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1 Introdução
A Construção da Gramática dos Direitos Humanos no pós 1945
O fim da 2ª guerra é o marco de um novo cenário mundial profundamente mais sofisticado e, ao
mesmo tempo, mais dramático. Esse novo cenário será marcado por uma nova atmosfera de
atores atuantes na política mundial para além das lideranças governamentais. A arquitetura
mundial que temos hoje é consequência desse período histórico onde a política continuou sendo
feita nas mesas dos governos, mas no plano das articulações, outros ambientes e atores também
se fizeram audíveis e influentes.
A comunidade internacional que vivenciou atônita aos acontecimentos do pós guerra se viu
constrangida a compor para si um discurso coerente no qual contemplasse um aspecto comum
a todos, qual seja, o respeito à condição humana. Por serem tributários de uma história
profundamente dolorosa e, ao mesmo tempo, midiatizada, esses indivíduos e suas expressões
institucionais forjaram seus discursos pautados, sim, nessa solidariedade comum, ao mesmo
tempo em que, temperada pelas trajetórias particulares de cada ator no que se refere à
percepção da dor e da luta.
Se para muitos não foi dada a graça de conseguir sobreviver aos horrores da guerra, o certo é
que para aqueles que por aqui ficaram, de algum modo viram as suas vidas alteradas ao longo
do conflito. Nas regiões do planeta que não vivenciaram diretamente o conflito, seus habitantes,
por certo, tiveram notícias dos ocorridos pelas ondas do rádio, pelos jornais, pelas revistas, pelas
imagens do cinema e, até mesmo, pelas primeiras imagens da televisão. No bojo desse
complexo mosaico de atores, não podemos deixar de considerar que nesse nosso vasto mundo,
em algum instante, ínfimo que houvera sido, muitos aquiesceram, ao menos no plano ideológico,
aos ideários de extermínio, de controle fascista, de tortura e de totalitarismo.
Diante desse quadro, duas correntes de argumentos estavam presentes nos processos de
formulação da paz: de um lado, a vontade dos países vencedores de finalizar o conflito e
defender os seus interesses territoriais, econômicos e políticos; de outro, uma demanda ética
advinda de uma opinião pública pretensamente mundial por um sistema internacional menos
exclusivamente fundado na lógica da força e mais respeitoso para com a vida da pessoa humana.
O casamento tenso entre essas duas demandas, ao mesmo tempo em que foi capaz de construir
um aparato normativo internacional ao qual chamamos de gramática dos Direitos Humanos,
construiu, também, uma arena de debates teóricos e ações práticas extremamente propícias
para o exercício da alta e da baixa política, do mérito e do cinismo, do substantivo e do
instrumental, da convicção e da responsabilidade política (no sentido weberiano).
Estudar essa gramática dos Direitos Humanos que se inaugura no pós guerra é um verdadeiro
convite para visitarmos uma série de temáticas conectadas e interdependentes entre si que
integram os conteúdos desse campo de estudo. A política internacional, o direito internacional
público e a ação coletiva dos atores internacionais governamentais e não governamentais, são
as engrenagens que movimentam o sistema internacional de proteção aos direitos humanos que
nos chegam aos dias de hoje setenta anos depois que foi promulgada a Carta Internacional da
ONU de Proteção aos Direitos Humanos de 1948.
A fim de ajudá-lo/a a realizar essa visita, o presente capítulo se propõe a navegar por três tópicos
conceituais nos quais, buscaremos explorar algumas das facetas da agenda dos Direitos
Humanos que foi concebida nos últimos 70 anos. No primeiro item, trataremos da diplomacia dos
Direitos Humanos na complexidade da politica internacional, ou seja, como o campo dos Direitos
Humanos foi, é e será utilizado pelos Estados nacionais nas suas politicas de ganhos. No
segundo item, por sua vez, trataremos do Regime de Direitos Humanos, tendo como pano de
fundo o sistema ONU e a evolução normativa dos Direitos Humanos no âmbito do Direito
Internacional Público, um exercício de negociações e formação de consensos no âmbito dos
tratados e convenções internacionais. No terceiro item, buscaremos analisar a ação coletiva dos
atores internacionais governamentais e não governamentais nas agendas relacionadas aos
Direitos Humanos, uma arena de construções retóricas e práticas nesse campo, a diplomacia
cooperante. Por fim, no quarto item, por sua vez, lançaremos algumas reflexões e sugestões que
possam contribuir para a ampliação dos seus conhecimentos nessa temática.
O nascedouro da diplomacia dos Direitos Humanos não ocorre logo nos processos de formação
e fortalecimento dos Estados nacionais. Tal diplomacia é uma marca do século XX, tendo no
século XIX as suas origens.
Daí a razão pela qual a preocupação com o humano não ter figurado como objeto de interesse
nos primórdios da construção do internacional, esse espaço notadamente ocupado pela
interação interestatal. Ademais, nesse cenário em que se estabeleceu um padrão de
comportamento mais próximo do hobbesianismo do que do grocianismo, terminou-se por forjar
um sistema pautado mais pela força do que pela norma, tal como uma arena de gladiadores
(BADIE, 2002).
Não é de se estranhar que até o século XIX, as questões relativas ao humano terem tido tão
pouco eco na condução das questões internacionais. Para além de não figurarem as pautas das
diplomacias de Estado, o fator humano esteve muito mais atrelado à irradiação de discursos do
que à execução de práticas efetivas, como é o exemplo do tratamento dado à questão do
comércio escravagista pelo Direito Internacional Público da época.
Notas sobre o tráfico de pessoas
Se levarmos em conta que em 1815, o Congresso de Viena proibira a escravatura no Sistema
Internacional e que, somente em 1841, mais precisamente vinte e seis (26) anos depois, a
Convenção de Londres organizara as primeiras tímidas repressões contra o tráfico escravagista
por meio marítimo, podemos depreender o quanto o tráfico negreiro foi simbolicamente proibido,
mas, todavia, livremente permitido no cenário da época, algo que segundo a Convenção
antiescravagista de 1889 ainda persistia até aquele ano (DINH, 2003). Se pensarmos que até os
dias de hoje o tráfico de seres humanos ainda persiste no mundo contemporâneo, podemos
perceber o quanto as formas de violação da dignidade humana se atualizam e se repetem.
Em que pese à distinção teórica e técnica entre Direitos Humanos e práticas humanitárias, é
inegável que os primórdios de uma diplomacia pautada em Direitos Humanos, tal como nos
chega aos dias de hoje, é tributária do direito humanitário que nasce a partir de 1860. É a partir
da assistência médica e alimentar aos feridos de guerra que a questão humana passa a compor
a agenda de negociações diplomáticas. E isso o faz, muito mais por conta da pressão de uma
opinião pública do internacional e de uma sociedade civil internacional ainda em formação do
que, necessariamente, pelos interesses genuínos dos Estados (RYFMAN, 2008). Não resta
dúvida que os Estados também realizaram projetos pontuais de ajuda humanitária independente
das pressões exercidas pelas suas respectivas sociedades civis, todavia, os realizavam muito
mais motivados por seus interesses estratégicos do que necessariamente por alimentar ideários
de responsabilização com o fator humano, propriamente dito.
A verdade é que o século XIX e os primeiros anos do século XX viram surgir uma série de
organizações humanitárias pautando agendas tais como a luta antiescravista, os movimentos
sociais pacifistas, o apoio solidário a desastres naturais, dentre outras grandes causas. Não
podemos nos esquecer de que a primeira grande guerra terminou também por forjar uma opinião
pública do internacional que, mesmo circunscrita aos limites dos Estados nacionais, essas
pressões sociais influenciarão decisivamente no direcionamento das práticas diplomáticas dos
países.
Será justamente no pós primeira guerra que os 14 pontos de Wilson lançarão para o mundo do
internacional alguns embriões daquilo que, futuramente, comporia a gramática dos Direitos
Humanos tal como foi prescrita a partir da declaração de 1948. Assim, temas como o princípio
da autodeterminação dos povos, da publicidade na condução dos tratados, o desarmamento de
governos, o direito ao desenvolvimento autônomo dos Estados, bem como a criação e o
fortalecimento de uma “Liga das Nações” serão o prenúncio de um campo muito específico do
fazer diplomático, qual seja, a diplomacia dos Direitos Humanos.
Muito embora esse campo não tenha dado tantos frutos à época de Wilson, é inegável que essa
agenda infante dos Direitos Humanos na arena internacional tenha sido em alguma medida bem
explorada pela propaganda internacional com vista a angariar o apoio de uma opinião pública
internacional atuante à época. Essa opinião pública que outrora mobilizou-se contra o envio de
seus jovens cidadãos à guerra, atuou, depois, como formadora de opinião contrária às novas
conflitualidades na esfera pública. Isso, por certo, evidência o quanto desde os primórdios, vigora
como hábito o manejo político das agendas de Direitos Humanos, um hábito que, por certo,
acompanhará essa modelagem de fazer diplomático por parte dos Estados e dos demais entes
não governamentais até os nossos dias.
2 A diplomacia dos Direitos Humanos na complexidade da política internacional
2.1 Ética nas Relações Internacionais ou mero instrumento da Política externa dos Estados?
A nova faceta da política internacional que insere os Direitos Humanos na diplomacia dos
Estados no pós guerra traz em si um duplo traço da nova e da velha política. Da primeira, o
frescor de uma ação internacional que passa a levar em conta o humano como um valor ético a
ser protegido pela comunidade internacional, concebida em termos mais pluralistas e liberais.
Da segunda, os vícios da tradição e do “savoir faire” da política ocidental, este construto histórico
pautado na gramática de ganhos e na geopolítica de interesses dos Estados e suas soberanias.
Entre o novo e o velho, não restam dúvidas de que a “anarquia” do sistema se tornou mais
moderada com a inserção de componentes éticos na ação internacional. Todavia, o cenário
desenhado sugere muito mais uma dialética desses componentes que necessariamente um
sobressair-se do novo em relação à tradição da velha política. Não sem motivos, Donnelly (1982),
ao analisar a complexidade da aplicação dos Direitos Humanos na ação internacional dos
Estados, parte do princípio de que embora o componente moral resida na noção de Direitos
Humanos, o seu uso na política externa é uma matéria interdisciplinar onde, para além da moral,
se combinam outros elementos tais como a política, a economia e a cultura.
Se outrora, os Estados, via de regra, evitavam criar constrangimentos políticos para outros
Estados que lesionassem Direitos Humanos (ou seja, colocavam o princípio soberano da
autodeterminação acima da ingerência normativa), a evolução do campo da diplomacia dos
Direitos Humanos vem paulatinamente mudando esse status. A análise da conjuntura
internacional sugere um nítido interesse de alguns Estados em focar suas políticas externas, de
maneira seletiva no que concerne aos avanços dos Direitos Humanos para além de suas
fronteiras. Em assim o fazendo, cada vez mais, são convidados a pensar nos fins e nos meios
desse movimento de instrumentalização dos referidos direitos.
Forsythe e a tipologia da Diplomacia de Direitos Humanos
Buscando mapear a política externa dos Estados no campo dos Direitos Humanos, Forsythe
(2006) termina por realizar uma verdadeira tipologia do campo, algo que não só nos ajuda a
identificar os elementos que compõem a diplomacia dos Direitos Humanos, como, também, a
percebê-la à luz da dialética existente entre os valores éticos em contraposição aos usos e
costumes da política clássica. Nesse sentido, Forsythe aponta três modos usuais de expressão
da diplomacia dos Direitos Humanos, quais sejam: meios diplomáticos, meios econômicos e
meios militares.
No que concerne ao uso de técnicas diplomáticas para tratar das questões de Direitos Humanos,
o autor aponta estratégias que vão desde o recurso do silêncio, como bem convém à tradição
da diplomacia clássica, até o uso da arena pública, muito mais apropriada à atual conjuntura do
mundo globalizado em escala transnacional. Nesses termos, nas expressões alcunhadas por
Forsythe (2006, p. 155 e 156) uma série de categorias para caracterizar esse campo do fazer
diplomático, quais sejam: a quiet diplomacy que traz em si a continuidade do uso de negociações
e pressões silenciosas, donde missões diplomáticas discutem questões relacionadas aos
Direitos Humanos fora da arena pública, a public pressure, ou seja, o uso diplomático da
publicidade ocorre quando as críticas e pressões acerca de lesões e desrespeitos aos Direitos
Humanos se dão na esfera pública, constrangendo o Estado agressor a rever suas posturas.
Para além dessas duas modalidades, o autor aponta, ainda, outras posturas diplomáticas que,
dentro dos seus limites, ajudam a compor esse rol dos usos da diplomacia em função dos
Direitos Humanos, tais como, cancelamento de visitas oficiais, votações e representações nos
fóruns intergovernamentais e embargos culturais. Estes seriam os arautos de um campo que
comporta a instrumentalização e o uso político dos Direitos Humanos.
Quanto aos meios econômicos, Forsythe (2006) argumenta que, se por um lado os Estados
costumam ser muito reticentes ao uso de sanções econômicas para questões de direito humanos
ou quaisquer outras questões (até porque isso afeta diretamente o marchar do sistema
capitalista), este se coloca como um meio termo entre o uso das técnicas diplomáticas e as
táticas militares, algo que o aproxima muito mais do soft do que do hard power, ou seja, o
exercício do poder por meios pacíficos, tais como, o diálogo e a cooposição de consensos do
que necessariamente pela força. Essas sanções podem incluir desde a suspensão do livre
mercado, da suspensão de recursos para a cooperação, bem como, as palavras de Forsythe
(2006, pg 157), os smart sanctions, ou seja, sanções destinadas a grupos determinados por
conta de determinada conduta.
Ainda tratando do uso dos diretos humanos pela política externa dos Estados, Forsythe (2006)
é categórico em associá-lo a autoimagem que uma dada coletividade nacional tem dos seus
próprios valores, a ponto de exportá-los, com o fito de ensinar aos outros uma postura exemplar.
Isso explicaria, por exemplo, no caso americano, os esforços de Washington em pressionar os
outros Estados a concederem liberdades pessoais às suas populações, haja vista ser a liberdade
o valor americano mais internalizado pela sua sociedade, esse argumento, inclusive, é utilizado
como justificativa para invasões a outros estados e própria guerra preventiva em prol dos
Direitos Humanos .
Não sem razão, os Estados de tradição liberal e não liberal, ao contrário de outrora, incluem nas
suas estratégias de política externa, quase que obrigatoriamente, posicionamentos públicos na
seara dos Direitos Humanos. Para tal, o ponto de partida termina sendo os seus históricos, os
seus nacionalismos, a sua autoimagem conformada pelos olhos da opinião pública, bem como,
os interesses econômicos em jogo. Esses fatores, por certo, determinarão se a política de Estado
em matéria de Direitos Humanos será mais ou menos ativa, mais ou menos confiante ou
assertiva ou mais ou menos defensiva (FORSYTHE, 2006).
Ainda pensando em termos de ética e política, uma observação perspicaz de Donnelly (1986)
nos convida a uma reflexão cuidadosa quanto ao poder de influência dos elementos morais em
relação aos interesses políticos e econômicos em matéria de Direitos Humanos. Para este autor,
os interesses morais, por serem menos “reais” que os interesses materiais, terminam sendo
menos tangíveis e, portanto, levam séria desvantagem em relação à política, onde os objetivos
são barganháveis. Por outro lado, levam também desvantagens, na medida em que são mais
fáceis de serem perdidos no baralho dos policymakers, sobretudo porque são mais subjetivos e,
portanto, mais facilmente manipuláveis.
Isso nos leva a crer que, em que pese o componente ético ser um dado relevante, meritório e
necessário nos processos de internacionalização dos Direitos Humanos, ele está longe de ser o
principal elemento desta diplomacia que ganha corpo na conjuntura política recente. Nela, a
politização e a lógica de interesses parecem influenciar mais nos processos decisórios da ação
pública do que necessariamente os componentes éticos em questão.
Entende-se que o sistema internacional é formado por uma série de regimes (issue-area)
preocupados em regular questões relevantes no plano internacional, sendo, desta maneira, de
grande valia para a formação de alguma forma de regulação na anarquia do sistema internacional
e, assim, criar espaços para a formulação de uma agenda de governança e regulações
internacionais (DONNELLY, 1986; ROSENAU et al, 2000). Dessa forma, a ideia de existência de
regimes é aceita, praticamente, por todas as teorias das relações internacionais, diferenciando-
se, contudo, quanto ao seu grau de entendimento, relevância, função, existência de assimetrias,
tipos de problemas regulados e abrangência para a condução da política internacional.
Desse modo, a ideia de que existe um regime de Direitos Humanos nos fornece a justa dimensão
dos aparatos institucionais, bem como os espaços de politização e utilitarismo que circundam
esse edifício dos Direitos Humanos. Edifício que não representa a totalidade das expectativas
dos atores, mas que, todavia, expressa alguma dose de consensos, pactos e cumplicidades.
Para pensar o Regime de Direitos Humanos na sua faceta mais central e internacional,
necessário se faz lançar nossos olhares para os aparatos institucionais forjados pelo sistema
ONU. Nele habita, com certeza, o cerne desse regime de proteção que nascera
entusiasticamente no pós-guerra, se desenvolvera de forma polarizada e politizada ao longo da
guerra fria e nos chega aos dias de hoje com todos os seus acertos e enganos, méritos e
deméritos, grandezas e caricaturas.
É justamente no projeto de proteção arquitetado pelo sistema ONU que teremos uma macro
visão dos Direitos Humanos construída nessa arena que comporta a participação dos Estados,
mas também a militância profissional de uma burocracia internacional (que aprendeu seu ofício
a partir da prática cotidiana das agências internacionais), a participação dos grupos de pressão
(em especial, a sociedade civil, através dos seus aparatos institucionais não governamentais),
enfim, a formação de uma opinião pública internacional e do internacional.
Para efeitos didáticos, realizaremos aqui uma divisão temporal meramente ilustrativa desse
processo evolutivo dos Direitos Humanos ao longo dos quase setenta anos que nos separa
desde a Declaração de 1948 até os dias de hoje.
Nota
1) Essa é a conceituação mais adotada para Regimes, ela é da cepa de Krasner (1982). A teoria
dos regimes é um campo prático teórico que passa a ganhar fôlego nos estudos sobre as
relações internacionais a partir da década de 1970. Assim, os teóricos das relações
internacionais, sobretudo de matriz americana, passarão a desenvolver uma literatura muito
preocupada, justamente, com a série de aparatos institucionais criados no pós-guerra que
regularão o sistema.
3.1 1° momento: A construção da Carta Internacional de Direitos Humanos
O grande ponto de partida é juntamente a Declaração de Direitos Humanos de 1948, documento
muito mais declaratório do que vinculante, se do ponto de vista do tratado internacional não
obriga os países signatários a se vincularem em sua totalidade, ao menos, do ponto de vista
simbólico, criou para o mundo um estatuto universal a ser seguido em matéria de Direitos
Humanos, com regramentos do que seriam os direitos mínimos em matéria de dignidade
humana. A Declaração de 1948 inspirou a formulação de dois tratados internacionais, quais
sejam, o pacto de direitos civis e políticos e o pacto de direitos econômicos e sociais. São
justamente esses três documentos que formarão o que aqui denominamos por Carta
Internacional de Direitos Humanos, um marco normativo seminal da gramática de Direitos
Humanos no mundo contemporâneo.
A razão de termos uma Declaração que se bifurca em dois pactos esta intimamente ligada a
atmosfera vivida à época do pós guerra. Muito embora escrito em uma época de busca de
consensos em um mundo saído dos horrores do holocausto, a construção da noção de Direitos
Humanos, em verdade, encontrou na sua formulação um terreno profundamente tensionado por
uma guerra ideológica entre dois modelos de Estado, quais sejam, o Estado Capitalista e o
Estado Comunista.
Um pouco mais sobre os efeitos da guerra fria na formulação da Declaração de Direitos
Humanos
Nos processos de negociação da Carta de Direitos Humanos, o conflito leste-oeste dividiu a
noção de Direitos Humanos em duas vertentes. Do lado do primeiro, a garantia expressa e
aguerrida dos direitos civis e políticos, expressão do sistema de liberdades próprio do capitalismo
norte americana, do outro, os direitos econômicos, sociais e culturais, orgulho da ideologia
socialista propugnada pelo bloco liderado pela antiga União soviética. Esses dois polos dos
Direitos Humanos, por sua vez, só conseguirão ser escritos dentro de uma lógica de hard law a
partir de 1966, com a aprovação de dois grandes pactos internacionais, estes, sim, dotados de
algum poder de constrangimento para os Estados pactuantes.
Esse debate ideológico em torno da hierarquia dos Direitos Humanos terão desdobramentos na
evolução desses direitos e, sobretudo, no modo como eles nos chegam aos dias de hoje. Se
por um lado, a indivisibilidade dos DH fora propugnada pelos meios acadêmicos, pela militância
política do movimento de DH e, sobretudo, pela retórica de algumas das agências do sistema
ONU, tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), não restam
dúvidas que nas agendas de cooperação dos Estados e das próprias agências interestatais,
houve prevalência de uma noção em relação à outra. No caso da União Europeia, por exemplo,
é nítida a sua predileção por temáticas ligadas a direitos civis e políticos em relação aos direitos
econômicos sociais e culturais na composição das suas agendas de cooperação para os Direitos
Humanos.
Muito embora as grandes potências da época, Estados Unidos e a União Soviética, tenham
fatiado os Direitos Humanos em dois polos, encarnando assim o respeito e a disputa entre as
suas hegemonias compartilhadas, o certo é que a Declaração Universal, pelo menos do ponto
de vista teórico e retórico, concebeu os Direitos Humanos como indivisíveis, sendo, portanto,
essa divisão em polos uma mera disputa territorial entre esses dois atores.
São justamente os Pactos de 1966 que trarão para o campo do Direito Internacional público dois
documentos normativos importantíssimos no que se referem a vincular os estados signatários.
De um lado o Pacto de Direitos Civis e Políticos e de outro o Pacto sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, ambos, na medida das suas respectivas abrangências, obrigavam os
Estados signatários a manter essas tipologias de Direitos nos seus estados.
3.2 2º Momento: A consolidação normativa da Gramática de Direitos Humanos
Para além da Carta de Direitos Humanos, uma série de convenções internacionais ganhou vida
nos primeiros anos do pós-guerra. Esses documentos representam o processo evolutivo da
agenda de Direitos Humanos no mundo contemporâneo, um movimento que responde aos
clamores do movimento social de Direitos Humanos em todas as suas expressões de luta, tais
como, o gênero, a infância, as comunidades tradicionais, os grupos vulnerabilizados, enfim, toda
sorte de segmentos humanos que de algum modo viram seus Direitos sendo negligenciados na
esfera pública e privada pelas suas respectivas sociedades. Para efeitos de ilustração,
apontaremos, aqui, de modo resumido, algumas dessas convenções internacionais de relevância
significativa para a gramática de Direitos Humanos. Recomendamos para a ampliação dos seus
estudos que leiam na integra esses documentos abaixo citados e que pesquise outros
documentos internacionais que regulem questões atinentes aos Direitos Humanos no site das
Nações Unidas.
Diante desse cenário, Alves (2003) advoga a tese de que os direitos humanos são um tema
global relevante e estratégico, na medida em que as lesões recorrentes desses direitos dentro
dos Estados nação terminam sendo o estopim de conflitualidades e guerras, não interessando
para uma ordem liberal este tipo de instabilidade. Se por um lado, do ponto de vista econômico,
os países ricos ao longo da segunda metade do século XX aprenderam a utilizar-se dos Direitos
Humanos como estratégia para aumentar as condicionalidades imputadas aos estados do
terceiro mundo (e para os países em desenvolvimento) através da cooperação para os DH, por
outro, os países pobres (e em desenvolvimento), também aprenderam a usufruir as bondades
provenientes dessas ajudas cooperantes.
Advogando tese semelhante, Bertrand Badie (2002) em “La diplomatie dês droits de l´homme:
entre éthique et volonté de puissance ” problematizará o jogo dos direitos humanos na ordem
contemporânea. Nesse sentido, os Estados, para além dos fins meritórios dos direitos humanos,
manejarão as suas cooperações para os DHs em prol do aumento dos seus interesses egoístas,
próprios de uma concepção anárquica das relações internacionais. Essa característica, segundo
o autor, também, aplicar-se-á às estratégias regionais de integração, como é o caso da União
Européia, do MERCOSUL, da UNASUL, dentre outros laboratórios de integração.
No âmbito do sistema ONU, a década de 1990 terminou sendo alcunhada como a década das
conferências internacionais de temas sociais, um movimento pelo qual, muitas dessas
conferências tratavam de temas das agendas de Direitos Humanos, do Desenvolvimento e do
Meio Ambiente (ALVES, 2003). Dentre as principais, a fim de aprofundar seus estudos, vale a
pena pesquisar:
Respondendo a essas distintas territorialidades, o sistema ONU com as suas agências temáticas,
são responsáveis por criar e manter uma ambiência de proteção na escala global. Nesse sentido,
espera-se que o sistema ONU realize de modo articulado a proteção e defesa dos preceitos da
Carta de Direitos Humanos, algo que o faz através do monitoramento e a promoção de politicas
públicas globais.
De modo mais específico, mas não menos global, organizações como a OEA (Organizações dos
Estados Americanos), UE (União Europeia) e a UA - Unidade Africana, realizam um sistema de
proteção regionalizado, buscando a estabilidade e a diálogo político com os Estados, a fim de
que estes cumpram o preceituado nas regulações internacionais em matéria de Direitos
Humanos. A existência e a efetividade desses sistemas de proteção regionalizados terminam
por ser verdadeiros termômetros da estabilidade politica das suas respectivas regiões.
No plano dos Estados nacionais, espera-se que as constituições dos Estados garantam a
proteção dos Direitos Humanos dos seus cidadãos, algo que transcende os textos normativos e
deve incluir as políticas públicas de Estado. Por outra via, para que o sistema de proteção seja
verdadeiramente efetivo, no plano local, deve haver seus reflexos diretos na vida dos indivíduos.
Percebe-se assim que os sistemas de proteção são um todo integrado, onde não concorrência
entre eles, mas coexistência, complementaridade e subsidiariedade.
Notas
2) ONU mulheres
http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/
3) http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1394
4 A ação coletiva dos atores internacionais na diplomacia cooperante dos Direitos Humanos
Se por um lado a gramática dos Direitos Humanos se fez construto a partir do hard law e dos
seus respectivos desdobramentos nas cortes internacionais e nos fóruns de monitoramento, por
outro, foram nos enclaves manejados pelo soft law que essa gramática se fez ser percebida
como oportunidade de ganhos econômicos para além dos ganhos humanos e políticos.
Cooperações, ajudas, parcerias, boas práticas, responsabilidades sociais corporativas,
denominações distintas para práticas virtuosas de atores que habitam e concorrem os espaços
do mesmo sistema internacional. Após o consenso de Monterrey, fruto das discussões havidas
em 2002 na Conferência Internacional sobre o Financiamento ao Desenvolvimento, momento
em que ainda se discutia os termos dos financiamentos para os Objetivos do Milênio, a ajuda
pública ao desenvolvimento realizou uma curva ascendente, chegando à cifra de 78,6 milhares
de dólares em 2004, montante que movimentou o mercado da cooperação, criando novas
taxações, linhas de créditos, tudo, para estimular as ajudas. (SMOUTS, 2006).
Essas estratégias, contraditoriamente, ou não, recorrem com muita frequência aos direitos
econômicos, sociais e culturais, que outrora tinham sido motivo de contenda e ideologização
entre os EUA e a URSS no processo de construção das convenções acerca dos Direitos
Humanos4. Nesse sentido, grande parte das agendas de Direitos Humanos, sobretudo as
calçadas no soft law, passarão a ser tópicos de uma agenda maior, a agenda do
desenvolvimento. Não à toa, Direitos Humanos passarão a compor as agendas de cooperação
internacional para o desenvolvimento.
Nessa divisão, os Estados continuam sendo os mais importantes atores do sistema. Ora atuando
como doadores de ajudas, ora como receptores, eles construíram uma ampla cadeia alimentar,
donde as cooperações para o desenvolvimento são retoricamente defendidas como fruto de uma
solidariedade internacional capaz de construir um mundo interdependente e multilateral, desde
que respeitadas as soberanias. Todavia, o doce soft da solidariedade dessas agendas de
cooperação para o desenvolvimento não impede os Estados de elegerem as suas próprias
clivagens, suas contradições bem intencionadas, suas idiossincrasias. Nesse sentido, o lado
amargo das cooperações bem sabe se expressar em condicionalidades, em constrangimentos,
em manipulações e chantagens.
Notas
4) Vale lembrar que nesse episódio, enquanto os EUA advogavam a tese de que era necessário
dois pactos, uma feita que os direitos civis e políticos teriam aplicação imediata, podendo,
inclusive, ser motivo de penalização de estados que os lesionar, ao contrário dos direitos
econômicos e sociais, que teriam natureza mais programática, a URSS e os seus países
alinhados, por sua vez, defendiam a ideia de que apenas um pacto era necessário. Nessa
contenda, os EUA e os países da Europa tiveram mais sucesso, de modos que dois pactos foram
editados. Dois anos após, a Conferência de Teerã realizada em 1968 afirmou quanto a
indivisibilidade e interdependência desses direitos.
5) Esse é um argumento muito corrente em autores como Badie (1995, 2000), Bedin (2001),
Smouts (2006), Devin (2002, 2009).
4.1 Continuação
As Organizações Internacionais, por seu turno, também aprenderam muito rápido quanto aos
usos e abusos do doce-amargo da cooperação para o desenvolvimento. Aprenderam muito bem
a manejar os seus aparatos retóricos e institucionais para apregoar as boas práticas, o caminho
da boa governança, as contenções públicas em prol da boa economia, as reformas das
instituições estatais para se recepcionar o novo capitalismo que adentra o século XXI, enfim,
uma miríade de diagnósticos, relatórios e receituários, donde os Direitos Humanos sempre
ocupam algum tópico dessa agenda mais ampla.
Nesse sentido, assim como os Estados, as Organizações Internacionais souberam muito bem
como instrumentalizar os Direitos Humanos em prol das suas agendas programáticas. Ora
retirando o seu conteúdo crítico e valorativo, ora defendendo uma concepção bastante abstrata
e desmaterializada da causa, ora reificando campanhas internacionais de curto e médio alcance
efetivo, as Organizações Internacionais, ao mesmo tempo em que ajudam a compor os acertos
e os enganos do multilateralismo conjugado até aqui, parecem perder a oportunidade de propor
mudanças efetivas na agenda do desenvolvimento, sobretudo no que concerne a condução dos
Direitos Humanos. Desse modo, assim como boa parte das metas estabelecidas nas convenções
sociais havidas no seio da ONU na década de 1990, vinte anos após, parecem não chegar aos
seus resultados estabelecidos, as Metas do Milênio dos anos 2000, muito provavelmente
também não conseguirão garantir o mínimo existencial para os excluídos do planeta. Essas são
as marcas de um jogo do internacional cuja retórica, o marketing dos discursos políticos e os
resultados publicizados pela “mídia oficial global” não coadunam com as práticas reais, com os
resultados efetivos, com o que se tem de concreto. Nesse jogo, os usos acríticos das estatísticas,
dos métodos quantitativos e dos positivismos científicos ajudam a mascarar, a ampliar, a ludibriar
e a manipular uma opinião pública internacional muito bem noticiada de fatos internacionais, mas
profundamente desinformada dos seus contextos.
Diante desses dilemas éticos, algo de mais profundo e revolucionário parece emergir do
comportamento político dos movimentos sociais que se transnacionalizam, comportamentos
esses que se reverberam na vivência e na compreensão dos Direitos Humanos. Ao que pese
essa ser uma zona cinzenta onde é quase impossível se excluir as organizações não
governamentais já institucionalizadas, esse ambiente dos movimentos sociais transnacionais
sugerem um apreço mais visceral às suas matrizes principiológicas, aos seus ideários de mundo.
Esses atores portam a narrativa de que outro mundo é possível, seja pela reforma das
instituições vigentes, seja pela completa reinvenção desse sistema internacional historicamente
excludente e corporativo. Entre o não uníssono para a globalização hegemônica, esses
movimentos sugerem conjugar uma diversidade de meios e modelos alternativos para uma
sociedade mundo distinta dessa que nos está posta 6. Nela é prometida a possibilidade de
completa vivência das alteridades, da solidariedade entre todos os povos do planeta, do
cosmopolitismo, do multiculturalismo.
Nota
6) Vide a leitura de Kingsnorth (2006), “Um não, muitos sins”, um ensaio jornalístico no qual o
autor narra as suas vivências e impressões sobre os movimentos da contestação transnacional.
A partir desse título, o autor explicita o grande mote da contestação, ou seja o não à governança
hegemônica. Todavia, as alternativas, os sins, são múltiplos, pois múltiplos são os atores e
organizações que os professam.
4.2 Continuação
As Empresas Transnacionais também inventaram para si o discurso da solidariedade, a ideia de
“responsabilidade social corporativa”, lançando-se, assim, para o doce mundo amargo da
cooperação para o desenvolvimento. Doce mundo que lhes permite no Norte o lucro publicitário
com as clivagens sociais do Sul, mas lhes permite, também, a abertura de todas as fronteiras,
de todas as barreiras desse mundo patológico cujos encaminhamentos do internacional cada
vez mais orientam, intensificam e reiteram os dramas humanos vivenciados nos ambientes
locais. Enquanto no Norte a monotonia da vida segura sem margens para inovações e
criatividade, no Sul, fome, miséria, violência e exclusão dão a tônica de um mundo no qual as
grandes corporações são fluidas e, portanto, cada vez menos comprometidas e
responsabilizáveis para com os ambientes locais nos quais atuam (BAUMAN, 1999). É bem
verdade que, por detrás dessas polarizações, o Norte também convive com as suas mazelas
locais (embora menos graves e prementes), ao passo que o Sul também gera, em meio a tantas
contradições do desenvolvimento econômico desigual, suas riquezas e fortunas...
À luz deste argumento, as “responsabilidades sociais corporativas” têm muito pouca capacidade
de substituir os antigos pactos sociais até então fiados pelo Estado-providência (ao menos nos
Estados que em algum momento comungaram desses pactos) e pelo modelo do Estado-
desenvolvimentista. Muito embora componham significativamente os fundos da cooperação para
o desenvolvimento (legitimadas pela aliança forjada, no seio da ONU, em torno do Global
Compact7), seja de matriz governamental, seja de matriz não governamental, não se pode olvidar
que as Empresas são guiadas pelas possibilidades de lucros reais, donde não se é razoável
fazer confiança nessa modalidade de ajuda, em que pese não ser também razoável negligenciá-
la. De todo modo, melhor contar com as facetas missionárias das Empresas Transnacionais, às
suas facetas mais obscuras dos ganhos a qualquer custo, como por exemplo, dos trabalhos
infantis, dos baixos salários, dos trabalhos forçados, dos paraísos fiscais, das lavagens de
dinheiro, enfim, das cumplicidades e práticas escusas que oportunizam a depreciação da
condição humana e, consequentemente, dos Direitos Humanos.
Por fim, os indivíduos internacionais também participam desse doce amargo soft mundo da
cooperação para o desenvolvimento. Alguns deles, na qualidade de celebridades, angariam
fundos e dividendos em prol das grandes causas, alardeando (ou não), assim, o mérito de
garantir alguma dose de dignidade para grupos vulneráveis do planeta, a exemplo das crianças
aidéticas e refugiadas da África ou dos eventuais apoios às populações famintas do Haiti. Outros,
por sua vez, na condição de trabalhadores da burocracia do internacional devotam, sim, parte
considerável das suas vidas em prol de causas humanas que, de fato, acreditam possuir algum
poder de ingerência. Nessa condição, empreendem ações, idealizam estratégias de ajuda,
empoderam sujeitos, enfim, tentam utilizar-se das estruturas que lhes estão às mãos para
realizar transformações, ainda que pontuais e estanques. Esses indivíduos internacionais,
célebres ou anônimos, pontuam a voz do ator em relação à racionalidade das grandes agências
que movimentam o sistema, o Davi ator que se impõe ao Golias estrutura, uma luta que a ciência
política ainda titubeia quanto aos seus resultados. De todo modo, eles não deveriam ser
negligenciados no seu poder de proposição e ação, nas suas boas intenções, no seu papel de
amortizador das impessoalidades do sistema.
Todo esse panorama ilustrado parece ser a marca de um tempo onde vige aquilo que Oliveira
(2004) caracteriza por novas configurações assumidas pelo Estado, qual seja, a junção de
neocorporativismos e de políticas públicas. Na cena internacional esses elementos se
reproduzem a partir da disposição desses atores em torno dos pactos em prol dos seus
respectivos interesses (daí os corporativismos), interesses esses que se vêem materializados a
partir das agendas da cooperação para o desenvolvimento (as políticas públicas de alcance
internacional). Esse cenário, em que pese todas as suas contradições, embates e idiossincrasias,
coaduna perfeitamente com esse ambiente político internacional que nos apresenta a busca pela
legitimidade dos consensos, a porosidade das soberanias e a existência de aparatos práticos,
retóricos e midiáticos, todos eles direcionados para aplacar e publicizar os danos colaterais do
desenvolvimento selvagem, ou de sua ausência.
Notas
7) O Global Compact é um programa no âmbito das Nações Unidas lançado em 2000 por Kofi
Annan no Fórum Econômico Mundial que tem como objetivo a parceria da ONU junto às
Empresas com o fito de atuarem conjuntamente em determinadas áreas, tais como, direitos
humanos, práticas laborais, proteção ambiental e anti- corrupção. Para aprofundamento no tema,
recomenda-se a tese de doutoramento do professor Daniel Aragão que de modo diligente e
brilhante analisa a evolução dos diálogos entre as agências do Sistema ONU e a legitimação do
capital transnacional, movimento que tem seu apogeu nos processos de criação e gestão do
Global Compact. ARAGÃO, Daniel. Responsabilidade como legitimação: capital transnacional e
governança global na Organização das Nações Unidas. Tese de doutorado, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Instituto de Relações Internacionais, 2010.
No âmbito das conferências internacionais, duas conferências são ilustrativas desse movimento
no âmbito do direito internacional público dos Direitos Humanos, quais sejam: A Convenção
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979 e a
Conferência de Beijing (Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz)
de 1995.
De modo ainda tímido do ponto de vista de regulações internacionais específicas, o público LGBT
também é sujeito de proteção de Direitos no âmbito do sistema ONU. Nesse sentido, lésbicas,
gays, bissexuais e transgêneros são portadores dos mesmos direitos usufruídos por toda pessoa
humana e, de acordo com documento recente das Nações Unidas essa proteção “apoia-se em
dois princípios fundamentais que sustentam o regime internacional de direitos humanos:
igualdade e não discriminação” (NAÇÕES UNIDAS, 2013).
O fato dos direitos inerentes ao gênero serem objeto de proteção da gramática dos Direitos
Humanos não impede que iniquidades ainda sejam perpetradas nessa arena. Não sem razão,
alguns temas ainda são imensamente problemáticos no âmbito do sistema internacional de
proteção, uma vez que ainda encontram lacunas, negligências, resistências, cinismos e
perversidades tanto dentro da estrutura global, como, também, nos âmbitos, regionais, nacionais
e locais.
Dentre essas agendas que ainda carecem profunda atenção por parte do Regime Internacional
de Direitos Humanos, aponta-se: violência doméstica, estupro, vulnerabilidade das meninas,
minorias sexuais, mutilação genital feminina, perseguição sexual, tráfico de mulheres, meninas
e travestis. O sistema internacional dos Direitos Humanos ainda carece de nos legar um sistema
de proteção que responda aos clamores dos movimentos feministas e LGBTT no que concerne
a forjar um sistema de proteção que seja efetivo no sentido de garantir o exercício pleno de
direitos humanos independente do gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
6 REFERÊNCIAS
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(Collection Repères: 335).
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vol 40, nº 3 (Summer, 1996), pp 599-642
KINGSNORTH, Paul. 2006. Um Não, Muitos Sins - uma viagem aos centros da antiglobalização.
Rio de Janeiro: Editora Record
ROSENAU, James N., Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial. In: Rosenau,
James N. e Czempiel, Ernst-Otto. Governança sem governo: ordem e transformação na política
mundial. Brasília: Ed. Unb e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
Internacional
Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948, por nós já abordada na Unidade 1,
sempre apareça mencionada/elogiada enquanto marco relevante dentro da visão sobre direitos
humanos que herdamos (fazendo uma autocrítica, eurocêntrica, universalista
homogeneizadora), constatamos, até a década de 70 do século XX, um grave silêncio de gênero,
em cujas dinâmicas ideologicamente dominadoras, a mulher estava “diluída” num certo Sujeito
Universal que servia para falar ou se reportar a toda e qualquer “pessoa humana”.
Essa autora, em outro trabalho (PIOVESAN, 2003), afirma que, por tal razão, até as primeiras
declarações e pactos internacionais, vigorava um sistema geral de proteção aos direitos
humanos, em cujo cerne, estava a noção generalizadora de pessoa ou ser humano e, a partir
dos tratados ou convenções da década de 70 do século XX, surge o chamado sistema especial
de proteção aos direitos humanos. Esse leva em conta um/a sujeito/a de direitos, sem cuja
consideração de suas variadas dimensões específicas ou marcadores sociais, jamais se poderia
falar em ética, justiça, redistribuição e reconhecimento de identidades no plano internacional
(FRASER, 2001, p. 55).
As três conferências e demais eventos ocorridos em tal intervalo de anos foram fundamentais
para que as pautas sobre os direitos das mulheres ganhassem repercussão internacional,
ampliando a visão dos organismos internacionais sobre as relações de gênero nas diversas
sociedades, ainda marcadas por muito silêncio, preconceito e discriminação contra as
mulheres. As Nações Unidas no Brasil esclarecem que,
Cinco anos depois da conferência da Cidade do México, a Segunda Conferência Mundial sobre
a Mulher foi realizada em Copenhague (Dinamarca), em 1980. O Programa de Ação resultante
pediu mais medidas nacionais para assegurar o domínio e o controle de propriedade das
mulheres, bem como melhorias nos direitos das mulheres em relação à herança, à guarda dos
filhos, e à perda da nacionalidade. Em 1985, a “Conferência Mundial para a Revisão e Avaliação
das Realizações da Década das Nações Unidas para a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e
Paz” foi realizada em Nairóbi (Quênia). Ela foi convocada num momento em que o movimento
pela igualdade de gênero finalmente ganhou verdadeiro reconhecimento global, e 15 mil
representantes de organizações não governamentais participaram em um Fórum paralelo de
ONGs. O evento foi descrito por muitos como o “nascimento do feminismo global”. Percebendo
que os objetivos da Conferência da Cidade do México não foram devidamente cumpridos, os
157 governos participantes adotaram a Estratégias Prospectivas de Nairóbi para o Ano 2000.
Elas quebraram barreiras ao declararem todos os assuntos como sendo assuntos das mulheres.
Um resultado inicial da Conferência de Nairóbi foi a transformação do Fundo Voluntário para a
Década da Mulher no Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, UNIFEM,
agora parte da ONU Mulher. (ONU BRASIL, 2017, p. 1)
1.1 Continuaação
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher/1979,
ao passo que obteve um número expressivo de adesões (186 países signatários), foi a que mais
recebeu ressalvas ou reservas por parte dos estados signatários, visto que suas leis internas, a
exemplo dos códigos civis, por ainda refletirem literalmente o patriarcado e com alarmante
naturalidade, eram incompatíveis com o conteúdo de alguns artigos do referido documento
internacional.
Assim, por exemplo, quando o Brasil tornou-se signatário dessa Convenção em 1984,
apresentou reservas aos seus artigos 15 e 16, devido ao conteúdo preconceituoso do seu então
em vigor Código Civil (trataremos disso na Unidade 3). Outros países que também apresentaram
reservas levaram o Comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, conhecido por Comitê CEDAW, em sua 13ª sessão em 1994, a afirmar o
seguinte na sua Recomendação Geral nº 21:
O Comitê observou com alarme o número de Estados Partes que fizeram reservas à totalidade
ou parte do artigo 16, especialmente quando uma reserva também foi inserida no artigo 2,
alegando que a conformidade pode entrar em conflito com uma visão comum da baseada na
família, nas crenças culturais ou religiosas ou no status econômico ou político do país. 42. Muitos
desses países acreditam na estrutura patriarcal de uma família que coloca um pai, marido ou
filho em uma posição favorável. Em alguns países onde os pontos de vista fundamentalistas ou
outros extremistas ou dificuldades econômicas têm incentivado um retorno aos valores e
tradições antigas, o lugar das mulheres na família se deteriorou drasticamente. Nos outros, onde
reconheceu que uma sociedade moderna depende do seu avanço econômico e do bem geral da
comunidade ao envolver todos os adultos igualmente, independentemente do gênero, esses
tabus e ideias reacionárias ou extremistas foram progressivamente desencorajados. 43. Em
consonância com os artigos 2º, 3º e 24º, em particular, o Comitê exige que todos os Estados
Partes progredissem progressivamente até um estágio em que, por seu decidido desânimo das
noções sobre a desigualdade das mulheres no lar, cada país retirará a sua reserva, em particular
os artigos 9, 15 e 16 da Convenção. 44. Os Estados Partes devem desencorajar resolutamente
quaisquer noções de desigualdade de mulheres e homens que sejam afirmadas por leis, por lei
religiosa ou privada ou por costume, e avançar até o estágio em que as reservas, em particular
o artigo 16, serão retiradas. (ONU Mulher, 1994, p. 1)
A Convenção dos Direitos Humanos da ONU em Viena/1993 é outro marco jurídico internacional
relevante, por incorporar, em seu documento final, a discriminação e a violência contra as
mulheres, além de ratificar, à esteira de Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
que as violações a tais direitos não se restringem a uma questão interna ou doméstica de cada
país. Pela sua universalidade e indivisibilidade, são assuntos de interesse internacional. Daí
Piovesan (2012, p. 75) afirmar que,
À luz da internacionalização dos direitos humanos, foi a Declaração de Direitos Humanos de
Viena de 1993 que, de forma explícita, afirmou, em seu parágrafo 18, que os direitos humanos
das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos
universais. Esta concepção foi reiterada pela Plataforma de Ação de Pequim, de 1995. O legado
de Viena é duplo: não apenas endossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos
invocada pela Declaração Universal de 1948, mas também confere visibilidade aos direitos
humanos das mulheres e das meninas, em expressa alusão ao processo de especificação do
sujeito de direito e à justiça enquanto reconhecimento de identidades. Neste cenário, as
mulheres devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social.
A referida Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, sediada na capital da Áustria em 1993,
é percebida como um aprimoramento especial do quanto declarado pelas Nações Unidas em
1948, tocando nos principais temas e desafios atinentes aos direitos humanos para as
sociedades e, embora o seu conteúdo ultrapasse, em muito, a questão da dignidade das
mulheres como sujeitas de direito, o fato de o artigo 18 ter sido bem claro ao declarar que “os
direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e
indivisível dos direitos humanos universais”8 é divisor de águas quanto à silenciada perspectiva
de que os direitos das mulheres eram, também, direitos humanos merecedores do mesmo
sistema de reconhecimento, declaração e, sobretudo, proteção contra violações. O referido artigo
da Convenção de Viena/1993 assim declara:
18. Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral
e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação das mulheres, em condições
de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e
internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação, com base no sexo, são
objetivos prioritários da comunidade internacional. A violência e todas as formas de abuso e
exploração sexual, incluindo o preconceito cultural e o tráfico internacional de pessoas, são
incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana e devem ser eliminadas. Pode-se
conseguir isso por meio de medidas legislativas, ações nacionais e cooperação internacional
nas áreas do desenvolvimento econômico e social, da educação, da maternidade segura e
assistência à saúde e apoio social. Os direitos humanos das mulheres devem ser parte
integrante das atividades das Nações Unidas na área dos direitos humanos, que devem incluir
a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher. A Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos insta todos os Governos, instituições governamentais e não
governamentais a intensificarem seus esforços em prol da proteção e promoção dos direitos
humanos da mulher e da menina. (ONU Mulheres, 2013, p.5-6)
Nota
8) Acesso o conteúdo dessa Declaração por meio do link: http://www.onumulheres.org.br/wp-
content/uploads/2013/03/declaracao_viena.pdf
1.2 Continuação
Quando esse artigo afirma que é possível “conseguir isso por meio de medidas legislativas,
ações nacionais e cooperação internacional nas áreas do desenvolvimento econômico e social”,
estava influenciando os países a criarem marcos jurídicos e políticos especificamente voltados
para a equidade de gênero e o maior respeito/proteção às mulheres em seus territórios,
fortalecendo, consequentemente, uma sistemática internacional em constante aprimoramento.
Eva Blay (2008, p. 23) entende a Declaração de Viena como uma página relevante, pois,
Até então, os Direitos as Mulheres não tinham um capítulo específico no âmbito dos Direitos
Humanos. Ao cunhar a frase “os direitos das mulheres também são Direitos Humanos” e ao
discutir esses direitos em âmbito internacional, finalmente o combate à violência contra a mulher
foi incorporado às ações propostas pelo setor de Direitos Humanos da ONU. A legitimidade
recebida veio se associar a um vasto campo de atuação prática e acadêmica do movimento
feminista no combate à violência contra a mulher.
Um ano após essa Conferência Mundial em Viena, ocorreu, no âmbito da Organização dos
Estados Americanos/Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1994, um evento que
impactou muito positivamente na defesa da integridade das mulheres, visibilizando as violências
contra elas cometidas como violações aos seus direitos humanos (violências que deveriam ser
prevenidas, punidas e erradicadas pelos países signatários; dentre eles, o Brasil, que sediou o
evento em Belém do Pará): a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência Contra a Mulher, também conhecida como "Convenção de Belém do Pará" (1994).
O seu conteúdo9, adotado pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em
6 de junho de 1994 e ratificado pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, é singularmente
importante por, de maneira inédita, caracterizar como violência contra a mulher “qualquer ato ou
conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico
à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.” (art. 1) De igual sorte, dimensiona que
tal violência pode ser física, sexual, psicológica e ocorrer no âmbito do pessoal ou íntimo (que
também é político e deve ser visibilizado: família, seara doméstica, relações de afeto, etc) e no
âmbito público (cometida por qualquer pessoa, no seio das relações sociais mais amplas, por
agentes estatais, etc).
Nota
9) Acesse-o por meio do link: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm
10) Você pode acessá-lo por meio do link: http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-
content/uploads/2012/11/SPM2006_CEDAW_portugues.pdf
11) Saiba mais a respeito de tal Protocolo,
acessando: http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/protocol/text.htm
1.3 Continuação
Em 13 de março de 2001, o Brasil assinou o Protocolo Facultativo, ratificando a sua adesão em
13 de junho de 2002. Em 13 de setembro desse mesmo ano, institui o Decreto 4377 12,
confirmando ser signatário da CEDAW e mantendo somente uma reserva, ao o art. 29 da mesma,
que versa sobre como proceder em caso de eventual controvérsia entre dois ou mais estados
partes relativa à interpretação ou aplicação da Convenção. Souza (2009, p. 10) esclarece que o
Comitê CEDAW enviou recomendações ao Estado Brasileiro no sentido de adequar
A sua legislação interna à CEDAW, de modo que combatesse a discriminação de gênero, pois
eram vigentes muitas leis discriminatórias. É importante lembrar que o Estado Brasileiro
demorou 17 anos para enviar os relatórios previstos no artigo 18 da CEDAW. As principais áreas
de preocupação e recomendações do Comitê, emitidas após o envio de cinco relatórios
brasileiros em 2002, versaram sobre a inexistência de igualdade jurídica entre mulheres e
homens; a inobservância do poder Judiciário em relação ao cumprimento dos tratados
internacionais, nos quais o Brasil é signatário; a existência de intensas disparidades regionais
econômicas e sociais, em especial no acesso à educação, emprego e serviços de saúde,
estando impedido o cumprimento uniforme da CEDAW; o Código Penal, em 2003, ainda continha
conteúdo discriminador das mulheres, como o termo “mulher honesta”; a aplicação da tese da
“legítima defesa da honra” para homens acusados de praticarem a violência contra a mulher, o
que constitui explícita violação aos direitos humanos; o impacto da pobreza com relação às
mulheres brasileiras afrodescendentes e indígenas, chefes de famílias, bem como de outros
grupos que vivem à margem da sociedade; a persistência da violência contra mulheres e
meninas, incluindo-se aí a violência doméstica e sexual; o aumento das taxas de incidência de
várias formas de exploração sexual e tráfico de mulheres e meninas no Brasil; com a participação
de policiais e com sua conivência com a exploração e tráfico; ausência de dados desagregados
por sexo e informação insuficiente sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes de rua;
a sub-representação das mulheres em todos os níveis e instâncias de poder decisório, bem
como em posições qualificadas em algumas áreas da vida pública e profissional, como no
judiciário e nas relações exteriores, enfim, nos mais altos escalões; a participação das mulheres
nos mais altos cargos seja muito menor que a dos homens; a alta taxa de analfabetismo e baixa
porcentagem de mulheres com formação educacional que ultrapasse a escola primária; a sub-
representação das mulheres no ensino superior; a discriminação da mulher no mercado de
trabalho; altas taxas de mortalidade materna, em particular nas mais remotas regiões onde o
serviço de saúde é bastante limitado; a ausência de dados sobre as mulheres rurais no que
concerne à raça e etnia, entre outras. Vale lembrar que, a cada preocupação, o Comitê CEDAW
mencionou uma recomendação ao Estado Brasileiro.
Outro marco internacional importante na luta pelos direitos das mulheres brotou da Quarta
Conferência Mundial sobre as Mulheres realizada em Pequim, China, em 1995: a Declaração de
Beijing e sua Plataforma de Ação de Pequim 13, que reafirmou os direitos das mulheres como
direitos humanos e estabeleceu claros compromissos com ações específicas para garantir o
respeito a tais direitos, por meio da seguinte missão:
A Plataforma de Ação é uma agenda para o empoderamento das mulheres. Visa acelerar a
implementação das Estratégias de Nairobi para o avanço da mulher pela remoção de todos os
obstáculos à participação ativa das mulheres em todas as esferas da vida pública e privada
através de uma participação plena e equitativa na tomada de decisão econômica, social, cultural
e política. Isso significa que o princípio do poder e da responsabilidade compartilhados deve ser
estabelecido entre mulheres e homens em casa, no local de trabalho e nas comunidades
nacionais e internacionais mais amplas. A igualdade entre mulheres e homens é uma questão
de direitos humanos e uma condição para a justiça social e também é um pré-requisito
necessário e fundamental para a igualdade, o desenvolvimento e a paz. Uma parceria
transformada baseada na igualdade entre mulheres e homens é uma condição para o
desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas. Um compromisso sustentado e a longo
prazo é essencial, para que as mulheres e os homens possam trabalhar juntos por si mesmos,
por seus filhos e pela sociedade para enfrentar os desafios do século XXI. (ONU Mulheres, 1995,
p. 1)
O seu conteúdo incorpora marcos importantes anteriores, como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos e a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher (produzido pelo Comitê Cedaw, 1979). Segundo a Agência Câmara (BRASIL,
2005, p. 1),
Assim, diferente de 17 países da América Latina que já possuíam leis específicas de combate
às violências contra as mulheres nos âmbitos familiar, doméstico e social, o Brasil teve que ser
compelido a repensar a sua omissão quando, após pressões do movimento feminista e
denúncias, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no ano de 2001, pela
sua negligência e omissão com relação às violências domésticas/familiares contra as mulheres,
tendo por parâmetro específico o caso de Maria da Penha Fernandes15.
Ela própria, juntamente com o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê
Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), peticionaram denunciando o
Brasil perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com fundamento nos artigos 44
e 46 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no artigo 12 da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Segundo a Organização dos Estados Americanos, nosso país não estava atendendo aos
deveres por ele assumidos como signatário dessas duas convenções e, na medida em que as
ratificou, necessitava aprimorar mecanismos internos, principalmente no âmbito do Poder
Judiciário, para que os constantes casos de agressões aos direitos humanos das mulheres, por
atos de violência doméstica e familiar, por exemplo, não caíssem no “limpo da impunidade”.
Referindo-se ao caso Maria da Penha, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmou:
Quanto ao fundo da questão denunciada, a Comissão conclui neste relatório, elaborado segundo
o disposto no artigo 51 da Convenção, que o Estado violou, em prejuízo da Senhora Maria da
Penha Maia Fernandes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial assegurados pelos
artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em concordância com a obrigação geral de respeitar e
garantir os direitos, prevista no artigo 1 do referido instrumento e nos artigos II e XVII da
Declaração, bem como no artigo 7 da Convenção de Belém do Pará. Conclui também que essa
violação segue um padrão discriminatório com respeito a tolerância da violência doméstica
contra mulheres no Brasil por ineficácia da ação judicial. A Comissão recomenda ao Estado que
proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade
penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para
determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o
processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e
pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do
Estado ante a violência doméstica contra mulheres. (OEA, 2001, p. 1)
Foi por conta de tal decisão condenatória (para que o estado brasileiro concluísse rápida e
efetivamente a ação penal envolvendo o agressor de Maria da Penha, Marco Antônio
Heredia Viveiros) que, em 31 de outubro de 2002, após 19 anos de falhas processuais e
consequente impunidade, houve, enfim, a prisão do réu. Além de tal determinação, a Corte
Interamericana ainda determinou que fosse paga, à vítima, uma reparação material simbólica
devido à demora e reiteradas brechas do andamento processual, e que o Brasil promovesse
capacitações em DH aos servidores e servidoras ligados/as ao Poder Judiciário, especialmente
quanto ao conteúdo da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher (“Convenção Belém do Pará”), eis que seu foco principal é a questão da violência
contra a mulher.
Tal lei 11.340 brotou de um sério e embasado trabalho que envolveu representantes do
movimento social feminista, entidades não governamentais de mulheres e representações
governamentais, através da instituição do Decreto 5030 em março de 2004, cujo objetivo, na
esteira de aprimoramento dos marcos legais pelos direitos das mulheres, foi elaborar uma
proposta de medida legislativa, associada a outros mecanismos, visando a coibir as agressões
e violências cometidas diariamente no país contra as mulheres. A proposta foi, portanto,
consubstanciada no projeto que fez nascer a importante Lei Maria da Penha. Como esclarece
Piovesan (2012, p. 85),
Os casos de violência contra a mulher ora eram vistos como mera “querela doméstica”, ora como
reflexo de ato de “vingança ou implicância da vítima”, ora decorrentes da culpabilidade da própria
vítima, no perverso jogo de que a mulher teria merecido, por seu comportamento, a resposta
violenta. Isto culminava com a consequente falta de credibilidade no aparato da justiça. No Brasil,
apenas 2% dos acusados em casos de violência contra a mulher são condenados. No campo
jurídico a omissão do Estado Brasileiro afrontava a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a “Convenção de Belém do Pará” – ratificada
pelo Brasil em 1995. É dever do Estado brasileiro implementar políticas públicas destinadas a
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, em consonância com os parâmetros
internacionais e constitucionais, rompendo com o perverso ciclo de violência que, banalizado e
legitimado, subtraia a vida de metade da população brasileira. Tal omissão deu ensejo à
condenação sofrida pelo Brasil no caso Maria da Penha.
Trouxemos tal condenação do Brasil e a promulgação da Lei Maria da Penha (da qual falaremos
mais na próxima unidade) para, justamente, elucidar que o sistema especial de proteção aos
direitos humanos e as redes que se formam em torno da defesa da dignidade de todas as
mulheres estão interligadas e envolvem dos governos aos movimentos sociais nos diversos
países, sendo que cada marco jurídico e/ou político influencia mutuamente os demais que vão
surgindo, servindo de paradigma e elemento catalisador. Nesse sentido, o que o nosso país
assiste, em matéria de legislação e políticas públicas pela equidade de gênero a partir do ano
2002 especialmente, tem direta correlação com esse reconhecimento internacional dos direitos
das mulheres como direitos humanos universais, indivisíveis e que necessitam ser, muito mais
do que afirmados, efetivamente respeitados.
2 REFERÊNCIAS
BRASIL, Agência Câmara. Declaração de Beijig. Câmara dos Deputados, Brasília,
2005.Disponível em:http://www2.camara.leg.br/agencia/noticias/61261.html. Acesso em:
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12.051: "Maria da Penha Fernandes versus Brasil", 16/04/01. Disponível
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"Convenção de Belém do Pará" (1994). Disponível
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______. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993). Disponível
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PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.
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de Estudantes de Direito e Encontro Regional de Assessoria Jurídica Universitária, 2008.
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SOUZA, Mércia Cardoso de. Os direitos humanos das mulheres sob o olhar das Nações Unidas
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em: http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6095. Acesso em:
20/09/2017.
O Código Civil brasileiro (Lei nº 3.071, de 01/01/1916), anterior ao que hoje temos, vigorou da
primeira década do século XX (1916) ao ano de 2002, isto é, quase cem anos, e o que
concluímos do seu conteúdo é lamentável, estarrecedor em termos de subjugação, preconceito
e rebaixamento das mulheres tendo por centro de mando e poder a figura masculina.
Selecionamos alguns artigos do referido Código (de 1916) para atestar o quanto a legislação não
somente reflete o patriarcado ínsito nas relações sociais, mas o reforça, engessando ou
resistindo a mudanças libertadoras que poderiam já ter ocorrido de há muito em nosso país:
Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: (...) IV - o defloramento
da mulher, ignorado pelo marido.
Art. 220. A anulação do casamento, nos casos do artigo antecedente, ns. I, II e III, só a poderá
demandar o outro cônjuge e, no caso do n. IV, só o marido.
Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I - a representação legal da
família; II - a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido
competir administrar em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto antenupcial (arts.
178, § 9º, I, c, 274, 289, I e 311); III - o direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e
233, n. IV); IV - O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do teto
conjugal (arts. 231, II, 242, VII, 243 a 245, II e 247, III); V - prover a mantença da família,
guardada a disposição do art. 277.
Art. 234. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem
justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as
circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o seqüestro temporário de parte dos
rendimentos particulares da mulher.
Art. 380. Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe da família (art. 233),
e, na falta ou impedimento seu, a mulher.
Art. 383. O filho ilegítimo não reconhecido pelo pai fica sob o poder materno. Se, porém, a mãe
não for conhecida, ou capaz de exercer o pátrio poder, dar-se-á tutor ao menor.
Os acima transcritos artigos 219 e 220 deixam claro o poder dos homens sobre os corpos, a
sexualidade e a vida íntima das mulheres, ao estabelecerem como direito exclusivo deles, na
condição de cônjuges, demandarem judicialmente a anulação do casamento caso descobrissem
ou supusessem que as suas esposas não fossem virgens quando da celebração do casamento.
Tal constatação ou suposição tinha o respaldo legal de constituir um “erro essencial sobre a
pessoa do outro cônjuge”, isto é, um erro essencial sobre a mulher ou esposa por essa ser
“deflorada” e isto, ignorado pelo marido. Sabemos que, embora tal aberração não mais conste
em nossa legislação, o poder de mando e o ilegítimo direito sobre os corpos e afetividades
femininas prosseguem amparados por outras significações e mecanismos atrelados à sistêmica
dominação masculina em nossa sociedade, cujas “assinaturas” dos crimes contra as mulheres
são incontestavelmente parecidas nos mais diversos contextos (SEGATO, 2005).
1.1 Continuação
Quando o art. 233 afirma que “o marido é o chefe da sociedade conjugal”, o Estado não somente
declara e legitima o privado como espaço essencialmente da mulher, mas um espaço no qual,
não mais estando sob o mando ou poder do pai, estará sob o do marido, único capaz de
representar legalmente a família, de fixar ou mudar o domicílio da família, de mantê-la provida
materialmente, de administrar os bens comuns e particulares da mulher, de autorizar a sua
profissão e a sua eventual residência fora do teto conjugal. De tão escravizada sob o respaldo
da referida legislação (art. 234), se a mulher abandonasse a habitação conjugal e a essa se
recusasse a voltar (por mais cruéis as situações injustamente respaldadas por esse mesmo
sistema patriarcal opressor), o marido poderia, sem precisar nada justificar, suspender-lhe a
mantença material e o juiz, inclusive, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido
e dos filhos, o seqüestro temporário de parte dos seus rendimentos particulares. Tudo isto
porque, conforme o art. 380, o marido é que exercia o chamado “pátrio poder”, como reflexo de
já haver sido erigido como chefe da sociedade conjugal (art. 223). A sobreposição de
preconceitos sobre as mulheres era tão vergonhosamente respaldada pela legislação civil, que
um homem engravidar uma mulher e abandoná-la sem qualquer comprometimento posterior era
tão natural como o art. 383 do Código declarar que “o filho ilegítimo não reconhecido pelo pai
fica sob o poder materno”.
De tão preconceituosas e limitadas quanto aos direitos das mulheres eram tais disposições do
Código Civil de 1916, que, quando ratificou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra a Mulher em 1984, o Estado brasileiro teve que
apresentar reservas ao seu art. 15, § 4º (sobre a liberdade igualitária de homens e mulheres
escolherem seu domicílio/residência) e ao seu art. 16, §1º, a, b, c, g e h (sobre a igualdade entre
homens e mulheres no âmbito do casamento e das relações familiares como um todo),
reconhecendo a necessidade de promover modificações em sua legislação. Somente em 1994
(20/12/1994) o Governo brasileiro notificou a ONU, através do Secretário Geral das Nações
Unidas, sobre a extinção de tais reservas, diante da nova ordem constitucional inaugurada em
1988. Ou seja: mesmo com o Código Civil patriarcal e preconceituoso em questão ainda vigendo,
com a promulgação da Constituição Federal em 1988, as disposições civilistas limitadoras (aqui
anteriormente transcritas) à plenitude do respeito dignidade feminina deixaram de fazer sentido,
pois de peso infraconstitucional e colidindo diretamente com o que a CF/88 passou a dizer sobre
relações de gênero, de família, igualdade entre homens e mulheres, dentre outros aspectos que
abordaremos a seguir.
Para tanto, colaborou com força e articulação consideráveis o movimento de mulheres que,
desde a década de 70 do século XX, reivindicava o espaço público como também feminino e,
sem jamais abrir mão das pautas específicas (igualdade nas relações afetivas e familiares,
liberdade quanto aos seus corpos, salários iguais com relação aos homens), foi pioneiro quanto
à anistia política, reforçando a fileira dos demais movimentos e forças contrárias à ditadura militar
instaurada no Brasil em 1964 (SILVA, SM, 2016).
Tudo isso se somou à década dedicada às mulheres a partir de 1975, ano de referência, por
meio de iniciativa da Organização das Nações Unidas, o que fortaleceu o ativismo anti-ditadura
e as lutas contrárias à opressão do patriarcado, por meio do qual gênero se perpetuava um
dispositivo político a serviço dos homens e para os homens, reforçando, sempre que
conveniente, o público como espaço genuinamente masculino e o privado como de atuação
determinante para as mulheres, porque tal “locus” não seria político.
Não há como negar que a Constituição Federal de 1988 seja o principal marco jurídico-político
dos direitos das mulheres no Brasil até o presente, pois as tornou sujeitos de direitos vistos em
suas especificidades, por cujo recorte de gênero, muito embora a igualdade ali proclamada seja
apenas formal, avanços inegáveis têm ocorrido. Mas a luta deve, mesmo, ser contínua.
Embora os marcos legais, como a Constituição Federal de 1988 e a Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006), sejam importantes neste processo, isoladamente não têm a força de barrar as
referidas violações. Servem, sem dúvida, como instrumento punitivo, cumprem também uma
enorme função educacional, mas dependem de outros marcos político-institucionais e sociais
para sua mais plena eficácia/melhor cumprimento e aprimoramento.
Surgiram, após sua criação, mais delegacias em outros estados brasileiros e, logo após o
histórico 6 de agosto de 1985, o número de mulheres agredidas que passaram a recorrer ao
serviço especializado na capital paulista, a denunciar e a falar com a imprensa chamou a atenção
do Estado e da sociedade brasileira. Após três décadas, o estado de São Paulo sozinho já
comportava 131 Delegacias de Defesa da Mulher e, em 2016, havia 14 unidades no estado do
Rio de Janeiro. A primeira unidade baiana foi inaugurada em Salvador, no bairro de Brotas, e o
Estado da Bahia, no ano de 2013, contava com 15 unidades.
Embora um equipamento por demais relevante na luta pelos direitos das mulheres e, sobretudo,
pela preservação de sua incolumidade nos diversos âmbitos da existência (física, psíquica,
moral, sexual), o número de unidades ainda se mostra abaixo da demanda e da complexidade
de um país com cidades de grande porte, com deficiências que atingem uma alta camada de
mulheres de baixo poder aquisitivo, o que lhes compromete, por exemplo, o deslocamento e
outras despesas. Não é ao acaso que a Lei Maria da Pena, nº 11.340/2006, promoveu, nos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, a junção das searas cível e crime,
a fim de facilitar o atendimento às diversas situações de agressão, danos e seus desdobramentos
numa mesma estrutura físico-administrativa.
Tais Juizados são, pois, outros marcos políticos importantes surgidos no Brasil na seara dos
direitos humanos das mulheres, com o objetivo de julgar os casos de violências doméstica e
familiar cometidas contra mulheres, segundo a mencionada Lei 11.340/2006. O primeiro Juizado
de Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher foi instalado, no mesmo ano de promulgação
da Lei Maria da Penha, no Fórum de Brasília-DF, com competência para julgar os casos
ocorridos em Brasília, Núcleo Bandeirante e Guará. Apesar de possuírem o nome “Juizados”,
não se tratam de unidades com característica de Juizados Especiais, visto que, segundo o art.
41 de tal Lei, “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”
(Lei dos Juizados Especiais voltados para casos de menor lesão ou complexidade). Assim como,
acertadamente, para Pasinato e Santos (2008, p.34) as Delegacias da Mulher “constituem ainda
a principal política pública de enfrentamento à violência doméstica contra mulheres”, os Juizados
de Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher complementam este ciclo de marcos políticos
e jurídicos protetivos que, além de relevantes, precisam ser fortalecidos no Brasil.
A partir de agosto de 2017, as Varas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher passam
a ser denominadas, no Estado da Bahia, “Varas de Justiça pela Paz em Casa”. A proponente foi
a desembargadora Nágila Maria Sales Brito, responsável pela Coordenadoria da Mulher do
Tribunal de Justiça Bahia. A aceitação, por unanimidade durante a sessão do Tribunal Pleno em
9 de agosto de 2017, tem, dentre suas “razões unânimes” a nosso sentir, tanto a ausência de
“lentes de gênero” quanto a pouca profundidade no trato para com as questões que envolvem
as mulheres nos contextos de violências sobrepostas fora e dentro dos ambientes domésticos e
familiares.
Outro marco político a ser destacado são as Secretarias de Políticas para as Mulheres (SPM)
nos diversos níveis da federação. O ano de 2003, início do primeiro mandato do presidente Lula,
é emblemático pelo fato de o governo sinalizar e criar políticas públicas de repercussão social
ampla e com recorte nas questões de gênero. Houve, por exemplo, regimentalmente, a
transferência da então chamada Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (vinculada ao
Ministério da Justiça) para a Presidência da República, quando nasce, então, a Secretaria de
Políticas para as Mulheres (SPM), um equipamento ou órgão fundamental, como marco político,
na soma contra as formas de preconceito, discriminação e violência contra as mulheres.
No âmbito federal, a SPM teve status jurídico de ministério até o ano de 2015 (quando Eleonora
Menicucci era sua ministra-chefe no governo Dilma Rousseff) e aquilo a que formalmente se
propunha também contemplava políticas públicas de trabalho, saúde, educação, cultura,
autonomia e liberdade para as cidadãs brasileiras atravessadas pelos vários marcadores sociais,
muitos dos quais interseccionados (raça, orientação sexual, transgeneridade, classe social,
deficiência, etc). Em 2 de outubro de 2015, tal Secretaria foi absorvida pelo criado Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). Esse, portanto, unia a
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Direitos Humanos e a
Secretaria de Políticas para as Mulheres. Lamentavelmente, em maio de 2016, o presidente
Michel Temer extinguiu o referido Ministério e remeteu o seu leque de atuações,
regimentalmente, ao Ministério da Justiça, que teve seu nome modificado para Ministério da
Justiça e Cidadania.
Outros exemplos de marcos políticos são o programa Mulher, Viver sem Violência, instituído pelo
Decreto Federal nº 8.086, de 30 de agosto de 2013, e o programa Casa da Mulher Brasileira,
criado pelo governo Dilma em janeiro de 2015. Seus objetivos vão desde o enfrentamento às
violências de gênero ao o incentivo à autonomia econômico-social das mulheres através da
implantação de uma rede acessível de atendimentos no país.
No Estado da Bahia, a Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres (SPM-BA) foi criada no
governo de Jaques Wagner em 04 de maio de 2011, através da Lei nº 12.212. No mesmo sentido
de atender à justa gama de reivindicações dos feminismos e movimentos de mulheres, a referida
Secretaria estadual teve e continua a ter, por regimento, a missão de pensar/elaborar, articular,
implementar/executar e monitorar políticas públicas para todas as mulheres, com suas
especificidades variadas, priorizando as que vivem em situação de pobreza ou miséria. O
município de Lauro de Freitas foi o primeiro do país a criar e implantar uma Secretaria Municipal
de Políticas para as Mulheres em 2005, na primeira gestão da prefeita Moema Gramacho; de
igual sorte, um dos primeiros a estender o direito à Licença-maternidade para 180 dias (no ano
de 2008). O Centro de Referência da Mulher Lélia Gonzáles (CRLG, inaugurado em 2006 no
referido município), um dos primeiros do país, também é um exemplo de marco político relevante
componente da rede de proteção às mulheres vítimas de violência e, no desenvolvimento de
seus atendimentos/atividades, disponibiliza equipe multidisciplinar de profissionais que vão
desde funções de assessoria jurídica a assistências médica e psicológica. A realização de
palestras, encontros e outras ações em escolas, creches, associações comunitárias e locais
variados soma-se à missão do Centro de Referência da Mulher Lélia Gonzáles, que presta
atendimento contínuo a centenas de mulheres.
No Brasil, segundo a Secretaria de Política para Mulheres, uma a cada cinco mulheres é vítima
de violência doméstica ou familiar e 80% dos casos, aproximadamente, são cometidos por
esposos, companheiros, namorados ou “ex-” (ex-esposos, ex-companheiros, ex-namorados).
Em Salvador, uma mulher é agredida a cada 56 minutos e, segundo a Secretaria de Segurança
Pública do Estado da Bahia, de janeiro a maio de 2017, a Bahia teve registrados 15.751 casos
de violência contra mulheres. E os casos não registrados? Certamente, são de complexidade
mais alarmante e preocupante, visto que, na seara das políticas públicas todas, nas quais se
incluem os serviços públicos (de saúde, por exemplo) dentro de toda a conjuntura dos marcos
jurídico-políticos sociais do país, a subnotificação tem sido uma constante nos resultados das
pesquisas de campo que focalizam violências sofridas pelas mulheres. Os dados oficiais,
portanto, não dimensionam a gravidade real das faces opressoras do patriarcado, embora sejam
dados importantes de serem veiculados. Mas é preciso ir além; e só se consegue visibilizar mais
tais faces opressoras e violentas, dentro e fora do âmbito doméstico e familiar, nomeando,
denunciando, lutando por mais equidade de gênero e respeito às mulheres na sociedade
brasileira.
É dentro de tal contexto que surge a importante Lei Maria da Penha, Lei Federal nº 11.340 de 7
de agosto de 2006, como um marco jurídico que, dentre outros objetivos, procura aumentar o
rigor das punições para crimes domésticos, isto é, para aqueles crimes nos quais as mulheres
encontram-se mais reféns da opressão do patriarcado: no silêncio familiar, doméstico ou da
convivência íntima, dentro do qual o pessoal, ao contrário de “coisa de marido e mulher onde
não se mete a colher”, é político e deve se tornar público sempre que a harmonia ou equidade
de direitos for violada. A denúncia que felizmente levou à prisão (em 22 de setembro de 2006,
um dia após a sanção da referida Lei) o ex-esposo que tentou estrangular uma mulher no Rio de
Janeiro exemplifica a força não somente normativa, mas, sobretudo, simbólica, de visibilidade
desta lei em nossa sociedade ainda tão machista, na qual homens (algumas mulheres também,
numa intersecção de orientação homossexual) se acham donos de corpos e vidas femininas; por
isto, deixam “assinaturas” (SEGATO, 2005) ou rastros tão parecidos quando lhes violentam
fisicamente ou matam sob o respaldo do patriarcado.
A Lei Maria da Penha, no conjunto dos avanços que previu em favor das mulheres, foi pioneira,
por ter sido incluída no seu texto, de maneira inédita no ordenamento jurídico brasileiro, a
expressão “orientação sexual”. Antes dela, nenhuma outra lei federal havia sido sancionada
contemplando este traço personalíssimo nas vidas de muitas mulheres lésbicas ou bissexuais e,
da forma como previu tal dimensão, acabou reforçando a importância do respeito com relação
às uniões homoafetivas, protegendo as mulheres em qualquer relação de afeto (SILVA JÚNIOR,
2011). Vejamos:
2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura,
nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua
saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (...) Art. 5o Para os
efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço
de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações
pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. (grifos nossos)
4 Reflexões Finais
A partir do nosso diálogo, resta claro que o Estado brasileiro possui uma dívida histórica grande
para com os direitos humanos de diversas minorias sociais; dentre essas, as mulheres. Em
outras palavras, mesmo com o surgimento de instrumentos político-jurídicos de
proteção/promoção dos direitos humanos no mundo e no Brasil, mesmo que alguns de tais
instrumentos ou marcos sejam elogiados e copiados mundo afora (é o caso da Lei Maria da
Penha), ainda somos, segundo a ONU, um país com uma “discriminação estrutural, intolerante,
com altas taxas de violência e até com seu caráter secular ameaçado por pressões de grupos e
bancadas religiosas dentro da política”. (CHADE, 2017, p. 1)
Para a superação deste panorama, dentro do qual leis isoladamente não são suficientes para
garantir o efetivo respeito aos direitos humanos das mulheres, é necessário que educação e
fiscalização se articulem como luta política diária, visando ao aprimoramento dos instrumentos
de controle dos agentes/poderes públicos e de fomento ao respeito no seio da sociedade como
um todo. Neste particular, a visibilidade das mulheres e sua maior representação nos diversos
espaços de poder (WRIGHT, 2016) são fatores preponderantes para minimizar injustiças, punir
mais severamente os crimes que as violentam/matam cotidianamente e fazer com que os marcos
jurídicos e políticos que temos pela equidade de gênero, somados aos que virão, sejam mais
respeitados, mais observados ou postos em prática.
As/os profissionais da educação têm um papel fundamental nas lutas e enfrentamentos aos
preconceitos e discriminações que ainda oprimem as mulheres em nossa sociedade. E, neste
particular, no que tange ao nosso Curso de Especialização em Educação em Gênero e Direitos
Humanos, esperamos que o conteúdo desta disciplina tenha cumprido finalidades crítica e
emancipatória a partir do seu arcabouço teórico, aulas, leituras, discussões e demais atividades.
5 REFERÊNCIAS
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direitos humanos das mulheres. In: Direito e Mudança Social. DORA, Denise Dourado (Org). Rio
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