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A
canção urbana brasileira nasci- O principal contato de Ismael era ninguém me-
da com as tecnologias de gra- nos que Francisco Alves, a quem entregou diver-
vação e radiodifusão do início sas canções, muitas vezes concedendo parceria
do século XX possui uma his- autoral para garantir a gravação. Mas importa-
tória toda própria que normal- -nos aqui que o sambista dominava a técnica
mente se perde nas avaliações de compor para os numerosos ouvintes do Rei
musicais, literárias ou antropo- da Voz e que este provavelmente o orientava a
culturais. As declarações es- respeito do tipo de canção que realmente servia
parsas de seus principais agen- para aumentar a sua popularidade.
tes (compositores, cantores, Os compositores descrevem com frequência
produtores) oferecem algumas as circunstâncias que propiciaram a produção de
pistas preciosas que raramen- suas obras, mas deixam sempre um hiato entre a
te são identificadas como tais disposição inicial de criação e a obra final. Por
pelos pesquisadores. Talvez a perspectiva prévia isso é comum que as biografias também nos so-
adotada pelas investigações impeça que o foco neguem essas informações e que, depois de cen-
se ajuste nos pontos sensíveis de funcionamento tenas de páginas lidas, não saibamos sequer se
da linguagem cancional. o cancionista examinado era autor de melodias,
Há um conhecido depoimento de Ismael Sil- de letras ou de canções completas nem se com-
va em que o sambista afirma que, embora fosse punha a partir de algum instrumento harmônico.
fundador e participante da primeira escola de São lacunas que colaboram para sacralizar o fa-
samba (Deixa Falar) do Estácio, Rio de Janeiro, zer criativo, já que as canções brotam a partir de
suas composições não chegaram a fazer parte um sopro de vida que transforma sua ausência
do repertório exibido pela escola. A razão? Is- em existência, retirando-o do campo de alcance
mael já era “profissional” (Botezelli & Pereira, do saber humano, como se já não tivéssemos fe-
2000, p. 72). Queria dizer com isso que, antes nômenos realmente misteriosos suficientes para
da existência das escolas de samba, já compunha comprovar nossa ignorância cognitiva, ainda
canções para gravar. O que havia de específico mais quando se trata de criação.
nessas canções profissionais, além do eventual
aspecto financeiro?
O compositor, que nos anos 1930 contribuía
diretamente para a “invenção do samba” (Vian-
na, 1995, p. 173), sabia também como prover o LUIZ TATIT é professor titular do
Departamento de Linguística da FFLCH-USP
incipiente mercado do disco, àquela altura admi- e autor de, entre outros, Todos Entoam:
nistrado em boa medida pelos próprios cantores. Ensaios, Conversas e Lembranças (Ateliê).
PRIMAZIA DA
INTENSIDADE EMOCIONAL
Senti-la. Meu trabalho nesse estágio é encon- depende da destreza do letrista em depreender
trar palavras que se encaixem e se adequem os valores prosódicos impregnados na melodia,
às qualidades sonoras e emocionais da música, sobretudo quando o autor já a compõe pensan-
em vez de ignorá-las e talvez até destruí-las” do numa execução vocal. Conjugada à letra, a
(Byrne, 2014, p. 198). melodia passa a ser também um conjunto de
unidades entoativas, semelhante ao que acom-
Assumir a precedência da melodia em relação panha nossa fala cotidiana, reconhecível pelos
à letra é reconhecer que o conteúdo ou a temática falantes da língua e mesmo por indivíduos de
de uma canção decorre da intensidade emocional outros idiomas, mas afinado com a cultura na
e não o contrário. Por isso, para o letrista, é muito qual a canção foi produzida. Se essas modula-
mais importante criar níveis de compatibilidade ções prosódicas (ou entoativas) forem avivadas
com a melodia do que desenvolver um raciocínio pelo cancionista, podemos dizer que a obra ca-
coerente, uma narrativa ou mesmo certa autono- minha para a oralização, ou seja, as unidades
mia poético-literária no seu texto. Alguns compo- entoativas valem mais e, no extremo, chegamos
sitores brasileiros, como Djavan e Luiz Melodia, à quase neutralização de parte dos elementos
são muitas vezes criticados pela vagueza ou até musicais (harmonia e longas durações meló-
obscuridade dos seus versos em canções com dicas, por exemplo) para que a ênfase fique na
enorme sucesso de público. Tais críticas, porém, mensagem do componente linguístico (daí o
incidem invariavelmente sobre letras separadas exemplo do rap). Se, ao contrário, houver pouco
de suas respectivas melodias, o que revela a su- interesse pelas figuras prosódicas, o que persis-
perficialidade da avaliação e a falta de sintonia te é a musicalização da obra, ou seja, as unida-
com os critérios realmente cancionais. Justifican- des entoativas continuam existindo, mas valem
do o uso de imagens, digamos, avulsas em suas menos e o compositor faz prevalecer os recur-
canções, diz Luiz Melodia: “Eu gosto desses sos harmônicos e rítmicos, ao mesmo tempo em
flashes que aparecem nas minhas letras, umas que atenua a relevância da letra, suavizando o
arrancadas, umas sacadas bacanas” (Palumbo, teor dos seus versos, evitando dramatizações e
2002, p. 102). No fundo, são aspectos da inten- aproveitando sobretudo suas conexões fônicas,
sidade emocional normalmente atribuídos à me- como as rimas e as aliterações.
lodia, como a alta velocidade, que o compositor, Operando num segundo nível de compati-
nesse caso, transfere para a letra. Os “flashes” e bilidade, os cancionistas criam vínculos entre
as “arrancadas” possuem os traços de subitanei- as melodias que se concentram em motivos (ou
dade, rapidez e imprevisão que, provavelmente, partes) recorrentes e as letras que descrevem,
suas melodias pediam. É David Byrne, mais uma ou celebram, encontros e conjunções dos perso-
vez, quem resume toda a questão: nagens entre si ou com seus objetos de desejo.
Geralmente aceleradas, essas canções rebaixam
“Se ela [a letra] parece funcionar em nossa o valor das notas avulsas em nome dos grupos
mente, se a língua do cantor e os neurônios-es- de tons que formam motivos e identidade entre
pelho do ouvinte ressoam com aquela deliciosa si. A mesma identidade pode ser verificada no
sensação de encaixe quando essas palavras são conteúdo das letras ou, mais precisamente, nos
entoadas, isso inevitavelmente se sobrepõe ao estados narrativos dos seus atores, a começar do
sentido literal das palavras, por mais que seu intérprete (aquele que diz “eu”), que normalmen-
sentido literal possa ser interessante” (Byrne, te configuram “estados de graça” por já terem
2014, p. 198). conquistado seus objetos e por poderem enalte-
cê-los à vontade. As canções baseadas em refrão
ilustram bem esse gênero de integração entre
DESENLACE melodia e letra. Costumamos dizer que seus dois
componentes são regidos pela tematização.
Em resumo, o primeiro nível de compati- Há compatibilidade ainda quando os can-
bilidade entre melodia e letra, como vimos, cionistas associam melodias que se expandem
Bibliografia
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