (a intervenção do global em estruturas de produção

locais) com uma prática política local. O direito abstrato pode ser geral – direito de

proteger-se da ameaça externa, representada pela entrada no país de produtos a

preços mais baixos que destroem a estrutura agrícola de um país – mas o

resultado dessa prática é a “proteção de fronteiras”, quase autárquica, muito

longe, portando, de uma prática política mundial.


Ainda estamos longe, por todos os elementos apresentados acima, de

descartar as configurações do Estado-Nação, para efeito de práticas políticas.

Embora não neguemos o caráter avassalador do capitalismo que se expandiu com

uma amplitude nunca antes vista, não podemos falar de um Estado Mundial,

superior e contraposto aos Estados-Nação. Temos configurações de poder

mundial, até mesmo uma conformação geopolítica, mas muito longe ainda de

configurar a formação de um Estado supra-nacional. Também não negamos que o

acesso à rede mundial de informações é um fator de expansão do nível de

pressão por mudanças para muito além do “âmbito nacional” e os foruns

internacionais, as Ongs, as redes internacionais de movimentos de direitos

humanos e feministas, só para citar alguns exemplos, não deixam de apontar

para essa direção. Mas ainda estamos muito longe da mundialização da política.

A única proposta realmente internacionalista construída até o momento foi

sem dúvida a marxista. O marxismo em sua formulação teórica pensa a “revolução

mundial”. Mas ela seria mundial porque haveria um aprofundamento do

capitalismo que levaria à radicalização da luta de classes; uma radicalização de tal

ordem que claramente situasse de um lado a classe dominante dos capitalistas e

do outro a maioria dominada dos proletários, tal como imaginado por Marx, com a

idéia de proletarização crescente dos trabalhadores.

Mas na verdade, muito diferente do previsto, o capitalismo não levou – até o

momento – a essa radicalização. Muito pelo contrário, o que se viu foi de um lado

a criação de um proletariado que, por força de suas lutas, conseguiu várias

conquistas, os chamados direitos sociais, pelo menos no primeiro mundo e em


algumas categorias do segundo e terceiro mundos, que o incorporou

definitivamente à “civilização da mercadoria”. Este grupo, depois dos tempos

dourados do Estado-de-Bem-Estar Social vem lutando muito mais na defesa

dessas conquistas – manutenção do status quo – do que pela transformação,

perdendo sua “aura” de agente revolucionário. De outro lado, com a crescente

utilização da tecnologia no processo produtivo, o que se vê é o surgimento de um

lúmpen, de uma massa de excluídos que já não tem mais lugar em nenhuma

sociedade, e que agora também começa a habitar as bordas dos países

chamados do primeiro mundo. Qual a ideologia possível para esse lúmpen?

Apenas a destruição. Ele não tem futuro e sua única opção política é continuar

vivo. E em terceiro lugar, ao crescimento de uma categoria de trabalhadores,

chamados de intelectuais, que exercem dentro da cadeia produtiva funções que os

separam do proletariado tradicional, mas nem por isso o deixam à parte da

civilização da mercadoria. Muito pelo contrário, com a colonização crescente da

vida pelo capitalismo, que invade todas as dimensões da vida social e das

subjetividades, estes “trabalhadores intelectuais” são uma força fundamental

nesse processo: são os designers, os publicitários, os cientistas, comprometidos

com o avanço tecnológico a ser apropriado diretamente pela produção, os

trabalhadores da indústria do lazer, etc.25.

25
Fernando Haddad, cientista político, em entrevista concedida ao grupo teatral Companhia do Latão,
transcrita na revista Vintém, publicada pelo mesmo grupo, número IV, indica três classes de não-proprietários:
classe do proletariado tradicional, o lúmpem moderno e a classe dos trabalhadores intelectuais, contratados
pelo capital não para produzir mas para criar, inovar, pesquisar. Dependendo da questão em jogo, esses grupos
fazem alianças pontuais com a burguesia. A tarefa política é costurar politicamente um discurso qeu consiga
responder a interesses emancipatórios dessas três classes .E conclui, já que tem uma visão otimista de uma
prática política transformadora: “O papel daqueles que se dedicam à política e querem mudar o mundo pela
política é olhar para a ação dos que não têm propriedade, observar o que eles criam de novo, nos mutirões, nas
cooperativas, onde quer que seja, e tentar orquestrar a universalização, quando possível, daquilo que parece
particular”( Revista Vintém , pág.19)
Há assim, também do lado das classes sociais, uma fragmentação, uma

hibridização, que torna ainda mais complexo um projeto de transformação social e

política. O que se vê hoje é que há múltiplos níveis de dominação e múltiplos

agentes de dominação. Conseqüentemente o inimigo está em todo lugar e

portanto em lugar nenhum.

Como se pensar, portanto, em uma prática política internacionalista

neste mundo global que não o é? Como, num mundo globalizado, mas

contraditório, tensionado entre centro e periferia, Norte e Sul, um mundo

polarizado entre culturas “intraduzíveis” umas nas outras, podemos falar em lutas

concretas globais, a não ser pontualmente, caso a caso, desde que sejamos

capazes de transformar particularismos em universalismos, um universalismo que

certamente pouco terá a ver com o universal Iluminista, mas um universal plural,

ou,para usar um slogan zapatista, “um mundo onde caibam vários mundos”.

O global é um conjunto assimétrico de particularismos e localismos em

conflito e embate com as forças dominantes do capital. Certamente há uma

pequena parcela da humanidade que realmente está na faixa da compressão

tempo-espaço. São pessoas cuja casa é “o mundo”. Mas esses não estão

voltados, enquanto classe, para a transformação do mundo, mesmo porque são os

maiores beneficários da situação atual. É certo também que há outros que “como

cidadãos do mundo” têm uma visão crítica. Penso num Sebastião Salgado, esse

andarilho caçador de imagens em sua cruzada pelo mundo dos deserdados e

excluídos. Seu papel certamente é dar visibilidade ao mundo “tal qual é”. Mas o
mundo tal qual deve ser (o que quer que isso signifique) não pode ser produzido

senão por ações concretas. E o concreto é sempre “local”, um local hoje

mediatizado e midiatizado pelo “global”, mas sempre o local, o lugar onde as

relações sociais se efetivam. No aqui e agora de cada um.


Por isso entendo como mais rica de conseqüências a postura de

Boaventura de Souza Santos26. Sua proposta política de transformação trabalha

com o entendimento da dinâmica das estruturas concretas que se caracterizam

como constelações de poderes, de direito e de conhecimento. Por outro lado,

trabalha com uma utopia de transformação baseada em dois pilares: a construção

de um novo paradigma e a construção de uma nova subjetividade.

A construção de um novo paradigma, que ele denomina de “conhecimento

prudente para uma vida decente”, parte da priorização do conhecimento-

emancipação, em substituição ao conhecimento-regulação, hoje hegemônico. O

conhecimento-emancipação é aquele cujo ponto de partida é o colonialismo ( o

outro como objeto) e cujo ponto de chegada é a solidariedade ( o outro como

sujeito). O conhecimento-regulação é aquele cujo ponto de partida é o caos e o

ponto de chegada é a ordem. A articulação entre modernidade e capitalismo levou

à hegemonia do conhecimento-regulação, priorizando-se a ordem como fim, e

invertendo o processo do conhecimento-emancipação, convertendo o que era seu

ponto final ( a solidariedade) em caos e seu ponto de partida( colonialismo) em

ponto de chegada.

26
Santos, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. Ver
principalmente o capítulo 1
Para ele, deve-se trabalhar pela superação da crise epistemológica atual-

representada pela hegemonia da ciência- e que se origina basicamente da

constatação da assimetria entre a capacidade de ação da ciência e sua

capacidade de previsão, que tem ocasionado a crescente insegurança e incerteza

quanto ao futuro. A partir de uma crítica radical do paradigma dominante da

ciência e iluminada pelo conhecimento-emancipação, a prática política da

transformação deixa de louvar-se nos princípios da modernidade (e por isso se

coloca como uma posição pós-moderna) ao mesmo tempo em que desfaz o nó da

regulação, que asfixiou todo o pilar da emancipação.

No novo paradigma há dois compromissos epistemológicos de monta:

a) reafirmar o caos como forma de saber e não de ignorância. Ou seja,

entender que caos e ordem coexistem numa relação mais ou menos

tensa e que as ações têm não apenas conseqüências

intencionais/lineares, mas uma multiplicidade impensável

(potencialmente infinita) de conseqüências. O caos então nos convida a

um conhecimento prudente, ou seja, um conhecimento que minimize a

distância entre os atos e as conseqüências. A proximidade teria primazia

como forma mais decisiva do real.

b) revalorizar a solidariedade como uma forma de saber. A solidariedade é

o conhecimento obtido no processo, sempre inacabado, de nos

tornarmos capazes de reciprocidade, através da construção e do

reconhecimento da intersubjetividade
Mas quem promoveria a mudança? Aqui entra o segundo pilar da

transformação. A construção de subjetividades rebeldes. A subjetividade rebelde,

usando as metáforas de Boaventura de Souza Santos, é um habitante do “Sul”, ou

seja, ele habita os lugares onde ainda é possível “escavar” o que a modernidade

deixou de lado, principalmente as práticas comunitárias e a expressividade

estética ainda não colonizada pela indústria cultural. É um homem de fronteira, no

sentido que vive em um espaço vazio, fluido, plural e inventivo. E finalmente é um

homem barroco, que vive na suspensão da ordem e dos cânones; no aqui e agora

e que insiste no particular, no efêmero, no momentâneo e transitório.

Assumindo criticamente a contingência e a incerteza, Boaventura

complexifica o tema da transformação e, sem dúvida, descarta o aconchegante

leito da verdade da história. Por não haver agente de transformação pré-definido,

a subjetividade rebelde é “uma construção de si mesmo”. Trata-se de escolha feita

por indivíduos. O que nos coloca irremediavelmente presos aos desígnios

insuportáveis da liberdade. Por outro lado, por não haver um lugar privilegiado da

política – todo poder é uma constelação de poderes - ele aponta para múltiplos

lugares e múltiplos agentes, porque múltiplas são as opressões e múltiplos os

agentes de transformação.
Subjetividades rebeldes constroem práticas emancipatórias concretas,

geradas nos diversos espaços estruturais – doméstico, da produção, do mercado,

da comunidade, da cidadania e espaço mundial e traduzem essas práticas em

práticas de outras estruturas, de modo que se possa criar “um novo senso

comum”, construído por homens e mulheres comuns, na sua prática política,

iluminados por um tipo de conhecimento, o conhecimento-emancipação, capaz de

produzir uma nova familiaridade com o mundo. Para ele, não há emancipação.

Somente emancipações. Em cada espaço estrutural há que se criar um mapa

emancipatório, gerado através da discussão dialógica, com o uso de uma nova

retórica, que não trabalha com a mera persuasão – preocupada com a adesão

motivada para agir – mas com o convencimento, que se preocupa em apresentar

“boas razões”. Cabe a esses múltiplos agentes a criação de uma cartografia

emancipatória, onde se traduzam os anseios e demandas de emancipação de uns

e outros, e assim se construa a “mapa” da emancipação.

Com a utopia realista de Boaventura de Souza santos, chegamos ao final

do trabalho. Necessidade e contingência, estrutura e ação, acaso e determinismo,

se são categorias do pensamento, não se separam na prática efetiva de homens e

mulheres. Este é um tempo em que afinal o homem se descobriu responsável por

tudo – e por isso essa época se tornou tão fértil de deuses e deusas, em cuja

crença depositamos o horror da nossa responsabilidade -. Somos responsáveis

não porque o homem é o senhor do Universo, mas porque afinal descobriu que

somos nós os únicos fazedores das grandezas e misérias da história humana .

O que devemos fazer?


Num tempo em que :

- o capitalismo avança por todo o planeta e não deixa nenhum espaço

livre de seu domínio

- o mundo da mercadoria colonizou todas as formas de vida

- no seu processo de destruição criativa o capitalismo vai criando um

“mundo de deserdados” que não terão lugar na sociedade

- O Estado-Nação – que foi capaz em algum momento de garantir um

grau mínimo de confiança de seus cidadãos - hoje passa por um

processo de erosão, fruto da tensão permanente com o sistema mundial

- a ciência, transformada em fator de produção, livrou o indivíduo dos

laços familiares, religiosos e comunitários, fazendo com que a confiança

hoje se estabeleça entre indivíduos e peritos. Mas que nesse processo

trouxe como conseqüência a impessoalidade, a fragilização dos laços

interpessoais, a angústia e a insegurança

- cresce o risco e a incerteza gerados pela própria ciência e pela

tecnologia

- coexistem a ordem(pela hegemonia do poder de regulação)e a

desordem (gerada pela crescente assimetria entre ação e previsão)

Não terá chegado a hora de não mais esperar a crise final do capitalismo -

que não sabemos como ou quando virá – e tentar construir a cada momento uma

prática política contra-hegemônica?


Não terá chegado a hora de criar uma utopia que não é, como diz

Boaventura de Souza Santos, um outro lugar, mas um “aqui”, uma utopia que seja

uma heterotopia, um lugar “diferente”?

Há uma certa desolação no ar. Hoje o que mais se diz é: “é assim mesmo, o

que se há de fazer?” Porque não se tem certeza do que virá ou o que virá parece

pior do que o que existe, abdicamos de agir. Não temos mais esperança.

Parecemos cansados, apesar dos corpos saudáveis e sarados, do gozo

interminável e nunca saciado e da perspectiva que nos anunciam do

prolongamento de nossas vidas. Sim, já não temos a quem atribuir a

responsabilidade pela transformação do mundo. Talvez ele sequer tenha existido

em algum momento. Mas ainda existe a possibilidade de transformar sujeitos

conformistas em sujeitos rebeldes. Para isso é preciso denunciar o paradigma

dominante e trabalhar nas franjas do sistema. Tarefa pequena para quem já

sonhou que seria possível surgir o paraíso na terra. E inútil para aqueles que

pensam que o futuro virá, seja ele qual for. Para os primeiros, talvez seja a hora de

pensar pequeno mesmo, pensar no que está próximo, naquilo que está a seu lado,

e, sem perder o contato com o “sonho do futuro” ,criar o futuro, aqui e agora. Para

os segundos, para os que pensam na inutilidade dos pequenos trabalhos, nada

tenho a dizer. Este texto não foi escrito pensando neles.

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