Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
ABSTRACT – This article aims to discuss about the importance of not only
knowing the etymological question of image term – especially from the comparison
with the corresponding Greek terms, eikon and eidolon, and with the Latin imago – as
well as demonstrate its intimidatory and coercive power, used for millennia. With
this information, we will seek to exemplify how these terms were employed by
Homer and Virgil, collecting their peculiarities, so that we can know not only the
concept itself, but its linguistic implications. Thus, we can understand the image no
longer as mere unintentional copy of the outside world, but as a deliberate show of
force and power used since ancient times by many people, but still maintain the same
efficiency in our day, as shall illustrate.
KEYWORDS – Image, coercive power, etymology, photography, Iconophotology
1
Mestre e Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Titular do Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP) e coordenador
do Grupo de Pesquisa CONDESIM-FOTÓS/DGP-CAPES.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Questão etimológica
κῆηερ ἐκή, ηί λύ κ᾽ οὐ κίκλεης ἑιέεηλ κεκαῶηα,
ὄθρα θαὶ εἰλ Ἀίδαο θίιας περὶ τεῖρε βαιόληε
ἀκθοηέρω θρσεροῖο ηεηαρπώκεζζα γόοηο;
ἦ ηί κοη εἴδωλον ηόδ᾽ ἀγασὴ Περζεθόλεηα
ὤηρσλ᾽, ὄθρ᾽ ἔηη κᾶιιολ ὀδσρόκελος ζηελατίδω2
(HOMERO XI, 211-215)
2
“Mãe, minha mãe, por que rejeitas minhas mãos/ que avançam, se desejo saciar de pranto/ glacial a
nós, aos dois, no enlace pelos ínferos?/ Perséfone sublime acaso envia um ícone,/ para aumentar-me a
dor que verto em pranto?” (tradução de VIEIRA, 2012)
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Não por acaso e segundo o senso comum a seu respeito, Platão, considerado o
filósofo do não às imagens, enxergava-as assim: meras sombras3. Esquece-se, porém,
de que, na República, o mesmo aponta diversas vezes para as imagens em seu modelo
dialético e maiêutico (AZEVEDO, 2003), daí valer-se delas – sol, linha, caverna –, a
fim de se chegar à verdade, por meio do ιόγος (lógos), ele mesmo imagem.
(BRANDÃO, 2014)
Um fato, porém, que ainda nos chama a atenção na obra em questão, é que, ao
referir-se àquilo que hoje chamamos de imagem, o filósofo pouco emprega, como
seria de se esperar em alguém que rechaça as imagens por serem meras sombras, os
termos ζθηά ou εἴδωιολ – enquanto sinônimas de sombra, esboço, silhueta de um
morto –, mas εἰθὼλ (eikón) – imagem que se assemelha a um objeto, pintura,
pensamento, imagens mentais, comparação, semelhança4 (PAPE, 2005), conforme é
possível aferir no diálogo entre Sócrates e Adimanto5: “Suscitas uma questão à qual só
posso responder por uma imagem.”6 “Mas não é costume teu expressar-te por
181
imagens!”7 (Trad. CORIVISIERI, 1997)8
Se para os gregos εἰθὼλ e εἴδωιολ correspondiam aos dois domínios imagéticos
da representação – a) um, o do mundo que temos diante de nós, por meio de
desenhos, gravuras, esculturas, pinturas, fotografias; b) outro, o de nosso mundo
imaterial, formado em nossa mente, como nossas fantasias, visões, sonhos,
3
Retirado do mito da caverna: “πανηάπαζι δή, ἦν δ᾽ ἐγώ, οἱ ηοιοῦηοι οὐκ ἂν ἄλλο ηι νομίζοιεν ηὸ ἀληθὲς
ἢ ηὰς ηῶν ζκεσαζηῶν σκιάς”. (PLATÃO, VII, 515) [Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade
senão às sombras dos objetos fabricados. (trad. de CORIVISIERI, 1997)]
4
Não nos cabe emitir juízo do porquê de tal utilização, tampouco as razões que levaram o filósofo a
esse emprego, visto que nossa preocupação é tão-somente o emprego do termo εἰθὼλ em nossos
propósitos. Interessante, porém, é a forma como Pinheiro (2009, p. 25) havia abordado a questão ao
afirmar que “a Sócrates se faz necessário valer-se do recurso imagético dado que não estão preparados
os seus interlocutores à dialética, ao método que prescinde dos sentidos, portanto das imagens (511c). Por
isso, a episteme dialética, nível noético da passagem da Linha, é apresentada na República, por imagens,
isto é, no nível dianoético”.
5
Do qual nos interessa, tão-somente, a figura lexical εἰθὼλ, a título ilustrativo.
6
“ἐρωηᾷς, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἐρώηημα δεόμενον ἀποκρίζεως δι᾽ εἰκόνος λεγομένης.”
7
“ζὺ δέ γε, ἔθη, οἶμαι οὐκ εἴωθας δι᾽ εἰκόνων λέγειν.”
8
Note-se que a tradução de Shorey (1969) para o inglês é: “Your question,” I said, “requires an answer
expressed in a comparison or parable.” “And you,” he said, “of course, are not accustomed to speak in
comparisons!”
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Tal imagem imaterial, porém, também εἴδωιολ não se difere daquela que
Eneias tem agora diante de si, mesmo podendo vê-la e ouvi-la. Assim, de maneira
semelhante a Odisseu, quando esteve diante de sua mãe no Hades, ou mesmo Aquiles
que vislumbrou Pátroclo antes de seu funeral (HOMERO, 2011, XXIII, 60-107), o
herói de Virgílio também tenta tocar, sentir, ter o pai entre seus braços e mãos:
9
“Noites seguidas Anquises, meu pai, quando a úmidas sombras/ à terra baixam, ou quando se elevam
fulgentes os astros,/ sim, sua pálida imagem nos sonhos me admoesta, me aterra” (trad. de NUNES,
2014, IV 351)
10
“Tua imagem, meu pai, dolorida, /que a cada instante me vinha à memória, ao destino me trouxe.”
(trad. de NUNES, 2014, IV 351)
11
“Permite/ que as mãos nos demos; não negues ao filho este amplexo singelo”./ Assim falando, de
lágrimas ternas o rosto banhava./ Três vezes tenta cingi-lo nos braços; três vezes a sombra/ inanemente
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Adiante, e tendo chegado à Itália, Eneias envia emissários ao rei Latino que os
recebe de bom grado e os convida à mesa, no mesmo templo em que se imolava às
divindades. Lá os teucros veem imagens (εἰθὼλ-imago) dos antepassados:
apertada das mãos se lhe escapa, tal como/aura ligeira ao passar ou roçar ao de leve de um sonho.”
(ibidem)
12
“Mais: no vestíbulo viam-se estátuas de cedro já velho,/ dos descendentes: a de Ítalo, do vinhateiro
Sabino,/ pai venerando, e a seus pés, encurvado, o podão de trabalho,/ Saturno velho e, mais longe, a
figura de Jano bifronte./ Outras seguiam-se, nobres imagens dos chefes primeiros,/ que derramaram
seu sangue em defesa da pátria querida.” (ibidem)
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
184 ιόγος pela escrita” (BRANDÃO, 2014, p. 179); é, a partir delas, que apreendemos o
mundo, por meio de uma imagem central: nosso próprio corpo (BERGSON, 1999),
não à toa
13
“A ideia de simulacro remete a Platão e seu conceito de κίκεζης. Segundo o filósofo, há uma oposição
insuperável entre o mundo sensível e o mundo das Ideias e, para ilustrar o tema, empregou o conceito da
caverna: o real, ao projetar-se na parede, traduz-se em irrealidade que as pessoas, em seu interior, creem
ser a realidade, afinal seus sentidos só teriam condições de alcançar simulacros. O real torna-se ideal,
cujas Ideias – universais, imutáveis, eternas –, habitam o exterior e são inatingíveis pelos meros sentidos
corporais; o mundo sensível, o irreal, não passa, portanto, de um teatro de sombras e reflexos. Por isso,
para Platão, o fato de a κίκεζης ser uma mera imitação da irrealidade – da sombra projetada –, toda arte
constitui-se de um desvio em relação à essência, uma falsidade, que aponta para o mero simulacro, do
qual o mundo também faz parte, envolvido que está no mundo de aparências, por isso o ser humano
não consegue atingir sua essência.” (BRANDÃO, 2014, p. 179)
14
A partir do século XVI, com a Reforma, surgiram os embates entre católicos e protestantes acerca
das imagens. Para estes os católicos adoravam imagens, vendo-as, portanto como είδωιολ, enquanto
aqueles ao rechaçar a imagem, buscavam a iconoclastia.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
15
[(...) o recurso visuográfico mais universal parece ter sido o auto adorno: a pintura corporal, cicatrizes
rituais na face e torso, arranjos de cabelo elaborados, e refinamentos do traje. Os trajes, de modo
particular, ocuparam funções vitais simbólicas no ritual e na religião, provavelmente com base nos
recursos visuais criativos da sociedade mais do que qualquer outro meio. (tradução nossa)]
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
186
Figura 1
Santíssima Trindade, Massaccio, 1426-1428, Igreja Santa Maria Novella, Italia
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
pirâmide visual, cujo vértice era no interior do globo ocular. Em seguida ligava esse
ponto, por meio de linhas retas – os raios visuais –, aos contornos de todos os objetos
do campo visual. As linhas deveriam determinar a posição relativa dos objetos no
quadro.
A imagem obtida, por intermédio deste sistema, mostrava uma hierarquia de
proporções, representando a distância em que determinado objeto se encontrava de
outro; obtinha-se, assim, uma impressão de tridimensionalidade. Os raios visuais,
prolongando-se de forma invisível no espaço, convergiam para o ponto de fuga.
Assim, segundo o teórico italiano, a pintura seria a “intersecção da pirâmide visual
representada com arte por linhas e cores numa dada superfície, de acordo com uma
certa distância e posição do centro e o estabelecimento de luzes.” (ibidem, p. 83)
De tal modo, por meio da matemática e empregando um espaço geométrico
abstrato, foi dada ao pintor a oportunidade de realizar, em uma superfície plana (2D),
uma representação onde se emula não só a profundidade (3D) do ambiente e dos seres
187
nele inseridos, como também a percepção, também abstrata, da realidade.
Não se deve esquecer, entretanto, de que enxergamos com dois olhos, por
meio de uma visão bilocular, enquanto a perspectiva artificialis nos oferece uma visão
unilocular da realidade, ao empregar apenas um olho; restringe-se, portanto, a
totalidade do que se pode contemplar. Desse modo, tal representação revela-se como
mensageira de uma ordem simbólica modulada e intermediada, exatamente, pelas
regras da geometria. (EL-BIZRI, 2014)
Ao discernirmos essa superfície plana (2D), é possível reconhecer o suporte
(tela, papel, parede, por exemplo) empregado pela imagem; a superfície onde ela se
fixou; as distorções sofridas por ela, em relação à realidade que procurou emular.
Apesar desse conhecimento prévio; temos, no entanto, a percepção de enxergá-la em
profundidade (3D), como se nos fosse possível adentrar a cena, como no afresco de
Massaccio (fig. 1). Não à toa, Vasari (2011), em sua Vida dos artistas (publicado
originalmente em 1550), diz acerca do pintor:
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
[...] tudo o que foi feito antes dele era realmente pintado e pintura,
ao passo que suas obras, em comparação com as de seus concorrentes
e com as daqueles que quiseram imitá-lo, parecem vivas e
verdadeiras, e não imitações da natureza. (VASARI, 2011, p. 218)
Tal ilusão tridimensional, porém, não é real, mas fenomênica, uma mera
percepção do real, não suas qualidades em si mesmo (DOMÈNECH, 2011), para a
qual é imprescindível a inclusão do sujeito-leitor que decodifica/reconstrói o
perspectivismo criado pelo artista.
Quanto ao duplo domínio das imagens, um aspecto que merece atenção é o
fato de que ambas – a representação material e imaterial – não existem separadas, já
que “estão inextricavelmente ligados já em sua gênese”. (SANTAELLA. NÖTH,
2005, p. 15) Isso quer dizer que não há imagens, enquanto representações visuais e
materiais do mundo, “que não tenham surgido na mente daqueles que as produziram”
(ibidem, p. 15); ou, como diziam os gregos, o ηετσίηες (artista) deve vislumbrar sua
188 obra, seu είδος (eîdos), anteriormente, em sua mente (BRANDÃO, 2015); afinal, o
corpo, enquanto imagem privilegiada, regula todas as outras (BERGSON, 1999),
mesmo aquelas em que há o emprego de meios técnicos. De um modo semelhante,
“não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos
objetos visuais.” (SANTAELLA. NÖTH, 2005, p. 15)
Em uma perspectiva semiótica, o que une os dois domínios são os conceitos de
signo e representação. Aquele é “tudo quanto possa ser assumido como um
substituto significante de outra coisa qualquer” (ECO, 2003, p. 4) que não precisa,
necessariamente, “subsistir de fato” (ibidem, p. 4), mas existe “toda vez que um grupo
humano decide usar algo como veículo de outra coisa” (ibidem, p. 14); esta se refere,
se nos restringirmos a Peirce, a algo que está em lugar de outro algo de tal forma que é
considerado por alguém como se, realmente, fosse esse outro: um porta-voz
representa um governador, um presidente, ou seja, um governo ou uma empresa; um
agente representa a força policial que representa o Estado; um sintoma representa
uma enfermidade (PEIRCE, 2005, p. 61):
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
189
O ícone não tem conexão dinâmica alguma com o objeto que
representa; simplesmente acontece que suas qualidades se
assemelham às do objeto e excitam sensações análogas na mente para
a qual é uma semelhança. Mas, na verdade, não mantém conexão
com elas. O índice está fisicamente conectado com seu objeto;
formam um par orgânico, porém a mente interpretante nada tem a
ver com essa conexão, exceto o fato de registrá-la, depois de
estabelecida. O símbolo está conectado a seu objeto por força da
ideia da mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não
existiria. (ibidem, p. 73, grifo nosso)
As imagens tanto podem ser ícones, índices ou símbolos, apesar de esses signos
se manifestarem de maneira distinta em seus diferentes gêneros: a imagem indexical,
por exemplo, manifesta-se na fotografia e na pintura realista; a icônica, na pintura não
16
Peirce diz ainda que, quando se quer distinguir entre “aquilo que representa” e o “ato de
representação”, “pode-se denominar o primeiro de representâmen e o segundo de representação.”
(PEIRCE, 2005, p. 61)
17
Criticado, se certa forma por ECO (2003), como “categorias ‘passepartout’ ou ‘noções guarda-chuva’,
que funcionam exatamente por sua vagueza, como ocorre com a categoria ‘signo’ ou mesmo com a de
‘coisa.’” (p. 157)
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
190 depende, dentre outros fatores, de como sua memória estabelece infinitas relações e
associações de maneira livre e aleatória, desde que não se tenha um modelo (muitas
vezes imposto!) a se seguir, como é o caso de gravuras ou imagens nos textos
literários, por exemplo.
Lembro-me, certa vez, de uma aluna que me disse que Capitu, realmente,
havia traído Bentinho, em Dom Casmurro, porque seu filho era a cara de Escobar.
Ao perguntar-lhe como ela havia chegado a essa conclusão, respondeu-me que a capa
do livro mostrava isso. Ao reparar na mesma, percebi que isso acontecia realmente: o
garoto representado era a fotocópia de Escobar18, cuja imagem estava refletida em um
espelho, sugerindo, de maneira impositiva (não me é possível saber se intencional ou
não), o adultério.
18
Realmente não fica claro saber se a imagem do espelho realmente é a de Escobar, ou do filho do casal
já adulto, tamanha é a semelhança.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
191 Figura 2
The Family of Images (MITCHELL, 1987, p. 10)
19
[...] imagens mentais pertencem à psicologia e à epistemologia; imagens ópticas, à física; imagem
gráfica, escultórica e arquitetônica, ao historiador de arte; imagens verbais, ao crítico literário; imagens
perceptivas ocupam uma espécie de região fronteiriça, onde fisiologistas, neurologistas, psicólogos,
historiadores de arte e estudantes de óptica encontram-se a colaborar com filósofos e críticos literários.
(tradução nossa)]
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
20
[(...)uma vasta literatura sobre a função das imagens em seu próprio domínio, uma situação que tende
a intimidar quem tenta ter uma visão geral do problema.]
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
a massa nunca questionará aquilo que vai receber, mesmo que sejam
193 inverdades, factoides, ou dados, simplesmente inventados, a partir da
história. Entretanto, para que a propaganda surta o efeito desejado e
seja eficiente, é indispensável que contenha pouca informação, mas
que essa seja empregada à exaustão, de forma persistente, contínua,
constante, inalterável; somente assim logrará êxito [...].
(BRANDÃO. SOUSA, 2015, p. 356)
Mas, apesar da persistência com que tais imagens devem ser empregadas para se
subornar a massa, as imagens apresentadas sobre uma mesma temática devem conter algumas
variações, a fim de não suscitar o tédio e aborrecer seu receptor (HITLER, 1943;
DOMENACH, 1968), perdendo sua eficácia. Assim, para se desconstruir a imagem de
alguém, faz-se necessário apenas mostrar facetas da verdade, de forma intermitente e
continuada, tendo apenas o cuidado de fazer pausas momentâneas, a fim de não enfastiar o
leitor.
Nem seria necessário retroceder tanto no tempo para demonstrar como funciona o
poder da desconstrução imagética e a impassibilidade de a massa lidar com elas. Basta,
para isso, analisarem-se as imagens empregadas, exaustivamente, pelas mídias sociais e
por alguns mass media nas eleições presidenciais brasileiras de 2014, para se verificar
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
como, dependendo de seu emprego, podem ser tornar uma forma tirânica de se
induzir o ódio latente de classe e espalhá-lo a toda a sociedade, despertando aquilo que
estava adormecido sob os auspícios do politicamente correto. Reconfigura-se, dessa
maneira, toda uma sociedade que sequer se dá conta disso.
194
Figura 3
Detalhe do Estandarte de Ur, foto de Steven Zucker, c. 2600/2400 a. C.,
British Museum, London
Nos primórdios da humanidade, por exemplo, tudo possuía uma razão de ser,
e uma explicação plausível, mesmo que não compreensível para nossa ratio. Havia
uma crença, quase universal, no poder das imagens (GOMBRICH, 2013),
independente de qual fosse seu suporte ou formato; já que, ao valer-se de quaisquer
objetos retirados da natureza ou por ele fabricados, o homem os transformava em
símbolos, o que conferia aos mesmos uma enorme carga psicológica (JAFFÉ, 2008),
levando-os não apenas à veneração, à contemplação e ao êxtase, mas ao substituto, a
sua própria encarnação.
Ao valer-se da máscara de um animal, por exemplo, o homem que faria
emprego dela não estava apenas transvestido daquele objeto, nem fazia um mero uso
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
de uma imagem, mas tornava-se aquele próprio ser (GOMBRICH, 2013), adquiria sua
força, seu poder, seus atributos; isso porque o que se esvai durante sua utilização era
seu próprio ego, sua própria expressão enquanto indivíduo.
O mesmo acontecia com os animais pintados nas cavernas: não eram uma
mera reprodução, nem buscavam deleite ou fruição, possuíam uma função definida,
utilitária, mágica; pois, mais do que trazê-los do exterior para o interior, um mero
decalque, um símile, aqueles homens buscavam conhecê-los, respeitá-los e sucumbi-los
simbolicamente, antecipando sua morte, conforme é possível verificar nas marcas de
perfurações deixadas em muitas dessas figuras. (JAFFÉ, 2008)
Assim, a ideia de que a imagem sempre foi empregada como mera cópia da
realidade, ou como representação do mundo externo, apenas se efetivou após um
longo processo (VERNANT, 1990), isso porque sua função primeira era feérica,
mítica, metafísica, mesmo que o homem ainda não a compreendesse de maneira
clara.
195
Figura 4
Detalhe do Estandarte de Ur, foto de Steven Zucker, c. 2600/2400 a. C.,
British Museum, London
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Outro ponto importante que merece ser abordado em relação à imagem é sua
relação indissociável em relação aos pictogramas (CAÑIZAL, 1986), às letras
(GOMBRICH, 2013) e ao ιόγος (lógos) (BRANDÃO, 2009a), ou seja, ela foi o
primeiro passo para que o homem, por seu meio pudesse criar mundos paralelos e não
só “dominar a si mesmo, a seus semelhantes, ao mundo físico, como também ir além
daquilo que a própria natureza lhe forneceu, adentrar no metafísico.” (ibidem, p. 282)
Não por acaso as grandes civilizações da Antiguidade também haviam
descoberto mais uma faceta do poder imagético: a da propaganda. Isso se torna mais
claro, quando nos pomos a ler o Estandarte de Ur (fig. 3-4) que, apesar de sua pequena
dimensão (21,59 cm x 49,53 cm), poderia ter sido modelo ou cópia de outras
configurações maiores.
196
Figura 5
Biga hitita, foto de Michel Royon, ca. de 1000 a. C.
Ancara Archaeological Museum
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Figura 6
Cerco de Dapur por Ramsés II, Templo de Tebas, c. de 1269 a.C.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
198
Figura 7
Ramsés II em batalha com seus filhos, Templo Beit el-Wali, ca. 1550
British Museum, London
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
199
Figura 8
Ramsés II matando seus opositores, Templo de Abu Simbel
Dessa maneira, pouco importa o fato de que, segundo a história, o faraó – por
não ter nenhuma possibilidade de vencer os hititas, mas de ser derrotado por eles –
haja preferido a celebração de um vergonhoso tratado de paz com seus inimigos.
Aquilo que importava para ele, para seu povo e para seus prováveis oponentes, foi
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
como se deu a construção imagética do episódio, estampada e difundida por todo seu
império e que se tornou a plena verdade do acontecimento.
Assim, por seu emprego, tanto o faraó quanto o evento construídos por seus
artífices e empregados de forma sistematizada passaram a ser, efetivamente, Ramsés II
e sua grande batalha; mesmo que o homem histórico, cuja frágil múmia é possível ser
vista ainda hoje no Museu Egípcio do Cairo, fosse muito diferente de sua retratação; e
sua grande batalha, não passasse de um embuste.
Ao lermos a figura 7, verifica-se uma relação de submissão diferente daquela
verificada nas figuras 3 e 5. O faraó, em seu carro, não está mais apenas sobre uma
pessoa, mas sobre todo um povo, o núbio; representado, de forma esquemática, por
negros e vermelhos, cujas formas são diminutas, em relação ao tamanho do rei. Isso
busca demonstrar sua submissão e sua inferioridade diante de um poder superior e
divino, representado pelo faraó.
200
Figura 9
Rei Eduardo envia Haroldo à Normandia, Tapeçaria de Bayeux, 1070 AD,
Musée de la Tapisserie de Bayeux
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
201
Figura 10
A Batalha de Hastings, Tapeçaria de Bayeux, 1070 AD,
Musée de la Tapisserie de Bayeux
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
202
Figura 11
Mosaico de Alexandre, provável Batalha de Isso, ca. 150 a.C.
Museu Arqueológico de Nápoles
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
fazem a priori distinção entre os soldados comuns e seus líderes, como é possível
verificar na representação dos grandes líderes aqui representados. Havia uma grande
preocupação com a questão do escorço, isso porque os antigos não dominavam a
técnica da pespectiva artificalis, desenvolvida no Renascimento, apesar de
demonstrarem uma grande realidade ilusionista.
Há, porém, uma diferença entre essa e as outras obras vistas: não possuíam um
fim de intimidação – não era pública –, mas de fruição, afinal era privada21; visando,
provavelmente, não apenas ao deleite de seus proprietários, mas também à
demonstração de seu poder e riqueza, devido à técnica empregada e ao modelo de
onde proveio, provavelmente grego do século II a.C.
Algo semelhante poderíamos dizer acerca dos sarcófagos ricamente adornados
que se tornaram moda em Roma no começo de nossa era, dentre os quais havia os que
retratavam grandes batalhas (fig. 12); mas, que não se prestavam, é evidente, à
observação pública. Apesar disso, pode-se vislumbrar o rigor mimético com que as
203
figuras foram representadas, mesmo diante da aparente confusão da cena, devido à
exiguidade do espaço disponível de que o artista despunha.
A despeito do aparente destaque de apenas uma figura22, que é posta em
destaque, demonstrando seu status frente aos outros, há aqui, diferentemente dos
exemplos anteriores, uma paridade entre todas, afinal o que se procura exaltar o
poderia militar romano, cujos soldados – cabelos curtos, barbeados, envergando
armaduras e portando escudos – demonstram-se altivos, enérgicos e resolutos,
impondo uma dura derrota aos germânicos – cabelos longos e desgrenhados, barbas
longas, cada um trajando uma roupa diferente, alguns com o torso descoberto, outros
vestindo calças –, em cujos rostos podem-se ver angústia, sofrimento e desespero com
a provável derrota que se aproxima.
21
Por sinal, a obra era um mosaico romano, ou seja, era um dos pisos da chamada Casa de Fauno,
localizada em Pompeia.
22
Uma das características da arte romana era com que o leitor da imagem reconhecesse a figura
representada. Assim, a figura em destaque no Sarcófago Ludovisi, provavelmente é Hostiliano (230?-
251), filho do imperador Décio (201-251 AD), ou seu irmão Herênio Etrusco (227-251).
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
204
Figura 12
Sarcófago Ludovisi, séc. III d.C.
Museu Nacional de Roma, Itália
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Figura 13
Núbios capturados, Templo Abu-Simbel, séc XIII a.C.
205 Ramsés II fez questão de que se mostrasse o destino daqueles que iriam contra sua
vontade e que ousassem enfrentá-lo. A imagem da intimidação é clara: prisioneiros
capturados são exibidos com os braços amarrados, ajoelhados e esperando seu destino:
ou sua escravização ou sua provável execução. (fig. 13)
Muitas dessas execuções, por exemplo, poderiam transmitir inclusive um
caráter sacrifical para aqueles que faziam parte do povo dominado, nos moldes do
mito de Busíris, apesar da ausência de dados que corroborem tal afirmação; ou, ainda,
representar certo sadismo desse ou daquele general frente aos prisioneiros. Homero,
por exemplo, ao falar do ódio que se apossou de Aquiles diante da morte de seu amigo
Pátroclo, não apenas capturou doze jovens, mas os imolou em sinal de vingança:
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Figura 14
Rei Dario da Pérsia e prisioneiros capturados,
Inscrição de Behistun, séc VI a.C.
206
Convém perceber que aos egípcios não bastava apenas inserir imagens para que
servissem de alerta e propaganda contra seus possíveis inimigos tanto internos quanto
externos. Isso porque, faziam questão também de exaltar e registrar seus feitos
heroicos, também por meio do ιόγος, como o célebre poema de Pentaur. Reuniam,
portanto, às imagens palavras, formadas pelos hieróglifos, também eles imagens.
Expediente empregado, em Behistun (fig. 14), no Império Aquemênida
(Primeiro Império Persa), quase sete séculos depois, por Dario I que, não se deve
esquecer, também detinha o título de faraó do Egito, herdado de seu sogro, Ciro II,
cujo filho, Cambises II, havia conquistado o Egito em 525 a.C.
Para o homem do século XXI, de modo especial para aqueles que vivem em
um meio urbano, tais imagens intimidatórias e dissuasórias pertencem tão-só a um
passado e territórios longínquos, onde estão encerradas, afinal estão muito distantes
de nossa realidade. Contudo, por mais absurdo que possa parecer, é o contrário que
vemos: elas ainda estão presentes hoje de maneira clara, viva e em cores.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Figura 15
Prisioneiros do Estado Islâmico são amarrados antes de serem afogados,
de uma gaiola, em uma piscina, junho de 2015
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
208
Figura 16
Alexandre Magno, foto de Jack Brandão,
American Natural History Museum, New York
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
209
Figura 17
Aborígenes presos e acorrentados, a única informação a respeito da foto
é “capturados para execução”, Austrália, início dos séc. XX
No entanto, constatamos que, apesar dos milênios que nos separam, não é
mais necessário supor como se deram as atrocidades do passado, nem tentar
decodificar aquelas imagens extemporâneas, pois é-nos necessário apenas estabelecer
uma relação entre as mesmas com aquelas com as quais nos deparamos, de maneira
constante, nas diversas mídias de que dispomos hoje. Basta, para isso, apenas
assistirmos à TV ou acessarmos a internet.
Nessas mídias encontraremos diversas cenas veiculadas pelo autodenominado
Estado Islâmico que nos reproduzem, de maneira clara, direta e incisiva, o passado:
homens de joelhos, mãos amarradas, corda cingindo seus pescoços (fig. 15), cabeças
que rolam, corpos desfigurados e vilipendiados espalhados por vilas e aldeias.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
210
Figura 18
Argelinos sendo presos durante a guerra para independência do país (s/d)
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Tão ruim como comprovar que certas imagens do passado não estão tão
distantes de nós como pode parecer, é o fato de que hoje, ao serem veiculadas de
forma maciça como são, perdem seu efeito duplamente:
a) primeiro por não nos atingir mais, devido a sua banalidade, “fazendo com
que o horrível pareça vulgar, familiar, irremediável, remoto (“é só uma fotografia”).”
(SONTAG, 1986, p. 29) Assim, como o anacronismo nos deixa insensíveis diante das
cenas de brutalidade que se encerram nas paredes da história, o excesso de fotografias
e sua massificação também fazem o mesmo com nossa consciência, tornando-a
indiferente à desventura do outro. Isso porque, diante do acúmulo e da intensidade
imagéticos – ao contrário dos povos da Antiguidade que as viviam intensamente,
respeitando-as e sabendo ser dominados por elas –, não temos sequer tempo de retê-
las, de degluti-las, nem conseguimos retroalimentar o manancial de nossa própria
iconofotologia, afinal seriam delas, das imagens fotográficas, de que nos servimos para
a construção de nosso próprio acervo:
211
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Para um olhar mais perscrutador, porém, tais imagens fotográficas, por mais
banais e macabras que possam ser, acabam demonstrando in hoc tempore aquilo que só
se poderia supor do tempo passado, o deve ter sido assim! E, por terem sido
veiculadas via fotografia, temos consciência de que são reflexos do real, ainda mais
quando vinculadas ao ιόγος, como se verifica em nossos meios de comunicação,
mesmo que permanecemos indiferentes a elas. Isso porque, mesmo as negando
212 continuamente, não podemos descartar seu poder simbólico sobre todos nós: fomos
persuadidos, desde crianças, a acreditar que as fotografias são feitas a nossa “imagem e
semelhança”, são elas a imagem de nosso tempo, afinal muitos ainda a veem como a
mais mimética das representações humanas.
23
No dia 2 de junho de 2016, o Bundestag alemão reconheceu, formalmente, o Genocídio Armênio
negado com veemência pela Turquia. No entanto, ainda há muitos países que não o reconhecem,
apesar do farto material que prova sua existência, entre eles os EUA.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
213
Figura 19
Blitz em uma favela no Rio de Janeiro,
foto de Luiz Morier, 1983
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
214
Figura 20
Mulheres armênias crucificadas por serem cristãs,
Genocídio armênio, 1915
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
215
Figura 21
Mulher capturada por soldados franceses na Argélia,
durante a Guerra pela Independência, final dos anos 1950
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
que parece, tenta desvencilhar-se dos soldados que fazem questão de exibi-la como um
objeto, segurando-a pelas mãos para que não se rebele diante da câmera, para a qual
estão posando; querem, entretanto, que ela faça o mesmo. Ela, porém, está nua. Aqui
a mulher está sendo, duplamente, violentada: ao arrancarem-lhe as roupas, dilaceram
todos os preceitos morais estabelecidos por sua religião e por sua sociedade, que
determina que a mulher (assim como o homem) deveria ficar nu apenas diante do
cônjuge e resguardar seu pudor diante de estranhos ou mesmo parentes; além, é claro,
de provavelmente ter sido violentada de maneira física.
Que se pode dizer de alguém que se presta a posar para a posteridade após ter
violado alguém física e moralmente? Fetiche de ter podido ter em suas mãos um
animal que não se quer dominar? Não seria esse o motivo do riso sarcástico – o de se
esconder em sua covardia –, o fato de não poder, simplesmente, domar aquela fera
que tem seus costumes, moral e fé feridos? Que dizer então das cristãs armênias
crucificadas nuas, abandonadas e também estupradas em sua dignidade de mulher?
216
Figura 22
Escravos congoleses acorrentadas em uma plantação de borracha belga, ca. 1905
Quantas dessas mulheres não teriam sido desonradas após verem seus pais,
irmãos, filhos e maridos serem mortos? Para os algozes, basta a simples certeza de que
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
aquilo que estãoá fazendo é correto, que são ordens, para que se iniba toda a imagem
ética, moral e humana que se poderia ter frente ao outro: tudo se torna possível e
justificável.
217
Figura 23
Crianças exibem seus braços cujas mãos foram amputadas, ca. 1905
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
uma perseguição étnica, mas de pura exploração da mão-de-obra nativa (fig. 22),
obrigada a cumprir metas irrealizáveis, caso contrário, seriam mortas ou mutiladas
(fig. 23).
Assim como para os otomanos não houve genocídio na Armênia, procurando
esconder da história suas evidências e imagens, Leopoldo II procurou de todas as
maneiras ocultar (e conseguiu durante muito tempo) o que ocorria em sua
propriedade africana: escravidão, brutais assassinatos, estupros, tribos inteiras
queimadas, decapitações, além de mutilações de crianças, de homens, de mulheres e de
velhos, a fim de que os parentes cumprissem as cotas estabelecidas por seus capatazes.
218
Figura 24
Congoleses posando com mãos decepadas daqueles que não conseguiram extrair
sua cota diária de seiva de borracha, 1904
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
seu esquecimento. Por outro lado, isso faz com que seus algozes tenham de se ver
obrigados a aumentar o requinte de sua exibição, como ocorre com a
espetacularização proporcionada pelo EI: se a degola não comove mais, afogam-se as
vítimas; penduram-se as vítimas para que sejam, lentamente, queimadas; explodem-
nas; cometem as mesmas atrocidades com crianças, empregando um ciclo vicioso
tétrico.
Para tentar saciar nossa iconotropia diante dessa banalização e buscar o
máximo de realismo possível, podemos inclusive prescindir das imagens em
movimento: queremos os detalhes, as minúcias, já não é possível acreditar,
simplesmente, no que se vê, é necessário provar que é real:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Leon Battista. Da pintura (trad. Antônio S. Mendonça). Campinas: Ed.
da Unicamp, 2014.
AUERBACH, ERICH. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2004.
AUMONT, Jacques. A imagem (trad. Estela S. Abreu e Cláudio C. Santoro).
Campinas: Papirus, 1993.
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
Jack Brandão
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. VII Nº 16 AGOSTO/2016
VIRGÍLIO. Eneida (trad. Carlos Alberto Nunes). São Paulo: Ed. 34, 2014.
224
Jack Brandão