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Selvagem Como o Vento

A Wild Wind
Evelyn A. Crowe

Super Sabrina 089


Um terrível segredo se escondia nas lembranças que Shannon pouco a
pouco resgatava
Shannon percorreu em silêncio o acampamento abandonado, esforçando se por
lembrar. Estivera ali, naquele lugar gelado à beira do desfiladeiro, mas sua memória se
recusava a voltar. O que teria acontecido com ela naquele dia fatídico? Como a pedir
socorro, olhou para Ash, que a observava a distância. Mas ele não poderia ajudá-la. Nem
mesmo o amor de Ash poderia ajudá-la agora.
Foi então que o vento recomeçou, como um longo e doloroso lamento, e a cena
principiou a clarear em sua mente: Dean, seu marido, com o rosto transtornado de ódio,
tentava matá-la, jurando que jamais a deixaria correr para os braços de Ash...

Doação: Valeria
Digitalização: Joyce
Revisão: Alice Akeru
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 2

CAPÍTULO I

— Ela voltou!
O anúncio foi ouvido dentro do Cattleman's Café em Bartlet, Montana, antes mesmo
que a porta se abrisse para dar entrada ao homem que trazia a novidade. Eram seis horas
da manhã e poucos clientes espalhavam-se pelas mesas, tomando café e conversando.
Todos levantaram os olhos ao ver Chester Fawnsworth entrar no bar e fechar a porta atrás
de si.
— Ela está de volta! — ele repetiu.
— Quem? — uma voz feminina cheia de curiosidade perguntou de cozinha.
— Shannon! Shannon voltou!
Chester colocou um pedaço de tabaco na boca e começou a mascá-lo. De repente,
parou e seu olhar vibrante percorreu o aposento à procura da proprietária do café. Ao vê-
la, fez uma careta e arriscou um sorriso.
Stella Hopkins, com a testa franzida, fitou o antigo cliente e, devagar, começou a
andar na direção dele, ao longo do extenso balcão de madeira.
Ela adorava aquele lugar e, às vezes, as lembranças de seus pais eram tão vívidas que
quase podia vê-los atrás do balcão. Sem dúvida havia algumas recordações ruins, mas o
trabalho de conduzir o Cattleman´s Café só lhe deixava tempo para reviver os momentos
mais felizes. O velho bar destoava do resto da cidade, modernizada e remodelada ao longo
dos anos, mas Stella sentia um orgulho indescritível de seu estabelecimento. Gostava do
espelho que ocupava uma parede inteira e das mesas de madeira cobertas com impecáveis
toalhas em xadrez vermelho e branco.
Os fregueses mais velhos chegavam cedo para um café, torradas e fofocas. Os mais
jovens vinham depois da escola e o lugar fervilhava com músicas animadas enquanto eles
comiam hambúrgueres e tomavam refrigerantes. As noites eram mais tranquilas, exceto
nos sábados em que algum grupo musical se apresentava na boate da cidade. Então,
embora normalmente fechasse às dez horas, Stella deixava o bar aberto até de madrugada
para que todos tivessem onde encontrar comida e café.
— Chester, quantas vezes por dia você vem aqui tomar uma xícara de café? — Ela
apertou os lábios vermelhos de batom, tentando demonstrar desaprovação.
— Você sabe, todas as manhãs nos últimos vinte anos. — E enfiando as mãos grossas
de vaqueiro nos bolsos da jaqueta de brim, fitou-a com ar sério. — Mas ouça, Stella...
Stella encostou-se no balcão, divertindo-se ao observar a inquietação do homem.
Pela maneira como mudava o apoio de um pé para o outro e esfregava as mãos com
ansiedade era evidente que Chester tinha uma grande novidade para contar. Ela adorava
provocar o velho conhecido e resolveu retardar-lhe um pouco o prazer de espalhar a notícia
que trazia com tanto entusiasmo.
— E quantas vezes já lhe disse que não é permitido mascar fumo dentro do café? —
perguntou, autoritária. Chester olhou em volta disfarçadamente, para ver se alguém
prestava atenção na cena. Stella, irredutível, esticou o braço e apontou para a porta. — Vá
lá fora livrar-se dessa porcaria e depois volte para tomar seu café.
— Nazista! — Chester resmungou, porém fez como Stella mandou. Em outra ocasião
talvez houvesse discutido, mas aquela manhã era especial e ele não podia perder tempo.
Suas novidades iriam virar a cidade de cabeça para baixo! Mal ouvira a notícia, correra
para o local mais próximo onde sabia encontrar uma audiência atenta. Mas logo naquele
momento Stella resolvera ser implicante. Mulheres! Sempre haviam sido a perdição de sua
vida.
Chester cuspiu o último pedaço de tabaco na lata de lixo na calçada e murmurou um
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palavrão para dissipar a contrariedade. Antes de retornar ao bar, lançou um olhar para as
montanhas escarpadas, ao norte. Nuvens escuras começavam a se juntar, cobrindo os picos
mais altos. Chester sabia bem que aquilo era sinal de uma tempestade a caminho de
Bartlet. Suas articulações doloridas prenunciavam uma nevasca bem pior do que o
noticiário da televisão havia previsto.
Porém, coisas mais interessantes lhe ocupavam a mente naquele instante. Havia
reparado em Ash Bartlet sentado ao fundo do Cattleman's e queria ver a expressão do rosto
dele quando ouvisse a notícia.
Chester empurrou a porta e entrou sorrindo, certo de que não teria mais
interrupções. Acomodou-se em um banco junto ao balcão e agradeceu a Stella pela xícara
de café fumegante que se encontrava à espera. Assoprou um pouco o líquido quente antes
de levá-lo à boca e tomar de um só gole. Baixou a xícara ruidosamente sobre o pires e
olhou decidido para a proprietária.
— Você se lembra da menina Reed, não é, Stella? — Ele não lhe deu tempo de
responder, sabendo que ela nunca se esquecia de ninguém. Além disso, não queria
interferência enquanto se deleitava em contar a novidade. — Shannon Reed, a menina que
corria por estas ruas com Ash Bartlet e Dean Wayne. Na certa você pensou que ela não
teria mais coragem de voltar para cá, mesmo depois de dez anos que ela e aquele rapaz
Dean fugiram para se casar, certo? — Chester fez uma pausa e olhou em volta, satisfeito
por merecer a atenção de todos os presentes. — É claro que depois de fazer o que fez, ela
nunca mais seria benvinda por aqui. E nem aquele marido dela. Vou lhe dizer uma coisa,
Stella: uma mulher, por mais especial que seja, não pode deliberadamente matar um
cavalo de corrida no qual um homem colocou todas as esperanças de sua fazenda,
despedaçar-lhe o coração e depois fugir com o melhor amigo dele. Se bem que Ash deve ter
respirado com alívio quando recebemos as notícias da vida desregrada que ela estava
levando na Europa.
Chester sacudiu a cabeça com expressão de desgosto e sentiu a tensão crescer na
atmosfera do bar. Fora aquele mesmo o efeito que procurara; os Bartlet precisavam
aprender a não ser tão cheios de pose. Talvez na próxima vez em que fosse pedir um
emprego na fazenda Barra B não mais o recusassem sob a alegação de que ele não
conseguia manter a boca fechada e o nariz fora da vida dos outros. Seria bem-feito para
aquela família arrogante se o caso fosse comentado pela cidade, pensou.
Com um movimento disfarçado, deu uma espiada para a mesa do fundo, mas desviou
o rosto ao deparar-se com os olhos verdes e resolutos de Ash. Segurou a xícara com força e
fitou Stella, reparando que ela o encarava com uma expressão zangada. Mesmo assim,
estava determinado a continuar a história.
— Todd Hands, da loja de artigos esportivos, me contou que Clyde Hanks contou a
Rex Smithers que Shannon e Dean vieram no avião deles alguns dias atrás para participar
de uma caçada de cabras monteses. O que será que Ash vai pensar de ter esse traste de
volta à cidade?
Stella inclinou-se para frente e puxou o pires das mãos de Chester com tanta raiva
que a xícara de café foi ao chão.
— Por que não pergunta a ele, seu velho encrenqueiro? Agora saia de meu bar e não
volte até eu lhe dar autorização para isso!
Ele resmungou e deixou o balcão, mas antes de sair virou-se para trás a tempo de ver
Ash Bartlet levantar-se devagar, pegar o chapéu acinzentado e colocá-lo na cabeça.
Ash enfiou a mão no bolso da calça e tirou uma nota de um dólar. Sentia todos os
olhares sobre si, mas isso não o incomodava, já estava acostumado.
Caminhou até o balcão, entregou o dinheiro a Stella e saiu sem dizer nada nem olhar
para os lados. Precisava desesperadamente de ar fresco. A notícia de Chester havia sido
como uma punhalada no coração. Respirou fundo, tentando acalmar a pulsação acelerada.
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Depois fechou os olhos por um instante, desejando bloquear as imagens que o nome dela
evocava, mas foi inútil: as lembranças estavam lá, gravadas para a eternidade. Enquanto
caminhava depressa pela calçada, mal enxergando por onde ia, a mesma velha pergunta
continuava a perturbar sua mente: "Por quê, Shannon? Por quê?"
Stella seguiu Ash até a porta, querendo dizer alguma coisa para aliviar a dor que lhe
notara nos olhos, mas não sabia que palavras usar para confortá-lo sem o deixar ainda
mais constrangido. Assim, acabou ficando na entrada do café, em silêncio, observando-o
enquanto se afastava. Ash tinha trinta e dois anos, um homem já, mas para Stella era difícil
deixar de vê-lo como o menino que conhecera pequeno. Também havia conhecido
Shannon e lhe dedicara uma grande afeição. Como não gostar daquela menina levada que
costumava alegrar as ruas da cidade com suas risadas e travessuras?
A vida não era justa, Stella pensou. Ash amara aquela garota desde que eram
crianças, todos sabiam disso. Ainda se lembrava de como os dois andavam juntos. Havia
também o outro menino, Dean Wayne. Os pequenos amigos eram conhecidos como "Os
Três Mosqueteiros". E justamente quando a cidade já se preparava para um casamento
entre Ash e Shannon, tudo fora por água abaixo.
Ela sacudiu a cabeça com tristeza. Há dez anos Ash não pronunciava os nomes de
Shannon e Dean. Mesmo quando outras pessoas mencionavam o nome da moça, não se via
um músculo mover-se no rosto dele. Era como um vulcão adormecido debaixo de uma
superfície de auto-controle e a idéia fez Stella estremecer. Pobre Shannon! Seria melhor se
ela e Dean ficassem fora do caminho de Ash. Dez anos era um longo tempo para armazenar
tanto ódio. Quem poderia ter imaginado que as coisas iriam acontecer daquela maneira?

Ash ligou o caminhão e contornou a praça central da cidade, onde se destacavam as


estátuas de bronze em tamanho natural dos fundadores da cidade, seus bisavós Zeb e Anna
Bartlet. Passou pela loja de rações para animais sem olhar para trás, deixando Cal Young,
um empregado da fazenda Barra B, com ar de espanto ao ver o veículo do patrão ir
embora.
Segurou com força o volante e seu pé parecia pesar uma tonelada sobre o acelerador.
Ela estava de volta! Uma sensação dolorosa lhe oprimia o peito, mas Ash respirou fundo e
prometeu a si próprio que não deixaria aquela notícia derrubá-lo.
De repente olhou em volta e percebeu que já entrara em uma das estradas da Barra
B. Dirigira até lá mecanicamente, quase sem prestar atenção no caminho. Deteve o
caminhão com uma brecada súbita, fazendo os pneus deslizarem no solo de terra úmida.
Então desceu do veículo resmungando baixinho e sentou-se sobre uma pedra.
Distraído, enfiou a mão no bolso interno da jaqueta e tirou um maço de cigarros
amassado e um isqueiro prateado. Colocou um cigarro entre os lábios e fechou as mãos em
concha em torno da chama do isqueiro para protegê-la do vento. Depois, tragou
profundamente e tossiu, desacostumado com a sensação da fumaça penetrando seus
pulmões. Olhou, então, para o cigarro preso entre os dedos trêmulos e franziu a testa. Não
podia deixar que ela lhe fizesse isso! Com um movimento raivoso, jogou o cigarro no chão e
o apagou sob a bota.
Shannon estava de volta!
Ash fechou os olhos, lutando contra a enxurrada de recordações que lhe invadiam a
mente. Shannon havia sido para ele como o sangue que lhe corria nas veias, como as
batidas de seu coração. Mesmo após dez anos não tinha esquecido o aroma suave do corpo
dela quando a tinha nos braços e nunca mais sentira uma satisfação tão completa como a
que ela lhe proporcionava. Shannon havia sido para ele o sol, as estrelas, o futuro. Então,
um dia, o destino virara aquele mundo perfeito de cabeça para baixo. O calor e o riso
transformaram-se de repente em frio e amargura.
Shannon estava de volta. E, com ela, o marido.
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Que atitude esperariam dele naquela situação? Devagar, Ash se levantou e retornou
ao caminhão. Durante o resto do caminho procurou não pensar em nada e só respirou com
um certo alívio ao avistar o sobrado que fora o lar de quatro gerações da família Bartlet e se
estendia soberano em meio a um gramado cercado de árvores frondosas.
Assim que estacionou, porém, viu o carro do delegado de polícia parado poucos
metros à frente e resmungou. Parecia que ainda não teria a paz que procurava. O delegado
Jeff Hall era um de seus melhores amigos, mas não se sentia disposto a receber visitas,
oficiais ou não. Começou a andar em direção à porta da frente do sobrado, ouvindo os
pedregulhos rangerem sob as botas, mas parou ao ouvir alguém chamá-lo. Era Bob Young,
um rapaz de dezesseis anos que trabalhava no rancho.
— Oi, patrão. Resolveu largar meu irmão na cidade? — Ele aproximou-se do
caminhão, olhou para a carroceria vazia e franziu a testa. — Onde está a ração?
Ash tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos loiros e ondulados. Então fitou as
montanhas distantes por um momento, imerso em pensamentos, antes de voltar-se para o
rapaz que o fitava com ar intrigado.
— Pegue o caminhão e vá buscar Cal na loja de rações. Não precisa ficar me olhando
desse jeito, eu apenas tive um contratempo e me esqueci dele! Vá, ande logo!
Bob subiu no caminhão e ligou o motor, mas antes de sair ainda lançou um olhar
desconfiado para Ash. Já tinha idade suficiente para saber que só uma mulher seria capaz
de fazer um homem distrair-se daquela maneira.
Logo que entrou no sobrado, Ash reconheceu o aroma de pão feito em casa; era
sábado, dia em que Bridget, sua cozinheira e governanta, exercia com especial habilidade
seus dotes culinários. Na sala de estar sobressaía-se também o perfume das flores que sua
meia-irmã Jenny havia trazido naquela manhã. Mas Ash não parou para apreciar os
odores. Ouviu vozes exaltadas no escritório e dirigiu-se imediatamente para lá.
O escritório era a parte mais antiga da casa, um aposento espaçoso com forro alto
cruzado por vigas de madeira. As principais peças de decoração eram os numerosos troféus
de caça e as cabeças empalhadas de animais que dividiam o espaço das paredes com vários
quadros a óleo. Ash usava o local para trabalhar, mas era impossível evitar que as pessoas
de casa acabassem se encontrando ali. Ele não as culpava por isso. Com sua enorme
lareira, os livros e as pinturas que representavam a longa história da família Bartlet e de
Montana, o escritório parecia atrair os moradores do sobrado como um imã.
Uma voz aguda interrompeu-lhe os pensamentos e trouxe sua atenção de volta à
cena que se desenrolava no escritório. Sua presença ainda não havia sido notada e, então,
Ash recostou-se ao batente da porta e ficou observando a expressão desamparada de Jeff
Hall enquanto Jenny lhe falava em tom autoritário, com os cabelos encaracolados jogados
para trás e o nariz arrebitado ainda mais levantado. Ao lado dela, a mãe se mantinha
quieta.
Jeff também ouvia em silêncio, com os olhos baixos. Então ele ergueu a cabeça e viu
o amigo, mas não teve tempo de dizer nada.
— Jenny! — Paula repreendeu a filha.
— Ora, mamãe, eu sei que estou com a razão.
— A questão não é essa, querida. — Paula Bartlet passou as mãos bem-cuidadas pelos
longos cabelos loiros em um gesto de evidente agitação. — Não adianta ficar pressionando
o pobre Jeff. Você já fez tudo o que podia para proteger Ash.
— Mas não é justo! — a moça reclamou, virando-se para a mãe com irritação. — Eu
me segurei a semana inteira e agora Jeff quer arruinar todos os meus esforços. — Ela
voltou a encarar o silencioso delegado e os olhos castanhos, que normalmente
demonstravam tanta afeição por Jeff, naquele momento soltavam faíscas. — Você não pode
contar a ele, Jeff.
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— Bobagem — Paula interferiu. — Ash é um adulto e sabe tomar conta de si mesmo.
— Obrigado, Paula — Ash falou, assustando a todos, exceto Jeff. — Eu sou capaz de
cuidar de minha vida.
Ash observou as três pessoas presentes e deteve o olhar no rosto do amigo,
reparando nas quatro pequenas cicatrizes ainda visíveis na face esquerda. Lembrava-se
com nitidez da repentina tempestade de neve e das quatro crianças procurando abrigo em
uma caverna. Quase podia ver o grande urso ferido ameaçando-os e Jeff colocando-se em
frente ao animal enquanto ele, Shannon e Dean tentavam desesperadamente destravar o
gatilho congelado do rifle. Jeff sempre fora determinado e nunca se acovardara diante do
perigo. Era estranho que se mostrasse tão tímido diante de Jenny.
— Sinto muito, Ash, mas preciso de sua ajuda — ele avisou.
— Sente por quê?
Jeff lançou um rápido olhar para as duas mulheres. Depois pigarreou, sem saber
como tocar no assunto.
— Shannon voltou com Dean. Chegaram de avião no domingo passado.
Ash baixou a cabeça e sorriu, sensibilizado com a preocupação dos amigos e da
família que haviam mantido o fato em segredo por seis dias. E ele de nada ficara sabendo,
pois não saíra da fazenda... até aquela manhã.
— Qual é o problema, Jeff? — indagou, sentando-se para ocultar uma súbita fraqueza
nas pernas. Tinha um forte pressentimento de que um encontro com Shannon seria
inevitável. — Vamos, Jeff, diga!
— A governanta da residência dos Wayne me telefonou logo ao amanhecer. Parece
que Shannon e Dean saíram para uma caçada na segunda-feira bem cedo, pretendendo
ficar fora no máximo por três ou quatro dias. Já faz seis e não há sinal deles. Mas o que a
deixou mesmo em pânico foi ter visto as duas mulas de Dean vagueando não muito longe
da casa deles. Um dos animais carregava apenas parte da bagagem com que partira e o
outro estava em péssimo estado, Ash. Parecia ter sido atacado por um puma. O capataz de
Dean esperou até eu dar uma olhada na mula antes de sacrificá-la. — Jeff fez uma pausa
antes de prosseguir. — Há uma boa possibilidade de Shannon e Dean também terem sido
feridos, Ash.
— E os cavalos de montaria? — Ash perguntou, esforçando-se para manter uma
expressão neutra, pois sabia que todos os olhares fixavam-se nele.
— Ainda não apareceram. Ou talvez não tenham tido a mesma sorte das mulas e
acabaram nas garras do puma. Sabe-se lá o que pode ter acontecido. — Ele fitou as
montanhas distantes através da janela. — Há uma tempestade a caminho, Ash. Você sabe
os perigos de ser pego de surpresa por uma nevasca. Gostaria que me cedesse alguns dos
seus homens para organizarmos uma equipe de busca. Sei que eles conhecem bem a área.
— E eu, Jeff? Não confia que eu possa ajudar a encontrá-los? Ou acha que, se os
achasse, poderia me sentir inclinado a atirar nos dois e deixá-los por lá mesmo?
— Ora, Ash, você sabe muito bem que nunca pensei isso — Jeff apressou-se a dizer,
constrangido com a situação. — Eu só achei que você iria preferir... bem, que não iria
querer vê-la outra vez.
— Tem razão — Ash respondeu, levantando-se tão bruscamente que todos levaram
um susto. — Não tenho a menor vontade de rever Shannon ou Dean, mas também não
quero que eles morram.
Uma exclamação abafada chamou a atenção de Ash e, pela primeira vez desde que
entrara no escritório, observou a madrasta e notou que ela, ao contrário do habitual,
aparentava cada um dos seus cinquenta e quatro anos. A pele clara de Paula mostrava-se
ainda mais pálida naquele dia e ela parecia abatida. Era óbvio que algo a perturbava e,
pensando melhor, andava esquisita desde que voltara da Europa com Jenny, há cerca de
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um mês. Ash se prometeu que daria mais atenção e esse problema assim que resolvesse o
caso de Shannon.
Jeff tossiu e Ash percebeu que todos esperavam ansiosos que ele comunicasse sua
decisão, portanto apressou-se a organizar as tarefas.
— Jenny, vá dizer a Tom que reúna oito homens e prepare os cavalos — pediu. Jenny
lançou um olhar zangado para Jeff e saiu do escritório. — Paula, por favor avise Bridget
para preparar uma cesta com mantimentos para dez homens para uns dois dias — ele
prosseguiu. Paula hesitou como se quisesse dizer alguma coisa, mas pareceu mudar de
ideia de repente e retirou-se do aposento. Ash voltou a atenção para Jeff. — Você quer
voltar à cidade para pegar seu cavalo ou está disposto a montar um dos meus?
— Depende de qual deles me queira dar, colega — o amigo respondeu, sorrindo. —
Certamente nenhum daqueles selvagens que vem tentando domesticar.
— Ora, Jeff, acha que eu faria isso com você?
— Quem sabe? É melhor eu verificar com Tom. Seu capataz é mais consciencioso
quanto a minha saúde do que você — ele brincou, caminhando para a porta. Antes de sair,
porém, parou e virou-se para Ash. — Eu sei que você ouviu todas as histórias que chegaram
aqui sobre a vida desregrada que Shannon estava levando na Europa, mas francamente,
Ash, nunca acreditei nesses boatos. Shannon nunca foi assim como estão dizendo. O que
vai fazer quando a vir?
— Não sei, Jeff. — Ele virou-se para a janela e fitou os picos das montanhas cobertos
de neve. Ela estava lá fora, em algum lugar. Talvez ferida, talvez... Não, não podia pensar
em morte. Shannon sabia se cuidar. Dean, porém, era um outro caso. Ele vivera em Bartlet
com a mãe apenas durante o período escolar. Passava as férias com o pai na França, ou
viajando pela Europa. Dean, ao contrário de Shannon, nunca enfrentara as dificuldades de
uma tempestade de neve em Montana e nunca dependera da terra para sobreviver.
Depois que Jeff se retirou, Ash saiu de perto da janela e parou diante de um mapa de
parede que mostrava o lado oeste de Montana, com os amplos limites da fazenda Barra B
claramente demarcados. Estudou-o com atenção por alguns momentos, depois fez um
gesto afirmativo com a cabeça e se afastou. Sabia.onde achar Shannon e Dean. Tinham de
estar em Devil's Leap, em uma cabana que a família dele sempre usava antes de se
aventurarem pelos territórios das cabras monteses.
Foi até a escrivaninha, sentou-se e abriu uma gaveta, remexendo o fundo dela até
tocar em um objeto de metal. Retirou-o de lá e observou que a moldura prateada do retrato
ficara escura e o vidro embaçado, mas ainda podia distinguir as feições da jovem
segurando as rédeas de um cavalo negro chamado Ashland's Fire. Fitou durante alguns
segundos aqueles olhos castanhos cheios de amor e alegria, tentando descobrir como
aquilo tudo havia acontecido. Mesmo após dez anos, ainda era difícil de acreditar.
Lembrava-se com nitidez da velha cabana onde haviam feito amor pela primeira vez.
Ironicamente, ali também tinham se amado pela última vez. Nunca se esqueceria do corpo
nu de Shannon sob o luar: os seios perfeitos, a cintura fina, as pernas firmes de tanto
cavalgar. Recordava-se do último beijo, cheio de paixão e promessas que nunca iriam se
cumprir. Em questão de horas, perdera tudo.
Ash engoliu em seco. A raiva substituiu a nostalgia, como já acontecera milhões de
vezes ao longo daqueles dez anos, e ele pegou o retrato e o atirou sobre a escrivaninha,
trincando o vidro.
Um dia, ela havia sido sua.

CAPÍTULO II
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Lufadas de neve atingiam Shannon pelas costas, empurrando-a montanha abaixo,
congelando-a através da camisa grossa de flanela e da calça jeans como se as roupas não
existissem. Ela olhou para cima e viu o céu nublado entre os ramos dos pinheiros altos,
enquanto uma nova rajada de vento a fazia tremer de frio.
Precisava encontrar abrigo.
— Ash, onde você está? Por que não vem me buscar? — gritou, abraçando-se a uma
árvore enquanto uma nova onda de tremores lhe agitava o corpo. — Happy, eu não tive
intenção. Por favor, Happy, me perdoe. Dean. — Então o som do nome do marido a trouxe
de volta à realidade. Apertando os olhos com força, ela tentou recordar-se de alguma coisa,
de algo que sabia ser importante. Porém, um instinto natural de sobrevivência lhe
bloqueava qualquer pensamento coerente, com exceção de um: tinha de encontrar abrigo.
A neve caía com mais intensidade ainda, cobrindo o solo com um tapete branco.
Shannon lambeu os lábios, sedenta, e olhou em torno de si.
— Onde estou? — gritou, mas a única resposta foi o barulho do vento e da neve.
Recostou a testa na árvore, com uma desesperante sensação de medo. Depois levantou a
cabeça para o céu e gritou a plenos pulmões, como se quisesse invocar alguma divindade.
— Ash!
Afastando-se da árvore, continuou a descer a encosta da montanha. Mal havia dado
uns vinte passos escorregou sobre uma pedra molhada e foi ao chão de costas, perdendo o
ar com o súbito contato com a neve gelada.
Quando por fim recuperou a respiração, cobriu os olhos com o braço e começou a
chorar. Estava perdida e o tornozelo latejava de dor. Mas não adiantava ficar ali entregue
ao desespero. Era preciso fazer algo para sair daquela situação. Precisava encontrar abrigo.
Shannon arrastou-se até a pedra mais próxima e usou-a como apoio para levantar-se
devagar. Experimentou o pé machucado e gemeu de dor.
— Droga, droga, droga! — exclamou, quase em soluços. Era preciso continuar.
Juntando toda a energia, jogou o peso do corpo sobre a perna boa e foi em frente. O chão
rochoso e coberto de neve tornava difícil cada passo; não demorou muito para que ela
tropeçasse e caísse outra vez. Permaneceu no chão por um momento, com a respiração
ofegante, desejando apenas desistir de tudo e dormir, mas não podia fazer isso. Ash nunca
a perdoaria se ela se mostrasse covarde. Ergueu-se sobre os cotovelos e olhou ao redor,
repentinamente furiosa com tudo o que lhe havia acontecido, não somente nos últimos
dias, mas nos últimos dez anos. Arrastou-se até uma árvore próxima, agarrou o ramo mais
baixo, pôs-se de pé e recomeçou a andar.
As rajadas de neve quase a cegavam, retardando sua marcha. Enquanto caminhava
com dificuldade de uma árvore para outra, tremendo mais a cada passo, o único
pensamento claro em sua mente era sair do vento e do frio. Ainda tinha consciência
bastante para perceber que começava a sofrer de hipotermia. As ondas de tremor duravam
cada vez mais, deixando-a fraca e abatida.
Iria morrer sem ver Ash novamente, sem lhe dizer que nunca deixara de amá-lo. Se
ao menos pudesse voltar no tempo e recuperar aqueles dez anos perdidos, aqueles dez anos
solitários sem a presença dele!
— Ash, lembre-se de como cada dia era uma nova aventura para nós; das risadas que
nos uniam em tudo o que fazíamos juntos. Até os maus momentos eram bons, não eram,
Ash? Não eram?
Seus pensamentos tornaram-se confusos e ela começou a vagar sem destino,
perdendo o rumo que havia traçado anteriormente. Uma nova lufada de neve no rosto a
trouxe de volta à realidade, mas era tarde demais. Perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu.
Então, antes que compreendesse o que estava acontecendo ou o perigo em que se
encontrava, começou a deslizar pela encosta rochosa da montanha, adquirindo maior
velocidade conforme o declive se acentuava. Tentou desesperadamente segurar em alguma
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coisa que detivesse sua queda vertiginosa. Sentia pedras e galhos raspando-lhe o corpo e se
angustiava com o medo de quebrar uma perna ou um braço ou de perder a consciência
batendo em algum obstáculo. Morreria congelada...
Aterrorizada, viu um enorme pinheiro bem na direção em que deslizava. Começou a
enfiar as mãos na neve na tentativa sôfrega de parar, mas não conseguiu desviar a rota.
Gritou de dor ao colidir com a árvore e então tudo se tornou escuro.
Momentos depois, Shannon recobrou a consciência, gemeu e abriu os olhos. Tentou
mover-se, mexendo cada membro, e respirou aliviada ao perceber que o único dano era o
tornozelo que havia torcido anteriormente. Uma fina camada de gelo cobria-lhe as roupas,
os cabelos estavam molhados de neve e emaranhados com gravetos. Então um novo
arrepio a agitou e ela começou a tremer tanto que mal conseguia respirar. Fazendo um
esforço para focalizar a visão embaçada, sacudiu a cabeça várias vezes e começou a chorar
quando avistou uma cabana de madeira a não mais que dez passos de distância. Talvez
fosse um sonho, um delírio, mas assim mesmo a esperança de salvar-se lhe deu forças para
se arrastar até a porta.
Conseguiu alcançar a maçaneta e entrou na cabana apoiada nos joelhos e nas mãos,
fechando a porta atrás de si.
— Ash — ela murmurou, com a voz embargada de emoção. Sentia no fundo do peito
que, de alguma maneira, ele a havia ajudado a chegar até aquele abrigo. Tentou firmar os
membros trêmulos para engatinhar até o buraco da lareira, mas após uns poucos passos a
cabeça começou a rodar, o corpo rendeu-se e ela desmaiou.

Ash puxou as rédeas do cavalo para controlar-lhe os movimentos nervosos e, então,


conferiu a hora no relógio de pulso. A equipe de busca havia trabalhado o dia todo e ainda
não obtivera resultados. Tinham investigado todo o vale e, depois, reagruparam-se para
discutir a melhor maneira de subir a difícil encosta de Devil's Leap em direção à cabana
que ficava do outro lado da montanha. Embora ficasse dentro da propriedade dos Bartlet,
era frequentemente utilizada pelas famílias vizinhas como lugar de pouso quando
precisavam aventurar-se por aqueles lados em busca de madeira ou caça. Ash tinha certeza
de que Shannon e Dean também haviam usado a cabana.
Um grosso tapete de neve cobria o chão, ocultando qualquer rastro que eles
pudessem ter deixado. Mas Ash conhecia Shannon e um pressentimento lhe dizia que, se
ela estivesse à procura de abrigo, iria se dirigir à cabana.
Puxou a gola do casaco para proteger melhor o pescoço e olhou para o céu, toldado
de nuvens escuras, anunciando a tempestade que se aproximava. Havia suspendido a
procura há uma hora e encontrado um abrigo para os homens passarem a noite. Porém, ele
não podia ficar com os outros nem tinha como explicar a Jeff a sensação de urgência que o
fazia prosseguir. Mesmo assim o amigo o compreendera e não tentara detê-lo; apenas
fizera com que Ash prometesse avisá-los com o sinal combinado se tivesse problemas ou se
encontrasse Shannon e Dean.
Encontrava-se a pouco menos de cem metros da cabana. Com um binóculo,
examinou a área e sentiu um arrepio de medo. O lugar parecia deserto. Não havia fumaça
saindo da chaminé, nem cavalos na cocheira, nem qualquer sinal de vida.
Fez a montaria avançar, procurando em volta por algum vestígio, uma pegada
humana, marcas de ferradura. Talvez estivessem dormindo e não houvessem notado que o
fogo se apagara. Porém, lá no fundo, Ash sabia que essa não era a resposta. Conhecia
Shannon muito bem, ela nunca mostraria tal negligência. A não ser que... a não ser que
estivesse ferida.
Quanto a Dean, era estúpido demais para lembrar de manter o fogo aceso. Aquele
sempre fora um motivo de discussões entre eles. Dean fora mimado e servido durante toda
a vida, sempre havia alguém em volta para executar as tarefas por ele ou para levar a culpa
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 10
quando cometia enganos.
Conforme se aproximava da construção rústica, via-se invadido por uma crescente
inquietude. Sabia que a culpa não era da neve que lhe açoitava o rosto sem cessar nem dos
movimentos instáveis do cavalo, mas das lembranças que voltavam a atormentá-lo.
Naquele lugar, ele e Shannon haviam encontrado alegria e amor.
Há dez anos Ash não via a cabana; sempre mandava um dos empregados quando era
preciso ir para aqueles lados recolher gado desgarrado. Era incrível como o lugar não havia
mudado, parecendo esperar pelo retorno deles. Se a cabana não fosse tão importante para
os trabalhos do rancho, teria mandado derrubá-la há muitos anos.
Já estava escuro quando Ash finalmente chegou. Desmontou, pegou uma lanterna e
levou o cavalo à cocheira. Depois dirigiu-se à porta da frente.
O vento zunia entre os galhos das árvores, muitos deles pendentes sob o peso da
neve. Ele colocou a mão na maçaneta e parou. Tinha de encarar a verdade: se não
estivessem lá, existiam grandes chances de estarem mortos. E surpreendeu-se com a dor
que aquele pensamento lhe causava. Seria possível que não tivesse esquecido Shannon?
Ash virou a maçaneta e abriu a porta. Um silêncio soturno o recepcionou na
escuridão do interior da cabana. Fechou os olhos e respirou fundo, tentando conter as
lágrimas. Apesar de já ser noite, preferia voltar às cegas para a companhia dos outros
homens no acampamento a ficar ali e enfrentar a dura verdade. Qualquer coisa seria
melhor do que passar longas horas dentro daquele aposento vazio, tão cheio de vozes do
passado. Agora, estava tudo acabado.
Ash deu um passo para trás e ia fechar a porta quando algo o deteve, paralisando-o.
Um murmúrio... o seu nome sussurrado. Seria alucinação ou apenas o ruído do vento
fazendo estripulias em sua mente perturbada? Levantou o facho da lanterna e cortou a
escuridão com a luz amarelada, examinando cada canto. Então uma tosse, humana e
feminina, quebrou o silêncio.
— Shannon? — ele chamou, entrando e fechando a porta. Não ouviu resposta a não
ser o eco da própria voz. A luz da lanterna captou um rastro de umidade no chão e ele o
seguiu até encontrar o corpo caído sobre uma poça d'água.
Por um instante ficou imóvel, observando-lhe o rosto pálido, os cílios escuros, a boca
suave, os lábios azulados do frio. No momento seguinte encontrava-se ajoelhado ao lado
dela, tão nervoso que deixou a lanterna cair e rolar pelo chão irregular da cabana.
Tocou-lhe o pescoço e sentiu uma pontada de medo. Shannon estava gelada e o pulso
rápido demais. Então percorreu-lhe o corpo com as mãos trêmulas, tentando perceber
sobre as roupas molhadas se havia algum osso quebrado.
— Você não vai morrer nas minhas mãos, Shannon. Está me ouvindo? Há muitas
coisas que precisa me responder e, desta vez, vai ficar e me encarar de frente. — Ele baixou
a cabeça para controlar a emoção, mas logo tornou a levantar-se para tomar as
providências necessárias.
Acendeu o fogo na lareira, colocou o colchão diante do calor das chamas e juntou os
cobertores que se encontravam no armário. Sabia o que deveria fazer em seguida, mas a
coragem parecia abandoná-lo. Como poderia tocá-la sem aconchegá-la nos braços?
Ash pegou a garrafa de conhaque que era mantida sempre ali para casos de
emergência e tomou um grande gole. O líquido desceu queimando sua garganta, mas ainda
sem conseguir aliviar-lhe a tensão. Então, sem se dar tempo para raciocinar, ajoelhou no
chão, virou Shannon de costas e começou a livrá-la rapidamente das roupas molhadas.
Shannon foi voltando a si devagar, com o contato de mãos sobre seu corpo, virando-
a, puxando-a. Algo terrível tocou-lhe de leve o nível da consciência, algo ruim demais para
que se lembrasse de fato, porém o horror que a invadia era real. Começou a lutar para
livrar-se da pessoa que a segurava, murmurando protestos incoerentes. De repente, abriu
os olhos e sua visão ainda embaçada focalizou-se em Ash.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 11
Foi como se os anos tivessem andado para trás, para uma época mais feliz. No estado
confuso em que se encontrava, não notou o ressentimento no rosto de Ash. Com toda a
força que lhe restava, apertou-se junto ao peito dele e enlaçou-lhe o pescoço com os braços.
— Calma, Shannon. Eu estou aqui. Agora você vai ficar bem.
Aquela voz tão familiar atingiu os sentidos de Shannon e ela nem chegou a discernir
as palavras. Só sabia que Ash a havia encontrado.
— Eu sabia, eu sabia... Ash? — ela murmurou, com um medo repentino quando seu
corpo começou a tremer com um frio cortante. Não queria morrer.
Ash envolveu-a nos cobertores e a acomodou sobre o colchão em frente à lareira.
Depois sentou-se ao lado dela, contemplando-a e tentando compreender o que vira há
pouco, quando a despira. Apenas uma coisa poderia explicar os hematomas escuros que
Shannon apresentava em torno do pescoço e não queria nem pensar no que poderia ter
acontecido a ela.
Com um movimento brusco, levantou-se, vestiu o casaco e saiu da cabana, deixando
a porta bater atrás de si. O vento lhe agitava os cabelos, e a neve, que já caía com menos
intensidade, depositava-se sobre seus cílios misturando-se com as lágrimas que ele lutava
para conter.
O ressentimento que guardava há anos explodia em seu peito. Não iria transformar-
se novamente em um sentimental estúpido. O que quer que houvesse acontecido com
Shannon era problema dela. Ele a levaria de volta para a fazenda, providenciaria para que
fosse bem cuidada e então sua obrigação estaria terminada. Achava-se ali apenas para
salvar a vida de um ser humano e faria isso por qualquer pessoa que se encontrasse em tal
apuro.
Ash foi até a cocheira e tirou o rifle da mochila. Então afastou-se do cavalo e deu três
tiros sucessivos para o alto. Contou até dez e tornou a disparar duas vezes. Aquele era o
sinal que combinara com Jeff para avisar que encontrara as pessoas que procuravam.
Mas ainda não estava tudo terminado! Pela primeira vez desde que chegara à cabana,
lembrou-se do marido de Shannon. Onde estaria Dean?

CAPÍTULO III

Ash entrou na cabana e ficou aliviado ao sentir que, por fim, o aposento havia se
aquecido. Deixou a mochila e o rifle no chão e foi ver como Shannon estava. Ela tremia sob
a pilha de cobertores e seus dentes rangiam ao murmurar palavras incompreensíveis. Era
evidente que os cobertores e o fogo não agiam com a rapidez necessária.
Ele a observou por alguns instantes e notou que Shannon delirava. Os movimentos
dela eram descoordenados e as mãos mexiam-se desajeitadas ao tentar puxar o cobertor
mais para cima. Era preciso fazer alguma coisa antes que ela entrasse em convulsão.
Ash acendeu o velho fogão a lenha e colocou conhaque junto com generosas colheres
de mel dentro de uma frigideira sobre o fogo. Quando a mistura esquentou, encheu meio
copo e levou para Shannon. Sentou-se na beirada do colchão e ficou um pouco confuso ao
notar que ela o fitava. Como pudera pensar que esqueceria aqueles olhos? Tinham uma cor
castanha peculiar, mas o que sempre o encantara mais era a maneira como escureciam até
quase se tornarem negros, quando faziam amor.
Sem dizer nada, ele colocou a cabeça de Shannon sobre o joelho e levou o copo aos
lábios dela.
Shannon fechou a boca e virou a cabeça ao sentir o cheiro forte da bebida.
— Shannon, beba.
— Não — ela gemeu.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 12
— Shannon, você precisa beber.
— Não posso.
— É para seu próprio bem — Ash insistiu, incomodado pela expressão distante com
que Shannon o fitava, como se não o visse bem. O que teria acontecido com ela?
— Não gosto... fico enjoada.
— Desculpe por não ter champanhe, mas agora não é o momento de ser exigente.
Beba! — Ash segurou-lhe o rosto, forçou-a a abrir a boca e despejou uma pequena
quantidade da mistura em seus lábios frios e trêmulos. — Vamos lá. Eu ouvi falar do tipo
de vida que você levava na Europa. Este pode ser um conhaque barato, mas talvez você
aprenda a gostar dele, do mesmo modo como parece ter aprendido a gostar de tantas
outras bebidas.
Shannon sentiu a boca em fogo, cuspiu imediatamente o líquido alcoólico, livrou a
cabeça das mãos de Ash e começou a tossir.
Aborrecido, ele desistiu de forçá-la e a observou em novo ataque de tremores. Então
levantou-se, tirou as botas e as roupas. Nu, enfiou-se sob os cobertores e, após um
momento de hesitação, puxou o corpo frio de Shannon para seus braços, tentando aquecê-
la. Enquanto ela se aconchegava junto ao peito dele, Ash insisti; em afirmar para si próprio
que tudo o que sentia era compaixão..

Uma dor de cabeça persistente forçou Shannon a acordar.


Cada centímetro de seu corpo doía como se tivesse sido espancada. Mas o medo que
a afligira tanto havia ido embora. Sentia-se aquecida, segura, em casa... com Ash. Estaria
sonhando? Não, tinha de ser verdade. No entanto, ainda se recusava a abrir os olhos, com
receio de que a realidade destruísse a fantasia que ela tecera para si própria nas últimas
horas. Apertou com força as pálpebras, rezando para que Ash de fato a estivesse
abraçando.
Aos poucos, tomou coragem para abrir os olhos devagar e suas feições se iluminaram
em um sorriso emocionado ao ver que o desejo se tornara realidade.
— Ash — murmurou, com a voz cheia de carinho.
Porém, aquele não era o rosto que ela deixara há dez anos e que vivia em seus sonhos
desde então. Os traços de adolescência haviam desaparecido dando lugar às linhas mais
rígidas de um homem maduro.
Com imensa tristeza, Shannon observou as feições dele, comparando-as com as que
tinha gravadas na memória. Quantas transformações ela perdera e por quantas talvez fosse
responsável. Era-lhe difícil constatar que aquela boca tão sensual se tornara séria demais
para a idade dele, permanecendo tensa até durante o sono.
Uma mecha loira havia caído sobre a testa de Ash e Shannon sorriu ao lembrar como
ele detestava aqueles cabelos encaracolados e como ela o provocava chamando-o de
"Cachinhos dourados". De repente, centenas de recordações começaram a afluir em sua
mente, sufocando-a em imagens dela e de Ash juntos. Lágrimas brotaram-lhe nos olhos e
escorreram pelo rosto. O inferno devia ser algo como o que ela passava: estar tão perto dele
e saber que, na verdade, tudo era apenas uma ilusão.
Mas ainda podia saborear as lembranças, a sensação familiar da pele dele roçando na
sua. Ash dormia a seu lado como sempre fizera e a segurava junto ao coração.
Aquelas mãos, a boca, o jeito de andar, os ombros largos, as pernas firmes... ela não
esquecera um único detalhe e nem o tempo conseguira arrefecer-lhe o desejo. Era como
acordar de repente e descobrir que tinha voltado ao passado. Só que não era bem assim.
Ela e Ash sempre tiveram o mesmo modo de pensar e Shannon sabia que ele nunca a
perdoaria pelo que tinha feito. Fitou-o com ternura e mordeu o lábio, deixando que as
lágrimas corressem livremente. Um dia, ele havia sido seu.
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A tempestade cessou durante a noite, deixando atrás de si um manto branco


cobrindo os arredores. Montes de neve se acumulavam de encontro às paredes da cabana e
o cavalo batia os cascos contra o chão da cocheira, impaciente por sua primeira refeição.
Dentro da cabana, o fogo havia se reduzido a cinzas incandescentes que irradiavam um
brilho dourado no aposento.
Shannon acordou com a sensação de estar sendo observada. Abriu os olhos e viu que
Ash a fitava, mas não conseguiu dizer nada. As palavras pareciam entaladas na garganta.
Ash evitava pensar na maneira como os seios dela se haviam apertado contra seu
peito ou como uma das pernas de Shannon tinha se insinuado entre as suas. Como se fosse
o acontecimento mais natural do mundo acordar e encontrá-la nos braços, ele pousou os
lábios de leve sobre os dela, saboreando devagar a doçura que há tanto não sentia. Depois,
num impulso quase selvagem, entreabriu a boca e aprofundou a carícia.
Shannon não esboçou qualquer resistência ao beijo. Fechou os olhos e retribuiu com
igual intensidade, apenas voltando a fitá-lo quando ele se afastou.
Ash tirou os braços dela de seu pescoço, afastou os cobertores e se levantou. Nem
uma ausência de dez anos era capaz de superar hábitos muito compartilhados, portanto
sua nudez não lhe representava embaraço. A dela, porém, era incômoda. Shannon sentou-
se na cama e os cobertores caíram até a cintura, revelando os belos e pequenos seios.
— Cubra-se — ele pediu, virando-se para pegar as roupas e vestir-se.
— Ash...
— Você teria me deixado ir em frente, não é? Nunca deixa que algo tão insignificante
quanto princípios a perturbe, certo? Será que o adultério virou uma coisa natural para
você? A propósito, Shannon, onde está seu marido? Onde está Dean? — Ele virou-se para
encará-la e seus olhos verdes mostraram-se duros e frios como duas esmeraldas. — O que
aconteceu com vocês, afinal?
A total falta de emoção no tom sarcástico de Ash fazia Shannon ter vontade de
chorar. Porém, foi a menção ao nome de Dean que lhe provocou a reação mais forte. Ela
ficou tão pálida que Ash deu um passo em sua direção, mas deteve-se antes de tocá-la e
repetiu a pergunta.
— Onde está Dean, Shannon?
— Eu não sei.
— O que aconteceu com você?
— Não sei. — A voz de Shannon era quase uni sussurro e ela olhava para Ash sem vê-
lo de falo. O vento começara de novo a ecoar em sua cabeça, apenas o vento e uma
sensação de raiva, uma repulsa imensa, ódio... e por fim uma rosa vermelho-sangue se
abrindo, suas pétalas se desdobrando em câmera lenta... despertando-lhe um terror
incontrolável...
Ela estremeceu diante dos fragmentos de imagens, distorcidos como um sonho, que
lhe assombravam a mente.
— Shannon. — Ash aproximou-se, segurou-a pelos ombros nus e a sacudiu
gentilmente. Como ela não respondia, sentou-se a seu lado e tomou-a nos braços. À luz do
dia, os hematomas no pescoço mostravam-se de forma mais nítida e era evidente que
haviam sido causados pelas mãos de um homem. Ele tocou as marcas mais escuras e
sacudiu a cabeça. Parecia que alguém tinha tentado estrangulá-la. — Foi Dean quem fez
isto, Shannon? Por favor, olhe para mim.
Ela trouxe os pensamentos de volta ao presente, desejando lembrar, mas ao mesmo
tempo temerosa do que poderia haver por trás do pesadelo. Trêmula, aconchegou-se junto
ao peito de Ash.
— Eu quero ir para casa — murmurou.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 14
— Dean ainda está aqui na montanha ou ele a deixou e desceu pelo outro lado?
— Por favor, Ash, me leve para casa.
— Eu vou levar, Shannon, mas... temos de saber o que houve com Dean.
— Eu não sei.
— Você tem que saber.
— Não, Ash. Eu não sei o que aconteceu com Dean. Não sei onde ele se encontra,
nem se está vivo ou morto. Ash, não me lembro de nada sobre esta viagem!
— Shannon, a vida de um homem pode estar em jogo. Sei que você está cansada e
dolorida, mas tem de se lembrar. — Ele baixou a cabeça, pensativo, e decidiu mudar de
tática. — Onde arrumou estas marcas? — indagou, tocando as manchas escuras em torno
do pescoço dela. — E estas? — Então seus dedos moveram-se para os ombros e para a parte
superior dos braços de Shannon. Ela estava com o corpo todo cheio de arranhões e
hematomas, mas aqueles que ele apontara certamente haviam sido feitos por mãos
humanas. — Você tem de me contar o que aconteceu.
— Eu não sei, eu não sei! — Shannon repetiu, aos soluços.
Para Ash era tão estranho ver Shannon chorar que a abraçou.
Não compreendia o que estava acontecendo. Afagava distraído os espessos cabelos
negros enquanto tentava decifrar o mistério. Se descobrisse que Dean, covarde como
sempre, a havia deixado na montanha para morrer, ele o mataria com a maior satisfação.
— Ouça, Shannon. Você tem de me explicar o que houve.
— Quem dera eu soubesse, Ash. Mas juro que não me lembro de nada. Por favor, me
leve para casa.
Ele sentiu o corpo trêmulo de Shannon junto ao seu e chegou à conclusão de que ela
não estava em condições nem de falar, quanto mais de explicar o que havia ocorrido. Era
preciso levá-la embora logo, antes que pegasse uma pneumonia. Quando se encontrasse
com Jeff, decidiriam o que fazer a respeito do desaparecimento de Dean.
Ash subiu no cavalo e o conduziu até a frente da cabana para pegar Shannon, que
esperava sentada nos degraus de entrada. Olhou para ela e viu-se invadido por uma súbita
onda de ternura. Ela estava apoiada no corrimão de madeira, enrolada em cobertores e
com um gorro vermelho cobrindo-lhe o rosto de forma que apenas os olhos ficavam
visíveis.
Ele soltou um dos pós do estribo, inclinou-se sobre a sela e segurou Shannon pela
cintura, puxando-a em seguida para acomodá-la à sua frente.
— Segure-se em meus braços — ele avisou, mexendo as rédeas para pôr o cavalo em
movimento. — Jeff e os homens estão em um abrigo a duas horas daqui, mas com toda
essa neve no chão é capaz que demoremos o dobro. Encoste-se em mim e tente descansar.
Shannon obedeceu, mas embora se sentisse aquecida, a mente recusava-se a
repousar. Nunca deveria ter voltado. Como deixara que Dean a obrigasse a voltar para
Montana? Por que, após dez anos de ausência deliberada, cedera à torturante insistência
para que ela o acompanhasse em uma de suas visitas trimestrais a Bartlet?
Bem no fundo, Shannon sabia a resposta: Ash. Não resistira mais à vontade de tornar
a vê-lo, ainda mais naquele momento em que seu casamento com Dean chegava ao fim. Ela
descobriu a boca e a respiração quente saiu em forma de uma nuvem de vapor no ar frio da
manhã.
— Ash, como vai Happy? Ele está bem?
— Seu avô está ótimo. Mais velho e um pouco mais lento, mas ativo como sempre.
Shannon lembrou-se com saudade do rosto sério de William Happy Reed. Com o
sangue de antigos nobres irlandeses correndo nas veias, ele era o maior conhecedor de
cavalos que se podia encontrar. Sua reputação havia se espalhado pelo mundo e vários
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membros da aristocracia européia levavam seus animais a Bartlet para que Happy os
tratasse e treinasse. Seu avô compreendia os cavalos, falava com eles, passava-lhes
reprimendas, enfim, amava-os. Portanto, era-lhe inconcebível que uma neta sua, criada de
acordo com seus princípios, pudesse cavalgar um cavalo magnífico como Ashland's Fire e
fazê-lo morrer.
— Happy fala de mim? — ela quis saber.
— Não.
— Acha que ele me deixará voltar para casa?
— Não sei, Shannon, mas... não acho muito provável. Primeiro vou levá-la até a
fazenda e chamar o dr. Henry para examiná-la. Depois iremos ver Happy.
Shannon fechou os olhos, sofrendo a dor de tantas lembranças. Como tudo pudera
mudar tanto de um momento para o outro? Como sua vida tão feliz viera a transformar-se
num pesadelo?
— E sua esposa, Ash? Ela não vai se importar por você me levar para a fazenda?
— Eu me divorciei há oito anos.
— Ah, sim — ela murmurou, disfarçando a surpresa. Dean havia adquirido uma
satisfação doentia em informá-la sobre o casamento de Ash, mas nunca mencionara o
divórcio.
— Talvez nós estivéssemos destinados a destruir as vidas de outras pessoas
juntamente com as nossas — Ash comentou com amargura.
Shannon não respondeu. Nunca deveria ter voltado depois de tanto tempo. Ela era
muito jovem na época em que tudo acontecera, talvez até imatura para seus dezessete
anos. Naquela ocasião, ainda acreditava na natureza humana e achava que só lhe
aconteceriam coisas boas na vida pelo fato de seu amor por Ash ser correspondido. Como
pudera ser tão ingênua?
Se ao menos sua vida houvesse sido diferente... Quem sabe se seu pai não tivesse
morrido no Vietnã, ou sua mãe no momento do parto; se ela não tivesse sido criada pelo
avô ou ele não se dedicasse tanto aos cavalos, talvez houvesse crescido menos
temperamental e independente. Nascera em uma fazenda modesta entre duas outras, as
maiores de Montana, Barra B e Rocking W. O destino a colocara entre os dois herdeiros,
Ash e Dean, e ela sempre fora a única menina num grupo de garotos. Talvez se não fosse
tão endiabrada nada houvesse acontecido dez anos atrás...

Era um verão quente e abafado; ela logo faria dezoito anos e se tornaria esposa de
Ash. Nunca em seus piores sonhos poderia ter previsto aquele dia que transformaria tudo
em pesadelo, alterando para sempre sua vida e as vidas das pessoas que amava...
— Não está zangado, não é, Dean? — Shannon indagou, um pouco intrigada com a
expressão séria do rapaz a seu lado.
— Estou magoado por você e Ash não terem me contado que estavam apaixonados.
— Aconteceu tão de repente, Dean. Nós só descobrimos alguns meses atrás. — Ela
virou-se de costas para que o amigo não percebesse a mentira. Seu olhar percorreu os
campos vizinhos e deteve-se em Ashland's Fire, o belo cavalo negro com o qual Ash tinha
grandes esperanças de vencer a corrida Triple Crown.
— Tem certeza, Shannon? Você ainda pode mudar de ideia e se casar comigo.
— Obrigada pela proposta, Dean, mas tenho certeza de meus sentimentos —
Shannon respondeu, sentindo-se mal com aquela conversa. Amava Ash há anos, mas ele
era muito fechado e não demonstrava emoções. Shannon mantivera seus sentimentos em
segredo, com medo de ser rejeitada. Mas um dia, quando ambos foram pegos de surpresa
por uma tempestade e procuravam abrigo na cabana, o amor reprimido explodira de
maneira inevitável.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 16
Dean encontrava-se na França visitando o pai, como fazia em todas as férias, e eles
decidiram não telefonar ao companheiro contando a boa nova. Shannon sabia que sempre
houvera uma competitividade velada entre os dois garotos, Quando se tornaram rapazes, a
competitividade transformara-se em rivalidade feroz e em geral era ela o pomo da
discórdia.Tudo o que Ash desejava, Dean também queria; e qualquer coisa que Ash tivesse,
Dean tentava tomar.
— Vocês iam me convidar para o casamento?
— Ah, Dean, não fale assim. Apenas Happy e o senador, pai de Ash, estarão aqui.
Paula e Jenny nem virão. Além disso, eu e Ash vamos passar a lua-de-mel na Europa e
íamos fazer uma surpresa a você. A viagem é o presente do senador.
— Você está grávida? — Dean indagou, fitando-a com amargura. — Mesmo que
esteja, eu ainda quero casar com você.
— Pare com isso, Dean! — Shannon exclamou, não suportando mais aquela conversa.
Talvez estivesse sendo injusta e ele realmente gostasse dela, mas Shannon no fundo
sempre soubera que Dean era um rapaz mimado e egoísta que só se interessava pelo que
não podia ter.
Ele virou-se para o pasto, fitando Ashland's Fire.
— O que este cavalo faz aqui? Pensei que estava sendo treinado pelo tio de Ash em
Kentucky. Há algo errado com a grande esperança dos Bartlet?
— Ele apenas distendeu um músculo e veio para cá recuperar-se. Agora já está
curado.
— Você o montou?
— Não.
— Tem medo?
— Claro que não! Não existe cavalo que eu não saiba cavalgar.
— Não sei, Shannon. Pelo que Ash contou, Ashland's Fire é muito veloz. Soube que
ele e o senador apostaram cada centavo que possuem nesse cavalo idiota. Tantas terras
produtivas e tão pouco dinheiro em caixa e eles resolvem jogar tudo fora, num cavalo!
— Parece que a França não ajudou nem um pouco a melhorar seu mau-humor — ela
comentou, puxando-lhe de leve o cabelo.
— Quer apostar uma última corrida antes que Ash a amarre? Você nunca mais será a
mesma Shannon. Nunca mais será livre. Vai virar uma chata de uma mulher casada.
— Nunca! — Shannon afirmou, com os olhos brilhando diante do desafio. Começou a
se afastar, mas Dean a chamou de volta.
— Você tem coragem de montar em Ashland's Fire e apostar uma corrida comigo?
— Não vou fazer isso, Dean.
— Medrosa! — ele a provocou.
— Não seja ridículo! Ash me disse para não montá-lo.
— E você sempre faz tudo que Ash diz? Parece que ele já conseguiu prender você e
nem se casaram ainda. Eu a desafio, Shannon — ele insistiu, sabendo que Shannon nunca
recusara um desafio. Daquela vez, porém, ela hesitava. — Você está com medo! — Dean
inclinou a cabeça para trás e começou a rir.
Shannon apertou os olhos, furiosa. Ele estava rindo dela!
Shannon despertou e, por um instante, ficou desorientada, com a sensação de estar
balançando para frente e para trás. Tinha o nariz frio e os olhos lacrimejavam. Então
percebeu que se encontrava sobre o cavalo, nos braços de Ash.
— Calma — ele advertiu, ajeitando-a sobre a sela.
Ela o observou, imaginando como os últimos dez anos teriam sido para ele. Durante
todo aquele tempo tentara esquecer o passado, mas parecia que o terrível pesadelo iria
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acompanhá-la pelo resto da vida.
Lembrava-se como se os anos não houvessem transcorrido: ela ia na dianteira,
exigindo toda a potência das longas pernas de Ashland's Fire. O vento agitava-lhe os
cabelos e arrancava lágrimas de seus olhos, mas prosseguiam a toda velocidade, ela e o
cavalo como um único corpo. Então, de repente, percebera um movimento e olhara para o
lado, vendo Dean quase a ultrapassá-la. Inclinara-se sobre o pescoço de Ashland's Fire e
murmurara um incentivo, esperando que ele voltasse a tomar a frente. Mas algo saíra
errado. Ela fora jogada para o ar e ouvira várias vozes gritando com desespero.
Pouco depois encontrava-se de pé ao lado de Ashland's Fire, que se debatia no chão.
Ela negava sua culpa aos gritos, o cavalo relinchava em agonia, Happy e Ash pediam um
revólver. Todas as pessoas da fazenda achavam-se lá: Paula e mesmo a pequena Jenny,
chorando ao presenciar a cena. E Dean, com uma expressão de pesar, mas um indisfarçável
brilho de satisfação nos olhos.
Ela nunca fora capaz de se lembrar muito bem do que acontecera depois de terem
sacrificado aquele belo animal. Começara então um pesadelo do qual não se livrara mais.
Porém, era tarde demais para tentar consertar o que havia feito.
Chegaram ao acampamento sob o sol do meio-dia. A camada superior da neve havia
derretido, deixando uma crosta de gelo que brilhava como um espelho. O cavalo andava
com dificuldade após o esforço de descer a montanha com a carga de duas pessoas.
O delegado foi o primeiro a avistá-los. Correu para encontrá-los e chamou os outros
homens, enquanto segurava a rédea do cavalo.
— Já estávamos ficando preocupados.
— Ajude-a a descer, Jeff — Ash pediu. — Minhas pernas não vão aguentar o peso.
Jeff tomou Shannon nos braços e os outros empregados auxiliaram Ash, que mal
conseguia andar depois das longas horas sobre a montaria.
— Você está bem? — Jeff indagou, ao ver o estado do amigo.
— Vou sobreviver. — Ele massageou as pernas amortecidas que, aos poucos, foram
recuperando a sensibilidade. Então olhou para os empregados com um sorriso cansado. —
Será que poderiam me arrumar um café quente?
Os homens se afastaram e Ash seguiu Jeff para dentro da barraca para vê-lo colocar
Shannon sobre uma cama e substituir os cobertores frios por outros mais aquecidos.
— Tudo bem, Shannon? — Jeff perguntou, afastando-lhe o gorro da cabeça.
— Oi, Jeff — ela murmurou, procurando Ash com o olhar entre os homens que se
aglomeravam na entrada da tenda. O delegado fez com que o grupo se dispersasse,
atribuindo tarefas aos empregados. Logo em seguida, Bob Young entrou com uma xícara
de café fumegante e Ash aproximou-se atrás dele, tomando a seu encargo a tarefa de
reanimar Shannon com a bebida quente.
— Você consegue segurar? — ele indagou, agachando-se ao lado da cama. — Beba
devagar, gole por gole. — Depois de certificar-se de que ela estava bem, Ash levantou-se e
fez um sinal para que Jeff o seguisse para fora da barraca. — Conseguiu entrar em contato
com a fazenda? — quis saber, quando se viu sozinho com o amigo.
— Conseguimos usar o rádio assim que a tempestade passou. Hoyt saiu de lá com o
caminhão por volta das nove horas da manhã. Não deve demorar para chegar aqui. O que
aconteceu no alto da montanha, Ash? Onde está Dean?
— Você não vai acreditar, mas ela não sabe.
— O quê?
— Ela não se lembra. Jeff, se ele a abandonou sozinha lá em cima, sou capaz de matá-
lo.
— Calma, Ash. Por que ele faria isso?
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 18
— Aquele covarde faria qualquer coisa para salvar a própria pele.
— Bem, vou ter de insistir com ela, Ash. Nós precisamos saber o que houve.
— Agora não. Ela ainda não está bem.
— Mas e se houver uma chance de ele ainda estar lá em cima... vivo?
— Se ele estiver lá em cima não vai estar vivo. Shannon sabe o que deve ser feito para
sobreviver e poderia cuidar dele. Sem ela, Dean não teria nenhuma chance. — Ash baixou a
cabeça e passou a mão pelos cabelos. — Aconteceu alguma coisa.
— Como assim?
— Você falou com o capataz de Dean? Sabe se ele apareceu por lá?
— Ainda não entrei em contato com Rocking W.
— Então faça isso agora.
Jeff retornou à barraca, chamou Bob e pediu a ele que contatasse a fazenda de Dean
pelo rádio. Depois voltou a falar com Ash.
— Agora me conte o que há de errado. Ela está ferida?
— Parece que torceu o tornozelo, mas acho que não há nenhuma fratura. Tem cortes
e hematomas pelo corpo. Conseguiu chegar até a cabana e eu a encontrei lá dentro,
inconsciente e quase congelada. Foi um milagre ela encontrar aquele lugar.
— Shannon sempre foi muito corajosa e determinada.
— Jeff, há mais uma coisa — Ash prosseguiu. — O pescoço dela está coberto de
hematomas. Acho que aquele canalha tentou estrangulá-la.
— O que é isso, Ash? Tem certeza?
— Vá dar uma olhada você mesmo. Talvez possa julgar esse tipo de coisa melhor que
eu.
O delegado fitou Ash em silêncio por um longo momento e, então, voltou a entrar na
barraca e agachou-se ao lado da cama de Shannon.
— Como vai indo?
— É bom tornar a vê-lo, Jeff — ela murmurou.
— Eu também estou contente por ver você. Sente-se melhor?
— Sim. Quer dizer, não muito. Estou dolorida.
— Eu sei. O caminhão está vindo e o dr. Henry estará à sua espera quando você
chegar à fazenda de Ash. Shannon, posso ver seu pescoço?
— Por quê? — ela indagou, sentindo-se subitamente amedrontada sem saber a razão.
— Onde está Ash? Eu preciso falar com ele — pediu, com a voz trêmula e fraca.
— Ash virá daqui a pouco. Agora deixe-me olhar o seu pescoço — Jeff insistiu.
Embora ainda intrigada com o pedido, Shannon baixou os cobertores. O delegado franziu a
testa ao examinar os hematomas; não havia dúvidas de que tinham sido produzidos por
mãos humanas. — Como isto aconteceu, Shannon?
— O quê? — Confusa, ela baixou o queixo como se quisesse ver do que Jeff estava
falando.
— Estes hematomas — ele explicou, vendo que Shannon levava a mão ao local
indicado e fazia uma expressão de dor. — Foi Dean quem fez isso? Conte-me o que
aconteceu, Shannon.
— Eu não sei, Jeff. Não me lembro de nada! — ela respondeu, com um olhar
aterrorizado. — O que está havendo comigo?
— Acalme-se. Você e Dean estavam caçando cabras monteses. Saíram de Rocking W
seis dias atrás. Foram atacados por algum puma? Uma das mulas retornou cheia de
mordidas.
— Eu... eu não sei.
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— Jeff, deixe-a descansar e venha aqui fora — Ash pediu, surgindo à entrada da
barraca. O delegado afagou os cabelos de Shannon, sorriu e retirou-se. Ash pegou-o pelo
braço e o fez afastar-se um pouco da tenda para que ela não pudesse ouvi-los. — Dean
ainda não apareceu.
— Ash, aqueles hematomas são profundos — Jeff comentou, ainda espantado com o
que vira. — O que aconteceu lá em cima na montanha não foi apenas uma briga de casal.
— Não, não foi.
— Ela está aterrorizada! Se Dean não aparecer, teremos que iniciar uma investigação.
— Sim.
— Ela poderia simplificar as coisas se nos contasse o que houve.
— Mas ela não pode.
— Ou não quer.
— Jeff, ele tentou matá-la, não é?
— É, parece que sim.

CAPÍTULO IV

A noite caía rapidamente, escurecendo a paisagem coberta de neve. O caminhão


parou junto à porta dos fundos do sobrado no momento em que os últimos raios de sol
apagavam-se atrás das montanhas. Ash desceu, tomou Shannon nos braços e retirou-a do
veículo. Jeff caminhou à frente deles e cumprimentou Paula, Jenny e o dr. Henry, que
haviam saído depressa da casa ao ouvir que o caminhão estacionara.
— Mamãe aprontou o quarto em frente ao meu — Jenny avisou, enquanto
acompanhava Ash para dentro.
— Obrigado, mas prefiro que ela fique perto de mim enquanto o dr. Henry não lhe
der alta.
Shannon olhou em volta, curiosa. A casa não havia mudado, mas as pessoas sim.
A idade não fizera mais do que intensificar a beleza fria e imaculada de Paula. Nunca
fora segredo para ninguém que ela se casara com o senador, pai de Ash, apenas para obter
uma boa posição na sociedade de Washington, segurança financeira para si própria e um
futuro garantido para sua filha pequena. Embora mais tarde viesse a descobrir que os
Bartlet eram ricos em terras mas pobres em dinheiro vivo, ainda assim desfrutava dos
benefícios de possuir prestígio social na cidade mais.poderosa dos Estados Unidos.
Quando Jenny tinha atingido a adolescência, Paula deixara claro que pretendia usar
a influência do senador para ajudar a filha a encontrar um marido rico e bem relacionado.
Todas as pessoas que conviviam com os Bartlet conheciam as ambições de Paula, até
mesmo o senador, mas ele parecia não se importar. Paula era uma anfitriã perfeita e o
acompanhava em todos os eventos sociais e políticos a que deviam comparecer.
Shannon lançou um olhar rápido para Jenny e sorriu. Enquanto Paula se tornara
mais fria e distante, a filha era exatamente o oposto. Com uma constituição miúda e corpo
bem proporcionado, exibia lindos olhos brilhantes e um sorriso encantador. No entanto,
Shannon reparou que Jenny não a fitava com ar de boas-vindas; na verdade, seus olhos
pareciam transmitir algo próximo ao ódio.
Quando fugira de Bartlet, dez anos atrás, Shannon abandonara uma menina imatura
de catorze anos que sempre a considerara uma espécie de ídolo. Com essa atitude abalara
profundamente o mundo adolescente de Jenny. Quanto a Paula, ela apenas tolerara
Shannon pelo fato de Ash e o senador lhe dedicarem tanta afeição.
Shannon fechou os olhos, cansada e triste. Fora ingenuidade imaginar que
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encontraria tudo da mesma forma como deixara há dez anos. Sentia seus sonhos e ilusões
desmoronarem e precisava desesperadamente de um amigo; porém era pouco provável
que encontrasse um dentro daquela casa.
Ao perceber que era colocada sobre um colchão, voltou a abrir os olhos e deparou-se
com o primeiro sorriso sincero desde que chegara à fazenda.
— É, Shannon, parece que você continua a mesma. Tive de deixar minha casa
quentinha e um belo jantar por sua causa. Como nos velhos tempos, hein? — O dr. Henry
inclinou-se para falar no ouvido de Shannon. — Seja bem-vinda, minha querida.
— Dr. Henry... — ela murmurou, com lágrimas nos olhos.
— Fique calma. Sei que você passou por momentos difíceis. — O velho médico tossiu,
embaraçado com a emoção que lhe apertava a garganta. — Lágrimas nunca serviram para
resolver nada, minha filha. Agora vamos ver como você está. Pode mover os dedos das
mãos e dos pés?
— Sim. Só o meu tornozelo parece estar ruim.
— Ash, largue esse cigarro! — Dr. Henry ordenou, sem virar-se para trás. — Pensei
que você tinha parado de fumar.
Mesmo dolorida como se sentia, Shannon começou a rir. Quando era pequena, todas
as crianças da cidade costumavam dizer que o dr. Henry tinha olhos na nuca. Uma ocasião
ela e Ash o encontraram adormecido à beira do rio, com vara de pesca esquecida no chão, e
decidiram aproximar-se com calma para ver de perto a nuca dele. O médico, que apenas
cochilava, dera um pulo e gritara o nome das crianças antes mesmo de virar-se, pregando o
maior susto nos dois.
Shannon olhou para Ash e ao ver-lhe o sorriso, soube que ele também se lembrava do
episódio. Até o dr. Henry ria, cheio de recordações.
— Vocês dois estavam sempre se metendo em confusão. Lembro-me da última vez
que tratei de você, mocinha. Ash tinha vindo da faculdade para ver uma das éguas que ia
dar cria e partiria de novo no dia seguinte. Vocês ficaram acordados metade da noite
observando o animal e decidiram beber um pouco de uma garrafa de uísque que Shannon
havia pego em casa. Ela me contou depois que fizera aquilo porque você a desafiara, mas
aposto que esse foi um desafio de que ela se arrependeu. — Ele fez uma pausa para
examinar os hematomas no pescoço de Shannon. — Nunca vi ninguém passar tão mal por
causa de bebida.
— Dr. Henry!
— Sinto muito, filha. Sei que eu tinha lhe prometido segredo absoluto, mas
certamente você não se importa mais depois de tantos anos, não é? — Ele tirou uma
seringa descartável da maleta e preparou a injeção. — Ash, você voltou para a faculdade no
dia seguinte, mas Shannon ficou de cama por três dias. Nós descobrimos depois que ela
tem uma alergia violenta a álcool. — O médico desinfetou um espaço do braço de Shannon
e parou por um instante. — Você adquiriu alergia a alguma outra droga? Penicilina,
vitamina B 12?
— Não. — Shannon fechou os olhos enquanto o médico lhe aplicava a injeção.
— Sempre precisei tomar cuidado com a medicação dela. — Dr. Henry comentou,
virando-se para Ash após colocar dois vidros de comprimidos sobre a mesa de cabeceira. —
Ash, estes comprimidos são analgésicos e ela deve tomar a cada seis horas, começando
com um agora mesmo. Este outro frasco contém um antibiótico para ser ingerido de doze
em doze horas. Bem, vamos cuidar desse tornozelo. — Ele enfaixou o local dolorido, depois
fechou a maleta e levantou-se. — Cubra a atadura com um plástico e peça a uma das
mulheres para ajudá-la em um banho quente. Você estará bem melhor depois que uns dois
dias de descanso, embora ainda vá mancar por algumas semanas.
— Doutor, eu gostaria de conversar um pouco com o senhor — Shannon pediu. — Em
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particular, por favor. — Esperou até que o médico convencesse Ash a sair do quarto e
voltasse a se sentar na beirada da cama. Ash tinha deixado o aposento sob protestos e
Shannon reparara em sua expressão intrigada desde que o dr. Henry havia mencionado a
alergia a álcool. — Doutor, parece que esses últimos seis dias foram apagados de minha
memória e eu queria saber se isso é algo com que devo me preocupar. Será que ainda vou
me lembrar?
— Você quer lembrar? Pela aparência desses hematomas, eu diria que teve bons
motivos para se esquecer.
— O senhor não me perguntou nada sobre isso. Por quê?
— Jeff me pediu para não tocar nesse assunto. Você passou por um período muito
difícil e achamos melhor dar tempo até que se recupere. Eu mesmo decidi não fazer
perguntas a ele.
— E se eu nunca me lembrar?
— Clinicamente, essa condição de amnésia deve ser transitória; é óbvio que você
passou por uma experiência traumática. Mas quanto a se lembrar do que aconteceu,
acredito que irá depender de sua vontade. Deixe seu corpo sarar e a mente seguirá o
mesmo caminho. — Ele apertou a mão de Shannon e levantou-se, observando o rosto sério
daquela moça que conhecera desde o nascimento. Dez anos não lhe haviam alterado a
beleza, mas havia uma enorme tristeza em seus olhos. — Descanse, Shannon. Confie que as
coisas irão melhorar.
— Doutor, como está Happy?
— Orgulhoso e cabeça dura como sempre.
— Vocês ainda jogam dominó nas quinta-feiras a noite?
— Sim, e ele continua roubando no jogo.
— Acha que ele vai querer me ver? — Shannon indagou.
O dr. Henry parou com a mão na maçaneta.
— Ele diz que não, mas anda arrumando a casa desde que soube que este ano você
tinha vindo com Dean.Ate arranjou uma faxineira para limpar o seu quarto. Já é hora de
vocês dois fazerem as pazes.
Shannon observou a porta se fechar, pensando que já havia passado muito da hora.
Deixara que Dean se aproveitasse de sua natureza teimosa e de seu orgulho para mantê-la
longe do avô, de Bartlet e de Ash por tempo demais. A lembrança de Dean lhe trouxe uma
sensação de terror e ela começou a tremer como se ainda estivesse perdida na neve. E de
repente, o som do vento...
Shannon apertou os ouvidos com as mãos para abafar o som e então viu a si mesma
sufocando, sem conseguir respirar... O rosto de Dean... e o vermelho... tudo coberto de
vermelho...
O que significariam aquelas imagens fragmentadas que lhe vinham à mente? O que
teria acontecido?
— Shannon, o que foi? — Ash indagou, aproximando-se da cama. Assustara-se ao ver
a expressão dela transformar-se, demonstrando confusão e depois pavor.
— Nada. — Ela sorriu, procurando afastar as alucinações. — Sempre gostei deste
quarto. Obrigada por ter me alojado aqui.
— Aqui fica mais fácil para eu passar de vez em quando e dar uma olhada em você. —
Ele mostrou o plástico e os barbantes que tinha na mão. — O doutor falou que você
precisava tomar um banho.
— Você vai me ajudar a ir até o banheiro?
— Terei de fazer um pouco mais. Você está muito fraca e o analgésico que o dr. Henry
lhe deu pode causar alguma tontura.
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— Você vai dar banho em mim? — ela indagou, sentando-se na cama. — Onde estão
Paula e Jenny? — Ao perceber que ele permanecia em silêncio, Shannon não custou a
compreender. — Elas não querem me ajudar, não é?
— É.
— Por quê? Eu nunca fiz nada a elas!
— Shannon, esqueça isso. O médico disse que você precisa de um banho e eu estou
aqui para ajudá-la. Chega de conversa.
— Não, Ash, eu posso tomar banho sozinha — ela protestou, perdendo o ar quando
ele se inclinou e a levantou nos braços. — Ash, pare! — ele estava muito próximo. Mesmo
cansada e com o corpo dolorido, Shannon o desejava. Era impressionante como, após tanto
tempo, a atração que sempre os inflamara continuava a existir. — Eu não acho que é uma
boa ideia, Ash.
— Shannon, eu já a vi nua muitas vezes. Você não tem segredos para mim. — Ele a
carregou até o banheiro e fechou a porta. Depois colocou-a ao lado da banheira e protegeu
as bandagens com o plástico. — Se eu me excitar, não dê importância. É uma reação
masculina normal ao ver uma mulher nua. Tentarei me controlar.
Ele abriu as torneiras e ajustou a temperatura da água. Em seguida respirou fundo,
preparando-se para o momento difícil de tocar a pele morna de Shannon. Sonhara tanto
com isso, porém nunca naquelas circunstâncias.
— Ash, eu não quero tomar banho de chuveiro.
— Você não está em posição de fazer exigências. Acho que assim será melhor. —
Fitou-a rapidamente e voltou a desviar o olhar. — Agora vê se me ajuda e começa a tirar
essas roupas.
Trêmula, ela desabotoou os primeiros botões da camisa de flanela, mas pôs-se a rir
ao perceber que os dedos amortecidos não a obedeciam. Ash compreendeu que o
analgésico estava fazendo efeito e agachou-se ao lado dela para ajudá-la.
— Você vai lavar meus cabelos, Ash? — ela indagou, sentindo-se cada vez mais zonza.
Desequilibrou-se para trás e Ash teve de segurá-la pelos braços.
— Fique quieta. — Ele a livrou do jeans e da roupa de baixo e colocou-a depressa sob
a água quente. Então, com movimentos quase frenéticos, ensaboou-a inteira, derramou-lhe
meio vidro de shampoo sobre os cabelos e começou a esfregá-la, tentando convencer a si
próprio de que o contato com a pele macia de Shannon não o afetava nem um pouco.
Vendo a própria camisa e os jeans ensopados, Ash desistiu de complicar a tarefa e despiu-
se também. Nu atrás dela, incapaz de esconder a reação à proximidade, deixou que as
recordações brincassem livremente em sua cabeça.
Shannon recostou-se ao corpo dele, sentindo a água rolar sobre si mesma e
imaginando que o calor vinha das mãos de Ash lhe acariciando a pele. Gemeu de prazer e
inclinou a cabeça para trás, mas o beijo que sua atitude convidava não aconteceu. Em vez
disso, Ash desligou o chuveiro, retirou-se da banheira e começou a enxugá-la como se ela
fosse uma criança.
Mesmo um pouco dopada, Shannon percebeu haver cometido um grande erro.
Pensara que poderia vencer a resistência de Ash com o corpo, usar a si mesma para
consertar o que havia feito no passado. Sentia-se constrangida, envergonhada.
— Ash...
— Fique quieta para que eu possa acabar de enxugar seu cabelo.
— Ash, eu sinto muito.
— Eu também, Shannon. Nunca pensei que um dia você pudesse recorrer a esse tipo
de jogo. O que deseja de mim? Se seu ego precisa de auto-afirmação, a resposta é sim, eu a
desejo intensamente. Mas, ao contrário de você, não gosto muito do papel de adúltero.
— Não foi bem assim.
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— Não? Então o que estava fazendo há pouco? Você é uma mulher casada.
— Eu nunca fui casada.
— Como assim? — Ele deteve o movimento da toalha. — É claro que você é casada.
— Legalmente, sim. Mas não em meu coração.
— Ah, então isso faz com que não haja problemas em você sair com outros homens?
— Ash riu, sarcástico. — Meu Deus, como você mudou! — Sem fitá-la, prendeu uma toalha
na cintura, tomou Shannon nos braços e a reconduziu para a cama.
— Você não compreende.
— Não, nem quero compreender. — Ash ajudou-a a vestir-se, depois pegou as roupas
e as toalhas molhadas e dirigiu-se para a porta.
— Ash!
— Shannon, não faça isso conosco.
— Por favor, Ash. Eu quero lhe dizer uma coisa.
— O quê? — ele indagou, sem encará-la.
— Eu... eu amo você. Nunca deixei de amá-lo.
Ash fechou os olhos por um instante. Quando tornou a abri-los, estavam frios e
duros.
— Você arrumou uma maneira esquisita de demonstrar isso, Shannon.
Saiu e bateu a porta atrás de si. Shannon apoiou a cabeça no travesseiro, tentando
imaginar para onde poderia ir. Depois de ter visto Ash, nunca mais teria condições de
voltar a viver ao lado de Dean. Assim que lembrou do marido, sua cabeça começou a doer e
ela debateu-se em pânico. O que estaria acontecendo afinal? Por que aquela reação?

CAPÍTULO V

O sono de Shannon foi agitado, cheio de pesadelos confusos misturando passado e


presente. Nas muitas vezes em que despertava assustada, seus olhos se entreabriam e
procuravam pelo homem que permanecia sentado e imóvel em uma cadeira quase ao
alcance de sua mão. A pequena lâmpada de cabeceira enchia-lhe o rosto de sombras,
ocultando os olhos, obscurecendo os lábios, enquanto destacava as sobrancelhas, o
contorno do nariz, o queixo quadrado. A maturidade havia dotado as feições de Ash de
uma intensa sensualidade masculina. Shannon sentiu um aperto na garganta; tinha muita
saudade dele.
Ash abriu os olhos e percebeu que Shannon o observava. Ao endireitar-se na cadeira,
o livro que tinha sobre as pernas escorregou para o chão com um ruído surdo que quebrou
o encanto entre eles.
— O que foi? Está sentindo alguma dor?
— Não. Eu tive um sonho.
— Outro pesadelo?
— Desta vez foi um sonho mesmo. Lembra quando eu te evitei por três dias e no fim
você me encontrou chorando perto da cachoeira?
— Não — ele mentiu, franzindo a testa quando tantas recordações começaram a
voltar a sua mente.
— Passei meses usando camisetas largas para esconder as mudanças em meu corpo.
Eu me sentia confusa e amedrontada, mas o pior golpe foi quando veio minha primeira
menstruação. Não sabia o que fazer; Happy não havia me contado muitas coisas e nunca
tive amigas suficientemente íntimas para conversar. Então você me encontrou e explicou
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 24
tudo.
— Sim — ele disse apenas.
— Mas esse não era o principal motivo para minhas lágrimas. Eu tinha medo que
aquelas mudanças fizessem você agir de uma maneira diferente em relação a mim. Então
você me disse que tudo muda com o tempo e que tínhamos de aceitar isso e ir em frente.
Ash não queria recordar aquela cena comovente, gravada em sua memória com tal
clareza que parecia ter acontecido há poucos dias. Shannon ficara apavorada com seu novo
corpo e as mudanças internas em seu organismo. Naquele dia, ele a aconchegara junto ao
peito para um primeiro abraço de verdade e, embora tivesse de ocultar o próprio
constrangimento, contara a ela tudo o que sabia sobre meninas. A conversa acabara
chegando ao tema do sexo e ela o fizera explicar isso também, em detalhes. Então Shannon
perguntara como ele conhecia tão bem o assunto e a discussão que se seguira levara-o a
dar-lhe o primeiro beijo, sob o pretexto de fazê-la parar de falar.
— Você sempre me compreendeu — Shannon prosseguiu. — Sabia todos os meus
segredos. Nós nunca mentimos um para o outro. O que aconteceu com a confiança?
— Você sabe muito bem o que aconteceu — Ash afirmou, mas já não se sentia tão
certo. Durante anos, nunca tivera qualquer dúvida quanto aos fatos, mas de repente a
verdade parecia obscurecida por muitas perguntas para as quais ele não tinha mais as
respostas. Levantou-se, perturbado, e ficou parado diante dela, fitando-lhe o rosto triste e
ainda tão bonito.
— Dez anos atrás você me deu as costas, Ash. Onde estava o amor que sentíamos um
pelo outro? Onde estavam a compreensão e a confiança? Sei que agi errado ao montar
Ashland's Fire, mas o que aconteceu depois foi apenas um acidente terrível. Eu não o matei
de propósito, Ash. Onde estava sua compreensão naquele momento? — Shannon sentia
lágrimas nos olhos mas esforçava-se para contê-las, sabendo como Ash adiava mulheres
choronas. — Sei que você sofreu por causa do que fiz, Meu Deus, acha que eu também não
fiquei arrasada? Mas você me deu as costas, Ash.. Você, Happy, todo mundo.
— Pare com isso, Shannon. Não adianta remoer o passado, ele está morto como
aquele maldito cavalo — Ash não podia ouvir mais. Precisava pensar, reavaliar tudo em
que acreditara sem ressalvas nos últimos dez anos. Aproximou-se da porta, rígido e
inflexível.
— O que aconteceu com o amor que sentíamos? — ele gemeu.
— Você deve saber a resposta melhor do que eu. Por que não me conta?
— Não vá embora, Ash. Fale comigo.
— Não. Volte a dormir e tente pensar um pouco em seu marido, já que está com
vontade de lembrar do passado.
Shannon fechou os olhos com uma profunda sensação de angústia quando ele saiu e
bateu a porta atrás de si. Por que Ash não queria conversar com ela? Devia haver um
motivo maior do que a morte do cavalo. E por que ela não ficara em Bartlet dez anos atrás?
Por que havia fugido? Dean! Só de pensar nele sentia a cabeça doer. Mas daquela vez seria
diferente; iria encontrar as respostas sem a interferência de Dean.
Tinha medo de fechar os olhos outra vez e lembrar os acontecimentos dos quais
tentava com tanto empenho se esconder. Como aprendera a fazer ao longo das inúmeras
ocasiões no passado quando as coisas se tornavam insuportáveis, apagou qualquer
pensamento da mente e ficou deitada, observando a luz da manhã penetrar pela janela,
afastando a atmosfera sombria que invadira o quarto.
Quando a porta tornou a se abrir, ela levantou a cabeça, ansiosa, pronta para rever
Ash. Mas não era ele. Um sorriso iluminou-lhe o rosto ao deparar-se com Bridget
O'Conner, que entrava silenciosamente e fechava a porta atrás de si.
— Ora, ora, se não é a nossa menina. Já era hora mesmo de voltar para casa.
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— Bridget! — Shannon exclamou, feliz com a presença da boa governanta. Ela partira
da Irlanda aos dez anos de idade, mas nem os cinquenta e cinco anos de Estados Unidos
haviam conseguido abafar o sotaque melodioso.
Bridget colocou a bandeja que trazia no colo de Shannon e fitou-a com as mãos na
cintura.
— E quem mais teria coragem de aventurar-se no covil de uma menina tão levada?
— É bom ver um rosto amigo. Senti muita falta de você.
— Então devia ter voltado. — Com um gesto pouco usual, pois Bridget não gostava de
demonstrar emoções, a governanta inclinou-se e beijou o rosto de Shannon. — Pobrezinha,
toda machucada! Será que os duendes da neve não simpatizaram com você e a arrastaram
pelo meio das moitas?
— Acho que briguei com um urso — ela respondeu, sorrindo.
— Sei que tipo de urso é esse — Bridget comentou, com ar desconfiado. — Coma seu
desjejum, querida. Vai precisar de força.
— Temos sopa de galinha tão cedo?
— Não vá recusar o meu remédio, mocinha!
— Sim, senhora! — Shannon apressou-se a dizer, recebendo da governanta um olhar
de aprovação. Bridget ajudou Shannon a se sentar apoiada nos travesseiros e depois
acomodou-se na cadeira ao lado da cama.
Shannon tinha consciência de que não valia a pena interrogar Bridget, pois a
governanta nunca aprovara fofocas. Mas, se tivesse paciência e diplomacia, conseguiria
que ela lhe contasse tudo o que precisava saber.
— Onde está Ash?
— Ah, o Ash! Aquele parece que acordou de mau humor esta manhã. Andou pela casa
repreendendo todo mundo, gritando ordens como se fosse um general em um campo de
batalha. Foi um alívio quando Jeff telefonou e pediu para ele ir até a cidade. Você e aquele
seu marido arrumaram uma bagunça e tanto.
A referência a Dean a carregava de tanta raiva que Shannon se surpreendeu. Bridget
costumava ser muito discreta quando não gostava de alguém.
— Dean ainda não apareceu?
— Não, e espero que os duendes da floresta tenham sumido com ele. Mas agora não é
o momento de discutirmos este assunto. Coma!
— Está bem, está bem! — Shannon fitou o rosto serio de Bridget por alguns
segundos, tentando descobrir o que estava acontecendo. Por fim, mergulhou a colher na
sopa quente a levantou até a boca. Ao olhar para o líquido, começou a rir como uma
criança.
— Você sempre gostou de macarrão de legumes — a governanta comentou, com ar
maternal. Aquilo foi demais para Shannon. Ela largou a colher e pôs-se a chorar aos
soluços. Alarmada, Bridget tirou a bandeja da cama e abraçou Shannon. — Calma, eu estou
aqui. Pobrezinha! Você passou por maus bocados, mas confie na velha Bridget, tudo vai se
acertar agora que voltou para casa. Lembra daquela menina corajosa e independente que
preferiria morrer a deixar que alguém a visse chorando?
Shannon enxugou os olhos e forçou um sorriso nos lábios trêmulos.
— Como estão Lynette e Tom?
— Tom ainda é um caipirão, mas é bom marido e Ash o considera o melhor capataz
que a Barra B já teve. Lynette me deu três netos, todos lindos. Agora chega de conversa
mole. Daqui a pouco a abelha rainha e sua súdita aparecem por aqui e não vão gostar de
ver tudo desarrumado, Shannon Reed.
A referência a Paula e Jenny não havia sido maldosa, mas bem-humorada e inocente.
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No entanto, Shannon reparou que Bridget se recusava a chamá-la pelo nome de casada.
— Você nunca gostou de Dean, não é, Bridget? — indagou, elevando a voz, pois a
governanta havia desaparecido através da porta de conexão com o quarto de Ash. Retornou
pouco depois, trazendo uma camisa do patrão.
— Dean sempre foi invejoso, sempre queria o que era de Ash, embora ele tivesse mais
coisas. Eu não compreendia muito bem aquela situação em Rocking W. Os pais dele se
divorciaram, o pai o deixou e foi viver na França, a mãe viajava todo o tempo para
Hollywood e Nova York, pouco se importando em tentar passar algum tempo com o filho.
E Dean, criado pelos empregados... Então, quando a mãe morreu, todos acreditaram que o
pai viria buscá-lo. Mas não, ele queria que Dean terminasse a escola nos Estados Unidos.
Talvez tenha sido por isso que o menino ficou tão ruim. — Ela deu de ombros e olhou para
Shannon. — Mas vou lhe dizer, aconteceram coisas estranhas por aqui depois que você
fugiu com ele.
— Por favor, me conte tudo, Bridget.
— Vista isto. — Ela fez Shannon colocar a camisa limpa, depois deu-lhe a mão para
ajudá-la a se levantar. — Surgiram alguns rumores a seu respeito. Eu imaginei que isso
duraria apenas alguns meses, ou no máximo um ano, mas não foi assim. Era como se
alguém estivesse constantemente alimentando os boatos.
— Quem? Que boatos?
— Pergunte a Ash — Bridget respondeu, recusando-se a fazer o papel de fofoqueira.
— Agora vamos até o banheiro. Quero melhorar a sua aparência.
Após um banho quente, a governanta penteou os cabelos emaranhados de Shannon.
— Pronto, está como nova. Escove os dentes enquanto eu arrumo sua cama. Depois
eu a ajudarei a deitar outra vez.-
Shannon obedeceu, apoiando-se na pia para não perder o equilíbrio. Então, fitou-se
no espelho e levou um susto ao deparar com o rosto pálido, cheio de cortes e manchas
roxas. Como podia encontrar-se em tal estado e não lembrar do que havia acontecido?
Seu olhar desceu então para o pescoço e pôs-se a examinar com curiosidade a pele
cheia de hematomas. De repente, a cabeça começou a doer e uma outra imagem
confundiu-se com a sua no espelho do banheiro. Shannon fechou os olhos depressa, mas
não antes de ver o rosto de Dean com uma expressão deformada pelo ódio.
Um sonho fragmentado, como uma cena de um outro mundo, ocupou-lhe a mente de
forma abrupta. O espetáculo assustador não fazia sentido mas, ao mesmo tempo, era
inacreditavelmente real.
Dean gritava com ela, transtornado. O vento continuava dispersando as palavras, por
mais esforço que Shannon fizesse para ouvir. De repente, surgiu uma mancha vermelha na
camisa dele e ela observou, horrorizada, enquanto o pequeno ponto desabrochava como
uma rosa. Devagar, as pétalas se espalharam pelo tecido branco até que a cor tornou-se tão
brilhante que lhe ofuscou a vista...
Shannon baixou a cabeça, enquanto uma sequência de imagens desconexas passava
diante de seus olhos. Pouco a pouco, ia se lembrando. Invadida por um inexplicável terror,
começou a tremer e suar frio.
— Bem, agora vamos... — Bridget, assustada, segurou Shannon antes que ela
chegasse ao chão. — O que foi, minha filha?
— Estou enjoada.
A governanta conduziu Shannon até o vaso sanitário e deu-lhe apoio enquanto ela
vomitava. Depois lavou-lhe o rosto suado e fez com que voltasse a escovar os dentes.
— Pronto, já acabou. Agora vamos para a cama e você vai terminar a sopa.
Shannon obedeceu sob protesto, mas realmente sentiu-se melhor após alimentar-se
um pouco. Nem ela nem Bridget ouviram a porta se abrir, mas perceberam ao mesmo
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 27
tempo em que não se encontravam mais sozinhas e levantaram os olhos.
— Está bem, Bridget. Pode se retirar — Paula ordenou, aproximando-se da cama.
Esperou em silêncio pela saída da governanta antes de dirigir a palavra a Shannon. —
Então aqui está você outra vez, sempre causando problemas.
— Bom-dia para você também, Paula.
— Você sempre teve uma língua afiada, não é? Mas não vim discutir, Shannon. Ash
me pediu para lhe dar o remédio se ele não estivesse de volta a tempo.
Shannon suspirou, aborrecida. Ela e Paula nunca haviam se entendido. Sempre fora
considerada culpada por qualquer travessura que a pequena Jenny por acaso cometesse.
Mas o que Paula estaria fazendo em Montana naquela época do ano? Ela costumava
permanecer em sua casa em Georgetown, programando festas que a projetassem junto à
sociedade, sempre com o propósito de encontrar um marido rico para a filha. Shannon
sempre lia a respeito dela nas colunas sociais dos jornais.
As duas nunca haviam sido amigas, mas não tinham declarado guerra aberta. Então
por que Shannon percebia uma tensão contida naquela mulher de pé a seu lado, como se
ela lhe dedicasse um ódio profundo? Começou a sentir o coração bater mais depressa,
pouco à vontade com a situação.
— Vamos, tome isso logo para que eu possa ir embora! — Paula reclamou.
— O quê?
— Por que está me olhando assim?
— Assim como?
— Não sei... de um jeito estranho. Ash me disse que você perdeu a memória. Por
acaso lembrou de alguma coisa?
— Não. — Ela estendeu a mão para pegar o comprimido e o copo de água.
— É uma pena. Espero que você melhore logo.
— Obrigada, Paula.
— Não tem de me agradecer, Shannon. Pessoalmente, não me importo nem um
pouco com o que lhe acontecer. Você sempre exerceu uma péssima influência sobre Jenny
e sei que não mudou. Acho que todos que se envolveram nesta nova encrenca que arrumou
ficarão bem melhor se você sarar logo e voltar para Rocking W. Você tem a tendência de
arruinar a vida das pessoas, Shannon. Por favor, retorne à Europa o mais rápido possível.

Pouco depois, Shannon despertou do estado de sonolência com uma voz a


chamando. Ao abrir os olhos, deparou com Jenny de pé ao lado da cama.
— Bom-dia — Shannon cumprimentou, mas Jenny respondeu apenas com um gesto
de cabeça, mantendo a expressão séria.
— Mamãe me pediu para lhe trazer isto. — Ela estendeu a mão com o comprimido.
— Eu não preciso mais — Shannon protestou, sentindo-se tonta e indisposta.
— Tome logo para eu ir embora.
— Jenny, não seja assim — Shannon pediu, assustada com a voz dura da moça.
— Assim como? Fria? O que você esperava? Ser recebida de braços abertos? Você
arruinou a vida de Ash... e a minha. Tome. São ordens de Ash.
— Como eu arruinei a sua vida?
— Isso não interessa agora. O importante é Ash. Ele amava você, Shannon, e mudou
muito depois que você foi embora... tudo mudou. Ele tentou reconstruir a vida, até casou
com uma garota muito simpática e carinhosa, mas ela não era você. Pode acrescentar Mary
Ann à sua lista de vidas arruinadas.
A culpa era um fardo grande demais e Shannon não suportava continuar ouvindo.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 28
Como faria as pessoas compreenderem que também ela havia sido uma vítima? Dean teria
de pagar por todo o sofrimento que causara e ela cuidaria para que isso acontecesse, nem
que levasse o resto da vida.
— Jenny, minha cabeça está muito confusa e no momento eu não consigo pensar
direito. Mas, por favor...
— Por favor o quê? Quer que eu ouça mentiras? Eu sei tudo sobre você e Dean, sei
como você arruinou a vida dele também. Mamãe disse que você era um traste e tinha
razão. Agora tome isso de uma vez para eu poder sair daqui!
O ódio na voz de Jenny chocou Shannon, mas mesmo em meio à sonolência em que
se encontrava pôde detectar a mágoa e a desilusão que haviam se alojado no coração da
moça. Não adiantava procurar compreensão naquele momento. Shannon pegou o
comprimido, o copo sobre o criado-mudo e engoliu o remédio. Depois, com tristeza, viu
Jenny virar-se e caminhar para a porta.
— Este não é o fim, Jenny. Eu voltei para ficar. Você acabará tendo de me ouvir.
— O quê? Você veio para ficar?
— Isso mesmo. — Shannon recostou-se nos travesseiros e fechou os olhos. Nunca se
sentira tão mal em sua vida.
— Mas e Dean?
— Acabou. Para mim ele está morto.
Shannon ouviu a porta bater e sentiu lágrimas escorrendo pelo rosto ao ver o quarto
vazio. Nem sabia bem por que estava chorando e, em sua confusão, tinha a sensação de que
o mundo girava em torno de si, fora de controle. Então, de repente, tudo se tornou
escuridão. E o vento começou a uivar...

CAPÍTULO VI

A tempestade de primavera que cobrira as montanhas com cinco centímetros de neve


dissipara-se ao colidir com o ar mais quente do vale e da cidade de Bartlet.
Ash guiou o caminhão em torno da praça com as estátuas de bronze de seus
ancestrais. Milhares de perguntas o incomodavam, tornando sua expressão tensa e
preocupada. Parecia tão incomunicável quando desceu do veículo e bateu a porta com
tanta violência em frente à delegacia que Sally Roland decidiu adiar os planos de falar com
ele.
Depois que Ash entrou no prédio, ela ainda hesitou um pouco, dividida entre
sentimentos de cautela e excitamento. Afinal, era repórter do Bartlet Star e sentia o cheiro
de uma boa reportagem. Por fim, resolveu que seria mais prudente esperar um pouco mais
antes de aproximar-se de Ash. Com um suspiro desapontado, fechou melhor a gola do
casaco e dirigiu-se ao Cattleman's Café, onde talvez pudesse descobrir alguma pista dos
acontecimentos. Ash cumprimentou os funcionários da delegacia e caminhou decidido
para o escritório de Jeff. Encontrou o amigo debruçado sobre pilhas de papéis.
— Puxa, não pensei que havia tantos crimes em Bartlet!
— A maior parte destes papéis é burocracia. Sente-se, Ash. Temos problemas sérios.
— Eu imaginei. Você parecia ansioso quando me telefonou.
— O promotor esteve aqui agora há pouco.
— Hamilton Watts? O que ele queria?
— Ele recebeu um telefonema anônimo esta manhã e veio correndo para cá logo em
seguida. Na verdade, eu recebi o mesmo chamado. Era uma mulher e ela tomou a
precaução de disfarçar a voz. — Jeff fitou o amigo por um longo instante antes de
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continuar. — Ah, Ash, não há maneira diplomática de dizer isto. Ela acusou Shannon de ter
assassinado Dean.
— O quê? Isso é uma maluquice.
— Eu sei, mas Hamilton não pensa assim. Eu tive de contar-lhe toda a história da
expedição de busca e do salvamento de Shannon, mas ele não me pareceu muito
convencido. As ambições políticas de Watts são bem conhecidas e um caso de assassinato
envolvendo o filho de um industrial milionário francês seria excelente para colocá-lo em
evidência. Mas o maior golpe mesmo seria envolver você, o filho de um senador, um dos
maiores proprietários de terras do Estado e ex-noivo da esposa da vítima. Os jornais
ficariam alucinados e a publicidade ajudaria a deslanchar a carreira de Hamilton Watts.
— Ora, Jeff, você não vai acreditar em um telefonema anônimo, não é? Quanto a
Hamilton, ele que se dane!
— Ash, o que você sabe sobre Shannon nestes últimos dez anos?
— Ei, amigo, nós dois a conhecemos suficientemente bem para saber que ela não
seria capaz de cometer um assassinato. Afinal de contas, o que foi que essa mulher falou ao
telefone?
— Que Shannon e Dean tiveram uma briga feia antes de deixar Rocking W.
— Isso não quer dizer nada.
— Ela ameaçou matá-lo. O capataz e a governanta de Dean ouviram a discussão.
— Eu não acredito — Ash explodiu, remexendo nervosamente os bolsos sem
encontrar o que procurava. — Passe-me o cigarro. — Pegou o maço que Jeff lhe jogou e
tirou do bolso o velho isqueiro. — Ela não poderia tê-lo matado. Jeff, você sabe que as
pessoas falam muitas coisas absurdas no calor de uma discussão. Isso não quer dizer que
tenham intenção de cumprir as ameaças.
— Nem mesmo em defesa própria? Nós vimos os hematomas no pescoço dela.
— Ainda digo que não. Afinal, onde está Dean? Você por acaso começou alguma
investigação? — Ash levantou-se, sufocado pelas quatro paredes do escritório. Tirou o
casaco, atirou-o sobre a cadeira e levou o cigarro aos lábios. A fumaça fez seus olhos
lacrimejarem e ele arrancou o cigarro da boca e o amassou no cinzeiro. — Por que me deu
isto? Sabe que larguei o vício.
— Calma, colega. Já providenciei um mandato de busca para Dean. Se ele conseguiu
sair da montanha e dirigiu-se a uma das cidades vizinhas, logo teremos notícias.
— Mas você acha que ele não conseguiu sair de lá, não é?
— Não, para mim ele está morto. Como isso aconteceu é algo , que teremos de
descobrir bem depressa. O promotor não quer Dean vivo. Nada seria melhor para ele do
que poder acusar Shannon de assassinato, mas não pode fazer isso enquanto não tiver o
corpo. O tempo está bom e a neve logo derreterá na montanha. Preciso subir até lá e
encontrá-lo, Ash. Mas antes disso, devo interrogar Shannon. Ela já está em condições de
falar? Lembrou de alguma coisa?
— Ela está bem, mas ainda não recuperou a memória. O dr. Henry acha que o
problema é psicológico e não físico. Portanto, tudo vai depender de ela querer ou não
lembrar. — Ash pegou o casaco para sair, mas parou e virou-se para Jeff. — Você ouviu as
histórias sobre Shannon que se espalharam pela cidade nos últimos anos, não é?
— Claro, quem não ouviu?
— Onde os boatos começaram? Quem continuou a alimentá-los?
— O que está passando por sua cabeça, Ash?
— Durante dez anos ouvi falar da vida desregrada que Shannon levava na Europa,
cheia de sexo e álcool, e que Dean não conseguia controlá-la por mais que tentasse. Houve
até histórias de envolvimento com drogas.
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— É, eu soube disso. No entanto, isso não quer dizer que eu acredite nos boatos.
— Jeff, ontem o dr. Henry falou que Shannon tem uma alergia violenta a álcool —
Ash revelou, vendo o amigo levantar os olhos e franzir a testa, intrigado. — Ainda há mais.
Ela apresenta uma tolerância muito baixa a qualquer tipo de drogas. Quem começou esses
rumores? E se isso era mentira, será que o resto também pode ser?
— É muito difícil descobrir as fontes de boatos, Ash. Mas eu tenho uma boa ideia de
onde começar a investigação nesta cidade.
— Chester.
— Exato. Depois que eu falar com Shannon vou procurar Chester e arrancar a
verdade dele.
— Obrigado, Jeff. Aquele mexeriqueiro não responderia a nenhuma pergunta que eu
lhe fizesse.
— Ele não gosta muito de mim também, mas farei o possível para obter as
informações. Sabe quem poderia fazer o nosso velho amigo falar? Happy. Chester morre de
medo do avô de Shannon. Já reparou que Chester nunca aparece quando Happy está por
perto?
— Não. E também não sei se ele vai querer ajudar. Telefonei a Happy esta manhã
para contar sobre Shannon e ele mostrou-se indiferente como sempre. É um velho teimoso
que insiste em guardar rancor.
— E você não?
— Por que diz isso?
— Ora, Ash, precisa perguntar? Ouça, eu fiquei quieto muito tempo, mas agora vou
falar. O que aconteceu há dez anos nunca deveria ter ido tão longe. Vocês dois eram jovens
demais e houve muito orgulho envolvido, de sua parte, de Happy e de Shannon. Você caiu
direitinho nas mãos de Dean. Ele aproveitou a vantagem e fugiu... com Shannon.
— Você não sabe o que está dizendo! — Ash fuzilou, os olhos brilhando de raiva.
— Não sei?
— Não!
— Eu ouvi os boatos de que Shannon andava dormindo com Dean enquanto vocês
dois planejavam se casar. Nunca acreditei em nada disso, mas você sim.
— Quem lhe contou isso? — Ash indagou, furioso. Porém, o tom de voz agressivo não
intimidou Jeff. Ash percebeu que estava a um passo de bater em seu melhor amigo e fez
um esforço para se acalmar. Dez anos atrás, o teria derrubado com um soco, mas agora se
perguntava que diferença fazia. Era apenas mais uma entre tantas dúvidas que o
incomodavam a respeito de fatos que antes julgava indiscutíveis. — Foi Jenny quem lhe
contou, certo?
— Não importa — Jeff murmurou, aborrecido por ter puxado o assunto.
— Vocês dois não têm se entendido muito bem ultimamente? Ou Paula está
interferindo outra vez?
— Esqueça isso, Ash. — Ele bateu no ombro do amigo, ansioso para mudar de
assunto. — Você já tem problemas demais e é neles que temos de pensar agora. Tudo isso
me dá a sensação de um complô. Mas de quem e por quê?

Alguma força invisível pressionava o pé de Ash contra o acelerador. Ele sentiu um


frio lhe percorrendo a espinha e, embora não acreditasse em poderes místicos, também
não questionava seus instintos. Havia algo errado e precisava chegar logo em casa.
Olhou pelo espelho retrovisor para assegurar-se de que o carro de Jeff o seguia e,
num momento de distração, quase errou uma curva. O veículo deslizou na pista
escorregadia, mas conseguiu controlá-lo. Nervoso, aumentou ainda mais a velocidade.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 31
Quando avistou a casa, logo lhe chamou a atenção o carro do dr. Henry mal estacionado
diante da porta da frente, como se tivesse chegado às pressas.
Ash parou o caminhão, entrou correndo e subiu os degraus da escada de dois em
dois. Com um aperto no estômago ouviu a voz exaltada de Paula e os soluços de Jenny.
— O que está havendo? — indagou, percebendo que a porta do quarto de Shannon
encontrava-se fechada. — Eu perguntei o que aconteceu! Shannon piorou?
— Não foi minha culpa — Jenny declarou, em prantos. — Juro que não sabia que
mamãe tinha... — Os soluços a interromperam e Paula aproximou-se para abraçar a filha.
— Foi tudo um mal-entendido — ela explicou, pálida e trêmula.
— Droga, será que ninguém vai me contar o que está havendo? — Ash acabara de
colocar a mão na maçaneta da porta quando a governanta saiu de dentro do quarto. —
Bridget, o que foi?
— Ainda bem que você apareceu. Não entre, Ash, o doutor está com Shannon. Tudo
está sob controle agora, mas ela recebeu uma super-dosagem de medicamento.
Por um momento, todos ficaram em silêncio e a tensão tornou-se palpável.
— Suicídio? — Jeff arriscou.
— Claro que não! — Bridget exclamou, lançando um olhar furioso para Paula e
Jenny. — Se eu não conhecesse estas duas, diria que haviam tentado matar Shannon.
No mesmo instante, Ash virou-se para as mulheres, que permaneciam abraçadas.
— Paula, quero que me explique tudo agora! — Ele observou a madrasta com atenção
e franziu a testa. Paula mostrava-se sempre imaculada, sem um fio de cabelo fora do lugar
ou qualquer falha no esmalte das unhas. Naquele dia, porém, parecia estar desmoronando.
— Eu segui suas ordens e dei o remédio a Shannon — ela começou, passando os
dedos trêmulos pelo cabelo. — Então decidi passear a cavalo e pedi a Jenny que, se eu não
voltasse a tempo, desse a ela a segunda dose.
— Mamãe! — Jenny exclamou, choramingando. — Você não me disse que já tinha
dado uma dose a ela. Falou apenas para eu fazer Shannon tomar o remédio. Tenho certeza
de que você não...
— Eu disse sim, Jenny.
— Mas, mamãe! Sei que você não disse nada!
— Quieta, Jenny! Você apenas não me ouviu. — E virou-se para Ash com uma
expressão zangada. — Você sabe como ela tem andado distraída ultimamente, com a
cabeça nas nuvens, sempre sonhando acordada. Ela simplesmente não prestou atenção.
Ash não sabia em quem acreditar. Ia falar alguma coisa quando a porta se abriu e o
dr. Henry apareceu com um sorriso encorajador.
— Ela está bem. O tornozelo vem progredindo de forma adequada e talvez amanhã já
possa andar. Vou levar embora os analgésicos, Shannon não necessita mais deles. Se ela
precisar, me chamem. — Enquanto abotoava o casaco, o médico olhou para Paula e Jenny.
— Vocês duas foram negligentes e ainda bem que Bridget reparou que havia algo errado,
senão o problema poderia ter sido maior. Eu receitei a medicação mais por causa dos
espasmos e câimbras causados pela hipotermia. Se ela não sentisse dor, não precisaria
tomar nada.
— Posso vê-la agora, doutor? — Ash indagou.
— Será que ela está em condições de responder algumas perguntas? — acrescentou o
delegado.
— Podem entrar vocês dois, mas não a cansem demais.
Antes de abrir a porta, Ash pediu a Jeff, em voz baixa, que não mencionasse a visita
do promotor nem a possibilidade de Dean estar morto. Em seguida, entraram no quarto.
Shannon estava sentada na cama, vestida com uma camisa de Ash, com os cabelos
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penteados, as faces coradas e os olhos brilhando mais do que o normal. Parecia um anjo
com aquela expressão doce e o halo de cabelos negros.
— Está se sentindo melhor? — Ash perguntou, sem conseguir desviar os olhos dela.
Era difícil disfarçar o desejo que ela lhe despertava, mesmo com tantos hematomas e
arranhões. Não queria nem pensar no corpo nu de Shannon sob a camisa de flanela
amarela. — Pedi a um dos homens que fosse até Rocking W pegar algumas roupas para
você.
— Obrigada — Shannon murmurou, o olhar fixo nele.
— Tem certeza de que está bem?
O nervosismo de Ash era evidente. Shannon percebeu que algo novo havia
acontecido, mas achou melhor brincar um pouco e desfazer aquela expressão séria do rosto
dele.
— Eu sei que você detesta me ver aqui, Ash. Mas designar Paula e Jenny para se
livrarem de mim foi um pouco demais. Pelo que me lembro, você costuma encarregar-se
pessoalmente de seus trabalhos sujos.
— Ah, Shannon! Não tive nada a ver com a estupidez delas. — Ele parou ao notar que
Shannon apenas tentava animá-lo um pouco. Em resposta, substituiu as linhas tensas que
lhe sulcavam o rosto por um sorriso.
As lembranças voltavam velozes enquanto ambos permaneciam perdidos nos olhos
um do outro.
Jeff sentia-se como um intruso. Os dois pareciam ter esquecido sua presença. Teve
de pigarrear duas vezes para que o notassem.
— Jeff! Como vai? — Shannon cumprimentou.
— Estou bem. Sei que você deve estar cansada, mas o doutor disse que poderia
responder a algumas perguntas.
— Claro! Sente-se.
Jeff acomodou-se em uma cadeira ao lado da cama e Ash continuou encostado à
parede, fitando Shannon com os olhos cheios de ternura.
— Você conseguiu lembrar de alguma coisa? — o delegado começou.
— Não — Shannon murmurou. Não era aquela a conversa que esperava.
— Pode me contar do que se lembra?
— Bem, a viagem foi um desastre. — Ela baixou os olhos e não se surpreendeu ao
notar as mãos trêmulas. — Dean parecia estar obcecado para chegar a Devil´s Leap e
forçou os animais além do limite. Um dos cavalos começou a mancar perto de Willow Falis
e ele o soltou.
— Devil´s Leap. Foi lá que vocês pousaram pela última vez?
— Foi. — Shannon os fitou, invadida de repente por um estranho terror que tentou
disfarçar com um sorriso pouco convincente.
— O que aconteceu lá, Shannon?
— Sinto muito, Jeff, mas não lembro de mais nada. Já tentei, mas não consigo.
— Calma, está tudo bem.
— Eu me sinto uma idiota. Por que não consigo lembrar?
— Relaxe. — Jeff apertou de leve a mão de Shannon. — Vamos voltar aos momentos
antes de você deixar a fazenda. Você e Dean estavam se entendendo? Tiveram alguma
briga? Dean ficou bravo com você?
— Dean sempre estava bravo comigo. Jeff, por que tudo isso, afinal?
Os dois homens se entreolharam e foi Ash quem respondeu.
— Dean ainda não apareceu. Achamos que talvez ele possa continuar na montanha.
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— Ah, então é só isso? — A voz de Shannon soou sarcástica e ela começou a rir. Parou
ao perceber que os dois a fitavam com ar intrigado. — É tão típico dele fazer essas coisas!
Sério, não há nada com que se preocupar.
— Então acha que ele está vivo? — Jeff indagou.
— Claro.
— Mas onde ele está? Não retornou à fazenda.
— Quem disse isso?
— O capataz dele.
— Clyde Hanks? Clyde faria qualquer coisa por Dean.
— Desta vez ele não está mentindo, Shannon.
— Bobagem! Todo mundo mente para proteger Dean. Você deveria observar um
pouco melhor o relacionamento entre Dean e Clyde.
— Como assim?
— Ah, os gostos de meu marido são muito ecléticos. Ele adora variedade e excitação.
Shannon percebeu o olhar surpreso dos dois homens, mas recusou-se a dar maiores
explicações. Mais tarde, quando o momento fosse adequado e se encontrassem sozinhos,
pretendia contar a Ash tudo o que acontecera naqueles dez anos.
Jeff pigarreou e inclinou-se na cadeira. A conversa não transcorria da maneira que
ele esperara.
— Vamos voltar ao desaparecimento de Dean. Então você não está preocupada?
— Oh, não. Ele já fez isso antes. A última vez foi há três anos. — Fora também a
última vez que ela viajara com ele, lembrou-se. — Estávamos nos Alpes, na Áustria, com
uma turma de amigos. Dean e eu saímos para passear com grupos diferentes. Quando
retornei ao acampamento no fim da tarde, descobri que ele havia chegado mais cedo e
pedira a um dos guias para levá-lo de volta à cidade, onde pegou um avião. Voltei a Paris
dois dias depois e encontrei Dean no meio de uma de suas eternas festas.
— Quer dizer que ele simplesmente a abandonou? — Ash explodiu.
— Sim. Em se tratando de Dean, não há nada de estranho nisso. Ele se cansa
rapidamente. — Shannon não contou a eles que Dean havia ido embora com a esposa de
um dos amigos, na esperança de deixá-la embaraçada e humilhada perante os outros. O
pior fora a cruel tentativa de vingança do marido traído, usando a ela como vítima.
— Você e Dean tiveram uma briga antes de sair para a caçada?
— Sim.
— Sobre o que foi, Shannon?
— Eu não queria ir.
— Clyde disse que vocês tiveram uma discussão séria. O motivo não foi apenas a
caçada, não é?
— Não — Shannon admitiu, levantando o olhar para Ash.
— Sobre o que mais discutiram?
Ela permaneceu em silêncio, mas continuou a fitar Ash.
— Responda, Shannon — Ash pediu.
— Nós estávamos brigando por causa de Ash. Eu disse a Dean que ia me divorciar e
ele me acusou de estar deixando-o por Ash.
— Mas você não via Ash há dez anos.
— Eu nunca fiz qualquer esforço para esconder meus sentimentos. Dean casou-se
comigo sabendo que eu continuava apaixonada por Ash.
— Oh, céus — Jeff murmurou, passando a mão pelos cabelos. Olhou para Ash e
depois para Shannon, sentindo uma profunda tristeza. A vida não fora justa para aqueles
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dois. — Shannon... você se lembra de como chegou à cabana? — ele indagou com cautela.
— Não.
— Por que estava caminhando sozinha sob a tempestade de neve?
— Não sei.
— Alguma vez Dean bateu em você?
— Nunca — ela afirmou com veemência. — Se fizesse isso eu o teria matado.
— Isso é apenas uma maneira de dizer, Jeff — Ash apressou-se a interromper. —
Você sabe disso tão bem quanto eu.
— Como surgiram esses hematomas em seu pescoço? — o delegado prosseguiu.
— Jeff!
— Fique quieto, Ash. Ela sabe. Não é verdade, Shannon?
— Não. — Ela tocou o pescoço com os dedos trêmulos, sentindo-se frágil e
vulnerável.
— Foi Dean quem fez isso?
— Sim... não. Eu não sei! — Uma forte dor de cabeça a fez levar as mãos às têmporas
enquanto mais uma vez o vento começava a uivar em seus ouvidos... Um borrão vermelho
infiltrou-se na paisagem branca...
Shannon cobriu o rosto para afastar as imagens terríveis.
— O que foi, Shannon?
— Eu gostaria de lhe contar, Jeff. Acha que não desejo saber o que aconteceu
comigo?
— Dean está morto, Shannon?
— Não. Eu já lhe disse que ele apenas fez mais uma de suas encenações de
desaparecimento.
O vento zunindo, sempre o vento...
— Você não está bem, Shannon? — Ash correu para o lado da cama ao vê-la
empalidecer.
Jeff estendeu o braço e o deteve.
— Espere! Shannon, você está se lembrando de algo?
— Nada — ela murmurou, sacudindo a cabeça e os encarando com os olhos
arregalados e vazios. Sentia a boca seca, mas a tontura começava a passar.
— Não minta, Shannon. Você lembrou alguma coisa. O que é?
— Nada, estou lhe dizendo. — A voz dela soou mais forte, mas ainda lhe faltava
convicção. Havia visto algo que a aterrorizara, mas não podia contar a eles. Com certeza
fora apenas uma alucinação, um efeito retardado da super-dosagem de medicação. A
imagem fora produto da imaginação, mas o terror era bem real.
Aos poucos, em pequenos e dolorosos fragmentos, ela estava lembrando. A rosa
vermelha de seus sonhos era sangue. Como se estivesse fora de si mesma, vira as próprias
mãos cobertas de sangue. Em algum ponto de sua memória ainda nublada, vira-se também
limpando as mãos freneticamente no casaco marrom. Então, atordoada, tirara o casaco e o
abandonara na neve.
— Shannon, não minta para mim — Jeff insistiu.
Amedrontada, ela baixou a cabeça, ganhando tempo enquanto tentava relaxar. Eles
não podiam saber o que ela havia visto enquanto não conseguisse se lembrar de tudo.
— Por favor, estou cansada.
— Agora chega, Jeff — Ash avisou, com uma autoridade indiscutível.
Jeff pousou as mãos nas pernas e sorriu.
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— Desculpe se a incomodei, Shannon. Ash, será que eu poderia falar com você por
um momento? — Ele se levantou e saiu do quarto, seguido do amigo. No corredor, pegou
um cigarro no bolso e o levou aos lábios. — Todo este caso está muito confuso e a única
maneira de esclarecê-lo é pegar alguns dos seus homens e subir até Devil´s Leap.
Demoraremos um dia e meio para ir e um dia e meio para voltar. De uma maneira ou de
outra, acabaremos descobrindo o que aconteceu.
Ash fez um sinal afirmativo com a cabeça, depois virou-se e desceu-as escadas,
perguntando-se por que estaria tão apreensivo com a situação. Era evidente, Shannon
havia se lembrado de alguma coisa, mas o quê? E por que não queria contar a eles?
Conhecia-a bem demais e percebia que Shannon estava apavorada. Mas qual o motivo?

CAPÍTULO VII

Jeff colocou o chapéu na cabeça e olhou para o céu azul antes de abrir a porta do
carro. O dia prometia ser quente e isso facilitaria muito a viagem até a montanha.
— Delegado! Jeff!
O simples timbre daquela voz o deixou tenso. Ele virou-se e fez um esforço para não
demonstrar o desagrado.
— Bom dia, sra. Bartlet.
— Como vai? — Paula cumprimentou, colocando os óculos escuros para proteger os
olhos do sol.
— Bem, obrigado.
— É verdade que o promotor quer acusar Shannon de assassinato?
— Talvez. — Ele apertou os lábios, maldizendo a maneira como as histórias se
espalhavam em cidades pequenas. Mas daquela vez era fácil adivinhar a origem da fofoca:
o próprio Hamilton Watts.
— Sucinto como sempre.
— Não há nada para falar. Qualquer especulação poderia ser perigosa neste ponto.
— Jeff, é o meu lar. Ash faz parte de minha família e eu estou preocupada.
— Compreendo — Jeff respondeu, desconfiado daquela atitude. Paula nunca se
preocupara com ninguém, a menos que algo afetasse diretamente a ela ou a Jenny.
— Sou super-protetora com as pessoas que amo — ela prosseguiu, enfiando as mãos
nos bolsos da calça com um movimento nervoso. — Só quero saber uma coisa: o promotor
pode lançar uma acusação contra Shannon? Há evidências suficientes?
— Não há nenhuma evidência enquanto não encontrarmos o corpo de Dean.
O rosto de Paula empalideceu de vez. Ela vacilou e Jeff a segurou pelo braço para
equilibrá-la.
— Então você acha que ele está morto?
— Talvez.
— Vai subir a montanha?
— Vou. — Ele virou-se para o carro, mas Paula o deteve.
Jeff esperou, observando-a com ar intrigado. Paula parecia extremamente
perturbada e ele gostaria de saber por quê.
— Você não gosta muito de mim, não é, Jeff?
— Não, mas me parece que o sentimento é mútuo.
— Porque eu interferi no relacionamento entre você e Jenny?
— Em parte. Mas principalmente pela maneira como você atira Jenny para qualquer
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 36
homem que tenha condições financeiras para sustentá-las em alto estilo. Você a exibe
como um troféu, nunca levando em consideração o que ela quer ou sente. Você dirige a
vida dela e transformou uma menina linda e alegre em uma mulher insegura, vacilante e
vulnerável. Quando ela disse que não queria ir para a Europa em mais uma de suas caças
de maridos, você descobriu que nós dois estávamos nos encontrando e decidiu nos ferir.
Tudo saiu como você queria, não foi? Quando sua amiga Helen Pressman lhe disse que me
havia visto saindo da casa de Sally Roland às duas horas da manhã, você correu a contar
para Jenny e a convenceu de que eu e a repórter estávamos tendo um caso. Mesmo depois
que soube da verdade, que eu havia ido lá porque o irmão dela tinha morrido em um
acidente de carro em Nova York e ninguém conseguia contatá-la, você continuou
mentindo. Torceu os fatos para servir aos seus propósitos. Mas o pior de tudo é o jeito
como você acaba com a autoconfiança de sua filha quando lhe diz que ela não é mulher
suficiente para segurar um homem como eu. — Jeff sentia vontade de estrangular aquela
mulher, mas respirou fundo e procurou acalmar-se.
— Pelo menos você é honesto — ela murmurou, com um leve sorriso nos lábios. —
Jeff, eu... eu sinto muito pelos problemas que causei.
Por um instante, Jeff apenas a fitou de boca aberta, sem conseguir falar.
— O que você está maquinando, Paula?
— Você tem o direito de desconfiar. Vai tomar conta dela, não é? Jenny o ama. Ela é
apenas muito jovem e às vezes fica confusa. Não seja muito duro ao julgá-la. Eu fui
responsável por tudo em que ela se transformou. Como você mesmo disse, eu pressionei,
menti, ameacei. Jenny precisa de você e, no futuro, vai precisar ainda mais.
Jeff a observou indo embora, sentindo-se como se tivesse levado um soco no
estômago. O que estaria havendo? Estava muito espantado para conseguir decifrar qual
seria a tática maquiavélica que aquela mulher começara a usar.
Em vez de partir diretamente para as montanhas, resolveu procurar Jenny.
Encontrou-a na cocheira, escovando os pelos de um cavalo recém-chegado. Ela o viu antes
que Jeff tivesse tempo de chamá-la.
— Se você veio me dizer como sou desmiolada, nem comece. Não me lembro de
mamãe ter me dito que já havia dado o remédio a Shannon. Foi tudo um acidente. — Ela
voltou ao trabalho, recusando-se a olhar para Jeff. Ainda se sentia magoada pelo que sua
mãe fizera naquela manhã.
— Não vim aqui para brigar com você, Jenny. Vim porque estou cansado de esperar.
Desde que voltou da Europa você tem me evitado. Por quê? Paula conseguiu finalmente lhe
encontrar um marido rico?
Jenny o fitou e arrependeu-se em seguida. Havia tanta tristeza e confusão nos doces
olhos castanhos de Jeff que ela tinha vontade de gritar que a culpa não era sua, que nunca
deixaria de amá-lo.
— Lembra-se de todo o tempo que andei atrás de você, todos aqueles meses, e você
me dizia que não era suficientemente bom para mim?
— Sim — ele respondeu, de cabeça baixa.
— Bem, estava enganado. Eu é que não sou boa o bastante para você.
— Que bobagem você está dizendo, querida?
— Não é bobagem. Acho melhor não voltarmos e nos ver.
— Por quê?
— Não importa. Acabou, Jeff.
— Eu não vou aceitar isso.
— Vai ter de aceitar, porque eu já decidi e você sabe como eu posso ser teimosa.
Ele deu um passo em direção a Jenny, mas parou ao vê-la se proteger atrás do cavalo.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 37
— Tudo isto começou depois que você retornou da viagem. O que aconteceu na
Europa?
— Nada. Agora, por favor, vá embora. Eu tenho muito que fazer.
— Jenny, após dois anos amando você, acha que tenho simplesmente de ir embora
como se nada houvesse acontecido?
— Saia, por favor.
Pela primeira vez Jeff percebeu o quanto ela estava perturbada. Tinha olheiras
profundas, movimentos agitados e havia perdido peso. Existia uma determinação estranha
em sua voz, como se aquela decisão tivesse sido muito bem pensada. Era evidente que não
havia o que discutir.
Jenny viu Jeff virar-lhe as costas e ir embora sem dizer mais nada. Escorregou junto
à parede, apoiou-se nos joelhos e começou a chorar, repetindo consigo mesma que aquela
havia sido a melhor atitude a ser tomada, pelo bem do próprio Jeff. Ele a odiaria se
descobrisse o que ela tinha feito.
Seus ombros balançavam a cada soluço e o sofrimento parecia cortar-lhe o corpo ao
meio. Procurou alguém para culpar além de si própria e percebeu que não teria de ir muito
longe. Shannon. De alguma forma ela iria pagar por tudo o que havia causado à família
Bartlet.

Shannon abriu os olhos, abençoando a bem-vinda luz da manhã. Desorientada a


princípio, teve o rosto iluminado por um sorriso assim que reparou nas quatro malas de
couro empilhadas sobre o tapete. Por fim poderia se vestir.
Minutos depois estava arrumada, admirando-se no espelho do banheiro. Há muito
tempo não se sentia tão bem. As calças compridas de lã ferrugem e o blusão de tom um
pouco mais claro davam-lhe o ânimo de que tanto precisava. Escovou os longos cabelos
negros, aplicou um pouco de maquiagem para disfarçar as escoriações e, como último
toque, prendeu um lenço no pescoço para esconder as feias manchas escuras.
Satisfeita com os resultados, Shannon ia abrir a porta do banheiro quando ouviu
barulho no quarto. O coração se acelerou na esperança de que o visitante fosse Ash, mas
acabou soltando um suspiro de decepção ao deparar-se com a governanta.
— Ei, não precisava ficar tão abatida. Sei que não sou quem você estava esperando,
mas tenho de arrumar o quarto.
— Bom dia, Bridget.
— Bom dia, minha querida.
— Onde está Ash?
— Saiu logo ao amanhecer dizendo que ia recolher gado desgarrado. Acha mesmo
que já pode ficar de pé?
— Claro, estou bem. Além disso, é hora de agir.
— É, tem razão — Bridget aprovou, levantando os olhos do lençol que acabava de
esticar e examinando o rosto decidido de Shannon com ar de aprovação. — É hora de
segurar o touro pelo chifres e dar uma ordem nessa confusão de uma vez por todas. — Ela
dirigiu-se ao quarto de Ash pela porta de conexão e retornou com uma bengala prateada,
que entregou a Shannon. — Use isto como apoio. Acho que é a única ajuda que irá receber
nesta casa.
— Era... era do senador? Será que posso?
— Claro, ele adorava você, Shannon. E você pode aproveitar para bater com ela na
cabeça dura do meu patrão. Acho que ele anda precisando disso. Vou lhe dizer, Shannon,
ele está tão irritadiço quanto um urso que acaba de sair da hibernação. Aposto que Ash
Bartlet ainda não teve uma boa noite de sono desde que você apareceu.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 38
— Será possível, Bridget?
— Prepare-se. Você se lembra como ele fica quando não dorme bem, não é?
Shannon fez um sinal afirmativo com a cabeça e sorriu. Assim que Bridget saiu do
quarto, experimentou alguns passos com a bengala e sentiu o tornozelo doer um pouco.
Detestava encontrar Ash com alguma desvantagem, mas iria procurá-lo assim mesmo e,
desta vez, não deixaria que ele fugisse da verdade. Talvez ele nunca mais a quisesse, mas
teria de ouvi-la, querendo ou não. Havia muitas coisas sobre o passado que a intrigavam e
que fazia questão de saber. Apenas Ash e seu avô "poderiam informá-la. Ela estava de
volta, para ficar.

CAPÍTULO VIII

Com uma enorme sensação de alívio e de volta ao lar, Shannon percorreu os


aposentos um por um. A casa não havia mudado, apesar de algumas cortinas e estofados
diferentes. Era tudo conforme ela se recordava.
Deixou o escritório para o fim porque, se fosse possível dizer que uma casa tinha
coração, ele certamente batia mais forte ali.
A pesada porta de madeira entalhada abriu-se com o suave rangido peculiar que
estivera presente desde sempre na memória de Shannon. Seu olhar foi atraído de imediato,
como nos velhos tempos, pelo quadro francês de um guerreiro do Sudão de pele tão negra
que brilhava como ébano polido. Um par de bustos mouriscos de terracota ainda enfeitava
a mesa egípcia de mármore. Os Bartlet sempre haviam sido grandes viajantes e recolheram
pelo mundo recordações de suas andanças.
Shannon fechou os olhos, respirando parte de seu passado: aquele havia sido seu
segundo lar e passara muito tempo no aposento que agora revia. O aroma dos charutos do
senador ainda habitava a atmosfera como se ele tivesse acabado de sair.
Por um instante, tornou-se criança outra vez, sentada em frente à televisão entre Ash
e Dean, com a mão cheia de pipocas suspensa a meio caminho entre a vasilha e a boca.
Ficaram hipnotizados por um documentário sobre animais e monstros pré-históricos que
andavam por um mundo sinistro e misterioso. Aquela noite acabara resultando em
castigos severos para os três. Ash fora o primeiro a reparar na maneira como as cabeças de
animais penduradas nas paredes pareciam estar olhando para eles com expressões
famintas. Aí, ela tivera a ideia de pintar de preto os olhos dos troféus de caça com tintas de
aquarela e passaram horas empenhados na tarefa. Nos dias seguintes, sob a supervisão de
Bridget e do senador, os três tiveram de limpar cuidadosamente a travessura que haviam
feito.
Então, era uma jovem adolescente, acomodada em sua poltrona favorita, com Ash e
Dean atentos a seu lado enquanto ela lia cm voz alta Os Amantes de Lady Chatterley.
Parava de vez em quando e levantava os olhos, zangada, quando os meninos ficavam
vermelhos como um pimentão ou riam maliciosamente das partes que ela não
compreendia. Tantas lembranças...
Depois, era uma jovem mulher, enfrentando seu avô e o senador quando Ash lhes
pediu permissão para casar-se com ela. Os dois homens acabaram adorando a ideia, mas
antes fizeram o casal passar por maus bocados. Tantas recordações maravilhosas...
Shannon abriu os olhos e começou a andar pelo aposento. O tornozelo doeu e ela
apoiou-se na bengala, mas esqueceu-se de tudo ao avistar sua cabeça de animal favorita.
Algum empalhador inexperiente ou alguém com um estranho senso de humor colocara os
olhos de vidro errados no feroz tigre de Bengala. Eles eram cândidos, quase inocentes, em
conflito direto com a mandíbula aberta e os dentes assustadores.
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A porta abriu e fechou atrás dela.
— O que está fazendo aqui?
Shannon virou-se depressa demais e sentiu uma pontada no tornozelo. Devagar,
apoiada na bengala, caminhou até o sofá de couro marrom e sentou-se.
— Oi, Jenny — cumprimentou.
A moça não respondeu, mas sentou-se em uma poltrona em frente ao sofá, colocou
os pés calçados com botas sobre a mesa de carvalho e fitou Shannon com olhos vermelhos
e inchados.
— Sinto muito a confusão que aconteceu com seus remédios, ontem. Não foi
intencional.
— Eu nunca achei que tivesse sido. — Shannon sorriu, rezando para conseguir
entender-se ao menos com uma pessoa da família Bartlet. Mas Jenny continuou séria e ela
soltou um suspiro de desalento. — Jenny, será que não podemos discutir o passado como
duas mulheres adultas?
— Não! — Jenny levantou-se, então pareceu mudar de ideia e tornou a sentar. — Está
bem.
— O que foi, Jenny? Não está assim apenas por minha causa ou pelo incidente com o
remédio, certo? Você costumava me contar seus problemas.
— Não tenho problema nenhum! Além disso, precisamos conversar sobre quando
você pretende sair desta casa.
— Isso é muito importante para você, não é?
— É.
— Tudo bem, eu espero ir embora daqui a alguns dias. Mas isso não será o fim do
problema. Eu já lhe disse que não vou sair de Bartlet.
— Por que você insiste em ficar num lugar onde não a querem? — Ela levantou-se
decidida desta vez, mas Shannon não deixou que a moça se retirasse.
— Sente-se! O que aconteceu entre mim e Ash diz respeito apenas a nós dois. Você
não tem o direito de me julgar quanto a isso. Mas eu me importo com o que você sente e
queria esclarecer este ponto. Jenny, eu gosto de você e nunca fiz nada em minha vida com
a intenção de magoá-la. Você sempre foi a irmã mais nova que eu nunca tive.
Jenny começou a chorar e Shannon não interferiu. Às vezes era bom derramar
algumas lágrimas. Por fim, ela se controlou e enxugou os olhos molhados na manga da
blusa.
— Você não sabe o que é gostar de alguém. Não sabe o significado da palavra amor.
— Ah, não? O que a faz pensar assim?
— É óbvio, não acha? Já esqueceu do que fez às pessoas que você supostamente
amava?
— E o que fizeram essas mesmas pessoas, essas que supostamente me amavam?
— Não sei o que você quer dizer. Está tentando me confundir.
— Não, Jenny. Estou tentando fazê-la ver os dois lados dessa história que parece ter
sido tão cuidadosamente construída. Por favor, pare de agir como dona de verdade! Todos
deram as costas para mim dez anos atrás. Sei que você tinha apenas catorze anos, mas já
era idade suficiente para compreender o que estava acontecendo. As pessoas que
"supostamente" me amavam, para usar a sua expressão, me abandonaram quando eu mais
precisava de amor e compreensão. Acha que eu gostei de ser afastada de minha casa e de
minha vida aqui?
— Mas você nunca voltou. Nem mesmo telefonou para nenhum de nós.
— Tem tanta certeza disso? E se eu lhe contasse que... — Ela se interrompeu com um
aceno de mão. — Deixe para lá. Jenny, você se lembra mesmo de mim como uma pessoa
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 40
sem coração? Eu sempre fiquei do seu lado quando sua mãe se zangava, eu a ensinava a
cavalgar quando Ash perdia a paciência. Eu fazia curativos em você quando caía e
machucava os joelhos. Quantas vezes não convenci Ash e Dean a deixar você ir conosco ao
cinema, ao café, ou aos bailes do clube? Essas ações lhe parecem as de uma prostituta
egoísta?
— Não... eu... — Jenny se levantou e começou a andar pelo escritório. — Você foi
mais atenta comigo do que minha própria mãe. Ela sempre me deixava aqui para viajar
com o senador e você estava sempre por perto. Shannon, eu idolatrava você! Achava que
você nunca poderia fazer alguma coisa errada.
— E então descobriu que eu era humana.
— Eu queria ser como você, apesar do que mamãe me falava a seu respeito. Queria
agir como você, falar como você, fazer as pessoas rirem como você fazia... Queria que todos
me amassem como amavam você. Eu a adorava e você foi embora.
— Ah, Jenny! Você fala como se eu fosse uma mulher sábia e exemplar. Mas eu tinha
apenas dezessete anos e era tão imatura! Sinto muito por ter desfeito seus sonhos de
criança. Mas e eu? E a minha vida? Você ficou aqui, com as pessoas que a amavam. Eu não
tive o mesmo privilégio.
— Tudo mudou depois que você foi embora e nunca mais voltou a ser como antes —
Jenny prosseguiu, ignorando as palavras de Shannon. — Ash desapareceu durante
semanas. Por fim seu avô teve de ir buscá-lo em Missoula. Ele andava bebendo e estava
péssimo.
Shannon fechou os olhos por um momento, sofrendo com a dor de Ash. Mas não era
certo colocar toda a culpa em suas costas. Afinal, ela também vinha vivendo um inferno.
— Jenny, já é hora de sair de seu mundo de sonho! Nada permanece sempre igual.
Sinto muitíssimo por toda a angústia que pareço ter causado, mas eu também sofri. Se você
já tivesse se apaixonado por alguém, se apaixonado de verdade, saberia que as pessoas
magoam umas às outras sem querer. Nós não podemos... — Não pôde concluir porque
Jenny saiu do escritório em prantos.
Shannon permaneceu sentada, sem saber o que fazer. Sempre fora honesta e admitia
sua culpa, mas recusava-se a carregar toda a responsabilidade pelo que acontecera. Porém,
se era tão difícil convencer Jenny de que ela merecia outra oportunidade, que chances teria
com Ash? No entanto, não desistiria tão facilmente. Lutaria até que as pessoas se
mostrassem dispostas a pelo menos ouvir seu lado da história.
Uma brisa leve agitava a cortina e ela voltou a atenção para a janela. O sol lhe
pregava truques, formando um falso arco-íris diante dos olhos. E o vento começou a
uivar...
De repente, sentiu um frio cada vez mais intenso. Nunca na vida estivera tão gelada.
"Pensa que Ash vai querer você, se me deixar? Levei dez anos, mas preparei as coisas
de tal forma que ele nunca mais vai aceitá-la."
Shannon desviou o olhar da janela e apoiou o rosto nas mãos. Estava sufocada e
precisava sair logo dali. Levantou apoiando-se no braço do sofá e pegou a bengala. Uma
dor aguda lhe subiu pela perna, mas isso não a deteve e ela saiu mancando do escritório.
Precisava do ar fresco de Montana para afastar os resíduos de seu terror.
No caminho para a porta dos fundos, deparou-se com um telefone. Antes que tivesse
tempo de mudar de ideia, levantou o fone e discou o número de sua casa. O coração
parecia querer explodir-lhe o peito enquanto ela contava cada toque, em um momento
desejando que o avô não atendesse, no momento seguinte rezando com fervor para que ele
viesse logo.
Após o sexto toque, quando já estava a ponto de desligar, Happy atendeu.
— Alô! — ele disse, com sua voz áspera.
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Shannon não sabia bem o que esperava, talvez uma voz mais trêmula que provasse
que seu avô havia sofrido tanto quanto ela. Porém, ele parecia saudável, normal, e isso a
irritou. Não conseguiu dizer nada. Envergonhada e decepcionada, recolocou o fone no
aparelho.
A brisa fresca acariciou-lhe os cabelos e ela levantou o rosto para o sol. Sentia-se
como se finalmente houvesse encontrado a luz no fim do longo túnel de escuridão.
Caminhou devagar até a cocheira, arrastando um pouco o pé dolorido. Ao chegar à
porta, parou um instante para que os olhos se adaptassem ao ambiente mal iluminado.
Depois seguiu em direção das vozes masculinas, na esperança de encontrar Ash. Porém,
deparou-se apenas com dois empregados, um dos quais era o garoto que lhe levara café na
barraca logo depois de seu salvamento da montanha.
— Oi, você é Bob, certo?
— Certo. E este é meu irmão, Cal.
— Bom dia — Cal cumprimentou, baixando a cabeça.
— Ei, que cavalo magnífico! — Shannon exclamou, percebendo o animal negro a
alguns metros de distância. Impressionada, deu um passo para frente, mas teve seu
caminho bloqueado por Bob e Cal. Um pouco confusa com aquela reação, Shannon parou.
— Quem é esta beleza?
— É Sombra. O tio do patrão mandou-o de Kentucky para que seu avô o examinasse.
Mas o sr. Reed não tinha espaço para alojá-lo e então Ash deixou que ele ficasse aqui.
— Ah, sim. — Na verdade, Shannon havia compreendido o motivo de tantos
cuidados. Certamente os dois rapazes sabiam de seu passado e estavam protegendo
Sombra de alguma coisa errada que ela pudesse vir a fazer. Shannon segurou a bengala
com força e começou a se afastar. Antes de sair, porém, virou-se para trás e lançou um
olhar frio aos dois rapazes. — Um cavalo morto não transforma a pessoa em uma
exterminadora de cavalos.
Saiu da cocheira tão zangada que nem lembrou de ter cuidado com o tornozelo.
Quando a dor a incomodou, diminuiu um pouco o passo e só então percebeu que havia
andado mais do que pretendia. Porém, o interesse pelos cercados de gado logo à sua frente
foi maior que a cautela e Shannon prosseguiu. Testou com a bengala o chão lamacento e
abriu o primeiro portão de madeira.
Caminhou devagar ao longo da cerca examinando o gado, de cercado a cercado,
fechando cuidadosamente cada portão atrás de si enquanto percorria o labirinto de currais.
Por fim, chegou a uma ampla arena vazia. Cansada, apoiou-se na cerca, elevou o tornozelo
dolorido e fixou o olhar nos distantes picos cobertos de neve.
O som da voz de Ash gritando seu nome a despertou do estado de devaneio. Shannon
endireitou-se, viu que ele vinha correndo em direção à arena e logo percebeu que havia
algo errado. De repente, ouviu um ruído atrás de si e virou-se. Através do enorme portão
aberto vinha entrando o maior, mais negro e mais feroz touro que ela já havia visto.
O animal pareceu detectá-la no mesmo momento. Com um arrepio de medo lhe
percorrendo a espinha, Shannon resolveu não esperar pela reação dele. Sem se importar
com o tornozelo, largou a bengala, segurou o topo da cerca e pulou por cima, aterrissando
no solo barrento do outro lado.
Quando abriu os olhos, viu-se cercada por três rostos preocupados e ansiosos. Bob e
Cal haviam chegado até ela ao mesmo tempo em que Ash.
— Oi, Ash — ela disse, sorrindo. — Estava procurando por você.
Ao ver que ela se encontrava bem, Ash deixou toda a irritação explodir.
— Será que você esqueceu a regra mais importante da vida em uma fazenda que é
nunca largar um portão aberto?
— Claro que não — ela respondeu, sentindo a umidade do chão molhar-lhe as roupas.
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— Por favor, alguém poderia me ajudar a ficar de pé?
Mas Ash estava tão agitado que nem conseguia ouvir. Virou-se para os dois rapazes
com ar furioso.
— Por que deixaram ela andar até aqui sozinha? E onde está Paula? Eu encontrei o
cavalo dela selado e ofegante ao lado da cocheira!
Shannon levantou-se sobre os cotovelos e estava prestes a ficar de joelhos quando
outro par de pernas juntou-se aos dos homens que a rodeavam. Ela levantou os olhos e
deparou-se com Paula, que imediatamente agachou-se a seu lado.
— Está ferida?
— Não, mas eu gostaria de me levantar.
— Por que cargas d'água você deixou seu cavalo naquelas condições? — Ash
interrompeu.
— Foi apenas por alguns minutos. — Paula levantou-se e encarou Ash, sem oferecer
ajuda a Shannon. — Eu planejava cavalgar mas, se quer mesmo saber, precisei ir ao
banheiro.
Shannon puxou a calça de Ash e levantou a mão.
— Se não se importa de me ajudar, está ficando frio aqui.
— Claro, por que não disse antes?
— Bem que eu tentei — Shannon respondeu, aceitando com prazer a mão que Ash lhe
oferecia.
— Você está coberta de barro! — ele constatou. Lembrando-se do tornozelo ferido,
ignorou os protestos dela e carregou-a nos braços, tomando o caminho do sobrado.
Sentindo o calor do corpo de Ash, Shannon parou de resistir. Afinal, era ali mesmo
que queria estar.
— Parece que este lugar está ficando muito perigoso para mim — ela comentou,
sorrindo. — Não deixei o portão aberto. Aquele touro é tão perigoso quanto parece?
— As pessoas costumam tomar a atitude inteligente de ficar longe dele. É um
reprodutor.
Sem pensar, Shannon pôs-se a mexer nos cabelos de Ash. Lembrou de um dos
pontos sensíveis dele e desejou ter a coragem de beijar a pele macia sob o colarinho da
camisa. Fechou os olhos, deixando a mente ocupada por pensamentos deliciosos, até que
foi trazida de volta à realidade quando chegaram à porta dos fundos da casa e Ash começou
a baixá-la. Shannon segurou-se com mais força no pescoço dele, fazendo-o virar a cabeça.
Seus rostos estavam a apenas uns poucos centímetros de distância.
— Algum dia você vai conversar comigo?
— O que teríamos para dizer?
— Ash, você sabe tão bem quanto eu que temos de conversar sobre o passado. Estou
cansada de carregar este peso e acredito que você também esteja.
Ash sabia que ela tinha razão, mas não estava disposto a ouvi-la. Durante anos
desempenhara com perfeição o papel de homem enganado e portava seu orgulho como
uma medalha, como um símbolo de coragem. Nos últimos dias, preferira ser um covarde e
fugir das emoções a admitir que aquele orgulho fora sua ruína.
— Largue do meu pescoço, Shannon. Você precisa tomar um banho e trocar de
roupa.
— Um pouco de lama e esterco não vão me machucar.
— Mas cheira mal — ele contrapôs, sorrindo.
— E você está fugindo do assunto. — Ela o soltou e Ash a colocou de pé.
— É, acho que sim. Talvez tenha lutado contra isso tanto quanto podia. Você venceu,
Shannon. Teremos uma conversa esta noite, mas não espere muito.
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— Eu aprendi a nunca esperar nada, Ash. — Ela entrou na casa, mancando, e Ash a
seguiu. — Larguei a bengala de seu pai no curral. Será que você poderia pegá-la para mim?
— Quando apenas o silêncio veio como resposta, ela apoiou-se na parede e virou para trás.
Ash a fitava com uma expressão pensativa e perturbada. — O que foi, Ash?
— Você o ama?
— Não!
— Alguma vez o amou?
— Nunca, eu o odeio. Meus sentimentos nunca mudaram, desde o momento em que
Dean me levou daqui até agora.
— Então por que você ficou com ele?
Shannon virou-se de costas para que ele não visse a ferida que a pergunta voltava a
expor.
— Porque você não me queria de volta. Porque você não me amava.
Ash deixou-a subir as escadas, indagando-se pela milionésima vez nas últimas horas
se poderia ter estado tão errado quanto ao que acontecera. Por mais que tentasse evitar,
uma pergunta insistia em perturbá-lo. Por que não havia ido atrás dela dez anos atrás?

CAPÍTULO IX

Shannon sentia-se desajeitada mancando com o auxílio da bengala. Mesmo assim, o


receio de parecer ridícula não a deteve. Depois de tantos anos, queria que Ash a visse
elegante e sofisticada, diferente da maneira como se lembrava dela. O problema seria
equilibrar-se sobre salto alto em um dos pés e manter o outro na sandália baixa.
Sabia que estava fazendo papel de idiota enquanto esperava os outros na biblioteca
para os aperitivos. Com a mão trêmula, ajeitou as pregas do vestido preto de seda e puxou
a gola alta que lhe escondia o pescoço. A maquiagem cuidadosa ajudara a cobrir as marcas
e arranhões do rosto.
Quanto ouviu a voz de Ash, pegou a bengala que havia sido deixada em seu quarto
enquanto tomava banho e segurou-a com as duas mãos, preparando sua pose de moça
elegante. Os passos dele soaram mais próximos e Shannon baixou os olhos para uma
última inspeção. Viu a ponta do chinelo sob a saia e puxou o pé depressa.
Estava tão ocupada se ajeitando que não percebeu a parada repentina de Ash assim
que a viu. Por um instante, seu olhar parecia querer devorá-la, mas logo recobrou o
autocontrole.
— Você está bonita.
Shannon levantou os olhos e sorriu, mas a tensão fazia-a parecer rígida e artificial.
Ash entrou na biblioteca e ela o seguiu com o olhar. Ele usava um blazer azul marinho e
uma camisa com listras brancas e azul-claras. Shannon observou-lhe as coxas firmes e
musculosas sob a calça e sentiu o corpo esquentar. Era incrível como ainda o desejava
tanto!
Ash serviu-se de um drinque no bar de carvalho construído em um dos cantos do
aposento.
— Pode beber vinho?
— Acho que não. Prefiro uma soda com limão.
Enquanto ele preparava a bebida, o silencio tornou-se tenso e desconfortável.
Shannon percebia que ele a fitava e estranhava o fato de aquilo a deixar tão nervosa. Com
um movimento desajeitado, levantou-se e caminhou até o enorme quadro retratando o
senador Bartlet. Ele morrera havia quatro anos em um acidente de avião sobre as
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 44
montanhas.
— As correntes de ar nessas montanhas são traiçoeiras para aviões pequenos — ele
comentou, como se lesse os pensamentos de Shannon. — Primeiro foi a mãe de Dean e
anos depois, papai.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu ao senador.
Ash aproximou-se dela e sentiu o coração acelerar ao detectar o aroma do perfume
de Shannon. A luz batia nos longos cabelos negros formando belos reflexos prateados.
— Tome — ele disse, estendendo-lhe o copo e dando um passo para trás numa
tentativa de fugir da incrível sensualidade que emanava dela. — Obrigado pela coroa de
flores que você mandou no enterro. Devia ter colocado seu nome.
— Como soube que eu havia mandado?
— Quem mais mandaria um buque de gardênias? Se me lembro bem, você e papai
adoravam essa flor e muito poucas pessoas sabiam desse gosto especial.
— Sinto muito por não poder ter vindo. — Ela baixou a cabeça e tomou um gole da
soda, procurando ocultar as lágrimas que lhe molhavam os olhos.
— Sente-se, Shannon. Você não vai aguentar muito tempo com esse tornozelo
dolorido e esse ridículo salto alto.
Ash a ajudou a caminhar até o sofá e então acomodou-se ao lado dela. Por um breve
instante, fitaram-se em silêncio.
— Eu fiquei surpresa ao saber que Paula está vivendo na fazenda — Shannon
comentou, para puxar assunto. — Ela não gostava de ficar aqui, a não ser quando o
senador trazia convidados.
— Depois da morte de papai, Paula vendeu a casa em Washington e gastou todo o
dinheiro. Teve de voltar para cá e agora vive dos investimentos que papai fez para ela e de
uma mesada que eu lhe dou.
— Ela deve detestar esta situação. — Shannon sabia que Paula sempre fora obcecada
por dinheiro. — Conversei com Jenny hoje. Ela está muito infeliz. Sabe por quê? —
Permanecia sentada na ponta do sofá, com o corpo rígido de tensão, esperando para ver se
Ash estaria disposto a conversar.
Ash a fitava atentamente, tentando analisar-lhe cada movimento na esperança de
que isso o ajudasse a decifrá-lo, Mas a mulher que tinha a sua frente não era mais a
menina que o havia deixado. Não podia mais ler os sentimentos que se revelavam naquele
rosto bonito. Ela se escondia atrás de uma expressão calma e seus olhos castanhos o
encaravam com uma franqueza surpreendente. Como ela conseguia fitá-lo daquela
maneira depois de tudo o que havia acontecido?
— Jenny e Jeff namoram há dois anos, sempre fazendo os maiores malabarismos
para esconder de Paula o relacionamento. Jeff deu um ultimato antes que ela e Paula
fossem para a Europa um mês atrás. Queria que ela contasse sobre o namoro à mãe assim
que voltassem de viagem. Pelo que sei, Jenny ainda não fez isso. Ela retornou da Europa
muito mudada. Tanto ela como Paula parecem estar nervosas e irritadiças.
— Você não tentou descobrir qual é o problema?
— Faz muito tempo que aprendi a não me meter na vida dos outros. Elas são adultas
e capazes de tomar suas próprias decisões.
— Essa é uma atitude muito fria, Ash.
— Mas evita muitos sofrimentos depois.
— Foi por isso que você nunca tentou entrar em contato comigo? Achou que, se me
esquecesse, estaria se poupando de sofrimentos?
— Gostaria de ter conseguido esquecer você ? — ele murmurou, antes de tomar um
gole do drinque.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 45
— Você não conseguiu? — Shannon sentia o coração disparado e esforçava-se para
manter a expressão neutra.
— Não.
— Será que tenho de arrancar cada uma de suas palavras, Ash? Não está disposto a
conversar comigo? Puxa, eu estou tentando!
— É isso que não entendo, Shannon. O que você está tentando fazer? O que espera
conseguir?
— Oh, Ash. Nós temos de conversar sobre o passado para que possamos levar nossas
vidas adiante. Você compreende isso, não é? — Ela inclinou-se para frente, ansiosa pela
resposta, mas a conversa foi interrompida pela súbita entrada de Paula e Jenny. A
decepção revelou-se tão grande que Shannon não foi capaz de sorrir para as duas.
Ash levantou-se e se dirigiu ao bar.
— O de sempre, Paula?
— Um Martini duplo, por favor.
— E você, Jenny?
— Não quero nada, obrigada. — Ela sentou-se no braço do sofá, ao lado da mãe, e
permaneceu com os olhos baixos. — Como você está, Shannon?
— Muito melhor.
— E você, Paula — Ash quis saber. — Está bem?
Na verdade, a aparência dela era terrível. Jenny não parecia muito melhor, com
olheiras profundas sob os olhos inchados e vermelhos. O rosto usualmente saudável da
moça estava pálido e magro demais.
— Está fazendo mais um de seus regimes malucos, Jenny? — Ash indagou. Mas ela
não respondeu; apenas sacudiu a cabeça, recusando-se a fitá-lo.
Ash aproximou-se de Paula e entregou-lhe o drinque, mas continuou parado em
frente a ela com um ar de repreensão.
— Você conhece as regras desta fazenda sobre como tratar os cavalos. Se repetir o
que fez hoje, vou proibir que chegue perto dos animais.
— Sinto muito. O cavalo resolveu ficar teimoso e fugir ao meu controle. Não foi
proposital. Os animais às vezes fazem isso, não é, Shannon? — Paula perguntou, lançando
um olhar malicioso a Shannon, que apenas a fitou, surpresa com a súbita investida. — Esse
seu vestido é um Chanel, não é? — prosseguiu, sem dar tempo para que Shannon
respondesse. — Deve ser bom ter por marido um homem rico que pode lhe comprar roupas
de griffe. Mas onde estão todas as jóias fabulosas que Dean lhe deu?
— Você deve estar enganada, Paula — Shannon revidou, cada vez mais intrigada. —
Eu não tenho jóias. Nem mesmo aliança de casamento.
— É difícil acreditar nisso.
— Acha mesmo? Por quê? — Shannon sabia que Paula não gostava dela, mas o ódio
que agora emanava da outra mulher era mais do que surpreendente; chegava a ser
assustador.
— Bem, minha querida, tendo à disposição todo o dinheiro de Dean, certamente você
tirou vantagem disso e garantiu um bom patrimônio antes que ele a deixasse.
— Espere aí, vamos esclarecer este ponto. Fui eu quem deixou Dean. — Shannon fez
uma pausa e respirou fundo para se acalmar. — Onde ouviu essa história absurda?
— Acho que o jantar está pronto — Paula avisou, levantando-se e caminhando para a
porta.
— Paula, você não respondeu à pergunta de Shannon — Ash insistiu. — Onde ouviu
que Dean a havia deixado?
— Ora, a história estava correndo por toda Paris quando estivemos lá, Não foi,
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 46
Jenny?
— Mamãe, por favor!
— Não foi, Jenny? — Ela lançou à filha um olhar autoritário, antes de virar-se e
retomar a direção da saída.
— Sim, mamãe — Jenny murmurou.
Ao chegar à porta, Paula voltou a fitá-los e sorriu.
— Como sempre, você e Dean eram o assunto do dia em Paris.
Atordoada, Shannon viu Paula e Jenny saírem da biblioteca e em seguida olhou para
Ash, tentando descobrir sua reação às mentiras da madrasta, mas a expressão dele pouco
dizia. Ela se levantou devagar, utilizando a bengala para lhe dar apoio. Algo estranho
estava acontecendo, mas não conseguia definir o que era.
— Não ligue para Paula — Ash a tranquilizou. — Ela é assim mesmo.
— Não, Ash, acho que tem alguma coisa por trás dessa atitude. Ela me odeia, mas por
quê? Eu nunca fiz nada para ela.
Ash deu o braço a Shannon para conduzi-la para a sala de jantar, porém logo se
irritou com a lentidão com que caminhavam.
— Tire de uma vez esse salto alto antes que leve um tombo!
Ele estava tão próximo que Shannon ficou sem ação, atordoada pela emoção de um
tempo perdido quando a vida era cheia de amor. Impaciente, Ash abaixou-se e tirou o
sapato dela. Shannon apenas sorriu, desorientada.

O jantar foi um desastre.


Assim que encontrou uma chance de desculpar-se educadamente, Shannon retirou-
se para a biblioteca, sabendo que Ash logo a seguiria. Precisavam continuar a conversa
iniciada antes da refeição. Talvez ele estivesse relutante em remexer o passado, mas
Shannon não podia sair da fazenda sem ao menos alguma esperança de ser perdoada. Mas
tudo precisava ser resolvido logo porque, pela primeira vez em sua vida, não se sentia
segura naquela casa. Não havia um motivo real para seus receios, mas uma voz interior a
alertava para estar sempre em guarda. Após dez anos, a atitude das pessoas em relação a
ela haviam mudado muito. Jenny a desprezava e Paula... bem, Shannon não sabia por quê,
mas seus instintos a avisavam de perigo sempre que aquela mulher a fitava. E Ash? Não
era possível que ele a odiasse tanto a ponto de querer fazer-lhe mal.
Talvez estivesse apenas imaginando coisas, pensou, sentando-se no sofá. Era bem
possível que Dean tivesse conseguido o intento de destruir qualquer confiança que ela
pudesse ter na raça humana. Ao pensar no marido, um arrepio lhe percorreu o corpo. Por
que Dean fora tão insistente, chegando quase à violência física, para que ela o
acompanhasse a Montana e depois a deixara, mesmo sabendo que ela pretendia divorciar-
se, mesmo sabendo o que ela sentia por Ash? Quem poderia entender Dean? Não
acreditava que ele estivesse morto. Mais dia menos dia, iria reaparecer como se nada
houvesse acontecido.
Quando a porta da biblioteca se abriu, Shannon virou a cabeça na direção do som
com uma expressão de pânico.
— Não precisa ficar com essa cara de medo, sou apenas eu — Bridget avisou,
trazendo uma bandeja com um bule de café, duas xícaras e dois pratos com fatias de torta.
— Você mal tocou o jantar. Achei que talvez ainda gostasse de minha torta de coco.
— Bridget, nenhum cozinheiro do mundo faz uma torta igual à sua.
— Então vá em frente! — a governanta exclamou, sorrindo de elogio. — Recebi
ordens para que vocês dois não fossem perturbados. Veja se consegue endireitar aquele
rapaz, hein?
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 47
— Vou tentar. Mas ele parece imune a qualquer coisa que eu possa vir a dizer.
— Bobagem! É só você usar um pouco de charme. Os homens são tolos.
— Ash não é.
— É teimoso como o pai. Mas ele vai ouvir. Se tiver algum problema, minha filha, é
só chamar a velha Bridget. Amarro-o na cadeira para que escute tudo o que tem a lhe dizer.
Uma vez eu fiz isso, quando ele era rapazinho e eu precisava enfiar algum juízo naquela
cabeça dura.
As duas riam da ideia de amarrar Ash a uma cadeira quando ele entrou. Chegou a
perder o passo ao som da risada solta de Shannon. Havia esquecido de como aquele som
melodioso e cristalino o afetava.
— Obrigado pelo café, Bridget. Boa noite.
— Veja como fala comigo, mocinho. Eu troquei suas fraldas — a governanta
resmungou enquanto se retirava do aposento.
Ash esperou até que Bridget fechasse a porta e, então, caminhou até a mesa e serviu
o café nas duas xícaras, oferecendo uma delas a Shannon. Ela pegou a sua e não se
surpreendeu ao vê-lo sentar-se em uma poltrona, longe do sofá. Por que ele precisava
tornar as coisas tão difíceis? Porém, ela não lhe daria tempo de erguer ainda mais
barreiras. Carregara aquela culpa por tempo demais e era hora de tomar uma atitude séria.
— Antes de tudo, Ash, tenho de pedir desculpas pelo que causei a Ashland's Fire.
Você deve saber que eu adorava aquele cavalo e que por nada deste mundo o teria
machucado de propósito.
— O que levou você a fazer a besteira de montá-lo?
— Dean. Ele me desafiou.
— Ah, Shannon!
— Ash, não me olhe deste jeito.
— Mas você ultrapassou os limites do cavalo por um desafio? Você o matou por causa
de um capricho estúpido?
— Pode ter sido um ato estúpido, Ash, mas um capricho? Nunca! — ela explodiu. —
Foi um desafio! Você certamente se lembra de como nós éramos, não é? Nenhuma façanha
era impossível, nenhuma provocação deveria ficar sem resposta. Nunca dar para trás! Três
rebeldes até o fim. Este era o nosso lema, meu, seu e de Dean. É claro que você não pode
ter se esquecido. As palavras foram suas e você nos fez decorá-las. Estava sempre me
desafiando a fazer coisas estúpidas e até perigosas. Ash, nós éramos crianças! Você
adorava me desafiar porque sabia que eu não tinha medo de aceitar. Por que Dean seria
diferente? Ele queria ser você, desejava tudo que você tinha. Ele me queria... e você deixou
que me levasse.
— Você fugiu com ele! — Ash protestou, levantando-se e indo ao encontro dela.
— Mas só depois que você me deu as costas! Você, meu avô, todo mundo! Naquele
dia, você me chamou de nomes que eu nunca poderei esquecer. Além disso, não fugi com
Dean; ele me levou. Há uma grande diferença.
— Não fale bobagens!
— Não é bobagem, Ash!
— O que aconteceu aquele dia?
— Eu nunca amei Dean. Nunca, Ash.
Ash voltou a se sentar, procurando controlar a terrível vontade de segurá-la pelos
ombros e sacudi-la até descarregar toda a raiva.
— Ainda não quero ouvir sobre sua vida com Dean. Quero saber o que houve naquele
dia em que tivemos de matar Ashland's Fire porque você o forçou demais e ele quebrou
duas patas. Como aquilo aconteceu?
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 48
A dor das recordações fez Shannon fechar os olhos. Não era possível afugentá-las:
teria de enfrentar Ash com sua culpa.
Ele a observava, esperando.
Shannon abriu os olhos e apertou os braços em torno do corpo, sem saber se Ash
estaria disposto a ouvir e aceitar a verdade, se seria capaz de compreender e perdoar.
Como poderia contar o que acontecera se nem ela mesma entendia muito bem?
Ela estivera muito feliz naquele dia, dez anos atrás. Ia casar-se com Ash. Só uma
coisa a incomodava aquela manhã: era o fato de Dean ter retornado da França mais cedo
do que esperavam. Sabia que haveria problemas quando ele descobrisse que ela estava
apaixonada por Ash. Ao perceber que Ash a amava, Dean deixara bem claro que ele
também a queria.
Ocorrera um incidente terrível antes de Dean partir para a França e ela nunca
mencionara o caso para Ash. Tinha certeza de que, se ele soubesse, teria matado Dean. Ela
estava às margens do riacho, onde Dean a encontrara e quase a violentara. Se ela não
tivesse acertado uma pedra na cabeça dele, nada o teria detido. Mas Shannon conseguira
se safar e, no dia seguinte, Dean fora embora
Na volta, porém, ele se mostrara arrependido ao ver que Shannon sentia-se nervosa a
seu lado e garantira estar feliz com a notícia do casamento. Mas, no fundo, ela sabia que
não era verdade. Devia ter confiado em seus instintos.
— Por que você não me contou que ele a tinha atacado?
Shannon levantou a cabeça, surpresa, e só então percebeu que vinha falando seus
pensamentos em voz alta.
— Já havia muitas brigas entre vocês dois. Nós combinamos ser amigos, irmãos de
sangue, lembra? De que adiantaria eu contar? A única coisa que ele conseguiu foi ferir meu
orgulho e me assustar um pouco.
— Continue. Ele a desafiou a montar Ashland's Fire?
— Dean me desafiou para uma corrida, eu em Ashland's Fire e ele em Dictator. Ash,
eu não sei o que aconteceu. Em um momento eu estava na frente, rindo; no momento
seguinte ele estava a meu lado, gritando para mim com um estranho ar de satisfação. O
vento não me deixava ouvir as palavras dele, mas Ashland's Fire acompanhou o outro
animal e ficou totalmente fora de controle. De repente eu fui jogada para cima e devo ter
ficado tonta por alguns momentos. Quando recuperei o ar, ouvi gritos de todos os lados.
Ash, juro que não tinha intenção de machucar Ashland's Fire. Eu adorava aquele cavalo e
sabia quantas esperanças você e seu tio depositavam nele. — Ela fez uma pausa, esperando
por alguma reação de Ash, mas ele permanecia calado e aquela situação a deixava cada vez
mais tensa. — Diga alguma coisa, qualquer coisa.
— Por que você foi embora? — Levantou os olhos para encará-la. — Por que nunca
tentou voltar para casa ou entrar em contato com seu avô ou comigo? Por que casou com
ele se não o amava?
— Por que você não foi atrás de mim? — ela rebateu, com a única pergunta que a
atormentara através dos anos.
Ash baixou a cabeça, surpreso ao perceber que aquela era a pergunta que mais temia.
Jeff o prevenira de que todos haviam levado o caso longe demais e tinha razão. Ele deixara
o orgulho interferir e merecia parte da culpa. Fora muito rápido ao julgar Shannon, assim
como Happy e todos os outros.
— Quero saber por que você ficou com ele se não queria isso?
Shannon levantou-se e caminhou até a poltrona de Ash, sorrindo ao vê-lo retrair-se
um pouco. Pelo menos havia a esperança de que sua proximidade ainda o perturbasse.
— Pense, Ash. Eu estava magoada, confusa e amedrontada. E, pior de tudo, sozinha.
Todos haviam se voltado contra mim. Happy me disse que eu não podia ser sua neta se
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 49
agia de forma tão estúpida. Em toda a minha vida, nunca tinha visto meu avô tão zangado.
Ele me falou para não pôr mais os pés naquela casa e eu fiquei arrasada. Depois foi sua vez
de descarregar a raiva sobre mim.
Ash a observou passar os dedos trêmulos pelos cabelos, que brilhavam sob a luz. O
corte do vestido destacava os seios firmes e arredondados, deixando os mamilos rijos
visíveis sob o tecido fino. Uma das pernas bem torneadas delineava-se na seda preta e
balançava muito próxima à mão dele.
— Eu fiquei tão tonta e magoada que, antes de ter consciência do que acontecia,
Dean me levou de volta à casa de Happy, colocou algumas roupas na mala e encontrou
meu passaporte — Shannon prosseguiu. — Pouco depois eu estava em um avião com
destino a Paris, sem qualquer recurso financeiro para voltar para casa.
— Você podia ter telefonado ou escrito — Ash comentou, notando as unhas dos pés
de Shannon pintadas de uma sedutora tonalidade rosada.
Ela inclinou-se para frente apoiada no encosto da poltrona, revelando uma profunda
fenda entre os seios.
— Eu também tenho orgulho, Ash. Esperei que você me procurasse. Mas passaram-
se semanas e eu não recebi notícias nem de você nem de Happy. Então, resolvi engolir o
orgulho e escrevi para os dois.
— Ei, espere um momento! — Ash exclamou, tirando os olhos dos seios dela e
sentindo-se um idiota por aquela breve recaída. — Fiquei sabendo que você se casou com
Dean poucos dias depois de chegar a Paris. E se você realmente escreveu, por que não
recebi as cartas?
— Eu não sou mentirosa — ela assegurou, chegando um pouco mais perto de Ash. —
Escrevi para você e para Happy. Quanto à sua outra dúvida, não sei quais foram suas
fontes, mas eu já vivia em Paris há cinco meses quando me casei com Dean. Estava
esperando por você, Ash.
— Nunca recebi suas cartas! — ele gritou, sem poder controlar a raiva e a frustração.
— Eu sei, mas ouça o que tenho a lhe dizer. Eu escrevia todos os dias, durante
semanas, para você e para Happy. Ainda me lembro da agonia de esperar por uma resposta
que nunca chegava. Dean e Lilith, a avó dele, viviam me pressionando para que me casasse,
já que não recebia mesmo notícias de casa. Dean era seu único neto e Lilith o estragou de
tanto mimo. Depois de passar meses sendo acuada dia e noite e sem receber qualquer
contato seu, acabei cedendo. — Shannon sentou-se, arrependida por ter tentado usar sua
proximidade física como uma arma. — Ash, só depois que eu e Dean nos casamos encontrei
todas as cartas que ele e Lilith deveriam ter posto no correio para mim. Desde então, passei
a não me importar com mais nada, nem com o fato de não ter dinheiro para voltar para
casa. Ia me divorciar dele de qualquer jeito. Eu o odiava. Lilith ficou alarmada com a ideia
do divórcio, mas também um pouco envergonhada ao perceber como fora usada por Dean.
O fato é que ela me convenceu que voltar para casa não era a solução. Afinal, eu não tinha
para onde ir. Dean me avisara que, se eu tentasse deixá-lo, armaria tal escândalo que eu
nunca mais poderia encarar qualquer pessoa em todo o Estado de Montana. Então, eu e
Lilith fizemos um trato. Ela sabia o quanto eu queria estudar veterinária e concordou em
financiar minha faculdade se eu permanecesse com Dean.
— Você ficou por dinheiro?
Shannon enrijeceu o corpo ao ouvir o tom amargo e incrédulo da pergunta de Ash,
no entanto era aquilo mesmo que ela havia feito. Mas como poderia fazê-lo entender o
quanto se sentira solitária e angustiada? A chance de poder tomar um rumo na vida,
reconquistar sua auto-estima e, por fim, livrar-se de Dean era tentadora demais para ser
desprezada.
— Não por dinheiro, Ash, mas pela minha independência! Eu nunca tirei nada de
Dean. Lilith pagou minhas roupas, meu estudo e me deu algum dinheiro para despesas até
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 50
eu encontrar um emprego em meio período com um veterinário da cidade. — Ela esticou a
mão e, hesitante, tocou o rosto de Ash. Ele não protestou. — Será que meu pecado foi tão
grande? Nós éramos muito jovens, Ash. Nosso ambiente aqui em Bartlet nos protegia dos
males do mundo. Éramos tão cheios de um falso orgulho, não acha? Será que já não nos
magoamos demais? — Shannon deixou a cadeira e aproximou-se de Ash, sem deixar de
tocar-lhe o rosto.
Ele também se levantou.
Atordoado pelo brilho dos olhos dela, pelos lábios tão próximos e vulneráveis, Ash
sentiu-se fraco de desejo. Sem pensar no que estava fazendo, puxou-a para um beijo
sôfrego, como se buscasse nela a seiva da própria vida. Seus braços a apertaram
violentamente de encontro a si.
Por fim, Shannon sentia que voltara para casa. Dez anos de amor e saudade foram
transmitidos naquele único beijo. Ela deixou que a raiva contida de Ash se dissipasse e,
então, acolheu-o com ternura, deixando-se consumir pela paixão.
— Diga que me perdoa — Shannon murmurou, quando Ash afastou os lábios dos
dela. — Não se passou um único dia em que eu não me lembrasse de você; nenhuma noite
em que não desejasse estar em seus braços.
— E não se passou uma única noite em que eu não a imaginasse com ele — Ash
retrucou, com a voz rouca de dor e ciúme. Seus dedos enlaçados nos cabelos de Shannon
enrijeceram-se. — Nos braços dele, beijando-lhe a boca, dormindo a seu lado. Seus sonhos
eram tranquilos, Shannon? Você o levava à loucura na cama como fazia comigo?
— Ash, não faça assim. Por favor, não pense que eu... — Ela tentou abraçá-lo, mas ele
se afastou. — Eu te amo. Eu quero você.
— Não. Eu fiz muitas coisas de que não me orgulho nos últimos dez anos. Mas isto,
Shannon? Você é uma mulher casada e não quero este peso em minha consciência. Ouvi
suas explicações, acredito em você, mas não a quero desta maneira. — Ash baixou a cabeça,
sabendo que mentira. Desejava-a tanto que seu corpo chegava a doer.
— Mas você me perdoa?
Ash não podia responder ainda. Precisava de tempo para pensar antes de admitir sua
própria culpa. Porém, sabia que Shannon não estava disposta a esperar pelas respostas.
— Shannon...
— Eu já lhe perguntei mais de uma vez, mas você não me respondeu. Por que não foi
atrás de mim? Onde estava quando eu precisei de você? O que mais aconteceu, além da
morte de Ashland´s Fire, para fazê-lo me abandonar daquela maneira? Com certeza houve
mais algum motivo.
— Fiquei sabendo que você estava dormindo com Dean — ele disse, sem encará-la.
Shannon ficou tão chocada que, por um instante, não conseguiu falar.
— Quem lhe disse isso? — ela perguntou por fim.
— Dean.
— Depois de tudo que aconteceu entre nós desde a infância, de todas as mentiras que
ele contou, das manobras que sempre fez para conseguir o que queria, você ainda acreditou
nele? Sabendo que ele desejava tudo o que você tinha, inclusive eu, mesmo assim você
acreditou?
— Sim.
Em um gesto impulsivo e rápido, ela levantou a mão e bateu no rosto de Ash.
— Como pôde acreditar nisso? Eu poderia aceitar qualquer coisa, Ash, mas isso é
demais.
Ela o deixou ali parado e, sem dizer mais nada, virou-se e foi embora. Sentia o
coração em pedaços.
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Ash a seguiu com o olhar até ver a porta da biblioteca fechar com um estrondo.
Depois levantou-se, foi até o bar, serviu-se de uma dose dupla de conhaque e tomou tudo
de um gole só. Gostaria de poder voltar atrás no tempo. Faria qualquer coisa para poupá-la
da dor que vira em seus belos olhos castanhos. Shannon havia pedido desculpas. Agora era
sua vez.

CAPÍTULO X

Shannon subiu as escadas tão arrasada que nem conseguia chorar. Entrou no quarto,
arrancou as roupas com impaciência e vestiu um roupão. Depois colocou uma cadeira em
frente à janela aberta e sentou-se, deixando a brisa leve agitar-lhe os cabelos.
Havia se esquecido de como eram belas as noites em Montana. A lua em quarto
crescente parecia suspensa em um fundo de veludo negro, como uma jóia rodeada por
centenas de diamantes. No entanto, nem o magnífico céu estrelado poderia lhe dar paz
naquela noite. Não depois do que Ash lhe revelara.
O ar frio fez Shannon estremecer e ela fechou melhor o roupão. Aquilo tudo era
muito irônico. Durante todos aqueles anos terríveis, pensara em Ash como sua única
salvação. Ele fora sua esperança, o fio de vida que a fazia prosseguir ao longo de cada dia e
de cada noite. E, de repente, ele se tornava a força destrutiva que terminava por esmagá-la.
As lágrimas não vinham a seus olhos e ela apenas fitava o infinito, sem qualquer
emoção. Estava morta por dentro.
A porta abriu-se atrás de Shannon, mas ela não se virou.
— Ash, é hora de eu ir embora daqui. Amanhã irei ver meu avô e, se ele não me
quiser lá, procurarei um hotel até decidir o que fazer de minha vida.
— Shannon... — Ele hesitou e desistiu do que ia dizer. — Eu a levarei até a casa de
Happy depois de resolver alguns assuntos na cidade.
— Obrigada. — Ela sentiu a hesitação de Ash e fechou os olhos, rezando para que ele
não fosse embora.
— Você me perguntou se o seu pecado era tão grande. Será que o meu é?
— Desculpe por ter batido em você.
— Você tinha todo o direito. Eu mereci. — Por um momento, o único ruído que se
ouviu no quarto foi o vento agitando as cortinas. — Você pode me perdoar, Shannon?
— Não sei. Honestamente, não sei. Ash, como pôde acreditar nessa história sobre
mim depois de me ter com todo o meu amor? Como eu poderia até pensar em deixar que
Dean me tocasse? Preciso compreender os seus motivos, Ash.
— Eu sei. — Ele colocou outra cadeira junto à janela e sentou-se em frente a
Shannon, com os cotovelos apoiados nos joelhos. O luar lhe iluminava os cabelos loiros. —
Vou tentar explicar da melhor maneira que puder. Acho que foi insegurança, Shannon. Ou
talvez eu estivesse apavorado e aquilo tivesse sido uma saída.
— Você não me amava?
— Claro que sim, não duvide disso. Porém, como você já lembrou várias vezes, nós
éramos muito jovens. A fazenda estava em dificuldade, havíamos perdido uma centena de
cabeças de gado por causa de doenças e do inverno rigoroso demais. Todas as nossas
esperanças foram colocadas no prêmio em dinheiro que Ashland's Fire poderia ganhar na
corrida. Papai havia sofrido seu primeiro ataque cardíaco, as contas a pagar se empilhavam
e, de repente, eu ia me tornar um homem casado. Isso tudo me causava pesadelos. E se
você ficasse grávida? E se eu perdesse as terras?
— Não sabia que você se encontrava sob tantas pressões, Ash. Eu achava que nós
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nunca havíamos tido segredos entre nós, mas parece que me enganei. Por que não me
contou? Poderíamos ter adiado o casamento.
— Sempre aquele orgulho estúpido — ele respondeu com amargura, desviando o
olhar.
— Nós formamos um par e tanto, hein? — Shannon comentou, sorrindo tristemente.
Queria muito perguntar a ele se ainda a amava, mas não teve coragem. Seria melhor
esperar mais um pouco do que ouvir uma resposta não desejada.
Ash segurou as mãos frias de Shannon entre as suas.
— Durante estes anos, deixei o ciúme corroer meu bom senso. Era difícil aceitar a
ideia de que você e Dean estavam juntos.
— Não é como você imagina. No começo eu me sentia culpada pelo que Dean se
tornara, mas acabei percebendo que não havia nada que eu pudesse fazer para ajudá-lo.
Dean era o homem mais autodestrutivo que já conheci. — Na semi-escuridão do quarto,
não podia ver bem a expressão de Ash, mas percebia que ele estava confuso. Respirou
fundo e tentou ser mais clara. — Vou lhe contar uma história que não tem nada a ver
comigo, embora seja sobre Dean e eu. A personagem não é a Shannon que você conheceu,
pois morreu em um avião com destino à França, dez anos atrás, e só retornou à vida no
momento em que viu você. Acho que não vai gostar muito dessa moça; eu também não
gosto. Mas acredito que você irá entender os motivos que a levaram a tomar certas
atitudes. — Shannon fez uma pausa tão longa que Ash pensou que ela havia mudado de
ideia e não ia mais contar nada. Estava para perguntar-lhe por que havia parado quando
ela recomeçou a falar. — Quando eu caí em mim e percebi que estava sozinha, sem ter onde
ir, sem uma família para a qual recorrer exceto Dean e sua avó, fiquei arrasada. Dean não
me perturbou e Lilith tomou conta de mim. Quando Dean começou a me pressionar para
casar-me com ele, eu não quis nem discutir o assunto. Então ele recorreu à ajuda da avó e
eu comecei a me sentir culpada por estar sendo ingrata com pessoas que só queriam o meu
bem. Pelo menos, era isso que eles viviam me repetindo dia e noite, semana após semana.
Por fim, eu cedi.
— Mas e eu?
— Ash, pense em minha situação. Eu escrevia cartas e mais cartas e não recebia
nenhuma resposta; você nunca foi me procurar. Eu me senti abandonada, fiquei certa de
que você não me queria mais. Mesmo assim, nunca enganei ninguém. Eles sempre
souberam que eu não amava Dean. Lilith dizia que isso não era importante, que muitos dos
casamentos em sua família haviam começado com base apenas em amizade. Eu sempre
deixei bem claro para Dean que nunca o amaria, que sempre pensaria em você e que meus
sentimentos não iriam mudar. Ele aceitou, dizendo que só queria tomar conta de mim. —
Shannon deu uma risada tão sarcástica que Ash se surpreendeu. — Como fui tola em
acreditar nele. Achava que íamos ter um meio casamento de conveniência, sem privilégios
conjugais. Estes foram os meus termos. Mais uma vez, ele aceitou sem discutir.
— Mas não manteve esta parte do acordo? — Ash quis saber, tenso de ciúme.
— Por um tempo, sim. Ele ficou longe de mim, o que não quer dizer que fosse um
celibatário. Houve muitas mulheres durante os primeiros meses, mas isso não me
incomodava. Afinal, ele estava cumprindo o trato. Lilith me tomou sob sua proteção,
comprou roupas para mim, me ensinou como me vestir e como me comportar na sociedade
francesa. Insistiu para que eu fizesse um curso de francês, para que aprendesse a
diferenciar antiguidades de falsificações e a apreciar a fina cozinha francesa. Por algum
tempo, cercada de atenções, eu me senti feliz. Então, Dean começou a me pressionar para
que consumássemos o casamento. Ele me queria e, justamente quando eu começava a
aceitar minha nova vida, as coisas mudaram. Ash, você não imagina como ele me fazia me
sentir culpada, jogando-me na cara que eles eram a única família que eu possuía, as
pessoas que me amavam. Você sabe como Dean é quando deseja alguma coisa; não hesita
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em usar qualquer meio, por mais desonesto que seja. — Ela parou e baixou os olhos, sem
saber como continuar. Era-lhe terrível lembrar aqueles incidentes, quanto mais falar sobre
isso.
Ash apertou-lhe as mãos, como se quisesse dar-lhe forças para ir em frente.
— Continue.
— Bem, por fim eu cedi. Aquela noite foi um desastre total. — Shannon não tinha
palavras para descrever a sensação de repugnância que lhe causavam a boca e as mãos de
Dean sobre seu corpo. Ele percebia essa reação, mas parecia tirar um prazer sádico da
resistência dela. Dean a possuíra à força, apesar de todas as súplicas.
Ash ouvia em silêncio, com os olhos fixos no rosto dela. Sabia como Dean se
comportava com suas conquistas e tinha certeza de que sua atitude agressiva não havia
mudado apenas porque a mulher era Shannon.
— Na manhã seguinte — Shannon prosseguiu — eu tentei me manter ocupada para
esquecer o que havia acontecido. Limpei a casa toda, mas era inútil. Tinha vontade de me
atirar de uma ponte. Foi aí que encontrei as cartas, todas elas, em uma velha caixa de
sapatos escondida atrás do armário de roupas de Dean. Alguma coisa explodiu dentro de
mim naquele instante, Ash. A apatia que sentira até então se transformou em ódio. Eu
disse a ele, com toda seriedade, que se ele voltasse a me tocar eu o mataria.
— Você deveria ter voltado para casa — Ash declarou, estremecendo com a última
afirmação dela.
— Para casa? Para um ex-noivo que já não me queria? Para um avô que me
desprezava? O fato é que fomos arrastando nosso casamento por um ano, até que eu não
pude aguentar mais. Dean começou a flertar mulheres abertamente, talvez pensando que
iria me causar ciúmes. — Ela apoiou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos,
sabendo que a próxima parte seria a mais difícil. — Uma noite, Dean chegou em casa cedo,
com uma expressão estranhamente satisfeita. Durante todo o jantar ele me provocou,
lembrando-me o quanto os Wayne haviam feito por mim e o quanto eu devia e eles. Eu não
podia suportar ver Dean tão contente enquanto me sentia péssima. Então eu lhe falei que
ia dar entrada a um processo de divórcio. Sabe o que ele fez? Riu de mim! Uma risada
maldosa, única. Só mais tarde ele me contou o motivo daquele comportamento: você havia
se casado. Era revoltante a maneira como ele comemorava sua vingança. Naquela noite,
pela primeira vez na vida, eu fiquei realmente com medo dele. Dean parecia descontrolado.
— O que mais aconteceu? — Ash indagou, vendo-a tensa.
— Eu ri por último, Ash. Ele tentou me violentar, mas não conseguiu fazer nada.
Tornou-se impotente diante de mim e me acusou de ser a culpada. Imagine como ele se
sentiu: podia desempenhar suas funções de homem com as outras mulheres, mas não com
a esposa. Sei que colaborei para isso acontecer e foi a minha vingança. Nunca deixei que
ele esquecesse que eu era sua, Ash. Sempre deixei bem claro que ele não podia competir
com você. Isso o irritava profundamente. Sabe que Dean sempre teve inveja de você, não é,
Ash?
— É, eu sei.
— Mesmo assim, ele não me deixava ir embora. Não podia me possuir, mas você
também não. Mas mesmo que eu tivesse me divorciado, para onde iria? Aí, eu e Lilith
fizemos nosso trato. Eu estava a salvo de Dean e queria fazer alguma coisa para me tornar
independente.
— Ele tentou tocá-la depois disso?
— Sim, mas continuava impotente diante de mim e eu fazia questão de lembrá-lo
disso. Bem, eu avisei que não era uma história bonita e que eu não me orgulhava do que fiz
— ela acrescentou, vendo a expressão espantada de Ash. — Dean foi ficando cada vez pior.
Bebidas, drogas, mulheres... homens. Levava abertamente suas atividades, mas eu não me
importava e isso o irritava a tal ponto que ele fazia coisas cada vez mais degradantes.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 54
Formou-se um círculo vicioso, mas ele parecia até gostar. Lilith sofreu muito quando
percebeu como Dean era na realidade. Tinha receio por mim, vivia me alertando que Dean
andava muito quieto, que ele devia estar planejando algo terrível. Quando ela soube que
Dean estava me forçando a vir com ele para Montana, aconselhou-me a aceitar a viagem e,
então, deixá-lo e conseguir o divórcio. Ela garantiu que daria um jeito de Dean não voltar a
me perturbar.
— E essa Lilith estava certa? Dean planejava mesmo alguma coisa? Ele tentou
machucá-la na montanha, Shannon?
Um estranho frio apossou-se do corpo de Shannon, fazendo-a tremer dos pés à
cabeça.
— Eu não sei, Ash. Eu... — Ela parou, incerta. Não sabia se devia falar sobre o que
vira.
— Você se lembra, não é?
— Só de fragmentos que não fazem sentido. — Não podia contar sobre o medo
irracional que as recordações causavam, não antes de ter certeza de seu significado.
Ash levantou-se e Shannon estremeceu, receando que ele fosse deixá-la. Em vez
disso, porém, ele a ergueu, sentou-se na cadeira e puxou-a para o colo.
— Preciso abraçá-la um pouco.
Shannon aconchegou-se junto ao peito dele, desfrutando a deliciosa sensação de
calor e proteção que há tanto tempo não experimentava. Quando o fitou, seus olhos
estavam cheios de amor. Gostaria que pudéssemos esquecer o passado, fazer de conta que
nada aconteceu, Ash.
— Isso não resolveria o problema. — E se Dean estivesse morto, ele pensou, os
problemas mal teriam começado.
Shannon observou o rosto de Ash, tentando colher alguma esperança em sua
expressão, mas, como sempre, ele mantinha os sentimentos bem guardados. Houvera
tempos em que, de tão íntimos, ela conseguia até ler os pensamentos dele. Agora, sentia-se
perdida e confusa.
— Há alguma esperança para nós, Ash?
Ele tocou-lhe os cabelos, deixando os dedos deslizarem pelos fios sedosos.
— Tudo vai dar certo.
Não era bem a resposta que ela queria ouvir, mas era melhor do que o silêncio
anterior. Shannon relaxou e fechou os olhos, aos poucos rendendo-se ao cansaço.
— E quanto a perdoar, Ash? — ela murmurou, sonolenta.
— Nós dois temos de pensar muito nisso, não é?
Ele a segurou nos braços, ouvindo a respiração lenta e regular. Percebeu que
Shannon havia adormecido. Se ao menos não houvesse se debatido em orgulho e auto-
piedade e tivesse ido atrás dela dez anos atrás, nada daquilo teria acontecido. A vida de
Shannon não teria sido tal inferno. Ash olhou para o céu estrelado além da janela e deixou-
se invadir pela calma beleza da noite. Sempre amara aquela mulher, mesmo nos momentos
em que mais a odiava.
Surpreendera-se ao saber que, mesmo depois de tudo o que lhe acontecera, ela nunca
deixara de amá-lo. Se permanecia reticente com Shannon, era apenas por causa dos
acontecimentos dos últimos dias. Precisava primeiro saber sobre Dean. Tinha de manter-
se forte e não ceder às emoções enquanto esperava que Jeff trouxesse notícias. Depois,
saberia o que fazer.

O sol da manhã surgiu no horizonte, afastando a escuridão com seus delicados dedos
de luz. Shannon moveu-se em meio ao sono, atormentada com o som do vento, um gemido
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 55
constante, um lamento que jamais lhe deixava os ouvidos. A rosa... Uma rosa vermelha de
sangue...
Ela gemeu, batendo a cabeça no ombro de Ash, como para impedir a interferência do
pesadelo em seus belos sonhos. "Vou matar você", murmurou.
Totalmente acordado, alerta ao que ela acabara de dizer, Ash enrijeceu o corpo e
esperou pela continuação.
"Vou matar você antes de deixar Ash possuí-la..."
Ela começou a lutar contra os braços que a seguravam, agitada e sem fôlego.
— Calma — Ash sussurrou, apoiando-a com mais firmeza. — Acorde, Shannon. Você
está apenas sonhando.
Ela abriu os olhos cheios de terror.
— Apenas um sonho?
— Sim. — Ash a observou com atenção. As palavras de pânico que ela murmurava
ainda ressoavam em seus ouvidos. — Foi um sonho ruim?
— É, foi — ela admitiu, desviando o olhar.
— Lembra-se de alguma coisa?
— Não — ela respondeu, perdendo o pouco de cor que lhe restava nas faces. Seria
possível que Ash suspeitasse de algo?
Ash sabia que ela não estava sendo totalmente sincera e foi-lhe um grande
desapontamento perceber que Shannon ainda não confiava nele o suficiente para se abrir.
Mas quem poderia culpá-la depois de tomar conhecimento da vida que fora obrigada a
levar?
Ela endireitou o corpo e se espreguiçou.
— Não quer dormir mais? — Ash indagou.
— Não — ela respondeu, sorrindo. — Aposto que você está com câimbras de tanto me
segurar. Por que não me acordou?
Ela ficou em pé, parecendo nervosa, como se tivesse receio que Ash insistisse no
assunto do pesadelo.
— Eu gostei de segurá-la.
Shannon o encarou por um instante e tornou a sorrir. Aquela fora a primeira frase
encorajadora que Ash lhe dissera.
— Eu também gostei.
Ash levantou-se devagar, sacudindo o pé adormecido e rindo por não conseguir
mover direito os dedos da mão esquerda.
Shannon tinha vontade de abraçá-lo e rir junto com ele. Há muito tempo não se
sentia tão bem. Porém, Ash já caminhava para a porta de conexão com seu quarto e não
tardou a destruir-lhe a felicidade.
— Vou sair um pouco pela manhã, mas ao meio-dia estarei aqui para levá-la à casa de
seu avô.
Shannon mancou até a cama e sentou-se, enquanto tentava imaginar por que ele iria
querer livrar-se dela logo após terem começado a se entender novamente. Ou talvez ela
apenas estivesse vendo coisas que não existiam no que acontecera entre ambos, levada
pelo enorme desejo de que ele a amasse outra vez...

CAPÍTULO XI

Sentada no sofá da biblioteca, aguardando Ash, Shannon pensava que, ao longo da


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história, as mulheres sempre viveram esperando por seus homens; esperando que
voltassem do mar, esperando que retornassem da guerra.
Para matar o tempo, resolveu folhear álbuns de fotografia. Devia haver uns sessenta
volumes de couro em verde-musgo e dourado nas prateleiras; uma espécie de diário da
vida dos Bartlet.
Os dois que ela escolheu eram os últimos, os que ela nunca havia visto. Dez anos
resumiam-se naqueles livros grossos. Anos de vida de Ash nos quais não tomara parte.
O passatempo a entretinha, até que chegou às fotos do casamento dele. Deu uma
olhada na moça que o fitava com ternura e virou as páginas depressa. Ash nunca
comentara o assunto, a não ser para afirmar que não havia dado certo e que a culpa fora
dele. Talvez estivesse com a razão. Ele e Shannon pareciam destinados a destruir qualquer
pessoa que se intrometesse entre ambos. Ao mesmo tempo em que isso a entristecia,
também lhe dava uma certa esperança: quem sabe estavam fadados a ficar juntos.
Virou outra página do último livro e deparou-se com uma foto de Jenny e Paula em
uma rua de Paris que ela reconheceu de imediato. Provavelmente fora tirada na última
viagem que tinham feito, dois meses antes. Nenhuma das duas parecia estar se divertindo
no inverno rigoroso que quase paralisara a França.
Já ia fechar o álbum quando a ponta da fotografia escapou da cantoneira preta.
Quando foi arrumar, uma outra foto, cuidadosamente escondida sob a primeira,
escorregou da página e caiu sobre seu colo.
Shannon arregalou os olhos, primeiro por surpresa, depois por aversão. Dean
aparecia de pé, com o braço em torno dos ombros de Paula. Havia algo pútrido no retrato,
algo diabólico no rosto dele, um prazer quase selvagem, como se houvesse acabado de
cometer seu ato supremo de vingança contra ela. Seria possível que o marido tivesse tido
um caso com Paula? Uma sensação de náusea lhe trouxe um gosto amargo à boca.
Reconhecia aquela expressão. Já a havia visto muitas vezes, havia escutado sua
risada sarcástica quando ele lhe contava sobre novas conquistas. Dean seria bem capaz de
seduzir Paula para vingar-se de Ash.
Shannon fechou o álbum, mas continuou com a fotografia de Paula e Dean nas mãos.
Colocou-a sobre a mesa e, então, olhou para a janela. Raios de sol filtravam-se através da
cortina leve, formando um estranho desenho no assoalho. O zumbido recomeçou,
enquanto o vento, frio e cortante, jogava-lhe os cabelos no rosto e nos olhos. Uma rajada
forte a empurrou pelas costas, fazendo-a dar um passo em direção à borda de Devil´s Leap.
Mas não era o vento. Era Dean.
Ela abaixou-se depressa para pegar algo, algo longo e frio que estava no chão.
Quanto levantou os olhos, Dean não se encontrava mais atrás dela, mas parado à sua
frente, com o rosto cheio de ódio.
Ele estava gritando, mas as palavras perdiam-se no vento gelado. Uma rajada de
neve, espessa como uma cortina, a cegou de repente.
O terror minou suas forças, paralizando-a. Dean ia matá-la. Mal conseguia respirar
com as mãos de Dean lhe apertando o pescoço, os dedos afundando-se em sua pele. Podia
ver a selvageria descontrolada nos olhos irados, sentir-lhe a respiração quente enquanto
ele aumentava lentamente a pressão dos dedos e murmurava em seu ouvido: "Você não vai
me abandonar. Vou matar você antes de deixar Ash possuí-la".
Shannon levantou o braço, com a arma em posição, quando de repente ele a soltou e
cambaleou para trás, ofegante. O vento uivou mais alto, como um animal que perde sua
presa.
Então ouviu-se um bramido ensurdecedor e, quando ela levantou os olhos, viu a boca
de Dean movendo-se sem produzir sons. Flocos de neve depositavam-se nos olhos dela,
nublando-lhe a visão. Não podia discernir o que estava acontecendo, mas Dean parecia
estranhamente rígido. Então, como em câmera lenta, ele foi ao chão e despencou sobre a
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borda de Devil´s Leap.
Subitamente ele sumiu de vista, mas não antes que ela visse a mancha vermelha que
se alargava em sua camisa. Como em estado de transe, levantou o braço e fitou a arma que
tinha na mão...
Trêmula, Shannon lutou para abafar a memória. Deus, o que teria feito?
Baixou a cabeça e tentou controlar a respiração acelerada. Não era verdade! Não
conseguia lembrar-se de tudo que acontecera, apenas fragmentos desconexos que não
faziam sentido. Com certeza havia sonhado e transformado imagens ilusórias naquela cena
horrível.
Paula entrou na biblioteca e parou com uma expressão de desgosto ao ver Shannon.
A calça bege e a blusa de seda em várias tonalidades pastel que Shannon usava eram
definitivamente Valentino. Vira aquele modelo na revista Cidade e Campo no mês anterior.
Não era justo! Era ela quem deveria estar usando roupas de griffe.
Shannon levantou a cabeça, viu Paula e a chamou quanto a mulher já se virava para
sair.
— Eu não sabia que você e Jenny haviam se encontrado com Dean em Paris nestes
últimos meses.
— Você está imaginando coisas.
— Então isto é imaginação? — Shannon indagou, pegando a foto sobre a mesa.
Paula aproximou-se e ficou pálida ao ver o retrato.
— Ah, isso. Onde o encontrou? —- Então ela viu os álbuns de fotografias sobre a
mesa e passou a mão trêmula pelos cabelos loiros. — Este retrato foi tirado em uma viagem
cerca de dois anos atrás.
— É mesmo?
— Sim, Jenny estava saindo com o filho do embaixador americano e Dean
encontrava-se em uma espécie de missão diplomática em nome do pai. Pediu que nós o
encontrássemos em Paris. Ou será que foi quando eu me internei em uma clínica em
Zurique para perder alguns quilos e me recuperar de uma temporada interminável de
festas em Washington? É, deve ser isso.
— Você é uma mentirosa, Paula.
— Sua amnésia deve estar te confundindo. Eu já lhe disse que foi há dois anos. Jenny
e eu fomos a Paris e encontramos Dean por acaso.
— Não, Paula. Este casaco que Dean está usando na foto foi um presente que ganhou
da avó no último Natal.
— Você deve estar louca. — Paula virou-se para sair, mas parou assustada ao ver a
passagem bloqueada por Bridget.
— O patrão não vai gostar de ver a senhora perturbando a menina. Além disso, a
senhora está mentindo e isto é tão certo quanto meu nome é Bridget O'Conner.
— Meta-se com sua vida! — Paula revidou.
Bridget cruzou os braços sobre os seios amplos, examinando Paula com um ar
intrigado. Ela não costumava ficar de robe até tão tarde; pelo contrário, sempre se
arrumava com esmero desde cedo. A mulher não devia estar muito bem da cabeça naquela
manhã, ela pensou.
— Oh, está bem — Paula, cedeu, percebendo que não sairia de lá enquanto não
contasse a verdade. — Nós nos encontramos com Dean na última viagem e ele nos pagou
um almoço.
Bridget permaneceu imóvel diante de Paula, mas Shannon decidiu que já havia
causado problemas demais na casa de Ash. Não queria que ele a repreendesse por ter
perturbado sua madrasta.
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— Bridget, será que posso usar algum carro ou caminhão da casa? Vou ver meu avô.
— Pode usar o meu — Paula ofereceu, para surpresa das outras duas mulheres. — É o
Mercedes esporte azul que está na garagem. Tem certeza de que pode guiar com esse
tornozelo dolorido?
— Claro, não há problema.
— Ash não vai gostar disso — Bridget interrompeu. — Você devia ficar aqui e esperar
por ele.
— É verdade, ele disse que me levaria esta manhã. Mas já é meio-dia e meia e estou
cansada de esperar.
— Vai embora de vez? — Paula indagou.
— Sim, se Happy me deixar ficar. Mas voltarei mais tarde para pegar minhas malas.
— Não estou gostando nada disso — Bridget resmungou, afastando-se para deixar
Paula passar e observando-a sair do aposento. — Ela nunca empresta o carro para
ninguém.
— Talvez esteja tão ansiosa para se livrar de mim que até resolveu fazer uma
concessão.
— Não sei, não. — Os olhos azuis de Bridget se estreitaram e ela franziu a testa. — Há
algo estranho por aqui que não está me agradando.

As paisagens de sua infância estavam gravadas tão fortemente no coração que era
doloroso fitá-las pela janela do carro. Shannon apertou o volante, enquanto lágrimas lhe
escorriam dos olhos.
A Double R, fazenda dos Reed, era uma propriedade muito pequena em comparação
às vizinhas Barra B e Rocking W. Seus moradores sempre haviam sido pacíficos e Shannon
acreditava ser a única Reed da história a romper a tradição da família: uma Reed criadora
de problemas. Desde pequena a chamavam de "ventania", mas ela não se importava, pelo
menos na ocasião.
Abafando o ruído suave do motor, ouviu o rio que atravessava o vale. As águas
geladas nasciam nas montanhas com picos nevados e desciam as encostas escarpadas para
vir correr em um roda serpenteante até o grande lago localizado atrás da propriedade dos
Reed. Desembocava em uma graciosa cachoeira que refletia belos arco-íris sob os raios do
sol.
Da estrada, Shannon podia avistar o lago rodeado de cerejeiras. Como desejava vê-
las floridas, com as pétalas agitando-se na brisa leve...
Shannon fez mais uma curva e o coração se acelerou de agitação e medo. Estava em
casa. E se o avô não a quisesse ver? E se de não a perdoasse?
Estacionou diante do sobrado de madeira avermelhada e recostou-se no banco. A
casa havia sido construída mais ou menos na mesma época que a de Ash, mas mantinha
uma inigualável harmonia com a natureza, assentando-se com perfeição entre os pinheiros
gigantescos que enchiam o ar com seu aroma.
Antes que perdesse a coragem, abriu a porta, pegou a bengala e saiu do carro.
Caminhou decidida até a casa, encarando o dia particularmente bonito como um bom
presságio. Bateu à porta e esperou. Como ninguém vinha atendê-la, virou a maçaneta de
bronze, entrou na sala e ficou imóvel, apenas olhando em torno de si.
Era como se nunca tivesse partido. Como entrar em um sonho ou, então, voltar no
tempo.
Sentiu-se desorientada e incrivelmente jovem. Os últimos dez anos pareciam ter sido
apenas um pesadelo que nunca se tornaria realidade. Acordaria em uma manhã ensolarada
e encontraria Ash tomando café com Happy na cozinha e rindo dela por estar tão
descabelada. Beijaria o rosto do avô à noite e sonharia com sua vida junto de Ash. Era
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 59
criança outra vez, alegre e livre.
Gritando o nome do avô, percorreu a casa com a rapidez que seu tornozelo permitia,
procurando por ele e observando os cômodos tão familiares. Subiu as escadas e viu-se
diante de seu velho quarto. Segurou a maçaneta cheia de excitamento, mas deteve-se
quando um pensamento lhe passou pela cabeça. E se o quarto estivesse vazio? Com o
coração em expectativa, abriu a porta devagar.
Lágrimas começaram a correr pelo rosto, seguidas por um soluço doloroso e
profundo. Nada havia mudado. Até mesmo a fotografia emoldurada de seus pais, que ela
não chegara a conhecer, permanecia em pé entre os frascos de perfume e bugigangas em
sua penteadeira de três espelhos. Tudo estava como ela deixara; como se pudesse ir
caminhando e reconstruindo pedaço a pedaço a sua vida.
Enxugando as lágrimas com a mão trêmula, Shannon aproximou-se da janela. Tocou
a descorada cortina amarela e branca quase com reverência e então afastou-a para que
pudesse olhar o pátio. O grande carvalho ao lado da janela havia resistido aos anos e
permanecia forte e convidativo, estendendo seus galhos estrategicamente colocados como
uma escada ligando o chão a seu quarto. Quantas vezes tinha descido por ali para
encontrar-se com Ash e Dean! Quantas vezes Ash havia subido apenas para sentar-se no
galho ao lado da janela e conversar durante horas quando ela estava presa em casa com
alguma doença infantil! Quantas vezes ele havia estado naquele mesmo lugar, fitando as
duas cachoeiras de tijolos vermelhos, o gramado sempre verde e as águas azuis do lago!
À esquerda, além da floresta ao pé das montanhas, havia um lugar encantado. Os
ramos entrelaçados e a folhagem espessa dos cedros formavam uma espécie de gruta,
filtrando a luz do sol e tingindo tudo de um verde sombrio. No entanto, era um local
tranquilo e bonito, de onde se ouvia o som das águas correndo em um riacho próximo.
Era um lugar de sonho, onde vivera todas suas fantasias infantis, onde fora a
princesa esperando que um cavaleiro viesse salvá-la de dragões e bruxas. Mais tarde,
aquele se tornara seu esconderijo, onde podia deitar-se entre os musgos macios e passar
horas fazendo projetos, com Ash a seu lado.
Sentia-se viva pela primeira vez em dez anos e não era apenas pelo fato de estar em
casa. Era o céu claro, tão próximo do paraíso, as montanhas e a terra... O solo de Montana
fazia parte dela, as águas do lago fluíam em seu sangue e o perfume das árvores era como o
próprio ar que respirava. Aquele era o seu lugar e era ali que pretendia ficar.
— Eu sabia que um dia você voltaria para casa.
Shannon virou-se e mal pôde conter a emoção. Happy Reed, um pouco mais velho e
grisalho, estava parado junto à porta, olhando para ela.
— Vovô — ela murmurou, cedendo às lágrimas que lhe inundaram os olhos.
— Eu sou um tolo que não tem coragem de pedir desculpas.
— Oh, vovô!
Shannon correu para os braços do avô, como um passarinho que retorna ao ninho.
Quando percebeu que ele começava a tremer, soluçou ainda mais alto para abafar a
opressiva sensação de culpa.
Happy Reed soltou a neta de seu abraço e a examinou, com o resto molhado pelas
lágrimas.
— Veja só. Minha menina é uma mulher adulta. E linda com a mãe.
— Eu escrevi para você — ela disse, ainda soluçando.
— Não importa agora. Você está em casa.
— Escrevi todos os dias, durante meses. Dean escondeu as cartas em vez de colocá-
las no correio.
— Aquele canalha!
— Você, eu senti muita saudade de você.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 60
— Eu te amo, minha filha.
— Nunca mais vou voltar para ele.
— Claro que não.
— Quero me divorciar.
— Cuidaremos disso.
— Amo você, vovô. Desculpe por tê-lo decepcionado.
— Eu sou um velho idiota cheio de orgulho.
— Eu também.
Ambos começaram a rir, abraçando-se de novo. Quando deu um passo para trás,
Shannon pôs muito peso no tornozelo machucado e gemeu. Happy a abraçou pela cintura e
a fez descer as escadas em direção à cozinha.
— Agora sente-se e deixe-me dar uma olhada nesse pé.
— O dr. Henry...
— O dr. Henry é um empurrador de comprimidos. Ele não entende de torções
musculares como eu. — Happy abaixou-se, desenfaixou o tornozelo e o examinou
atentamente. — Parece que está indo bem. Mais alguns dias e você estará como nova.
Só então Shannon reparou que ele tinha um olho roxo e o fitou com ar de
repreensão.
— Com quem andou brigando, vovô?
— Ah, por causa do olho? Foi uma coisa à-toa, mas lhe garanto que ele levou a pior.
— Happy apoiou-se na mesa para ficar em pé e, então, enfiou as mãos nos bolsos como
quem dava aquele assunto por encerrado. — Precisamos conversar, Shannon. Sobre o
passado, sobre tudo o que aconteceu.
— Eu sei. — Shannon olhou em volta enquanto o avô tirava duas xícaras do armário.
Em cada peça da cozinha notava algum sinal da passagem do tempo.
— Em que está pensando?
— Estava lembrando de quantas vezes nós nos sentamos aqui, assim como hoje,
discutindo as coisas que havíamos feito durante o dia.
— O tempo pode ser um grande inimigo, minha filha. Não devemos desperdiçar nem
um segundo. Sei que não estive sempre a seu lado quando você era criança, mas eu queria
dar o melhor a você, desejava compensá-la pela perda de seus pais. Não foi fácil para mim,
afinal já tinha passado da idade de ser pai, mas eu a amei muito e ainda amo.
— Eu sei, vovô.
— Mas eu falhei dez anos atrás e não posso me perdoar por isso. Deixei o maldito
orgulho afastá-la de mim. Muitas noites eu fiquei deitado pensando o que meu filho e sua
mãe teriam feito se estivessem vivos.
— Por favor, vovô, não fale assim.
— Não, querida, eu preciso falar. Devia ter lhe dado uma chance em vez de condená-
la tão depressa. Eu devia ter sabido que era culpa de Dean.
— Como assim? — ela indagou, fitando o avô com uma expressão intrigada.
Happy sentou-se em frente a ela, serviu o café e, então, pigarreou.
— Dean causou deliberadamente o acidente que matou Ashland´s Fire. Ele declarou
a Clyde, aquele maricas do capataz dele, que se não pudesse possuir você ele preferiria vê-
la morta a deixar que se casasse com Ash. Por sorte, foi apenas o cavalo de Ash que
morreu, mas todos se voltaram contra você. Então, antes que pudéssemos perceber o que
estava acontecendo, você partiu e todos tiveram orgulho demais para dar o primeiro passo
e trazê-la de volta.
— Está dizendo que Dean planejou tudo? Que ele estava tentando me matar? Ah,
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vovô, isso é um absurdo. Eu poderia esperar qualquer coisa dele agora, mas na época
éramos muito jovens.
— Ah, mas Dean nasceu traiçoeiro e perigoso. Por que você acha que eu nunca a
deixava sair sozinha com ele? Insistia para que Ash sempre estivesse junto. Aquele Dean
Wayne é uma peste.
— Mas...
Happy segurou as mãos da neta e a olhou de frente.
— Eu descobri a maior parte da história apenas esta manhã. Sabe, quando o pai de
Dean lhe trouxe Dictator da França, eu avisei que o cavalo era perigoso. Nunca na minha
vida tinha visto um animal como aquele. Alertei Dean mais de uma vez de que precisava
amestrá-lo ou nunca poderia montá-lo junto com outros cavalos. Dictator gostava de
brigar. Eu verifiquei seu histórico e provei a Dean que o cavalo era um assassino. Já havia
causado a morte de três outros animais e aleijara seus treinadores. Mas Dean não queria
ouvir. Como pode perceber, Shannon, ele sabia o que o animal ia tentar fazer quando a
desafiou para uma corrida. Dean planejou tudo. Sabia que Dictador ia forçar a disputa até
ver Ashland´s Fire no chão.
— Ele me odiava tanto desde aquela época? — Shannon sacudiu a cabeça, incrédula.
— Não, ele amava você com um amor tão destrutivo e obsessivo que só poderia
terminar mal. Mas isso não é tudo. Durante todo esse tempo em que você estava longe e
que ele voltava três a quatro vezes por ano para examinar Rocking W, os boatos sobre você
corriam soltos. Ele pagava Clyde para manter os rumores sempre presentes.
— Que tipo de rumores, vovô?
— Você não vai querer saber, filha.
— Sim, eu quero. Preciso saber de tudo. Por favor, conte.
— Eram histórias sobre seu comportamento turbulento na Europa. Falavam de
drogas, festas, bebidas, orgias e muitos homens.
— Não posso acreditar. Juro que isso não é verdade, vovô. — E pensou no
constrangimento e humilhação que o avô orgulhoso devia ter enfrentado quando entrava
em alguma loja da cidade e ouvia algum de seus amigos falando sobre ela. — Por quê? Por
que ele faria isso?
— Para evitar que nós, principalmente Ash, quiséssemos ir buscar você. Para nos
manter afastados, assim ele poderia possuí-la sozinho e vangloriar-se de ter vencido Ash.
— Estou tão envergonhada, vovô.
— Por quê? Nós todos éramos peças do jogo destrutivo de Dean.
— Eu ainda sinto como se fosse tudo culpa minha. Nada disso teria acontecido se eu
não houvesse deixado Dean me convencer a ir embora tão depressa. Ah, vovô, eu poderia
ter...
— Pare com isso, minha querida. É melhor esquecermos o passado. Nunca me
importei com o que falavam ou pensavam de você. Conheço bem a minha menina.
— Obrigada por ter confiado em mim. — Sempre segurando as mãos do avô,
Shannon lhe fez um breve relato dos últimos dez anos. — Mas o que interessa é que agora
sou uma veterinária formada — concluiu, orgulhosa. — Preciso ver o que é necessário para
transferir minha licença profissional para Montana. Imagine só, vovô, vou poder trabalhar
com você! — Ao perceber que ele não demonstrava surpresa nem entusiasmo, Shannon
sentiu-se um pouco decepcionada. Mas então Happy sorriu meio sem graça, de uma
maneira que ela conhecia muito bem. — Você já sabia!
— Já, mas não queria lhe tirar o direito de me contar. Ash conversou comigo esta
manhã.
— Ele esteve aqui? Contou tudo a você?
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 62
— Ele não conseguiu guardar segredo.
A porta dos fundos se abriu e Ash entrou na cozinha.
— Uma das razões para eu não ter aparecido para buscar você foi que precisei tirar
Happy da cadeia. — ele explicou.
— Há quanto tempo você está ouvindo? — Shannon quis saber. — E por que meu avô
estava na cadeia?
Os dois homens se entreolharam, sorrindo. Então Ash pegou uma xícara no armário,
serviu-se de café e acomodou-se em uma cadeira.
— Eu estava sentado aí fora desde que você e Happy desceram para a cozinha. Não
quis interromper a conversa.
— Está bem. Mas agora contem logo o que está havendo.
— Curiosa como sempre, não é Happy?
— Ela nunca conseguiu suportar quando alguma coisa estava acontecendo e ela não
sabia todos os detalhes da história.
— Querem parar de me provocar? Como você foi parar na cadeia, Happy?
— Não foi muito difícil. — Happy tocou o olhou roxo e dolorido. — Jeff me pediu para
ter uma conversa com o fofoqueiro do Chester a respeito dos boatos que ele espalhou a seu
respeito. Nosso delegado achava que Chester não era suficientemente esperto para ter
inventado tudo aquilo sozinho e, portanto, alguém deveria estar passando as histórias para
ele. Eu abordei o velho mexeriqueiro no Cattleman's Café e quando lhe perguntei com toda
a delicadeza se...
Ash e Shannon puseram-se a rir, sabendo que a abordagem de Happy não devia ter
sido nada delicada. Ele e Chester eram inimigos há muito anos.
— Posso continuar? Bem, o fato é que ele escolheu bem esta manhã para ser
mentiroso e furtivo, então eu o agarrei pela camisa, levei-o até a calçada e bati nele até que
decidisse falar. Soube que o capataz de Dean estava sendo pago para manter os boatos em
circulação e Clyde pagou Chester para ajudar. Atraímos um bocado de atenção na cidade,
inclusive a do substituto de Jeff na delegacia. O velho Chester achou que estava seguro na
presença de uma autoridade e recomeçou a falar mal de você. Eu revidei na hora e fiz
aquele canalha cair no chão de tanta pancada. Bob deve ter achado que a única maneira de
parar a briga era nos levar para a cadeia.
Shannon não podia acreditar. Seu avô brigando na rua principal de Bartlet na frente
de todo mundo! Não sabia se ria ou ficava zangada. No fim, o riso acabou vencendo.
— Happy!
— Foi bom demais, minha querida. Eu faria tudo de novo só para me vingar daquele
inútil que ficou difamando você. Aposto que hoje a cidade está fervilhando com essa
história. — Sua expressão satisfeita tornou-se séria ao olhar para Shannon e examinar pela
primeira vez as manchas escuras no pescoço e rosto da neta. — Prometo a você que Dean
também vai se ver comigo assim que aparecer por aqui.
— O problema é esse, vovô. Ele sempre acaba aparecendo.
Ash e Happy trocaram um olhar que a deixou nervosa. Levou a xícara aos lábios e
tomou um grande gole, curiosa para saber qual era o problema. Porém, acabou decidindo
não perguntar nada. Não estava com vontade de falar sobre Dean.
— Você ainda não se lembra de nada, minha filha?
— Não. — A alegria sumiu de seu rosto, sendo substituída por medo e dúvida.
— Bem, isso tudo não vai demorar para ser esclarecido.
Ash levantou-se depressa, interrompendo a conversa. Ainda não queria que Shannon
soubesse que Jeff havia subido a montanha à procura de Dean. Seria melhor que
esperassem até tomarem conhecimento do que havia acontecido. Aproximou-se de
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 63
Shannon e tocou-lhe o ombro.
— Acho que já é hora de voltarmos para a fazenda.
— O quê? Pensei que você queria que eu ficasse aqui.
— De onde tirou essa ideia?
— Você me disse ontem à noite...
— Eu disse que a traria até aqui, mas não que você teria de ficar. Como sempre, você
tirou conclusões precipitadas. A propósito, por que não esperou por mim?
— Você sabe que eu detesto esperar. Além disso... — Ela ia mencionar a conversa
com Paula, mas decidiu que aquele não era um assunto para ser comentado na presença do
avô. — Bem, não importa. Mas já que estou aqui, talvez devesse ficar. Já causei problemas
demais em sua casa. Paula e Jenny estão loucas para que eu saia e Bridget já discutiu com
as duas por minha causa.
— Tolice! Você vai voltar comigo.
— Vovô...
— É melhor você ir, Shannon. Estou cheio de trabalho e você ficaria muito sozinha
aqui em casa. Ash pode protegê-la melhor no Barra B.
— Proteger? Por quê? — ela quis saber, com uma repentina sensação de medo.
Os dois homens se entreolharam e os estranhos pressentimentos que a
acompanhavam desde cedo aumentaram.
— Queremos ter certeza de que Dean não vai poder perturbá-la se voltar a aparecer
— Happy respondeu depressa. — Eu estou velho. Ash poderá tomar conta melhor de você.
Shannon sabia que ambos escondiam alguma coisa dela e não gostava nem um pouco
da situação. Porém, antes que pudesse to mar qualquer atitude, Ash lhe tirou a xícara das
mãos, fez com que se levantasse e a conduziu para a porta da frente, parando apenas para
que ela desse um beijo de despedida no avô.
— Vamos voltar no carro de Paula — ele resolveu. — Mais tarde mando um dos
homens vir buscar meu caminhão.
Um tanto contra sua vontade, Shannon viu-se sentada no banco do automóvel,
acenando para o avô enquanto punham-se em movimento. Na estrada, virou-se para Ash
com uma expressão séria.
— Agora eu quero saber que história é essa de me proteger. Happy está visivelmente
preocupado e você também. Ouviu alguma notícia sobre Dean? Ele já apareceu?
— Sabe de uma coisa? Em todos esses anos eu nunca vi seu avô tão sorridente.
— Não mude de assunto, Ash.
— Você devia tê-lo visto esta manhã — ele prosseguiu, como se não a tivesse ouvido.
— Happy estava em uma cela, Chester em outra, mas não paravam de brigar. O auxiliar de
Jeff não sabia mais o que fazer e quase me deu um beijo de agradecimento quando apareci
para buscar seu avô. Então Chester começou a gritar que iria abrir um processo por perdas
e danos e Happy ficou tão zangado que queria pagar a fiança do fofoqueiro só para poder
bater nele outra vez. Nunca ri tanto em minha vida.
Shannon baixou o vidro da janela e deixou o vento refrescar seu rosto zangado. Era
evidente que Ash não ia responder à pergunta. Estavam escondendo algo e ela sempre
detestara segredos.
Ash desviou a atenção da estrada por um segundo para fitar Shannon. Era bom
perceber que certas coisas nunca mudavam. Quando Shannon ficava brava, o rosto se
tornava corado e ela apertava os lábios. Quem não a conhecesse bem poderia pensar que
estava emburrada, mas esta atitude nunca ocorrera a Shannon. Ela apenas estava
pensando no próximo comentário que iria fazer e Ash esperava ansioso pelo resultado.
Sentira muita falta até mesmo daqueles pequenos embates verbais.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 64
Ele diminuiu a velocidade, preparando-se para a curva perigosa que tinha logo à
frente. De repente, ouviu um ruído forte, como um estalido, e um dos pneus furou. O
automóvel descontrolou-se antes que Ash pudesse perceber o que estava acontecendo.
Shannon gritou ao ver a margem da estrada se aproximar. Fechou os olhos quando o
carro saiu da pista e despencou pela encosta em direção ao rio, ganhando velocidade à
medida que descia. Ouvia a lataria se chocando contra pedras, arbustos e pequenas árvores
que se interpunham pelo caminho.
Percebendo a inutilidade de tentar qualquer manobra, Ash largou o volante e
preparou-se para o choque com a água. Seu único pensamento era salvar Shannon: tirá-la
o quanto antes do carro e do rio gelado.

CAPÍTULO XII

O carro não chegou à água. Em vez disso, colidiu com uma pequena barreira de
árvores junto à margem e parou com enorme ruído de metal amassado.
— Shannon! Shannon, você está bem? — Os dedos de Ash tremiam enquanto
lutavam para abrir o fecho do cinto de segurança. Quando conseguiu se livrar, tateou
depressa o corpo dela para verificar se encontrava ossos quebrados.
Shannon riu, em uma reação nervosa de alívio, e Ash recostou-se no banco para
recuperar o fôlego.
— Você está ferido, Ash?
— Não, mas temos de sair logo daqui. Não sei por quanto tempo estas arvorezinhas
vão conseguir segurar o carro.
— O que aconteceu? — Ainda atordoada, Shannon soltou o cinto de segurança.
— Acho que foi um pneu furado. — Ash estendeu o braço para abrir a porta do lado
de Shannon e passou por cima dela para sair do veículo, já que a sua lateral estava
bloqueada pelo mato. — Venha logo, Shannon. — Impaciente, ele se inclinou e a levantou
nos braços. O peso dela e a inclinação do solo o fizeram cambalear alguns passos até
recobrar o equilíbrio. — Pare de sorrir feito uma boba. Por pouco, não morremos afogados!
— Mas acabamos nos saindo bem. — E envolvendo-lhe o pescoço com os braços,
fitou os olhos sérios. — Nenhum de nós se machucou, Ash. Não precisa ficar tão nervoso.
Ele apenas resmungou alguma coisa ininteligível e esforçou-se para subir a encosta.
Em poucos segundos, porém, estava sem fôlego. Avistou um pinheiro de tamanho razoável
e encaminhou-se para lá.
— Pronto, fique apoiada nesta árvore enquanto volto ao carro para pegar suas coisas
e o meu chapéu.
Ele a colocou no chão e começou a afastar-se, mas Shannon o segurou pelo braço.
— Ash, por que está tão bravo?
— Por quê? Shannon, nós podíamos ter morrido! — Ele se abaixou e a abraçou com
força, pressionando-lhe o corpo contra o tronco da árvore enquanto procurava-lhe a boca
para um beijo ardente e desesperado. Depois apoiou o rosto no ombro dela e sua voz soou
como um sussurro. — Eu amo você, Shannon. Tudo mudou em minha vida depois que você
foi embora. Eu sentia falta de seu sorriso, sua teimosia, das suas risadas, até do seu mau
humor. Mais do que tudo, eu sentia falta de tê-la em meus braços, à noite. Não me
abandone outra vez, Shannon. — Ele voltou a beijá-la, transmitindo toda a saudade e
solidão daqueles dez anos. — Eu não poderia suportar se você me deixasse de novo.
— Eu também te amo, Ash, e prometo que nunca mais irei abandoná-lo. Diga outra
vez que me ama — ela pediu, emocionada com aquela súbita declaração. Ash não
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 65
costumava revelar seus sentimentos de forma tão aberta.
Mas ele pareceu ter caído em si e tornou a levantar-se. Afinal, havia decidido manter-
se afastado dela até descobrir o que acontecera com Dean, até ter certeza de que ela estava
livre. No entanto, olhando para o rosto lindo de Shannon transbordando de felicidade, não
poderia negar as palavras que haviam lhe saído do fundo do coração.
— Eu sempre te amei, Shannon. Mesmo nos momentos em que tentava me
convencer de que a odiava. Mas agora seja uma boa menina e fique quieta enquanto vou
dar uma olhada no carro.
Ash estudou com cuidado cada passo, segurando-se em galhos e pedras para
equilibrar-se no solo irregular. Por fim, conseguiu descer a encosta até o automóvel. Abriu
a porta e pegou a bolsa de Shannon, a bengala e seu chapéu. Colocou os objetos no chão e
foi examinar a frente do veículo.
Apoiando-se no parachoque, agachou-se para dar uma boa olhada no pneu. Quando
tornou a levantar a cabeça, sua expressão era de pura perplexidade. Estivera quase certo de
ter visto um reflexo do sol sobre algum objeto de metal antes que o carro saísse de seu
controle. No momento em que o volante girara em suas mãos, poderia jurar ter ouvido o
som de um tiro de rifle. Agora suas suspeitas se confirmavam ao observar o buraco
redondo no pneu. Alguém havia atirado neles. Não, não era bem assim. Ninguém sabia que
ele iria estar no carro. A bala fora para Shannon.
Alguém a queria morta, mas quem? Dean era a única pessoa que lhe vinha à cabeça,
porém ninguém sabia ainda se ele estava vivo ou não. Se não fosse Dean...
— Ash, por que está demorando tanto?
— Já vou. — Ele deu uma olhada em volta e não viu nada de anormal. Então colocou
o chapéu na cabeça, pegou a bolsa e a bengala e subiu até onde Shannon se encontrava.
— Paula vai me matar quando vir o carro.
— Tome suas coisas — Ash disse. — Agora vai ter de subir em minhas costas para eu
tirá-la daqui.
— Vamos de cavalinho? — Shannon indagou, sorrindo.
— Exato. E a bengala fica comigo. Talvez possa me ser útil.
Shannon posicionou-se, prendendo as pernas em torno da cintura dele e segurando-
se em seu pescoço com firmeza. Depois ficou em silêncio enquanto Ash subia a encosta
com dificuldade. Ao atingirem a estrada, estavam ambos ofegantes e suados, ele de
cansaço, ela de nervosismo.
Ash se abaixou para Shannon descer e depois esticou as pernas doloridas. O sol de
primavera brilhava implacável sobre eles, de forma que nem a brisa suave era suficiente
para refrescá-los. Ash tirou o chapéu, enxugou a testa com a manga da camisa e olhou para
os dois lados da estrada.
— Vamos voltar à casa de Happy? — Shannon indagou.
— Como está seu tornozelo?
— Melhor. Já posso apoiar o pé no chão sem muita dor. Para que lado, Ash?
— Estamos na metade do caminho. Prefiro prosseguir em direção a Barra B. Vamos,
eu carrego você. — Ele abaixou-se, mas Shannon não veio. Intrigado, virou-se para trás. —
O que está fazendo?
— Vamos ficar com calor — ela explicou, enquanto arregaçava as mangas da camisa.
— Eu sei — ele murmurou, imaginando a sensação de tê-la tão perto de si. — Mas
ande logo, não temos o dia todo.
— Sim, senhor; só mais um minuto. Segure-me um pouco pela cintura. Isso! — Ao
sentir as mãos fortes a apoiando, Shannon abaixou-se e enrolou a calça até os joelhos. Seu
corpo pressionava-se contra o dele e Ash controlou a enorme tentação de tocar as nádegas
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firmes e convidativas. — Agora estou pronta.
— Eu estou pronto desde que entrei naquela cabana e tive de despir você. — Ele riu e
desviou o olhar para a boca de Shannon, mas manteve-se determinado na decisão de não
ceder ainda ao desejo. Não a tocaria antes de saber notícias de Dean. — Vamos embora.
Shannon subiu nas costas dele, desapontada e confusa. Por que Ash mostrava-se tão
cuidadoso em manter a relação impessoal após ter confessado que a amava?
— Parece que já fizemos isto antes, não é? — ela murmurou no ouvido dele, sorrindo
ao vê-lo estremecer.
— Pelo menos umas cem vezes. Por que você sempre se machucava e eu tinha de
carregá-la como um escravo?
— Você sabe que eu não estava sempre machucada. Apenas gostava de estar em seus
braços, mesmo quando era jovem demais para entender o que significava.
— Depois de tanta prática você devia ter aprendido que eu preciso respirar. Não
aperte tanto meu pescoço!
O sol brilhava nos cabelos loiros de Ash e Shannon sentia vontade de afagá-los com
os dedos, de brincar com os pequenos caracóis que se formavam na nuca.
— Lembra quando você tinha uns doze anos e eu o convenci a me deixar enrolar seus
cabelos?
— Não!
— Mas que memória curta! Ficaram lindos aqueles rolos cor-de-rosa e azuis em toda
sua cabeça e quando eu os soltei você ficou parecendo um deus grego que eu tinha visto em
um livro.
— Shannon, você não vai contar isso a ninguém, não é? — ele pediu. Em resposta, ela
aproximou os lábios da orelha dele e o provocou com a língua. — Isso não é justo,
Shannon. Pare agora mesmo.
— Certo.
— Já que está com espírito para recordações... lembra quando eu a encontrei
tomando banho de sol nua em Willow Falis?
— Não! — Mas ela se lembrava e tentou tapar-lhe a boca.
— Você estava... digamos... procurando conhecer melhor o seu corpo.
— Ash! Você ficou olhando?
— Foi a coisa mais perturbadora a que já assisti.
— Eu só tinha dezesseis anos! — ela exclamou, corando.
— E era linda.
As lembranças os levaram até Barra B entre risadas e algum constrangimento de
ambos os lados. Mas um nome foi deliberadamente omitido de todas as histórias.
Foi com um profundo suspiro de alívio que Ash empurrou a porta dos fundos e
entrou em casa. Bridget e o marido Tom estavam sentados à mesa da cozinha. Ambos
permaneceram em silêncio enquanto Ash colocava Shannon no chão e lhe entregava a
bengala.
— Agora suba e vá descansar. Tome um banho, fique um pouco com o pé levantado.
Preciso cuidar de algumas coisas.
Ela não protestou; o calor provocara uma dor latejante no tornozelo. Apoiou-se na
bengala e saiu do aposento.
Bridget olhou Shannon se afastar e só falou quando teve certeza de que ela não a
ouviria.
— O que aconteceu?
— Gostaria muito de saber. Tom, pegue alguns homens e o caminhão e dirija-se à
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estrada que vai para a casa de Happy. Vai encontrar o carro de Paula perto do rio mais ou
menos na metade do caminho.
— Meu Deus! — Bridget exclamou, benzendo-se. — O que mais vai acontecer?
— Peça também a alguns homens que examinem o lado oposto da estrada — Ash
prosseguiu. — Procurem por um cartucho usado de rifle. Não tivemos apenas um pneu
furado; alguém atirou em Shannon e, por acaso, eu estava junto.
— Foi proposital? — Bridget indagou.
— Ah, sem dúvida. Tom, verifique se alguém saiu da fazenda esta manhã.
— Alguém da Barra B, Ash? — Bridget quis saber, os olhos arregalados de terror. —
Não pode ser.
— Fique quieta, mulher — Tom a repreendeu. — Deixe o patrão falar.
— Onde estão Paula e Jenny? — Ash perguntou. — Quero conversar com elas e saber
se contaram a alguém que Shannon ia visitar o avô esta manhã.
— Pode falar agora, Bridget — Tom disse à mulher. — Esta é uma pergunta que você
sabe responder.
— Paula foi até a casa de Maybella esta manhã para comprar uma sela nova. Jenny
saiu pouco depois, dizendo que ia à cidade. A propósito, Jeff telefonou e pediu para você
passar na delegacia assim que pudesse.
Ash não esperou por novas informações. Avisou que pegaria emprestado o caminhão
de Tom e saiu da cozinha à toda.
Na estrada, procurou controlar seus receios, mas era impossível ignorar o
pressentimento de uma desgraça iminente. Logo que entrou na cidade, notou pequenos
grupos de pessoas em frente às lojas e todos interrompiam a conversa e o fitavam assim
que o viam aproximar-se. Ainda assim, não queria pensar no que Jeff poderia haver
descoberto. A vida não podia ser tão cruel a ponto de tirar-lhe Shannon após ele a ter
esperado e amado por tanto tempo.
Estacionou o caminhão em frente à delegacia e saiu do veículo antes que o motor
tivesse tempo de parar. Seguiu diretamente para o escritório de Jeff e entrou sem
preocupar-se em bater na porta. O delegado estava pálido e abatido.
— Nós o trouxemos há pouco mais de uma hora.
— Morto?
— Sim. O dr. Henry está fazendo a autópsia.
— Como? O que aconteceu?
— Um tiro no coração. A arma usada foi o próprio rifle dele.
— Então está tudo bem. Shannon deixou de usar rifles bem antes de partir de Bartlet.
— Eu sei. O acampamento estava uma bagunça, Ash.
— Gostaria que ele estivesse vivo. Isso explicaria as coisas que vêm acontecendo
desde que você subiu à montanha. — Ash contou a respeito do touro que escapara no
cercado onde Shannon se encontrava e do atentado daquela manhã.
— Pode ser coincidência. Ela lembrou de alguma coisa?
— Não. Tem um cigarro?
— Mandei o ajudante ir comprar. Outra coisa, Ash. Encontrei o casaco de Shannon lá
em cima. A frente estava toda manchada de sangue e desconfio que não era de nenhum
animal, mas humano.
— Mas você não tem certeza de que era o sangue de Dean, não é? — Ash indagou,
com os olhos fixos no vazio.
— Ainda não. Mas meus instintos não costumam falhar, amigo. — Ele viu a expressão
de Ash endurecer conforme as evidências contra Shannon se acumulavam.
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— Bob lhe contou sobre Happy e Chester?
— Sim.
— Dean e Clyde estavam por trás de todos os boatos sobre Shannon. Não posso
compreender por quê.
— Toda essa história é muito desagradável, Ash. — Jeff observou o amigo com
profunda compaixão.
Ash precisava de tempo para perceber as implicações de tudo o que acabara de saber.
Não havia jeito de convencê-lo de que Shannon poderia ser uma assassina.
A porta se abriu e um maço de cigarros foi atirado sobre a mesa. Em um gesto
automático, Jeff o pegou e abriu. Só então percebeu como tinha as mãos trêmulas.
Ofereceu um cigarro a Ash e acendeu outro para si.
Ash enfiou a mão no bolso da calça e tirou o velho isqueiro prateado que Shannon
lhe dera em seu vigésimo aniversário.
— Shannon não fez isso, Jeff. Ela não é capaz de matar alguém.
— Nem mesmo em defesa própria? Ash, com todos aqueles hematomas no pescoço
dela ficou evidente que Dean tentou matá-la. Ela teria de se defender de alguma maneira.
Este será um bom argumento em favor dela. Eu mesmo testemunharei quanto aos
hematomas.
Ash tragou profundamente e soltou uma grande nuvem de fumaça.
— Eu ainda digo que ela não fez isso. Por que os atentados contra a vida dela?
— Talvez Clyde tenha descoberto sobre a morte de Dean e esteja aborrecido porque
não vai mais receber dinheiro. Como vou saber? Um dos seus novos empregados pode ter
sido cúmplice de Dean. Qualquer pessoa poderia ter soltado o touro ou se escondido entre
as árvores até o Mercedes passar. Ash, todos por aqui sabem cavalgar e atirar, até mesmo
Paula e Jenny.
— Ela não fez isso, Jeff.
— Hamilton já sabe de toda a história e vai ficar atrás de mim para dar entrada à
acusação de assassinato assim que o doutor apresentar o laudo.
— Quanto tempo isso vai demorar?
— Com certeza Hamilton já está falando à imprensa.
Ash levantou-se e começou a andar pelo pequeno escritório. Amassou o cigarro no
cinzeiro e, em seguida, acendeu outro.
— Não vou deixar Shannon ser presa. Não permitirei que aquele sujeito use a mulher
que eu amo como trampolim para suas ambições políticas. Jeff, se for preciso eu venderei
uma parte das terras e contratarei para ela o melhor advogado dos Estados Unidos.
— Quer dizer que você a ama mesmo?
— Alguma vez houve dúvidas quanto a isso?
— Não, apenas em sua cabeça. Ash, é melhor prepará-la para os problemas que terá
de enfrentar. A imprensa vai cair em cima dentro de um ou dois dias e pode apostar que
Hamilton vai ligar o nome Bartlet ao caso. Meu amigo, um triângulo amoroso sempre
torna as histórias mais interessantes. — Ele abriu uma porta na estante e tirou uma garrafa
quase vazia de conhaque e dois copos. — Jenny esteve aqui esta manhã, mas nós não
conversamos. Não lhe contei nada sobre Dean. Depois tive de telefonar à avó dele em Paris
para avisá-la da morte do neto e explicar o que sabemos até agora. Ela nem ficou surpresa,
era como se estivesse esperando por alguma notícia assim. Disse que Dean vinha agindo de
forma estranha.
— E por que ela não alertou Shannon?
— Ela fez isso. Incentivou Shannon a vir para Montana e separar-se imediatamente
do marido.
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Ash sentou-se, apoiou os cotovelos nos joelhos e pousou o rosto nas mãos.
— Jeff, me ajude — disse por fim.
— Peça o que quiser.
— Quero tempo. Precisamos de alguns dias. Pode pedir ao dr. Henry que demore um
pouco para liberar o laudo da autópsia? Só o tempo suficiente para manter Hamilton
afastado. Ele não ousará tomar qualquer atitude até que a causa da morte seja declarada
oficialmente. Os nomes Bartlet e Wayne são influentes demais para que ele corra o risco.
Jeff pegou o telefone e discou para o médico no mesmo instante. Desligou após uma
breve conversa e olhou para Ash.
— Ele pode nos dar apenas mais quarenta e oito horas. Agora quer me contar o que
tem em mente?
— O que acha de fazer outra viagem até o alto da montanha? — Ash sugeriu, voltando
a encher o copo com conhaque e acendendo o terceiro cigarro.
— Não fico muito entusiasmado com a ideia. Por quê?
— Só nós três. Você, eu e Shannon. Talvez ao chegar lá ela consiga lembrar-se de
tudo que aconteceu.
— Está apostando alto demais.
— Topa ir comigo?
— Claro que sim, amigo.
— Se não der certo, Jeff, eu o deixo fazer seu trabalho. — Ambos ficaram em silêncio
por alguns minutos, pensativos. Depois, começaram a fazer planos. Ficou combinado que
partiriam ao amanhecer e Ash pousou o copo sobre a mesa antes de levantar-se para ir
embora.
— Quando vai contar a Shannon sobre Dean e sobre nosso plano?
Ash não se virou. Não queria que Jeff visse a angústia em seu rosto.
— Esta noite, após o jantar.

Jenny entrou na grande estufa à procura da mãe. A porta pesada fechou-se sem um
ruído, trancando-a em meio à imensidão de flores que enchiam o ar de perfume. A
atmosfera quente e úmida em contraste direto com a brisa fria do lado de fora a fez
estremecer. Normalmente, adorava trabalhar com as flores, cavando o solo de composição
especial, mas naquele dia o ambiente a deixava deprimida, fazendo-a lembrar-se de
funerais.
A vibrante profusão de cores ofuscou-lhe os olhos sensíveis e ela teve de piscar
algumas vezes para recobrar o equilíbrio. Pôs-se a caminhar, então, em direção ao fundo
da estufa, passando por canteiros de rosas cujos tons variavam do vermelho-sangue ao
rosa-pálido, gardênias brancas como neve, lilases, margaridas, violetas e as orquídeas
premiadas de sua mãe. Seu estômago protestou diante dos aromas misturados e ela teve de
parar um instante para controlar o enjoo.
Um barulho familiar chamou-lhe a atenção e ela virou à direita em um dos canteiros
de rosas, encontrando Paula sentada no chão de cimento, cavando furiosamente um
canteiro vazio. Jenny parou alguns passos atrás da mãe e a observou com uma expressão
intrigada.
— Mamãe.
Paula gritou e virou-se depressa, pressionando a mão suja de terra de encontro ao
coração.'
— Jenny! Quer me matar de susto?
O semblante de Jenny passou de surpreso a preocupado. A mãe tinha uma aparência
horrível. Os cabelos loiros habitualmente impecáveis caíam em mechas sem brilho e
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despenteadas; o rosto estava cadavérico, com depressões profundas sob os olhos; os lábios
não tinham cor. As duas se fitaram e, então, Jenny pigarreou.
— Mamãe, alguém tentou matar Shannon esta manhã. Atiraram no carro e ele saiu
da estrada. Ash estava dirigindo e, provavelmente, foi isso que salvou a vida dela. — Ela
observou a mãe, tentando identificar qualquer emoção, mas Paula permaneceu impassível.
— Mamãe, onde você foi esta manhã? Bridget me disse que você saiu antes de Shannon.
Paula levantou-se devagar e encarou a filha.
— O que está insinuando, Jenny?
— Nada. Mamãe, o que está acontecendo por aqui?
— Onde você esteve esta manhã, Jenny? — Paula indagou, ignorando a pergunta da
filha. — Você também saiu cedo, segundo Bridget me contou. Para onde foi? O que fez?
— Mamãe! Não pode pensar que...
— Pensar o quê?
— Eu... eu só saí para dar um passeio — Jenny respondeu, perplexa com a reação da
mãe.
— Pode provar?
— Pare com isso, mamãe. Eu fui até a cidade ver Jeff.
— Ah! E fez as pazes com seu delegado?
— Eu ia contar a ele sobre a Europa, sobre o que você me induziu a fazer.
— Mas quem fez foi você e não eu. E se contar àquele guardião da lei e da ordem, é
mais louca do que eu pensava. Ele nunca a perdoará.
— Ele me colocou para fora do escritório sem nem ao menos falar comigo. Ah,
mamãe, ele nem se deu ao trabalho de me ouvir. — Jenny começou a soluçar, lágrimas
correndo por seu rosto pálido. — Não posso continuar me sentindo assim, amando-o e
sabendo o que ele vai pensar de mim quando descobrir. Não vamos conseguir esconder a
verdade por muito tempo, principalmente agora.
— Você será uma tola se contar a ele. Mas por que diz "principalmente agora"?
Jenny cruzou os braços sobre o peito tentando conter a súbita tremedeira que a
agitava.
— Dean está morto, mamãe, foi assassinado com um tiro. Jeff encontrou o corpo dele
no fundo de Devil´s Leap.
— Eu logo vi que algo estava errado, ou ele não demoraria tanto para aparecer. Mas,
se Jeff não falou com você, como ficou sabendo?
— Encontrei com o sr. Watts quando saí da delegacia. Ele estava radiante, mamãe.
Disse que os Bartlet não escapariam desta vez. Você sabe como ele é. Vai revirar tudo até
encontrar as evidências. — E começou a ficar histérica, perdendo o controle da voz, que
soava cada vez mais alta e aguda. — Ele vai descobrir, mamãe! Eu sei que vai! Vai nos
envolver num escândalo!
— Controle-se, Jenny! — Paula ordenou, dando um tapa no rosto da filha. — Nada
vai acontecer se você ficar com a boca fechada. Isto significa que não deve contar nada a
seu querido Jeff sobre a Europa. Está me ouvindo, Jenny? Nunca dirá uma palavra a Jeff,
por mais culpada que se sinta.
— A minha felicidade não importa para você?
— É claro que sim. Tudo que eu fiz foi só pensando em você. Agora seja uma boa
menina, volte para casa e me deixe pensar.
Jenny fez um sinal afirmativo com a cabeça e virou-se para sair, certa de que perdera
Jeff para sempre. Já havia se afastado um pouco quando Paula tornou a chamá-la.
— O sr. Watts disse quando irá prender Shannon pelo assassinato de Dean?
— Não, mamãe.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 71
— Ela já sabe?
Jenny sentia o coração apertado dentro do peito e era-lhe difícil até respirar. As
perguntas de sua mãe pareciam carregar um entusiasmo exagerado.
— Acho que Shannon ainda não sabe e certamente não serei eu a lhe contar.
— Claro que não. — Paula olhou para a filha e sorriu, mas sua expressão parecia
cheia de veneno. — Vamos deixar que Ash faça as honras da casa. Esta vai ser uma noite
interessante, não acha?
Jenny sacudiu a cabeça e afastou-se, sentindo pena de Ash, de Shannon e de si
própria. Como tudo pudera tornar-se tão sórdido?

CAPÍTULO XIII

Algo estava terrivelmente errado.


A noite deveria ser festiva. Ash a amava, o avô a recebera de braços abertos. No
entanto, parecia haver uma nuvem pairando sobre a casa, uma atmosfera sombria que
Shannon não conseguia compreender.
À tarde, após tomar banho e descansar, ela percorrera a casa tentando descobrir o
que causava aquela mudança tão brusca. Mal entrara na cozinha, Bridget e Tom
interromperam de imediato a conversa. Instintivamente percebeu que falavam sobre ela,
mas por que tinham parado de repente? Bridget sempre fora aberta e sincera, nunca
hesitando em dizer o que lhe passava pela cabeça.
Agora, na mesa de jantar, onde a conversa deveria ser descontraída, dominava um
clima tenso, como se uma palavra errada fosse suficiente para fazer a sala desabar.
Ash comia em silêncio, respondendo em monossílabos quando se dirigiam a ele.
Happy, que fora convidado para a refeição, falava sem parar, entrelaçando um assunto a
outro, algo tão estranho a seus hábitos que deixou Shannon desconfiada.
Jenny empurrava a comida no prato sem nenhum apetite. A aparência de Paula
desafiava qualquer tentativa de interpretação; com o rosto sem maquiagem e os cabelos
loiros presos num coque, aparentava bem mais do que seus cinquenta e quatro anos.
O olhar maldoso que Paula lhe lançara quando se encontraram na biblioteca para os
aperitivos fora de causar arrepio. Shannon percebera que o alvo da atenção fora seu
vestido de griffe e, mesmo sem saber o que andava acontecendo naquela casa, concluíra
que Paula estava doente, e não necessariamente por algum problema físico. A mulher
parecia obcecada por dinheiro.
— Coma a comida. — Bridget dirigia-se a Shannon, enquanto dava a volta na mesa
para verificar se todos estavam bem servidos. — Quer mais carne? Batatas com creme? Um
pouco de salada?
— Bridget! Eu já comi um prato cheio — ela protestou.
— Traga outra garrafa de vinho, Bridget — Paula ordenou.
— Não use esse tem de voz autoritário com ela — Ash a repreendeu. — Além disso,
acho que já bebeu bastante por hoje.
— Desculpe, Bridget. Mas, por favor, pegue outra garrafa de vinho, sim? Ah, e traga
um copo para Shannon também. Afinal, esta é uma comemoração, certo?
— Paula!
— Ora, mas é verdade, Ash.
— Cale a boca!
— Não é todo dia que uma mulher se torna uma viúva rica, conforme suponho.
Todos a fitaram com ar perplexo e Shannon arregalou os olhos, procurando pela
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 72
reação de Ash. Ele parecia angustiado.
— Do que ela está falando, Ash?
— Bem, minha querida... — Paula começou.
— Cale essa boca! — Ash levantou-se tão depressa que a cadeira foi ao chão com um
estrondo. Jenny e Happy permaneceram imóveis e boquiabertos. Paula, no entanto, não se
deixou intimidar e continuou falando.
— Ora, eu pensei que este fosse o motivo da comemoração. Quer dizer que Ash ainda
não lhe contou nada? Jeff encontrou o corpo de Dean na montanha. Ele recebeu uma bala
no coração, isto é, foi assassinado. — Paula pegou a taça de vinho e virou o conteúdo em
um só gole. — Você bem que poderia ter pensado em um meio menos escandaloso de se
livrar de seu marido rico, não é, Shannon?
— Não! — Shannon murmurou, com a voz trêmula, ouvindo o atordoante zumbido
do vento. O rosto de Dean delineou-se à sua frente, deformado em uma combinação de
luxúria e ódio assassino.
Ela abaixou-se para pegar algo longo e frio.
Dean gritava, mas ela não conseguia entender as palavras por causa do vento e do
sangue pulsando nos ouvidos. Então, as mãos dele saltaram em seu pescoço, apertando
com força, cortando-lhe a respiração, fazendo pontos de luz dançarem diante dos olhos.
Terror, confusão, ódio, medo, todas essas sensações misturavam-se dentro dela, não lhe
deixando forças para reagir.
O braço dela se levantou, com a arma pronta.
O vento parecia um longo e doloroso lamento, um grito... Ou seria ela quem estava
gritando? Não sabia dizer. De repente, viu-se livre, olhando para Dean, e a pequena
mancha vermelha na camisa dele espalhava-se com enorme rapidez.
Então ele desapareceu. Desabando para trás sobre a borda do penhasco, caindo na
escuridão.
— Não, não. — Shannon sentia o teto girar e a cabeça doía-lhe de forma insuportável.
Empurrou a cadeira e, antes que qualquer um deles pudesse reagir, saiu correndo da sala,
subiu as escadas, atravessou o quarto e, entrando no banheiro, inclinou-se logo sobre o
vaso sanitário e expulsou o conteúdo do estômago.
Seu pior pesadelo havia se tornado realidade. Durante dias, conforme a memória
voltava pouco a pouco, vivera com medo de descobrir a verdade. Por isso, escondera as
visões de seus sonhos de Ash e até de si própria, recusando-se a formulá-las em palavras e
rezando para que Dean aparecesse logo.
Mas Dean nunca iria aparecer. Dean estava morto.
— Você está bem? Tome. — Ash havia entrado em seguida e lhe entregou um copo
com água para que lavasse a boca. Ajudou-a ao perceber que as mãos dela tremiam
demais. Depois pegou o copo de volta e ficou sem ação por um momento ao vê-la começar
a soluçar. Quando tentou abraçá-la, Shannon o repeliu.
— Eu o matei. Meu Deus, eu fiz isso, não é?
— Não!
— Os sonhos não eram fantasias, eram reais! — ela exclamou, em estado de
desespero.
— Pare com isso, Shannon. Fique quieta, eu estou tentando ajudar.
— Eu fiz isso! Devo ter feito! — gritou agoniada.
Por fim, Ash conseguiu segurá-la e a abraçou com força até que ela parasse de se
agitar e se pusesse a chorar. Ouviu um ruído atrás de si e viu Happy surgindo à porta, mas
fez um sinal para que ele saísse e os deixasse um pouco a sós. Depois, segurou o rosto de
Shannon e enxugou-lhe as lágrimas. Os olhos estavam cheios de terror, como os de um
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 73
animal acuado. Ele a amava tanto que lhe era doloroso vê-la sofrendo.
— Agora para de chorar e me ouça, está bem? Você se lembra de alguma coisa?
— Sim — ela murmurou, mordendo o lábio para tentar conter as lágrimas.
— Mas lembra-se realmente de ter pego o rifle, feito mira e atirado nele?
— Não, mas devo ter feito isso. O que vai acontecer comigo? Oh, Ash, o que vamos
fazer?
— Em primeiro lugar você vai se convencer de que não matou Dean.
— Mas... — Ela foi interrompida pela súbita pressão da boca de Ash sobre a sua e
agarrou-se a ele como um náufrago que se deparava com uma tábua de salvação. — Fui eu,
Ash, fui eu! Eu o odiava tanto! Nem sei quantas vezes desejei vê-lo morto. Quem mais
poderia tê-lo matado além de mim?
Shannon soltou-se dos braços de Ash e, embora relutante, ele a deixou ir. Sabia que
precisavam ter calma para pensar nas atitudes a serem tomadas.
— Você não matou Dean, Shannon. Eu a conheço muito bem.
— As pessoas mudam, Ash. Passaram-se dez anos.
— Eu sei que não foi você.
— Gostaria de ter essa mesma confiança em mim. — Ela saiu do banheiro com as
pernas trêmulas e, apoiando-se nos móveis, chegou à cama e sentou-se.
— Conte-me tudo de que consegue se lembrar. Comece pelo que aconteceu na
fazenda, antes de você e Dean partirem para a caçada.
— Eu só me lembro de fragmentos soltos, mas isso é suficiente para me fazer
acreditar que fui eu que o matei.
— Por que não deixa que eu tire minhas conclusões?
— Está bem.
Ela contou o que podia, evitando encará-lo. Quando levantou os olhos, o rosto estava
terrivelmente pálido.
— Na verdade, você não se lembra de muitas coisas. São apenas fragmentos que você
pode ter juntado na sequência errada. Ou talvez o que aconteceu lá em cima tenha sido
muito aterrorizante para que queira se lembrar.
— Sim, como ter atirado em Dean.
— Você estava correndo às cegas pela montanha, querida, e não é de seu feitio entrar
em pânico em situações difíceis. Você sabe como sobreviver nesta região. Mas estava tão
apavorada que esqueceu completamente seus instintos de auto-preservação. Já imaginou
que, se você não atirou em Dean, tinha de haver mais alguém lá? Uma terceira pessoa,
Shannon. Lembra-se de ter visto alguém? — Ele observou Shannon apoiar a cabeça nas
mãos em desespero e agachou-se ao lado dela, sacudindo-a com veemência. — Você não
matou aquele canalha, está me ouvindo? Sei que você tinha vontade de acabar com ele,
mas não seria capaz de puxar o gatilho. Eu a conheço muito bem, Shannon. Acredito de
coração na sua inocência e Jeff também. Nós temos um plano.
— Eu também quero acreditar, Ash.
— Então acredite. Sei que temos muitos problemas para resolver entre nós, mas
confie em mim, Shannon.
Uma batida à porta os assustou e, antes que Ash tivesse tempo de gritar para que os
deixassem sozinhos, Happy entrou com uma xícara.
— Bridget lhe mandou um chá de ervas para assentar o estômago.
— Por onde anda Paula? — Ash indagou, deixando evidente no tom de voz a raiva
que sentia pela madrasta.
— Ela saiu alguns minutos atrás. Disse que ia para a casa de alguma amiga porque
não queria se envolver no escândalo que esta história vai causar.
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— Droga! Ela sabia muito bem que eu não queria que ninguém saísse da fazenda e
corresse o risco de se encontrar com repórteres.
— Repórteres? — Shannon engasgou com o chá quente. — Meu Deus! Como eles
descobriram tão depressa?
Happy sentou-se na cama e abraçou a neta, tentando lhe transmitir algum conforto.
— O promotor foi um pouco precipitado e acabou deixando o caso vazar. Tivemos de
tirar o fone do gancho e alguns dos empregados estão em vigilância em nossa casa e na
Barra B.
— Quando Jeff vem me prender? — ela indagou, trêmula.
— Você ainda não contou a ela, Ash?
— Ainda não.
— O quê? — Shannon quis saber, aconchegando-se ainda mais no abraço do avô.
— Fique calma, minha querida. Sabe, era sobre esse caso que conversávamos na
biblioteca antes do jantar. Pobrezinha, você percebeu que havia algo errado quando todos
pararam de falar no momento em que você entrou, não é? — Happy afagou os longos
cabelos negros de Shannon.
— Ash disse que não fui eu quem atirou em Dean, vovô. Não sei se devo acreditar
nisso.
— Filhinha, eu nunca lhe menti e não tenho dúvida nenhuma de que você não
poderia ter feito aquilo. O problema é que as evidências ficaram contra você. Tem certeza
de que não se lembra de ter visto mais alguém em Devil´s Leap?
— Não me lembro de nada, vovô.
— Mas você estava aterrorizada, certo? A ponto de colocar-se em perigo e descer a
montanha em vez de procurar abrigo lá em cima mesmo.
Ela fechou os olhos, recordando o terror que a empurrava montanha abaixo, a
urgência em manter-se em movimento, a sensação de pânico que a obrigava a fugir o mais
depressa possível. E o medo... várias vezes ficara quase paralisada pelo medo. Como se
fosse um animal tentando escapar do caçador, lutando para sobreviver. Contou suas
lembranças ao avô e a Ash, procurando descrever as emoções que sentira.
— Mas isto não quer dizer nada. Não me lembro de ter visto qualquer pessoa lá em
cima.
— Shannon, eu e Jeff temos um plano que talvez a ajude a lembrar o que aconteceu.
— Que plano? — Ela levantou os olhos e uma súbita esperança lhe trouxe alguma cor
ao rosto pálido.
— Nós vamos levá-la de volta à cabana na montanha, para tentar avivar sua
memória. Achamos que vai dar certo e o dr. Henry concorda conosco. Ele diz que seu
bloqueio não é físico, mas mental, e que o problema poderá se resolver se você enfrentar
seus temores.
Shannon estremeceu só de pensar em voltar a Devil's Leap. Ficou em silêncio por
longo tempo, pesando os prós e contras, mas acabou tranquilizando-se um pouco. Afinal,
aquela era sua única esperança. Virou-se para o avô e beijou-o no rosto.
— Você concorda com eles, não é, vovô?
— Sim.
— Também irá conosco?
— Não, Jeff prefere que eu fique de olho em Clyde. Se de fato Dean e o capataz
tiveram um caso, como você mesma disse, há uma possibilidade de ele ter ficado ofendido
pelo fato de Dean ter trazido você para cá. Talvez o assassino tenha sido ele.
— Eu gostaria que você fosse junto.
Happy levantou-se e beijou os cabelos da neta.
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— Vou deixá-la sob os cuidados de Ash e Jeff. Eles são jovens e terão mais facilidade
do que eu para subir a montanha. Agora preciso ir. Prometi a Jeff que arranjaria
mantimentos para a viagem de vocês. Cuide-se bem, minha querida. — Ele caminhou até a
porta e, então, parou e tornou a encará-la. — Eu a amo, Shannon. Não importa o que
aconteça desta vez, ficarei a seu lado.
Ele saiu antes que Shannon pudesse responder. Lágrimas começaram a escorrer por
seu rosto, mas ela as enxugou e respirou fundo antes de voltar a atenção para Ash.
— E se eu não conseguir me lembrar de nada quando estivermos lá em cima? Oh,
Ash, me abrace. — E aconchegou-se ao peito forte, querendo permanecer para sempre na
segurança daquele abraço. Seus pesadelos haviam se transformado em uma terrível
realidade. — Já não sei o que fazer. Ajude-me, Ash.
— Não se preocupe. Quando nós éramos pequenos e nos metíamos em confusão,
quem sempre a livrava do problema?
— Você — ela murmurou, de olhos fechados, desejando que fossem crianças outra
vez.
— Quando você não sabia nadar e mesmo assim pulou no riacho para me mostrar
que era valente, quem a tirou de lá?
— Você.
— Quando o velho Mac Gregor a pegou na cerejeira dele comendo as frutinhas, quem
o convenceu a não contar a Happy que você havia faltado na escola para fazer travessuras?
— Você, mas só porque ele ia denunciá-lo também. Além disso, você teve de passar
duas tardes no pomar dele colhendo cerejas para compensar o estrago.
— Sim, mas você não. E ele nunca contou nada a seu avô.
— É verdade — ela admitiu, sorrindo de leve e sentindo a tensão diminuir.
— E quando Hamilton Watts tentou beijá-la na quermesse, quem o deixou com um
olho roxo?
— Você, mas sei que não foi só para me ajudar. Você ficou com ciúmes.
— Tem toda a razão.
O luar lançava longas sombras pelo chão e Ash esticou o braço para acender a luz,
mas Shannon o deteve.
— Não, por favor. É gostoso ficar assim na penumbra, abraçada a você.
Ash apoiou o rosto na cabeça dela e fechou os olhos, mas surpreendeu-se ao ouvi-la
rir.
— O que foi?
— Eu estava pensando nas outras vezes que você me ajudou.
— Quais, por exemplo?
— Ah, aquela vez que você me amarrou ao trenó porque eu vivia caindo e, então, me
empurrou colina abaixo. Essa pequena ajudazinha me custou um braço quebrado. Ou
aquela outra vez, quando lemos Tom Sawyer juntos e resolvemos construir uma jangada.
Você me disse para segurar nas cordas e nos atiramos na corredeira do rio. Quase me
afoguei.
— E aquela vez em que você me convenceu a assustar as abelhas da srta. Lanshire?
Ou a noite em que roubamos o carro novo de meu pai e saímos para dar uma volta? Papai,
Happy e o delegado acharam que algumas horas na cadeia nos dariam um pouco de juízo.
Aí você convenceu o guarda a pedir a Stella que nos trouxesse um jantar, só que não
dividiu a comida comigo.
— Porque você foi egoísta e não me deixou guiar o carro. — Os dois ficaram em
silêncio por algum tempo, confortando-se com o abraço e com as recordações da infância.
— Ash — ela murmurou, por fim —, estou com medo.
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Ele não queria lhe dizer que também estava. Sabia que o futuro de ambos corria
sérios riscos.
Shannon levantou a cabeça e o encarou, tentando ler os pensamentos dele, mas Ash
disfarçava cuidadosamente seus sentimentos com um sorriso. Porém, conforme ela
continuava a fitá-lo, o sorriso foi substituído por uma expressão de ternura e amor que a
deixou emocionada. Sentiu a mão de Ash subir por suas costas e enredar-se em seus
cabelos, enquanto os lábios de ambos se procuravam para um beijo apaixonado.
Ash acariciou-lhe os quadris, as coxas, sentindo-lhe a pele macia sob a saia.
—. Eu nunca pensei que poderia desejar tanto assim uma pessoa — murmurou de
encontro aos lábios dela. Em sua mente formava-se a imagem de Shannon nua sobre os
lençóis brancos de cama e a onda de paixão que o invadiu era quase incontrolável.
— Devia existir uma palavra melhor do que amor. Ela é tão pequena para expressar
tudo que eu sinto por você. Foram as lembranças, o amor e a esperança que me
mantiveram viva durante esses anos.
— Depois que toda esta confusão for esclarecida, faremos o que deveríamos ter feito
há dez anos. Vamos nos casar.
— Será que conseguiremos superar tantas amarguras e recuperar o que tínhamos
antes? — Shannon indagou, emocionada. Queria muito acreditar que sonhos podiam se
tornar realidade. Afinal, apegara-se a eles por tantos anos!
— Shannon, só o que mudou em nós foi o fato de estarmos mais velhos e talvez mais
experientes. Com o tempo, reencontraremos o que ficou para trás e o nosso
relacionamento será ainda melhor.
— Ah, Ash! — Shannon sentia-se mais forte sabendo que podia contar com o amor de
Ash. Ele lhe devolvera a esperança, um presente valioso demais para que pudesse
expressar seu agradecimento em palavras. — Faça amor comigo, Ash. — Havia desespero
na voz dela, urgência na maneira como o beijava. Queria ter pelo menos aquela noite para
guardar como recordação.
Ash começou a despi-la devagar, detendo-se para beijar-lhe o pescoço, os ombros, o
colo. Quando o sutiã rendado assentou-se sobre o tapete, ele tocou-lhe os seios, traçando
as pequenas veias azuladas que se destacavam na pele clara.
— Algo que sempre me impressionou foi uma mulher alta como você parecer tão
pequena e delicada.
Ash fitou-a com admiração: o corpo nu de Shannon era magnífico. A adolescente que
conhecera havia desaparecido para dar lugar à mulher. Porém, algumas coisas nunca
mudavam. Ainda podia perceber a emoção na expressão dos olhos dela, no rápido subir e
descer do peito por causa da respiração alterada.
Shannon fechou os olhos ao sentir os dedos de Ash tocando-lhe a pele e
surpreendeu-se com a rapidez com que as carícias lhe inflamavam o desejo. De repente,
percebeu que ele se afastava e abriu os olhos depressa, vendo Ash tirar as roupas e revelar
sua masculinidade adulta. Ele também já não era o adolescente de dez anos atrás.
Ela se aproximou e tocou-lhe o peito, experimentando, reconhecendo o corpo que lhe
era tão familiar. A pele bronzeada ostentava agora pelos loiros e macios que se arrepiavam
conforme ela os acariciava com os dedos. O gemido de Ash revelou melhor do que qualquer
palavra a reação que aquelas carícias lhe causavam.
— Como você é bonito, Ash.
— Meu amor, você é que é tão linda que me faz perder o fôlego.
— Será que isto tudo é um sonho? Não quero acordar de repente e descobrir que você
não está mais a meu lado.
— Acha mesmo que isto parece um sonho? — Ash segurou a mão dela e a apertou. —
Eu sou tão real quanto você.
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— Então me abrace para eu ter certeza.
Ash puxou o corpo nu de Shannon para junto do seu e a embalou como a uma
criança assustada. Sentia tanto amor e ternura por aquela mulher a ponto de não poder
conter as lágrimas que lhe molharam os olhos.
Shannon baixou o braço, segurou-o pela mão e o conduziu até a cama. De repente,
ouviu que Ash começava a rir e virou-se, confusa.
— Como nos velhos tempos, eu sempre fico parado como bobo na sua frente e você
tem de tomar a iniciativa. — Ele a levantou nos braços e, rindo, os dois caíram sobre a
cama. — Lembro da primeira vez em que fizemos amor. Você era uma mistura fascinante
de virgem tímida e mulher sensual. Foi você quem me fez ir em frente quando eu comecei a
me debater com uma súbita preocupação com o que seu avô iria pensar.
— Mas você não hesitou por muito tempo — ela murmurou, esticando o corpo junto
ao dele de forma a poder alcançar-lhe a boca. Com o dedo ligeiramente trêmulo, traçou os
contornos do rosto de Ash e parou sobre a boca. Então substituiu o dedo pelos lábios e o
beijou com avidez.
— Shannon...
— Sim?
— Quero que esta noite seja especial para nós, mas não vou poder me controlar se...
— Eu esperei por dez anos. Fantasiei e sonhei com este momento. Não preciso de
muitos preliminares, meu amor. Quero você agora.
Ash colocou-se sobre ela e acariciou-lhe o corpo curvilíneo. O desejo era tão intenso
que parecia transformar-se em dor. Ambos se uniram para o amor em um abandono
selvagem, abraçando-se com urgência e paixão. Quando Shannon gritou o nome dele e o
apertou com mais força, Ash respondeu em uníssono, deixando a realidade escapar de seus
sentidos.
Ofegante e satisfeita, Shannon observou, fascinada, a tensão desaparecer do rosto de
Ash, deixando-o anos mais jovem. Sua visão embaçou-se pelas lágrimas e, emocionada,
percebeu que ele também tinha os olhos molhados. Com imensa ternura, ela o acolheu em
seus braços, afagando-lhe os cabelos macios. Já vira Ash rindo, zangado, com raiva e triste,
mas nunca chorando. Também ela sentia vontade de soluçar e rir ao mesmo tempo.
Ash levantou a cabeça e a encarou, sem se preocupar em esconder as lágrimas que
lhe corriam pelo rosto. Por fim dava vazão a todas as emoções que mantivera reprimidas
durante dez anos. Talvez ainda houvesse tempo para compensá-la por tudo que a fizera
sofrer devido a seu maldito orgulho e falta de confiança.
— Em que está pensando? — ela perguntou.
— Só estou imaginando como você vai ficar quando for velha, grisalha e enrugada
como uma ameixa seca.
— Ash Bartlet! — Shannon sabia que aquela brincadeira fora uma forma de tentar
conter a emoção. Aconchegou-se junto a ele, repousou a cabeça no ombro largo e suspirou,
sentindo-se feliz pela primeira vez em muitos anos. O quarto silencioso e a respiração
compassada de Ash não tardaram a fazer efeito e logo ela fechou os olhos e adormeceu.

CAPÍTULO XIV

O vento uivava, rodeando-a como um ser vivo. As rajadas congelantes mal a


deixavam respirar. A neve ardia-lhe na pele e juntava-se sobre os cílios, nublando-lhe a
visão.
Dean vinha em direção a ela, empurrando-a, forçando-a a caminhar para trás. Deu
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uma olhada nervosa sobre os ombros e percebeu que chegava cada vez mais perto da borda
de Devil's Leap. A tempestade de neve zumbia em seus ouvidos, permitindo-lhe escutar
apenas fragmentos das frases que Dean lhe dizia. O medo a fazia tremer ainda mais e ela
esforçava-se para compreender as palavras, mas só percebia com nitidez os olhos dele,
azuis e frios, brilhando entre os flocos de neve que caíam sem cessar.
Dean continuava avançando, o rosto cheio de ódio. Ela tropeçou em alguma coisa,
recobrou o equilíbrio e olhou para o chão. Então, abaixou-se depressa e pegou a arma,
sabendo que logo teria de lutar pela vida.
A risada de Dean soou ao vento. Era a risada de um caçador que, por fim, conseguia
encurralar sua presa e estava pronto para abatê-la. Ela gritou, tentando fazer-se ouvir
acima do barulho da tempestade, mas ele apenas riu outra vez.
De repente, tudo se precipitou. Ele a agarrava, as mãos apertando-lhe a garganta.
Como em um sinistro bale, fizeram um meio círculo e trocaram de lugar; Dean ficou
de costas para o abismo. Ela não conseguia respirar e pontos de luz brincavam diante de
seus olhos. Então, desesperada, levantou a arma.
Shannon abriu a boca para gritar, mas não emitiu nenhum som. Acordou de súbito
do pesadelo, sentou-se e esfregou os olhos. O vento e o grito ainda ecoavam em seus
ouvidos enquanto tentava reconstruir a cena. O que havia lembrado? Mas as imagens não
voltavam e o esforço só lhe trouxe uma latejante dor de cabeça. Aproximou-se mais de Ash
e colocou a mão sobre o braço dele para certificar-se de que era real. O que iriam fazer se
não se lembrasse? O que aconteceria com ela?
A mão de Ash cobriu a sua e só então percebeu que estivera apertando o braço dele
com tanta força que o fizera acordar.
— Um pesadelo?
— Sim. Quase consegui, Ash, mas a cena me escapou. Droga!
— Calma. — Ash sentou-se na cama e a abraçou. — Quando chegarmos à cabana você
vai se lembrar.
— Gostaria de ter tanta confiança quanto você. — Na verdade, quanto mais a manhã
se aproximava, menos ela acreditava que a viagem à montanha daria resultado. O medo
era tanto que a fazia estremecer. Porém, era preciso tentar. Por Ash, pela pouca esperança
que ainda lhe restava.
Fechou os olhos e rezou em silêncio, pedindo orientação e ajuda.
— Ei, preguiçosa, não durma de novo. Temos de levantar.
— Que horas são?
— Quase quatro.
— Ah, não, Ash — ela gemeu, abraçando-o com mais força. — Não consigo raciocinar
tão cedo assim.
— Não precisa raciocinar, só montar em um cavalo.
Antes que ela pudesse responder, Ash estava de pé, puxando-a para fora da cama.
Shannon apertou os braços em torno do corpo, tremendo.
— Isso é frio ou medo? — ele quis saber.
— As duas coisas.
— Venha comigo. — Ash a segurou pela mão e a conduziu ao banheiro. — Como está
seu pé?
— Melhor, mas não sei como vou poder calçar as botas.
Ele ligou o chuveiro e o vapor logo ocupou o ambiente, espantando a friagem e
embaçando os azulejos.
— Eu e Happy já pensamos nisso. Vou fazer uma atadura dupla em seu tornozelo e
você usará tênis. Agora entre no banho; daqui a pouco Jeff estará aqui.
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— O que aconteceu ao homem romântico e insaciável de ontem à noite? — ela
resmungou, colocando-se sob a ducha quente.
Ash deu-lhe uma leve palmada nas nádegas molhadas e fechou a porta.
— Estou aqui fora, te esperando.

Quando entraram na cozinha uma hora depois, Bridget lançou-lhes um olhar curioso
enquanto servia o café da manhã sem qualquer comentário.
Shannon mordeu o lábio para não rir; sabia que a governanta estava ansiosa para
saber se eles haviam resolvido seus problemas. Deu uma olhada rápida para Ash e
percebeu que ele também sorria. De repente, Bridget pigarreou com vontade e fez com que
ambos levantassem a cabeça. Fitava-os com a expressão séria e as mãos na cintura.
— E então?
Ash baixou o garfo, pegou o guardanapo e limpou a boca, apenas para deixá-la ainda
mais impaciente.
— E então o quê?
— Não comece a me provocar logo cedo. Vocês dois vão se casar? Fizeram as pazes?
— Alguma vez você teve dúvidas quanto a isso, Bridget?
— Nem por um segundo, Ash Bartlet. Mas sei como você é teimoso. — E sorriu para
os dois, com os olhos brilhando de alegria e alívio. — Jeff está aí.
Ash levantou-se, mas fez um sinal a Shannon para que permanecesse sentada.
— Não há necessidade de você ir lá fora passar frio. Eu a chamarei quando
estivermos prontos para partir. Bridget, você embrulhou os mantimentos?
— Claro que sim. Bob os está colocando no cavalo de carga.
Shannon ficou em silêncio vendo Ash sair e esperou até que ele fechasse a porta
antes de segurar as mãos da governanta e demonstrar a insegurança que sentia.
— Bridget, e se eu não conseguir lembrar? E se não puder provar que não matei
Dean? O que vai acontecer?
— Não ouse pensar dessa maneira, menina. Não quero ouvir nem uma palavra sobre
isso. — E afastando-se da pia, pegou um casaco forrado que se encontrava sobre a cadeira
de balanço. — Tome. Seu avô trouxe isto agora há pouco.
Shannon sorriu e apertou o velho agasalho contra o peito, como se fosse um amigo
que não via há muito tempo.
— Happy ainda está aqui?
— Não. Ele e um dos guardas de Jeff vão fazer turnos para vigiar a Rocking W e
Clyde. Agora vista o casaco e saia da minha cozinha. Vá supervisionar o trabalho dos
homens; isso a deixará com a cabeça ocupada. — Bridget voltou para a pia e Shannon
levantou-se para sair. Não havia dado dois passos, porém, quando a governanta a chamou
e, aproximando-se dela, deu-lhe um abraço forte e carinhoso. — Boa sorte, minha querida.
Não se preocupe, tudo vai dar certo.
— Espero que sim. — Shannon deu um beijo no rosto de Bridget, caminhou para a
porta e segurou a maçaneta. Então parou, mas permaneceu de costas para a governanta. —
Se a viagem não transcorrer da maneira como desejamos... prometa que vai tomar conta
dele. Por favor, Bridget.
— Claro, eu prometo — ela respondeu, mal podendo conter as lágrimas.
— Deus a abençoe, Bridget.
— A você também, Shannon.

O céu começava a clarear lentamente e uma brisa fria agitou os cabelos de Shannon.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 80
Porém, ela sentia-se quente e abafada. Enxugou na calça as mãos úmidas de suor e
desabotoou o casaco. Tinha a garganta seca e os joelhos trêmulos. O medo não a deixava
um só instante; sabia que se a ideia de Ash não desse certo, seria acusada de assassinato.
Seu olhar percorreu a paisagem, como se quisesse gravar cada detalhe na memória.
Voltou-se para o norte, na direção de Devil's Leap, e apertou os olhos, procurando penetrar
a névoa do amanhecer e ver além da sombra escura da montanha; passando por
precipícios e pedras, árvores e moitas, voltando no tempo até aquele dia em que acampara
com Dean. Não conseguia lembrar-se de nada e, a cada esforço mal-sucedido, o receio
aumentava mais.
Faróis de carros cortaram a neblina e chamaram-lhe a atenção. Ela seguiu na direção
das luzes e ouviu vozes masculinas conversando e rindo. Eram Ash e Jeff que faziam os
últimos preparativos para a viagem. Ash estava parado ao lado de um cavalo, com o chapéu
puxado sobre a testa, prestando atenção na voz grave de Jeff. Antes de ser vista, Shannon
pôde ouvir o que o delegado dizia.
— Ah, não, Ash. Não pedi autorização ao promotor para esta viagem. Nem comentei
nada com ele a respeito disto. Ele não vai entrar oficialmente com acusações antes que o
dr. Henry libere o laudo. Mas eu até gostaria que o calhorda fizesse isso. Então, quando
Shannon nos contasse o que realmente aconteceu, a situação ficaria bastante
constrangedora para ele.
— E se eu não lembrar?
Os dois homens se viraram, surpresos. Jeff tirou o chapéu e o girou desajeitadamente
nas mãos fortes.
— Bom dia, Shannon.
— O que Hamilton pode lhe fazer por causa desta viagem, Jeff?
— Pode exigir que eu seja demitido.
Shannon engoliu em seco, sentindo-se pior que antes.
— Talvez eu devesse apenas ficar e...
— Não, Shannon — Ash interveio, aproximando-se dela e a abraçando.
— Neste país, as pessoas ainda são inocentes até prova em contrário — Jeff afirmou.
— Vamos provar sua inocência, de uma maneira ou de outra. Não se preocupe comigo ou
com Hamilton. Eu nunca perdi para aquele sujeito. Além disso, nem tudo depende de você
recuperar a memória. Tenho mais algumas ideias para serem investigadas.
— O quê, por exemplo? — Ash quis saber.
— Por exemplo, o rifle que matou Dean não tinha impressões digitais, nem mesmo as
dele, que era o dono. Nas condições em que Shannon se encontrava, não acredito que teria
pensado em limpar a arma. Há ainda outras coisas que meus homens estão verificando.
São algumas possibilidades.
O sol da manhã levantava aos poucos a neblina, espalhando sobre tudo uma
tonalidade amarelada e fazendo a grama úmida de orvalho brilhar como se estivesse
coberta por uma camada de gaze prateada.
Shannon percebeu que, enquanto Jeff falava, seu olhar subitamente se desviara e ele
ficara pálido, tornando mais visíveis as cicatrizes do rosto. Virando-se para trás, deparou-
se com Jenny vestida em jeans, botas e um casaco pesado, obviamente pronta para uma
longa cavalgada. Shannon voltou a fitar Jeff e notou-lhe a expressão triste antes mesmo
que ele pudesse disfarçá-la. Um silêncio tenso seguiu-se à chegada da moça, como se
ninguém soubesse o que dizer.
— Bom dia, Jenny — Shannon cumprimentou, tomando a iniciativa da conversa.
Porém, Jenny a ignorou; tinha os olhos fixos em Jeff.
— Vou com vocês.
— Não vai, não — Ash discordou. — Não estamos saindo para um passeio ou um
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 81
piquenique. Teremos de cavalgar depressa.
— Eu sei andar a cavalo tão bem quanto ela — Jenny respondeu, fazendo um sinal
em direção a Shannon. — Conseguirei acompanhá-los.
— Não. — Desta vez, foi Jeff quem respondeu.
Um pouco constrangida, Shannon viu Jenny segurar a mão do delegado, mas ele a
repeliu.
— Por favor, Jeff. Preciso conversar com você.
— Durante os últimos dois anos você pareceu tratar nosso namoro como uma
brincadeira. Deixou-me tão confuso que eu já nem sabia para que lado me virar. Primeiro
me queria, depois não queria mais. Diz que me ama e em seguida já não tem certeza.
Promete enfrentar sua mãe e contar a ela sobre nós. Aí, quando eu acreditei que as coisas
iam se acertar, você deixou que ela a levasse naquela maldita viagem e tudo mudou outra
vez. Acha que sou feito de pedra?
— Por favor, Jeff — ela pediu. — Aconteceram coisas na Europa que eu ainda não lhe
contei.
— Pois não quero ouvir, Jenny. Agora não. — Jeff voltou a seu cavalo e começou a
prender a sela com mais firmeza.
Porém, Jenny não estava disposta a desistir. Voltou o rosto determinado e suplicante
para o meio-irmão.
— Ash...
— Não, Jenny. Jeff está com a razão. Agora não é o momento de perturbá-lo com
problemas pessoais. Ele está sob tanta pressão quanto nós. Espere até voltarmos.
— Eu não quero esperar. Não posso. Será que você não compreende?
— Não, eu não compreendo. Você e sua mãe têm agido como malucas desde que
Shannon voltou. Acha mesmo que Shannon está disposta a suportar seu sarcasmo durante
toda a viagem? Depois da maneira como vocês a trataram?
Shannon fitou Ash, surpresa com aquela reação. Só então percebeu que ele também
tinha medo e se encontrava tão preocupado quanto ela. Só esse motivo explicaria a
maneira dura como estava tratando Jenny.
— Pare com isso, Ash. Ela pode vir conosco.
— Já disse que não. A propósito, Jenny, onde está Paula?
— Não sei. Não voltou para casa esta noite; disse que queria manter-se longe do
escândalo. — Ela lançou uma olhada rápida para Jeff e voltou a fitar Ash. — Não vai
mesmo mudar de ideia?
— Não.
Shannon observou a moça virar-se para ir embora e foi a única a escutar suas últimas
palavras murmuradas: "Happy me levará". Jenny correu para a garagem e, minutos
depois, saiu com o carro e desapareceu na curva da estrada.
— Você foi muito duro com ela, Ash.
— Já é hora de Jenny crescer e aprender que as coisas não podem ser sempre do jeito
que ela quer.
— Tenho a sensação de que ainda não será desta vez — Shannon comentou, sorrindo.
Lembrava-se de como Jenny sempre tivera Happy nas mãos quando criança e essa
situação não devia ter mudado muito.
— O quê? — Ash perguntou, mas não pôde prosseguir o assunto. Jeff o chamou e
apontou para duas pessoas que se aproximavam rapidamente à cavalo. O mais estranho
era que os dois animais não corriam juntos. Parecia que um dos cavaleiros tentava
interceptar o outro, galopando depressa, em ângulo reto com o primeiro.
Quando os cavalos se aproximaram, Ash e Jeff resmungaram em uníssono.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 82
Shannon tentou identificar quem era aquela pessoa que parecia ter dificuldade em
manter-se sobre o cavalo. Então, percebeu que era uma mulher com uma blusa rosa-
choque e cabelos loiros esvoaçantes.
— Quem é ela?
— A principal repórter do Bartlet Star — Jeff respondeu. — Chama-se Sally Roland.
— O outro palhaço tentando alcançá-la é Bob. Esse rapazinho vai se ver comigo —
Ash ameaçou.
Os cavalos quase colidiram ao passar pelo portão. O cascalho do chão voou em todas
as direções quando os cascos derraparam em uma parada súbita.
Bob desmontou e correu em direção a Ash, gritando.
— Ela veio da fazenda Douglas, patrão. Estávamos de guarda no portão principal
quando a avistei. Ela não parou nem mesmo quando dei um tiro de advertência.
— Será que alguém vai me ajudar a descer deste bicho? Estou com o traseiro todo
dolorido!
Jeff a auxiliou, afastando-se depressa ao perceber que as mãos de Sally demoravam-
se sobre seus ombros largos.
— Você está invadindo minha propriedade, Sally — Ash avisou. — Tenho guardas nos
portões com a missão de manter você e seus colegas fora daqui.
— Mas que hospitalidade! — a repórter ironizou.
— Monte outra vez nesse cavalo e suma da minha frente.
— Ora, Ash, querido, não me trate assim. Eu conheço você há tanto tempo... — Ela
aproximou-se de Ash com um olhar insinuante e Shannon ficou rígida, lembrando-se de
repente de Sally Roland e de sua péssima reputação em relação aos homens.
— Fora! — Ash insistiu.
Sally massageou o traseiro e sorriu ao ver Shannon.
— Eu pensava ser a única pessoa de quem gostavam de falar nesta cidade, porém
você ganhou longe, minha cara. Mas como sei que os boatos começam por aqui, então, não
levei as histórias muito a sério. Você não matou o seu marido, não é?
— Não — Shannon murmurou, pouco convincente.
— Ora, mas você não parece muito segura quanto a isso. — E enfiando a mão no
bolso da camisa, tirou um pequeno bloco de anotações e um lápis.
— Sally! — Ash alertou, colocando-se entre as duas mulheres, no que foi logo
acompanhado por Jeff.
— Que é isso, gente? Só quero uma entrevista exclusiva e, então, prometo não avisar
nosso estimado promotor que vocês estão se aprontando para fugir do Estado. É isso que
Jeff os está ajudando a fazer, não é?
— Bob — Ash chamou. — Leve a srta. Roland para o depósito de selas e tranque-a lá
dentro.
— Ei, espere aí!
— E deixe-a lá por duas ou três horas.
— Sim, senhor. — Sorridente, Bob segurou Sally pelo braço e a levou embora à força.
— Não pode fazer isso comigo, Ash Bartlet! — ela continuou protestando, aos gritos,
enquanto se afastava. — Sou uma repórter e tenho o direito de escrever a verdade. Jeff,
você é o delegado, faça-o parar com isso! Jeff... Jeff...
Os dois homens riram e Jeff começou a selar outro cavalo.
— Bem, conseguimos nos livrar de uma, mas é melhor andarmos depressa antes que
os outros arrumem uma maneira de entrar aqui — ele alertou.
— Que outros, Jeff?
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 83
— Conte a ela, Ash. Vou colocar meu carro na garagem para que não o vejam de
longe.
— Outros repórteres, querida. Parece que Hamilton contou a história de Dean à
imprensa e ontem à noite já havia vários jornalistas tentando passar pelo portão da
fazenda.
— Oh, Ash! Estou causando tantos problemas! Nada disso teria acontecido se eu não
houvesse voltado.
— E nós também não estaríamos juntos.
— Só espero que você não acabe me odiando no fim de toda esta confusão.
— Como pode pensar numa coisa dessas?
— Fácil. Eu posso terminar na cadeia e o escândalo envolverá todos nós. Jeff colocou
seu emprego e seu futuro em risco por minha causa e Happy já é muito velho para
enfrentar uma situação tão difícil.
— Pare com isso. — Ele a beijou de leve, impedindo que Shannon continuasse a falar.
— Tudo acabará bem, confie em mim. Todos nós estamos a seu lado porque a amamos e
acreditamos em você.
— Ash! — Bridget chamou, caminhando em direção a eles. Jeff vinha saindo da
garagem e ela fez sinal ao delegado para que também se aproximasse. — Tome, Shannon.
Pode precisar disso — E lhe entregou um velho chapéu e uma garrafa térmica. — O meu
chá de ervas com um pouco de conhaque afasta qualquer frio. Agora ouçam aqui. Você
também, Jeff. Stella acabou de telefonar do café para avisar que Hamilton Watts descobriu
sobre esta viagem. Ele saiu da cidade há poucos minutos, dirigindo-se para cá, para pedir a
prisão de Shannon. O canalha resolveu não esperar pelo resultado da autópsia.
— Então vamos logo — Ash decidiu. — Venha, Shannon, deixe-me ajudá-la a subir no
cavalo.
— Ash... — ela murmurou, sentindo a boca seca e o coração aos pulos.
— Não desanime agora. Estamos todos juntos e vamos até o fim.
Shannon respirou fundo para ganhar coragem e deixou que Ash a levantasse até a
sela. Minutos depois, atravessavam o portão da fazenda e punham-se a caminho.

O sol da manhã havia subido mais um pouco no céu e banhava-lhes os rostos com
um brilho ainda pálido, enquanto cavalgavam pelo pasto. Shannon olhou para os dois
homens e começou a rir. A cena a lembrava tanto dos velhos tempos que, por alguns
momentos, esqueceu-se de tudo quanto acontecera nos últimos dez anos e deleitou-se com
o prazer das recordações.
Ash e Jeff certamente haviam se lembrado da infância também, porque ambos
estavam rindo. Os três inclinaram-se sobre as selas e fizeram os cavalos galopar,
desafiando um ao outro. Shannon sentia-se feliz com o vento agitando-lhe os cabelos, até
que avistou o contorno escuro de Devil’s Leap e sua despreocuparão terminou. Reduziu a
velocidade do animal e os homens, percebendo a reação dela, também puxaram um pouco
as rédeas.
Uma vez mais, como no início da viagem, puseram-se lado a lado e prosseguiram em
silêncio.
Shannon estremecia, mas não era apenas por causa da montanha silenciosa e
ameaçadora de que se aproximavam. Por mais que quisesse se lembrar, sabia que, ao
mesmo tempo e deliberadamente, recusava-se a enfrentar o terror que assombrava seus
sonhos desde aquele dia fatídico. Era como se fosse uma criança querendo desafiar o
monstro de seus pesadelos mas sem coragem de tirar a cabeça de baixo dos cobertores.
Porém, não era uma criança. Era uma mulher adulta e, talvez, a autora da morte de
Dean. Como poderia conviver consigo mesma se isso fosse verdade? E Ash? Como ele
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reagiria?
As sombras começaram a se estender pela paisagem com a rápida aproximação da
noite. Jeff deixou-os para trás e saiu à procura de um abrigo. A brisa leve e gelada parecia
penetrar através das roupas e cortar-lhes os rostos vermelhos de frio.
Shannon mal se aguentava sobre a sela. Sentia-se exausta e o tornozelo doía muito.
Ash puxou as rédeas de seu cavalo e esperou que ela o alcançasse. Então, examinou-a com
uma expressão preocupada.
— Fique firme, querida. Jeff logo encontrará um lugar para passarmos a noite. Daqui
a pouco você estará aquecida e alimentada. Como vai o tornozelo?
— Bem.
— Mentirosa. Eu sei que está doendo, — Ele esticou o braço e acariciou o rosto de
Shannon, satisfeito por notar que os hematomas começavam a desaparecer.
Uma longa série de assobios cortou o silêncio e Ash, reconhecendo o sinal, virou o
cavalo na direção do som. Shannon respirou fundo e o seguiu. Agora que o alívio
encontrava-se próximo, a dor no tornozelo parecia mais aguda. Cavalgaram sob um dossel
de pinheiros perfumados, circundaram arbustos e pedras e, quando ela achava que não
aguentaria nem mais um minuto, sentiu o cheiro reanimador de café e comida. Pressionou
o cavalo com os pés, fazendo uma careta por causa da dor, mas conseguiu alcançar Ash.

A velha cabana usada como acampamento por caçadores reluzia com o brilho
dourado da fogueira acesa. No momento em que Shannon freou o cavalo, Ash já se
encontrava desmontado e pronto para ajudá-la a descer. Ela largou as rédeas e soltou-se
nos braços dele com um suspiro de alívio. Pouco depois, sentava-se em frente ao fogo e Ash
desatava as bandagens de seu tornozelo.
Jeff recolheu um pouco de neve que ainda restava junto às árvores e ajudou Ash a
colocar uma atadura gelada em torno do pé inchado de Shannon. Depois entregou-lhe uma
xícara com café quente e um prato com grandes pedaços de carne e batatas cozidas.
Enquanto isso, Ash a envolvia cuidadosamente em um cobertor grosso.
Sentindo-se quente e confortável, Shannon olhou para os dois homens com uma
imensa ternura. Não lhe passara despercebido que, desde a chegada à cabana, eles haviam
feito todo o possível para que ela não pensasse no que teria de enfrentar no dia seguinte.
Falaram da infância, dos amigos, da fazenda e até de alguns aspectos menos agradáveis do
trabalho de Jeff.
Ela largou a xícara è acomodou-se dentro do saco de dormir. Olhou para Ash através
das pálpebras entreabertas; os cabelos dele haviam adquirido um tom dourado diante da
luz da fogueira. As vozes baixaram para um murmúrio e, embora não pudesse ouvir as
palavras, Shannon sabia que estavam discutindo o que iria acontecer no próximo dia.
Shannon fechou os olhos para que não percebessem sua ansiedade, embora soubesse
que não iria conseguir dormir. A perspectiva de que a manhã lhe trouxesse de volta o
pesadelo era por demais assustadora.

CAPÍTULO XV

O dia seguinte amanheceu perfeito, com o sol brilhando no céu quase sem nuvens e
dissipando um pouco o frio intenso do alto da montanha.
Shannon ajeitou-se na sela, inquieta. O barulho surdo dos cascos dos cavalos no chão
rochoso fazia um contraponto monótono e soturno a seus pensamentos. Quanto mais se
aproximavam do platô da montanha, mais insistentes se tornavam as dúvidas em sua
cabeça.
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Por que Dean tentara estrangulá-la?
Virou-se para trás e fitou Ash, mas ele vinha distraído e em silêncio, perdido em seu
mundo particular.
Seria possível que ela tivesse odiado tanto o marido a ponto de tirar-lhe a vida? Seria
uma assassina?
Não adiantava procurar dentro de si, porque as respostas não se encontravam lá.
Dias inteiros haviam sido apagados de sua memória e não conseguia recuperá-los por mais
que tentasse.
As árvores começaram a escassear conforme aproximavam-se do topo. As rédeas
tremeram nas mãos de Shannon. Estavam quase chegando ao acampamento, onde sua
vida sofrera uma mudança abrupta. Queria fechar os olhos e ver-se longe dali, de volta ao
conforto da casa do avô. Havia um zumbido em seus ouvidos e podia sentir a neve intensa
penetrando através da roupa, embaçando-lhe a visão.
Sacudiu a cabeça, atordoada, e olhou em volta. A brisa era suave e o sol quente
banhava-lhe o rosto. O pesadelo começara.
Ash e Jeff prosseguiam como sentinelas estóicas, mantendo-a entre eles enquanto
subiam a montanha por trilhas perigosas, beirando precipícios. Tudo o que Shannon
queria era voltar para casa. Jeff desapareceu numa curva e ela o seguiu mecanicamente,
reconhecendo o caminho. Fariam uma nova curva, depois haveria uma reta e subiriam
uma encosta íngreme que os levaria ao platô de Devil's Leap e ao acampamento deserto.
Olhou em volta com uma expressão cautelosa; toda a paisagem lhe parecia
assustadora. As poucas árvores tinham os troncos inclinados devido à força do vento que
soprava dos altos picos nevados, e as moitas, desprovidas de folhagem, pareciam crescer
diretamente das rochas. Esparsos tufos de grama lutavam pela vida no solo ressecado pelo
frio.
O barulho do vento agitando uma tenda desmontada chamou-lhe a atenção. Era o
acampamento. Seus mantimentos, carregados por animais famintos e curiosos,
espalhavam-se pela área.
Shannon nem viu os homens desmontarem dos cavalos; tinha os olhos fixos no
cenário. Ash a segurou pela cintura e, antes que ela pudesse lutar contra o inevitável,
colocou-a no chão e a abraçou.
— Chegou a hora, querida.
— Eu sei — ela murmurou, rígida.
— Lembra-se de alguma coisa?
— Não.
— Dê tempo a ela, Ash — Jeff aconselhou. — Solte-a, deixa-a andar por aí e vamos
ver o que acontece.
Ash lançou um olhar zangado ao amigo mas, mesmo relutante, liberou Shannon de
seu abraço.
— Como está o tornozelo?
— Melhor. — Ela experimentou apoiar o pé no chão, porém não se afastou da
segurança da companhia de Ash.
— Vá dar uma olhada no acampamento. Talvez algo volte à sua memória — Ash
incentivou.
Shannon fez um sinal afirmativo com a cabeça, mas não se moveu. Tinha o rosto
tenso e apavorado.
— E se eu não conseguir? O que vai acontecer?
— Tente. — Ash lhe sorriu, tentando transmitir uma segurança que não sentia.
Queria ajudá-la, mas não sabia como. Tinha as mãos atadas até que atingissem o objetivo
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que os levara à montanha. Nada mais podia fazer além de amá-la. Segurou-a pelos ombros
e a fitou, procurando não demonstrar a agonia que lhe causava aquele rosto pálido de
olhos amedrontados. — Ouça, Shannon, eu te amo. Nunca a amei tanto como agora. Não
importa o que acontecer, estarei sempre a seu lado. Confio em você e sei que as coisas que
aconteceram aqui em cima não foram culpa sua. Mas precisa tentar se lembrar.
— Por você, Ash?
— Não, querida, por nós dois. — Ele inclinou-se e beijou-lhe os lábios frios.
Shannon sorriu sem muita vontade e caminhou devagar até o acampamento.
Examinou a área procurando um sinal, uma pista para o pesadelo que lhe bloqueava a
mente. Nada. Tropeçou em um cantil verde, abaixou-se para pegá-lo e sacudiu a cabeça.
— Lembrou alguma coisa? — Ash perguntou, vindo logo atrás dela.
— Não.
E continuou a andar, com o pânico começando a corroê-la por dentro. Percebeu uma
colher meio escondida sob uma pedra, com pequenas marcas de dentes de algum
animalzinho noturno.
— E então? — Ash murmurou.
— Nada.
Ele suspirou e Shannon teve vontade de gritar. Lágrimas espessas inundaram-lhe os
olhos.
Shannon continuou percorrendo o perímetro do acampamento. Quando viu o sol
bater sobre um objeto brilhante, respirou fundo e penetrou no círculo imaginário que sua
mente havia estabelecido como limite. Abaixou-se e pegou do chão um pacote metálico de
suco de laranja em pó, mas logo tornou a largá-lo como se lhe queimasse os dedos.
— Alguma coisa?
— Não adianta, Ash. Eu não me lembro. Tudo parece familiar, mas ao mesmo tempo
estranho.
— Continue tentando — Jeff interveio, segurando o braço do amigo para mantê-lo
afastado. Mas Ash soltou-se e seguiu Shannon para o centro do acampamento.
Ela agachou-se e examinou os restos de uma fogueira, massageando as têmporas em
uma tentativa de estimular a memória. Teria preparado alguma refeição? O que poderia ter
sido?
— Lembrou alguma coisa? — Ash insistiu, agachando-se ao lado dela.
— Nada! Nem um mísero detalhe.
Havia um toque de histeria na voz dela e Ash tentou acalmá-la. Ouviu Jeff
resmungar, mas não lhe deu atenção.
— Fique calma. Não é preciso forçar, Shannon, apenas relaxe. — Atrás deles, Jeff
voltou a murmurar um protesto. — Qual é o problema, Jeff? — Ash esbravejou, voltando a
baixar a voz logo em seguida. — Acalme-se, Shannon. Tente se lembrar do momento em
que você e Dean saíram de Rocking W para a caçada.
— Mas eu não sei, Ash! — ela exclamou, com lágrimas correndo pelo rosto. — Já
tentei, mas não consigo.
— Continue tentando, não desista. — Ash ignorou quando Jeff tossiu. — Olhe em
volta, estas coisas devem ser familiares para você.
— Claro que são — ela respondeu, levantando-se e enxugando os olhos com as mãos.
— Acampei várias vezes em minha vida. Usei cada um destes objetos em centenas de
ocasiões. Acontece que não me lembro e acho que nunca irei me lembrar. Talvez seja
melhor Jeff me prender e me levar de volta à cidade.
— Nunca mais me diga isso, Shannon. É a minha vida também que você está jogando
para o alto com essa auto-piedade. Pense, tente lembrar.
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— Agora chega! — Jeff interveio, segurando Ash pelo braço e fazendo com que ele se
levantasse. Os dois homens se fitaram como guerreiros prontos para uma batalha. — Ash,
pare de acossá-la, pelo amor de Deus! Como espera que Shannon se lembre de alguma
coisa com você bafejando junto ao pescoço dela como um dragão? Já me deixou tão
irritado com esse negócio que nem sei mais o que comi no café da manhã!
— Vá para o inferno!
— Está com vontade de bater em mim, não é? Pois bem, vá em frente. Talvez isso
ajude a aplacar um pouco sua raiva. Só que nossa briga não vai ajudar em nada. Venha
comigo e a deixe em paz. Quero que você dê uma olhada no precipício.
Sentindo-se um completo idiota, Ash sorriu e afastou-se com Jeff.
O alívio de ter sido deixada sozinha não durou muito para Shannon. O tremor
interno recomeçou e ela virou-se para as cinzas negras da fogueira.
Um calor intenso aqueceu-lhe as pernas através da calça quando chamas azuis e
amareladas puseram-se a dançar com o vento. Em pânico, Shannon olhou em direção a
Ash e Jeff. Eles estavam em pé ao lado do precipício de Devil's Leap, virados para ela, mas
não pareciam ver nada de anormal. Voltou a fitar a fogueira. O fogo reacendera, quente e
vibrante, mas apenas ela conseguia vê-lo.
"— Dean, temos de sair daqui. Há uma tempestade terrível se aproximando.
— Que benção divina ter a capacidade de prever o tempo! Você tem linha direta com
Deus?
— Não banque o engraçado. Basta olhar para o céu."
Shannon fechou os olhos e tornou a abri-los. Não havia fogo nem calor, apenas
cinzas no local onde existira uma fogueira. Apertou os braços ao longo da cintura e
afastou-se depressa, olhando para trás apenas, uma vez para ter certeza de que as chamas
encontravam-se apagadas.
Ash percebeu que algo estava acontecendo. Shannon agia de urna maneira muito
estranha.
— Acho que está começando — murmurou para Jeff.
Shannon sentou-se em uma pedra, convencendo-se de que fora tudo uma alucinação.
Então o vento começou a uivar em sua cabeça e ela tapou os ouvidos com as mãos para
protegê-los do frio intenso.
"— Vou deixar você, Dean. Estou falando sério.
— Nunca deixarei que você faça isso. Nunca!
— Não quero ouvir a sua opinião. Estou em casa agora." Shannon baixou as mãos e
apoiou-se nas pernas. A brisa era suave e morna, acariciando-lhe o rosto. O sol quente
banhava-lhe os cabelos negros. Levantou-se e caminhou alguns passos, mas parou de
repente.
"— Pensa que Happy vai ajudá-la? Ou Ash?
— Sim. — Ela estremeceu ao ouvir a risada cruel e sarcástica de Dean.
— Eles acham que você é uma prostituta, uma depravada. Já cuidei disso. Vão querer
distância de você. Eu a tirei de Ash uma vez e farei isso de novo.
O vento aumentou, cada vez mais frio e cortante. Nuvens escuras agrupavam-se
cobrindo todo o céu.
— Nunca amei você e isto ficou claro desde o início. Eu nunca te amei, Dean!
— Sempre houve uma terceira pessoa na cama conosco: Ash. Fui forçado a dividi-la e
não gosto disso. Ele estava com você dia após dia, noite após noite. Sempre em seus
pensamentos. Ah, como eu o odeio! E odeio você também!
Ela caminhou até seu cavalo, afagou-lhe o pescoço e colocou-lhe a sela.
— Dean, temos de ir agora ou não conseguiremos descer a montanha. A tempestade
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não vai demorar para cair.
— Não deixarei você voltar para Ash, Shannon. Ele nunca mais a terá.
— Você me enoja. Se quiser, fique. Eu estou indo embora." Shannon baixou os olhos.
Não havia sela alguma em suas mãos nem cavalo ao alcance de seu toque. Nada além do
amplo espaço vazio. Ela estremeceu. O que estaria acontecendo?
Ash e Jeff observavam-lhe os movimentos, fascinados pela re-constituição da cena.
Ash deu um passo à frente, sem saber se deveria ou não aproximar-se dela e interromper a
alucinação. Porém, Jeff o deteve.
— Deixe-a ir até o fim.
— Olhe só para ela, Jeff. É como se estivesse andando durante o sono, mas está
perfeitamente acordada.
Shannon correu para longe dos cavalos imaginários, sentindo-se tola e assustada. No
centro do acampamento, fez uma pausa, mudou de direção e deu alguns passos na direção
do precipício. Então, parou. Um floco de neve caiu em seu rosto deixando uma sensação
fria e molhada.
"— Ele nunca irá acariciar esse seu corpo apetitoso, nem beijar seus lábios, nem
gritar de êxtase a seu lado. Ash ficará apenas com as recordações, assim como eu. Vou
matar você antes de deixar que ele a toque outra vez.
— Você está louco.
— Estou mesmo, doçura?
— Não pode fazer isso.
— Ah, não? Todos dirão que foi um acidente."
O vento furioso batia no rosto dela e a neve picava-lhe a pele como a ponta de uma
agulha.
Shannon sacudiu a cabeça, atordoada. O sol a aquecia e ela inalou profundamente o
ar fresco da montanha. De repente, não conseguia mais respirar, como se algo lhe estivesse
obstruindo a garganta.
— Ash, Ash... me ajude.
"— Talvez uma queda do. precipício.
Dean ria cheio de sarcasmo cada vez que ela tentava escapar."
— Ash, ele está vindo na minha direção, me forçando a andar para trás. — Seu
pesadelo já não permanecia silencioso. Agora ela descrevia em voz alta, para os dois
espectadores, o que havia acontecido. — Ele está louco.
O vento uivava forte, abafando metade das palavras cheias de ódio que Dean lhe
dirigia.
— Não consigo ouvi-lo. — O medo quase a paralisou, mas o rosto furioso do marido,
os olhos brilhando de forma estranha, as pupilas dilatadas e negras como a morte a faziam
continuar caminhando lentamente para trás. — Ele vai mesmo me matar! — declarou,
aterrorizada.
Ash a viu tropeçar em uma pedra, recobrar o equilíbrio e, então, abaixar-se para
pegar algo no chão. Porém, não havia nada nas mãos dela. Olhou para Jeff e conteve a
respiração.
Shannon levantou o braço, brandindo sua arma invisível.
— Ele está rindo de mim, dizendo que não terei coragem de usar isto. Mas eu terei, se
ele chegar mais perto! — E virou-se devagar, ficando de frente para os dois homens que
permaneciam imóveis junto ao precipício. Os olhos dela seguiam o fantasma de Dean,
tentando calcular-lhe o próximo movimento para poder atacá-lo. O frio intenso minava-lhe
a energia, a neve espessa atrapalhava a visão. Piscou para tirar os flocos de neve dos cílios.
Dean tirou vantagem da pequena distração e entrou em ação.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 89
Shannon baixou os braços e as palavras seguintes soaram roucas e ofegantes.
— Não consigo respirar. — Uma vez mais, reparou nos olhos transtornados de Dean e
ouviu-lhe o murmúrio selvagem: "Vou matar você antes de deixar Ash possuí-la".
Lembrou-se da terrível pressão em torno do pescoço, a qual aumentava cada vez mais. Viu
pontos de luz dançarem diante dos olhos e percebeu que ia morrer.
— Eu sabia que se não fizesse alguma coisa, ele iria me estrangular ou me atirar no
precipício — Shannon contou, parecendo voltar à realidade. A cena ficara nítida em sua
mente. — Estávamos muito perto da borda. Então, sem qualquer motivo aparente, Dean
me soltou. Era como se houvesse mudado de ideia. Ficou olhando para trás de mim com
uma expressão que eu nunca vira antes. Permaneci imóvel, ainda estava muito
aterrorizada para me mover. Ash, eu não matei Dean. — Ela inspecionou as mãos vazias
mais uma vez, como para ter certeza do que acabara de afirmar. Então, voltou-se para os
dois homens que a observavam e surpreendeu-se ao ver lágrimas nos olhos de Ash. — Eu
não o matei! Peguei um galho quebrado no chão, e não o rifle dele.
Ash fez um movimento em direção a ela, mas Jeff o segurou.
— O que aconteceu depois, Shannon? Quem atirou em Dean?
O alívio que ela sentira ao descobrir que era inocente dissipou-se com a pergunta de
Jeff. Dirigiu-lhe um olhar de súplica, mas, pela expressão do delegado, soube que não
adiantaria tentar esconder.
— Acabe de contar o que houve, Shannon — ele insistiu.
— Bem, você sabe como o vento pode ser violento em uma tempestade. Às vezes,
quando passa por cavidades nas rochas, produz sons quase humanos. Eu pensei ter ouvido
um grito agudo, mas estava tão apavorada que não tive certeza. Devo ter caído de joelhos
enquanto Dean me apertava o pescoço, porque ele parecia estar sobre mim. Então, escutei
um barulho forte, como se o vento tivesse quebrado alguma árvore morta. Quando voltei a
levantar os olhos, Dean se moveu. Deu um passo para trás e parou, com uma expressão
surpresa no rosto. Tentou dizer algo e foi aí que eu vi a mancha vermelha no peito dele. De
repente, desequilibrou-se e caiu para trás. Acho que eu ainda não tinha compreendido o
que estava acontecendo até que toquei a camisa de Dean um segundo antes de ele cair e
minha mão ficou suja de sangue. Limpei-a na frente do casaco, desesperada para me livrar
daquele líquido pegajoso e, então, sem nem pensar no que fazia, tirei o casaco e o joguei
sobre a neve. Quando voltei a olhar para o local onde Dean se encontrava, não vi mais
ninguém. Arrastei-me até a borda do penhasco e... — Shannon estremeceu. Nunca se
esqueceria daquele terrível panorama, do precipício vazio e sem fundo e do vento forte a
empurrando para dentro do poço escuro.
Determinado, Ash livrou-se da mão de Jeff e tomou Shannon em seus braços.
— Quem foi, Shannon? Quem atirou em Dean?
— Quando... quando eu me afastei da borda e me virei, percebi que estava correndo
um perigo muito maior do que antes. Tudo em que pude pensar foi correr.
— Quem?
O silêncio que se seguiu foi quebrado pelo som de uma bota pisando num galho seco.
Então, um tiro ecoou pelo ar e os três olharam na direção do estampido.
Shannon sentiu o sangue gelar nas veias. Tentou soltar-se dos braços de Ash e correr,
mas ele a segurou com mais força. Esperou, apavorada, sabendo que o que estaria por
acontecer seria, de certa forma, sua culpa.
O som de galhos pisados recomeçou e Jeff colocou a mão no revólver que tinha preso
à cintura.
— Eu não pretendia matá-lo. — A voz soou de trás de um grupo de árvores. — Dean
me prometeu livrar-se dela, mas eu estava vendo e ouvindo tudo e percebi que ele só
tentava assustá-la, amedrontá-la de tal forma que ela tivesse medo de deixá-lo. Era um
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 90
covarde e mentiroso. Então, resolvi fazer o trabalho por ele. Fiz a mira nela, mas ela se
mexeu.
A voz já não soava como vinda do nada, pois a pessoa saiu do abrigo e mostrou-se à
luz do dia. O cano longo de um rifle refletiu o sol ao levantar-se em mãos firmes e apontar
cuidadosamente para Shannon.
— Agora posso terminar o que comecei.

CAPÍTULO XVI

— Paula! — Ash murmurou, mal podendo acreditar no que via. — Não! Não! —
gritou, puxando Shannon para trás de si.
Jeff colocou-se ao lado do amigo, usando também o próprio corpo como escudo.
— Abaixe a arma, Paula. Agora.
Ash repreendia-se em silêncio, devia ter percebido que havia algo errado: Mas
preocupado com os próprios sentimentos, não lhe sobrara tempo para ver o que acontecia
dentro de sua própria casa.
Segurou a mão de Shannon e apertou-a como para assegurar-se de que ela ainda
estava lá. Devia ter prestado mais atenção no comportamento irracional de Paula, na
maneira como se deixara decair. Ela agia de modo estranho desde a chegada de Shannon.
Mas, assassinato? Nunca poderia ter imaginado isso.
— Jeff, ela não está no juízo perfeito. Não faça qualquer movimento suspeito ou ela
pode puxar o gatilho. Deixe-me falar com ela. Shannon, fique atrás de mim e não abra a
boca. — Ash respirou fundo e dirigiu-se à madrasta com a mesma voz suave e persuasiva
que usava para amansar potros selvagens. Shannon fechou os olhos, torcendo para que
desse certo. — Paula, faça como Jeff disse e largue o rifle. Você na verdade, não quer ferir
ninguém. Venha, tudo vai acabar bem. Nós daremos um jeito. Paula, por que agiu assim? O
que Shannon lhe fez?
Jeff começou a afastar-se discretamente dos amigos.
— Ela tirou Dean da minha menina — Paula respondeu.
— De Jenny? — Ash sentia os músculos rijos de tensão. — Mas isso não faz sentido,
Paula.
Shannon estremeceu, lembrando-se da fotografia de Paula e Dean juntos e de como
se sentira mal com a expressão do rosto dele; um olhar lascivo de triunfo sexual. Agora
percebia que o olhar não era dirigido a Paula, mas à pessoa que segurava a câmera: Jenny.
Um acesso de náusea a fez apoiar a testa nas costas de Ash e engoliu em seco. A doce,
ingênua Jenny, sempre dominada pelas vontades da mãe. De alguma forma, Dean havia
tomado parte na obsessão de Paula em encontrar um marido rico para a filha. Era incrível
como, mesmo depois de morto, aquele canalha continuava sua vingança contra as pessoas
que Shannon amava.
Paula afastou-se das árvores, com o rifle ainda apontando para eles. Moveu-se ao
longo da trilha estreita junto à borda do penhasco e fez com que os outros se reunissem no
centro do acampamento. Jeff tentou escapar, mas ela o viu e gritou com uma voz fria como
gelo.
— Agora!
— O que vai fazer, Paula? — Ash perguntou. — Matar a nós três? Seja sensata.
— É tudo culpa de Shannon. Afaste-se dela, Ash. Jeff, não volte a se mover.
Ash olhou em volta procurando um abrigo, algum local onde pudesse se esconder e
manter Shannon em segurança enquanto tentava obter de Paula uma explicação racional
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 91
para a situação. Mas não havia para onde ir. Tinha de ganhar tempo até que ele ou Jeff
tivessem alguma ideia. Lançou uma olhada rápida para o amigo e compreendeu de
imediato a mensagem que ele lhe enviava. Ash fez um sinal afirmativo com a cabeça e ia
dizer alguma coisa quando Shannon murmurou em seu ouvido. Ela também estivera com a
mente em atividade à procura de uma saída.
— A trilha, Ash. Poderíamos chegar até lá. As rochas nos servirão de escudo mas
precisamos de algo para distraí-la.
— Eu já lhe disse para afastar-se dela, Ash — Paula repetiu. — Por favor, não me faça
machucar você também.
A voz suave e sensata da madrasta o assustou mais do que as explosões emocionais
anteriores. Era evidente que Paula pretendia matar Shannon mesmo que tivesse de
atravessá-lo com uma bala, primeiro.
— Paula, ouça, estou disposto a vender parte das terras e contratar o melhor
advogado de Montana para tirá-la desta encrenca. Por favor, deixe-me ajudá-la.
Por um instante, as feições de Paula pareceram suavizar-se em confusão, mas logo
em seguida tornaram-se mais duras e determinadas que antes. Só então Ash percebeu que
fora um engano falar em dinheiro. Isto servira apenas para alimentar o ódio de Paula
contra Shannon.
Antes que Ash pudesse pensar em algo para amenizar o que dissera antes, o barulho
de cavalos se aproximando às pressas pela trilha chamou a atenção de todos. Logo os
animais fizeram a última curva e surgiram à vista. Jenny desmontou antes que o cavalo se
endireitasse após a parada brusca.
Happy vinha logo atrás e saiu da montaria com igual rapidez.
— Mamãe, não!
Atrapalhada com o súbito aparecimento de mais gente, Paula moveu o rifle de um
lado para outro mas acabou voltando a fixar a mira em Ash e Shannon.
— Fique onde está, Jenny.
— Mamãe, você ficou louca?
Jeff moveu-se tão rápido na confusão que se criou com a chegada de Jenny que
ninguém o percebeu e ele pôde colocar-se na frente da moça.
— Isto já foi longe demais. — As palavras de Jeff foram interrompidas quando lascas
de pedra levantaram-se em suas botas. Paula havia atirado a poucos centímetros de seu pé.
Todos ficaram paralisados, exceto Jenny. Ela deu a volta em Jeff e caminhou em
direção à mãe.
— Você matou Dean, não é?
— Eu não tinha essa intenção, querida. Foi um acidente. Por favor, me perdoe.
— Perdoar você? Fico contente por ele estar morto. Está me ouvindo? Eu fiquei com
ódio dele depois que... — Ela parou e lançou um olhar angustiado para Jeff.
— Você não está falando sério, filhinha. Você o amava.
— Eu o desprezava, mamãe. Foi você quem planejou tudo. Você me empurrou para
ele e nunca considerou meus sentimentos ou o tipo de homem que Dean era. Acho que a
odeio tanto quanto odiava a ele.
— Queria saber o que está havendo — Ash murmurou.
— Acho que logo descobriremos — Shannon respondeu. — E pelo jeito de Jenny,
imagino que Jeff não vai gostar da história.
Ela olhou para o avô, que se aproximava deles sem dar atenção ao rifle que Paula lhe
apontava.
— É uma história bem feia — ele comentou. — Jenny me contou tudo que aconteceu
na Europa e na fazenda. Foi assim que me convenceu a trazê-la até aqui.
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— Europa? Fazenda? Do que ele está falando, Shannon? — Ash nem esperou pela
resposta. Fez com que Happy se colocasse na frente da neta e caminhou para junto de Jeff
e Jenny. — Alguém quer me contar o que está havendo?
— Vai contar a eles, mamãe? Ou prefere que eu conte? — Jenny perguntou,
chorando.
— Agora não importa mais, querida. Ele morreu e todas as promessas eram
mentiras.
— Claro, mamãe. Ele fez a nós todos de bobos. — Jenny enxugou as lágrimas com a
manga da blusa. — Mamãe e eu nos encontramos com Dean em Paris. Ele bancou o guia
turístico, nos pagou jantares e até comprou casacos de peles para nós duas. Ele conhecia
mamãe e sabia como ela sempre foi obcecada por dinheiro e pela ideia de me encontrar um
marido rico. Durante todo tempo ele ficava dando em cima de mim e ela o encorajava.
— Mas ele a amava, querida. Disse-me várias vezes que, se Shannon não fosse tão
gananciosa, ele se separaria para casar com você.
— E tomar conta de você, mamãe? Ele prometeu que lhe daria o estilo de vida que
você merecia, não é?
— Claro, afinal sou sua mãe. Você precisaria de mim para lhe ensinar como se
comportar na alta sociedade.
— Às vezes você me surpreende, mamãe. — Jenny mantinha a cabeça baixa,
envergonhada. — Deixou que Dean me seduzisse e me pressionou a ir para a cama com ele.
— Ela levantou os olhos e fitou Jeff. A expressão fria dele a fez ter vontade de morrer. No
entanto, já chegara longe demais para recuar. Jeff merecia saber o que ela havia feito. —
Dean prometeu a mamãe que daria um jeito de livrar-se de Shannon para casar comigo. Eu
fiquei confusa, mas ao mesmo tempo lisonjeada. Porém, não sabia como ele era e não tinha
intenção de dormir com ele. Sei que isso não é desculpa, Jeff, mas simplesmente
aconteceu.
Jeff apenas a fitava, com o rosto duro como pedra.
— Por favor, compreenda — ela prosseguiu. — Dean vivia falando que Shannon lhe
arruinara a vida e comentava o quanto as coisas haviam mudado aqui depois que ela
partira daquela maneira. Isso era verdade. Ash nunca mais foi o mesmo, tudo ficou
diferente. Jeff, não me olhe assim! Pela primeira vez na vida estou tentando enfrentar as
consequências de meus atos. Por favor, me ouça! Sei que pode parecer loucura, mas Dean
me fez sentir que, indo para cama com ele, eu estaria me vingando de Shannon pelo caos
que havia causado em nossas vidas. Sei que isso não é desculpa para o que eu fiz e nunca
me arrependi tanto de alguma coisa. — Ela cobriu o rosto e pôs-se a chorar. Os soluços
sacudiam seu corpo frágil.
— Como vê, querida, foi tudo culpa dela. — Paula levantou o rifle uma vez mais e
ajustou a mira em Shannon. — Saía da frente, Happy. Você a protegeu a vida toda. Não
pode mais fazer isso.
— Mas eu posso. — Ash colocou-se na linha de fogo. — Você não vai matar Shannon
nem ninguém. Entregue-me o rifle, Paula.
Shannon susteve a respiração, apavorada. Podia sentir a transformação em Ash:
passara de confusão e tristeza pelo que a madrasta havia feito para uma raiva intensa.
Ash deu mais um passo à frente. Jeff o seguiu. Paula apontou o rifle para eles e
moveu-se alguns centímetros para trás.
— Parem ou eu atiro!
— Agora você vai me contar o que aconteceu na fazenda. O que mais você fez, Paula?
— Vão para trás, estou avisando!
— Conte a ele, mamãe. Conte a Ash como você deu o remédio a Shannon e, depois,
não me avisou de propósito, de forma que eu lhe desse uma dose dobrada. Conte como
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você abriu o portão para o touro entrar no mesmo cercado em que Shannon se encontrava.
Depois conte a Ash como você saiu uma manhã destas com esse rifle e esperou, em uma
curva da estrada, que Shannon passasse de carro após sair da casa de Happy. Você não
sabia que Ash estava com ela e quase matou os dois.
Ash grunhiu como um animal raivoso e pulou sobre Paula.
Shannon gritou quando Happy jogou-a ao chão, cobrindo-a com seu corpo. Mesmo
sem ar pelo susto e pela queda, ela manteve os olhos fixos na cena que se desenrolava à sua
frente.
Quando Ash deu vazão a sua fúria e atacou Paula com a ajuda de Jeff, ela retrocedeu
até a beira do penhasco. Cambaleou enquanto tentava firmar o rifle sobre o ombro, mas o
ataque de surpresa e o apoio precário de seus pés a fizeram perder o equilíbrio. Mesmo
assim, fez mira com a arma sobre a cabeça dos homens e, num último esforço para manter
o controle da situação, puxou o gatilho. Com o tiro, o rifle deu um coice violento e jogou
Paula para trás, sobre a borda do penhasco.
Atordoada, Shannon sentiu que já havia encenado aquela peça, só que com
personagens diferentes. Seu grito misturou-se aos de Jenny e ela fechou os olhos. Eram
tragédias demais em um curto espaço de tempo, e todas por sua culpa.
Happy a ajudou a levantar-se, falando com ela, mas Shannon não conseguia ouvir o
que ele lhe dizia. Sentia-se entorpecida e cansada, com uma enorme sensação de culpa.
Nunca deveria ter voltado para casa.
— Shannon. — Ash aproximou-se e tomou-a nos braços. — Você está bem?
— Estou. E Jenny? Como ela está?
— Jeff está cuidando dela. Minha preocupação agora é você. Sabe muito bem que
nada do que aconteceu foi culpa sua. — Ele segurou o rosto de Shannon e enxugou as
lágrimas que desciam pelas faces pálidas. — Eu te conheço, querida. Não vou deixar que se
culpe por isto.
Os soluços de Jenny ecoavam pelo ar e Shannon soltou-se dos braços de Ash.
— Ela precisa de mim, Ash. Jeff está muito perturbado para poder ajudá-la.
Um pouco mais tranquilo por ver que ela estava bem, Ash a deixou ir e juntou-se a
Jeff e Happy na beira do penhasco. Sentia-se como se tivesse envelhecido vinte anos em
questão de minutos.
Shannon olhou para Jenny e sentiu um aperto no coração ao vê-la tão sozinha com
tanta dor. Sem hesitar, aproximou-se da moça e a abraçou. As pernas de Jenny
fraquejaram e ambas caíram de joelhos no chão duro. Shannon a apertou contra o peito e
começou a embalá-la, tentando lhe transmitir algum conforto.
— Estas últimas semanas tive tanto ódio de mamãe! Às vezes, quando estava sozinha
à noite, chegava a desejar que ela morresse. Mas não era a sério!
Shannon conhecia os riscos de desejar a morte de alguém. Quantas vezes nos últimos
dez anos não fizera o mesmo? Como Jenny, aprendera da pior maneira que desejos
destrutivos podiam se tornar realidade.
Jenny engoliu em seco e recomeçou a falar, entre soluços.
— Todos estes anos eu culpei você por tudo que acontecia de errado. Amo Ash como
se ele fosse meu irmão de verdade e o sofrimento dele me magoava. Happy também
mudou e não tinha mais tempo para mim. Coloquei isto nas suas costas também. Mas não
foi você, não é, Shannon? Fui eu. Eu não queria crescer e encarar o mundo e ficava sentida
com as mudanças ao meu redor. Mamãe me criou em um mundo de conto de fadas e era lá
que eu queria ficar. Sabe, eu pensava em você como uma segunda mãe e você me
abandonou, fez como meu pai, foi-se. Mamãe sempre me deixava por dias ou semanas com
amigos para ir a festas. Mesmo depois que ela se casou com o senador e eu acreditei que
por fim teria um lar de verdade, eles viviam viajando. Mas eu tinha Ash e você. Porém, bem
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no momento em que eu precisava mais de você para me ensinar como enfrentar mamãe,
você foi embora. Eu não consegui confrontá-la sozinha, ela sempre foi forte demais para
mim. Isto foi culpa minha e não sua, mas tinha de culpar alguém por minha própria
fraqueza. — Ela fungou e tentou forçar um sorriso. — Sinto muito por tudo que disse a seu
respeito. Você é a pessoa mais forte e maravilhosa que já conheci e eu a amo, Shannon. Por
favor, diga que me perdoa.
— Mas é claro que perdoo, Jenny. E não seja muito dura consigo mesma por causa de
Dean. Nós duas sabemos bem como ele era, não é verdade?
— Ah, sim, nós sabemos mesmo. Ele era cruel. Ouça, eu nunca soube com certeza o
que mamãe andava fazendo. Tinha apenas suspeitas. Mas ontem, quando contei os fatos a
Happy, nós ligamos as coisas e tudo ficou muito claro. Se eu estivesse com a cabeça no
lugar, teria adivinhado antes. Mas havia Jeff... — Ela olhou para o delegado e voltou a fitar
Shannon. — Quando nós voltamos da Europa, eu odiava mamãe e a mim mesma por ter
deixado que ela me convencesse a fazer aquilo. Queria contar tudo logo a Jeff, mas mamãe
disse que ele nunca me perdoaria. E eu acreditei nela e comecei a tratá-lo mal. Mas ela
tinha razão. Jeff não suporta nem olhar para mim. Ele jamais conseguirá esquecer.
— Dê-lhe algum tempo. Jeff é uma pessoa compreensiva e conhecia bem demais a
sua mãe. Sei que ainda a ama e, acredite em mim, sentimentos não são coisas superficiais
para Jeff. Ele vai voltar.
Jenny apoiou a cabeça no ombro de Shannon e começou a chorar outra vez.
— Shannon!
Ao ouvir seu nome, Shannon levantou os olhos e viu Ash de pé à sua frente, com o
rosto pálido sombreado pela aba do chapéu.
— O que foi?
— A queda de Paula foi interrompida por alguns arbustos e uma espécie de
plataforma. Está presa aos galhos de forma meio precária, mas acreditamos que esteja
viva. Eu e Jeff vamos descer para pegá-la. Happy vai precisar da ajuda de vocês. — Ele
segurou Jenny pelos ombros e fez com que a moça o encarasse. — Você acha que tem
condições de ajudar, maninha?
— Claro. Ela... ela está consciente, Ash?
— Não, e isto é bom para nós. Assim ela não se moverá.
Todos trabalharam depressa. Happy e Shannon tiraram o equipamento do cavalo de
carga. Jenny pegou uma machadinha e cortou alguns galhos fortes para servirem de
suporte para uma maca improvisada.
Ash e Jeff amarraram cordas nas selas dos cavalos e levaram os animais para perto
do penhasco. Então, começaram a discutir quem desceria para salvar Paula.
— Ela é minha madrasta, portanto a responsabilidade é minha.
— Sim, mas se algo acontecer lá em baixo... se ela recobrar a consciência, entrar em
pânico e cair, você nunca irá se perdoar.
— Eu irei assim mesmo.
— Teimoso como sempre, hein? Está bem. Seja um herói., mas tome cuidado. — Jeff
deu-lhe um tapinha no ombro, sorrindo. — Eu cuidarei da corda quando você a amarrar.
Shannon ouviu a conversa e olhou para Happy com um sorriso tenso. Sabia que seria
inútil dizer a Ash para não ir; quando ele punha uma coisa na cabeça, ninguém o fazia
mudar de ideia.
Jenny aproximou-se correndo com dois longos galhos de árvore. Deixou-os no centro
do acampamento e observou os últimos preparativos de Jeff e Ash. Sentia uma enorme
vontade de ir para perto de Jeff, mas conteve-se. Quando ele a chamou, Jenny deu um pulo
de susto e apressou-se a atendê-lo.
— Quero que você e Shannon segurem as rédeas na frente dos cavalos. Quando
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 95
Happy avisar, vocês começarão a puxar os animais lentamente para frente. Happy, você
cuida da corda de Ash, tomando cuidado para que não se enrosque em nada. Eu ficarei
com a corda de Paula.
Com o coração aos pulos, Shannon viu Ash prender uma corda em torno da cintura,
sobre o casaco grosso para que a fricção não lhe machucasse a pele. Depois, ele enrolou a
segunda corda no braço, de uma forma que lhe permitisse removê-la rapidamente para
amarrá-la em Paula.
Ash foi até a beira do abismo, parou e olhou para baixo. O penhasco íngreme e
rochoso devia ter uns quatro mil metros de altura. Ele desviou o olhar daquela visão quase
hipnótica e deparou-se com a expressão tensa de Shannon. Fitou-a por um longo momento
e, então, firmou o chapéu na cabeça e começou descer.
O couro das rédeas atritou-se contra os dedos de Shannon quando Ash desapareceu
de vista. O cavalo resfolegou e puxou a cabeça para trás, reclamando da pressão; Shannon
afrouxou a rédea.
— Vai dar tudo certo — Jenny murmurou a seu lado. — Ash é corajoso, mas não é
estouvado. Sempre teve a cabeça no lugar.
— E, tem razão. — Shannon sorriu, satisfeita por ver que Jenny já não se encontrava
tão tensa como antes.
— Acha que ele vai me perdoar pelo que aconteceu com Dean?
— Claro que sim, Jenny. Jeff conhecia Dean muito bem.
— Você o odiava muito?
— Sim.
— Sente pela morte dele? Eu não; só lamento que tenha sido mamãe que o matou.
— Eu não sei. Talvez com o tempo eu consiga perdoá-lo, mas no momento não quero
nem pensar nele.
Ficaram em silêncio e os minutos se escoaram intermináveis antes que Happy lhes
desse o sinal.
— Aprontem-se, você duas. Ele a pegou. Agora!
No mesmo instante, Shannon e Jenny começaram a puxar os dois animais para
frente. Quando as cordas ficaram tensas e os cavalos tentaram parar, Shannon aumentou a
pressão nas rédeas, ao mesmo tempo em que dirigia ao animal palavras de incentivo.
— Continuem puxando! — Happy gritou. — Firmes agora. Parem!
Ela segurou o animal até que lhes avisassem que estava tudo bem. Então, correu até
onde Ash se encontrava, ofegante e sujo, desamarrando a corda da cintura.
Ash ouviu Shannon aproximar-se, mas não podia tirar os olhos de Paula. Ao sentir
que as duas moças chegavam muito perto, levantou o braço para detê-las.
— Não olhem ainda.

CAPÍTULO XVII

— Ela está viva? — A voz de Jenny soou quase inaudível.


— Está respirando. Não sei qual a extensão das lesões internas, mas está bastante
ferida.
Paula gemeu alguma coisa e Jenny livrou-se do braço de Ash.
— Mamãe. — Ela se abaixou e quis pegar a mão de Paula, mas Jeff a deteve.
— Não a toque. O braço está quebrado.
Shannon virou-se de costas para eles e apertou o corpo com os braços para conter
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um súbito estremecimento. Uma rápida olhada em Paula fora suficiente para revirar-lhe o
estômago. Como alguém podia sobreviver a tantos ferimentos? Queria afastar dos ouvidos
os tênues gemidos de dor, mas não podia. Não desejava para ninguém o sofrimento pelo
qual a pobre criatura devia estar passando. Mesmo assim, sabia que demoraria muito até
conseguir perdoá-la e tinha dúvidas se Ash poderia superar depressa tudo aquilo. Tantas
coisas haviam acontecido em um período de tempo tão pequeno! Mais uma vez ela abalara
a vida dele de forma terrível.
— Mamãe, não fale — Jenny pediu.
— Preciso... amo você. Perdão.
— Ah, mamãe. Por favor, aguente firme.
Jeff fez com que Jenny se levantasse para que Happy pudesse cobrir Paula com um
cobertor.
— Onde colocou aqueles galhos de árvore? — Ele indagou. Porém, Jenny pareceu não
ouvi-lo; continuava fitando a mãe. — Controle-se um pouco. Ainda não terminamos — Jeff
insistiu, sacudindo-a de leve.
— Estão no centro do acampamento. — Ela levantou a cabeça e tocou o braço do
delegado. — Jeff, eu te amo.
— É mesmo? Fica difícil acreditar.
— Não pode me perdoar?
— Este não é o momento para discutirmos nossos problemas. Temos de providenciar
cuidados médicos urgentes para sua mãe. — Ele se afastou, sabendo que a havia magoado e
sentindo um terrível vazio no peito.
Ash e Jeff prepararam a maca amarrando cordas entre os dois galhos. Enquanto isso,
Shannon e Jenny enchiam um saco de dormir com mais outros três para transformá-lo em
um colchão. Prenderam a maca sobre o cavalo de carga e levantaram Paula com cuidado,
procurando movê-la o mínimo possível.
— Pronto. — Ash limpou o suor da testa após amarrar a madrasta à montaria. — Vai
ser uma viagem terrível para ela e talvez nem consiga chegar, mas foi o melhor que
pudemos fazer.
— Então vamos indo — Jeff recomendou. — Se chegarmos a Willow Falls antes do
anoitecer, poderei usar o rádio para pedir um helicóptero. Antes disso não estaremos
dentro da faixa de onda.
Shannon aproximou-se de Jenny, que continuava ao lado da mãe.
— Vá com Ash e Jeff. Eu e Happy acabaremos de arrumar as coisas e iremos em
seguida.
— Ela pode esperar e descer com vocês — Jeff protestou.
— Não. É minha mãe e eu vou com ela. — Sem esperar por novas argumentações,
Jenny afastou-se e montou em seu cavalo.
— Jeff. — Shannon tocou-lhe o braço tenso e fez com que o delegado a encarasse. —
Não seja muito duro com ela. Não queira terminar como eu e Ash, com dez anos perdidos e
tantas mágoas entre nós. Eu vi Dean em ação quando cismava com algo que queria,
principalmente uma mulher. Ele sabia ser charmoso e persuasivo. Juntando-se a isso a
oportunidade de vingar-se de mim e de Ash, certamente ele não deu nenhuma chance a
Jenny.
Jeff fitou-a por um momento e fez um gesto afirmativo com a cabeça, sem dizer
nada. Depois virou-se e foi verificar a sela de Jenny.
— Por que não vem conosco? — Ash perguntou. Sua voz soou tão próxima que
Shannon deu um pulo.
— Porque você precisa concentrar todos os seus esforços em Paula. Se eu for junto,
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você ficará preocupado comigo. Olhe, meu tornozelo está ótimo. — Ela levantou o pé e
girou-o, descrevendo um círculo. — Apenas dói um pouco. Além disso, eu e Happy não
estaremos muito atrás. É melhor assim, Ash. — E tapou-lhe a boca quando ele ameaçou
protestar. — Ouça, o hospital vai estar cheio de repórteres. Se nós não estivermos juntos,
eles não terão como alimentar um escândalo. Isso acalmará um pouco a situação.
Ela estava com a razão, mas mesmo assim Ash não ficou satisfeito. Podia sentir que
havia algo errado. Deu-lhe um beijo rápido e foi para seu cavalo.
Shannon e Happy ficaram parados lado a lado até ver o pequeno grupo sumir de
vista. Ela sabia que Ash havia estranhado sua atitude, mas não pudera evitar.
— Você está se culpando, não é? — Happy indagou.
— Sim, vovô. Se eu não tivesse voltado...
— Minha filha...
— Não, vovô, eu sei o que estou dizendo. Quando Ash tiver tempo para pensar
melhor, como ele vai se sentir? Dez anos atrás eu lhe arruinei a vida e, agora, aconteceu
outra vez. Só que os resultados foram bem piores desta vez. Dean está morto. Paula está
muito ferida e talvez não sobreviva; se conseguir viver, será acusada pelo assassinato de
Dean. Por minha causa, Jenny e Jeff estão separados e sofrendo. E você, vovô? Veja quanta
dor eu lhe causei, quanto constrangimento pelos boatos a meu respeito. Você sabe que
muita gente vai continuar acreditando nas histórias, mesmo não sendo verdadeiras. Já
pensou que, se houver um julgamento, tudo terá de vir à tona? Acho que eu dou azar —
Shannon riu, trêmula. — O que nos reservarão os próximos dez anos?
— Você não vai fugir desta vez, Shannon.
— Não, eu não vou. Mas também não sei o que vai acontecer.

Shannon e Happy cavalgaram até o anoitecer e, então, acamparam para dormir.


Retomaram a viagem na manhã seguinte e chegaram ao rancho Reed por volta do meio-
dia. Ela percebera que o avô havia seguido pelo atalho mais difícil, de maneira a despistar
qualquer repórter que pudesse estar esperando na estrada principal.
Quando Shannon entrou na cocheira, sentia-se suada e exausta de cavalgar sob o sol.
Por isso, ficou furiosa ao ver a única repórter de Bartlet surgir da sombra do prédio com a
câmera diante do rosto, batendo diversas fotos.
Happy desmontou depressa e, antes que Sally Roland pudesse esboçar qualquer
reação, tirou-lhe a câmera da mão e a atirou ao chão fazendo-a partir ao meio.
— Sr. Reed, essa câmera pertence ao jornal!
— Eu comprarei uma nova para eles. Agora saia daqui! Esta é uma propriedade
particular e você a está invadindo, menina.
— Ora, obrigada. Há muitos anos ninguém me chama de menina. Ei, Shannon, a
cidade está fervilhando de repórteres. Há até uma equipe de uma rede nacional de
televisão. Pensei que, como eu sou de Bartlet, você concordaria em me dar uma entrevista
exclusiva.
— Pois pensou errado.
— Eu serei bem mais simpática do que qualquer um desses repórteres de fora.
— Não. — Shannon desmontou e passou as rédeas do cavalo para um empregado.
— Você sabia que Paula encontra-se em estado crítico? O que aconteceu em Devil's
Leap? É verdade que ela matou seu marido? Por quê?
Shannon caminhou para fora da cocheira, mas a repórter a seguiu, bombardeando-a
com perguntas. Sally teria alcançado Shannon se não tivesse reparado que um dos
empregados de Happy aproximava-se para segurá-la. Ela deu um passo rápido para o lado.
— Ah, não! A última vez que deixei um de seus colegas pôr a mão em mim fiquei
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 98
trancada em um quarto abafado por duas horas.
— Então caia fora, menina — Happy voltou a dizer, fazendo força para não rir do que
acontecera à repórter na fazenda de Ash. — Sou bem capaz de fazer o mesmo, só que a
deixarei trancada até que Jeff possa vir prendê-la e isso deverá demorar bem mais do que
duas horas. Ele anda muito ocupado.
Shannon não ouviu o que mais Happy tinha a dizer, mas pôde imaginar que a
repórter levara um bom sermão. Entrou depressa na sombra confortável da cozinha
deserta, apoiou-se à pia e fechou os olhos. O caso começara a se tornar público e, por certo,
seria matéria explorada por manchetes de jornais durante semanas. Ash seria submetido a
uma humilhação insuportável.
Saiu da cozinha, subiu as escadas e só parou quando viu suas malas empilhadas no
corredor. Apesar de todos os problemas, Ash lembrara-se dela e mandara trazer a
bagagem. Pegou uma das malas e a transportou para o quarto. Um buquê de gardênias
encontrava-se sobre a penteadeira, perfumando o ar com sua doce fragrância. Shannon
inalou profundamente, largou a mala no chão e deixou que as lágrimas corressem
livremente pelo rosto.

A noite caiu depressa, envolvendo a casa em uma escuridão rompida apenas pelas
luzes das lâmpadas.
Shannon acabava de lavar a louça do jantar quando ouviu um carro estacionando
diante da porta dos fundos.
— Será outro repórter?
— Não, parece o caminhão de Ash — Happy respondeu, levantando-se para abrir a
porta. — Entre, Ash. Tome uma xícara de café. Deve estar precisando disso.
Antes que Happy acabasse de falar, Shannon já servira o café quente em uma xícara
recém-lavada. Virou-se para Ash e sentiu um aperto no coração. Ele parecia muito cansado
e era evidente que ainda nem havia tido tempo de tomar um banho e trocar de roupa.
— Como vai indo Paula?
Ash tomou o café e estendeu a xícara para que Shannon a enchesse de novo.
— O doutor acha que ela não passará desta noite. Tentei telefonar para cá várias
vezes, mas a linha estava sempre ocupada.
— Tivemos de tirar o fone do gancho — Happy explicou. — Os repórteres não nos
deixam em paz.
— Eu sei. Eles estão no hospital também. — E ficou em silêncio, fitando o café
fumegante. — Ouçam, eu vou chamar a imprensa para uma entrevista coletiva amanhã à
tarde e tentar esclarecer toda essa história.
— Oh, não, Ash! — Shannon exclamou, pálida!
— É preciso, Shannon, ou os repórteres não nos darão sossego. Tinha a intenção de
convocá-los esta noite mesmo, mas... Bem, eu quis esperar para ver se Paula resistia. Mas
não há muita esperança. O médico me aconselhou a ir em frente e tomar todas as
providências que forem necessárias.
— Sinto muito pelo que você está passando, Ash — Happy solidarizou-se.
Shannon também sentia. Afinal, todos os problemas haviam sido provocados por sua
volta para Bartlet. Desde que Ash entrara, ela sentira que havia algo errado e agora
percebeu o que era: ele não a encarava e Shannon não podia culpá-lo por isso.
— Como Jenny está enfrentando a situação?
— Melhor do que esperávamos. Jeff está com ela e os dois parecem estar tentando se
acertar.
— Ótimo.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 99
Ficaram todos em silêncio e Happy fitou Ash e a neta com um olhar preocupado.
— A que horas você quer que eu compareça à entrevista com a imprensa? — Shannon
indagou.
— Não quero que você vá — Ash respondeu, encarando-a pela primeira vez naquela
noite.
— Mas, Ash...
— Eu vou chamar a imprensa justamente para mantê-la longe de você.
— Ash, por favor.
— Não. Eu gostaria até que você saísse da cidade. As coisas já estão bastante difíceis.
Hamilton ficou tão furioso por não conseguir nos pegar que prometeu cair de unhas e
dentes em cima de Paula.
— Mas ela...
— Acha que ele se importa? Estava esperando por nós quando o helicóptero pousou
no hospital. — Ele colocou a xícara sobre a mesa e passou as duas mãos pelos cabelos
espessos. — A viagem até Willow Falls foi um inferno. Paula ficou inconsciente várias vezes
durante o trajeto. Quando chegamos ao hospital ela pareceu reagir um pouco e fez sua
confissão para Jeff e Hamilton. O canalha do promotor fez Jeff acusá-la oficialmente pelo
assassinato de Dean para que ele pudesse dar andamento ao processo. Agora está
rondando o hospital como um urubu, importunando o médico e as enfermeiras para saber
se ela vai sobreviver ou não. — Ash inclinou-se para frente, apoiou os cotovelos sobre os
joelhos e esfregou o rosto. — Com a confissão de Paula, acho que conseguiremos manter o
passado e sua vida com Dean fora da discussão. Puxa, estou exausto!
Não havia nada que Shannon pudesse fazer. Tinha vontade de abraçá-lo e transmitir-
lhe algum conforto, mas percebia que ele não a queria naquele momento.
— Fiz uma reserva em um vôo para levar Dean de volta a Paris. O avião parte
amanhã no fim da tarde. Hamilton não vai me deter, não é?
— Se ele souber, claro que vai. Mas ele não deve saber de nada ou já estaria se
vangloriando por ter retido você. O dr. Henry liberou o corpo de Dean?
— Sim.
— A que horas parte seu avião?
— Às seis da tarde. — O rosto de Shannon estava tão tenso que lhe era impossível
sorrir. Nunca esperara que Ash fosse tratá-la de maneira tão fria; nem ao menos lhe
perguntara quando pretendia voltar. Sentia uma enorme angústia, como se o coração
estivesse se partindo aos poucos. Havia tantas coisas que queria dizer, mas as palavras não
saíam. Sabia que não iria suportar se ele a rejeitasse. Então permaneceu em silêncio,
decidida a não lhe dar a chance de magoá-la.
— Vou retardar a entrevista até às três da tarde — Ash declarou. — Isso lhe dará
algum tempo. Agora tenho de voltar ao hospital para fazer companhia a Jenny. Telefonarei
se houver alguma novidade.
Ele foi embora tão depressa quanto chegara. Shannon levantou-se e tomou o rumo
da escada, mas Happy a segurou pelo braço.
— Você não tinha me dito que iria viajar amanhã.
— Eu ia contar agora à noite. Lilith foi boa comigo, vovô, e eu me sinto no dever de
levar-lhe Dean de volta. Ela não iria querer que ele fosse enterrado sem minha presença.
— Ash está perturbado, Shannon. Nem sabe direito o que está dizendo ou fazendo. O
dia foi muito difícil para ele.
— Eu sei, vovô, mas isso não torna as coisas mais fáceis para mim.
— Eu compreendo, querida. Mas lembre-se de que ele tem responsabilidades e está
tentando proteger você. Depois ele virá procurá-la, você vai ver.
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 100
— Será? Ele nem ao menos perguntou se eu ia voltar.
Ela soltou o braço e subiu as escadas, deixando o avô sozinho e pensativo.

Shannon passou a noite em claro, revirando-se na cama. Foi um alívio quando


percebeu que começava a amanhecer.
Levantou-se com a primeira claridade que rompeu o céu escuro. Decidida a manter-
se ocupada, limpou as cocheiras e alimentou os cavalos que seu avô hospedava para
tratamento e treinamento. Carregou baldes de água e de ração, espalhou feno fresco pelas
cocheiras limpas. Trabalhou até sentir dor nas costas e não ter mais forças nos braços, mas
as tarefas não haviam sido suficientes. Ainda lhe sobrava tempo para esperar e pensar.
Sentada diante da janela de seu quarto, com a brisa fresca acariciando-lhe o rosto,
Shannon suspirou profundamente. Havia feito de tudo para não pensar em Ash, mas o
trabalho físico servira apenas para cansá-la. Ele mantivera a promessa e telefonara por
volta da meia-noite para contar a Happy que Paula não havia resistido. No entanto,
aconselhara Shannon a não mudar seus planos; deveria deixar a cidade o mais rápido e
silenciosamente possível.
Ela sentia-se como uma fugitiva. Ah, como odiava a ideia de ter de voltar a Paris
sozinha e enfrentar todas as lembranças que o lugar lhe traria! Se ao menos Ash pudesse ir
junto! Um esquilinho surgiu em um ramo alto da árvore em frente à janela e Shannon
sorriu.
A sua árvore! Um símbolo de sua infância e adolescência, com seus galhos formando
um acesso tentador da janela ao chão. De repente, centenas de recordações lhe voltaram à
mente. Ash subindo pela árvore, sentado em um dos ramos próximos à janela, rindo,
solidário a ela mesmo nos momentos mais difíceis. Haviam sido felizes naquela época. Os
sonhos românticos da juventude tinham voltado com enorme intensidade. Sabia que,
quando retornasse da viagem, ela e Ash acabariam ficando juntos. Porém, talvez por ter
passado tempo demais esperando por ele, desejara tudo de uma vez, tudo de imediato.
Precisava reaprender a ter paciência.
Uma batida forte à porta a despertou do devaneio.
— Já vou descer.
Levantou-se trêmula, alisou o vestido amarelo de malha sobre os quadris estreitos e
calçou os sapatos. Pelo menos até o aeroporto teria a companhia do avô. Deu uma olhada
rápida em volta e jurou a si própria que retornaria.
Shannon pegou as malas e desceu as escadas devagar, os olhos fixos nos degraus.
Quando colocou os pés na sala, o som de alguém tossindo a fez levantar a cabeça e ela
abriu a boca, surpresa. Happy estava em pé à sua frente, vestindo seu melhor terno. Tinha
uma maleta de couro na mão e um sorriso maroto no rosto.
— O que está aprontando, vovô?
— Eu a deixei sair daqui uma vez e passei dez anos sem tornar a vê-la. Desta vez irei
junto para ter certeza de que você voltará para casa. Mesmo que eu precise arrastá-la pelos
cabelos.
— Ah, vovô. — Shannon largou as malas no chão e correu para os braços de Happy.
— Eu estava com tanto medo de fazer esta viagem sozinha!
— Eu imaginei isso.
— Obrigada. Vou mostrar-lhe Paris enquanto estivermos por lá.
— Contanto que você não me apresente alguma daquelas francesas charmosas... É
capaz de eu gostar e decidir mandá-la de volta sozinha.
— Você não tem jeito mesmo! — ela exclamou, rindo.
Depois pegaram as malas e caminharam lado a lado até a porta.
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— Não vá ter ideias de ficar lá, minha querida.
— Não, vovô.
— Você tem de acertar sua vida por aqui.
— Eu sei.
— Quer dizer que está resolvida?
— Eu sempre estive. Apenas me desviei um pouco do caminho. Só que desta vez,
vovô, Ash terá de vir me procurar. Ainda não sei como conseguirei isso, mas juro que darei
um jeito.
— Nunca duvidei de você, menina. Afinal de contas, você é minha neta. Shannon
sorriu. Tivera coragem suficiente para chegar até ali; não iria desistir agora.

CAPÍTULO XVIII

— Ela voltou!
Uma rajada de ar quente penetrou no fresco interior do Cattleman's Café no
momento em que Chester Fawnsworth abriu a porta. Um rádio antigo tocava músicas
country enquanto os frequentadores, espalhados por todas as mesas, terminavam de
almoçar.
— Shannon está de volta!
Chester acomodou-se em um dos banquinhos giratórios e bateu a mão na superfície
dura do balcão. Antes que tivesse tempo de abrir a boca para fazer seu pedido usual, Stella
Hopkins colocou à sua frente uma xícara de café fumegante.
— Ouviu o que eu disse, Stella? Shannon voltou. — E elevando um pouco a voz, fitou
a proprietária com um olhar satisfeito. — Ela e o avô chegaram ontem à noite. O velho
Henderson estava na porta da farmácia e os viu passar de carro em direção à cidade. Ele
contou a Sally quando a encontrou no armazém.
— E foi ela quem lhe contou?
— Não, Goober estava parado na rua fazendo hora e ouviu a conversa. Ele me contou.
— Chester, você é impossível! Mas Happy Reed já não lhe disse que não queria mais
ouvir você falando da neta dele?
— Oh, não, Stella. Ele me disse que, se eu falasse com algum repórter, iria me
arrancar a língua. Ora, eu fiquei bem calado, você sabe disso. Mas o que será que vai
acontecer agora, hein? Ash Bartlet está trancado na fazenda desde que enterrou aquela
madrasta assassina.
— Chester! — Stella o repreendeu, mas o velho havia ficado em silêncio por muito
tempo e, agora que pegara o embalo outra vez, ninguém mais conseguiria segurá-lo.
— Dá para acreditar nisso? Um assassinato aqui nesta cidade? Ouvi dizer que Clyde,
do Rocking W, foi embora de Bartlet. Já foi tarde! Ele mentiu para mim o tempo todo,
Stella. Ficou inventando todas aquelas histórias sobre a menina para que aquele canalha
do marido dela se vingasse de Ash. — Ele tomou um gole do café e levantou os olhos para
ver como suas palavras estavam sendo recebidas. Porém, Stella não olhava para ele; sua
atenção fixava-se no centro do bar.
Chester percebeu a súbita tensão no ambiente. Pousou a xícara no balcão e virou o
banco devagar. Seus olhos se arregalaram.
A princípio, não soube quem era a jovem, mas seu velho rosto brilhou de admiração.
Era uma mulher realmente bonita; alta, vestindo jeans justos e uma camisa branca de
malha que realçava curvas perfeitas. Os cabelos negros e brilhantes caíam em ondas sobre
os ombros.
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Mas quando os olhos da moça encontraram os seus, ele estremeceu. Conhecia
aqueles olhos castanhos e travessos. O súbito reconhecimento quase o fez engasgar.
— Ora, mas é... é Shannon. Há muito tempo não vejo uma jovem tão linda.
— Mudou de tom depressa, hein? — Stella o provocou.
Shannon caminhou até o balcão e entregou algumas notas de dinheiro a Stella.
Então, virou-se para Chester, inclinou-se e beijou-o no rosto.
— Oi, Chester. É um prazer tornar a vê-lo. — Sem esperar por uma resposta, deu
meia-volta e retirou-se do café.
Chester a observou, boquiaberto.
— Você viu isso, Stella? Ela me beijou.
— Teve sorte por ela não ter pego essa xícara e virado o café quente sobre sua cabeça
oca, seu velho fofoqueiro.
— Ah, querida, eu nunca lhe contei como era irresistível para as mulheres? Houve
uma época em que metade das jovens da cidade corriam atrás de mim...
Shannon parou na calçada, rindo da expressão de Chester. O velho esperava ser
repreendido por todos os boatos que espalhara sobre ela e ficara sem fala, talvez, pela
primeira vez na vida, quando recebera o beijo. Ela colocou as mãos nos bolsos da calça e
fitou a rua nas duas direções, à procura do caminhão do avô.
Ao não ver o veículo, franziu a testa com ar intrigado e pensativo. Happy tentara
convencê-la a não acompanhá-lo à cidade, aconselhando-a a ficar em casa e descansar.
Mas Shannon insistira e ele fora obrigado a concordar, mas a deixara no café dizendo que
tinha compromissos importantes a cumprir e que voltaria dentro de uma hora para
apanhá-la. Isso ocorrera há quase duas horas.
Uma buzina soou e Shannon levantou os olhos. Sorrindo, correu até o caminhão,
abriu a porta e entrou.
— Você está atrasado.
— Eu sei.
— Já almocei.
— Ótimo. Eu preparo alguma coisa para mim quando chegarmos em casa.
— Por onde você andou?
— Por aí.
— Ah, vovô! Comprou minhas sementes?
— Sim.
— Todas elas?
— Shannon, estou velho mas não caduco. Tem certeza de que deseja plantar todas
estas flores hoje?
— Claro. O que houve, vovô? Você anda tão estranho desde cedo.
— É imaginação sua, querida. Eu apenas tinha coisas a fazer.
— Estou vendo que não vai mesmo confiar em mim.
— Gostei de Lilith.
— Ela também gostou de você — Shannon respondeu, percebendo que não adiantaria
insistir com o avô.
— Está tudo acertado quanto a Rocking W? A fazenda agora é sua?
— É, ficou tudo certo. — Ela fitou a estrada, sentindo-se livre e quase feliz. Porém, a
situação com Ash ainda a perturbava. Ainda não tivera coragem de procurá-lo e também
não imaginara nenhum meio de fazê-lo vir até ela.
— Já pensou em alguma tática com relação a Ash? — Happy perguntou, como se
estivesse lendo os pensamentos da neta.
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— Ainda não, mas não se preocupe com isso.
— Não estou preocupado. — Ele riu e começou a cantarolar. Shannon o fitou,
desconfiada, depois voltou a apreciar a paisagem. — Vai ficar exausta e dolorida se cavar os
canteiros e plantar todas estas sementes hoje à tarde.
— Ótimo, talvez isso me dê uma boa noite de sono.
Happy sorriu e continuou a cantarolar sua melodia desafinada.

No meio da noite, um som familiar invadiu o sono de Shannon. Era um ruído bem
conhecido de tempos passados, quase esquecidos. Tentou ignorá-lo e ajeitou-se na cama
para tornar a dormir.
O som retornou, como um velho amigo, penetrando seus sonhos.
Terrores infantis voltaram a assombrá-la e seu coração disparou. Com os músculos
rígidos, abriu ligeiramente os olhos e as sombras do quarto adquiriram a forma de
monstros ameaçadores. Mas logo a visão adaptou-se ao escuro e afastou as criaturas
imaginárias. Shannon repreendeu-se por ser tão tola e apoiou a cabeça no travesseiro, mas
ficou paralisada uma vez mais quando uma forma cinzenta entrou pela janela do quarto.
Horrorizada, viu a sombra aproximar-se e parar ao lado da cama.
Ela ia gritar, mas uma pesada mão cobriu-lhe a boca. Visões de Dean ou Paula
voltando do mundo dos mortos passaram-lhe pela mente e, então, uma respiração morna
soprou em seu rosto.
Não era um fantasma! Fantasmas não tinham aquele cheiro de cigarro. Ela começou
a lutar, mordendo a mão que lhe tapava a boca e chutando com toda a força, porém seus
esforços foram abafados pelo peso de um corpo deitando-se sobre o seu.
— Gata selvagem! Pare de me morder!
— Ash! — Ela murmurou o nome, sem saber se ria ou ficava zangada. No fim, as
risadas acabaram vencendo.
— Pare, isto é sério. Estou tentando ser seu príncipe encantado.
A lâmpada de cabeceira se acendeu e Shannon fechou os olhos diante da claridade
repentina. Quando tornou a abri-los, viu-se frente a frente com Ash. Moveu a cabeça
tentando fazê-lo tirar a mão de sua boca, mas ele apenas apertou mais.
Então ela percebeu o que Ash pretendia fazer e arregalou os olhos. Dividida entre
fascinação, espanto e excitamento, observou-o tirar do bolso um emaranhado de gravatas
masculinas. O peso dele a pressionava contra o colchão e Shannon começou a rir.
— Fique quieta. — Ash soltou o nó das gravatas e segurou uma antes que as outras
escorregassem para o chão. — Droga, isto devia ser mais fácil. Quase me enrosquei em um
ramo enquanto subia na árvore, depois perdi o equilíbrio ao me deparar com um esquilo
furioso por eu ter invadido sua casa. Arranhei o braço em um galho quebrado e quase caí
para trás quando tentei abrir a janela e não consegui.
Ele destapou a boca de Shannon, mas, antes que ela pudesse falar, amordaçou-a com
a gravata de seda. Ela resmungou sob o tecido. O que Ash estaria planejando?
— Não, eu não estou louco. Isto é para nosso próprio bem.
Shannon tentou falar, mas seus esforços apenas o fizeram rir.
— Não consigo entender nada. Fique quietinha e me dê as mãos.
Ela fez um sinal negativo com a cabeça.
— Quer tornar as coisas mais difíceis, não é? Está bem. — Ash procurou as mãos dela
sob os lençóis e depois as amarrou com outra gravata. Com um suspiro de alívio, levantou-
se e puxou os lençóis, parando ao ver o corpo nu de Shannon. — Ora, não foi assim que eu
planejei. Por que não usa roupas como qualquer mulher normal prestes a ser raptada? —
Ele olhou em volta e, então, começou a abrir gavetas e jogar roupas para fora. Shannon
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sentou-se na cama e o observou. Ash parecia determinado a levar em frente seu intento,
mas ela ainda não compreendia o que poderia ser. — Não ouse se mover, hein?
Ela não faria isso. As coisas ficavam cada vez mais interessantes.
Ash voltou com um jeans e uma camisa.
— Não posso carregá-la nua para fora. Pense no que os fofoqueiros da cidade iriam
dizer.
Ela fez uma mímica com as mãos amarradas indicando a calcinha. Ash bateu na testa
repreendendo-se pelo esquecimento e tornou a mexer nas gavetas. Retornou em seguida
virando uma calcinha nas mãos para descobrir qual era a frente. Sentou-se, então, na beira
da cama e puxou as pernas de Shannon, mas ela as entrelaçou com firmeza.
— Está mesmo decidida a dificultar as coisas para mim, não é? — Ele forçou os pés
de Shannon a se separarem e enxugou o suor da testa. — Se o seu avô não estivesse tão
perto, eu esqueceria todo este esquema e faria amor com você agora mesmo.
Shannon sorriu sob a mordaça, enquanto Ash começava a vestir-lhe a calcinha. O
toque que começara impessoal tornou-se mais lento e suave. Ela sentiu a pele esquentar
conforme os dedos de Ash lhe acariciavam os joelhos, as coxas, os quadris.
— Levante os quadris. — Respirando fundo para controlar o desejo, Ash terminou de
colocar-lhe a calcinha e o jeans. Depois pegou a camisa e a fitou, confuso. — Bem, vamos
fazer o seguinte: eu a desamarrarei, você vestirá a camisa e, então, tornarei a; amarrá-la.
Entendeu? Nada de truques. Você vai sair daqui amarrada, queira ou não.
Depois de tudo pronto, Ash pegou as botas de Shannon, colocou um par de meias
dentro e jogou-as pela janela.
— Agora apronte-se para a parte mais difícil. Vou carregá-la para baixo pela árvore,
portanto quero que fique bem quieta.
Shannon arregalou os olhos e protestou sob a mordaça. Fitou a janela e voltou a
encarar Ash, sacudindo a cabeça e gesticulando em direção à porta com as mãos
amarradas.
— Ah, não. Vai ser da maneira como eu planejei. Onde está seu romantismo? E seu
espírito de aventura? Será que está ficando velha?
Shannon debateu-se quando Ash a levantou da cama e colocou-a sobre o ombro. Ele
lhe deu uma palmada enérgica no traseiro e pôs-se em movimento. Sem qualquer
hesitação, saiu pela janela e pisou no primeiro ramo grosso da árvore. Segurava Shannon
com um dos braços e usava o outro para apoiar-se conforme ia descendo d,e galho em
galho.
Ela sustinha a respiração a cada movimento, rezando silenciosamente e fechando os
olhos quando ele parecia desequilibrar-se. De cabeça para baixo como se encontrava, o
solo parecia estar a quilômetros de distância. Quando Ash por fim pisou terra firme,
Shannon relaxou, aliviada. Imaginou que ele a colocaria no chão, mas Ash apenas a ajeitou
sobre o ombro e continuou andando.
Ash parou de repente e olhou para trás. Curiosa, Shannon levantou a cabeça para
espiar o que lhe chamara a atenção e viu o avô na janela do quarto fazendo um sinal de
positivo com o polegar. Então ele sabia de tudo! Talvez até tivesse ajudado Ash a planejar
aquela maluquice. Recomeçou a espernear, mas Ash a segurou firme até chegar ao
caminhão. Então, abriu a porta do banco de passageiros e a atirou para dentro com um
gemido de alívio.
Shannon sentou-se no banco, recostou a cabeça e pôs-se a rir. Aquele era seu velho
Ash! O homem ousado e travesso de sua juventude. Explicações e recriminações não
importavam naquele momento. Só o que interessava era que ele tinha vindo buscá-la.
Levantou as mãos para tirar a mordaça umedecida, mas Ash a deteve.
— Ainda não. Coloque as mãos no colo. — Ele ligou o motor e pôs o carro em
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movimento.
Rodaram cerca de trinta minutos por uma estrada cheia de buracos antes que ela
percebesse para onde se dirigiam. Sem esperar por autorização, baixou a mordaça,
inclinou-se para frente e desligou a chave na ignição. O caminhão deu um tranco e parou.
Ash virou-se no banco e olhou para ela.
— Imagino que você queira saber o motivo de toda esta loucura.
— Não, quero que você me desamarre e me beije.
— Com prazer. — Desatando a gravata que prendia os pulsos de Shannon, puxou-a
para um longo beijo.
— Esqueceu minhas botas, Ash.
— É mesmo, mas não faz mal. Não precisará delas.
Ela o abraçou com força e ficou em silêncio por longos momentos, apenas sentindo o
conforto e a paz daquele contato.
— Estamos indo para a cabana, não é?
— Sim, onde tudo começou para nós. — Ash acariciou-lhe de leve a pele macia do
rosto. — Fomos felizes lá, Shannon.
— Foram os momentos mais felizes de minha vida. Acha que podemos voltar no
tempo depois de tudo o que aconteceu?
— Podemos tentar. — Ash ligou o motor e retomou o caminho.
— Por que toda aquela produção elaborada de subir pela árvore e me raptar?
— Achei que você merecia ser tirada de casa em alto estilo. Na verdade, Happy teve
participação nessa ideia. Ele me disse que, desta vez, eu teria de ir atrás de você. Errei há
dez anos atrás. Devia ter voado para Paris e a trazido de volta para casa. Espero que minha
investida de hoje tenha ajudado a apagar o passado e que possamos começar tudo de novo.
Ela pousou a mão na perna de Ash e o acariciou com ternura.

O sol começava a surgir no horizonte quando chegaram à cabana. Shannon saiu do


caminhão e sentiu a grama molhada sob os pés nus. Uma brisa fresca agitava as folhas das
árvores e espalhava pelo ar o aroma agradável de primavera.
Ash abriu a porta da cabana e convidou-a a entrar. Shannon o seguiu e teve de piscar
duas vezes para acreditar em seus olhos. As paredes estavam recém-pintadas de branco e
flores frescas enchiam todos os vasos disponíveis. No centro, havia uma cama nova e larga
com lençóis limpos e convidativos. Uma de suas camisolas rendadas encontrava-se
estendida sobre o travesseiro.
— Queria preparar um lugar especial para você — Ash murmurou.
— Oh, Ash, nem sei o que dizer. Está tudo lindo e eu o amo. — Ela respirou fundo
para não chorar, mas os olhos brilhavam, cheios de lágrimas.
— Venha comigo. Quero mostrar-lhe uma coisa. — Ele a conduziu para fora da
cabana e desceram juntos o declive gramado até o riacho.
Ela viu de imediato a velha árvore cujo tronco curvava-se irregularmente antes de
subir em direção ao céu. Anos atrás, quando eram crianças, costumavam considerá-la sua
árvore da sorte. Ash segurou-lhe a mão, puxou-a para junto de si e apontou para o tronco.
— Lembra-se disso?
Gravado na casca escurecida da árvore havia um grande coração cortado por uma
flecha e as iniciais de ambos no centro. Emocionada com as recordações, Shannon
demorou um instante até conseguir falar.
— Sim, claro que me lembro. Foi depois da primeira vez que fizemos amor. Eu tinha
dezessete anos e... — Ela parou ao perceber um novo entalhe sob a ponta do coração.
Inclinou-se para frente e leu: "Casados". — Ash, está com a data de amanhã!
Super Sabrina 089 – Selvagem como o Vento (A Wild Wind) Evelyn A. Crowe 106
— É mesmo?
— Não brinque. Olhe aqui!
— É, tem razão.
— Ash Bartlet! — Ela virou-se, com as mãos apoiadas nos quadris. — O que está
havendo, afinal?
— É simples. Amanhã, por volta do meio-dia, Happy, Jenny, Jeff e o padre Smith
virão até aqui para um casamento.
— É verdade? — Shannon não se esforçou mais para conter as lágrimas.
— Acha que eu brincaria com algo tão importante como nosso casamento? Esperei
dez longos anos por isso.
— Eu também, querido. — Ela voltou a fitar a gravação na árvore e, então,
aconchegou-se nos braços de Ash. —Nunca irá se arrepender por casar-se comigo.
— Eu sei. Amo você.
— Prometo que vou fazê-lo feliz.
— Já me faz. Você é a luz na escuridão, Shannon.
— Teremos muitos filhos. Ainda não estou velha para isso.
— Não, querida, claro que não.
— Bem, então...
— Você está falando demais.
Ash a abraçou com força, levantou-a do chão e girou-a no ar. Eram parte um do
outro assim como da terra e das montanhas de Montana. Estavam destinados a ficar juntos
para sempre.
Shannon voltara para casa!

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