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Antonio Canpipo O estudo analitico do poema 5a edigao Associagho Eprroatat HUMANITAS Copyright © 2006 Antonio Candido Servigo de Biblioteca e Documentacéo da FFLCH/USP C 223 0 estudo analitico do poema / Antonio Candido. 5. ed. - Sao Paulo: Associagao Editorial Humanitas, 2006. 164 p. ISBN 85-98292-95-8 1. Teoria literéria - Poesia |. titulo (CDD 20 ed.) 801.951 ISBN 4°. edigéo 85-86087-23-0 ISBN 3*. edicéo 85-86087-06-8 Epitora Humanrtas Editor Responsavel Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento Coordenacéo Editorial M®, Helena G. Rodrigues - MTb n. 28.840 Comegio Bruno Salemo Rodrigues ‘Copa Camila Mesquita Reviséo Katia Rocini e Simone D’Alevedo Nota inicial ... Explicagaéo Programa. Tntrodugao «0... Apresentagio do programa Comentario e interpretagao literaria a Comentario ........ Interpretagao... Os fundamentos do poema a. Sonoridade ... A teoria de Grammont Rima b. O ritmo c. O metro d. O verso As unidades expressivas . O destino das palavras no poema ‘As modalidades de palavras figuradas . A Retorica tradicional Tropos .. Figuras .. Natureza da metéfora Bibliografia ... NOTA INICIAL Como esta dito na “Explicagéo” (ver adiante), a maté- ria que segue é parte de um curso ministrado em 1963 para o 42 ano de Letras, tendo sido mais tarde aproveitado nou- tros. Se naquela ocasido estas notas foram mimeografadas aAminha revelia, devido a uma gentil inconfidéncia de Marlyse Meyer, desdobrada pela dedicagao de Rodolfo Ilari, ambos, na época, da Cadeira de Lingua e Literatura Francesa - por que Ihes dar agora a forma bem mais comprometedora de livro? Primeiro, para atender A generosa solicitude de uma colega e amiga, Walnice Nogueira Galvao, empenhada com mais alguns companheiros em divulgar trabalhos internos de nossa Faculdade. Segundo, porque passados vinte e qua- tro anos este material j4 pode ser considerado elemento para asua hist6ria, como amostra do que se fazia naquele tempo, antes das transformag6es por que passou a Teoria da Lite- ratura e, em conseqiiéncia, o seu ensino. Com os professores franceses ¢ italianos que vieram para a recém-fundada Universidade de Sao Paulo a partir de 1934, aprendemos que um curso deve ser concebido e preparado antecipadamente, a fim de ser consultado nas aulas e assegurar a maior exatidao possivel, além de rom- per com a mentalidade improvisadora, timbre de nobreza intelectual em nossa tradigio. Com efeito, tive mestres bra- sileiros que visivelmente preparavam bem as aulas, mas fingiam improvisé-las, inclusive para sugerir aquele poder 7 (O ESTUDO ANALITICO DO POEMA de meméria que deslumbrava o auditério e era sinal de ta- lento. De um velho professor secundério, ouvi certa vez que dar aula como os franceses, olhando as notas, nao era van- tagem, pois “colavam” tudo... Por outro lado, escrever a aula completa (cerca de vinte paginas datilografadas) e lé-la tal e qual aos alunos, pode desandar em monotoniae formalismo, impedindo a natura- lidade da comunicagao. O curso Publicado aquiadotou, como 08 outros que preparei, a solugéo Seguinte: redigir para cada aula um resumo contendo idéias e elementos necessarios (no meu caso, mais ou menos cinco ou seis paginas), e sobre ele fazer a exposigdo, incorporando no ato idéias e exemplos que vo ocorrendo e séo Por vezes o melhor da aula. Quando, em comegos de 1961, iniciei na Universida- de de Sao Paulo (onde fora antes Assistente de Sociologia) © curso de Teoria da Literatura (denominado a Seguir, por Proposta minha, Teoria Literaria e Literatura Comparada), © meu critério foi ensinar de maneira aderente ao texto, evi- tando teorizar demais e Procurando a cada instante mostrar de que maneira os conceitos lucram em ser apresentados como instrumentos de pratica imediata, isto é, de andlise. Quanto aos textos escolhidos, quis desde logo valorizar os contemporaneos, até entao de pouca presenga no ensino de nossa Faculdade. Usando os autores tradicionais no 12 ano, decidi parao 42e¢a antiga Especializacéo: 1) usar autores do Modernismo; 2) apresentar de maneira atualizada os “classicos”, como, por exemplo, José de Alencar (Senhora) e Machado de Assis (Quincas Borba, alguns contos). Na- quela altura a Editora do Autor publicou antologias de di- versos poetas modernos, tornando-os acessiveis aos estu- dantes. Por isso pude trabalhar com poemas de Manuel Ban- 8 ANTONIO CANDIDO deira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, além. de Mario de Andrade, cuja obra era corrente na edigaéo Martins. De Mario analisamos durante meses, em 1962, 0 poema “Louvacdo da Tarde”, fato que menciono porque du- rante os semindrios nasceu a idéia do levantamento de suas anotagdes marginais, o que foi feito por Maria Helena Grembecki, Nites Teresinha Feres ¢ Telé Porto Ancona Lopez, e talvez tenha sido o primeiro impulso no a de incorporagdo do acervo do grande escritor ao Instituto de Estudos Brasileiros. (A partir de certa altura esse traba- lho teve 0 auxilio da Fapesp, Fundacdo de Amparo & Pesqui- sa, que em 19632, por solicitagéo minha, havia concedido a primeira bolsa para investigag&o no campo da Literatura: a de Pérola de Carvalho sobre fontes inglesas de Machado de Assis.) Com base no material colhido, as trés pesquisadoras elaboraram suas dissertagdes de mestrado sobre aspectos da obra de Mario de Andrade, que também foi objeto, em seguida, de suas teses de doutorado. Menciono ainda, no Ambito do Modernismo, a dissertagio e a tese de Vera Chalmers, sobre Oswald de Andrade, porque acho que esse conjunto de trabalhos foi semente de um ciclo de pesqui- sas, documentagao, estudos sobre os dois autores e 0 Mo- dernismo em geral. As notas que compéem o presente livro, embora anti- quadas e cheias de lacunas, contendo mais indicagoées do que desenvolvimentos, servem, portanto, para registrar um momento no ensino da literatura em nossa Faculdade. Por isso, concordei que fossem impressas, como documento da- quele inicio dos anos de 1960, quando a primeira geragéo de licenciados ja tinha chegado & maturidade dos anos e, com ela, as responsabilidades de diregdo e orientagao, que, 9 2 10 O ESTUDO ANALITICO DO POEMA depois de tantas esperangas, seriam : : Ppostas a dus partir de 1964. Mas sobretudo 1968. a Sao Paulo, julho de 1987 Antonio Candido de Mello e Souza EXPLICAGAO Este volume contém a parte tedrica de um curso dado em 1968 e repetido em 1964 para o 4 ano de Teoria Litera- ria. A parte que se pode chamar de pratica era constituida pela andlise de poemas de Manuel Bandeira, escolhido como exemplo principal, nao apenas pela alta qualidade de sua obra, mas porque ela € provavelmente a inica em nossa literatura que permite a um estudante encontrar todas as modalidades de verso, desde os rigorosamente fixos até os mais livremente experimentais. As referéncias de paginas, que o leitor encontrard ao lado de poemas dele, aludem & Antologia poética (14 edigéo, Rio de Janeiro: Editora do Au- tor, 1961). Nao foi minha a idéia de mimeografar este texto supe- rado, mas de colegas ¢ amigos da Cadeira de Lingua ¢ Lite- ratura Francesa. Alguém pediu para ler, depois mandou co- piar para seu uso; os encarregados acabaram por bater stencis, porque se interessaram € quiseram também as suas cépias. Tudo a minha revelia, embora depois com o meu assentimento agradecido pela demonstragio de interesse verdadeiramente desvanecedor. A Cadeira, portanto, e aos seus componentes, a minha gratidéo muito sincera. O registro desses fatos serve também para desculpar- me por um texto fragmentario, cheio de buracos, referén- cias incompletas, indicagoes sem continuagio. Est4 visto que em aula a matéria ia sendo nao apenas desenvolvida, mas completada por elementos que nao aparecem aqui, por n _— (O ESTUDO ANALITICO DO FOEMA estarem registrados em notas manuscritas que néo foram incorporadas a esta redacao-base. Lembro um caso: o da teoria da percepcao métrica, do filésofo Carlos Vaz Ferreira, a que dei importancia nas aulas, e que nos originais que serviram para esta impresséo mimeografica estava reduzida aum lembrete manuscrito 4 margem. Caso semelhante éo das vinculagées primitivas entre trabalho, ritmo e poesia, que expus a partir dos criticos marxistas Caudwell e Thomson, cuja obra no texto presente aparecia como sim- ples alusdo remissiva a um caderno, utilizado nas aulas. Outro exemplo: quando Tepeti o curso, glosei bastante a idéia, apenas sugerida aqui, do desvinculamento entre a poesia e verso, cujas primeiras manifestagées talvez se es- bocem no poema em prosa do Romantismo e que em nos- sos dias é um pressuposto estético fundamental, ao mesmo titulo que a queda de barreiras entre os géneros. Além disso, depois de ter redigido o curso (como é meu costume), tomei conhecimento de obras que me te- riam feito abordar de modo diverso certos problemas; haja vista o da sonoridade expressiva, tao bem proposto por Roman Jakobson. Aqui, ela tem por fulcro uma apresenta- cao longa e desnecessaria da velha teoria de Grammont, que j4 em 1964 reduzi na pratica a uma indicagao breve, quando repeti o curso. Mais tarde, ao atualizar parte des- tas notas para semindrios do 12 ano de Pés-Graduacao, em 1966 e 1967, houve cortes, substituigdes e acrésci- mos ainda maiores. Em todo o caso, feitas as ressalvas, é Possivel que este texto meio desconjuntado ainda inte- Tesse aos meus alunos, aos quais se destina, como lem- branga do nosso trabalho comum, Uma iiltima observagio. O curso aqui publicado abran- ge apenas os dois primeiros tépicos do programa. Os tépi- 2D AnTonto Canning cos finais e mais importantes, relativos a estrutura a significado imanente, com a conclusao sobre a unid ‘ a | ram desenvolvidos 4 medida que era efetuada a andl ise ‘a poemas. Deste modo se explica a falta de referencias sis - miticas aos aspectos para os quais convergiam as nogoes . reflexdes contidas no texto, e que constituem ° ae to de um curso deste tipo, voltado para a integragao da guagem poética em estruturas significativas. Sao Paulo, novembro de 1967 Antonio Candido de Mello e Souza Professor de Teoria Literaria ¢ Literatura Comparada 16 O ESTUDO ANALITICO DO POEMA 4. Os significados a. sentido ostensivo e laténcia; b. tradugio ideolégica; c. poesia “direta” e “obliqua”; d. clareza e obscuridade. 5. A unidade do poema. INTRODUGAO O nosso curso deste ano versara problemas de poesia, ao contrario dos dois anos anteriores, em que tratamos de problemas da prosa. O estudo da poesia apresenta certas dificuldades especiais, porque no universo prosaico o meio de expressao nos parece mais préximo da linguagem quoti- diana, e nés nos familiarizamos mais rapidamente com ele. A linguagem da poesia é mais convencional e impée uma atengdo maior, sobretudo porque elase manifesta geralmen- te, nos nossos dias, em pecas curtas e mais concentradas, que por isso mesmo sio menos acessiveis ao primeiro con- tato. Para o aluno de 42 ano, o estudo da poesia apresenta, nesta Faculdade, algumas vantagens positivas. A primeira é que os cursos de literatura que teve anteriormente se ba- searam de preferéncia em textos de prosa; assim, podera agora variar e ampliar a sua experiéncia. A segunda é que o contato com os poemas 0 inicia num universo expressivo que tem sido alvo predileto dos estudos da critica mais re- novadora deste século. Como disse no inicio do meu curso de romance no ano passado, ha sem divida mais estudos sobre prosa do que sobre poesia; mas os estudos mais revo- lucionarios e talvez mais altos dos nossos dias, até bem pouco, foram de critica de poesia. Isto posto, o aluno tem desejo, preliminarmente, de saber o que é poesia. Nao 0 poderei satisfazer por enquanto, pela prépria natureza do curso, que seré explicada daqui a wm w O ESTUDO ANALITICO DO FOEMA pouco ou na préxima aula. Mas deseja também saber que diferenca ha entre prosa e poesia. Basta dizer por enquanto que as acepgées variam conforme as linguas, e que elas se relacionam ao conceito geral de literatura. Em portugués, nao ha divida: a literatura é 0 conjunto das produces fei- tas com base na criagdo de um estilo que é finalidade de si mesmo € no instrumento para demonstragio ou exposi- ¢4o. Mais restritamente, é 0 conjunto de obras em estilo literério que manifestam 0 intuito de criar um objeto ex- pressivo, ficticio na maior parte. Noutras linguas, porém, as coisas sio menos simples, e demonstram com mais forga do que na nossa 0 alto conceito que se faz geralmente da Poesia como categoria privilegiada de criacdo espiritual. Eo caso sobretudo do alemao, em que Literatur é termo muito geral, que levou a singulares confusées 0 nosso Silvio Romero, por exemplo. Literatur em alemao é 0 conjunto de tudo 0 que se escreveu sobre qualquer assunto. Dichtung é que significa 0 que se escreveu em estilo literério e com intuito criador. Escritor, ou Schrifisteller, é 0 que escreve qualquer coisa, como noticias de jornal, por exemplo; Dichter € 0 escritor dotado de capacidade criadora. Em portugués eu posso ser um escritor, e Carlos Drummond de Andrade também o é€; em alemdo eu sou Schriftsteller, e ele, um Dichter, Eu pertengo a Literatur e ele a Dichtung. A dificul- dade esta para o estrangeiro em que Dichter é tanto Drummond quanto Graciliano Ramos, isto é, no caso, nado se diferencia a prosa da poesia, mas a qualidade do escrito, criador ou meramente informativo, critico, analitico, etc. Poesie e Roman sao modalidades de Dichtung. Em italiano, Benedetto Croce, visivelmente inspirado nas acep¢ées alemas, que se aproximam da velha acepgao grega de poesia como criagao, estabeleceu ao longo da sua 18 ANTONIO CANDIDO obra uma distingao entre Poesia e Literatura. Aquela abran- ge obras em prosa e verso € corresponde a Dichtung; esta faz parte de outra esfera, também pode ser em prosa e ver- so, aproximando-se da Literatur dos alemaes. Quando tra- duzimos Dichtung, usamos freqiientemente Poesia, chaman- do Poetas aos Dichter. Mas é preciso notar que assim estamos fugindo as nossas acepgdes atuais e nos aproxi- mando da acepgao grega. : Toda essa digressao vale para Ihes mostrar a eminén- cia do conceito de poesia, que é tomada como a forma prema de atividade criadora da palavra, devida a intuigdes profundas e dando acesso a um mundo de excepcional efi- cécia expressiva. Por isso a atividade poética € revestida de um cardter superior dentro da literatura, e a poesia € a pedra de toque para avaliarmos a importAncia € a capaci- dade criadora desta. Sobretudo levando em conta que a poe- sia foi até os tempos modernos a atividade criadora por ex- celéncia, pois todos os géneros nobres eram cultivados em verso. Hoje, o desenvolvimento do romance e do teatro em prosa mudou este estado de coisas, mas mostra por isto mesmo como toda a literatura saiu da nebulosa criadora da poesia, APRESENTAGAO DO PROGRAMA O curso deste ano trataré dos elementos necessarios para a andlise dos poemas. Aeste propésito, duas conside- ragées iniciais: 1. Trataremos do “poema” e nao da “poesia”. 2. Faremos “anélise” ¢ nao necessariamente “inter- pretagao”. Esclaregamos: 1. “Poema” e nado “poesia” Nao abordaremos o problema da criagio poética em abstrato: o que é a poesia, qual a natureza do ato criador do poeta, etc. Isto nao quer dizer que o nosso curso nao sirva, no fim, para ajudar o entendimento de problemas deste tipo. Este esclarecimento é necessario também para se ava- liar a relagio do poema com a poesia, pois desde o Roman- tismo e do aparecimento do poema em prosa (de um lado) e da depuragio do lirismo (de outro) sabemos: a. que a poesia néo se confunde necessariamente com © verso, muito menos com 0 verso metrificado. Pode haver poesia em prosa € poesia em verso livre. Com 0 advento das correntes p6s-simbolistas, sabemos inclusive que a poesia nao se contém apenas nos chamados géneros poéticos, mas pode estar autenticamente presente na prosa de ficgéo; a © ESTUDO ANALITICO DO POEMA b. que pode ser feita em verso muita coisa que nao € poesia. Julgamentos retrospectivos a este propdésito sao invidveis, mas nao a percepgao de cada leitor. Assim, embo- ra a poesia didatica do século XVIII, por exemplo, fosse perfeitamente metrificada e constituisse uma das ativida- des poéticas legitimas, hoje ela nos parece mais proxima dos valores da prosa. O nosso curso visa, pois, basicamente, & poesia como se manifesta no poema, em versos metrificados ou livres. Em seguida, seremos levados a estudar o que o poema trans- mite, o que tradicionalmente se chama o seu contetido, neste caso nos aproximaremos de um estudo da poesia. Assim, chegaremos a ela partindo empiricamente das suas manifestag6es concretas, e nao fazendo o caminho inverso, mais filos6fico. Por qué? Porque estamos interessados = bretudo em formar estudiosos e professores de literatura, para os quais a tarefa mais premente é saber analisar os produtos concretos que séo os poemas. 2. “Andlise” mais do que “interpretagao” Sendo assim, partimos do poema em sua realidade con- _ porque desejamos sobretudo adquirir uma certa com- peténcia na andlise, ¢ nao primariamente na interpretagio, que decorre dela. Todo estudo real da poesia pressupde : interpretagdo, que pode inclusive ser feita diretamente, sem recurso ao comentario, que forma a maior parte da andlise. A andlise como comentario é um predmbulo, e para o pro- fessor de literatura e de lingua se torna indispensdvel. Freqiientemente os professores se limitam 4 andlise- comentario, E preciso deixar bem claro que isto é uma eta- 2 pa. Seria uma etapa necesséria? A resposta varia conforme 0 tipo de poesia e os problemas apresentados em cada poe- ma. Mas de qualquer modo, o comentario, quando feito, deve ser coroado pela interpretacao. No 5? ano nos dedicaremos mais a interpretacao; no 4° ao comentario, cuja técnica deve ser adquirida pelos candidatos a professor. O comentario é essencialmente o esclarecimento ob- jetivo dos elementos necessarios ao entendimento adequa- do do poema. # uma atividade de erudi¢ao, que nao pressu- poe em sia sensibilidade estética, mas que sem ela se torna uma operacéo mecanica. O verdadeiro comentador experi- menta previamente todo o encanto do poema, para em se- guida aplicar-lhe os instrumentos de anélise. Depois desta, ainterpretacéo deve surgir como um reforgo daquele encan- tamento, e ndo como seu sucedaneo ou diminuigao. Para os estudiosos de mentalidade positiva, 86 0 CO- mentério pode ser algo de universitariamente respeitavel, porque se dirige a aspectos verificaveis, de cunho histérico, lingiifstico, biogrdfico, etc. A interpretacio seria algo dema- siado pessoal para constituir objeto de ensino e sistemati- zagéo. Alguns vao mais longe, e entendem que a poesia tem uma esséncia incomunicdvel, quando a consideramos fora da pura experiéncia pessoal; tem uma irracionalidade pro- funda que se torna significativa apenas & intuigdo de cada um, e nao pode portanto ser objeto de estudo. Outros, mais modernos, adotam posicao exatamente oposta, ¢ afirmam que a poesia sé pode ser estudada a pat- tir desta sua natureza intima, que ela pode ser objeto de estudo sistematico, e que o comentario, além de desneces- sario, talvez seja até prejudicial. f a posicéo de um dos maiores teéricos e praticantes da andlise literéria em nosso tempo, o suico Emil Staiger, que forjou uma teoria da in- 23 & Antonio CANDIDO © ESTUDO ANALITICO DO POEMA terpretacio de fundo rigorosamente estilistico, alegando que a biografia, o contetido filoséfico, as ligacgoes hist6rico-cul- turais nao sao essenciais ao verdadeiro estudo da literatu- ra. E que este, longe de escamotear a irracionalidade pro- funda da poesia, parte, ao contrério, destes elementos im- ponderaveis a primeira vista, mas que sfo os tinicos a per- mitir acesso a estrutura real do poema. (Ver Die Kunst der Interpretation —.A arte da interpretagao.)' Uma posicao mais equilibrada, ou pelo menos mais titil para o estudo universitério, € a de Benno von Wiese, para o qual nao apenas nao hé oposigao entre comentario ¢ interpretagdo, mas “o comentario corretamente entendido é o vestibulo da interpretagdo”. (Ver “Ueber die Interpretation lyrischer Dichtung”, Deutsche Lyrik, p. 15.) Este problema é importante, pois sobre ele se baseia toda a critica moderna, que tende a varias formas de inter- pretagdo, contra a tradigio ossificada do comentario erudi- to, que bania o requisito da sensibilidade, ¢, portanto, a ver- dadeira apreensio do poema. E que estabelecia uma rigida relacéo causal que hoje nao se pode mais aceitar. As moder- nas tendéncias criticas (new criticism americano, escola de Richards na Inglaterra, estilistica alem4 e espanhola) se voltam para a estrutura interna, procurando pdr de lado tudo que nao seja essencialmente o poema, ¢ considerando cir- cunstanciais e somenos (no que se refere a interpretagéo) os elementos dados pela investigacao erudita (lingitisticos, historicos, biograficos). E uma posig&o que se justifica, € que historicamente vale como antidoto de uma seca anato- mia descritiva, antes reinante. Mas nao a exporemos aqui; 1 As indicagdes completas sobre as obras citadas estio na bibliografla final, salvo quando se tratar de obra citada ocasionalmente. Antonio CANDIDO adotaremos a posigao mais universitéria de considerar a in- vestigagéo sobre o poema como uma operacao feita em duas etapas virtuais: comentario e interpretag&o, ou comentario analitico e andlise interpretativa — intimamente ligados, mas que se podem dissociar. Fique claro que nao ha comentario valido sem interpretagéo; € que pode haver interpretacao valida sem comentario. Mas que, neste curso, cuidaremos principalmente do comentario do poema, fornecendo para isto os elementos de poética que forem necessarios, sem todavia nos interditarmos investidas no terreno da inter- pretagao. Mas, tanto no caso do comentério quanto no da inter- pretacao, o interesse se focaliza no poema, unidade concre- ta que limita ¢ concentra a atividade do estudioso. COMENTARIO E INTERPRETAGAO LITERARIA Num texto literério ha essencialmente um aspecto que é tradugdo de sentido e outro que € tradugdo do seu contett- do humano, da mensagem por meio da qual um escritor se exprime, exprimindo uma visio do mundo e do homem. O estudo do texto importa em consideré-lo da manei- ra mais integra possivel, como comunicagéo, mas ao mes- mo tempo, e sobretudo, como expressio. O que 0 artista tem a comunicar, ele o faz & medida que se exprime. A ex- pressio é 0 aspecto fundamental da arte e portanto da lite- ratura. O comentario é uma espécie de traducao, feita previa- mente a interpretagao, insepardvel dela essencialmente, mas teoricamente podendo consistir numa operacéo separada. Neste sentido, vejamos alguns t6picos do ja citado Benno von Wiese (“Ueber die Interpretation lyrischer Dichtung”, p. 11-21). Dizendo que o prazer estético € realgado, nao prejudi- cado pela andlise sistematica, von Wiese defende a possibi- lidade duma interpretagaéo cientifica ou sistematica (wissenschafiliche), ¢ lembra que as davidas a este respeito derivam do fato de se opor erradamente Comentario (exter- no, informativo, objetivo) a Interpretagéo (interna, afetiva, arbitréria). Em verdade “o comentario bem compreendido € o vestibulo da interpretagéo” (p. 15). O comentario é tanto mais necessério quanto mais se afaste a poesia de nés, no tempo e na estrutura seméantica. 27 (O ESTUDO ANALITICO DO POEMA Um poema medieval necessita um trabalho prévio de eluci- dago filolégica, que pode ser dispensado na poesia atual. Mas mesmo nesta hé uma etapa inicial de traducdo, grama- tical, biografica, estética, etc., que facilita o trabalho final e decisivo da interpretagao. O que é interpretagao, alvo superior da exegese lite- varia? Como ja indicou expressivamente Emil Staiger, interpretar significa reproduzir ¢ determinar com pene- trag&o compreensiva e linguagem adequada & matéria, a estrutura intima, as normas estruturais peculiares, se- gundo as quais uma obra literdria se processa, se divide e se constitui de novo como unidade. (p. 16) Natureza: “[...] a Interpretag4o é uma traducao do tipo mais dificil que a tradugdo de uma lingua para outra [...]” (p. 16). Dificuldades: “um poema nao se revela por si mesmo, nem para os que falam a mesma lingua. E espantoso 0 quanto 0 leitor desprevenido (ou ingénuo) 1é mal e nao percebe” (p. 17). Dai a necessidade de ensinar ¢ aprender a interpreta- gao sistematica, Requisitos: ao Nao se prender exclusivamente a forma nem ao con- tetdo (“formalismo” e “materialismo”); nao utilizar padrdes alheios ao poema (p. 17). ~ Nao falar de si mesmo, mas da obra, isto é, nao em- prestar a ela os sentimentos e idéias pessoais que brotam por Sua sugestao; mas procurar extrair os que esto conti- dos nela (p. 18). 28 [ANTONIO CANDIDO Regras: “[...] aprender a ler, saber ouvir, prestar aten- cao a todas as particularidades” (p. 17). A anélise comporta praticamente um aspecto de co- mentario puro e simples, que é o levantamento de dados exteriores A emogdo poética, sobretudo dados histéricos ¢ filolégicos. E comporta um aspecto ja mais préximo a inter- pretacdo, que é a andlise propriamente dita, o levantamento analitico de elementos internos do poema, sobretudo os li- gados a sua construgio fonica e semantica, e que tem como resultado uma decomposigao do poema em elementos, che- gando ao pormenor das tltimas mintcias. A interpretagéo parte desta etapa, comega nela, mas se distingue por ser eminentemente integradora, visando mais a estrutura, no seu conjunto, ¢ aos significados que julgamos poder ligar a esta estrutura. A andlise e a interpretagdo, ao contrario do comentario (fase inicial da andlise) néo dispensam a mani- festagéo do gosto, a penetragéo simpatica no poema. Co- menta-se qualquer poema; s¢ se interpretam os poemas que nos dizem algo. A andlise esté a meio caminho, podendo ser, como vimos, mais andlise-comentario ou mais andlise- interpretagao. Anilise e interpretagdo representam os dois momen- tos fundamentais do estudo do texto, isto é, os que se pode- riam chamar respectivamente o “momento da parte” € o “mo- mento do todo”, completando o circulo hermenéutico, ou interpretativo, que consiste em entender o todo pela parte e a parte pelo todo, a sintese pela andlise ¢ a andlise pela sintese. Aeste respeito, tomemos alguns conceitos de Staiger no citado estudo Die Kunst der Interpretation: O intérprete se mede pela capacidade de exprimir de maneira sistemdtica, a respeito da poesia, e sem des- 29 O ESTUDO ANALITICO DO FOEMA truir o seu encanto, o que determina o seu segredo e a sua beleza, e de aprofundar por meio do conhecimento o prazer causado pela valia da obra. Isto € possivel? De- pende do que se considerar sistematico. ‘A hermenéutica nos ensinou hé muito que nés compreendemos 0 todo pela parte ¢ a parte pelo todo. & 0 “circulo hermenéutico”, a cujo respeito ndo dizemos mais que é necessariamente um circulo vicioso. Sabe- mos pela Ontologia de Heidegger que todo 0 conheci- mento humano se desenvolve desta maneira, e também a Fisica e a Matemética nfo costumam andar de outra maneira. Portanto, nfo devemos evitar o circulo, mas apenas cuidar em entrar nele corretamente. (p. 12-3) Em seguida, Staiger fala do prazer e da emogao da lite- ratura como condig&o de conhecimento adequado, sem te- mer a acusacgéo de fundar os estudos literdrios no senti- mento subjetivo. O sentimento neste caso é um critério de orientagao e de penetracéo. “O'critério da sensibilidade se torna também critério de conhecimento sistematico” (p. 18). Uma vez assegurada esta penetracéo simpatica, o lei- tor deve apreender o ritmo, o largo compasso do poema? sobre 0 qual repousa o estilo, sendo o elemento que unifica num todo os aspectos de uma obra de um artista ou de um tempo (p. 14). Quando apreendemos pela sensibilidade o ritmo geral de uma poesia, apreendemos no todo a sua beleza prépria. Esclarecer esta intuigéo pelo conhecimento é a tarefa da interpretagao. 2 Segundo o Kleines Literariches Lexikon, a concepgio de Staiger importa em assimilar o ritmo ao proprio estilo (“...Staiger setzt ihn mit SUl gleich...”) (. 126) 30 ANTONIO CANDIDO Neste estgio 0 estudioso se separa do amador. Para o amador, basta o sentimento geral ¢ um dominio ainda vago, que pode esclarecer por meio de leituras atentas. Mas ele nao sente a necessidade de comprovar como tudo se afina no todo, ¢ como o todo se afina pe- Jas partes. A possibilidade de estabelecer esta prova € 0 fundamento da nossa ciéncia. (p. 15) sae Antes de entrar na apresentagéo dos elementos ne- cessirios & andlise do poema, como encaminhamento para a sua interpretagéo posterior, fagamos um exercicio breve, que mostre como 0 comentario e a interpretagao se comple- tam e como cada um deles pode ser melhor compreendido por um caso concreto. Seja o soneto de Camées, numerado 74 na edicao or- ganizada por Hernani Cidade (S4 da Costa): 1 Amor é fogo que arde sem se ver; ¥ ferida que déi ¢ no se sente; £ um contentamento descontente; B dor que desatina sem doer, £ um ndo querer mais que bem querer; 6 _ & solitario andar por entre a gente; B nunca contentar-se de contente; 8 Bcuidar que se ganha em se perder; & querer estar preso por vontade; servir a quem vence, o vencedor; ¥ ter com quem nos mata lealdade. O EsTuDO ANALITICO DO roEMA Mas como causar pode seu favor Nos coragées humanos amizade, Se tao contrario a si € o mesmo Amor? Ed. 1598-1. Amor é um fogo... 6. £ um andar solitério. 8. 6 um cuidar... COMENTARIO Trata-se de um soneto. Significativo: adogéo de um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado pe- los italianos), apto pela sua estrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma ordenada e progressiva de argumentagao..Ha certa analogia entre a marcha do so- neto € a de certo tipo de raciocinio légico em voga ainda no tempo de Camées: o silogismo. Em geral, contém uma pro- posigao ou uma série de proposigées (ou algo que se pode assimilar a ela) e uma conclusio (ou algo que se pode a ela assimilar). Este soneto obedece ao modelo classico. & composto em decassilabos e obedece ao esquema de rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD. Isto permite a divisio do tema e a cons- tituigdo de uma rica unidade sonora, na qual a familiaridade dos sons e a passagem dum sistema de rimas a outro aju- dam ao mesmo tempo o envolvimento da sensibilidade e a clareza da exposig&o poética (proposigio, conclusées). O decassilabo, como aqui aparece, é de invengao ita- liana, embora exista com outros ritmos na poesia de outras linguas. Verso capaz de conter uma emissao sonora prolon- gada, e bastante variado para se ajustar ao contetido. 32 ANTONIO CANDIDO Este soneto apresenta uma particularidade: a propo- sicdo € feita por uma justaposigao de conceitos nos dois primeiros quartetos, estendendo-se ao primeiro terceto. S6 no tiltimo tem lugar a conclusao (que é uma conseqiiéncia do exposto), que de ordinario principia no anterior. Quanto a estrutura ritmica, notar que na parte propositiva (11 versos), todos os versos tém cesura da 64 silaba, permitindo um destaque de 2 membros, o primeiro dos quais exprime a primeira parte de uma antitese, expri- mindo o segundo a segunda parte. Vemos aqui a fungao 16- gica ou psicolégica da métrica, ao ajustar-se & marcha inte- Jectual e afetiva do poema. Note-se ainda que o poeta recorre discretamente a ali- teracao, isto é, a freqiiéncia num ou mais versos das mes- mas consoantes, formando uma determinada constante so- nora, ou antes, um efeito sonoro particular: r no primeiro verso; t no terceiro & sétimo; d no quar- to; v no décimo, etc. Quanto a outras circunstancias exteriores 4 interpre- tagio, como data de composig4o, situagéo na vida do poeta, etc., ndo ha elementos no caso. Apenas um pormenor eru- dito de variantes. INTERPRETAGAO 14 PARTE: ASPECTO EXPRESSIVO FORMAL Evidentemente se trata de um poema construido em toro de antiteses, organizadas longitudinalmente em for- ma simétrica, por efeito da cesura significativa, dando niti- da impressao de estrutura pilateral regular, ordenada em 33 O EsTUDO ANALITICO DO POEMA torno de uma tensao dialética. Sao duas séries de membros que se opéem, prolongando durante 11 versos um movi- mento de entrechoque. Esta forma estrutural geral € movimentada por uma progressaéo constante do argumento poético, manifestada: 12 pelo efeito de actimulo das imagens, que acabam criando uma atmosfera de antitese; 22 pela abstracao progressiva das categorias gramati- cais basicas que so, no caso, vocébulos-chave do ponto de vista poético. Assim é que temos sucessivamente uma drea de substantivos, uma rea de verbos substantivados e uma rea de verbos. Substantivos: 1* estrofe: fogo, ferida, contentamento, dor. Verbos substantivados: 2# estrofe: um querer, um an- dar (solitario pode ser substantivo ou adjetivo, alias; dupla leitura possivel). Transigao no terceiro verso que prepara a passagem para a drea verbal seguinte (/um/ nunca conten- tar-se). Verbos: 3# estrofe, ¢ jé fim da segunda: querer estar, servir, ter. ‘Trata-se de um nitido processo de abstragio, que re- vela a passagem do estado passivo do sujeito poético A sua agao, intensificando a sua forca emocional. Ainda sob este aspecto, note-se na area dos substanti- vos a evolugao da causa material - fogo — para a conseqi cia material imediata e apenas metaforicamente imaterial — ferida -, e dela para a conseqiiéncia imaterial mediata - con- tentamento e dor, que sao estados da sensibilidade. Na altima estrofe, a cesura nao divide o verso, hé trans- posigo (“enjambement”), e todo 0 terceto se apresenta como unidade expressiva coesa e ininterrupta, pela presenca de uma conseqiiéncia légico-poética, sob a forma de interroga- 34 ANTONIO CANDIDO cao. Esta interrogacéo exprime a perplexidade do poeta permite transitar 4 nossa segunda parte. (Ver nota abaixo.) 24 PARTE: ASPECTO EXPRESSIVO EXISTENCIAL Este soneto exprime, sob aparente rigidez légica, uma densa e dramatica tensao existencial; é 0 encerramento de uma profunda experiéncia humana, baseada na perplexida- de ante o carter contraditério (bilateral, para usar a ex- pressao aplicada & forma estrutural do soneto) da vida hu- mana. A vida é contraditéria, e como os poetas nao cansam de lembrar, amor e 6dio, prazer e dor, alegria e tristeza, an- dam juntos. Sabemos hoje pela psicologia moderna que isto nao constitui, para a ciéncia, motivo de perplexidade, mas a prépria realidade dos sentimentos de toda a personalidade. A arte percebeu antes da ciéncia. No soneto de Camées hé uma rebeldia apenas retori- ca, sob a perplexidade do ultimo terceto. Mas no corpo dialético do poema reponta uma aceitacao das duas meta- des da vida, pelo conhecimento do seu caréter inevitavel. A profunda experiéncia de um homem que viveu guerras, Priv sao, vicios, gozos do espirito, leva-o a esta andlise que reco- nhece a divisdo na unidade. E a prépria conclusio perplexa do fim € 0 reconhecimento de que a unidade se sobrepde afinal & divisdo do ser no plano da experiéncia humana to- tal. O amor é tudo o que vimos, e ele é aspiragao de plenitu- de gragas & qual o nosso ser se organiza e se sente existir. Grande mistério - sugere 0 poeta - que sendo tao aparente- mente oposto a unidade do ser, ele seja um unificador dos seres (na medida em que € amizade). A simetria antitética perfeitamente regular exprime a presenga de uma ordem no caos. O espirito unifica, no pla- 35 O EsTUDO ANALITICO DO FOEMA no da arte, as contradigées da vida, nao as destruindo, mas integrando-as. Nota: Seria possivel representar graficamente o soneto de Camées, levando em conta a estrutura antitética das trés primeiras estrofes, cortadas verticalmente pela cesura no 62 verso, ¢ 0 ritmo unificador da estrofe final: HU Os FUNDAMENTOS DO POEMA a. SONORIDADE Todo poema é basicamente uma estrutura sonora. Antes de qualquer aspecto significativo mais profundo, tem esta realidade liminar, que é um dos niveis ou camadas da sua realidade total. A sonoridade do poema, ou seu “substrato fonico” como diz Roman Ingarden, pode ser al- tamente regular, muito perceptivel, determinando uma me- lodia propria na ordenagdo dos sons, ou pode ser de tal maneira discreta que praticamente nao se distingue da pro- sa. Mas também a prosa tem uma camada sonora constitutiva, que faz parte do seu valor expressivo total. Tomemos trés poemas de Manuel Bandeira, na Antologia: p. 180 — “Gazal em louvor de Hafiz”; p. 127 ~ “Belo belo”; p. 79 - “Poema tirado de uma noticia de jornal”. Vemos, analisando-os sob o aspecto meramente sono- ro, que eles se dispdem numa ordem decrescente quanto a riqueza sonora. O primeiro é regularmente metrificada, ha uma rima constante que traz sete vezes 0 mesmo som basico em catorze versos etc. O segundo tem uma espécie de estribi- lho com rima toante e uma espécie de quadra irregular com uma rima, entre as seqiténcias maiores de versos livres, sem 37 O ESTUDO ANALITICO DO POEMA efeitos especiais de sonoridade. O iiltimo é em prosa, dispos- ta por unidades ritmicas varidveis, com uma homofonia pra- ticamente ocasional, que representa uma falsa rima. Mas nos trés casos temos um sistema de sonoridades que importam decisivamente para a individualidade do poema. O poeta pode, fundado nesta realidade, explord-la sis- tematicamente e tentar obter efeitos especiais, que utilizem a sonoridade das palavras e dos fonemas - sem falar na pratica coletiva da metrificagéo, que oferece um arsenal de ritmos que ele adapta a sua vontade aos designios de ordem psicolégica, descritiva, etc. Deixemos de lado por enquanto ametrificagdo e nos fixemos apenas em efeitos sonoros par- ticulares dentro do verso, a fim de averiguar 0 seguinte pro- blema: além da melodia e da harmonia préprias 4 palavra poeticamente ordenada em verso, regular ou livre, ha certos fonemas que despertem sensagdes ou emogoes de outra na- tureza — auditiva, plastica, colorida, seja em si, seja ligadas a idéias, no nivel psicolégico? Haveré uma letra ou letras que comuniquem a sensacio da cor branca, ou a idéia de brancura simbélica (moral, etc.)? Este é 0 problema da expressividade dos sons, da correspondéncia entre som e um sentido necess4rio, cuja forma mais complexa é a sinestesia, ou simultaneidade de sensagées. Este problema das correspondéncias tem raizes mis- ticas e apareceu primeiro com forma simbélica sob a in- fluéncia de Swedenborg. Costuma-se tomar como ponto decisivo da sua formulacdo na poesia o soneto das “Corres- pondéncias” de Baudelaire. Os simbolistas levariam este ponto de vista ao maximo, chegando Rimbaud, no “Soneto das vogais”, a atribuir a cada uma delas uma cor especffica. Na lingua portuguesa, este aspecto da influéncia de Baudelaire se faz sentir desde o decénio de 1870 - por exem- plo, nas Claridades do Sul, de Gomes Leal (1875). 38 [ANTONIO CANDID Mas, neste nivel, trata-se duma espécie de arbitrio me- taférico do poeta, que atribui um dado valor eXpressivo ao som. O problema propriamente dito é de ordem fonética esd apareceu sistematicamente com pesquisas de ee procurando estabelecer se um determinado som Coueeroe le em si, necessariamente, para toda a gente, a um determinado valor expressivo. Até hoje as pesquisas ngo puderam con- cluir de modo satisfatério, tendo inclusive escapado oe te aos foneticistas para cafrem na esfera propria do psicélo- go, ao qual incumbe a investigagéo das sensagées. 7. Em poesia, a teoria mais famosa é a d° foneticista Maurice Grammont, cujo livro Le Vers Frangais é de 1906. Antes de expé-la, ¢ de comentar outros pontos de vista Prd e contra, examinemos alguns casos concretos de sonorida- de poética expressiva. (1) Por que tardas, Jatir, que tanto a custo A.voz do meu amor moves teus pas805? (Gongalves Dias) Interessa-nos 0 primeiro verso em que aletra T apare- ce cinco vezes em dez silabas poéticas, ainda com © reforgo homofonico de um D, isto é, de uma dental como ela, Num poema construido em torno da passagem do tempo, que pro- cura transmitir a duragéo psicolégica em relagio com 0 fluir das horas, ¢ no qual uma india se angustia com demora do namorado, que afinal nao vem, esta aliteracao parece confe- rir uma espécie de poderoso travamento ao ptimeiro verso. Teria o T (apoiado no D) um valor expressivO de frear, pe- sar, demorar, atardar, segurar? (2) Pour qui sont ces serpents qui sifflent sur vOS tates? (Racine) 39 3 O ESTUDO ANALITICO DO POEMA Neste verso, Orestes, em delirio, imagina que as fa- rias se precipitam sobre ele como serpentes sibilantes. O efeito aliterativo que nos chama logo a atencdo é a repeticao do S (incluido um C com som de S) inicial cinco vezes em doze silabas poéticas. Isto sugere o sibilar da serpente bem como 0 seu rastejar coleante. Teria o S um valor expressivo de sibilo, deslizamento, etc.? (8) Les souffles de la nuit flottaient sur Galgala. (Victor Hugo) Aqui temos, para sugerir a branda oscilagao das bri- sas da noite, o grupo consonantal FL repetido duas vezes, com apoio secundério do L pré-vocélico trés vezes, em doze silabas poéticas. As liquidas repetidas, e duas vezes ligadas ao apoio principal do F teriam esta propriedade expressiva? (4) Nao vés Ninfa cantar, pastar o gado Na tarde clara do calmoso estio. Turvo, banhando as pdlidas areias, Nas porgées do riquissimo tesouro O vasto campo da ambigao recreias (Cléudio Manuel da Costa) O segundo dos versos citados completa o anterior e sugere a claridade civil e luminosa da bem ordenada paisa- gem virgiliana das pastorais. O efeito sonoro comega na pa- lavra “cantar”, mediante a repeticao da vogal A em oito sila- bas tonicas, num total de quatorze silabas métricas. A se- guir, num violento contraste, o verso seguinte introduz a idéia de uma regiao agreste e fosca, como se uma nuvem 40 ANTONIO CANDIDO escura houvesse passado sobre a claridade da pastoral. Este efeito tem correspondéncias sonoras na poderosa silaba ini- cial de “turvo”, em que o U, apoiado no Teno R, vibra com uma profundidade e uma escureza que quebram inteiramente a clara sucessao de AA. OA volta no mesmo verso, mas ja esbatido pela nasalizagio (“banhando”), e em seguida amor- tecido pelo efeito desta e do U (“palidas”). Teria o U, que aparece uma tinica vez em dez silabas poéticas, a propriedade de sugerir estes efeitos? Nos casos anteriores tinhamos o efeito devido & repeticao aliterativa. Mas aqui temos uma tinica ocorréncia central, com apoio secundario das nasais. Estes recursos sonoros — hhomofonias por meio de rima, assonancia, aliteracdo, etc. - constituem recursos tradicio- nais da poesia metrificada. Com o Simbolismo, adquiriram renovada importancia e sofreram um processo de intensifi- cacao, em virtude da busca de efeitos sinestésicos e de efei- tos musicais. Poderia parecer que isto é inécuo numa poe- sia feita para ser lida. Mas certos psicdlogos e foneticistas sustentam que a leitura é acompanhada de um esbogo de fonagdo (agio jdeo-motora) e de audigéo, de tal modo que nds nos representamos mentalmente 0 efeito visado. Para termos uma idéia da verdadeira orgia métrica € sonora a que se abandonaram os simbolistas, basta lembrar a estrofe inicial do “Pesadelo”, de Eugénio de Castro, em que vemos rima interna obsessiva, assonancias, aliteragées, etc., acumuladas de modo quase delirante, para sugerir a atmosfera e as sensagdes do sonho: Na messe que enloirece estremece a quermesse, O sol, 0 celestial girassol, esmorece, Eas cantilenas de serenos sons amenos Fogem fluidas, fluindo a fina flor dos fenos. 41 O ESTUDO ANALITICO DO FOEMA Com o Modernismo houve de um lado uma dessono- rizagéo da poesia, que se aproximou sob este aspecto da sonoridade normal e mais discreta da prosa. De outro, um aproveitamento imitativo intenso, na esteira do Simbolis- mo. Vejam-se estes versos de “Dangas”, de Mario de An- drade, em que o poeta, numa poesia para ser lida, combina 0 efeito sonoro com a disposigdo grafica, para sugerir os movimentos coreograficos e sua correspondéncia psicolé- gica: EU DANCO! Eu dango manso, muito manso, Nao canso e dango, Dango e vengo, Manipanco. $6 nao penso... Noutro verso do mesmo poeta - decassilabo branco de “Louvagao da Tarde” ~, vemos o efeito da noite que cai bruscamente sugerido pela repeticéo da mesma silaba trés vezes, ligada ao grupo RL ¢ a aliteragao do S: Pelo ar um luscofusco brusco trila, Serelepeando na baixada fria. No entanto, é preciso lembrar que estamos vendo exemplos de sonoridade procurada, conscientemente cria- da pela intensificagéo de efeitos, ¢ que assim forcaria de certo modo o valor expressivo do som. E preciso assinalar duas coisas: a2 Antonio Cannio ~ quando se fala em estrutura sonora, fala-se da sono- ridade de qualquer poema, pois todo poema tem a sua indi- vidualidade sonora prépria; -o efeito expressivo, mesmo de carter sensorial, pode ser obtido por outros recursos, ou com a predominancia de outros recursos, e principalmente pelo valor semantico das palavras escolhidas. Tomemos a estrofe inicial da “Cangéo da Moga-Fan- tasma de Belo Horizonte”, de Carlos Drummond de Andrade: Eu sou a Moga-Fantasma que espera na Rua do Chumbo o carro da madrugada. Eu sou a branca ¢ longa e fria, + a minha carne é um suspiro na madrugada da serra. Eu sou a Moga-Fantasma. O meu nome era Maria. Maria-Que-Morreu-Antes. Notamos: nao ha rima; ha o ritmo regular do setissilabo, que cria uma unidade sonora na estrofe. O ver- so principal +, que sugere a realidade da personagem e nos faz sentir a sua imponderével frialdade, é formado pela su- cessio de epitetos que dao, em lugar de qualquer som, a sensagio referida. Sobretudo porque trés deles se sucedem €0 principal é posto em evidéncia no fim do verso seguinte, ligando-se aos anteriores por uma assonancia, ou rima toante: 43 O ESTUDO ANALITICO DO FOEMA Eu sou BRANCA e LONGA e FRIA, a minha carne é um SUSPIRO O substantivo “suspiro” tem uma fungdo adjetiva, de- pois dos trés qualificativos anteriores, € pode ser encarado como um quarto epiteto. Temos neste caso uma sucessao de sentidos e um efeito sonoro muito discreto criando a ilusdo sensorial. Das se dizer, em oposigao a tese da expressividade ob- jetiva do som (nao do sentido que cada um de nés atribui subjetiva e arbitrariamente aos sons) que ele é na poesia elemento dependente de outros, e sobretudo do préprio sen- tido das palavras, que sdo o elemento diretor. A esse propd- sito, John Press faz uma consideragao pitoresca a respeito do famoso verso do mondlogo em que Macbeth fala da su- cessao estéril dos dias: ‘To-morrow and to-morrow and to-morrow, etc. Segundo alguns, a sucessao de O € A retomados trés vezes em trés unidades iguais e dominando inteiramente o verso, daria um sentido de vacuidade, monotonia e deses- pero. Ora, diz ele, se tomarmos 0 mesmo verso em contexto diferente, veremos que nao sugere nada disso, e que portan- to a sonoridade é um fenédmeno poeticamente sem autono- mia. E inventa a seguinte quadra jocosa: Why am I gay? Because day after day I borrow and I borrow and 1 borrow. “When will you pay?” all my creditors say — To-morrow and to-morrow and to-morrow. (The Fire and the Fountain, p. 124-5). 44 es ANTONIO CANDIDO , A soluciéo deste problema deve ser inicialmente pedi- daa Lingiistica. Por qué? Porque, mesmo que nao se possa dizer que ha uma expressividade imanente no som, pode-se perguntar se a palavra literariamente usada néo tem certas peculiaridades que levam a formar-se no leitor ou ouvinte uma impressio nao necessariamente contida na sua estru- tura peculiar de signo lingitistico. A corrente mais acatada de Lingiiistica, que vem de Ferdinand de Saussure, postula que 0 signo lingiiistico (pa- lavra) é composto de um significante ¢ de um significado. O significante é a imagem aciistica, o significado é 0 conceito que ela transmite. Assim, o signo “mesa” se constitui do som articulado que se representa pelas letras m,e,s,a€ da idéia do objeto mesa que ele representa. Ora, para Saussure, ao contrario do que pensavam outros lingiiistas, o som nao corresponde ao conceito, nao é determinado por qualquer peculiaridade dele, nao se liga a qualquer propriedade do objeto. Falando na sua terminologia, “o signo € arbitrério”. Segundo Niels Enge, citado por Delbouille: Os dois constituintes semiolégicos de um dado signo sio, conforme Saussure, inseparavelmente li- gados, mas a razo de ser da constituigao deste sig- no, ou. a maneira pela qual se constitui, nao pode ser procurada, sincronicamente, em nenhuma causa ine- rente ao signo; um dos dois constituintes do signo nao é motivado pelo outro, & reciprocamente. (Sonorité et Potsie, p. 25) Se assim é, nao se pode dizer que lingitisticamente haja qualquer nexo entre o som que traduz o conceito (a 45

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