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ENTREVISTA
DIZER
JOAQUIM
"POPULISMOS"
É FOAi4A
ELEGANTE
DE NÃO QUERER
D
"FASCIVLOS"
lextosde Pedro Olavo Simões
Fotagralosde RuiOliveira/ Globallmagens
ENTREVISTA
lgarvio com sangue Fui, em 64... mais em Coimbra foi a chuva, não estava
A
portuense, quase to- habituado a tanta chuva. Era muito mau
da a vida passada em -. em 64. Foi esse o início da sua vida mesmo e, depois, também não tinha re-
Coimbra, onde nos pública? cursos. Não era um indigente, mas tam-
recebeu. Joaquim Foiatéantes disso, pois fui presidente do bém não tinha sapatos para mudar a to-
Romero Magalhães, Teatro de Estudantes, em 1962 e 1963. da a hora conforme a água que apanha-
catedrático jubila- va. O estar fora de casa é algo diferente,
do da Faculdade de Economia da mais Essa necessidade de intervir vem-lhe mas é muito bom. Felizmente que não
antiga Universidade portuguesa, é um do facto de ser neto de dois fervorosos havia universidades regionais nesse
homem de paradoxos, mas não de con- republicanos, João da Rocha Vieira Ma- tempo.
tradições. O antipraxista que foi pre- galhães e Santiago Formosinho Rome-
sidente da Académica, o homem que ro? Estava a assumir a sua matriz ge- Mas foi benéfico elas serem feitas en-
não é fanático pela cidade mas coman- nética? tretanto, não?
dou a Assembleia Municipal durante 12 Sim, mas não tanto dos meus avós como Sim, sim, sim... mas eu acho que devia
anos, o laico que faz pausa na conver- do meu pai, embora o meu pai não tenha ser um pouco como era no serviço mi-
sa para partilharmos um monástico li- tido o percurso de que, provavelmen- litar obrigatório: fazer girar os moços.
cor de Singeverga. Referência maior no te, gostaria. Mas também aceitava desa-
estudo da Época Moderna, o historiador fios com facilidade. E também teve uma Como sucedia com os magistrados.
que presidiu à Comissão dos Descobri- trajetória engraçada. Tripeiro, foi para Sim, e por aí fora. Para não ficarem sem-
mentos é, também, um homem político o Algarve e lá se fixou e, depois, dali, ir- pre agarrados à mesma coisa.
- milita no PS, foi secretário de Estado radiou, com uma ação cultural bastante
em governos de Mário Soares e foi depu- interessante. Mas sempre tripeiro. En- Para rasgarem horizontes?
tado constituinte - sem discurso politi- tão ao telefone, era impressionante. Fa- Exato.
queiro. Fala claro e não se perde em con- lava como se estivesse na Rua de Cimo
versa fiada. de Vila, onde nasceu. A sua presidência da Associação Aca-
démica de Coimbra ocorreu entre as fa-
Quem olhar para o seu percurso, da ju- Tripeiro sempre, tal como o Prof.Rome- mosas crises académicas lisboeta, em
ventude à maturidade, vê um cidadão ro se manteve sempre algarvio. 1962, com Jorge Sampaio, e coimbrã,
irrequieto, ou inquieto. Essa inquieta- Mas eu também sou um algarvio mui- em1989, comAlberto Martins. O asso-
ção é a chave para compreendermos a to especial. Gosto muito do Algarve e ciativismo estudantil estava necessa-
sua vida pública? sou muito algarvio em muitas coisas, riamente politizado, apesar da repres-
Sim, há uma certa inquietação, que mas vim para Coimbra, depois fui pa- são?
sempre tive, mas a minha vida, sobre- ra o Porto, onde fiz uma carreira no en- Estava, claro. Eu vivia numa república,
tudo a parte pública, também tem sido sino liceal, de que gostei muito, e de- e eram as repúblicas que, em geral, di-
muito fruto do acaso, sendo o acaso um pois voltei para cá e acabei por me fixar namizavam as eleições para a Associa-
cruzamento de linhas que nós não do- aqui, talvez um pouco também por aca- ção Académ ica. A lista era mesmo apre-
minamos, mas que estão lá. Fui secre- so, embora a minha mulher seja aqui da sentada como do Conselho das Repú-
tário de Estado porque o [Mário Sot- região. Mas não sou assim fanático por blicas. E era, obviamente, de oposição.
tomayorl Cardia me escolheu, e esco- Coimbra... E fui presidente da Assem- Nunca topei que fosse do setor A, B, ou
lheu-me porque eu tinha estado com bleia Municipal durante 12 anos! C. Mais tarde, sim, mas nesse tempo era
ele na Assembleia Constituinte, e antes simplesmente de oposição.
disso tinha estado aqui, quando ele veio Nasceu e cresceu num Algarve alheio
expulso para cá. Há um cruzamento de àquele que conhecemos, profunda- Havia a unidade de um objetivo co-
acontecimentos... Fui para a Comissão menteaiterado pelo turismo. Esse tem- mum?
dos Descobrimentos porque o [Antó- po que ali testemunhou foi importante Uma unidade relativa. lá nessa altura,
nio Manuel] Hespanha era meu amigo e para adquirira sua consciência cívica e naturalmente, havia partidos que pro-
achou que eu poderia dar continuidade construir a sua sensibilidade política? curavam puxar a brasa à sua sardinha,
àquilo que ele tinha feito. Enfim, há uma Sim, sim. O Algarve era uma terra mui- mas, em geral, a gente entendia-se. Era
certa inquetação, sim, mas também o to pobre, que só como turismo se desen- oposição, simplesmente, e esse objetivo
acaso. E, talvez também por isso, eu vá- volveu. Em Faro, no centro da cidade, comum tornava tudo mais fácil.
rias vezes fui, sem me preocupar muito andei numa escola onde boa parte das
com as consequências. Avancei sem me crianças que andavam comigo iam des- De que formas é que os jovens estu-
preocupar muito com o que isso trazia, calças, porque não tinham sapatos e não dantes de Coimbra conseguiam ser
embora eu seja cauteloso. por gosto, como os meus netos, que che- oposição?
gam aqui e se descalçam logo. Muito difícil, muito difícil... Fazia-se, so-
O avanço parte do pressuposto de ha- bretudo, através das manifestações cul-
ver, pelo menos, uma convicção? Acaba o liceu e vem para Coimbra. En- turais que nós conseguíamos pôr de pé.
Sim, sim. e sempre tive o gosto de fazer. controu uma diferença muito grande Dos conferencistas que convidávamos,
entre os "reinos" de Portugal e dos Al- das peças de teatro que procurávamos
Desde novo. Chegoua serpresidenteda garves? fazer, dos filmes que organizávamos em
Associação Académica de Coimbra... Não era assim tanto. O que me tocou ciclos para os estudantes... E também, e
"A UNIVERSIDADE
ERA MUITO
RETRÓGRADA.
O TIPO DE ENSINO
ERA SEBENTEIRO, E
NOS REAGÍAMOS UM
BOCADO A ISSO"
ENTREVISTA
Estatal e estática...
E estática, completamente.
"OS
PROFESSORES
ERAM
SERVENTUÁRIOS
DO REGIME"
O Direito foi a sua primeira opção uni- E verdade que foi atrás dele para a ve foram escolhas naturais?
versitária, porque não queria ser pro- praia? Tinha de ser. Foi o Magalhães Godinho
fessor. Foi uma experiência curta. A Fui, fui... fui atrás dele para Albufeira que me empurrou. Ele já me tinha em-
História falou mais alto? e apanhei-o. Por um acaso, uma amiga purrado para fazer a licenciatura sobre
Não queria ir para professor, porque o minha era colega, em Medicina, da filha o Algarve do século XVI, que fiz, e de-
meu pai era professor... Não foi propria- mais velha dele, e disse-me que elesiam pois queria que eu fizesse sobre o En-
mente a História que me.chamou, mas para Albufeira. Quando soube, fui à pro- tre Douro e Minho. Ora, o Entre Dou-
achei o Direito horrível. As aulas, na Fa- cura dele. Ele era muito generoso. Quem ro e Minho era uma loucura de traba-
culdade de Letras, eram muito más, mas queria trabalhar podia estar à vontade lho. A quantidade de freguesias que ali
na Faculdade de Direito eram horríveis. com ele. Agora, para quem não quises- há é urna coisa que nunca mais acaba.
Era uma chatice, aquilo! Não era para se trabalhar era muito complicado, isso Não dava. Então, assentei com ele fazer
mim. No Natal, eu já nem queria voltar era. Não era uma pessoa fácil... a continuação, de certo modo - os sécu-
para Coimbra. los XVII e XVIII -, para o doutoramen-
E como é que, estando numa Univer- to.. E havia já, nessa altura, coisa que não
Era demasiado técnico ou burocrático? sidade tão fechada, o aceitaram como havia para o século XVI, dados quanti-
Não posso dizer isso, não cheguei a tal. seu orientador? tativos, e o Magalhães Godinho estava
Eu andava ali no Direito Romano, na Aceitaram perfeitamente. O responsá- nessa altura muito focado nas quanti-
História do Direito Português, que era vel pelo seminário, nessa altura, era o ficações. Portanto, pude avançar nisso.
muito chato, como Braga da Cruz...E um doutor Salvador Dias Arnaut, com quem
tal Pires de Lima, que eram uma seca eu tinha uma excelente relação pessoal. Nunca deixou de ter a costela algarvia
horrível, as aulas do homem... Definiti- Falei-lhe que tinha esta hipótese, e ele na sua produção historiográfica?
vamente, aquilo não era para mim. disse logo: "Aproveite, aproveite". De- Não tanto assim. Mas sou chamado
pois, também disse ao Manuel Lopes de muitas vezes. Ainda agora vou fazer lá
Em Letras, as aulas também não eram A lmeida, que tinhasido um ferozminis- a apresentação do livro do meu pai, mas
propriamente estimulantes, certo? tro da Educação, em 1962, mas que tam- também vou fazer uma coisa no arqui-
Sim, embora tenha tido um ou outro bém achou muito bem. Eles nunca pen- vo de Loulé, que é um belíssimo arqui-
professor muito bom, mas corno ex- saram em mim para o Ensino Superior, vo, talvez do melhor que há em arqui-
ceções. portanto tanto se lhes fazia. vos municipais - tirando o do Porto, cla-
ro, mas melhor do que o de Lisboa. Sou
Costuma dizer que a sua formação não Vitorino Magalhães Godinho não era realmente chamado ao Algarve, mas
foi feita na faculdade, mas depois, cri- uma pessoa apreciada pelo regime... eu já reuni as coisas algarvias num vo-
ticando o tipo de ensino que encontrou Ele estava expulso!... Mas eles respeita- lume. De algum modo, sou um filho da
nos anos 60. Isto mudou muito, nas vam-no como historiador. Talvez não o terra que fica bem na fotografia. Mas
suas quatro décadas de docência? citassem nem aconselhassem muito as gosto muito de trabalhar nos "Anais
Mudou mesmo muito. A qualidade dos coisas dele, mas respeitavam-no. O Lo- do Município de Faro", porque, de fac-
professores de hoje é muito superior. pes de Almeida, em especial, respeita- to, com grande espanto meu, tem apa-
Não tem comparação possível. Naque- va-o muito. recido muita gente a querer colaborar.
le tempo, os professores eram serven- Claro que sou historiador e não posso
tuários do regime, na maior parte. Não Naquele tempo, Magalhães Godinho ignorar essa minha qualidade, mas te-
eram propriamente investigadores, seria uma raridade em Portugal, no que nho procurado que as pessoas escre-
ou, se o eram, ensinavam cada dispara- respeita a horizontes historiográficos. vam memórias. A memória não é Histó-
te, cada baboseira que não havia gosto Era incomparável. Não tinha nada a ver ria, é aquilo de que a gente se lembra. E
possível para aquilo. É claro que apare- com o que havia aqui. As conversas com têm aparecido coisasmuito engraçadas.
cia, por exemplo, uma Maria Helena da ele eram muito estimulantes, e a biblio - Vou-me divertindo.
Rocha Pereira, um Silvio Lima... Apare- grafia que facultava era espantosa. Eu ia
ciam assim umas figuras, mas, repito, a casa dele, em Lisboa, e saia de lá carre- Está a produzir fontes para o futuro?
como exceções. gado de livros. 'linha de ir de táxi, o que Sim, também, talvez...
não era muito agradável para mim, pois
Esses professores acabavam por ser, tinha de pagar, mas não podia transpor- A História de Portugal dirigida por José
assim, figuras autoreprimidas? tar aquilo tudo de outra maneira. Mattoso foi um marco na historiogra-
Não creio... Eram pessoas que não eram fia, tendo então cabido a si a coorde-
do contra. Mas sabiam ser investigado- Nunca fez isso aos seus alunos, enchê- nação do volume dedicado essencial-
res a sério. -los de bibliografia? mente ao século XVI. O que represen-
Assim tanto, não. As coisas são diferen- tou, para si, esse trabalho?
Falando em investigadores a sério: foi tes. As aulas que eu dei na Universidade, Um esforço absolutamente medonho,
a atração pela Época Moderna que o le- a partir de 73, 74 eram completamente porque foram para aí dois anos de mui-
vou a Vitorino Magalhães Godinho, ou abertas, não tinham nada a ver com an- to trabalho, porque os prazos eram pa-
foi ele que o empurrou para lá? tigamente. ra cumprir... No dia em que tinha de es-
Fui eu, fui eu. O Magalhães Godinho foi tar pronto, estava. Houve apenas uma
a minha tábua de salvação, mas eu é que Quando se abalançoua fazer o doutora- alteração, não me lembro já se foi comi-
fui à procura dele. mento, a História económica e o Algar- go, na ordem dos volumes que saiam.
i:
•
Em termos historiográficos, apresentá- jo outra maneira... Embora a minhamu- cessidade que eu tinha de perceber
mos uma estrutura totalmente diferen- lher seja sobrinha-neta do Tomás da aquilo. Acho uma coisa absolutamen-
te do habitual. O que tínhamos atrás de Fonseca, portanto, de um ambiente an- te extraordinária como é que um regi-
nós era o Damião Peres, a História dita ticlerical. (risos) me político com sete séculos cai. Havia
de Barcelos, que é uma bela obra, nas- qualquer coisa que era preciso estudar.
cida da Faculdade de Letras do Porto. Estudar essa época abriu-lhe caminho Para mim, pelo menos, consegui ver o
Mas era uma coisa dos anos 20. Fazer al- a novas paixões, como o Brasil ou Ma- percurso decadente da monarquia, até
go nos anos 90 era um grande desafio, cau, numa fase posterior... cair. E nisso, para além de todas coi-
muita coisa tinha mudado em 70 anos. Sim, sim, mas não tanto Macau como o sas, houve um guia fantástico, chama-
No meu volume, o que fiz foi dar tam- Brasil. do João Chagas, sobre quem também es-
bém uma volta à ordem natural das coi- crevi um livrinho. Uma figura absoluta-
sas. A demografia, por exemplo, apare- Compreender o império é essencial pa- mente central nisto tudo, não depois de
ce no capítulo quinto e não no primeiro, ra a compreensão de Portugal? 1910, mas antes de 1910.
como era habitual, e a geografia... O ar- É, claro. Na minha opinião, há três gran-
ranque foi com as formas políticas e, de- des mestres nesta coisa. É o Godinho, O centenário da República propiciou
pois, foi por aí adiante, até à sociedade, obviamente, Charles Boxer e um autor uma atividade historiográfica muito
que é o culminar, o fechar, mas a socie- que pouca gente estuda, que é lohn Ho- intensa...
dade vista sob o ponto de vista cultural, race Parry, um inglês que foi professor Sim, e ainda não se conhece tudo o que
coisa que nos anos 90 também tinha al- em Harvard e andou, exatamente. na estava programado. Houve atrasos, e
guma novidade. Mas já lá vão quase 30 navegação e na História da ciência. Com certas obras, se calhar, nunca sairâo...
anos. Quando, há dois anos, o Círculo de esses três mestres, a gente vai lá. Todo Mas, honra lhes seja, houve duas figuras
Leitores reeditou a obra, queriam que se o trabalho que essa gente fez (conheci centrais por trás de todo esse trabalho:
atualizasse, e eu recusei. dois deles, o Boxer não muito bem, mas Artur Santos Silva, que, enquanto pre-
o Godinho sim, de forma muito próxi- sidente da Comissão das comemora-
Tinha de fazer um volume novo... ma) e, também, as vias que eles abriram ções, foi de uma correção e capacidade
Era outra coisal... Acho que ninguém, são fundamentais para a gente perce- de iniciativa fantásticas, e a atual secre-
dos autores originais, esteve disposto a ber isso. tária de Estado do Ensino Superior, Ma-
fazer isso. Era impossível. ria Fernanda Rollo.
A Comissão dos Descobrimentos foi
Os descobrimentos e a expansão por- um espaço de realização ou foi uma Tanto conhecimento ajudou o país a fa-
tuguesa continuam a ser o cerne da mi- missão política? zer aspazes com esse período?
tologia nacional (ou nacionalista)? Não, não, nada de missão política. Nin- Talvez, mas ainda há o Vasco Pulido Va-
Nacionalista, com certeza. Nacional... guém me exigiu nada, ninguém me pe- lente, o Rui Ramos e outros quejandos,
eu penso que bem, pois trata-se de um diu nada. Tive uma relação muito agra- que continuam a dizer o mesmo e que
período interessante, de grande esforço dável, sempre, com o António Guterres, estão na continuidade do salazarismo,
de atualização. Os homens de quatro- que eu já conhecia de outras lides, e dei- sem qualquer dúvida.
centos e de quinhentos esforçaram-se xou-me sempre à vontade. Não tive tan-
para dominar a natureza e consegui- to dinheiro como precisava, para fazer o Esse livro, "Vem aia República", abre
ram-no, foi formidável. É extraordiná- que queria, mas, mesmo assim, ter nas com uma nota prévia datada de 31 de
rio pensarmos que os tipos saíam nuns mãos um instrumento daqueles dá um janeiro de 2009. Foi coincidência, ou
barquitos, verdadeiras cascas de noz - grande prazer a quem gosta de fazer coi- quis homenagear os revoltosos de
mesmo as naus do Vasco da Gama são sas. Poder dinamizar isto e aquilo, um 1891?
umas coisas pequeninas -, para a Índia, congresso, um encontro, uma viagem... Foi de propósito, sim. (risos) Mas tive
ou atravessavam o Atlântico Sul. Penso mais prazer em assistir ao que se pas-
eu que as grandes dificuldades que eles Conseguiu fazer coisas bonitas? sou no dia 31dejaneiro de 2010, no Porto,
tiveram são as dificuldades normais do Uma ópera, uma óperal... Trouxe "O com o arranque das comemorações do
homem perante a doença. Toda a equi- Guarani" [obra do compositor brasilei- centenário. Foi uma belíssima jornada.
pagem do Vasco da Gama morre no Índi- ro Carlos Gomes] a São Carlos. Acabei
co, no regresso, como escorbuto e aque- com um concerto da Orquestra Metro- Nuncaa historiografia portuguesa teve
las trapalhadas todas. politana de Lisboa a tocar a sinfonia "A tanta visibilidade como hoje. Publica-
Pátria", do Vianna da Moita, e com a ba- -se muito. Quantidade e qualidade an-
Embora a investigação tenha ultrapas- lada para piano, como Artur Pizarro... dam de mãos dadas?
sado isso, o senso comum está muito coisas que nunca tinha pensado fazer. Há muito boa qualidade, sim senhor.
agarrado a chavões como o de a expan- Embora me pareça que estão melhor as
sãotersido feita para "irradiara fé ais- Quando deu à estampa o livro "Vem aia partes medieval e contemporânea do
tã".Como é que isso se combate? República", que descreveu como a sua que aparte moderna.
Só há uma forma de o combater: com a própria proclamação da República,
ciência. Não é a religião, pois a religião é quis fazerjustiçaa um regime mancha- De facto, apesar de na Época Moderna
mais do que legitima, mas aquilo a que do por décadas de propaganda hostil? termos a Expansão, essas cronologias
os franceses chamam "bigoterie" só po- Entre outras coisas, foi por esse moti- aparentam sempre estar pouco estu-
de ser combatido com a ciência. Não ve- vo, mas resultou, também, de uma ne- dadas, em relação às que as precede-
ram e às que lhes sucederam. O que é pies. Nada de complicar. Claro que há
que causa isso? "OS TEMPOS MAIS
autores barrocos que são bons, não du-
Não sei. Simplesmente, não sei. vide disso, mas uma escrita complica-
RECENTES NÃO
da, normalmente, encobre deficiências.
Escreveu que não alinha em colocar a
TÊM SIDO MUITO
historiograf ia em gavetas, velha ou no- Encontra-se muito disso no meio aca-
va, convencional ou positivista...
PROPENSOS À démico?
Não, não. Ou é boa ou é má. Muito, muito, infelizmente. Mas a culpa
DIVULGAÇÃO DE disso é dos que deixam passar.
Boa e má. E orgulha-se do seu ecletis-
mo, que, presumo, tem a ver com a acei- UMA BOA HISTORIA, A importância de escrever para os pa-
tação do que de bom há em cada corren- res antes de o fazer para o público, até
te.Ao marcar essa posição, está a dizer MAS, APESAR DE por questões de progressão na carrei-
que também há historiadores que só ra, penalizou a escrita da História?
conseguem afirmar-se rompendo com TUDO, VAI LÁ" Penalizou e muito. Há um autor inglês,
os que os antecederam? não sei agora quem, que diz que há a His-
Sim, sim. Mas essas ruturas fazem parte tória para os historiadores e a História
de um certo progresso aparente... para os outros. E isso é verdade. Eu sou
dos que acham que a História é sempre
As famosas mudanças de paradigma... para os outros, para toda a gente. E cla-
De paradigma, pois... Nós, aqui, gramá- ro que isso inclui também os historia-
mos com o pós-modernismo. A certa al- dores.
tura, na Faculdade de Economia, toda a "A HISTÓRIA
gente falava no pós-moderno, e eu nun- Procurou desenvolver um estilo que o
ca percebi bem o que é que isso era ou o É SEMPRE distingue?
que eles queriam. Não vale a pena... Procu rei, sim. O meu estilo, se é que o
PARA posso caracterizar, é, sobretudo, assen-
Consegue encontrar um pragmatismo te no ritmo. Pelo menos, é isso que eu
associado à História, como ferramen- OS OUTROS, penso.
ta para perspetivar o futuro e ler o pre-
sente, ou as pessoas teimam em não PARA TODA A Herdou essa preocupação com a escri-
aprender com o passado? ta do seu pai, Joaquim Magalhães, um
Que aprendem mal é verdade!Mas tam- GENTE. E ISSO homem da literatura?
bém é verdade que invocam muitas ve- Sim e não. Nunca falei disso com o meu
zes. A gente ouve, muitas vezes, "por- INCLUI TAMBÉM OS
pai, mas ele era de uma fluência fantás-
que não sei quê..." e é História, normal- tica, e eu não sei se era trabalhada ou
mente mal contada. Mas é. É claro que
HISTORIADORES"
não.
os tempos mais recentes não têm sido
muito propensos à divulgação de uma Já falou do livro que acabou de lançar
boa História, mas, apesar de tudo, vai com cartas do seu pai. Que revelações
lá, porque há muita gente a trabalhar. É encontramos ai?
uma verdade a quantidade de gente no- É, sobretudo, o percurso íntimo. As
va que publica, que apresenta teses...A1- cartas que o meu pai escreveu duran-
gumas são más, mas são. te toda a vida do meu avô. O meu pai
nasceu em 1909, e a primeira carta de-
Não deixa de ser curioso, tratando-se le que eu tenho é de 1918. Urna criança
de um ofício que não traz fortuna... que agradece ao seupai ter-lhe manda-
Exato... E há muita gente nova boa. É for- do os parabéns. Nesse período, prova-
midável. velmente por causa do Sidónio Pais e
das complicações no Porto, o meu avô
Escreveu que a História é "uma narra- mandou a minha avó e os filhos para
tiva, um ato literário que deve agradar casa da mãe, no Marco de Canaveses,
ao escrevente e ao leitor". Comunicar na beira-Douro, e o meu pai fez lá o exa-
ao maior público que consiga alcançar me da terceira classe. Depois, volta pa-
é uma preocupação sua? ra o Por to e, claro, deixa de haver car-
Sim. A História não faz sentido se for tas para° pai, mas, a partir do momento
hermética, se for mal escrita, se for em que se licencia, em 1931, no último
enigmática, nada disso. Tem de ser urna curso da Faculdade de Letras do Porto,
coisa corrida, fácil, acessível... Fácil na vem aqui para Coimbra fazer o estágio
forma, mas não no conteúdo. Comple- e, a partir daí, escreve ao pai com mui-
xa, quantas vezes, mas de forma sim- ta frequência. Consegui reunir uma
boa quantidade. Não todas. As do meu
avô, provavelmente, estão no espólio
do meu pai, na Universidade do Algar-
ve. Depois, há cartas para mim, que es-
tava a sair para Coimbra, e por ai fora.
Há ainda um conjunto de cartas mui-
to interessantes para o Adolfo Casais
Monteiro. Foram colegas na faculdade
e, aqui em Coimbra, no estágio, e fica-
ram amigos. Isso está no espólio do Ca-
sais, na Biblioteca Nacional. Para o filó-
sofo, para o Alvaro Ribeiro, há também
alguma coisa.
t rouxe para casa, para o quartinho onde Domínguez Ortiz e toda essa gente que
vivia, os dois volumes, e tive-os lá du- eu trabalhei muito bem.
rante um ano, porque ninguém preci-
sou deles!... Está tudo dito em relação ao Os anglo-saxónicos revelaram-se
que era a Faculdade de Letras. posteriormente?
Sim, isso veio depois. Ainda li alguns,
Outros nomes que lhe encham as me- mas não me formaram como formaram
didas? os franceses.
O Duby, por exemplo. É um grande es-
critor. O "La vie des campagnes" é mui- Agora, por os jovens não aprenderem a
to bom. Mais do que as outras coisas, até. língua, os franceses estão a tornar-se
O Le Roy Ladurie, outro historiador de inacessíveis?
topo. O próprio Lucien Fèbvre continua Sim, é verdade. E os ingleses estão a
a ser uma referência. Ainda outro dia simplificar demasiado as coisas. Aque-
fui fazer uma conferência sobre Histó- las pequenas teses, muito rápidas, mui-
ria e Geografia e lá fui ler o Febvre. Ah, to feitas à pressão, segundo os prazos.
e a historiografia espanhola. Sobretu- Claro que o trabalho francês, nas gran-
do, na altura, estava muito na berra o Vi- des teses de Estado, era impossível de
cens Vives, catalão, que me serviu de manter. Veja lá, 20 anos a fazer uma te-
muito. Depois, mais tarde, o Antonio se! Isso também não pode ser.
ENTREVISTA
Historiador
e cidadão
inquieto
Perfil
falta-lhe a aura mediática que torna alguns dos
pares mais reconhecidos pelo cidadão comum,
IF
mas não é justo. A dimensão de Joaquim Rome-
ro Magalhães não se confina à de notável his-
toriador, na medida em que. desde muito no-
vo, foi um cidadão empenhado em causas, o que
lhe tem valido ocupar posições de grande des-
taque: enquanto profissional, é uma referência incontorná-
vel no estudo da Época Moderna em Portugal: enquanto cida-
dão, éassumidamente alinhado e orgulhoso da sua militancia
no Partido Socialista. que lhe abriu as portas da Assembleia
Constituinte e, também. de funções governativasnos primei-
ros dois executivos liderados por Mário Soares.
Filho de loaquim Magalhães, o professor de literatura por-
tuense, radicado no Algarve, que descobriu e deu a conhecer
António Aleixo, o historiador nasceu em Loulé. em abril de
1942. Deixou o Algarve na hora de ir para a Universidade, on-
de acumulou desilusões, embora o destino de então.Coimbra.
tenha vindo a ser o de quase toda a vida. As desilusões conta-
-as ele nesta entrevista. Salvou-se, enquanto historiador, fo-
ra da Universidade, procurando, por conta e risco, numa ida à
praia, o seu verdadeiro mestre, Vitorino Magalhães Godinho.
Foi Godinho, proscrito do salazarismo e caso excecional de
vanguardismo na historiografia portuguesa, quem o enca-
minhou e lhe proporcionou a formação que na Universida-
de não existia. Unia Universidade que tolerava este desvio à
ortodoxia porque não contava com ele. Assim começou um
percurso profissional iniciado no ensino liceal (esteve dois
anos a lecionar no Porto, no então D. Manuel II) e entrecortado
pela experiência política. Tudo mudou com a chegada da Li-
berdade, em 1974, e, um ano depois, vamos encontrar Rome-
ro Magalhães como um dos mais jovens deputados à Assem-
bleia Constituinte. Depois, vemo-lo como secretário de Es-
tado da Orientação Pedagógica. num gabinete chefiado por
SottomayorCardia. E só em 1985 assistimos ao doutoramento.
em Coimbra, com uma dissertação intitulada "Algarve Eco
nómico -1600-1773".
Embora tenha tido convites de outras instituições, fez da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra a sua
principal casa, daí partindo para pontuais experiências em
universidades estrangeiras. sendo a Yale University (Ncw
Haven, Connecticut, EUA) a que mais o fascinou. Especialista
consagrado na época áurea do passado português, liderou, de
1999 a 2002, a Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses.
Todo o percurso público deste homem transmite urna per-
manente inquietação, um desejo de fazer coisas. Do tempo em
que, enquanto estudante. presidiu à Associação Académica
até ao momento em que, para dissipar as dúvidas que o assal-
tavam, decidiu estudara fundo a I República. nunca deixou de
se reinventar.