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OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS E A CIDADANIA.

O JUIZ CIDADÃO E O CIDADÃO COMO JUIZ


Considerações sobre o disposto nos §§ 1°,2°, 3° do art. 5° da CRFB/88.

Leonardo de Mello Caffaro


Procurador Federal junto à Procuradoria Federal Especializada INSS

SUMÁRIO: 1 Direitos Humanos e Direitos Fundamentais; 2 O


surgimento, a evolução e a crise do Positivismo Jurídico; 3 A fase atual
do Direito, a relevância da função jurisdicional, a cidadania e os demais
Direitos Humanos Fundamentais, o Estado Democrático de Direito e a
Jurisdicização do Político; 4 O Juiz Cidadão, o Cidadão como Juiz e a
questão da iniciativa judiciária; 5 Das considerações sobre o disposto
nos §§ 1º, 2º, 3º do art. 5º da CRFB/88; 6 Conclusão; 7 Referência

“Lembra-te que a ninguém é dado julgar, porque ninguém julgará bem o seu
próximo enquanto não se reconheça tão responsável quanto ele. Só quem está
bem persuadido disto estará capacitado para ser juiz”. (Starets Zossima,
personagem do livro Os Irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoiévski)

1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Com o fim da segunda grande Guerra Mundial e o horror gerado pelo Nazismo, três
tendências se delinearam: a elaboração de tratados sobre Direitos Humanos, uma nova
abordagem do Direito Constitucional e o acirramento da crise do positivismo jurídico, questões
essas que não ser tratadas de forma isolada, para que se possa ter uma devida compreensão
de suas conseqüências.

Com relação ao desenvolvimento dos Direitos Humanos e sua correspondência com


uma nova abordagem Constitucional, denominada atualmente de Neoconstitucionalismo,
especialmente com questões vinculadas à limitação do poder e aos Direitos Fundamentais, se
referem necessário que se explique a respeito da existência de uma duplicidade de expressões,
quais sejam: direitos humanos e direitos fundamentais.

Para alguns, a diferenciação seria decorrente de uma origem distinta do uso. Os


escritores latinos e anglo-saxões teriam adotado a expressão Direitos Humanos e,
especialmente, os escritores alemães, a expressão Direitos Fundamentais, sendo esta, porém,
a adotada para dar nome ao título II da Constituição Federal da República Federativa do Brasil-
CRFB de 19881.

Já outros entendem que a expressão Direitos Humanos diz respeito às normas


internacionais que tutelariam a dignidade humana, enquanto que Direitos Fundamentais se
referem às normas constitucionais sobre o mesmo tema. Tal posicionamento teria o apoio do
art. 4° e do Título II da Constituição Federal, sendo a corrente mais adotada.

Uma terceira corrente entende que a expressão Direitos Humanos referir-se-ia a


direitos supra-estatais, em alguns casos de caráter invariável, configurando o chamado Direito
Natural, um direito superior ao ordenamento jurídico positivo, composto de direitos de caráter
inalienáveis que pertenceriam à essência do ser humano e que não poderiam ser sonegados,
uma vez que representativos de um ideal de Justiça. Os Direitos Fundamentais seriam direitos
situados historicamente em função do momento evolutivo em que a sociedade se encontra.

Haveria, ainda, um posicionamento de que os Direitos Humanos seriam espécies de


Direitos Fundamentais, sendo aqueles direitos fundamentais que por sua natureza só poderiam

1
Para uma abordagem mais ampla ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Rev. e ampl.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006 p. 33.

1
ser titularizados por seres humanos. Outros Direitos Fundamentais valeriam até para pessoas
jurídicas.

Por fim, restaria dizer que modernamente a expressão utilizada para expressar o
chamado Direito Natural seria Direitos do Homem, como direitos que antecederiam à
organização política ( sendo inspirada inclusive pela Revolução Francesa e a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão), para aqueles que adotam essa concepção.

Como o que interessa neste trabalho é a intercessão dessas questões, optamos pela
expressão Direitos Humanos Fundamentais, para relativizar essas distinções, sendo essa a
escolha preferida ao uso indistinto das duas expressões referidas.

2 O SURGIMENTO, A EVOLUÇÃO E A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO

A polêmica entre os partidários do jusnaturalismo e do positivismo jurídico já rendeu


ao longo da história muitas discussões. A defesa da existência de uma ordem jurídica superior
ao Direito posto pelo Estado, correspondente ao Direito Natural, vem desde a Antigüidade e
está vinculada a uma tentativa de estabelecer limitações ao exercício do poder, não sendo raro
seus opositores.

Foi, porém, no desenrolar da Idade Média e no transcurso da Era Moderna que essas
discussões ganharam ares de cientificidade. Na Idade Média, buscou-se pelo Direito Natural
para alcançar uma ordem jurídica que teria sido estabelecida por Deus e que teria configuração
imutável, suscitando questões de caráter metafísico, em uma tentativa de fundir a herança
judaico-cristã com o pensamento grego, gerando em determinados casos alguma confusão.

No desenvolvimento da própria Idade Média, ingressando na Era Moderna, a defender


a existência de um Direito Natural de caráter racional, multiplicando-se as teorias, muitas
vezes guiadas por interesses específicos, que buscavam dar ares de cientificidade a esse
Direito Natural, cabendo destaque para as teorias contratualistas, que buscavam justificar a
noção de Direito Natural a partir da idéia de um suposto contrato social que antecederia à
formação do Estado.

Chegou-se, na Idade Moderna, com a Revolução Francesa e Americana, ao surgimento


do constitucionalismo, que é reflexo da formação do Estado Moderno ou o Estado de Direito. É
interessante destacar que os Estados Unidos e a França adotaram caminhos diferentes com
relação ao Constitucionalismo, desenvolvendo o primeiro uma visão de que a Constituição
limitava o Parlamento; e segundo que o Parlamento teria maior liberdade para estabelecer o
Direito, a partir dessa idéia desenvolveu-se o sistema das codificações.

Os códigos passaram a incorporar as idéias daquilo que se entendia como Direito


Natural, ganhando, então, ampla aceitação, somando-se a isso um renovado interesse de se
estabelecer uma nova cientificidade para o Direito, a partir da elaboração e aplicação do direito
posto pelo Estado por meio da soberania popular, surgindo, assim o Positivismo Jurídico.

Com o tempo, verificou-se que os códigos não eram suficientes para englobar toda a
realidade social, sendo esta mais dinâmica do que os sistemas jurídicos, surgindo assim uma
série de críticas à concepção positivista do Direito, especialmente nos países de cultura
romano-germânica.

Entretanto a defesa da cientificidade dessa abordagem do sistema jurídico positivo


permanecia, havendo inúmeras teorias justificadoras, das quais podemos destacar a de Hans
Kelsen. Já ciente dos limites das codificações, Kelsen desenvolve a teoria da norma
fundamental, destacando o papel da Constituição como fundamento de validade do
ordenamento jurídico e buscando dar um estatuto científico próprio para o Direito distinto das
considerações das ciências sociais, econômicas e política, bem como da moral.

O destaque ao pensamento de Kelsen não foi aleatório, pois, além de sua influência no
Direito (basta lembrar a famosa teoria da pirâmide de normas), foi justamente em sua teoria

2
da norma fundamental que os advogados dos líderes nazistas no Tribunal de Nuremberg se
basearam para justificar a legitimidade dos atos brutais praticados, incluindo a perseguição
das minorias, pois tais atos teriam sido implementados sob a alegação de não serem
incompatíveis com a Constituição da Alemanha.

A pergunta que ficou foi a seguinte: que Estado Democrático de Direito seria esse que
legitimaria a barbárie e o tratamento indigno aos seres humanos?

A busca de solução para esse problema passou e vem passando pelas três tendências
anteriormente referidas: a elaboração de tratados sobre Direitos Humanos, uma nova
abordagem constitucional e o acirramento da crise do Positivismo Jurídico.

Antes de partirmos para uma abordagem conjunta dessas tendências à luz da


problemática dos Direitos Humanos Fundamentais e do ordenamento jurídico brasileiro,
entendemos necessário que se faça ainda algumas considerações sobre a crise do Positivismo
Jurídico.

Como vimos, desde a constatação de que os códigos não conseguiam englobar a


realidade social, o positivismo jurídico vem passando por crise, tendo esta chegado no seu
ponto alto com o fim da Segunda Guerra Mundial e a constatação dos abusos cometidos pelo
Estado Nazista.

Com base nisso, alguns estudiosos falam na implementação de uma nova fase do
Direito: o Pós-Positivismo, para apresentar uma visão jurídica aberta à interdisciplinaridade e
aos valores e princípios éticos, não sendo, assim, necessariamente um retorno ao
jusnaturalismo. Ocorre esse prefixo “pós”, apesar de significar uma ultrapassagem no tempo
de uma determinada concepção, não diz muita coisa sobre o sentido e conteúdo do que veio a
seguir, devendo-se observar que muitas décadas já se passaram desde o fim da segunda
Guerra Mundial e muito já foi dito a respeito desta nova fase do Direito, não se justificando
mais o uso da expressão pós-positivismo.

Várias denominações têm sido empregadas tentando destacar algum ponto marcante
dessa nova fase, das quais, destacamos duas, que, apesar de partirem de pontos distintos, no
nosso modo de ver, se complementam: moralismo jurídico e neopositivismo.

Como expõe Alexandre de Moraes 2, a teoria Moralista, ou de Perelman, valoriza a


experiência moral de um determinado povo, que acabaria por configurar o denominado
espiritus razonables. Tal corrente tenderia a uma postura universalista, já que como sustenta
Chain Perelman3, grande divulgador dessa teoria, a lógica jurídica visaria a um auditório
universal, com vistas a buscar sua legitimidade.

O neopositivismo por, sua vez, não representaria um rompimento total com o


positivismo, mas uma reavaliação da positividade do Direito, ou seja, da sua exteriorização a
partir do centro de Poder, da abertura das fontes do Direito - já que sem um centro de poder
legítimo não haveria que se falar em norma jurídica – mas, para observância da legitimidade
dessa positividade dever-se-ia verificar a realização histórica das situações jurídicas
fundamentais, reduzindo-se as abstrações da maior parte das concepções jusnaturalistas,
abrindo-se campo para reflexões interdisciplinares.

2
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º ao 5º da CRFB do Brasil, doutrina
e jurisprudência 7 ed.- São Paulo: Atlas, 2006. Coleção Temas Jurídicos ; 3, p. 16-17.
3
PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

3
Nesse sentido é esclarecedora a lição de Norberto Bobbio4:

1. os direitos naturais são direitos históricos;


2. nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista
da sociedade;
3. tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico.

É justamente a partir dessa visão histórica que é desenvolvida a teoria das gerações
ou dimensões dos direitos humanos fundamentais. Argumentam os defensores dessa teoria
que a noção de direito humano fundamental iria se aprofundando ao longo do tempo, tendo-se
configurado três gerações ou, como preferimos, dimensões de direitos humanos fundamentais
(por passar a idéia de aprofundamento e não de sucessão histórica), alguns ainda sustentando
a existência de uma quarta dimensão.

Como é comumente apresentado, a primeira dimensão dos direitos humanos


fundamentais corresponde aos direitos individuais e políticos, frutos das chamadas revoluções
burguesas (francesa e americana), dispondo os primeiros sobre as chamadas liberdades
negativas , sendo direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria
personalidade; já o segundo, diz a respeito ao conjunto de regras que disciplinam as formas
de atuação da soberania popular, sendo direitos públicos subjetivos que investem o indivíduo,
como destaca Alexandre de Moraes5, no status activae civitatis, pemitindo-lhe o exercício
concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, de maneira a conferir
os atributos da cidadania.

A segunda dimensão, por sua vez, caracterizar-se-ia como verdadeiras liberdades


positivas, que teriam por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes,
visando a concretização da igualdade social.

Já os direitos de terceira dimensão corresponderiam aos chamados direitos de


solidariedade ou fraternidade, possuindo caráter transindividual, como o meio ambiente e a
paz mundial.

Para aqueles que defendem a existência de uma quarta dimensão, ela corresponderia
ás novas necessidades oriundas da vida social. É necessário também destacar que não se
poderia partir de uma noção tão aberta a ponto de se permitir a criação aleatória de gerações
ou dimensões, segundo interesses específicos, sendo necessária uma devida ponderação
histórica, uma apreciação de sua relevância para a realidade social e existencial do ser humano
e a sua efetiva novidade.

Tal seria o que acontece com o direito à informação e à participação popular, como
reflexos do direito à cidadania em um período de globalização, defendido pelo professor Paulo
Bonavidades6. Com a devida consideração pelo pensamento do ilustre jurista, entende-se que
tais direitos de cidadania são especificações dos direitos políticos de primeira dimensão, assim
como os chamados direitos da personalidade são especificações dos direitos de primeira
geração de caráter civil, ainda que suscitando novas questões, como a chamada identidade
genética.

A rigor o que entendemos tratar-se de uma quarta dimensão é a busca de


concretização das demais gerações de direitos humanos fundamentais, sendo essa noção de
concretização bastante relevante para a conclusão que apresentaremos para esse tópico.

Para finalizar essas considerações sobre a teoria das gerações ou dimensões dos
Direitos Humanos Fundamentais e sua correlação com a concepção neopositivista, destaca-se
algumas das características dos direitos humanos fundamentais, como bem faz Alexandre de
Moraes, tais sendo: a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a irrenunciabilidade, a
inviolabilidade, a universabilidade, a efetividade, a interdependência e a complementaridade.

4
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.2.
5
MORAES , op. cit., p. 27.
6
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

4
Não se poderia esquecer da noção unificadora de toda essa problemática, tal sendo a
dignidade da pessoa humana, sendo oportuna as considerações de Marcelo Novelino Camargo 7
a respeito do tema:

É neste cenário, matizado pelo surgimento de um novo alinhamento doutrinário


denominado ”pós-positivismo” (ou “neopositivismo), que a dignidade da pessoa
humana desponta como núcleo central do constitucionalismo de valores, do
Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais

Dentro da noção de concretização da dignidade da pessoa humana e dos direitos


humanos fundamentais, para além de suas formalizações, do delineamento dos seus alcances
materiais e de suas garantias, vislumbra-se o caráter complementar entre a concepção
moralista e o neopositivismo, já que os universais da ética estão correlacionados com os
valores da identidade histórica, sendo necessária a devida adequação de uma visão
universalista com as considerações histórico-comunitárias, bem como destas àquela, com
vistas a busca da justiça para os casos concretos.

Diante do exposto, se tivéssemos que dar um nome a essa nova fase do Direito a
chamaríamos de Concretismo Crítico, configurando-se sua novidade na reação ao
abstracionismo do jusnaturalismo e do positivismo, na busca de soluções pacificadoras para
os casos concretos, sem desconsiderar uma abordagem crítica.

3 A FASE ATUAL DO DIREITO, A RELEVÂNCIA DA FUNÇÃO JURISDICIONAL, A


CIDADANIA E OS DEMAIS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS, O ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A JURISDICIZAÇÃO DO POLÍTICO

Como vimos, a atual fase do Direito importa na busca de uma concretude para a
noção de Justiça, porém, de forma crítica, entendendo-se por crítica a indagação da raiz, a
busca do razoável. Essa busca de concretude crítica, importando em um juízo formulado com
eqüidade e não por eqüidade, valoriza também o exercício da função jurisdicional. O exercício
da função jurisdicional já era destacado, porém, a partir de uma visão garantista, sendo esse
um instrumento importante para assegurar a efetividade dos Direitos Humanos Fundamentais.
Norberto Bobbio8 já dizia que, nessa etapa do direito, mais importante que justificar os direitos
humanos seria garantir sua aplicação.

Certamente é necessário garantir-se a efetividade dos direitos humanos fundamentais,


mas sempre de uma forma crítica, despontando-se a relevância da noção de dignidade de
pessoa humana e especialmente de cidadania.

Como se sabe, dentro da ótica da dignidade da pessoa humana e dos direitos


humanos fundamentais, a cidadania é apenas uma espécie, não menos importante, mas uma
espécie. Essa correlação entre direitos humanos fundamentais e efetividade via Judiciário deve
passar também pela questão da cidadania e sua repercussão no processo decisório.

Para ilustrarmos bem a questão busquemos duas figuras históricas marcantes de duas
culturas relevantes para formação da civilização ocidental e mundial, seja por meios próprios
ou pelo cristianismo e o iluminismo (movimentos esses que, como se sabe, tiveram papéis de
destaque para o surgimento do princípio da dignidade da pessoa humana) 9, sendo tais
culturas: a judaica e a grega.

Com relação à cultura judaica, chama-se a atenção para a figura histórica dos Juízes,
que eram pessoas carismáticas que se destacavam por gestos heróicos em favor do povo de
Israel e que assumiam a liderança do povo, acumulando a função administrativa e

7
CAMARGO, Marcelo Novelino. O Conteúdo Jurídico da Pessoa Humana. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org). Leituras
Complementares de Constitucional. Direitos Fundamentais. 2. ed. ed. Podvim, 2007. p. 113.
8
BOBBIO, op. cit.
9
CAMARGO, op. cit. p. 114-115.

5
jurisdicional, lembrando-se que a função legislativa estava limitada pela lei divina (os Dez
Mandamentos), dada por Deus por meio de Moisés.

Da cultura grega destacamos a famosa democracia grega, que garantia aos cidadãos o
direito de participar dos negócios políticos do Estado, mas excluía dessa situação parcela
significativa da população como as mulheres e os escravos.

É claro que são figuras extremadas e já não tão atuais, mas refletem um pouco a
relevância, da função jurisdicional e da cidadania, e também algumas de suas dificuldades.

Da figura dos juízes, vemos que, pelo simples fato de se tornar um líder carismático,
alcançava-se o direito de acumular as funções administrativas e jurisdicionais, é claro que com
obediência aos mandamentos e benção de Deus, o que gerou influência na própria monarquia
judaica, sendo famosas as decisões do sábio rei Salomão.

A democracia grega, por sua vez, tornou-se referência para o mundo todo, porém
como se sabe possuía um caráter não inclusivo, ou seja elitista.

A primeira figura, com o devido respeito pela questão teológica, importaria em uma
reflexão sobre o princípio da separação de poderes e o Estado Democrático de Direito. A
segunda destaca a questão da cidadania e a necessidade de sua concretização em nome do
princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos humanos fundamentais.

Destaquemos bem os pontos levantados pela ilustração anterior: de um lado a


Separação de Poderes e o Estado Democrático de Direito; de outro, a Dignidade da Pessoa
Humana, a Cidadania e os demais Direitos Humanos Fundamentais, cabendo-se verificar a
possibilidade de uma abordagem conjunta.

A noção de separação de poderes veio evoluindo ao longo da história, juntamente com


a idéia de limitação do poder, ganhando contornos mais claros com a famosa tripartição de
poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) destacada por Montesquieu. Atribuiu-se, mais
recentemente, novos contornos constitucionais com o sistema de freios e contrapesos, visando
a harmonia e a independência entre os Poderes.

A história informa que a Revolução Francesa foi desencadeada com o objetivo de


romper com o sistema absolutista de Poder da Monarquia, tendo-se, posteriormente,
considerado os juízes como suspeitos de colaboração com o Antigo Regime, daí ter-se
fortalecido o Poder Legislativo e a idéia de que o juiz seria a “boca da Lei”.

Como visto, a crise do positivismo jurídico de certa forma contribuiu para enfraquecer
a concepção do “Império da Lei” e, conjuntamente, um outro fator influenciou para fazer ruir o
culto da legalidade irrestrita: a crise, e para alguns o esgotamento, do sistema representativo.

Essa crise do sistema representativo foi desencadeada por uma série de fatores,
como a corrupção, o esvaziamento da efetiva participação política, das ideologias e utopias,
ainda pela brutalidade dos sistemas totalitários, existindo de certa forma uma relação de
estranhamento entre a população e a estrutura política.

O Estado passou a ser visto, muito mais hoje, como um Estado Polícia e como
assegurador dos direitos individuais de caráter civil, as chamadas liberdades negativas, do que
o órgão de decisão de uma comunidade histórica, de maneira que organizada em Estado
pudesse tomar decisões, para contrastar com a famosa definição de Estado de Eric Weil 10,
desgastando-se a noção de cidadania em face de um atomismo jurídico talvez nesse ponto
justifique-se a preocupação de Paulo Bonavides, sendo nossa perspectiva de concretização dos
Direitos Humanos Fundamentais, de certa forma mais ampla, envolvendo a concretização não
só da cidadania e a partir dela, mas dos demais direitos humanos fundamentais, que atuam

10
WEIL, Eric. Filosofia Política. Tradução e apresentação Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1990.

6
muitas vezes como pressupostos da cidadania, visando o homem concreto em suas
necessidades existenciais, que, cabe destacar, incluem também a cidadania.

Uma das tentativas de remediar essa crise gerada pelo desgaste do sistema
representativo e de assegurar-se a efetivação do Estado Democrático de Direito, além das
tentativas de se ampliar a participação popular direta e o direito de informação, é a chamada
Jurisdicização do Político, ganhando destaque três questões importantes: os direitos humanos
fundamentais, o acesso à justiça e o juiz cidadão.

Ao se falar de Direitos Humanos Fundamentais deve-se em primeiro lugar dizer que


eles possuem uma relação extremada, com respeito à questão do Estado Democrático de
Direito, atuando como fator contra-majoritário e ao mesmo tempo como elemento de
legitimação de tal figura. Para destacar essa segunda vertente, é preciso lembrar das
tendências que se delinearam após a Segunda Guerra Mundial e da constatação dos abusos do
nazismo: a elaboração de tratados sobre direitos humanos, uma nova abordagem do Direito
Constitucional e o acirramento da crise do positivismo jurídico, cabendo, então, nesta
oportunidade, uma abordagem conjunta dessas tendências nesse ponto, antes de partirmos
para apreciação do ordenamento jurídico brasileiro.

No período que envolveu a eclosão das guerras mundiais, surgiram várias


organizações internacionais tentando assegurar a pacificação dos conflitos existentes, dentre
elas podemos destacar a Liga das Nações (posteriormente a Organização das Nações Unidas-
ONU) e a Organização Internacional do Trabalho-OIT, que estabeleceram inúmeras normas
internacionais para discussão e observância de seus membros.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a constatação dos abusos do Nazismo,


passou-se a formular uma série de normas internacionais com vistas a buscar estabelecer um
consenso mundial em torno da necessidade de proteção da dignidade da pessoa humana.

A partir dessa finalidade, foi publicada a Declaração Internacional dos Direitos do


Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas a 10 de dezembro de 1948,
norma internacional não aberta à ratificação pelos Estados, que buscava dar um caráter de
universalidade à proteção da dignidade da pessoa humana. Outras normas foram e vem sendo
estabelecidas para disciplinar questões específicas a respeito da dignidade da pessoa humana,
como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado na XXI
Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 19 de dezembro de 1966, e ratificada
pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.

A rigor muitas das orientações internacionais já vinham sendo adotadas pelas


Constituições dos Estados, mas faltava um senso de unidade, que só foi assegurado pelo
desenvolvimento da noção de dignidade da pessoa humana.

Ocorre que, por mais que se busque universalizar a questão dos Direitos Humanos,
não se pode desconsiderar aspectos relativos à peculiaridade de alguns fatores histórico-
culturais ou comunitários de cada povo, destacando-se a questão central da cidadania,
também uma das facetas da dignidade da pessoa humana. Bastaria lembrar que, a exceção do
Tribunal Penal Internacional (ao qual se refere o § 4° do art. 5° da Constituição Federal), as
garantias dos sistemas de Proteção dos Direitos Humanos possuem especificamente caráter
regional (Europa, América e África), atuando os organismos internacionais de defesa dos
Direitos Humanos somente nos casos de omissão do Estado, na observância das normas,
internacionais respectivas. 11

Além do mais, torna-se necessário destacar que os tratados internacionais, por mais
que sejam submetidos à aprovação pelo legislativo local para viabilizar a ratificação, são
elaborados pelos Estados ou Organização de Estados com vistas a impor obrigações aos
Estados, apesar dos beneficiários finais dos tratados de direitos humanos serem os indivíduos,

11
Para uma abordagem de cunho mais amplo ver PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional. 7. ed. 2007 ed. Saraiva.

7
o que leva alguns, especialmente nesse ponto, a defender a supremacia dos tratados sobre as
Constituições, já que a partir dos tratados a comunidade internacional tenta obrigar os Estados
a melhorar a condição dos indivíduos e a garantir a eles direitos fundamentais.

É interessante verificar que, a partir da concepção de Estado de Direito inaugurada


pelo constitucionalismo, a Constituição é o documento jurídico que cria o Estado, não havendo
como se estabelecer limitações anteriores para o Estado no plano estritamente positivo.

A partir da noção de Supremacia da Constituição, conjuntamente com uma


abordagem principiológica e com a fixação de uma Jurisdição Constitucional, estabelecem-se
as teses da nova abordagem constitucional consistente no neoconstitucionalismo 12. Indagar-
se-ia: tratar-se-ia de uma vitória da concepção norte-americana de constituição? Não vemos
assim. Efetivamente a partir da fixação da Supremacia da Constituição e da fixação de uma
Jurisdição Constitucional, os atos do legislativo passaram a ser objeto de controle de
constitucionalidade, mas a questão do constitucionalismo norte-americano vai além e tem a
ver com aspectos ideológicos de sua formação.

Tal como na França, a Revolução Americana foi guiada por princípios individualistas,
mas na França houve a tomada do Poder Político a partir de um profundo choque ideológico,
enquanto que nos Estados houve a expulsão do colonizador (a Inglaterra), mas sem grandes
crises de visões de mundo, sendo quase um consenso em âmbito local. De maneira que a
tomada de poder não se deu por choques ideológicos, mas basicamente por interesses locais.

Tal questão teve repercussão na própria forma de elaboração da Constituição, não


tendo a Constituição americana o caráter universalista da Constituição Francesa denominada
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Além do mais, a própria forma de encarar o
Estado foi diferenciada, sendo para os Estados Unidos um mal necessário a ser controlado,
com caráter policial para garantir os interesses locais a partir das liberdades civis, enquanto
que na França foi visto como, pelo menos em um primeiro momento, meio de assegurar a
cidadania.

A permanência no tempo da Constituição Americana decorreu, de certa forma, de seu


caráter sintético, não faltando aqueles que dissessem que a Constituição Americana seria
aquilo que a Suprema Corte dos Estados Unidos diz que é, sendo famoso o conflito entre o
Presidente Americano Franklin Roosevelt e a Suprema Corte na implantação das políticas
econômicas e sociais do New Deal, tendo a maioria conservadora da Corte se oposto às
referidas políticas públicas e o Presidente proposto a alteração da composição da mesma para
que pudesse ter maioria na Corte.

No entanto, a abordagem do Neoconstitucionalismo é diferente, dentro da perspectiva


da Supremacia da Constituição, da valorização dos Princípios e da Jurisdição Constitucional, a
Constituição passa a reunir normas (princípios e regras) referentes ao conteúdo dos diversos
ramos do direito, como ocorre nitidamente com o direito processual, o civil e o do trabalho,
servindo não só como fundamento de validade do ordenamento jurídico, mas como fonte
direta de aplicação, como nos casos dos direitos fundamentais (art.5°, § 1°da Constituição
Federal), ocorrendo o fenômeno da constitucionalização do Direito.

Destaque-se que, diferentemente do sistema das codificações, não se visa a um


regramento exaustivo, a ponto de suprimir a disciplina infraconstitucional, o que seria
impossível, mas trata-se de estabelecer princípios norteadores das matérias. Como se verá a
seguir, a questão dos princípios envolve discussões mais amplas, tendo ganhado caráter
diferenciado com o acirramento da crise do positivismo jurídico.

Merece destaques nesta oportunidade, a questão da Jurisdição Constitucional. A


Constituição deixou de ser um documento que organiza apenas o Estado para ordenar também
a vida da sociedade. Assim, não só a atividade do Estado passou a ser objeto de controle

12
Vide BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. 6. ed. ver, atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.

8
jurisdicional a partir da Constituição (incluindo as leis e os tratados internacionais), e
especialmente pelos direitos fundamentais, como a dos próprios particulares, a partir da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou eficácia sobre relações privadas.13

É necessário destacar, porém, que existem dois processos de universalização, que


seguem paralelamente, que põem em confronto a força normativa da Constituição e a
realidade social: a globalização econômica e a universalização dos direitos humanos, colocando
os dois movimentos em xeque a noção de soberania.

A respeito da globalização podemos destacar a lição do sociólogo Octavio Ianni em seu


livro a Era do Globalismo14:

A globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo,


como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um
processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes
políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades,
culturas e civilizações. Assinala a emergência de uma sociedade global, como
uma totalidade abrangente, complexa e contraditória. Uma realidade ainda
pouco conhecida, desafiando práticas e ideais, situações consolidadas e
interpretações sedimentadas, formas de pensamento e vôos da imaginação.

Globalização foi uma expressão cunhada pelas escolas de negócio americanas para
buscar reduzir as barreiras comerciais, facilitando a livre circulação de riquezas, com vistas de,
atendendo as necessidades de consumo, aumentar a lucratividade, reduzindo custos, de
maneira que o capital tenderia a migrar para lugares onde fossem menores os seus custos e
maior a lucratividade, gerando muitas vezes o chamado dumping social e ambiental.

Essa sociedade que emerge é nitidamente uma sociedade de consumo, que visa
padronizar os gostos, as preferências, as opções existenciais e políticas, facilitando essa
uniformização a circulação de riquezas a partir de uma mentalidade consumista, que envolve
inclusive a ordem jurídica, daí a importação por muitos países da mentalidade contenciosa
americana e a busca dos Estados Unidos de impor ao mundo seu estilo de vida, com uma
propaganda massificadora e não raramente o empenho bélico.

Apesar do também processo de universalização dos Direitos Humanos, as


comunidades de Estado que surgem são muito mais para assegurar interesses econômicos do
que para a defesa de direitos universais, ou ao menos universalizáveis, atravessando os
direitos políticos, sociais e de fraternidade (como o meio ambiente e a paz mundial), e até
mesmo direitos civis (como a intimidade e a vida privada) uma séria crise, paralelamente à
crise do positivismo jurídico, em que em que se pretende substituir as normas Estatais pela lei
do mercado, estabelecendo uma nova forma de positivismo.

Diante da omissão do Estado, em alguns casos defendida com unhas e dentes pelos
partidários da ideologia dominante na globalização (o neoliberalismo), vem surgindo
defensores da continuidade do processo de universalização dos Direitos Humanos
Fundamentais, a partir de um maior empenho das organizações internacionais encarregadas
da defesa dos Direitos Humanos e de uma confluência entre o neoconstitucionalismo e o pós-
positivismo, segundo sua concepção neopositivista, visando a redenção do princípio da
dignidade da pessoa humana, a partir da força normativa dos princípios jurídicos, interligando
a concepção de Estado Democrático de Direito com a defesa dos Direitos Humanos
Fundamentais.

Ao tratar da força normativa dos princípios, que possui um caráter mais flexível que as
regras, dissemos que eles comportariam considerações mais amplas no sentido de englobar
também considerações pós-positivistas.

13
Vide SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004.
14
IANNI, Octavio. A Era do Golbalismo. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 11.

9
Ao adotar um princípio a Constituição se reporta a toda a construção teórica e vivência
prática que está por trás do mesmo, trazendo consigo todo o histórico de sua elaboração, em
um aprofundamento do que Ronald Dworkin, em seu empenho contra o positivismo, chama de
coerência narrativa partindo do ponto de vista dos limites da iniciativa judicial), e nesse ponto
existe a aproximação da tese neopositivista (partindo do ponto de vista da abertura das
fontes do direito.

A defesa da linha neopositivista, que - apesar do que foi dito anteriormente – constitui
a posição majoritária na doutrina, tem a seu favor o fato de buscar uma visão universalista dos
Direitos Humanos, a qual, entendemos, deve ser complementada pela abordagem moralista,
para alcançar maior concretude, uma universalidade concreta, assimilando as relevantes
noções complementares de pluralismo jurídico e cidadania, sendo certo que para se efetivar o
respeito aos demais direitos humanos fundamentais necessário seria, muitas vezes, o
empenho internacional e uma busca de consciência na concretizacão de tais direitos.

Nessa busca de concretização dos Direitos Humanos Fundamentais ganha destaque a


função Jurisdicional, seja dos órgãos nacionais investidos de Jurisdição, sejam as Cortes
Internacionais de Direitos Humanos, na aplicação direta da Constituição ou dos atos
normativos internacionais, isso tudo orientado pela abertura da visão pós-positivista,
relativizando acentuadamente a exteriorização do Direito a partir do processo político
institucional.

Recapitulando, com a chamada Jurisdicização do político, que é uma das tentativas de


remediar a crise de legitimidade do sistema representativo, ganharam destaque três questões
importantes: os Direitos Humanos Fundamentais, aos quais nós já nos referimos, o acesso à
justiça e o juiz cidadão.

Ao se falar em acesso à justiça, não pretende-se retomar toda discussão travada no


campo do Direito Processual 15, mas apenas destacar três pontos delicados: os equivalentes
jurisdicionais, o sistema de legitimidade processual e a tutela judicial das políticas públicas.
Isso foi esboçado apenas para dizer, em primeiro lugar, que pode haver alternativas legítimas
do acesso ao Poder Judiciário, como a arbitragem, mas essas devem respeitar seus limites de
validade; em segundo, que mesmo que se adote um sistema amplo de legitimidade como os
das class actions, a idéia de representatividade do indivíduo não substitui o processo de
deliberação política, por maior que seja a influência individualista do sistema, não havendo
como a partir de uma ação judicial mobilizar todos os interesses ao redor de um único tema;
e, por fim, pode-se vislumbrar meios de controle judicial da efetividade das políticas públicas, 16
o que, porém, não assegura ao Judiciário envolver-se em questões que extrapolem a função
Jurisdicional, assumindo uma postura redentorista, a das diferentes opções políticas legítimas
e de uma efetiva e necessária participação popular.

Com relação à questão do juiz cidadão, face à relevância do tema para o presente
estudo, trataremos em tópico específico, antes de tecer considerações sobre a problemática
exposta à luz do ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente da Constituição
Federal.

4 O JUIZ CIDADÃO, O CIDADÃO COMO JUIZ E A QUESTÃO DA INICIATIVA


JUDICIÁRIA.

Deixemos bem claro nossa posição: a proteção dos Direitos Humanos Fundamentais
tende à universalização, mas essa universalização não suprime as peculiaridades histórico-

15
Vide CAPPELLETTI, Mauro ; GARTH, Bryant G. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 1988.
16
Vide Barcellos Ana Paula. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. In: CAMARGO,
Marcelo Novelino (Org). Leituras Complementares de Constitucional: Direitos Fundamentais. 2 ed. Ed. Podvim, 2007. p. 43.

10
culturais de cada povo, antes encontra-se em uma situação de diálogo permanente, com vistas
a busca de uma universalização concreta, especialmente a partir de sua Constituição, e a
Constituição, por sua vez, não pode deixar de considerar a realidade social à qual se aplica,
ainda que seja para transformá-la, a partir de sua força normativa, mas mantendo com essa
profundo diálogo, com vistas à preservação da dignidade da pessoa humana e especialmente
da cidadania.

A figura do juiz cidadão é fruto desses diálogos, sejam os juízes das cortes
internacionais, sejam os investidos de jurisdição em âmbito nacional.

Superada a idéia de que o juiz seria “a boca da lei”, surge a imagem de um juiz mais
humano, não de um frio exegeta da Lei, mas uma pessoa dotada de sentimentos, coisa que a
própria noção de sentença não deixava se perder. Sendo mais humano, encontra-se o juiz
mais sensível aos problemas do mundo, do povo a que pertence, de cada ser humano a sua
volta.

Tal postura não poderia depender da boa vontade de cada magistrado, mas deveria
ser exigência da formação profissional, dos critérios de seleção dos juízes, da evolução na
carreira e de permanência nos cargos ocupados.

Ser um juiz cidadão não é ser um cidadão em situação privilegiada, mas um cidadão
no exercício de uma função de autoridade, autoridade que decorre de sua imparcialidade na
aplicação do ordenamento jurídico. Diga-se: imparcialidade não neutralidade, pois o juiz não
poderia despir-se de seus sentimentos, suas emoções, de sua visão de mundo. Exigir-se
neutralidade do juiz seria exigir que o mesmo não fosse humano, mas um ser ascético,
desvinculado do seu Eu e de suas circunstâncias, como diria Ortega Y Gasset.

O que o juízo não pode fazer, sob pena de violar sua imparcialidade, comprometendo,
assim, sua legitimidade para o exercícicio de sua função, é pretender impor sua visão de
mundo, deixar-se guiar pelas suas emoções, entregar-se a sentimentos pessoais ou
corromper-se.

Destaca-se essa expressão: [“ Ser um juiz cidadão não é ser um cidadão em situação
privilegiada...”] Poderíamos dizer em outras palavras: Não é ser um cidadão mais cidadão do
que os outros, como aquele que detém a última palavra. não se diz dizer com essa última
expressão que as demandas judiciais não devem ter decisão final, mas apenas que elas não
esgotam o objetivo de pacificação social.

Com isso, podemos sair da figura do juiz cidadão para entrarmos na figura do cidadão
como juiz. Como diz o filósofo francês Paul Ricoeur,17 o mesmo poder de julgar faz o juiz e o
cidadão.

No sistema representativo, o poder de julgar do cidadão corresponderia à aprovação


ou reprovação do desempenho do mandato dos representantes no exercício do poder, a partir
do direito de voto.

Como vimos, o sistema representativo encontra-se em crise, por uma série de fatores
aos quais já nos referimos.

Com vistas a remediar essa crise de legitimidade, apontamos duas tendências: a


Jurisdicização do Político e as tentativas de se ampliar a participação popular direta e o direito
de informação.

A par do que já dissemos sobre a Jurisdicização do Político, poder-se-ia afirmar que a


jurisdição nada mais seria do que a Constituição estabelece para esta função do Estado, daí
ter-se uma jurisdição Constitucional. Ocorre que a Jurisdição Constitucional, até pelos
princípios adotados pela Constituição não pode impedir a legitima expressão das posições

17
RICOEUR, Paul. Le Juste II . Paris: Éditions Espirit, 2001. p.192.

11
políticas, dentro de um pluralismo político, e do projeto existencial de cada um. O todo jurídico
não é menos pernicioso que o todo político.

Mesmo em questões envolvendo os Direitos Humanos Fundamentais, nas quais é


ampla a margem de atuação do Poder Judiciário, a primazia para concretização de tais direitos
é do Poder Legislativo, devido à presunção de sua legitimidade democrática (lembrando que os
membros do Poder Judiciário no sistema Romano-Germânico não são, como regra, eleitos para
o exercício de suas funções), sendo que somente no caso de omissão deste ou na existência
de uma disciplina contrária aos parâmetros axiológicos da Constituição é que o Judiciário pode
atuar para suprir tais falhas.

Deve-se destacar, ainda, que a Constituição não é uma Torá inacessível, mas antes
um documento que rege a vida de um povo, de uma comunidade histórica, não podendo
impedir a legítima mudança de orientação das gerações futuras e o fenômeno da mutação
constitucional, que é a mudança do sentido da constituição sem alteração de sua forma,
cabendo ao Judiciário ter discernimento crítico e sensibilidade para aperceber-se de tais
fenômenos.

O controle do arbítrio do Judiciário deve partir do desenvolvimento de modelos


argumentativos, standarts, para utilizar a linguagem de Robert Alexy. Argumentação essa que
também deve orientar não só o debate jurídico como o processo político na busca do razoável.

O grande problema hoje é a desinformação que impera em grande parcela da


população, não sendo raras as vezes que os meios de comunicação conduzem a opinião
pública para interesses pessoais, especialmente os seus e daqueles que os financiam, que não
necessariamente estão em confluência com os interesses da comunidade.

O Direito à informação deve nortear o debate jurídico e as discussões políticas, para


despertar o interesse da população para as questões que regem a vida do país, da sociedade e
do mundo. Mais do que isso: é necessário possibilitar a participação direta da população nas
grandes questões afetas ao interesse público. É certo que nem todas as questões têm
potencial para mobilizar toda população, mas é necessário assegurar ao cidadão comum o
direito de participar no debate das questões afetas ao interesse público (o que não é inviável
com os atuais recursos tecnológicos), devendo-se repensar o atual sistema político, com vistas
a viabilizar a desprofissionalização da política.

Assim como a política não é capaz de mobilizar o interesse de todas as pessoas, a


disciplina política das questões jurídicas não é capaz de alcançar todas as matérias que
chegam hoje ao Judiciário, com a estrutura complexa da atual sociedade que vivemos,
ganhando destaque a questão da iniciativa jurídica do Poder Judiciário.

O próprio positivismo jurídico reconhecia uma margem de discricionariedade do Poder


Judiciário, especialmente nos casos de conflitos de normas, conceitos jurídicos indeterminados
e lacunas jurídicas. Mas, como dito antes, é preciso que se tenham limites para que as
decisões judiciais não se tornem arbitrárias, o que depende da riqueza dos debates,
decorrentes da interpretação e argumentação jurídica, necessários ao processo de consciência
jurídica e democrática.

5 DAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O DISPOSTO NOS §§ 1°, 2°, 3° DO ART. 5° DA


CRFB/88.

Como é sabido, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, é fruto da


transição de um Estado Autoritário para ordenamento jurídico de um Estado Democrático de
Direito que tem dentre seus objetivos organizar uma sociedade livre, justa e solitária. A
disciplina constitucional, deve-se destacar, não foi indiferente a toda problemática
anteriormente desenvolvida nesse estudo, sendo o disposto nos parágrafos 1°, 2° e 3° do art.
5° da Constituição reflexo das questões abordadas, como se vê do texto dos referidos
dispositivos jurídicos:

Art. 5°: [...]

12
§1° As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata.
§2° Os direitos e garantias fundamentais expressos nessa Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§3° Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.”

Duas observações merecem, nesta oportunidade, ser destacadas. A primeira é que,


apesar de se ter relativizado as distinções entre direitos humanos e fundamentais, entendemos
ser funcionalmente relevante e até mesmo decorrente da própria opção constitucional enfatizar
a distinção que estabelece a expressão Direitos Fundamentais para o plano constitucional e
Direitos Humanos para o plano internacional, sem que com isso tenhamos abandonado a
expressão Direitos Humanos Fundamentais e a problemática dela decorrente.

A segunda é que, como já nos referimos, pode-se constar que a problemática


decorrente das tendências expostas no início desse estudo estão, de certa forma, presentes na
disciplina do texto constitucional-não estando a Constituição desconectada com o que vem
acontecendo no mundo-sendo elas as seguintes, valendo mais uma vez frisar: a elaboração de
tratados sobre Direitos Humanos, uma nova abordagem do Direito Constitucional, ainda que
de forma não tão nítida, o acirramento da crise do positivismo jurídico e o desenvolvimento do
chamado pós-positivismo.

Vê-se de início no §1° que foi adotada a expressão Direitos Fundamentais por Ingo
Wolfgang Sarlet, em sua obra “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”18, que faz referência ao
interessante conceito de Direitos Fundamentais apresentada por Robert Alexy , entendendo
esse que os direitos fundamentais poderiam ser definidos como aquelas posições que, do
ponto de vista do direito constitucional, são tão relevantes, que seu reconhecimento ou não -
reconhecimento não pode ser deixado à livre disposição do legislador ordinário - entenda-se
poderes constituídos e de reforma da Constituição.

Como pode-se constatar, essa noção valoriza de forma acentuada a chamada


Jurisdição Constitucional e, por conseqüência, a atuação do Poder Judiciário. O que dispõe § 1°
é que as normas relativas aos Direitos Fundamentais poderão ser aplicadas diretamente,
independentemente da disciplina infraconstitucional, que a rigor possui a função de concretizar
os Direitos Fundamentais. Isso faria pensar em uma disciplina específica dos Direitos
Fundamentais com relação à classificação das normas constitucionais em normas de eficácia
plena, contida e limitada, tendo as normas definidoras de direitos fundamentais, em regra,
eficácia plena ou no mínimo contida - se sua estrutura assim o indicasse), além da eficácia
mínima de qualquer norma constitucional de impedir atos contrários ao seu conteúdo.

Deve ser observado que alguns Direitos Fundamentais possuem uma configuração
polêmica com relação a essa aplicabilidade imediata, como é o caso dos Direitos Sociais de
caráter prestacional. Alguns dizem que em observância a esse § 1° dever-se-ia atentar para a
chamada máxima efetividade. Outros ponderam que esses direitos importariam custos e
deveria se verificar a reserva do possível. Uma terceira posição surge no sentido da
observância da ponderação de interesses a partir do princípio da razoabilidade e da
proporcionalidade. Existe ainda uma posição que faz uma conexão com o princípio da
dignidade da pessoa humana e defende o chamando mínimo existencial. A rigor entende-se
que essas correntes se completam e somente um profundo debate pode viabilizar a
concretização desses Direitos Fundamentais.

Destaca-se que a referida norma constitucional faz referência à “aplicação imediata”. a


noção de aplicação pressupõe outras duas operações relevantes para a concretização dos
Direitos Fundamentais: a interpretação e a argumentação. A respeito do tema ressalta-se o

18
SARLET. Op. cit, p. 91

13
interessante artigo de Paul Ricoeur denominado Interpretação, publicado em seu livro Justo
ou a essência da Justiça.19

No referido artigo, o autor entende que pode ser elaborada uma versão dialética da
polaridade interpretação/argumentação, mas o estado em que se encontrava a discussão não
pareceria, à primeira vista, orientado para tal tratamento dialético. Destaca Ricoeur, por um
lado, teria encontrado a partir de seus estudos o pensamento de Ronald Dworkin, que dá à
segunda parte de sua obra “A Matter of Principle” o título de “Law as Interpretation”, sem que
aí houvesse aparentemente lugar para um eventual confronto entre interpretação e
argumentação; por outro lado, teria atravessado a leitura de teóricos da argumentação
jurídica, como Robert Alexy com a Theorie der Juristischen Argumentation, e Manuel Atienza
com a Teoria de la Argumentación Jurídica, para quem a argumentação jurídica deveria ser
considerada como uma proveniência distinta, por certo, mas subordinada, no interior de uma
teoria geral da argumentação prática, sem que a interpretação seja jamais reconhecida como
uma componente original do discurso jurídico.

Ricoeur20 defende poder extrair uma prova das insuficiências internas de cada uma
das posições consideradas, com o objetivo de sustentar a tese segundo a qual uma
hermenêutica jurídica centrada na temática do debate requer uma concepção dialética das
relações entre interpretação e argumentação, tendo o artigo sido desenvolvido com essa
finalidade e o autor sido incentivado pela analogia que pareceu existir no plano epistemológico
entre o par compreender/explicar e no plano jurídico entre interpretar e argumentar. Para
Ricoeur, o ponto em que interpretação e argumentação se separam é aquele em que se
cruzam a via regressiva e ascendente de Dworkin e a via progressiva e descendente de Alexy e
Atienza.

A primeira iniciar-se-ia com a questão bicuda colocada pelos hard cases, os casos
“difíceis”, nos quais alguma das disposições existentes não pareceriam constituir a norma sob
a alçada da qual o caso poderia ser colocado, gerando uma armadilha para concepção
positivista, daí eleva-se até o horizonte ético político da “iniciativa judiciária”, considerada no
seu desenvolvimento histórico, para evitar o poder discricionário do juiz, reconhecido em
determinada etapa pelo positivismo.

A segunda procede de uma teoria geral da argumentação, válida para qualquer forma
de discussão prática normativa, achando a argumentação jurídica como uma província
subordinada.

A primeira via, de Dworkin, atingiria a encruzilhada comum no momento em que a


teoria da interpretação depara com a questão colocada pelo próprio modelo narrativo com seus
critérios de coerência do juízo em matéria jurídica.

A segunda atingi-la-ia quando, ao dar conta da especificidade da argumentação


jurídica, os procedimentos de interpretação encontrariam a sua pertinência a título de organon
do silogismo jurídico, em virtude do qual um caso é colocado sob uma regra.

De Dworkin21 destaca-se que concepção do Direito que propõe repousa sobre a


hierarquia entre os diversos componentes normativos, denunciando a cumplicidade,
sustentada pelo positivismo, entre a rigidez jurídica que se liga à idéia de regra unívoca e a
decisão que conduz a um acréscimo do poder discricionário do juiz.

Insiste, então, que a univocidade é uma característica das regras, o que não conviria
aos princípios que, em última instância, são de natureza ético-jurídica. O Direito estabeleceria,
enquanto sistema de regras, não esgotando o direito enquanto iniciativa política, sendo mais
fácil encontrar princípios do que regras na solução dos casos difíceis. Os princípios não seriam
identificados pela sua origem, mas pela sua força normativa própria, excluindo do seu estatuto

19
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget. 1995, p.143.
20
RICOEUR, op. cit.
21
DWORKIN, op. cit

14
ético-político a univocidade, ao contrário das regras de segundo grau, tais como as “regras de
reconhecimento” do positivismo de Hart, pesando, inclinado, porém, no sentido de uma
determinada tese, orientação. Dworkin estaria mais interessado no horizonte ético-político
sobre qual se salientam os princípios irredutíveis às regras, devendo-se a esta distinção entre
princípios e regras uma concepção geral do direito inseparável de uma teoria política
substantiva, não apelando o pensador infelizmente para uma teoria da argumentação.

Da teoria da argumentação de Alexy e Atienza, e mesmo do agir comunicativo de


Jürgen Habermas, destacaria-se a visão de retitude ou correção como pretensão que elevaria à
legitimidade desde que admitisse o critério da comunicabilidade universalizável. Seria sobre o
horizonte de um consenso universal que se colocariam as regras formais de qualquer discussão
que aspirasse à retitude. Essas regras, em pequeno número, constituiriam o essencial da
pragmática universal do discurso, cujo acento normativo deveria ser fortemente sublinhado,
contra toda a redução à argumentação estratégica que rege a negociação, a qual é submetida
aos constrangimentos de toda a espécie, na mira do sucesso e não da retitude.

Observa-se, porém, como pondera Ricoeur que o silogismo jurídico não se deixa
reduzir à via direta da subsunção de um caso sob uma regra, mas deve, além disso, satisfazer
o reconhecimento do caráter apropriado da aplicação de tal norma a tal caso, realizando a
dupla interpretação da lei e dos fatos.

Nesse entrelaçamento entre o plano normativo e factual, a partir das implicações


recíprocas entre interpretação e argumentação, e de uma relação dialética desses dois últimos
termos, é que pode-se buscar a concretização dos Direitos Fundamentais com vistas à sua
máxima efetividade, em observância aos princípios e ao regime constitucional.

O § 2°, por sua vez , configura o que se chama de cláusula de abertura material da
Constituição, como leciona Ingo W. Sarlet, 22 a fundamentalidade material decorre da
circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição
material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade,
existindo, assim direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo
fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo.

Dessa forma, a doutrina reconhece a existência na Constituição de 1988 de direitos


fundamentais expressos e não expressos. Os primeiros seriam os previstos no Título II da
Constituição e os constantes na Constituição fora do título II. Já o segundo os decorrentes de
princípios e regras expressos e dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte e os
implícitos, que seriam aqueles subentendidos no sistema.

Acrescenta Sarlet23 que, com base no entendimento sustentado com relação ao § 2°


do art. 5°, em princípio, poder-se-ia cogitar de duas espécies de direitos fundamentais: a)
direitos formal e materialmente fundamentais ancorados na Constituição formal; b) direitos
apenas materialmente fundamentais sem assento no texto constitucional, referindo-se ainda o
autor à existência de respeitável doutrina que advoga a existência de uma terceira categoria, a
dos direitos apenas formalmente materiais.

Os Direito Fundamentais expressos fora do título II e os decorrentes dos direitos


fundamentais expressos tem sua existência facilmente extraída do teor § 2° do art. 5°, a
dúvida ficaria com relação aos Direitos Fundamentais implícitos, alguns defendendo que o
referido parágrafo teria caráter essencialmente declaratório, já que, em regra, seria
desnecessário já que implícito, é o que já está subentendido, servindo o texto normativo
destacado com um lembrete, não podendo o Poder Judiciário deixar de reconhecer um direito
implícito, no mínimo, quando corresponder, em face das circunstâncias, à exigências do
sistema Constitucional, fundamentando devidamente a decisão reconhecedora da situação
jurídica indicada.

22
SARLET, op. cit., p. 89 e 93
23
idem., p.95

15
Poder-se-ia pensar se seria uma porta para o reconhecimento da legitimidade de uma
abordagem pós-positivista, mas tal observação deve ser feita de forma bastante criteriosa.
Atentede-se para dois trechos da obra de Sarlet em apreciação24:

Ainda a este respeito, importa transcrever o que talvez tenha sido a posição
mais contundente, entre nós, em favor desta tese. Para Paulino Jacques, “o
Legislador-Constituinte, ao referir os termos regime e princípios, quis ensejar o
reconhecimento e a garantia de outros direitos que as necessidades da vida
social e as circunstâncias dos tempos pudessem exigir. É uma cláusula, por
conseguinte, consagradora do princípio da eqüidade e da construção
jurisprudencial, que informam todo o direito anglo-americano, e que, por via
dele, penetram no nosso sistema jurídico. Também entre nós, não é a lei a única
fonte do direito, porque o regime, quer dizer, a forma de associação política
(democracia social), e os princípios da Constituição (república federal
presidencialista) geram direitos

O que se conclui do exposto é que o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais


consagrado pelo art. 5°, §2º, da nossa Constituição é de uma amplitude ímpar, encerrando
expressamente, ao mesmo tempo, a possibilidade de identificação e construção jurisprudencial
de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente
positivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outra partes do texto
constitucional e nos tratados internacionais. Tal constatação é, por outro lado, de suma
relevância para viabilizar a delimitação de certos critérios que possam servir de parâmetro na
atividade “reveladora” destes direitos”

[...]Todavia, já no que se refere à atividade judiciária, que assume especial


relevância no tocante à problemática apresentada neste estudo, a situação
assume contornos nitidamente distintos. Sob um primeiro ângulo, podemos
encontrar um evidente limite em considerando que a distribuição de
competências inerente ao Estado democrático de Direito, de modo especial na
formulação do princípio da divisão de tarefas entre os diversos órgãos do poder
estatal, não permite que o Judiciário substitua o legislador na sua tarefa
precípua de criação do direito quanto mais em se tratando de direito
constitucional. É evidente que a linha divisória entre a atividade judicante e
legislativa não é muito precisa, o que se evidencia ainda com maior intensidade
na seara constitucional, onde se multiplicam os exemplos de conceitos abertos e
fluidos, carecendo de concretização pela via interpretativa. Por mais que se
possa (e deva) colocar em discussão essa problemática, devemos ter em mente
que a tarefa do Judiciário, no campo da identificação e localização dos direitos
fundamentais situados fora do catálogo da Constituição, é, acima de tudo, a de
identificar e revelar o que já existe, ainda que de forma implícita, sem prejuízo
de uma atividade criadora de cunho suplementar e ampliativo. Assim, em
princípio, acreditamos que a busca de direitos fundamentais situados fora do
catálogo deve ater-se preferencialmente à Constituição, iniciando pelos
expressamente positivados (ainda que fora do catálogo), deixando os implícitos
e decorrentes para um segundo momento, voltando-se, após, para as regras de
direito internacional (especialmente tratados). Esta ordem de preferência revela
sua vantagem quando se cuida de aquilatar o regime jurídico que compartilham
os direitos fundamentais fora do catálogo, de modo especial, os direitos com
sede em tratados internacionais que, em regra, são tidos como apenas
materialmente fundamentais.

Se partir de uma visão de cunho positivista, diria-se que o § 2° do art. 5° da CRFB


(além de outras normas, como o art. 7°, caput) tratar-se-ia de uma regra de reconhecimento,
cuja função seria viabilizar a abertura do sistema, porém entende-se que a norma contida no
referido dispositivo constitucional tem caráter declaratório especialmente no que diz respeito
aos direitos fundamentais decorrentes dos princípios e do regime constitucional e aos Direitos
Fundamentais implícitos. As considerações filosóficas referentes à relação dialética do par
interpretar /argumentar no nosso modo de ver, são suficientes para legitimar uma abordagem

24
ibidem, pp. 101 e 161

16
pós-positivista, dentro do que chamamos concretismo crítico. Acrescentar-se-ia apenas o
critério da equivalência em conteúdo e importância, abordado por Ingo Sarlet 25 , para que
pudéssemos reconhecer os direitos fundamentais, viabilizando a extensão de seus efeitos para
outras situações equivalentes.

Dito isso, será abordado a seguir, então, a questão dos tratados internacionais,
especialmente os referentes aos direitos humanos, buscando a correlação do § 2° com o § 3°
do art. 5° da Constituição Federal.

Ao estabelecer as conclusões do seu livro “Direitos Humanos” e o “Direito


Constitucional Internacional”, Flávia Piovesan apresenta o seguinte posicionamento:

8) Por força do art. 5°, § 2°, da Constituição Federal de 1998, todos os tratados de
direitos humanos, independentemente do quorum de aprovação, são materialmente
constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado
introduzido pelo § 3° do mesmo artigo ( fruto da Emenda Constitucional n
45/2004), ao reforçar a natureza constitucional dos tratados de direitos humanos,
vem adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados,
propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no
âmbito jurídico interno. Nessa hipótese, os tratados de direitos humanos
formalmente constitucionais são equiparados à emendas à Constituição, isto é
passam a integrar formalmente o Texto. Com o advento do § 3°do art. 5° surgem,
assim, duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos:
a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente
constitucionais. Frise-se : todos os tratados internacionais de direitos humanos são
materialmente constitucionais, por força do § 2° do art. 5°. Para além de serem
materialmente constitucionais , poderão, a partir do § 3° do mesmo dispositivo,
acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à
Constituição, no âmbito formal.26

Partindo do entendimento do Supremo Tribunal Federal de que os tratados


internacionais de qualquer natureza teriam a mesma hierarquia das leis ordinárias, a redação
do §3° do art. 5° ( fruto da Emenda Constitucional n. 45/2004) seria um grande avanço, mas
se partiu do entendimento, defendido por Flávia Piovesan, no sentido de que os tratados de
direitos humanos já com base no § 2° já seriam materialmente constitucionais, não haveria,
em princípio, significativa evolução. Porém, a própria autora Flávia Piovesan esclarece a
situação no seguinte trecho do seu livro referido:

13) Se os tratados de direitos humanos materialmente constitucionais são


suscetíveis de denúncia, em virtude das peculiaridades do regime de direito
internacional público, sendo de rigor a democratização do processo de denúncia
(com a necessária participação do Legislativo), os tratados de direitos humanos
material e formalmente constitucionais são insuscetíveis de denúncia. Isto
porque os direitos neles enunciados receberam assento formal no Texto
Constitucional, não apenas pela matéria que veiculam, mas pelo grau de
legitimidade popular contemplado pelo especial e dificultoso processo de
aprovação, concernente à maioria de três quintos dos votos dos membros, em
cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação. Ora, se tais
direitos internacionais passaram a compor o quadro constitucional, não só no
campo material, mas também no formal, não há como admitir que um ato
isolado e solitário do Poder Executivo subtraia tais direitos do patrimônio
popular – ainda que a possibilidade de denúncia esteja prevista nos próprios
tratados de direitos humanos ratificados, como já apontado. É como se o Estado
houvesse renunciado à prerrogativa de denúncia, em virtude da
“constitucionalização formal” do tratado no âmbito jurídico interno.27

Deve ser observado que possuindo natureza de emenda Constitucional os tratados de


direitos humanos estariam sujeitos ao controle de constitucionalidade, não se afastando,
porém, o critério de aferição consistente no princípio da maior proteção à pessoa humana,

25
ibidem, p. 162
26
PIOVESAN, Flávia. Op.cit, p.329.
27
Idem, p 330.

17
prevalecendo a norma mais favorável para a proteção de tal valor fundante das ordens
jurídicas democráticas, o que deve ser aferido nas situações concretas.

Uma vez incorporado formalmente à Constituição como assegurador de direito


fundamental, o tratado não poderá ser mais suprimido ou ter reduzido sua amplitude pelo
Poder Constituinte Derivado - a partir de emenda à Constituição -, por ter se configurado como
cláusula pétrea nos termos do art. 60, §4° da Constituição Federal.

Por fim, destaca-se a situação peculiar das chamadas Declarações de Direitos


Humanos, que, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, não estão abertas à
ratificação. Sem desconsiderar o fato de que para aderir a uma Organização Internacional
deve-se anuir com seus textos básicos, alguns autores dizem que essas Declarações de
Direitos só teriam força moral, sendo as mesmas concretizadas por tratados posteriores.
Entende-se, porém, que, uma vez compatíveis com os princípios e o regime Constitucional,
essas poderão ser aplicadas diretamente, com base no posicionamento firmado a respeito do
§2° do art. 5° da Constituição Federal.

6 DA CONCLUSÃO

O objetivo com este estudo não foi trazer grandes inovações, mas condensar uma
série de noções relevantes para uma abordagem realista e crítica a respeito dos Direitos
Humanos Fundamentais, aprofundando determinados pontos como a dignidade da pessoa
humana, questão da cidadania e o acirramento da crise do positivismo, com o surgimento da
concepção Pós-Positivista, designada nota abordagem como Concretismo Crítico, como reação
ao abstracionismo do jusnaturalismo e do positivismo.

Algumas dualidades foram exploradas, ainda que de forma não tão ampla, para tentar
aprofundar o tema Direitos Humanos Fundamentais e Cidadania, dualidades essas que não
possuem caráter excludente, mas antes podem ser abordadas a partir da busca de uma linha
comum, tais sendo: o próprio tema principal (Direitos Humanos Fundamentais e Cidadania);
Direitos Humanos e Direitos Fundamentais; Jusnaturalismo e Positivismo; Estados Unidos e
França; Dignidade da Pessoa Humana e Estado Democrático de Direito; Teoria Moralista e
Neopositivismo; o Universal e o Comunitário; Cultura Judaica e Democracia Grega;
Cristianismo e Iluminismo; Jurisdicização do Político e Democracia Direta; Globalização e
Universalização dos Direitos Humanos Fundamentais; Equivalentes Jurisdicionais e Jurisdição;
Class Action e deliberação política; controle judicial da efetividade das políticas públicas e
opções políticas legítimas e efetiva participação popular; Juiz cidadão e cidadão como juiz;
Universalidade dos Direitos Humanos Fundamentais e a Constituição; a Constituição e a
realidade social; Jurisdição Constitucional e Cortes internacionais; Eu e circunstâncias; Poder
Legislativo e Poder Judiciário; Projetos Existenciais e Pluralismo Político; Interpretação e
Argumentação; Princípio e Regra; Norma e Fato; Constitucionalidade Formal e
Constitucionalidade Material; Direitos Fundamentais expressos e Direitos Fundamentais não
expressos; e Direitos Humanos e controle de constitucionalidade.

Mas o que se pode concluir a respeito do tema principal e dos sub-temas e qual a
relação entre eles?

Em primeiro lugar, é necessário que se destaque que os Direitos Humanos


Fundamentais encontram-se na área de confluência entre a Política, a Moral e o Direito.

José Afonso da Silva aponta que: A ampliação e transformação dos direitos


fundamentais do homem no envolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e
preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se empregarem várias expressões para
designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos , direitos do homem, direitos
individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos
fundamentais do homem.”28 Após uma breve análise das diversas terminologias, conclui o
referido autor que:

28
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1997p. 174.

18
Direitos Fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este
estudo, porque, além de referir-se aos princípios que resumem a concepção do
mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é
reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e
igual de todas as pessoas. No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de
que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se
realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do
homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas
formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do
homem, não como macho de espécie, mas no sentido de pessoa humana.
Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa
humana ou direitos humanos fundamentais. É com esse conteúdo que a
expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se
completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente, no
art. 17.
A expressão Direitos Fundamentais do homem, como também já deixamos
delineado com base em Pérez Luño, não significa esfera privada contraposta à
atividade pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação deste, mas
limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado
que dela dependem. Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos
implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o que lhes
enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com as relações
econômicas e sociais de cada momento histórico. A Constituição, ao adotá-los
na abrangência com que o fez, traduziu um desdobramento necessário da
concepção de Estado acolhida no art. 1°: Estado Democrático de Direito. O fato
de o direito positivo não lhes reconhecer toda a dimensão e amplitude popular
em dado ordenamento jurídico (restou dar, na Constituição, conseqüências
coerentes na ordem econômica) não lhes retira aquela perspectiva, porquanto,
como dissemos acima, na expressão também se contêm princípios que resumem
uma concepção do mundo que orienta e informa a luta popular para a conquista
definitiva da efetividade desses direitos. 29

Daí a noção de Direitos Humanos Fundamentais não poder ser dissociada da de


Cidadania, pois esta constitui uma espécie daqueles e visa também à concretização dos
mesmos. Bem acertadas são as considerações de Paul Ricoeur30 sobre o tema:

[...]Sem a mediação institucional, o indivíduo é apenas um esboço de homem,


sendo sua pertença a um corpo político necessária para o seu desenvolvimento
humano e, neste sentido, não sendo digna de ser revogada. Bem pelo contrário.
O cidadão nascido desta mediação institucional só pode desejar que todos os
homens gozem com ele dessa mediação política que, juntando-se às condições
necessárias que relevam de uma antropologia filosófica, se torna condição
suficiente para a transição do homem capaz para o cidadão real.

A figura da Jurisdicização do Político acabaria por relativizar a institucionalização


política, a partir de uma visão que tenderia mais a moralizar a esfera política, culminando com
a figura do Juiz Cidadão. Outra visão que quisesse politizar a moral enfatizaria a questão da
Democracia Direta e do Direito a informação, culminando na noção do Cidadão como Juiz.

A pergunta que ficaria seria essa: como alcançar um estatuto científico próprio para o
Direito diante da problemática específica dos Direitos Humanos Fundamentais, para além da
mediação concretizadora da política, mas sem a desconsiderar?

Estamos inclinados a responder: pela relação dialética do par interpretar e


argumentar, visando a concretização de tais direitos em busca da máxima efetividade.

Caberia ser destacado, por fim, que a Constituição, nos parágrafos 1°, 2° e 3 do art.
5°, levou em consideração todos os pontos das tendências que se delinearam após Segunda

29
SILVA, José Afonso da. Op. cit, pp.176-177
30
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Op cit., p34.

19
Guerra Mundial., já amplamente destacadas neste estudo, mas restaria dizer que a efetividade
da disciplina constitucional deve ser buscada, juntamente com sua relevante concretização
pelo processo político, a partir da relação dialética do par interpretar/argumentar, que pode
ser entendida como a dimensão referencial do Direito na busca de sua concretização crítica.

20
A PRESCRIÇÃO APÓS A LEI Nº 11.280/06

André Augusto Cella


Advogado da União na Procuradoria Seccional da União (PSU) de Santa Maria – RS
Graduado em Direito e Especialista em Direito Civil pela UFSM

Sumário: 1 Introdução; 2 A concepção clássica da prescrição; 3 Da


reviravolta recente no tratamento legislativo da prescrição; 4 Das
conseqüências doutrinárias do art. 3º da Lei 11.280/06; 5 Conclusão;
6 Referências Bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO

Em meio às seis leis ordinárias que, nos últimos doze meses, modificaram o Código de
Processo Civil, a alteração aparentemente simples de um parágrafo do artigo 219, desse
Código, talvez tenha sido aquela que causou a maior mudança na estrutura clássica do direito
privado brasileiro, desde o advento do Novo Código Civil, em 2002.

Ao estabelecer que o juiz passaria a pronunciar a prescrição de ofício, a Lei nº 11.280,


de 16 de fevereiro de 2006, que entrou em vigor noventa dias após sua publicação, abalou
quase tudo o que sempre se soube em matéria de diferença entre prescrição e decadência.

O presente artigo, sem ter a pretensão de esgotar a matéria ou de apresentar


conclusões definitivas acerca do tema tratado, pretende trazer à discussão algumas das
conseqüências que essa modificação legislativa trouxe para a doutrina civilista brasileira, que
agora se depara com um instituto clássico moldado de forma completamente diferente daquele
em que se apresenta nos demais países da tradição jurídica romano-germânica.

Partindo das obras clássicas que tratavam de defini-la e passando pela evolução
legislativa da prescrição no direito positivo, o trabalho chega às indagações mais atuais sobre
a matéria, instigando o leitor a repensar temas como a intervenção do Estado na autonomia
privada da vontade e os sacrifícios feitos em nome da celeridade processual.

2 A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA PRESCRIÇÃO

2.1 HISTÓRICO, CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

A prescrição é um instituto de direito civil que remonta ao direito romano, ainda no


período republicano. Explica Câmara Leal 31 que a origem da expressão "prescrição" não tem
relação com uma determinação dada por alguém, como se poderia pensar ao fazer um paralelo
com as prescrições feitas por médicos. Na verdade, o termo se refere à pré-inscrição
(praescriptio), ou seja, o que vem antes do escrito.

Nos processos ordinários, os julgamentos dos pretores ocorriam por fórmulas escritas,
que eram apresentadas em quatro partes: demonstratio (fatos), intentio (pretensão do autor e
contestação do réu), condemnatio (atribuição do juiz para condenar ou absolver) e adjudicatio
(autorização para a parte ficar com o bem em disputa).

Quando o pretor proclamava que o prazo para que a ação fosse intentada já tinha se
expirado, lançava preliminarmente uma "prescrição"; daí a referência ao próprio conteúdo da
decisão do pretor.

31
CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 17-19.

21
Foram os próprios pretores, instituídos do poder de criar ações não previstas pelo
direito honorário, que criaram o costume de classificar as ações em temporárias (prescritíveis)
ou perpétuas. Como não tinham poder para decretar a extinção de certos direitos subjetivos,
reconheciam a prescrição da ação que lhes assegurava a utilidade, obtendo quase o mesmo
efeito prático.

Inicialmente, as ações prescritíveis eram exceção entre a regra geral das ações ditas
perpétuas AMORIM FILHO32 mais tarde, na Constituição de Teodósio, já no Império, aboliram-
se as ações perpétuas no jus civile, determinando-se que o prazo prescricional máximo das
ações seria de trinta anos, salvo disposição estipulando prazo menor.

A segurança jurídica é apontada, quase por todos os autores, como o principal


fundamento da prescrição. Câmara Leal 33, aprofundando-se mais no assunto, enumera pelo
menos sete motivos justificadores da prescrição, a saber:

1. a ação destruidora do tempo;


2. o castigo à negligência da parte interessada;
3. a presunção de abandono ou renúncia;
4. a presunção de extinção do direito;
5. a proteção dos devedores;
6. a diminuição do número de demandas; e
7. o interesse social na estabilidade das relações jurídicas.

Ao longo da história, um ou outro desses fundamentos foi-se tornando mais relevante.


Em tempos de liberalismo, a vontade do credor e do devedor era o foco – daí a razão para não
se admitir qualquer hipótese de reconhecimento da prescrição de ofício, pois isso significaria
uma intervenção indevida do Estado-juiz na esfera privada. Agora, como será visto ao longo
deste trabalho, a questão em primeiro plano talvez tenha passado a ser a diminuição do
número de demandas.

A evolução científica nos estudos jurídicos levou diversos doutrinadores clássicos a se


debruçar sobre a natureza jurídica da prescrição. Hoje, para compreender a doutrina mais
aceita, acerca dessa natureza, é necessário ter como premissa a conceituação exata de direito
subjetivo, pretensão e ação, nos planos material e processual.

Citando Von Tuhr, Ovídio Batista34 explica que o direito subjetivo é aquela "faculdade
reconhecida à pessoa pela ordem jurídica, em virtude da qual o sujeito exterioriza a sua
vontade, dentro de certos limites, para a consecução dos fins que sua própria escolha
determine". A essa faculdade, deferida ao titular do direito subjetivo, corresponde um dever do
sujeito passivo.

Todavia, bem se sabe que a mera existência de um direito subjetivo não significa
necessariamente que a faculdade de que dispõe o titular será efetivamente exercida. Da
mesma forma, de nada valeriam os direitos se não fosse deferido ao titular o poder para
exigir a sujeição daqueles contra quem seu direito se direciona.

A essa exigibilidade em potencial a doutrina deu o nome de pretensão – que tampouco


deve ser necessariamente utilizada para que tenha existência. Com a pretensão, pode-se
exigir que os sujeitos passivos se submetam ao direito subjetivo do titular – sem, no entanto,
contrariar a sua vontade. Pressupõe-se uma colaboração espontânea.

32
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações
imprescritíveis. Revista dos Tribunais, ano 86, v. 744, p. 744, p.734 out. 1997.
33
CÂMARA LEAL, op. cit, p. 27-28
34
BATISTA DA SILVA, Ovídio. Curso de processo civil. v. I . 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 61-62.

22
A ação é um momento posterior, que só nasce caso o exercício da pretensão não seja
suficiente. É um poder de exigir o respeito ao direito independentemente da vontade do sujeito
passivo.

Em razão do monopólio estatal na titularidade da ação de direito material, salvo raras


exceções, é que, dessa ação nasce, para o titular do direito subjetivo no plano material, um
outro direito subjetivo, agora no plano processual, de exigir que o Estado o substitua na
imposição de deveres aos sujeitos passivos.

A prescrição está intimamente relacionada à pretensão e à ação, e não com o direito


subjetivo, como se poderia equivocadamente supor.

A pretensão, ou "faculdade de se poder exigir a satisfação do direito" BAPTISTA DA


SILVA35, só passa a ser reconhecida pela ordem jurídica, muitas vezes, depois da verificação
de uma condição ou de um termo. Assim, há direitos que ainda não têm pretensão, como uma
dívida ainda não vencida. Da mesma forma, há direitos que já não têm mais pretensão ou
ação.

A prescrição é justamente uma das causas da extinção das ações – não do direito
subjetivo. A sua causa é a inércia do titular do direito e o seu fator operante é o tempo. A lição
de Câmara Leal36 é precisa nesse ponto:

Se a inércia é a causa eficiente da prescrição, esta não pode ter como objeto
imediato o direito, porque o direito, em si, não sofre extinção pela inércia de seu
titular. O direito, uma vez adquirido, entra, como faculdade de agir (facultas
agendi), para o domínio da vontade de seu titular, de modo que o seu não-uso,
ou não-exercício, é apenas uma modalidade externa dessa vontade,
perfeitamente compatível com essa conservação. [...] É contra essa inércia do
titular, diante da perturbação sofrida pelo seu direito, deixando de protegê-lo,
ante a ameaça ou violação, por meio da ação, que a prescrição se dirige, porque
há um interesse social de ordem pública em que essa situação de incerteza e
instabilidade não se prolongue indefinidamente.

"Prescrição", diz Pontes de Miranda, invertendo esse raciocínio para conceituar o


instituto do ponto de vista do réu, "é a exceção que alguém tem contra o que não exerceu,
durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação" PONTES DE
MIRANDA37.

Desde a consolidação do instituto da prescrição no direito romano, tem-se que ela é


uma exceção que só pode ser alegada por aqueles a quem aproveita, não podendo consumar-
se ipso iure, pelo simples decurso do tempo. 38 E, enquanto exceção, ela se classifica entre as
exceções substanciais que podem ser opostas pelo réu na contestação ou em qualquer outro
momento processual (art. 267, §3º, do CPC). Uma vez oposta, e somente se oposta, ela
encobre a eficácia da pretensão e extingue a ação.

O caráter de exceção substancial levava até mesmo a discussões sobre a preclusão da


possibilidade de argüição, caso o réu não tivesse suscitado a prescrição logo na contestação
CAHALI39 , havendo entendimento no sentido de que só se ela fosse superveniente é que
caberia alegação em momento posterior.

35
Ibid, op cit., p. 64-65.
36
CÂMARA LEAL, op. cit., p. 24.
37
PONTES MIRANDA. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, t. VI. p.100
38
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º
da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 1059, 26 maio 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8455>. Acesso em: 20
nov. 2006.
39
CAHALI, Yussif Said Aspectos processuais da prescrição e da decadência. São Paulo: RT, 1979.p.77

23
Outros autores a qualificam como negócio jurídico unilateral, receptício de vontade, que
se realiza em juízo ou fora dele, e que tem por efeito a extinção da exigibilidade do direito que
não fora exercido no prazo fixado em lei .40

A voluntariedade do exercício da exceção de prescrição conduz, necessariamente, à


possibilidade de que haja renúncia da prescrição. Da mesma forma, como se trata de uma
questão ligada à vontade da pessoa que pode argüi-la, pressupõe-se que a pessoa esteja no
pleno gozo de suas capacidades mentais. Daí a razão para que não corram os prazos
prescricionais contra pessoas incapazes, ausentes e contra os que estiverem servindo as
Forças Armadas em período de guerra.

Num grau mais avançado de proteção da autonomia da vontade, também se


convencionou que ela não corre entre os cônjuges, na constância do casamento, e entre
ascendentes e descendentes, durante o poder familiar.

Ao juiz, portanto, não se deferia a possibilidade de suprir ou "passar por cima" da


vontade da pessoa que poderia argüir ou deixar de argüir a prescrição.

2.2 DISTINÇÃO EM RELAÇÃO À DECADÊNCIA

Igualmente relevante para a compreensão exata da prescrição é o entendimento do que


é a decadência, instituto que também tem suas origens no Direito romano.

Em sua terminologia, a decadência traz a idéia de cair ou do estado daquilo que caiu.
Aplicado à ciência jurídica, o termo serve para identificar a queda ou o perecimento do direito
pelo decurso do prazo fixado para o seu exercício, sem que o seu titular o tivesse exercido. 41

As semelhanças entre a prescrição e da decadência residem justamente no fator


operante que têm em comum (tempo) e na causa que faz ambas se consumarem (a inércia do
titular do direito).

Talvez em razão dessa confusão entre os dois conceitos, o Código Civil Brasileiro
promulgado em 1916 trazia misturados os casos em que os prazos fixados pela lei tinham
natureza prescricional e decadencial.

Inúmeras foram as obras que se dedicaram a identificar, caso a caso, o que era
prescrição e o que era decadência. Assim foi na obra de Câmara Leal, várias vezes referida
neste artigo. "Da prescrição e da decadência", originalmente editada em 1939.

Décadas mais tarde, passou-se a buscar um critério científico seguro para identificar as
diferenças entre os dois institutos. Nessa fase, a obra que mais se destacou foi, sem dúvida o
"Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações
imprescritíveis", de Agnelo Amorim Filho, publicado pela primeira vez na RT Revista dos
Tribunais em outubro de 1960.

Segundo esse autor, o critério clássico, aquele pelo qual se dizia que a prescrição
extingue a ação e a decadência extingue o direito, era totalmente falho, pois apresentava
como fator de discrímen as conseqüências dos dois institutos. Já o critério de Câmara Leal, que
diferenciava ambas por meio da verificação empírica do exercício simultâneo ou não da ação e
do direito, seria duplamente falho por ressentir-se de base científica e por não permitir a
identificação de ações imprescritíveis.42

40
SOUZA, José Paulo Soriano de. Ensaio sobre a natureza jurídica da prescrição no Direito Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 9,
n. 569, 27 jan. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6220>. Acesso em: 20 nov. 2006.
41
CÂMARA LEAL, op. cit; p. 113.
42
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis.
Revista dos Tribunais, ano 86, v. 744, p. 725-750, out. 1997.

24
Utilizando-se das teorias acerca dos direitos potestativos e da classificação trinária das ações,
Amorim Filho construiu aquele que se tornou o mais conhecido, divulgado e prático meio de
diferenciar prescrição e decadência, durante o longo prazo de vigência do CC de 1916:

3. estão sujeitas à prescrição todas as ações condenatórias, e somente elas;


4. estão sujeitas à decadência todas as ações constitutivas que tenham prazo legal para
o seu exercício; e
5. são imprescritíveis as ações constitutivas que não tenham prazo legal de exercício e
todas as declaratórias.

O Novo Código Civil, promulgado através da Lei nº 10.406/02, adotou claramente a


doutrina acima referida. Analisando-o sistematicamente, pode-se deduzir que o "critério
científico" serviu para que os prazos prescricionais fossem todos concentrados no art. 206, que
só trata de ações predominantemente condenatórias. Já os prazos decadenciais foram
dispersos pelo Código, em cada situação específica, referindo-se à esses ou atingindo direitos
formativos, direitos potestativos ou de sujeição, os quais são veiculados, na sua grande
maioria, mediante ação predominantemente constitutiva, positiva ou negativa.43

Todavia, o que mais interessa ao presente estudo é que uma das diferenças
fundamentais entre a decadência e a prescrição é que a primeira é uma questão
eminentemente de ordem pública, cognoscível ex officio, e que a segunda, como visto no
primeiro tópico, depende da vontade de quem lhe aproveita, devendo ser expressamente
argüida na forma de exceção substancial para que possa gerar os seus efeitos extintivos.

Não há renúncia à decadência propriamente dita; apenas às decadências convencionais.


Não há casos em que a decadência não corre contra determinadas pessoas, porque ela
independe da vontade válida do sujeito, ao contrário da prescrição.

3 DA REVIRAVOLTA RECENTE NO TRATAMENTO LEGISLATIVO DA PRESCRIÇÃO

3.1 DA PROGRESSIVA RELATIVIZAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO DE


OFÍCIO DA PRESCRIÇÃO

No Código Civil de 1916, a vedação ao conhecimento de ofício da prescrição era


bastante clara: “Art. 166. O juiz não pode conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, se
não foi invocada pelas partes”.

O Código de Processo Civil de 1973, em sua redação anterior a 2006, tinha disposição
semelhante, estatuindo que "não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício,
conhecer da prescrição e decretá-la de imediato".

A ressalva constante dessa legislação, segundo a qual a prescrição só poderia ser


reconhecida de ofício quando não se tratasse de direitos patrimoniais, segundo VENOSA, 44 era
totalmente desnecessária, porquanto dificilmente haveria caso em que se falaria em prescrição
de direito não-patrimonial.

Na prática, portanto, respeitava-se a concepção clássica da prescrição, não havendo


caso em que o juiz pudesse conhecê-la sem a provocação de qualquer das partes interessadas.
O pedido de reconhecimento do Ministério Público, na condição de custos legis, em nada
alterava esse quadro, porquanto houvesse, ainda nesse caso, uma manifestação de vontade
de parte interessada, só que aí através de substituição processual.

43
FROEHLICH, Charles Andrade. Prescrição e decadência no novo Código Civil (2002). Um novo olhar sobre o critério científico de
distinção a partir da classificação quinária das ações. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 238, 2 mar. 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4895>. Acesso em: 20 nov. 2006.
44
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 660.

25
Havia alguma discussão acerca do conceito mais adequado de direitos patrimoniais,
havendo quem defendesse que questões de ordem pública, como o patrimônio da Fazenda
Pública, pudessem ser enquadrados na exceção que permitia o reconhecimento da prescrição
ex officio.

O Código Civil de 2002, em sua redação original, introduziu uma pequena modificação
nessa concepção, admitindo, pela primeira vez, o conhecimento da prescrição pelo juiz, sem a
necessidade de alegação de qualquer das partes, quando se tratasse de interesses de pessoas
absolutamente incapazes: “Art. 194. O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de
prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz”.

Poucos foram os autores que deram maior significação a essa mudança legislativa, sem
se aperceber que ela marcava apenas o início de uma "publicização" da prescrição.

O Centro de Estudos da Justiça Federal, órgão do Conselho da Justiça Federal que


promoveu jornadas para discussões sobre o novo código, chegou a editar um enunciado sobre
a questão, com o seguinte teor:

O art. 194 do Código Civil de 2002, a permitir a declaração 'ex officio' da


prescrição de direitos patrimoniais em favor do absolutamente incapaz, derrogou
o disposto no §5º do art. 219 do CPC.

Nery Júnior,45 a respeito da modificação, anotou que, no caso dos absolutamente


incapazes, o fundamento do exame de ofício não seria a natureza do direito, que segue sendo
patrimonial, mas o interesse social na proteção dessas pessoas.

Depois de muita polêmica jurisprudencial a respeito da possibilidade de reconhecimento


de ofício da prescrição em matéria de execução fiscal, foi editada a Lei nº 11.051, de 29 de
dezembro de 2004, que acrescentou o § 4º ao art. 40 da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execuções
Fiscais), determinando que o juiz pode decretar de ofício a prescrição, após a ouvida da
Fazenda Pública46.

A prática de extinguir as execuções fiscais prescritas foi adotada por muitos juízes como
mecanismo para reduzir o número assustador de processos e, de outro lado, para proteger os
direitos de contribuintes em mora com o fisco que, muitas vezes, sequer ficavam sabendo da
execução antes de terem os bens levados a hasta pública ou tinham condições de contratar um
advogado – que muitas vezes resumia sua atuação à oposição de embargos à execução
alegando prescrição.

A jurisprudência entendeu ainda que, como se trataria de norma de cunho processual, o


art. 40, § 4º da Lei de Execuções Fiscais teria aplicação imediata no mundo jurídico, atingindo
os feitos executivos em curso.47

3.2 A Lei nº 11.280, de 16 de fevereiro de 2006

Sem que maiores discussões sobre essa matéria específica tivessem sido realizadas, foi
inserida no contexto da reforma da legislação processual civil uma brusca alteração na
estrutura do Direito Civil, inclusive com a revogação expressa de um artigo do Código de 2002.

Em 16 de fevereiro de 2006, foi promulgada a Lei nº 11.280 que, no que interessa ao


presente estudo, assim dispôs:

Art. 3º O art. 219 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo


Civil, passa a vigorar com a seguinte redação:

45
NERY JUNIOR, Nelson. Código civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. revista e ampliada, atualizada até 2 de maio de
2003. São Paulo: RT, 2004. p.261.
46
Vide REsp 802697/RS.
47
Vide EDREsp 835.978/RS.

26
"Art. 219. ..................................................................
§ 5o O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.
.................................................................." (NR)
[...]
Art. 10. Esta Lei entra em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua
publicação.
Art. 11. Fica revogado o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
Código Civil.

A lei publicada teve como origem o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 4.726,
de 2004, remetido ao Congresso Nacional por iniciativa do Presidente da República em 15 de
dezembro de 2004, através da Mensagem nº 867, de 2004.

Da exposição de motivos do projeto, constou o seguinte:

2. Sob a perspectiva das diretrizes estabelecidas para a reforma da Justiça, faz-


se necessária a alteração do sistema processual brasileiro com o escopo de
conferir racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional, sem
contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla defesa.

3. De há muito surgem propostas e sugestões, nos mais variados âmbitos e


setores, de reforma do processo civil. Manifestações de entidades
representativas, como o Instituto Brasileiro de Direito Processual, a Associação
dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais do Brasil, de
órgãos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do próprio Poder Executivo
são acordes em afirmar a necessidade de alteração de dispositivos do Código de
Processo Civil e da lei de juizados especiais, para conferir eficiência à tramitação
de feitos e evitar a morosidade que atualmente caracteriza a atividade em
questão.

4. A proposta vai nesse sentido. A sugestão de redação ao parágrafo único do


art. 154 do CPC incorpora ao trâmite processual as inovações tecnológicas, os
sistemas de comunicação modernos, que permitem a troca de informações e a
prática de atividades de maneira eficiente, o que nos parece perfeitamente
adequado aos princípios que balisam a política Legislativa do governo referentes
à reforma processual.

5. No mesmo sentido, louvável a disposição que permite ao juiz decretar de


ofício, sem necessidade de provocação das partes, a prescrição, em qualquer
caso, conforme proposta de redação inédita ao parágrafo 5º do art. 219 do CPC.

[...]

II. Estas, Senhor Presidente, as razões que me levam a submeter a anexa


proposta ao elevado descortino de Vossa Excelência, acreditando que, se aceita,
estará contribuindo para a efetivação das medidas que se fazem necessárias
para conferir celeridade ao ritos do processo civil.

Como visto, não houve, pelo menos expressamente, uma preocupação com a
preservação da estrutura tradicional do direito civil, em matéria de prescrição. A alteração do §
5º do art. 219 do CPC, reforçada pela revogação do art. 194 do Noco Código Civil (NCC) foi
tratada apenas como mais uma medida destinada a concretizar o direito constitucional à
celeridade processual, inserido no art. 5º da Constituição pela Emenda Constitucional da
“Reforma do Judiciário”. Para o legislador, teve o mesmo valor da chamada “súmula
impeditiva de recurso”, da extinção do processo de execução e da possibilidade de julgamento
de mérito em questões exclusivamente de direito já decididas reiteradamente.

Há quem diga que o efeito esperado não surgirá. Albuquerque Júnior 48 anota que a
persistência da prescrição no direito alemão e francês não constiutui qualquer óbice à

48
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º
da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Jus Navigandi,

27
celeridade daqueles sistemas judiciários. Diz também que não há interesse concreto, para a
parte demandada, em protelar o desfecho do processo que poderia obter imediatamente,
através da suscitação da prescrição que lhe beneficia – o que só não fará se não perceber que
dispõe de tal exceção, o que é raro.

4 DAS CONSEQÜÊNCIAS DOUTRINÁRIAS DO ART. 3º DA LEI Nº 11.280/06

4.1 PRESCRIÇÃO AGORA É QUESTÃO EXCLUSIVAMENTE DE ORDEM PÚBLICA?

O caráter dúplice da prescrição – público e privado ao mesmo tempo – já fora detectado


pelos estudiosos mais antigos. Câmara Leal 49 consignara que a prescrição atende, de um lado,
a um interesse público de harmonia social, mas, ao mesmo tempo, atua sobre interesses
privados, exigindo de um particular o sacrifício de seus interesses individuais e do outro uma
manifestação de vontade para contrapô-la à cobrança que sofre.

"Como norma pública", prossegue a mesma autora, "tem sempre efeito retroativo,
ficando [...] sujeita às alterações da nova lei; mas, como norma privada, pode ser
renunciada".

Houve mesmo quem discutisse a natureza da prescrição sob o aspecto de ser norma de
direito civil (material), ou norma de direito processual. Tal discussão, entretanto, ficou
superada para aqueles que são adeptos da moderna teoria do processo civil, que separa os
planos material e processual, considerando a prescrição como causa extintiva da pretensão de
direito material, como explicado no primeiro capítulo.

Com a alteração legislativa referida no capítulo anterior, não há como escapar da


seguinte indagação: a prescrição passou a ser uma questão de ordem pública?

Para a maioria dos autores que já escreveram algo sobre a matéria, a resposta tende a
ser positiva. Nery Júnior50 é um deles, afirmando que, embora sempre trate de uma questão
patrimonial, a prescrição agora deve, e não apenas pode, ser proclamada de ofício pelo juiz,
revelando ter natureza de questão de ordem pública. O autor entende, ademais, que a
prescrição deve ser reconhecida de ofício até mesmo pela autoridade julgadora nos processos
administrativos, dada a modificação ocorrida em sua natureza.

Para Hugo Vitor Reis Pereira,51 o deslocamento da prescrição para a égide da ordem
pública se insere no contexto das demais medidas tomadas na implementação da primeira
parte da reforma processual civil brasileira, uma consolidação da tendência ditada pela
Emenda Constitucional nº 45/04, como forma de tratamento da massificação de demandas e
aumento dos poderes judiciais das instâncias imediatas.

Bessa52 entende, no mesmo sentido, que a determinação para que a prescrição seja
proclamada de ofício a transformou em questão de ordem pública.

Todavia, a resposta não pode ser tão simples, reconhecer que a prescrição se tornou
uma questão de ordem pública poderia significar, para muitos, que ela não seria mais passível
de renúncia, ou mesmo que se tornou a mesma coisa que a decadência.

Teresina, ano 10, n. 1059, 26 maio 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8455>. Acesso em: 20
nov. 2006.
49
CÂMARA LEAL, op. cit., 33 p.
50
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9. ed.
revista, ampliada e atualizada até 01.3.2006. São Paulo: RT, 2006. p. 408.
51
PEREIRA, Victor Hugo Reis. A prescrição em face da reforma processual (Lei nº 11.280/06) e a Fazenda Pública. Análise
processual preliminar da prescrição: direito de ação e situação da prescrição. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 999, 27 mar.
2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8163>. Acesso em: 20 nov. 2006.
52
BESSA, Leonardo Rodrigues Itacaramby. Argüição da prescrição de ofício pelo magistrado. Aspectos positivos e negativos.
Aplicabilidade ao processo do trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1006, 3 abr. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8197>. Acesso em: 20 nov. 2006.

28
Debruçando-se sobre o tema, em breve artigo publicado na Internet, José Maria
Tesheiner53 escreveu:

O que agora mudou, por força do artigo 219, parágrafo único, é que a prescrição
deixou de ser, em nosso Direito, exceção em sentido estrito. Podendo, agora,
ser decretada de ofício, tem a natureza de defesa de mérito indireta.

O artigo 194 do Código Civil, revogado pela Lei 11.280/06, já apontara o


caminho, autorizando o juiz a decretar de ofício a prescrição, para favorecer
absolutamente incapaz.

O debate, portanto, não dá sinais de que já esteja encerrado e promete dividir a


doutrina. O que certamente ocorrerão são mudanças doutrinárias a reboque da alteração
legislativa, procurando compatibilizar o regime legal de reconhecimento de ofício da prescrição
com a natureza de exceção de direito material desse instituto. Assim, manter-se-iam todos os
entendimentos acerca da possibilidade de renúncia à prescrição, das causas suspensivas e
interruptivas e das normas que protegem os incapazes, ausentes, etc.

Por mais improváveis que sejam na prática forense, problemas doutrinários como
aquele em que o devedor renuncia expressamente à prescrição depois que o juiz já a
reconheceu no processo deverão surgir, nesse caso, ter-se-á que optar pela prevalência da
autonomia privada ou da questão de ordem pública, aqui reforçada por preclusões processuais.

A mesma indagação conduz ainda a outras, tais como até que medida é constitucional a
ingerência do Estado-juiz em matérias como essas. Nesse âmbito de observação, argumenta
Albuquerque Júnior54, poder-se-ia até mesmo cogitar de uma inconstitucionalidade na previsão
legal que autoriza o Estado, no exercício da função jurisdicional, "a negar ao particular a
satisfação de um crédito patrimonial existente, válido e eficaz, exercendo e declarando uma
exceção de direito material que o devedor escolheu por não opor e causando-lhe um prejuízo
financeiro evidentemente imotivado". Ainda segundo o mesmo autor, tem-se em situação
como esta "induvidosa quebra da imparcialidade da jurisdição, através de intervenção na
atividade econômica que não se subsume às hipóteses de normatização e regulação".

4.2 AINDA EXISTE RAZÃO PARA DIFERENCIAR PRESCRIÇÃO DE DECADÊNCIA?

Ao se permitir a permitir o reconhecimento de ofício da prescrição, outra indagação que


logo vem à cabeça é se, tendo as mesmas conseqüências práticas, ainda haveria razão para
existirem dois institutos diferentes – prescrição e decadência.
Tesheiner,55 no artigo anteriormente já referido, entende que "não se chegou ao ponto de
transformar a prescrição em decadência. A prescrição continua deixando incólume o direito
subjetivo."

Uma das razões estaria justamente na manutenção da disponibilidade do titular da


exceção de prescrição, e da indisponibilidade com relação à decadência:

Continua sendo possível a renúncia à prescrição (Cód. Civil, art. 191), sendo
nula, porém, a renúncia à decadência, quando decorrente de lei (Cód. Civil, art.
209). Não pode ser decretada de ofício a decadência, quando convencional (Cód.
Civil, art. 211).

53
TESHEINER, José Maria. Prescrição. Decretação de ofício Lei 11.280/06. Porto Alegre, fev. 2006. Disponível em:
<http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/060412prescricao.php> Acesso em: 20 nov. 2006.
54
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º da
Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 1059, 26 maio 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8455>. Acesso em: 20
nov. 2006.
55
TESHEINER, op, cit.

29
De fato, não há como entender que a prescrição tenha sido completamente suprimida,
ou que tenha sido absorvida pela decadência. Todas as normas relativas às causas
interruptivas e suspensivas da prescrição, bem como aquelas que determinam quais as
situações em que ela não corre contra determinadas pessoas continuam em pleno vigor,
aplicando-se unicamente à prescrição.

Muito embora a reunião dos prazos prescricionais no art. 206 do Código Civil tenha
facilitado a questão, o critério científico de diferenciação entre uma categoria e outra continua
sendo de grande utilidade na identificação dos casos em que se pode ou não renunciar, em
que há ou não interrupção, etc., na medida em que a prescrição continua se resumindo às
hipóteses de ações predominantemente condenatórias.

Doutrinariamente, também, permanece muito mais lógico entender que a decadência


extingue o direito e a prescrição extingue a ação. Isso permite, por exemplo, que se mantenha
a tutela jurídica das obrigações naturais, em casos nos quais o devedor paga uma dívida já
prescrita sem aperceber-se disso e, depois, pede a repetição do indébito.

A obrigação natural pode ser definida como aquela em que existe uma relação
obrigacional desprovida de ação. Embora o credor não possa exigir judicialmente (por não ter
ação) o cumprimento dessa obrigação contra a vontade do devedor, o direito lhe assegura o
reconhecimento da validade do pagamento, caso este ocorra por liberalidade do devedor. 56

O pagamento é que finalmente extingue a obrigação (direito subjetivo do credor e


débito do devedor), não a prescrição. Exatamente por isso que, contra tal pagamento, não
cabe repetição de indébito. A ordem jurídica resguardará, nesse caso, aquele credor que
recebeu o pagamento, como se o devedor tivesse renunciado à prescrição.

4.3 O RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO EX OFFICIO É PODER OU DEVER DO JUIZ?

A questão de ser a proclamação de ofício da prescrição um poder do Magistrado ou


mais um de seus deveres não apresenta maior complexidade.

Uma mera interpretação gramatical do novo texto legal já leva à conclusão de que se
trata de um dever. O verbo foi utilizado no futuro jussivo ? – “pronunciará” – não dando
alternativa ao juiz que constatar ter ocorrido a prescrição

Nery Júnior57 também é seguro ao afirmar que se trata de um dever do juiz. A prática
forense revela que, muitas vezes, o simples reconhecimento da prescrição exige dilação
probatória. É o caso, por exemplo, de haver dúvida sobre o termo inicial de uma incapacidade
absoluta da pessoa contra a qual o juiz suspeita ter incidido a prescrição.

Numa hipótese como esta, por faltarem elementos essenciais à elucidação de uma
questão que deve ser decidida pelo magistrado, o mais correto, supõe-se, é que caiba ao
julgador tomar a iniciativa e determinar a realização das provas necessárias, como uma perícia
médica no indivíduo, a ouvida de testemunhas ou mesmo a análise de um eventual processo
de interdição.

Não se concebe mais um juiz preso à iniciativa das partes em matéria probatória, ainda
mais quando a lei lhe impõe um dever como esse. A abertura para a promoção de tais
diligências, ademais, já existe desde 1973, pela conjugação do disposto nos arts. 128 e 130 58
do Código Processual Civil.

56
GOMES, Orlando. Obrigações. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 81.
57
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9. ed.
revista, ampliada e atualizada até 01.3.2006. São Paulo: RT, 2006. 1536 p. 408.
58
Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo
respeito a lei exige a iniciativa da parte.
Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo,
indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

30
Nada há demais em tal proceder, basta lembrar que, quando um processo é distribuído,
caso haja verificação da possibilidade de prevenção, litispendência ou coisa julgada, o próprio
juiz normalmente determina a expedição de ofícios aos foros onde tramitam as ações que
podem ter alguma relação com a nova demanda, só decidindo a questão quando estiver de
posse de tais informações.

Ainda da constatação de que a pronúncia da prescrição é um dever do juiz, poderia


surgir um entendimento de que, caso essa declaração não ocorra, o julgador poderia ter algum
tipo de responsabilidade.

Descarta-se desse plano tal possibilidade, na medida em que a disciplina dessa questão
já existe no Código de Processo Civil, mais precisamente no art. 267, § 3º, que pode ser
estendido, por analogia, ao caso do art. 219, § 5º. Tal dispositivo trata de outras questões que
o juiz pode conhecer de ofício, impondo ao réu o dever principal de argüir a sua ocorrência na
primeira oportunidade que tem para falar nos autos, sob pena de ter de responder pelas
custas do retardamento.

4.4 DO MOMENTO EM QUE O RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DEVE OCORRER

Outra questão muito polêmica acerca da possibilidade de reconhecimento ex officio da


prescrição é justamente o momento em que isso pode (ou deve) acontecer.

A maioria dos autores que já se manifestaram sobre essa questão estão de acordo com
a tese segundo a qual a prescrição pode ser decretada pelo Magistrado logo no despacho em
que são analisados os requisitos formais e materiais da petição inicial, antes da formação da
relação processual. Nery Júnior59 é um dos que defendem a idéia de que nem mesmo haverá
citação da parte contrária.

O indeferimento calcado na decadência ou na prescrição, não é demais lembrar, afeta o


mérito da causa, não sendo viável propor novamente a ação, 60 de maneira que se forma coisa
julgada material sobre o caso.

Calmon de Passos61 há muito anotava que a inclusão da decadência e da prescrição nas


hipóteses de indeferimento da inicial configurava um erro técnico manifesto. Para o autor, é
inexato falar em indeferimento, expressão que deve ser guardada para as decisões obstativas
da constituição da relação processual. O melhor seria tratá-la apenas como uma extinção com
resolução de mérito.

Tendo em vista a possibilidade de formação de uma coisa julgada material sem a


citação do réu, como ficaria a possibilidade de renúncia por parte do devedor? Prevaleceria a
coisa julgada ou a vontade da parte?

Parece que, ao optar pela celeridade e pela segurança jurídica, a Constituição e a


legislação atual apontam para a primeira das opções.

Tal debate, no entanto, tende a perder relevância ante a introdução de um outro


dispositivo no Código de Processo Civil, muito mais polêmico: o art. 285-A.62 Pode-se dizer até
mesmo que a questão fica absorvida por esse outro ponto da reforma processual.

59
NERY JUNIOR, op cit, 2006.
60
MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. Comentários ao Código de Processo Civil v. II. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 480 p.
381.
61
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil – v. III. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. 496
p. 226.
62
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total
improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da
anteriormente prolatada.

31
Segundo esse artigo, "quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no
juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos,
poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente
prolatada". Nesse caso, é evidente que há resolução de mérito. Assim, pouco interessa se a
questão que pôs fim ao processo foi a prescrição ou outra matéria de mérito. Em ambos os
casos, haverá uma sentença indeferindo a inicial com julgamento de mérito – sem sequer
haver angularização da relação processual.

A conjugação das possibilidades abertas pelo art. 285-A e pelo novo § 5º do art. 219 do
CPC já conduziu, na prática, ao extremo do que se pode imaginar por celeridade processual.
Um exemplo: no processo nº 2006.71.02.004689-9, ajuizado na Subseção Judiciária de Santa
Maria e distribuído para a 2ª Vara Federal em 08/08/06, o tampo transcorrido entre o
recebimento do processo no cartório e a prolação de uma sentença de improcedência com
juízo de mérito, no dia 14/08/06, foi de apenas alguns minutos. Muito embora se saiba o que
acontece, muitas vezes, é que vários andamentos processuais são inseridos no sistema de
consulta processual de uma só vez, não deixa de surpreender a constatação que a distribuição
ocorrera apenas seis dias antes da prolação da sentença que extinguiu o processo com
resolução de mérito.

Nesse caso, o que o Magistrado fez foi exatamente valer-se dos novos instrumentos
processuais que, em nome da celeridade, se lhe concedeu. Tratava-se, no processo em
questão, de um pedido de reajuste remuneratório de militares, baseado na isonomia com um
percentual deferido aos servidores civis. A um só tempo, e sem citar a União, o Juiz Federal
reconheceu, de acordo com entendimento consolidado em decisões anteriores: (1º) que uma
eventual condenação da Administração deveria limitar-se ao mês de dezembro de 2000,
quando houve uma reestruturação na remuneração dos militares por força da MP 2.131/00;
(2º) que as parcelas anteriores ao lustro que precede a propositura da ação estavam
prescritas, de acordo com a Súmula nº 85 do STJ; e 3º tendo em vista que a ação fora
ajuizada em 2006, todas as parcelas às quais a Administração poderia ser condenada já
estavam prescritas, razão pela qual se impunha o julgamento de improcedência de plano,
concomitante ao reconhecimento da prescrição.

Ainda no que tange ao momento adequado para o reconhecimento da prescrição, Nery


Junior63 dá a entender que não se admite que haja tal proclamação nas instâncias especial e
extraordinária, em sede de julgamento de recurso especial ou extraordinário, porquanto deva
prevalecer o entendimento de que a matéria deve ter sido expressamente decidida, ou
prequestionada, nas instâncias ordinárias. Segundo o autor, trata-se de decorrência lógica dos
arts. 102, III, e 105, III, da Constituição Federal.
A jurisprudência, ao que tudo indica, continuará caminhando nesse sentido. No Recurso
Especial nº 853.204/RS, o Superior Tribunal de Justiça consignou, recentemente, que a nova
redação do art. 219, § 5º, do CPC, conferida pela Lei nº 11.280/06, que entrou em vigor em
16 de maio de 2006, somente poderá ser aplicada, em recurso especial, se esse dispositivo
estiver prequestionado na origem. Segundo a Corte, ademais, a partir do julgamento do REsp
nº 720.966/ES, em 12 de dezembro de 2005), a Seção de Direito Público concluiu não ser
aplicável, na instância especial, o direito superveniente, em razão do óbice constitucional do
prequestionamento. Como, na prática, dificilmente alguém prequestionaria o art. 219, §5º, do
Código de Processo Civil sem, ato contínuo, requerer o reconhecimento da prescrição, pode-se
concluir que ele não ocorrerá em julgamento de recursos especiais ou extraordinários.

Assim, a título de conclusão, pode-se dizer que a incidência do art. 219, §5º, do CPC é
possível desde a análise da petição inicial até o encerramento da atividade jurisdicional nas
instâncias ordinárias, só sendo passível de utilização em sede de recurso especial ou
extraordinário, caso haja prequestionamento da matéria.

5 CONCLUSÃO

63
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9. ed.
revista, ampliada e atualizada até 01.3.2006. São Paulo: RT, 2006. p.408.

32
Como bem anotou Tesheiner,64 a modificação em comento, no presente estudo, serve
para confirmar o dito segundo o qual uma lei é capaz de derrubar bibliotecas.

Ainda é cedo para chegar a alguma conclusão definitiva sobre a matéria, mas pelas
considerações feitas, pode-se dizer que a prescrição não foi extinta simplesmente porque o juiz
ficou autorizado a reconhecê-la de ofício. Fundamentos de cunho social e baseados na
celeridade processual teriam apenas alterado o uso de um instituto que, apesar de um pouco
"violentado" em sua concepção, continua o mesmo. Embora continue sendo uma exceção
substantiva, o juiz recebeu poderes expressos para reconhecê-la, configurando o art. 219, §5º,
do CPC uma das exceções previstas na parte final do art. 128 do mesmo Código.

No mais, a prescrição continua sendo uma causa de extinção da ação e de perda de


eficácia da pretensão de direito material, no que se diferencia da decadência. A possibilidade
de renúncia ainda persistiria, mas deve ser exercida antes do trânsito em julgado da ação. As
causas interruptivas, suspensivas e os casos em que a prescrição não corre contra
determinadas pessoas teriam permanecido exatamente os mesmos, aplicando-se unicamente à
prescrição.

O momento para que o Judiciário cumpra o dever de proclamar a prescrição seria


qualquer um daqueles compreendidos entre o recebimento da inicial e o trânsito em julgado da
demanda, ressalvada, apenas, a necessidade de prequestionamento nos recursos julgados no
STJ e STF.

Espera-se que, com essas breves linhas, tenha-se criado ao menos alguma reflexão a
respeito do tema, a fim de que não passe desapercebido no meio de tantas novidades
legislativas.

64
TESHEINER, José Maria. Prescrição. Decretação de ofício Lei 11.280/06. Porto Alegre, fev. 2006. Disponível em:
<http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/060412prescricao.php> Acesso em: 20 nov. 2006.

33
6 REFERÊNCIAS

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ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, ano 86, v. 744, p. 725-750, out. 1997.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco
legislativo. Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a
estrutura da prescrição no direito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1059, 26 maio 2006.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/ texto.asp?id=8455>. Acesso em: 20 nov.
2006.

BATISTA DA SILVA, Ovídio. Curso de processo civil. v. I . 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 332 p.

BATISTA DA SILVA, Ovídio. Curso de processo civil. v. I . 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 64-
65.

BESSA, Leonardo Rodrigues Itacaramby. Argüição da prescrição de ofício pelo magistrado.


Aspectos positivos e negativos. Aplicabilidade ao processo do trabalho. Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 1006, 3 abr. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8197>. Acesso em: 20 nov. 2006.

CAHALI, Yussef Said. Aspectos processuais da prescrição e da decadência. São Paulo: RT, 1979.
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CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
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CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil – v III. 8. ed. Rio de
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CARNEIRO, Bernardo Lima Vasconcelos. A prescrição trienal em favor da Fazenda Pública. Para uma
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34
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 680 p.

35
AS SOCIEDADES COOPERATIVAS E O TRATAMENTO PRIVILEGIADO
CONCEDIDO ÀS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE
(Lei Complementar nº 123/06 e Lei nº 11.488/07)

Jessé Torres Pereira Júnior


Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Autor, das seguintes obras:
Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública (7ª edição);
Controle Judicial da Administração Pública: da Legalidade Estrita à Lógica do Razoável (2ª
edição);Licitações de Informática;Da Reforma Administrativa Constitucional;
Pregão Presencial e Eletrônico (em colaboração).

Marinês Restelatto Dotti


Advogada da União, Lotada no Núcleo de Assessoramento Jurídico em Porto Alegre/RS-CGU/AGU
Colaboradora na obra: Direito do Estado – Novas Tendências – Edição Especial/UFRGS
Especialista em Direito do Estado/UFRGS; Especializanda em Direito e Economia/UFRGS

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Duplicidade de tratamento diferenciado?; 3


Tratamento diferenciado e princípio da igualdade; 4 Regularização de
situação fiscal em presença de restrições; 5 O empate ficto; 6 O
Tratamento privilegiado estendido às cooperativas; 6.1 Terceirização das
atividades acessórias; 6.2 Perfil jurídico das cooperativas; 6.3 As cooperativas
nas licitações para a contratação de serviços; 6.4 jurisprudência dominante;
7 Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

O regime jurídico das licitações da Administração Pública brasileira parece fadado a


suportar permanente “conspiração” legislativa contra a consolidação de um sistema estável,
apto a garantir o equilíbrio entre os interessados em ter acesso, disputando-as
isonomicamente, às contratações de obras, bens e serviços pelo Estado.

A “conspiração” tornou-se ostensiva a partir da edição da Lei federal nº 8.666/93, cuja


pretensão é a de estabelecer um sistema nacional de normas gerais, em tese destinado a
viabilizar a implementação de princípios e a instituir um padrão de conduta jurídico-normativa
na matéria, com validade e força cogente para todas as esferas e em todos os níveis da gestão
pública brasileira - administração direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, estendendo-se o princípio da licitação aos
convênios, no que cabível, e às entidades do chamado sistema S, para bem cumprir-se o
disposto nos artigos 22, XXVII, e 37, XXI, da Constituição Federal de 1988.

Mas nenhum outro diploma normativo precedente, dentre os vários que a história da
Administração Pública brasileira registra sobre o tema - passando pelo Código de Contabilidade
Pública da União, de 1922, pelo Decreto-Lei nº 200/67 - Lei da Reforma Administrativa Federal
- e pelo Decreto-Lei nº 2.300/86 - Estatuto Nacional das Licitações e Contratações - tem
recebido tantas alterações quanto o da Lei nº 8.666/93, que, em menos de três lustros de
vigência, convive com uma sucessão de normas ampliativas, supressivas ou modificativas,
veiculadas por mais de uma dúzia de leis (média de uma por ano), em presumida busca de
dotar as licitações e contratações de nossa Administração de um padrão de eficiência e
eficácia que se possa considerar satisfatório e à prova de desvios.

Quando se imaginava, talvez, que o redesenho normativo houvesse atingindo patamar


longevo, com a criação da modalidade do pregão (Lei nº 10.520/02) - comprovadamente, após
emprego que se tende a universalizar, capaz de elevar os índices de eficiência e eficácia nas
licitações, em razão da racionalidade de seu procedimento, responsável por reduzir o tempo de
processamento, os preços obtidos nos certames competitivos e a taxa de recorribilidade contra
as decisões administrativas, eis que nova formatação do cenário normativo recomeça em 14
de dezembro de 2006, quando da edição da Lei Complementar nº 123, regulamentada pelo
Decreto n.º 6.204, de 05 de setembro de 2007, no âmbito da Administração Pública Federal,

36
concernente ao tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para as microempresas e
empresas de pequeno porte nas contratações públicas de bens, serviços e obras.

Ao cumprir a Constituição da República quanto a garantir tratamento tributário,


trabalhista, previdenciário, contábil e administrativo diferenciado às microempresas e
empresas de pequeno porte, a LC nº 123/06 a essas garante condições especiais de
participação nas licitações e contratações. E Mal se digeriu a novidade - ainda aguardando-se a
sobrevinda de prometidas leis de regulamentação - e já outra se sobrepõe com a Lei nº
11.488, de 15 de junho de 2007, cujo art. 34 manda aplicar

às sociedades cooperativas que tenham auferido, no ano-calendário anterior,


receita bruta até o limite definido no inciso II do caput do art. 3.º da Lei
Complementar n.° 123, de 14 de dezembro de 2006, nela incluídos os atos
cooperados e não-cooperados, o disposto nos Capítulos V a X, na Seção IV do
Capítulo XI, e no Capítulo XII da referida Lei Complementar.

Diante dos vários anteprojetos de leis que tramitam pelo Congresso Nacional, visando a
alterar a estrutura da Lei nº 8.666/93 ou mesmo a substituí-la integralmente, a par das
inúmeras modificações pontuais que se efetivaram desde a sua edição, a nenhum profissional
do setor seria dado imaginar estável o sistema traçado pela chamada Lei Geral das Licitações e
Contratações, sequer que ainda se possa falar de um “sistema”, tantas as alterações que o
fragmentam e desdobram em sub-sistemas, como ocorre com o próprio pregão.

Não seria demais esperar-se, todavia, um mínimo de cuidado com o fim de se evitar
modificações heterogêneas, que desafiam esforços ininterruptos de interpretação a cada
novidade legislativa. A “conspiração” chega à obsessão porque, por mais que se altere a lei
geral, os resultados continuam a despertar inquietação e dúvidas. É o que se passa com a
extensão às sociedades cooperativas do regime diferenciado assegurado às microempresas e
empresas de pequeno porte.

Embora ambas as categorias - microempresas e empresas de pequeno porte, de um


lado, e cooperativas, de outro - contém o reconhecimento da Carta Fundamental da República
à sua relevância para a ocupação de grande número de pessoas na produção e na circulação
de bens e serviços na economia nacional, o fato é que se trata de categorias ontologicamente
desiguais: as microempresas e as empresas de pequeno porte se movem pelo impulso
inerente a toda empresa, que é o da competição e do lucro; as cooperativas, na qualidade de
sociedades de pessoas, se organizam e se movem por impulso de outra natureza, que é o
associativismo, em que a cooperação se substitui à competição e não almeja o lucro da
sociedade.

É dessa antinomia essencial que se pretendem ocupar as observações que se seguem,


esforço de prospecção sobre a extensão, às cooperativas, do tratamento jurídico originalmente
deferido às microempresas e empresas de pequeno porte. O objetivo é o de sinalizar para a
assemelhação pretendida pela legislação e as possíveis assimetrias que dela poderão resultar.

2 DUPLICIDADE DE TRATAMENTO DIFERENCIADO?

A Lei Complementar n.º 123/06, versando, como versa, sobre tratamento diferenciado
assegurado no texto constitucional, estabelece normas gerais, vale dizer, a serem
necessariamente cumpridas por todos os órgãos e entidades integrantes de todos os Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. São normas destinadas a
estabelecer:
a) a apuração e o recolhimento de impostos e contribuições da competência dos entes
integrantes da federação, mediante regime único de arrecadação, incluindo as
obrigações acessórias;
b) o cumprimento simplificado de obrigações trabalhistas e previdenciárias, incluindo as
obrigações acessórias; e c) o acesso ao crédito e aos mercados, estimulado por meio
de preferência nas aquisições de bens e serviços pelos poderes públicos, tecnologia,
associativismo e regras de inclusão.

37
A disciplina do acesso aos mercados, traçada no Capítulo V da LC nº 123/06, incentiva
a participação das microempresas e das empresas de pequeno porte nas licitações, realizadas
no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, mediante:

6. a possibilidade de adiar-se a regularização da situação fiscal da empresa, quando


verificada a existência de restrições, somente como condição para a celebração do
contrato – não quando da etapa de habilitação preliminar, como é a regra fixada
pela Lei nº 8.666/93 para os licitantes em geral (o art. 4.º do mencionado Decreto
n.º 6.204/07 enfatiza que “a comprovação de regularidade fiscal das microempresas
e empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de contratação, e
não como condição para participação na licitação”);
7. preferência na contratação, quando houver empate ficto 65 com os valores de
propostas/lances ofertados por outras entidades empresariais de maior porte;
8. possibilidade, prevista no art. 47, de, nas contratações da União, dos Estados e dos
Municípios, ser concedido tratamento diferenciado e simplificado em licitação
exclusivamente destinada às empresas de pequeno porte e microempresas, quando
importante para o desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e
regional, ou quando se caracterizar como fator de ampliação da eficiência de
políticas públicas e fonte de incentivo à inovação tecnológica;
9. ampliação, em determinadas situações, do tratamento diferenciado além das
condições estabelecidas nos artigos 42 à 45, simplificando procedimentos
específicos;
10. a possibilidade, sob determinadas condições, de subcontratação de
microempresa ou empresa de pequeno porte pela licitante vencedora da licitação,
bem como de a Administração fracionar o objeto em licitação com o fim de contratar
com tais sociedades empresárias.

O art. 6.º do Decreto n.º 6.204/07 impõe aos órgãos e entidades contratantes
integrantes da administração pública federal a realização de processo licitatório reservado,
exclusivamente, à participação de microempresas e empresas de pequeno porte, desde que
destinado a contratação de objeto cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais),
excepcionando-se a obrigatoriedade, devidamente justificada, quando: 1) não houver o
mínimo de três fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de
pequeno porte, sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências
estabelecidas no instrumento convocatório; 2) o tratamento diferenciado e simplificado para
essas entidades empresariais não for vantajoso para a Administração ou representar prejuízo
ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, assim considerada a contratação que
resultar em preço superior ao valor estabelecido como referência; 3) a licitação for dispensável
ou inexigível, nos termos dos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93; 4.º, a soma dos valores
licitados, nos termos do disposto nos artigos 6º a 8.º do Decreto, ultrapassar vinte e cinco por
cento do orçamento disponível para contratações em cada ano civil; e 5) o tratamento
diferenciado e simplificado não for capaz de alcançar os seguintes objetivos, justificadamente:
a) promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional; b)
ampliação da eficiência das políticas públicas; e c) o incentivo à inovação tecnológica. Norma
que, por depender de vários conceitos jurídicos indeterminados, reclamará atenta
interpretação, de futuro.

Ao ampliar as oportunidades de contratação - propósito do tratamento diferenciado e


simplificado - a LC nº 123/06 condiciona a participação de microempresas e empresas de
pequeno porte ao cumprimento de requisitos, a saber:
8. definição das normas de regência em regulamento do respectivo ente público;

65
O art. 44 da LC estabeleceu uma espécie de empate ficto, quando a proposta ou lances ofertados pela empresa de pequeno
porte ou microempresa apresentarem percentual acima da proposta ou lances ofertados pelas demais entidades empresariais
participantes do certame: iguais ou até 10% (dez por cento) nas licitações convencionais (concorrência, tomada de preços e convite),
e de até 5% (cinco por cento) na modalidade do pregão.

38
9. previsão expressa das condições de favorecimento no instrumento convocatóri; 66
10. houver o mínimo de três fornecedores competitivos, enquadrados como microempresas
ou empresas de pequeno porte, sediados local ou regionalmente, desde que capazes de
atender às exigências estabelecidas no instrumento convocatório;
11. explicitação dos motivos (motivação fundada em razões de fato e de direito
objetivamente aferíveis, que devem constar dos autos do processo administrativo
pertinente) de ser economicamente vantajoso o tratamento diferenciado, no caso
concreto.

Próprio que se sindique se tal regime e seus requisitos se compadecem com o perfil
jurídico das sociedades cooperativas, que, muito antes das microempresas e empresas de
pequeno porte, já contavam, como se verá, com legislação própria, assecuratória de
tratamento diferenciado no concernente a encargos trabalhistas e previdenciários, que já as
desonerava de modo suficiente para participarem de licitações em condições de vantagem, se
confrontadas com as empresas em geral, sobre as quais incidem aqueles encargos Estariam a
mercê da Lei nº 11.488/07, art. 34, as cooperativas beneficiárias de uma duplicidade de
privilégios, que as colocariam em vantagem até mesmo em relação às microempresas e
empresas de pequeno porte?

3 TRATAMENTO DIFERENCIADO E PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A LC n.º 123/06, ao favorecer o acesso das empresas de pequeno porte e


microempresas às contratações públicas, assenta normas gerais de procedimento sempre que
essas empresas participem de licitação. Concede-lhes tratamento diferenciado, em contraste
com um dos princípios constitucionais norteadores das licitações e contratos do Estado, que é
o de assegurar igualdade de condições a todos os concorrentes (CF/88, art. 37, XXI).

Por definição, toda licitação visa a identificar a proposta mais vantajosa para a
Administração, por isso que garante o acesso igualitário a todos os interessados. Portanto, o
certame competitivo não pode, por princípio, ser manejado de sorte a incentivar a participação
de determinadas categorias empresariais nos negócios públicos. O Estado não contrata com
particulares visando o lucro, mas, sim, à satisfação do interesse público. Os participantes de
uma licitação têm a legítima expectativa, com fundamento na Constituição e na legislação de
regência, de que lhes serão asseguradas as mesmas oportunidades de contratar com o poder
público.

O princípio da igualdade, nas licitações, implica o dever não apenas de tratar


isonomicamente todos os que afluírem ao certame, mas, também, o de ensejar oportunidade
de disputá-lo a quaisquer interessados, desde que atendam às condições que o ato
convocatório reputou indispensáveis, justificadamente. A explicitação concreta do princípio da
igualdade está no § 1.º do art. 3.º da Lei n.º 8.666/93, cuja norma proíbe que o ato
convocatório do certame admita, preveja, inclua ou tolere cláusulas ou condições capazes de
frustrar ou restringir o caráter competitivo do procedimento licitatório e veda o
estabelecimento de preferências ou distinções em razão da naturalidade, sede ou domicílio das
licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para objeto do
contrato.

O tratamento diferenciado outorgado às microempresas e empresas de pequeno porte,


que a Lei nº 11.488/07 estendeu às cooperativas, deve enfrentar, destarte, a argüição de que
conflita com o princípio da igualdade. Jessé Torres Pereira Junior vem de assim analisar a
questão:
A Lei Complementar nº 123/06, ao instituir o Estatuto Nacional da Microempresa
e da Empresa de Pequeno Porte, entendeu de dedicar seção (artigos 42 a 49) à
disciplina do acesso dessas empresas às contratações da Administração Pública,
destinando-lhes tratamento diferenciado em cumprimento ao disposto nos
artigos 170, IX, e 179 da Constituição da República [...], cabe examinar a

66
Consolidado pelo art. 10 do Decreto n.º 6.402/07.

39
inspiração constitucional das inovações trazidas pela LC nº 123/06 e o disposto
em seus artigos 47 a 49, que retratam o cumprimento, pelo Congresso Nacional,
de política pública traçada pelo Documento Fundamental da República [...]. Eis o
ponto nuclear da questão constitucional suscitada pela LC nº 123/06: o
cumprimento de política pública. O tema já conta com expresso equacionamento
pelo Supremo Tribunal Federal, que, na Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, ADPF, nº 45 MC-DF/2004, sendo relator o Min. Celso de
Mello, desvendou-o de modo a sinalizar caminhos que se devem trilhar na
compreensão e na aplicação do Estatuto Nacional da Microempresa e da
Empresa de Pequeno Porte, verbis:
„O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto
mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode
derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas
em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os
preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal,
que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por
ação.
Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos
preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e
exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que
a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional.
Desse non facere ou non praestare resultará a inconstitucionalidade por
omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou
parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.
A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão,
a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento
revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder
Público também desrespeita a Constituição,também ofende direitos que nela se
fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria
aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental (RTJ 185/794-796,
Pleno) [...].
Cabe assinalar, presente nesse contexto – consoante já proclamou esta
Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da
Carta Política „não pode converter-se em promessa constitucional
inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele
depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento
de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado (RTJ
175/1.212-1.213)[...].
Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo
ao tema pertinente à “reserva do possível” [...], notadamente em sede de
efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder
Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de
tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de
caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende,
em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às
possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada,
objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta
não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a
imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante
indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa –
criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito
de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em
favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” –
ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser
invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas
obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental

40
negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos
constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade [...].
A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular,
pode ser resumida [...] na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de
partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui,
além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de
existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo
existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos
gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir,
relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá
investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de
prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva
do possível [...].
Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do
possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de
implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende,
de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face
do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do
Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas [...]
Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de
opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam
investidura em mandado eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta,
nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do
Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou
procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo, a eficácia dos
direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de
uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento
governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto
irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e
essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á - até
mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico - a possibilidade de
intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos
bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.
A vigente Constituição da República traçou inequívoca política pública em
relação às microempresas e empresas de pequeno porte. Basta reler os seus
artigos 170, IX (A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob
as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País) e 179 (A
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às
microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei,
tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de
suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou
pela eliminação ou redução destas por meio de lei).
À vista desses solares preceptivos, o primeiro dos quais (art. 170, IX) alterado
pela Emenda Constitucional nº 6/95, verifica-se que o Poder Público retardou-se,
por mais de uma década, em cumprir o dever jurídico deles decorrentes, o que
somente veio a ocorrer pela edição da LC nº 123/06, que é lei complementar
para conformar-se a outra exigência constitucional, qual seja a do art. 146, III,
“d”, alínea esta acrescida pela Emenda Constitucional nº 42/03, no sentido de
caber à lei complementar a „definição de tratamento diferenciado e favorecido
para as microempresas e para as empresas de pequeno porte.
Toda política pública de assento constitucional, na interpretação da Corte
guardiã da Constituição, tem prioridade sobre qualquer outra e deve ser
implementada pelo Poder Público, relativamente aos direitos econômicos, sociais
e culturais. Assegurar tratamento preferencial às microempresas e às empresas
de pequeno porte era e é, destarte, prioritário, na medida em que corresponde a
uma política pública traçada pela Constituição, na expectativa de lei
complementar que a viesse definir. Tal o papel que a LC nº 123/06 veio
desempenhar na ordem jurídica brasileira.

41
O sentido de prioridade e de premência, conferido ao tema pela Constituição,
decerto que se inspirou na realidade sócio-econômica. A Justificativa que
encabeçou a remessa do projeto original de lei complementar, em janeiro de
2004, assinalava que „As receitas das micros e pequenas empresas, em 2001,
totalizaram a quantia de R$ 168 bilhões e 200 milhões, respectivamente. Um
estudo realizado nessa mesma época constatou que cerca de um milhão e 100
mil dessas pequenas e microempresas eram do tipo empregadora, isto é, pelos
menos uma pessoa estava registrada pela empresa como empregado, sendo os
demais membros familiares ou sócios, ou seja, mais de 926 mil famílias
diretamente envolvidas no negócio, com os seus membros participando da
empresa na condição de proprietários ou sócios ... podemos perceber a
importância das pequenas e microempresas no desenvolvimento de nossa
economia e principalmente como fator de geração de emprego e distribuição de
renda. Nessa linha, foi feita uma pesquisa em 37 países, em 2002, coordenada
pela GEM- Global Entrepreneurship Monitor, projeto criado pela London Business
School - da Inglaterra, e pela Babson School, nos Estados Unidos, coordenado
no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade do Paraná e
Sebrae, em que o Brasil se destaca em sétimo lugar no ranking dos países com
maior nível geral de empreendedorismo. A taxa brasileira da atividade
empreendedora total, ou seja, a que indica a proporção de empreendedores na
população de 18 a 64 anos de idade, foi de 13,5%, estimando-se em 14,4
milhões de empreendedores no país, dos quais 42% são mulheres‟.
Induvidoso que expressivo segmento de pessoas dependentes da existência e da
atuação de microempresas e empresas de pequeno porte necessita, sob pena do
perecimento destas, do tratamento diferencial prometido pela Constituição, nos
termos que lei complementar haveria de definir, como definiu a LC nº 123/06.
Se as medidas que esta acolheu serão, ou não, eficientes e eficazes para o fim
de cumprir a política pública traçada na Constituição, é o que a implementação
de suas disposições irá aquilatar. O que não se apresenta condizente com a
realidade sócio-econômica e a ordem constitucional é resistir a tal tratamento,
acoimando-o, desde logo, de inadequado. Pode ser que a aplicação das medidas
definidas venha a assim evidenciar, no todo ou em parte. Mas tal não se saberá
sem que o Estado empenhe os melhores esforços em executar, controlar e
avaliar os resultados.
Na seara específica das licitações e contratações da Administração Pública, há,
como se verá adiante, dúvidas ponderáveis sobre a juridicidade, a inteligência e
a pertinência das medidas propostas – basicamente, por ora, a possibilidade de
corrigir defeitos na documentação fiscal e o direito de preferência para
contratar, sob condições determinadas. Por outro lado, a estreiteza das
disponibilidades orçamentárias estatais – insuficientes para atender a todas as
prioridades constitucionais – avaliza a tentativa de estimular-se o
empreendedorismo na criação de oportunidades de trabalho de que carece
numeroso contingente de brasileiros, para os quais a empresa tradicional e o
Estado não parecem reunir condições para empregar e garantir meios de
desenvolvimento pessoal e coletivo, gerando frustrações individuais e o desvio
de gerações de brasileiros para atividades marginais e marginalizantes, quando
não ilícitas e destrutivas, como o noticiário jornalístico cotidiano vem tornando
notório.
Essas são as premissas da compreensão com que se deve recepcionar o disposto
nos artigos 47 a 49 da LC nº 123/06. Traduz a cota de participação da
Administração Pública no estímulo ao empreendedorismo, representado pelas
microempresas e empresas de pequeno porte; um dos instrumentos desse
estímulo está em dispensar-lhes tratamento diferenciado nas licitações e
contratações de bens e serviços.” (Comentários à Lei das Licitações e
Contratações da Administração Pública, p. 39-43, Ed. Renovar, 7ª, edição,
2007).

A indagação a ser feita em face dessas considerações, é a que se as cooperativas são,


igualmente, objeto de política pública constitucional, justificadora de a elas se estender o
tratamento diferenciado assegurado às microempresas e empresas de pequeno porte. Como se
verá adiante, as cooperativas também estão sob o foco da Carta Política vigente, de sorte a
serem sujeitas de política pública prioritária, tanto que figuram em nada menos que seis de
seus preceptivos. Nada obstante serem sociedades de cooperação, não de competição, a

42
Constituição atribui-lhes tanta relevância quanto atribui às microempresas e empresas de
pequeno porte como instrumentos de política econômica.

O que cumpre verificar é se a estrutura jurídica de sociedades de cooperação pode ou


deve receber o mesmo tratamento diferenciado destinado a sociedades de competição. E se,
em caso afirmativo, será idêntico o modo de dar-se cumprimento ao tratamento. Além de
perquirir se haveria preponderância de umas sobre as outras. Daí a utilidade, para os fins
deste estudo, de repassarem-se, em brevíssima síntese, os principais aspectos do tratamento
diferenciado de que cuida a LC nº 123/06.

4 REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÃO FISCAL EM PRESENÇA DE RESTRIÇÕES

Segundo a Lei nº 8.666/93, a entrega de documentos em desacordo com as exigências


editalícias dá motivo à inabilitação de qualquer licitante, sem distinção à conta de natureza
jurídica ou de qualquer outra circunstância. O art. 43, § 1º, da LC nº 123/06 estipula que
empresas de pequeno porte e microempresas - por força do art. 34 da Lei nº 11.488/07,
também as cooperativas - podem participar de licitações e entregar os documentos referentes
à habilitação no prazo assinado no edital, com a vantagem de, caso os documentos
demonstrativos da regularidade fiscal contiverem irregularidade, serem admitidas a
comprovar67 a regularização posteriormente, no prazo de dois dias úteis, prorrogável por igual
período. O art. 42 determina que a comprovação da regularidade fiscal dessas empresas - por
extensão, também das cooperativas - somente será exigida para efeito de assinatura do
contrato.

O princípio da vinculação ao edital (art. 41 da Lei n.° 8.666/93) veda à Administração


descumprir as normas e condições nele estabelecidas, por isso que disposições que concedam
condições e prazos diferenciados para regularização da situação fiscal devem estar
expressamente previstas no ato convocatório.

Duas hipóteses se apresentam:

1ª, quando a menor proposta de preço for de microempresa ou empresa de pequeno


porte, ou cooperativa, uma vez verificada a existência de restrições na documentação
apresentada na fase de habilitação, para efeito de comprovação da regularidade fiscal, é
permitida a regularização, cujo desatendimento, no prazo fixado, implicará a impossibilidade
de contratação - que a LC nº 123/06 e o Decreto n.º 6.204/07 rotulam, incidindo em erro
conceitual, de decadência de direito; não se decai de direito algum pela singela razão de que
não há direito à contratação, mas, apenas, direito de, havendo contrato, exigir-se a
observância da ordem de classificação - sem prejuízo das sanções previstas no art. 81 da Lei
nº 8.666/93, sendo facultado à Administração convocar os licitantes remanescentes, na ordem
de classificação, para a assinatura do contrato, ou revogar a licitação;

2ª, quando da licitação participarem somente entidades empresarias não enquadráveis


como microempresas ou empresas de pequeno porte, não incidirá o regime da LC n.º 123/06,
tramitando a licitação nos termos da Lei n.° 8.666/93, caso utilizadas as modalidades
convencionais (concorrência, tomada de preços ou convite), ou nos termos da Lei n.°
10.520/02, se a modalidade licitatória for a do pregão, na forma presencial ou eletrônica,
sendo que para esta última a regulamentação se encontra no Decreto n.° 5.450/05.

67
O Decreto nº 6.204/07 estabelece que, na fase de habilitação, deverá ser apresentada e conferida toda a documentação e,
havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, será assegurado o prazo de dois dias úteis, cujo termo inicial
corresponderá ao momento em que o proponente for declarado vencedor do certame, prorrogável por igual período, para a
regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas
com efeito de certidão negativa. Especifica o citado Decreto que a declaração do vencedor ocorrerá no momento
imediatamente posterior à fase de habilitação, no caso do pregão, e, nas demais modalidades de licitação, no momento
posterior ao julgamento das propostas, aguardando-se os prazos de regularização fiscal para a abertura da fase recursal. A
prorrogação do prazo para regularização da situação fiscal, ainda segundo o Decreto, deverá sempre ser concedida pela
Administração quando requerida pelo licitante, a não ser que exista urgência na contratação ou prazo insuficiente para o
empenho, devidamente justificado, em cumprimento ao princípio da motivação dos atos administrativos.

43
Indagar-se-ia, nessa segunda hipótese, se a participação de cooperativas na licitação,
sem a participação de microempresas ou empresas de pequeno porte, atrairia a aplicação da
LC nº 123/06. Não seria de todo descabido cogitar de resposta negativa, ao fundamento de
que, inaplicável o regime da LC nº 123/06 pela ausência de microempresas ou empresas de
pequeno porte na licitação, tampouco poderia incidir o da Lei nº 11.488/07, dado que esse
dependeria daquele, por extensão e simetria.

Tal interpretação não soa como adequada em confronto com o objetivo da Lei nº
11.488/07, que é o de criar regime especial de incentivos para o desenvolvimento da infra-
estrutura. Imaginar que as cooperativas somente fariam jus ao tratamento diferenciado,
assegurado às microempresas e empresas de pequeno porte, quando estas comparecessem ao
prélio licitatório equivaleria - comparando-se os protagonistas do processo administrativo da
licitação com os do processo judicial - a considerar as cooperativas como assistentes das micro
e empresas de pequenas porte.

Não se trata, entretanto, de assistência, no sentido que se extrai dos artigos 50 e


seguintes do Código de Processo Civil, segundo os quais o assistente atua como auxiliar da
parte principal, exercendo os mesmos poderes e sujeitando-se aos mesmos ônus processuais
porque tem interesse jurídico em que o resultado do processo seja favorável ao assistido. Em
uma licitação, não há parte principal. Todos os concorrentes competem entre si na disputa que
habilitará o vitorioso a contratar com a Administração. Esse objetivo traduz motivação antes
econômica que jurídica, tanto da parte dos concorrentes, que querem prestar o serviço ou
fornecer o bem mediante remuneração, quanto da Administração, que almeja ter o serviço
prestado ou o bem fornecido por quem oferecer a proposta mais vantajosa.

Em verdade, as cooperativas, graças à extensão estabelecida pela Lei nº 11.488/07,


têm direito e interesse próprios quando ingressam na licitação, estejam ou não presentes
também microempresas e empresas de pequeno porte. O tratamento diferenciado que a LC nº
123/06 deferiu a estas, a Lei nº 11.488/07 estendeu àquelas, sem que umas dependam da
presença das outras para que o tratamento diferenciado seja devido. A competição entre todas
- empresas e cooperativas -, titulares do mesmo direito a tratamento diferenciado, é que
cumprirá a finalidade enunciada pela Lei nº 11.488/07, de incentivo ao desenvolvimento da
infra-estrutura.

5 O EMPATE FICTO

O art. 44 da LC nº 123/06 e o art. 5.º, §§ 1º e 2º, do Decreto nº 6.204/07 instituíram e


disciplinaram a verificação de empate simulado ou ficto, somente arredável se comprovar que
as microempresas e empresas de pequeno porte incorreram em alguma das vedações do art.
3º, § 4º, da referida Lei Complementar. Esta elegeu, como critério de desempate, preferência
na contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, preferência que não se
aperfeiçoará caso se comprove a ocorrência de vedação legal; é que, então, não se poderá
aplicar o tratamento diferenciado, somente devido às microempresas e empresas de pequeno
que atendam às prescrições legais e não incidam em qualquer de suas vedações. Logo,
também as cooperativas, cuja organização e operação se demonstre haver fraudado o perfil
jurídico da sociedade de pessoas, não poderão invocar o tratamento diferenciado.

Instigante combinação de presunções jurídicas. A presunção do empate é absoluta


(júris et de jure), ou seja, não comporta prova em contrário no pertinente ao fato do empate;
mesmo sendo desiguais as propostas, a lei determina que devam ser consideradas empatadas,
dentro dos limites que fixou. A presunção é relativa (júris tantum) quanto ao direito de
tratamento diferenciado; sempre será admissível comprovar-se que a empresa em presumida
situação de empate não faz jus ao tratamento privilegiado porque desqualificada em cotejo
com alguma das vedações do art. 3º, § 4º, da LC nº 123/06.

Afastada a hipótese de fraude, as microempresa de pequeno porte, bem como as


cooperativas - por extensão determinada pela Lei nº 11.488/07 - desde que suas propostas de
preço sejam iguais ou superiores em até 10% (dez por cento) à proposta mais bem
classificada, tratando-se de uma das modalidades licitatórias convencionais da Lei n.°

44
8.666/93 (concorrência, tomada de preços ou convite), ou em até 5% (cinco por cento)
superiores ao melhor preço, na modalidade licitatória do pregão (presencial e eletrônico),
serão havidas em situação de empate com as empresas de maior porte e terão preferência ao
contrato.

Não haverá o direito ao desempate quando somente as categorias empresariais


favorecidas pela LC nº 123/06 participarem do certame, posto descaber o exercício de direito
de preferência entre as próprias beneficiárias, assim como não haverá o direito ao desempate
quando apenas participarem da licitação empresas não enquadradas como micro ou de
pequeno porte, já que nenhuma delas ostenta legitimidade para postular o tratamento
preferencial. A pergunta, em face da extensão estabelecida pela Lei nº 11.488/07, será: e se
houver empate entre microempresas ou empresas de pequeno porte e cooperativas, de quem
será a preferência?

Aqui, também, não seria inverossímil a idéia de reservar-se o tratamento preferencial


para as microempresas e empresas de pequeno porte, ao argumento de que as cooperativas
se beneficiariam por extensão, não por direito próprio, em eventual disputa com o direito
precedente daquelas empresas. Mas, como retro assinalado, tal compreensão pressuporia a
existência de parte principal (as microempresas e empresas de pequeno porte) e secundária
(as cooperativas, na qualidade de assistentes das empresas), no processo administrativo da
licitação, o que não se concilia com a índole da competição licitatória, nem com a finalidade da
Lei nº 11.488/07.

Assim, mesmo que do certame não participem microempresas ou empresas de pequeno


porte, as cooperativas, que se apresentarem e preencherem os requisitos legais, farão jus ao
desempate e terão preferência na contratação em disputa com empresas de maior porte, nos
termos da LC nº 123/06. E, caso as empresas micro e pequenas se apresentem na
competição, as cooperativas disputarão o contrato em igualdade de condições com elas, já que
entre as beneficiárias do tratamento diferenciado não pode haver hierarquia, nem prelação.

A disputa entre cooperativas e microempresas ou empresas de pequeno porte,


presentes na mesma licitação, se fará pelos preços reais que cotarem, sem intervalo de
empate ficto, nem qualquer preferência. No plano teórico, a pergunta que intriga é:
microempresas e empresas de pequena porte terão condições de disputar preço com as
cooperativas que a elas se nivelem no requisito da renda anual, estas já desoneradas de
encargos trabalhistas e com ônus previdenciários reduzidos? Se a resposta for negativa,
poderão resultar frustrados os objetivos da LC º 123/06 quanto ao acesso daquelas empresas
às contratações administrativas, inibidos que serão os seus efeitos pela aplicação da Lei nº
11.488/07. Somente a prática do tratamento legal diferenciado o revelará.

Anote-se que para a modalidade do pregão, a LC nº 123/06 fixou o prazo de cinco


minutos para o oferecimento de proposta em valor inferior ao da proposta ofertada pela
licitante vencedora. O legislador não previu prazo e momento para a redução da proposta nas
modalidades convencionais (concorrência, tomada de preços e convite); deverá constar do
instrumento convocatório, porém augurando-se que cada ente público venha a editar norma
uniformizadora desse prazo, com o fim de prevenir a inconveniência de a cada edital adotar-se
um prazo e contá-lo segundo critérios variados.

6 O TRATAMENTO PRIVILEGIADO ESTENDIDO ÀS COOPERATIVAS

O art. 34 da Lei nº 11.488/07 preceitua que “Aplica-se às sociedades


cooperativas que tenham auferido, no ano-calendário anterior, receita bruta até
o limite definido no inciso II do caput do art. 3.º da Lei Complementar n.° 123,
de 14 de dezembro de 2006, nela incluídos os atos cooperados e não-
cooperados, o disposto nos Capítulos V a X, na Seção IV do Capítulo XI, e no
Capítulo XII da referida Lei Complementar.

Deduz-se que as cooperativas que tenham receita bruta de até R$ 2.400.000,00 (dois
milhões e quatrocentos mil reais), no ano-calendário anterior, terão direito aos seguintes
benefícios:

45
a) acesso aos contratos administrativos mediante tratamento diferenciado em termos
de regularidade fiscal comprovável a posteriori e a empate ficto, quando participantes
de licitações (artigos 42 a 49);
b) simplificação das relações de trabalho (artigos 50 a 54);
c) ação fiscalizadora de caráter orientador (art. 55);
d) possibilidade de contratação de compras, bens e serviços, para os mercados nacional
e internacional, por meio de consórcio (art. 56);
e) estímulo ao crédito e à capitalização (artigos 57 a 63);
f) estímulo à inovação (artigos 58 a 67);
g) regras diferenciadas acerca do protesto de títulos (art. 73);
h) acesso aos juizados especiais cíveis, visando à utilização dos institutos da conciliação
prévia, da mediação e da arbitragem para a solução de seus conflitos (artigos 74 a 75).

Jessé Torres Pereira Junior destaca que:

Diante das notórias restrições à participação, em certames licitatórios, de


cooperativas de mão-de-obra, especialmente quando a execução do objeto a
contratar não prescinda da subordinação típica das relações de emprego,
estranhas à natureza jurídica das cooperativas (sociedades de pessoas em que
cada profissional cooperado mantém sua autonomia), a extensão do regime
diferenciado da LC nº 123/06 deixa dúvida ao se referir a „atos cooperados e
não-cooperados.
E esclarece:
Em face das diretrizes consolidadas na jurisprudência das Cortes de Controle
Externo, tal referência não pode ser compreendida como uma autorização para
que essas cooperativas contratem intermediação de mão-de-obra com a
Administração. A melhor interpretação sobre o alcance da expressão „atos não-
cooperados‟ será a de que estes são os que as cooperativas praticam na gestão
de seus fundos e do pessoal que opera os seus serviços internos na qualidade de
empregados, de molde a que essa gestão se beneficie dos procedimentos
simplificados de natureza tributária, concedidos às pequenas e microempresas”
(Comentários cit., pág. 47).

6.1 TERCEIRIZAÇÃO DAS ATIVIDADES ACESSÓRIAS

Desde o Decreto-lei n.º 200/67 que se positivou a distinção entre a atuação estatal no
cumprimento de suas atividades inerentes (vinculadas aos fins jurídicos do Estado, em caráter
próprio e indelegável), daquela em que se desobriga de outras meramente acessórias
(atividades-meio), terceirizáveis ao setor privado. Recorde-se a regra de seu art. 10:

A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente


descentralizada.
[...]
c) da Administração Federal para a órbita privada, mediante contratos ou
concessões.
[...]
§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação,
supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado
da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da
realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à
execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa
privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos
de execução.
§ 8º A aplicação desse critério está condicionada, em qualquer caso, aos
ditames do interesse público e às conveniências da segurança nacional.

Denise Hollanda Costa Lima68 obtempera, acerca das características da terceirização,


que

68
LIMA, Denise Holanda Costa Terceirização na Administração Pública. As Cooperativas de Trabalho. Editora Fórum. p. 44.

46
não se trata de mera transferência da gestão de recursos humanos à empresa
terceirizada, visando simplesmente reduzir custos com pessoal, mantendo-se os
mesmos vínculos que caracterizam a relação de emprego com os funcionários
terceirizados, o que corresponde, na verdade, à atividade comumente
denominada de locação de mão-de-obra. A terceirização, isso sim, pressupõe a
prestação de serviços especializados por empresa alheia de forma autônoma,
sem ingerência direta na administração das atividades ou sobre os profissionais
nelas envolvidos.

O Decreto n.º 2.271, de 07 de julho de 1997, veio dispor sobre a contratação de


serviços relacionados às atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos
assuntos que compõem a competência legal dos órgãos ou entidades da Administração Pública
federal direta, autárquica e fundacional, nos seguintes termos:

Art . 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e


fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais
acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área
de competência legal do órgão ou entidade.
§ 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes,
informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção
de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de
execução indireta.
§ 2º Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às
categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade,
salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo
extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.

O decreto normativo tratou de coibir práticas irregulares na atividade estatal, como a


pessoalidade da relação de trabalho e a subordinação direta dos empregados da entidade
empresarial com a contratante, dispondo, em seu art. 3.º, que as contratações no âmbito da
Administração Pública federal serão compatibilizadas, exclusivamente, com a prestação de
serviços, vedada, pelo art. 4.º, inciso II, a caracterização do objeto como fornecimento de
mão-de-obra.

6.2 PERFIL JURÍDICO DAS COOPERATIVAS

A Constituição da República quer claramente fomentar o desenvolvimento do modelo


cooperativo, tanto que: o art. 5.º, inciso XVIII, prevê a criação de cooperativas
independentemente de autorização estatal, defesa a interferência desta em seu
funcionamento; o art. 146, inciso III, alínea “c”, determina a competência da lei complementar
para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente a incidente
sobre o ato cooperativo; os §§ 2.º e 3.º do art. 174 estabelecem que a lei apoiará e estimulará
o cooperativismo e outras formas de associativismo, devendo o Estado favorecer a organização
da atividade garimpeira em cooperativas; o art. 187 determina que a política agrícola será
planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção,
envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de
armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente, o cooperativismo; e o art.
192, caput, com a redação da Emenda Constitucional nº 40/03, estipula que o sistema
financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e
a servir aos interesses da coletividade, abrangerá as cooperativas de crédito.

Inequívoco, destarte, que as cooperativas constituem instrumento a que a Carta


Fundamental dedica singular apreço para a consecução de políticas públicas em vários campos
de atividades gerais e específicas. Daí haver recepcionado a Lei n.º 5.764, de 16 de dezembro
de 1971, que definiu a Política Nacional de Cooperativismo e instituiu o regime jurídico das
sociedades cooperativas, de maneira a estruturá-las como sociedades de pessoas, com forma
e natureza jurídicas próprias, de caráter civil, constituídas para prestar serviços aos
associados. Essência da qual decorre, por sinal, o fato de serem os próprios cooperados
aqueles que devem executar a prestação dos serviços que a cooperativa venha a contratar,
inclusive com a Administração Pública.

47
O art. 1.093 do vigente Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) remete a
disciplina das sociedades cooperativas às disposições de seu capítulo VII, ressalvada a
legislação especial. Segue-se que o Código Civil assume o papel de lei geral, reservando à Lei
nº 5.764/71 a função de lei especial. Com esse regime renovado pela lei civil não se
harmoniza qualquer vedação à criação de cooperativas de trabalho, tendo por objeto qualquer
gênero de serviço, operação ou atividade. E o art. 86 da Lei n.º 5.764/71 não veda a
possibilidade de prestação de serviços a terceiros, desde que pelos cooperados e de modo a
atender aos objetivos sociais para os quais a cooperativa foi constituída.

Eis os balizamentos da nova lei civil para as cooperativas: a) variabilidade, ou dispensa,


do capital social; b) concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a
administração da sociedade, sem limitação de número máximo; c) limitação do valor da soma
de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar; d) intransferibilidade das quotas do
capital a terceiros estranhos à sociedade, ainda que por herança; e) quorum, para a
assembléia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presentes à reunião, e
não no capital social representado; f) direito de cada sócio a um só voto nas deliberações
assembleares, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua
participação; g) distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações
efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado; h)
indivisibilidade do fundo de reserva entre os sócios, ainda que em caso de dissolução da
sociedade; i) a responsabilidade ilimitada ou limitada dos sócios; j) aplicação subsidiária das
disposições gerais a respeito das sociedades simples, contidas nos artigos 997 a 1.038 e
respeitados os balizamentos do art. 1.094.

6.3 AS COOPERATIVAS NAS LICITAÇÕES PARA A CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS

Denise Hollanda Costa Lima69 informa que as cooperativas de trabalho tiveram um


surpreendente crescimento quantitativo no País a partir da Lei n.° 8.949, de 09 de dezembro
de 1994, que introduziu parágrafo único no art. 442 da Consolidação das Leis Trabalhistas,
sede de regra segundo a qual, qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade
cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os
tomadores de serviços daquela.

Observa a autora que o conteúdo dessa norma não alterou substancialmente a ordem
jurídica vigente, em face do reconhecimento da relação de emprego quando presentes os
pressupostos dos artigos 2.º e 3.° da Lei n.° 5.452/43, todavia estimulou o desenvolvimento
desse tipo de sociedade, sobretudo sob o impulso da promessa de redução de custos às
empresas terceirizadoras, que passaram a ter, na contratação de cooperativas, alternativa
viável para ganhar eficiência e competitividade. As cooperativas, a seu turno, passaram a ver
nas licitações públicas, para a contratação de bens e serviços, importante fonte para a prática
de atividade econômica em benefício de seus associados.

A par do crescimento dessas sociedades, inúmeras constituíram-se sob as normas


vigentes, mas com características de verdadeiras entidades empresárias, perseguindo o lucro e
executando atividades em estado de subordinação, tanto em relação ao tomador como em
relação ao fornecedor de serviços.

A Administração Pública, ao mesmo tempo em que terceirizou a prestação de serviços


considerados acessórios e complementares a suas atividades-fins, também por meio da
contratação de cooperativas, deparou-se com a ilicitude de contratar possíveis
“pseudocooperativas”, cujas atividades consistem na mera intermediação de trabalhadores,
com características de pessoalidade e habitualidade na relação de trabalho, fraudando, assim,
o ideário associativo de profissionais autônomos, que singulariza o modelo cooperativo.

Sobrevieram divergentes interpretações acerca da admissibilidade e das condições para


a participação de cooperativas de prestação de serviços nas licitações.

69
LIMA, op cit., p. 53.

48
Denise Hollanda70 compila os distintos posicionamentos sobre a matéria. De acordo com
uma primeira corrente, uma vez preenchidos os requisitos usuais de habilitação, não há
porque vedar a participação de cooperativas em licitações para a contratação de serviços. Ao
se conferir tratamento restritivo a um tipo de instituição que foi incentivada pela própria Carta
Magna, além de prejudicar potencialmente a obtenção da proposta mais vantajosa para a
Administração, objetivo primordial do procedimento licitatório, estar-se-á afrontando o
princípio da isonomia e o caráter competitivo do certame.

Uma segunda corrente admite a participação de cooperativas nas licitações, mas


entende que é necessário um procedimento especial em relação a elas, subdividindo-se, nesse
ponto, os posicionamentos em três71 situações distintas:

a) deve-se exigir documentação especial referente à habilitação jurídica (art. 28


da Lei nº 8.666/93), de modo que seja demonstrada, ao menos formalmente, a
constituição regular da cooperativa em consonância com suas características
básicas definidas na Lei nº 5.764/71;
b) deve proceder-se à equalização das propostas, por analogia à situação
prevista no art. 42, § 4.º, da Lei nº 8.666/93, tendo em vista respeitar a
isonomia entre as licitantes;
c) a proposta de cooperativa deve ser acrescida, para efeito único de
julgamento, de 15% em face da contribuição previdenciária diferenciada
prevista na Lei n.º 8.212/91.

6.4 JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE

Remanescem divergências, na jurisprudência dos tribunais judiciais, acerca da admissão


de cooperativas nas licitações para contratação de serviços. Tende a Administração Pública,
nos editais de licitação, a não admitir a participação de cooperativas para a contratação de
serviços, ao fundamento de que cabe prevenir a responsabilidade solidária de que cuida a
Súmula n.º 331-TST, item IV, nos casos em que a Justiça do Trabalho julgar fraudulenta a
cooperativa de trabalho72, configurando-a como simples intermediadora de mão-de-obra, e
quando a execução das atividades implicarem subordinação, habitualidade e pessoalidade.

Tais os argumentos expendidos pelo Ministério Público do Trabalho na Ação Civil Pública
n..º 01082-2002-020-10-00-0, 20ª Vara do Trabalho/DF, que resultou em termo de
conciliação judicial firmado aos 05 de junho de 2003, entre este e a União, por intermédio da
Advocacia-Geral, recebendo a cooperativa de mão-de-obra a seguinte definição:

[...] aquela associação cuja atividade seja a mera intermediação individual de


trabalhadores de uma ou várias profissões (inexistindo assim vínculo de
solidariedade entre seus associados), que não detenham qualquer meio de
produção e cujos serviços sejam prestados a terceiros, de forma individual (e
não coletiva) pelos seus associados.

Esse termo apresenta um elenco de serviços cujas atividades representam


subordinação dos agentes ao tomador ou à cooperativa, assim identificados:

Cláusula Primeira – A União abster-se-á de contratar trabalhadores, por meio de


cooperativas de mão-de-obra, para a prestação de serviços ligados às suas
atividades fim ou meio, quando o labor, por sua própria natureza, demandar
execução em estado de subordinação, quer em relação ao tomador, ou em
relação ao fornecedor dos serviços, constituindo elemento essencial ao
desenvolvimento e à prestação dos serviços terceirizados, sendo eles:

70
Ibidem, p. 81- 87.
71
Ibidem, p. 84.
72
Sobre o assunto, prevalecem os ditames do Enunciado n.º 331 do TST, específicos quanto à contratação de serviços
terceirizados pela Administração Pública: “a contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de
emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional.” Quanto aos direitos às verbas trabalhistas pelo
empregado terceirizado, foi editado pelo TST o Enunciado nº 363 (nova redação dada pela Resolução n.º 121, de 21 de novembro
de 2003), verbis: “A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice
no respectivo art. 37, II e § 2.º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número
de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”.

49
a) Serviços de limpeza;
b) Serviços de conservação;
c) Serviços de segurança, de vigilância e de portaria;
d) Serviços de recepção;
e) Serviços de copeiragem;
f) Serviços de reprografia;
g) Serviços de telefonia;
h) Serviços de manutenção de prédios, de equipamentos, de veículos e de
instalações;
i) Serviços de secretariado e secretariado executivo;
j) Serviços de auxiliar de escritório;
k) Serviços de auxiliar administrativo;
l) Serviços de office boy (contínuo);
m) Serviços de digitação;
n) Serviços de assessoria de imprensa e de relações públicas;
o) Serviços de motorista, no caso de os veículos serem fornecidos pelo próprio
órgão licitante;
p) Serviços de ascensorista;
q) Serviços de enfermagem e
r) Serviços de agentes comunitários de saúde.
Parágrafo Primeiro – O disposto nesta Cláusula não autoriza outras formas de
terceirização sem previsão legal.
Parágrafo Segundo – As partes podem, a qualquer momento, mediante
comunicação e acordos prévios, ampliar o rol de serviços elencados no caput.

O Tribunal de Contas da União, por meio do Acórdão nº 1815/2003 - Plenário, pacificou


o entendimento sobre o assunto, proferindo determinação nos seguintes termos:

VISTOS, discutidos e relatados este autos de Representação, ACORDAM os


Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, com
fulcro no § 1º do art. 113 da Lei nº 8.666/93, c/c inciso VII do art. 237 do
Regimento Interno, em:
[...]
9.1. conhecer da presente Representação, por atender os requisitos do caput e
do §1° do art. 113 da Lei n° 8.666/93, para, no mérito, considerá-la
parcialmente procedente;
9.2. acolher as razões de justificativa dos responsáveis;
9.3. determinar à Caixa Econômica Federal que:
9.3.1. nos futuros editais de licitação, defina a forma como os serviços serão
prestados, nos seguintes moldes:
9.3.1.1. se, pela natureza da atividade ou pelo modo como é usualmente
executada no mercado em geral, houver necessidade de subordinação jurídica
entre o obreiro e o contratado, bem assim de pessoalidade e habitualidade, deve
ser vedada a participação de sociedades cooperativas, pois, por definição, não
existe vínculo de emprego entre essas entidades e seus associados;
9.3.1.2. se houver necessidade de subordinação jurídica entre o obreiro e o
tomador de serviços, bem assim de pessoalidade e habitualidade, a terceirização
será ilícita, tornando-se imperativa a realização de concurso público, ainda que
não se trate de atividade-fim da contratante;
9.3.2. proceda a correção dos editais de concorrência nºs 019/2002, 021/2002,
027/2002 e 041/2002, de forma a definir o modo como os serviços devem ser
executados pela contratada, tendo em vista o subitem 9.3.1. retro.

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão em sede de Agravo


Regimental em Suspensão de Segurança, confirmando os termos do acordo firmado entre a
União e o Ministério Público do Trabalho, nos termos do AgRg na SS 1352/RS – Agravo
Regimental na Suspensão de Segurança n.º 2004/0063555-1, Corte Especial, Rel. Ministro
Edson Vidigal (DJU de 09.02. 2005).

7 CONCLUSÃO

A Lei n.° 8.949/94 deflagrou aumento significativo do número de sociedades


cooperativas no País, ao acrescentar parágrafo único ao art. 442 da CLT, dispondo que,
qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo

50
empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços
daquela. As empresas terceirizadoras passaram a ter, na contratação dessa espécie de
sociedade, alternativa para aumentar sua eficiência e competitividade.

O crescimento do número de cooperativas veio acompanhado do surgimento de


“pseudocooperativas”, constituídas segundo a legislação vigente, mas com características de
entidades empresárias, perseguindo o lucro e executando atividades correspondentes a
intermediação de mão-de-obra, tida como ilegal e ilegítima.

Tal situação produziu reflexos no âmbito da Administração Pública, que, objetivando


terceirizar suas atividades acessórias e complementares, deparou-se com a participação de
sociedades cooperativas nos certames licitatórios e na execução de serviços, quando
vencedoras dos certames, por meio de pessoal diverso dos cooperados, sem preservação do
caráter de autonomia previsto na Lei n.º 5.764/71, mas em estado de subordinação, tanto em
relação ao tomador como em relação ao fornecedor de serviços.

Formaram-se, na doutrina e no decisório dos tribunais, entendimentos divergentes


acerca da admissão ou não de sociedades cooperativas nas licitações realizadas pelo poder
público visando à contratação de serviços, predominando, na jurisprudência atual, inclusive da
Corte de Contas da União, os fundamentos que presidiram acordo firmado entre a União, por
intermédio da Advocacia-Geral, e o Ministério Público do Trabalho.

Em síntese, as sociedades cooperativas podem constituir-se segundo as normas


previstas no vigente Código Civil e na Lei n.º 5.764/71, ou seja, com configuração própria,
tendo por objeto social a prestação de serviços ou a produção e comercialização de bens,
desde que os executores das obrigações inseridas nos contratos que venham a celebrar sejam
os próprios cooperados, sem a subordinação típica da relação patrão-empregado.

Às cooperativas que auferem receita bruta anual de até R$ 2.400.000,00 (dois milhões
e quatrocentos mil reais) foram estendidos os benefícios deferidos às empresas de pequeno
porte e microempresas pela LC n.º 123/06, dentre os quais tratamento diferenciado quando
participarem de licitações (notadamente, prazo para a emenda de irregularidades fiscais e
empate ficto), regime a que fazem jus por direito próprio e independentemente da
participação, no certame, de microempresas e empresas de pequeno porte.

Da mesma forma como o regime privilegiado não se poderá aplicar às microempresas e


empresas de pequeno porte que incidam nas vedações do art. 3º, § 4º, da LC nº 123/06,
também as pseudo cooperativas estarão dele excluídas.

Jessé Torres Pereira Junior faz ver que “Tratando-se de cooperativas, as possibilidades
de desvios e mal entendidos aumentam geometricamente porque há uma antítese natural
entre a estratégia da terceirização e o cooperativismo, que impende superar com engenho e
técnica. A terceirização tem compromisso com resultados que enfrentem e suplantem a
concorrência. O cooperativismo não pretende concorrer, mas servir-se da cooperação como
mola propulsora de atividade econômica, irmanando em um propósito comum, sem deixarem
de ser profissionais autônomos, aqueles que não conseguiram lugar nos processos econômicos
empresariais, estruturalmente movidos pela concorrência.

Escolher o caminho da terceirização, e percorrê-lo tendo cooperativas como


parceiras, deve enquadrar-se na moldura da eficiência e da eficácia. Não se
trata de optar segundo convicções ou predileções pessoais. É imprescindível
conhecer-se o perfil jurídico, econômico e administrativo da solução (terceirizar)
e de uma de suas ferramentas (cooperativa); contrastá-lo com as circunstâncias
do caso concreto por meio de estudos e levantamentos pertinentes; elaborar-se
o projeto básico por lei exigido e sujeitá-lo às análises críticas de ordem técnica
e jurídica; afinal, verificar se, em determinado caso e suas circunstâncias,
terceirizar é a solução que superiormente atende ao interesse público e, sendo,
se será de melhor proveito entregar-lhe a respectiva execução a cooperativa fiel
aos princípios que lhe conformam a gênese e o funcionamento, tal como os
arrola Denise, extraindo-os da evolução histórica do cooperativismo – adesão
livre, gestão democrática, cooperação, preço justo sem intermediação,

51
neutralidade político-religiosa, desenvolvimento da educação, formação de
reservas para o auto desenvolvimento, autonomia e independência frente às
demais instituições de direito privado e entidades governamentais.73

Sem tais cuidados, a extensão às cooperativas dos benefícios concedidos às


microempresas e empresas de pequeno porte apenas multiplicará os desvios que os tribunais,
judiciais e de contas, têm encontrado nos contratos com “pseudocooperativas”.

73
(prefá cio a Terceirização na Administração Pública. As Cooperativas de Trabalho, p. 13-14).

52
COMENTÁRIOS AOS PARÁGRAFOS DO NOVO
ART. 475-J DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Mário Henrique Cavalcanti Gil Rodrigues


Advogado da União. Concluinte do Curso Preparatório da
Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE).
Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Exerceu advocacia privada. Ex-Assessor de Desembargador do TJPE.
Ex-Procurador do Estado de Roraima.

SUMÁRIO: 1 Considerações preliminares; 2 Necessidade de


conhecimentos especializados para a efetivação da avaliação; 3
Intimação da penhora e da avaliação; 4 Impugnação no prazo de
15 dias; 4.1 Conceito e natureza jurídica da impugnação 4.2
Breve diferenciação entre os fundamentos da atual impugnação
(art. 475-L) e dos antigos embargos (redação original do art.
741); 4.3 Prolongamento da execução após a impugnação e
defesa de segunda fase; 5 Indicação, pelo exeqüente, dos bens a
serem penhorados; 6 Pagamento parcial e montante de
incidência da multa; 7 O arquivamento e o desarquivamento dos
autos do processo; 8 Considerações finais;
9 Referências; 10 Bibliografia recomendada.

1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Com o objetivo de propiciar uma prestação jurisdicional consideravelmente mais efetiva,
foram editados alguns atos legislativos entre outubro de 2005 e dezembro de 2006, dentre os
quais sobrelevamos a Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, em vigor desde 23 de junho
de 2006, mormente o art. 475-J por ela instituído, coração da reforma.
Sem pretensão de esgotamento, a finalidade do presente trabalho é a concatenação de
comentários, assim como a exposição de controvérsias e soluções acerca das alterações
legislativas promovidas pela lei supramencionada, em especial pela instituição de uma etapa
complementar ao processo de conhecimento (arts. 475-I a 475-R), de concretização do direito,
em substituição ao anacrônico processo autônomo de execução.
Após esta introdução, averiguamos os parágrafos do art. 475-J, alma do novo Capítulo X
do Título VIII do Livro I do Código de Processo Civil Brasileiro (Do cumprimento da sentença –
arts. 475-I a 475-R). Por uma questão de didática, de início debatemos o § 2º, com
questionamentos e ponderações sobre o significado de: exigência de conhecimentos
especializados para a efetivação da avaliação, nomeação do avaliador “de imediato”, “breve
prazo” para a entrega do laudo.
Então, altercamos temas ligados ao § 1º, tais como a intimação da penhora e da
avaliação e a impugnação no prazo de quinze dias.
Depois, tratamos de assuntos respeitantes aos § 3º ao 5º, a exemplo da indicação, pelo
exeqüente, dos bens a serem penhorados, do pagamento parcial e sua relação com o quantum
da multa fixada, do não requerimento da execução no interregno de seis meses, do
arquivamento dos autos e de seu desarquivamento a pedido da parte.
Entendemos não poder ser levada adiante a aprovação de projetos existentes no
Congresso Nacional tendentes a restringir o pleno acesso à justiça – mesmo a pretexto de
conferir maior celeridade ao processo, a exemplo do Projeto de Lei nº 4.733/2004, já aprovado
pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados – princípio consagrado
constitucionalmente como cláusula pétrea. Tal fato levaria ao necessário reconhecimento de
inconstitucionalidade da norma, tanto pelo controle difuso quanto pela via concentrada.
Em suma, a finalidade das alterações efetuadas pela Lei nº 11.232/05, principalmente
pelo art. 475-J do CPC, é a busca incessante pela efetividade da prestação jurisdicional,
princípio consagrado no art. 5º, XXXV, da CF, em consonância com o modelo constitucional de
processo.

53
2 NECESSIDADE DE CONHECIMENTOS ESPECIALIZADOS PARA A EFETIVAÇÃO DA AVALIAÇÃO
Com um propósito didático, analisaremos os aspectos concernentes ao § 2º do art. 475-
J, de forma precedente às considerações a respeito do § 1º do mesmo preceito legal.
Após a vigência da Lei nº 11.232/05, a avaliação dos bens penhorados passou a ser
tarefa do oficial de justiça. Porém, quando essa se encontrar na dependência de
conhecimentos especializados, o oficial se quedará impossibilitado de fazê-la. Nesse caso, de
imediato, o juiz nomeará avaliador, estipulando-lhe breve prazo para a entrega do laudo, nos
termos do art. 475-J, § 2º, do CPC.
A mesma providência não deverá ser tomada onde o oficial de justiça, por força
das leis de organização judiciária, não seja habilitado a realizar avaliações (o
que dificilmente acontece, já que nos dias de hoje – pelo menos na maioria dos
lugares do Brasil – o auxiliar da justiça de que se trata é aprovado em concurso
para o cargo de oficial de justiça avaliador). Isto porque onde a lei local não o
fez, a lei federal agora faz com que o oficial de justiça passe a ser, também,
avaliador.74 (grifo do autor)
O reconhecimento de insuficiência da instrução necessária à avaliação é ato de
responsabilidade do oficial de justiça. Todavia, nada impede que o próprio magistrado
reconheça a indispensabilidade de maior perícia para solução da análise a ser efetivada, e,
assim, proceda à nomeação de avaliador.
A expressão “de imediato” (art. 475-J, § 1º), referente à premência da nomeação de
avaliador, deverá ser contada a partir do momento em que se reconhece a necessidade de
conhecimentos exorbitantes da alçada do oficial de justiça, seja por ato deste, seja por
determinação judicial. Outrossim, terá de ser entendida como “o mais rápido possível”, o que
somente poderá ser apurado na prática.
Quanto à locução “breve prazo” (art. 475-J, § 1º), atinente ao tempo concedido pelo juiz
ao avaliador para a entrega do laudo, somente o cotidiano dos foros nacionais atestará o seu
real significado, indicando o que pode ser razoavelmente considerado como breve interregno
em cada caso concreto submetido à apreciação do Poder Judiciário, de acordo com diversos
fatores, a exemplo da espécie de avaliação a ser concretizada.
3 INTIMAÇÃO DA PENHORA E DA AVALIAÇÃO
Dispõe o § 1º do art. 475-J do CPC: “Do auto de penhora e de avaliação, será de
imediato intimado o executado, na pessoa de seu advogado (arts. 236 e 237), ou, na falta
deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por mandado ou pelo correio, podendo
oferecer impugnação, querendo, no prazo de quinze dias.
Nos dizeres de Ernane Fidélis dos Santos: 75
se o oficial de justiça penhora e avalia, lavra-se único auto; se a avaliação for de
outro, nada impede que se acresça ao auto o laudo de avaliação, desde que
contenha a assinatura de ambos os participantes. Normalmente, porém, as
peças serão separadas, com as respectivas intimações realizadas apenas quando
ambas estiverem nos autos.
Conforme colacionado acima, o devedor é intimado da penhora e da avaliação na pessoa
de seu advogado (mediante publicação no diário oficial). Em caso de inexistência deste –
procurador do executado, designado com precedência pelo comando legal – o que pode
acontecer, por exemplo, na hipótese do processo haver transcorrido à revelia, haverá a
intimação do executado ou de seu representante legal (por correio ou por mandado).
O fator que determina quem vai ser intimado em nome do inadimplente deve ser
apurado no instante do proferimento da sentença. Na ocasião, se o devedor possuía advogado
constituído nos autos do processo, a este se encaminha, se dirige a intimação, mesmo que ele
tenha sido deposto ou renunciado à outorga em momento posterior ao encerramento da etapa
cognitiva no processo de conhecimento.

74
FREITAS CÂMARA, Alexandre . A nova execução de sentença. 3.ed. Revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2007. p. 120.
75
FÍDELIS DOS SANTOS, Ernani. As reformas de 2005 e 2006 do código de processo civil. 2.ed. Revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 61.

54
A finalidade dessa comunicação é a ciência dos atos executivos praticados e a abertura
do prazo de 15 (quinze) dias para impugnação.
Não há, de acordo com a lei, preferência pela intimação pelo oficial (por
mandado) ou pelo correio. A agilidade entre uma ou outra forma de intimação é
que deve guiar a atividade jurisdicional. Haverá comarcas ou seções judiciárias
em que a intimação pelo correio é mais rápida enquanto que em outras a
expedição do mandado o será76 (grifo do autor).
Importante ressaltar que o fato de a intimação da penhora e da avaliação ser efetivada
“de imediato”, isto é, independentemente de qualquer despacho do magistrado competente, se
a penhora recair em bens imóveis, também deverá ocorrer a intimação do cônjuge do
executado, conforme mandamento do art. 669, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Conquanto haja omissão legislativa, na hipótese de inviabilidade de intimação do
advogado, do devedor e de seu representante legal, esta se realizará por edital, desde que
presentes seus pressupostos de publicação.
4 IMPUGNAÇÃO NO PRAZO DE 15 DIAS
Preambularmente devemos frisar o fato do atual estudo ter por objeto a apreciação dos
parágrafos do art. 475-J do CPC. O exame da impugnação abrange observações acerca,
essencialmente, do art. 475-J, § 1º, e dos arts. 475-L e 475-M. A avaliação pormenorizada
desses dois últimos dispositivos desviaria o foco da pesquisa em apreço, razão pela qual
comentaremos tão somente os aspectos dessa espécie de oposição correlacionados àquele
primeiro dispositivo legal (art. 475-J, § 1º).
Em qualquer ordenamento jurídico, faz-se necessária a implementação de meios de
defesa para o executado se proteger em caso de ser desenvolvida execução de forma injusta.
Não obstante a inegável força do título executivo, ele não tem o condão de deixar o suposto
devedor em absoluto desarrimo.
Este dispõe de mecanismos de resistência, dentre os quais se destacam, no Brasil, o mandado de
segurança, a ação anulatória do ato declarativo da dívida, a repetição de indébito, a consignação em
pagamento (todos esses cabíveis somente nas hipóteses de execução fiscal), a exceção de pré-
executividade e a impugnação.
Pode-se agrupar a defesa do executado em dois grupos: defesa própria e defesa
imprópria, que têm como critério a existência ou não de regramento específico
para cada forma de defesa. O grupo da defesa própria é composto pelos
embargos à execução, nas suas diversas modalidades, que pode ser identificada
como defesa incidental, e pela impugnação ao cumprimento de sentença, forma
de defesa endoprocessual. O grupo da defesa imprópria é constituído pela
exceção de pré-executividade, também defesa endoprocessual e pelas ações 77

autônomas e prejudiciais à execução ou defesa heterotópica. (grifo do autor)

A exceção de pré-executividade – ou objeção ou argüição de não-executividade –, nos


primórdios de sua existência no sistema brasileiro, tinha a sua admissibilidade restrita às
matérias passíveis de serem decididas de ofício pelo magistrado (questões de ordem pública).
Em etapa posterior, esse remédio passou a ser igualmente cabível nas chamadas objeções
substantivas.
O fim que lhe inspirou a criação lenta e sofrida é claro e responde pelo aumento
da área de uso. A exceção de pré-executividade preenche o espaço anterior e
posterior à época oportuna para o ajuizamento dos embargos ou da novel
impugnação.78
A impugnação – antes chamada de embargos, que hoje são aplicados, de regra, apenas
aos títulos executivos extrajudiciais – tem como requisito legal a penhora (art. 737, I, c/c art.
475-R). Não admite a rediscussão da sentença anteriormente prolatada. Deve ser proposta por

76
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 95-96.
77
GILBERTO MARTINS, Sandro. A defesa do Executado por meio de ações autônomas: defesa heterotópica. 2. ed. revisada e atualizada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 112.
78
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 300.

55
simples petição, dentro do prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 475-J, § 1º, sempre
com observância às regras do art. 184.
Em caso de intimação do advogado do devedor, realizada por intermédio do Diário
Oficial, este interstício é contado a partir da data da publicação no referido órgão (art. 240,
caput). Na hipótese de intimação pessoal do executado ou de seu representante legal,
concretizada pela via postal ou por oficial de justiça, o intervalo se inicia, respectivamente,
com a juntada aos autos do aviso de recebimento (art. 241, I) ou do mandado cumprido (art.
241, II). Já quando a intimação se dá por edital, o prazo é inaugurado com o fim da dilação
subscrita pelo magistrado (art. 241, V).
Pode acontecer de o advogado do devedor renunciar ao mandato durante o
prazo para oferecimento da impugnação. Até porque ele pretende cobrar novos
honorários de seu constituinte, em função das atividades que se seguirão sob o
manto da “fase de cumprimento da sentença”, e seu (ex-)cliente, tendo lido no
jornal que o “processo de execução” acabou, não pretende remunerá-lo
condignamente. Nestes casos, observar-se-á o que dispõe o próprio Código de
Processo Civil. Em seu art. 45, na redação que lhe deu a Lei n. 8.952/1994,
prevê que o advogado continua, no caso de renúncia ao mandato, responsável
pelos atos do processo por 10 dias contados da intimação da renúncia ao seu
antigo constituinte, a qual deverá comprovar para o juízo, “desde que necessário
para lhe evitar prejuízo”. Postas as coisas desta forma, é muito provável que o
advogado que decida pela renúncia do mandato, tenha, ainda, de apresentar a
impugnação, sob pena de ser responsabilizado profissionalmente. A mesma
diretriz é dada pelo art. 5º, § 3º, da Lei n. 8.906/1994, o Estatuto da
79
Advocacia.
No entanto, pode ocorrer dos dez dias posteriores à renúncia se encerrarem antes do
décimo quinto dia permitido para a propositura da impugnação. Nestes casos, prossegue
Cássio Scarpinella Bueno em valorosa síntese:
80

[...] será mister verificar se o devedor nomeou, ou não, um novo advogado. Em


caso positivo, o prazo flui normalmente; em caso negativo, aplica-se, à espécie,
o disposto no art. 265, I, e § 2º. Utilização deste expediente para fins
protelatórios deve ser severamente repudiado e exemplarmente punido, o que
pode se dar com base no art. 17, IV, V, ou VI, e, de forma mais específica para
a hipótese em destaque, art. 600, II.
Especificamente a respeito do prazo de 15 (quinze) dias, convém realçarmos que se
constitui em estipulação normalmente sem eficácia, porquanto as matérias tratadas no art.
475-L dizem respeito, em regra, aos pressupostos processuais e as condições cumulativas do
exercício eficaz do direito de ação, podendo, assim, ser argüidas a qualquer tempo e grau de
jurisdição, inclusive ex officio pelo magistrado. As exceções se encontram no inciso III, quando
será possível a eventual ocorrência da preclusão após o decurso do tempo acima fixado para a
propositura da impugnação.
Com censura ao legislador da reforma, no tocante ao momento procedimental legalmente
previsto para o ajuizamento desta espécie de oposição, têm-se as críticas e oportunas palavras
de Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel. 81
[...] Segundo pensamos, não andou bem o legislador, neste ponto da reforma.
Melhor teria sido impor a apresentação de impugnação logo no início da
execução, a fim de, com isso, antecipar a discussão sobre as matérias referidas
no art. 475-L do CPC. [...]
Nada impede, assim, que tais questões sejam suscitadas pelo executado antes da
penhora.
4.1CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DA IMPUGNAÇÃO

79
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 98
80
Ibid.
81
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática
processual civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 147.

56
A impugnação prevista no art. 475-J, § 1º, do CPC é a defesa incidental, por vezes hábil
a suspender a execução (art. 475-M, caput), do suposto devedor em face da etapa de
cumprimento da sentença.
Em relação à natureza jurídica, sempre foi pacífico na doutrina o entendimento segundo
o qual os embargos do devedor consistem em ação de conhecimento autônoma e incidente à
ação executiva.
Já a chamada impugnação, entretanto, representa mero incidente processual cognitivo
dentro da execução, em forma de defesa.
Não se constitui em ação autônoma, e sim em mero incidente processual, por todas as
características já analisadas na pesquisa em tela, em especial devido à inexistência de petição
inicial e a não-formação de processo autônomo de execução, o que se dava – e ainda se dá em
determinadas hipóteses, como a de títulos extrajudiciais – com os embargos do devedor.
Contudo, em função da autoridade do qual emana, convém citarmos o entendimento
82
doutrinariamente minoritário de Araken de Assis, para quem “a impugnação, analogamente
aos embargos, e a despeito do último tramitar sempre de modo autônomo, representa uma
ação de oposição à execução.” (grifo nosso)
É cognitiva porque tem por escopo o reconhecimento de uma das situações previstas no
art. 475-L, e não o resguardo ou a concretização de eventual direito.
Diz-se que ocorre na execução porque essa, atualmente, é a própria fase de
cumprimento da sentença – momento adequado para o oferecimento da impugnação – nos
casos de títulos executivos judiciais.
Trata-se de modo defensivo, por visar apenas a evitar as conseqüências prejudiciais –
para o executado – advindas da sentença proferida.
4.2 BREVE DIFERENCIAÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS DA ATUAL IMPUGNAÇÃO (ART. 475-L)
E DOS ANTIGOS EMBARGOS (REDAÇÃO ORIGINAL DO ART. 741)
A impugnação se encontrava regulada no art. 741 do CPC – ainda com o nome de
embargos – alterado pela Lei nº 11.232/05 e atualmente adequado apenas aos embargos à
execução contra a Fazenda Pública. Agora, seus fundamentos se localizam no novo art. 475-L
do diploma processual civil. Todas as matérias aí tratadas podem dar azo à propositura desta
modalidade de oposição.
Pelo fato do título executivo judicial haver se formado em uma precedente demanda de
cognição exauriente, em que restou provado o direito alegado, atestam-se inúmeras restrições
ao conteúdo passível de argüição tanto na atual impugnação quanto nos antigos embargos à
execução fundada em título judicial.
Devido a isso,
[...] só poderão ser admitidas na impugnação alegações referentes a matérias
supervenientes à formação do título (como, por exemplo, o pagamento
superveniente à sentença). Exceção a essa regra é, apenas, a hipótese prevista
no art. 475-L, I, que permite a alegação de matéria anterior à sentença (mas
que diz respeito a vício insanável até mesmo pelo trânsito em julgado da
83
sentença de mérito).
Basicamente, a distinção entre o art. 475-L e o antigo art. 741 reside no aparecimento
do novo inciso III, referente à penhora incorreta e à avaliação errônea, e na supressão dos
antigos incisos IV, V, parte final, e VII.O velho n. IV do art. 741, respeitante à “cumulação
indevida de execuções”, não foi reproduzido intencionalmente, deixando implícita, doravante, a
impossibilidade de reunião de títulos de natureza diversa na execução contra o mesmo
devedor, exceto em caso de execução contra a Fazenda Pública, em virtude do novo art. 741,
IV, do CPC, que prevê embargos fundamentados no mencionado acúmulo indevido.
Também não consta da redação do novo art. 475-L a antiga parte final do inciso V do art.
741, ensejadora da oposição do devedor em caso de nulidade da execução até a penhora. Por

82
ASSIS, op. cit., p. 314.
83
FREITAS CÂMARA, op. cit., p. 132.

57
sua vez, as hipóteses de nulidade dos atos executivos praticados até a realização da penhora
estão no art. 618. Uma interpretação equivocada poderia levar à conclusão de não ser mais
admissível a alegação, na petição de impugnação, de nulidade das matérias contidas nesse
preceito legal.
Porém, devido à sua própria natureza, os assuntos ali tratados podem ser reconhecidos
até mesmo de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição, não havendo, portanto, óbice à
argumentação de nulidade da execução com base nas matérias do art. 618 por ocasião da
propositura da impugnação.
Quanto às exceções do primitivo inciso VII do art. 741, tornar-se oportuno o
ensinamento abaixo:
Se o réu não argüi a incompetência relativa no prazo deferido para a
contestação, prorrogada estará a competência do juiz e não mais poderá ser
oposto este seu defeito de legitimação (art. 114). [...] No tocante ao
impedimento, é adequada a afirmativa do Código de que ele poderá ser oposto
em qualquer tempo ou grau de jurisdição; mas é falso o enunciado de que a
parte só poderá fazê-lo no prazo de 15 dias, contado do fato que ocasionou o
impedimento. [...] Quanto à suspeição, ela só pode ser argüida no prazo de 15
dias a contar do fato que a ocasionou. Se este fato ocorreu antes ou depois da
contestação, na primeira ou na segunda instância, ou mesmo na instância
extraordinária, pouco importa. Se o direito de afastar o juiz incompetente
somente surge com a ciência, pela parte, da causa de suspeição, só a partir
desse momento se pode cogitar de preclusão. Este o sentido do texto.84
(grifo nosso).

Pelo exposto, não se há de falar em qualquer mudança de ordem prática em decorrência


da não transposição dos antigos incisos IV, V, parte final, e VII do art. 741 para o novo art.
475-L, ambos do Código de Processo Civil. A verdadeira alteração, a nosso ver, pode ser
constatada pela inclusão do inciso III nesse último dispositivo. Com essa ressalva – nesta
análise:
[...] a reforma, no que tange à sistemática da oposição do executado contra a
execução injusta ou ilegal, se cingiu à troca do nome tradicional (embargos)
pelo novo epíteto “impugnação”. Na verdade, as características atribuídas no
próprio art. 475-L à impugnação não oferecem os contornos mínimos de uma
85
nova e imprecisa figura.

4.3 PROLONGAMENTO DA EXECUÇÃO APÓS A IMPUGNAÇÃO E DEFESA DE SEGUNDA FASE


Quando o executado não apresentar impugnação ou quando a decisão nesta pronunciada
for conciliável com a continuidade do processo, a execução terá seguimento. Devido à falta de
previsão da Lei nº 11.232/05 a respeito do procedimento ulterior, adotar-se-á o art. 475-R do
CPC, disposto da seguinte maneira: “Aplicam-se subsidiariamente ao cumprimento da
sentença, no que couber, as normas que regem o processo de execução de título
extrajudicial”.
Desse modo, no momento subseqüente, em hasta pública será consumada a
arrematação (arts. 686 a 707 do CPC) dos bens penhorados e avaliados. Depois dessa etapa,
será realizado o pagamento ao credor (arts. 708 a 729 do CPC). Após isso, haverá a extinção
do processo, com fundamento no art. 794, I, do CPC.
Pode ocorrer que o devedor, para usar a nova terminologia, impugnar a arrematação ou
a adjudicação dos bens, o que será objeto da chamada defesa de segunda fase, novamente
com a aplicação do art. 475-R do CPC em virtude de omissão da Lei nº 11.232/05. No entanto,
ter-se-á de utilizar também as exegeses sistemática e teleológica para a solução das questões
acerca da terminologia, procedimento e efeitos relativos à parte final do título desse ponto.
Em outras palavras, devem ser infligidas as disposições concernentes à impugnação já
apreciada, no que for razoavelmente factível. Depois, serão cominadas as regras relativas aos

84
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao código de processo civil. v. III. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 294-295.
85
ASSIS, op. cit., p. 303.

58
embargos à arrematação e à adjudicação, “no que couber”, consoante preceito do aludido art.
475-R.
Assim, a terminologia a ser empregada pode ser perfeitamente “impugnação à
arrematação e à adjudicação”. A segunda parte por analogia ao art. 746 do CPC e a primeira
tanto para aproveitar a recente nomenclatura legal quanto para adequá-la à nova realidade do
processo, onde se tem um incidente e não mais uma ação autônoma como defesa do
executado. Este simples fato já é suficiente para tornar inconcebível a acolhida da locução
“embargos” à presente hipótese.
Outrossim, a impugnação à arrematação e à adjudicação deve ser recebida, em regra, no
efeito meramente devolutivo, por analogia ao art. 475-M (interpretação sistemática) e por
representar melhor os fins almejados pela nova execução implementada pela Lei nº 11.232/05
(hermenêutica teleológica), qual seja, a celeridade, a efetividade, a economia, dentre outros.
Por outro lado, quanto ao conteúdo a justificar o ajuizamento desta defesa, impõe-se o
art. 475-R e, por conseguinte, o art. 746, haja vista a identidade de objetivos entre esta nova
medida e os embargos à arrematação e à adjudicação. Portanto, a impugnação de segunda
fase pode ser fundamentada “em nulidade da execução, pagamento, novação, transação ou
prescrição [...]” – rol exemplificativo, inobstante a redação legal.
Araken de Assis,86 de forma genérica, concebe duas alternativas a serem perfilhadas pelo
operador do direito. Embora não concordemos com a segunda opção por uma questão de
interpretação sistemática e sobretudo teleológica – tendo em vista a finalidade da impugnação
à arrematação e à adjudicação –, cumpre-nos a referência:
[...] ou se aplicará o art. 746, subsidiariamente, adaptando-se o art. 475-L às
matérias nele explicitadas e ao respectivo regime (prazo, efeito suspensivo,
dedução incidental); ou se admitirá o cabimento da exceção de pré-
executividade [...] Do ponto de vista dos que antipatizam com a exceção de
pré-executividade, senão a rejeitam firmemente, parecerá preferível o primeiro
e ortodoxo remédio.

5 INDICAÇÃO, PELO EXEQÜENTE, DOS BENS A SEREM PENHORADOS


Estabelece o § 3º do art. 475-J do CPC, instituído pela Lei nº 11.232/05: “O exeqüente
poderá, em seu requerimento, indicar desde logo os bens a serem penhorados”.
Com o advento desse novo instrumento legislativo, portanto, o executado deixou de ter o
direito de oferecer bens à penhora antes da indicação do exeqüente (com a exceção, claro, da
execução de título extrajudicial). Trata-se de sistema semelhante ao acolhido pelo Código de
Processo Civil Português, em seu art. 812º-B.
Esta alteração legal, entretanto, não retira do demandado a prerrogativa de protestar
contra a designação consumada pelo demandante e de reclamar a troca do bem penhorado,
quando o magistrado decidirá em atenção ao interesse deste (credor), mas do modo menos
oneroso para aquele (devedor), conforme diretrizes dos arts. 612 e 620 c/c art. 475-R, todos
do CPC. Em outras palavras, o juiz concederá a substituição quando esta também for
suscetível de assegurar a satisfação do exeqüente, mas com menos sacrifício para o
executado.
Caso o credor não declare os bens do devedor sobre os quais ele quer ver a
penhora recair – porque não sabe que bens são estes ou porque os que ele
conhece não foram localizados, independentemente do motivo – caberá ao
oficial de justiça penhorar o que encontrar (diretriz do art. 659, caput, aplicável
à espécie) ou, na ausência de bens localizáveis ou diante das situações de
impenhorabilidade dos arts. 649 e 650, todos ainda vigorantes, só restará ao
credor “encontrar” de outra forma bens penhoráveis do devedor. E a melhor
forma para tanto é pelo envio de ofícios à receita federal ou, até mesmo, pela
87
chamada “penhora on line.”

86
ARAKEN DE ASSIS, op. Cit., p. 312.
87
SCARPINELLA , op. cit., p. 88.

59
Sabemos que, apesar das melhoras processuais resultantes da Lei nº 11.232/2005,
singularmente do art. 475-J do Código de Processo Civil Brasileiro, a etapa executiva ainda se
encontrará afastada dos almejados índices de satisfatividade e celeridade em nosso país – pois
não podemos expectar milagres –, essencialmente por motivos estruturais, políticos,
88
financeiros, sociais e até mesmo culturais. Para Araken de Assis,
[...] infelizmente, o direito pátrio omitiu incidente propício à solução de um dos
gargalos da execução que é a localização de tais bens. Confiou na investigação
preliminar do exeqüente, motivo por que lhe assegurou o direito de indicar bens
no requerimento executivo (art. 475-J, § 3º), no tirocínio do oficial de justiça,
cujas habilidades profissionais jamais devem ser desprezadas, e na colaboração
eventual do executado. A este toca, em conformidade ao art. 600, IV, o ônus de
indicar ao juiz “onde se encontram os bens sujeitos à execução”, sob pena de
suportar multa de até 20% (vinte por cento) do valor atualizado do débito (art.
601, caput). É evidente que escamoteação bem sucedida deixa livre o executado
burlão por petição de princípio (inexistência de bens penhoráveis).
O requerimento a que se refere o dispositivo em apreço - art. 475-J, § 3º - é aquele
proposto pelo credor após o decurso do prazo de 15 dias para pagamento voluntário pelo
devedor. Deve ser elaborado da forma mais completa possível, de maneira a abreviar ao
máximo a identificação de bens do patrimônio do requerido passíveis de penhora.
6 PAGAMENTO PARCIAL E MONTANTE DE INCIDÊNCIA DA MULTA
Preconiza o § 4º do art. 475-J do CPC: “Efetuado o pagamento parcial no prazo previsto
no caput deste artigo, a multa de dez por cento incidirá sobre o restante”.
O prazo aludido no caput é o de 15 (quinze) dias para adimplemento voluntário por parte
do executado. Dessa forma, se a dívida atinge a quantia de R$ 10.000,00 e o devedor paga
somente R$ 5.000,00 dentro do lapso temporal mencionado (quinze dias), a multa será de R$
500,00 (10% sobre o valor remanescente, não solvido) e não de R$ 1.000,00 (equivalente a
10% do total, aplicável caso nada houvesse sido pago).
Nos dizeres de Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel
Garcia Medina ,89
a multa, de todo modo, não existe autonomamente, em relação à obrigação
imposta pela sentença. Assim, caso seja provida a apelação interposta pelo réu,
e o pedido seja julgado improcedente, a multa será incabível. [...].
Semelhantemente, a reforma total ou parcial da sentença condenatória
importará a respectiva alteração do valor da multa.
O montante de 10% (dez por cento) recai sobre o débito não quitado, seja por vontade
do devedor, seja por equívoco a ele atribuído.
7 ARQUIVAMENTO E O DESARQUIVAMENTO DOS AUTOS DO PROCESSO
Regra interessante se encontra no art. 475-J, § 5º, redigido da seguinte forma: “Não
sendo requerida a execução no prazo de seis meses, o juiz mandará arquivar os autos, sem
prejuízo de seu desarquivamento a pedido da parte”.
Assim, o arquivamento advém do decurso do tempo acima referido sem a manifestação do credor
no sentido de ser iniciada a fase de cumprimento da sentença, em virtude de ser necessário o
requerimento deste para poderem ser praticados os atos executivos.
90 91
Humberto Theodoro Júnior e Alexandre Freitas Câmara defendem o cômputo do
prazo de seis meses a partir da existência de sentença exeqüível, ou seja, desde o trânsito em
julgado. Entretanto, reputamos ser mais sensata a contagem dessa dilação a começar do
primeiro dia útil subseqüente ao 15º (décimo quinto) dia permitido pela lei para adimplemento
da dívida sem a incidência da multa de 10% (dez por cento), haja vista a impossibilidade de

88
ASSIS, op. cit., p. 269.
89
WAMBIER ; MEDINA, op. cit., p. 145-146.
90
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As Novas reformas do código de processo civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense . 2006. p. 145.
91
FREITAS CÂMARA, op. cit., p. 118.

60
cometimento, pelo demandante, de qualquer ato tendente a encetar a execução em momento
anterior.
Já o desarquivamento não se encontra na dependência de qualquer transcurso temporal.
Pode ser solicitado tanto pelo exeqüente quanto pelo executado, até mesmo porque a norma
legal se refere a “pedido da parte”, sem qualquer especificação restritiva.
[...] Não se aplica, à hipótese, o disposto no art. 267, II e III. Não tem sentido,
a bem da verdade, que se apliquem, à situação aqui descrita, as regras
daqueles dispositivos porque, na hipótese, já há sentença. A “inércia” do credor
se dá com a busca de sua satisfação (da realização concreta do direito
reconhecido no título) e, por isto, não tem sentido falar-se, nesta sede, de uma
extinção do processo “sem julgamento de mérito”. Até porque haverá outros
vários fatores que poderão levar à dificuldade do credor em promover os atos
executivos, a mais comum e provável delas, é a não localização de bens pelo
92
credor ou pelo oficial de justiça ou, simplesmente, a sua inexistência.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito do artigo em tela foi externar observações concernentes, especialmente, ao art.
475-J do Código de Processo Civil, integrante da recentemente criada etapa de cumprimento
da sentença, instaurada no ordenamento jurídico nacional pela Lei nº 11.232/2005.
O Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, não obstante sua rebuscada e admirável
técnica, adotava a separação clássica entre processo de conhecimento e processo de
execução, que se revelava cada vez mais maléfica à celeridade e à eficiência.
Referida divisão ofendia o devido processo legal. Ademais, ocasionava um longo e
desnecessário interstício entre a cognição e a execução, além de numerosos prazos legalmente
estabelecidos dentro desta fase, de concretização do comando judicial, com incontestáveis
danos para o credor e para a economia processual.
Com a vigência da Lei nº 11.232/05, adveio a junção dos processos de conhecimento e
de execução. A partir de então, passou a haver uma etapa inicial (de reconhecimento) e uma
etapa ulterior (de realização do direito). Agora, o processo de conhecimento consiste de seis
fases: postulatória, ordinatória, instrutória, decisória, de liquidação e de cumprimento da
sentença.
Após a intimação do executado referente à penhora e à avaliação, poderá ser efetivada a
impugnação mediante simples petição. O art. 475-J, § 1º, do CPC fixa o prazo de 15 (quinze)
dias, mas se trata de previsão inútil porque as matérias ensejadoras desta espécie de oposição
são de ordem pública, argüíveis a qualquer tempo e grau de jurisdição.
A impugnação é uma defesa incidental, normalmente inapta a suspender a etapa de
cumprimento da sentença, ao contrário dos embargos à execução. Consideramos que possui
natureza jurídica de mero incidente processual cognitivo dentro da execução, em forma de
defesa.
Quando a decisão da impugnação não impedir o prosseguimento da fase de
concretização do direito, ou quando ela não for apresentada, dar-se-á a arrematação dos bens
penhorados e avaliados, após o que haverá o pagamento ao credor. Depois disso, será extinto
o processo, com fulcro no art. 794, I, do CPC.
Eventualmente, poderá ocorrer a chamada defesa de segunda fase, por intermédio de
impugnação da arrematação ou da adjudicação dos bens. Na medida do possível, a disciplina a
ela aplicável será aquela respeitante à impugnação supra-examinada.
Mencionamos o fato de o executado não ter mais o direito de oferecer bens à penhora
antes do exeqüente, que poderá indicá-los já no seu requerimento. Também é importante
salientarmos que, havendo pagamento parcial no prazo de 15 (quinze) dias, a multa incidirá
sobre o restante, sobre a parcela não quitada, seja por vontade do devedor, seja por engano a
ele imputado.

92
SCARPINELLA BUENO, op. cit., p. 98.

61
Se a execução não for requerida em seis meses, o magistrado determinará o
arquivamento dos autos, sem prejuízo de seu desarquivamento a pedido da parte. Não
obstante respeitabilíssimas opiniões em sentido contrário, segundo nos parece, a contagem
desse prazo deverá ser iniciada no primeiro dia útil após o 15º (décimo quinto) dia definido
pela lei para pagamento do valor devido sem a incidência da multa de 10% (dez por cento),
porquanto o credor não pode praticar qualquer conduta apta a abrir a execução em momento
anterior.
Como objetivos salutares a serem atingidos em função da remodelagem decorrente da
inserção do art. 475-J no CPC, podemos apontar a adequação ao modelo constitucional do
processo, bem como o progresso da eficácia, da celeridade, da economia processual, da
efetividade e da justiça, dentre outros.
Apenas o dia-a-dia forense poderá atestar a intensidade da melhora quanto às
finalidades acima aludidas, com a análise dos resultados práticos a serem alcançados.
9 REFERÊNCIA
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao código de processo civil. v. III. 8 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001.
FIDÉLIS DOS SANTOS, Ernane. As reformas de 2005 e 2006 do código de processo civil. 2 ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
FREITAS CÂMARA, Alexandre. A nova execução de sentença. 3 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007.
GILBERT MARTINS, Sandro. A defesa do executado por meio de ações autônomas: defesa
heterotópica. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo:
Saraiva, 2006.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves
comentários à nova sistemática processual civil 2. ed. São Paulo: RT, 2006.

10 BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Tendências contemporâneas do direito processual civil. Revista de
Processo, v. 31, ano 8, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983.
CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CABRAL, Luciana Gontijo Carreira Alvim. Cumprimento da sentença:
comentários à nova execução da sentença e outras alterações introduzidas no código de processo civil
(Lei nº 11.232/05). 2 ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2006.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. III. 4. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2004.
GUSMÃO CARNEIRO, Athos. Cumprimento da sentença civil. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
GUSMÃO CARNEIRO, Athos. Nova execução. Aonde vamos? Vamos melhorar. Revista de Processo, v.
123, ano 30. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento: a tutela
jurisdicional através do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
MONTENEGRO FILHO, Misael. Cumprimento da sentença e outras reformas processuais. São Paulo:
Atlas, 2006.
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo:
Saraiva, 2006.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. A execução de sentença e a garantia do devido processo legal. 1
ed. Rio de Janeiro: Aide, 1987.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do código de processo civil. 1 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.

62
UMA MIRADA NO ANTEPROJETO DE PROCESSO CIVIL COLETIVO BRASILEIRO

Rui Magalhães Piscitelli


Procurador Federal, atualmente exercendo a
Chefia Nacional da Procuradoria Jurídica do INEP/MEC,
Professor Universitário, Especialista em Processo Civil, Mestre em Direito.

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo fazer uma primeira leitura crítica sobre o texto
do anteprojeto de processo civil coletivo brasileiro, analisando seu conteúdo geral e pontuando
questões que julga de maior relevância, notadamente sob o ponto de vista da defesa do
Estado brasileiro.

ABSTRACT:The present paper has for objective to make a first critical reading on the text of
the first draft of civil action collective Brazilian, being analyzed its general content and
indicating questions that it judges of bigger relevance, specially under the point of view of the
defense of the Brazilian State.

SUMÁRIO: 1 Direitos fundamentais e processo civil; 2 Análise


dos principais pontos do anteprojeto; 3 Breves conclusões; 4
Referências.

1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROCESSO CIVIL

A atividade jurisdicional, como se conhece, é, eminentemente, substitutiva a das


partes. Isso significa que o Poder estatal, na função judiciária, passa a decidir sobre os
interesses envolvidos em uma lide.

Assim expressa-se Chiovenda sobre o tema,93

[...] a mim se me afigurou que o critério realmente diferencial, correspondente,


em outros termos, à essência das coisas, reside em que a atividade jurisdicional
é sempre atividade de substituição; é - queremos dizer - a substituição de uma
atividade pública a uma atividade alheia.

Contudo, nem sempre foi assim, cronologicamente, o primeiro modo de resolução dos
conflitos foi a autotutela.94 Através desse modo, as partes diretamente, sem intermediários,
resolviam seus conflitos. Ocorre que, muitas vezes, a força física vinha a ser utilizada,
denotando que nem sempre quem tinha razão saía vencedor, senão o mais forte.

Contudo, a sociedade foi evoluindo, e os meios de resolução de conflitos também.


Surge, então, a composição via juízo arbitral. Nesse modo, um terceiro, árbitro, é escolhido
quando da celebração do negócio pelas partes para a resolução de algum problema, se houver.
Veja-se que, nesse caso, a idéia da substitutividade das partes à decisão de um terceiro já
está nascendo. Utilizada correntemente nas contendas comerciais envolvendo empresas, por
apresentar vantagens em relação à jurisdição - celeridade, sigilo e um árbitro técnico naquela
matéria específica -, no Brasil, após a declaração de sua constitucionalidade, a lei 9307/96
rege a matéria. Já no seu primeiro artigo é dado seu escopo, quais sejam, direitos disponíveis.

93
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. v.II São Paulo: Bookseller, 2002.p 16.
94
PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria Geral do Processo. 2. ed. São Paulo: LED Editora de direito, 2000. p. 24.

63
Logo, não é uma forma aconselhável para resolver as lides envolvendo o Estado, pois o
interesse público é indisponível.

Finalmente, então, surge a forma jurisdicional, com o Estado-Juiz. No entanto, a


jurisdição enquanto teoria traz do seu nascedouro fortes contornos liberais. A respeito, veja-se
excerto de artigo de Marinoni:95

Os processualistas que definiram essa idéia de jurisdição estavam sob a


influência ideológica do modelo do Estado liberal de direito e, por isso,
submetidos aos valores da igualdade formal, da liberdade individual mediante a
não interferência do Estado nas relações privadas, e do princípio da separação
de poderes como mecanismo de subordinação do executivo e do judiciário à lei.

Veja-se, assim, que os princípios do Estado liberal, como a igualdade formal e a


primazia do direito individual não se coadunam com a sociedade contemporânea em que os
conflitos de massa se proliferam e, muitas vezes, há de se buscar a real igualdade, a material,
na desigualação entre as partes.

Bem assim, tal situação está retratada na própria evolução dos direitos fundamentais.
Nesse estádio, que a doutrina convencionou chamar de primeira dimensão, as garantias
aspiradas diziam respeito à liberdade individual, de empresa e de pensamento. A igualdade
formal bastava em um momento em que os agentes econômicos participavam de um sistema
de livre concorrência. Assim o vemos em Alexy: “Los derechos de defensa del ciudadano frente
al Estado son derechos a acciones negativas (omisiones) del Estado.” 96

Contudo, a sociedade se transformava rapidamente, e, ao Estado, não era mais


suficiente que garantisse somente os direitos de defesa aos cidadãos. A Revolução Industrial,
como efetivamente provocou crescimento econômico, também aumentava cada vez mais a
desigualdade na repartição da riqueza.

No final do século XIX, surgem movimentos sociais e, com eles, novas concepções
filosóficas e econômicas. Karl Marx foi um dos maiores críticos do sistema, então vigente,
diagnosticando a concentração de renda que estava sendo gerada pelo processo de
industrialização, fazendo com que cada vez mais o excedente do tempo de trabalho dos
operários fosse apropriado pelos donos dos fatores de produção. Nas palavras de Pinho: 97

O capitalismo atomizado e concorrencial do início do século XIX cedera lugar a


um capitalismo molecular ou de grandes concentrações econômicas, de forte
tendência monopolística; o Estado abandonara sua passividade de simples
guardião da ordem para interferir, cada vez mais, no campo econômico [...]

Assim, surgem os direitos fundamentais de segunda dimensão, calcados nos ideais


sociais das Constituições do México, 1917, e de Weimar, 1919, demonstrando uma
preocupação para que o Estado, sim, interfira positivamente na sociedade, justamente nos
âmbitos econômico, social e cultural. Veja-se: já falou-se de ações positivas do Estado na
sociedade.

Sobre o assunto, que toca diretamente ao objeto da presente dissertação, a igualdade:


“[...] estes direitos fundamentais, no que se distinguem dos clássicos direitos de liberdade e
igualdade formal, nasceram abraçados ao princípio da igualdade, entendida esta num sentido
material.”98

95
MARINONI, Luis Guilherme. A jurisdição no Estado Constitucional. Revista Processo e Constituição, v. 1, n. 2, p. 133-
212, maio 2005.
96
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.
p. 419.
97
PINHO, Diva Benevides et al. Manual de Economia. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 41.
98
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 518.

64
Nessa quadra, o Estado passa a ter uma participação ativa na sociedade. Na história do
século XX, passamos a conviver com o Welfare State, o Estado de bem-estar social.
Progressivamente, mais recursos públicos são destinados a gastos sociais, como saúde,
educação e previdência social. O Estado passa a ser devedor de prestações positivas da
sociedade, como nos ensina Alexy:

Para el problema de los derechos subjetivos a prestaciones tienen importancia,


sobre todo, las decisiones en las que no solo se habla - como suele suceder - de
obligaciones objetivas Del Estado, sino que, además, se analizan derechos
subjetivos a acciones positivas.99

Repise-se, temos a mudança do paradigma do Estado, de um modelo passivo para um


ativo. Nas palavras de Sarmento,100 destacamos a utilização da palavra ativa “promoção”,
sendo pertinente correlacionar com a intenção de criar ações afirmativas de nosso constituinte
originário, insculpida como objetivo de nossa República,101:

Embora continue sendo essencial proteger as pessoas do arbítrio do Estado, os


poderes públicos são agora concebidos como responsáveis pela promoção e
defesa dos direitos fundamentais, diante dos perigos que rondam as pessoas na
própria sociedade. Isto justificará uma ingerência estatal muito mais profunda e
extensa […]

Ainda, aponta-nos Sarlet uma terceira dimensão dos direitos fundamentais. Nessa, a
titularidade sai do indivíduo passando para a coletividade, o povo e a nação. Ressalta a
importância dos direitos à paz e ao meio-ambiente sadio. Como matiz de sua caracterização,
exigem uma postura eminentemente negativa. Digno de nota, Sarlet os enquadra como
atualização dos direitos da primeira dimensão, adaptados às novas exigências da nova
sociedade contemporânea.

Via de conseqüência, o processo civil, como instrumento à realização dos direitos,


notadamente os fundamentais, não teve outro caminho senão evoluir no mesmo sentido. E,
nesse diapasão, a existência de direitos difusos, coletivos e até mesmo os individuais
homogêneos requer um novo disciplinamento de seu necessário instrumento processual.

E daí houve a idéia de um processo civil coletivo que, com origem nos países da
common law, tem nos valor da força normativa da jurisprudência o seu fundamento. Tenha-se
isso em mente quando se discorre sobre algumas questões trazidas para o anteprojeto, na
medida em que nossa raiz jurídica não está assentada naquele modelo, senão no regime
romano germânico da legalidade.

No Brasil, o curso de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São


Paulo, já em 2003, mesmo antes da apresentação do Código Modelo de Processos Coletivos
para Ibero-América, em 2004 na Venezuela, iniciou as discussões em torno do tema, com a
proposição da elaboração de um anteprojeto próprio, o qual teve sua 1ª versão cunhada ainda
nos idos de 2.005.102 Enviado para o Ministério da Justiça, desde então vem sendo submetido
a debates no meio acadêmico e profissional, no seio das mais diversas entidades, chegando
em janeiro de 2.007 à sua 5ª versão. Ressalte-se que nossa reflexão aprofundada sobre a
matéria se deu pela participação na Comissão Especial criada pela Procuradoria-Geral Federal

99
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002,
p. 422.
100
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 65.
101
Conforme. inc. IV do art. 3º da CRFB: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
102
A íntegra do referido anteprojeto se encontra no sítio do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Disponível
em:http://www.direitoprocessual.org.br/site/index.php?m=enciclopedia&categ=16&t=QW50ZXByb2pldG9zIGRvIEl
CRFAgLSBBbnRlcHJvamV0b3M= . Acesso em 05 set. 2007.

65
da Advocacia-Geral da União103, com relatório apresentado em setembro de 2007, ocasião na
qual tivemos a honra de muito ter aprendido com os demais Membros daquela.

2 ANÁLISE DOS PRINCIPAIS PONTOS DO ANTEPROJETO

Já no seu art. 1º temos o seu objeto, qual seja, o disciplinamento processual, ainda que
observada a subsidiariedade em relação ao vigente código de processo civil, das ações de
mandado de segurança coletivo, ação popular e ação de improbidade administrativa, além das
ações civis públicas, estas rebatizadas com o nome de ações coletivas ativas. Aqui, atente-se
que não houve previsão quanto à inclusão da ação de mandado de injunção, que, a despeito
de ter tido sua eficácia esvaziada por interpretação do Supremo Tribunal Federal, na medida
em que não se evoluiu no sentido de dar o dever ao Juiz de criar a norma em concreto ao caso
que lhe é posto a decidir, é uma ação constitucional com nítidos contornos difusos e coletivos.

Prosseguindo, são tratados no seu art. 2º os princípios aplicáveis à tutela coletiva,


dentre eles destacando-se o da instrumentalidade processual, o ativismo judicial e a dinâmica
do ônus da prova.

A respeito disso, importante corrente no atual processo civil brasileiro é a capitaneada


pelo Ilustre Professor Titular de Processo Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Dr. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira104. Em síntese, o processo é visto como um centro público
de resolução de problemas, no qual todos os participantes têm o dever de cooperar na solução
da lide. A isso o professor chamou de processo cooperativo. Em artigo publicado na Revista da
Faculdade de Direito daquela Universidade, intitulado “A garantia do contraditório”, o professor
assim sintetiza suas idéias:

[...] Ao mesmo tempo, nessa mesma linha de evolução, consentânea com a


consciência do caráter público do processo, com a necessidade de uma solução
mais eficiente e rápida do litígio, insere-se o valor da efetividade [...] Numa
época em que não se pode mais aspirar a certezas, impõe-se perseverar em
busca do ponto de equilíbrio, porque tanto a colaboração dos sujeitos do
processo quanto a efetividade mostram-se realmente importantes para que o
Poder Judiciário melhor se legitime junto à sociedade civil. O verdadeiro
equacionamento do problema só começará a surgir com a radical transformação
da sociedade brasileira, quando forem superadas as causas materiais mais
profundas que determinam a demora irrazoável e exasperante da duração do
processo e se obtiver prestação jurisdicional de qualidade. Esse é o grande
desafio do novo milênio.

No seu art. 4º, o Anteprojeto elenca as espécies de direitos passíveis de tutela pelo
disciplinamento proposto, quais sejam, os direitos difusos, os coletivos e os individuais
homogêneos. Nesse sentido deixa-se a impressão de que, ao tratar indistintamente as três
modalidades, o anteprojeto não atenta para o fato de que os direitos individuais homogêneos,
tendo, por definição, titulares bem definidos, unidos por uma origem comum, não podem ser
beneficiados por institutos que passam a ser implantados, como a possibilidade de inversão do
ônus da prova, previsto no § 2º de seu art. 11, a execução compulsória, insculpida em seu art.
15 e a isenção de pagamento de custas e verba honorária pelo autor, trazida no seu art. 17,
pois se tratam de interesses perfeitamente disponíveis, nisso distoando dos direitos difusos e
coletivos.

Outra inovação em relação à atual legislação processual civil já em vigor é trazida no


seu art. 5º, a saber, a interpretação extensiva do pedido por parte do Magistrado. Veja-se
que, notadamente em direitos difusos, o dano pode não ser mensurável ab initio, senão no
decorrer da lide, como a contaminação de rios, com a conseqüente morte da fauna, provocada
pela poluição industrial, o que pode ocasionar imposições de fazer ou não fazer, por exemplo,
em relação a itens não previstos quando da apresentação da peça vestibular. Mas, aqui, tem a
objeção quanto à aplicação de tal dispositivo aos direitos individuais homogêneos, em virtude

103
Portaria nº 595, do Excelentíssimo Dr. Procurador-Geral Federal, datada de 08/08/2007.
104
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

66
de, nessas ações, o pedido ter perfeitas condições de ser certo e determinado, podendo dita
previsão a condenar o demandado, geralmente um ente público, em verba que, sequer, os
autores postularam.

Já no seu art. 7º fica expresso que não haverá litispendência entre as ações coletivas e
as individuais, o que nem poderia, dada a disponibilidade dos autores, mormente nas que
envolvem direitos coletivos e individuais homogêneos. Contudo, não havendo a opção dos
autores nas suas ações individuais pela suspensão de seus feitos, os efeitos benéficos a eles
não serão estendidos. No mesmo artigo é dado ao demandado o dever de informar ao juízo da
existência de ações coletivas, para os efeitos da opção acima, sob pena de, mesmo na
hipótese da ação individual ser julgada improcedente, o autor dessa poder se beneficiar dos
efeitos daquelas. Nesse ponto, julgamos extremamente necessária reforma, dado que a coisa
julgada constitucional está seriamente ameaçada, uma vez que o trânsito em julgado da ação
individual não se faria sentir para aquele autor individual.

No art. 11 temos uma bela inovação no sistema processual brasileiro, qual seja, a
adoção da prova estatística ou por amostragem ao julgamento. Nos EUA, vige, nos tribunais, a
evidência estatística para se fundamentar uma ação de indenização por discriminação ao
acesso do mercado de trabalho por grupos discriminados, como visto acima. A origem da
discriminação indireta também é exposta por Rios105, da jurisprudência norte-americana, por
ocasião do julgamento do caso Wards Cove Packing Company, Inc. V. Atonio106, no qual os
trabalhadores de uma empresa ajuizaram uma ação coletiva alegando estarem sendo
discriminados indiretamente, visto que determinado grupo, histórica e estatisticamente,
exercia as funções de menor destaque, e, conseqüentemente, menor remuneração. 107 Nesse
caso, ficou assentado pela Suprema Corte americana, primeiramente, a necessidade de o
Judiciário também atentar para a discriminação indireta, mas que, para isso, dever-se-ia exigir
do demandante a identificação da prática ofensiva; logo após, à defesa, caberia alegar algum
motivo justificador de tal atitude, retornando ao autor o ônus da indicação de uma atitude de
menor impacto e com a mesma eficiência daquela atitude tomada pelo réu acusado, necessária
que tenha sido sua adoção para o bom desempenho do seu negócio. Reitera-se, logo poder
contar que nossa jurisprudência pátria adote tal apoio estatístico nas suas decisões também, o
que lhe dará uma maior conexão com os fatos sociais. Da mesma maneira, nossa
jurisprudência deveria buscar nessa fonte subsídios para o julgamento das lides que lhe são
apresentadas, reforçando a conectividade social necessária à nossa matriz jurídica. Agora
parece que vamos, pelo menos em esfera de direitos coletivos, trilhar nesse sentido.

Outro ponto que merece reforma é a faculdade dada ao juiz no § 5º do art. 11 de


solicitar a elaboração de laudos aos órgãos públicos. Ora, assim se concretizando,
os órgãos públicos passariam a ser departamentos de perícia em benefício de causas privadas,
e sem nenhuma remuneração, o que inviabilizaria a continuidade de tais serviços, mantidos
que o são para o assessoramento das entidades em suas finalidades institucionais. Para isso
já existem os Peritos à disposição do Juízo, que, no presente caso, podem ter sua
remuneração custeada, senão ao menos antecipada, pelo Fundo próprio criado pelo Código,
como, aliás, já previsto no próprio Anteprojeto, em seu art.

Destaque também se dá ao § 4º do seu art. 13, no qual faz constar que a competência
do juízo prolator não interferirá na eficácia da coisa julgada erga omnes. Ora, não seria o caso
aqui, em homenagem à competência de Tribunais Nacionais para decidirem sobre questões
que venham afetar o país inteiro, de reportar-se ao rt. 16 da lei da ação civil pública, com sua
redação dada pela lei nº 9.494/97, limitando a eficácia à limitação territorial do órgão prolator
? Pensa-se que sim.

105
RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e o direito da antidiscriminação: discriminação direta, discriminação
indireta e as ações afirmativas no direito constitucional estadunidense. Tese de Doutorado em Direito, Faculdade de Direito,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004, p. 129-130.
106
490 U.S. 642 (1989).
107
490 U.S. 642 (1989).

67
Vale registrar que o seu art. 14 dá como regra a não-atribuição de efeito suspensivo ao
recurso contra a sentença, na esteira do próprio atual código de processo civil, de restringir ao
máximo a suspensividade provocada pelos incidentes, em prol da efetividade da duração
razoável do processo, novel direito fundamental expresso no art. 5º da Carta Maior, em seu
inciso LXXVIII. Contudo, seu § único retira a remessa de ofício nas sentenças concessivas de
mandado de segurança, com o que não concordamos, na medida em que no próprio remédio
individual continua tal previsão.

Ainda preocupado com os interesses do Estado brasileiro, não vemos no seu art. 16 as
vedações e previsões especiais para pagamento aplicáveis aos entes públicos previstas no art.
100 da Carta Mater, como a proibição de desembolso sem expedição de precatório ou de
requisição de pequeno valor e a impossibilidade de execução provisória contra tais entes, como
já assentado pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.108

Também excluiríamos o § 3º do seu art. 17, pois a previsão de “prêmio” a autor de


demanda coletiva pode causar uma cultura de lide na sociedade que, supõe-se que seria
altamente nefasta à pacificação social, com a criação de “despachantes” de lides, com a
criação de uma nova profissão, quase agenciadores de lides, além de incentivar oficialmente o
exercício de profissão não-regulamentada.

Ponto de profunda análise é o rol dos legitimados, previsto no seu art. 20, chegando a
dar tal condição às pessoas físicas. Ora, como se pode impetrar ações coletivas por pessoas
físicas e a disponibilidade dos interesses individuais homogêneos, onde fica ? Mais, em
podendo ajuizar, também poderiam renunciar as pessoas físicas a tais direitos disponíveis por
terceiros ? Tal previsão não merece subsistir.

Um importante ponto é a composição do Fundo ao qual acorrerão recursos previstos no


próprio anteprojeto. Dada sua importância, pensamos que tal não poderá ficar limitada à
presença do MP e a “representantes da comunidade”, art. 27, senão pela participação de
outros segmentos institucionais do Estado, senão da Advocacia Pública e da OAB.

No tocante ao seu art. 30, devem estar expressas as prerrogativas previstas em lei
complementar dos Membros da Advocacia Pública e MP, senão pelo fato de tal Código vir
mediante lei ordinária, não podendo revogar tal matéria.

Uma final ressalva fazemos em relação ao § 2º do seu art. 33 , no qual faz-se mister a
remissão às regras próprias do art. 100 da Carta Maior e aos art. 730 e seguintes do CPC
quando o executado for ente público, não podendo estes se submeter à metodologia aplicável
aos executivos entre privados.

3 CONCLUSÃO

À guisa de consolidação, sem nenhuma pretensão de ter esgotado a análise de tal


instituto, gizou-se a importância da iniciativa de tal anteprojeto, a qual credita em grande
parte à Professora Ada Pellegrini Grinover; contudo, expressa-se nossa preocupação quanto a
alguns pontos constantes, os quais não diferenciam os direitos coletivos nitidamente, na
medida em que o disciplinamento aos difusos e coletivos, em muitos pontos, não pode ser o
mesmo conferido aos individuais homogêneos, pelos motivos já expendidos.

Por fim, o Estado, sujeito passivo que será da grande maioria de tais ações coletivas,
não pode perder todas suas prerrogativas, sob pena de, toda a coletividade, ainda ter de
contribuir mais aos cofres públicos para poder saldar seus compromissos daí decorrentes.
Enfim, devemos transformar esse futuro código no Código da Coletividade, mas não
esquecendo de que o Estado é o maior ente coletivo na nossa sociedade.

108
Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário 463.9369, DJU de 16/06/2.006.

68
4 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002.

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2003.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed., v. II. São Paulo: Bookseller,
2002.

MARINONI, Luis Guilherme. A jurisdição no Estado Constitucional. Revista Processo e Constituição, v.


1, n. 2, p 133-212, maio 2005.

PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria Geral do Processo. 2. ed. São Paulo: LED Editora de direito,
2000.

PINHO, Diva Benevides, et al. Manual de Economia. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e o direito da antidiscriminação: discriminação direta,


discriminação indireta e as ações afirmativas no direito constitucional estadunidense. Tese de Doutorado
em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Processo de Execução e Processo
Cautelar. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

69
QUESTÕES PROCESSUAIS NA APURAÇÃO DO DANO MORAL
NO CONTEXTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Jair José Perin


Advogado da União
PRU 4ª Região

Sumário: 1 Introdução 2 Histórico sobre a responsabilidade civil do


Estado 3 Diferença entre responsabilidade subjetiva e responsabilidade
objetiva 4 Fundamento atual da responsabilidade objetiva do Estado 5 A
desnecessidade de denunciação da lide e a ação regressiva 6 O amparo
para o dano moral e a relatividade do direito 7 A incompatibilidade da
teoria da responsabilidade objetiva frente ao dano moral ( teoria
subjetiva) 8 Considerações finais – 9 Bibliografia

1 INTRODUÇÃO

O processo é o instrumento por intermédio do qual se busca a realização do direito. O


doutrinador Arruda Alvim109, citando as palavras de Alfredo Buzaid constantes na Exposição de
Motivos ao Código de Processo Civil, consigna que “o escopo do processo é, na realidade, não
exclusivamente a consecução de um interesse privado das partes, mas principalmente de um
interesse público de toda a sociedade”.

O processo não só por proteger o interesse privado das partes (o bem da vida
almejado), mas principalmente por tutelar um interesse público de toda a sociedade, está
impregnado de normas cogentes, as quais suplantam as normas de caráter dispositivas. As
normas cogentes não podem ser afastadas pelas partes e pelo juiz, enquanto que as normas
dispositivas podem ser afastadas pelas partes desde que haja manifestação. 110

Visualiza-se que a necessidade da presença marcante de normas cogentes, na evolução


do direito processual, se deve ao fato de que, aproveitando-se das palavras do doutrinador
Ovídio A. Baptista da Silva111, a incerteza predomina na relação processual. Eis o que consigna
o doutrinador citado ao falar sobre o processo como relação jurídica de direito público:

A fecundidade, para a teoria processual, desta nova visualização do fenômeno jurídico,


é sem dúvida inegável. A incerteza é, indiscutivelmente, a marca essencial da relação
processual. Diz Goldschmidt, com toda a razão: A incerteza é consubstancial às relações
processuais, posto que a sentença judicial nunca poderá ser prevista com segurança (ob. Cit.,
pág. 66). Realmente, só existe jurisdição enquanto há incerteza para as partes a respeito do
conteúdo da futura sentença que haverá de dizer qual delas merece a proteção estatal por ser
titular do interesse protegido pela ordem jurídica. Toda sentença implica juízo e decisão, o que
significa, sempre, a possibilidade de que o julgador decida-se por desconhecer e negar a uma
das partes o direito que a esta lhe parecia evidente e indiscutível. Perante o processo, não
pode haver nada evidente e indiscutível, uma vez que a previsibilidade absoluta e matemática
do futuro resultado contido na sentença eliminaria, por si só, o próprio julgamento, que
implica, quanto à pessoa do julgador, num decidir-se entre duas alterantivas possíveis. Se a
possibilidade de decisões antagônicas desaparecesse, o próprio fenômeno jurisdicional estaria
eliminado.

Para garantir uma relação processual adequada às incertezas que pairam sobre o bem
da vida pleiteado em cada ação judicial, no caso do Brasil, o direito processual civil se vale das

109
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. 9. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 91.
110
ALVIM, op. cit., p. 109.
111
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. v.1 – Processo de conhecimento. 4. ed. São Paulo: RT, 1998
p. 19.

70
seguintes fontes principais112, sem ignorar os costumes, a doutrina e a jurisprudência: em
primeiro lugar, a Constituição Federal, fonte primeira que regula os princípios fundamentais
que regem o processo civil, dos quais podemos destacar os do devido processo legal (art. 5º,
LIV), da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV), da proibição de juízos de exceção
(art. 5º, XXXVII), do juiz e promotor natural (art. 5º, LIII), do contraditório e ampla defesa
(art. 5º, LV), da proibição da prova obtida ilícitamente (art. 5º, LVI), da motivação das
decisões judiciais (art. 93, IX), etc. Depois da Constituição Federal, o Código de Processo Civil
é a lei federal ordinária que rege o processo civil brasileiro, sendo aplicável subsidiariamente
aos processos regulados em leis extravagantes, desde que haja lacuna e com ela seja
compatível a norma do CPC que se queira aplicar.

Dentre os princípios constitucionais acima enumerados, inquestionavelmente, o mais


expressivo é o princípio do contraditório, para garantir uma relação processual consetânea
com a incerteza que permeia qualquer demanda judicial. Assim a doutrina Ovídio Batista da
Silva113:

O princípio da audiência bilateral, também conhecido como princípio do


contraditório, é certamente o princípio cardeal para a dterminação do próprio
conceito de função jurisdicional. Como afirma Robert Wyness Millar, em obra
clássica sobre este assunto, o princípio da audiência bilateral (auditur et altera
pars), absolutamente inseparável da função estatal de administração da justiça,
existiu tanto no direito romano quanto no direito germânico primitivo (Los
principios formativos del procedimento civil, trad. Argentina de 1945, Buenos
Aires, pág. 47).
[...]
O princípio do contraditório, ou a audiência bilateral, dá expressão a um
princípio de natureza constitucional no direito brasileiro, que é o direito de
defesa, ou direito ao devido processo legal, [...].
[...]
O princípio do contraditório, por outro lado, implica um outro princípio
fundamental, sem o qual ele nem sequer pode existir, que é o princípio da
igualdade das partes na relação processual. Para a completa realização do
princípio do contraditório, é mister que a lei assegure a efetiva igualdade das
partes no processo, não bastando a formal e retórica igualdade de
oportunidades.

Dentro dessa ótica, permite-se dizer que a dinâmica processual, inclusive no aspecto da
tese a ser adotada, precisa ser aquela que mais se ajuste a permitir que o devido processo
legal, no atinente, principalmente, aos princípios e regras processuais estabelecidas ou
decorrentes da Constituição Federal e Leis Processuais, sejam respeitados quando da busca da
melhor prestação jurisdicional em relação ao bem da vida almejado.

Dito isso como introdução, passa-se a análise da questão das implicações processuais
que decorrem da averiguação e apuração do dano moral sob a ótica da responsabilidade civil
do Estado. Logicamente que para tanto, outros aspectos e pontos considerados fundamentais
serão abordados para tentar apresentar a dimensão e propósito do presente estudo.

2 HISTÓRICO SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

A responsabilidade civil do Estado, no decorrer da evolução do direito, passou por


diversas fases, começando por aquela em que o Estado não podia ser responsabilizado por
qualquer lesão ao direito de alguém, já que na concepção absolutista, o Estado não estava na
mesma relação das pessoas físicas e jurídicas, mas sim acima. Essa fase da irresponsabilidade
perdurou praticamente durante todo o decorrer do século XIX. 114

112
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil
extravagante em vigor. 3. ed. São Paulo: RT, 1997 p. 247.
113
SILVA. Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. Vol. 1 – Processo de conhecimento. 4ª ed. São Paulo: RT,
1998, p. 67 e 69.
114
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 418-431.

71
Passou, posteriormente, para a fase da responsabilidade civilista, surgida na França no
século XIX, quando da discussão sobre a conceituação de atos de império e de gestão, em que
começou a ser firmada a responsabilidade da administração pública por danos provenientes de
atos de gestão, no caso de culpa ou dolo do agente público.

Como evolução da teoria da responsabilidade civilista, passa-se para a fase da


publicização da culpa administrativa, criação do Conselho de Estado francês. Essa teoria inova
profundamente, pois se passa para a responsabilidade do Estado independentemente da falta
do agente público, quando originária da Administração, pelo mau funcionamento do serviço
público ou pela sua inexistência, cuja decorrência deve ser concretamente avaliada e
analisada. Essa fase marca a transição para a atual fase da responsabilidade objetiva do
Estado. O fato que materializou essa nova concepção foi o julgamento do caso Blanco em
1873, na França, em que somente as regras de direito público foram aceitas para a solução do
caso, porquanto o Estado aparecia como causador de dano administrado. Nesse tipo de
responsabilidade, a idéia culpa é substituída pela de nexo de causalidade, entre o
funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado. É indiferente que o
serviço público tenha funcionado bem ou mal, de forma regular ou irregular. Não há
necessidade de apreciação do dolo ou culpa. É a chamada teoria do risco, porquanto tem como
pressuposto de que a atuação do poder público envolve um risco de dano, que lhe é ínsito.

Pela teoria do risco objetivo, figura o entendimento de que ao lesado não interessa
conhecer o responsável pelo dano, ele almeja o ressarcimento, desde que estabelecido o nexo
causal entre ele e o Estado.115

Observa-se que a teoria do risco envolve duas modalidades: a do risco administrativo,


caracterizada esta por admitir as causas excludentes da responsabilidade do Estado: culpa da
vítima, culpa de terceiros, caso fortuito ou força maior; e do risco integral, o qual não admite
as excludentes aceitas pela teoria do risco administrativo.116

3 DIFERENÇA ENTRE RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E OBJETIVA

Na responsabilidade civil subjetiva verifica-se que estão presentes a ação ou omissão


voluntária, relação de causalidade ou nexo causal, dano e, finalmente, culpa. A ação ou
omissão, para gerar responsabilidade subjetiva, deve estar calcada, respectivamente, na
prática de um ato que não se deva efetivar ou na não-observância de um dever de agir. A
relação de causalidade é o vínculo que une a conduta do agente ao dano, sendo que
inexistindo este não haverá possibilidade de indenização do ato ilícito. A culpa civil abrange
não somente o ato ou conduta intencional, mas também os atos ou condutas eivados de
negligência, imprudência ou imperícia, a culpa em sentido estrito (quase delito).117

Por outro lado, a responsabilidade objetiva desconsidera a culpabilidade e


imputablidade, bastando ser constatada a existência dos requisitos de causalidade e dano.
Dessa forma o sujeito é responsável, por força de previsão legal, pelos riscos ou perigos que
sua atuação promover, ainda que colocada toda diligência para evitar o dano. Apenas ficará
afastada a responsabilidade caso houver culpa exclusiva da vítima, força maior, caso fortuito e
fato de terceiro, haja vista que nesses casos há impedimento da concretização do nexo
causal.118

Vigora, com prevalência, no nosso ordenamento jurídico a regra geral de que o dever
ressarcitório pela prática de atos ilícitos decorre da culpa, ou seja, da reprovabilidade ou
censurabilidade da conduta do agente. O comportamento do agente será reprovado ou
censurado quando, ante circunstâncias concretas do caso, se entende que ele poderia ou
deveria ter agido de modo diferente. O ato ilícito qualifica-se pela culpa. Não havendo culpa,
não haverá, em regra, qualquer responsabilidade. À luz do art. 186 do Código Civil, ocorre ato

115
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: Contratos em espécie e responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2001. p. 497-533
116
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 560-573.
117
VENOSA, op. cit., p. 497-533.
118
VENOSA op. cit.

72
ilícito quando alguém, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito ou causar dano, ainda que exclusivamente moral, a outrem, em face do que será
responsabilizado pela reparação dos prejuízos. 119

Em virtude da constatação de que, em alguns casos, havia a necessidade de evolução


em termos de responsabilidade civil, a fim de melhor atender aos reclamos da sociedade, seja
por motivo de avanços tecnológicos, seja por outras razões, a legislação começou a prever e
contemplar a responsabilidade civil sob o enfoque da teoria do risco, ou seja,
independentemente da existência de culpa. Com a materialização do dano, o causador deste
deverá indenizar, por imposição legal, mesmo que não tenha agido com dolo ou culpa no
estrito senso. A vítima apenas deverá provar o nexo de causalidade, o dano e a autoria, sem
que se investigue em relação a esta pessoa a sua conduta dolosa ou culposa. Portanto, a
responsabilidade objetiva calca-se, funda-se e justifica-se no risco.120

No caso da responsabilidade objetiva do Estado, o risco é suportado de forma repartida


entre todos os cidadãos. O princípio da igualdade impera, porquanto os prejuízos a alguns
particulares causados pelas pessoas jurídicas de direito público advindos de suas atividades em
prol de toda a sociedade devem ser suportados por essa mesma coletividade de forma
isonômica. Evita-se, assim, que algumas pessoas integrantes da coletividade politicamente
organizada sejam oneradas mais do que outras. A responsabilidade civil do Estado está
prevista pelo direito civil e direito público, este com prevalência, seja no ramo do direito
constitucional, como no do direito administrativo e no do direito internacional público. 121

4 FUNDAMENTO ATUAL DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO

A Constituição atual da República Federativa do Brasil adotou a teoria da


responsabilidade objetiva, na modalidade do risco administrativo. O art. 37, § 6º, dispõe:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de


serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,
causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos
casos de dolo ou culpa.122

A responsabilidade objetiva do Estado adotada pela Constituição Federal está assentada


na teoria do risco administrativo. Havendo dano causado pela administração pública em face
da vítima, esta terá direito à reparação, mesmo que não exista culpa daquela. Somente ficará
afastada essa responsabilidade se a administração pública conseguir provar culpa exclusiva da
vítima, caso fortuito e força maior; atenuação haverá se houver culpa concorrente. A teoria do
risco administrativo centra-se, alicerça-se, em cima do risco que a atividade pública pode
produzir para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da
comunidade, impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Para compensar os
administrados prejudicados, os demais integrantes dessa comunidade, dentro do princípio da
solidariedade e de justiça distributiva, concorrem para a reparação do dano, por intermédio da
Fazenda Pública.123

De acordo com o dispositivo constitucional, as entidades estatais e seus


desmembramentos administrativos, bem como as pessoas físicas e jurídicas, sejam entidades
paraestatais, ou concessionárias e permissionárias, que exerçam funções públicas delegadas,
respondem pelos danos causados a terceiros por seus agentes, independentemente da prova
de culpa no cometimento da lesão. Para a indenização dos atos e fatos estranhos à atividade
administrativa observa-se o princípio geral da culpa civil, manifestada pela imprudência,
negligência ou imperícia na realização do serviço público que causou ou ensejou o dano. 124

119
DINIZ, Maria Helena. Curso Direito Civil Brasileiro. v.17 São Paulo: Saraiva, 2003. p. 40.
120
Ibidem.
121
DINIZ, Maria Helena.Op. cit., p. 40.
122
BRASIL. Constituição (1988). 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999.
123
Ibidem.
124
MEIRELLES, op. cit., p. 562-563.

73
Existe a possibilidade de o Estado, caso condenado a indenizar o administrado,
ingressar com ação regressiva, de rito ordinário, nos termos do Código de Processo Civil,
contra o agente público, caso este tenha sido o responsável, por dolo ou culpa, pela
condenação do Ente Público. Para ajuizar essa ação, portanto, há a necessidade de prévia
condenação da pessoa estatal à indenização de terceiros por ato lesivo do agente, e anterior
constatação, em processo regular, em que onde sejam respeitados todos os princípios do
devido processo legal, do comportamento doloso ou culposo do agente. 125

A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o Regime Jurídico dos
Servidores Públicos, confirma o exposto quando expressa:

Art. 122. A responsabilidade civil decorre de ato omissivo ou comissivo, doloso


ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário ou a terceiro.
[...]
§ 2º Tratando-se de dano causado a terceiros, responderá o servidor perante a
Fazenda Pública, em ação regressiva.

5 A DESNECESSIDADE DE DENUNCIAÇÃO DA LIDE E AÇÃO REGRESSIVA

Em consonância com a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, não mais é


obrigatória, e nem aceitável, a denunciação da lide nos termos do art. 70, III, do CPC, na
própria ação indenizatória, para funcionar como o direito de regresso. A razão para a
sustentação desse entendimento reside no fato de que na ação indenizatória baseada na
responsabilidade objetiva do Estado, segundo a teoria do risco administrativo, somente é
afastada a responsabilidade do Ente Estatal caso este prove a culpa exclusiva da vítima, de
terceiros, caso fortuito ou força maior. Não existe, por extensão, espaço nessa relação
processual para discutir a culpa ou o dolo do agente público que porventura tenha sido o
causador do dano.126

O não cabimento de denunciação da lide no caso em que o Estado deve responder de


forma objetiva, na modalidade do risco administrativo, reside, portanto, no fato de que o
agente causador do dano responde à luz da responsabilidade civil subjetiva por meio da prova
do dolo ou culpa. Assim, a admissão da denunciação da lide desvirtuaria o instituto da
responsabilidade objetiva.127 A respeito, veja-se as seguintes jurisprudências:

CONSTITUCIONAL. Responsabilidade Civil do Estado. Seus pressupostos. 2)


Processual Civil. A ação de indenização, fundada na responsabilidade objetiva do
Estado, por ato de funcionário (Constituição, Art. 107 e parágrafo único), não
comporta obrigatoriamente denunciação a este, na forma do art. 70, III, do
Código de processo Civil, para apuração de culpa, desnecessária a satisfação do
prejudicado.128

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ART. 70, III, DO CPC. AÇÃO


DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DENUNCIAÇÃO
À LIDE DO AGENTE PÚBLICO PRETENSAMENTE CAUSADOR DO DANO.
DESNECESSIDADE. TEORIA OBJETIVA ABARCADA PELA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL.
Tendo a Constituição Federal abarcada a teoria objetiva da responsabilidade,
todo dano ocasionado ao particular, por servidor público, há de ser ressarcido,
independentemente da existência de dolo ou culpa deste. Assim, pela via
oblíqua, forçoso é de se concluir que a denunciação à lide, in casu, embora
recomendável, é desnecessária à satisfação do direito do prejudicado, e não
afasta a possibilidade de o denunciante requerer o direito alegado,
posteriormente, na via própria, haja vista não ter o art. 70, inc. III, do Estatuto

125
PIETRO, op cit., p. 430-431.
126
MELLO Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997 p. 642-644.
127
ANJOS, Luís Henrique Martins dos; JONE, Walter. Manual de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001. p. 356.
128
Supremo Tribunal Federal, RE- 93880/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Décio Miranda, DJ 05.02.82, p. 10443.

74
Processual Civil, norma do direito instrumental, o poder de aniquilar o próprio
direito material. Precedentes. Agravo regimental improvido.129

ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AGRAVO RETIDO. DENUNCIAÇÃO A LIDE.


ACIDENTE DE AUTOMÓVEL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO.
INDENIZAÇÃO. LUCROS CESSANTES.
I. Em ação de responsabilidade civil por ato omissivo ou comissivo do servidor
da pessoa jurídica de direito público, a denunciação da lide pode ser indeferida
pelo juiz. Nessa ação, incumbe ao autor provar a ocorrência do fato lesivo e o
dano daí decorrente. A culpa do servidor não é discutida. A Constituição Federal
assegurou a pessoa de direito público a ação de regresso, independente de
denunciar a lide.
2. Abalroando o motorista do carro oficial, por não atentar para as condições de
tráfego, no momento, o veículo (táxi), que trafegava pela faixa que lhe era
própria, em situação regular, responde o Estado pela indenização.
3. Tendo o automóvel, táxi, permanecido parada, na oficina, para conserto,
impossibilitando o seu proprietário de auferir renda com a sua utilização,
obrigado está o Estado a pagar os lucros cessantes.
4. Agravo retido e apelação improvidos.130

DIREITO ADMINISTRATIVO. REPARAÇÃO DE DANOS DECORRENTES DE


COLISÃO DE MOTOCICLETA COM VIATURA DO EXÉRCITO BRASILEIRO.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA UNIÃO. DENUNICAÇÃO DA LIDE DOS
MILITARES RESPONSÁVEIS. INVIABILIDADE.
A denunciação à lide dos militares envolvidos no acidente implicaria em evidente
prejuízo ao apelado, pois procrastinaria o reconhecimento de um legítimo direito
da vítima, em razão da responsabilidade objetiva do Estado, fazendo com que
dependa de solução de um outro conflito intersubjetivo de interesses, entre o
Estado e os militares.131

De acordo com o doutrinador Humberto Theodoro Júnior 132, pela sistemática do Código
de Processo Civil, a denunciação da lide é medida obrigatória, que leva a uma sentença sobre
a responsabilidade de terceiro em face do denunciante, juntamente com a solução normal do
litígio de início deduzido em juízo, entre autor e réu. Consiste em chamar o terceiro
(denunciado), que mantém um vínculo de direito com a parte (denunciante), para vir
responder pela garantia do negócio jurídico, caso o denunciante saia vencido no processo.

Como se vê, existe substancial diferença entre a denunciação da lide prevista na Lei
Processual brasileira e a ação regressiva constante no art. 37, § 6º da Carta da República
Federativa do Brasil, haja vista que nesta, primeiro o Poder Público responde objetivamente à
luz da teoria do risco administrativo, e caso condenado, em provando a culpa ou dolo do
agente público, ingressa com uma ação contra este.133

6 O AMPARO PARA O DANO MORAL E A RELATIVIDADE DO DIREITO

Feitas as considerações acima, cabe enfrentar a problemática da indenização por dano


moral frente à atual sistemática de processamento dos pedidos de indenização por danos
decorrentes da responsabilidade objetiva agasalhada pelo texto constitucional.

A Constituição Federal de 1988, refletindo a evolução do direito nacional e internacional


em relação ao ser humano como indivíduo em si, ou considerado coletivamente, garantiu a
inviolabilidade de direitos que o Poder Constituinte Originário reconheceu como essenciais, os
quais, na sua grande maioria, encontram-se arrolados no art. 5º. Esses direitos fundamentais

129
Superior Tribunal de Justiça, Segunda Turma, Decisão de 20/11/2001, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento –
396230, Processo nº 2001.00.82346-0/BA.
130
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Terceira Turma, Relator Juiz Tourinho Neto, Apelação Cível no Processo nº
1989.01.09213-1/DF, publicado no DJ 04/06/1990, p. 11755.
131
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Terceira Turma, Relatora Juíza Luíza Dias Cassales, Apelação Cível no Processo
nº 94.04.39728-8/RS, publicado no DJ DE 14/10/1998, p. 580.
132
THEODORO JÚNIOR. Humberto. Curso de direito processual civil. 20. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
133
ANJOS; Jone, op. cit., p. 355-356.

75
fazem parte daquele núcleo constitucional imodificável e inatingível pelo Poder Derivado, seja
por intermédio de emenda constitucional, ou outro modo de reforma da Constituição Federal,
porquanto constituem cláusulas pétreas nos termos do § 4º do art. 60. Somente por meio de
outro poder constituinte originário isso será possível, o que não deverá ocorrer, haja vista
constituir direitos conquistados pela própria evolução da humanidade e dos estados
politicamente organizados, principalmente dos estados democráticos de direito.

Como forma de garantir e dar efetividade à inviolabilidade dos direitos fundamentais,


consagrados constitucionalmente, a Constituição Federal prevê, além de outros, a possibilidade
de ser pleiteada a indenizabilidade não só do dano patrimonial, mas também do dano moral.
Os incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal134 dispõem, respectivamente:

é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização


por dano material, moral ou à imagem; [...]
são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação.

Por estarem previstos no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, são


considerados direitos fundamentais, aos quais deve ser dado o máximo de concretização
material, já que desfrutam de aplicabilidade imediata, de acordo com o expresso no parágrafo
primeiro desse artigo. Cabe trazer as considerações do doutrinador José Afonso da Silva 135, a
respeito da aplicabilidade e eficácia das normas que contêm os direitos fundamentais, assim
leciona:

A eficácia e aplicabilidade das normas que contêm os direitos fundamentais


dependem muito de seu enunciado, pois se trata de assunto que está em função
do Direito positivo. A Constituição é expressa sobre o assunto, quando estatui
que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata. Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque a
Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de
algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados dentre os
fundamentais. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos
fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade
imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a
sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que
mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios
programáticos e de aplicabilidade indireta, mas são tão jurídicas como as outras
e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem
eficácia mais ampla, mais se tornam garantias de democracia e do efetivo
exercício dos demais direitos fundamentais.

Esses direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal exigem do Estado, por


vezes, uma atuação negativa, no sentido de não agredir e/ou desrespeitar a esfera individual
da pessoa ou da coletividade considerada, e, em outras situações, uma atitude positiva para
dar concretude às expectativas das pessoas e da sociedade.

Essas previsões constitucionais “colocaram por terra” todas vacilações que existiam na
doutrina e na jurisprudência, a respeito do cabimento ou não de indenização por dano moral.
O dano moral, diversamente do dano material que é concreto, é mais sutil, em virtude de que
envolve ataques aos sentimentos humanos, como a honra, a dignidade e a reputação.

Porém, essa previsão constitucional da possibilidade de ser pleiteada a indenização por


dano moral, quando houver violação à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das
pessoas, não pode ser encarada de forma simplista, devendo ser levado em consideração
diversos fatores, valores em conflito e circunstâncias envolventes, a fim de ser um instrumento
de aceitação e de resignação por toda a sociedade.

134
BRASIL. Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999.
135
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

76
Há que se ter presente que a Constituição Federal impõe ao Estado e à sociedade o
dever de garantir não somente os direitos de primeira geração - a vida, a liberdade, associação
etc., mas também os de segunda (o direito ao trabalho, à saúde e à educação etc.-, e de
terceira - direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente etc.-; ou seja, houve um
abandono da idéia individualista, passando a existir uma inquietude social mais abrangente.
Isso demanda, efetivamente, para o Estado uma preocupação global, a fim de não ocorrer
maior valorização de determinados direitos em prejuízo de outros. Logicamente que a
viabilização dos direitos de segunda, terceira, e até de quarta geração são, estes reconhecidos
por apenas alguns doutrinadores e refletem diretamente sobre os de primeira geração, estes
também, repercutem em relação às demais gerações de direitos. Na verdade, percebe-se que
existe uma verdadeira interação e interdependência nessas gerações de direitos. O doutrinador
Alexandre de Moraes nos traz as seguintes lições:136

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal,


portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais
direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou
convivência das liberdades públicas).

Dessa forma, quando houver conflitos entre dois ou mais direitos ou garantias
fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da
harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o
sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional no âmbito
de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro
significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.

Apontando a relatividade dos direitos fundamentais, Quiroga Lavie afirma que os


direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela
Constituição, sem, contudo desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como
garantia que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito.

À própria Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, expressamente, em seu
art. 29 afirma que:

toda a pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela pode
desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício de seus direitos
e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estarão sujeitas às limitações
estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito dos direitos
e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem
pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. Estes direitos e
liberdades não podem, em nenhum caso, serem exercidos em oposição com os
propósitos e princípios das Nações Unidas. Nada na presente Declaração poderá
ser interpretado no sentido de conferir direito algum ao Estado, a um grupo ou
uma pessoa, para empreender e desenvolver atividades ou realizar atos
tendentes à supressão de qualquer dos direitos e liberdades proclamados nessa
Declaração.

O advogado Mário Lúcio Quintão Soares nos reporta: 137

A Constituição brasileira, procurando ser um instrumento de mudança social,


preconiza, expressamente, princípios basilares de direitos humanos, como:
soberania, cidadania, dignidade humana e valores sociais do trabalho; a
construção de uma sociedade justa, livre e solidária; a erradicação da pobreza e
da marginalização social; a prevalência dos direitos humanos nas relações
internacionais.
A Carta Magna evoluiu ideologicamente em relação às Constituições anteriores,
mesmo a liberal de 1946, ampliando as garantias constitucionais aos direitos
individuais e coletivos contemplados, estabelecendo um capítulo específico e
moderno para os direitos sociais e introduzindo os direitos fundamentais de

136
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
137
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Direitos fundamentais do homem nos textos constitucionais brasileiro e alemão. Revista
de Informação Legislativa, Brasília, n. 115, 1992.

77
terceira geração, dispondo inclusive, no artigo 225, sobre o “direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.

Ocorreu incontestável avanço na abordagem dos direitos fundamentais, que devem


integrar-se em uma justaposição harmônica, evitando a deformação individualista, para
abranger o rol de todos os direitos que devem ser reconhecidos ao cidadão e ao homem.

Portanto, referente à ação de indenização por dano moral quando o Estado agride os
direitos fundamentais, a honra, a imagem, a vida privada e a intimidade, deve ocorrer o
máximo de cuidado na apuração do dano efetivo, à sua extensão, às suas circunstâncias, e
outros aspectos relevantes, a fim de não haver um atropelo à necessária harmonia com os
demais direitos e princípios que precisam ser assegurados pelo Poder Público. Cabe trazer a
seguinte jurisprudência a respeito:

DANO MORAL. Necessariamente ele não existe pela simples razão de haver um
dissabor. A prevalecer essa tese, qualquer fissura de contrato daria ensejo ao
dano moral conjugado com o material. O direito veio para viabilizar a vida e não
para truncá-la, gerando-se um clima de suspense e de demandas. Ausência de
dano moral, no caso concreto. Recurso desprovido”.138

Maria Helena Diniz139 observa que o dano moral não é a dor, a angústia, o desgosto, a
aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento danoso, pois estes
estados de espírito constituem conteúdo, ou melhor, a conseqüência do dano. O direito não
repara qualquer padecimento, dor ou aflição, mas aqueles que forem decorrentes da privação
de um bem jurídico sobre o qual a vítima teria interesse reconhecido juridicamente.

O doutrinador Silvio de Salvo Venosa140 consigna que dano moral é o prejuízo que afeta
o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Nesse campo, o prejuízo transita pelo
imponderável, daí por que aumentam as dificuldades de se estabelecer a justa recompensa
pelo dano. Em muitas situações, cuida-se de indenizar o inefável. Não é também qualquer
dissabor comezinho da vida que pode acarretar a indenização.

O Advogado Álvaro Couri Antunes Souza141 para definir danos morais usa as palavras
dos doutrinadores Carlos Alberto Bittar e Wilson Mello da Silva que consignam,
respectivamente:

Danos morais são lesões sofridas pelas pessoas, físicas ou jurídicas, em certos
aspectos de sua personalidade, em razão de investidas injustas de outrem. São
aqueles que atingem a moralidade e a afetividade da pessoa, causando-lhe
constrangimentos, vexames, dores, enfim, sentimentos e sensações negativas.

Dano moral é aquele que diz respeito às lesões sofridas pelo sujeito físico ou
pessoa natural (não jurídica) em seu patrimônio de valores exclusivamente
ideais, vale dizer, não econômicos.

Em artigo publicado no Jornal Zero Hora, de 10.10.98, sob o título “A Indústria do Dano
Moral”, o Desembargador Décio Antônio Erpen, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul, assim expressa:

De outro lado, a seara jurídica fomenta, hoje, um instituto que, igualmente,


instabiliza o próprio direito. Refiro-me à indústria do dano moral.
Sem uma definição científica do que seja, realmente, o dano moral, sem uma
norma estabelecendo as áreas de abrangência e, sem parâmetros legais para a
sua quantificação, permite-se o perigoso e imprevisível subjetivismo do pleito,
colocando o juiz numa posição de desconforto. Ele que deve ser o executivo da
norma, passou a personalizá-la.

138
AC nº 596185181-RS, Sexta Câmara Cível, Rel. Desembargador Décio Antônio Erpen, julgamento 05.11.96.
139
DINIZ, cit., op. 84-86.
140
VENOSA, cit., op. 514-515.
141
SOUZA, Álvaro Couri Antunes. O valor da causa nas ações indenizatórias por danos morais. Revista dos Tribunais,
v.783, jan. 2001. v. 783.

78
A prevalecer o instituto sem critérios legais definidos, os profissionais, em
especial os prestadores de serviço, exercerão seu mister com sobressalto; os
produtores não resistirão às indenizações de valores imprevisíveis. Sequer as
seguradoras assumirão a cobertura ante a ausência de um referencial para a
elaboração dos cálculos. Enfim, toda a sociedade estará submetida ao
subjetivismo, o que conspira contra um valor supremo do direito, a segurança
jurídica.
A corrente belicosa, se vitoriosa, gerará uma sociedade intolerante, na qual se
promoverá o ódio, a rivalidade, a busca de vantagens sobre outrem ou até a
exaltação ao narcisismo. A promissora indústria do dano levará a esse triste
quadro [...].142

7 A INCOMPATIBILIDADE DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA FRENTE AO


DANO MORAL (TEORIA SUBJETIVA)

Percebe-se, sob a ótica supracitada, que a responsabilidade do Poder Público quanto ao


dano moral, necessita passar por uma avaliação subjetiva, a fim de levantar com detalhes o
grau de culpa ou de dolo do agente público causador do dano, bem como da vítima.

Pode-se dizer que existe uma incompatibilidade evidente entre a forma de apuração da
responsabilidade objetiva patrimonial, com aquela que deve nortear a investigação em relação
ao dano moral, em que, os aspectos subjetivos devem ser muito bem provados e sopesados,
enquanto que naquela o Poder Público somente se exime de responsabilidade da indenização
caso consiga provar a culpa exclusiva da vítima, de terceiro, força maior ou caso fortuito.

A prova da culpa ou do dolo do agente público em relação ao dano moral causado à


vítima pelo Estado é imprescindível, como também a existência da própria violação dos bens
imateriais protegidos constitucionalmente (honra, vida privada, intimidade e imagem).

O direito à indenização por dano moral deve fundar-se no art. 186 do Código Civil, onde
o autor precisará provar o ato culposo do agente, o nexo causal entre o ato e o resultado, bem
como o prejuízo decorrente. Significa dizer que, em princípio, para o autor conseguir êxito na
causa indenizatória tem o ônus e a incumbência de provar a ocorrência dos três requisitos
retrocitados, tudo de acordo com o art. 333, inciso I, do Código de Processo Civil brasileiro.

Importante registrar que não existe lugar na ação de indenização pela responsabilidade
objetiva para discutir aspectos subjetivos, com ampla instrução processual, provas,
contraditório e defesa, que envolve a responsabilidade por dano moral, o que, por essa razão,
a torna incompatível para a apuração e avaliação dessa espécie de dano.

Além do mais, se o agente público supostamente causador do dano moral não participa
da relação processual, haja vista que não existe previsão constitucional e legal de denunciação
da lide ao mesmo, e o próprio Poder Público está coartado a somente discutir aspectos
restritos, como a culpa exclusiva da vítima, força maior e caso fortuito, não pode haver espaço
para o pleito de reparação de dano moral na ação por responsabilidade objetiva, o que deve
ser buscada, por conseguinte, em outra ação com fundamento na responsabilidade subjetiva.

Para corroborar com o acima exposto, veja-se a posição jurisprudencial do STJ:143

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DANO MORAL. AGRESSÕES POR SEGURANÇAS DE


SHOPPING CENTER. INDENIZAÇÃO. QUANTUM. HONORÁRIOS. CONDENAÇÃO.
OBSERVÂNCIA AO ART. 21, CPC. RECURSO DESACOLHIDO.

142
ERPEN, Décio Antônio. A indústria do dano moral. Zero Hora, Porto Alegre, 10 out. 1998.
143
Resp. nº 215.607, RJ, Relator Ministro Salvio de Figueiredo Teixeira, julgado ocorrido em 17/08/1999, publicado no DJ
13/09/1999.

79
I – A indenização deve ser fixada em termos razoáveis, não se justificando que a
reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, com manifestos
abusos e exageros, devendo o arbitramento operar com moderação,
proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das partes,
orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência,
com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento a
realidade da vida e às peculiaridades de cada caso. Ademais, deve ela contribuir
para desestimular o ofensor a repetir o ato, inibindo sua conduta antijurídica.
II – Diante dos fatos da causa, razoável a indenização arbitrada pelo Tribunal de
origem, levando-se em consideração não só a desproporcionalidade das
agressões pelos seguranças como também a circunstâncias relevante de que os
shoppings centers são locais freqüentados diariamente por milhares de pessoas
e famílias.
III – Em face dos manifestos e freqüentes abusos na fixação do quantum
indenizatório, no campo da responsabilidade civil, com maior ênfase em se
tratando de danos morais, lícito é ao Superior Tribunal de Justiça exercer o
respectivo controle.
IV – Calculados os honorários sobre a condenação, a redução devida pela
sucumbência parcial nela foi considerada.

Frente aos termos expressos na ementa do acórdão referenciado, na qual objetivação


sintetizou a fundamentação constante do voto vencedor, percebe-se que, efetivamente, a
forma de apuração da responsabilidade objetiva é totalmente inadequada para a averiguação e
fixação da indenização por dano moral, porquanto a análise dos aspectos subjetivos, que nesse
caso exige, como o grau de culpa, as peculiaridades do caso, as circunstâncias que ocorreu o
dano, e outros detalhes, refogem por demais à alçada do rito restrito da apuração objetiva. O
próprio ônus da prova do fato constitutivo do direito do autor da ação de indenização por dano
moral tem uma diferença substancial em relação à ação de indenização patrimonial pela teoria
do risco administrativo adotada pela responsabilidade objetiva.

Considera-se, assim, que a apuração da existência de dano moral deve passar, à


semelhança do que ocorre quando houver dano decorrente de uma omissão do Estado, pela
aplicação dos princípios e regras que disciplinam a responsabilidade subjetiva. 144

Importa dizer assim, como já salientado na introdução, do presente de forma genérica,


que a dinâmica processual, inclusive no aspecto da tese a ser adotada, precisa ser aquela que
mais se ajuste a permitir que o devido processo legal, no atinente, prioritariamente, aos
princípios e regras processuais estabelecidos ou decorrentes da Constituição Federal e Leis
Processuais, sejam respeitados quando da busca da melhor prestação jurisdicional em relação
ao bem da vida almejado. Traduzindo, representa destacar que no caso da investigação de
dano moral por parte do Poder Judiciário, sob a ótica da responsabilidade civil do Estado, o
processo dever-se-ia desenvolver à luz da teoria da responsabilidade subjetiva e não objetiva,
dado que asseguraria às partes, principalmente ao Estado que, em última análise, é a própria
sociedade sendo coletivamente demandada, o devido processso legal na sua forma mais
correta e necessária, evitando que princípios ou regras de direito processual sejam arranhados
ou ignorados, o que seria altamente benéfico para o Estado de Direito.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o exposto espera-se ter contribuindo, de alguma forma, para aumentar, ainda
mais, a inquietude em relação tão polêmico assunto, que é a indenização por dano moral,
principalmente quando a ação é ajuizada contra o Poder Público, seja por pessoa que não faça
parte da Administração Pública, seja por agente público.

Ao que parece, a ação indenizatória por dano moral não pode aproveitar-se do rito
processual que segue a ação de reparação por dano patrimonial à luz da responsabilidade
objetiva, pela teoria do risco administrativo, porquanto a dinâmica processual não é a mais
adequada a permitir que o devido processo legal, no que diz respeito precipuamente aos
princípios e regras processuais estabelecidos ou decorrentes da Constituição Federal e Leis

144
ANJOS; Jone, op. cit., p. 350.

80
Processuais, seja respeitado quando da busca da melhor prestação jurisdicional em relação a
esse bem da vida almejado.

Por envolver diversos aspectos a serem considerados, inclusive para a fixação do


quantum debeatur do dano moral, é de considerar-se que a ação deve ser ajuizada com base
no art. 186 do Código Civil, ou seja, com base na responsabilidade subjetiva, na qual o autor
terá o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito nos termos do art. 333, inciso I, do
Código de Processo Civil, levando em conta toda a complexidade acima apresentada para a
caracterização e materialização desse dano. Caso seja imputada a responsabilidade a algum
agente público, este deve participar da relação processual, na condição de litisdenunciado.

81
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Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: Contratos em espécie e responsabilidade civil. v.3 São
Paulo: Atlas, 2001.

82
A NÃO FLUÊNCIA DE JUROS MORATÓRIOS DURANTE A INÉRCIA DO
CREDOR EM EXECUTAR TÍTULO JUDICIAL CONTRA A FAZENDA PÚBLICA

Fábio Cristiano Woerner Galle


Advogado da União

Cuida-se de examinar possíveis efeitos financeiros da demora do credor em deflagrar a


execução de título judicial que obteve em desfavor da Fazenda Pública (CPC, art. 730), a partir
da sensação de que, como a questão vem merecendo trato na atualidade, cabe refletir sobre
possíveis ajustes de entendimento.

De início, pode soar estranho que um dado credor quede inerte e dê causa, ele próprio,
ao atraso da satisfação de um crédito que lhe foi garantido, as mais das vezes, empós um
longo trâmite cognitivo. Todavia, a situação que realmente ocorre, sendo o exemplo mais
claro consubstanciado pelas ações de feição coletiva, do patrocínio de substitutos processuais,
e nas quais a execução é desmembrada por grupos de autores a fim de evitar-se litisconsórcio
multitudinário. Supõe-se que em função da magnitude da tarefa, a envolver um sem-número
de representados, e, por conseguinte, de documentos, os patronos das coletivas, limitados
pelas contingências do factível, escoem um certo tempo para o ajuizamento do executivo,
tempo esse que, não raro, ultrapassa inúmeras competências mensais.145.

Isto assente, bem é de se ver que a regra é os títulos obrigacionais transitados em


julgado assinarem juros moratórios em favor do credor, uma vez que, em se tratando de
passivo reconhecido e não satisfeito, há de se afligir, desde a configuração do atributo certeza
(i.e., desde a coisa julgada), uma penalização à parte morosa. Contudo, e como já se propôs,
será examinada a situação da mora do credor com fincas em uma premissa incisiva, a saber,
de que a Fazenda não possui meios para adimplir espontaneamente débito de tal natureza.
Logo, se o credor não empolga a execução, não há meios de fluírem moratórios durante o
interregno da inércia. Se não, veja-se.
Na mecânica dos débitos do erário, aqueles originados de condenação judicial mereceram
normatização específica no próprio Texto Constitucional, estabelecendo, de chofre, um
primeiro empeço à suposição de que existe disponibilidade para a Fazenda em pagar de modo
espontâneo o valor assegurado na sentença146. Confira-se147:

CF. Art. 100 À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos


devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença
judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos
precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou
de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para
este fim.

A mais disso, e tendo bem presente que a Constituição é um todo ordenado, que deve
ser entendido e interpretado de forma sistemática e abrangente, ainda há outras normas a
chancelar entendimento que tal, das quais destaca-se o princípio da impessoalidade (art. 37,
caput); e (b) a programação orçamentária vigente (arts. 165/9).
O primeiro deles, a confirmar que o agente público, em qualquer circunstância, não
poderá tratar dos assuntos de suas atribuições tendo em apreço qualquer preferência ou
interesse particular, afiança que, relativamente às condenações judiciais, só se pode cogitar do
atendimento dessas após a iniciativa do credor, e da devida conferência da escorreição
liquidatória do crédito, pena de, não o fazendo, sujeitar-se, no mínimo, às conseqüências

145
De acordo com a jurisprudência prevalecente, representada pelo verbete nº 150 da súmula do E. STF, o credor dispõe, para
fins executivos, do mesmo prazo prescricional da respectiva ação.
146
Trata, o presente trabalho, exclusivamente da dívida judicializada, e não de outros modos obrigacionais de feição
extrajudicial.
147
Ver, ainda, arts. 33, 78, 86 e 87 do ADCT.

83
funcionais da relapsia.148. Já no concernente à programação orçamentária, tem-se iniludível
que a Constituição exige que o dispêndio só se possa dar à conta de créditos prévios, sendo,
portanto, inescapável o atendimento às balizas dos seus arts. 165 e 167.

Não fossem apenas tais evidências a impossibilitar o cobro dos moratórios, quando o
retardo não é da Fazenda, extraem-se da legislação infraconstitucional ainda outros elementos
no sentido da inafastabalidade do regime ex lege de pagamentos pelo Estado, a saber:

(a) O texto expresso do art. 730 do CPC, a reclamar a citação da Fazenda


Pública não para pagar, mas para opor embargos. (b) A Lei nº 11.232/05, que
alterou grandemente o regime executivo pátrio, não promoveu qualquer
modificação na sistemática dos débitos do Poder Público. (c) O art. 570 do CPC,
que tratava da execução à avessa/invertida, e já antanho inaplicável à Fazenda,
restou proscrito pela mesma Lei nº 11.232/05. (d) A inaplicabilidade da
penalização do art. 394 do NCC ao devedor que não tem liberdade para efetuar
o pagamento. (e) A incontornabilidade do atendimento, pelo gestor, do disposto
no art. 10 da LC 101/00, que prevê: Art. 10. A execução orçamentária e
financeira identificará os beneficiários de pagamento de sentenças judiciais, por
meio de sistema de contabilidade e administração financeira, para fins de
observância da ordem cronológica determinada no art. 100 da Constituição.

Tudo estando a indicar, dessarte, que nenhuma margem existe ao agente público para
subtrair-se, no que atine às condenações judiciais, do regime imposto legalmente para a
satisfação das mesmas. Assim é que, portanto, os ônus da mora do credor em executar seu
título, seja por qual razão for, devem sobre o mesmo recair, à míngua de qualquer
fundamento que lhe justifique a inação, bem assim que autorize a Fazenda ao adimplemento
espontâneo da monta.

148
Vide, ainda, Lei nº 8.429/92 (LIA), arts. 10/11.

84
A NECESSÁRIA MUDANÇA DE PARADIGMAS NO ACORDO TRABALHISTA – DO
ANIQUILAMENTO À PROTEÇÃO DO DIREITO PREVIDENCIÁRIO DO
TRABALHADOR E DA COLETIVIDADE

Marcelo Barroso Mendes


Procurador Federal no Rio de Janeiro atuando junto ao Órgão
de Arrecadação da Procuradoria-Geral Federal/AGU – SMAT/RJ

A sociedade evolui e o Direito como uma ciência prática deve acompanhar esse ritmo.
Atento a isso, o legislador infraconstitucional foi especialmente feliz na Lei 11.457/2007 de
criação da Super Receita quando permitiu a contestação pelos órgãos de representação dos
acordos entabulados na esfera trabalhista e homologados por sentença de igual espécie. Qual
foi a ratio legis que sobressai no caso? O fundamento racional percebido pelo legislador e que
reflete as modificações da “consciência jurídica geral” 149 não é outro senão a solidariedade.
Mas antes de adentrar na ratio legis, mister antes verificar a realidade da Justiça Especializada
Trabalhista no que tange a arrecadação das contribuições previdenciárias decorrentes da
homologação de acordos trabalhistas.

A arrecadação das contribuições previdenciárias na Justiça do Trabalho teve, sem


dúvida, um importante marco histórico constitucional: a Emenda Constitucional 20, de 15 de
dezembro de 1998, que acrescentou o parágrafo 3º ao art. 114 da CRFB/88, regulamentada
pela Lei 10.035/2000 e agora com nova alteração trazida pela Lei 11.457/2007. Outrossim,
com a EC 45/2004, houve uma reestruturação do artigo, e o citado parágrafo passou a ser o
inciso VIII do art. 114 da Constituição Federal. O referido dispositivo passou a prever como
competência da Justiça do Trabalho a execução de ofício das contribuições sociais previstas no
art. 195, I, a, e II, decorrentes das sentenças que proferir.

Fato é que desde a inserção do parágrafo pela Emenda Constitucional 20/98, a Justiça
Especializada nunca mais foi a mesma, pois passou a focar com mais eficácia nas contribuições
devidas à Previdência Social. Entretanto, a esta ação arrecadatória correspondeu uma ação
elisiva por parte dos contribuintes, o que será enfrentado após necessária e prévia
compreensão acerca do sistema previdenciário nacional.

Quando se fala em previdência social, dois institutos se misturam: a contribuição e o


benefício. Não são idênticos, pelo contrário refletem naturezas jurídicas diversas, mas estão
intimamente ligados. Essa simbiose jurídica é fruto principalmente da Reforma Previdenciária
originada também na EC 20/98, a qual buscou trazer soluções para o crescente déficit
orçamentário previdenciário, e que até hoje demanda eficácia, posto que o sonhado equilíbrio
do sistema previdenciário ainda não foi alcançado. Naquele momento consagrou-se
definitivamente a seguinte percepção muito atual: não pode existir um equilíbrio atuarial do
sistema sem que os benefícios tenham uma correspondente fonte de custeio suficiente para
mantê-los, ou seja, a manutenção dos benefícios depende intimamente da arrecadação 150.

Daí porque não se pode falar em benefício sem se falar de contribuição, acabou a
aposentadoria por tempo de serviço e vige a aposentadoria por tempo de contribuição.

A reação elisiva se funda numa tendência histórica dos povos de repulsa ao poder
tributário do estado fiscal151. No entanto, está presente o estado fiscal social. O tributo em

149
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
150
Importante notar que o §5º do art. 195, pressupõe o mesmo raciocínio, seja-se: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade
social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.”, e sempre esteve presente na
Constituição Federal desde a sua promulgação.
151
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 2004. p.191-203.

85
tela é contraprestacional a gerar uma prestação pessoal e direta por parte do Estado, no caso,
o direito aos benefícios previdenciários152.

Todavia, aqueles que praticam a elisão fiscal esquecem-se de que estão prejudicando a si e a
toda a coletividade que usufrui da Previdência Social.

É notório que na Justiça Trabalhista a maioria dos processos terminam em conciliação,


e é salutar que assim seja. O trabalhador pode, e até é desejável que busque, uma solução
conciliatória para seus conflitos individuais junto com seu empregador, transacionando seus
direitos decorrentes de uma relação de trabalho. Assim, mesmo que haja o acordo, de uma
forma ou de outra, está sendo resguardado o direito trabalhista.

No entanto, uma prática perigosa está se tornando comum na Justiça do Trabalho:


conciliações que aniquilam totalmente direitos previdenciários decorrentes da relação de
trabalho. Norberto Bobbio, em sua obra A Era do Direitos, 153 afirma que “o problema
fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de
protegê-los.”

A conciliação trabalhista, como já dito, é fundamental, o que não se pode permitir é a


perpetuação da homologação de transações com parcelas totalmente “indenizatórias”, com o
único intuito de livrar as partes do recolhimento previdenciário. É premente a necessidade de
proteger o direito à previdência do trabalhador.

O raciocínio simplista de liberação do recolhimento de contribuições confunde o direito


individual fundamental da parte, como trabalhador, com o direito coletivo fundamental da
parte como participante de um sistema previdenciário baseado na repartição. Pensa-se
unicamente no momento presente, conciliação. Esquece-se do futuro, previdência. A própria
palavra previdência já denuncia a dimensão do problema. Se nada for feito no presente não
haverá futuro porque não houve previdência das partes envolvidas no acordo. O que prejudica
não só o próprio trabalhador, segurado obrigatório, como também a toda a coletividade de
segurados da Previdência Social brasileira.

Oportuno lembrar que o regime previdenciário público adotado no Brasil é o de


repartição, no qual o trabalhador que está na atividade mantém aquele que está recebendo
benefício. É um pacto social entre gerações existente além do Brasil, nos EUA, França,
Alemanha e Espanha.

Contrariamente ao citado, existe outro tipo de regime, o de capitalização, que foi


adotado pelo Chile. Neste, o trabalhador tem uma conta corrente individual
independentemente de todos os outros participantes do regime. No momento da
aposentadoria, o trabalhador terá direito a receber de volta uma renda vitalícia baseada na
contribuição ao sistema, acrescido dos rendimentos do capital.

No sistema de repartição adotado no Brasil, baseado no princípio da solidariedade,154 é


fundamental que todos contribuam para manutenção do equilíbrio aturial do sistema
previdenciário, bem como da sua sustentabilidade. Dessa forma, não pode haver transação de
parcelas objeto de contribuição previdenciária, pois o afetado não é somente o participante do
negócio, mas todos os segurados da previdência pública. Os valores objeto de contribuição

152
A repulsa é ainda maior por parte do brasileiro diante da pesada carga tributária no Brasil de algo em torno de 37% do PIB.
ZILVETI, Fernando Aurélio. O gasto público e a tributação brasileira. Valor Online. 22/05/2006.Disponível em:
<http://www.valoronline.com.br>. Acesso em:13 de dez. 2006.
153
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, Tradução de Carlos Nelson Coutinho 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.43.
154
O princípio da solidariedade está albergado na Constituição Brasileira nos art. 3º, inc. I e art. 195 caput. Apesar de não ser
uma novidade nos ordenamentos jurídicos, o citado princípio vem ganhando cada vez mais prestígio na moderna sociedade. Ricardo
Lobo Torres deixa claro este aspecto ao afirmar: “A idéia de solidariedade se projeta com muita força no direito fiscal por um motivo de
extraordinária importância: o tributo é um dever fundamental”, e na mesma obra o Professor caracteriza a sociedade: “a sociedade de
risco se caracteriza por algumas notas relevantes: a ambivalência, a insegurança, a procura de novos princípios e o redesenho do
relacionamento entre as atribuições das instituições do Estado e da própria sociedade”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito
constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. 2.v. Rio de Janeiro: Renovar. 2005, p. 181.

86
previdenciária são, por conseguinte, indisponíveis porquanto pertencentes a uma coletividade,
e não apenas a um único indivíduo.

Importante notar que o Código Civil de 2002 estabelece no artigo 841 que “só quando a
direitos patrimoniais de caráter privado se admite a transação.” Dispõe ainda o mesmo código
no artigo 844 que “a transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem,
ainda que diga respeito a coisa indivisível.” Vale repetir, as partes não podem transigir sobre
norma cogente, sobre bem público que não lhe pertence.

O objetivo tem de ir além do interesse privado instantâneo, baseado na livre disposição


do patrimônio. Merece ser considerado o interesse público permanente de estímulo à efetiva
garantia dos direitos fundamentais de toda a coletividade, como também ao próprio trabalho
como forma de dignificar a pessoa humana e fomentar a justiça. Nesse ritmo, a verdadeira
justiça social depende da coexistência harmônica entre a promoção da liberdade patrimonial
com os princípios da redução das desigualdades, da erradicação da pobreza, da marginalização
e, da solidariedade. Mas como não poderia deixar de ser, como princípios que são, a livre
disposição dos bens e a solidariedade, devem ser devidamente ponderados em cada caso
concreto. Sendo injustificável, no entanto, a total anulação do direito previdenciário. Deve
haver ponderação entre os princípios a fim de que coexistam e não que sejam aniquilados.155

Não se está a defender a supremacia da solidariedade como um dogma absoluto. Ao


contrário, é um princípio que deve ser ponderado à luz da realidade, do fato concreto, tendo
sempre como norte a dignidade da pessoa humana. Dignidade não só do indivíduo
concretamente visualizado e contextualizado, como também de todo o grupo ao qual integra e
interage. Claro que há casos em que a solidariedade será afastada, e isso somente poderá ser
analisado e percebido à luz do caso concreto sob argumentos consistentes e fundamentos
lógicos do raciocínio.

Com efeito, a crescente cultura de utilização do acordo trabalhista para promover a


anulação do direito previdenciário individual e coletivo, prejudicando a coletividade presente e
vindoura, não pode se perpetuar. A Justiça do Trabalho não pode constestar a busca única e
exclusiva de interesses egoísticos imediatos, em detrimento de toda uma geração presente e
vindoura de pessoas que contribuem para o sistema previdenciário de repartição e que dele
depende.

O objetivo não é o de justificar as normas de direito previdenciário com base


diretamente e exclusivamente no princípio da solidariedade 156, o que se está fazendo é
colocando-o como norte a ser seguido, como parte integrante da idéia de justiça.

Enfim, o princípio da solidariedade é o vínculo de apoio mútuo existente entre todos


aqueles que participam do grupo de segurados da previdência social pública universal, seja
como contribuintes, seja como beneficiários da redistribuição de bens sociais. Aliás, não é por
outra razão que o fortalecimento da solidariedade acaba por elevar também a justiça social e
da justiça distributiva, tornando a sociedade mais justa e equilibrada.

Nada melhor que aproveitar esse momento da criação da Receita Federal do Brasil para
mudar a forma e a finalidade do acordo trabalhista. Nesse universo trazido pela Lei 11.457/07,
há institutos em transformação. Há mudanças principalmente na melhor estruturação da
arrecadação que continuará a ser feita pela Procuradoria-Geral Federal, órgão da Advocacia-
Geral da União157, só que com novos instrumentos. Como dito, a representação não muda, a

155
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p.105.
156
A maioria da doutrina italiana e espanhola fundamenta o dever fundamental de pagar impostos no princípio da solidariedade
social. GRECO, Marco Aurélio; Godoi, Marciano Seabra de (Coord). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005,
p.156-157.
157
Dispõe a Lei 11.457/07: “Art. 16 [...]
§ 3o Compete à Procuradoria-Geral Federal representar judicial e extrajudicialmente:
[...]
II - a União, nos processos da Justiça do Trabalho relacionados com a cobrança de contribuições previdenciárias, de imposto de renda
retido na fonte e de multas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações do trabalho, mediante delegação da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.”

87
PGF, que antes defendia a autarquia INSS, passou agora a representar a União, detentora da
competência tributária, cuja arrecadação e fiscalização antes era delegada ao INSS. Houve
realmente alterações formais no intuito de possibilitar um incremento na operacionalização da
cobrança. Especial interesse reflete-se principalmente nas alterações operadas no art. 832 da
CLT e o acréscimo dos parágrafos quinto, sexto e sétimo, além da modificação da redação do
parágrafo quarto. Vale analisá-los mais detidamente.

O alterado parágrafo quarto pela Lei da Super Receita, que trata da intimação das
decisões de acordos que contenham parcela indenizatória158, não só retirou o Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) colocando a União como destinatária da intimação, como
também mudou a forma como essa intimação será feita, antes era pela via postal e agora se
dá com a entrega dos autos com vistas ao órgão de representação, na forma do art. 20 da Lei
11.033/04159. Salutar a medida nos dois pontos. Primeiro porque permitirá a PGF atuar nos
feitos trabalhistas por delegação, na forma do art. 16, §3º, inc. II da Lei 11.457/07. Segundo
ponto, a mudança resultará em maior celeridade e eficiência por parte do órgão responsável
pela arrecadação. Antes da edição da lei, já era praxe após a notificação, proceder a retirada
dos autos por uma questão óbvia de necessária análise do caso pelo procurador oficiante.
Então, importante foi a medida ao unificar dois atos praticados em momentos distintos num só
ato instantâneo.

Prosseguindo na análise, o parágrafo quinto, nos moldes em que foi aprovado, não
constava do Projeto de Lei 6.272/2005 de iniciativa do Poder Executivo160, tendo sido
acrescentado pelo Senado Federal, através de emenda de autoria do então Senador Alvaro
Dias. O parágrafo tem a seguinte redação: “§ 5o Intimada da sentença, a União poderá
interpor recurso relativo à discriminação de que trata o § 3o deste artigo.”

Houve, no caso, uma correção legislativa161. Se antes havia discussão jurisprudencial e


doutrinária se o INSS teria ou não interesse de recorrer por ser considerado como terceiro
interessado, agora o Poder Legislativo firmou o posicionamento de que a União, detentora da
capacidade tributária ativa, é legitimada para recorrer das decisões cognitivas ou
homologatórias havidas na Justiça Especializada Trabalhista.

No caso do parágrafo sexto também existiu uma correção legislativa162. É comum na


Justiça Laboral sempre a busca do acordo, mesmo após longa discussão, podendo ocorrer, seja
na fase de conhecimento, seja na fase de execução. É adequado que assim o seja. Havendo,
portanto, a coisa julgada, ou ainda, após a apresentação dos cálculos de liquidação, é normal
que as partes se conciliem impingindo celeridade à satisfação efetiva da pretensão objeto da
lide. No entanto, o que não pode ocorrer é o acordo de vontades refletir em direito não
transacionável, pertencente à coletividade, no direito previdenciário, bem indisponível. O fato
gerador da contribuição previdenciária é decorrente de norma legal tributária indisponível ao

158
§ 4º A União será intimada das decisões homologatórias de acordos que contenham parcela indenizatória, na forma do art.
20 da Lei no 11.033, de 21 de dezembro de 2004, facultada a interposição de recurso relativo aos tributos que lhe forem devidos.
(Redação dada pela Lei nº 11.457, de 2007)

159
Art. 20 As intimações e notificações de que tratam os arts. 36 a 38 da Lei Complementar no 73,
de 10 de fevereiro de 1993, inclusive aquelas pertinentes a processos administrativos, quando dirigidas a
Procuradores da Fazenda Nacional, dar-se-ão pessoalmente mediante a entrega dos autos com vista.

160
Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/PL/2005/msg807-
051128.htm>. Acesso em 01 julho. 2007.
161
TORRES, Ricardo Lobo. A integração entre a lei e a jurisprudência. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, Ano I,
abr. jun de 1993, Revista dos Tribunais, p. 07-20.

162
§ 6o O acordo celebrado após o trânsito em julgado da sentença ou após a elaboração dos cálculos de liquidação de sentença
não prejudicará os créditos da União.

88
alvedrio das partes. Por mais paradoxal que possa parecer, existia intensa discussão sobre o
tema, sendo o coro pelo “calote” previdenciário formado por importantes juristas.

Elucidou-se a questão através do parágrafo sexto alterado pela Lei da Super Receita.
Agora, celebrado o acordo após o trânsito em julgado da sentença ou, após a elaboração dos
cálculos de liquidação de sentença, não poderá existir mais prejuízo aos créditos tributários já
definitivamente declarados por sentença transitada em julgado, pelas razões anteriormente
expostas. Feliz o legislador ao positivar norma tão sintonizada com o princípio da
solidariedade inspiradora do ordenamento previdenciário.

Por fim, cabe analisar o parágrafo sétimo do art. 832 da CLT. O dispositivo tem a
seguinte redação:

§ 7o O Ministro de Estado da Fazenda poderá, mediante ato fundamentado,


dispensar a manifestação da União nas decisões homologatórias de acordos em
que o montante da parcela indenizatória envolvida ocasionar perda de escala
decorrente da atuação do órgão jurídico.

Nenhuma novidade há na regra transcrita. Trata-se de mera aplicação do princípio da


proporcionalidade à esfera administrativa, autorizando, através de ato do Ministro, que os
responsáveis pela representação da União não atuem em determinados casos, pela falta de
importância seja jurídica, social ou econômica. Sendo certo, que a mais evidente é a escala
econômica. Injustificável a atuação da representação judicial da União quando o valor for
nitidamente antieconômico. Isso não impede outras medidas acessórias por parte da
arrecadação no intuito de satisfazer o crédito tributário, ainda que de pequeno valor.

No entanto, é imperativo que não só ocorra uma modificação dos órgãos do Executivo
responsáveis pela arrecadação previdenciária e no modus operandi da arrecadação. Todos os
envolvidos no processo merecem assumir seus papéis de protagonistas, segurados,
advogados, justiça, numa virada em prol da efetivação dos direitos sociais.

O segurado obrigatório da Previdência Social, exercente de atividade remunerada, deve


sempre lembrar que além de ter que garantir a perpetuação do regime previdenciário, deve
também atentar para o fato de que o cálculo do valor dos benefícios mudou com a Lei
9.876/99. Antes o cálculo de seu benefício consistia na média aritmética simples de todos os
últimos salários de contribuição dos meses imediatamente anteriores ao do afastamento da
atividade ou da data da entrada do requerimento, até no máximo trinta e seis meses, agora o
cálculo não é feito apenas sobre os trinta e seis salários de contribuição, mas sobre os maiores
salários de contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo,
art. 29, I, II da Lei 8.213/91. Portanto, todo ingresso de valor no salário de contribuição do
segurado irá muito provavelmente compor a base de cálculo do seu futuro benefício
previdenciário.

Da mesma forma, o advogado militante na esfera trabalhista também deve, no


exercício de sua profissão, função essencial à justiça, contribuir, não só para que se faça a
justiça no direito do trabalho, como também para que se faça a justiça no direito
previdenciário. No entanto, não basta que o segurado e o advogado façam sua parte, a Justiça
do Trabalho também precisa fazer a sua parte.

Em favor dessa transformação, existem instrumentos legais com os quais


especialmente os juízes podem se valer. A Lei de Custeio da Previdência Social, no art.43,
dispõe:

Art. 43. Nas ações trabalhistas de que resultar o pagamento de direitos sujeitos
à incidência de contribuição previdenciária, o juiz, sob pena de responsabilidade,
determinará o imediato recolhimento das importâncias devidas à Seguridade
Social.
Parágrafo único. Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados em que
não figurarem, discriminadamente, as parcelas legais relativas à contribuição
previdenciária, esta incidirá sobre o valor total apurado em liquidação de
sentença ou sobre o valor do acordo homologado.

89
Baseado no dispositivo, deve o juiz trabalhista que homologa a conciliação, em respeito
ao princípio processual da congruência, e dentro da sua competência constitucional de
executar de ofício as contribuições sociais, determinar às partes que discriminem de forma
adequada ao pedido, e aos demais elementos constantes dos autos, a natureza originária das
parcelas do acordo, atentando para a necessária proteção do direito fundamental social à
Previdência Social, visto não só na forma individual como também coletivo.

Embora não citado, nem por isso menos importante, pelo contrário, o Ministério Público
do Trabalho é também mola mestra dessa transformação. Como defensor dos interesses
sociais e individuais indisponíveis, segundo o caput do art. 127 da Constituição Federal, o MPT
tem importante papel na garantia e manutenção do direito fundamental previdenciário.

Dentro desse espírito, andou bem o membro do MPT, o procurador Cássio Casagrande,
em perfeita consonância com o posicionamento ora exposto, ao ressaltar a atuação do juiz na
conciliação trabalhista no parecer que exarou nos autos do processo RO 03247-1997-342-00-
00-0, TRT da 1ª Região, que inclusive foi tomando como razões de decidir pela eg. Primeira
Turma daquele tribunal, e que ora transcreve-se:

É por isto que o art. 832, §3º, da CLT, introduzido pela Lei 10.035/00,
determina de forma expressa: 'As decisões cognitivas ou homologatórias
deverão sempre indicar a natureza jurídica das parcelas constantes da
condenação ou do acordo homologado, inclusive o limite da responsabilidade de
cada parte pelo recolhimento da contribuição previdenciária, se for o caso.' Ou
seja, a fixação da natureza das partes (sic) não é da livre estipulação das
partes, mas sim obrigação do juiz. Este poderá até acatar a proposta das partes
quanto à natureza das parcelas, desde que a entenda congruente com o pedido.

Vistos os argumentos lançados, inevitável concluir que, quando existirem elementos nos
autos denunciando a existência de fato gerador de contribuição previdenciária, o acordo com
parcelas totalmente indenizatórias não pode ser homologado, sob pena de anular o direito
previdenciário. E ainda, deve-se ir mais longe, verificando-se, do cotejo da inicial com o ajuste
homologado, que a discriminação não respeitou o parâmetro de proporcionalidade, merece que
o juiz determine que a cota devida à Previdência Social seja calculada observando a
proporcionalidade entre as parcelas de natureza salarial e indenizatória constantes na exordial.

Cessar-se-ão em definitivo os acordos sem responsabilidade social individualistas e


imediatistas que vitimizam os beneficiários presentes e futuros da previdência social se todos
os protagonistas agirem em conjunto e em prol da efetividade do princípio da solidariedade.

90
A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO ISS NA IMPORTAÇÃO
DE SERVIÇO PROVENIENTE DO EXTERIOR OU QUE NELE TENHA INICIADO

RICARDO GEWEHR SPOHR


Advogado da União, especialista em Direito Tributário pelo
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET)

RESUMO: A Lei Complementar nº 116/2003 trouxe algumas disposições, referentes à


incidência do Imposto sobre Serviços (ISS), até então inexistentes no ordenamento
jurídico pátrio. Por se tratarem de inovações, é inevitável o questionamento acerca
da sua (in)constitucionalidade. O presente estudo tem como escopo auxiliar o leitor
na formação da sua convicção, através da análise dos referidos dispositivos legais,
especificamente os atinentes à importação de serviço do exterior, em face da
Constituição Federal.

PALAVRAS-CHAVE: ISS, Imposto sobre Serviços, Importação, Exterior, Critério Material,


Critério Espacial, Critério Pessoal, Sujeito Passivo, Extraterritorialidade, Regra-Matriz,
Prestação de Serviço, Estabelecimento Prestador, Fruição, Lei Complementar, Município.

SUMÁRIO: 1 Introdução ; 2 Breve Análise da Regra-Matriz


Constitucional do Imposto sobre Serviços: critérios material, espacial e
pessoal; 2.1 Critério o material 2.2 Critério espacial; 2.3 Critério pessoal
(sujeito passivo); 3 A Regra-Matriz de Incidência do ISS na Hipótese do
Serviço Proveniente do Exterior ou Cuja Prestação se tenha Iniciado no
Exterior do País (LC nº 116/03): critérios material, espacial e pessoal;
3.1 Critério material ; 3.1.1 Local da efetiva prestação do serviço; 3.1.2
Local do estabelecimento do prestador do serviço; 3.2 Critério espacial;
3.3 Critério pessoal (sujeito passivo); 4. ISS sobre a Importação de
Serviços e a Lei Complementar: um Novo Imposto? 5 Paralelo com
outros Tributos; 6 Conclusão; 7 Referências.

1 INTRODUÇÃO

A Lei Complementar n° 116/03 trouxe algumas novidades acerca do Imposto sobre


serviços de qualquer natureza (ISS), dentre elas está a ampliação das hipóteses de incidência
constantes na lista de serviços e, especialmente, a instituição da incidência do imposto
municipal sobre as importações de serviços.

O art. 1°, e seu § 1°, da LC nº 116/03, assim dispõem:

Art. 1º. O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos


Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços
constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade
preponderante do prestador.
§ 1º O imposto incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País
ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País. (grifo nosso)

Muito se tem discutido sobre a (in)constitucionalidade dessa norma posta pelo § 1°, bem
como das que lhe são conexas, principalmente por se tratar de tributação inédita no campo de
incidência do Imposto sobre Serviços, haja vista que o diploma anterior (Decreto-Lei n°
406/68) não fazia qualquer referência semelhante.

91
Sem qualquer pretensão de dar a palavra final sobre o assunto, mas apenas de contribuir
para o debate da questão, procuraremos demonstrar, com a devida vênia dos que entendem
em sentido oposto, a insubsistência da tributação (ISS) sobre a importação de serviços frente
à Constituição Federal. Para tanto, por serem, na nossa visão, pontos cruciais de embate,
faremos uma análise comparativa especificamente dos critérios material, espacial e pessoal
(sujeito passivo) que compõem a regra-matriz de incidência do ISS na Constituição, com os
trazidos pela LC n° 116/03.

A par das características do ISS na importação de serviços, serão analisadas algumas


das funções da lei complementar, bem como sua legitimidade ou não de instituir novo imposto,
distinto do Imposto sobre Serviços de competência municipal. Por fim, realizaremos um
paralelo do ISS na importação de serviços com outros tributos os quais a Constituição gravou
a importação.

2 BREVE ANÁLISE DA REGRA-MATRIZ CONSTITUCIONAL DO IMPOSTO SOBRE


SERVIÇOS: CRITÉRIOS MATERIAL, ESPACIAL E PESSOAL

A Constituição Federal, em seu art. 156, III, atribuiu aos Municípios e ao Distrito Federal
a competência para instituir Imposto sobre Serviços de qualquer natureza, não compreendidos
no art. 155, II, definidos em lei complementar.

Embora a Carta Magna não tenha fornecido o conceito de serviço, de maneira explícita,
existe a crença que o sistema constitucional de outorga de competências tributárias nos
permite construir essa definição, por exclusão das demais competências atribuídas, de modo
privativo, a cada uma das pessoas políticas.

Todos os fatos sobre os quais é possível instituir imposto estão previstos expressamente,
de forma explícita ou implícita, na Constituição Federal, no bojo da discriminação das
competências tributárias outorgadas às pessoas políticas.

O intérprete, a partir dessa visão sistemática do texto constitucional, poderá definir o


adequado arquétipo do Imposto sobre Serviços de qualquer natureza, de competência dos
Municípios. Estará, no entanto, limitado aos contornos fixados por esse mesmo contexto.

Dessa maneira, quando do exercício de sua competência tributária, o ente político-


constitucional competente deve trilhar pelo caminho traçado pelo Texto Supremo, sob pena de
a respectiva legislação instituidora do tributo padecer por inconstitucionalidade.

Apesar de a Constituição não criar tributos, mostra-se, pois, correta a afirmação de


Souto Maior Borges, no sentido de que o processo de criação de tributo nela tem início. 163

No caso do ISS, a Constituição descreve, genericamente, ao distribuir competências,


quais os fatos que podem ser adotados pelos legisladores municipais como hipótese de
incidência desse imposto, procedendo à descrição dos campos materiais dentro dos quais os
respectivos legisladores exercitarão a competência recebida.

O ilustre professor Aires F. Barreto, antes mesmo de conceituar o que seria serviço
tributável, no contexto constitucional, definiu, de maneira clara e objetiva, o que seria
propriamente “serviço”, in verbis:

É lícito afirmar, pois, que serviço é uma espécie de trabalho. É o esforço humano
que se volta para outra pessoa; é fazer desenvolvido para outrem. O serviço é,
assim, um tipo de trabalho que alguém desempenha para terceiros. Não é
esforço desenvolvido em favor do próprio prestador, mas de terceiros.
Conceitualmente, parece que são rigorosamente procedentes essas observações.
O conceito de serviço supõe uma relação com outra pessoa, a quem a serve.
Efetivamente, se é possível dizer-se que se fez um trabalho “para si mesmo”,

163
A Fixação em Lei Complementar das Alíquotas Máximas do Imposto sobre Serviços. Projeção. Revista Brasileira de
Tributação e Economia n. 10, ano I, ago. 1976.

92
não o é afirmar-se que se prestou serviço “a si próprio”. Em outras palavras,
pode haver trabalho, sem que haja relação jurídica, mas só haverá serviço no
bojo de uma relação jurídica.164
Portanto, quando o Município recebe a sua competência para tributar serviços, ele a
recebe com os limites que lhe são postos pela própria Constituição.

2.1 CRITÉRIO MATERIAL

Em face do próprio conceito de serviço descrito pela Constituição, deflui que somente é
tributável a prestação de serviço, e não o seu consumo, a sua fruição, a utilidade ou a sua
utilização.

Só a prestação do serviço é tributável, porque o conteúdo econômico indica o prestador


como o verdadeiro beneficiário da retribuição que, de alguma maneira, é o modo objetivo de
mensuração desse mesmo conteúdo econômico. O consumo, a fruição e a utilização do serviço
não podem ser postos ou entendidos como compreendidos nessa materialidade da hipótese de
incidência porque os sujeitos das ações de consumir, fruir e utilizar são, necessariamente,
diferentes do prestador do serviço.

Não pode haver ISS sobre o fato de consumir serviço, fruir serviço ou utilizar serviço
porque esses verbos e respectivos complementos não defluem do arquétipo constitucional
desse imposto. Assim, se fruidor, se consumidor, ou beneficiário de utilidade forem chamados
a contribuir, já se estará não diante do fenômeno “prestação do serviço” (desempenho de
esforço humano em favor de terceiro), mas sim, de outros fatos quaisquer, inteiramente
distintos. Tal é o caso de considerar o “beneficiário de um esforço humano” ou “fruidor ou
destinatário” do mesmo.165

Sendo a síntese do critério material do ISS representada pelo verbo prestar e pelo
respectivo complemento serviço, o correto é que o tributo atinja o produtor da ação “prestar
serviço”, o agente dessa ação, que inexoravelmente é o prestador do serviço. 166

Caso venha a recair a descrição do critério material do ISS sobre circunstância outra que
não a prestação de serviço, estar-se-á a contornar a Constituição para instituir, na verdade,
imposto novo, com características distintas do ISS, haja vista o distanciamento dos
parâmetros constitucionais traçados. Esse assunto será melhor tratado adiante (item 4).

2.2 CRITÉRIO ESPACIAL

A importância da correta identificação do critério espacial do ISS reside em delimitar o


local em que se considera conjugado o verbo e seu complemento, descritos no critério
material, autorizando a instalação do vínculo obrigacional tributário.

Na linha dos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho:

acreditamos que os elementos indicadores da condição de espaço, nos supostos


das normas tributárias, hão de guardar uma dessas três formas compositivas,
diretriz que nos conduz a classificar o gênero tributo na conformidade do grau
de elaboração do critério espacial da respectiva hipótese tributária: a) hipótese
cujo critério espacial faz menção a determinado local para a ocorrência do fato
típico; b) hipótese em que o critério espacial alude a áreas específicas, de tal
sorte que o acontecimento apenas ocorrerá se dentro delas estiver
geograficamente contido; c) hipótese de critério espacial bem genérico, onde
todo e qualquer fato, que suceda sob o manto da vigência territorial da lei
instituidora, estará apto a desencadear seus efeitos peculiares.167

164
BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. São Paulo: Dialética, 2003. p. 29.
165
Ibidem, p. 31.
166
CARVALHO, Paulo de Barros, “Curso de Direito Tributário”, 16. ed. Editora Saraiva, 2004. p. 254 e 350. No mesmo
sentido de que a Constituição se refere a „prestar serviço‟: MELO, José Eduardo Soares de, “ISS – Aspectos Teóricos e Práticos”, 3ª
edição (atual. conforme a Lei Complementar n° 116/2003), Ed. Dialética, São Paulo, 2003. p. 33 e ss.
167
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 258.

93
É preciso, porém, ainda segundo o mestre, deixar clara a distinção entre critério espacial
da hipótese e campo de eficácia da lei tributária. Por vezes, em razão de uma opção do
legislador, coincide o critério espacial com o próprio plano de eficácia territorial da lei, dando a
impressão de que não pudessem adquirir feição diferente, o que não é verdade.

No que concerne ao ISS, a Constituição Federal não é expressa no que diz respeito ao
local onde se reputará, ocorrido o fato jurídico. Entretanto, pode-se constatar que o critério
espacial da hipótese coincide com o campo de eficácia da lei tributária. Logo, o fato jurídico-
tributário definido pela Constituição há de ocorrer em qualquer ponto situado dentro do
território do Município, que é onde a lei municipal poderá produzir seus efeitos, enquadrando-
se, pois, no terceiro item (c) supra descrito.

De acordo com o princípio da territorialidade, as leis tributárias aplicam-se, via de regra,


apenas aos fatos ocorridos no território abrangido pelo ente político tributante. Implícito na
Constituição Federal, derivado da soberania e da forma de organização do Estado brasileiro,168
o princípio da territorialidade impede que a legislação de um determinado ente político-
constitucional produza efeitos fora dos seus limites geográficos.

Excepcionalmente, nos termos do art. 102 do CTN,

a legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora,


no País, fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam
extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta
ou outras leis de normas gerais expedidas pela União.

Trata-se de eficácia extraterritorial das leis municipais no âmbito interno do país.


Contudo, não é objetivo deste estudo debater, nesse momento, a possibilidade ou não de vir o
legislador infraconstitucional, utilizando-se da norma insculpida no art. 146, inc. I, da CF, que
trata da edição de lei complementar para dispor sobre conflitos de competência entre
Municípios, a considerar, em determinadas situações, prestado o serviço no local do
estabelecimento do prestador (ou do domicílio), outrora no local da efetiva prestação.

Apenas para registrar, o professor Roque Carrazza, dentre outros tantos autores, predica
que:

a Constituição traçou a regra-matriz de todos os tributos. Esta regra-matriz -


que vincula o Poder Legislativo das várias pessoas políticas - indica, dentre
outras coisas, o aspecto espacial possível da hipótese de incidência de cada
exação (ou seja, os limites do aspecto espacial da hipótese de incidência dos
tributos). O postulado vale também para o ISS. De acordo com a Constituição,
este imposto só pode alcançar os serviços de qualquer natureza (exceto os
referidos no art. 155, II, da CF) prestados no território do município tributante.
Por quê? Porque nosso Estatuto Magno adotou um critério territorial de
repartição das competências impositivas que exige que a única lei tributária
aplicável seja a da pessoa política em cujo território o fato imponível ocorreu. 169

Por outro lado, divergindo desse entendimento, há os que entendem que poderia incidir o
fenômeno da extraterritorialidade, pois um serviço prestado em território de um determinado
Município seria tributado conforme as normas de outro, no qual estivesse localizado o
estabelecimento do prestador.170

168
ARZUA, Heron. O ISS e o Princípio da Territorialidade. In Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba, Direito Tributário,
org. Celso A. Bandeira de Melo, Malheiros, SP, 1997, p. 145.
169
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 14 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p.
617.
170
Nesse sentido: COÊLHO, Sacha Calmon N. e DERZI, Misabel Abreu M. "Aspecto Espacial da Regra-matriz do Imposto
Municipal sobre Serviços, à luz da Constituição". In Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, nº 88, p. 126-
145, jan. 2003.

94
Diferentemente, porém, é a hipótese de determinada lei municipal alcançar fato ocorrido
em território estrangeiro. A Constituição Federal, em nenhum momento, autoriza a instituição
do ISS sobre fatos que se desenrolem fora do país.

O princípio da territorialidade, que, no âmbito interno, possui controvertida aplicação em


função das disposições contidas na LC 116/03 (art. 3º), interpretadas à luz do art. 146, I, da
CF, no âmbito externo, por ausência de permissivo constitucional, deve ser inegavelmente
observado.

Além disso, mostra-se claramente ineficaz a legislação tributária que pretenda alcançar
fatos ocorridos fora do território nacional.

2.3 CRITÉRIO PESSOAL (SUJEITO PASSIVO)

Paulo de Barros Carvalho bem demonstrou que, em geral, o modo descritivo ou


demarcado dos campos materiais de competência tributária, adotado pelo legislador
constituinte, no Brasil, consiste em acoplar verbos e respectivos complementos, de tal modo
que os sujeitos desses verbos são forçosamente os sujeitos constitucionalmente designados,
cujo patrimônio será diminuído pela incidência da lei tributária.171

Esses são os destinatários constitucionais da carga tributária. Em princípio, devem ser,


portanto, os contribuintes das relações tributárias, na forma da lei, a serem criadas. Só em
casos excepcionais pode haver transferência da responsabilidade tributária, de modo a deixar
como sujeitos passivos outros que não esses, constitucionalmente designados.

Não se pode admitir liberdade do legislador na deslocação da sujeição passiva, porque


fazê-lo importaria tornar inócuas as dicções constitucionais e esvaziar totalmente o significado
das demarcações constitucionalmente estabelecidas dos fatos, que não são meros
pressupostos das obrigações tributárias, mas, muito mais do que isso, devem ser – em
homenagem ao princípio da capacidade contributiva, conjugado com o princípio da
discriminação rígida das competências – fatos reveladores de riqueza de determinadas
pessoas: aquelas constitucionalmente visadas pelo constituinte, ao mencionar os fatos que
elas causam, produzem, ou com os quais se relacionam.

Parece induvidoso que a Constituição, ao mencionar serviço, refere-se ao seu prestador


como “destinatário constitucional”, ou seja, a Constituição não se limita à consideração
objetiva do serviço, mas, para fixar o conceito de serviço tributável, necessariamente faz
referência ao prestador do serviço, nele centrando a sua preocupação tributária mediante a
implícita autorização, ao legislador infraconstitucional, para que atinja o prestador, que – no
contexto de prestações com conteúdo econômico – será o beneficiário da retribuição ou
remuneração a que ele corresponda.

Caso se pretenda entender como tributável a fruição do serviço então, como visto, o
sujeito já será outro e a própria figura já deixará de ser aquela constitucionalmente
contemplada. O consumidor é o tomador de serviço.

Em verdade, quem extrai proveito econômico é o prestador; ele é que se beneficia da


remuneração pela prestação. É ele, destarte, o destinatário constitucional tributário. É certo
que quem presta serviço o faz com o fito econômico, o que dá ao fato exatamente aquele
conteúdo econômico constitucionalmente requerido.

3 A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS NA HIPÓTESE DO SERVIÇO


PROVENIENTE DO EXTERIOR OU CUJA PRESTAÇÃO SE TENHA INICIADO NO
EXTERIOR DO PAÍS (LC Nº 116/03): CRITÉRIOS MATERIAL, ESPACIAL E PESSOAL

Levando em consideração a regra-matriz constitucional traçada para o imposto sobre


serviços, com as ponderações feitas acima acerca dos critérios material, espacial e pessoal

171
CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 258.

95
(sujeito passivo), passaremos a demonstrar a inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre
serviços provenientes do exterior ou cuja prestação lá se tenha iniciado, trazida pela LC nº
116/03, atacando especificamente os critérios referidos.

Antes de mais nada, salienta-se que, no decorrer desse capítulo, procura-se orientar o
estudo com observância da divergência jurisprudencial e doutrinária – já mencionada -
existente sobre o critério espacial do ISS (local da efetiva prestação do serviço ou local do
estabelecimento do prestador), haja vista os distintos efeitos práticos desencadeados por cada
tese.

3.1 CRITÉRIO MATERIAL

Consoante o aduzido anteriormente, a Constituição Federal, ao prever a possibilidade de


tributação de serviços de qualquer natureza está, intrinsicamente, referindo-se à instituição de
imposto sobre a prestação de serviços, uma vez que o ISS incide, necessariamente, sobre uma
atividade, denominada “serviço” simplesmente, ou prestação de serviços.

A realidade fenomênica mostra inúmeras situações em que as atividades (prestação de


serviços) resultam de uma série de etapas que, em tese, poderiam ser considerados
individualmente para efeito de tributação. São o que se costuma chamar de “serviços
complexos”.

Contudo, o que importa é considerar o negócio jurídico objetivado pelas partes. O serviço
que configura atividade-meio, imprescindível para a concretização da atividade-fim, deve
receber o mesmo tratamento tributário dispensado a esta.

É o que, aplaudidamente, esclarece Aires F. Barreto:

Alvo de tributação é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto.


Não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do
fim. Não a ação desenvolvida como requisito ou condição do facere (fato jurídico
posto no núcleo da hipótese de incidência do tributo).
As etapas, passos, processos, tarefas, obras, são feitas, promovidas, realizadas
„para‟ o próprio prestador e não „para terceiros‟, ainda que estes os aproveitem
(já que, aproveitando-se do resultado final, beneficiam-se das condições que o
tornaram possível).172

E conclui:

somente podem ser tomadas, para sujeição ao ISS (e ao ICMS) as atividades


entendidas como fim, correspondentes à prestação de um serviço integralmente
considerado. No caso específico do ISS, podem decompor um serviço – porque
previsto, em sua integridade, no respectivo item específico da lista da lei
municipal – nas várias ações-meios que o integram, para pretender tributá-las
separadamente, isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um
serviço autônomo, independente. Isso seria uma aberração jurídica, além de
constituir-se em desconsideração à hipótese de incidência desse imposto.173

A identificação do serviço - previsto na lista anexa à lei municipal - que configura a


atividade-fim é indispensável para a especificação do critério material da norma de incidência.

Mas a relevância da identificação da atividade-fim não pára por aí, consoante o que
adiante se explicitará.

3.1.1 LOCAL DA EFETIVA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO

Caso se adote como critério espacial da regra-matriz de incidência o local da efetiva


prestação do serviço, e para que possa ser exigida a exação, é indispensável a ocorrência do

172
ISS – Atividade-meio e Serviço-fim, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 5, p. 83.
173
Ibidem.

96
fato “prestar serviço”, integralmente ou, pelo menos, a atividade-fim, no território nacional. Do
contrário, o prestador do serviço, nacional ou estrangeiro, não poderá ser alcançado pela
norma impositiva.

Temos não ser possível, diante da ausência de disposição constitucional nesse sentido, a
tributação, pelo ISS, de serviços cujo processo de prestação se desenvolveu integralmente no
exterior, não prosperando os argumentos que defendem entendimento no sentido de que não
a atividade de prestar serviço, mas a utilidade da mesma decorrente pode ser bastante para
configurar o critério material do ISS.

Com relação à segunda hipótese disposta pela lei, pela qual a empresa inicia a prestação
do serviço no exterior, concluindo-o, porém, em território nacional, entendemos estar ela a
tratar dos chamados “serviços complexos”. A atividade-fim desenvolvida no exterior não pode
ser abarcada pela norma tributária brasileira, tendo em vista a ausência de permissivo
constitucional. Em verdade, tecnicamente, tal hipótese equivale àquela dos serviços
provenientes do exterior, já que o serviço, embora possa ser, em tese, decomposto em
etapas, para fins tributários, deve ser considerado como único.

A tributação do ISS sobre serviços iniciados no exterior, e concluídos no país, atividade-


fim desempenhada no exterior, assim como os de lá integralmente provenientes, faz com que
o imposto municipal recaia não sobre a prestação de serviços em si, mas sim sobre sua
fruição, materialidade que não encontra acolhida na regra-matriz constitucional do ISS.

Aqui, a Constituição conota e denota o fato que pode ser adotado pelo legislador
municipal, pela menção à atividade humana – no sentido da conceituação de „serviço‟ supra
descrita -, consistente na prestação de serviços.

3.1.2 LOCAL DO ESTABELECIMENTO DO PRESTADOR DO SERVIÇO

Sendo o critério espacial o local do estabelecimento do prestador, a perspectiva é outra.


No caso de empresas prestadoras de serviço brasileiras serem contratadas por tomadores
brasileiros, mas que, para cumprimento integral dos serviços contratados, necessitem, por sua
vez, contratar serviços complementares de empresas estrangeiras, acredita-se não haver
dúvida sobre a incidência do ISS. O Imposto sobre Serviços só incide sobre a atividade-fim,
ainda que a atividade-meio tenha ocorrido no exterior.

A incidência do ISS sobre o fato, nesse caso, cremos, não se dá pela pecha de
importação do serviço iniciado no exterior, como deseja a LC nº 116/03, mas sim em função
da atividade-fim desempenhada no território nacional, que é perfeitamente encampada pela
regra-matriz de incidência do imposto sobre serviços delineada constitucionalmente.

E vamos além, entende-se haver a incidência da norma tributária mesmo que toda a
atividade tenha se desenvolvido no exterior, isso porque o relevante, para essa tese, é a
localização do estabelecimento do prestador de serviço.

Nesse sentido, Sacha Calmon e Misabel Derzi afirmam que:

não resta dúvida de que o Município pode tributar os serviços prestados e


executados no exterior, ainda que o beneficiário também tenha sede no exterior,
bastando para a incidência que, em seu território, se localize o estabelecimento
do prestador. (grifo nosso)174

Diferentemente, porém, é a circunstância da empresa estrangeira ser contratada para


prestar serviços para tomadores brasileiros, mas que, para cumprimento integral do escopo
dos serviços contratados, necessite, a seu turno, contratar serviços complementares de
empresas brasileiras. A nosso ver, foi esse o fato que a LC nº 116/03 pretendeu abarcar.

174
COÊLHO, Sacha Calmon N; DERZI, Misabel Abreu M. Aspecto Espacial da Regra-matriz do Imposto Municipal sobre Serviços,
à luz da Constituição. In Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, nº 88, p. 133-134, jan. 2003.

97
No que concerne a essa situação, constatamos a existência de dois diferentes pontos de
vista:

a) há, no caso, uma conexão material entre o não-residente prestador do serviço e o


Município localizado em território brasileiro, visto que o serviço é aqui concluído; ou

b) não há amparo constitucional para exigir-se o ISS relativamente a esse serviço


iniciado no exterior mas aqui concluído, visto que a extraterritorialidade somente pode ser
adotada em situações peculiares, mediante expressa previsão constitucional.175 176

Na linha da conclusão contida na letra „b‟, entendemos não haver autorização


constitucional para a aplicação da extraterritorialidade quando a empresa estrangeira inicia a
prestação do serviço no exterior, e a conclui no território nacional.

Além disso, partindo-se da premissa de que a atividade-fim é que deve ser levada em
conta para efeitos de tributação, resta evidente que o sujeito definido pela lei como
contribuinte (art. 5º, LC nº 116/03), qual seja, o prestador de serviço não-residente, não pode
ser atingido pela legislação brasileira no seu país.

Igualmente, pelas mesmas razões, inexiste a tributação quando o prestador não-


residente realiza toda a atividade (prestação de serviço) em seu território, o que configura a
hipótese de serviço proveniente do exterior.

A tributação do ISS sobre serviços iniciados no exterior, e concluídos no país – atividade-


fim contratada no exterior -, assim como os de lá provenientes, faz com que o imposto
municipal recaia não sobre a prestação de serviços em si, mas sim sobre sua fruição,
materialidade esta que não encontra fundamento de validade na regra-matriz constitucional.

12.CRITÉRIO ESPACIAL

Afirma-se nas linhas acima que a Constituição Federal estabelece limites às competências
tributárias de cada ente tributante. Com isso, pretendeu-se asseverar que cada regra de
atribuição de competência tributária exerce uma função dúplice, na medida em que, ao prever
as situações em que determinada competência pode ser exercida, estabelece que toda e
qualquer situação que se encontra fora de seu campo de incidência encontra-se excluída da
tributação.

Assim, ao estabelecer que os Municípios e o Distrito Federal possuam competência para


instituir imposto sobre a prestação de serviços, determina a Constituição, simultaneamente,
que lhe falece competência para tributar pelo ISS qualquer comportamento que não possa ser
equiparado à atividade de prestação de serviços.

Além de prever o comportamento tributável, constam na regra-matriz de incidência


também as diretrizes espaciais que determinam o nascimento do dever tributário. Com isso,
quer-se dizer que consta na regra-matriz de incidência a indicação do local onde a ocorrência
do comportamento selecionado como fato gerador produz os efeitos fiscais pretendidos.

Na LC n° 116/03, art. 3º, o critério espacial do ISS encontra-se definido com base em
dois aspectos:

a) regra geral, o imposto é devido no Município onde se encontra o estabelecimento


prestador do serviço (ou no local de domicílio do prestador); e

b) excepcionalmente, o imposto é devido no local de sua efetiva prestação.

175
ALVES, Anna Emilia Cordelli, “Importação de Serviços – Impossibilidade da Tributação pelo ISS em Decorrência do Critério
Constitucional da Origem do Serviço”, in Revista Dialética de Direito Tributário n° 112, p. 7-15.
176
SILVA, Sergio André R. G. da, “Considerações acerca da Incidência do ISS sobre Serviços Prestados no Exterior”, in Revista
Dialética de Direito Tributário n° 104, p. 88-95.

98
Antes da entrada em vigor do referido diploma legal, o Superior Tribunal de Justiça, sob
a vigência do DL n° 406/68 – recepcionado pela CF como lei complementar -, havia pacificado
o posicionamento de que o critério espacial do ISS seria o do local da efetiva prestação do
serviço, conforme se verifica pela ementa a seguir transcrita:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA - ISS - COMPETÊNCIA - LOCAL DA PRESTAÇÃO


DE SERVIÇO - PRECEDENTES - I - Para fins de incidência do ISS - Imposto
Sobre Serviços - importa o local onde foi concretizado o fato gerador, como
critério de fixação de competência do município arrecadador e exigibilidade do
crédito tributário, ainda que se revele o teor do art. 12, alínea a, do Decreto-Lei
nº 406/68. II - Embargos rejeitados. (grifo nosso)
(STJ, 1ª Seção, EdivREsp 130.792/CE, Rel(a). p/o acórdão Min(a). Nancy
Andrighi, DJU 12.06.2000, p. 66)

Porém, sem entrar na discussão sobre a possível subsistência dessa interpretação frente
à LC n° 116/03, independentemente do aspecto utilizado para fins de determinação do local da
prestação (localização do estabelecimento prestador ou da efetiva prestação do serviço), é de
se assinalar que a ocorrência da hipótese de incidência do imposto encontra-se sempre
vinculada aos limites de um Município, no âmbito interno do país.

Nos termos em que a Constituição atribuiu a competência para a instituição do Imposto


sobre Serviços, a lei municipal não pode alcançar fatos jurídicos ocorridos no exterior, ou seja,
não pode haver a incidência do aludido imposto sobre serviços efetivamente prestados fora
dos limites de um Município brasileiro, ou quando nem sequer o estabelecimento do prestador
se localiza no país, a depender da tese do critério espacial adotada.

Nesse sentido já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

NÃO INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA. IMUNIDADE. COISA JULGADA. A lei municipal


não pode alcançar fatos geradores ocorridos no exterior e o ISS só incide sobre
serviços descritos na lista anexa ao Decreto-Lei 834/69, prestados nos limites do
Município, excepcionalmente, em outros Municípios brasileiros. Além do mais, a
publicidade veiculada pela recorrente é amparada pela imunidade. Há
reprodução de ação idêntica, anteriormente ajuizada, decidida e com trânsito
em julgado. Recurso provido.” Excerto do voto do Ministro Relator Garcia Vieira:
[...] o Município só pode tributar os serviços prestados em seu território e,
excepcionalmente, em outras comunas, mas, sempre dentro do Brasil. Estamos
diante de não incidência tributária, e, também, de imunidade (art. 19, III, letra
“d” da CF anterior). A lei municipal não pode alcançar fatos geradores ocorridos
no exterior e o ISS só incide sobre os serviços descritos na lista anexa ao
Decreto-Lei n° 834/69, prestados nos limites do município ou,
excepcionalmente, como vimos, em outros territórios, mas, sempre dentro de
nosso país (CTN, art. 102). O disposto no art. 12 do DL 406/68 só se aplica
quando os serviços são prestados no território nacional e não no exterior. (grifo
nosso)
(STJ - REsp 26.827/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ 16.11.1992, p.
21121)
TRIBUTÁRIO. ISS. SUA EXIGÊNCIA PELO MUNICÍPIO EM CUJO TERRITÓRIO SE
VERIFICOU O FATO GERADOR. INTERPRETAÇÃO DO ART. 12 DO DECRETO-LEI
Nº 406/68. A lei municipal não pode ser dotada e extraterritorialidade, de modo
a irradiar efeitos sobre um fato ocorrido no território de município onde não se
pode ter voga. [...] (grifo nosso)
(STJ – REsp 54.002/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ 08.05.95, p.
12309)

Da mesma forma, Geraldo Ataliba e Cleber Giardino, escrevendo na vigência do texto


constitucional anterior - e ainda merecendo respaldo -, sustentavam a existência do princípio
da territorialidade, afirmando: “se a prestação do serviço se der no exterior, esse fato não
poderá ser alcançado pela lei do Município” 177.

177
Territorialidade da Lei Tributária Estadual, in Revista de Direito Tributário nº 40, p. 44-53.

99
Em relação à importação de serviços, prevê a LC n° 116/03 que será considerado
prestado o serviço no Município onde estiver localizado o estabelecimento tomador ou
intermediário do serviço.

É o que dispõe o art. 3°, inc. I:

Art. 3º. O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do


estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio
do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o
imposto será devido no local:

I - do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de


estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, na hipótese do § 1º do art. 1º
desta Lei Complementar. (grifo nosso)

A lei complementar nesse aspecto mostra-se incoerente e incompatível com o desígnio


constitucional, diante da total ausência de conexão entre o estabelecimento prestador
estrangeiro, ou entre a efetiva prestação de serviço no país estrangeiro, e os territórios dos
Municípios dos importadores de serviços (intermediários ou usuários).

Tanto não existe essa conexão que o legislador obrigou-se a estabelecer como critério
espacial de incidência o estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço.

Desse modo, a hipótese não se encontra em consonância com os limites espaciais


impostos pela Constituição para cobrança do ISS, na medida em que o vínculo estabelecido
entre o estabelecimento do prestador, ou a efetiva prestação de serviços, e um Município
brasileiro é feito não pela ocorrência neste do critério material do tributo (prestar serviço),
mas pela presença de sujeito que não possui qualquer vínculo com a relação jurídica tributária
(o tomador do serviço).

Como se sabe o texto constitucional não cria tributos, mas sim confere a competência
para que os entes federados os criem. Entretanto, a Constituição Federal traça alguns dos
elementos que compõem a regra-matriz de incidência tributária, de forma que qualquer lei que
venha, de alguma forma, a complementar o texto constitucional deverá observá-la.

Essa disposição vale também para o ISS, sendo que sua regra-matriz de incidência
indica, dentre todos os seus componentes, o critério espacial, ou seja, o limite territorial para o
exercício da competência tributária, que no caso é o território do Município onde ocorreu o fato
que dá ensejo à incidência normativa.

3.3 CRITÉRIO PESSOAL (SUJEITO PASSIVO)

Tendo em vista que, na tese do critério espacial como sendo o local da efetiva prestação
de serviço, a circunstância de ser o prestador nacional ou estrangeiro não é elementar para
efeitos de caracterização de ser ou não o serviço prestado no exterior, deixaremos de discorrer
a respeito nesse item. O simples fato de a atividade (prestação de serviço) ocorrer no exterior
já denota a inexistência de relação jurídica entre o prestador e qualquer Município brasileiro.

Devido a isso, tudo o quanto será dito sobre o critério em referência terá como
embasamento o critério espacial do local do estabelecimento do prestador (ou do domicílio).

A hipótese de incidência modelada na Constituição, como visto, não é a aquisição de


serviços, mas a prestação de serviços. Logo, o critério pessoal do ISS, especificamente o
sujeito passivo direto, será, necessariamente, o prestador do serviço.

A própria LC n° 116/03, em seu art. 5°, assim define: “contribuinte é o prestador do


serviço”.

Mais adiante, a lei estabelece a figura do responsável tributário:

100
Art. 6°. [...]
§ 2°. Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1° deste artigo, são
responsáveis:
I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou
cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País; [...] (grifo nosso)

Ainda que o art. 6° da LC n° 116/03 possibilite ao legislador ordinário a criação da figura


do responsável tributário por transferência ou substituição, nos moldes já previstos no art. 128
do Código Tributário Nacional, relativamente ao tomador ou intermediário de serviços
importados, elege-os como “responsáveis” pelo ISS incidente, quando em verdade os mesmos
caracterizam-se como verdadeiros contribuintes, visto que as ordens jurídicas nacionais (quer
a LC, quer as diversas leis ordinárias municipais) não têm aptidão para alcançar pessoa física
ou jurídica prestadora de serviços em solo estrangeiro e elegê-los como contribuintes do ISS,
única hipótese possível a autorizar a previsão de um eventual responsável legal tributário,
como pretendido pela nova disciplina nacional do imposto municipal.

A respeito desse assunto, Heleno Tôrres 178 manifesta que a LC n° 116/03 somente
reconhece como contribuinte do ISS o respectivo prestador do serviço e o disse claramente no
art. 5°. Para o autor, quando o contribuinte for um sujeito não-residente sua atividade
somente pode ser colhida pelo imposto, no Brasil, quando sua ação mantenha alguma conexão
material com o território do respectivo Município brasileiro.

O tomador de serviços (residente) somente pode ser definido como responsável pelo
débito do imposto (art. 6°, § 2°, I), mas exclusivamente quando, previamente, se tenha por
aperfeiçoada a relação jurídica obrigacional, entre Município do local do domicílio do tomador e
o sujeito não-residente, a partir do fato jurídico tributário consubstanciado num evento
qualificado na lista de serviços, concluído pelo efetivo contribuinte no território nacional, ou
melhor, no território do respectivo Município, mesmo que se tenha iniciado no exterior.

Para Heleno Tôrres, os sujeitos não-residentes não podem ser tributados no Brasil por
fatos praticados no exterior, por absoluta falta de conexão material entre suas atividades com
o ordenamento local.
Também José Eduardo Soares de Melo179 ao analisar referida tributação afirma que esse
preceito não tem fundamento de validade no ordenamento constitucional, uma vez que
objetiva alcançar fatos ocorridos fora do território nacional, além de criar uma esdrúxula
obrigação tributária (inexistência de contribuinte prestador do serviço mediante estipulação
exclusiva do responsável na pessoa do respectivo tomador) (art. 6°, § 2°, I).

O autor acrescenta que, de acordo com o princípio da territorialidade, os nacionais de um


país somente devem ser tributados pelo país em que residem e nunca poderiam ser
alcançados quando residentes no estrangeiro. No entanto, entende que a extraterritorialidade
tem sido considerada em situações peculiares, com expressa determinação constitucional e
mediante a celebração de tratado entre países, com o escopo de evitar a dupla tributação.
Assim, são específicas, excepcionais e limitadas as previsões de incidências tributárias
relativamente a fatos, estados, negócios e situações ocorridas no exterior, ou delas
decorrentes, como é o caso do IR, ICMS e Imposto de Importação.

No presente caso, verifica-se claramente que a LC nº 116/03 abdicou da figura do


contribuinte em favor do responsável tributário, por uma razão muito simples: o prestador de
serviços está situado no exterior, não podendo os seus atos serem colhidos por lei brasileira.

E assim fazendo, está a lei complementar incorrendo em flagrante inconstitucionalidade.

4. ISS SOBRE A IMPORTAÇÃO DE SERVIÇOS E A LEI COMPLEMENTAR: UM NOVO


IMPOSTO?

178
Prestações de Serviços Provenientes do Exterior ou cuja Prestação se tenha Iniciado no Exterior, in ISS na Lei
Complementar n° 116/2003 e na Constituição, v. 2, Coleção de Direito Tributário, coordenador Heleno Taveira Tôrres, Barueri,
2004, p. 281 e ss.
179
ISS – Aspectos Teóricos e Práticos”, 3ª edição (atual. conforme a Lei Complementar n° 116/2003), São Paulo: Dialética,
2003, p. 158.

101
Nas palavras do mestre Paulo de Barros Carvalho,180 “a norma jurídica é a significação
que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo. Trata-se de algo que se produz
em nossa mente, como resultado da percepção do mundo exterior, captado pelos sentidos”.

Realizando um trabalho hermenêutico sobre o conjunto dos textos do direito posto,


verificamos que a LC n° 116/03 visou a criação de um novo imposto, com critérios
completamente distintos dos que compõem a regra-matriz constitucional de incidência do
imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS), de competência municipal.

Para tanto, descreve a fruição de serviços como critério material do imposto, o que resta
claro pelo fato de que a ocorrência da prestação de serviço no exterior, sem a correspondente
participação na relação jurídica de tomador residente no território nacional, não será tributada.

No tocante ao critério pessoal (sujeito passivo), a LC n° 116/03, apesar de denominá-los


como “responsáveis” pelo recolhimento do tributo (art. 6°, § 2°, I), estabelece o tomador ou o
intermediário de serviço proveniente do exterior do País como verdadeiros contribuintes do
imposto, com exclusão de qualquer outro sujeito.

Ademais, cabe referir que a lei complementar elege como domicílio tributário o
estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde
o “responsável” (contribuinte) estiver domiciliado (art. 3°, I).

Depreende-se, pois, a partir de uma interpretação dos dispositivos constantes na LC nº


116/03, que a regra-matriz de incidência desse tributo tem, no seu antecedente, a fruição de
serviços como critério material, o local do estabelecimento do tomador ou intermediário do
serviço, ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, como critério espacial, o
momento da fruição do serviço como critério temporal; no seu conseqüente, como critério
pessoal o tomador ou intermediário do serviço (sujeito passivo) e a União Federal (sujeito
ativo), e o preço do serviço como critério quantitativo (base de cálculo). Ausente a estipulação
de alíquota no critério quantitativo.

Assim, resta a dúvida se poderia ou não a LC n° 116/03 inovar e dessa forma criar um
novo imposto (ISS - Importação), de competência da União.

Para melhor análise da questão é importante a leitura do que dispõe a Constituição


Federal:

Art. 154. A União poderá instituir:


I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde
que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo
próprios dos discriminados nesta Constituição; [...]

O artigo 154, inc. I, supra transcrito expressa a possibilidade da instituição de impostos


residuais por parte da União. No caso de instituição de novo imposto pela União, no exercício
da sua competência residual, exige-se lei complementar para a definição da integralidade dos
critérios integrantes da respectiva regra-matriz de incidência, abrangendo inclusive a alíquota,
componente do critério quantitativo. Além disso, deverá atender aos demais requisitos
previstos no dispositivo, tais como a não-cumulatividade e a ausência da mesma hipótese de
incidência e da mesma base de cálculo dos impostos discriminados na Constituição.

Constata-se, de plano, a insubsistência do ISS – Importação veiculado pela LC nº


116/03. Tanto pelo fato de não conter todos os elementos integrantes da regra-matriz, quanto
por não atender aos demais pressupostos. A base de cálculo do tributo em referência, por
exemplo, é idêntica à do Imposto sobre Serviços de competência municipal.

180
CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 8.

102
Estaria a legislação complementar, portanto, pretendendo criar um novo imposto,
todavia, em contraposição às atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição Federal
(art. 154, I).

Ademais dessa função inovadora, cabe salientar que a lei complementar possui outras
que se destacam.

Vejamos o que dispõe o art. 146 da Constituição Federal:

Art. 146. Cabe à lei complementar:


I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,
especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos
discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de
cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades
cooperativas;
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e
para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados
no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art.
195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Alínea
acrescentada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, DOU
31.12.2003, com efeitos a partir de 45 dias da publicação). [...]

Percebe-se que a Constituição Federal prevê a possibilidade da edição de lei


complementar para a fixação de normas gerais no tocante a definição de fatos geradores e
contribuintes de impostos.

Uma leitura desatenta desse texto poderia nos levar a conclusão que a LC n° 116/03 está
em consonância com a Carta Magna. No entanto, esse dispositivo não pode ser analisado de
forma independente.

Para o professor Roque Carraza,

se a lei complementar tributária referida no art. 146 do Diploma Magno não


apontar os nortes da Constituição, perderá, por completo, a razão jurídica de
existir e, destarte, a ninguém poderá obrigar, muito menos aos legisladores das
pessoas políticas, para os quais deve apenas dar orientação, e não fundamento
de validade. Assim, proclamamos, desde agora, que tal lei complementar só
pode explicitar o que está implícito na Constituição. Não pode inovar, mas
apenas, declarar. Para além destas angustas fronteiras, o legislador
complementar estará arrogando-se atribuições que não lhe pertencem e, deste
modo, desagregando princípios constitucionais que deve acatar, máxime os que
concedem autonomia jurídica às pessoas políticas no que concerne à decretação
a arrecadação dos tributos de sua competência.181

É importante ressaltar que o ente competente para legislar instituindo tributos não está
autorizado a fazê-lo como bem entender, pois, ao mesmo tempo em que a Constituição
Federal outorgou a competência tributária, delimitou-a, devendo ser integralmente respeitada.

A eleição dos critérios material, espacial e pessoal feita pela LC nº 116/03 para a
importação de serviços, além de ser dissonante dos critérios traçados pela Constituição, destoa
dos limites funcionais da lei complementar fixados constitucionalmente.

Deve o legislador complementar observar o disposto pela Lei Maior, sendo que não lhe é
permitido extrapolar os contornos das funções que lhe foram atribuídas pelo art. 146.

181
CARRAZZA, Roque Antonio. “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 14ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
578.

103
Em razão disso, pensamos que a LC n° 116/03 no tocante a importação de serviços é
inconstitucional, tendo em vista que o texto constitucional não prevê, quando traça a regra-
matriz do tributo (ISS), essa hipótese de incidência.

5 PARALELO COM OUTROS TRIBUTOS

Não se pode deixar de argumentar, ainda, que, nos casos em que desejou gravar a
importação, a Constituição Federal o fez de forma expressa, outorgando à União, por exemplo,
a competência para a instituição do Imposto sobre Importação de produtos estrangeiros - II
(art. 153, I), para a instituição de Contribuições Sociais sobre a importação de bens ou
serviços do exterior (arts. 149, § 2°, II e 195, IV), para a instituição de Contribuições de
Intervenção no Domínio Econômico – CIDE - Importação (arts. 149,§ 2°, II e 177, §4°), e
outorgando aos Estados a competência para a instituição do ICMS - Importação (art. 155, §
2°, IX, “a”).

Caso não houvesse essas previsões constitucionais de forma explícita, não se poderia
cogitar em tributação nessas hipóteses.

Esse foi o entendimento exarado pelo Exmo. Min. Carlos Velloso nos autos do Recurso
Extraordinário n° 203.075-9/DF (STF – 1a Turma, Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ de
29.10.99, p. 18), com relação ao ICMS - Importação:

O contribuinte do ICMS é o vendedor, não obstante tratar-se de um imposto que


repercute e acaba sendo pago pelo comprador. Todavia, esse é um fato
econômico, que o Supremo Tribunal Federal entende que não tem relevância na
relação jurídica contribuinte-fisco. Se o contribuinte é o vendedor, numa
importação não haveria pagamento de ICMS, pelo simples motivo de o
exportador estar no exterior. Foi preciso, portanto, que a Constituição
estabelecesse, expressamente, a incidência desse tributo, na
importação, e expressamente explicitou que o seu pagamento seria feito pelo
comprador, ou seja, pelo importador. [...] o importador, assim o comprador,
que é comerciante ou industrial, pode, na operação seguinte, utilizar o crédito
do tributo que pagou no ato do desembaraço aduaneiro. O particular, que não é
comerciante ou industrial, jamais poderia fazer isso. É dizer, caberia a ele o
ônus total do tributo. (grifo nosso)

No que diz respeito ao Imposto de Renda e ao Imposto sobre Produtos Industrializados,


algumas ponderações merece serem feitas.

Quanto ao IR, a própria Constituição estabelece que o imposto será informado pelo
critério da universalidade (art. 153, § 2°, I). Quer dizer com isso que o legislador
infraconstitucional, no que concerne ao critério espacial, não encontra restrições
constitucionais para a instituição do imposto sobre a renda, podendo restringir a imposição
tributária sobre fontes produtoras de renda localizadas no território nacional ou adotar o
critério da universalidade, alcançando, assim, fatos tipificados que se compõem para além de
nossas fronteiras. Apenas, quanto a este critério, por questão de efetividade, a incidência do
imposto deve ficar adstrita aos limites onde o Estado possa exercitar sua soberania, mas
independentemente do lugar onde tal renda tenha sido gerada.

Já quanto ao IPI, tomado na regra infraconstitucional que prevê a incidência sobre a


importação, alguns autores divergem quanto à constitucionalidade da sua instituição diante da
ausência de previsão constitucional específica.182 A discussão assemelha-se a que aqui é
levantada. Lá, o cerne do problema reside em saber se a importação de produto industrializado
também realiza a hipótese fática do IPI.

Apenas para registrar nosso pensamento, se a Constituição atribui à União a competência


para instituir imposto sobre a “importação de produtos estrangeiros” (art. 153, I), claro está

182
PAULSEN, Leandro, Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, 5.
ed. Porto Alegre-RS: Livraria do Advogado, ESMAFE, 2003. p. 700 e ss.

104
que as operações com produtos industrializados não poderão estender seu manto por sobre a
importação de produtos industrializados estrangeiros, sob pena de invadirem a materialidade
da hipótese de outro tributo.

Na verdade, o que fez o legislador federal quando instituiu o IPI nas importações foi criar
um autêntico adicional do Imposto de Importação, como assevera José Roberto Vieira 183. Note-
se que não resultou magoada a discriminação constitucional de competências, de vez que
ambos, IPI e Imposto de Importação, foram entregues à mesma pessoa política (União).

183
VIEIRA, José Roberto. A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto. Curitiba: Juruá, 1993. p. 98.

105
6 CONCLUSÃO

A Constituição Federal é rígida e, com extrema rigidez, fixa as competências tributárias,


discernindo as áreas exclusivas de atuação das pessoas políticas. A legislação
infraconstitucional não altera a Constituição. Não pode a lei complementar diminuir, nem
ampliar as competências.

Cada regra de atribuição de competência tributária exerce uma função dúplice. Descreve,
genericamente, ao distribuir as competências, quais os fatos que podem ser escolhidos pelo
legislador infraconstitucional como hipótese de incidência de determinado imposto, assim como
exclui da tributação toda e qualquer situação que se encontra fora de seu campo de incidência.

O inc. III do art. 156 da Constituição estabelece o âmbito de competência dos Municípios
para legislar sobre o Imposto sobre Serviços, não compreendidos na competência dos Estados,
definidos em lei complementar.

Do conceito de serviço descrito pela Constituição deflui que somente é tributável a


materialidade “prestar serviço”, pois o prestador é o verdadeiro beneficiário da remuneração,
que é o modo objetivo que indica a mensuração do conteúdo econômico.

A materialidade descrita pelo § 1º do art. 1º, da LC nº 116/03, quanto à importação de


serviços, pretende, desautorizadamente, ampliar a materialidade constitucional, abarcando o
fato “consumir, fruir ou utilizar serviço”.

A Constituição não é explícita no que diz respeito ao local onde se reputará ocorrido o
fato jurídico-tributário. Entretanto, verifica-se que o critério espacial da hipótese deve coincidir
com o campo de eficácia da lei tributária. Portanto, o fato jurídico definido pela Constituição há
de ocorrer em qualquer ponto situado dentro do território do Município, que é onde a lei
municipal poderá produzir seus efeitos.

Isso quer dizer que, consoante o princípio da territorialidade, a ocorrência da hipótese de


incidência do ISS encontra-se sempre vinculada aos limites de um Município, no âmbito interno
do país, e não no exterior, salvo autorização constitucional expressa.

Embora a LC nº 116/03 estabeleça, no seu art. 3º, inc. I, que, na hipótese de importação
de serviços, o mesmo considerar-se-á prestado no local do estabelecimento do tomador ou
intermediário do serviço, deve-se considerar prestado o serviço, de acordo com ditames
constitucionais, no local do estabelecimento prestador ou no local da sua efetiva prestação, a
depender da tese adotada.

O conceito de importação de serviços implícito na disposição do § 1º do art. 1º da LC nº


116/03, segundo o qual o imposto incide sobre os serviços provenientes do exterior do país ou
cuja prestação se tenha iniciado no exterior, interpretado à luz da materialidade constitucional
conferida ao ISS (“prestar serviço”), varia conforme a tese escolhida referente ao critério
espacial.

A adoção do critério espacial do local da efetiva prestação do serviço restringe a


incidência do ISS, pois inviabiliza a cobrança do imposto quando a execução dos serviços
ocorrer além dos limites territoriais do país, diferentemente do que ocorre quando o critério
espacial for o do local do estabelecimento prestador.

Diante da hipótese de incidência do ISS modelada pela Constituição, o sujeito passivo


direto (contribuinte) da obrigação será, necessariamente, o prestador do serviço, sendo que
somente pode ser alcançado pela norma impositiva quando o fato jurídico ocorrer no território
nacional.

A LC nº 116/03, no seu art. 6º, § 2º, inc. I, quanto à importação de serviços, elege como
responsáveis tributários o tomador ou intermediário de serviço, e o faz sem que se possa ter
por aperfeiçoada a relação jurídica obrigacional, entre o Município do local do domicílio do

106
tomador e o sujeito não-residente – que é o suposto contribuinte -, caso se adote a tese do
critério espacial do local do estabelecimento prestador, ou o sujeito prestador no exterior, caso
a opção seja pelo local da efetiva prestação do serviço.

Assim, não há possibilidade alguma de haver previsão de um eventual responsável legal


tributário, como pretende a legislação complementar mencionada.

Em face da dessemelhança dos critérios trazidos pela LC nº 116/03, com os que


compõem a regra-matriz constitucional do ISS, verifica-se que a citada lei visou a criação de
um imposto novo, de competência da União. No entanto, por não atender aos pressupostos
constitucionais para a instituição de impostos residuais (art. 154, I, CF), não merece prosperar
a pretensa imposição.

Ademais, o art. 156, III, da CF não faz qualquer referência à importação de serviços. Daí
salientar que a legislação complementar ultrapassou os limites de sua função (art. 146, CF),
incluindo dispositivo de que a Constituição não tratou.

Nos casos em que desejou gravar a importação, a Constituição Federal o fez de forma
expressa.

Por tudo o quanto foi dito, vemos que não há respaldo constitucional para a instituição de
ISS sobre a importação de serviços.

A produção jurisprudencial sobre o tema ainda é escassa, mas acreditamos que, em


virtude das considerações feitas neste estudo, por ela seremos majoritariamente
acompanhados.

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