Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
C
omo integrar oficina e criação de um espe- de todos os sistemas significantes usados na re-
táculo? Na formação do professor de tea- presentação e cujo arranjo e interação formam
tro, esta questão aparece sempre que pen- a encenação” (Pavis, 1999, p. 409), nos interro-
samos o desenvolvimento não só da sua gamos sobre como proceder na condução de um
competência pedagógica para o exercício trabalho sem cair nos extremos da criação cole-
de oficinas com iniciantes, como também da tiva ou da centralização das decisões na figura
sua competência artística para a elaboração do de um diretor e/ou dramaturgo. Faz-se neces-
discurso cênico. Sendo assim, se entendermos sária a busca de procedimentos que permitam
que o professor deva saber encenar, tendo con- um equilíbrio entre três possibilidades de au-
dições de conduzir, sempre que for necessário, torias desse discurso a ser posto em cena, ou
um grupo de iniciantes ou atores desde a defi- seja, que possam equacionar a criação do ator,
nição do tema e do universo da ficção até o do diretor e do escritor na tessitura do aconte-
acontecimento teatral, nos deparamos também cimento teatral.
com a questão das diversas possibilidades de cri- Iniciamos esse artigo com uma reflexão
ação em dramaturgia, por parte do ator e do sobre o mestre-encenador como uma possibili-
iniciante. dade que se apresenta na formação do professor
Se o professor pretende que a elaboração de teatro, para, em seguida, defender a busca de
do discurso cênico aconteça de forma coletiva, práticas da encenação que estimulem a contri-
com os participantes podendo colaborar efeti- buição dos iniciantes e atores como dramatur-
vamente nas decisões relativas à dramaturgia, gos. Como ilustração, destacamos procedimen-
surge a preocupação de articular o seu posicio- tos que estimularam a participação dos atores
namento artístico com os desejos estéticos do na elaboração do texto do espetáculo resultante
grupo. Assim, na construção do texto espetacu- do experimento1 realizado durante nossa pes-
lar ou texto cênico, entendido como “a relação quisa de mestrado (Martins, 2001).
Marcos Bulhões Martins é encenador e professor; mestre em Artes pela ECA-USP; foi assistente de
direção de Antônio Araújo em Apocalipse 1,11 e encenador dos espetáculos 1999, em São Paulo, e
Esperando Godot, em Natal; coordena o Laboratório de Encenação Teatral da UFRN.
1 Utilizamos este termo no sentido resumido por Koudela : “Brecht utiliza os termos Erlebnis (experiência) e
Experiment (experimento). [...] A diferenciação estabelecida por Brecht para o conceito de aprendiza-
gem insinua uma visão crítica do princípio pedagógico learning by doing, que se limita a expor o aluno
240
O mestre-encenador e o ator como dramaturgo
a uma situação de aprendizagem, sem que haja uma problematização do objeto a ser aprendido. Brecht
refere-se a elementos de comentário que devem ser introduzidos na experiência. Ou seja, a reflexão deve
conduzir o processo de aprendizagem, transformado, então, em experimento.” ( Koudela, 1996, p. 103)
241
sala preta
Carlos Nereu, em Natal; o Teatro-Escola Piolin, por Paulo Freire: partir do respeito ao universo
de Luís Carlos Vasconcelos, na Paraíba; as mon- do grupo, estimulando a apreensão de novos
tagens com iniciantes coordenadas por João das enfoques e práticas, pois é através do diálogo
Neves, na Amazônia; o Teatro Vento Forte, de que o indivíduo constrói o conhecimento e ava-
Ilo Krugli; e as experimentações com estudan- lia seu aprendizado.
tes universitários efetivadas por diretores como Essa abordagem do aluno e do professor
Márcio Aurélio, dentre outros. como pesquisadores tem seu fundamento tea-
Para esses artistas, a pedagogia não é vista tral em recomendações de diversos encenadores,
como atividade ‘paralela’ à prática cênica, mas como Brecht e Peter Brook, quando afirmam
sim uma necessidade inerente à sua atuação. que o encenador não deve entender por ensaio
Cada espetáculo desses diretores impõe proble- a submissão àquilo que já está estabelecido an-
mas diferentes, gerando um programa de traba- teriormente, mas sim como uma experimenta-
lho particular, considerado como um elemento ção de diferentes possibilidades de configuração
capaz de fazer progredir a linguagem cênica. das cenas. Cabe ao coordenador descartar as so-
Desse ponto de vista, as verdadeiras experiênci- luções fáceis e desvendar crises que promovam
as teatrais que subsistirão no futuro e irão influ- novas descobertas, sem receio de reconhecer que
enciar o teatro estão ligadas a processos peda- nem sempre conhece a solução dos problemas
gógicos. Enfim, a pedagogia como um ato que surgem. A confiança que os participantes
criativo é uma realização da necessidade de cri- depositam nele é resultante do fato de que ele é
ar uma cultura teatral, uma dimensão do teatro capaz de decifrar aquilo que não é a solução. Sen-
“cujos espetáculos somente satisfazem parcial- do assim, o encenador deve utilizar os mais va-
mente, e que a imaginação traduz em tensão vi- riados estímulos, provocando a multiplicidade
tal” (Cruciani, 1995, p. 28). de pontos de vista, estimulando novas experiên-
Na formação do professor de teatro, a en- cias e a atitude de pesquisa dos participantes.
cenação pode ser vista como um experimento Neste sentido, preferimos a expressão
coletivo de investigação artística sobre a nature- mestre-encenador. Optamos pela palavra mes-
za humana, no qual os atores e demais partici- tre, no sentido similar ao do mestre-de-obras,
pantes colaboram criticamente na construção que além de ser um bom artífice da construção,
do texto espetacular. Nesse tipo de encenação deve saber liderar e administrar uma equipe, as-
que se desenvolve através de oficinas, faz-se ne- sim como do mestre-marceneiro, que além de
cessário que o coordenador domine um conjun- inventar soluções criativas, estimula o aprendi-
to de competências pedagógicas que viabilizem zado dos iniciantes. Optamos pela inversão do
a condução do grupo, desde a escolha do tema binômio, com o aspecto pedagógico vindo an-
até a efetivação do acontecimento cênico e sua tes do artístico, tendo em vista o nosso enfoque:
análise. para o mestre-encenador, proporcionar a aqui-
Neste sentido, o desenvolvimento do sição do conhecimento e criar constituem o
conceito de mestre-encenador é fundamental em mesmo caminho.
nossa abordagem, pois ilumina o perfil do pro- Sendo assim, consideramos que uma das
fissional para cuja prática e formação pretende- opções para a formação do professor de teatro é
mos contribuir; trata-se de uma tradução para a perspectiva do mestre-encenador, entendido
o conceito metteur-en-scéne-pédagogue. Evitamos aqui como aquele que busca realizar a represen-
expressões como “diretor-professor”, “diretor- tação sem quebrar a continuidade da oficina,
pedagogo”, “professor-diretor”, que em língua mantendo o caráter coletivo do trabalho e o res-
portuguesa soam por demais diretivos. O obje- peito ao grupo.
tivo do mestre-encenador é o exercício de uma
didática não depositária, no sentido atribuído
242
O mestre-encenador e o ator como dramaturgo
2 O nosso enfoque de caráter lúdico do teatro apresenta-se como uma continuidade das investigações de
Ingrid Koudela e Maria Lúcia Pupo, na medida em que sua formulação parte de elementos do theater
game de Viola Spolin, do jeu dramatique de Jean-Pierre Ryngaert e do theater spiel de Bertolt Brecht.
3 As quatro oficinas ocorreram entre outubro de 1998 e junho de 1999, durante nosso curso de mestrado
sob a orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia Pupo.
243
sala preta
tema que servisse para nortear uma futura sele- Na quarta oficina realizamos o percurso
ção de textos. Os procedimentos utilizados fo- do roteiro ao espetáculo, através de sucessivas re-
ram inspirados na noção de espaço como indutor tomadas de jogo. A partir do conhecimento que
de jogo, descrita por Ryngaert (1977, 1985), a tivemos de abordagens lúdicas nas quais os tex-
saber: o jogo no espaço real, o jogo no espaço tos são ponto de partida, sem que as retomadas
transformado pelo ator e, finalmente, o jogo no de jogo acarretem a proposição de novos textos
espaço transformado com o auxílio de textos. A – como as de Jean-Pierre Ryngaert, Reiner Stein-
diversidade dos locais utilizados permitiu a mu- weg, Ingrid Koudela, Maria Lúcia Pupo, Baune
dança da visão que o grupo tinha sobre o seu e Grosjean –, propusemos novos enfoques. Ini-
discurso teatral. ciamos pelo jogo teatral sem texto e somente a
O passo seguinte foi pedir aos atores que partir de seus resultados selecionamos fragmen-
trouxessem recortes de textos literários e ima- tos que servissem como novos elementos a se-
gens, que foram apresentados pelo grupo em rem incorporados. O novo texto funcionava
um seminário, tendo em vista a montagem do como elemento de ruptura com a cena formu-
espetáculo. Esse procedimento proporcionou a lada pelo grupo, instigando-o a outras elabora-
seleção de alguns textos e imagens posteriormente ções. O confronto gradual do grupo com dife-
utilizados pelo encenador como ponto de partida rentes textos de autores diversos, através das
de jogos. Um acervo comum de textos perma- retomadas de jogo, foi comprovado como um
neceu à disposição de todos os participantes. dos caminhos viáveis para a elaboração da dra-
O jogo com fragmentos de textos literá- maturgia. Além dos procedimentos citados, des-
rios permitiu encontrar os principais aspectos tacamos outras modalidades utilizadas:
da estrutura dramatúrgica do espetáculo, funci- 1) avaliação da dramaturgia resultante dos
onando como catalisador de imagens cênicas. jogos teatrais;
Desta forma, o grupo ultrapassou os limites de 2) leitura de textos narrativos e adapta-
seu próprio universo imaginário, defrontando- ção para a forma dramática;
se com o pensamento dos escritores, experimen- 3) proposição e seleção de textos literári-
tando assim diversas formas de apropriação crí- os narrativos e dramáticos, como ponto de par-
tica dos textos de ficção. Os textos apresentaram tida do ator para a construção de personagens;
importantes problemas de atuação e de confi- 4) pesquisa de novos fragmentos de texto
guração cênica que estimularam o debate. Pro- a serem incorporados às falas dos personagens e
curando incentivar diferentes soluções para es- ao roteiro;
tes problemas, as avaliações examinaram 5) leitura de romances e peças teatrais, no
também a estruturação daquilo que efetivamen- intuito de os atores selecionarem recortes de tex-
te podíamos perceber em cena. to para os jogos;
A terceira oficina foi dedicada à configu- 6) leitura de texto narrativo tendo em vis-
ração do roteiro. Iniciamos pela análise coletiva ta a seleção de expressões a serem utilizadas
de gravações em vídeo das cenas improvisadas, como material de jogo, mesclada com o impro-
tendo em vista a redação, pelos atores, de pro- viso dos atores.
postas de roteiros para o espetáculo, que foram Como resultado dessas quatro oficinas foi
discutidas coletivamente. O encenador redigiu apresentado o espetáculo 1999, no qual o pú-
então um primeiro roteiro, estruturado a partir blico percorre dez estações cênicas, acompa-
de textos de Italo Calvino, José Saramago e Cla- nhando a trajetória da protagonista, desde o seu
rice Lispector, que passou por várias transforma- nascimento até o momento do seu confronto
ções. Novas edições foram sendo elaboradas ao com a morte. O caminho percorrido pelo pú-
longo do percurso, incluindo textos literários de blico iniciou-se no hall do Teatro-Laboratório
outros autores e a contribuição dos atores. da USP, passando por um de seus palcos, saindo
244
O mestre-encenador e o ator como dramaturgo
pela porta dos fundos e visitando vários pontos despersonalizando o debate. A reimpressão das
da praça central da cidade universitária – inclu- várias versões do roteiro proporcionou uma no-
indo a pedreira, uma região escura, um espelho ção geral do discurso e evitou o isolamento en-
d’água, uma ponte e um pátio – até retornar ao tre os participantes. Uma das modalidades que
espaço fechado de uma sala. mereceu maior estudo foi a leitura de romances
e peças teatrais, no intuito de selecionar frag-
A pesquisa em movimento mentos para o jogo; a partir daí, a apropriação
e rearticulação de palavras e expressões deran
A trajetória descrita até aqui nos permitiu cons- origem a um novo texto. A articulação entre o
truir algumas reflexões, em nada conclusivas. jogo teatral a partir do espaço e o jogo com frag-
Ressaltamos que o equilíbrio entre a pesquisa mentos de textos proporcionou resultados além
do encenador e o pensar coletivo da dramatur- daqueles previstos.
gia nem sempre é fácil de ser conseguido. Per- Ao final, percebemos também que pode-
cebemos que não se trata de o encenador servir ríamos melhorar os meios de produção de tex-
apenas para organizar, de forma cênica, os inte- to. Consideramos que os meios artesanais de
resses do grupo. Torna-se necessário apontar as que dispusemos, como o acervo de textos em
contradições entre a racionalização do discurso papel, os roteiros escritos à mão, as propostas
e o conteúdo das improvisações, estimulando em papel coladas em roteiros fotocopiados, po-
diferentes visões sobre o mesmo objeto. Desta deriam ser substituídos por ferramentas mais
maneira, o mestre-encenador necessita desafiar adequadas. Desta forma, poderemos ainda pen-
os padrões de comportamento cênico inerentes sar na utilização dos recursos da Internet como
a cada um, assumindo o seu papel de provoca- instrumento de articulação das informações em
dor da ampliação do repertório dos participan- um processo de dramaturgia desta natureza. O
tes, porém mantendo sempre uma atitude críti- hipertexto ficaria aberto às contribuições de to-
ca quanto às suas intervenções. dos os participantes, podendo conectar frag-
Um dos problemas decorrentes deste tipo mentos de textos literários, imagens e sons, pos-
de abordagem é o sentimento de posse em rela- sibilitando a publicação das várias versões de
ção ao personagem. Após certo tempo, alguns roteiros e agilizando o acesso à totalidade das
atores podem se incomodar com a troca de pa- informações.
péis, mesmo quando necessárias à encenação. Após a conclusão desta pesquisa de mes-
Nesses momentos, percebemos a importância trado, estamos desenvolvendo atualmente, no
do estímulo ao posicionamento do ator como âmbito do Laboratório de Encenação do curso
co-autor da encenação. Cada proposta de solu- de Licenciatura em Artes Cênicas da UFRN,
ção cênica, sintetizada na voz do encenador, foi um programa de orientação aos futuros profes-
testada sob a forma de jogo e avaliada por todos sores, voltado para o aprendizado da encenação.
os participantes, recebendo novas sugestões que Nele, os alunos desenvolvem experimentos de
respondessem à pergunta: “Como poderíamos encenação em diferentes contextos sociais, que
melhorar este jogo?” Não houve votação para envolvem grupos de idosos, alunos da escola
escolha da melhor proposta e a decisão final so- pública e privada, bailarinos e atores, dentre
bre cada cena cabia ao encenador. Esta regra evi- outros. Ao longo de três semestres, os alunos
tou polêmicas desnecessárias. planejam, coordenam e analisam suas oficinas.
A colagem de recortes de textos estimu- É interessante notar que nestes últimos dois
lou a capacidade de seleção e de elaboração de anos, uma parcela significativa dos alunos tem
metáforas. As sugestões feitas por escrito para prosseguido com seus trabalhos para além dos
alteração do roteiro permitiram a discussão das limites da disciplina, seja através da apresentação
propostas sem que sua autoria fosse identificada, de suas conclusões em congressos de iniciação
245
sala preta
científica, seja, em menor escala, sob a forma teatro. Quando pensamos em sua continuidade,
de temporadas de espetáculos no teatro. vislumbramos contribuir para a formulação de
Os resultados da pesquisa discutida neste práticas que não dissociem o aprendizado da
trabalho indicam a necessidade de aprofun- linguagem das práticas artísticas contemporâ-
damento e sistematização de abordagens metodo- neas e possam abrir espaços para outras funções
lógicas vinculadas ao mestre-encenador e ao ator sociais e poéticas do teatro.
como dramaturgo, no âmbito da pedagogia do
Referências bibliográficas
BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A Arte secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral.
Campinas / São Paulo: Hucitec / Unicamp, 1995.
BORIE, Monique. Enseignement et création, un même chemin. In: Le Metteur en scène en pédago-
gue. Paris: Actes Sud/Théâtre Nacional de Chaillot, 1988. p. 127-33.
CRUCIANI, Fabrizio. Aprendizagem: exemplos ocidentais. In: BARBA, Eugênio; SAVARESE,
Nicola. A Arte secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas / São Paulo: Huci-
tec / Unicamp, 1995.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.
PICON-VALLIN, Béatrice. Stanislavsk et Meyerhold, metteurs en scène-pédagogues. In: Le met-
teur en scène en pedagogue, Actes Sud / Théâtre National de Chaillot, 1987, L’Art du théâtre n.
8. p. 104-10.
RYNGAERT, Jean Pierre. Le jeu dramatique en milieu scolaire. Paris: Cedic, 1977.
_______. Jouer, représenter. Paris: Cedic, 1985.
246