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“Lembra-te que a ninguém é dado julgar, porque ninguém julgará bem o seu
próximo enquanto não se reconheça tão responsável quanto ele. Só quem está
bem persuadido disto estará capacitado para ser juiz”. (Starets Zossima,
personagem do livro Os Irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoiévski)
Com o fim da segunda grande Guerra Mundial e o horror gerado pelo Nazismo, três
tendências se delinearam: a elaboração de tratados sobre Direitos Humanos, uma nova
abordagem do Direito Constitucional e o acirramento da crise do positivismo jurídico, questões
essas que não ser tratadas de forma isolada, para que se possa ter uma devida compreensão
de suas conseqüências.
1
Para uma abordagem mais ampla ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Rev. e ampl.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006 p. 33.
1
ser titularizados por seres humanos. Outros Direitos Fundamentais valeriam até para pessoas
jurídicas.
Por fim, restaria dizer que modernamente a expressão utilizada para expressar o
chamado Direito Natural seria Direitos do Homem, como direitos que antecederiam à
organização política ( sendo inspirada inclusive pela Revolução Francesa e a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão), para aqueles que adotam essa concepção.
Como o que interessa neste trabalho é a intercessão dessas questões, optamos pela
expressão Direitos Humanos Fundamentais, para relativizar essas distinções, sendo essa a
escolha preferida ao uso indistinto das duas expressões referidas.
Foi, porém, no desenrolar da Idade Média e no transcurso da Era Moderna que essas
discussões ganharam ares de cientificidade. Na Idade Média, buscou-se pelo Direito Natural
para alcançar uma ordem jurídica que teria sido estabelecida por Deus e que teria configuração
imutável, suscitando questões de caráter metafísico, em uma tentativa de fundir a herança
judaico-cristã com o pensamento grego, gerando em determinados casos alguma confusão.
Com o tempo, verificou-se que os códigos não eram suficientes para englobar toda a
realidade social, sendo esta mais dinâmica do que os sistemas jurídicos, surgindo assim uma
série de críticas à concepção positivista do Direito, especialmente nos países de cultura
romano-germânica.
O destaque ao pensamento de Kelsen não foi aleatório, pois, além de sua influência no
Direito (basta lembrar a famosa teoria da pirâmide de normas), foi justamente em sua teoria
2
da norma fundamental que os advogados dos líderes nazistas no Tribunal de Nuremberg se
basearam para justificar a legitimidade dos atos brutais praticados, incluindo a perseguição
das minorias, pois tais atos teriam sido implementados sob a alegação de não serem
incompatíveis com a Constituição da Alemanha.
A pergunta que ficou foi a seguinte: que Estado Democrático de Direito seria esse que
legitimaria a barbárie e o tratamento indigno aos seres humanos?
A busca de solução para esse problema passou e vem passando pelas três tendências
anteriormente referidas: a elaboração de tratados sobre Direitos Humanos, uma nova
abordagem constitucional e o acirramento da crise do Positivismo Jurídico.
Com base nisso, alguns estudiosos falam na implementação de uma nova fase do
Direito: o Pós-Positivismo, para apresentar uma visão jurídica aberta à interdisciplinaridade e
aos valores e princípios éticos, não sendo, assim, necessariamente um retorno ao
jusnaturalismo. Ocorre esse prefixo “pós”, apesar de significar uma ultrapassagem no tempo
de uma determinada concepção, não diz muita coisa sobre o sentido e conteúdo do que veio a
seguir, devendo-se observar que muitas décadas já se passaram desde o fim da segunda
Guerra Mundial e muito já foi dito a respeito desta nova fase do Direito, não se justificando
mais o uso da expressão pós-positivismo.
Várias denominações têm sido empregadas tentando destacar algum ponto marcante
dessa nova fase, das quais, destacamos duas, que, apesar de partirem de pontos distintos, no
nosso modo de ver, se complementam: moralismo jurídico e neopositivismo.
2
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º ao 5º da CRFB do Brasil, doutrina
e jurisprudência 7 ed.- São Paulo: Atlas, 2006. Coleção Temas Jurídicos ; 3, p. 16-17.
3
PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
3
Nesse sentido é esclarecedora a lição de Norberto Bobbio4:
É justamente a partir dessa visão histórica que é desenvolvida a teoria das gerações
ou dimensões dos direitos humanos fundamentais. Argumentam os defensores dessa teoria
que a noção de direito humano fundamental iria se aprofundando ao longo do tempo, tendo-se
configurado três gerações ou, como preferimos, dimensões de direitos humanos fundamentais
(por passar a idéia de aprofundamento e não de sucessão histórica), alguns ainda sustentando
a existência de uma quarta dimensão.
Para aqueles que defendem a existência de uma quarta dimensão, ela corresponderia
ás novas necessidades oriundas da vida social. É necessário também destacar que não se
poderia partir de uma noção tão aberta a ponto de se permitir a criação aleatória de gerações
ou dimensões, segundo interesses específicos, sendo necessária uma devida ponderação
histórica, uma apreciação de sua relevância para a realidade social e existencial do ser humano
e a sua efetiva novidade.
Tal seria o que acontece com o direito à informação e à participação popular, como
reflexos do direito à cidadania em um período de globalização, defendido pelo professor Paulo
Bonavidades6. Com a devida consideração pelo pensamento do ilustre jurista, entende-se que
tais direitos de cidadania são especificações dos direitos políticos de primeira dimensão, assim
como os chamados direitos da personalidade são especificações dos direitos de primeira
geração de caráter civil, ainda que suscitando novas questões, como a chamada identidade
genética.
Para finalizar essas considerações sobre a teoria das gerações ou dimensões dos
Direitos Humanos Fundamentais e sua correlação com a concepção neopositivista, destaca-se
algumas das características dos direitos humanos fundamentais, como bem faz Alexandre de
Moraes, tais sendo: a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a irrenunciabilidade, a
inviolabilidade, a universabilidade, a efetividade, a interdependência e a complementaridade.
4
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.2.
5
MORAES , op. cit., p. 27.
6
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
4
Não se poderia esquecer da noção unificadora de toda essa problemática, tal sendo a
dignidade da pessoa humana, sendo oportuna as considerações de Marcelo Novelino Camargo 7
a respeito do tema:
Diante do exposto, se tivéssemos que dar um nome a essa nova fase do Direito a
chamaríamos de Concretismo Crítico, configurando-se sua novidade na reação ao
abstracionismo do jusnaturalismo e do positivismo, na busca de soluções pacificadoras para
os casos concretos, sem desconsiderar uma abordagem crítica.
Como vimos, a atual fase do Direito importa na busca de uma concretude para a
noção de Justiça, porém, de forma crítica, entendendo-se por crítica a indagação da raiz, a
busca do razoável. Essa busca de concretude crítica, importando em um juízo formulado com
eqüidade e não por eqüidade, valoriza também o exercício da função jurisdicional. O exercício
da função jurisdicional já era destacado, porém, a partir de uma visão garantista, sendo esse
um instrumento importante para assegurar a efetividade dos Direitos Humanos Fundamentais.
Norberto Bobbio8 já dizia que, nessa etapa do direito, mais importante que justificar os direitos
humanos seria garantir sua aplicação.
Para ilustrarmos bem a questão busquemos duas figuras históricas marcantes de duas
culturas relevantes para formação da civilização ocidental e mundial, seja por meios próprios
ou pelo cristianismo e o iluminismo (movimentos esses que, como se sabe, tiveram papéis de
destaque para o surgimento do princípio da dignidade da pessoa humana) 9, sendo tais
culturas: a judaica e a grega.
Com relação à cultura judaica, chama-se a atenção para a figura histórica dos Juízes,
que eram pessoas carismáticas que se destacavam por gestos heróicos em favor do povo de
Israel e que assumiam a liderança do povo, acumulando a função administrativa e
7
CAMARGO, Marcelo Novelino. O Conteúdo Jurídico da Pessoa Humana. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org). Leituras
Complementares de Constitucional. Direitos Fundamentais. 2. ed. ed. Podvim, 2007. p. 113.
8
BOBBIO, op. cit.
9
CAMARGO, op. cit. p. 114-115.
5
jurisdicional, lembrando-se que a função legislativa estava limitada pela lei divina (os Dez
Mandamentos), dada por Deus por meio de Moisés.
Da cultura grega destacamos a famosa democracia grega, que garantia aos cidadãos o
direito de participar dos negócios políticos do Estado, mas excluía dessa situação parcela
significativa da população como as mulheres e os escravos.
É claro que são figuras extremadas e já não tão atuais, mas refletem um pouco a
relevância, da função jurisdicional e da cidadania, e também algumas de suas dificuldades.
Da figura dos juízes, vemos que, pelo simples fato de se tornar um líder carismático,
alcançava-se o direito de acumular as funções administrativas e jurisdicionais, é claro que com
obediência aos mandamentos e benção de Deus, o que gerou influência na própria monarquia
judaica, sendo famosas as decisões do sábio rei Salomão.
A democracia grega, por sua vez, tornou-se referência para o mundo todo, porém
como se sabe possuía um caráter não inclusivo, ou seja elitista.
A primeira figura, com o devido respeito pela questão teológica, importaria em uma
reflexão sobre o princípio da separação de poderes e o Estado Democrático de Direito. A
segunda destaca a questão da cidadania e a necessidade de sua concretização em nome do
princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos humanos fundamentais.
Como visto, a crise do positivismo jurídico de certa forma contribuiu para enfraquecer
a concepção do “Império da Lei” e, conjuntamente, um outro fator influenciou para fazer ruir o
culto da legalidade irrestrita: a crise, e para alguns o esgotamento, do sistema representativo.
Essa crise do sistema representativo foi desencadeada por uma série de fatores,
como a corrupção, o esvaziamento da efetiva participação política, das ideologias e utopias,
ainda pela brutalidade dos sistemas totalitários, existindo de certa forma uma relação de
estranhamento entre a população e a estrutura política.
O Estado passou a ser visto, muito mais hoje, como um Estado Polícia e como
assegurador dos direitos individuais de caráter civil, as chamadas liberdades negativas, do que
o órgão de decisão de uma comunidade histórica, de maneira que organizada em Estado
pudesse tomar decisões, para contrastar com a famosa definição de Estado de Eric Weil 10,
desgastando-se a noção de cidadania em face de um atomismo jurídico talvez nesse ponto
justifique-se a preocupação de Paulo Bonavides, sendo nossa perspectiva de concretização dos
Direitos Humanos Fundamentais, de certa forma mais ampla, envolvendo a concretização não
só da cidadania e a partir dela, mas dos demais direitos humanos fundamentais, que atuam
10
WEIL, Eric. Filosofia Política. Tradução e apresentação Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1990.
6
muitas vezes como pressupostos da cidadania, visando o homem concreto em suas
necessidades existenciais, que, cabe destacar, incluem também a cidadania.
Uma das tentativas de remediar essa crise gerada pelo desgaste do sistema
representativo e de assegurar-se a efetivação do Estado Democrático de Direito, além das
tentativas de se ampliar a participação popular direta e o direito de informação, é a chamada
Jurisdicização do Político, ganhando destaque três questões importantes: os direitos humanos
fundamentais, o acesso à justiça e o juiz cidadão.
Ocorre que, por mais que se busque universalizar a questão dos Direitos Humanos,
não se pode desconsiderar aspectos relativos à peculiaridade de alguns fatores histórico-
culturais ou comunitários de cada povo, destacando-se a questão central da cidadania,
também uma das facetas da dignidade da pessoa humana. Bastaria lembrar que, a exceção do
Tribunal Penal Internacional (ao qual se refere o § 4° do art. 5° da Constituição Federal), as
garantias dos sistemas de Proteção dos Direitos Humanos possuem especificamente caráter
regional (Europa, América e África), atuando os organismos internacionais de defesa dos
Direitos Humanos somente nos casos de omissão do Estado, na observância das normas,
internacionais respectivas. 11
Além do mais, torna-se necessário destacar que os tratados internacionais, por mais
que sejam submetidos à aprovação pelo legislativo local para viabilizar a ratificação, são
elaborados pelos Estados ou Organização de Estados com vistas a impor obrigações aos
Estados, apesar dos beneficiários finais dos tratados de direitos humanos serem os indivíduos,
11
Para uma abordagem de cunho mais amplo ver PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional. 7. ed. 2007 ed. Saraiva.
7
o que leva alguns, especialmente nesse ponto, a defender a supremacia dos tratados sobre as
Constituições, já que a partir dos tratados a comunidade internacional tenta obrigar os Estados
a melhorar a condição dos indivíduos e a garantir a eles direitos fundamentais.
Tal como na França, a Revolução Americana foi guiada por princípios individualistas,
mas na França houve a tomada do Poder Político a partir de um profundo choque ideológico,
enquanto que nos Estados houve a expulsão do colonizador (a Inglaterra), mas sem grandes
crises de visões de mundo, sendo quase um consenso em âmbito local. De maneira que a
tomada de poder não se deu por choques ideológicos, mas basicamente por interesses locais.
12
Vide BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. 6. ed. ver, atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.
8
jurisdicional a partir da Constituição (incluindo as leis e os tratados internacionais), e
especialmente pelos direitos fundamentais, como a dos próprios particulares, a partir da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou eficácia sobre relações privadas.13
Globalização foi uma expressão cunhada pelas escolas de negócio americanas para
buscar reduzir as barreiras comerciais, facilitando a livre circulação de riquezas, com vistas de,
atendendo as necessidades de consumo, aumentar a lucratividade, reduzindo custos, de
maneira que o capital tenderia a migrar para lugares onde fossem menores os seus custos e
maior a lucratividade, gerando muitas vezes o chamado dumping social e ambiental.
Essa sociedade que emerge é nitidamente uma sociedade de consumo, que visa
padronizar os gostos, as preferências, as opções existenciais e políticas, facilitando essa
uniformização a circulação de riquezas a partir de uma mentalidade consumista, que envolve
inclusive a ordem jurídica, daí a importação por muitos países da mentalidade contenciosa
americana e a busca dos Estados Unidos de impor ao mundo seu estilo de vida, com uma
propaganda massificadora e não raramente o empenho bélico.
Diante da omissão do Estado, em alguns casos defendida com unhas e dentes pelos
partidários da ideologia dominante na globalização (o neoliberalismo), vem surgindo
defensores da continuidade do processo de universalização dos Direitos Humanos
Fundamentais, a partir de um maior empenho das organizações internacionais encarregadas
da defesa dos Direitos Humanos e de uma confluência entre o neoconstitucionalismo e o pós-
positivismo, segundo sua concepção neopositivista, visando a redenção do princípio da
dignidade da pessoa humana, a partir da força normativa dos princípios jurídicos, interligando
a concepção de Estado Democrático de Direito com a defesa dos Direitos Humanos
Fundamentais.
Ao tratar da força normativa dos princípios, que possui um caráter mais flexível que as
regras, dissemos que eles comportariam considerações mais amplas no sentido de englobar
também considerações pós-positivistas.
13
Vide SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004.
14
IANNI, Octavio. A Era do Golbalismo. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 11.
9
Ao adotar um princípio a Constituição se reporta a toda a construção teórica e vivência
prática que está por trás do mesmo, trazendo consigo todo o histórico de sua elaboração, em
um aprofundamento do que Ronald Dworkin, em seu empenho contra o positivismo, chama de
coerência narrativa partindo do ponto de vista dos limites da iniciativa judicial), e nesse ponto
existe a aproximação da tese neopositivista (partindo do ponto de vista da abertura das
fontes do direito.
A defesa da linha neopositivista, que - apesar do que foi dito anteriormente – constitui
a posição majoritária na doutrina, tem a seu favor o fato de buscar uma visão universalista dos
Direitos Humanos, a qual, entendemos, deve ser complementada pela abordagem moralista,
para alcançar maior concretude, uma universalidade concreta, assimilando as relevantes
noções complementares de pluralismo jurídico e cidadania, sendo certo que para se efetivar o
respeito aos demais direitos humanos fundamentais necessário seria, muitas vezes, o
empenho internacional e uma busca de consciência na concretizacão de tais direitos.
Com relação à questão do juiz cidadão, face à relevância do tema para o presente
estudo, trataremos em tópico específico, antes de tecer considerações sobre a problemática
exposta à luz do ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente da Constituição
Federal.
Deixemos bem claro nossa posição: a proteção dos Direitos Humanos Fundamentais
tende à universalização, mas essa universalização não suprime as peculiaridades histórico-
15
Vide CAPPELLETTI, Mauro ; GARTH, Bryant G. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 1988.
16
Vide Barcellos Ana Paula. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. In: CAMARGO,
Marcelo Novelino (Org). Leituras Complementares de Constitucional: Direitos Fundamentais. 2 ed. Ed. Podvim, 2007. p. 43.
10
culturais de cada povo, antes encontra-se em uma situação de diálogo permanente, com vistas
a busca de uma universalização concreta, especialmente a partir de sua Constituição, e a
Constituição, por sua vez, não pode deixar de considerar a realidade social à qual se aplica,
ainda que seja para transformá-la, a partir de sua força normativa, mas mantendo com essa
profundo diálogo, com vistas à preservação da dignidade da pessoa humana e especialmente
da cidadania.
A figura do juiz cidadão é fruto desses diálogos, sejam os juízes das cortes
internacionais, sejam os investidos de jurisdição em âmbito nacional.
Superada a idéia de que o juiz seria “a boca da lei”, surge a imagem de um juiz mais
humano, não de um frio exegeta da Lei, mas uma pessoa dotada de sentimentos, coisa que a
própria noção de sentença não deixava se perder. Sendo mais humano, encontra-se o juiz
mais sensível aos problemas do mundo, do povo a que pertence, de cada ser humano a sua
volta.
Tal postura não poderia depender da boa vontade de cada magistrado, mas deveria
ser exigência da formação profissional, dos critérios de seleção dos juízes, da evolução na
carreira e de permanência nos cargos ocupados.
Ser um juiz cidadão não é ser um cidadão em situação privilegiada, mas um cidadão
no exercício de uma função de autoridade, autoridade que decorre de sua imparcialidade na
aplicação do ordenamento jurídico. Diga-se: imparcialidade não neutralidade, pois o juiz não
poderia despir-se de seus sentimentos, suas emoções, de sua visão de mundo. Exigir-se
neutralidade do juiz seria exigir que o mesmo não fosse humano, mas um ser ascético,
desvinculado do seu Eu e de suas circunstâncias, como diria Ortega Y Gasset.
O que o juízo não pode fazer, sob pena de violar sua imparcialidade, comprometendo,
assim, sua legitimidade para o exercícicio de sua função, é pretender impor sua visão de
mundo, deixar-se guiar pelas suas emoções, entregar-se a sentimentos pessoais ou
corromper-se.
Destaca-se essa expressão: [“ Ser um juiz cidadão não é ser um cidadão em situação
privilegiada...”] Poderíamos dizer em outras palavras: Não é ser um cidadão mais cidadão do
que os outros, como aquele que detém a última palavra. não se diz dizer com essa última
expressão que as demandas judiciais não devem ter decisão final, mas apenas que elas não
esgotam o objetivo de pacificação social.
Com isso, podemos sair da figura do juiz cidadão para entrarmos na figura do cidadão
como juiz. Como diz o filósofo francês Paul Ricoeur,17 o mesmo poder de julgar faz o juiz e o
cidadão.
Como vimos, o sistema representativo encontra-se em crise, por uma série de fatores
aos quais já nos referimos.
17
RICOEUR, Paul. Le Juste II . Paris: Éditions Espirit, 2001. p.192.
11
políticas, dentro de um pluralismo político, e do projeto existencial de cada um. O todo jurídico
não é menos pernicioso que o todo político.
Deve-se destacar, ainda, que a Constituição não é uma Torá inacessível, mas antes
um documento que rege a vida de um povo, de uma comunidade histórica, não podendo
impedir a legítima mudança de orientação das gerações futuras e o fenômeno da mutação
constitucional, que é a mudança do sentido da constituição sem alteração de sua forma,
cabendo ao Judiciário ter discernimento crítico e sensibilidade para aperceber-se de tais
fenômenos.
12
§1° As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata.
§2° Os direitos e garantias fundamentais expressos nessa Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§3° Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.”
Vê-se de início no §1° que foi adotada a expressão Direitos Fundamentais por Ingo
Wolfgang Sarlet, em sua obra “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”18, que faz referência ao
interessante conceito de Direitos Fundamentais apresentada por Robert Alexy , entendendo
esse que os direitos fundamentais poderiam ser definidos como aquelas posições que, do
ponto de vista do direito constitucional, são tão relevantes, que seu reconhecimento ou não -
reconhecimento não pode ser deixado à livre disposição do legislador ordinário - entenda-se
poderes constituídos e de reforma da Constituição.
Deve ser observado que alguns Direitos Fundamentais possuem uma configuração
polêmica com relação a essa aplicabilidade imediata, como é o caso dos Direitos Sociais de
caráter prestacional. Alguns dizem que em observância a esse § 1° dever-se-ia atentar para a
chamada máxima efetividade. Outros ponderam que esses direitos importariam custos e
deveria se verificar a reserva do possível. Uma terceira posição surge no sentido da
observância da ponderação de interesses a partir do princípio da razoabilidade e da
proporcionalidade. Existe ainda uma posição que faz uma conexão com o princípio da
dignidade da pessoa humana e defende o chamando mínimo existencial. A rigor entende-se
que essas correntes se completam e somente um profundo debate pode viabilizar a
concretização desses Direitos Fundamentais.
18
SARLET. Op. cit, p. 91
13
interessante artigo de Paul Ricoeur denominado Interpretação, publicado em seu livro Justo
ou a essência da Justiça.19
No referido artigo, o autor entende que pode ser elaborada uma versão dialética da
polaridade interpretação/argumentação, mas o estado em que se encontrava a discussão não
pareceria, à primeira vista, orientado para tal tratamento dialético. Destaca Ricoeur, por um
lado, teria encontrado a partir de seus estudos o pensamento de Ronald Dworkin, que dá à
segunda parte de sua obra “A Matter of Principle” o título de “Law as Interpretation”, sem que
aí houvesse aparentemente lugar para um eventual confronto entre interpretação e
argumentação; por outro lado, teria atravessado a leitura de teóricos da argumentação
jurídica, como Robert Alexy com a Theorie der Juristischen Argumentation, e Manuel Atienza
com a Teoria de la Argumentación Jurídica, para quem a argumentação jurídica deveria ser
considerada como uma proveniência distinta, por certo, mas subordinada, no interior de uma
teoria geral da argumentação prática, sem que a interpretação seja jamais reconhecida como
uma componente original do discurso jurídico.
Ricoeur20 defende poder extrair uma prova das insuficiências internas de cada uma
das posições consideradas, com o objetivo de sustentar a tese segundo a qual uma
hermenêutica jurídica centrada na temática do debate requer uma concepção dialética das
relações entre interpretação e argumentação, tendo o artigo sido desenvolvido com essa
finalidade e o autor sido incentivado pela analogia que pareceu existir no plano epistemológico
entre o par compreender/explicar e no plano jurídico entre interpretar e argumentar. Para
Ricoeur, o ponto em que interpretação e argumentação se separam é aquele em que se
cruzam a via regressiva e ascendente de Dworkin e a via progressiva e descendente de Alexy e
Atienza.
A primeira iniciar-se-ia com a questão bicuda colocada pelos hard cases, os casos
“difíceis”, nos quais alguma das disposições existentes não pareceriam constituir a norma sob
a alçada da qual o caso poderia ser colocado, gerando uma armadilha para concepção
positivista, daí eleva-se até o horizonte ético político da “iniciativa judiciária”, considerada no
seu desenvolvimento histórico, para evitar o poder discricionário do juiz, reconhecido em
determinada etapa pelo positivismo.
A segunda procede de uma teoria geral da argumentação, válida para qualquer forma
de discussão prática normativa, achando a argumentação jurídica como uma província
subordinada.
Insiste, então, que a univocidade é uma característica das regras, o que não conviria
aos princípios que, em última instância, são de natureza ético-jurídica. O Direito estabeleceria,
enquanto sistema de regras, não esgotando o direito enquanto iniciativa política, sendo mais
fácil encontrar princípios do que regras na solução dos casos difíceis. Os princípios não seriam
identificados pela sua origem, mas pela sua força normativa própria, excluindo do seu estatuto
19
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget. 1995, p.143.
20
RICOEUR, op. cit.
21
DWORKIN, op. cit
14
ético-político a univocidade, ao contrário das regras de segundo grau, tais como as “regras de
reconhecimento” do positivismo de Hart, pesando, inclinado, porém, no sentido de uma
determinada tese, orientação. Dworkin estaria mais interessado no horizonte ético-político
sobre qual se salientam os princípios irredutíveis às regras, devendo-se a esta distinção entre
princípios e regras uma concepção geral do direito inseparável de uma teoria política
substantiva, não apelando o pensador infelizmente para uma teoria da argumentação.
Observa-se, porém, como pondera Ricoeur que o silogismo jurídico não se deixa
reduzir à via direta da subsunção de um caso sob uma regra, mas deve, além disso, satisfazer
o reconhecimento do caráter apropriado da aplicação de tal norma a tal caso, realizando a
dupla interpretação da lei e dos fatos.
O § 2°, por sua vez , configura o que se chama de cláusula de abertura material da
Constituição, como leciona Ingo W. Sarlet, 22 a fundamentalidade material decorre da
circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição
material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade,
existindo, assim direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo
fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo.
22
SARLET, op. cit., p. 89 e 93
23
idem., p.95
15
Poder-se-ia pensar se seria uma porta para o reconhecimento da legitimidade de uma
abordagem pós-positivista, mas tal observação deve ser feita de forma bastante criteriosa.
Atentede-se para dois trechos da obra de Sarlet em apreciação24:
Ainda a este respeito, importa transcrever o que talvez tenha sido a posição
mais contundente, entre nós, em favor desta tese. Para Paulino Jacques, “o
Legislador-Constituinte, ao referir os termos regime e princípios, quis ensejar o
reconhecimento e a garantia de outros direitos que as necessidades da vida
social e as circunstâncias dos tempos pudessem exigir. É uma cláusula, por
conseguinte, consagradora do princípio da eqüidade e da construção
jurisprudencial, que informam todo o direito anglo-americano, e que, por via
dele, penetram no nosso sistema jurídico. Também entre nós, não é a lei a única
fonte do direito, porque o regime, quer dizer, a forma de associação política
(democracia social), e os princípios da Constituição (república federal
presidencialista) geram direitos
24
ibidem, pp. 101 e 161
16
pós-positivista, dentro do que chamamos concretismo crítico. Acrescentar-se-ia apenas o
critério da equivalência em conteúdo e importância, abordado por Ingo Sarlet 25 , para que
pudéssemos reconhecer os direitos fundamentais, viabilizando a extensão de seus efeitos para
outras situações equivalentes.
Dito isso, será abordado a seguir, então, a questão dos tratados internacionais,
especialmente os referentes aos direitos humanos, buscando a correlação do § 2° com o § 3°
do art. 5° da Constituição Federal.
8) Por força do art. 5°, § 2°, da Constituição Federal de 1998, todos os tratados de
direitos humanos, independentemente do quorum de aprovação, são materialmente
constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado
introduzido pelo § 3° do mesmo artigo ( fruto da Emenda Constitucional n
45/2004), ao reforçar a natureza constitucional dos tratados de direitos humanos,
vem adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados,
propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no
âmbito jurídico interno. Nessa hipótese, os tratados de direitos humanos
formalmente constitucionais são equiparados à emendas à Constituição, isto é
passam a integrar formalmente o Texto. Com o advento do § 3°do art. 5° surgem,
assim, duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos:
a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente
constitucionais. Frise-se : todos os tratados internacionais de direitos humanos são
materialmente constitucionais, por força do § 2° do art. 5°. Para além de serem
materialmente constitucionais , poderão, a partir do § 3° do mesmo dispositivo,
acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à
Constituição, no âmbito formal.26
25
ibidem, p. 162
26
PIOVESAN, Flávia. Op.cit, p.329.
27
Idem, p 330.
17
prevalecendo a norma mais favorável para a proteção de tal valor fundante das ordens
jurídicas democráticas, o que deve ser aferido nas situações concretas.
6 DA CONCLUSÃO
O objetivo com este estudo não foi trazer grandes inovações, mas condensar uma
série de noções relevantes para uma abordagem realista e crítica a respeito dos Direitos
Humanos Fundamentais, aprofundando determinados pontos como a dignidade da pessoa
humana, questão da cidadania e o acirramento da crise do positivismo, com o surgimento da
concepção Pós-Positivista, designada nota abordagem como Concretismo Crítico, como reação
ao abstracionismo do jusnaturalismo e do positivismo.
Algumas dualidades foram exploradas, ainda que de forma não tão ampla, para tentar
aprofundar o tema Direitos Humanos Fundamentais e Cidadania, dualidades essas que não
possuem caráter excludente, mas antes podem ser abordadas a partir da busca de uma linha
comum, tais sendo: o próprio tema principal (Direitos Humanos Fundamentais e Cidadania);
Direitos Humanos e Direitos Fundamentais; Jusnaturalismo e Positivismo; Estados Unidos e
França; Dignidade da Pessoa Humana e Estado Democrático de Direito; Teoria Moralista e
Neopositivismo; o Universal e o Comunitário; Cultura Judaica e Democracia Grega;
Cristianismo e Iluminismo; Jurisdicização do Político e Democracia Direta; Globalização e
Universalização dos Direitos Humanos Fundamentais; Equivalentes Jurisdicionais e Jurisdição;
Class Action e deliberação política; controle judicial da efetividade das políticas públicas e
opções políticas legítimas e efetiva participação popular; Juiz cidadão e cidadão como juiz;
Universalidade dos Direitos Humanos Fundamentais e a Constituição; a Constituição e a
realidade social; Jurisdição Constitucional e Cortes internacionais; Eu e circunstâncias; Poder
Legislativo e Poder Judiciário; Projetos Existenciais e Pluralismo Político; Interpretação e
Argumentação; Princípio e Regra; Norma e Fato; Constitucionalidade Formal e
Constitucionalidade Material; Direitos Fundamentais expressos e Direitos Fundamentais não
expressos; e Direitos Humanos e controle de constitucionalidade.
Mas o que se pode concluir a respeito do tema principal e dos sub-temas e qual a
relação entre eles?
28
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1997p. 174.
18
Direitos Fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este
estudo, porque, além de referir-se aos princípios que resumem a concepção do
mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é
reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e
igual de todas as pessoas. No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de
que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se
realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do
homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas
formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do
homem, não como macho de espécie, mas no sentido de pessoa humana.
Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa
humana ou direitos humanos fundamentais. É com esse conteúdo que a
expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se
completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente, no
art. 17.
A expressão Direitos Fundamentais do homem, como também já deixamos
delineado com base em Pérez Luño, não significa esfera privada contraposta à
atividade pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação deste, mas
limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado
que dela dependem. Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos
implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o que lhes
enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com as relações
econômicas e sociais de cada momento histórico. A Constituição, ao adotá-los
na abrangência com que o fez, traduziu um desdobramento necessário da
concepção de Estado acolhida no art. 1°: Estado Democrático de Direito. O fato
de o direito positivo não lhes reconhecer toda a dimensão e amplitude popular
em dado ordenamento jurídico (restou dar, na Constituição, conseqüências
coerentes na ordem econômica) não lhes retira aquela perspectiva, porquanto,
como dissemos acima, na expressão também se contêm princípios que resumem
uma concepção do mundo que orienta e informa a luta popular para a conquista
definitiva da efetividade desses direitos. 29
A pergunta que ficaria seria essa: como alcançar um estatuto científico próprio para o
Direito diante da problemática específica dos Direitos Humanos Fundamentais, para além da
mediação concretizadora da política, mas sem a desconsiderar?
Caberia ser destacado, por fim, que a Constituição, nos parágrafos 1°, 2° e 3 do art.
5°, levou em consideração todos os pontos das tendências que se delinearam após Segunda
29
SILVA, José Afonso da. Op. cit, pp.176-177
30
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Op cit., p34.
19
Guerra Mundial., já amplamente destacadas neste estudo, mas restaria dizer que a efetividade
da disciplina constitucional deve ser buscada, juntamente com sua relevante concretização
pelo processo político, a partir da relação dialética do par interpretar/argumentar, que pode
ser entendida como a dimensão referencial do Direito na busca de sua concretização crítica.
20
A PRESCRIÇÃO APÓS A LEI Nº 11.280/06
1 INTRODUÇÃO
Em meio às seis leis ordinárias que, nos últimos doze meses, modificaram o Código de
Processo Civil, a alteração aparentemente simples de um parágrafo do artigo 219, desse
Código, talvez tenha sido aquela que causou a maior mudança na estrutura clássica do direito
privado brasileiro, desde o advento do Novo Código Civil, em 2002.
Partindo das obras clássicas que tratavam de defini-la e passando pela evolução
legislativa da prescrição no direito positivo, o trabalho chega às indagações mais atuais sobre
a matéria, instigando o leitor a repensar temas como a intervenção do Estado na autonomia
privada da vontade e os sacrifícios feitos em nome da celeridade processual.
Nos processos ordinários, os julgamentos dos pretores ocorriam por fórmulas escritas,
que eram apresentadas em quatro partes: demonstratio (fatos), intentio (pretensão do autor e
contestação do réu), condemnatio (atribuição do juiz para condenar ou absolver) e adjudicatio
(autorização para a parte ficar com o bem em disputa).
Quando o pretor proclamava que o prazo para que a ação fosse intentada já tinha se
expirado, lançava preliminarmente uma "prescrição"; daí a referência ao próprio conteúdo da
decisão do pretor.
31
CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 17-19.
21
Foram os próprios pretores, instituídos do poder de criar ações não previstas pelo
direito honorário, que criaram o costume de classificar as ações em temporárias (prescritíveis)
ou perpétuas. Como não tinham poder para decretar a extinção de certos direitos subjetivos,
reconheciam a prescrição da ação que lhes assegurava a utilidade, obtendo quase o mesmo
efeito prático.
Inicialmente, as ações prescritíveis eram exceção entre a regra geral das ações ditas
perpétuas AMORIM FILHO32 mais tarde, na Constituição de Teodósio, já no Império, aboliram-
se as ações perpétuas no jus civile, determinando-se que o prazo prescricional máximo das
ações seria de trinta anos, salvo disposição estipulando prazo menor.
Citando Von Tuhr, Ovídio Batista34 explica que o direito subjetivo é aquela "faculdade
reconhecida à pessoa pela ordem jurídica, em virtude da qual o sujeito exterioriza a sua
vontade, dentro de certos limites, para a consecução dos fins que sua própria escolha
determine". A essa faculdade, deferida ao titular do direito subjetivo, corresponde um dever do
sujeito passivo.
Todavia, bem se sabe que a mera existência de um direito subjetivo não significa
necessariamente que a faculdade de que dispõe o titular será efetivamente exercida. Da
mesma forma, de nada valeriam os direitos se não fosse deferido ao titular o poder para
exigir a sujeição daqueles contra quem seu direito se direciona.
32
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações
imprescritíveis. Revista dos Tribunais, ano 86, v. 744, p. 744, p.734 out. 1997.
33
CÂMARA LEAL, op. cit, p. 27-28
34
BATISTA DA SILVA, Ovídio. Curso de processo civil. v. I . 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 61-62.
22
A ação é um momento posterior, que só nasce caso o exercício da pretensão não seja
suficiente. É um poder de exigir o respeito ao direito independentemente da vontade do sujeito
passivo.
A prescrição é justamente uma das causas da extinção das ações – não do direito
subjetivo. A sua causa é a inércia do titular do direito e o seu fator operante é o tempo. A lição
de Câmara Leal36 é precisa nesse ponto:
Se a inércia é a causa eficiente da prescrição, esta não pode ter como objeto
imediato o direito, porque o direito, em si, não sofre extinção pela inércia de seu
titular. O direito, uma vez adquirido, entra, como faculdade de agir (facultas
agendi), para o domínio da vontade de seu titular, de modo que o seu não-uso,
ou não-exercício, é apenas uma modalidade externa dessa vontade,
perfeitamente compatível com essa conservação. [...] É contra essa inércia do
titular, diante da perturbação sofrida pelo seu direito, deixando de protegê-lo,
ante a ameaça ou violação, por meio da ação, que a prescrição se dirige, porque
há um interesse social de ordem pública em que essa situação de incerteza e
instabilidade não se prolongue indefinidamente.
35
Ibid, op cit., p. 64-65.
36
CÂMARA LEAL, op. cit., p. 24.
37
PONTES MIRANDA. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, t. VI. p.100
38
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º
da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 1059, 26 maio 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8455>. Acesso em: 20
nov. 2006.
39
CAHALI, Yussif Said Aspectos processuais da prescrição e da decadência. São Paulo: RT, 1979.p.77
23
Outros autores a qualificam como negócio jurídico unilateral, receptício de vontade, que
se realiza em juízo ou fora dele, e que tem por efeito a extinção da exigibilidade do direito que
não fora exercido no prazo fixado em lei .40
Em sua terminologia, a decadência traz a idéia de cair ou do estado daquilo que caiu.
Aplicado à ciência jurídica, o termo serve para identificar a queda ou o perecimento do direito
pelo decurso do prazo fixado para o seu exercício, sem que o seu titular o tivesse exercido. 41
Talvez em razão dessa confusão entre os dois conceitos, o Código Civil Brasileiro
promulgado em 1916 trazia misturados os casos em que os prazos fixados pela lei tinham
natureza prescricional e decadencial.
Inúmeras foram as obras que se dedicaram a identificar, caso a caso, o que era
prescrição e o que era decadência. Assim foi na obra de Câmara Leal, várias vezes referida
neste artigo. "Da prescrição e da decadência", originalmente editada em 1939.
Décadas mais tarde, passou-se a buscar um critério científico seguro para identificar as
diferenças entre os dois institutos. Nessa fase, a obra que mais se destacou foi, sem dúvida o
"Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações
imprescritíveis", de Agnelo Amorim Filho, publicado pela primeira vez na RT Revista dos
Tribunais em outubro de 1960.
Segundo esse autor, o critério clássico, aquele pelo qual se dizia que a prescrição
extingue a ação e a decadência extingue o direito, era totalmente falho, pois apresentava
como fator de discrímen as conseqüências dos dois institutos. Já o critério de Câmara Leal, que
diferenciava ambas por meio da verificação empírica do exercício simultâneo ou não da ação e
do direito, seria duplamente falho por ressentir-se de base científica e por não permitir a
identificação de ações imprescritíveis.42
40
SOUZA, José Paulo Soriano de. Ensaio sobre a natureza jurídica da prescrição no Direito Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 9,
n. 569, 27 jan. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6220>. Acesso em: 20 nov. 2006.
41
CÂMARA LEAL, op. cit; p. 113.
42
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis.
Revista dos Tribunais, ano 86, v. 744, p. 725-750, out. 1997.
24
Utilizando-se das teorias acerca dos direitos potestativos e da classificação trinária das ações,
Amorim Filho construiu aquele que se tornou o mais conhecido, divulgado e prático meio de
diferenciar prescrição e decadência, durante o longo prazo de vigência do CC de 1916:
Todavia, o que mais interessa ao presente estudo é que uma das diferenças
fundamentais entre a decadência e a prescrição é que a primeira é uma questão
eminentemente de ordem pública, cognoscível ex officio, e que a segunda, como visto no
primeiro tópico, depende da vontade de quem lhe aproveita, devendo ser expressamente
argüida na forma de exceção substancial para que possa gerar os seus efeitos extintivos.
O Código de Processo Civil de 1973, em sua redação anterior a 2006, tinha disposição
semelhante, estatuindo que "não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício,
conhecer da prescrição e decretá-la de imediato".
43
FROEHLICH, Charles Andrade. Prescrição e decadência no novo Código Civil (2002). Um novo olhar sobre o critério científico de
distinção a partir da classificação quinária das ações. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 238, 2 mar. 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4895>. Acesso em: 20 nov. 2006.
44
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 660.
25
Havia alguma discussão acerca do conceito mais adequado de direitos patrimoniais,
havendo quem defendesse que questões de ordem pública, como o patrimônio da Fazenda
Pública, pudessem ser enquadrados na exceção que permitia o reconhecimento da prescrição
ex officio.
O Código Civil de 2002, em sua redação original, introduziu uma pequena modificação
nessa concepção, admitindo, pela primeira vez, o conhecimento da prescrição pelo juiz, sem a
necessidade de alegação de qualquer das partes, quando se tratasse de interesses de pessoas
absolutamente incapazes: “Art. 194. O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de
prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz”.
Poucos foram os autores que deram maior significação a essa mudança legislativa, sem
se aperceber que ela marcava apenas o início de uma "publicização" da prescrição.
A prática de extinguir as execuções fiscais prescritas foi adotada por muitos juízes como
mecanismo para reduzir o número assustador de processos e, de outro lado, para proteger os
direitos de contribuintes em mora com o fisco que, muitas vezes, sequer ficavam sabendo da
execução antes de terem os bens levados a hasta pública ou tinham condições de contratar um
advogado – que muitas vezes resumia sua atuação à oposição de embargos à execução
alegando prescrição.
Sem que maiores discussões sobre essa matéria específica tivessem sido realizadas, foi
inserida no contexto da reforma da legislação processual civil uma brusca alteração na
estrutura do Direito Civil, inclusive com a revogação expressa de um artigo do Código de 2002.
45
NERY JUNIOR, Nelson. Código civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. revista e ampliada, atualizada até 2 de maio de
2003. São Paulo: RT, 2004. p.261.
46
Vide REsp 802697/RS.
47
Vide EDREsp 835.978/RS.
26
"Art. 219. ..................................................................
§ 5o O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.
.................................................................." (NR)
[...]
Art. 10. Esta Lei entra em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua
publicação.
Art. 11. Fica revogado o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
Código Civil.
A lei publicada teve como origem o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 4.726,
de 2004, remetido ao Congresso Nacional por iniciativa do Presidente da República em 15 de
dezembro de 2004, através da Mensagem nº 867, de 2004.
[...]
Como visto, não houve, pelo menos expressamente, uma preocupação com a
preservação da estrutura tradicional do direito civil, em matéria de prescrição. A alteração do §
5º do art. 219 do CPC, reforçada pela revogação do art. 194 do Noco Código Civil (NCC) foi
tratada apenas como mais uma medida destinada a concretizar o direito constitucional à
celeridade processual, inserido no art. 5º da Constituição pela Emenda Constitucional da
“Reforma do Judiciário”. Para o legislador, teve o mesmo valor da chamada “súmula
impeditiva de recurso”, da extinção do processo de execução e da possibilidade de julgamento
de mérito em questões exclusivamente de direito já decididas reiteradamente.
Há quem diga que o efeito esperado não surgirá. Albuquerque Júnior 48 anota que a
persistência da prescrição no direito alemão e francês não constiutui qualquer óbice à
48
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º
da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Jus Navigandi,
27
celeridade daqueles sistemas judiciários. Diz também que não há interesse concreto, para a
parte demandada, em protelar o desfecho do processo que poderia obter imediatamente,
através da suscitação da prescrição que lhe beneficia – o que só não fará se não perceber que
dispõe de tal exceção, o que é raro.
"Como norma pública", prossegue a mesma autora, "tem sempre efeito retroativo,
ficando [...] sujeita às alterações da nova lei; mas, como norma privada, pode ser
renunciada".
Houve mesmo quem discutisse a natureza da prescrição sob o aspecto de ser norma de
direito civil (material), ou norma de direito processual. Tal discussão, entretanto, ficou
superada para aqueles que são adeptos da moderna teoria do processo civil, que separa os
planos material e processual, considerando a prescrição como causa extintiva da pretensão de
direito material, como explicado no primeiro capítulo.
Para a maioria dos autores que já escreveram algo sobre a matéria, a resposta tende a
ser positiva. Nery Júnior50 é um deles, afirmando que, embora sempre trate de uma questão
patrimonial, a prescrição agora deve, e não apenas pode, ser proclamada de ofício pelo juiz,
revelando ter natureza de questão de ordem pública. O autor entende, ademais, que a
prescrição deve ser reconhecida de ofício até mesmo pela autoridade julgadora nos processos
administrativos, dada a modificação ocorrida em sua natureza.
Para Hugo Vitor Reis Pereira,51 o deslocamento da prescrição para a égide da ordem
pública se insere no contexto das demais medidas tomadas na implementação da primeira
parte da reforma processual civil brasileira, uma consolidação da tendência ditada pela
Emenda Constitucional nº 45/04, como forma de tratamento da massificação de demandas e
aumento dos poderes judiciais das instâncias imediatas.
Bessa52 entende, no mesmo sentido, que a determinação para que a prescrição seja
proclamada de ofício a transformou em questão de ordem pública.
Todavia, a resposta não pode ser tão simples, reconhecer que a prescrição se tornou
uma questão de ordem pública poderia significar, para muitos, que ela não seria mais passível
de renúncia, ou mesmo que se tornou a mesma coisa que a decadência.
Teresina, ano 10, n. 1059, 26 maio 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8455>. Acesso em: 20
nov. 2006.
49
CÂMARA LEAL, op. cit., 33 p.
50
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9. ed.
revista, ampliada e atualizada até 01.3.2006. São Paulo: RT, 2006. p. 408.
51
PEREIRA, Victor Hugo Reis. A prescrição em face da reforma processual (Lei nº 11.280/06) e a Fazenda Pública. Análise
processual preliminar da prescrição: direito de ação e situação da prescrição. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 999, 27 mar.
2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8163>. Acesso em: 20 nov. 2006.
52
BESSA, Leonardo Rodrigues Itacaramby. Argüição da prescrição de ofício pelo magistrado. Aspectos positivos e negativos.
Aplicabilidade ao processo do trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1006, 3 abr. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8197>. Acesso em: 20 nov. 2006.
28
Debruçando-se sobre o tema, em breve artigo publicado na Internet, José Maria
Tesheiner53 escreveu:
O que agora mudou, por força do artigo 219, parágrafo único, é que a prescrição
deixou de ser, em nosso Direito, exceção em sentido estrito. Podendo, agora,
ser decretada de ofício, tem a natureza de defesa de mérito indireta.
Por mais improváveis que sejam na prática forense, problemas doutrinários como
aquele em que o devedor renuncia expressamente à prescrição depois que o juiz já a
reconheceu no processo deverão surgir, nesse caso, ter-se-á que optar pela prevalência da
autonomia privada ou da questão de ordem pública, aqui reforçada por preclusões processuais.
A mesma indagação conduz ainda a outras, tais como até que medida é constitucional a
ingerência do Estado-juiz em matérias como essas. Nesse âmbito de observação, argumenta
Albuquerque Júnior54, poder-se-ia até mesmo cogitar de uma inconstitucionalidade na previsão
legal que autoriza o Estado, no exercício da função jurisdicional, "a negar ao particular a
satisfação de um crédito patrimonial existente, válido e eficaz, exercendo e declarando uma
exceção de direito material que o devedor escolheu por não opor e causando-lhe um prejuízo
financeiro evidentemente imotivado". Ainda segundo o mesmo autor, tem-se em situação
como esta "induvidosa quebra da imparcialidade da jurisdição, através de intervenção na
atividade econômica que não se subsume às hipóteses de normatização e regulação".
Continua sendo possível a renúncia à prescrição (Cód. Civil, art. 191), sendo
nula, porém, a renúncia à decadência, quando decorrente de lei (Cód. Civil, art.
209). Não pode ser decretada de ofício a decadência, quando convencional (Cód.
Civil, art. 211).
53
TESHEINER, José Maria. Prescrição. Decretação de ofício Lei 11.280/06. Porto Alegre, fev. 2006. Disponível em:
<http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/060412prescricao.php> Acesso em: 20 nov. 2006.
54
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo. Ou de como o art. 3º da
Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 1059, 26 maio 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8455>. Acesso em: 20
nov. 2006.
55
TESHEINER, op, cit.
29
De fato, não há como entender que a prescrição tenha sido completamente suprimida,
ou que tenha sido absorvida pela decadência. Todas as normas relativas às causas
interruptivas e suspensivas da prescrição, bem como aquelas que determinam quais as
situações em que ela não corre contra determinadas pessoas continuam em pleno vigor,
aplicando-se unicamente à prescrição.
Muito embora a reunião dos prazos prescricionais no art. 206 do Código Civil tenha
facilitado a questão, o critério científico de diferenciação entre uma categoria e outra continua
sendo de grande utilidade na identificação dos casos em que se pode ou não renunciar, em
que há ou não interrupção, etc., na medida em que a prescrição continua se resumindo às
hipóteses de ações predominantemente condenatórias.
A obrigação natural pode ser definida como aquela em que existe uma relação
obrigacional desprovida de ação. Embora o credor não possa exigir judicialmente (por não ter
ação) o cumprimento dessa obrigação contra a vontade do devedor, o direito lhe assegura o
reconhecimento da validade do pagamento, caso este ocorra por liberalidade do devedor. 56
Uma mera interpretação gramatical do novo texto legal já leva à conclusão de que se
trata de um dever. O verbo foi utilizado no futuro jussivo ? – “pronunciará” – não dando
alternativa ao juiz que constatar ter ocorrido a prescrição
Nery Júnior57 também é seguro ao afirmar que se trata de um dever do juiz. A prática
forense revela que, muitas vezes, o simples reconhecimento da prescrição exige dilação
probatória. É o caso, por exemplo, de haver dúvida sobre o termo inicial de uma incapacidade
absoluta da pessoa contra a qual o juiz suspeita ter incidido a prescrição.
Numa hipótese como esta, por faltarem elementos essenciais à elucidação de uma
questão que deve ser decidida pelo magistrado, o mais correto, supõe-se, é que caiba ao
julgador tomar a iniciativa e determinar a realização das provas necessárias, como uma perícia
médica no indivíduo, a ouvida de testemunhas ou mesmo a análise de um eventual processo
de interdição.
Não se concebe mais um juiz preso à iniciativa das partes em matéria probatória, ainda
mais quando a lei lhe impõe um dever como esse. A abertura para a promoção de tais
diligências, ademais, já existe desde 1973, pela conjugação do disposto nos arts. 128 e 130 58
do Código Processual Civil.
56
GOMES, Orlando. Obrigações. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 81.
57
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9. ed.
revista, ampliada e atualizada até 01.3.2006. São Paulo: RT, 2006. 1536 p. 408.
58
Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo
respeito a lei exige a iniciativa da parte.
Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo,
indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
30
Nada há demais em tal proceder, basta lembrar que, quando um processo é distribuído,
caso haja verificação da possibilidade de prevenção, litispendência ou coisa julgada, o próprio
juiz normalmente determina a expedição de ofícios aos foros onde tramitam as ações que
podem ter alguma relação com a nova demanda, só decidindo a questão quando estiver de
posse de tais informações.
Descarta-se desse plano tal possibilidade, na medida em que a disciplina dessa questão
já existe no Código de Processo Civil, mais precisamente no art. 267, § 3º, que pode ser
estendido, por analogia, ao caso do art. 219, § 5º. Tal dispositivo trata de outras questões que
o juiz pode conhecer de ofício, impondo ao réu o dever principal de argüir a sua ocorrência na
primeira oportunidade que tem para falar nos autos, sob pena de ter de responder pelas
custas do retardamento.
A maioria dos autores que já se manifestaram sobre essa questão estão de acordo com
a tese segundo a qual a prescrição pode ser decretada pelo Magistrado logo no despacho em
que são analisados os requisitos formais e materiais da petição inicial, antes da formação da
relação processual. Nery Júnior59 é um dos que defendem a idéia de que nem mesmo haverá
citação da parte contrária.
59
NERY JUNIOR, op cit, 2006.
60
MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. Comentários ao Código de Processo Civil v. II. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 480 p.
381.
61
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil – v. III. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. 496
p. 226.
62
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total
improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da
anteriormente prolatada.
31
Segundo esse artigo, "quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no
juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos,
poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente
prolatada". Nesse caso, é evidente que há resolução de mérito. Assim, pouco interessa se a
questão que pôs fim ao processo foi a prescrição ou outra matéria de mérito. Em ambos os
casos, haverá uma sentença indeferindo a inicial com julgamento de mérito – sem sequer
haver angularização da relação processual.
A conjugação das possibilidades abertas pelo art. 285-A e pelo novo § 5º do art. 219 do
CPC já conduziu, na prática, ao extremo do que se pode imaginar por celeridade processual.
Um exemplo: no processo nº 2006.71.02.004689-9, ajuizado na Subseção Judiciária de Santa
Maria e distribuído para a 2ª Vara Federal em 08/08/06, o tampo transcorrido entre o
recebimento do processo no cartório e a prolação de uma sentença de improcedência com
juízo de mérito, no dia 14/08/06, foi de apenas alguns minutos. Muito embora se saiba o que
acontece, muitas vezes, é que vários andamentos processuais são inseridos no sistema de
consulta processual de uma só vez, não deixa de surpreender a constatação que a distribuição
ocorrera apenas seis dias antes da prolação da sentença que extinguiu o processo com
resolução de mérito.
Nesse caso, o que o Magistrado fez foi exatamente valer-se dos novos instrumentos
processuais que, em nome da celeridade, se lhe concedeu. Tratava-se, no processo em
questão, de um pedido de reajuste remuneratório de militares, baseado na isonomia com um
percentual deferido aos servidores civis. A um só tempo, e sem citar a União, o Juiz Federal
reconheceu, de acordo com entendimento consolidado em decisões anteriores: (1º) que uma
eventual condenação da Administração deveria limitar-se ao mês de dezembro de 2000,
quando houve uma reestruturação na remuneração dos militares por força da MP 2.131/00;
(2º) que as parcelas anteriores ao lustro que precede a propositura da ação estavam
prescritas, de acordo com a Súmula nº 85 do STJ; e 3º tendo em vista que a ação fora
ajuizada em 2006, todas as parcelas às quais a Administração poderia ser condenada já
estavam prescritas, razão pela qual se impunha o julgamento de improcedência de plano,
concomitante ao reconhecimento da prescrição.
Assim, a título de conclusão, pode-se dizer que a incidência do art. 219, §5º, do CPC é
possível desde a análise da petição inicial até o encerramento da atividade jurisdicional nas
instâncias ordinárias, só sendo passível de utilização em sede de recurso especial ou
extraordinário, caso haja prequestionamento da matéria.
5 CONCLUSÃO
63
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 9. ed.
revista, ampliada e atualizada até 01.3.2006. São Paulo: RT, 2006. p.408.
32
Como bem anotou Tesheiner,64 a modificação em comento, no presente estudo, serve
para confirmar o dito segundo o qual uma lei é capaz de derrubar bibliotecas.
Ainda é cedo para chegar a alguma conclusão definitiva sobre a matéria, mas pelas
considerações feitas, pode-se dizer que a prescrição não foi extinta simplesmente porque o juiz
ficou autorizado a reconhecê-la de ofício. Fundamentos de cunho social e baseados na
celeridade processual teriam apenas alterado o uso de um instituto que, apesar de um pouco
"violentado" em sua concepção, continua o mesmo. Embora continue sendo uma exceção
substantiva, o juiz recebeu poderes expressos para reconhecê-la, configurando o art. 219, §5º,
do CPC uma das exceções previstas na parte final do art. 128 do mesmo Código.
Espera-se que, com essas breves linhas, tenha-se criado ao menos alguma reflexão a
respeito do tema, a fim de que não passe desapercebido no meio de tantas novidades
legislativas.
64
TESHEINER, José Maria. Prescrição. Decretação de ofício Lei 11.280/06. Porto Alegre, fev. 2006. Disponível em:
<http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/060412prescricao.php> Acesso em: 20 nov. 2006.
33
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34
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TESHEINER, José Maria. Prescrição. Decretação de ofício Lei 11.280/06. Porto Alegre, fev. 2006.
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 680 p.
35
AS SOCIEDADES COOPERATIVAS E O TRATAMENTO PRIVILEGIADO
CONCEDIDO ÀS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE
(Lei Complementar nº 123/06 e Lei nº 11.488/07)
1 INTRODUÇÃO
Mas nenhum outro diploma normativo precedente, dentre os vários que a história da
Administração Pública brasileira registra sobre o tema - passando pelo Código de Contabilidade
Pública da União, de 1922, pelo Decreto-Lei nº 200/67 - Lei da Reforma Administrativa Federal
- e pelo Decreto-Lei nº 2.300/86 - Estatuto Nacional das Licitações e Contratações - tem
recebido tantas alterações quanto o da Lei nº 8.666/93, que, em menos de três lustros de
vigência, convive com uma sucessão de normas ampliativas, supressivas ou modificativas,
veiculadas por mais de uma dúzia de leis (média de uma por ano), em presumida busca de
dotar as licitações e contratações de nossa Administração de um padrão de eficiência e
eficácia que se possa considerar satisfatório e à prova de desvios.
36
concernente ao tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para as microempresas e
empresas de pequeno porte nas contratações públicas de bens, serviços e obras.
Diante dos vários anteprojetos de leis que tramitam pelo Congresso Nacional, visando a
alterar a estrutura da Lei nº 8.666/93 ou mesmo a substituí-la integralmente, a par das
inúmeras modificações pontuais que se efetivaram desde a sua edição, a nenhum profissional
do setor seria dado imaginar estável o sistema traçado pela chamada Lei Geral das Licitações e
Contratações, sequer que ainda se possa falar de um “sistema”, tantas as alterações que o
fragmentam e desdobram em sub-sistemas, como ocorre com o próprio pregão.
Não seria demais esperar-se, todavia, um mínimo de cuidado com o fim de se evitar
modificações heterogêneas, que desafiam esforços ininterruptos de interpretação a cada
novidade legislativa. A “conspiração” chega à obsessão porque, por mais que se altere a lei
geral, os resultados continuam a despertar inquietação e dúvidas. É o que se passa com a
extensão às sociedades cooperativas do regime diferenciado assegurado às microempresas e
empresas de pequeno porte.
A Lei Complementar n.º 123/06, versando, como versa, sobre tratamento diferenciado
assegurado no texto constitucional, estabelece normas gerais, vale dizer, a serem
necessariamente cumpridas por todos os órgãos e entidades integrantes de todos os Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. São normas destinadas a
estabelecer:
a) a apuração e o recolhimento de impostos e contribuições da competência dos entes
integrantes da federação, mediante regime único de arrecadação, incluindo as
obrigações acessórias;
b) o cumprimento simplificado de obrigações trabalhistas e previdenciárias, incluindo as
obrigações acessórias; e c) o acesso ao crédito e aos mercados, estimulado por meio
de preferência nas aquisições de bens e serviços pelos poderes públicos, tecnologia,
associativismo e regras de inclusão.
37
A disciplina do acesso aos mercados, traçada no Capítulo V da LC nº 123/06, incentiva
a participação das microempresas e das empresas de pequeno porte nas licitações, realizadas
no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, mediante:
O art. 6.º do Decreto n.º 6.204/07 impõe aos órgãos e entidades contratantes
integrantes da administração pública federal a realização de processo licitatório reservado,
exclusivamente, à participação de microempresas e empresas de pequeno porte, desde que
destinado a contratação de objeto cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais),
excepcionando-se a obrigatoriedade, devidamente justificada, quando: 1) não houver o
mínimo de três fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de
pequeno porte, sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências
estabelecidas no instrumento convocatório; 2) o tratamento diferenciado e simplificado para
essas entidades empresariais não for vantajoso para a Administração ou representar prejuízo
ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, assim considerada a contratação que
resultar em preço superior ao valor estabelecido como referência; 3) a licitação for dispensável
ou inexigível, nos termos dos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93; 4.º, a soma dos valores
licitados, nos termos do disposto nos artigos 6º a 8.º do Decreto, ultrapassar vinte e cinco por
cento do orçamento disponível para contratações em cada ano civil; e 5) o tratamento
diferenciado e simplificado não for capaz de alcançar os seguintes objetivos, justificadamente:
a) promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional; b)
ampliação da eficiência das políticas públicas; e c) o incentivo à inovação tecnológica. Norma
que, por depender de vários conceitos jurídicos indeterminados, reclamará atenta
interpretação, de futuro.
65
O art. 44 da LC estabeleceu uma espécie de empate ficto, quando a proposta ou lances ofertados pela empresa de pequeno
porte ou microempresa apresentarem percentual acima da proposta ou lances ofertados pelas demais entidades empresariais
participantes do certame: iguais ou até 10% (dez por cento) nas licitações convencionais (concorrência, tomada de preços e convite),
e de até 5% (cinco por cento) na modalidade do pregão.
38
9. previsão expressa das condições de favorecimento no instrumento convocatóri; 66
10. houver o mínimo de três fornecedores competitivos, enquadrados como microempresas
ou empresas de pequeno porte, sediados local ou regionalmente, desde que capazes de
atender às exigências estabelecidas no instrumento convocatório;
11. explicitação dos motivos (motivação fundada em razões de fato e de direito
objetivamente aferíveis, que devem constar dos autos do processo administrativo
pertinente) de ser economicamente vantajoso o tratamento diferenciado, no caso
concreto.
Próprio que se sindique se tal regime e seus requisitos se compadecem com o perfil
jurídico das sociedades cooperativas, que, muito antes das microempresas e empresas de
pequeno porte, já contavam, como se verá, com legislação própria, assecuratória de
tratamento diferenciado no concernente a encargos trabalhistas e previdenciários, que já as
desonerava de modo suficiente para participarem de licitações em condições de vantagem, se
confrontadas com as empresas em geral, sobre as quais incidem aqueles encargos Estariam a
mercê da Lei nº 11.488/07, art. 34, as cooperativas beneficiárias de uma duplicidade de
privilégios, que as colocariam em vantagem até mesmo em relação às microempresas e
empresas de pequeno porte?
Por definição, toda licitação visa a identificar a proposta mais vantajosa para a
Administração, por isso que garante o acesso igualitário a todos os interessados. Portanto, o
certame competitivo não pode, por princípio, ser manejado de sorte a incentivar a participação
de determinadas categorias empresariais nos negócios públicos. O Estado não contrata com
particulares visando o lucro, mas, sim, à satisfação do interesse público. Os participantes de
uma licitação têm a legítima expectativa, com fundamento na Constituição e na legislação de
regência, de que lhes serão asseguradas as mesmas oportunidades de contratar com o poder
público.
66
Consolidado pelo art. 10 do Decreto n.º 6.402/07.
39
inspiração constitucional das inovações trazidas pela LC nº 123/06 e o disposto
em seus artigos 47 a 49, que retratam o cumprimento, pelo Congresso Nacional,
de política pública traçada pelo Documento Fundamental da República [...]. Eis o
ponto nuclear da questão constitucional suscitada pela LC nº 123/06: o
cumprimento de política pública. O tema já conta com expresso equacionamento
pelo Supremo Tribunal Federal, que, na Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, ADPF, nº 45 MC-DF/2004, sendo relator o Min. Celso de
Mello, desvendou-o de modo a sinalizar caminhos que se devem trilhar na
compreensão e na aplicação do Estatuto Nacional da Microempresa e da
Empresa de Pequeno Porte, verbis:
„O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto
mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode
derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas
em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os
preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal,
que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por
ação.
Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos
preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e
exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que
a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional.
Desse non facere ou non praestare resultará a inconstitucionalidade por
omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou
parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.
A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão,
a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento
revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder
Público também desrespeita a Constituição,também ofende direitos que nela se
fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria
aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental (RTJ 185/794-796,
Pleno) [...].
Cabe assinalar, presente nesse contexto – consoante já proclamou esta
Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da
Carta Política „não pode converter-se em promessa constitucional
inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele
depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento
de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado (RTJ
175/1.212-1.213)[...].
Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo
ao tema pertinente à “reserva do possível” [...], notadamente em sede de
efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder
Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de
tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de
caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende,
em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às
possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada,
objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta
não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a
imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante
indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa –
criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito
de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em
favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” –
ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser
invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas
obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental
40
negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos
constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade [...].
A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular,
pode ser resumida [...] na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de
partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui,
além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de
existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo
existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos
gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir,
relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá
investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de
prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva
do possível [...].
Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do
possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de
implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende,
de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face
do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do
Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas [...]
Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de
opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam
investidura em mandado eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta,
nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do
Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou
procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo, a eficácia dos
direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de
uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento
governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto
irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e
essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á - até
mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico - a possibilidade de
intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos
bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.
A vigente Constituição da República traçou inequívoca política pública em
relação às microempresas e empresas de pequeno porte. Basta reler os seus
artigos 170, IX (A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob
as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País) e 179 (A
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às
microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei,
tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de
suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou
pela eliminação ou redução destas por meio de lei).
À vista desses solares preceptivos, o primeiro dos quais (art. 170, IX) alterado
pela Emenda Constitucional nº 6/95, verifica-se que o Poder Público retardou-se,
por mais de uma década, em cumprir o dever jurídico deles decorrentes, o que
somente veio a ocorrer pela edição da LC nº 123/06, que é lei complementar
para conformar-se a outra exigência constitucional, qual seja a do art. 146, III,
“d”, alínea esta acrescida pela Emenda Constitucional nº 42/03, no sentido de
caber à lei complementar a „definição de tratamento diferenciado e favorecido
para as microempresas e para as empresas de pequeno porte.
Toda política pública de assento constitucional, na interpretação da Corte
guardiã da Constituição, tem prioridade sobre qualquer outra e deve ser
implementada pelo Poder Público, relativamente aos direitos econômicos, sociais
e culturais. Assegurar tratamento preferencial às microempresas e às empresas
de pequeno porte era e é, destarte, prioritário, na medida em que corresponde a
uma política pública traçada pela Constituição, na expectativa de lei
complementar que a viesse definir. Tal o papel que a LC nº 123/06 veio
desempenhar na ordem jurídica brasileira.
41
O sentido de prioridade e de premência, conferido ao tema pela Constituição,
decerto que se inspirou na realidade sócio-econômica. A Justificativa que
encabeçou a remessa do projeto original de lei complementar, em janeiro de
2004, assinalava que „As receitas das micros e pequenas empresas, em 2001,
totalizaram a quantia de R$ 168 bilhões e 200 milhões, respectivamente. Um
estudo realizado nessa mesma época constatou que cerca de um milhão e 100
mil dessas pequenas e microempresas eram do tipo empregadora, isto é, pelos
menos uma pessoa estava registrada pela empresa como empregado, sendo os
demais membros familiares ou sócios, ou seja, mais de 926 mil famílias
diretamente envolvidas no negócio, com os seus membros participando da
empresa na condição de proprietários ou sócios ... podemos perceber a
importância das pequenas e microempresas no desenvolvimento de nossa
economia e principalmente como fator de geração de emprego e distribuição de
renda. Nessa linha, foi feita uma pesquisa em 37 países, em 2002, coordenada
pela GEM- Global Entrepreneurship Monitor, projeto criado pela London Business
School - da Inglaterra, e pela Babson School, nos Estados Unidos, coordenado
no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade do Paraná e
Sebrae, em que o Brasil se destaca em sétimo lugar no ranking dos países com
maior nível geral de empreendedorismo. A taxa brasileira da atividade
empreendedora total, ou seja, a que indica a proporção de empreendedores na
população de 18 a 64 anos de idade, foi de 13,5%, estimando-se em 14,4
milhões de empreendedores no país, dos quais 42% são mulheres‟.
Induvidoso que expressivo segmento de pessoas dependentes da existência e da
atuação de microempresas e empresas de pequeno porte necessita, sob pena do
perecimento destas, do tratamento diferencial prometido pela Constituição, nos
termos que lei complementar haveria de definir, como definiu a LC nº 123/06.
Se as medidas que esta acolheu serão, ou não, eficientes e eficazes para o fim
de cumprir a política pública traçada na Constituição, é o que a implementação
de suas disposições irá aquilatar. O que não se apresenta condizente com a
realidade sócio-econômica e a ordem constitucional é resistir a tal tratamento,
acoimando-o, desde logo, de inadequado. Pode ser que a aplicação das medidas
definidas venha a assim evidenciar, no todo ou em parte. Mas tal não se saberá
sem que o Estado empenhe os melhores esforços em executar, controlar e
avaliar os resultados.
Na seara específica das licitações e contratações da Administração Pública, há,
como se verá adiante, dúvidas ponderáveis sobre a juridicidade, a inteligência e
a pertinência das medidas propostas – basicamente, por ora, a possibilidade de
corrigir defeitos na documentação fiscal e o direito de preferência para
contratar, sob condições determinadas. Por outro lado, a estreiteza das
disponibilidades orçamentárias estatais – insuficientes para atender a todas as
prioridades constitucionais – avaliza a tentativa de estimular-se o
empreendedorismo na criação de oportunidades de trabalho de que carece
numeroso contingente de brasileiros, para os quais a empresa tradicional e o
Estado não parecem reunir condições para empregar e garantir meios de
desenvolvimento pessoal e coletivo, gerando frustrações individuais e o desvio
de gerações de brasileiros para atividades marginais e marginalizantes, quando
não ilícitas e destrutivas, como o noticiário jornalístico cotidiano vem tornando
notório.
Essas são as premissas da compreensão com que se deve recepcionar o disposto
nos artigos 47 a 49 da LC nº 123/06. Traduz a cota de participação da
Administração Pública no estímulo ao empreendedorismo, representado pelas
microempresas e empresas de pequeno porte; um dos instrumentos desse
estímulo está em dispensar-lhes tratamento diferenciado nas licitações e
contratações de bens e serviços.” (Comentários à Lei das Licitações e
Contratações da Administração Pública, p. 39-43, Ed. Renovar, 7ª, edição,
2007).
42
Constituição atribui-lhes tanta relevância quanto atribui às microempresas e empresas de
pequeno porte como instrumentos de política econômica.
67
O Decreto nº 6.204/07 estabelece que, na fase de habilitação, deverá ser apresentada e conferida toda a documentação e,
havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, será assegurado o prazo de dois dias úteis, cujo termo inicial
corresponderá ao momento em que o proponente for declarado vencedor do certame, prorrogável por igual período, para a
regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas
com efeito de certidão negativa. Especifica o citado Decreto que a declaração do vencedor ocorrerá no momento
imediatamente posterior à fase de habilitação, no caso do pregão, e, nas demais modalidades de licitação, no momento
posterior ao julgamento das propostas, aguardando-se os prazos de regularização fiscal para a abertura da fase recursal. A
prorrogação do prazo para regularização da situação fiscal, ainda segundo o Decreto, deverá sempre ser concedida pela
Administração quando requerida pelo licitante, a não ser que exista urgência na contratação ou prazo insuficiente para o
empenho, devidamente justificado, em cumprimento ao princípio da motivação dos atos administrativos.
43
Indagar-se-ia, nessa segunda hipótese, se a participação de cooperativas na licitação,
sem a participação de microempresas ou empresas de pequeno porte, atrairia a aplicação da
LC nº 123/06. Não seria de todo descabido cogitar de resposta negativa, ao fundamento de
que, inaplicável o regime da LC nº 123/06 pela ausência de microempresas ou empresas de
pequeno porte na licitação, tampouco poderia incidir o da Lei nº 11.488/07, dado que esse
dependeria daquele, por extensão e simetria.
Tal interpretação não soa como adequada em confronto com o objetivo da Lei nº
11.488/07, que é o de criar regime especial de incentivos para o desenvolvimento da infra-
estrutura. Imaginar que as cooperativas somente fariam jus ao tratamento diferenciado,
assegurado às microempresas e empresas de pequeno porte, quando estas comparecessem ao
prélio licitatório equivaleria - comparando-se os protagonistas do processo administrativo da
licitação com os do processo judicial - a considerar as cooperativas como assistentes das micro
e empresas de pequenas porte.
5 O EMPATE FICTO
44
8.666/93 (concorrência, tomada de preços ou convite), ou em até 5% (cinco por cento)
superiores ao melhor preço, na modalidade licitatória do pregão (presencial e eletrônico),
serão havidas em situação de empate com as empresas de maior porte e terão preferência ao
contrato.
Deduz-se que as cooperativas que tenham receita bruta de até R$ 2.400.000,00 (dois
milhões e quatrocentos mil reais), no ano-calendário anterior, terão direito aos seguintes
benefícios:
45
a) acesso aos contratos administrativos mediante tratamento diferenciado em termos
de regularidade fiscal comprovável a posteriori e a empate ficto, quando participantes
de licitações (artigos 42 a 49);
b) simplificação das relações de trabalho (artigos 50 a 54);
c) ação fiscalizadora de caráter orientador (art. 55);
d) possibilidade de contratação de compras, bens e serviços, para os mercados nacional
e internacional, por meio de consórcio (art. 56);
e) estímulo ao crédito e à capitalização (artigos 57 a 63);
f) estímulo à inovação (artigos 58 a 67);
g) regras diferenciadas acerca do protesto de títulos (art. 73);
h) acesso aos juizados especiais cíveis, visando à utilização dos institutos da conciliação
prévia, da mediação e da arbitragem para a solução de seus conflitos (artigos 74 a 75).
Desde o Decreto-lei n.º 200/67 que se positivou a distinção entre a atuação estatal no
cumprimento de suas atividades inerentes (vinculadas aos fins jurídicos do Estado, em caráter
próprio e indelegável), daquela em que se desobriga de outras meramente acessórias
(atividades-meio), terceirizáveis ao setor privado. Recorde-se a regra de seu art. 10:
68
LIMA, Denise Holanda Costa Terceirização na Administração Pública. As Cooperativas de Trabalho. Editora Fórum. p. 44.
46
não se trata de mera transferência da gestão de recursos humanos à empresa
terceirizada, visando simplesmente reduzir custos com pessoal, mantendo-se os
mesmos vínculos que caracterizam a relação de emprego com os funcionários
terceirizados, o que corresponde, na verdade, à atividade comumente
denominada de locação de mão-de-obra. A terceirização, isso sim, pressupõe a
prestação de serviços especializados por empresa alheia de forma autônoma,
sem ingerência direta na administração das atividades ou sobre os profissionais
nelas envolvidos.
47
O art. 1.093 do vigente Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) remete a
disciplina das sociedades cooperativas às disposições de seu capítulo VII, ressalvada a
legislação especial. Segue-se que o Código Civil assume o papel de lei geral, reservando à Lei
nº 5.764/71 a função de lei especial. Com esse regime renovado pela lei civil não se
harmoniza qualquer vedação à criação de cooperativas de trabalho, tendo por objeto qualquer
gênero de serviço, operação ou atividade. E o art. 86 da Lei n.º 5.764/71 não veda a
possibilidade de prestação de serviços a terceiros, desde que pelos cooperados e de modo a
atender aos objetivos sociais para os quais a cooperativa foi constituída.
Observa a autora que o conteúdo dessa norma não alterou substancialmente a ordem
jurídica vigente, em face do reconhecimento da relação de emprego quando presentes os
pressupostos dos artigos 2.º e 3.° da Lei n.° 5.452/43, todavia estimulou o desenvolvimento
desse tipo de sociedade, sobretudo sob o impulso da promessa de redução de custos às
empresas terceirizadoras, que passaram a ter, na contratação de cooperativas, alternativa
viável para ganhar eficiência e competitividade. As cooperativas, a seu turno, passaram a ver
nas licitações públicas, para a contratação de bens e serviços, importante fonte para a prática
de atividade econômica em benefício de seus associados.
69
LIMA, op cit., p. 53.
48
Denise Hollanda70 compila os distintos posicionamentos sobre a matéria. De acordo com
uma primeira corrente, uma vez preenchidos os requisitos usuais de habilitação, não há
porque vedar a participação de cooperativas em licitações para a contratação de serviços. Ao
se conferir tratamento restritivo a um tipo de instituição que foi incentivada pela própria Carta
Magna, além de prejudicar potencialmente a obtenção da proposta mais vantajosa para a
Administração, objetivo primordial do procedimento licitatório, estar-se-á afrontando o
princípio da isonomia e o caráter competitivo do certame.
Tais os argumentos expendidos pelo Ministério Público do Trabalho na Ação Civil Pública
n..º 01082-2002-020-10-00-0, 20ª Vara do Trabalho/DF, que resultou em termo de
conciliação judicial firmado aos 05 de junho de 2003, entre este e a União, por intermédio da
Advocacia-Geral, recebendo a cooperativa de mão-de-obra a seguinte definição:
70
Ibidem, p. 81- 87.
71
Ibidem, p. 84.
72
Sobre o assunto, prevalecem os ditames do Enunciado n.º 331 do TST, específicos quanto à contratação de serviços
terceirizados pela Administração Pública: “a contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de
emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional.” Quanto aos direitos às verbas trabalhistas pelo
empregado terceirizado, foi editado pelo TST o Enunciado nº 363 (nova redação dada pela Resolução n.º 121, de 21 de novembro
de 2003), verbis: “A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice
no respectivo art. 37, II e § 2.º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número
de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”.
49
a) Serviços de limpeza;
b) Serviços de conservação;
c) Serviços de segurança, de vigilância e de portaria;
d) Serviços de recepção;
e) Serviços de copeiragem;
f) Serviços de reprografia;
g) Serviços de telefonia;
h) Serviços de manutenção de prédios, de equipamentos, de veículos e de
instalações;
i) Serviços de secretariado e secretariado executivo;
j) Serviços de auxiliar de escritório;
k) Serviços de auxiliar administrativo;
l) Serviços de office boy (contínuo);
m) Serviços de digitação;
n) Serviços de assessoria de imprensa e de relações públicas;
o) Serviços de motorista, no caso de os veículos serem fornecidos pelo próprio
órgão licitante;
p) Serviços de ascensorista;
q) Serviços de enfermagem e
r) Serviços de agentes comunitários de saúde.
Parágrafo Primeiro – O disposto nesta Cláusula não autoriza outras formas de
terceirização sem previsão legal.
Parágrafo Segundo – As partes podem, a qualquer momento, mediante
comunicação e acordos prévios, ampliar o rol de serviços elencados no caput.
7 CONCLUSÃO
50
empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços
daquela. As empresas terceirizadoras passaram a ter, na contratação dessa espécie de
sociedade, alternativa para aumentar sua eficiência e competitividade.
Às cooperativas que auferem receita bruta anual de até R$ 2.400.000,00 (dois milhões
e quatrocentos mil reais) foram estendidos os benefícios deferidos às empresas de pequeno
porte e microempresas pela LC n.º 123/06, dentre os quais tratamento diferenciado quando
participarem de licitações (notadamente, prazo para a emenda de irregularidades fiscais e
empate ficto), regime a que fazem jus por direito próprio e independentemente da
participação, no certame, de microempresas e empresas de pequeno porte.
Jessé Torres Pereira Junior faz ver que “Tratando-se de cooperativas, as possibilidades
de desvios e mal entendidos aumentam geometricamente porque há uma antítese natural
entre a estratégia da terceirização e o cooperativismo, que impende superar com engenho e
técnica. A terceirização tem compromisso com resultados que enfrentem e suplantem a
concorrência. O cooperativismo não pretende concorrer, mas servir-se da cooperação como
mola propulsora de atividade econômica, irmanando em um propósito comum, sem deixarem
de ser profissionais autônomos, aqueles que não conseguiram lugar nos processos econômicos
empresariais, estruturalmente movidos pela concorrência.
51
neutralidade político-religiosa, desenvolvimento da educação, formação de
reservas para o auto desenvolvimento, autonomia e independência frente às
demais instituições de direito privado e entidades governamentais.73
73
(prefá cio a Terceirização na Administração Pública. As Cooperativas de Trabalho, p. 13-14).
52
COMENTÁRIOS AOS PARÁGRAFOS DO NOVO
ART. 475-J DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Com o objetivo de propiciar uma prestação jurisdicional consideravelmente mais efetiva,
foram editados alguns atos legislativos entre outubro de 2005 e dezembro de 2006, dentre os
quais sobrelevamos a Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, em vigor desde 23 de junho
de 2006, mormente o art. 475-J por ela instituído, coração da reforma.
Sem pretensão de esgotamento, a finalidade do presente trabalho é a concatenação de
comentários, assim como a exposição de controvérsias e soluções acerca das alterações
legislativas promovidas pela lei supramencionada, em especial pela instituição de uma etapa
complementar ao processo de conhecimento (arts. 475-I a 475-R), de concretização do direito,
em substituição ao anacrônico processo autônomo de execução.
Após esta introdução, averiguamos os parágrafos do art. 475-J, alma do novo Capítulo X
do Título VIII do Livro I do Código de Processo Civil Brasileiro (Do cumprimento da sentença –
arts. 475-I a 475-R). Por uma questão de didática, de início debatemos o § 2º, com
questionamentos e ponderações sobre o significado de: exigência de conhecimentos
especializados para a efetivação da avaliação, nomeação do avaliador “de imediato”, “breve
prazo” para a entrega do laudo.
Então, altercamos temas ligados ao § 1º, tais como a intimação da penhora e da
avaliação e a impugnação no prazo de quinze dias.
Depois, tratamos de assuntos respeitantes aos § 3º ao 5º, a exemplo da indicação, pelo
exeqüente, dos bens a serem penhorados, do pagamento parcial e sua relação com o quantum
da multa fixada, do não requerimento da execução no interregno de seis meses, do
arquivamento dos autos e de seu desarquivamento a pedido da parte.
Entendemos não poder ser levada adiante a aprovação de projetos existentes no
Congresso Nacional tendentes a restringir o pleno acesso à justiça – mesmo a pretexto de
conferir maior celeridade ao processo, a exemplo do Projeto de Lei nº 4.733/2004, já aprovado
pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados – princípio consagrado
constitucionalmente como cláusula pétrea. Tal fato levaria ao necessário reconhecimento de
inconstitucionalidade da norma, tanto pelo controle difuso quanto pela via concentrada.
Em suma, a finalidade das alterações efetuadas pela Lei nº 11.232/05, principalmente
pelo art. 475-J do CPC, é a busca incessante pela efetividade da prestação jurisdicional,
princípio consagrado no art. 5º, XXXV, da CF, em consonância com o modelo constitucional de
processo.
53
2 NECESSIDADE DE CONHECIMENTOS ESPECIALIZADOS PARA A EFETIVAÇÃO DA AVALIAÇÃO
Com um propósito didático, analisaremos os aspectos concernentes ao § 2º do art. 475-
J, de forma precedente às considerações a respeito do § 1º do mesmo preceito legal.
Após a vigência da Lei nº 11.232/05, a avaliação dos bens penhorados passou a ser
tarefa do oficial de justiça. Porém, quando essa se encontrar na dependência de
conhecimentos especializados, o oficial se quedará impossibilitado de fazê-la. Nesse caso, de
imediato, o juiz nomeará avaliador, estipulando-lhe breve prazo para a entrega do laudo, nos
termos do art. 475-J, § 2º, do CPC.
A mesma providência não deverá ser tomada onde o oficial de justiça, por força
das leis de organização judiciária, não seja habilitado a realizar avaliações (o
que dificilmente acontece, já que nos dias de hoje – pelo menos na maioria dos
lugares do Brasil – o auxiliar da justiça de que se trata é aprovado em concurso
para o cargo de oficial de justiça avaliador). Isto porque onde a lei local não o
fez, a lei federal agora faz com que o oficial de justiça passe a ser, também,
avaliador.74 (grifo do autor)
O reconhecimento de insuficiência da instrução necessária à avaliação é ato de
responsabilidade do oficial de justiça. Todavia, nada impede que o próprio magistrado
reconheça a indispensabilidade de maior perícia para solução da análise a ser efetivada, e,
assim, proceda à nomeação de avaliador.
A expressão “de imediato” (art. 475-J, § 1º), referente à premência da nomeação de
avaliador, deverá ser contada a partir do momento em que se reconhece a necessidade de
conhecimentos exorbitantes da alçada do oficial de justiça, seja por ato deste, seja por
determinação judicial. Outrossim, terá de ser entendida como “o mais rápido possível”, o que
somente poderá ser apurado na prática.
Quanto à locução “breve prazo” (art. 475-J, § 1º), atinente ao tempo concedido pelo juiz
ao avaliador para a entrega do laudo, somente o cotidiano dos foros nacionais atestará o seu
real significado, indicando o que pode ser razoavelmente considerado como breve interregno
em cada caso concreto submetido à apreciação do Poder Judiciário, de acordo com diversos
fatores, a exemplo da espécie de avaliação a ser concretizada.
3 INTIMAÇÃO DA PENHORA E DA AVALIAÇÃO
Dispõe o § 1º do art. 475-J do CPC: “Do auto de penhora e de avaliação, será de
imediato intimado o executado, na pessoa de seu advogado (arts. 236 e 237), ou, na falta
deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por mandado ou pelo correio, podendo
oferecer impugnação, querendo, no prazo de quinze dias.
Nos dizeres de Ernane Fidélis dos Santos: 75
se o oficial de justiça penhora e avalia, lavra-se único auto; se a avaliação for de
outro, nada impede que se acresça ao auto o laudo de avaliação, desde que
contenha a assinatura de ambos os participantes. Normalmente, porém, as
peças serão separadas, com as respectivas intimações realizadas apenas quando
ambas estiverem nos autos.
Conforme colacionado acima, o devedor é intimado da penhora e da avaliação na pessoa
de seu advogado (mediante publicação no diário oficial). Em caso de inexistência deste –
procurador do executado, designado com precedência pelo comando legal – o que pode
acontecer, por exemplo, na hipótese do processo haver transcorrido à revelia, haverá a
intimação do executado ou de seu representante legal (por correio ou por mandado).
O fator que determina quem vai ser intimado em nome do inadimplente deve ser
apurado no instante do proferimento da sentença. Na ocasião, se o devedor possuía advogado
constituído nos autos do processo, a este se encaminha, se dirige a intimação, mesmo que ele
tenha sido deposto ou renunciado à outorga em momento posterior ao encerramento da etapa
cognitiva no processo de conhecimento.
74
FREITAS CÂMARA, Alexandre . A nova execução de sentença. 3.ed. Revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2007. p. 120.
75
FÍDELIS DOS SANTOS, Ernani. As reformas de 2005 e 2006 do código de processo civil. 2.ed. Revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 61.
54
A finalidade dessa comunicação é a ciência dos atos executivos praticados e a abertura
do prazo de 15 (quinze) dias para impugnação.
Não há, de acordo com a lei, preferência pela intimação pelo oficial (por
mandado) ou pelo correio. A agilidade entre uma ou outra forma de intimação é
que deve guiar a atividade jurisdicional. Haverá comarcas ou seções judiciárias
em que a intimação pelo correio é mais rápida enquanto que em outras a
expedição do mandado o será76 (grifo do autor).
Importante ressaltar que o fato de a intimação da penhora e da avaliação ser efetivada
“de imediato”, isto é, independentemente de qualquer despacho do magistrado competente, se
a penhora recair em bens imóveis, também deverá ocorrer a intimação do cônjuge do
executado, conforme mandamento do art. 669, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Conquanto haja omissão legislativa, na hipótese de inviabilidade de intimação do
advogado, do devedor e de seu representante legal, esta se realizará por edital, desde que
presentes seus pressupostos de publicação.
4 IMPUGNAÇÃO NO PRAZO DE 15 DIAS
Preambularmente devemos frisar o fato do atual estudo ter por objeto a apreciação dos
parágrafos do art. 475-J do CPC. O exame da impugnação abrange observações acerca,
essencialmente, do art. 475-J, § 1º, e dos arts. 475-L e 475-M. A avaliação pormenorizada
desses dois últimos dispositivos desviaria o foco da pesquisa em apreço, razão pela qual
comentaremos tão somente os aspectos dessa espécie de oposição correlacionados àquele
primeiro dispositivo legal (art. 475-J, § 1º).
Em qualquer ordenamento jurídico, faz-se necessária a implementação de meios de
defesa para o executado se proteger em caso de ser desenvolvida execução de forma injusta.
Não obstante a inegável força do título executivo, ele não tem o condão de deixar o suposto
devedor em absoluto desarrimo.
Este dispõe de mecanismos de resistência, dentre os quais se destacam, no Brasil, o mandado de
segurança, a ação anulatória do ato declarativo da dívida, a repetição de indébito, a consignação em
pagamento (todos esses cabíveis somente nas hipóteses de execução fiscal), a exceção de pré-
executividade e a impugnação.
Pode-se agrupar a defesa do executado em dois grupos: defesa própria e defesa
imprópria, que têm como critério a existência ou não de regramento específico
para cada forma de defesa. O grupo da defesa própria é composto pelos
embargos à execução, nas suas diversas modalidades, que pode ser identificada
como defesa incidental, e pela impugnação ao cumprimento de sentença, forma
de defesa endoprocessual. O grupo da defesa imprópria é constituído pela
exceção de pré-executividade, também defesa endoprocessual e pelas ações 77
76
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 95-96.
77
GILBERTO MARTINS, Sandro. A defesa do Executado por meio de ações autônomas: defesa heterotópica. 2. ed. revisada e atualizada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 112.
78
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 300.
55
simples petição, dentro do prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 475-J, § 1º, sempre
com observância às regras do art. 184.
Em caso de intimação do advogado do devedor, realizada por intermédio do Diário
Oficial, este interstício é contado a partir da data da publicação no referido órgão (art. 240,
caput). Na hipótese de intimação pessoal do executado ou de seu representante legal,
concretizada pela via postal ou por oficial de justiça, o intervalo se inicia, respectivamente,
com a juntada aos autos do aviso de recebimento (art. 241, I) ou do mandado cumprido (art.
241, II). Já quando a intimação se dá por edital, o prazo é inaugurado com o fim da dilação
subscrita pelo magistrado (art. 241, V).
Pode acontecer de o advogado do devedor renunciar ao mandato durante o
prazo para oferecimento da impugnação. Até porque ele pretende cobrar novos
honorários de seu constituinte, em função das atividades que se seguirão sob o
manto da “fase de cumprimento da sentença”, e seu (ex-)cliente, tendo lido no
jornal que o “processo de execução” acabou, não pretende remunerá-lo
condignamente. Nestes casos, observar-se-á o que dispõe o próprio Código de
Processo Civil. Em seu art. 45, na redação que lhe deu a Lei n. 8.952/1994,
prevê que o advogado continua, no caso de renúncia ao mandato, responsável
pelos atos do processo por 10 dias contados da intimação da renúncia ao seu
antigo constituinte, a qual deverá comprovar para o juízo, “desde que necessário
para lhe evitar prejuízo”. Postas as coisas desta forma, é muito provável que o
advogado que decida pela renúncia do mandato, tenha, ainda, de apresentar a
impugnação, sob pena de ser responsabilizado profissionalmente. A mesma
diretriz é dada pelo art. 5º, § 3º, da Lei n. 8.906/1994, o Estatuto da
79
Advocacia.
No entanto, pode ocorrer dos dez dias posteriores à renúncia se encerrarem antes do
décimo quinto dia permitido para a propositura da impugnação. Nestes casos, prossegue
Cássio Scarpinella Bueno em valorosa síntese:
80
79
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 98
80
Ibid.
81
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática
processual civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 147.
56
A impugnação prevista no art. 475-J, § 1º, do CPC é a defesa incidental, por vezes hábil
a suspender a execução (art. 475-M, caput), do suposto devedor em face da etapa de
cumprimento da sentença.
Em relação à natureza jurídica, sempre foi pacífico na doutrina o entendimento segundo
o qual os embargos do devedor consistem em ação de conhecimento autônoma e incidente à
ação executiva.
Já a chamada impugnação, entretanto, representa mero incidente processual cognitivo
dentro da execução, em forma de defesa.
Não se constitui em ação autônoma, e sim em mero incidente processual, por todas as
características já analisadas na pesquisa em tela, em especial devido à inexistência de petição
inicial e a não-formação de processo autônomo de execução, o que se dava – e ainda se dá em
determinadas hipóteses, como a de títulos extrajudiciais – com os embargos do devedor.
Contudo, em função da autoridade do qual emana, convém citarmos o entendimento
82
doutrinariamente minoritário de Araken de Assis, para quem “a impugnação, analogamente
aos embargos, e a despeito do último tramitar sempre de modo autônomo, representa uma
ação de oposição à execução.” (grifo nosso)
É cognitiva porque tem por escopo o reconhecimento de uma das situações previstas no
art. 475-L, e não o resguardo ou a concretização de eventual direito.
Diz-se que ocorre na execução porque essa, atualmente, é a própria fase de
cumprimento da sentença – momento adequado para o oferecimento da impugnação – nos
casos de títulos executivos judiciais.
Trata-se de modo defensivo, por visar apenas a evitar as conseqüências prejudiciais –
para o executado – advindas da sentença proferida.
4.2 BREVE DIFERENCIAÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS DA ATUAL IMPUGNAÇÃO (ART. 475-L)
E DOS ANTIGOS EMBARGOS (REDAÇÃO ORIGINAL DO ART. 741)
A impugnação se encontrava regulada no art. 741 do CPC – ainda com o nome de
embargos – alterado pela Lei nº 11.232/05 e atualmente adequado apenas aos embargos à
execução contra a Fazenda Pública. Agora, seus fundamentos se localizam no novo art. 475-L
do diploma processual civil. Todas as matérias aí tratadas podem dar azo à propositura desta
modalidade de oposição.
Pelo fato do título executivo judicial haver se formado em uma precedente demanda de
cognição exauriente, em que restou provado o direito alegado, atestam-se inúmeras restrições
ao conteúdo passível de argüição tanto na atual impugnação quanto nos antigos embargos à
execução fundada em título judicial.
Devido a isso,
[...] só poderão ser admitidas na impugnação alegações referentes a matérias
supervenientes à formação do título (como, por exemplo, o pagamento
superveniente à sentença). Exceção a essa regra é, apenas, a hipótese prevista
no art. 475-L, I, que permite a alegação de matéria anterior à sentença (mas
que diz respeito a vício insanável até mesmo pelo trânsito em julgado da
83
sentença de mérito).
Basicamente, a distinção entre o art. 475-L e o antigo art. 741 reside no aparecimento
do novo inciso III, referente à penhora incorreta e à avaliação errônea, e na supressão dos
antigos incisos IV, V, parte final, e VII.O velho n. IV do art. 741, respeitante à “cumulação
indevida de execuções”, não foi reproduzido intencionalmente, deixando implícita, doravante, a
impossibilidade de reunião de títulos de natureza diversa na execução contra o mesmo
devedor, exceto em caso de execução contra a Fazenda Pública, em virtude do novo art. 741,
IV, do CPC, que prevê embargos fundamentados no mencionado acúmulo indevido.
Também não consta da redação do novo art. 475-L a antiga parte final do inciso V do art.
741, ensejadora da oposição do devedor em caso de nulidade da execução até a penhora. Por
82
ASSIS, op. cit., p. 314.
83
FREITAS CÂMARA, op. cit., p. 132.
57
sua vez, as hipóteses de nulidade dos atos executivos praticados até a realização da penhora
estão no art. 618. Uma interpretação equivocada poderia levar à conclusão de não ser mais
admissível a alegação, na petição de impugnação, de nulidade das matérias contidas nesse
preceito legal.
Porém, devido à sua própria natureza, os assuntos ali tratados podem ser reconhecidos
até mesmo de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição, não havendo, portanto, óbice à
argumentação de nulidade da execução com base nas matérias do art. 618 por ocasião da
propositura da impugnação.
Quanto às exceções do primitivo inciso VII do art. 741, tornar-se oportuno o
ensinamento abaixo:
Se o réu não argüi a incompetência relativa no prazo deferido para a
contestação, prorrogada estará a competência do juiz e não mais poderá ser
oposto este seu defeito de legitimação (art. 114). [...] No tocante ao
impedimento, é adequada a afirmativa do Código de que ele poderá ser oposto
em qualquer tempo ou grau de jurisdição; mas é falso o enunciado de que a
parte só poderá fazê-lo no prazo de 15 dias, contado do fato que ocasionou o
impedimento. [...] Quanto à suspeição, ela só pode ser argüida no prazo de 15
dias a contar do fato que a ocasionou. Se este fato ocorreu antes ou depois da
contestação, na primeira ou na segunda instância, ou mesmo na instância
extraordinária, pouco importa. Se o direito de afastar o juiz incompetente
somente surge com a ciência, pela parte, da causa de suspeição, só a partir
desse momento se pode cogitar de preclusão. Este o sentido do texto.84
(grifo nosso).
84
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao código de processo civil. v. III. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 294-295.
85
ASSIS, op. cit., p. 303.
58
embargos à arrematação e à adjudicação, “no que couber”, consoante preceito do aludido art.
475-R.
Assim, a terminologia a ser empregada pode ser perfeitamente “impugnação à
arrematação e à adjudicação”. A segunda parte por analogia ao art. 746 do CPC e a primeira
tanto para aproveitar a recente nomenclatura legal quanto para adequá-la à nova realidade do
processo, onde se tem um incidente e não mais uma ação autônoma como defesa do
executado. Este simples fato já é suficiente para tornar inconcebível a acolhida da locução
“embargos” à presente hipótese.
Outrossim, a impugnação à arrematação e à adjudicação deve ser recebida, em regra, no
efeito meramente devolutivo, por analogia ao art. 475-M (interpretação sistemática) e por
representar melhor os fins almejados pela nova execução implementada pela Lei nº 11.232/05
(hermenêutica teleológica), qual seja, a celeridade, a efetividade, a economia, dentre outros.
Por outro lado, quanto ao conteúdo a justificar o ajuizamento desta defesa, impõe-se o
art. 475-R e, por conseguinte, o art. 746, haja vista a identidade de objetivos entre esta nova
medida e os embargos à arrematação e à adjudicação. Portanto, a impugnação de segunda
fase pode ser fundamentada “em nulidade da execução, pagamento, novação, transação ou
prescrição [...]” – rol exemplificativo, inobstante a redação legal.
Araken de Assis,86 de forma genérica, concebe duas alternativas a serem perfilhadas pelo
operador do direito. Embora não concordemos com a segunda opção por uma questão de
interpretação sistemática e sobretudo teleológica – tendo em vista a finalidade da impugnação
à arrematação e à adjudicação –, cumpre-nos a referência:
[...] ou se aplicará o art. 746, subsidiariamente, adaptando-se o art. 475-L às
matérias nele explicitadas e ao respectivo regime (prazo, efeito suspensivo,
dedução incidental); ou se admitirá o cabimento da exceção de pré-
executividade [...] Do ponto de vista dos que antipatizam com a exceção de
pré-executividade, senão a rejeitam firmemente, parecerá preferível o primeiro
e ortodoxo remédio.
86
ARAKEN DE ASSIS, op. Cit., p. 312.
87
SCARPINELLA , op. cit., p. 88.
59
Sabemos que, apesar das melhoras processuais resultantes da Lei nº 11.232/2005,
singularmente do art. 475-J do Código de Processo Civil Brasileiro, a etapa executiva ainda se
encontrará afastada dos almejados índices de satisfatividade e celeridade em nosso país – pois
não podemos expectar milagres –, essencialmente por motivos estruturais, políticos,
88
financeiros, sociais e até mesmo culturais. Para Araken de Assis,
[...] infelizmente, o direito pátrio omitiu incidente propício à solução de um dos
gargalos da execução que é a localização de tais bens. Confiou na investigação
preliminar do exeqüente, motivo por que lhe assegurou o direito de indicar bens
no requerimento executivo (art. 475-J, § 3º), no tirocínio do oficial de justiça,
cujas habilidades profissionais jamais devem ser desprezadas, e na colaboração
eventual do executado. A este toca, em conformidade ao art. 600, IV, o ônus de
indicar ao juiz “onde se encontram os bens sujeitos à execução”, sob pena de
suportar multa de até 20% (vinte por cento) do valor atualizado do débito (art.
601, caput). É evidente que escamoteação bem sucedida deixa livre o executado
burlão por petição de princípio (inexistência de bens penhoráveis).
O requerimento a que se refere o dispositivo em apreço - art. 475-J, § 3º - é aquele
proposto pelo credor após o decurso do prazo de 15 dias para pagamento voluntário pelo
devedor. Deve ser elaborado da forma mais completa possível, de maneira a abreviar ao
máximo a identificação de bens do patrimônio do requerido passíveis de penhora.
6 PAGAMENTO PARCIAL E MONTANTE DE INCIDÊNCIA DA MULTA
Preconiza o § 4º do art. 475-J do CPC: “Efetuado o pagamento parcial no prazo previsto
no caput deste artigo, a multa de dez por cento incidirá sobre o restante”.
O prazo aludido no caput é o de 15 (quinze) dias para adimplemento voluntário por parte
do executado. Dessa forma, se a dívida atinge a quantia de R$ 10.000,00 e o devedor paga
somente R$ 5.000,00 dentro do lapso temporal mencionado (quinze dias), a multa será de R$
500,00 (10% sobre o valor remanescente, não solvido) e não de R$ 1.000,00 (equivalente a
10% do total, aplicável caso nada houvesse sido pago).
Nos dizeres de Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel
Garcia Medina ,89
a multa, de todo modo, não existe autonomamente, em relação à obrigação
imposta pela sentença. Assim, caso seja provida a apelação interposta pelo réu,
e o pedido seja julgado improcedente, a multa será incabível. [...].
Semelhantemente, a reforma total ou parcial da sentença condenatória
importará a respectiva alteração do valor da multa.
O montante de 10% (dez por cento) recai sobre o débito não quitado, seja por vontade
do devedor, seja por equívoco a ele atribuído.
7 ARQUIVAMENTO E O DESARQUIVAMENTO DOS AUTOS DO PROCESSO
Regra interessante se encontra no art. 475-J, § 5º, redigido da seguinte forma: “Não
sendo requerida a execução no prazo de seis meses, o juiz mandará arquivar os autos, sem
prejuízo de seu desarquivamento a pedido da parte”.
Assim, o arquivamento advém do decurso do tempo acima referido sem a manifestação do credor
no sentido de ser iniciada a fase de cumprimento da sentença, em virtude de ser necessário o
requerimento deste para poderem ser praticados os atos executivos.
90 91
Humberto Theodoro Júnior e Alexandre Freitas Câmara defendem o cômputo do
prazo de seis meses a partir da existência de sentença exeqüível, ou seja, desde o trânsito em
julgado. Entretanto, reputamos ser mais sensata a contagem dessa dilação a começar do
primeiro dia útil subseqüente ao 15º (décimo quinto) dia permitido pela lei para adimplemento
da dívida sem a incidência da multa de 10% (dez por cento), haja vista a impossibilidade de
88
ASSIS, op. cit., p. 269.
89
WAMBIER ; MEDINA, op. cit., p. 145-146.
90
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As Novas reformas do código de processo civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense . 2006. p. 145.
91
FREITAS CÂMARA, op. cit., p. 118.
60
cometimento, pelo demandante, de qualquer ato tendente a encetar a execução em momento
anterior.
Já o desarquivamento não se encontra na dependência de qualquer transcurso temporal.
Pode ser solicitado tanto pelo exeqüente quanto pelo executado, até mesmo porque a norma
legal se refere a “pedido da parte”, sem qualquer especificação restritiva.
[...] Não se aplica, à hipótese, o disposto no art. 267, II e III. Não tem sentido,
a bem da verdade, que se apliquem, à situação aqui descrita, as regras
daqueles dispositivos porque, na hipótese, já há sentença. A “inércia” do credor
se dá com a busca de sua satisfação (da realização concreta do direito
reconhecido no título) e, por isto, não tem sentido falar-se, nesta sede, de uma
extinção do processo “sem julgamento de mérito”. Até porque haverá outros
vários fatores que poderão levar à dificuldade do credor em promover os atos
executivos, a mais comum e provável delas, é a não localização de bens pelo
92
credor ou pelo oficial de justiça ou, simplesmente, a sua inexistência.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito do artigo em tela foi externar observações concernentes, especialmente, ao art.
475-J do Código de Processo Civil, integrante da recentemente criada etapa de cumprimento
da sentença, instaurada no ordenamento jurídico nacional pela Lei nº 11.232/2005.
O Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, não obstante sua rebuscada e admirável
técnica, adotava a separação clássica entre processo de conhecimento e processo de
execução, que se revelava cada vez mais maléfica à celeridade e à eficiência.
Referida divisão ofendia o devido processo legal. Ademais, ocasionava um longo e
desnecessário interstício entre a cognição e a execução, além de numerosos prazos legalmente
estabelecidos dentro desta fase, de concretização do comando judicial, com incontestáveis
danos para o credor e para a economia processual.
Com a vigência da Lei nº 11.232/05, adveio a junção dos processos de conhecimento e
de execução. A partir de então, passou a haver uma etapa inicial (de reconhecimento) e uma
etapa ulterior (de realização do direito). Agora, o processo de conhecimento consiste de seis
fases: postulatória, ordinatória, instrutória, decisória, de liquidação e de cumprimento da
sentença.
Após a intimação do executado referente à penhora e à avaliação, poderá ser efetivada a
impugnação mediante simples petição. O art. 475-J, § 1º, do CPC fixa o prazo de 15 (quinze)
dias, mas se trata de previsão inútil porque as matérias ensejadoras desta espécie de oposição
são de ordem pública, argüíveis a qualquer tempo e grau de jurisdição.
A impugnação é uma defesa incidental, normalmente inapta a suspender a etapa de
cumprimento da sentença, ao contrário dos embargos à execução. Consideramos que possui
natureza jurídica de mero incidente processual cognitivo dentro da execução, em forma de
defesa.
Quando a decisão da impugnação não impedir o prosseguimento da fase de
concretização do direito, ou quando ela não for apresentada, dar-se-á a arrematação dos bens
penhorados e avaliados, após o que haverá o pagamento ao credor. Depois disso, será extinto
o processo, com fulcro no art. 794, I, do CPC.
Eventualmente, poderá ocorrer a chamada defesa de segunda fase, por intermédio de
impugnação da arrematação ou da adjudicação dos bens. Na medida do possível, a disciplina a
ela aplicável será aquela respeitante à impugnação supra-examinada.
Mencionamos o fato de o executado não ter mais o direito de oferecer bens à penhora
antes do exeqüente, que poderá indicá-los já no seu requerimento. Também é importante
salientarmos que, havendo pagamento parcial no prazo de 15 (quinze) dias, a multa incidirá
sobre o restante, sobre a parcela não quitada, seja por vontade do devedor, seja por engano a
ele imputado.
92
SCARPINELLA BUENO, op. cit., p. 98.
61
Se a execução não for requerida em seis meses, o magistrado determinará o
arquivamento dos autos, sem prejuízo de seu desarquivamento a pedido da parte. Não
obstante respeitabilíssimas opiniões em sentido contrário, segundo nos parece, a contagem
desse prazo deverá ser iniciada no primeiro dia útil após o 15º (décimo quinto) dia definido
pela lei para pagamento do valor devido sem a incidência da multa de 10% (dez por cento),
porquanto o credor não pode praticar qualquer conduta apta a abrir a execução em momento
anterior.
Como objetivos salutares a serem atingidos em função da remodelagem decorrente da
inserção do art. 475-J no CPC, podemos apontar a adequação ao modelo constitucional do
processo, bem como o progresso da eficácia, da celeridade, da economia processual, da
efetividade e da justiça, dentre outros.
Apenas o dia-a-dia forense poderá atestar a intensidade da melhora quanto às
finalidades acima aludidas, com a análise dos resultados práticos a serem alcançados.
9 REFERÊNCIA
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao código de processo civil. v. III. 8 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001.
FIDÉLIS DOS SANTOS, Ernane. As reformas de 2005 e 2006 do código de processo civil. 2 ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
FREITAS CÂMARA, Alexandre. A nova execução de sentença. 3 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007.
GILBERT MARTINS, Sandro. A defesa do executado por meio de ações autônomas: defesa
heterotópica. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo:
Saraiva, 2006.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves
comentários à nova sistemática processual civil 2. ed. São Paulo: RT, 2006.
10 BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Tendências contemporâneas do direito processual civil. Revista de
Processo, v. 31, ano 8, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983.
CARREIRA ALVIM, José Eduardo; CABRAL, Luciana Gontijo Carreira Alvim. Cumprimento da sentença:
comentários à nova execução da sentença e outras alterações introduzidas no código de processo civil
(Lei nº 11.232/05). 2 ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2006.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. III. 4. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2004.
GUSMÃO CARNEIRO, Athos. Cumprimento da sentença civil. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
GUSMÃO CARNEIRO, Athos. Nova execução. Aonde vamos? Vamos melhorar. Revista de Processo, v.
123, ano 30. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento: a tutela
jurisdicional através do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
MONTENEGRO FILHO, Misael. Cumprimento da sentença e outras reformas processuais. São Paulo:
Atlas, 2006.
SCARPINELLA BUENO, Cássio. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. I. São Paulo:
Saraiva, 2006.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. A execução de sentença e a garantia do devido processo legal. 1
ed. Rio de Janeiro: Aide, 1987.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do código de processo civil. 1 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.
62
UMA MIRADA NO ANTEPROJETO DE PROCESSO CIVIL COLETIVO BRASILEIRO
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo fazer uma primeira leitura crítica sobre o texto
do anteprojeto de processo civil coletivo brasileiro, analisando seu conteúdo geral e pontuando
questões que julga de maior relevância, notadamente sob o ponto de vista da defesa do
Estado brasileiro.
ABSTRACT:The present paper has for objective to make a first critical reading on the text of
the first draft of civil action collective Brazilian, being analyzed its general content and
indicating questions that it judges of bigger relevance, specially under the point of view of the
defense of the Brazilian State.
Contudo, nem sempre foi assim, cronologicamente, o primeiro modo de resolução dos
conflitos foi a autotutela.94 Através desse modo, as partes diretamente, sem intermediários,
resolviam seus conflitos. Ocorre que, muitas vezes, a força física vinha a ser utilizada,
denotando que nem sempre quem tinha razão saía vencedor, senão o mais forte.
93
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. v.II São Paulo: Bookseller, 2002.p 16.
94
PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria Geral do Processo. 2. ed. São Paulo: LED Editora de direito, 2000. p. 24.
63
Logo, não é uma forma aconselhável para resolver as lides envolvendo o Estado, pois o
interesse público é indisponível.
Bem assim, tal situação está retratada na própria evolução dos direitos fundamentais.
Nesse estádio, que a doutrina convencionou chamar de primeira dimensão, as garantias
aspiradas diziam respeito à liberdade individual, de empresa e de pensamento. A igualdade
formal bastava em um momento em que os agentes econômicos participavam de um sistema
de livre concorrência. Assim o vemos em Alexy: “Los derechos de defensa del ciudadano frente
al Estado son derechos a acciones negativas (omisiones) del Estado.” 96
No final do século XIX, surgem movimentos sociais e, com eles, novas concepções
filosóficas e econômicas. Karl Marx foi um dos maiores críticos do sistema, então vigente,
diagnosticando a concentração de renda que estava sendo gerada pelo processo de
industrialização, fazendo com que cada vez mais o excedente do tempo de trabalho dos
operários fosse apropriado pelos donos dos fatores de produção. Nas palavras de Pinho: 97
95
MARINONI, Luis Guilherme. A jurisdição no Estado Constitucional. Revista Processo e Constituição, v. 1, n. 2, p. 133-
212, maio 2005.
96
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.
p. 419.
97
PINHO, Diva Benevides et al. Manual de Economia. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 41.
98
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 518.
64
Nessa quadra, o Estado passa a ter uma participação ativa na sociedade. Na história do
século XX, passamos a conviver com o Welfare State, o Estado de bem-estar social.
Progressivamente, mais recursos públicos são destinados a gastos sociais, como saúde,
educação e previdência social. O Estado passa a ser devedor de prestações positivas da
sociedade, como nos ensina Alexy:
Ainda, aponta-nos Sarlet uma terceira dimensão dos direitos fundamentais. Nessa, a
titularidade sai do indivíduo passando para a coletividade, o povo e a nação. Ressalta a
importância dos direitos à paz e ao meio-ambiente sadio. Como matiz de sua caracterização,
exigem uma postura eminentemente negativa. Digno de nota, Sarlet os enquadra como
atualização dos direitos da primeira dimensão, adaptados às novas exigências da nova
sociedade contemporânea.
E daí houve a idéia de um processo civil coletivo que, com origem nos países da
common law, tem nos valor da força normativa da jurisprudência o seu fundamento. Tenha-se
isso em mente quando se discorre sobre algumas questões trazidas para o anteprojeto, na
medida em que nossa raiz jurídica não está assentada naquele modelo, senão no regime
romano germânico da legalidade.
99
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002,
p. 422.
100
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 65.
101
Conforme. inc. IV do art. 3º da CRFB: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
102
A íntegra do referido anteprojeto se encontra no sítio do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Disponível
em:http://www.direitoprocessual.org.br/site/index.php?m=enciclopedia&categ=16&t=QW50ZXByb2pldG9zIGRvIEl
CRFAgLSBBbnRlcHJvamV0b3M= . Acesso em 05 set. 2007.
65
da Advocacia-Geral da União103, com relatório apresentado em setembro de 2007, ocasião na
qual tivemos a honra de muito ter aprendido com os demais Membros daquela.
Já no seu art. 1º temos o seu objeto, qual seja, o disciplinamento processual, ainda que
observada a subsidiariedade em relação ao vigente código de processo civil, das ações de
mandado de segurança coletivo, ação popular e ação de improbidade administrativa, além das
ações civis públicas, estas rebatizadas com o nome de ações coletivas ativas. Aqui, atente-se
que não houve previsão quanto à inclusão da ação de mandado de injunção, que, a despeito
de ter tido sua eficácia esvaziada por interpretação do Supremo Tribunal Federal, na medida
em que não se evoluiu no sentido de dar o dever ao Juiz de criar a norma em concreto ao caso
que lhe é posto a decidir, é uma ação constitucional com nítidos contornos difusos e coletivos.
No seu art. 4º, o Anteprojeto elenca as espécies de direitos passíveis de tutela pelo
disciplinamento proposto, quais sejam, os direitos difusos, os coletivos e os individuais
homogêneos. Nesse sentido deixa-se a impressão de que, ao tratar indistintamente as três
modalidades, o anteprojeto não atenta para o fato de que os direitos individuais homogêneos,
tendo, por definição, titulares bem definidos, unidos por uma origem comum, não podem ser
beneficiados por institutos que passam a ser implantados, como a possibilidade de inversão do
ônus da prova, previsto no § 2º de seu art. 11, a execução compulsória, insculpida em seu art.
15 e a isenção de pagamento de custas e verba honorária pelo autor, trazida no seu art. 17,
pois se tratam de interesses perfeitamente disponíveis, nisso distoando dos direitos difusos e
coletivos.
103
Portaria nº 595, do Excelentíssimo Dr. Procurador-Geral Federal, datada de 08/08/2007.
104
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
66
de, nessas ações, o pedido ter perfeitas condições de ser certo e determinado, podendo dita
previsão a condenar o demandado, geralmente um ente público, em verba que, sequer, os
autores postularam.
Já no seu art. 7º fica expresso que não haverá litispendência entre as ações coletivas e
as individuais, o que nem poderia, dada a disponibilidade dos autores, mormente nas que
envolvem direitos coletivos e individuais homogêneos. Contudo, não havendo a opção dos
autores nas suas ações individuais pela suspensão de seus feitos, os efeitos benéficos a eles
não serão estendidos. No mesmo artigo é dado ao demandado o dever de informar ao juízo da
existência de ações coletivas, para os efeitos da opção acima, sob pena de, mesmo na
hipótese da ação individual ser julgada improcedente, o autor dessa poder se beneficiar dos
efeitos daquelas. Nesse ponto, julgamos extremamente necessária reforma, dado que a coisa
julgada constitucional está seriamente ameaçada, uma vez que o trânsito em julgado da ação
individual não se faria sentir para aquele autor individual.
No art. 11 temos uma bela inovação no sistema processual brasileiro, qual seja, a
adoção da prova estatística ou por amostragem ao julgamento. Nos EUA, vige, nos tribunais, a
evidência estatística para se fundamentar uma ação de indenização por discriminação ao
acesso do mercado de trabalho por grupos discriminados, como visto acima. A origem da
discriminação indireta também é exposta por Rios105, da jurisprudência norte-americana, por
ocasião do julgamento do caso Wards Cove Packing Company, Inc. V. Atonio106, no qual os
trabalhadores de uma empresa ajuizaram uma ação coletiva alegando estarem sendo
discriminados indiretamente, visto que determinado grupo, histórica e estatisticamente,
exercia as funções de menor destaque, e, conseqüentemente, menor remuneração. 107 Nesse
caso, ficou assentado pela Suprema Corte americana, primeiramente, a necessidade de o
Judiciário também atentar para a discriminação indireta, mas que, para isso, dever-se-ia exigir
do demandante a identificação da prática ofensiva; logo após, à defesa, caberia alegar algum
motivo justificador de tal atitude, retornando ao autor o ônus da indicação de uma atitude de
menor impacto e com a mesma eficiência daquela atitude tomada pelo réu acusado, necessária
que tenha sido sua adoção para o bom desempenho do seu negócio. Reitera-se, logo poder
contar que nossa jurisprudência pátria adote tal apoio estatístico nas suas decisões também, o
que lhe dará uma maior conexão com os fatos sociais. Da mesma maneira, nossa
jurisprudência deveria buscar nessa fonte subsídios para o julgamento das lides que lhe são
apresentadas, reforçando a conectividade social necessária à nossa matriz jurídica. Agora
parece que vamos, pelo menos em esfera de direitos coletivos, trilhar nesse sentido.
Destaque também se dá ao § 4º do seu art. 13, no qual faz constar que a competência
do juízo prolator não interferirá na eficácia da coisa julgada erga omnes. Ora, não seria o caso
aqui, em homenagem à competência de Tribunais Nacionais para decidirem sobre questões
que venham afetar o país inteiro, de reportar-se ao rt. 16 da lei da ação civil pública, com sua
redação dada pela lei nº 9.494/97, limitando a eficácia à limitação territorial do órgão prolator
? Pensa-se que sim.
105
RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e o direito da antidiscriminação: discriminação direta, discriminação
indireta e as ações afirmativas no direito constitucional estadunidense. Tese de Doutorado em Direito, Faculdade de Direito,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004, p. 129-130.
106
490 U.S. 642 (1989).
107
490 U.S. 642 (1989).
67
Vale registrar que o seu art. 14 dá como regra a não-atribuição de efeito suspensivo ao
recurso contra a sentença, na esteira do próprio atual código de processo civil, de restringir ao
máximo a suspensividade provocada pelos incidentes, em prol da efetividade da duração
razoável do processo, novel direito fundamental expresso no art. 5º da Carta Maior, em seu
inciso LXXVIII. Contudo, seu § único retira a remessa de ofício nas sentenças concessivas de
mandado de segurança, com o que não concordamos, na medida em que no próprio remédio
individual continua tal previsão.
Ainda preocupado com os interesses do Estado brasileiro, não vemos no seu art. 16 as
vedações e previsões especiais para pagamento aplicáveis aos entes públicos previstas no art.
100 da Carta Mater, como a proibição de desembolso sem expedição de precatório ou de
requisição de pequeno valor e a impossibilidade de execução provisória contra tais entes, como
já assentado pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.108
Ponto de profunda análise é o rol dos legitimados, previsto no seu art. 20, chegando a
dar tal condição às pessoas físicas. Ora, como se pode impetrar ações coletivas por pessoas
físicas e a disponibilidade dos interesses individuais homogêneos, onde fica ? Mais, em
podendo ajuizar, também poderiam renunciar as pessoas físicas a tais direitos disponíveis por
terceiros ? Tal previsão não merece subsistir.
No tocante ao seu art. 30, devem estar expressas as prerrogativas previstas em lei
complementar dos Membros da Advocacia Pública e MP, senão pelo fato de tal Código vir
mediante lei ordinária, não podendo revogar tal matéria.
Uma final ressalva fazemos em relação ao § 2º do seu art. 33 , no qual faz-se mister a
remissão às regras próprias do art. 100 da Carta Maior e aos art. 730 e seguintes do CPC
quando o executado for ente público, não podendo estes se submeter à metodologia aplicável
aos executivos entre privados.
3 CONCLUSÃO
Por fim, o Estado, sujeito passivo que será da grande maioria de tais ações coletivas,
não pode perder todas suas prerrogativas, sob pena de, toda a coletividade, ainda ter de
contribuir mais aos cofres públicos para poder saldar seus compromissos daí decorrentes.
Enfim, devemos transformar esse futuro código no Código da Coletividade, mas não
esquecendo de que o Estado é o maior ente coletivo na nossa sociedade.
108
Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário 463.9369, DJU de 16/06/2.006.
68
4 REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002.
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
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CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed., v. II. São Paulo: Bookseller,
2002.
PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria Geral do Processo. 2. ed. São Paulo: LED Editora de direito,
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PINHO, Diva Benevides, et al. Manual de Economia. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Processo de Execução e Processo
Cautelar. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
69
QUESTÕES PROCESSUAIS NA APURAÇÃO DO DANO MORAL
NO CONTEXTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
1 INTRODUÇÃO
O processo não só por proteger o interesse privado das partes (o bem da vida
almejado), mas principalmente por tutelar um interesse público de toda a sociedade, está
impregnado de normas cogentes, as quais suplantam as normas de caráter dispositivas. As
normas cogentes não podem ser afastadas pelas partes e pelo juiz, enquanto que as normas
dispositivas podem ser afastadas pelas partes desde que haja manifestação. 110
Para garantir uma relação processual adequada às incertezas que pairam sobre o bem
da vida pleiteado em cada ação judicial, no caso do Brasil, o direito processual civil se vale das
109
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. 9. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 91.
110
ALVIM, op. cit., p. 109.
111
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. v.1 – Processo de conhecimento. 4. ed. São Paulo: RT, 1998
p. 19.
70
seguintes fontes principais112, sem ignorar os costumes, a doutrina e a jurisprudência: em
primeiro lugar, a Constituição Federal, fonte primeira que regula os princípios fundamentais
que regem o processo civil, dos quais podemos destacar os do devido processo legal (art. 5º,
LIV), da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV), da proibição de juízos de exceção
(art. 5º, XXXVII), do juiz e promotor natural (art. 5º, LIII), do contraditório e ampla defesa
(art. 5º, LV), da proibição da prova obtida ilícitamente (art. 5º, LVI), da motivação das
decisões judiciais (art. 93, IX), etc. Depois da Constituição Federal, o Código de Processo Civil
é a lei federal ordinária que rege o processo civil brasileiro, sendo aplicável subsidiariamente
aos processos regulados em leis extravagantes, desde que haja lacuna e com ela seja
compatível a norma do CPC que se queira aplicar.
Dentro dessa ótica, permite-se dizer que a dinâmica processual, inclusive no aspecto da
tese a ser adotada, precisa ser aquela que mais se ajuste a permitir que o devido processo
legal, no atinente, principalmente, aos princípios e regras processuais estabelecidas ou
decorrentes da Constituição Federal e Leis Processuais, sejam respeitados quando da busca da
melhor prestação jurisdicional em relação ao bem da vida almejado.
Dito isso como introdução, passa-se a análise da questão das implicações processuais
que decorrem da averiguação e apuração do dano moral sob a ótica da responsabilidade civil
do Estado. Logicamente que para tanto, outros aspectos e pontos considerados fundamentais
serão abordados para tentar apresentar a dimensão e propósito do presente estudo.
112
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil
extravagante em vigor. 3. ed. São Paulo: RT, 1997 p. 247.
113
SILVA. Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. Vol. 1 – Processo de conhecimento. 4ª ed. São Paulo: RT,
1998, p. 67 e 69.
114
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 418-431.
71
Passou, posteriormente, para a fase da responsabilidade civilista, surgida na França no
século XIX, quando da discussão sobre a conceituação de atos de império e de gestão, em que
começou a ser firmada a responsabilidade da administração pública por danos provenientes de
atos de gestão, no caso de culpa ou dolo do agente público.
Pela teoria do risco objetivo, figura o entendimento de que ao lesado não interessa
conhecer o responsável pelo dano, ele almeja o ressarcimento, desde que estabelecido o nexo
causal entre ele e o Estado.115
Vigora, com prevalência, no nosso ordenamento jurídico a regra geral de que o dever
ressarcitório pela prática de atos ilícitos decorre da culpa, ou seja, da reprovabilidade ou
censurabilidade da conduta do agente. O comportamento do agente será reprovado ou
censurado quando, ante circunstâncias concretas do caso, se entende que ele poderia ou
deveria ter agido de modo diferente. O ato ilícito qualifica-se pela culpa. Não havendo culpa,
não haverá, em regra, qualquer responsabilidade. À luz do art. 186 do Código Civil, ocorre ato
115
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: Contratos em espécie e responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2001. p. 497-533
116
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 560-573.
117
VENOSA, op. cit., p. 497-533.
118
VENOSA op. cit.
72
ilícito quando alguém, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito ou causar dano, ainda que exclusivamente moral, a outrem, em face do que será
responsabilizado pela reparação dos prejuízos. 119
119
DINIZ, Maria Helena. Curso Direito Civil Brasileiro. v.17 São Paulo: Saraiva, 2003. p. 40.
120
Ibidem.
121
DINIZ, Maria Helena.Op. cit., p. 40.
122
BRASIL. Constituição (1988). 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999.
123
Ibidem.
124
MEIRELLES, op. cit., p. 562-563.
73
Existe a possibilidade de o Estado, caso condenado a indenizar o administrado,
ingressar com ação regressiva, de rito ordinário, nos termos do Código de Processo Civil,
contra o agente público, caso este tenha sido o responsável, por dolo ou culpa, pela
condenação do Ente Público. Para ajuizar essa ação, portanto, há a necessidade de prévia
condenação da pessoa estatal à indenização de terceiros por ato lesivo do agente, e anterior
constatação, em processo regular, em que onde sejam respeitados todos os princípios do
devido processo legal, do comportamento doloso ou culposo do agente. 125
A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o Regime Jurídico dos
Servidores Públicos, confirma o exposto quando expressa:
125
PIETRO, op cit., p. 430-431.
126
MELLO Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997 p. 642-644.
127
ANJOS, Luís Henrique Martins dos; JONE, Walter. Manual de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001. p. 356.
128
Supremo Tribunal Federal, RE- 93880/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Décio Miranda, DJ 05.02.82, p. 10443.
74
Processual Civil, norma do direito instrumental, o poder de aniquilar o próprio
direito material. Precedentes. Agravo regimental improvido.129
De acordo com o doutrinador Humberto Theodoro Júnior 132, pela sistemática do Código
de Processo Civil, a denunciação da lide é medida obrigatória, que leva a uma sentença sobre
a responsabilidade de terceiro em face do denunciante, juntamente com a solução normal do
litígio de início deduzido em juízo, entre autor e réu. Consiste em chamar o terceiro
(denunciado), que mantém um vínculo de direito com a parte (denunciante), para vir
responder pela garantia do negócio jurídico, caso o denunciante saia vencido no processo.
Como se vê, existe substancial diferença entre a denunciação da lide prevista na Lei
Processual brasileira e a ação regressiva constante no art. 37, § 6º da Carta da República
Federativa do Brasil, haja vista que nesta, primeiro o Poder Público responde objetivamente à
luz da teoria do risco administrativo, e caso condenado, em provando a culpa ou dolo do
agente público, ingressa com uma ação contra este.133
129
Superior Tribunal de Justiça, Segunda Turma, Decisão de 20/11/2001, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento –
396230, Processo nº 2001.00.82346-0/BA.
130
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Terceira Turma, Relator Juiz Tourinho Neto, Apelação Cível no Processo nº
1989.01.09213-1/DF, publicado no DJ 04/06/1990, p. 11755.
131
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Terceira Turma, Relatora Juíza Luíza Dias Cassales, Apelação Cível no Processo
nº 94.04.39728-8/RS, publicado no DJ DE 14/10/1998, p. 580.
132
THEODORO JÚNIOR. Humberto. Curso de direito processual civil. 20. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
133
ANJOS; Jone, op. cit., p. 355-356.
75
fazem parte daquele núcleo constitucional imodificável e inatingível pelo Poder Derivado, seja
por intermédio de emenda constitucional, ou outro modo de reforma da Constituição Federal,
porquanto constituem cláusulas pétreas nos termos do § 4º do art. 60. Somente por meio de
outro poder constituinte originário isso será possível, o que não deverá ocorrer, haja vista
constituir direitos conquistados pela própria evolução da humanidade e dos estados
politicamente organizados, principalmente dos estados democráticos de direito.
Essas previsões constitucionais “colocaram por terra” todas vacilações que existiam na
doutrina e na jurisprudência, a respeito do cabimento ou não de indenização por dano moral.
O dano moral, diversamente do dano material que é concreto, é mais sutil, em virtude de que
envolve ataques aos sentimentos humanos, como a honra, a dignidade e a reputação.
134
BRASIL. Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999.
135
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
76
Há que se ter presente que a Constituição Federal impõe ao Estado e à sociedade o
dever de garantir não somente os direitos de primeira geração - a vida, a liberdade, associação
etc., mas também os de segunda (o direito ao trabalho, à saúde e à educação etc.-, e de
terceira - direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente etc.-; ou seja, houve um
abandono da idéia individualista, passando a existir uma inquietude social mais abrangente.
Isso demanda, efetivamente, para o Estado uma preocupação global, a fim de não ocorrer
maior valorização de determinados direitos em prejuízo de outros. Logicamente que a
viabilização dos direitos de segunda, terceira, e até de quarta geração são, estes reconhecidos
por apenas alguns doutrinadores e refletem diretamente sobre os de primeira geração, estes
também, repercutem em relação às demais gerações de direitos. Na verdade, percebe-se que
existe uma verdadeira interação e interdependência nessas gerações de direitos. O doutrinador
Alexandre de Moraes nos traz as seguintes lições:136
Dessa forma, quando houver conflitos entre dois ou mais direitos ou garantias
fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da
harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o
sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional no âmbito
de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro
significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.
À própria Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, expressamente, em seu
art. 29 afirma que:
toda a pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela pode
desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício de seus direitos
e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estarão sujeitas às limitações
estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito dos direitos
e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem
pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. Estes direitos e
liberdades não podem, em nenhum caso, serem exercidos em oposição com os
propósitos e princípios das Nações Unidas. Nada na presente Declaração poderá
ser interpretado no sentido de conferir direito algum ao Estado, a um grupo ou
uma pessoa, para empreender e desenvolver atividades ou realizar atos
tendentes à supressão de qualquer dos direitos e liberdades proclamados nessa
Declaração.
136
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
137
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Direitos fundamentais do homem nos textos constitucionais brasileiro e alemão. Revista
de Informação Legislativa, Brasília, n. 115, 1992.
77
terceira geração, dispondo inclusive, no artigo 225, sobre o “direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Portanto, referente à ação de indenização por dano moral quando o Estado agride os
direitos fundamentais, a honra, a imagem, a vida privada e a intimidade, deve ocorrer o
máximo de cuidado na apuração do dano efetivo, à sua extensão, às suas circunstâncias, e
outros aspectos relevantes, a fim de não haver um atropelo à necessária harmonia com os
demais direitos e princípios que precisam ser assegurados pelo Poder Público. Cabe trazer a
seguinte jurisprudência a respeito:
DANO MORAL. Necessariamente ele não existe pela simples razão de haver um
dissabor. A prevalecer essa tese, qualquer fissura de contrato daria ensejo ao
dano moral conjugado com o material. O direito veio para viabilizar a vida e não
para truncá-la, gerando-se um clima de suspense e de demandas. Ausência de
dano moral, no caso concreto. Recurso desprovido”.138
Maria Helena Diniz139 observa que o dano moral não é a dor, a angústia, o desgosto, a
aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento danoso, pois estes
estados de espírito constituem conteúdo, ou melhor, a conseqüência do dano. O direito não
repara qualquer padecimento, dor ou aflição, mas aqueles que forem decorrentes da privação
de um bem jurídico sobre o qual a vítima teria interesse reconhecido juridicamente.
O doutrinador Silvio de Salvo Venosa140 consigna que dano moral é o prejuízo que afeta
o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Nesse campo, o prejuízo transita pelo
imponderável, daí por que aumentam as dificuldades de se estabelecer a justa recompensa
pelo dano. Em muitas situações, cuida-se de indenizar o inefável. Não é também qualquer
dissabor comezinho da vida que pode acarretar a indenização.
O Advogado Álvaro Couri Antunes Souza141 para definir danos morais usa as palavras
dos doutrinadores Carlos Alberto Bittar e Wilson Mello da Silva que consignam,
respectivamente:
Danos morais são lesões sofridas pelas pessoas, físicas ou jurídicas, em certos
aspectos de sua personalidade, em razão de investidas injustas de outrem. São
aqueles que atingem a moralidade e a afetividade da pessoa, causando-lhe
constrangimentos, vexames, dores, enfim, sentimentos e sensações negativas.
Dano moral é aquele que diz respeito às lesões sofridas pelo sujeito físico ou
pessoa natural (não jurídica) em seu patrimônio de valores exclusivamente
ideais, vale dizer, não econômicos.
Em artigo publicado no Jornal Zero Hora, de 10.10.98, sob o título “A Indústria do Dano
Moral”, o Desembargador Décio Antônio Erpen, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul, assim expressa:
138
AC nº 596185181-RS, Sexta Câmara Cível, Rel. Desembargador Décio Antônio Erpen, julgamento 05.11.96.
139
DINIZ, cit., op. 84-86.
140
VENOSA, cit., op. 514-515.
141
SOUZA, Álvaro Couri Antunes. O valor da causa nas ações indenizatórias por danos morais. Revista dos Tribunais,
v.783, jan. 2001. v. 783.
78
A prevalecer o instituto sem critérios legais definidos, os profissionais, em
especial os prestadores de serviço, exercerão seu mister com sobressalto; os
produtores não resistirão às indenizações de valores imprevisíveis. Sequer as
seguradoras assumirão a cobertura ante a ausência de um referencial para a
elaboração dos cálculos. Enfim, toda a sociedade estará submetida ao
subjetivismo, o que conspira contra um valor supremo do direito, a segurança
jurídica.
A corrente belicosa, se vitoriosa, gerará uma sociedade intolerante, na qual se
promoverá o ódio, a rivalidade, a busca de vantagens sobre outrem ou até a
exaltação ao narcisismo. A promissora indústria do dano levará a esse triste
quadro [...].142
Pode-se dizer que existe uma incompatibilidade evidente entre a forma de apuração da
responsabilidade objetiva patrimonial, com aquela que deve nortear a investigação em relação
ao dano moral, em que, os aspectos subjetivos devem ser muito bem provados e sopesados,
enquanto que naquela o Poder Público somente se exime de responsabilidade da indenização
caso consiga provar a culpa exclusiva da vítima, de terceiro, força maior ou caso fortuito.
O direito à indenização por dano moral deve fundar-se no art. 186 do Código Civil, onde
o autor precisará provar o ato culposo do agente, o nexo causal entre o ato e o resultado, bem
como o prejuízo decorrente. Significa dizer que, em princípio, para o autor conseguir êxito na
causa indenizatória tem o ônus e a incumbência de provar a ocorrência dos três requisitos
retrocitados, tudo de acordo com o art. 333, inciso I, do Código de Processo Civil brasileiro.
Importante registrar que não existe lugar na ação de indenização pela responsabilidade
objetiva para discutir aspectos subjetivos, com ampla instrução processual, provas,
contraditório e defesa, que envolve a responsabilidade por dano moral, o que, por essa razão,
a torna incompatível para a apuração e avaliação dessa espécie de dano.
Além do mais, se o agente público supostamente causador do dano moral não participa
da relação processual, haja vista que não existe previsão constitucional e legal de denunciação
da lide ao mesmo, e o próprio Poder Público está coartado a somente discutir aspectos
restritos, como a culpa exclusiva da vítima, força maior e caso fortuito, não pode haver espaço
para o pleito de reparação de dano moral na ação por responsabilidade objetiva, o que deve
ser buscada, por conseguinte, em outra ação com fundamento na responsabilidade subjetiva.
142
ERPEN, Décio Antônio. A indústria do dano moral. Zero Hora, Porto Alegre, 10 out. 1998.
143
Resp. nº 215.607, RJ, Relator Ministro Salvio de Figueiredo Teixeira, julgado ocorrido em 17/08/1999, publicado no DJ
13/09/1999.
79
I – A indenização deve ser fixada em termos razoáveis, não se justificando que a
reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, com manifestos
abusos e exageros, devendo o arbitramento operar com moderação,
proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das partes,
orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência,
com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento a
realidade da vida e às peculiaridades de cada caso. Ademais, deve ela contribuir
para desestimular o ofensor a repetir o ato, inibindo sua conduta antijurídica.
II – Diante dos fatos da causa, razoável a indenização arbitrada pelo Tribunal de
origem, levando-se em consideração não só a desproporcionalidade das
agressões pelos seguranças como também a circunstâncias relevante de que os
shoppings centers são locais freqüentados diariamente por milhares de pessoas
e famílias.
III – Em face dos manifestos e freqüentes abusos na fixação do quantum
indenizatório, no campo da responsabilidade civil, com maior ênfase em se
tratando de danos morais, lícito é ao Superior Tribunal de Justiça exercer o
respectivo controle.
IV – Calculados os honorários sobre a condenação, a redução devida pela
sucumbência parcial nela foi considerada.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o exposto espera-se ter contribuindo, de alguma forma, para aumentar, ainda
mais, a inquietude em relação tão polêmico assunto, que é a indenização por dano moral,
principalmente quando a ação é ajuizada contra o Poder Público, seja por pessoa que não faça
parte da Administração Pública, seja por agente público.
Ao que parece, a ação indenizatória por dano moral não pode aproveitar-se do rito
processual que segue a ação de reparação por dano patrimonial à luz da responsabilidade
objetiva, pela teoria do risco administrativo, porquanto a dinâmica processual não é a mais
adequada a permitir que o devido processo legal, no que diz respeito precipuamente aos
princípios e regras processuais estabelecidos ou decorrentes da Constituição Federal e Leis
144
ANJOS; Jone, op. cit., p. 350.
80
Processuais, seja respeitado quando da busca da melhor prestação jurisdicional em relação a
esse bem da vida almejado.
81
9 BIBLIOGRAFIA
ANJOS, Luís Henrique Martins dos; JONE, Walter. Manual de direito administrativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. 9. ed. São Paulo: RT, 2005.
DINIZ, Maria Helena. Curso Direito Civil Brasileiro.v.17 São Paulo: Saraiva, 2003, v. 17, p.
40.
ERPEN, Décio Antônio. A indústria do dano moral. Zero Hora. Porto Alegre, 10 out. 1998.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros,
1997.
MELLO. Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
1997.
MORAES. Alexandre de. Direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e
legislação processual civil extravagante em vigor. 3. ed. São Paulo: RT, 1997.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998.
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Malheiros, 1997.
SILVA. Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. v. 1 in Processo de conhecimento.
4. ed. São Paulo: RT, 1998.
SOARES, Mário Lúcio Quintão Soares. Direitos fundamentais do homem nos textos
constitucionais brasileiro e alemão. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 29, n.
115, p. 85-138, jul./set. 1992.
SOUZA, Álvaro Couri Antunes. O valor da causa nas ações indenizatórias por danos morais.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 90, n. 783, p. 183-196, jan. 2001.
THEODORO JÚNIOR. Humberto. Curso de direito processual civil. 20. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: Contratos em espécie e responsabilidade civil. v.3 São
Paulo: Atlas, 2001.
82
A NÃO FLUÊNCIA DE JUROS MORATÓRIOS DURANTE A INÉRCIA DO
CREDOR EM EXECUTAR TÍTULO JUDICIAL CONTRA A FAZENDA PÚBLICA
De início, pode soar estranho que um dado credor quede inerte e dê causa, ele próprio,
ao atraso da satisfação de um crédito que lhe foi garantido, as mais das vezes, empós um
longo trâmite cognitivo. Todavia, a situação que realmente ocorre, sendo o exemplo mais
claro consubstanciado pelas ações de feição coletiva, do patrocínio de substitutos processuais,
e nas quais a execução é desmembrada por grupos de autores a fim de evitar-se litisconsórcio
multitudinário. Supõe-se que em função da magnitude da tarefa, a envolver um sem-número
de representados, e, por conseguinte, de documentos, os patronos das coletivas, limitados
pelas contingências do factível, escoem um certo tempo para o ajuizamento do executivo,
tempo esse que, não raro, ultrapassa inúmeras competências mensais.145.
A mais disso, e tendo bem presente que a Constituição é um todo ordenado, que deve
ser entendido e interpretado de forma sistemática e abrangente, ainda há outras normas a
chancelar entendimento que tal, das quais destaca-se o princípio da impessoalidade (art. 37,
caput); e (b) a programação orçamentária vigente (arts. 165/9).
O primeiro deles, a confirmar que o agente público, em qualquer circunstância, não
poderá tratar dos assuntos de suas atribuições tendo em apreço qualquer preferência ou
interesse particular, afiança que, relativamente às condenações judiciais, só se pode cogitar do
atendimento dessas após a iniciativa do credor, e da devida conferência da escorreição
liquidatória do crédito, pena de, não o fazendo, sujeitar-se, no mínimo, às conseqüências
145
De acordo com a jurisprudência prevalecente, representada pelo verbete nº 150 da súmula do E. STF, o credor dispõe, para
fins executivos, do mesmo prazo prescricional da respectiva ação.
146
Trata, o presente trabalho, exclusivamente da dívida judicializada, e não de outros modos obrigacionais de feição
extrajudicial.
147
Ver, ainda, arts. 33, 78, 86 e 87 do ADCT.
83
funcionais da relapsia.148. Já no concernente à programação orçamentária, tem-se iniludível
que a Constituição exige que o dispêndio só se possa dar à conta de créditos prévios, sendo,
portanto, inescapável o atendimento às balizas dos seus arts. 165 e 167.
Não fossem apenas tais evidências a impossibilitar o cobro dos moratórios, quando o
retardo não é da Fazenda, extraem-se da legislação infraconstitucional ainda outros elementos
no sentido da inafastabalidade do regime ex lege de pagamentos pelo Estado, a saber:
Tudo estando a indicar, dessarte, que nenhuma margem existe ao agente público para
subtrair-se, no que atine às condenações judiciais, do regime imposto legalmente para a
satisfação das mesmas. Assim é que, portanto, os ônus da mora do credor em executar seu
título, seja por qual razão for, devem sobre o mesmo recair, à míngua de qualquer
fundamento que lhe justifique a inação, bem assim que autorize a Fazenda ao adimplemento
espontâneo da monta.
148
Vide, ainda, Lei nº 8.429/92 (LIA), arts. 10/11.
84
A NECESSÁRIA MUDANÇA DE PARADIGMAS NO ACORDO TRABALHISTA – DO
ANIQUILAMENTO À PROTEÇÃO DO DIREITO PREVIDENCIÁRIO DO
TRABALHADOR E DA COLETIVIDADE
A sociedade evolui e o Direito como uma ciência prática deve acompanhar esse ritmo.
Atento a isso, o legislador infraconstitucional foi especialmente feliz na Lei 11.457/2007 de
criação da Super Receita quando permitiu a contestação pelos órgãos de representação dos
acordos entabulados na esfera trabalhista e homologados por sentença de igual espécie. Qual
foi a ratio legis que sobressai no caso? O fundamento racional percebido pelo legislador e que
reflete as modificações da “consciência jurídica geral” 149 não é outro senão a solidariedade.
Mas antes de adentrar na ratio legis, mister antes verificar a realidade da Justiça Especializada
Trabalhista no que tange a arrecadação das contribuições previdenciárias decorrentes da
homologação de acordos trabalhistas.
Fato é que desde a inserção do parágrafo pela Emenda Constitucional 20/98, a Justiça
Especializada nunca mais foi a mesma, pois passou a focar com mais eficácia nas contribuições
devidas à Previdência Social. Entretanto, a esta ação arrecadatória correspondeu uma ação
elisiva por parte dos contribuintes, o que será enfrentado após necessária e prévia
compreensão acerca do sistema previdenciário nacional.
Daí porque não se pode falar em benefício sem se falar de contribuição, acabou a
aposentadoria por tempo de serviço e vige a aposentadoria por tempo de contribuição.
A reação elisiva se funda numa tendência histórica dos povos de repulsa ao poder
tributário do estado fiscal151. No entanto, está presente o estado fiscal social. O tributo em
149
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
150
Importante notar que o §5º do art. 195, pressupõe o mesmo raciocínio, seja-se: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade
social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.”, e sempre esteve presente na
Constituição Federal desde a sua promulgação.
151
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 2004. p.191-203.
85
tela é contraprestacional a gerar uma prestação pessoal e direta por parte do Estado, no caso,
o direito aos benefícios previdenciários152.
Todavia, aqueles que praticam a elisão fiscal esquecem-se de que estão prejudicando a si e a
toda a coletividade que usufrui da Previdência Social.
152
A repulsa é ainda maior por parte do brasileiro diante da pesada carga tributária no Brasil de algo em torno de 37% do PIB.
ZILVETI, Fernando Aurélio. O gasto público e a tributação brasileira. Valor Online. 22/05/2006.Disponível em:
<http://www.valoronline.com.br>. Acesso em:13 de dez. 2006.
153
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, Tradução de Carlos Nelson Coutinho 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.43.
154
O princípio da solidariedade está albergado na Constituição Brasileira nos art. 3º, inc. I e art. 195 caput. Apesar de não ser
uma novidade nos ordenamentos jurídicos, o citado princípio vem ganhando cada vez mais prestígio na moderna sociedade. Ricardo
Lobo Torres deixa claro este aspecto ao afirmar: “A idéia de solidariedade se projeta com muita força no direito fiscal por um motivo de
extraordinária importância: o tributo é um dever fundamental”, e na mesma obra o Professor caracteriza a sociedade: “a sociedade de
risco se caracteriza por algumas notas relevantes: a ambivalência, a insegurança, a procura de novos princípios e o redesenho do
relacionamento entre as atribuições das instituições do Estado e da própria sociedade”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito
constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. 2.v. Rio de Janeiro: Renovar. 2005, p. 181.
86
previdenciária são, por conseguinte, indisponíveis porquanto pertencentes a uma coletividade,
e não apenas a um único indivíduo.
Importante notar que o Código Civil de 2002 estabelece no artigo 841 que “só quando a
direitos patrimoniais de caráter privado se admite a transação.” Dispõe ainda o mesmo código
no artigo 844 que “a transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem,
ainda que diga respeito a coisa indivisível.” Vale repetir, as partes não podem transigir sobre
norma cogente, sobre bem público que não lhe pertence.
Nada melhor que aproveitar esse momento da criação da Receita Federal do Brasil para
mudar a forma e a finalidade do acordo trabalhista. Nesse universo trazido pela Lei 11.457/07,
há institutos em transformação. Há mudanças principalmente na melhor estruturação da
arrecadação que continuará a ser feita pela Procuradoria-Geral Federal, órgão da Advocacia-
Geral da União157, só que com novos instrumentos. Como dito, a representação não muda, a
155
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p.105.
156
A maioria da doutrina italiana e espanhola fundamenta o dever fundamental de pagar impostos no princípio da solidariedade
social. GRECO, Marco Aurélio; Godoi, Marciano Seabra de (Coord). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005,
p.156-157.
157
Dispõe a Lei 11.457/07: “Art. 16 [...]
§ 3o Compete à Procuradoria-Geral Federal representar judicial e extrajudicialmente:
[...]
II - a União, nos processos da Justiça do Trabalho relacionados com a cobrança de contribuições previdenciárias, de imposto de renda
retido na fonte e de multas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações do trabalho, mediante delegação da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.”
87
PGF, que antes defendia a autarquia INSS, passou agora a representar a União, detentora da
competência tributária, cuja arrecadação e fiscalização antes era delegada ao INSS. Houve
realmente alterações formais no intuito de possibilitar um incremento na operacionalização da
cobrança. Especial interesse reflete-se principalmente nas alterações operadas no art. 832 da
CLT e o acréscimo dos parágrafos quinto, sexto e sétimo, além da modificação da redação do
parágrafo quarto. Vale analisá-los mais detidamente.
O alterado parágrafo quarto pela Lei da Super Receita, que trata da intimação das
decisões de acordos que contenham parcela indenizatória158, não só retirou o Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) colocando a União como destinatária da intimação, como
também mudou a forma como essa intimação será feita, antes era pela via postal e agora se
dá com a entrega dos autos com vistas ao órgão de representação, na forma do art. 20 da Lei
11.033/04159. Salutar a medida nos dois pontos. Primeiro porque permitirá a PGF atuar nos
feitos trabalhistas por delegação, na forma do art. 16, §3º, inc. II da Lei 11.457/07. Segundo
ponto, a mudança resultará em maior celeridade e eficiência por parte do órgão responsável
pela arrecadação. Antes da edição da lei, já era praxe após a notificação, proceder a retirada
dos autos por uma questão óbvia de necessária análise do caso pelo procurador oficiante.
Então, importante foi a medida ao unificar dois atos praticados em momentos distintos num só
ato instantâneo.
Prosseguindo na análise, o parágrafo quinto, nos moldes em que foi aprovado, não
constava do Projeto de Lei 6.272/2005 de iniciativa do Poder Executivo160, tendo sido
acrescentado pelo Senado Federal, através de emenda de autoria do então Senador Alvaro
Dias. O parágrafo tem a seguinte redação: “§ 5o Intimada da sentença, a União poderá
interpor recurso relativo à discriminação de que trata o § 3o deste artigo.”
158
§ 4º A União será intimada das decisões homologatórias de acordos que contenham parcela indenizatória, na forma do art.
20 da Lei no 11.033, de 21 de dezembro de 2004, facultada a interposição de recurso relativo aos tributos que lhe forem devidos.
(Redação dada pela Lei nº 11.457, de 2007)
159
Art. 20 As intimações e notificações de que tratam os arts. 36 a 38 da Lei Complementar no 73,
de 10 de fevereiro de 1993, inclusive aquelas pertinentes a processos administrativos, quando dirigidas a
Procuradores da Fazenda Nacional, dar-se-ão pessoalmente mediante a entrega dos autos com vista.
160
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/PL/2005/msg807-
051128.htm>. Acesso em 01 julho. 2007.
161
TORRES, Ricardo Lobo. A integração entre a lei e a jurisprudência. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, Ano I,
abr. jun de 1993, Revista dos Tribunais, p. 07-20.
162
§ 6o O acordo celebrado após o trânsito em julgado da sentença ou após a elaboração dos cálculos de liquidação de sentença
não prejudicará os créditos da União.
88
alvedrio das partes. Por mais paradoxal que possa parecer, existia intensa discussão sobre o
tema, sendo o coro pelo “calote” previdenciário formado por importantes juristas.
Elucidou-se a questão através do parágrafo sexto alterado pela Lei da Super Receita.
Agora, celebrado o acordo após o trânsito em julgado da sentença ou, após a elaboração dos
cálculos de liquidação de sentença, não poderá existir mais prejuízo aos créditos tributários já
definitivamente declarados por sentença transitada em julgado, pelas razões anteriormente
expostas. Feliz o legislador ao positivar norma tão sintonizada com o princípio da
solidariedade inspiradora do ordenamento previdenciário.
Por fim, cabe analisar o parágrafo sétimo do art. 832 da CLT. O dispositivo tem a
seguinte redação:
No entanto, é imperativo que não só ocorra uma modificação dos órgãos do Executivo
responsáveis pela arrecadação previdenciária e no modus operandi da arrecadação. Todos os
envolvidos no processo merecem assumir seus papéis de protagonistas, segurados,
advogados, justiça, numa virada em prol da efetivação dos direitos sociais.
Art. 43. Nas ações trabalhistas de que resultar o pagamento de direitos sujeitos
à incidência de contribuição previdenciária, o juiz, sob pena de responsabilidade,
determinará o imediato recolhimento das importâncias devidas à Seguridade
Social.
Parágrafo único. Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados em que
não figurarem, discriminadamente, as parcelas legais relativas à contribuição
previdenciária, esta incidirá sobre o valor total apurado em liquidação de
sentença ou sobre o valor do acordo homologado.
89
Baseado no dispositivo, deve o juiz trabalhista que homologa a conciliação, em respeito
ao princípio processual da congruência, e dentro da sua competência constitucional de
executar de ofício as contribuições sociais, determinar às partes que discriminem de forma
adequada ao pedido, e aos demais elementos constantes dos autos, a natureza originária das
parcelas do acordo, atentando para a necessária proteção do direito fundamental social à
Previdência Social, visto não só na forma individual como também coletivo.
Embora não citado, nem por isso menos importante, pelo contrário, o Ministério Público
do Trabalho é também mola mestra dessa transformação. Como defensor dos interesses
sociais e individuais indisponíveis, segundo o caput do art. 127 da Constituição Federal, o MPT
tem importante papel na garantia e manutenção do direito fundamental previdenciário.
Dentro desse espírito, andou bem o membro do MPT, o procurador Cássio Casagrande,
em perfeita consonância com o posicionamento ora exposto, ao ressaltar a atuação do juiz na
conciliação trabalhista no parecer que exarou nos autos do processo RO 03247-1997-342-00-
00-0, TRT da 1ª Região, que inclusive foi tomando como razões de decidir pela eg. Primeira
Turma daquele tribunal, e que ora transcreve-se:
É por isto que o art. 832, §3º, da CLT, introduzido pela Lei 10.035/00,
determina de forma expressa: 'As decisões cognitivas ou homologatórias
deverão sempre indicar a natureza jurídica das parcelas constantes da
condenação ou do acordo homologado, inclusive o limite da responsabilidade de
cada parte pelo recolhimento da contribuição previdenciária, se for o caso.' Ou
seja, a fixação da natureza das partes (sic) não é da livre estipulação das
partes, mas sim obrigação do juiz. Este poderá até acatar a proposta das partes
quanto à natureza das parcelas, desde que a entenda congruente com o pedido.
Vistos os argumentos lançados, inevitável concluir que, quando existirem elementos nos
autos denunciando a existência de fato gerador de contribuição previdenciária, o acordo com
parcelas totalmente indenizatórias não pode ser homologado, sob pena de anular o direito
previdenciário. E ainda, deve-se ir mais longe, verificando-se, do cotejo da inicial com o ajuste
homologado, que a discriminação não respeitou o parâmetro de proporcionalidade, merece que
o juiz determine que a cota devida à Previdência Social seja calculada observando a
proporcionalidade entre as parcelas de natureza salarial e indenizatória constantes na exordial.
90
A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO ISS NA IMPORTAÇÃO
DE SERVIÇO PROVENIENTE DO EXTERIOR OU QUE NELE TENHA INICIADO
1 INTRODUÇÃO
Muito se tem discutido sobre a (in)constitucionalidade dessa norma posta pelo § 1°, bem
como das que lhe são conexas, principalmente por se tratar de tributação inédita no campo de
incidência do Imposto sobre Serviços, haja vista que o diploma anterior (Decreto-Lei n°
406/68) não fazia qualquer referência semelhante.
91
Sem qualquer pretensão de dar a palavra final sobre o assunto, mas apenas de contribuir
para o debate da questão, procuraremos demonstrar, com a devida vênia dos que entendem
em sentido oposto, a insubsistência da tributação (ISS) sobre a importação de serviços frente
à Constituição Federal. Para tanto, por serem, na nossa visão, pontos cruciais de embate,
faremos uma análise comparativa especificamente dos critérios material, espacial e pessoal
(sujeito passivo) que compõem a regra-matriz de incidência do ISS na Constituição, com os
trazidos pela LC n° 116/03.
A Constituição Federal, em seu art. 156, III, atribuiu aos Municípios e ao Distrito Federal
a competência para instituir Imposto sobre Serviços de qualquer natureza, não compreendidos
no art. 155, II, definidos em lei complementar.
Embora a Carta Magna não tenha fornecido o conceito de serviço, de maneira explícita,
existe a crença que o sistema constitucional de outorga de competências tributárias nos
permite construir essa definição, por exclusão das demais competências atribuídas, de modo
privativo, a cada uma das pessoas políticas.
Todos os fatos sobre os quais é possível instituir imposto estão previstos expressamente,
de forma explícita ou implícita, na Constituição Federal, no bojo da discriminação das
competências tributárias outorgadas às pessoas políticas.
O ilustre professor Aires F. Barreto, antes mesmo de conceituar o que seria serviço
tributável, no contexto constitucional, definiu, de maneira clara e objetiva, o que seria
propriamente “serviço”, in verbis:
É lícito afirmar, pois, que serviço é uma espécie de trabalho. É o esforço humano
que se volta para outra pessoa; é fazer desenvolvido para outrem. O serviço é,
assim, um tipo de trabalho que alguém desempenha para terceiros. Não é
esforço desenvolvido em favor do próprio prestador, mas de terceiros.
Conceitualmente, parece que são rigorosamente procedentes essas observações.
O conceito de serviço supõe uma relação com outra pessoa, a quem a serve.
Efetivamente, se é possível dizer-se que se fez um trabalho “para si mesmo”,
163
A Fixação em Lei Complementar das Alíquotas Máximas do Imposto sobre Serviços. Projeção. Revista Brasileira de
Tributação e Economia n. 10, ano I, ago. 1976.
92
não o é afirmar-se que se prestou serviço “a si próprio”. Em outras palavras,
pode haver trabalho, sem que haja relação jurídica, mas só haverá serviço no
bojo de uma relação jurídica.164
Portanto, quando o Município recebe a sua competência para tributar serviços, ele a
recebe com os limites que lhe são postos pela própria Constituição.
Em face do próprio conceito de serviço descrito pela Constituição, deflui que somente é
tributável a prestação de serviço, e não o seu consumo, a sua fruição, a utilidade ou a sua
utilização.
Não pode haver ISS sobre o fato de consumir serviço, fruir serviço ou utilizar serviço
porque esses verbos e respectivos complementos não defluem do arquétipo constitucional
desse imposto. Assim, se fruidor, se consumidor, ou beneficiário de utilidade forem chamados
a contribuir, já se estará não diante do fenômeno “prestação do serviço” (desempenho de
esforço humano em favor de terceiro), mas sim, de outros fatos quaisquer, inteiramente
distintos. Tal é o caso de considerar o “beneficiário de um esforço humano” ou “fruidor ou
destinatário” do mesmo.165
Sendo a síntese do critério material do ISS representada pelo verbo prestar e pelo
respectivo complemento serviço, o correto é que o tributo atinja o produtor da ação “prestar
serviço”, o agente dessa ação, que inexoravelmente é o prestador do serviço. 166
Caso venha a recair a descrição do critério material do ISS sobre circunstância outra que
não a prestação de serviço, estar-se-á a contornar a Constituição para instituir, na verdade,
imposto novo, com características distintas do ISS, haja vista o distanciamento dos
parâmetros constitucionais traçados. Esse assunto será melhor tratado adiante (item 4).
164
BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. São Paulo: Dialética, 2003. p. 29.
165
Ibidem, p. 31.
166
CARVALHO, Paulo de Barros, “Curso de Direito Tributário”, 16. ed. Editora Saraiva, 2004. p. 254 e 350. No mesmo
sentido de que a Constituição se refere a „prestar serviço‟: MELO, José Eduardo Soares de, “ISS – Aspectos Teóricos e Práticos”, 3ª
edição (atual. conforme a Lei Complementar n° 116/2003), Ed. Dialética, São Paulo, 2003. p. 33 e ss.
167
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 258.
93
É preciso, porém, ainda segundo o mestre, deixar clara a distinção entre critério espacial
da hipótese e campo de eficácia da lei tributária. Por vezes, em razão de uma opção do
legislador, coincide o critério espacial com o próprio plano de eficácia territorial da lei, dando a
impressão de que não pudessem adquirir feição diferente, o que não é verdade.
No que concerne ao ISS, a Constituição Federal não é expressa no que diz respeito ao
local onde se reputará, ocorrido o fato jurídico. Entretanto, pode-se constatar que o critério
espacial da hipótese coincide com o campo de eficácia da lei tributária. Logo, o fato jurídico-
tributário definido pela Constituição há de ocorrer em qualquer ponto situado dentro do
território do Município, que é onde a lei municipal poderá produzir seus efeitos, enquadrando-
se, pois, no terceiro item (c) supra descrito.
Apenas para registrar, o professor Roque Carrazza, dentre outros tantos autores, predica
que:
Por outro lado, divergindo desse entendimento, há os que entendem que poderia incidir o
fenômeno da extraterritorialidade, pois um serviço prestado em território de um determinado
Município seria tributado conforme as normas de outro, no qual estivesse localizado o
estabelecimento do prestador.170
168
ARZUA, Heron. O ISS e o Princípio da Territorialidade. In Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba, Direito Tributário,
org. Celso A. Bandeira de Melo, Malheiros, SP, 1997, p. 145.
169
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 14 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p.
617.
170
Nesse sentido: COÊLHO, Sacha Calmon N. e DERZI, Misabel Abreu M. "Aspecto Espacial da Regra-matriz do Imposto
Municipal sobre Serviços, à luz da Constituição". In Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, nº 88, p. 126-
145, jan. 2003.
94
Diferentemente, porém, é a hipótese de determinada lei municipal alcançar fato ocorrido
em território estrangeiro. A Constituição Federal, em nenhum momento, autoriza a instituição
do ISS sobre fatos que se desenrolem fora do país.
Além disso, mostra-se claramente ineficaz a legislação tributária que pretenda alcançar
fatos ocorridos fora do território nacional.
Caso se pretenda entender como tributável a fruição do serviço então, como visto, o
sujeito já será outro e a própria figura já deixará de ser aquela constitucionalmente
contemplada. O consumidor é o tomador de serviço.
171
CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 258.
95
(sujeito passivo), passaremos a demonstrar a inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre
serviços provenientes do exterior ou cuja prestação lá se tenha iniciado, trazida pela LC nº
116/03, atacando especificamente os critérios referidos.
Antes de mais nada, salienta-se que, no decorrer desse capítulo, procura-se orientar o
estudo com observância da divergência jurisprudencial e doutrinária – já mencionada -
existente sobre o critério espacial do ISS (local da efetiva prestação do serviço ou local do
estabelecimento do prestador), haja vista os distintos efeitos práticos desencadeados por cada
tese.
Contudo, o que importa é considerar o negócio jurídico objetivado pelas partes. O serviço
que configura atividade-meio, imprescindível para a concretização da atividade-fim, deve
receber o mesmo tratamento tributário dispensado a esta.
E conclui:
Mas a relevância da identificação da atividade-fim não pára por aí, consoante o que
adiante se explicitará.
172
ISS – Atividade-meio e Serviço-fim, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 5, p. 83.
173
Ibidem.
96
fato “prestar serviço”, integralmente ou, pelo menos, a atividade-fim, no território nacional. Do
contrário, o prestador do serviço, nacional ou estrangeiro, não poderá ser alcançado pela
norma impositiva.
Temos não ser possível, diante da ausência de disposição constitucional nesse sentido, a
tributação, pelo ISS, de serviços cujo processo de prestação se desenvolveu integralmente no
exterior, não prosperando os argumentos que defendem entendimento no sentido de que não
a atividade de prestar serviço, mas a utilidade da mesma decorrente pode ser bastante para
configurar o critério material do ISS.
Com relação à segunda hipótese disposta pela lei, pela qual a empresa inicia a prestação
do serviço no exterior, concluindo-o, porém, em território nacional, entendemos estar ela a
tratar dos chamados “serviços complexos”. A atividade-fim desenvolvida no exterior não pode
ser abarcada pela norma tributária brasileira, tendo em vista a ausência de permissivo
constitucional. Em verdade, tecnicamente, tal hipótese equivale àquela dos serviços
provenientes do exterior, já que o serviço, embora possa ser, em tese, decomposto em
etapas, para fins tributários, deve ser considerado como único.
Aqui, a Constituição conota e denota o fato que pode ser adotado pelo legislador
municipal, pela menção à atividade humana – no sentido da conceituação de „serviço‟ supra
descrita -, consistente na prestação de serviços.
A incidência do ISS sobre o fato, nesse caso, cremos, não se dá pela pecha de
importação do serviço iniciado no exterior, como deseja a LC nº 116/03, mas sim em função
da atividade-fim desempenhada no território nacional, que é perfeitamente encampada pela
regra-matriz de incidência do imposto sobre serviços delineada constitucionalmente.
E vamos além, entende-se haver a incidência da norma tributária mesmo que toda a
atividade tenha se desenvolvido no exterior, isso porque o relevante, para essa tese, é a
localização do estabelecimento do prestador de serviço.
174
COÊLHO, Sacha Calmon N; DERZI, Misabel Abreu M. Aspecto Espacial da Regra-matriz do Imposto Municipal sobre Serviços,
à luz da Constituição. In Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, nº 88, p. 133-134, jan. 2003.
97
No que concerne a essa situação, constatamos a existência de dois diferentes pontos de
vista:
Além disso, partindo-se da premissa de que a atividade-fim é que deve ser levada em
conta para efeitos de tributação, resta evidente que o sujeito definido pela lei como
contribuinte (art. 5º, LC nº 116/03), qual seja, o prestador de serviço não-residente, não pode
ser atingido pela legislação brasileira no seu país.
12.CRITÉRIO ESPACIAL
Afirma-se nas linhas acima que a Constituição Federal estabelece limites às competências
tributárias de cada ente tributante. Com isso, pretendeu-se asseverar que cada regra de
atribuição de competência tributária exerce uma função dúplice, na medida em que, ao prever
as situações em que determinada competência pode ser exercida, estabelece que toda e
qualquer situação que se encontra fora de seu campo de incidência encontra-se excluída da
tributação.
Na LC n° 116/03, art. 3º, o critério espacial do ISS encontra-se definido com base em
dois aspectos:
175
ALVES, Anna Emilia Cordelli, “Importação de Serviços – Impossibilidade da Tributação pelo ISS em Decorrência do Critério
Constitucional da Origem do Serviço”, in Revista Dialética de Direito Tributário n° 112, p. 7-15.
176
SILVA, Sergio André R. G. da, “Considerações acerca da Incidência do ISS sobre Serviços Prestados no Exterior”, in Revista
Dialética de Direito Tributário n° 104, p. 88-95.
98
Antes da entrada em vigor do referido diploma legal, o Superior Tribunal de Justiça, sob
a vigência do DL n° 406/68 – recepcionado pela CF como lei complementar -, havia pacificado
o posicionamento de que o critério espacial do ISS seria o do local da efetiva prestação do
serviço, conforme se verifica pela ementa a seguir transcrita:
Porém, sem entrar na discussão sobre a possível subsistência dessa interpretação frente
à LC n° 116/03, independentemente do aspecto utilizado para fins de determinação do local da
prestação (localização do estabelecimento prestador ou da efetiva prestação do serviço), é de
se assinalar que a ocorrência da hipótese de incidência do imposto encontra-se sempre
vinculada aos limites de um Município, no âmbito interno do país.
177
Territorialidade da Lei Tributária Estadual, in Revista de Direito Tributário nº 40, p. 44-53.
99
Em relação à importação de serviços, prevê a LC n° 116/03 que será considerado
prestado o serviço no Município onde estiver localizado o estabelecimento tomador ou
intermediário do serviço.
Tanto não existe essa conexão que o legislador obrigou-se a estabelecer como critério
espacial de incidência o estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço.
Como se sabe o texto constitucional não cria tributos, mas sim confere a competência
para que os entes federados os criem. Entretanto, a Constituição Federal traça alguns dos
elementos que compõem a regra-matriz de incidência tributária, de forma que qualquer lei que
venha, de alguma forma, a complementar o texto constitucional deverá observá-la.
Essa disposição vale também para o ISS, sendo que sua regra-matriz de incidência
indica, dentre todos os seus componentes, o critério espacial, ou seja, o limite territorial para o
exercício da competência tributária, que no caso é o território do Município onde ocorreu o fato
que dá ensejo à incidência normativa.
Tendo em vista que, na tese do critério espacial como sendo o local da efetiva prestação
de serviço, a circunstância de ser o prestador nacional ou estrangeiro não é elementar para
efeitos de caracterização de ser ou não o serviço prestado no exterior, deixaremos de discorrer
a respeito nesse item. O simples fato de a atividade (prestação de serviço) ocorrer no exterior
já denota a inexistência de relação jurídica entre o prestador e qualquer Município brasileiro.
Devido a isso, tudo o quanto será dito sobre o critério em referência terá como
embasamento o critério espacial do local do estabelecimento do prestador (ou do domicílio).
100
Art. 6°. [...]
§ 2°. Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1° deste artigo, são
responsáveis:
I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou
cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País; [...] (grifo nosso)
A respeito desse assunto, Heleno Tôrres 178 manifesta que a LC n° 116/03 somente
reconhece como contribuinte do ISS o respectivo prestador do serviço e o disse claramente no
art. 5°. Para o autor, quando o contribuinte for um sujeito não-residente sua atividade
somente pode ser colhida pelo imposto, no Brasil, quando sua ação mantenha alguma conexão
material com o território do respectivo Município brasileiro.
O tomador de serviços (residente) somente pode ser definido como responsável pelo
débito do imposto (art. 6°, § 2°, I), mas exclusivamente quando, previamente, se tenha por
aperfeiçoada a relação jurídica obrigacional, entre Município do local do domicílio do tomador e
o sujeito não-residente, a partir do fato jurídico tributário consubstanciado num evento
qualificado na lista de serviços, concluído pelo efetivo contribuinte no território nacional, ou
melhor, no território do respectivo Município, mesmo que se tenha iniciado no exterior.
Para Heleno Tôrres, os sujeitos não-residentes não podem ser tributados no Brasil por
fatos praticados no exterior, por absoluta falta de conexão material entre suas atividades com
o ordenamento local.
Também José Eduardo Soares de Melo179 ao analisar referida tributação afirma que esse
preceito não tem fundamento de validade no ordenamento constitucional, uma vez que
objetiva alcançar fatos ocorridos fora do território nacional, além de criar uma esdrúxula
obrigação tributária (inexistência de contribuinte prestador do serviço mediante estipulação
exclusiva do responsável na pessoa do respectivo tomador) (art. 6°, § 2°, I).
178
Prestações de Serviços Provenientes do Exterior ou cuja Prestação se tenha Iniciado no Exterior, in ISS na Lei
Complementar n° 116/2003 e na Constituição, v. 2, Coleção de Direito Tributário, coordenador Heleno Taveira Tôrres, Barueri,
2004, p. 281 e ss.
179
ISS – Aspectos Teóricos e Práticos”, 3ª edição (atual. conforme a Lei Complementar n° 116/2003), São Paulo: Dialética,
2003, p. 158.
101
Nas palavras do mestre Paulo de Barros Carvalho,180 “a norma jurídica é a significação
que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo. Trata-se de algo que se produz
em nossa mente, como resultado da percepção do mundo exterior, captado pelos sentidos”.
Para tanto, descreve a fruição de serviços como critério material do imposto, o que resta
claro pelo fato de que a ocorrência da prestação de serviço no exterior, sem a correspondente
participação na relação jurídica de tomador residente no território nacional, não será tributada.
Ademais, cabe referir que a lei complementar elege como domicílio tributário o
estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde
o “responsável” (contribuinte) estiver domiciliado (art. 3°, I).
Assim, resta a dúvida se poderia ou não a LC n° 116/03 inovar e dessa forma criar um
novo imposto (ISS - Importação), de competência da União.
180
CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 8.
102
Estaria a legislação complementar, portanto, pretendendo criar um novo imposto,
todavia, em contraposição às atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição Federal
(art. 154, I).
Ademais dessa função inovadora, cabe salientar que a lei complementar possui outras
que se destacam.
Uma leitura desatenta desse texto poderia nos levar a conclusão que a LC n° 116/03 está
em consonância com a Carta Magna. No entanto, esse dispositivo não pode ser analisado de
forma independente.
É importante ressaltar que o ente competente para legislar instituindo tributos não está
autorizado a fazê-lo como bem entender, pois, ao mesmo tempo em que a Constituição
Federal outorgou a competência tributária, delimitou-a, devendo ser integralmente respeitada.
A eleição dos critérios material, espacial e pessoal feita pela LC nº 116/03 para a
importação de serviços, além de ser dissonante dos critérios traçados pela Constituição, destoa
dos limites funcionais da lei complementar fixados constitucionalmente.
Deve o legislador complementar observar o disposto pela Lei Maior, sendo que não lhe é
permitido extrapolar os contornos das funções que lhe foram atribuídas pelo art. 146.
181
CARRAZZA, Roque Antonio. “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 14ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
578.
103
Em razão disso, pensamos que a LC n° 116/03 no tocante a importação de serviços é
inconstitucional, tendo em vista que o texto constitucional não prevê, quando traça a regra-
matriz do tributo (ISS), essa hipótese de incidência.
Não se pode deixar de argumentar, ainda, que, nos casos em que desejou gravar a
importação, a Constituição Federal o fez de forma expressa, outorgando à União, por exemplo,
a competência para a instituição do Imposto sobre Importação de produtos estrangeiros - II
(art. 153, I), para a instituição de Contribuições Sociais sobre a importação de bens ou
serviços do exterior (arts. 149, § 2°, II e 195, IV), para a instituição de Contribuições de
Intervenção no Domínio Econômico – CIDE - Importação (arts. 149,§ 2°, II e 177, §4°), e
outorgando aos Estados a competência para a instituição do ICMS - Importação (art. 155, §
2°, IX, “a”).
Caso não houvesse essas previsões constitucionais de forma explícita, não se poderia
cogitar em tributação nessas hipóteses.
Esse foi o entendimento exarado pelo Exmo. Min. Carlos Velloso nos autos do Recurso
Extraordinário n° 203.075-9/DF (STF – 1a Turma, Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ de
29.10.99, p. 18), com relação ao ICMS - Importação:
Quanto ao IR, a própria Constituição estabelece que o imposto será informado pelo
critério da universalidade (art. 153, § 2°, I). Quer dizer com isso que o legislador
infraconstitucional, no que concerne ao critério espacial, não encontra restrições
constitucionais para a instituição do imposto sobre a renda, podendo restringir a imposição
tributária sobre fontes produtoras de renda localizadas no território nacional ou adotar o
critério da universalidade, alcançando, assim, fatos tipificados que se compõem para além de
nossas fronteiras. Apenas, quanto a este critério, por questão de efetividade, a incidência do
imposto deve ficar adstrita aos limites onde o Estado possa exercitar sua soberania, mas
independentemente do lugar onde tal renda tenha sido gerada.
182
PAULSEN, Leandro, Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, 5.
ed. Porto Alegre-RS: Livraria do Advogado, ESMAFE, 2003. p. 700 e ss.
104
que as operações com produtos industrializados não poderão estender seu manto por sobre a
importação de produtos industrializados estrangeiros, sob pena de invadirem a materialidade
da hipótese de outro tributo.
Na verdade, o que fez o legislador federal quando instituiu o IPI nas importações foi criar
um autêntico adicional do Imposto de Importação, como assevera José Roberto Vieira 183. Note-
se que não resultou magoada a discriminação constitucional de competências, de vez que
ambos, IPI e Imposto de Importação, foram entregues à mesma pessoa política (União).
183
VIEIRA, José Roberto. A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto. Curitiba: Juruá, 1993. p. 98.
105
6 CONCLUSÃO
Cada regra de atribuição de competência tributária exerce uma função dúplice. Descreve,
genericamente, ao distribuir as competências, quais os fatos que podem ser escolhidos pelo
legislador infraconstitucional como hipótese de incidência de determinado imposto, assim como
exclui da tributação toda e qualquer situação que se encontra fora de seu campo de incidência.
O inc. III do art. 156 da Constituição estabelece o âmbito de competência dos Municípios
para legislar sobre o Imposto sobre Serviços, não compreendidos na competência dos Estados,
definidos em lei complementar.
A Constituição não é explícita no que diz respeito ao local onde se reputará ocorrido o
fato jurídico-tributário. Entretanto, verifica-se que o critério espacial da hipótese deve coincidir
com o campo de eficácia da lei tributária. Portanto, o fato jurídico definido pela Constituição há
de ocorrer em qualquer ponto situado dentro do território do Município, que é onde a lei
municipal poderá produzir seus efeitos.
Embora a LC nº 116/03 estabeleça, no seu art. 3º, inc. I, que, na hipótese de importação
de serviços, o mesmo considerar-se-á prestado no local do estabelecimento do tomador ou
intermediário do serviço, deve-se considerar prestado o serviço, de acordo com ditames
constitucionais, no local do estabelecimento prestador ou no local da sua efetiva prestação, a
depender da tese adotada.
A LC nº 116/03, no seu art. 6º, § 2º, inc. I, quanto à importação de serviços, elege como
responsáveis tributários o tomador ou intermediário de serviço, e o faz sem que se possa ter
por aperfeiçoada a relação jurídica obrigacional, entre o Município do local do domicílio do
106
tomador e o sujeito não-residente – que é o suposto contribuinte -, caso se adote a tese do
critério espacial do local do estabelecimento prestador, ou o sujeito prestador no exterior, caso
a opção seja pelo local da efetiva prestação do serviço.
Ademais, o art. 156, III, da CF não faz qualquer referência à importação de serviços. Daí
salientar que a legislação complementar ultrapassou os limites de sua função (art. 146, CF),
incluindo dispositivo de que a Constituição não tratou.
Nos casos em que desejou gravar a importação, a Constituição Federal o fez de forma
expressa.
Por tudo o quanto foi dito, vemos que não há respaldo constitucional para a instituição de
ISS sobre a importação de serviços.
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