Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
(Curso de extensão)
Docente e autor do texto: Ciro Flamarion Cardoso
página:
Referências bibliográficas 28
Referências bibliográficas 46
Referências bibliográficas 61
página:
Referências bibliográficas 77
Referências bibliográficas 89
Esta indicação de Darnton remete ao interesse dos antropólogos pela alteridade, por
aquilo que parece “outro” ou estranho ao observador. A Antropologia como pesquisa de
campo começou se ocupando com os “nativos”, com povos, majoritariamente desprovidos de
escrita, na época vistos como “primitivos”, em vinculação estreita com o colonialismo
moderno e fazendo um contraponto com a Sociologia, que estudava as sociedades plenamente
inseridas na assim chamada civilização ocidental. Os antropólogos se deram conta de que,
para decifrar os significados obscuros de uma cultura muito diferente da sua, era preciso
aprender a contornar as explicações explícitas providas para as coisas pelo próprio grupo
4
pesquisado, quando interrogado a respeito; daí que “decifrar” seja um verbo bastante
adequado. As culturas diferentes da ocidental, sendo outras, precisavam ser tratadas como um
quebra-cabeças, um enigma a ser solucionado mediante uma decifração dos signos detectáveis
pelos pesquisadores por meio de entrevistas em que perguntas eram feitas às pessoas daquelas
culturas. Ora, o historiador, quando se afasta do estritamente presente em direção às
configurações “outras” do passado, ou quando espacialmente, mesmo no presente, se desloca
para abordar sociedades ou setores do social muito diferentes dos seus próprios (às vezes
situados no mesmo país), tem interesse em aprender com os antropólogos, devido à
experiência acumulada por estes a respeito, durante uma já longa experiência (mais de um
século de etnografia de campo) sobre como lidar com a alteridade.
O mais conhecido expoente do que na França é chamado de Antropologia Histórica,
André Burguière, escreveu dois longos verbetes sobre o tema, o primeiro publicado em 1978,
o segundo em 1986 (BURGUIÈRE, 1978; BURGUIÈRE, 1993 [1986]). Embora também
mencione a alteridade, ao sintetizar sobre o significado da Antropologia Histórica, no verbete
mais recente, escolhe afirmar:
Como se pode notar, temos nesta passagem algo bem menos concreto e preciso do que
o que disse Darnton. A Antropologia Histórica, nesta opinião de Burguière, aparece mais
como o que poderíamos chamar de uma disposição de enfoque, quase um “estado de espírito”
diante dos objetos da pesquisa em História, voltada para procurar sempre as conexões ou
relações, igualmente para o estudo dos usos e costumes. Isto é confirmado por nosso autor
também dizer que tal Antropologia Histórica talvez seja “o cumprimento do programa que
Marc Bloch atribuía à história das mentalidades” (BURGUIÈRE, 1993 [1986]: 66); ou que
corresponda ao que Lucien Febvre afirmou sobre a própria noção de mentalidades, cuja
História “alimenta o propósito de pôr em evidência as rupturas de equilíbrio entre as
representações mentais, o domínio intelectual e os afetos numa psicologia do sujeito”
(BURGUIÈRE, 1993 [1986]: 65). Acontece, porém, que: (1) nem todo tipo de conexões é
próprio da visão antropológica. Burguière inclui em sua breve análise obras que nem com
5
grande dose de boa vontade pareceriam antropológicas no tipo de relações que estabelecem.
Dois exemplos são: o estudo de Witold Kula sobre o feudalismo polonês nos séculos XVI a
XVIII, claramente um exemplo precípuo de História Econômica marxista voltada para o
estabelecimento de modelos explícitos; ou os estudos de tema histórico do filósofo Michel
Foucault sobre a sexualidade, que se parecem muito pouco às maneiras usuais pelas quais os
antropólogos abordam a sexualidade.1 (2) Analogamente, o programa de Febvre para uma
História das Mentalidades não parece nem específica nem principalmente antropológico: ele
pode ser cumprido tomando como referência o modo de trabalhar da Antropologia, não há
dúvida; mas também −e talvez melhor, ao vincular-se à temática das programações sociais do
comportamento−, por exemplo, baseando-se na Semiótica, a disciplina voltada para as
semioses e significações, e na Psicologia (individual tanto como coletiva), muito
especialmente no setor da Psicologia Social que estuda as representações coletivas, situado no
ponto de encontro da Psicologia com a Sociologia.
A meu ver, este confronto das opiniões de Darnton e de Burguière permite uma
conclusão mais geral. Acho que, de fato, os autores britânicos ou estadunidenses que estudam
temas históricos sob um ângulo antropológico conhecem a Antropologia, suas diversas
modalidades e seu método, bem mais a fundo, em média, do que os autores franceses. E isso
há muito tempo. Por exemplo, em 1978 a professora da Universidade de Londres (University
College London) S. C. Humphreys publicou um livro sobre os gregos antigos vistos segundo
uma perspectiva antropológica que mostra grande conhecimento tanto dos estudos clássicos
quanto daqueles antropológicos, inclusive no domínio da teoria e da metodologia
(HUMPHREYS, 1978). Na França, é mais difícil encontrar um conhecimento tão seguro da
Antropologia de parte dos historiadores. Com demasiada frequência, o recurso à Antropologia
se parece mais a um desideratum vago e genérico baseado em superficialidades, quando não
um verdadeiro álibi que justifique certas opções, mas sem ir muito longe pelos caminhos
efetivamente antropológicos.
Esteja eu certo ou errado em minha avaliação, não há dúvida de que os historiadores,
de umas décadas para cá, se interessem muito mais pela Antropologia do que no passado. O
que será que os atrai na disciplina antropológica, que possa justificar tal interesse?
Digamos, previamente, que houve, durante muitas décadas, correntes antropológicas,
às vezes predominantes em um ou mais países, cujas tendências dificultavam o contato com a
disciplina histórica: o funcionalismo, o estruturalismo, o “determinismo mitológico” de
1
O contrário é possível: antropólogos convertidos ao pós-modernismo podem, por tal razão, valorizar os escritos
e enfoques de Foucault.
6
Antropologia −a ciência social que mais lida com o conceito de cultura− e seu método, que,
acredita-se, poderia embasar aquele da História Cultural: “O método antropológico da
História tem um rigor próprio (...). Começa com a premissa de que a expressão individual
ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensações e a entender
as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura”. Partindo de tal
premissa, “Ao historiador (...) deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento
e extrair a significação de documentos, pasando do texto ao contexto e voltando ao primeiro,
até abrir caminho através de um universo mental estranho” (DARNTON, 1986 [1984]: XVII).
A estranheza diante das culturas do passado e suas muitas diferenças com a nossa conduz ao
ponto seguinte, que tem a ver com a alteridade.
(2) A Antropologia começou a levar a cabo o seu trabalho de campo entre povos
considerados “primitivos”, portanto, “outros” quando comparados com os da Europa ou as
extensões desta, ou seja, com os integrantes da civilização ocidental. Uma vez abandonada a
noção (evolucionista) de “primitivos”, a definição da Antropologia passou a ser, mais
geralmente, a de uma ciência social voltada para tudo aquilo que aparece como sociedade ou
cultura estranha −no sentido de estranha àquela em que, como diz P. Mercier, “o espírito [do
observador] foi formado” (LOMBARD, 1998: 9). Note-se que, passada a longa fase em que
os antropólogos pesquisavam quase unicamente sociedades distantes e buscavam a alteridade
no exotismo total, atualmente a alteridade, para um antropólogo urbano de um país ocidental,
por exemplo, pode ser achada em zonas rurais julgadas “atrasadas” ou “tradicionais” de seu
próprio país; quando não na sua própria cidade, talvez, trabalhando com grupos de pessoas
minoritários e/ou às vezes excluídos ou discriminados de algum modo (meninos de rua,
favelados, homossexuais, prostitutas, algum grupo religioso peculiar, etc.). Em contraste,
também houve estudos antropológicos de grupos de empresários capitalistas! Existe uma forte
tradição entre os antropólogos −ligada àquilo que o seu método específico, a “observação
participante” durante um trabalho de campo, permite ou, pelo contrário, torna de realização
difícil ou impossível− a lidar com grupos pequenos, que o pesquisador possa vir a conhecer
intimamente numa relação face a face, ou com subgrupos que permitam tal modo de observar.
Ora, também em História desenvolveu-se em décadas recentes, no bojo da assim chamada
Nova História Cultural, a vontade de perceber as interações pequenas, muitas vezes invisíveis
quando se escolhem recortes maiores do objeto: deseja-se enxergar a dinâmica da experiência,
coisa muito difícil de realizar quando se trabalha com grupos sociais muito extensos. Também
aqui, os antropólogos dispunham de um patrimônio de experiência acumulada ao longo de seu
8
Sob influência inglesa −sendo ethnology um termo pouco usado, relativamente, pelos
britânicos−, também na França predomina, hoje em dia, a denominação Antropologia,
distinguindo-se uma Antropologia Física de uma Antropologia Cultural. Os ingleses
costumam, no âmbito do que seria a Etnologia, distinguir uma Antropologia propriamente
Cultural (minoritária) de uma Antropologia Social, especialidade esta bem britânica, voltada
para uma síntese global dos diversos sistemas sociais: adaptação à ecologia, economia e
técnicas, política e instituições jurídicas, sistema familiar e de parentesco, religião (E. E.
Evans Pritchard, por exemplo). Note-se que nos Estados Unidos, como a Arqueologia se
desenvolveu primeiro, nesse país, no interior dos departamentos universitários de
Antropologia, também ela é considerada como parte integrante da ciência antropológica, o
que não ocorre na tradição europeia. Assim, para os norte-americanos, a Antropologia
compreende: Antropologia Física; Arqueologia; e Etnologia (cf. BARNOUW, 1975;
LOMBARD, 1998: 10-13).
O conceito central da Antropologia é, sem dúvida, o de cultura; e o método mais
específico dela é, como trataremos adiante de mostrar, o trabalho de campo baseado na assim
chamada “observação participante”.
Existem modos de empregar as noções de “cultura” e “sociedade” em que ambas
aparecem como complementares. Do ponto de vista marxista, por exemplo, já se afirmou que
a cultura é um meio ambiente artificial ou, em outras palavras, que o âmbito cultural reúne
“todos os elementos da existência humana que não são biológicos nem podem explicar-se pela
referência exclusiva ao mecanismo fisiológico dos seres humanos”. Assim, a cultura associar-
se-ia “à reflexão sobre a origem social e ao condicionamento social da existência humana”.
Como se pode notar, “cultura” e “sociedade”, neste modo de ver, relacionam-se estreitamente.
Entretanto, não designam a mesma coisa: a sociedade ou, mais exatamente, o sistema social
definido “principalmente [como] um conjunto de indivíduos humanos entre os quais existem
relações”, quando encarado relativamente à cultura, mostra ser a condição histórica prévia
do aparecimento das formações culturais. Com efeito, a rede das relações sociais, no tocante a
cada indivíduo que se integra à sociedade (pelo nascimento ou pela imigração), surge como
uma realidade previamente existente, uma “necessidade externa”, tão material quanto “a terra
que pisa, a casa em que vive, as árvores que o cercam”:
sobre as noções do social e do cultural, chegando a considerar essas dimensões como meros
epifenômenos:
Outra tendência muito presente consiste na tentação de privilegiar o mental (as ideias)
sobre o material, tendência essa que sempre foi mais forte no tocante à noção antropológica
de cultura do que nas definições do que seja a sociedade. Citarei um exemplo taxativo:
Notam-se nesta definição várias coisas: (1) cultura é algo adquirido, que se aprende no
seio do social e, não, algo transmitido geneticamente, o que quer dizer que, deste ponto de
vista, “cultural” se opõe a “natural”; (2) embora a definição insista mais nos componentes
mentais da cultura, a menção aos “costumes” e “outras capacidades ou hábitos” abre caminho
a que também se integrem no enfoque cultural coisas como os comportamentos econômicos,
as tecnologias, etc., vistos em seus traços materiais (daí que se tornasse usual por bastante
tempo distinguir a “cultura material” da “cultura não-material”; surgiu recentemente uma
tendência a dizer “cultura imaterial”, o que não me parece correto em português); (3) a
definição de Tylor estabelece uma identidade entre cultura e civilização, encaradas como
termos sinônimos. Com o avanço de seus estudos, no entanto, Tylor passou a preferir o termo
cultura, posto que a palavra civilização parecia adaptar-se mal estando vinculada
etimologicamente à noção de cidade ao tipo de sociedades (tribais) mais usualmente, na
época, examinado pela Antropologia (já que era a Sociologia que tratava das sociedades
ocidentais desenvolvidas como as da Europa, ou os Estados Unidos).
Tylor, ao ocupar em 1883, na Universidade de Oxford, a primeira cátedra britânica de
Antropologia, configurou-se como um dos pioneiros da disciplina na Europa. Seu trabalho de
campo (no México) foi, entretanto, limitado. O verdadeiro fundador da Etnografia, isto é, da
pesquisa antropológica de campo prolongada e baseada na observação direta, foi Franz Boas
(1858-1942). Não é minha intenção acompanhar em detalhe a trajetória e as tendências da
disciplina antropológica. Quero, porém, prestar atenção às etapas da Antropologia em
correlação com a história posterior a 1870.
José R. Llobera chama a atenção para o fato de ser a Antropologia “filha do
colonialismo”, tendo sido sua prática tornada possível graças ao contexto colonial. Outro que
o afirma é Claude Lévi-Strauss:
Ao dizer que a Antropologia é filha do colonialismo se está afirmando também que ela
se desenvolveu de início em estreita dependência do mundo colonial, em cujo interior
15
Este autor distingue três etapas no colonialismo moderno: (1) expansão colonial (até a
Primeira Guerra Mundial); (2) consolidação colonial (até a Segunda Guerra Mundial); e (3)
desintegração colonial ou descolonização (depois da Segunda Guerra Mundial). Acha ser
possível correlacionar com tais fases, em linhas gerais, as teorias antropológicas então
vigentes. Na primeira, constata-se um tipo de evolucionismo que, agora, cavava um abismo
entre os ocidentais e as “raças inferiores”; e, na noção de “áreas culturais” de Franz Boas,
uma visão teórica destinada, entre outras finalidades, a enfrentar o materialismo histórico. Na
segunda, de estabilidade relativa do sistema colonial consolidado, o desejo de não enfatizar
conflitos ou disfunções teria levado ao predomínio do funcionalismo (Malinowski, Radcliffe-
Brown), em cujo contexto o colonialismo se reduzia a um “contato cultural”, não se
considerando (ou minimizando-se) a natureza exógena das mudanças que provocava, a
violência nele presente, a exploração e a dominação. Depois da Segunda Guerra Mundial, em
tempos de descolonização, ocorreu uma crise nos próprios fundamentos da Antropologia:
respostas à crise foram o estruturalismo e, a seguir, o pós-modernismo, com sua ênfase
“multiculturalista” que parece ilusoriamente inverter a postura política num sentido
progressista. Outra consequência da crise foi o fato de muitos antropólogos se voltarem,
agora, para o estudo de aspectos das próprias sociedades ocidentais “desenvolvidas”
(LLOBERA, 1975). Devido à época em que escreveu, Llobera chegou em sua análise ao
estruturalismo mas não ao pós-modernismo em Antropologia. Como exemplo da análise
antropológica das sociedades ocidentais do que antes se denominava Primeiro Mundo por um
autor pós-moderno, ver AUGÉ (1996).
Será, porém, assim tão progressista a Antropologia pós-moderna? Mencionarei, como
exemplo dela, a análise do reino de Negara (na ilha de Báli, atualmente parte da Indonésia) no
16
século XIX por Clifford Geertz, com sua teoria da teatralização do Estado (1980). Sendo o rei
de Negara o centro sagrado da sociedade, por tal razão não tinha lugar em sua corte a política
secular; o autor afirma ser tal corte “um centro sagrado, um templo ou um teatro montando
espetáculos rituais” que funcionavam como uma celebração, não da ordem política ou do
poder, mas sim, da hierarquia como tal. A política, a guerra, a taxação, a distribuição das
terras e os sistemas de irrigação seriam elementos tratados num nível institucional de status
claramente inferior. Os conteúdos mesmos do estudo de Geertz foram posteriormente
desmentidos por múltiplas pesquisas, que salientaram, entre outros pontos, a evacuação
sistemática, nele, da violência e do conflito, no entanto bem presentes nas sociedades de Báli.
Além disto, o esquema geertziano não enfatiza o fato seguinte, decisivo, no entanto: a ilha
estava, na época, submetida ao colonialismo holandês. Isto erodia irremediavelmente as
atribuições politico-administrativas efetivas do reino de Negara, forçando a sua corte a
concentrar-se crescentemente em rituais vazios e formalistas (na verdade, a aristocracia que
cercava o rei estava, assim, efetuando o único protesto anti-colonialista possível nas
condições vigentes). O pós-modernismo perspectivista pode, então, elogiar a descolonização e
o multiculturalismo; mas, com frequência, oculta ele também as lutas sociais e a ação
imperialista, tanto quanto o faziam as correntes antropológicas dominantes em fases
precedentes da História ocidental (cf. as críticas de KUPER, 1999: 75-121).
Os conceitos de cultura e de sociedade sempre pareceram, até certo ponto, alternativos
ou concorrentes. No entanto, numerosos antropólogos por exemplo os da Antropologia
Social britânica, em que sobressaiu, em meados do século XX, E. E. Evans Pritchard
incluíam sem dificuldade, em suas análises culturais, a consideração (quase sempre
exclusivamente em sociedades tribais, porém) de elementos como as estruturas sociais a
subsistência, a economia, a tecnologia, mais em geral os elementos materiais da cultura. Esta
última era vista, desde Tylor, como totalidade holística estruturada, embora na prática o
culturalismo pudesse adotar acepções e estratégias bastante variadas. Em meados do século
XX, em diversos autores, a cultura aparecia por influência sobretudo de Vere Gordon
Childe como uma espécie de meio ambiente artificial, material tanto quanto mental, cuja
função seria mediar a relação da sociedade humana com o meio ambiente natural:
dentes afiados e das girafas em pescoços longos) foi o meio pelo qual o homem
sobreviveu e engrandeceu-se no planeta. É pela cultura que ele deve (e vai), seja
sobreviver, seja perecer (BOHANNAN, 1979 [1971]).
assumida por Clifford Geertz, que invocou primeiro Parsons, em seguida Weber, por fim a
hermenêutica. No entanto, com o tempo, Geertz, como os pós-estruturalistas, deixou de
considerar o método antropológico como científico: a cultura podia ser interpretada mas, não,
explicada. Inexistiriam leis gerais do funcionamento e da mudança culturais. A ideia agora
passou a ser que cada cultura deve ser lida, em si e por si, como um texto. A Antropologia
geertziana propôs um método de “descrição densa” e uma valorização dos “saberes locais”,
coerentes com a era do multiculturalismo. Apresentando variantes às vezes importantes, esta
visão das culturas e dos estudos antropológicos foi aceita e aplicada por diversos antropólogos
além de Geertz, por exemplo David Schneider e passada sua etapa neo-evolucionista
Marshall Sahlins. Os discípulos de Geertz e outros antropólogos enveredaram, mais ainda
do que o mestre, pelo caminho do pós-estruturalismo. Alguns chegaram ao ponto de afirmar
que a cultura é um texto, sem dúvida; mas um texto fabricado pelo antropólogo, mera ficção!
Não há felizmente, apesar da voga e do prestígio da visão pós-moderna da
Antropologia e de suas opiniões acerca da cultura, consenso em torno de posturas como as
propostas por Kroeber e Parsons. Há estudos que enveredam por caminhos muito diferentes.
Existe, por exemplo, toda uma gama de pesquisas que se interessam pela dominação cultural,
pelas culturas de classe (burguesa, proletária), pela cultura popular, pela “cultura de massa”,
ou trabalham com o conceito de habitus à maneira de Pierre Bourdieu. E há muitos autores
voltados para a questão das subculturas e contraculturas, às vezes em vinculação com o
conceito de socialização. Em numerosos casos, tais pesquisas dependem de noções do que
seja a cultura situadas a léguas de distância das versões pós-modernas e pós-estruturalistas (cf.
CUCHE, 1996). E, como mencionamos no caso do estudo de Negara por Geertz, já existem
críticas demolidoras que demonstram as numerosas falhas e inconsistências perceptíveis na
Antropologia em seu novo recorte.
Eis aqui uma definição de cultura que me parece bastante adequada, da lavra de Peter
Burke:
[O] que é cultura? Minha definição favorita vai no sentido das atitudes
compartilhadas (significados, valores) tais como se expressam (tomam corpo,
aparecem simbolizadas) em artefatos e em desempenhos. (...) “[A]rtefatos”: não
só imagens, mas ferramentas, casas, a totalidade do meio ambiente de feitura
humana.(...) “[D]esempenhos”: não só rituais e canções, mas qualquer tipo de
fala (BURKE, 1988: 122).
Mesmo se, em minha opinião, outras noções menos carregados de pretensões talvez
funcionassem melhor, pode ser útil usar o conceito de cultura para designar os objetos
19
...há muito a ser ganho com o entendimento de que a vida social humana
repousa sobre um conjunto complexo de mecanismos sociais, psíquicos e
biológicos integrados que emergiram durante uma trajetória evolutiva que é em
parte dividida com outros animais. Com isto se quer argumentar que a oposição
22
serem estudadas fazem e por que o fazem, os antropólogos acham ser preciso interagir com
elas durante o tempo mais longo que for possível, aprendendo a falar a sua língua
fluentemente e vivendo em grande proximidade e frequente contato com o grupo analisado.
Assim, os antropólogos têm de conseguir o financiamento necessário para viajar até onde está
o seu grupo alvo e para poder permanecer com ele durante o tempo necessário para completar
a sua pesquisa. Enquanto lá estiver, partilhará as vidas e a cultura daqueles sob estudo −até
certo ponto, é claro: há limites à assimilação cultural do antropólogo à comunidade que
observa. É a isso que se chama “observação participante”, uma denominação não de todo
satisfatória: ela é julgada necessária para, mediante um longo contato que permita numerosas
entrevistas e conversas, bem como a observação de repetidos incidentes e acontecimentos
reveladores, entender em profundidade os modos de vida e a cultura locais; também no
sentido de limitar, na medida do possível, a incidência de preconceitos e crenças (que o
cientista necessariamente traz consigo) no entendimento daqueles que ele estuda.
Obviamente, os antropólogos empregam também outros métodos. O do trabalho etnográfico
de campo baseado na “observação participante” é, entretanto, o que diferencia a Antropologia
das outras ciências sociais. Incidentalmente, dependendo da sociedade a ser examinada, o
trabalho de campo pode se desenvolver em condições muito desconfortáveis: falta de
eletricidade, falta de água corrente e de instalações sanitárias, alojamento precário,
necessidade de comer a comida acessível no lugar pela impossibilidade de obter víveres mais
de acordo com os costumes alimentares do pesquisador em seu próprio país, etc. É claro que,
como hoje em dia a Antropologia se ocupa, crescentemente, de setores dos próprios países de
cultura ocidental, a coisa se passa diferentemente quando o trabalho de campo se dá num
desses países, sobretudo se for em zona urbana. No entanto, mesmo atualmente se considera
que algum treinamento no trabalho de campo em regiões distantes e dotadas de padrões
culturais diferentes daqueles do Ocidente é necessário para a formação completa de um
antropólogo (MONTAGU, 1972 [1969]: 248-249).
Antes de partir para seu trabalho de campo, o antropólogo se prepara aprendendo a ou
as línguas necessárias (se puder fazer isso em seu próprio país), lendo sobre a etnografia
disponível a respeito da parte do mundo onde pensa pesquisar, e também adquirindo os
conhecimentos necessários para desenvolver o seu tema específico: na sua maioria, os
antropólogos se especializam num ramo dado de estudos etnológicos (poder, religião,
economia, etc.) e realizam um trabalho pelo menos até certo ponto monográfico, o que não
impede que, para que seja efetivo, também devam aprender a conhecer em termos gerais a
cultura do grupo estudado. Em certos casos, os temas que serão estudados podem levar a
24
adquirir conhecimentos inusitados, nem sempre fáceis de obter. Por exemplo, um antropólogo
que se prepara para um trabalho de campo relativo aos usos medicinais de plantas da
Amazônia por algum dos povos indígenais locais precisará ter conhecimento botânico
convencional, para poder depois avaliar os conhecimentos e seus usos nas comunidades que
estudará.
O núcleo central do trabalho etnográfico são as conversas, ou entrevistas, com os
informantes pertencentes ao grupo que estiver sendo estudado. Isso tanto acontece mediante
sessões formalizadas de perguntas e respostas quanto ao longo da própria convivência e de
conversas mais informais, perguntas e comentários ocasionais sobre incidentes que aconteçam
durante a permanência do antropólogo, etc. Em certos casos, são usados gravadores, feitos
desenhos e fotografias, realizados filmes, levantados mapas e diagramas, coletadas amostras
dos cultígenos, da fauna e da flora locais, etc. A escolha do que fazer dependerá das
oportunidades mas, também, do que exijam as temáticas da pesquisa empreendida.
Embora já seja, por mais de cem anos até agora, o método central da Etnografia −sem
cujos dados a Etnologia ou Antropologia interpretativa seria impossível−, críticas incidem
sobre o trablalho de campo e sua “observação participante”. Tais críticas sempre existiram,
mas intensificaram-se muito quando o ceticismo pós-moderno chegou ao mundo dos
antropólogos.
Um risco que sempre existiu foi o do etnógrafo se encerrar em sua comunidade
estudada, apresentando-a como algo imóvel e isolado, sem contexto histórico e sem contatos
de importância com outras comunidades. Assim, por exemplo, Raymond Firth, em seu
celebrado trabalho sobre os Tikopia da Polinésia, descreveu a organização social e a religião
tradicional do grupo sem achar necessário mencionar que, quando o estudou, muitos dos seus
membros já se haviam convertido ao Cristianismo! Durante muito tempo, uma noção um
tanto romântica sobre um estado primeiro e “puro” das culturas estudadas existiu de parte de
diversos antropólogos. Outra coisa: em certos casos, o pequeno grupo estudado face a face
constitui uma etnia completa; em outros casos, porém, e bem mais frequentemente, é só uma
parte ou fração de algo socialmente bem mais vasto. Sendo assim, e dado o caráter da
pesquisa etnográfica, como garantir que as suas conclusões sejam generalizáveis para fora do
conjunto de pessoas que de fato se observou?
As discussões maiores, porém, sobretudo de parte dos pós-modernos, são as que se
dirigem à objetividade do conhecimento obtido por meio da “observação participante”. A
subjetividade do pesquisador pode de fato ser superada? Franz Boas, Bronislaw Malinowski e
outros pioneiros da disciplina insistiram na necessidade de um levantamento direto de dados
25
pelo trabalho de campo, em lugar de, por exemplo, usar relatos de viajantes ou relatórios
governamentais cuja informação era muitas vezes pouco confiável e cheia de preconceitos
(além de haver muitas sociedades sobre as quais não havia informação, nem mesmo desses
tipos). Os antropólogos são treinados, quando de seus estudos universitários, no sentido de
obter o máximo possível de objetividade ao trabalhar. Mas será isso de fato possível? Uma
saída em que se pensou foi o estudo em equipe, ou seja, diversos observadores estudando um
mesmo grupo. No entanto, além de que nada indica que os dados assim obtidos sejam, de fato,
mais objetivos do que os conseguidos com trabalhos individuais, há muitos obstáculos de
vários tipos a que isso se faça com frequência: a logística e o financiamento se tornam mais
complicados e mais caros; os antropólogos voltados para culturas não ocidentais sentem
angústia diante do rápido desaparecimento delas e acham necessário multiplicar as pesquisas
enviando observadores ao máximo de lugares que se puder, em lugar de concentrar vários
deles num só lugar. Uma alternativa seria outro antropólogo voltar a estudar o grupo já
estudado por um colega; mas tal procedimento provoca atritos (os antropólogos muitas vezes
gostam de manter um acesso exclusivo ao “seu” grupo) e também encontra outros obstáculos
(entre eles, a já mencionada urgência em estudar numerosas e dispersas populações cujas
culturas estão desaparecendo rapidamente devido a múltiplos processos de interação política e
cultural) (MONAGHAN; JUST, 2000: 13-33).
Diante desse assunto da “objetividade”, há autores que reagem declarando tratar-se de
um falso problema: o que o antropólogo é não pode ser contornado; e sem isso ele não teria
um ponto de vista ou de referência a partir do qual partir para a interpretação dos grupos que
estuda. Os pós-modernos, que são céticos radicais acerca da verdade científica, se esforçam
em mostrar que a obra de Antropologia, mesmo depois de anos de estudo, é exatamente isso:
uma obra, que fala muito mais do antropólogo do que dos que ele tentou entender. O exagero
das posturas pós-modernas, que obtiveram maior aceitação nos Estados Unidos e no Reino
Unido, muito menos, por exemplo, na França, levou às vezes à tentativa do antropólogo de
anular-se e de se limitar a dar a palavra às “vozes” diversas que ele trata de ouvir em seu
trabalho de campo. Isto às vezes leva a um estilo de escrita etnográfica muito difícil de
entender ou de consultar, e a resultados que, apesar da sinceridade das tentativas, mostram-se
altamente discutíveis (HOBSBAWM, 1997: 192-200)
respostas, além de que a própria noção de “ciência” que podiam manejar os antropólogos
também conheceu variantes numerosas. Seja como for, as posições básicas vão de um
cientificismo mais ou menos estrito (A. R. Radcliffe-Brown, por exemplo, achava que todos
os problemas que a Antropologia aborda estão sujeitos à lei natural e que existem métodos
para descobrir e provar leis gerais) ao ceticismo sobre essa afirmação de cientificidade. Evans
Pritchard, por exemplo, dizia que, cada vez que leis gerais foram afirmadas por antropólogos,
tratava-se de algo extremamente vago e pouco útil: para ele, a Antropologia Social −a escola a
que pertencia− tratava as sociedades como sistemas simbólicos e não como sistemas análogos
àqueles que a Biologia estuda, procurando estruturas, mas não leis, demonstrando coerência,
mas não relações necessárias e estritas entre as variáveis que formam o social, em suma,
interpretando mais do que explicando. Apesar do seu evidente cientificismo, Claude Lévi-
Strauss opunha as ciências sociais, menos científicas, às ciências naturais, verdadeiramente
científicas, ou ciências completas.
(2) A Antropologia é uma ciência autônoma? Vimos, neste mesmo capítulo, J. Llobera
afirmar que, pelo menos de início, o tema da Antropologia era residual, por estudar aquilo que
os sociólogos não estudavam. Outrossim, em certas escolas −por exemplo a francesa de Émile
Durkheim e Marcel Mauss, bem mais social do que cultural em suas ênfases−, a teoria
manejada dificultava muito separar de fato a Sociologia da Antropologia. A Antropologia
Social britânica tornava a Antropologia dependente da Sociologia. O estruturalismo de Lévi-
Strauss, por sua vez, a punha na dependência da Linguística Estrutural. Certos enfoques no
interior da Antropologia Cultural norte-americana privilegiaram, de seu lado, o enfoque
psicológico (é o caso, por exemplo, no tocante a alguns dos discípulos de Franz Boas, da
tendência conhecida como “cultura e personalidade”). Assim, ao longo de toda a trajetória
histórica da Antropologia como disciplina, que já tem mais de um século, houve a noção,
expressada por alguns antropólogos, de uma forte dependência relativamente a outras
ciências. Mas o contrário também existiu; ou seja, sempre houve igualmente antropólogos
convencidos da especificidade e autonomia de sua disciplina, que defenderam tal ponto de
vista com argumentos variados..
Outros, pelo contrário, acreditaram que, para além das diferenças, existiam denominadores
comuns e invariantes culturais. As escolas antropológicas penderam, seja para o relativismo
cultural, seja para o universalismo.
(5) As sociedades, vistas ao longo do tempo, são marcadas principalmente por uma
invariância relativa, ou pelo dinamismo? Como a Antropologia começou por ser a ciência do
que era considerado “tradicional” ou “primitivo”, de início foi forte entre os antropólogos a
crença na estabilidade ou relativa invariância das estruturas das sociedades tribais; em certos
casos, dava-se para explicar tal convicção uma razão de circunstância: não haveria
28
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. História e Antropologia. In: Ciro Flamarion Cardoso;
Ronaldo Vainfas (orgs.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2012, pp.
151-168.
AUGÉ, Marc. Hacia una antropología de los mundos contemporáneos. Traduzido por Alberto L.
Bixio. Barcelona: Gedisa, 1996.
BARNOUW, Victor. An introduction to anthropology. Homewood (Illinois): The Dorsey Press, 1975.
2 vols.
BAUMAN, Zygmunt. Essai d’une théorie marxiste de la société. L’Homme et la Société. 15, janeiro a
março 1970, pp. 3-26.
BOHANNAN, Paul. Beyond civilization: On the past, present, and future of man. In: David E. Hunter;
Phillip Whitten (orgs.). Anthropology: Contemporary perspectives. Boston: Little, Brown and
Company, 1979, pp. 326-343 [1971].
BURGUIÈRE, André. L’anthropologie historique. In: Jacques Le Goff; Roger Chartier; Jacques Revel
(orgs.). La nouvelle histoire. Paris: Retz, 1978, pp. 37-61.
BURGUIÈRE, André. Antropologia histórica. In: André Burguière (org.). Dicionário das ciências
históricas. Traduzido por Henrique de Araujo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993 [1986], pp. 57-
66.
BURKE, Peter. What is the history of popular culture? In: Juliet Gardiner (org.). What is history
today? London: Macmillan, 1988, pp. 121-123.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc,
2005.
CUCHE, Denys. La notion de culture dans les sciences sociales. Paris: La Découverte, 1996.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural francesa.
Traduzido por Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986 [1984].
FORTES, M. Rules and the emergence of society. London: Royal Anthropological Institute, 1983.
GOODENOUGH, Ward H. Introducción. In: José R. Llobera (org.). La antropología como ciencia.
Barcelona: Anagrama, 1975, pp. 25-45.
HUMPHREYS, S. C. Anthropology and the Greeks. London: Routledge & Kegan Paul, 1978.
KROEBER, Alfred L.; PARSONS, Talcott. The concept of culture and of social system. American
Sociological Review. 23, 1958.
KUPER, Adam. Culture: The anthropologists’ account. Cambridge (Mass.); London: Harvard
University Press, 1999.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropology: its achievement and future. Current Anthropology. 2, 1966.
LLOBERA, José R. Postcriptum: algunas tesis provisionales sobre la naturaleza de la antropología. In:
José R. Llobera (org.). La antropología como ciencia. Barcelona: Anagrama, 1975, pp. 373-387.
MEGARRY, Tim. society in Prehistory: The origins of human culture. Houndmills; London:
Macmillan, 1995.
MONAGHAN, John; JUST, Peter. Social & cultural anthropology: A very short introduction. Oxford;
New York: Oxford University Press, 2000.
MONTAGU, Ashley. Introdução à Antropologia. Traduzido por Octavio Mendes Cajado. São Paulo:
Cultrix, 1972 [1969].
PARSONS, Talcott. The social system. New York: Free Press, 1951.
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Traduzido por Sérgio Tadeu Lamarão. Rio de Janeiro:
Zahar, 1979 [1976].
VANSINA, Jan. Oral tradition: A study in historical methodology. Traduzido por H. M. Wright.
Harmondsworth: Penguin, 1973 [1961].
WILSON, Peter. The domestication of the human species. New Haven; London: Yale University
Press, 1988.