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F O U C A U L T E A PSIQUIATRIA CRIMINAL
Diogo Sardinha
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Este texto c a versão revista de duas comunicações, a primeira apresentada ao seminário
de investigação "Anthropoiogie et politique", organizado conjuntamente por Etienne
Balibar, Nestor Capdevila, Bertrand Ogilvie, Marie Gaille-Nicodimov e Patrice
Maniglier na Universidade Paris X - Nanterre, em Março de 2000; e a segunda exposta
ao grupo de investigação para a História da Loucura em Portugal, co-dirigido por
António Barbosa, José Gil e Nuno Nabais, na Faculdade de Letras de Universidade de
Lisboa em Maio de 2000.
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"Moi, j'essayerai plutôt d'étudier les effets de pouvoir qui sont produits, dans la réalité,
par un discours qui est à ía fois statutaire et disqualifíé." M . Foucault, Les Anormaux.
Cours au Collège de Frcmce, ¡974-1975, éd. por François Ewald et ai, Paris,
Seuil/Gallimard, col. "Hautes études", 1999, p. 14.
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"(...) ce pouvoir, ils le detiennent de quoi? De Pinstilution judiciaire peut-elre, mais ils
Ic detiennent aussi du fait qu'ils fonciionnent dans ['institution judiciaire comme
discours de verite, discours de verite parce que discours a statut scientifique. ou comme
discours formulcs, et formules exclusivement par des gens qualifies, a 1'interieur d'une
institution scientifique." Idem, p. 7.
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por tudo o que pode ser o seu passado familiar e pessoal tal como ele foi
seleccionado e organizado pelo psiquiatra. Ou seja, o discurso do perito
produziu um novo acusado.
Claro que este acusado não é inteiramente novo, nem inteiramente
criado pelo psiquiatra. O indivíduo em questão pode com efeito ter agido,
e reiteradamente, de forma mais ou menos contestável ou condenável, e
isto nas mais diversas situações, da mesma forma que o seu pai pode ter
sido alcoólico e a sua mãe prostituta. Mas o que é importante é que não
foi por esses motivos nem por essas filiações que ele veio a julgamento,
Ou melhor, não era por eles, porque a partir do momento em que o rela-
tório pericial rememora todos esses episódios e os reconduz ao acto em
julgamento, como se eles todos o indiciassem, como se fizessem prever o
acto cometido, então é por todo esse passado que a sentença vai condenar
ou ilibar, penalizando o acusado com a prisão ou entregando-o ao hospi-
tal psiquiátrico. Assim, a primeira lição a tirar formula-se com toda a
transparência: há discursos que moldam personagens aí onde apenas
deveriam avaliar uma responsabilidade no momento do acto; e que,
apesar deste trabalho de produção, continuam a apresentar-se como se
fossem um mero elemento de elucidação do que já lá estava, como se
nada de mais lhe tivessem acrescentado, mas produzindo afinal e de ante-
mão a verdade que a sentença de justiça é suposta expressar.
Não é todavia apenas por este curioso efeito de produção e pela sua
influência na decisão final que os relatórios psiquiátricos são dignos de
relevo. Eles são-no igualmente pela sua construção interna. A leitura de
alguns deles revela que às descrições das observações médicas dos acu-
sados (medições, análises, testes) se segue uma parte central de narração
do passado dos indivíduos e de descrição da sua família directa. Estas
narração e descrição são pontuadas, para não dizer na sua maior parte
constituidas, por juízos morais, o que leva Foucault a falar de um recurso
constante, nestes textos, às "categorais elementares da moralidade (...) e
que são, por exemplo, as categorias de "orgulho", "teimosia", "maldade",
etc." Onde esperávamos encontrar um texto rigoroso, deparamo-nos
4
4
"(...) categories élémentaires de la moralité (...) et qui sont, par exemple, les catégories
d"'orguei]", d"'entétement", de "méchanceté", etc." Ibid., pp. 32-33.
5
"(...) L'Occident, qui - depuis, sans doute, la société, la cité grecque - n'a pas cessc de
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rêver de donner pouvoir au discours de vérité dans une cité juste, a Finalement confere
un pouvoir incontrôlé, dans son appareil de justice, à la parodie, et à la parodie reconnue
telle du discours scientifique." IbuL, p. 14.
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Convém assinalar que o assunto de que aqui tratamos tem um contexto temporal e espa-
cial. Este problema da presença dos psiquiatras no tribuna! não existia em França antes
do início do século X I X e, até ver, ele não deve ser prolongado até mais tarde do que o
momento em que Foucault fez o seu curso, ou seja até 1975. Seria sem dúvida interes-
sante, mesmo importante, examinar a situação actual e ver o que deste quadro terá
mudado e o que se mantém e, sobretudo, a que razões podem ser atribuídas as transfor-
mações e as continuidades.
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crime brutal e no qual a acusada não tinha interesse aparente visto saber
de antemão que seria condenada à morte, uma argumentação em torno do
instinto como "dinâmica do irresistível" pretendeu justificar o acto,
considerando a acusada como inimputável. 7
7
M . Foucault, op. ed., pp. 120-125.
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B
M . Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, Paris, GaJlimard, 1975.
9
M . Foucault, Histoire de la sexualité, vol. I ; La Volonté de savoir, Paris, Gallimard,
1976.
1 0
"L'histoirc du corps, lcs historiens Pont entamée depuis longtemps. Ils ont étudié le
corps dans le champ d'une démographie ou d'une pathologie historiques (...). Mais lc
corps est aussi directement plongé dans un champ politique (...)." M . Foucault,
Surveiller et punir, p. 30.
1 1
"Analyser plutôt des "systèmcs punitifs concrets" (...); les replacer dans leur champ de
fonctionnement (...)." Idem, p. 29.
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Ao mesmo tempo (ou sensivelmente mais tarde) que Foucault tentava comprendrer o
funcionamento do poder de um ponto de vista histórico-filosófíco, Pierre Bourdieu
elaborava uma teoria sociológica dos campos em muitos pontos coincidente com a do
primeiro. Cf. P. Bourdieu, Questions de sociologie, Paris, Ed. de Minuit, 1982,
pp. 113-116 e 181-185.
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"O que é o instinto? É este elemento misto que pode funcionar sobre
dois registos ou, digamos ainda, é esta espécie de rodagem que permite
a dois mecanismos de poder engrenarem-se um no outro: o mecanismo
penal e o mecanismo psiquiátrico; ou, mais precisamente ainda, este
mecanismo de poder que é o sistema penal e que tem os seus requisitos
de saber consegue envolver-se com o mecanismo de saber que é a psi-
quiatria e que tem do seu lado os seus requisitos de poder." 13
1 3
"Qu'est-cc que c'est, 1'instinct? Cest cet élémcnt mixte qui pcut fonctionncr sur deux
registres ou, si vous voulcz encore, c'est cette espèce de rouage qui permet à deux
mecanismos de pouvoir de s'engrencr Tun sur l'autre: le mécanisme pénal et le méca-
nisme psychiatrique; ou, plus précisément encore, ce mécanisme de pouvoir, qui est le
système pénal et qui a ses réquisits de savoir, parvient à s'enclencher sur le mécanisme
de savoir qui est la psychiatrie el qui a de son colé ses réquisils de pouvoir." M .
Foucault, Les Anormaux, p. 128.
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Um exemplo das perguntas então nascentes: "O instinto do homem é o instinto do
animal? O instinto mórbido do homem é a repetição do instinto animal? O instinto
anormal do homem é a ressurcição de instintos arcaicos do homem?" M . Foucault,
idem, p. 123.
"5/£>ií£,p. 259.
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1 6
"{...) la médicalisation de 1'insolitc sexuel est à la fois 1'effet et 1'instrumcnt." M .
Foucault, La Volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1975, col. "Tel", p. 61,
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1 7
"L'implantation dcs perversions est un effei-instrument: c'est par 1'isolement,
1'intcnsificalion et la consolidation des sexualités périphériques que les relations du
pouvoir au sexe et au plaisir se ramifient, se multiplient, arpentent le corps et pénètrcnt
les conduites. Et sur cettc avancée des pouvoirs, sc Fixent des sexualités disséminées,
épinglccs à un age, à un lieu, à un goút, à un type de pratiques." Idem, p. 66.
1 8
"Plaisir et pouvoir ne s'annulcnt pas; ils ne se reíournent pas 1'un conlre 1'autre; ils se
poursuivent, se chevauchem et se relancem. lis s'cnchalnent selon des mécanismcs
complexes et positifs d'excitation et d'incitation." Ibid., p. 67.
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de modo que um acordo entre ambos possa ser estabelecido, e que con-
ceitos a traduzem? Talvez se esconda aqui um último segredo da engre-
nagem, uma peça ou um movimento ainda não apercebido e importante
para a compreensão do todo. É exactamente esta vertente que reclama um
esclarecimento antes de podermos concluir.
III. Perigo
O tema do perigo atravessa a história da psiquiatria em França e,
portanto, também a da sua vertente criminal. No final do século XVIII,
quando ela aparece como ramo da higiene pública e com uma missão de
protecção social, um dos primeiros perigos de que ela se ocupa é o da
loucura. De facto, data da mesma época a ideia de que a loucura tem um
valor intrínseco de perigosidade, podendo pôr em causa a saúde da
comunidade, o que Foucault tinha já mostrado em Histoire de la folie
num capítulo intitulado de modo significativo "La grande peur". 19
1 9
M . Foucault, Folie et déraison: Histoire de la folie à 1'âge classique. Paris. Plon,
1961. Agora Histoire de la folie à 1'âge classique. Paris, Gallimard, 1976 , col. "Tel",
3
p. 443 ss.
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"a noção de "perversão", por um lado, (...) permite encadear a série dos
conceitos médicos e a série dos conceitos jurídicos; e depois, por outro
lado, a noção de "perigo", de "indivíduo perigoso", (...) permite
justificar, fundar em teoria a existência de uma cadeia ininterrupta de
instituições médico-judiciárias. Perigo e perversão: é isto que constitui
(...) o núcleo teórico da peritagem médico-legal." 20
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"(...) la notion de "perversion", d'une part, (...) permet de couturer l'une sur 1'autre la
série des concepts médicaux et la série des concepts jundiques; et puis, d'autre part, la
notion de "danger", d"'individu dangereux", (...) permet de justifier, dc fonder en
théorie ['existence d'une chaine ininlerrompue destitutions médico-judiciaires.
Danger et perversion: c'est ceci qui constitue (...) le noyau théorique de ['expertise
médico-légale." Les Anormaux, p. 32.
2 1
Cf. Us Anormaux, p. 23-24.
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2 2
Idem, p. 31.
2 3
Cf. Surveiller et punir, p. 229. Esta é, sem dúvida, uma das teses mais fortes de
Foucault, a dc que o aumento e a generalização das liberdades na modernidade
ocidental se fundou num regime disciplinar e numa normalização que durante dois
séculos permaneceram praticamente "invisíveis" para a teoria.
2 4
"De facto, todo este continuum, com o seu pólo terapêutico e o seu pólo judiciário,
todo este casamento institutional, responde a quê? Ora bem, ao perigo." ["En fait, tout
ce continuum, qui à son pôle thérapeutique et son pôle judiciaire, toute cette mixité
institutionnelle, répond à quoi? Eh bien, au danger."] M . Foucault, Les Anormaux,
p. 32.
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RÉSUMÉ