Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Tese de Doutorado
Brasília-DF: 03 / 2005
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Aprovado por:
_____________________________________
Laís Maria Mourão Sá, Doutora (Universidade de Brasília)
(Orientador)
_____________________________________
Leila Chalub Martins, Doutora (Universidade de Brasília)
(Examinador Interno)
_____________________________________
Laura Maria Goulart Duarte, Doutora (Universidade de Brasília)
(Examinador Interno)
_____________________________________
Miroslav Milovic, Doutor (Universidade de Brasília)
(Examinador Externo)
_____________________________________
Marcos Sorrentino, Doutor (Universidade de São Paulo)
(Examinador Externo)
____________________________________________________
Roberto A. Ramos de Aguiar, Doutor (Universidade de Brasília)
(Suplente)
______________________________
Nome do Autor
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que estiveram comigo nesta caminhada, que acompanharam
meus bons e maus momentos, que participaram e colaboraram para que esta tese pudesse ser
realizada.
À minha orientadora Laís por seu carinho e paciência, por ter me acolhido na sua
sensibilidade e bondade, pelos inúmeros sorrisos que aqueceram meu coração, tão importantes
quanto o apoio e a orientação. Sem ela este trabalho não teria começado.
A todos os membros da REMA Riacho Fundo, por terem me recebido em suas vidas e
por fazerem parte da minha. Agradeço por todas as horas que passamos juntos, pelos
encontros, conversas, reuniões e pelos projetos que pudemos criar. Sem eles este trabalho não
seria possível.
À Sônia, presidente da Cooperativa 100 Dimensão, por ter me mostrado que a vida é
cheia de possibilidades e sonhos e que partilhar o trabalho, as alegrias e as tristezas com
outras pessoas é um remédio maravilhoso para o mal da modernidade.
Ao Luis Mourão, presidente do IDA, pelo entusiasmo que demonstrou em relação a
REMA e o apoio que ofertou tão gentilmente.
Ao meu amigo Cristiano, que tanto me ajudou ao me acompanhar e atuar no trabalho
de campo. Agradeço também pelas conversas jogadas fora e pelas boas gargalhadas que
demos.
Ao professor Miroslav Milovic pela gentileza em compartilhar seu conhecimento e
pelas sugestões a este trabalho no campo da filosofia.
Aos professores e professoras do CDS pela generosidade em compartilhar seus
conhecimentos que muito auxiliaram a formulação desta tese.
À Ana Paula, Antônio, Norma, Shirley e William pela gentileza e apoio.
À Isabel, Regina, Ruth e Vanessa pelo amor e confiança entre nós.
À Regina Aquino, por ter aberto um espaço em seu coração para mim.
À Wânia, por me ouvir e cuidar de mim.
À Nara, por mais de duas décadas de amizade e por ser minha irmã e confidente.
Ao meu irmão Júlio por nosso bem querer mútuo.
Aos meus pais, Joaquim e Alice, pelo apoio que sempre me deram.
Ao meu marido, Nilo, por sua paciência, carinho, amor e presença.
Às minhas filhas, Mariana e Camila, que apesar de crianças compreenderam e
perdoaram minhas dificuldades para estar com elas nestes quatro anos.
Para minha mãe, Alice,
e minhas filhas,
Mariana e Camila,
com a esperança de que o amor
que aprendi com minha mãe,
permaneça com minhas filhas.
v
RESUMO
O objetivo desta tese é analisar o processo de formação e implementação de uma rede social
solidária, formada por professores de escolas públicas, que surgiu no contexto dos processos
de gestão e educação sócio-ambiental realizados no núcleo urbano do Riacho Fundo, Distrito
Federal. Ao mesmo tempo, a presente tese procura explicitar a perspectiva transformadora
deste tipo de rede ao apontar seu caráter comunitário, balizado em vínculos de
responsabilidade e pertencimento, apresentando-se como contraponto às relações sociais da
modernidade contemporânea. Nesta perspectiva esta tese tem como fundamento teórico a
pedagogia da alteridade - referência tanto dos processos de gestão sócio-ambientais quanto da
formação da rede - e aponta para a elaboração de uma racionalidade sócio-ambiental lastreada
pela alteridade, referida aos seres humanos e ao ambiente. Desenvolvendo este estudo na
perspectiva metodológica da pesquisa-ação foi possível constatar que a rede emergiu,
primeiro, pela urgência em se criar novos modos de relacionamentos humano e ambiental, e,
segundo, pela disponibilidade de espaços sociais, tanto dentro da escola, quanto na
comunidade local, não ocupados pelo Estado ou mercado, espaços inicialmente sem
legitimidade política e social. Ao ocupar esses espaços, a rede abriu novas perspectivas
relacionais, e, ao mesmo tempo em que emergiram conflitos em seu processo de formação de
identidade e obtenção de legitimidade. Estes conflitos, relacionados por um lado, à
dificuldade de dialogar com os poderes públicos instituídos e, por outro, pelo rebatimento das
identidades individuais no coletivo da rede, antes que impasses, se fizeram como tensões
associadas ao crescimento e maturação de um núcleo ético-valorativo comum, que se
apresentou como o substrato da identidade comunitária desta rede. Ainda, a análise do
processo de formação desta rede no contexto dos processos de gestão e educação sócio-
ambiental permite afirmar que nestes processos, voltados ao fortalecimento de redes sociais
de educação e meio ambiente, gestores e educadores necessitam operacionalizar as condições
de possibilidade para que surjam espaços de diálogo e de acolhimento de outrem que
permitam o empoderamento popular por meio da tessitura de relações sociais não
hierarquizadas. Nestes espaços a política e a mediação de conflitos são compreendidas como
mediações para a justiça, para com o outro e para com o ambiente. Por último constata-se que
a originalidade da experiência desta rede reside na abertura a outrem somada à re-elaboração
da temporalidade referida à duração das ações e projetos de educação e gestão sócio-
ambientais.
ABSTRACT
The thesis analyzes the process of formation and implementation of a solidary social net,
composed of teachers from public schools, which has risen within the context of the processes
of social-environmental management and education achieved in the urban nucleus of the
“Riacho Fundo” region, Distrito Federal State. It makes explicit the transforming perspective
of this type of net when pointing its communitarian character, surveyed in bonds of
responsibility and belonging, presenting itself as counterpoint to the social relations of
contemporary modernity. The theoretical foundation is the pedagogy of the alterity –
reference either of the social-environmental management or the formation of the net - which
points to the elaboration of a social-environmental rationality based on alterity, related to the
human beings and the environment. The methodology of the research-action allowed to
evidence that the net emerged due to the urgency in creating new ways of human and
environmental relationships, and for the availability of social spaces, in the school and the
local community, not occupied by the State or market, spaces initially without political and
social legitimacy. By occupying these spaces, the net opened new relation-wise perspectives,
and made emerge conflicts in its process of formation of identity and attainment of
legitimacy. These conflicts, related as to the difficulty to dialogue with the instituted public
powers as to the striking of the individual identities in the collective of the net, before
impasses, made themselves as tensions associates to the growth and maturation of a common
ethical-valuable nucleus, that it presented itself as the substratum of the communitarian
identity of this net. The analysis demonstrated that in the context of the processes of social-
environmental management and education, directed towards the strength of social nets of
education and environment, the managers and educators need to operate the conditions of
possibility for the sprouting of shelter and dialogue spaces, through the tessitura of non-
hierarchy social relations that allow the empowerment of the involved social groups. In these
spaces the politics and the mediation of conflicts are understood as mediations for justice, the
others and the environment. Finally it is evidenced that the originality of the experience of
this net inhabits in the responsibility towards the other, added to the rework of the temporality
in the actions and projects of social-environment education and management.
RÉSUMÉ
SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................................... v
ABSTRACT....................................................................................................... vi
RÉSUMÉ............................................................................................................ vii
LISTA DE QUADROS..................................................................................... xi
LISTA DE FIGURAS....................................................................................... xi
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS...................................................... xii
INTRODUÇÃO................................................................................................. xiii
LISTA DE QUADROS
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO
Inicialmente, o Riacho Fundo era uma área rural que abrigava colônias agrícolas e uma
Granja Modelo para o abastecimento de Brasília nos primeiros tempos da existência da
cidade, mas transformou-se em área urbana na década de 90, assentando até o ano 2000, mais
de 37.000 habitantes. Hoje, apenas 5% da população local é rural. O lugar transformou-se em
região administrativa do Distrito Federal em 1993. O crescimento urbano acelerado na região
17
causou tremendo impacto no meio ambiente local, em especial ao corpo hídrico do córrego
Riacho Fundo, uma vez que a falta de infra-estrutura de saneamento contribuiu muito para
sua poluição, por meio do carreamento do lixo no período das chuvas, da liberação de
efluentes domésticos e do uso de fertilizantes nas lavouras locais. A pressão urbana sobre o
córrego, no entanto, não se restringe à ação exclusiva desta cidade, pois às margens deste
córrego, vivem mais de 80.000 habitantes - moradores do Riacho Fundo, Candangolândia e
Núcleo Bandeirante.
O fato da ocupação do solo de Brasília, nos últimos 15 anos, ter acarretado grandes
problemas sócio-ambientais não é novidade. A questão fundiária e a ocupação irregular do
solo no Distrito Federal já foi manchete de noticiários nacionais expondo a realidade das
18
1
Um exemplo da notoriedade da questão das grilagens de terras públicas no Distrito Federal é a reportagem da
Revista Época (edição 235, 18/11/2002). Segundo a reportagem: “Embora vitorioso nas eleições, o governador
do Distrito Federal, Joaquim Roriz, saiu das urnas com a reputação em frangalhos e o mandato em risco. (...) A
maior fonte de dor de cabeça para o governador, eleito para o quarto mandato, reside num processo sobre
grilagem de terras públicas no Distrito Federal que corre na Justiça há meses. Para impedir a divulgação de
reportagens sobre o caso, Roriz chegou a censurar o jornal Correio Braziliense durante a campanha eleitoral. (...)
Sabe-se que a maioria das provas foi obtida em agosto, quando um pequeno episódio abriu um conflito de
grandes proporções entre Roriz e a turma da grilagem. O motivo da crise foi uma disputa em torno de mais um
condomínio irregular que Pedro Passos estava implantando em uma das regiões mais nobres de Brasília, o Lago
Sul, em parceria com o irmão, Márcio, e o advogado Salomão Szervinski, outro conhecido grileiro da capital
federal. Valorizada pela construção de uma ponte por Roriz, a área de 221 hectares é avaliada no mercado
imobiliário em R$ 400 milhões. Os lotes do condomínio já estavam sendo comercializados quando Eri Varela,
presidente da Terracap, a companhia imobiliária de Brasília, decidiu impedir sua implantação. (...) Márcio
Passos ficou revoltado com a ação da Terracap. Prometeu fazer denúncias contra o governo do Distrito Federal e,
como prova de suas intenções, divulgou pela imprensa um vídeo em que um secretário de Roriz cobra propina
para legalizar um loteamento clandestino.”
19
A natureza originária que foi revelada e trazida à palavra pelos gregos foi
mais tarde, através de poderes estranhos, des-naturada. Uma vez pelo
cristianismo, com o qual a natureza foi, em primeiro lugar, depreciada ao
[nível de] “o criado”, e ao mesmo tempo foi trazida para uma relação com a
super-natureza (o domínio da graça). Depois [foi desnaturada] através da
moderna ciência natural, que dissolveu a natureza para a órbita da ordem
matemática do comércio mundial, da industrialização, e, num sentido
particular, da tecnologia das máquinas. [....]. Do mesmo modo, devemos por
de lado a moderna noção de natureza, na medida em que temos uma em
geral, em que se fala de ribeiros e de águas.
(Martin Heidegger)
A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.
(Manuel Bandeira)
20
O olhar humano toca, define, delimita, classifica, deseja, constrói. Como uma lente,
projeta e potencializa o que vê; aumenta ou diminui, mas pode também não ver o que olha...
Mesmo o olhar contemplativo sobre a natureza é prenhe de significados, simbolismos e
interesses: prover bem-estar, sentir-se parte, sentir-se integrado, voltar às raízes.
Em sussurros simbólicos e românticos, o desejo de “natureza” nos transporta para
cenários de campos, parques preservados, águas abundantes e limpas, animais selvagens e
livres. Esse transporte nos liga ao nosso ser animal, ao nosso grito de espécie, à nossa
sobrevivência. Ainda que mergulhado em romantismo, grito necessário de vitalização humana
frente às agruras da permanente azia cotidiana - queremos estar lá, saudáveis, risonhos e bem
alimentados. Porque o cotidiano está longe do cenário imaginado - a azia queima no estomago
da humanidade: a fome, a miséria, as guerras, o lixo que se acumula, os rios que sucumbem
secos e erodidos, as espécies que se extinguem, a correria e o barulho das cidades, o abandono
dos campos. Sentimos hoje, o que sentia o poeta inglês William Blake no século XVIII, ao se
perguntar se seria possível construir Jerusalém em meio aos sujos e satânicos moinhos.
Mas quando nos transportamos a este “paraíso natural”, o fazemos na perspectiva de ir
ao encontro de algo do qual não tomamos parte. Não fazemos parte dessa natureza. Está fora
de nós. Existe para nos servir, para ser dominada, para que nos alimente – seja de comida,
“paz de espírito”, ou provendo cenários idílicos.
De alguma forma, desejamos ser possível “regressar” à natureza, retroceder o tempo,
pará-lo. Mas tanto o regresso à natureza, quanto a sua conquista, “são as mais sociais das
idéias sociais”. (Morin, 1999, p.91)
Perceber o ser humano como espécie animal que existe num certo ecossistema é
percebê-lo na natureza. Porém essa idéia de natureza não é platônica, um ideal de
intocabilidade desconectado da ação humana - ela é construída e re-construída no mundo
humano, por meio da linguagem, da cultura e das relações sociais.
À exemplo de outras espécies, as sociedades humanas desde seu surgimento sempre
fizeram parte dos ecossistemas, modificando-os na sua interação, seja pela cadeia alimentar,
seja pela disseminação de frutos e sementes coletadas ou seja pela ação do fogo -
transformando, mesmo que pontualmente, as paisagens. Essa transformação traz em si
características simbióticas e parasitárias, fenômenos biológicos naturais da emergência e
manutenção da vida. Com o advento das sociedades históricas e o ajuntamento de populações
humanas em cidades a relação entre o homem e a natureza se transforma sobremaneira com a
21
exarcebação do domínio e controle dos ecossistemas em que vive. No caso dessas sociedades,
os fenômenos biológicos adquirem contornos diferenciados: o parasitismo se reveste de
subjugação generalizada da natureza, alterando as cadeias tróficas, expandindo as fronteiras
do seu território, redimensionando a própria vida.
Esta eco-relação2 (homem-natureza) foi construída ao longo de milhares de anos,
primeiro como relação integrada – respeitar o mistério e o desconhecido que a “natureza”
mostrava à humanidade que acabava de nascer. Assim, buscar alimento (pescar, coletar),
buscar proteção contra o frio e a chuva são as ações principais. Neste estágio, o conhecimento
da natureza se dá pelo mito e sua forma de conhecer é a mimese que busca aproximar o
homem dessa natureza tão misteriosa e por vezes, assustadora. Depois esta relação
transforma-se em relação domesticadora – o ser humano passa a plantar e criar animais,
construir abrigos, complexificando sua sociedade. Nesse estágio, apesar dessas ações ainda
possuírem a finalidade de prover as necessidades básicas da sobrevivência, o conjunto dessas
necessidades é ampliado - a população humana cresce e sua intervenção no ambiente passa a
ser mais intensa. A cultura se desenvolve retroagindo na sociedade e na natureza gerando
novas emergências. As relações ambiente-sociedade transformam-se radicalmente e surgem
as civilizações. Com a civilização ocidental inicia-se a separação das cosmologias mítico-
pagãs, para na Idade Média, ser adotado o amálgama filosofia-fé (cristã) como entendimento
do mundo.
Para o homem da Idade Média o mundo é uma criação divina. É importante explicitar o
caráter “externo” do Deus judaico-cristão nesta criação. Deus não reside no mundo. Ele o cria
de fora. Assim, Deus não reside na natureza. A natureza não é uma criação espontânea, mas
sim obra da bondade divina. Deus passa a ser a causa de todos os movimentos, ou, melhor
dizendo, o princípio de todas as coisas.
Mesmo que homens e mulheres na Idade Média possuíssem idéias sobre a criação do
mundo que diferissem da tradição judaico-cristã, o mundo continuava a ser de alguma forma
uma criação divina. Um bom exemplo dessa cosmogonia é o pensamento de Menocchio, um
moleiro italiano que viveu nos meados do século XVI e que foi levado à Inquisição. Por ser
um relato de uma época que consideramos o início da era moderna, traz por um lado, a força
2
Para maior aprofundamento do conceito de eco-relação, cf. Morin, 1999, primeira parte, p.21-94. “Vemos que
as sociedades, inclusive e sobretudo as nossas, são entidades geo-eco-bio-antropológicas e que os ecossistemas,
inclusive e sobretudo na nossa época, são também antropo-socio-ecológicos. Já não há natureza pura, e nunca
houve sociedade pura.” (p.75).
22
Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto
é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se
formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito de leite, e do qual
surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que
aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele
também criado daquela massa, naquele mesmo momento e foi feito senhor
com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se
fazer de senhor, se comparando ao rei, que era a majestade de Deus, e por
causa dessa soberba Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com
todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, depois, fez Adão e Eva e
o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos expulsos.
(Relato de Menocchio ao Inquisidor em 7/2/1584 In: Ginzburg, 1987, p.47)
3
Max Weber foi o primeiro a relacionar o surgimento da modernidade com a predominância de um tipo
específico de ação, denominada "ação racional com relação a fins”. Segundo este autor, um indivíduo age
racionalmente com relação a fins quando “(...) orienta sua ação pelos fins, meios e conseqüências secundárias,
ponderando racionalmente tanto os meios em relação às conseqüências secundárias, assim como os diferentes
fins possíveis entre si: isto é, quem não age nem de modo afetivo (e particularmente não-emocional) nem de
modo tradicional”.(Weber, 2000, p.16). A Escola de Frankfurt, principalmente Adorno, Horkheimer e Habermas,
irá resgatar este conceito weberiano tecendo discussões sobre a sociedade industrializada, descrevendo a
racionalidade ocidental como sendo a instrumentalização da razão, isto é, a idéia de que a ciência deixa de ser
um modo de obtenção de conhecimentos verdadeiros para se transformar em instrumento de dominação e
exploração.
23
sua presença é assegurada através do cálculo matemático, que pode medi-la e calculá-la. Com
a ciência moderna, a natureza torna-se objeto do conhecimento empírico-racional, visão essa
aprofundada em Descartes, onde natureza é res extensa, sendo a extensividade uma grandeza
matemática. A natureza torna-se objeto, não de simples contemplação, mas de encaixe num
arcabouço conceitual que determina a forma pela qual ela pode se apresentar diante do sujeito.
Não existe mais a árvore, o homem e a mulher, os animais, as rochas, as águas, mas
aglomerados de átomos e moléculas, fluxos de seiva, sangue e reprodução, especificidades e
grandezas nascidas das teorias e que são descritas pela lógica matemática, por meio de
equações e axiomas.
O conhecimento empírico-racional é na verdade empírico na medida em que a
“natureza” corrobora os modelos teóricos descritos – isto é, o privilégio é da razão, não ao
contrário. O processo de demarcação de validade de várias teorias científicas da época foi
marcado pelo jogo de criação de novos conceitos, muitas vezes hipóteses ad hoc para salvar
arcabouços teóricos que não se sustentariam se colocados à prova por meio de experimentos.
Um dos exemplos que podemos lançar mão é a introdução do atrito como conceito para
salvaguardar a razoabilidade da nova dinâmica que Galileu propunha. Como nos diz
(Feyerabend, 1989, p.225):
O privilégio da mente (res cogitans) sobre a matéria (res extensa) virá determinar um
modo de dominação sobre a natureza que a desqualifica enquanto identidade própria uma vez
que descarta sua singularidade em prol das variáveis mensuráveis e relevantes ao arcabouço
teórico. Como dizem Adorno e Horkheimer (1985, p.24):
24
Mesmo com o advento de novas teorias científicas, no início do século XX, tais como a
mecânica quântica e os sistemas caóticos, que reaproximam o sujeito do objeto na produção
do conhecimento, ainda persiste a soberania do logos cartesiano na relação, que reduz o
sujeito e encobre o objeto, anulando ambos.
Não deve haver medo em olhar a natureza e o ambiente como distintos de nós seres
humanos por acreditar que com isso estaria se reforçando a disjunção cartesiana. Mais que
permitido, esse olhar é necessário. Porém quem olha deve também saber que o faz da
perspectiva de dentro. Esta é uma diferença fundamental entre, por exemplo, uma célula de
um organismo vivo e nós e o ambiente. A célula não tem consciência do seu pertencimento a
este organismo. Nós temos.
Apesar da idéia aqui advogada, de articular o pertencimento à distinção na relação
sociedade-ambiente, ser como todas as outras idéias uma construção teórica, mergulhada em
valores culturais e sociais emergentes e periféricos desta sociedade contemporânea, ela possui
uma diferença – não advoga por uma totalização. Esta abertura à impossibilidade de saber
tudo, e da possibilidade de ser surpreendido pelo outro (que não conheço completamente) é
que torna o princípio da precaução 4, relacionado às questões tecno-científicas-ambientais, um
princípio crítico, responsável e ético – uma ética crítica, que se contrapõe por um lado ao
utilitarismo e por outro à ingenuidade.
Assim, não posso, em sã consciência, dizer que entre uma roseira do meu jardim e eu
não há distância e distinção. Posso, contudo, dar-lhe nome, dizer sua cor, sentir seu perfume e
saber que ela depende dos meus cuidados para viver naquele jardim; posso ainda procurar
destrinchar suas particularidades, saber como se reproduz, fazer experimentos genéticos, criar
outros espécimes - mas eu nunca saberia o que é ser uma rosa. Seu mistério continuaria
indecifrável para mim. Entre nós permanece um abismo intransponível, mesmo que eu a
comesse, comeria seus nutrientes, experimentaria seu sabor, sua textura e seu perfume, mas
ainda assim, algo teria escapado, algo que não se resume ao ser comestível que ela foi para
mim naquele ato de comer, mesmo que este ato de comer estivesse eivado de simbolismos
outros que não apenas o da alimentação. Ela continuaria rosa e eu mulher, mutuamente
relacionadas numa relação que não se esgota no ato de conhecer.
O homem é relação – com outros homens e mulheres, consigo mesmo e com a
natureza. E sempre que houver a possibilidade de através das relações estabelecidas, reduzir
o outro (seja ser humano ou natureza) a um construto mental, a um conjunto de valores
sociais, culturais e simbólicos, a uma classificação ou estereótipo, estarei realizando algum
4
O princípio de precaução surgiu na Europa na década de 80, sendo inicialmente pensado para proteção contra
riscos ambientais previsíveis cujos dados científicos fossem insuficientes para direcionar as ações no ambiente.
29
tipo de dominação. Assim, a única chance real de salvar a natureza da degradação em curso é
vê-la como alteridade, articulando a distinção ao pertencimento na diversidade.
Manoel de Barros
5
O cerrado é a segunda maior formação vegetal brasileira, englobando 1/3 da biota brasileira e 5% da flora e
fauna mundiais. Estende-se por 25% do território nacional, cerca de 200 milhões de hectares, englobando 12
estados. Apresenta duas estações bem marcadas - inverno seco e verão chuvoso - e sua biodiversidade é
favorecida pela presença de três das maiores bacias hidrográficas da América do Sul - Tocantins-Araguaia, São
Francisco e Prata.
30
6
Para maior aprofundamento sobre os conceitos de valor de uso e valor de troca, Cf. Marx, K. O capital, livro 1,
volume I, Civilização Brasileira, 16ª. ed., 1998.
7
Segundo Netto IN: Fonseca (2001), o ritmo de ocupação do solo e o adensamento urbano no Distrito Federal
implicam em graves problemas ambientais para o Lago Paranoá, que “podem ser ilustrados pela enorme
quantidade de sedimentos depositados pelo Riacho Fundo, responsável pela redução do espelho d’água no braço
Sul do lago, onde os detritos se transformam em verdadeiras ilhas cobertas de vegetação.” Comentando sobre a
contribuição da sub-bacia do Riacho Fundo para o assoreamento do lago Paranoá, diz que “é a que apresenta a
maior densidade e diversidade de ocupação. Em decorrência dos desmatamentos ocorridos, acompanhados da
exploração de cascalheiras, exposição e degradação dos solos, movimentações de terra e forte urbanização,
muitas vezes desprovida das redes de infra-estrutura adequadas, (...), tem-se um aporte substancial de
31
sedimentos, comprovado pelo grave assoreamento do braço do Lago Paranoá que recebe a contribuição da
bacia.”
32
1.3. COMUNIDADES
Caetano Veloso
Nesse sentido, a relação comunitária rompe também com outro conflito, este de foro
interno à subjetividade humana, que apregoa que o indivíduo é “dentro de si” “algo que
existe inteiramente só, sem relacionamento com os outros, e que só ‘depois’ se relaciona com
os outros ‘do lado de fora’ ” (Elias, 1994).
Agora a communitas galgou outros estágios conceituais: ela pode ser descrita como
sendo um grupo de indivíduos que se juntam num coletivo para poderem ser pessoas,
vivendo sob ideais comuns e vivenciando a relação dialógica com o outro.
8
As relações dialógicas, assim como a noção de diálogo, serão tratadas com maior profundidade no capítulo
seguinte.
37
espaços passam a não ter relevância, principalmente com o advento de novas tecnologias de
comunicação onde o tempo chega às raias do “instantâneo”. O encontro dialógico como
acontecimento no tempo e no espaço é impedido na vida moderna, uma vez que este tempo
"quase” instantâneo é um tempo sem conseqüências.
que se formam mediatizados pela rede eletrônica, em listas de discussão e portais como
Orkut9.
Esta comunidade é gerada pelas demandas da “identidade” – os modos de ser, o
comportamento aceitável, o dito da moda. Segundo Bauman (2003), esse tipo de comunidade
aproxima-se muito do conceito de comunidade estética de Kant, onde a beleza não tem outro
fundamento que não o consenso compartilhado pelos indivíduos que regula os juízos de valor
e os comportamentos uniformes. Nesse sentido, a indústria do entretenimento tem muito a
oferecer com seus ídolos e celebridades que apontam modos de ser e comportamentos sociais.
Como nos diz Adorno (2002):
9
Orkut é um portal que reúne várias “comunidades de interesse”, em listas de discussão, onde os participantes só
podem entrar por convite de um amigo. Sua proposta é tecer uma rede de amizades e mostrar as conexões a que
você está ligado por intermédio de seus amigos. È uma rede de amigos, de amigos,.... Porém, você poderá
sempre se desconectar dessa rede e mudar de “comunidade”, sem que ninguém o recrimine por isso. A marca
distintiva do Orkut e outras portais do gênero é a volatilidade dos laços e das amizades.
39
Ocorre que a procura da identidade não pode deixar de separar e dividir, afinal ter
identidade é ser diferente. Ao mesmo tempo, a precariedade da construção solitária desta
identidade leva os indivíduos a procurarem grupos onde possam depositar seus medos e
anseios cotidianos e assim sentirem-se menos sós na batalha diária. Esses grupos alçam à
categoria de “comunidades” pelo sentimento que cada indivíduo participante possui de
pertencer àquele grupo. Dessa forma, revisitando valores tradicionais e adaptando-os a uma
nova linguagem, sentem-se nessas “comunidades” como pertencentes a uma mesma
“família”. Mas entram em choque a liberdade e a segurança, valores complementares e
incompatíveis no ideário individualista: a liberdade para ser diferente, para fazer o que se
quer, auto-afirmando sua identidade, e a necessidade de segurança e proteção que uma
comunidade pode oferecer, mas à custa de restrições ao poder individual. Na atual
modernidade, apenas alguns poucos eleitos podem usufruir esta liberdade com segurança, mas
isso à custa da supressão da liberdade e segurança de muitos. (Bauman, 2003)
Desta maneira, para que a tensão entre liberdade e segurança possa ser diluída, essas
“comunidades modernas” que se formam são espaços cercados para manter distância dos
outros – aqueles que são intrusos e diferentes, aqueles que possuem outras formas de viver e
pensar e que por isso ameaçam seu “status quo”. Ainda segundo Bauman (2003), é um estilo
de vida que celebra a irrelevância do “lugar” - as relações humanas são entendidas como não-
problemáticas, as parcerias são realizadas e abandonadas facilmente e não há
comprometimentos pessoais ou comunitários no sentido da cooperação solidária. Nessas
“comunidades” não há verdadeiro diálogo, pois pecam pela falta de habilidade de dialogar;
são monótonas e repetitivas, "abrigos da conformidade". Apesar destas comunidades
representarem uma parcela mínima da sociedade (as elites) todo esse modo de ser e de “viver
a vida” é amplamente divulgado em todos os meios de comunicação de massa servindo como
exemplares para um comportamento social que destaca as idéias de sucesso, realização
pessoal, liberdade e segurança.
Devemos lembrar, contudo que o nascimento do indivíduo é um aspecto da
modernidade. Até o século XVII, o termo indivíduo referia-se ao que era indivisível ou
singular na natureza, mas não era um conceito aplicável à sociedade humana e aos homens tal
como hoje é comum. Isto só começa a acontecer a partir das necessidades do desenvolvimento
social iniciado no Renascimento e que tem seu ápice no século XIX rebatendo na formação de
40
novos termos, tais como individualismo, coletivismo e socialismo, espelhando a tensão entre
indivíduo e sociedade. (Elias, 1994)
No individualismo a visão meritocrática é fundamental, pois respalda a própria
condição de vida do indivíduo - recebe quem tem capacidade para tanto; quem não tem, não
merece receber nada. Por isso os valores baseados em laços tradicionais soam tão mal aos
ouvidos da modernidade: compartilhar e se solidarizar com um grupo, independente dos
méritos individuais de cada um, segue na contra-mão do estabelecimento da vida do indivíduo
moderno.
Dessa forma, a solidariedade adquire uma nova roupagem, apresentando-se como
caridade que se coloca no lugar das ações que antes eram vistas como dever fraternal e direito
universal de todos. O indivíduo se vê desta maneira, sendo “caridoso” ao dirigir recursos e
atenção àqueles que necessitam.
Na atual modernidade ser indivíduo significa viver o fatalismo de sua identidade nunca
terminada e viver isso em permanente antagonismo à sociedade. A este indivíduo não é dada
escolha: seu sentido é o de resolver sozinho os desafios que a vida apresenta. A mídia e os
livros de “auto-ajuda” colaboram muito na disseminação desse modo de viver e estar no
mundo. Essa postura corrompe a idéia de cidadania, pois inviabiliza o surgimento de
verdadeiras causas comuns. Em seu lugar encontramos causas individuais semelhantes que
são agremiadas num mesmo grupo de interesse, numa espécie de ação coorporativa. Enquanto
que ao cidadão relacionamos o bem individual através do bem comum, ao indivíduo
relacionamos o bem individual obtido solitariamente.
Segundo Beck apud Bauman (2001),
Mas à população que vive em condições de necessidade, homens e mulheres que nos
últimos cinqüenta anos têm sido chamados de carentes, oprimidos, marginalizados, excluídos
e desnecessários, interessa outro tipo de comunidade, a communitas já definida, pois sabem
41
que sozinhos pouco podem fazer. A comunidade que procuram é a comunidade ética, tecida
de compromissos a longo prazo, direitos inalienáveis, obrigações inabaláveis, (...) [e que]
pudesse ser tratada como variável dada no planejamento e nos projetos de futuro. (Bauman,
2003, p.68)
É verdade que esta população está sujeita a todas as formas de cooptação e dominação
modernas e que o paradigma social moderno (com as ênfases na competição, no
individualismo e na meritocracia) infiltra-se facilmente no cotidiano. Para que a dominação se
mantenha é necessária a constante desintegração social, é preciso solapar as redes sociais e
agências coletivas.
Como já disse antes, a mídia cumpre um papel fundamental na disseminação do
ideário moderno. Entretanto as tensões vividas hoje no mundo, como as guerras, a fome e a
pobreza e a crise ambiental, têm forçado, cada vez mais, e mesmo, possibilitado, a
emergência de outras formas de relacionamento social que não sejam marcadas
exclusivamente pela exigência de autonomia e auto-suficiência do indivíduo, formas essas
que procuram responder, num primeiro momento, à tensão inicial entre indivíduo e sociedade.
Essas novas emergências relacionais estão relacionadas à communitas que ressurge
como possibilidade real de romper um ciclo de dominação sóciopolítica e econômica no qual
vive grande parte da população mundial.
Contudo, devemos relembrar mais uma vez, que sendo esta época uma época de
desengajamento e de efetivação de um individualismo meritocrático, novas estratégias de
apoio à emergência das comunidades se fazem necessárias. Estratégias que se apossem dos
espaços físicos, sociais e políticos banalizados recriando-os em outras estruturas
organizativas; estratégias que possam ser capazes de colocar as ações imediatas e o tempo
instantâneo num planejamento temporal, utilizando as mídias tecnológicas e articulando
conhecimentos e saberes. Por isso, a definição de communitas deve complexificar-se uma vez
mais, para responder aos desafios da modernidade contemporânea.
Dessa forma, communitas passa a ser um grupo de indivíduos que se juntam, sob
ideais comuns, num coletivo cuja estrutura organizativa recria a relação espaço-tempo
moderna de tal forma que seja possível o espaço-tempo para o encontro dialógico com o
outro - condição de possibilidade para a afirmação da pessoa. Communitas é então a
comunidade ética na contemporaneidade referida à modernidade e aos seus desafios.
42
Essa é uma tarefa difícil de ser realizada na atual modernidade onde se procura reduzir
a vivência da singularidade ao lócus da intimidade, restringindo os espaços de convivialidade
aos espaços físicos da casa e da família enquanto se relega ao exterior a pecha de inóspito,
local de pasteurização e homogeneização das identidades, espaço banalizado. A banalização
do território, decantando para o espaço egocêntrico do indivíduo, aponta para a incapacidade
de diálogo tanto entre os homens quanto com o próprio ambiente. O ambiente externo,
inóspito, não será apenas domesticado no sentido da sobrevivência e do curso da vida
humana, mas dominado e posto a serviço da produção e do mercado, e outras tantas vezes,
colocado de lado por não ser significativo na afirmação da existência pessoal.
No Riacho Fundo, em especial o parcelamento do Riacho Fundo II, os moradores
compartilham os mesmos problemas sócio-ambientais, e o fato de serem homens e mulheres
vindos de estados brasileiros diferentes, sendo que boa parte deles passou por vários
endereços em Brasília, todos na “periferia”, em situação de aluguel, vivendo de favores em
fundos de quintal, ou então em condições extremamente precárias, habitando as ruas do Plano
Piloto, lixões e invasões de terras públicas, os colocam num mesmo grupo como numa
espécie de “macro – identidade” comum. Essa realidade pode ser facilmente identificada nos
desenhos e redações feitos por alunos de uma Escola Classe no Riacho Fundo II.
10
Onde morava antes: barraco no vizinho.Onde mora hoje: numa casa térrea no Riacho Fundo.Onde gostaria de
morar: num prédio de apartamentos
44
Figura 1.3 – Redação de aluna da 4ª. série de uma escola pública do Riacho Fundo11
Figura 1.4 – Redação de aluno da 4ª. série de escola pública do Riacho Fundo 12
11
Onde eu morava: Eu vim do Piauí. Minhas lembranças são muitas. Depois eu fui morar na Ceilândia onde a
minha mãe pagava aluguel. Eu fiz muitos amigos. A Jefene, Lúcia, Ana, Patrícia, Mariana, Jéssica, Tamara e
outras que eu não me lembro os nomes.
Onde eu moro: Eu vim morar no Riacho Fundo II por que minha mãe ganhou o lote aqui. Eu comecei a
estudar aqui na Rural. Eu gosto daqui por que aqui quase não tem violência na rua onde eu morava.
12
Eu vim do Rio de Janeiro. Não trago nem uma lembrança. Eu morava com minha mãe e meu pai. Meus
amigos eram o Rodrigo, Daniele e Jéssica. Não gostava deste lugar por que era cheios de bandidos e muitas
45
Mas como já vimos, experienciar “identidades comuns” não é suficiente para compor
vínculos solidários e comunitários. Por outra, as ações ditas solidárias que ocorrem existem
por força da necessidade em face da carência e da incerteza dos tempos modernos. Na
verdade, as dificuldades de se fazer emergir uma causa comum e engajar-se na sua realização
são enormes. As incertezas inicialmente não unem os sofredores em torno de uma causa, antes
os dividem e os separam. O ideário individualista da modernidade ganhou terreno e força com
o passar dos anos. Mesmo entre os mais necessitados, é difícil fugir à lógica meritocrática que
permeia o cotidiano dessas pessoas.
Mesmo assim é possível encontrar grupos no Riacho Fundo que desenvolveram um
sentido de pertencimento ao lugar juntamente com um ambiente comunitário interno marcado
por ações coletivas e demonstrações de cuidado. É o caso da 100 Dimensão (Cooperativa de
Coleta e Reciclagem de Resíduos Sólidos com Formação em Educação Ambiental) onde a
noção de território é bem ampliada e confunde-se com seu próprio espaço de atuação
comercial. Cuidar desse espaço, defendê-lo e criar estratégias para expandi-lo é vital para a
sobrevivência da própria cooperativa. Nesse sentido procuram conhecer a área onde vivem (os
cooperados são moradores do Riacho Fundo e imediações), os problemas enfrentados na
cidade e desenvolvem ações educativas, de lazer e profissionalização para os moradores da
região. A cooperativa ocupou um espaço físico, social e político ainda banalizado na
sociedade local (o espaço do lixo) recriando-o coletivamente, tornando a cooperativa, para
seus cooperados, um espaço de afirmação da pessoa de cada um deles, por meio do
empoderamento pessoal que emerge do trabalho coletivo.
Por outro lado, um outro grupo no Riacho Fundo também demonstrou capacidade para
vivenciar uma relação comunitária, nos moldes da communitas: o grupo formado pela Rede
de Educação e Meio Ambiente do Riacho Fundo – REMA Riacho Fundo, cuja formação e
organização é tema desta tese e que serão detalhados nos capítulos 4 e 5 subseqüentes.
pessoas eram mortas, violentadas e estranguladas por isso não gosto deste lugar. Minha casa aqui é muito
bonita, cheia de alegria, e eu gosto muito dela. Nela tem 6 cômodos e uma área legal. Aqui não tem esgoto,
tem pouca violência. Eu moro com meu pai, minha mãe e etc... Precisa melhorar a segurança e tem que ter
mais emprego tem muita gente sem empregos.
46
No Brasil, o fato do poder administrativo ter sido centralizado, desde o Brasil Colônia,
impondo relações autoritárias entre a sociedade civil e o Estado, pode por luz ao fato de que
ainda hoje o Estado brasileiro é visto como o solucionador de problemas, ou como o grande
provedor numa aproximação a um estado paternalista.
Para um país como o nosso, uma jovem república, que atravessou regimes políticos
ditatoriais, a modernidade se apresenta com um duplo desafio gerador de tensão nas
oportunidades de poder do indivíduo em relação à sociedade: por um lado o desafio de
fortalecer a sociedade democrática, que segundo Guareschi (1999, p.96), pauta-se no
empoderamento da sociedade civil através das organizações comunitárias, “onde os cidadãos
exercitam seus direitos de participação e são respeitados como pessoas”, criando a condição
de possibilidade de dissolver a noção de Estado doador e construir o Estado democrático onde
sociedade civil e poder público negociam necessidades e possibilidades num processo de
48
O Parque Ecológico e Vivencial do Riacho Fundo foi criado pela lei no 1.705, de 13 de
outubro de 1997 do Distrito Federal. Situado entre o Riacho Fundo I e o II, nele estão
49
localizadas as nascentes do córrego do Riacho Fundo, responsável por 20% da vazão afluente
do Lago Paranoá.
Quando este trabalho de pesquisa foi iniciado, boa parte dos moradores não conhecia o
parque, ou pelo menos não sabia que aquela área verde incrustada entre as duas cidades era
um parque ecológico. Muitos nunca tinham visto as nascentes do córrego, nem sabiam que há
menos de 20 anos atrás aquelas águas eram limpas e a vegetação era mais densa. Isso pode ser
observado, por exemplo, quando numa das reuniões com um grupo de professores de uma
escola local, (alguns destes moradores do Riacho Fundo) alguns professores se surpreenderam
ao descobrir que a área verde, em frente à escola, do outro lado da rua, era o Parque
Ecológico do Riacho Fundo.
50
Figura 1.6 – Foto do Parque Ecológico do Riacho Fundo – em frente a uma das escolas locais (2004)
Nos primeiros contatos com as escolas públicas locais, durante a semana pedagógica
realizada em março de 2003, foi possível observar a dificuldade dos professores em organizar
trabalhos cooperativos, muito porque, por um lado, suas agendas de trabalho14 praticamente
inviabilizam reuniões internas para organização de projetos e ações cooperativas e, por outro,
pelo ideário individualista corrente na sociedade e que tem seus reflexos no cotidiano escolar.
Uma coisa soma-se à outra, e a autonomia docente adquire o viés de resolução solitária dos
problemas e construção solitária de projetos didáticos.
14
O funcionamento das escolas públicas no Distrito Federal prevê horários de coordenação pedagógica para os
professores. A coordenação pedagógica seria o espaço para discutir as questões docentes, pedagógicas e
didáticas no foro coletivo, discussões mediadas pelo coordenador pedagógico da escola. Porém, nem todas as
escolas visitadas possuíam a figura do coordenador, e mesmo naquelas em que o coordenador existia, os horários
de coordenação eram utilizados, via de regra, para organizar os diários de classe, corrigir provas e elaborar
materiais didáticos a serem usados nas aulas. Reuniões de planejamento coletivo ocorriam durante a semana
pedagógica, onde é esperado que a escola organize seu planejamento anual além de dar a partida no processo de
construção do projeto político-pedagógico escolar se for o caso, e quando datas comemorativas se aproximavam,
como dia das mães, pais, meio ambiente e festa junina.
52
Em suas falas sobre a relação da escola com a cidade, sobre os problemas sócio-
ambientais locais, e sobre o que seria possível fazer a partir da escola e da ação pedagógica,
pude encontrar alguns elementos que tecem um quadro das relações sociais internas à escola e
da escola com a sociedade local. Destaco a seguir algumas falas que são representativas do
discurso dos professores de forma geral.
Fala (a): diz que “escola não é família” e que os professores “não trabalham porque
têm preguiça”.
Fala (b): coloca que o conjunto de professores “não dá oportunidade a quem chega”,
que os professores, não querem mudar e que existe “o comodismo” e a “má vontade”.
Fala (c): diz que: “Quero ver como isso vai funcionar. É fácil dizer ‘vamos fazer um
projeto’. Mas falta integração. Cai na individualidade”.
Fala (d): diz que: “Falta colaboração entre os professores. Eles não mostram seus
trabalhos”.
Fala (e): “É sempre assim, a gente faz um trabalho, dá duro, e aí vem o colega só
querendo usufruir, ou então não reconhece, pois aí mostra que ele é incompetente”.
III - As relações dos professores com o poder público e com a sociedade local:
15
Weber (2000, p.140) coloca que a obediência a uma ordem não está necessariamente ligada a aceitação
individual da sua legitimidade, o indivíduo pode acatar uma ordem por “fraqueza ou desamparo individual”. O
mais importante não é se a ordem foi acatada por ser legítima ou não, mas se a sua pretensão de legitimidade é
válida o suficiente para consolidar sua existência e determinar a natureza dos meios de dominação.
57
comprometidas, seja encarando o conflito administrativo-docente, mas como uma fala reflete,
“não querem mudar”, estão acomodados.
Essa acomodação é conseguida a “duras penas”, num processo de individualização
cada vez mais intenso observado na sociedade como um todo. Por que considero um processo
“duro”, e não um resultado de simples indiferença social? Porque essa noção introjetada de
individualização acaba fazendo com que o individuo (no caso o professor) exija de si mesmo
um alto grau de competência, uma responsabilização total por seus acertos e desacertos a
partir de um fechamento para o outro, impedindo, paradoxalmente, que ele se realize como
pessoa, isto é, que seja um indivíduo relacional16. O indivíduo acaba aprendendo a viver na
corda bamba, transitando sobre a exigência de responsabilização solitária pelo seu sucesso e o
fechamento para o outro como medida de precaução quando se vê incapaz de realizar suas
tarefas ou como princípio de competição.
Assim, é compreensível que a auto-estima do professor esteja baixa, que esteja
desmotivado e que não se engaje em lutas coletivas pelos seus direitos. Mas, querendo ou não,
sua vida individual está irremediavelmente ligada a dos outros e bani-los do seu convívio, ou
por outra, crer que é possível (ou desejável) realizar-se sozinho, é falácia da modernidade que
só gera solidão e frustração.
Apesar dos professores em suas falas mostrarem as limitações para que projetos
coletivos sejam viabilizados na escola e a partir da escola integrando com a comunidade local,
há professores que se mostram interessados em desenvolver projetos (no levantamento inicial
onde propus a organização de um projeto voltado às questões sócio-ambientais locais, 90
professores, de 8 escolas visitadas, deram seus nomes) sendo que alguns se empenharam
profundamente para que fosse possível realizar algo novo. Num grupo de 20 professores, às
vezes, dois ou três se mostram interessados em partir para a construção de um trabalho, mas
sentem-se tolhidos pela burocracia da escola e pela falta de apoio dos colegas. Boas idéias
acabam sendo colocadas de lado.
Nessas mesmas escolas que visitei, vários professores falaram da vontade de fazer um
trabalho relacionado com o meio ambiente, projetos de coleta seletiva de lixo, de hortas
escolares, de trilhas ecológicas, de alimentação alternativa, de criar oficinas de aprendizagem
para os pais, e assim por diante. Alguns professores se preocupavam com as condições
16
Guareschi (1999) tem um expressão que ao meu ver resume essa idéia: “pessoa=relação”.
58
materiais das famílias de seus alunos, e desejavam fazer algum trabalho que revertesse na
melhoria dessas condições. Mas essas idéias, na maioria das vezes, sequer chegaram ao papel.
observa uma participação popular intensa. Apesar de serem ações pontuais se comparadas ao
tecido social como um todo, essas ações permitem outras abordagens de vida e novos olhares
para a sociedade e conseqüentemente uma relação social que não seja pautada exclusivamente
nos interesses individualistas e liberais. Nessa perspectiva, as ações educativas são por demais
necessárias no emponderamento dos grupos sociais, na articulação entre os conhecimentos
científicos e populares (saberes tradicionais e locais), assim como para incentivar a
emergência de grupos solidários potenciais e ajudá-los nos seus primeiros movimentos de
fundação.
Apesar do Riacho Fundo não constituir uma comunidade no sentido estrito do termo,
relações solidárias e comunitárias (éticas) podem emergir no contexto urbano daquela cidade,
a partir da mobilização e focalização em certos aspectos, em especial, aqueles que se
relacionam às questões sócio-ambientais locais.
O sentido de pertencimento (enraizamento e territorialidade) é mais visível no Riacho
Fundo 1, primeiro pela clareza que parte dos moradores possuem dos problemas urbanos que
são comuns, depois pela existência de uma mobilização mais intensa e por um tempo de
ocupação urbana maior se comparado ao Riacho Fundo 2.
Porém o sujeito não consegue ainda caminhar, desde o seu espaço egocentrado, para o
“outro” por um ato de amor (desinteresse, solidariedade). As relações sociais locais ainda
estão dentro do domínio da possibilidade de conhecer o “outro”, de ao conceituá-lo, englobá-
lo na totalidade de sentido que a modernidade representa. São relações balizadas pelo binômio
conhecimento-poder, espelhadas na ótica do individualismo e amparadas por uma política
fisiológica e clientelista local, não podendo, dessa forma, servirem como base para relações
comunitárias no sentido da communitas17.
Sendo a comunidade ética balizada por valores como a cooperação, a solidariedade, a
autogestão, o bem comum, a dimensão pedagógica dos processos de gestão sócio-ambiental,
nesse sentido, tem um papel importante a cumprir, onde a primeira ação, e talvez a mais
fundamental seja a de servir de espaço para emergência desses valores, num processo que se
dá a partir da responsabilização pela alteridade radical mundana.
Esse processo pedagógico não pode existir apenas no domínio da razão e da
tecnociência, mas englobar os afetos, as intuições e os saberes de diversas ordens. E aí está
um grande desafio, pois vivemos sempre na iminência do erro e da ilusão (Morin, 1996).
17
As relações entre o conhecimento, a alteridade e o poder serão discutidas no capítulo seguinte.
60
Dessa forma, esse processo pedagógico necessita partir da constatação de que à luz
desta modernidade volátil, o indivíduo no acelerado processo de individualização, desenraiza-
se de suas origens biológicas, desvincula-se do seu território e bloqueia as possibilidades de
diálogo real. Sem diálogo real não é possível ao indivíduo tornar-se pessoa, nem construir sua
cidadania.
Ao corroer a possibilidade de emergência da cidadania, a modernidade também corrói
a possibilidade de interação responsável com a natureza, pois este é o nosso legado, um
conceito de natureza que nos causa estranhamento, já que se apresenta na dialética
pertencimento/separação, uma existência reduzida a recurso, oscilando entre patrimônio e
bem circulante, sujeita a um desenvolvimento gerador de crise. Crise essa não restrita apenas
aos aspectos materiais da vida, mas, sobretudo, àqueles valorativos, os que definem a
humanidade do homem. A humanidade está em crise porque no correr dos séculos, na busca
de desenvolvimento, de aumento de lucros, de conhecimento e poder, ela perdeu sua
humanidade.
A ação humana comporta um desequilíbrio acelerado no processo generativo criação-
degradação, vida-morte no planeta. Esse desequilíbrio, como já foi apontado acima, encontra-
se nas relações que o homem estabelece com a natureza, onde a alteridade é posta como
objeto ou então, mais modernamente, relegado à obsolescência.
Podemos, então, encarar a crise atual como uma crise de degradação das relações
sociais, estas entendidas de agora em diante como a crise na pessoa, ou para ficar mais claro,
a impossibilidade de ser pessoa. É a crise da falta da comunidade real – local do
acontecimento do encontro dialógico, da falta da abertura à bondade que se faz como
acolhimento do outro em sua alteridade irredutível.
A práxis pedagógica deve então, por um lado, pautar-se na aceitação da alteridade
mundana e nas relações dialógicas e por outro, no que se refere às questões sócio-ambientais,
procurar tratar os conflitos e questões comuns tecendo um grande esforço no sentido de
traduzir os problemas privados em questões públicas. Ao mesmo tempo, enquanto atitude
relacional, esta práxis deve permitir e mesmo incentivar a emergência de vínculos solidários e
comunitários, de novos espaços do fazer humano e novas formas de organização social, como
parte de um processo educativo mais amplo, não apenas balizado pelo conhecimento, mas
antes e fundamentalmente, pela responsabilidade pelo “outro”, pela alteridade.
GE DF
61
Leon Gieco
de identidade moderna, sua relação com o conhecimento moderno e como este conhecimento
contribui para a sabotagem da aceitação da alteridade radical.
Zeca Baleiro
Nas sociedades tradicionais a identidade era algo que não era objeto de
problematização, uma vez que o indivíduo constituía uma realidade estável, vivendo numa
determinada ordem de papéis sociais e submetido a um sistema de normas que determinava os
comportamentos socialmente aceitáveis.
Com o advento da modernidade esta identidade não problemática e não
problematizável passa por profundas alterações. O sujeito passa a estar no centro do mundo,
resultado de um novo paradigma que aponta para uma nova subjetividade18 do indivíduo, que
se vê forçado a responder por seus próprios problemas na ausência de uma comunidade
vinculante e de normas de comportamento tacitamente aceitas.
Esta identidade moderna tinha como características a condição egocentrada, a auto-
consciência e a consciência social, esta última dada pela necessidade de relacionar-se com o
outro na exigência de reconhecimento mútuo.
Na filosofia é Descartes que introduz a idéia de sujeito ao afirmar sua famosa frase
“cogito ergo sum” e na relação com o objeto do conhecimento. O contexto de afirmação
18
Neste capítulo o termo subjetividade é entendido como sendo efeito de um campo de produção social (campo
de subjetivação) diferenciando-se da noção de sujeito compreendido como um dado original. Nesse sentido a
subjetividade é resultado da tensão entre o indivíduo e a sociedade a partir de mútua relação e influência. Dessa
forma é possível também se pensar em subjetividades coletivas, além da individual, que transcendem as
dicotomias entre indivíduo e sociedade, sujeito e grupo, a partir da mútua implicação nas relações mantidas entre
o indivíduo e a sociedade e entre o sujeito e um determinado grupo social do qual ele faça parte.
63
19
Nesse sentido, Descartes advoga pela instauração de uma “nova filosofia”, chamada por ele de prática, em
contraposição à especulativa. Essa nova “filosofia prática” tem por modelo, as ciências físicas, e se contrapõe,
desde então, à filosofia, tida por Descartes, como meramente especulativa. Nas palavras de Descartes: “Adquiri,
porém, algumas noções gerais da física e, ao principiar a experimentá-las em diferentes dificuldades particulares,
observei até que ponto podem levar e quanto são diferentes dos princípios de que até o momento nos temos
utilizado, acreditei que não podia mantê-las escondidas sem grave infração da lei que nos obriga a buscar, tanto
quanto isso esteja em nossa dependência, o bem geral de todos os homens. Elas fizeram-me enxergar que é
possível adquirir conhecimentos muito úteis para a vida e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se
ensina nas escolas, pode-se encontrar uma filosofia prática (...)” . Descartes, R. (s/d, p.113). É certo, contudo,
que Descartes funda uma nova metafísica ao abordar o mundo como transparente e dado à razão humana.
64
senhor-escravo em Hegel pode ser uma relação de mútua dependência, mas o escravo não é
um outro verdadeiramente, mas o “outro do senhor”, ao senhor referido.
Santos ao abordar a questão da identidade e da modernidade, refere-se aos processos
de colonização do período moderno, colocando que “a subjetividade do outro é negada pelo
“facto” de não corresponder a nenhuma das subjetividades hegemônicas da modernidade em
construção: o indivíduo e o Estado” e que “o outro não é um verdadeiro indivíduo porque o
seu comportamento se desvia abissalmente das normas da fé e do mercado.” (1997, p.139)
Para Santos, a subjetividade moderna foi sujeita desde sempre a tensões múltiplas.
Neste jogo de tensões, saiu vitoriosa a subjetividade individual e abstrata, ao invés de uma
subjetividade coletiva e contextual. A vitória da subjetividade individual sobre a coletiva deu-
se no bojo das pressões exercidas pelo princípio de mercado e da propriedade individual,
acarretando segundo ele a “exigência de um super-sujeito [o Estado liberal] que regule e
autorize a autoria social dos indivíduos” (1997, p.138) e no vazio criado pela destruição das
comunidades medievais, vazio este que “vai ser conflituamente e nunca plenamente
preenchido pelo Estado moderno”(1997, p.137).
Esta subjetividade individual surge como independência à sujeição pessoal (relações
senhor-escravo) e é confundida com a idéia de liberdade. Mas a sociedade moderna vive na
contradição, pois esta “liberdade” convive com a dominação. Segundo Ramos (2002):
Dessa maneira, o sujeito só é “livre” internamente, numa esfera privada. Nas relações
de trabalho se submete ao “senhor” – o patrão, e na esfera pública à autoridade da lei e do
Estado.
A partir da inspiração nos trabalhos de Bauman (1997; 2001; 2003), dois conceitos
apresentam-se como articuladores de possíveis alternativas em face dos desafios práticos da
contemporaneidade: o tempo e a diferença. Por meio destes dois conceitos as conseqüências
da modernidade são expostas, por um lado, como resultado da alteração do tempo e
enraizamento das incertezas e urgências na efetivação das identidades, e por outro, como
resultado da “fetichização” da diferença, alçada a marca identitária, sem prestar atenção à sua
ambigüidade latente expressa na polaridade inclusão/exclusão.
2.2.1. O tempo
Bauman
Gilberto Gil
67
Será o tempo uma entidade? Será que o tempo existe fora do espírito? O tempo é uma
realidade ou uma representação? Há um tempo absoluto ou ele é relativo? Estas são questões
que percorreram o pensamento filosófico e que ainda se fazem pertinentes no contexto da
filosofia, porém são as macro-alterações na vivência do e no tempo para os indivíduos das
sociedades ocidentais – algo próximo de uma história do tempo que são relevantes para o
presente trabalho.
Com a ciência moderna há uma espécie de abolição do tempo: o universo
essencialmente permanecia idêntico a ele mesmo – imutável, ainda que em movimento. Este
universo era compreendido como uma grande máquina, cujo funcionamento seria descrito por
leis físicas e matemáticas gerais e universais, também imutáveis, onde o tempo é concebido
como uma grandeza contínua e absoluta.
No mundo cotidiano humano, o tempo físico pouco tem a ver com o tempo subjetivo e
psicológico – aquele que nos dá a dimensão da finitude e sobre o qual organizam-se as vidas
individuais e sociais. Com o advento da modernidade este tempo subjetivo modificou-se
sensivelmente. Se antes o tempo estava amalgamado aos afazeres cotidianos – sem estar
separado nem no pensamento nem na prática dos indivíduos, com a modernidade, o tempo
passou a ser uma categoria do pensamento, separada da realidade cotidiana, isto é, algo que
poderia ser objeto de conhecimento e ferramenta para que certas ações e atividades humanas
fossem melhoradas e otimizadas. Essa categorização tem como impulso o processo industrial,
a necessidade de otimização das tarefas produtivas. O tempo é visto como uma ferramenta
que bem controlada poderia gerar outras ferramentas que encurtariam distâncias (modificação
da relação espacial) diminuindo o próprio tempo para percorrer essas distâncias. Ele passou a
ser questão da "técnica" onde reduzir o tempo realizando as tarefas mais rapidamente, era
acabar com o tempo "improdutivo" ou ocioso.
O tempo como ferramenta passa a ser assim uma questão fundamental na organização
da produção tornando-se também um novo tipo de mercadoria, já que embutido dentro do
sujeito realizador das tarefas produtivas – não se vende apenas o trabalho, mas o tempo de
trabalho de um indivíduo.
No processo de otimização do tempo, no seu duplo - técnica e mercadoria, modificam-
se as relações sociais, estas também referidas à temporalidade. A modificação mais visível se
dá a partir do século XX, principalmente ao se contraporem as sociedades industriais da
primeira metade do século com as atuais sociedades globalizadas. Ora, segundo Bauman
68
(2001), a “modernidade pesada" (referência ao modelo social do século XIX até a primeira
metade do século XX) foi caracterizada pelo seu volume e tamanho, isto é, pela conquista
territorial onde o espaço era o valor e o tempo a ferramenta. Este tempo era de início flexível
e maleável para que fosse possível conquistar determinado espaço, mas ao ser apossado o
espaço, seu controle necessitava de um tempo rotinizado, este dado pela lógica da produção
em série das fábricas. A esta modernidade, ou melhor, a este período da modernidade
compreende um capitalismo (tanto na produção quanto no trabalho) que Bauman chama de
fixo ou “sólido” – imobilizado nas paredes das fábricas e na rotina das tarefas.
consciência de sua finitude e do desespero de ter que efetivar sua “identidade” (lembrando a
questão do reconhecimento hegeliano) num tempo que perdeu sua permanência. As
incertezas, que antes estavam no âmbito das posições relativas entre átomos e partículas, estão
agora a toda volta, nas relações entre os seres humanos.
Este tempo fugaz encaminha as incertezas, que no campo da sociedade acarretam
comportamentos de preservação e ataque. Preservar o que já se conseguiu encontrar,
esforçando-se por manter um núcleo identitário mínimo, seja ele a etnia, a raça, a opção
sexual, os ritos religiosos, a elite econômica, a elite intelectual, enfim uma identidade social
partilhada com outros e o ataque aos diferentes, aos estranhos, outros que estão fora dos
núcleos identitários sociais, culturais e simbólicos comuns a cada grupo social. Esta
modernidade fluida tem como vitrine a globalização. As sociedades modernas
contemporâneas são globalizadas, não apenas nos aspectos econômicos, mas culturais,
simbólicos e sociais. O tempo quase-instantâneo não está relacionado apenas à velocidade dos
fluxos dos capitais financeiros, assim como a virtualidade não está restrita aos processos
especulativos sem território delimitado. Ambos, tempo e espaço, estão referidos às relações
sociais cotidianas, modificando profundamente os juízos de valor relativos à constituição de
vínculos duradouros entre os indivíduos.
Os vínculos sociais entre os indivíduos tendem a ser tão fluidos como o capital
moderno – que escapa à permanência física.
Nestas sociedades marcadas pelo tempo quase-instantâneo e pelo sujeito virtualizado
em busca de reconhecimento, as incertezas passam a ser vistas como frontais ataques à
possibilidade de construção da “identidade” e da obtenção de reconhecimento no sentido da
afirmação de sua subjetividade, já que o sujeito precisa encontrar formas para por ordem, para
sentir-se seguro e para estabelecer seus limites de existência.
Mas ao entrar-se no jogo da criação de identidades e busca de reconhecimento da
modernidade corre-se o risco de levar de contrapeso a própria modernidade, seus valores, suas
práticas e seu capital simbólico hegemônico e as identidades podem se tornar variações sobre
um mesmo tema, um certo monismo, uma “mesmice” onde o reconhecimento é fortuito e
fugaz, escapando no instante seguinte. Nesse sentido, a polaridade identidade/diferença
constitui um aspecto da mesmice moderna, ou melhor, da totalidade moderna, onde as
diferenças, na verdade, estão dadas dentro de um mesmo conjunto de valores possível, onde
também são efetivadas as identidades. Este conjunto tem como fundamentos, o conhecimento,
70
2.2.2. A diferença
Bauman
Poned atención:
un corazón solitário
no es um corazón
Antonio Machado
Enrique Dussel em seu livro “Para uma ética da libertação latino-americana” compara
dois termos que normalmente são usados como sinônimos no linguajar cotidiano: diferença e
distinção.
Segundo ele, a palavra diferença na sua raiz latina é composta por dis, que significa
divisão ou negação, e por ferre que significa levar com violência, arrastar. Por conseguinte,
diferente é aquele que é separado ou negado violentamente a partir de uma totalidade de
sentido que o engloba: “O diferente é o arrastado desde a identidade, in-diferença originária
ou unidade até a dualidade. A di-ferença supõe a unidade: o Mesmo” (Dussel, 1977, p.98). Já
o termo distinto tem outra conotação; sua raiz latina aponta para a pluralidade e diversidade,
uma vez que o verbo tinguere significa pintar, por tintura. Dessa forma o distinto não supõe
72
uma unidade anterior, ele é separado pela diversidade e não necessariamente faz parte de uma
totalidade que o compreenda.
Esta diferença de sentido entre distinto e diferente abre a possibilidade para se pensar
as alternativas éticas no mundo globalizado onde o termo diferença transita em caminhos
ambivalentes: por um lado uma diferença que exclui o outro na negação de sua alteridade,
realização da indiferença social, por outro uma diferença que engloba e antropofagicamente
inclui o outro numa totalidade de sentido que novamente, nega a alteridade do outro,
destinado a efetivar o Mesmo - a dominação.
Como diz Dussel (1977, p.98):
surpreender, não puder se revelar a mim na proximidade do acolhimento estarei vivendo uma
relação alienada e prisioneira, onde eu e o outro somos o mesmo.
O Rappa
Atualmente o conceito da diferença serve de suporte para várias ações políticas, como
a defesa dos direitos humanos, das minorias, das intervenções bélicas em estados nacionais e
das estratégias de inclusão social entre outras. Entretanto essas ações, como não poderiam
deixar de ser, estão permeadas de ambigüidades – reflexo da própria totalidade de sentido da
modernidade. Tomando os conceitos da diferença e da exclusão social, por exemplo, é
possível ver como esses paradoxos são criados e mantidos, assim como as possibilidades de
ruptura ou de rotas de fuga.
A diferença, no caso da exclusão social, abre caminho para que a própria exclusão
comporte uma heterogeneidade conceitual tornando-a uma espécie de conceito guarda-chuva
da modernidade.
As construções conceituais20 procuram incluir num único termo situações distintas,
tais como a não inserção no mercado de trabalho formal e a discriminação étnica, por
exemplo. De forma geral, tanto aquele que não consegue trabalho, quanto aquele que é
discriminado etnicamente, são excluídos. Viver na pobreza também é viver na exclusão,
porém pobreza e exclusão não são sinônimos. Dada a heterogeneidade de situações às quais se
aplica, a exclusão é conceito mais abrangente que pobreza e por isso apto a transitar entre
discursos ideológicos frontalmente díspares. A idéia de exclusão pode servir, contudo para
20
Há uma vasta produção bibliográfica sobre exclusão social. Para aprofundamento sobre as diferentes
construções conceituais sobre exclusão social Cf. Sawaia, B. (Org) – As artimanhas da exclusão: análise
psicossocial e ética da desigualdade social, Vozes, 2002, em especial o artigo de Wanderley, M. B. – Refletindo
sobre a noção de exclusão. Como exemplo de pesquisas realizadas com grupos excluídos Cf. Burzstyn, M.(Org.)
– No meio da rua: nômades, excluídos e viradores, Garamond, 2000, ambos citados na bibliografia desta tese.
76
uma crítica a modernidade – modernidade que sem dúvida alguma exclui e desenraiza grupos
e populações inteiras, ao mesmo tempo em que promove a inclusão das diferenças dentro da
mesma totalidade de sentido que representa.
Do ponto de vista dos valores da sociedade liberal dominante, excluídos são aqueles
cujos valores pessoais, simbólicos e culturais não são reconhecidos, e que não estão inseridos
no mercado de trabalho, não tendo, por conseguinte, condições materiais adequadas de
sobrevivência – presas fáceis do clientelismo político e da demagogia. A situação dos
migrantes forçados a se deslocar por conta de suas precárias condições de vida é exemplar da
exclusão. Saem em busca de trabalho nas grandes cidades e metrópoles e acabam se tornando
em boa parte, um verdadeiro contingente reserva de força de trabalho barata, porque não
qualificada e porque desconhecedora dos seus direitos de cidadãos.
A exclusão é uma vitimização. Se dá no olhar de um para o outro. Estigma que separa
e faz desaparecer, por um lado, e por outro, engole e digere, porque a “desejada” inclusão
social carrega seu perigo escondido – a antropofagia “mais que moderna”, porque procura
incluir o excluído na totalidade dos valores da sociedade moderna - como no antológico filme
“The Wall” do grupo inglês Pink Floyd, onde os alunos enfileirados entram na máquina de
moer carne (a escola) e saem de lá “lingüiças”. Antes de procurar estratégias e desenvolver
políticas públicas para incluir o excluído, precisamos perguntar quais são os pressupostos por
meio dos quais estamos definido que este homem ou esta mulher são excluídos, onde
imaginamos que eles devam ser incluídos e porquê.
A luta pela inclusão muitas vezes é feita na superfície – deixa de buscar a radicalidade
da própria existência da exclusão e combatê-la nessa raiz. Assim, falam-se dos excluídos do
“progresso”, dos excluídos da modernidade, como se ser “moderno” fosse bom per se, sem
perceber que é a própria modernidade – como a temos hoje – a causadora da exclusão. Este
não é mais um problema apenas do modelo econômico – o capitalismo – mas de todo um
ideário valorativo e simbólico que perpassa as relações interpessoais. A exclusão é apenas
mais um novo nome para algo que a humanidade conhece desde seus tempos mais antigos: a
injustiça.
Ora, a exclusão está dentro daquele rol de diferenças negociáveis – não há espanto
com a exclusão, pelo contrário, ela é necessária para o andamento da política e da economia e
justificativa para estas agendas. A exclusão não instaura o terror a que Baudrillard se refere
porque os excluídos não são alteridades, são diferenças. A exclusão, é claro, pode suscitar
77
não se deixa capturar devido a sua liquidez assustadora. Este capturar não é apenas exercício
de crítica de teóricos bem intencionados, mas efetiva práxis - a ação na vida - esta, na
modernidade, profundamente boicotada. Como parar o tempo moderno instantâneo que sabota
as tentativas de permanência e de futuro? De responsabilidades que são diluídas tanto pela
organização do trabalho – que pulveriza competências e compromissos, quanto pela
moralidade fincada em lastros de interesses pessoais?
Apenas valores estranhos, indesejáveis e externos a essa totalidade, podem penetrar o
olho do furacão denunciando que a aparente normalidade dos números e estatísticas, das
certezas científicas, da ordem instituída, da banalidade da fome e da guerra, na verdade não
passam de situações temporárias e ilusórias – que vivemos todos num turbilhão. Nesse
sentido, não há nada de mais estranho, indesejável e externo às estruturas sociais vigentes que
a alteridade e a comunidade que se funda em respeito a ela.
É com a alteridade e com a comunidade (communitas) que é possível romper, ainda
que ponto a ponto, grupo a grupo, com um modo de vida (e de morte) que a atual
modernidade tem levado ao seu mais alto grau de sofisticação. Um modo de viver marcado
por paradoxos e ambigüidades – incluir para excluir, fazer guerras para realizar a paz,
promover a liberdade do indivíduo fomentando a injustiça.
A inversão ética que se dá com emergência da alteridade institui a possibilidade de
ruptura: não sou eu quem digo – “tu és excluído”, a partir de pressupostos teóricos, culturais
ou simbólicos pessoais, mas é o tu (o outro) que me chama com um rosto que pode me revelar
sua dor e sofrimento.
Este rosto ao me revelar sua condição, seu “ser”, obriga-me a uma resposta, e com isso
institui-se uma linguagem e um discurso. A primeira ruptura com a modernidade é esta: estar
presente ao apelo que a visão do rosto do Outro me faz, detendo o tempo líquido na
inalienável responsabilidade que tenho pelo vislumbre do rosto. Esta ruptura encontra-se no
âmbito da relação interpessoal e intersubjetiva. É lá que a ética se funda, ética como justiça,
não como normas morais, mas como afirmação da pessoa humana.
A ruptura e o desafio encontram-se nisto: em ter como fundamento não um sujeito que
conhece – um sujeito cognoscente, mas um sujeito ético, a pessoa, aquele que vê a face do
outro como absolutamente outro que não ele, distinto, mas nunca diferente.
79
ampliada que é possível dizer que se constitui em grave crise: a crise da banalidade do mal,
das infinitas possibilidades de conhecer à revelia do “outro”, de dominar e de ser negligente.
Nesse sentido, a questão da obrigação moral (do âmbito dos imperativos societais)
deve ser circunscrita à ação pessoal da responsabilidade e do fazer do recolhimento da morada
o lugar de acolhimento do outro, pois,
eu. A tematização e a conceptualização, aliás, inseparáveis, não são paz com o Outro, mas
supressão ou posse do Outro” (Levinas, 1980, p.33).
Fica então a pergunta: como é possível realizar uma educação que tenha como
princípio a justiça e como limite a alteridade no e do mundo?
Dentre os educadores brasileiros, Paulo Freire com certeza é aquele que lançamos mão
quando queremos discutir o papel da educação na construção da justiça entre os homens.
Voltada para o empoderamento de indivíduos e grupos “excluídos”, ou como ele mesmo diria,
dos oprimidos, a pedagogia freiriana alçou o diálogo à categoria de fundamento da
humanidade do homem, dando a ele o sentido de libertador da opressão e transformador da
sociedade – o diálogo, para Freire, é em si educativo e libertador.
Nascida no bojo das transformações político-econômica das décadas de 50 e 60 do
século passado, no Brasil, a teoria freiriana introduziu novas categorias para a reflexão da
prática educativa. Tendo como fonte o existencialismo cristão, a idéia de liberdade é explícita
nos seus escritos, sendo entendida como condição indispensável para que os homens realizem
sua vocação histórica, a de “ser no mundo”, isto é, a de serem humanizados. Essa liberdade,
que não poderia ser doada, era busca contínua na natureza inacabada do ser humano.
Paulo Freire observava as mudanças políticas que aconteciam naquela época: o
sectarismo de direita – o golpe militar de 1964, as organizações populares, os movimentos
sociais que surgiam e a emergência do sectarismo de esquerda. Ao sectarismo ele contrapunha
o radicalismo, como sendo este a verdadeira matriz do revolucionário. “A radicalização, pelo
contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta” (Freire, 1986, p.22).
Percebia a sociedade brasileira como uma sociedade fechada, reflexa e alienada, onde
o centro das decisões econômicas estava fora dela. A angústia de ver seu povo em situação de
opressão, dominados por interesses alheios, interesses econômicos e políticos que mantinham
grande parte da população brasileira em situação de fome e ignorância, levou Freire a se
engajar na luta pela emancipação e transformação sociais. Essa luta deu-se para ele no campo
da pedagogia, pois entendia que a educação e o conhecimento poderiam ser instrumentos de
83
libertação dos homens e mulheres de sua condição de oprimidos. Mas não seria qualquer
educação ou conhecimento que poderia realizar esta tarefa emancipatória, mas sim uma
educação problematizadora e um conhecimento crítico. A educação libertadora seria “aquela
que permite aos sujeitos assumirem uma posição profética, entendendo-a como a capacidade
de “denunciar as estruturas desumanizantes e, ao mesmo tempo, “anunciar” um novo projeto
de sociedade” (Damke, 1995, p.60).
Na base deste processo pedagógico libertador está a noção de conscientização.
Conscientização que como processo, deveria caminhar da ingenuidade para a criticidade dos
atos humanos.
A noção de conscientização, tal como Freire a define, envolve um processo em que os
homens e mulheres são vistos como sujeitos históricos e de conhecimento, que ao
problematizar o mundo e a si mesmos em suas realidades cotidianas, percebem-se em situação
de opressão ao mesmo tempo em que percebem a possibilidade da transformação.
Esta problematização se dá a partir da “abertura do ser” isto é, abertura da consciência
às coisas num movimento de ir aos demais entes e ao mesmo tempo deixar-se invadir por eles.
Esta abertura, intencional e recíproca, significa que o mundo se faz presente à nossa
consciência por meio do conhecimento, conhecimento que modifica a consciência,
modificando o ser humano.
Porém, esta consciência intencional aponta que o conhecimento é sempre inacabado,
que o sujeito ao dirigir sua atenção para um objeto, o faz a partir de um foco, não podendo dar
conta de sua totalidade. Isso significa que os objetos são compreendidos como totalidades
inteligíveis às quais cabe à consciência captá-los, mas este conhecimento nunca representará o
todo.
Ora, esta consciência é individual, é a consciência de um sujeito. Dessa maneira, a
condição de possibilidade do conhecimento é a subjetividade, pois é o sujeito que pode deter-
se perante as coisas para pensá-las e descobrir o sentido das mesmas. Segundo Damke, a
referência teórica freiriana para esta idéia vem de Husserl com seu “perspectivismo” pela
idéia de inacabamento das coisas e “pela possibilidade de serem abordadas por ângulos
diferentes, o que as modifica e enriquece” (1995, p.64).
Paulo Freire apesar de defender a educação como uma práxis política a serviço da
libertação permanente da humanidade, entende que isto não é automático, pois percebe que a
educação pode servir aos interesses da dominação e da manutenção do status quo, sendo dessa
84
forma uma educação que desumaniza os homens e mulheres. A este tipo de educação, Freire
dá o nome de “educação bancária”. A educação bancária é aquela na qual os educandos são
passivos recipientes do conhecimento, acomodados às escolhas externas sobre o que aprender,
conformados à idéia de que nada sabem e, portanto, à situação de objetos do processo
educativo onde o sujeito é o educador, explicitando a relação autoritária que subjaz entre o
educador e o educando.
Mas para Freire, os seres humanos foram criados como seres ativos e construtores de
conhecimento ao invés de passivos receptores ou recipientes de saber. Segundo Damke (1995,
p.64):
e categorias que serão utilizados. Segundo Joderlsma (1999), para Freire, “to be human is
construct knowledge, which is to name, which is to transform, which is to be an active agent,
which is to be a subject. But naming can only be possible ontologically in freedom.”
Este é um processo baseado no conhecimento, ou seja, na idéia de que o conhecimento
é motor de transformação social, e que por meio dele é possível realizar a vocação dos
homens de serem livres e de viverem numa sociedade justa, livre de opressões.
A busca pela liberdade e pela justiça social marca a pedagogia freiriana. A liberdade é
suporte não somente da abordagem construtivista que permeia o processo pedagógico, mas é
em si o objetivo desta “pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”.
(Freire, 1986, p.44). O que transparece então é que a justiça surgiria quando os homens
estivessem livres da opressão, ou seja, a justiça seria decorrência da realização da vocação dos
homens de “ser mais”, de serem livres. O processo de libertação dos homens seria já o
caminho para a vida plena e justa, caminho este, salientando, trilhado nos campos do
conhecimento crítico, da “palavra verdadeira” que pronuncia o mundo.
Dito isso, cabe então perguntar, porque o termo “dilema ético” no título deste item?
Acontece que liberdade e justiça não são noções irmãs nem são convergentes por
“natureza”. Ao contrário, liberdade e justiça podem constituir polaridades antes que
complementaridades. É nesta possibilidade de antagonismo que se encontra o dilema ético da
proposta educativa de Paulo Freire (Joldersma, 1999).
Como disse antes, a possibilidade de conhecer o mundo, de tematizá-lo tem como par
a possibilidade de possuí-lo e dominá-lo.
A alteridade é uma noção que Freire não adota. Prefere trabalhar na polaridade
opressor-oprimido, ambas circunscritas a um mesmo todo – a luta de classes com fortes tons
gramscianos (principalmente no que se refere ao papel das elites intelectuais comprometidas
com a libertação dos oprimidos). Ainda que tenha clareza do pertencimento a uma totalidade,
esta se refere muito mais ao modelo político-econômico gerador de um grande contingente de
excluídos (oprimidos e marginalizados) do que propriamente à totalidade moderna com suas
múltiplas dimensões – sociais, simbólicas, culturais e epistemológicas (além das econômicas e
políticas).
Mas é na alteridade que reside toda a possibilidade de justiça, toda a ética. Ética que o
próprio Freire sonhou poder ver emergir e para qual trabalhou toda a vida. Porém duas
perguntas se fazem pertinentes: a noção de liberdade nos trabalhos de Freire pode levar à
87
justiça que almeja? O conhecimento como emancipação está de acordo com uma proposta que
se queira ética?
Para ambas as perguntas Emmanuel Levinas responderia negativamente. Para Levinas
a possibilidade aberta pela idéia de liberdade do ser e de ser leva à violência. Violência que se
faz contra o outro, no caso de Levinas referido aos seres humanos e as relações
intersubjetivas.
Esta violência se dá por meio de um conhecimento que tematiza e conceitua o “outro”,
o reduzindo ao “mesmo”, isto é, negando-lhe sua alteridade, englobando-o numa totalidade de
sentido que é dada pela consciência intencional do sujeito, ou seja, por meio do olhar
perquiridor e livre do sujeito – sujeito que pensa e conceitua, que classifica e organiza, e que
se sente livre para dizer que este homem é rico, aquele é pobre e excluído, e se é excluído
então deve ser incluído, onde? Na mesmice da qual o sujeito que conceitua faz parte,
mesmice onde só existem sujeitos (“eus”) nunca “outros”, onde só há possibilidade de
“diferenças negociadas”, nunca distinções abertas. Nas palavras de Levinas (1980, p.33):
Para Levinas o Outro não pode ser possuído, conceitualizado ou tematizado. Assim,
reduzir a realidade aos temas e conceitos construídos pelo sujeito cognoscente, mesmo que
historicamente contextualizado, significa abrir mão da alteridade mundana.
Este conhecimento construído não é meramente desvelamento da realidade. Não há
neutralidade na pronúncia do mundo. O ato de nomear é um processo de objetificação, uma
maneira de fazer o mundo enquanto Outro se tornar familiar ao mundo do sujeito
cognoscente, reduzindo a distinção à identidade. É uma forma de domesticação e controle do
mundo, do Outro.
88
A diferença entre Freire e os opressores está por um lado no projeto político – voltado
para a maioria excluída, e por outro complementarmente, para o fato de incluir esta maioria
no pequeno círculo de poder delimitado pelas elites econômicas, mesmo que visando uma
transformação. Sua pedagogia procura ser emancipatória e libertadora nesse sentido – de
incluir um número cada vez maior de homens e mulheres no mundo dado, no sentido de sua
transparência aos sentidos humanos, supondo que estes homens e mulheres libertos de sua
condição de opressão e alienação desse mundo, por meio do conhecimento, transformam a
realidade social. O projeto de Freire, ainda que bem intencionado, permanece dentro da paleta
simbólica da modernidade e dos ideais do Iluminismo.
Freire acerta ao tratar a educação como sendo um ato de profundo amor aos homens
elegendo-o como motor para o ativismo político-pedagógico e ao tratar os homens e mulheres
como seres concretos, contextualizados social, histórica, cultural e politicamente. Entretanto,
não basta contextualizar sócio-histórica e politicamente homens e mulheres em situações de
opressão e humilhação para que a educação seja um acontecimento ético – isso somente pode
ocorrer se estes homens e mulheres puderem ser vistos como outros, absolutamente outros, de
quem nada se pode saber que não seja revelado por eles ao contrário de descoberto ou
desvelado pelo sujeito. Esta revelação possui um sentido único e anterior às determinações
históricas e culturais, conhecidas a priori, ou seja, elas não são a “primeira palavra” no
discurso (diálogo) entre o Outro e o Mesmo. Antes delas está a expressão do Rosto que se faz
imperativo moral.
Afirmar a liberdade antes da responsabilidade é abrir a possibilidade de ver o “outro”
como objeto de perquirição de uma consciência livre e intencional, e dessa forma no processo
político-pedagógico freiriano onde a liberdade e o conhecimento são os pilares, a alteridade se
perde, e a questão da justiça (ética) no sentido exposto por Levinas, não se realiza.
Nas palavras de Levinas (1980, p.32):
Pode-se argumentar que o oprimido a que Freire se refere é um Outro a quem se deve
responder, na sua condição de vítima e dessa forma engajar-se na luta pela libertação de sua
condição de oprimido. Isto não seria uma inverdade, porém a construção teórico-filosófica de
Freire não parte dessa noção - de responsabilidade (que é resposta a Outrem) antes de
liberdade - e sim de um conjunto de pressupostos políticos e econômicos sobre os oprimidos
dados a priori do estabelecimento da relação. A polaridade opressor-oprimido encerra ambos
numa totalidade dada pela categorização política realizada a priori pelo sujeito que conceitua.
A tradição cristã que permeia os trabalhos de Freire aponta para a caridade, para a
justiça e para liberdade. Freire tem consciência da dominação que os oprimidos e
marginalizados sofrem e da necessidade urgente da transformação social. Seu projeto é
político e mesmo “religioso” antes que pedagógico propriamente dito. O fundamento do
projeto pedagógico, contudo, encontra-se no sujeito cognoscente – e este sujeito, na crítica
levinasiana, não funda a ética, a justiça. O sujeito que funda a ética é o sujeito ético, isto
significando que todo conhecimento é posterior à ética. Anterior ao conhecimento está a
responsabilidade pelo outro.
É o chamado do Outro, que me obriga à responsabilidade, que permite o surgimento
da liberdade e a justifica. Nesse sentido a responsabilidade não pode ser resuminda à
responsabilidade política, como uma tomada de posição ou engajamento, mas sim dever
moral, condição da humanidade do homem. Neste nível ético, o conhecimento envolve uma
forma de responsabilidade e obrigação que vem de um lugar fora de mim - vem do Outro.
Segundo Levinas (1980, p.176):
Ou mais adiante:
90
O rosto do outro fala-me. Sua fala é uma ordem – uma obrigação da qual não posso
me furtar sob pena de me tornar não humano. Nesse sentido, esta obrigação, responsabilidade
que se abre como bondade, é o que institui a liberdade de amar.
Resumindo, a possibilidade aberta de tudo conhecer, ou de compreender o mundo
como transparente, dado aos sentidos, abre também a possibilidade de cometer algum tipo de
91
Segundo Martin Buber (1979) o homem é um ser relacional, que vive a dualidade do
pronunciamento de duas palavras fundantes da existência humana, a palavra Eu-Tu e a
palavra Eu-Isso. Essas palavras delimitam o horizonte de atuação humana quanto à qualidade
das relações estabelecidas. Se na primeira palavra (Eu-Tu) a relação fundada é o encontro face
à face, inteiro, recíproco, imediato e presente, na segunda palavra (Eu-Isso) a relação que
surge é a experiência desprovida de presença, objetivável, parcial, passada.
Ambas as palavras são necessárias à existência humana. A questão que Buber coloca é
que um indivíduo que não pronuncia a palavra Eu-Tu não é humano: “o homem não pode
viver sem o ISSO, mas aquele que vive somente com o ISSO não é homem” (1979, p.39).
O Eu que pronuncia Tu é diferente do Eu que pronuncia Isso, sem que se isso se
constitua em um abismo esquizofrênico, mas sim, na possibilidade de duas estruturas
relacionais dadas por meio de ações essenciais distintas do homem que constroem atitudes
essenciais correspondentes. Buber chama essas atitudes essenciais de movimentos básicos
(Buber, 1982).
No relacionamento Eu-Isso a palavra proferida tem a intenção de conhecer o mundo,
classificá-lo e transformá-lo. Isso se dá sobre a base da uma razão moderna cujos pressupostos
já foram descritos neste trabalho anteriormente. O Isso é o objeto de conhecimento,
aquilo/aquele que não é sujeito, aquilo/aquele que tem sua alteridade negada. Claro está que
muitas ações humanas são e devem ser do âmbito dos relacionamentos Eu-Isso, como o ato de
buscar alimento, por exemplo. Entretanto, o que vemos hoje é um alargamento indistinto
desse modo de ser sobre o mundo – esta é a crítica de Buber. A palavra-ação Eu-Isso não
funda a humanidade do homem, na verdade o coisifica; sua pronúncia por meio do
movimento básico do homem de dobrar-se-em-si-mesmo instaura um monólogo e a mesmice:
Mas esse sujeito humano que vive a dualidade da sua atitude frente ao mundo não é
uma idealização. Ele é um ser encarnado, enraizado na sua condição biológica, física e
cultural.
Para Morin (1999, p.189), “todo indivíduo-sujeito é um centro gerador/receptor de
comunicações e toda associação entre indivíduos (celulares ou policelulares) comporta
intercomunicações entre congêneres”. Essa comunicação é possível, pois os indivíduos-
sujeitos possuem um código comum possibilitado pelo mesmo aparelho computante, que no
caso humano é o aparelho neurocerebral, chamado por Morin de máquina hipercomplexa.
Essa assertiva aparentemente seca reveste-se de sentido quando compreendemos que Morin
busca enraizar a noção de sujeito na physis e na biologia, retornando o sujeito humano a um
outro lugar na produção do conhecimento – conhecimento que buscando a verdade é limitado
pelas traduções e representações realizadas pelo pensamento e pelas incertezas, erros e ilusões
criadas pelo sujeito.
A comunicação é uma característica de todo e qualquer ser vivo. O ser vivo computa
permanentemente e ao computar constitui-se como centro de comunicações e ações. Morin
não se preocupa com a qualidade dessa comunicação - o que é comunicado, o dito - nem
94
Esse ato de amor seria um ato da vontade humana, que opta dentro de um espectro
polarizado desde o total egoísmo, onde no limite reside o assassinato, até o total altruísmo,
onde no limite encontramos o sacrifício de si para o outro. Esse ato de amor é o ato de voltar-
se ao outro, e é um ato responsável, pois “amor é responsabilidade de um Eu para com um
Tu”(Buber, 1979, p.17).
Este amor não é o amor romântico, idealizado, mas comporta em seus fundamentos a
distinção e o conflito, pois “liga as individualidades egocêntricas nos seus caracteres mais
íntima e intensamente subjetivos” (Morin, 1999, p.411). Somente dessa maneira, frente á
exclusividade da presença do outro, é possível surgir o amor na relação dialogal Eu-Tu.
Nesse sentido, para Buber, não há amor sem diálogo. Não há amor verdadeiro se não
houver um “sair-de-si-em-direção-ao-outro” - que já é resposta, é diálogo. Este diálogo
amoroso, no sentido da doação, gratuidade e responsabilidade é capaz de criar um vínculo real
de comunicação, onde os interlocutores estão presentes e inteiros. Como nos diz, Jaspers
(1953, p.65):
Tanto Buber quanto Morin, reconhecem que o amor pode se perder, se modificar ou se
tornar cego, o que acarretaria o mal na humanidade. Para Morin, o amor sendo falível e frágil,
“pode degradar-se num resíduo egocêntrico (a possessividade) ou transmutar-se no seu
antagonista (o ódio)”(1999, p.411). A humanidade viveria um excesso de amor degradado –
amor cego que conduz ao egoísmo. Nas palavras de Buber “enquanto o amor for cego, isto é,
enquanto ele não vir a totalidade do ser, ele não será incluído verdadeiramente no reino da
palavra-princípio da relação.” (1979, p.18)
Enquanto Buber fala das possibilidades relacionais, restritas a dois modos de ser (Eu-
Tu, Eu-Isso), Morin fala de duplo programa e de abertura e fechamento do sujeito. Para Morin
existiria na subjetividade humana uma espécie de “quase duplo programa”, onde um levaria o
sujeito a se dedicar a si mesmo, e o outro programa o levaria a se dedicar aos outros. Ao
mesmo tempo,
Tanto Morin quanto Buber entendem que a condição humana do sujeito humano reside
na sua capacidade de reconhecer a alteridade. Em Buber esse reconhecimento passa
necessariamente pela possibilidade de dizer Tu a um Outro, de estabelecer o diálogo face-à-
face.
Uma outra forma de pensar o diálogo é apontada por Paulo Freire. Enquanto que
Morin e Buber entendem que a humanidade do homem reside na percepção e aceitação da
singularidade do Outro, e que para Buber isso significa dizer Tu a um Outro – instaurando a
relação dialógica, Freire, como já visto, ancora a humanidade do homem na pronúncia do
mundo, que só é possível no encontro dos homens. Este encontro é o diálogo para Freire e é a
essência de sua pedagogia e do processo de conhecimento, sendo sensivelmente diferente do
diálogo buberiano, apesar de vê-lo também como uma relação recíproca.
Uma primeira distinção entre o diálogo buberiano e o freirano reside no amor. Para
Freire, diferentemente de Buber, não há diálogo sem amor, o que torna compreensível o fato
de Freire dizer que não é possível dialogar com os opressores, entendidos a priori, como
aqueles que se sentem superiores aos demais, que se vêem como “donos da verdade”, que
dominam os outros e que, portanto, não amam o mundo. Este diálogo freiriano reporta-se a
impossibilidade de ocorrer o diálogo quando o oprimido tem sua “voz castrada”. Isto
significa, que este oprimido encapsulado numa totalidade, que para Freire é a opressão
política, econômica e social em que vive, não pode dialogar porque teve sua alteridade
negada.
Para Buber, sendo o diálogo uma relação do tipo Eu-Tu, dando-se na presença e na
totalidade (inteireza), este pode ocorrer mesmo que não haja amor entre os interlocutores, ou
em outras palavras, pode haver diálogo (modo relacional Eu-Tu) entre oponentes, rivais e
guerreiros. Em suas palavras:
97
Ainda que Freire cite Buber ao utilizar as palavras fundantes Eu-Tu e Eu-Isso ao
comentar o aspecto da colaboração inerente à teoria da ação cultural dialógica, reservando ao
Eu-Isso o lugar da antidialogicidade e da cosificação dos sujeitos, deixa permanecer o fato de
que, a relação Eu-Tu, por Freire dita dialógica, é constituída por dois seres cognoscentes, ou
melhor, por dois seres que se sabem seres de conhecimento e que se sabem, a priori,
relacionados para pronunciar o mundo, sendo assim uma relação intencional:
Poderia-se argumentar que sendo um processo educativo ele possui uma diretividade e
não poderia estar aberto a espontaneidade da não intencionalidade do acontecimento do
encontro dialógico buberiano. Entretanto este não é o problema mais grave, e sim, como já foi
dito antes, o fato de que o encontro, ou a resposta ao chamado do outro se dá na liberdade e
não na responsabilidade, o que contrapõe escolha e obrigação (ou dever), e na perspectiva
assinalada tanto por Buber quanto por Freire de reciprocidade relacional.
A perspectiva de uma reversibilidade na relação entre um Eu e um Tu, entre o Mesmo
e o Outro, implica na possibilidade de ligá-los num sistema, num todo que destruiria a
alteridade radical, uma vez que “estariam reunidos sob um olhar comum e a distância
absoluta que os separa seria preenchida” (Levinas, 1980, p.24).
Garantir a alteridade é garantir a ética. A responsabilidade por Outrem - outro
enquanto absolutamente outro - reside exatamente nesta assimetria, significando que a
responsabilidade é uma obrigação em relação a Outrem, independente da responsabilidade
que porventura o Mesmo possa ter nessa relação.
Neste sentido sou responsável por Outrem sem esperar a recíproca, ainda
que isso viesse a me custar a vida. A recíproca é assunto dele. Precisamente
na medida em que entre outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou
sujeição a outrem; e sou ‘sujeito’ essencialmente nesse sentido. Sou eu que
suporto tudo.(Levinas, 1982, p.90)
Esta relação assimétrica entre o Mesmo e o Outro, onde os termos da relação estão
distantes e separados, é segundo Levinas (1980; 1982) assentada na linguagem. Linguagem
99
Será já possível, neste ponto, a partir das considerações anteriores, propor uma prática
educativa fundada em princípios éticos?
Freire, Buber e Levinas, cada um a seu modo, trouxeram contribuições específicas que
se apresentam como condições de possibilidade da proposição: Buber ao colocar a formação
da subjetividade humana no âmbito do encontro inter-humano e o nascimento do humano
propriamente dito na possibilidade da relação dialógica, do dizer a palavra Eu-Tu, na
presença, na inteireza, na vulnerabilidade frente ao outro e no caráter imediato do encontro;
Freire ao associar a Educação ao compromisso político-social de transformação das condições
concretas das vida de homens e mulheres em estado de marginalização, opressão e
esquecimento; por último, Levinas, trazendo à tona o sentido radical da alteridade e da
responsabilidade, da explicitação dos fundamentos da liberdade e da justiça e as relações entre
o poder e o conhecimento objetivo.
O desenho desta proposta educativa será apresentado articulando dois vetores de
reflexão:
a) As relações educativas: educador – educando;
b) Racionalidade e conhecimento nas relações pedagógicas;
Uma preocupação patente nos trabalhos sobre educação concentra-se nos processos de
ensino-aprendizagem e na noção de eficiência e controle da aprendizagem. Isso pode ser
101
evidenciado pelo grande número de revistas e periódicos dedicados quase que exclusivamente
à discussão das metodologias e estratégias de ensino, cada um desses periódicos, por sua vez,
destinados às áreas específicas do conhecimento formal (ciências naturais, meio-ambiente,
línguas, história, matemática, etc.). Esse foco é reflexo da noção de que o conhecimento
objetivo é formativo per se e condição sine qua non para a formulação de julgamentos
adequados sobre a realidade. É ainda resquício de formulações cartesianas, permeadas de
valorações tácitas, tais como a idéia de que a razão instrumentalizada, técnico-científica, é
melhor e mais adequada à formação do indivíduo na sociedade contemporânea, visando,
inclusive, a construção de sua cidadania.
O problema que se coloca em primeira instância a partir desta constatação não é o fato
de se pensar a formação técnica e profissional, ou de se refletir sobre os processos de ensino-
aprendizagem, mas sua ênfase, que pouco espaço deixa para uma “pedagogia com rosto
humano” (Ruiz, 2004).
Para que essa pedagogia “com rosto humano” possa ocorrer, é necessário compreender
a educação como sendo uma ação entre pessoas, ao invés de indivíduos abstratos, encontro
entre alteridades irredutíveis a funções ou papéis, o que significa inicialmente a revisão da
relação educador-educando.
Nesse contexto, a primeira crítica que se pode fazer é que a relação entre
professor/educador e aluno/educando, não deve estar fundamentada nas noções de
transmissão ou construção de saberes, mas originalmente no encontro onde o
professor/educador se reconhece responsável pelo outro, obrigado a dar-lhe resposta. Este é o
ponto fundamental da relação ética no âmbito da educação. Esta responsabilidade, ao modo de
Levinas, implica a assimetria e uma resposta que já é em si ensinamento – se não “objetivo”
num primeiro momento, com certeza ético na origem.
Esta assimetria não deve ser entendida desde o ponto de vista do poder – como
assimetria de poder. Ao contrário, numa tal responsabilidade radical pelo outro não há
assimetria de poder, pois, se houvesse, esta assimetria seria a dominação, constituindo-se em
paradoxo frente à própria aceitação da alteridade do outro.
Como dito no item anterior, a resposta é a acolhida do outro – aceitação de sua pessoa
numa realidade concreta, sócio-histórica e cultural, não podendo ser este outro reduzido a um
aprendiz de “competências e habilidades” ou às suas condições sócio-históricas e culturais. O
acolhido é alguém singular, sob todos os pontos de vista, que sente, pensa, tem prazer e vive
102
This detachment from the given and the self-evident is governed by the
possibility that each subject can be supported, enriched and challenged by
the other. The partner in dialogue is acknowledged in her otherness,
irreplaceable as a particular person, in her difference rather than her
103
sameness. At the same time, the dialogue which makes possible a certain
kind of transcendence is a political event and is socially contextualized,
although impossible to reduce to historical developments, power games and
symbolic exchange.
Esta separação do mundo dado, do mundo dos fatos auto-evidentes tendo como ponto
de partida a ética da “visão” do rosto do outro, conduz à reflexões específicas sobre o
conhecimento objetivo e sobre a razão, onde primeiro, a “essência da razão não consiste em
assegurar ao homem um fundamento e poderes, mas em pô-lo em questão e em convidá-lo à
justiça” (Levinas, 1980, p.75) pondo em questão a liberdade de conhecer à revelia do outro, e
segundo complementarmente, a impossibilidade deste conhecimento, proposição de um a
outro no discurso, basear-se em regras metodológicas modernas, cartesianas onde
fragmentação, a simplificação do objeto e a liberdade de um cogito soberano são seus
fundamentos.
Portanto é necessária também uma outra maneira (método) de conhecer que possa ser
ressonante com a proposta de respeito à alteridade humana e de tematização de um mundo
que, ainda que nos sustente, nos defina biológica e fisicamente e nos contextualize
historicamente, é aberto e dinâmico e do qual estamos separados – ainda que dele façamos
parte. Esta separação permite e apela à responsabilidade, não apenas pelo outro ser humano,
mas ao mundo e à sua biodiversidade.
Esta responsabilidade é introduzida no âmbito do que é dito no discurso entre o
Mesmo e o Outro: o Outro se refere ao seu mundo, apresenta-o ao Mesmo, entretanto, este
mundo apresentado não é um mundo solitário, ou melhor, vazio, ele é povoado de objetos,
idéias e pessoas, é um “mundo vivo” que também apela a ele e demanda sua responsabilidade,
já que o sujeito ético não pode responder unicamente pelo rosto singular que o solicita,
abandonando todos os demais .
Esta responsabilidade se faz cada vez mais necessária em face dos desafios
vivenciados desde o início do século XX devido ao desenvolvimento descontrolado da
tecnociência, do embaralhamento na questão sobre os fins e os meios e o conflito entre
globalização e pluralidade.
104
GE DF
105
Mario Benedetti
Como já foi dito nos capítulos anteriores, são visíveis os sintomas da crise da
modernidade contemporânea que são explicitados a partir dos fundamentos do modelo de
desenvolvimento moderno - a razão tecno-científica e o princípio de mercado - e na
concepção de autonomia e liberdade do sujeito. Esta crise apresenta-se como uma crise ética,
porque se resume, ao final das contas, ao tipo de relação que os homens mantém entre si e
com o mundo, onde a idéia de que tudo pode tornar-se recurso tem sustentação na
instrumentalização da razão, na operacionalização dos lucros e na atomização dos indivíduos.
Um dos campos onde os sintomas da crise são mais visíveis é o campo sócio-
ambiental. Nele encontramos não apenas a questão econômica que emerge da necessidade do
mercado capitalista em dominar a natureza e transformá-la em recurso ou objeto de
investigação tecno-científica, mas também as próprias relações sociais subjacentes, que
desprezando o conjunto da vida humana e ambiental apresentam-se como barbárie social –
guerras, pobreza, marginalização e fome.
É certo que cada um desses aspectos pode e tem sido tratado separadamente,
investigando suas causas em campos distintos do saber, como a economia, a política e a
cultura, por exemplo. Cada um desses campos contribui, à sua maneira para a compreensão do
106
(...) a solução da crise ambiental (...) não poderá dar-se somente pela via de
uma gestão racional da natureza e do risco de mudança global. A crise
ambiental nos leva a interrogar o conhecimento do mundo, a questionar esse
projeto epistemológico que buscou a unidade, a uniformidade e a
homogeneidade; esse projeto que anuncia um futuro comum, negando o
limite, o tempo, a história; a diferença, a diversidade, a outridade.
107
É certo, como diz Leff (2001), que este “saber ambiental” é mais do que simples
articulações entre conhecimentos disjuntos, mas se apresenta também como uma “emergência
de conjunto de saberes teóricos, técnicos e estratégicos, atravessados por estratégias de
poder no saber” (p. 147). Põe em xeque não apenas a racionalidade moderna, mas as relações
sociais e políticas, o fundamento econômico desta sociedade e o imaginário simbólico que
permeia a formação das identidades sociais e pessoais.
Não é, contudo, uma solução mágica para os problemas que enfrentamos, não é uma
re-edição da idéia de emancipação social por via do conhecimento, pois reconhece seus
limites - a parcialidade, os erros, as incertezas e as ilusões intrínsecas a toda e qualquer
representação conceitual realizada pelo ser humano. Refere-se ao ambiente como sendo um
campo heterogêneo e conflituoso no qual se confrontam saberes e interesses distintos.
Entretanto, é nessa diversidade cultural que é possível antever as possibilidades reais de
construção social de sustentabilidade, buscando alternativas ao desenraizamento de grupos
sociais e a elaboração de laços de pertencimento e cuidado (responsabilidade) com o homem e
seu meio.
Esta construção social de sustentabilidade remete-se à noção de communitas e a
possibilidade de criação de espaços de encontro e diálogo. Espaços onde o diálogo seja
instaurado a partir de uma resposta a Outrem; espaços onde a política seja fundada a partir da
necessidade de justiça, como um ato de sabedoria (ou amor) para com o terceiro da relação
(os “outros” - homens, mulheres e o próprio ambiente - além de Outrem que também
demandam respostas).
Com certeza esta é uma tarefa árdua para qual convergem, ou devem convergir,
esforços de diversos campos de ação humana. Um deles é o campo educacional. Em especial,
como objeto desta tese, o campo da educação voltado aos processos de gestão sócio-
ambiental.
Nesse sentido, a associação de uma pedagogia da alteridade ao processo de gestão
sócio-ambiental norteando sua dimensão educativa é condição de possibilidade para o
nascimento de um processo de organização social que se paute pela justiça, pela solidariedade
e pela responsabilidade. Esta organização social, no caso do Riacho Fundo se apresentou sob
a forma de uma rede social solidária, cujos pressupostos teóricos serão discutidos neste
capítulo.
108
Levinas
O saber ambiental, para ser uma resposta possível ao conflito ético atual deve ser
resposta ao “Outro”, no sentido já exposto no capítulo anterior. É este dizer a Outrem que
funda a possibilidade de um dito responsável no sentido das relações entre o poder e o
conhecimento, isto é, este saber nascido no discurso entre o Outro e o Mesmo resiste à
formulação moderna onde o conhecimento é uma forma de poder e de dominação de um sobre
o outro; resiste a ver o “objeto do conhecimento” como um objeto “asséptico”, que se presta
ao cálculo, à construção e à transformação desde fora, como algo que foi feito para ser
destrinchado em suas particularidades e dominado e apela à responsabilidade, que no caso
ambiental, refere-se às condições de vida no planeta, atuais e das gerações futuras.
No campo educacional, a complexidade da problemática sócio-ambiental tem
frutificado em novas metodologias, estratégias e fundamentalmente novos olhares sobre a
significação do que é educar. Bebendo em fontes variadas, a educação ambiental tem
chamado para si um conjunto de práticas que antes estavam representadas apenas no universo
da educação popular e dos movimentos sociais.
Ao mesmo tempo, esta educação ambiental reflete a ambigüidade da modernidade
contemporânea. Num extremo, pode apresentar-se como responsabilidade por Outrem e pelo
109
última análise, que mesmo tendo sido criados no horizonte da problemática ambiental, a partir
da abertura-do-ser-ao-outro, da resposta à alteridade, carreguem o germe da comunidade
(communitas), do fortalecimento de identidades locais como resistência a pasteurização do
mercado permitindo a criação de laços de pertencimento e cuidado, laços ativos, cuja própria
existência já é transformação.
A educação ambiental ao assumir a alteridade como seu ponto de partida, instaura na
gestão um diálogo que apresenta “mundos” - o mundo de cada sujeito no discurso; um
ambiente que ao ser apresentado pelo sujeito passa a ser “seu ambiente”, sua casa, seu lugar
de vida. O diálogo explicita o caráter de confronto de mundos, de idéias, de visões, de desejos
e de interesses referentes a um ambiente que também possui sua própria externalidade, no
sentido de não ser assimilável no sistema teórico dos paradigmas objetivantes do
conhecimento moderno. Esse confronto não busca a coerência ou consenso por meio de uma
racionalidade baseada em um discurso comum, um fundo racional e normativo dado a partir
de pressupostos teóricos, políticos sociais e culturais construídos desde fora da relação, mas
almeja a paz – a unidade de uma pluralidade que não forma uma totalidade fechada.
Nesse sentido, o ambiente passa a ser tema para reflexão, algo que é ofertado para
discussão desde o Outro, algo sobre o qual se pode falar. É nesta possibilidade de tematização
do ambiente ofertado ao diálogo que o saber ambiental se faz pertinente.
Na crítica levinasiana a categoria da Totalidade 21, esclarece essa idéia, segundo o qual
o Outro (a alteridade) é subsumido no Mesmo (outro nome para “eu”). Este movimento de
subsunção dá-se por meio da objetificação do outro – uma violência realizada pelo
conhecimento objetivo fundado na razão instrumental moderna. Este conhecimento coloca os
homens numa relação intencional e interessada, fazendo parte do processo de totalização.
Levinas entende que conhecer continua e continuará sendo uma possibilidade (potencial)
humana, porém este ato de conhecer deve ser subordinado à ética, entendida como resposta a
Outrem – responsabilidade.
Porém, deixar de lado a racionalidade instrumental e econômica por outra que combata
a fragmentação do saber e a assepsia dos objetos de conhecimento reduzidos aos modelos
teóricos da tecnociência, não é suficiente para se constituir como uma resposta à crise ética.
Não basta, por exemplo, o saber ambiental ter como horizonte a alteridade, ou seja, preservar
e respeitar a alteridade como em alguns discursos inclusivos e de respeito às “diferenças” e à
“diversidade”. Aqui há um perigo sutil, o de se deixar contaminar pela possibilidade de criar
um outro método de conhecimento que mesmo aceitando seus limites intrínsecos – as
representações, traduções e significações realizadas pelo sujeito no ato de conhecer, funde-se
numa noção de identidade individual em cuja base está a autonomia do sujeito cognoscente, o
que remete para a centralidade no ser, no “eu” que conhece e teoriza, regressando dessa
maneira ao “cogito ergo sum” cartesiano, que mesmo “complexificado”, permanece na esteira
da ontologia.
Entretanto, é certo que uma tal racionalidade complexa, não fragmentada, que articula
antagonismos e complementaridades, certezas e incertezas, ordens e desordens, permite a
abertura de janelas para olhar um mundo dinâmico, mutável e surpreendente. Estas janelas
não excluem, a princípio, a alteridade mundana. Entretanto, este conhecimento assim
entendido não pode ser exercício solipsista, desde a liberdade do sujeito, que não responde a
Outrem, apesar de admiti-lo no seu “método”. Um conhecimento de tal natureza não é ético e
conseqüentemente não pode ser resposta à crise.
Nesse raciocínio, o saber ambiental e o diálogo de saberes, como colocados por Leff
(2003a; 2003b), respondem em parte à necessidade ética atual, apresentando o ambiente como
21
Para Levinas, a história do ocidente, em especial a história da filosofia ocidental, tem consistido em buscar
formas para reduzir o Outro ao Mesmo, neutralizando a ameaça do desconhecido. Esse processo de busca
chama-se totalização e “à construção dialética, imanente e com pretensão de auto-compreensão e auto-
legitimação – em que convergem os resultados desse esforço de totalização – temos chamado de Totalidade”.
(Souza, 1996, p.18).
112
Esse diálogo de saberes pauta-se pela perspectiva aberta pela linguagem de tornar
comum o mundo do sujeito, isto é, de ao fazer-se comunicação (diálogo) abrir o mundo de um
ao mundo do outro, falando e escutando, ouvir a palavra que traz auxílio ao rosto, à sua
expressão. Ao mesmo tempo, sendo o mundo do sujeito, de um Tu, de um Outro, resiste a ser
internalizado nos dogmas modernos – auto-explicativos e auto-evidentes. Este diálogo é
marcado pela alteridade que não se deixa reduzir à generalidade da condição de espécie humana,
trazendo à tona a diversidade cultural e a justiça como sendo a justiça desde o outro, isto é, “justicia
que no se disuelve ni se resuelve en un campo unitario de derechos humanos, sino en el derecho a
tener derechos diversos de seres diferenciados por su cultura” (Leff, 2003b, p.22).
O diálogo como responsabilidade, resposta a Outrem, funda um saber ambiental que
transcende o conhecimento ancorado na relação com objetos, isto, é, a relação com um mundo
dado, transparente aos sentidos. Abre a perspectiva do inusitado; questiona os marcos
econômicos sobre os quais são edificados os limites de possibilidades da realidade; questiona
a própria realidade como tendo uma história linear e previsível; põe na berlinda o discurso
moderno globalizante que desprezando a pluralidade cultural apresenta as diferenças como
intercambiáveis, negociáveis dentro do mercado das identidades sociais possíveis. Este saber
ambiental, portanto,
Mas este ambiente que nos acolhe, também é alteridade no sentido mais estrito do
termo. É também um rosto que me apela, que nos apela enquanto nos acolhe. Ao mesmo
tempo chama e responde a nós, humanos. O rosto deste ambiente às vezes é uma paisagem
idílica, outras, um esgoto a céu aberto. Mas em ambos os casos um acolhimento que se fez
como morada. Às vezes ele grita, explode, se agita e nos atemoriza – pois é indecifrável. É um
rosto de muitas faces, muitas facetas, tantas quantas forem os olhares que o mirem e por isso
nos confunde.
O ambiente pode ser Outrem para mim, numa relação que mantenho eu e ele, como
nos momentos em que solitária descubro nele um companheiro silencioso, que oferta a si
mesmo, como quando mergulhava em mar aberto, e encostada numa pedra no fundo do mar
olhava as vidas que passavam ligeiras em cardumes ou o suave movimento de uma raia que
parecia voar, como uma gaivota. Sua oferta é a de me manter viva, a mim, aos outros, a ele
mesmo. Aqui, entre ele e eu, decido se respondo a ele em sua oferta e o acolho na minha
responsabilidade ou se apenas me aproprio de territórios, paisagens e cenários construídos por
mim a partir das minhas necessidades. Aqui reside o sentido fundamental da educação
ambiental a partir da alteridade – a responsabilidade pelo ambiente como resposta obrigatória
à oferta da vida, como compromisso com a vida e nesse sentido é também resposta à
sociedade humana e à sua própria manutenção. Esta resposta ao rosto do ambiente que me
apela e me acolhe, diferentemente da assimetria postulada por Levinas, é simétrica, ou
melhor, recíproca, porque retorno a um acolhimento e a uma oferta e é nesta reciprocidade
que reside a possibilidade da vida.
Em outros momentos o ambiente é o terceiro incluído numa relação que mantenho
com outros seres humanos, grupos ou instituições e aí está o cerne da questão da
responsabilidade do ponto de vista político-social. Este ambiente passa a ser objeto de uma
gestão sócio-ambiental cuja dimensão pedagógica deve conduzir ao estabelecimento desta
114
responsabilidade, em face das disputas e conflitos que surgem ao se referir ao ambiente como
tema de um discurso ou diálogo. Neste momento o resgate da exterioridade do ambiente se
faz necessária para que seja possível a justiça ambiental, entendida aqui como um conjunto de
princípios que mantenham a oferta da vida, hoje e amanhã.
Esta exterioridade do ambiente é resgatada, por um lado, por meio de um diálogo de
saberes no qual ocorre a emancipação do poder da palavra a partir do embate entre alteridades
irredutíveis cuja tensão faz surgir um horizonte de possibilidades no confronto dos mundos
que exige novos sentidos e olhares para com o ambiente. Por outro, a exterioridade do
ambiente, na dimensão educativa do processo de gestão ambiental, emerge no apontamento da
responsabilidade de cada um em responder à oferta ambiental e comprometer-se com a vida.
Nesse sentido, o saber ambiental efetivado num diálogo de saberes não prescinde do
conhecimento objetivo. A epígrafe deste item vem lembrar que o conhecimento das coisas é
algo que o ser humano realiza e continuará fazendo. As coisas são ofertadas por alguém a um
outro na comunicação e se transformam em objetos tematizáveis. Mas para serem ofertadas
precisa haver separação. Esta separação é fundamental para que o objeto a ser tematizado não
faça com o interlocutor uma unidade, uma totalidade e seja subsumido em sua mesmidade, e
por outra, que o tema enunciado não aprisione o interlocutor, não o reduza à representação.
Quando ofereço um mundo, no caso o ambiente que trago a presença do outro pelo auxílio da
palavra, (designar uma coisa a outrem) me separo dele. É preciso que os temas ganhem
exterioridade e esse é o sentido da objetividade. A objetividade que possui um fundamento
ético deve ser entendida como separação e só pode ser possível no encontro entre Mesmo e o
Outro, como resposta do Mesmo ao Outro. “Esta objetividade é correlativa não de um
qualquer traço num sujeito isolado, mas da sua relação com Outrem”(Levinas, 1980, p.187).
Dessa forma, esta objetividade deve ser marca distintiva de um diálogo de saberes em
torno de questões sócio-ambientais que expressam os conflitos de interesses em torno da
apropriação social da natureza, para garantir a impossibilidade de reabsorver estes conflitos
numa totalidade epistemológica. Na prática, isso significa que o diálogo de saberes ao por em
movimento as falas e ações referidas ao meio ambiente faz emergir a necessidade da política
na mediação dos conflitos visando à justiça em relação aos homens e ao meio ambiente. Ao
mesmo tempo, a exterioridade que a objetividade demanda neste diálogo não é apenas
exigência no campo do conhecimento, mas alteridade real – fratura, separação, pois referida a
um ambiente que nos apela a nos comprometermos com a vida.
115
Por isso, mais do que uma “política da diferença” como afirma Leff (2003b), esta é
uma política da alteridade, pois não está restrita apenas às diferentes visões e falas dos
sujeitos humanos envolvidos no diálogo em torno de um ambiente concebido como um
“campo de saber” ou “como externalidad del logos (de las ciencias objetivantes, de la
realidad generada como reflexión del conocimiento sobre lo real)” (Leff, 2003b, p.29), mas
resgata a alteridade do próprio ambiente, relembrando a percepção, desde dentro, de nossa
separação dele e que por isso é possível falar em justiça.
Então, se o ambiente se constitui numa alteridade, este deve nos falar e sua “palavra”
deve ser originalmente um ensinamento moral: preserve a vida. Este ambiente nos fala
através de signos que traduzimos de diferentes formas a partir da relação que com ele
mantemos. Ele nos apresenta sua oferta, mostra sua fúria, nos engole e dizima, nos provê
vida. Mostra suas rachaduras, seus ciclos, fluxos e correntes, seu fogo interior, seus mortos e
seus vivos. Deixa rastros do seu passado, linhas, trilhas e esculturas de um tempo em que era
mais jovem. Deixa também os vazios das vidas que não existem mais e as estratégias que
criou para se re-equilibrar e suportar a perda. Nos mostra suas partes gangrenadas e as
plásticas que se viu obrigado a realizar. Conta uma história.
Este ambiente também nos fala que nele estamos nós, que fazemos parte do seu
mundo vivo, da história que ele conta, e que, portanto, sua fala deve ser a nossa fala.
edificada sobre frágeis mananciais – minas e olhos d’água, além do grave aumento da pressão
antrópica sobre os córregos.
Ao mesmo tempo a realidade da qualidade de vida urbana não é menos preocupante. O
Riacho Fundo, em especial o parcelamento do Riacho Fundo II, vivencia problemas de infra-
estrutura, tais como a falta de drenagem de águas pluviais, a falta de arborização e redução de
cobertura vegetal necessária para a recarga do lençol freático e a falta de estrutura adequada
de saneamento, além de problemas no âmbito do convívio social, como a falta de espaços
públicos de convivência onde se possa participar de atividades de cultura e lazer. Além disso,
estas famílias foram reunidas repentinamente, trazidas de locais diferentes do Distrito Federal,
algumas destas, famílias de carroceiros e catadores de lixo que moravam em lixões, outras,
famílias de baixa renda, porém empregadas no mercado formal gerando relações internas de
preconceito social, como atestado em falas de professoras das escolas públicas ao se referirem
aos problemas que enfrentavam com seus alunos, sendo um deles o preconceito social
evidenciado entre os filhos de carroceiros e catadores e os demais colegas.
Estas condições sócio-ambientais se apresentam como conflitos de interesses pessoais,
culturais, econômicos, sociais e políticos. Conflitos cuja mediação adequada, que seja
resposta e resistência aos fundamentos da crise ética moderna, só é possível na
responsabilidade, não na barganha. Enquanto a barganha de interesses for o motor da
mediação, o conflito permanecerá, mesmo que travestido de pacificação e silêncio.
O gestor/educador ambiental nesse processo possui uma função particular, a de
promover um diálogo justo, isto é, de agir politicamente no sentido de preservar a organização
da pluralidade – afinal, como diz Levinas (1980), a responsabilidade infinita que tenho por
Outrem, que se abre como bondade, não pode ser pervertida em injustiça contra um terceiro.
Nesse sentido, a política surge como necessidade de limitar esta responsabilidade pelo Outro
para que seja possível a vida em sociedade, e não apenas na ordem do “entre-dois” do “frente-
a-frente”. Esta vida em sociedade deve perceber o ambiente, como um “terceiro incluído” ao
qual se deve fazer justiça, mantendo a possibilidade da vida - tarefa árdua em face da
apresentação do ambiente como bem disponível para uso, na ótica da utilidade, da redução e
do imediatismo modernos. Dentro do diálogo o ambiente surge como tema, porém um tema
que não pode ser subsumido em categorias conceituais abstratas e dadas desde fora da
relação, devendo ter sua exterioridade preservada para que possa surgir um conhecimento
objetivo, no sentido que Levinas dá a este termo.
117
que se manifesta em suas demandas por conhecimento e por sua capacidade de mobilização
coletiva face á percepção da urgência imprimida pelo caráter crítico das situações ambientais.
Portanto, de acordo com as demandas que emergem dos contextos locais onde os
sujeitos ecológicos se manifestam como legítimos agentes do processo de gestão ambiental, a
qualidade que pode ser aportada pelos processos educativos ao contexto socio-político diz
respeito à capacidade de construção coletiva de um saber ambiental que integra e ultrapassa a
racionalidade instrumental, disjuntiva e predatória do paradigma clientelista e privatista,
tornando-se capaz de acionar as possibilidades de emergência de novas formas de construção
de conhecimento e estratégias de ação. Ao mesmo tempo, ao constituir-se como diálogo de
saberes funda uma relação espaço-temporal propicia ao nascimento de relações comunitárias
no molde das communitas.
Entretanto, esta possibilidade somente pode ser efetivada nestes termos, como resposta
inicial a outrem, como instauração de um diálogo de saberes que prime pela diversidade
cultural dos sujeitos em suas alteridades irredutíveis, que aceitando a separação em relação ao
ambiente o veja como possuidor de sua própria alteridade, resgatando uma noção de respeito
pelo sagrado que se aplica também à humanidade – um mundo vivo no ambiente – e por isso
devedora do mesmo ensinamento. Esta sustentabilidade social e cultural faz-se como justiça
ao “terceiro incluído” na relação, seja um indivíduo humano ou o ambiente. Esta justiça é a
condição moral do ensinamento de preservar a vida. Sem ela vivenciamos a morte anunciada.
Por isso a dimensão educativa nos processos de gestão ambiental deve ser entendida
como um processo responsável, pressupondo, prima facie, a alteridade e a ética que ela funda
como base das relações intersubjetivas e da relação homem-natureza.
O enraizamento político, cultural e social do processo educativo intrínseco à gestão
das questões ambientais pressupõem a abertura de espaços de diálogo e encontro, onde possa
ser possível não só explicitar os conflitos, mas sobretudo, caminhar para suas soluções.
Contudo, é importante salientar que cada espaço aberto, cada encontro, já são per se,
processos educativos. Não como elos de uma cadeia, mas como fios de uma rede tecida à
várias mãos.
A rede foi fruto de trabalho cooperativo entre professores de escolas públicas locais,
integrantes de organizações não governamentais que atuam na área, pesquisadores
universitários e membros da comunidade local. Todo o processo de gestação desta rede é
exemplar da mobilização social em torno da necessidade de explicitar as questões urbanas,
integrando a dimensão política na educativa no intuito de construir um novo campo de ação
sobre a organização social local.
Para que a discussão sobre a formação desta rede – seus fundamentos, desafios,
vitórias e derrotas façam sentido é necessário antes alinhavar alguns conceitos básicos
referentes a estrutura de redes em geral, e definir o que seja uma rede solidária voltada à
responsabilidade desde o ponto de vista da alteridade, como possibilidade de servir de
embrião e espaço que se aproxime, ou seja ele mesmo, um espaço comunitário.
Redes sociais são redes de relações que são inerentes ao cotidiano humano. Este fazer
cotidiano é fruto dessas relações em rede – amigos, parentes, vizinhos, colegas de trabalho,
professores, alunos, etc. Nesse sentido, redes sociais não invoca nada de novo. É a própria
estrutura da socialização humana que permite e demanda estas conexões. Entretanto, da
mesma maneira que o paradigma da modernidade contemporânea rebatendo na formação
social transforma suas relações, vemos surgir dois conceitos de redes sociais baseados em
pressupostos distintos: o primeiro forjado na dinâmica da economia neoliberal (as redes
neoliberais), o segundo criado como resistência e aposta em outra lógica econômica e social
(as redes solidárias). Num primeiro momento pode parecer que o que as distingue é sua práxis
123
econômica, porém, observando mais atentamente, será possível perceber que a distinção
fundamental é a noção de poder e a gestão interna associada, isto é, enquanto um conceito
reporta-se à rede como tendo a possibilidade de concentração de poder em determinadas
conexões, pressupondo a gestão sendo comandada pelos desígnios do mercado globalizado, o
outro conceito entende que a rede somente pode existir como dissolução do poder a partir de
uma auto-gestão.
As redes neoliberais são bem definidas no livro “Sociedade em rede” de Manuel
Castells (1999). Castells define rede da seguinte maneira: “Rede é um conjunto de nós
interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta” (p. 498). Sua intenção neste
livro é analisar as novas dinâmicas sócio-econômicas traçando um panorama da sociedade e
dos mercados na era da informação. Para este autor a tecnologia da informação facilitou
enormemente o processo de fortalecimento de redes. Segundo Castells, “redes são estruturas
abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam
comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de
comunicação” (p.498).
Para Castells redes são instrumentos apropriados para a economia capitalista
contemporânea – globalizada. Neste novo estágio do capitalismo, o acesso ao know-how
tecnológico e a facilitação dos fluxos financeiros são fundamentais, por isso a estrutura
reticulada, onde nós e conexões são grupos, indivíduos e fluxos de informação e capital, é
segundo este autor, a estrutura morfológica social mais adequada.
Do ponto de vista das relações sociais que se estabelecem nessa estrutura, Castells
(1999) pontua:
A essa metadesordem social que Castells aponta associa-se a tendência dos indivíduos
reagruparem-se
rede também é uma fonte de drástica reorganização das relações de poder” (p.498), pois
apenas a base destas redes é compartilhada, não sua “cabine de comando”. Elas emergem da
necessidade do capital fluir, escapar rapidamente dos entraves políticos e culturais locais, e
principalmente, dividir entre a concorrência os custos operacionais do desenvolvimento
tecnológico, ao mesmo tempo em que pulveriza as responsabilidades sobre atos cometidos
contra grupos sociais e o meio ambiente.
Na verdade o autor não se refere à possibilidade de dissolução do poder numa malha
reticulada, ao contrário, sua “drástica reorganização” refere-se à concentração do poder em
nós desta rede, concentração advinda da informação sobre os mercados de capitais e fluxos
financeiros que, por exemplo, assumem o “controle de impérios da mídia que influenciam os
processos políticos” (p.499).
Dessa maneira, a rede que Castells descreve é uma rede tridimensional, em forma de
pirâmide, com uma base larga cuja razão de existir reside na possibilidade de dividir custos
operacionais e dissolver responsabilidades. Não é à toa que Castells afirma que este tipo de
estrutura organizacional é adequado ao modelo econômico globalizado atual – esta rede que
Castells descreve é o próprio design operacional do capital moderno, na sua volatilidade e
irresponsabilidade, além de permitir inferir uma descrição das relações sociais
contemporâneas instauradas no âmbito privado a partir dessa morfologia social. No caso,
estas relações sociais sofrem do mesmo mal: voláteis e irresponsáveis.
A descrição de Castells naturaliza as redes, pois faz parecer que a constituição destas é
evolução natural do capitalismo, escondendo o conflito entre estas redes e as outras redes de
resistência ao ideário economicista moderno.
Dessa maneira um outro conceito de rede se faz presente como denúncia e resistência
às redes neoliberais: a rede social solidária.
Nas últimas décadas têm surgido em todo o mundo várias organizações voltadas à
promoção da justiça social. Inicialmente surgiram organizações no campo da política e da
cultura, como redes e organizações ecológicas, educacionais, voltadas ao direito da mulher,
126
do negro, pela qualidade de vida nas metrópoles, entre outras. A partir de suas práticas e
fundamentos estas organizações que emergiram da sociedade civil contribuem para criação de
uma nova cultura, pois questionam a exclusão social, o domínio do mercado sobre as relações
sociais no âmbito do privado e do público e a posição do Estado em relação ao mercado e à
sociedade. Nesse sentido, o que se coloca em questão é a própria democracia e a necessidade
de se instituir mecanismos democráticos onde a sociedade civil possa ter controle tanto sobre
o Estado quanto sobre o mercado. Como diz Mance (2001):
A necessidade que motivou a criação e expansão destas redes relaciona-se, não apenas
ao modelo econômico atual que vem esvaziando os espaços de participação popular nas
questões políticas enquanto suprime as liberdades privadas, mas igualmente ao paradigma da
modernidade como um todo, que cria subjetividades alienadas ao mesmo tempo em que induz
a formação de identidades coletivas falsificadas – angústia social e existencial. Com efeito,
estas redes vêm constituir-se como verdadeiros nichos comunitários, espaços possíveis para a
criação de subjetividades coletivas e pessoais autênticas, isto é, eticamente referenciadas. São
redes formadas por pessoas, grupos e movimentos populares compostas por contingentes
dominados e excluídos pela modernidade e por grupos a eles solidários, que se articulando em
práticas voltadas ao empoderamento popular, buscam tornar possível a criação de condições
políticas e materiais de vida, o fluxo de informação e formação educacional, balizados pela
relação ética de respeito à alteridade.
127
Uma das redes que mais tem crescido nos últimos anos é a rede de economia solidária,
que envolve uma diversidade de práticas, associadas ao consumo, produção, serviços,
comercialização e financiamento de empreendimentos.
As redes de economia solidária surgem no final do século XX, em torno da década de
sessenta, contrapondo-se à lógica econômica do capital e ao mercado globalizado, e à sua
conseqüente exclusão social. Existem hoje, ao redor do mundo, redes de troca, redes de
comércio e produção solidária e organizações que, não podendo ser caracterizadas como redes
solidárias, atuam, contudo, em benefício das populações excluídas pelo processo de
globalização. Entre elas Mance (2002) destaca a European Fair Trade Association
(congregando nove centrais de importação localizadas na Áustria, Bélgica, França, Grã-
Bretanha, Alemanha, Noruega, Holanda Itália e Suíça), o Grameen Bank (Bangladesh), o
Ökobank (Alemanha) cuja linha de financiamento privilegia ações ecológicas e pacifistas, não
financiando indústrias de armas ou nuclear, o banco Triodos (Países Baixos), o banco Ético
(Itália), Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS, Canadá), Rede Global de Trocas
128
Esta base apresentada por Mance para os fundamentos da rede solidária tem
ressonância com os fundamentos de uma educação para responsabilidade baseada numa
pedagogia da alteridade. De fato, o sentido pedagógico destas redes, reside na possibilidade
do diálogo onde “conhecimentos e sentidos diferenciados peculiares à diversidade de
histórias, culturas e pessoas, mesmo não sendo unívocos, podem simultaneamente ter
validade desencadeando devires moleculares e molares”.(Mance, 2002, p.57)
129
Ao mesmo tempo a utopia anunciada nas redes solidárias tem seu ancoradouro no
pensamento libertário, em especial nas reflexões de Gustav Landauer, que via a revolução
socialista como sendo uma construção e reconstrução permanente Associava dois conceitos à
idéia de revolução - topia e utopia. Topia referia-se às condições de vida de cada povo, que
podiam ser adequadas ou precárias. Utopia era para Landauer (apud Mance , 2000, p.129)
Nesse sentido, toda topia é seguida de uma utopia, que é seguida de nova topia, na
medida em que a utopia é reação a uma topia estabelecida e da qual se origina, ao mesmo
tempo em que é recordação de utopias similares anteriores. Este é um movimento sucessivo,
de estabelecimento de estabilidades (topias) e transformações (utopias). Dessa forma, a
revolução é o caminho de uma topia a outra passando por períodos de instabilidade. A
revolução também estaria presente como princípio, na busca pela realização da unidade
“desse complexo de sentimento, vontade e recordação” que a utopia presente dentro dos
períodos de topia traz.
Para este pensador anarquista a revolução não está associada ao momento da tomada
do poder de Estado pela classe trabalhadora, mas
“se relaciona com toda a convivência humana. Não apenas com o Estado, a
divisão em classes, as instituições religiosas, a vida econômica, as
tendências e criações intelectuais, a arte, a educação e o aperfeiçoamento
espiritual, mas com o conglomerado de todas estas formas de manifestação
da convivência, que em algumas épocas se encontra em estado de relativa
estabilidade, embasada no assentimento geral.” (Landauer, apud Mance
2002, p.128)
130
Por fim, as redes solidárias, em especial as redes de economia solidária descritas por
Mance (2002) possuem princípios e características gerais, tais como a participação coletiva, a
autogestão, a cooperação, a preservação ecológica, entre outros, que servem como modelo e
base para outras redes de caráter diferenciado, tais como as redes de educação e meio
ambiente. Estas características e princípios serão tratados em mais detalhe no próximo item.
A partir dos dois princípios básicos das redes sociais solidárias – complexidade e
práxis libertadora apontados por Mance, emerge um vasto conjunto de características e
movimentos da rede. São aspectos que dizem respeito à arquitetura, à gestão, aos movimentos
de conexão, aos fluxos e às finalidades da rede solidária. Esses aspectos tem sido bem
descritos em bibliografia recente (WWF, 2003; Mance, 2002) Neste item serão discutidas
131
Numa rede solidária, como a descrita acima, fica claro seu potencial educativo no
aspecto de uma pedagogia da alteridade. Em seus pressupostos filosóficos, na perspectiva da
práxis libertadora da filosofia da libertação, a alteridade é o ponto de partida da ética.
A congruência desse fato faz da rede um espaço possível para o diálogo de saberes
colocado por Leff no que tange aos aspectos de uma rede voltada para as questões sócio-
ambientais.
Redes educacionais e de meio ambiente podem ser agenciadoras de utopias,
empoderando os participantes e grupos locais, construindo um diálogo produtivo no sentido
da mediação dos conflitos políticos, econômicos e sociais cujo cerne localize-se em questões
ambientais.
Ao mesmo tempo, estas redes solidárias educacionais inserem-se na vida cotidiana
local, multiplicando esses agenciamentos através das múltiplas conexões que são realizadas-
novos integrantes, apoios e parcerias tomam contato com a utopia coletiva que se vai
construindo. É uma oportunidade de inserir-se em arenas diferenciadas, que trazem para
dentro da rede novas possibilidades e desafios que fazem com que a rede se refaça
constantemente.
As redes de educação e meio ambiente, como a REMA Riacho Fundo, são moldadas
num processo dialógico de confronto de alteridades - processo que supõe e implica conflitos
que são mediados a partir dos pactos (valores, objetivos e princípios) comuns. No caso da
questão ambiental, o ambiente é reiteradamente trazido à luz, seja como alteridade a qual se
deve justiça, seja como tema (mundo do sujeito) que media um diálogo.
O saber que daí emerge não é apenas um resultado linear de uma aglutinação de
conhecimentos diversos, mas um complexo tecido relacional entre-humanos e entre homem e
natureza. Esse conhecimento complexificado sobre a realidade sócio-ambiental local é
elaborado através da construção de vínculos de pertencimento e cuidado, viabilizando
relações éticas, incentivando a construção de vínculos comunitários que sejam condição de
possibilidade da transformação da realidade de degradação sócio-ambiental local.
Essa dicotomia é superada pelo conceito de relações comunitárias que são fruto de
uma dialógica entre autonomia e integração, cabendo aí o exercício educativo da co-presença
das diferenças entre distintas visões de mundo e da possibilidade de sinergias a partir do
reconhecimento de pertencimento a um mesmo contexto de crise sócio-ambiental.
Uma rede de educação e meio ambiente solidária, traz a face da organização social
local, a mobilização interna e a abertura para tecer novas relações com grupos e pessoas que
comunguem dos mesmos ideais e valores expressos em seu projeto. Desenvolve as
autonomias individuais e coletivas sempre pautadas pela responsabilidade com o outro – ser
humano e ambiente. Atua no sentido de consolidar os espaços democráticos da rede
vivenciando os conflitos de forma aberta e direta e buscando desenvolver os aspectos
intensivo e extensivo, característicos das redes solidárias, isto é, envolver um número cada
vez maior de pessoas gerando novas células solidárias.
Dessa forma, a rede articula-se para sobreviver, buscando em outros grupos e células
solidárias os serviços e ações necessárias a sua manutenção. Expande-se para manter-se,
gerando condições para que novas células surjam oferecendo os serviços que ela precisa. As
células conectam-se umas às outras, mediadas pelo fluxo de informações e valores. A rede
cresce realizando sua autopoiese.
GE DF
136
4.1.1. O contrato
O contrato, segundo André Morin, pode ser aberto ou fechado, formal ou informal,
estruturado ou não estruturado.
Do ponto de vista da pesquisa-ação, o contrato é uma de suas condições de
possibilidade. Pensando em termos da PAI, o contrato deve ser aberto, formal e não
estruturado, sendo que um contrato fechado “tende a não fazer sentido em pesquisa-ação
integral, já que impede todo questionamento” (Morin,A., 2004, p.62). Todo contrato é
resultado de uma negociação entre as partes envolvidas, o que pressupõe a noção de diálogo.
O caráter formal ou informal do contrato dá-se na delimitação dos objetivos da ação conjunta
e das funções que cada membro do grupo irá desempenhar e é explicitado segundo a clareza
da exposição dos objetivos e das funções. Apesar da exigência da formalidade no contrato,
138
André Morin coloca que este deve ser flexível o suficiente para comportar as mudanças que
surgem em todas as fases da pesquisa-ação e que retroagem, não apenas nas finalidades e
objetivos inicialmente delimitados, mas no próprio processo da pesquisa como um todo.
4.1.2. A participação
4.1.3. A mudança
É claro que outros tipos de pesquisa também podem gerar mudanças. Entretanto,
somente a pesquisa-ação coloca em dúvida os questionamentos iniciais e o desenvolvimento
do processo como sendo parte do próprio processo e a mudança, dessa forma, “está inscrita
no coração do processo” pois a avaliação recorrente retroage na pesquisa-ação, gerando
novas possibilidades, intervenções e reflexões.
Mas no coração do processo da pesquisa-ação está também a ação. Por isso, a
mudança inicia-se quando uma ação concreta é realizada pelos participantes da PAI. Morin
assinala que mudanças podem acontecer sem que uma ação concreta seja realizada, porém,
ainda segundo ele, “a primeira ação dos atores pode revelar uma escolha que esses últimos
são capazes de assumir” (2004, p.74), o que para o desenvolvimento da pesquisa-ação é vital,
pois não se pode exceder os limites das capacidades individuais e coletivas no processo.
Numa pesquisa-ação, uma mudança do tipo aplicativa, ou de desenvolvimento, pode
ocorrer quando pesquisadores profissionais desejam ver os resultados ou o desenrolar do
processo da aplicação de uma determinada teoria. O contrato pode ter sido estabelecido de tal
forma que a necessidade inicial dos participantes demanda uma ação desse tipo. Entretanto,
esse tipo de mudança restringe-se às relações causais – não há retroações esperadas. Desse
ponto de vista, o processo da pesquisa-ação pode se dar por terminado. Voltamos então ao
contrato – ele delimita as condições de possibilidade da pesquisa-ação. Se for aberto o
suficiente, poderá fazer uso destas etapas iniciais para dar continuidade à pesquisa e buscar a
140
mudança que Morin avalia como sendo a desejada na PAI, a mudança “transformativa”, isto
é, a mudança que se traduz na ação e no pensamento .
4.1.4. O discurso
4.1.5. A ação
não se tem receio da desordem, da explosão, sabendo que brotará uma nova
ordem e que os enunciados ordenados gerarão, por sua vez, componentes
criadores. (Morin, A., 2004, p.98)
Resumindo, como diz Edgar Morin, a complexidade está na base. Ela pode não ter
uma metodologia, mas possui um método que se desenvolve a partir dos três princípios acima
enunciados. Fundamentalmente, na busca pela verdade é necessário incluir, no pensamento
complexo, a não verdade, a incompletude de todo pensamento e a impossibilidade de pensar
em conceitos dando-os por concluídos.
Segundo este autor,
144
escuta sensível, os valores, emoções e imaginário do pesquisador são revelados desde o início
por meio de um diálogo que se instaura face a face, mantendo assim a coerência da pesquisa,
já que o pesquisador pode recusar-se a trabalhar com determinado grupo se “algumas
condições se chocarem com seu núcleo central de valores” (Morin,A., 2004, p.94) - é
importante relembrar que o pesquisador profissional na PAI é também ator, no sentido de agir
em conjunto com os demais participantes da pesquisa.
Resumindo, a presente pesquisa fundamenta-se num modelo de pesquisa-ação integral,
cujo planejamento possui um design em espiral que inclui todas as dimensões acima descritas.
Este planejamento em espiral se dá na perspectiva sistêmica complexa descrita no item
anterior, sendo sua característica fundamental a recursividade – pois cada fase pressupõe a
possibilidade de modificar o conjunto da pesquisa.
Antonio Machado
4.2.1. O início das ações: Comitê comunitário do Riacho Fundo e a Escola Olho d’Água23
23
Escola Olho d’Água é um nome fictício. Optei por trocar todos os nomes das escolas envolvidas, assim como
dos participantes da REMA citados no intuito de preservar o cotidiano escolar.
147
parque que não atendesse à população, ou por outra, que o plano de manejo não fosse
cuidadoso o suficiente em preservar os recursos naturais existentes na área.
Nos meses que se seguiram ao Fórum Ambiental, envidei esforços para construir um
vínculo de confiança com os membros do comitê. Participei de várias reuniões buscando
escutar a fala de todos, no sentido da escuta sensível colocada por Barbier. Desde o início
explicitei meus interesses como doutoranda em fase de pesquisa, expondo minha intenção em
trabalhar com escolas e professores num processo de organização comunitária. Assim, quando
houve a sugestão do comitê de inserir as escolas no processo de mobilização e educação
ambiental em torno do Parque Ecológico e o pedido para que a equipe da UnB contribuísse
nesse processo, a sugestão foi dirigida particularmente a mim.
Para iniciar o trabalho, o Comitê Comunitário sugeriu que eu entrasse em contato com
a escola “Olho d’Água”, por ser a mais próxima do Parque. A escola atende alunos de 1 a 4ª
séries, na faixa etária de 6 a 15 anos.
Diário de pesquisa
149
Meu primeiro encontro com os professores da escola foi marcado com a direção da
escola. Fui num dia, pela manhã e à tarde, para poder conversar com os professores durante o
horário que seria reservado à coordenação pedagógica. Nossa conversa seguiu no sentido de
explicar porque eu estava ali, a existência do comitê comunitário, os problemas sócio-
ambientais que haviam sido identificados e a solicitação para que a UnB pudesse oferecer
apoio para construir um trabalho educativo, em torno das questões sócio-ambientais locais.
Minha proposta era construir, com os professores interessados, um projeto educativo de
educação e gestão ambiental para ser desenvolvido junto à comunidade, a partir da escola,
incentivando a relação entre a escola e a comunidade. Deixei claro que não trazia nenhuma
proposta fechada – mas que estaria presente junto ao grupo ajudando a construir e
implementar a que fosse elaborada. Na conversa com os professores, percebi que alguns
destes não sabiam que a área verde em torno da escola fazia parte do Parque Ecológico do
Riacho Fundo, nem que nele estavam localizadas as nascentes do córrego do Riacho Fundo
entre outras.
Inicialmente os professores mostraram-se reticentes quanto a virem construir um
projeto de educação ambiental, pois segundo eles, um grupo da UnB já havia estado na escola
no início do ano com proposta similar – sugerindo a elaboração de projetos ambientais na
escola. Alguns professores motivados pela perspectiva de realizar projetos na escola
elaboraram o projeto chamado “Projeto Meio Ambiente”, mas como o grupo da UnB não
tinha retornado, o projeto acabou não saindo do papel. Perguntei se sabiam que grupo era
este, e ao me responderem, percebi que era o grupo ao qual eu estava ligada. Sem esconder o
fato, disse que eu estaria pessoalmente envolvida nesse trabalho e que não os deixaria na mão.
Como minha perspectiva inicial era a de realizar um trabalho coletivo, de tal maneira a
propiciar condições de possibilidade para o surgimento de canais de comunicação entre a
escola e a comunidade por ela atendida, propus incluir o projeto desses professores numa ação
ligada à comunidade através do Comitê Comunitário. Assim, os trabalhos iniciaram-se
contando com um grupo formado por cinco professoras da escola, eu e a colaboração de uma
bolsista, Flávia, do programa de educação ambiental da Faculdade de Educação da UnB e de
Cristiano, geógrafo da SEMARH do setor de Educação Ambiental.
Apesar de minha aproximação com a escola, iniciada a partir do segundo semestre de
2002, ter sido viabilizada pelo Comitê Comunitário do Riacho Fundo, e entender que em
relação ao comitê havia um pacto de ações que pressupunha os limites das ações de cada um
150
dos integrantes do grupo, junto à escola isso ainda deveria ser feito. Estava naquele momento
da pesquisa abrindo uma nova frente com um novo grupo que possuía necessidades, valores e
linguagem muito distintos das que compunham o comitê. O primeiro passo, sem dúvida para a
possibilidade da realização deste novo pacto era o estabelecimento de confiança mútua.
Durante as reuniões que se seguiram com os professores da Ruralzinha, ficou claro para mim
que novos problemas emergiam, problemas relacionados à estrutura institucional da escola
pública e das relações sociais mantidas dentro daquela escola. Esses problemas demandavam
soluções que diferiam, e muito, dos pequenos projetos de educação ambiental normalmente
desenvolvidos nas escolas. Mas naquele momento eu ainda não tinha pista de qual poderia ser
a solução. Sabia, entretanto, que manter o diálogo aberto e acolher cada um deles num espaço
de convivência, responsabilidade e amorosidade fazia parte dessa solução.
Sempre que possível, Cristiano e Flávia participavam das reuniões que eram semanais.
Apesar de que em cada encontro com as professoras eu procurava discutir quais seriam as
estratégias que poderíamos lançar mão para trabalhar com os alunos e suas famílias as
questões referentes ao Parque Ecológico e aos recursos hídricos locais, as conversas eram
descontraídas e deixava por conta do grupo o rumo da discussão. Algumas vezes o assunto
principal versava sobre problemas internos à escola, a relação com a direção, a política
educacional desenvolvida pela Secretaria de Educação ou sobre a pouca participação dos
demais colegas nessa atividade. Em outros momentos o grupo discutia e organizava ações
referentes ao Parque. Como eu não estava ali para dar nenhuma “solução milagrosa”, nem
“nenhuma receita metodológica” que pudesse ser aplicada de imediato, não havia pressa. De
certa forma, aquele pequeno grupo via nossa estada ali na escola, como uma oportunidade de
realizar os projetos que tinham ficado na gaveta.
Aos poucos a confiança foi sendo estabelecida e os professores falavam mais
abertamente das questões que os incomodavam.
A maior parte dos alunos atendidos pela Escola Olho d’Água são oriundos do Riacho
Fundo II. Como foi dito no capítulo 1, este é um assentamento urbano relativamente novo,
151
com algumas quadras sem asfaltamento e tratamento de águas pluviais, possuindo vários
assentados de baixa renda. Em levantamento realizado nesta pesquisa em 39 domicílios de
famílias de alunos dessa escola, em 23% das famílias todos os adultos estão desempregados,
em 41% apenas um trabalha, sendo que em 87% dos domicílios moram de 04 a 09 pessoas.
Além disso, 66% das famílias recebem algum benefício do governo como os programas de
cesta básica e Renda Minha.
Apesar dos professores terem consciência dessa situação social, a relação mantida com
os alunos era nitidamente uma relação de tensão e suavidade. Por um lado a dificuldade de
ensinar alunos que se mostravam na maioria das vezes agressivos e arredios, com dificuldades
de aprendizagem e com pouca disponibilidade para ações solidárias entre os colegas, somada
aos problemas da instituição escolar que segundo os professores era viciada e não incentivava
ações inovadoras. Por outro, a percepção de que boa parte desses problemas era de ordem
social e política por um lado e afetiva por outro e que seria necessário encontrar formas para
152
se fazer o trabalho docente, apesar de todas as dificuldades impostas aos alunos e aos próprios
professores.
Sobre as famílias dos alunos, alguns professores criticavam a política assistencialista
implementada pelo atual governo, pois segundo eles não haveria necessidade para estas
famílias de procurarem trabalho, pois esta política dificultaria as iniciativas de
desenvolvimento sustentável e a mobilização dos moradores para o engajamento por
mudanças nas condições de vida, pois estariam acostumados a “receber tudo de mão
beijada”, “sem esforço”, uma vez que muitos faziam parte dos programas assistenciais do
governo do Distrito Federal recebendo cesta básica, vale-gás e Renda Minha.
Segundo os professores, muitas mães não tinham conhecimento dos cuidados básicos
que se deve ter com as crianças, principalmente referentes à higiene e limpeza pessoal,
153
deixando que seus filhos freqüentassem a escola com os uniformes sujos e sem terem tomado
banho. Dois motivos eram apontados nas falas dos professores para explicar a dificuldade em
se realizar atividades com as famílias: o primeiro era que a escola ficava numa região de
difícil acesso e que para os familiares chegarem ali teriam que vir à pé, já que não havia linha
de transporte coletivo; o segundo era que para atrair os pais seriam necessárias atividades com
um caráter muito prático, tal como ensinar algo que pudesse ajudá-los a melhorar suas
condições de vida (com isso querendo dizer melhorar a renda).
Outro problema, identificado pelo grupo, era o fato de muitos alunos não terem uma
família estruturada, e em alguns casos as famílias apresentavam problemas com alcoolismo e
maus tratos (às mães e aos filhos) exemplificado nas seguintes falas: “muitos não tem pai, ou
são filhos de pais diferentes”, “tem aluno que já bebe”, “muitas mães chegam aqui
bêbadas”, “já tive aluno que chegou aqui cheio de manchas roxas no corpo”. Num dos casos
relatados por uma professora, um aluno vítima de maus tratos foi encaminhado ao IML para
exame de corpo de delito e segundo o médico legista, aquele tipo de caso só ocorria na média
de três ao ano, devido à gravidade da extensão dos ferimentos. Numa outra situação, durante
a encenação de uma peça de teatro, cujo enredo versava sobre a reciclagem do lixo, a
personagem segurando um papel com a foto de uma lata de cerveja pergunta o que era aquilo
- esperando como resposta “metal” - mas os alunos respondem “Skooool!”, então pergunta:
“quem já bebeu cerveja?”, recebendo como resposta vários gritos de “eu” e outras tantas
mãozinhas levantadas.
Os alunos ainda apresentavam preconceito social (conta uma professora, que os alunos
que eram filhos de carroceiros e catadores de lixo eram marginalizados pelos demais colegas),
ausência de sentimento de cooperação, baixa auto-estima (também referida às famílias),
convívio com o uso de drogas em casa, falta de cuidado com os lugares que são comuns a
todos e com o meio ambiente local. Um caso interessante levantado pelos professores para
referirem-se ao cuidado com o meio ambiente local era o cuidado com as mangueiras do
pátio: segundo eles, os alunos não deixavam as frutas amadurecerem. Numa ocasião uma das
professoras viu a meninada pendurada nas árvores tirando os frutos ainda verdes e disse para
todos descerem. Para sua surpresa, desce da árvore um pai de aluno, que junto com as
crianças estava tirando as frutas para comer. Segundo a professora Carla, “a impressão que
fica é que os alunos não têm a cultura de esperar amadurecer – têm medo que ao esperar,
outro vá antes e arranque as frutas”.
154
Por último, havia ainda a constatação de que vários alunos que apresentavam
dificuldades de aprendizagem e comportamento agressivo ou recluso deveriam passar por
diagnóstico psicológico, pois segundo os professores, eram crianças que precisariam de apoio
específico e ensino especial. Segundo as informações que os professores tiveram, uma das
regras para a doação dos lotes pelo governo do Distrito Federal no Riacho Fundo II era que as
famílias que apresentassem casos de deficiência física ou mental teriam prioridade em relação
às outras. Segundo os professores, os alunos “não têm disciplina”, “são muito agitados,
alguns possuem deficiências mentais e não foram ainda diagnosticados por que a Secretaria
de Educação não faz o seu trabalho”, “alguns são agressivos”, “não aprendem”, “têm muitas
deficiências cognitivas e afetivas”, “tem traumas”.
Nos encontros com o grupo, ficou claro que nenhum das professoras tinha noção do
que significava uma área tornar-se parque ecológico, e de certa forma, a importância que
atribuíam ao fato resumia-se à idéia de que “sempre é bom preservar o verde”. A visão destes
professores sobre a natureza estava impregnada de “romantismo” e simbolismo religioso,
156
onde a natureza existe por “obra da bondade divina” sendo por essa razão, “boa” para o
homem.
O ser humano apresentava-se como ser superior, destacado da natureza, e esta teria
sido criada por Deus para servir ao homem e dessa forma, os seres humanos deveriam ser
responsáveis por esse patrimônio divino. Como professores entendiam que deveriam ensinar
que a natureza é “boa” pois provê a subsistência humana e que o importante era ensinar a
preservá-la para que fosse possível continuar usufruindo dela. Entretanto os limites do que
seria natureza e a relação entre o ser humano e a natureza não estavam claros. Em algumas
falas a natureza era tudo aquilo que o homem não criou, ou não tocou. Em outras, natureza
comporta uma ação humana, como por exemplo, as hortas escolares, que seriam exemplos
pedagógicos de “como cuidar da natureza”. Por isso, a entrada/existência do ser humano na
natureza era ambígua para esses professores – por um lado o homem fazia parte da natureza
(também foi criado por Deus), mas por outro, era colocado de fora a produção e ação do
homem sobre o ambiente, mas que no final das contas, o define.
Penso que no limite desse raciocínio, seriam forçados a dizer que somente o homem e
a mulher nus, sem cultura, sem linguagem e sociabilidade fariam parte dessa natureza.
Por outro lado, os professores que compunham o grupo desejavam fazer atividades
relacionadas ao meio ambiente, em especial organizar a horta escolar que estava prevista no
projeto que tinham elaborado no início do ano. Para eles, em suas falas, preservar a natureza
era entendido como criar condições melhores de vida para todos. Associavam as atividades de
educação ambiental aos cuidados com a saúde humana - como beber água limpa, ingerir
alimentos sem agrotóxicos e fazer o descarte adequado do lixo para não ficar exposto a
doenças – e com a possibilidade de poderem trabalhar, na prática, as idéias de
responsabilidade e solidariedade entre os alunos.
Figura 4.3. – Desenho de aluno da 1ª. série sobre o Parque Ecológico do Riacho Fundo (2002)
24
No ano de 2003 o Comitê Comunitário do Riacho Fundo entrou num processo de desmobilização interna
inviabilizando a proposta inicial de realizar as entrevistas com o apoio da comunidade local.
159
da Universidade de Brasília, como parte do projeto de final de curso desses alunos ao longo
do primeiro semestre letivo de 2003.
Apesar das dificuldades, o pacto não foi inviabilizado pelo fato do roteiro de
entrevistas não ter sido aplicado em tempo hábil. Continuamos nos encontrando e buscando
novas formas para realizar as ações que haviam sido desenhadas no ano anterior e que
basicamente agora se resumiam em duas perspectivas:
1- criar condições de possibilidade para se elaborar projetos de educação ambiental e
implementá-los na escola;
2 – criar estratégias de atração de novos participantes no grupo, incluindo um número
maior de professores daquela escola.
Região Administrativa. Respondi naquela reunião que talvez fosse possível e na reunião
seguinte cheguei com a proposta de criar uma rede de trabalho entre as escolas, em torno da
temática transversal – meio ambiente, em específico a questão da água e a gestão dos recursos
hídricos do Riacho Fundo. A idéia era circular informações sobre projetos de educação
ambiental nas escolas e mobilizar os professores a realizarem atividades pedagógicas sobre o
Parque Ecológico e as condições do córrego do Riacho Fundo. Contudo, seria necessário o
apoio do comitê, pois deveríamos aproveitar a semana que antecede o início do ano letivo,
conhecida como Semana Pedagógica, para conversar com todos os professores.
O tempo era pouco para nos organizarmos, pois a semana pedagógica iniciaria na
semana seguinte. Fiquei incumbida de buscar a relação das escolas do Riacho Fundo na
Gerência Regional de Ensino da Secretaria de Educação e telefonar para as administrações
escolares marcando os melhores horários para os encontros. Na reunião seguinte do comitê
montamos uma agenda de visitas. Foram visitadas nove escolas públicas da região, e
conversamos com todos os professores reunidos. As visitas tiveram a participação de um
membro do comitê comunitário e as discussões correram no sentido de identificar os projetos
de educação ambiental nas escolas e convidar os professores a organizar projetos de educação
e gestão ambiental para a comunidade a partir da escola. Falei também que a idéia seria
construir uma rede de trabalho educativo entre as escolas, já que todas estavam dentro da
mesma sub-bacia e atendiam a mesma comunidade.
A constituição da rede de escolas estava prevista para se dar através da ação conjunta
de representantes do Comitê Comunitário e organizações do Riacho Fundo, a Administração
Regional do Riacho Fundo e pesquisadores da Universidade de Brasília.
Fiz a qualificação ontem. Foi tudo bem. Agora é que são elas...Hoje,
corri de uma escola para outra conversando com os professores. Engraçado,
a chamada Semana Pedagógica na verdade dura três dias. Tenho que visitar
o máximo de escolas possível, porque depois será muito difícil reunir os
professores. Hoje consegui ir em três escolas.
(...)
Stephanio, tem me ajudado muito. Ele se apresenta aos professores
como representante do Comitê Comunitário do Riacho Fundo e da ONG
VIVERDE e fala das dificuldades de lidar com o meio ambiente local e da
161
tendo como eixo a temática sócio-ambiental, e em especial, a gestão local dos recursos
hídricos.
O curso procurou promover a troca de conhecimentos, informações, práticas e
contextos entre os professores das escolas do Riacho Fundo, a criação de vínculos de
solidariedade e apoio entre a comunidade e reforçar os vínculos entre as organizações da
sociedade civil e poder público na comunidade local.
Nesse sentido, iniciamos os trabalhos com uma discussão sobre a questão ambiental –
histórico e desafios, passando a estudar a realidade regional e local, em especial a Bacia
Hidrográfica do Paranoá e a Sub-bacia do Riacho Fundo, incluindo aspectos da fitofisionomia
do cerrado.
Temas como impacto urbano sobre a biodiversidade local e os aspectos sociais e
ambientais locais foram tratados através de visitas de campo e entrevistas que tinham como
objetivo o conhecimento da região, pois boa parte dos professores tinha dificuldade em tratar
assuntos relativos às questões locais, principalmente os aspectos ambientais.
Duas visitas de campo foram realizadas - uma trilha no Parque Ecológico do Riacho
Fundo e uma trilha urbana numa quadra residencial do Riacho Fundo II.
Figura 4.5 – Foto da entrevista com carroceiros locais durante a Trilha Urbana (2003)
Entretanto organizar o projeto não foi tarefa simples. Os professores viam muitas
dificuldades para implementar qualquer projeto nas escolas. Suas falas indicavam que nas
escolas não havia apoio para desenvolver novas idéias, fosse da direção, fosse dos demais
164
colegas. Somado a isso, havia ainda a dificuldade prática – muitas idéias demandavam
recursos humanos e financeiros que a escola não tinha e que segundo eles, a Secretaria de
Educação não dava. “Então como fazer?”, “Porque gastar tempo escrevendo algo que não
vai sair do papel?” - essas eram as perguntas mais freqüentes no curso na etapa de elaboração
do projeto, e a minha resposta era sempre a mesma: “escrevam tudo que gostariam de realizar
nas suas escolas e porque; só assim a gente pode saber o que fazer e onde teremos que
procurar ajuda”.
Assim as dificuldades iniciais foram sendo superadas pela idéia de que o projeto era de
todos e, portanto nenhum dos professores estava na realidade só em sua escola, mas poderia
contar com o apoio de todos nós.
Dessa forma, apesar de ter iniciado o curso com a proposta de formar uma rede de
trabalho entre as escolas que buscava fazer circular a informação sobre projetos ambientais e
incentivar a elaboração de atividades de educação ambiental em torno dos contextos sócio-
ambentais locais, um novo tipo de rede emergiu, não mais uma rede de escolas, de caráter
institucional ou representativo, mas uma rede de pessoas comprometidas com um conjunto de
idéias, valores e ações expostas por todos no projeto final do curso.
Esse projeto final se constituiu num novo pacto de ações, sugerindo uma participação
mais cooperativa por parte destes professores abrindo uma nova perspectiva da pesquisa-ação,
agora direcionada ao novo grupo que iniciava a formação de uma rede. Nesta etapa, o grupo
contava com vinte professores de escolas públicas, além das participações de Cristiano e
minha. O projeto tinha como parceiros a Universidade de Brasília (por meio do programa de
extensão universitária), o Instituto de Desenvolvimento Ambiental (IDA) e o Comitê
Comunitário do Riacho Fundo, além do apoio da Administração Regional do Riacho Fundo.
O pacto de ações já demonstrava um nível superior de reflexão, pois, constava dele
não só o diagnóstico local das condições sócio-ambientais, mas os valores e princípios que
deveriam ser desenvolvidos junto à escola e a comunidade, tais como a cooperação, a
solidariedade, a responsabilidade e afetividade, entre outros. Além disso, este pacto trazia
também o contrato da pesquisa-ação, isto é, a minha função no grupo e como este grupo
atuaria na pesquisa. Os professores envolvidos no trabalho não estariam pesquisando o que eu
estava pesquisando – a intenção destes professores era investigar e criar formas de
implementar atividades voltadas à educação ambiental em suas escolas e junto à comunidade.
Minha função neste pacto era discutir com eles as possibilidades e estratégias para que isso
165
pudesse ocorrer e apoiá-los nas ações. Esta minha inserção, contudo, já era parte da pesquisa
propriamente dita e os professores sabiam disso. O diálogo em torno das estratégias e dos
valores que norteavam as ações, era o objeto de minha reflexão. A instituição desse diálogo e
a permissão para que eu pudesse observar com “os olhos da pesquisa” foram suas
contrapartidas no contrato de pesquisa. A reflexão, contudo era partilhada no coletivo,
mesclando-se às discussões que o pacto de ações exigia. Esta minha dupla função –
participante do pacto e pesquisadora esteve desde sempre no fio da navalha, exigindo uma
observação multireferencial, engajada em muitos momentos, distante em outros. Saber separar
estes momentos talvez tenha sido meu maior aprendizado.
Então Selma disse que tinha pensado num nome para a rede: Rede de Meio
Ambiente e Educação – ReMAE. Aí eu disse: “porque não tira o último “e”?
Poderia ser apenas REMA”. E assim a rede ganhou um nome.
Diário de Pesquisa
primeira, a organização de uma página na web onde poderíamos colocar todas as informações
sobre a REMA; a segunda, a organização de um encontro com a comunidade e com os
parceiros em potencial para apresentar a REMA e seu projeto.
A página foi criada por um dos professores do grupo e publicada na web ainda no
primeiro semestre de 200325.
Fizemos uma nova reunião para discutir como seria a apresentação da REMA e
discutimos como seria o andamento dos trabalhos durante a apresentação. O grupo indicou
várias entidades e instituições, entre elas a EMBRAPA, a Cooperativa 100 Dimensão, a
Secretaria de Parques do Distrito Federal, a Coordenação de Educação Ambiental do
Ministério de Educação (COEA/MEC), a Diretoria de Educação Ambiental do Ministério de
Meio Ambiente (DEA/MMA), a SEMARH, o Comitê Comunitário do Riacho Fundo, a
Escola da Natureza (Secretaria de Educação do Distrito Federal - SE/DF), além de
associações de moradores da região para serem convidadas para o evento por meio de uma
carta convite, em anexo nesta tese.
A apresentação ocorreu em 30 de agosto de 2003, numa manhã de sábado, no
auditório da Administração Regional do Riacho Fundo I contando com representantes da
Escola da Natureza (SE/DF), COEA/MEC, DEA/MMA, IDA, da COMPARQUES (atual
Secretaria de Parques do Distrito Federal), da Administração Regional e moradores do Riacho
Fundo, de ONGs locais, além de alunos da UnB e professores das escolas públicas locais.
Ao se apresentarem para a platéia, os professores disseram seus nomes e completaram
com a frase: “faço parte da REMA”. A mim coube apresentar o grupo no início dos trabalhos.
A REMA Riacho Fundo foi gestada num processo educativo em torno de questões
ambientais locais – onde os saberes locais e científicos se articularam por meio do encontro
dialógico. Ao mesmo tempo, esse diálogo de saberes que surgiu no grupo de professores que
compõem a REMA não poderia ter ocorrido se não fosse pela realização do acolhimento –
deles comigo, de mim para eles, entre eles, de todos nós com o ambiente. Nesse sentido, o
25
A página foi revista em 2004 e publicada em: http://geocities.yahoo.com.br/rema_riacho_fundo
167
saber que daí emergiu não foi apenas um resultado linear de uma aglutinação de
conhecimentos diversos, mas um complexo tecido relacional entre-humanos e entre homem e
ambiente.
Esse conhecimento complexo sobre a realidade socio-ambiental local surgiu no discurso
que se instaurou como resposta ao outro, acolhimento e bondade. Um discurso, que como
poderá ser visto no próximo capítulo, prenhe de contradições e conflitos.
A REMA Riacho Fundo, como uma rede solidária, tem o rosto da organização social
local, a mobilização interna corporativa, mas que entendendo-se aberta, transcende a
corporação de classe, buscando criar novas relações com grupos e pessoas que comunguem
dos mesmos ideais e valores expressos em seu projeto. Ao mesmo tempo, é resposta aos
entraves burocráticos da instituição escolar, pois se apresenta como forma alternativa de ação
docente de práxis autogestionária, tanto dentro dos muros da escola quanto fora deles.
GE DF
168
Gilberto Gil
Como foi dito no capítulo anterior, o primeiro curso de extensão teve como produto
final um projeto de ações e a emergência da REMA. Esse resultado foi conseqüência de um
processo de pesquisa-ação a partir da identificação dos desejos e valores comungados pelo
grupo participante do curso.
A idéia inicial de criar uma rede de circulação de informação e divulgação de projetos
e atividades relacionadas ao meio ambiente local, em especial ao Parque Ecológico do Riacho
Fundo, centrada nas escolas, pressupunha o envolvimento das escolas como um todo, isto é,
professores, funcionários, alunos e as administrações escolares. Contudo, a estratégia adotada
na pesquisa-ação foi a de envolver primeiro os docentes, indo em cada escola e conversando
com eles em pequenos grupos, para a partir daí formar uma “massa crítica” que pudesse
influenciar positivamente o restante do grupo escolar por meio da abertura ao diálogo e da
realização de ações voltadas ao meio ambiente local. Esta estratégia não se preocupava
inicialmente, portanto, com a obtenção de um apoio formal da instituição escolar. Mas as
barreiras para se trabalhar com os pequenos grupos em cada escola exigiram outra
abordagem. Ao adotar a idéia de realizar o curso de extensão, sabia que o trabalho poderia
tomar um rumo diferente, uma vez que nem todos os professores e professoras que se
mostravam interessados no trabalho que estávamos desenvolvendo teriam condições de se
inscrever no curso. Por outro lado, havia a possibilidade real de que todo o movimento de
construção de espaços de diálogo nas escolas ficasse profundamente comprometido pela
restrição do tempo que o cronograma do curso impunha e pela própria estrutura e expectativa
que os cursos em geral carregam. Por isso, ao propor o curso de extensão, procurei não só
discutir sua estrutura com os grupos interessados, mas viabilizar sua realização nas escolas do
169
26
A autonomia, desde o início dos trabalhos, sempre foi um ponto importante. Ela não está relacionada ao que o
professor pode fazer em sua sala de aula do ponto de vista pedagógico, mas à autonomia na escola, isto é, nas
possibilidades de realizar projetos que na maioria das vezes necessita de apoio administrativo e/ou prevê a
participação de outros colegas.
170
um maior comprometimento com o trabalho e uma participação mais ativa – tanto pela
demanda quanto pela participação no curso propriamente dito.
Figura 5.1 - Foto do grupo de professores durante a realização da Trilha Urbana no Riacho Fundo II
(1º. Curso de Extensão, maio de 2003)
princípios gerais norteadores das ações propostas. A pesquisa se deu sobre este pacto, agindo
e observando o desenvolvimento e implantação das ações do projeto e da constituição da rede.
A ação de extensão universitária que eu trazia naquele momento mesclou-se com as
ações descritas no projeto e com a organização da rede solidária. Como já foi dito
anteriormente, se antes o objetivo da minha ação era contribuir no fomento a organização
comunitária em torno de questões sócio-ambientais locais, a partir do curso de extensão ela
passou a estar envolvida com o fomento à estruturação de uma rede social que despontava,
abrindo a perspectiva da pesquisa sobre os processos de formação dessa rede e suas
implicações no âmbito das relações sociais.
Mas ao final, projeto e rede se confundiram – a rede tinha um projeto, e o projeto era a
rede. Desde o início a rede teve essa característica dinâmica – implementar as ações descritas
no projeto era implementar a rede, fortalecê-la. Mas como ter certeza de que o que se
organizava era uma rede e não apenas uma equipe de trabalho em torno de um projeto comum
e que por força de modismos denominava-se “rede solidária”?
Para que uma organização seja considerada rede, certas características básicas devem
estar presentes em sua arquitetura: adesão e participação voluntária, conexões e fluxos entre
os grupos e indivíduos, existência de objetivos e valores compartilhados, organização
horizontal, multiliderança e gestão democrática (WWF, 2003). Para que seja uma rede
solidária, ela deve constituir-se como um espaço possível para a criação de subjetividades
coletivas e pessoais autênticas, isto é, eticamente referenciadas, realizar práticas que tenham
por fim o empoderamento e a participação popular e ser revolucionária, no sentido de integrar
utopias individuais em utopias coletivas visando o bem estar de todos e o exercício
democrático (Mance, 2002).
O movimento na chamada do sub-título não se refere apenas aos fluxos de informação
ou serviços que uma rede realiza e que se dão por meio das relações que estabelece. No caso
da REMA, este movimento está intimamente relacionado à qualidade desses fluxos que por
sua vez remetem ao pares autonomia/dependência e competição/cooperação, visíveis em
172
quase todas as relações que dão forma a esta rede: entre o individual e o coletivo (dentro da
rede), entre a rede e a comunidade (nos apoios, parcerias e nos diálogos com a comunidade
em geral), entre eu e a REMA e na sua constituição como um grupo de professores e
professoras que está dentro de um sistema institucional (Escola) sofrendo por um lado as
disputas internas da instituição, mas por outro, reconhecendo os limites impostos pela
autoridade e legitimidade que a instituição pública carrega.
Esses dois pares estão na raiz da formação da REMA, pois deles originam-se os
embates para a construção da identidade da rede e do compromisso pessoal de cada um com
este coletivo.
Este movimento reflete-se na dimensão pedagógica do processo de formação da rede,
onde o diálogo é a fonte e o resultado – fazer dialogar as autonomias e dependências, as
competições e os apoios, aprendendo a negociar interesses individuais e coletivos.
Porém, sem sombra de dúvida, as condições internas de possibilidade para emergência
de uma rede solidária residem no tripé constituído pela participação voluntária, pelos valores
e princípios solidários compartilhados e pelo fluxo de informações.
No caso da REMA, desde o início dos trabalhos, mesmo antes da emergência da rede,
os professores participaram dos encontros e discussões, assim como do curso de extensão, de
forma livre – o convite que foi feito durante a semana pedagógica, relembrando mais uma
vez, pressupunha a livre participação, tanto de professores em sala de aula, quanto de
membros das direções escolares, no intuito de organizar um trabalho coletivo em torno de
questões ambientais locais. A permanência de um grupo motivado em manter os laços iniciais
criados entre nós e interessado em desenvolver propostas de educação ambiental levou à
elaboração do curso de extensão – como forma de solucionar o problema do tempo para os
encontros, associado à necessidade expressa em suas falas de conhecer melhor a condição da
cidade e do parque.
Já nesse estágio era possível notar a motivação e a organização interna de um pequeno
grupo, que compartilhava os mesmos objetivos e valores relacionados tanto ao trabalho
pedagógico de forma mais ampla, quanto à temática da educação ambiental. Esse grupo era
formado principalmente pelos professores da primeira escola em que entrei – a escola Olho
d’Água, com quem tinha um relacionamento mais antigo.
A partir do curso e da emergência da REMA, a opção de fazer parte ou não da rede se
tornou mais explícita, e ao mesmo tempo em que novos professores desejavam fazer parte,
173
Organizar a apresentação não foi tarefa simples. A auto-estima dos professores era em
alguns casos muito baixa – queriam apresentar o projeto e tecer parcerias, mas não se viam
aptos a defender a idéia ou organizar a apresentação e esperavam que eu fizesse isso. A
autonomia emergente da REMA ainda não era forte o suficiente para dizimar a dependência
em relação ao meu trabalho e função no grupo. Esta delicada relação entre eu e a REMA
como sendo uma relação de dependência e ao mesmo tempo de desenvolvimento de
autonomias individuais e coletivas, manteve-se ao longo de todo o período de observação da
estruturação da rede, isto é, durante o biênio 2003-2004.
Um encontro foi realizado para tratar da organização da apresentação. Nos reunimos
num sábado pela manhã e definimos a estrutura do evento, o que seria importante ser dito, a
formação de grupos de interesse (em torno de cada subprojeto), a lista das pessoas, grupos e
instituições que seriam convidadas e o formato geral da carta-convite a ser elaborada (Cf.
anexo 6). Foi neste momento que a auto-estima baixa dos professores ficou exposta, pois
certas instituições eram listadas, mas os próprios professores tinham dúvidas se elas iriam
estar presentes ao evento, pois afinal, “esse pessoal não vai se deslocar até ao Riacho Fundo
174
para ver um projeto de professores...”. A esse tipo de discurso eu contrapunha que o projeto
que foi elaborado era realmente algo novo, e que certos grupos e instituições teriam interesse
em participar e por isso deveríamos estar preparados para dialogar com eles.
Com essas condições para organizar o evento, procurei envolver a rede num conjunto
de co-responsabilidades, enfatizando suas capacidades pessoais e coletivas visando o
empoderamento do grupo.
No dia do evento, os professores estavam entusiasmados com a presença de
representantes de instituições que eles imaginavam não compareceriam, como a Escola da
Natureza- SE/DF), COEA/MEC, DEA/MMA, a Comissão de Parques da Secretaria de Meio
Ambiente e Recursos Hídricos do DF - COMPARQUES/SEMARH (atual Secretaria de
Parques do Distrito Federal) e membros de ONG’s locais. A participação dessas pessoas
surtiu um efeito extremamente positivo no ânimo dos integrantes da REMA – eles se sentiram
reconhecidos no trabalho que estavam apresentando e nas suas capacidades pessoais. Ficaram
175
à vontade para dirigir os trabalhos e para assumir publicamente a rede que estavam
construindo. A fala de cada um ao se apresentar ao público “Eu faço parte da REMA” marca
o nascimento da rede.
Os professores se expuseram, tanto nos seus desejos quanto nos problemas que viam
para implantar atividades relacionadas ao meio ambiente local a partir das escolas em que
atuavam. Por isso, deixaram claro a necessidade de apoio para realizar os subprojetos e
convidaram os presentes a participar das atividades.
O projeto elaborado pela REMA, enquanto pacto entre os participantes, pressupunha
valores tacitamente aceitos. Os principais valores eram a cooperação e a solidariedade.
Durante o evento, suas falas deixaram transparecer esses valores, apresentando-se como uma
rede de pessoas, professores e professoras de escolas públicas do Riacho Fundo, motivados a
realizar atividades nas escolas e junto à comunidade, voltadas principalmente à construção de
uma nova visão acerca do meio ambiente. Deixaram claro que o projeto era de todos e não
prerrogativa de uma escola, estando, portanto, aberto à participação de todos e que apoios e
parcerias seriam realizadas visando o coletivo da REMA e as ações prioritárias do projeto.
Mas como disse no início deste capítulo, o movimento desta rede foi marcado pelos
pares autonomia/dependência e cooperação/competição. Ainda que a REMA neste estágio de
organização buscasse a autonomia coletiva e individual e cooperasse internamente, isto não
exclui as tensões do processo. Assim por exemplo, durante o evento, em uma das falas de
apresentação de professores, Selma, uma professora integrante da rede apresentou um
discurso que além de destoar da fala geral do grupo, já que se apresentou primeiro como
assistente de direção de uma escola do Riacho Fundo e depois, como integrante da REMA
(quando todos os outros fizeram o contrário) evidenciava uma condição de competição –
“minha escola já tem horta que funciona muito bem pois a direção da escola conseguiu o
apoio da Administração Regional”. A fala de Selma foi objeto de discussão em encontro
realizado com a REMA dias após o evento. Este tema será retomado mais adiante.
A partir do evento e dos contatos que foram realizados, a rede começou seu processo
de expansão e de implantação das atividades descritas em seu projeto. Algumas das
instituições convidadas que não estiveram presentes ao evento foram contatadas
posteriormente, como a EMBRAPA e a Cooperativa 100 Dimensão.
Também a partir dessa data, a liderança no grupo começou a migrar por meio de um
processo de transitividade – informações e contatos com grupos e indivíduos relacionados a
176
mim circulavam na rede livremente o que facilitava a emergência de iniciativas por parte dos
professores da REMA. Dessa forma, enquanto Carla, professora da escola Olho d’Água,
assumiu a iniciativa por certas ações, principalmente realizando contatos com grupos e
instituições, um outro grupo de professores da REMA, interessado no subprojeto de trilhas
ecológicas organizou os contatos com a Administração Regional do Riacho Fundo e a
COMPARQUES/SEMARH-DF para apoiar a ação.
Depois da apresentação da rede à comunidade, algumas atividades de educação
ambiental começaram a ser realizadas nas escolas onde os professores da REMA lecionavam,
entre elas as trilhas no parque ecológico com professores e alunos, atividades direcionadas aos
alunos sobre a questão do consumo e do lixo e sobre o Parque Ecológico do Riacho Fundo.
A rede aumentou a sua atividade e iniciou o processo de descentralização, adquirindo
uma autonomia relativa, principalmente em relação a minha pessoa, pois, através das
conexões que haviam sido construídas entre os seus membros, um fluxo de informação e
serviços se consolidou. Apesar disso, eu ainda era referência para o grupo, principalmente em
relação àquilo que os professores entendiam como sendo a “costura” da REMA - suas
articulações e possibilidades - sendo ainda considerada por todos uma espécie de liderança na
rede.
Esse estágio inicial da formação da REMA é caracterizado na etapa nuclear como um
embrião que carrega as informações e potencialidades de criação de um novo ser. Porém,
como todo estágio embrionário, profundamente frágil e necessitado de suporte. Por isso,
seguindo esta alegoria, minha presença no processo de formação da REMA deu-se no sentido
de, por um lado, proteger a rede como projeto e ação e, por outro, nutrir o embrião, o que
significa no vocabulário das redes, funcionar como hiperconector, facilitando o acesso a
grupos, pessoas e informações.
Além disso, é necessário frisar que apesar de ter entrado nas escolas por solicitação do
Comitê Comunitário local, as escolas não haviam feito essa demanda – para os professores e
direções escolares minha presença era uma oferta da comunidade. Também no desenrolar do
processo, o Comitê Comunitário passou por problemas de organização interna, perdendo
grande parte de sua representatividade local e dessa forma o fomento a um processo de
organização na escola em torno de questões ambientais locais terminou centralizado nas ações
de extensão universitária que eu trazia e representava.
177
Por isso não causa estranhamento o fato de que, ao surgir a REMA, o grupo
identificasse em mim a coordenação dos trabalhos internos na rede. Não havia naquele
momento outra opção – ela teria que ser construída e isso passava por um crescimento
endógeno do grupo. Demandava mais encontros onde todos pudessem trocar experiências,
expressar os desejos, apontar os problemas e criar soluções. A confiança precisava ser
reforçada tanto em relação ao projeto e seu andamento como nas relações intersubjetivas e
interpessoais no grupo. O fato do grupo se “sentir” rede trazia a segurança de contar com
apoios e espaços de diálogo – muitas vezes utilizado para processos de catarse pessoal quando
um membro da rede chegava e descarregava todos os problemas que tinha na escola para
implantar um ou outro subprojeto da REMA. Nessas ocasiões o grupo ouvia e buscava uma
solução coletivamente para o problema do colega.
Por outro lado, ser uma “rede solidária” trazia novos desafios, sendo o principal, a
vivência da produção coletiva e solidária que, apesar de desejada como valor humano a ser
cultivado, impunha ao grupo a necessidade de lidar com as diferenças individuais ao mesmo
tempo em que demandava a consolidação de sua própria identidade, no caso uma identidade
que não se resumisse apenas a uma estrutura formal reticulada, mas cujos princípios tivessem
ancoragem na nas relações éticas instituídas como responsabilidade pelo “outro”.
Provavelmente o melhor exemplo, nesta etapa de formação da REMA, foi a situação já
descrita acima, da professora que expressou um comportamento individualista na
apresentação da rede à comunidade. Em reunião realizada depois do evento, professores
comentaram a atitude dela em franca reprovação, e na discussão que travamos, vimos que
seria adequado procurá-la para conversar. Sugeri que alguns membros da rede fizessem isso e
o grupo pediu que eu estivesse junto. Mas nesse ínterim, uma situação escolar envolvendo
Selma e um aluno, filho de outra professora que freqüentava algumas das reuniões da REMA,
jogou por terra o esforço de aproximação. Alguns professores, naquele momento bastante
ativos na rede, boicotaram o processo de aproximação e diálogo e então o afastamento se deu,
por ambos os lados. Por um lado, esse acontecimento expressa a dificuldade, ainda viva
naquele momento, de se produzir um discurso argumentativo em torno dos objetivos e valores
que nortearam a produção do projeto da rede solidária e sua emergência e que embora aceitos
tacitamente necessitavam explicitação e arrazoados de tal forma que o compromisso de cada
um com todos e de todos com a rede fosse objeto de constante reavaliação e debate. Por outro,
explicita a qualidade das relações instauradas naquele momento e os valores que as
178
norteavam, pois ao expressar por meio de sua fala uma posição externa ao projeto coletivo da
REMA, Selma transpareceu sua não-implicação, a auto-suficiência (sua e da direção de sua
escola) e colocou-se numa posição auto-excludente em relação à rede. Além disso, e
permeando a situação, estava a questão pessoal entre membros da REMA e a professora em
questão.
A REMA ainda necessitaria de tempo, um tempo de gestação onde fosse possível
aprender a lidar com a diversidade, instaurar um diálogo real, onde os antagonismos
pudessem ser expostos e os consensos construídos, um tempo de gestação de uma identidade
nova.
Curiosamente, seguindo a alegoria do embrião, esta fase de gestação durou
aproximadamente nove meses,– em maio de 2004 a REMA encontrava-se num estágio
profundamente diferente deste relatado acima. Nesta época, por exemplo, Selma tinha
retornado à rede. Havia mudado de escola e expôs para o grupo as difíceis situações pessoais
que tinha vivido no ano anterior. O grupo a aceitou de volta e ela passou assumir uma função
de coordenação no grupo – principalmente no que tangia aos aspectos relacionados à Gerência
Regional de Ensino do Núcleo Bandeirantes.
promoveu encontros na sua sede para debater e trocar experiências didáticas e realizar
oficinas de reciclagem e reaproveitamento de resíduos sólidos e um período no Pró-Rural da
EMATER/DF dedicado à organização de hortas escolares, além de encontros regulares nas
escolas.
A REMA decidiu utilizar o período de tempo do curso (outubro a dezembro de 2003)
para aprender a trabalhar com os temas dos subprojetos, e ao mesmo tempo continuar
procurando apoios e fechando parcerias para que fosse possível a partir de início do ano de
2004 implantar os subprojetos nas escolas.
O segundo semestre de 2003 foi o período de gestação que aludi acima. A rede
necessitava de tempo e de informações. Os professores precisavam de espaços de encontro e
diálogo, onde pudessem trocar informações e práticas, aprender novas formas de trabalhar
com os alunos e tempo para amadurecer as possibilidades de trabalho com a comunidade e
nesses aspectos, o segundo curso de extensão propiciou o tempo e o espaço necessários.
Paralelamente, o grupo aumentava seu grau de organização – decidia sobre as
condições das parcerias e apoios e já entendia que deveria tomar as rédeas do processo em
suas próprias mãos. A esse grau de organização mais intenso correspondia um nível de
participação cooperativo onde as reuniões contavam com alto índice de participação e as
tarefas eram divididas entre os membros da rede. As lideranças internas ao grupo começavam
a emergir e esse movimento foi reforçado por minha fala ao dizer que não poderia continuar
responsável por articular apoios, parcerias e a própria manutenção da rede no ano seguinte,
pois deveria me afastar para escrever a tese de doutorado, mas acreditava que já existiam
pessoas dentro do grupo capazes de assumirem essa função.
Por causa desse movimento de crescente independência o último encontro do segundo
curso de extensão foi dedicado a discutir o futuro da REMA, em especial a sua organização
interna, as funções das lideranças e a captação de recursos humanos e financeiros dentro da
rede. Fizemos uma avaliação da conjuntura da rede naquele momento. A rede havia se
ampliado, incluindo novos colegas de outras escolas, articulado alguns apoios importantes
para a implantação de certas ações nas escolas e definido parcerias de trabalho. Como apoios
e parcerias mais importantes, tínhamos, além da própria UnB, o apoio da EMBRAPA
(cedendo mudas, sementes e esterco para as quatro hortas escolares), da EMATER/DF (que se
propôs a designar um técnico que poderia visitar as hortas uma vez ao mês e acompanhar o
desenvolvimento), da Administração Regional do Riacho Fundo (cedendo o espaço do
181
auditório para grandes reuniões, ajudando no transporte de alunos para atividades no parque,
limpando terrenos das escolas para o plantio das hortas), da COMPARQUES (em atividades
relacionadas aos parques do DF), da Secretaria de Agricultura do Distrito Federal (doando
mudas para reflorestamento) e a parceria com a Cooperativa 100 Dimensão e com o IDA.
O grupo entendeu que deveria se preparar para conseguir novos apoios, procurar
estratégias para implantar os subprojetos em suas escolas no ano seguinte e galgar um estágio
mais organizado, principalmente do ponto de vista da comunicação interna – que ainda era
muito deficiente, pois a maioria dos professores não tinha acesso à internet. Além disso, um
novo problema surgiu uma vez que, até aquele momento, todos os apoios e parcerias que
foram obtidos envolviam apenas prestação de serviços ou doação de material, não envolvia
repasse financeiro. Mas isso poderia acontecer. Como solicitar e gerir o recurso? Neste ponto,
a Secretaria de Educação foi descartada como possível intermediária do processo. O grupo
preferia que a UnB ou o IDA pudessem ser as instituições que o representassem. A solução
182
encontrada foi criar um pequeno grupo dentro da REMA que ficaria responsável por isso, e
juntamente com o IDA faria a gestão dos recursos. Nesse sentido, o IDA, que estava presente
ao encontro, se ofereceu para dar um curso para a REMA voltado a esse tema – gestão de
redes e terceiro setor. Este curso foi ofertado no ano seguinte, ainda no primeiro semestre de
2004.
A temporalidade já tinha se fixado na existência da REMA e os professores sentiam-se
mais à vontade em planejar o futuro. Sabiam que no início do ano seguinte a REMA
continuaria existindo e que haveria muito trabalho ainda, mas uma etapa diferente, um passo
adiante no processo, pois agora existir em rede tornava o planejamento possível.
O retorno dos encontros da REMA deu-se em fins de janeiro de 2004. Nesta primeira
reunião a REMA tratou dos encaminhamentos para organizar a entrada dos subprojetos nas
escolas. O subprojeto que parecia mais bem articulado era o de coleta seletiva do lixo. Mas
apresentava alguns problemas, pois para que a coleta fosse realmente implantada seria
necessário envolver toda a escola - professores, funcionários e alunos.
Ao pensar nas possíveis estratégias para a mobilizar as escolas para a implantação de
um programa de coleta seletiva, o grupo percebeu que era chegado o momento de dialogar
com as direções escolares no sentido de envolvê-las no processo que a rede estava iniciando.
O caminho encontrado foi propor às direções escolares a realização de um encontro comum,
com todos os professores das escolas e os parceiros da rede durante a Semana Pedagógica
para apresentar o projeto da coleta seletiva e as propostas de apoio da REMA às atividades
escolares voltadas à temática meio-ambiental.
A principal parceria neste programa era com a Cooperativa 100 Dimensão. Esta
cooperativa formou-se em 1998 a partir de um curso de capacitação do SEBRAE/DF. Seus
cooperados, hoje em torno de 200, eram homens e mulheres fora do mercado de trabalho, a
maioria, moradores do Riacho Fundo. A parceria estabelecida entre a REMA e a 100
Dimensão naquele momento pressupunha a troca de serviços e produtos – a cooperativa
recolheria o lixo seco das escolas, que segundo a presidente da cooperativa, era um “lixo rico,
papel branco”, e em contrapartida ofereceria aos professores cursos de reutilização dos
materiais e reciclagem, com vistas ao trabalho pedagógico em sala de aula e à organização de
possíveis oficinas para a comunidade local. Para a cooperativa, a parceria se mostrava muito
vantajosa, pois o acréscimo deste tipo de resíduo em especial, vindo de quatro escolas grandes
do Riacho Fundo, significava a possibilidade de incluir no grupo de trabalho da cooperativa,
183
mais quinze cooperados, “pais e mães de família que estão aí na fila esperando para
trabalhar”.
eram à noite, na casa de uma das professoras do grupo. Fizemos cinco encontros, mas tivemos
que parar, pois alguns dos professores envolvidos iniciaram um curso pela Secretaria de
Educação que ocorria também à noite e o grupo achou melhor esperar um outro momento
para reiniciar as discussões.
Eu já não era tão necessária, do ponto de vista das conexões que poderia fazer, mas
ainda referência quanto ao planejamento do movimento da rede como um todo. Permanecia,
portanto, acompanhando a dinâmica de organização da rede e na medida do possível, apoiava
e colaborava nas ações que eram delineadas.
Este tempo de gestação da rede refere-se, dessa maneira à etapa de abertura, pois se
relaciona ao momento do segundo curso de extensão onde a rede abre-se para parceiros em
potencial e procura articular um conjunto de práticas e saberes necessários à
operacionalização de seu projeto e da própria rede.
186
Crescer de forma aleatória significa agregar pessoas, grupos e realizar parcerias, mas
ao fazer isso, o processo auto-organizativo da rede, com seus mecanismos de auto-regulação
faz com estas pessoas, grupos e parcerias uma vez agregadas à rede reconstruam, por meio do
diálogo propiciado pelos espaços de encontro na rede, o conjunto ético-valorativo que a
fundamenta. Isso significa que a identidade da rede é uma “identificação em curso” no sentido
dado por Boaventura Santos (1997) – implicando na dialética permanência-transformação. O
conjunto ético-valorativo da rede é sempre posto em questão, pois os conflitos se dão neste
núcleo, mesmo que mascarados em questões técnicas ou de forma – conflitos relacionados às
responsabilidades (como resposta a Outrem) da rede no âmbito das suas partes e do coletivo
(pessoas e grupos internos e externos à rede), às tentativas de concentração de poder sem o
voto de confiança ética que cada membro da rede deve dar para que uma tal concentração
ocorra e à possibilidade, sempre aberta, do caráter revolucionário perder-se na estabilidade de
uma “topia” confortável.
A identidade da rede solidária dá-se então numa formação continuada que pressupõe a
dialética dos princípios de inclusão e exclusão explicitados, por exemplo, nas entradas e
saídas de integrantes da rede, na modificação ou mesmo supressão de certas estratégias de
ação da rede e na possibilidade mesma de abertura e fechamento ao próprio diálogo face-a-
face, pois enquanto una (um coletivo) e plural (pessoas distintas) a rede abre-se ao diálogo na
diversidade (princípio da inclusão) com aqueles que são “outros” – também pessoas, mas se
fecha ao perceber a diferença (princípio da exclusão) e a tentativa de ser incorporada a um
projeto outro que não seja aquele finalitário da rede naquele momento e que apesar de ser
finalitário ponto a ponto, é objeto de constante refinamento. Isso conduz a um movimento de
alternâncias e recorrências onde as polaridades dos pares inclusão/exclusão,
distinção/diferença, abertura/fechamento e diálogo/monólogo (silêncio) se equilibram, se
revezam e se sobrepõem.
Esse é um movimento ininterrupto, próprio das organizações vivas27 como a rede e
que aponta para uma constante tensão inerente ao processo de crescimento e desenvolvimento
da rede. A esse movimento de auto-organização da rede que explicita as tensões entre o todo
(rede) e as partes (integrantes da rede e parceiros), tanto de ordem interna como externa,
chamo de tensão do crescimento reticular .
27
Para maior aprofundamento no conceito de organizações vivas, Cf. Morin (1999a.;2002).
188
Esta tensão é fundamental para que a rede se enraíze nela mesma e se fortaleça, mas
também uma prova de fogo, já que como toda auto-organização, ela é passível de extinção.
Algumas situações foram especialmente emblemáticas desta tensão do crescimento na
REMA. Uma dessas situações está ligada à relação entre a REMA e a Escola da Natureza.
Esta escola foi criada pela Secretaria de Educação em 1996, no Parque da Cidade, para
atender alunos e professores da rede pública e privada do Distrito Federal e entorno. Seu
objetivo era desenvolver a educação ambiental mediante a oferta de cursos e oficinas voltadas
à reciclagem de papel e reaproveitamento de resíduos sólidos variados, trilhas ecológicas,
oficinas de arte entre outras atividades similares. Na relação estabelecida entre REMA e
Escola da Natureza dois momentos são sinalizadores da tensão de crescimento da REMA: a
participação da Escola da Natureza nos trabalhos do segundo curso de extensão e a iniciativa
da Escola da Natureza de criar uma rede de educação ambiental no Distrito Federal.
Inicialmente a presença da Escola da Natureza nos trabalhos do 2º. Curso de Extensão
trouxe à tona a necessidade de se rever as relações entre a rede e as instituições públicas, em
especial à Secretaria de Educação do Distrito Federal. Apesar de reconhecerem que a Escola
da Natureza poderia contribuir no processo de implantação dos subprojetos tinham
dificuldade de separá-la da imagem da Secretaria de Educação do Distrito Federal, com a qual
tinham divergências políticas ou de forma mais geral de encaminhamento quanto à gestão da
rede pública escolar. Estas divergências políticas ativavam o questionamento sobre a própria
identidade da REMA ao explicitar o rebatimento das identidades individuais na identidade
coletiva da rede. Também trazia à tona o movimento descentralizado da REMA em
contraposição ao centralismo político local.
Dessa forma a idéia de autonomia retornou à discussão, e em reunião realizada em
novembro de 2003, os professores da REMA se mostraram decididos a manter a rede
autônoma, sem estar ligada a uma instituição específica, porém entendendo que com isso
poderiam ter dificuldades em desenvolver os subprojetos nas escolas. Ao mesmo tempo
perceberam que para eles era importante o reconhecimento da REMA como um grupo
portador de uma identidade diferenciada e para isso seria necessário aprender a dialogar com
outros grupos, entidades e instituições públicas de tal forma que apoios e parcerias pudessem
ser tecidos, mas sem abrir mão da autonomia que agora eles começavam a vivenciar e nesse
sentido mantiveram-se abertos a realizar parcerias com a Escola da Natureza.
189
A rede estava nesta época vivenciando a diversidade que o 2º. Curso de Extensão
proporcionava. Sua realidade era aprender a cooperar e consolidar a autonomia num
movimento próprio de abertura, articulando novos conhecimentos e práticas que surgiam nos
diálogos entre os participantes do curso e entre estes e os novos parceiros e apoios. Esse
“aprender” que o curso proporcionou transcende o conteúdo específico inicialmente definido
para ele e segue na direção da criação do discurso crítico que surge no encontro de
alteridades. Um discurso que amparado pela complexidade ambiental pode apontar novos
caminhos e alternativas técnicas e políticas aos problemas identificados na implantação dos
subprojetos nas escolas.
A REMA vivia nesse momento o fortalecimento de sua identidade a partir da resposta
que dava aos “outros” como responsabilidades assumidas, abrindo-se para novos grupos e
pessoas, num movimento de auto-reconhecimento enquanto rede e no reconhecimento das
partes (pessoas, entidades e grupos) desta rede. Este fortalecimento viabilizou a criação de
laços de pertencimento e cuidado, dando efetividade ao “solidário” da rede.
No início do ano de 2004, a Escola da Natureza decidiu implementar uma nova
estratégia de abordagem da educação ambiental junto às escolas do Distrito Federal, criando o
projeto da Rede de Educação Ambiental do Distrito Federal.
Sendo um projeto institucional de uma das unidades da Secretaria de Educação, o
caminho encontrado para viabilizar a implantação desta rede foi primeiro buscar as parcerias
formais e institucionais e utilizando a prerrogativa de órgão público, convocar por meio das
Gerências Regionais de Ensino – GRE’s, as direções e professores das escolas para informar
sobre a perspectiva de se criar esta rede e convidá-los a participar.
Quando este movimento da Escola da Natureza chegou na GRE do Núcleo
Bandeirantes, a gerência responsável pelas escolas do Riacho Fundo, um pequeno turbilhão
começou a ser formado dentro da REMA.
A REMA ao saber do projeto da Escola da Natureza ficou preocupada com a possível
perda de autonomia. Segundo suas falas, “como podemos continuar existindo, se a Secretaria
vem com um projeto de cima para baixo?” Para os professores que participaram da reunião
chamada pela Escola da Natureza na GRE, “eles querem fazer aquilo que nós já fazemos...”
e, para completar, “eles estiveram com a gente ano passado e não falaram nada com a
gente”.
190
O momento foi muito delicado. De uma só vez, foram colocadas em questão, pelo
próprio grupo, a autonomia, a identidade e legitimidade da REMA, a existência dentro de uma
estrutura de poder e suas relações de interdependência e a noção de compromisso e liderança
na REMA.
O sentimento geral era de que a REMA não era reconhecida nas suas atividades, que
por não se apoiar em poderes institucionais, mas em motivações pessoais, não era legítima e,
portanto, passível de não ter reconhecimento. A identidade da REMA foi posta em questão, a
partir do conflito que se instaurou quando a identidade pessoal de cada membro foi sobreposta
à sua função na instituição pública escolar – por isso o receio de serem tragados pelo projeto
oficial da Secretaria de Educação. Ao mesmo tempo, a questão da legitimidade deixava
transparecer a necessidade que os membros da rede sentiam em obter reconhecimento oficial
– primeiro das direções escolares e, depois da própria Escola da Natureza, vista por eles como
representante da Secretaria de Educação. Como contra movimento, os integrantes da rede se
fecharam em torno da proteção do projeto da REMA, reivindicando reconhecimento de sua
existência e defendendo seu espaço de autonomia. Esse era o discurso dos professores que,
aflitos com a possibilidade de serem engolidos pela máquina institucional escolar, abriram
mão das lideranças emergentes e voltaram-se para mim, no intuito de eu ser a pessoa que os
representaria nessa defesa. Situações embaraçosas ocorreram entre a Escola da Natureza e a
REMA e a possibilidade do diálogo efetivo entre estas duas entidades ficou profundamente
comprometida. Assim a solução encontrada naquele momento foi o distanciamento,
exemplificado na fala da professora Susana ao dizer “eles façam a rede deles, nós
continuamos fazendo a nossa”.
Esta situação demonstrou a enorme fragilidade do processo de organização da rede. A
REMA na medida em que é formada por professores de escolas públicas é sujeita às disputas
pelo poder que ocorrem dentro da instituição. Disputas que se dão entre os professores no seu
fazer cotidiano, entre estes professores e suas direções escolares e entre as próprias unidades
da instituição, como por exemplo, a Escola da Natureza que com sua nova estratégia de ação
denota uma busca por maior espaço político frente à Secretaria de Educação. Nesse processo a
REMA sofreu profunda reavaliação, resultando numa maior identificação de suas reais
possibilidades, limites e tipos de estratégias que poderiam ser realizadas.
No processo de tensão do crescimento da REMA a diversidade, a abertura e o diálogo
referidos à relação com a Escola da Natureza deram lugar à diferença, ao fechamento e ao
191
político. A conversa com a direção da escola surtiu o efeito necessário e o evento transcorreu
tranqüilamente. A escola como um todo se engajou no projeto de coleta seletiva e nas ações
que a REMA havia proposto, mantendo a distinção entre o apoio que a rede poderia ofertar
por meio de propostas e parcerias e as atividades e autonomias próprias do fazer docente
naquela escola. Dessa forma, esta escola organizou seu próprio projeto (Projeto Meio
Ambiente), incorporando entre outras atividades a coleta seletiva e a organização da horta
escolar, ambas com o apoio da REMA. Esta escola passou a ser considerada, pelo grupo,
“modelo” para a exemplificação da relação desejada com as escolas. Nesta escola cinco
professores eram participantes da rede. Contudo o processo desencadeado na escola permitiu
que todos – professores, alunos e funcionários, participassem das atividades de educação
ambiental desenvolvidas e apoiadas a partir da REMA.
Figura 5.7 – Foto tirada durante o evento de abertura do Projeto de Educação Ambiental na escola Ipê
– Riacho Fundo II (abril de 2004)
primeira foi o convite para participar de uma reunião no MMA para o “Enraizamento da
Educação Ambiental no Distrito Federal” e a segunda foi o convite feito pela Cooperativa 100
Dimensão para que a rede participasse como parceira no evento que ela estava promovendo
no Riacho Fundo chamado “I Encontro Sócio-Ambiental – Qualividas” (Cf. anexo 8).
Na reunião no MMA, em maio de 2004, foram discutidas as estratégias viáveis para o
enraizamento da educação ambiental no Distrito Federal, em especial a organização da
Câmara Interinstitucional de Educação Ambiental do Distrito Federal- CIEA-DF e o
fortalecimento de redes de educação ambiental locais. Por essa razão, tanto a REMA quanto a
Escola da Natureza foram convidadas para a reunião na medida em que representavam
experiências de formação de redes de educação ambiental.
Ao final da reunião foi sugerida a participação da REMA nas discussões para a
organização da Câmara Interinstitucional de Educação Ambiental do Distrito Federal (CIEA-
DF). Posteriormente, membros da rede interessados nessas discussões se revezaram nas
primeiras reuniões marcadas, mas devido à falta de tempo e aos horários que se sobrepunham
aos seus turnos letivos, a REMA se afastou do processo. Contudo, um de seus parceiros, o
IDA, representado por seu presidente que acompanhou boa parte do processo de formação da
REMA, encaminhou as contribuições da REMA (principalmente no que tangia à história do
seu próprio processo de formação) às discussões da CIEA-DF e ao processo de formação da
REA-DF (Rede de Educação Ambiental do Distrito Federal) proposto pela Escola da
Natureza.
Numa entrevista com o diretor da Escola da Natureza, realizada em outubro de 2004,
este colocou que a Escola da Natureza tinha resolvido adotar as estratégias da REMA para
buscar fomentar o processo de formação da REA-DF, ou seja, estavam investindo na
formação de grupos de interesse em torno de questões ambientais por meio da realização de
cursos específicos.
O segundo convite, feito pela Cooperativa 100 Dimensão, pressupunha uma atividade
conjunta a ser realizada em junho junto à comunidade do Riacho Fundo pela comemoração do
aniversário da cidade e do dia do meio ambiente. A Cooperativa tinha intenção de realizar
várias atividades relacionadas à educação ambiental e convidou a REMA para colaborar como
parceira no evento, divulgando as ações que a REMA realizava nas escolas ao mesmo tempo
em que solicitou à REMA que ficasse responsável por realizar um levantamento junto à
comunidade sobre o interesse por cursos de formação profissional que a 100 Dimensão
194
poderia ofertar, com vistas à organização das oficinas de produção comunitária. O convite
para este evento selou a parceria entre a cooperativa e a REMA, pois a rede estava agora
envolvida nos projetos que a Cooperativa tinha traçado internamente, entre eles, a expansão
da coleta seletiva do lixo para a cidade, tendo como um dos eixos mobilizadores as escolas
onde a REMA apoiava atividades de educação ambiental, e o apoio à formação de grupos de
produção e atividades de cultura e lazer, junto às crianças e adolescentes e suas famílias.
Figura 5.8 – Foto tirada em frente ao stand da REMA durante o evento 1º. QUALIVIDAS, Riacho
Fundo II ( junho de 2004).
reciclagem, dentro da obrigação legal que as empresas possuem de dar destinação correta dos
seus resíduos, associada a uma ação de responsabilidade social. Dessa forma, a Cooperativa
100 Dimensão foi convidada a fazer parte da campanha tendo a rede como parceira nas ações
de mobilização e educação ambiental nas escolas. A campanha está prevista para iniciar em
2005.
O primeiro semestre de 2004 foi fértil em situações que colocaram a REMA em
constante questionamento. Internamente também estavam sendo realizados ajustes a partir dos
novos relacionamentos que vigoraram desde a finalização do segundo curso de extensão com
a entrada de novos integrantes na rede e a efetivação das parcerias, em especial com o IDA e
com a Cooperativa 100 Dimensão.
A entrada de uma professora (Fernanda) que também era assistente de direção de uma
escola local trouxe uma nova dimensão nas relações internas da rede explicitando de que
maneira uma distinção inicial torna-se diferença e daí exclusão.
Fernanda já tinha procurado participar no primeiro curso de extensão, porém, na época
estava em uma outra escola do Riacho Fundo II, exercendo a coordenação pedagógica e
segundo ela “era trabalho demais, não dá para fazer tudo”. No segundo semestre de 2003,
ela conseguiu participar do curso, e o fez ativamente, vindo a participar também das reuniões
da rede. Porém, em 2004 ela transferiu-se para a escola Pequi vindo a ocupar o cargo de
assistente de direção.
Ela demonstrava no grupo um temperamento de muita iniciativa e imaginei que talvez
em algum momento a liderança do grupo poderia passar por ela.
Porém aos poucos o papel que assumia na instituição escolar passou a prevalecer sobre
sua pessoa e ficaram evidentes as dificuldades em desenvolver uma atitude voltada para o
coletivo da REMA e não exclusivamente para a escola que acreditava estar representando. Os
interesses explicitados por ela restringiam-se às necessidades que ela, como assistente de
direção, imaginava serem pertinentes à sua escola. Ao invés de movimentar-se na rede como
colaboradora tecendo junto as estratégias para o desenvolvimento das ações e projetos já
desenhados, abrindo-se para novas perspectivas de construção coletiva, já que este era o
movimento da rede naquele momento, passou a ser solicitante de atividades e respostas, como
se a rede existisse para prover as soluções para os problemas que enfrentava na escola –
problemas estes dados na perspectiva da direção escolar.
196
O problema não era o interesse explícito em sua escola, pois todos de uma forma ou
outra, trabalhavam também no sentido de desenvolver as ações onde efetivamente
lecionavam, mas o fato de que o diagnóstico exposto por ela não era confirmado por outros
professores participantes da rede que estavam lotados na mesma escola. Sua fala refletia o
distanciamento que havia entre a direção que representava e o corpo docente daquela escola:
“esse povo é muito difícil”, “eles não querem nada”, “se não vem pronto, não funciona”.
Como contraponto, os professores da rede que lecionavam nessa escola diziam que
não era bem assim, que realmente o corpo docente “era resistente”, não porque fosse
“difícil”, ou porque não “quisessem nada”, mas porque não confiavam na direção, pois esta
era “autoritária” e por isso era difícil colaborar. Ainda colocaram que Fernanda, ao realizar
as reuniões com o corpo docente não expunha as estratégias da REMA, nem convidava ou
incentivava a participar das reuniões, mesmo sabendo que boa parte das reuniões da REMA
era realizada no espaço físico da escola.
Assim a rede viu transferido para sua arena o debate e o antagonismo direção escolar –
corpo docente. Com o passar do tempo, pude notar que os demais professores evitavam
debater certos assuntos na frente dela, principalmente aqueles relacionados às suas escolas e
aos problemas com suas direções pois não sentiam mais confiança.
O que inicialmente era diversidade e distinção natural entre os pares – a rede tinha
além de professores, uma vice-diretora e uma coordenadora pedagógica colaborando
ativamente – tornou-se diferença mergulhada em desconfiança e então, distanciamento.
Fernanda passou a não participar tanto das reuniões, mas manteve o contato comigo
durante algum tempo, até que o silêncio chegou.
Como disse acima, neste crescimento da rede as tensões são partes constitutivas. A
REMA estava aberta à participação de todos, mas esta professora ao ingressar na rede passou
a fazer parte também do movimento de auto-organização que revê a todo o momento o núcleo
ético-valorativo que fundamenta a rede – é um processo de auto-regulação que se dá na
disputa e na cooperação, entre os interesses particulares e os interesses coletivos e que pode
modificar ou não este núcleo por meio do processo das imposições mútuas entre a rede como
um todo orgânico e suas partes constituintes, ou seja, os sujeitos.
O fato da diferença ter prevalecido à distinção e a diversidade, tanto no caso de
Fernanda, quanto no caso da Escola da Natureza denota a dificuldade da rede dialogar em
situações nodais de poder – isto é, quando o outro se apresenta como sendo investido de um
197
poder que não circula na rede. Não é o caso do cargo que a professora ocupa na instituição
escolar (já que a REMA contava com a participação de membros das direções escolares
locais), ou mesmo a própria instituição que a Escola da Natureza representava (já que foi
convidada a participar do segundo curso de extensão e vista como possível parceira), mas o
que seus discursos e práticas refletiram para o grupo.
Assim, esta postura de externalidade à rede explicitada pela ênfase nos interesses
particulares representativos do cargo e posição que ocupavam no sistema escolar, afastou
naquele momento as possibilidades de emergência de diálogo entre estes indivíduos e grupos.
Pode parecer que esta postura da REMA em relação a estas duas situações tenha sido
dogmática. Mas não é bem assim. A abertura para o diálogo foi efetivada, mas a percepção da
impossibilidade de haver circulação do poder e atos colaborativos nos encontros entre a
REMA e a Escola da Natureza e internamente à rede criaram uma espécie de situação de
“proteção imunológica”. Aqui reside a idéia de diferença que carrega a perspectiva de
exclusão, pois não pressupõe a possibilidade de diálogo. Enquanto a Escola da Natureza e
Fernanda eram vistos e se apresentavam como distintos, ou seja, fazendo parte de uma
diversidade mundana com a qual a rede convivia, o diálogo foi possível e desejado. Quando
esta situação se modificou, no início do ano de 2004, a rede também respondeu de forma
diferente.
Esse movimento se deve ao fato de que as redes, e neste caso, a REMA, são espaços
de possibilidade para revelação do Outro – espaços de distinção e coletividade, de
acolhimento e conflito, ou seja, espaços de encontro e diálogo e que fazem do pertencer um
compromisso, nunca uma apropriação ou posse.
No espaço de encontro, Fernanda e Escola da Natureza revelaram-se: expuseram não
somente seus interesses objetivos, mas seus núcleos valorativo-simbólicos que ao explicitar a
concentração de poder (local, institucional e burocrático) fez emergir um conflito onde o
diálogo face-a-face deixou de existir, pois as faces foram obliteradas e em seu lugar surgiram
os estereótipos sempre dados a priori, as relações de apropriação e o fechamento defensivo.
Assim, quando a tentativa de posse, ou seu duplo – a concentração de poder, se
apresentam, o espaço de revelação se transforma em espaço de descoberta – ação de des-
cobrir, uma ação violenta de um sobre o outro, geralmente contra o desejo do outro,
reduzindo este outro a algo já pensado – a pessoa de Fernanda decai para sua função
administrativa – assistente de direção e o grupo de colegas professores da Escola da Natureza
198
execução e em poucos dias, por exemplo, com o auxílio dos funcionários responsáveis pela
limpeza, a horta escolar estava plantada.
Esses acontecimentos aumentaram o desconforto em alguns professores, que já se
indispunham com a direção e que passaram a se confrontar com seus colegas.
Esta situação se rebate sobre a REMA primeiro porque tanto a vice-diretora, quanto os
professores que tomaram iniciativas frente à diretora são membros da rede, e segundo, porque
as condições dos relacionamentos pessoais internos à escola tornaram difícil a continuação
dos projetos e ações que eram apoiados pela REMA. Professores da rede lotados nesta escola,
se desligaram, ainda que temporariamente da rede – não viam sentido em continuar
participando uma vez que não poderiam agir em suas escolas. O momento era de
desmotivação frente ao caos formado na escola.
Esta situação exemplifica muito bem um dilema existente na relação entre a rede e
Escola – a separação das identidades. A REMA não é projeto da escola, nem pressupõe que
todos os professores de uma escola onde a rede apóie atividades voltadas ao meio ambiente
façam parte da rede e freqüentem suas reuniões. É desejado, mas não é de forma alguma
obrigatório. Contudo, como é formada por professores que encaminham as idéias da rede em
suas escolas, os projetos e propostas da REMA correm o risco de se sobrepor às atividades
cotidianas desenvolvidas nas escolas, principalmente se a escola não tem claro o seu próprio
projeto político-pedagógico ou vivencia a existência de “vácuos pedagógicos” – falta de
projetos e atividades motivadoras, falta de motivação docente, falta de organização e
cooperação em torno de questões pedagógicas, falta de coordenação pedagógica. No caso da
escola citada foi o que aconteceu. Para alguns professores da REMA que lecionavam nessa
escola, a REMA veio “tapar um buraco” já que, segundo suas falas, “nessa escola a gente não
tem projeto político-pedagógico de verdade – é só no papel”, ou, “antes dos projetos da
REMA a gente não tinha nada aqui”. Porém este “tapa buraco” passou a ser dentro da escola
motivo de disputa e confronto – entre alguns professores da REMA naquela escola e a direção
escolar e entre estes professores e seus colegas.
O confronto se dá na medida em que com os projetos da rede explicitam-se os “vácuos
pedagógicos” e a disputa passa a ser pelo domínio do espaço de poder aberto, pelos projetos,
dentro da escola. Membros da REMA lotados naquela escola passaram a pressionar seus
colegas a participarem das reuniões da rede e dos projetos em andamento, como se as
reuniões fossem substituir as coordenações pedagógicas, e as propostas da rede, o projeto-
201
28
Este seminário ocorreu no dia 30 de agosto de 2004, no auditório da Administração Regional do Riacho Fundo
I, exatamente um ano depois da primeira apresentação da REMA à comunidade.
202
de projetos em temáticas sócio-ambientais e por outro, ser apoio ou co-operar com os projetos
e atividades que as escolas desenvolvem.
Também, se por um lado um grupo ativo se desligou da rede, por outro, aqueles que
ficaram assumiram a liderança e deram continuidade às reuniões e às atividades inicialmente
propostas. Ainda havia muito a fazer, pois nem todos os projetos tinham sido implantados
adequadamente nas escolas. Havia entraves na organização das hortas em duas escolas e o
projeto de trilhas ecológicas tinha sido suspenso por causa da ocorrência de hantavirose no
Distrito Federal. Mesmo o projeto de coleta seletiva, que funcionava nas quatro escolas, tinha
problemas do ponto de vista da parceria estabelecida, uma vez que até aquele momento, a
cooperativa não tinha conseguido ofertar os cursos de reutilização e reciclagem do lixo para
os professores.
Figura 5.9 – Foto tirada durante 1º. Seminário da REMA (agosto de 2004)
203
No segundo semestre de 2004, movidos pela dispersão provocada pela saída dos
colegas da escola citada acima, a REMA começa a discutir a estrutura de organização da rede,
e o professor Hélio em sua fala diz que “talvez fosse melhor que o grupo tivesse uma
coordenação central” que pudesse dar conta de organizar as atividades e a agenda da REMA.
A discussão que se segue encaminha-se para os contrapontos dados pelos demais colegas, que
não aceitaram a idéia, pois “se tiver coordenação central deixa de ser rede”. Para estes
professores era importante manter esse caráter descentralizado da rede, o que os forçava a
serem pró-ativos, apesar da pouca disponibilidade de tempo para dedicarem-se a REMA.
Assim, também a questão da disponibilidade do tempo de cada um para reunir e
planejar atividades de educação ambiental foi explicitada – os professores colocaram as
dificuldades que tinham: a maioria tinha uma carga de 40 horas na escola, alguns estudavam à
noite, outros tinham outro trabalho além da docência. Todo o trabalho que vinham
desenvolvendo na REMA era voluntário, encaixando as reuniões nos horários possíveis: sexta
à noite, sábado e domingo ou então em algum período de coordenação pedagógica onde nem
todos da rede podiam comparecer. A rede ainda não tinha vislumbrado como seria possível
criar um espaço/tempo periódico para os encontros e planejamentos de atividades ambientais
na REMA sem perder a autonomia frente à instituição escolar. Isso era e ainda é um grande
problema.
Além disso, a questão da liderança foi tratada com mais profundidade, pois os próprios
professores da rede estavam preocupados – agora comigo, pois ainda não tinha me afastado da
rede como tinha dito que faria. Em suas falas fui formalmente liberada da função que exercia
no grupo: “não se preocupe, a gente já pode levar a rede, vá escrever sua tese”, “a gente vai
tocando e ano que vem você vai estar de volta, não vai?”. No grupo havia professores que já
tinham assumido a função de liderança dos trabalhos da rede – Susana, Carmem e Hélio. Com
a dedicação destes três os problemas com as hortas e a coleta seletiva iam sendo resolvidos.
Com eles também se abriu outra ação da REMA, não prevista no seu projeto inicial - ações
voltadas à economia solidária na comunidade local.
O Núcleo de Gestão e Educação Ambiental do CDS tinha interesse em iniciar o
processo de economia solidária no Riacho Fundo, como parte das ações voltadas à
organização comunitária local. Procurou a REMA com esse intuito e no grupo alguns
professores se motivaram a realizar atividades com os alunos em suas escolas. Algumas
204
reuniões na REMA foram realizadas voltadas a essa proposta, uma delas contando com a
participação de representante do Fórum de Economia Solidária do Distrito Federal.
Como quarta e última etapa, este segundo semestre de 2004 aponta para uma re-
estruturação da rede, dizendo de uma nova abertura– onde novos projetos e acordos são
propostos e tecidos juntos com as parcerias estabelecidas ou outras que venham a ocorrer,
reorganizando o projeto inicial quanto as suas possibilidades de atuação. Esta etapa de re-
abertura sugere um retorno ao projeto inicial, não apenas no sentido de novas atividades que
podem ser realizadas, mas num questionamento que reafirma seus princípios ético e
valorativo, e busca novas frentes de atuação política e educacional condizentes.
GE DF
205
No início dos trabalhos desta pesquisa em 2002, encontrei diversas pessoas no Riacho
Fundo que tinham necessidade de atuar no campo ambiental. Suas motivações eram várias –
desde a necessidade de alguns produtores rurais de terem maior controle da qualidade da água
do córrego que atendia suas lavouras até os jovens que lembravam de um córrego mais limpo,
onde pescavam e se banhavam quando crianças. Neste amplo espectro, encontravam-se
lideranças na comunidade, políticos locais, associações comunitárias e moradores. Todos
tinham algum interesse especial na questão ambiental, fosse um interesse visando o bem
comum ou o seu próprio. Era um universo eclético, muitas vezes conflitante que demandava
soluções.
Na pesquisa que se iniciou junto a este grupo, as escolas ocupavam um lugar
privilegiado no que tangia às questões ambientais, dado o caráter formativo voltado às
crianças e adolescentes e por sua inserção junto à comunidade por meio das famílias.
Nas escolas, contudo havia um vácuo de ações voltadas ao meio ambiente, não por que
os professores não desejassem atuar – no ano de 2003, havia noventa professores interessados
em trabalhar as questões ambientais locais, mas por problemas de ordem institucional e de
relacionamento interno dentro das escolas.
206
A REMA surgiu nesse vácuo de ações. Surgiu como possibilidade de atuar no campo
ambiental nas escolas e junto da comunidade. Possuía em seus sub-projetos atividades
diretamente ligadas a comunidade como o de “Saúde mental e física para a comunidade” e as
“Oficinas de artesanato” voltadas tanto para os alunos quanto para suas famílias, buscando
possibilitar a melhoria das condições materiais e afetivas destas famílias.
A análise deste estudo pretende tecer algumas conclusões referentes às questões de
pesquisa, em especial às condições de possibilidade de formação de laços comunitários,
partindo inicialmente das três dimensões que constituem o núcleo ético-valorativo da REMA:
educativa, política e comunitária, identificadas no processo de formação e de manutenção da
rede. Por outro lado, por se tratar de uma pesquisa-ação, que possui um caráter de intervenção
e participação nas ações do grupo social focado, a análise necessita incluir a relação entre a
pesquisadora e o grupo social. No último item serão colocadas as conclusões finais e as
sugestões pertinentes ao processo de formação de redes e à gestão sócio-ambiental.
29
Cf. Capítulo 3, seção 3.2.2.
207
objetivos comuns do grupo, assim como os diagnósticos locais e as sugestões de ações que
poderiam ser realizados nas escolas e junto à comunidade, servindo como eixo para a rede
recém criada.
Mas o processo de construção deste saber não parou nessa etapa, continuou
ininterruptamente, assimilando novos conhecimentos a partir da vivência, agora da rede já
existente, e dos desafios que surgiram. Este saber retroagiu na rede, modificando conceitos e
práticas que existiam, alterando comportamentos e posturas pessoais, trazendo novas
possibilidades de ação e novas frentes onde atuar, o que pode ser exemplificado na atuação da
REMA em projetos de economia solidária, ou atuando em projetos da Cooperativa 100
Dimensão, algo que não estava previsto no seu projeto original.
Esta dimensão educativa da rede possui singularidades, pois se apresenta por um lado
como ação – mobilização e participação popular, tecendo relações com grupos e pessoas,
envolvendo-se num processo de gestão sócio-ambiental local – e, por outro,
complementarmente, como construção coletiva de um saber sócio-ambiental que conduz a
novas estratégias de abordagem em relação ao meio-ambiente (conhecer as condições
ambientais locais, realizar trilhas, dialogar com os moradores) e ao fazer cotidiano dos
professores envolvidos na rede.
Todo este movimento da rede mostra seu caráter de formação continuada, típica de
uma “identificação em curso” como assinalado por Boaventura Santos (1997). Esta
identificação em curso carrega entre outras coisas a permanente construção de saberes e
práticas direcionadas tanto às questões ambientais locais, quanto à própria construção da rede
– suas relações e dinâmica, possibilidades de captação de recursos financeiros e apoios, a
questão das lideranças e do empoderamento coletivo e pessoal. Este movimento é educativo
enquanto formador da rede, e, ao mesmo tempo, multiplicador de novos comportamentos,
uma vez que a rede se comunica e atua nas escolas e na comunidade.
Dessa forma a rede tem uma dupla dimensão educativa – dentro dela, como formação
interna de seus membros e do seu coletivo, e fora dela, com os grupos com os quais ela
dialoga e atua. Essa dupla dimensão educativa não se resume, contudo aos aspectos
propriamente cognitivos de uma relação de ensino-aprendizagem nos moldes tradicionais,
mas é uma dimensão educativa da pessoa, ou seja, referido ao universo relacional da rede e de
seus membros e à qualidade destas relações. Com efeito, este caráter educativo se espraia
210
também para o âmbito das relações político-sociais e culturais como sendo formativas da
rede.
Todas as situações que a REMA vivenciou foram políticas em alguma medida,
entendendo a política como a arte de fazer justiça a todos os envolvidos, e não apenas mera
negociação de interesses particularistas. E nesse sentido, esta política possui uma dimensão
educativa, qual seja, a de aprender a dialogar com a diversidade, com o outro, com o distinto.
Como foi dito no capítulo anterior, este diálogo muitas vezes foi impossibilitado, porque no
lugar da distinção surgiu a diferença, tornando o diálogo um monólogo de dois e nesses casos
o conflito apenas ficou latente e silencioso, na maioria das vezes esperando um outro
momento onde o diálogo fosse possível. Isto foi o que aconteceu com a professora Selma e
com a Escola da Natureza. No primeiro caso, o diálogo ocorreu, e a diferença deu lugar a um
acolhimento; no segundo, ainda permanece a diferença.
Segundo Mance (2002), uma rede solidária tem a marca da transformação social, no
sentido de ser um contraponto aos pilares da modernidade contemporânea: o princípio de
mercado, o processo de individualização da sociedade e a razão instrumental tecno-científica.
A rede solidária descrita por Mance é uma rede de economia solidária e tem como
fundamento um projeto político fundado numa práxis libertária, autogestionária e
democrática.
A REMA é uma rede solidária nesse sentido. Ainda que não lide com a cadeia de
produção, consumo e comercialização de produtos, tem forte atuação na prestação de serviços
e na produção e fluxo de conhecimentos, trazendo como fundamento um projeto político-
pedagógico cuja raiz assenta-se exatamente na práxis libertária, autogestionária e
democrática, subentendendo-se como contraponto aos pilares da modernidade
contemporânea.
Esse projeto político-pedagógico pode ser observado principalmente nas relações que
estabeleceu com parceiros e apoios e nas relações que manteve com as escolas,
principalmente com as direções locais.
211
Em primeiro lugar, como disse no capítulo anterior, a REMA sempre esteve aberta às
parcerias e apoios, entretanto, no diálogo que se estabelece pode haver convergência ou
divergência de opiniões. Neste caso, essas divergências/convergências têm muito que mostrar
dos princípios e valores que norteiam as ações da REMA e do seu caráter político.
A REMA, além de ser uma organização social é também política, tanto pela
explicitação de um poder – poder da rede, do coletivo -, quanto pela postura de
descentralização de poder, autonomia, solidariedade e autogestão democrática que vivenciou
no seu cotidiano. Esta organização é uma communitas e nesse sentido, o projeto político que a
REMA procurou desenvolver foi pautado pela responsabilidade pelo outro, pela perspectiva
do diálogo e do encontro. Em certas situações, com parceiros como a Cooperativa 100
Dimensão, este projeto político, explicitado nas falas, nas conversas entre os membros da
REMA e a cooperativa, foi bem recebido e encontrou ressonância. Em outras, como na Escola
da Natureza, o mesmo projeto político apresentou-se como ameaça a um espaço de poder que
aparentemente estava sendo objeto de disputa.
Esta visibilidade da rede causou enfrentamentos, uma vez que esta tem como um de
seus fundamentos o empoderamento pessoal e coletivo na rede e na comunidade, o que bate
frontalmente com a política clientelista local entranhada nos mais diversos níveis da
administração pública. Por isso, o enfrentamento com a Escola da Natureza.. Claro que, num
primeiro momento, a ameaça que a REMA representava para a Escola da Natureza residia
numa simples disputa de espaço – o espaço de existência da rede ou da gestação da rede no
Distrito Federal. Mas ambos os lados colocaram-se em posições inatingíveis, dados os
projetos diferenciados, tanto do tipo de rede (institucional e não-institucional) quanto de
orientação política.
Do ponto de vista da formação política da REMA, um acontecimento importante foi
esta não conseguir olhar para a Escola da Natureza sem deixar de ver a Secretaria de
Educação do Distrito Federal e a política que ela representava - clientelista, fisiológica,
centralizadora e autoritária. Foi impossível naquele momento para os membros da REMA
desvencilharem-se dessa representação política, dada a vivência que tinham em suas escolas e
com a própria burocracia da Secretaria de Educação. Esta vivência, mesmo que sentida de
forma diferenciada por cada um dos integrantes da REMA, fazia parte do mundo de cada um
e os definia enquanto sujeitos políticos inseridos no contexto da educação pública formal no
Distrito Federal.
212
dessa forma, forçada a criar outras estratégias de legitimação das ações que desenvolvia,
como, por exemplo, abrir mão da parceria com a Escola da Natureza, buscando outros grupos
que pudessem colaborar nas questões metodológicas referentes à educação ambiental.
necessidades dos professores e como resposta deles à minha procura. Este foi um espaço de
confiança e segurança, um espaço de acolhimento no sentido que Levinas postula, sem pré-
conceitos nem preconceitos, apenas abertura ao outro.
Este espaço foi profundamente ampliado no primeiro curso de extensão e a rede se
criou nele, apossando-se dele de forma afirmativa, fazendo dele sua marca, seu objetivo, seu
fundamento, tornando-se uma communitas que pode ser chamada de “comunidade de desejo”,
desejo de ser responsável e justa.
É importante relembrar que a dimensão pedagógica do processo de gestão sócio-
ambiental junto ao grupo da REMA foi marcada pela pedagogia da alteridade e ainda que os
espaços tenham sido criados no horizonte da problemática ambiental, a possibilidade da
relação comunitária existir consolidou-se. A REMA surge como uma estrutura organizacional
coletiva, dotada de identidade própria, ainda que em permanente formação, onde internamente
existem laços de responsabilidade e pertencimento.
Esta identidade coletiva é uma identidade comunitária, onde os conflitos internos são
resolvidos tendo em vista esses laços de responsabilidade que são anteriores a todo e qualquer
conflito que surja dentro da rede. Nos espaços de diálogo, onde se afirmam as pessoas
humanas e onde um saber é construído, desde a oferta do mundo de um ao mundo do outro, os
conflitos tomam a dimensão de temas, ganham exterioridade e podem ser objeto de reflexão,
antes que constrangimentos ou geradores de diferenças e exclusão. Isso define as condições
anteriores da própria comunidade – ali só há espaço para alteridades, não é possível a eclosão
de diferentes e quando ocorre não há conflito - a diferença sai imediatamente da rede, pois se
permanecesse (ou conseguisse fazer isso) não seria instaurado um conflito - que poderia se
tornar objetivo porque oferta ao diálogo -, mas sim uma situação de dominação, de opressão
ou indiferença - inaceitável para toda e qualquer comunidade.
Com este espaço preservado, as parcerias surgiram e se juntaram ao mesmo projeto.
As duas parcerias (Cooperativa 100 Dimensão e o IDA) que acompanham a REMA desde
cedo também primaram pelo mesmo espaço e valores. A rede que se consolidou desta maneira
era uma rede solidária no sentido estrito do termo tendo em seu fundamento a possibilidade
do encontro de alteridades e de relações eticamente referenciadas.
É este espaço (que não é físico) que explica porque mesmo aparentemente afastados
uns dos outros, por motivos pessoais, de trabalho ou outros, em face da necessidade de uns
todos se juntam e se mobilizam.
216
Esta dimensão comunitária da REMA torna esta rede um projeto especial em função
dos desafios atuais vividos globalmente e em função dos desafios locais que ela tem que
enfrentar cotidianamente. A aposta na responsabilidade pelo outro, nas relações éticas
fortalece profundamente a rede no seu âmbito interno, mas torna difícil a possibilidade de
diálogo com o poder público, que opera via de regra, com outros fundamentos para a justiça e
para a política.
Ao mesmo tempo, esta dificuldade se apresenta como desafio para REMA - aprender a
dialogar com o poder público numa relação que preserve seu núcleo ético-valorativo, isto é,
que não seja uma relação de dominação ou indiferença social frente a uma identidade coletiva
que se apresenta, buscando com isso reduzi-la a uma totalidade representada pelo Estado. Isso
não significa, entretanto, encontrar ou construir uma base comum de entendimento, a priori da
relação, mas por outra, lançar uma ponte de comunicação onde seja possível a cada um dos
interlocutores apresentar seu “mundo” e ser ouvido. E isso é um aprendizado para ambos os
lados, cuja condição de possibilidade reside na sensibilidade para ouvir o chamado do outro, a
palavra do outro e com isso instituir um espaço de diálogo. Esta é uma tarefa árdua, mas não é
uma utopia irrealizável, uma vez que a REMA ao longo do seu processo de formação teve a
oportunidade de efetivar diálogos com instituições públicas.
A dimensão comunitária da REMA indica o tom das outras duas discutidas acima – a
educativa e a política: ambas são referenciadas pela alteridade. A educativa pauta-se pela
possibilidade de um processo que tenha como ponto de partida as singularidades humanas e
ambientais, referenciando um conhecimento e um saber a ser elaborado e posto em circulação
na rede. A política surge como ação de mediação para justiça social e ambiental, pressupondo
a possibilidade do discurso ético entre alteridades irredutíveis, fundamento da relação
comunitária. Por isso é que tendo o diálogo sido inviabilizado nas situações onde a REMA
teve sua identidade coletiva negada, a ação política (no sentido da mediação para justiça) não
pode acontecer, restando em seu lugar o afastamento, mesmo que temporário, dessas
situações. Esse afastamento não é simplesmente uma preservação frente ao “diferente”,
definido a priori, mas ao contrário, a constatação, desde uma abertura para o outro, que o
outro não pode dialogar, porque se coloca numa condição competitiva, excludente ou
autoritária. Nesses termos, já diria Paulo Freire, não é possível diálogo.
Os afastamentos que a REMA teve que realizar causaram frustração, porque foram
desencontros, mas mesmos estes tiveram seu caráter construtivo, no sentido de demandar da
217
REMA a criação de novas estratégias de atuação política e social, dentro e fora da rede. Nesse
sentido, possuem também um caráter educativo e como não poderia deixar de ser, formador
da própria rede, ao por em questão seus fundamentos ético-valorativos e seu modo de operar
socialmente.
Como disse no capítulo anterior, minha presença na REMA deu-se em duas formas
distintas – como participante do pacto de ações delimitado pelo grupo e como pesquisadora.
Entretanto, esta participação na REMA com integrante do grupo estava marcada pelo
processo de gestão sócio-ambiental que vinha realizando junto com o NGEA/CDS e o
PEAEH –FE da Universidade de Brasília.
Nesse sentido ao abordar a Escola Olho d’Água em fins de 2002 a intenção era buscar
criar condições para o surgimento de mobilização nas escolas e a partir delas, na comunidade.
Esta frente de mobilização com as escolas era tarefa minha dentro do grupo de gestão sócio-
ambiental, uma vez que outros grupos estavam atuando junto aos produtores rurais, junto ao
conselho gestor do parque e fomentando iniciativas de economia solidária – com a base de
sustentabilidade ecológica local.
Do ponto de vista da pesquisa que iniciava, a perspectiva era acompanhar este
movimento de mobilização como um todo, identificando a dimensão pedagógica desta gestão,
nas várias frentes que se abriam. A idéia inicial era procurar criar condições para que as
informações sobre o meio ambiente local e sobre projetos de educação ambiental
desenvolvidos nas escolas pudessem circular na comunidade a partir das escolas, por isso
propus a comunidade e às escolas, especificamente, a criação de uma rede de escolas, como
sendo uma rede de circulação de informação. Entretanto, no fazer da pesquisa-ação, junto
com ao grupo de professores, identifiquei em suas falas a necessidade de se organizarem
internamente, de buscarem conhecer as condições sócio-ambientais locais, de articularem
conhecimentos e realizarem atividades voltadas ao meio-ambiente. Neste momento a pesquisa
tomou outro rumo, assim como minha atuação como gestora e educadora junto ao grupo –
havia percebido em estado de latência uma rede de outra qualidade, baseada não apenas na
218
30
Hiperconectores são pontos na rede que realizam conexões de maneira mais intensiva comparativamente aos
demais. Também são chamados de “pontos de mil linhas” ou pólos de convergência e irradiação. Para maior
aprofundamento Cf. WWF (2003), cap. 2.
219
novas lideranças assumiriam a rede. Como descrito no capítulo anterior, esse foi o movimento
que ocorreu. Entre agosto de 2003 e agosto de 2004 a rede fortaleceu-se e novas lideranças
assumiram a função de realizar não só os contatos, mas as mediações políticas que eram
possibilitadas, passando a dialogar com o poder público, representando a REMA.
Ao mesmo tempo, esta dupla função trouxe outros desafios: o de observar as relações
internas ao grupo, desde dentro, onde vínculos de ordem afetiva haviam se estabelecido e o de
me afastar das mediações dos conflitos entre membros da rede, procurando não tomar partido.
Esta atitude foi a mais difícil de ser realizada, tanto da minha parte, quanto da parte dos
integrantes da REMA, que nos diálogos estabelecidos demandavam a minha opinião. Difícil
porque, por um lado, existia um espaço aberto de diálogo entre nós que permitia, ou mesmo
demandava a presença para o outro, e por outro, pela relação de confiança instaurada desde o
início que pressupunha que as relações interpessoais e intersubjetivas não seriam
“cosificadas”, no processo da pesquisa, isto é, objeto de minha livre perquirição à revelia do
outro.
Entretanto foi este espaço de diálogo que existia na REMA que permitiu que esta
situação conflitante pudesse ser transcendida, tanto para mim, quanto para os demais
integrantes da rede. Neste espaço de diálogo pude apresentar-me, não apenas como alguém
definido por suas funções no grupo - educadora, pesquisadora ou gestora, mas
fundamentalmente eu como pessoa, e o que eu trazia para o grupo. Dessa forma a confiança
inicial foi revista e passou a ser uma confiança em mim, e não apenas em como eu conduziria
a pesquisa.
Paralelamente, permeando toda esta situação estava o processo educacional construído
coletivamente, onde novamente, eu tinha uma função específica referida tanto ao processo de
gestão sócio-ambiental local, quanto ao fomento à estruturação da REMA.
Por um lado, a função de educadora relativamente às questões sócio-ambientais e à
organização da REMA demandava a construção de um saber ambiental, a partir de uma nova
racionalidade, distinta da razão instrumental, que pudesse dar conta da complexidade que as
questões ambientais locais levantavam. Por outro, era necessário uma pedagogia que tivesse
“rosto humano”, que não fosse apenas um conjunto de métodos e técnicas diferenciadas, mas
que pudesse acolher o outro em sua condição de pessoa.
220
Esta pedagogia, como dito no capítulo dois, foi a pedagogia da alteridade, construída
desde o início como espaço de diálogo e emergência de discurso crítico, referido tanto às
relações interpessoais e intersubjetivas, quanto em relação ao meio ambiente local.
A prática desta pedagogia resumiu-se ao estar presente, a ouvir e responder aos
professores, parceiros e colaboradores, durante os encontros, cursos e atividades; a se
responsabilizar pelo processo educativo e incorporando técnicas e métodos consoantes com a
proposta, como as dinâmicas de grupo, os encontros abertos e o planejamento coletivo de
atividades e cursos. Esta prática inicialmente aberta por mim, como resposta aos professores
em suas necessidades, passou a ser na rede uma prática comum, entre os membros da rede e
entre estes e os parceiros e colaboradores.
Ao mesmo tempo, a partir da necessidade dos professores e do processo de gestão
sócio-ambiental de articular os conhecimentos e práticas em torno de questões ambientais,
esta pedagogia possibilitou a concentração de esforços na discussão temática sobre o
ambiente local e a comunidade, buscando identificar os desafios e criar, a partir de um saber
ambiental, estratégias de ação social e política.
dois pilares esta rede vem construindo a possibilidade de re-configurar a relação espaço-
tempo moderna, auxiliada por suas características intrínsecas de horizontalidade e
conectividade. Nesse sentido, os espaços de diálogo criados pela REMA são espaços de
afirmação da pessoa humana, constituindo dessa forma espaços de relações comunitárias no
sentido da communitas definida no capítulo um desta tese.
A gestão sócio-ambiental levada a cabo no Riacho Fundo possui alguns elementos
trazidos pela REMA que são importantes de assinalar e discutir. São eles:
REMA, dos membros da Cooperativa 100 Dimensão e entre alguns moradores do Riacho
Fundo.
Em segundo lugar, a noção de autonomia e solidariedade da rede aporta uma
possibilidade da própria organização comunitária local, que apesar de sujeita à política de
troca de favores pessoais, efetivada pelo governo local, possui espaços abertos para
emergência de um comportamento social e político diferenciado, voltado ao bem estar comum
e à preservação ambiental. Isso pode ser visto não apenas com a formação da REMA, mas
com outras organizações e entidades que se formaram e se mantém no Riacho Fundo
atualmente, como a própria Cooperativa 100 Dimensão.
O que coloca estas duas organizações em condição de comparação são seus
fundamentos ético-valorativos internos, que são muito similares e que justificam a
permanência destes dois grupos atuando ainda hoje no Riacho Fundo.
Outras tentativas, como o Comitê Comunitário do Riacho Fundo, foram frustradas
porque desde o início, estes fundamentos não ficaram claros, ficando resumidos a um
conjunto de intenções particularistas, tanto de moradores quanto de representantes de política
local, reunidas num mesmo bloco de atuação.
Além disso, a influência das práticas políticas trazidas pelos representantes do poder
público local para as organizações comunitárias e populares atua no sentido de minar
processos de empoderamento e organização sociais que poderiam ter outros rumos se não
estivessem comprometidos com um conjunto de valores que são incompatíveis desde a
origem.
Nesse sentido, a experiência da REMA mostra as possibilidades de organização
comunitária num processo de gestão sócio-ambiental que não se deixou contaminar pelos
ditames da política local, preservando ao máximo seu espaço de mediação política eticamente
referenciada. Isso não é simples e talvez não seja prático, porém o que está em jogo é a
aposta numa outra maneira de relacionamento social, e no caso, em novas possibilidades de
trabalho educativo em torno das questões ambientais desde a escola, mas ao mesmo tempo,
procurando formas de não estar a ela referenciada, uma vez que a escola pública apresenta
um modelo de gestão que não prima pelo empoderamento do coletivo escolar, nem pela
criação de vínculos com a comunidade, além de estar sujeita às turbulências políticas da
administração superior.
223
Nesse ponto, é mister diferenciar uma identidade coletiva como a REMA de outras
instâncias sociais como o mercado e o Estado. Na sociedade atual não há maneiras de se
evitar o convívio com o mercado e o Estado. No caso de questões ambientais, em principal, a
gestão de conflitos passará necessariamente pelo debate e disputa nestas instâncias, porém a
sociedade civil precisa encontrar com urgência mecanismos de fortalecimento para o embate,
mecanismos que definam uma identidade social e política que não possa, no jogo da política,
ser desprezada ou ignorada, o que significa não apenas a construção de novas identidades
sociais, como as redes solidárias, mas fundamentalmente, estratégias de legitimação dessas
identidades.
Instituições públicas que deveriam servir para este fortalecimento, preservando o bem-
comum, defendendo o direito do cidadão e do coletivo da sociedade, sofrem a pressão do
mercado capitalista globalizado, correndo o risco de ficarem reduzidas à defesa de posições
privadas nacionais e internacionais, transformando a política em barganha de interesses.
Isso pode ser visto na política ambiental onde as instituições públicas nacionais
sofrem enormes pressões do mercado globalizado e dos interesses privados regionais, seja no
caso das sementes transgênicas e da biodiversidade da floresta amazônica, seja na
transposição do rio São Francisco.
No caso do Distrito Federal, em particular do Riacho Fundo, não é diferente. A
política de assentamento urbano adotada pelo governo local não se pauta pela preservação da
diversidade ambiental, nem observa o bem comum ou o fortalecimento das relações
comunitárias, mas é motivada por interesses privados, econômicos e políticos. Esses
interesses guiam o discurso e a prática do poder público local e cativam famílias inteiras, que
vivendo na necessidade, não têm como não agradecer os lotes que receberam, mantendo uma
relação clientelista e paternalista com o Estado, mesmo que as condições urbanas de vida não
sejam as adequadas, ou que as áreas destinadas para os assentamentos sejam áreas de
relevância ecológica.
Dentro desse contexto político, social e econômico do Riacho Fundo, a REMA pode
atuar no sentido ampliar sua rede incluindo não apenas novos professores, mas moradores,
educadores ambientais, gestores, tecendo parcerias com grupos que também atuam
politicamente na ponta, junto à comunidade, buscando criar novos espaços de diálogo onde o
ambiente local seja trazido à discussão na profusão de visões e vivências e explicitando, dessa
forma, o jogo de interesses que permeia a política local de ocupação do solo.
224
31
Cf. capítulo 5, p. 161.
228
tessitura de relações sociais não hierarquizadas, cuja gestão é uma auto-gestão dando-se em
espaços de diálogo e acolhimento das alteridades.
O processo de gestão sócio-ambiental, em torno das questões locais do Riacho Fundo,
ao atuar junto às escolas mobilizou os professores, formando núcleos de interesse e apoiando
atividades a serem desenvolvidas com alunos e familiares, dentro da possibilidade que todo
professor possui de autonomia didática. Mas esse atuar teve como linha mestra a construção
dos espaços de diálogo e de acolhimento, por um lado, e a articulação de conhecimentos e
vivências por outro, possibilitando a eclosão de novas formas relacionais na escola. A REMA
surgiu neste processo de gestão sócio-ambiental somado à urgência sentida por professores
em ocupar e transformar os espaços banalizados, tanto na comunidade local, quanto dentro da
escola.
Dessa maneira, se o que se procura passa pela organização comunitária e pela ação
concentrada de esforços em torno de projetos de caráter educativo e ambiental, é necessário
rever o papel do gestor, pois uma tal gestão necessita do incentivo à emergência de redes que
possam envolver a escola pública, ocupando espaços em aberto, transformando-os em espaços
de diálogo.
Estas redes formadas por pessoas, antes que instituições ou entidades, sentirão o
reflexo de cada identidade pessoal na formação da sua identidade coletiva – esse é um
rebatimento que deve ser esperado e não deve ser motivo de frustração, ao contrário, é este
movimento de adaptação/transformação e acolhimento/rejeição, que faz com que a rede se
firme como uma utopia realizável.
A atuação do gestor no fomento à formação de redes de tal natureza não se restringe
apenas a função de hiperconector, aumentando a autonomia dos indivíduos e do coletivo que
se forma, mas passa pelo entendimento de que na gestão, estas redes deverão ser colocadas
em contato com outras redes e grupos, criando uma diversidade de estratégias e possibilidades
de apoio mútuo. Este movimento, mais do que simples gestão de questões ambientais, forma
gestores e educadores ambientais, que atuando politicamente e pedagogicamente abrem
condições de possibilidade para o fortalecimento de identidades sociais e políticas, coletivas e
comunitárias que podem, dessa forma, entrar em debate, ou mesmo disputa, com o Estado e o
mercado.
229
O terceiro elemento que a REMA introduz para reflexão sobre o processo de gestão
ambiental refere-se à relação entre as redes solidárias e o poder público regional e federal, em
especial as políticas públicas para a educação na gestão sócio-ambiental.
A participação do poder público na formação de uma rede solidária, com as
características da REMA, pode ter uma função construtiva.
Um primeiro aspecto positivo desta participação reside na possibilidade da formulação
de uma política pública que vise à implantação de linhas de formação de gestores e
educadores sócio-ambientais ancoradas em bases éticas, isto é, que não apenas mostre a
necessidade de criar relações sociais comunitárias no sentido da communitas, mas que já seja
em si um tal espaço comunitário, ou seja, a própria formação é espaço para criação de
vínculos sociais solidários mediatizados pelo diálogo que se contrapõe a uma relação espaço-
tempo fluida.
No âmbito da sua formulação, esta ancoragem pode implicar numa outra organização
dentro de uma estrutura formal e burocrática como o Estado, menos centralizada e mais
humana, no sentido da responsabilidade como habilidade de resposta e acolhimento do outro.
Isto significa a criação de novos espaços que preservem as autonomias individuais e coletivas
dos grupos envolvidos e das condições de possibilidade para a realização de mediações
políticas pautadas pela responsabilidade.
Esta formação de gestores e educadores sócio-ambientais voltada ao fortalecimento de
redes de educação e meio ambiente não prescinde das estratégias comumente utilizadas nos
processos formativos: cursos, seminários, encontros e debates. A diferença não está no tipo de
estratégia que se utiliza, nem mesmo na idéia de uma estratégia construída coletivamente, a
partir das necessidades apontadas e das condições sócio-ambientais onde as redes atuam, mas
em como ela surge – se resposta a outrem ou se afirmação de premissas de qualidade e
eficiência em gestão.
Na perspectiva ética, esta dimensão pedagógica é resposta a outrem e, portanto,
necessita ser compreendida como parte da formação continuada das identidades coletivas das
redes, constituindo-se em um dos espaços de diálogo entre estas e o poder público.
230
Nesse sentido, a gestão pública deve ser necessariamente uma gestão democrática e
participativa, que crie mecanismos de reconhecimento e legitimação de redes não
institucionais como a REMA, permitindo a ocorrência de diálogos e construção de consensos.
Esta legitimação é importante para a construção de uma sociedade democrática, pois
redes solidárias podem ser revolucionárias, mas não devem ser clandestinas, nem
menosprezadas no jogo das políticas locais. Como disse antes, a sociedade civil necessita
encontrar mecanismos para se fortalecer no debate político com as instâncias do mercado e do
Estado.
As redes solidárias surgem nesta perspectiva de empoderamento da sociedade civil e a
legitimação destas redes indica uma nova possibilidade de discurso e debate no campo
político. É certo que esta própria legitimação se dá como campo de argumentação e disputa,
entretanto, a flexibilidade e a extensividade das redes permitem que sua legitimação se dê,
num primeiro momento, por sua atuação na sociedade civil, articulando utopias individuais
em construções coletivas dotadas de sentido. Este respaldo social demanda, desta forma, a
legitimidade de forma mais ampla, como um ator social que necessita estar presente aos
debates e deliberações que atingem seu campo sócio-político de atuação.
Essa necessidade de legitimação traz à tona o segundo aspecto da relação entre redes
solidárias e poder público, no que tange aos processos de gestão sócio-ambiental e à
formação de gestores e educadores: o conflito de interesses.
Ora, é razoável perguntar como é possível, por exemplo, na perspectiva ética trazida
pelas redes solidárias, formar gestores e educadores ambientais oriundos de instituições
públicas que desenvolvem uma gestão política clientelista, voltada aos interesses privados.
Ou seja, como lidar nesta formação com o rebatimento das identidades individuais na
formação de uma identidade coletiva diferenciada?
Da experiência da REMA é possível retirar alguns elementos que clarificam esta
questão, como por exemplo, a formação do seu núcleo ético-valorativo, a ocupação de
espaços sociais menosprezados do ponto de vista do capital e do Estado (espaços sem
legitimidade política) e o desejo de relações fundadas em princípios solidários e de
reconhecimento de alteridades.
A rede solidária, com seu próprio movimento de regulação interna, a partir do seu
núcleo ético-valorativo, possui condições para prover os mecanismos de mediação dos
conflitos entre os interesses privados (como por exemplo, o rebatimento da política local nas
231
como disse antes, “a rede tinha um projeto, e o projeto era a rede”32 o que traz a força desta
necessidade de permanecer, de não se liquefazer e de não se perder nas tramas da burocracia
escolar.
A busca pelo reconhecimento e pela legitimidade das ações da REMA também aponta
o receio, sentido pela rede, de se deixar engolir em outras ordens sociais que não inspiravam
confiança, tanto no sentido da permanência, quanto no da possibilidade de manter sua própria
identidade. Isto pode ser observado na qualidade dos conflitos vivenciados pela REMA com o
poder público, conflitos estes relacionados tanto à delimitação de seu espaço de atuação,
quanto à obtenção de reconhecimento.
Dessa maneira, a formação de gestores e educadores na perspectiva das redes
solidárias não poderá deixar de conter as contradições e os conflitos dos rebatimentos
individuais. É possível que no processo pedagógico da formação destes gestores, alguns
desistam ou saiam temporariamente, retornando em outro ponto da história. O que é
importante, contudo, não é a permanência de cada indivíduo dentro do coletivo – ainda que
isso seja muito desejável, mas a permanência do processo, a permanência do espaço de
acolhimento, a permanência do espaço de communitas. Este é o aspecto positivo, real e
concreto que uma rede solidária pode ofertar – o espaço de comunidade que se refaz
continuamente e que permanece aberto aos que quiserem dele fazer parte.
Dessa forma a questão da continuidade se faz pertinente neste vínculo de confiança
que o espaço de communitas possibilita e que pode e deve ser criado para que alguma
mudança no comportamento dos indivíduos se faça sentida, ou melhor, revelada por ele no
acolhimento do processo de formação.
32
Cf. capítulo 5, p. 148.
233
à natureza e finalidade na gestão social. Esse encontro entre Estado e redes solidárias pode,
dessa forma, contribuir para um processo de re-estruturação rumo a uma governabilidade
participativa e democrática.
A experiência da REMA ainda mostra que redes solidárias necessitam buscar respaldo
na sociedade civil de onde emergiram, por meio da ampliação de seu campo de atuação. Isso
significa, no vocabulário das redes, conectar novos grupos e indivíduos, como cooperativas,
ONG’s e associações, articulando projetos e ações comuns, como a experiência da economia
solidária e a colaboração em projetos da Cooperativa 100 Dimensão, por exemplo.
Esta ampliação do campo de atuação social é fundamental para a legitimação da rede
solidária como uma organização social diferenciada, sem perder sua autonomia.
É certo que momentos de negação de diálogo podem ocorrer e para isso não há uma
solução pronta, mas sempre será possível denunciar claramente a negação colocada,
chamando à responsabilidade e dissolvendo os discursos de homogeneização social e de
estabelecimento de ordens ultrapassadas e autoritárias.
Para tal atitude, a rede necessita se compreender como um espaço solidário e de
acolhimento de alteridades, onde sua identidade coletiva se forma, se reforma e se transforma
constantemente na dinâmica da elaboração de pactos internos e externos. Não sendo dessa
maneira, os pactos que se estabelecem não permanecem no processo de formação da rede e
esta corre o risco de se dissolver. O importante, como já disse antes me referindo ao processo
de gestão sócio-ambiental, não é tanto a permanência de todos os indivíduos e grupos, ou
mesmo a mensuração de certo nível de participação e engajamento, mas a permanência do
processo de tecer novas relações sociais balizadas em princípios frontalmente distintos
daqueles apregoados pela modernidade globalizada. Esta permanência é fundamental na
criação de novas expectativas de vida humana e de relacionamento com o ambiente.
É esta inversão do tempo, que remete à duração das ações e projetos, somada á
abertura a outrem, que se consubstancia no que há de mais original na experiência da REMA.
Esta temporalidade permite o estabelecimento do encontro da abertura para o outro que se faz
como sensibilidade e bondade. Uma palavra que ficou ausente em todo o texto desta tese faz-
se agora presente: paciência. Não vejo como é possível ter paciência - sentido de espera e
continuidade - se não se vive um tempo diferente, um tempo que permite a espera porque se
sabe existindo. Esta paciência associada ao acolhimento do outro jamais será sinônima de
resignação ou de espera com os braços cruzados (de braços cruzados não é possível acolher
235
ninguém), e nessa perspectiva esta paciência é ação de transformação social, de ruptura com
os pressupostos modernos discutidos nos primeiros capítulos.
Dessa forma, o espaço ocupado pela REMA na organização social local, foi um espaço
que estava disponível, escondido do mercado e desprezado pelo poder público, pois foge do
controle externo e não pode ser dominado, pois depende apenas do desejo e do engajamento
dos envolvidos.
Redes como a REMA podem, contudo, se extinguir, mas podem da mesma maneira se
refazer em outro local e contexto, bastando apenas que um dos integrantes se abra ao diálogo
com um outro e criem um espaço de oferta àqueles que queiram participar.
Assim, é tanto um espaço de conflitos e de mediações, como um espaço de dádiva, de
cooperação e de desejo.
Nesse espaço a REMA fez sua casa, uma casa em forma de rede.
GE DF
236
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Z.. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 258 p. 2001.
______. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003.
BECK, U. Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo:
UNESP. 2003.
FEYERABEND, P. Contra o método. 3a. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1989.
FONSECA, F., Ed. Olhares sobre o Lago Paranoá. Brasília: SEMARH , 2001.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 16a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
JOLDERSMA, C. The Tension between Justice and Freedom in Paulo Freire’s Faith-Full
Pedagogy. In: WITH HEART AND MIND.1999, Vancouver, Canadá: Trinity Western
University,1999.
KROPOTKIN, P. A. El apoyo mutuo commo factor de progreso entre los animales e los
hombres.: Books on line.Domínio público. 1920.
______. Redes de Economia solidária: a expansão de uma alternativa global. II Fórum Social
Mundial. Porto Alegre. IN: www.milenio.com.br/mance/fsm2.htm .2002a.
239
MEADOWS, D. The limits to growth, a global challenge: a report for the Club of Rome
Project on the prediction of mankind. New York: Universe Books. 1972.
______. O método. 4. As idéias: Habitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre: Sulina.
1998.
______. Ciência com consciência. 3a.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1999 a.
RUIZ, C. B. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Rio Grande do Sul: Unisinos, 2003.
SHIVA, V. Staying alive: women, ecology and development. New Delhi: Zed Books. 1988.
SILVA, F. L. E. Dois filósofos do século XIX. In: CHAUÍ, M. et al. (Orgs.). Primeira
Filosofia: lições introdutórias. São Paulo: Brasiliense, 1986.
VÉRAS, M. Exclusão social - um problema brasileiro de 500 anos. In: SAWAIA, B. (Org.).
As artimanhas da exclusão - uma análise psicossocial e ética da desigualdade social.
Petrópolis: Vozes, 2002, p.27 – 52.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ANDREOLA, B.A. Ética e solidariedade planetária. Estudos Teológicos v.41, n.2, p.18-38,
2001.
BITTAR, E.C.B. Ética, Educação, Cidadania e Direitos Humanos: estudos filosóficos entre
cosmopolitismo e responsabilidade social. Barueri, São Paulo: Manole, 2004.
______. (Org.) No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond,
2000.
CLASTRES, P. A sociedade contra o estado. 3ª.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
COSTA, M.L. Lévinas: uma introdução. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
FOLTZ, B.V. Heidegger: ética ambiental e a metafísica da natureza. Lisboa: Instituto Piaget,
2000.
243
FREIRE, P. Educação como prática para a liberdade. 8a.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 20.ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2001.
MENESES, P. Hegel & A fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003.
PELIZZOLI, M.L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
PENA-VEGA, A. et al.(Orgs.). Edgar Morin: Ética, cultura e educação. São Paulo: Cortez,
2001.
RÉE, J. Heidegger. História e verdade em Ser e Tempo. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
(Coleção Grandes Filósofos)
SCHMIDT, A. História e natureza em Marx. In: G. COHN (Org.). Sociologia: para ler os
clássicos. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977.
______. Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2000.
ANEXOS
246
Julho de 2003
247
PARTE II
No caminho para a quadra escolhida encontramos uma área à margem da rua utilizada
como depósito de lixo. A área é contígua à cerca da EMBRAPA Sementes e recebe resíduos
orgânicos e restos de material de construção. A partir dessa observação discutimos o processo
de consumo na atualidade moderna, os bioindicadores de degradação do solo encontrados na
área, como o surgimento da mamona e a importância do tema para o trabalho docente.
Ao chegar na quadra encontramos várias baias de uma extinta Associação de
Carroceiros. No local encontramos o Sr. Raimundo, carroceiro, residente em Brasília desde
1974, vindo do Rio Grande do Norte e morador do Riacho fundo II há sete anos, vindo da
invasão do Condomínio Privê. Segundo a asociação tinha em torno de 36 carroceiros.
Raimundo: Na época que nós mudemos prá cá tinha isso aqui tinha até
documentação, tudo arrumado aqui. Aí foram bagunçando, foram bagunçando,
sabe? Aquele que era administrador vinha, é.., certo? Aí, pronto, virou esse
negócio aí.
Entrevistador: Mas quem bagunçou? Foi o governo?
Raimundo: Não, é o.., né?, você entende bem, né? O cara, vamos dizer, eu aqui é
o secretário, aí o outro é o outro, aí o outro é outro (...) aí pronto, cortaram. Aqui
tinha luz tinha gambiarra, tinha água, tinha tudo.
....
Vão tirar. Vão botar nós aonde?
...
Eu tô com vinte cavalos roubados. Não é brincadeira.
A região possui transporte coletivo, que passa nas avenidas principais. A água
utilizada é oferecida pela CAESB e atende a demanda da comunidade. O comércio resume-se
a serviços básicos, mas está em expansão.
Sobre a saúde, os entrevistados colocam que contam com um posto de saúde que
constantemente não tem atendimento por falta de profissionais.
Sobre a escola, os entrevistados não crêem que o número seja suficiente. Não há
escolas de nível médio.
Para os entrevistados a segurança é precária: os moradores estão insatisfeitos pela falta
de rondas preventivas.
Não há atividades de lazer e cultura. Os moradores entrevistados ou não conhecem o
Parque Ecológico do Riacho Fundo, ou se conhecem, não compreende sua importância.
Durante a concentração, foi dada orientação, pelo guia e pela Brigada Ecológica do
Riacho Fundo, sobre os procedimentos de segurança que seriam adotados no decorrer da
trilha. Uma rápida atividade de alongamento foi realizada antes de iniciar a caminhada.
O grupo foi então dividido em 4 grupos menores, para anotações e recolhimento de
amostra de água do Córrego do Riacho Fundo em pontos diferentes para posterior análise.
O grupo seguiu em fila e nos lugares que ofereciam para travessia os participantes foram
auxiliados por corda e pela equipe da Brigada.
I. O Parque Ecológico
Foi possível ainda observar que com a força das águas pluviais, muitas árvores de grande
porte foram derrubadas sobre o riacho, criando anteparos naturais, represando grande parte do
lixo que as enxurradas trazem para o córrego.
As chácaras localizadas na área do parque ocupam pontos onde o solo é mal trabalhado
utilizando-se de técnicas rudimentares e sem maiores cuidados tornando-o pobre e vulnerável
à ação de enxurradas e do intemperismo.
251
O tipo de cultivo realizado pelos chacareiros inclui, na maioria das vezes o uso de técnicas
e insumos agrícolas que contribuem para a contaminação do solo, atingindo os lençóis de
águas subterrâneas que afloram para superfície.
No ponto mais acima da estrada, próximo ao Instituto de Saúde Mental, encontramos uma
área onde se pretende construir um mirante para observação do parque. Deste ponto é possível
observar uma vista panorâmica do parque e perceber que a paisagem urbana predomina sobre
a paisagem natural. É possível ver de um lado, uma pequena área verde que corresponde ao
parque e a cidade que avança ameaçadoramente.
No retorno ao ponto inicial da trilha, rodeando a mata, foram encontradas uma nascente à
beira da estrada e uma cobra coral falsa atropelada e morta. Também foi possível perceber a
presença de invasão de chacareiros ao redor do parque.
1. Auto estima
2. Afetividade
3. Cooperação e solidariedade
4. Responsabilidade
5. Cuidados pessoais
6. Disciplina escolar
253
A partir dos objetivos propostos e dos valores humanos a serem incentivados pelo projeto
da REMA, organizamos um conjunto de ações a serem desenvolvidas:
1. Organização de um Fórum para a REMA Riacho Fundo apresentar seu projeto para a
comunidade.
2. Organização de grupos de estudos e cursos de capacitação para os professores da REMA
Sub-projetos:
Oficinas:
Universidade de Brasília
Escola da Natureza - SE/GDF
Administrações Regionais - Riacho Fundo I e II
Sem Dimensão - Cooperativa de Coleta e Reciclagem de Lixo
Associações de Moradores e Produtores Rurais locais
Comitê Comunitário do Riacho Fundo
SEBRAE/DF
SESC
SLU
CAESB
Polícia Militar Florestal
Corpo de Bombeiros
Jardim Botânico de Brasília
Fundação Airton Senna
Athos Bulcão
255
4. PROGRAMA
Temas Carga horária
1. Meio Ambiente 10 horas
• Aspectos históricos do pensamento ambiental
• Direito ambiental no DF
• A questão da água no Distrito Federal: Lago Paranoá e Córrego do
Riacho Fundo
• O Cerrado e o Parque Ecológico do Riacho Fundo
• O impacto urbano – assentamentos e condições sócio-ambientais de 10 horas
vida
2. Os grupos e conhecimentos locais no Riacho Fundo
• Reconhecimento do entorno: aspectos físicos, biológicos, sociais,
históricos, econômicos, culturais e afetivos.
• Identificação dos grupos sociais do Riacho Fundo 10 horas
• Identificação e valorização dos conhecimentos locais: a história da
região e dos grupos sociais; os conhecimentos referentes ao meio
ambiente local.
10 horas
3. Redes Solidárias
• O conceito de rede solidária
• A rede solidária entre as escolas
4. A escola e a comunidade
• Articulação entre os conhecimentos locais e os conhecimentos
sistematizados no que se refere à temática à socioambiental.
• A questão socioambiental como eixo articulador de rede solidária
entre as escolas
• Constituição de um projeto didático em escolas do Riacho Fundo na
perspectiva da rede.
4. PROGRAMA
Temas Carga horária
1. Hortas Escolares e alimentação alternativa 12 h
• Princípios básicos de cultivo de hortaliças e fitoterápicos.
• A horta como eixo didático-pedagógico em sala de aula.
• Princípios da alimentação alternativa: reaproveitando cascas e sementes.
2. A organização de coleta seletiva na escola
• A questão do lixo: conceitos e destinação. 12 h
• Lixo, saúde e qualidade de vida.
• Decomposição de lixo orgânico.
• Materiais recicláveis.
04 h
3. Brinquedos pedagógicos: reciclagem
• Utilização de brinquedos ludos-educativos em sala de aula.
• Confecção de brinquedos a partir de materiais recicláveis e sucata.
4. Trilhas ecológicas
• O papel das trilhas ecológicas na formação ambiental do aluno. 08 h
• Elaboração de roteiros de observação e guias para relatório de campo.
• Organização de trilhas no Parque Ecológico do Riacho Fundo.
5. Redes solidárias e a comunidade: processos de gestão de redes e integração 04 h
comunitária
• Planejamento de ações em rede: escola e comunidade.
• Captação de recursos humanos e financeiros.
• Formação de lideranças.
Questionário 01
Professores da Escola Classe “Olho d’Água”
Nome:____________________________________________________________________
Série que trabalha:__________________________________________________________
Data: ___/___/___
4. Com que conhecimentos os alunos chegam à escola? Quais os saberes que eles trazem
para a escola?
5. Na sua opinião, quais os assuntos/temas que os alunos se sentiriam mais motivados para
aprender? Por quê?
ROTEIRO DE ENTREVISTAS
COMUNIDADE DO RIACHO FUNDO
ESCOLA CLASSE RIACHO FUNDO – RURAL
Entrevistadores:____________________________________________________________
_________________________________________________________________________
A . IDENTIFICAÇÃO GERAL
B. INFRAESTRUTURA DOMÉSTICA
1. Moradia
1.a.( ) Própria – quanto tempo? ____________________
1.b.( ) Aluguel
1.c.( ) Outros
_____________________________________________________________________
1.g. Rua asfaltada? ( ) sim ( ) não 1.h. Tamanho da casa (m2): ____________________
5. No caso de coleta por caminhão, com qual freqüência esse lixo é recolhido?
__________________________________________________________________________
9. Quais são as enfermidades comuns na família? Com que freqüência elas ocorrem? (Preencha
com a legenda a seguir: 1 – Sempre 2 – Às vezes 3 – Raramente)
Dor de cabeça Diarréia Problemas Problemas de Piolhos Outros(citar)
respiratórios pele
9.a. Mulheres
9.b.Homens
9.c. Crianças
9.d.Idosos
260
C. HISTÓRIA DA FAMÍLIA
1.a Qual a composição da família da criança residente na casa?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
2.a Quanto tempo moram em Brasília? ____________________________________________
_____________________________
3.a E no Riacho Fundo?
_________________________________________________________________________
4.a Nessa casa?_______________________________________________________________
5.
Idade:
Naturalidade:
Residência:
Trabalho:
Avô materno
Avó materna
Avô paterno
Avó paterno
261
6. Conte um pouco sobre como e por quê a sua família chegou à Brasília.
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
7. Possui religião? Qual? E seus familiares próximos, pertencem a algum movimento ou serviço
ligado à religião?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
D. RELAÇÕES SOCIAIS
1. Existem parentes seus morando no Riacho Fundo ? ( ) sim ( ) não
Em caso afirmativo, responda as questões 2 a 6.
2. Quem são os parentes e onde moram?
4. Possuem alguma relação comercial ou de trabalho com esses parentes? ( ) sim ( ) não
4.a. Em caso afirmativo, qual o tipo de relação?
5. Possui alguma relação de solidariedade ou apoio com esses parentes no trato da casa, dos filhos
ou idosos? ( ) sim ( ) não
E. ESCOLA E FAMÍLIA
1. Em sua família, quantos adultos sabem:
1.a. ( ) Só ler
1.b. ( ) Só escrever
1.c. ( ) Ler e escrever
1.d. Observações: __________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
19. Com qual regularidade você observa o material escolar do seu filho?
19.a ( ) Todos os dias 19.d ( ) Raramente
19.b ( ) Uma vez por semana 19.e ( ) Nunca
19.c ( ) De vez em quando 19.f ( ) Outros _________________________________
21. Como é a sua participação para ajudar seu filho a conseguir o que almeja e/ou o que se espera
dele?
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
CONVITE
REMA - Rede de Educação e Meio Ambiente do Riacho Fundo
Estarão sendo convidadas para o evento, instituições tais como: EMBRAPA, Gerência
Regional de Ensino do Riacho Fundo; Instituto de Saúde Mental; Cooperativa 100
Dimensão; Cia do Lacre; Fórum das ONG's; Comparques; SEMARH; PM-Flo; Instituições
de Ensino Superior entre outras.
4o~~.
.1 de Fátima R. Makiuchi Profa. Kátia Marthes Fonseca G. Moreira
UnB/CDS REMA Riacho Fundo
Governo do Distrito Federai
/ Secretariade Estado da Educação
Gerência Regionalde Ensino do Núcleo
Bandeirante
Redede Educação e Meio Ambiente do
A sub-bacia do Riacho Fundo foi RiachoFundo - R&\L\ Riacho Fundo
(
{' uma das áreas mais agredídas desdeo início da
construção de Brasília. Ar marcas da
exploração e da ocupação desse tenitótio Organização do Evento
expõem verdadeiras cicatrizes, observadas
ainda hoje.
. .,:,:,~?~q;.~;- ,!:
... ;!!I1!,!II:!r!"/:.
Agosto de 2004
REMA RIACHO FUNDO
http://geocities.yahoo.com.br/rema_riacho_fundo
D1io.~~A \
.I::d YJ.C.L "t """'"1
. KellenGianni- CEf 03 RFI mais digna, responsável e participativa apoiada
. Dabate em ações de cooperação e solidariedade.
E5te evento tem .L
por fi.n..wdadcfomentar as
17:00 - Encerramento
experiências debeii;'~lvidas pela Rcde de OBJETrVOS DA REMA
Educação e Meio Ambiente do ~cho Fundo
(REMA) junto às escolas da Gerência a) Estabdecer mecanismos de
Regional de Ensino do Núcleo Bandeirante e conscientização da necessidade de
\' instituições parceiras. OQUEÉAREMA? preservar o meio ambiente,
sensibilizando sobre a importância da
PÚBUCOALVO A REMA é uma rede de pessoas que se educação ambiental dentro da
preocupamcom as questõessócio-ambientais comunidade;
Diretores das escolas públicas e particulares e do DistritoFederal. b) Promover a troca de conhecimento
parcenas. e informação, práticas e contexto, entre
Formada no ano de 2003, principalmente por a escola e a comunidade loca~ buscando
REALIZAÇÃO professores de Escolas Públicas do Riacho a int~gração Escola-Comunidade;
Fundo, procura desenvolver atividades nas c) Desenvolver ações interdisciplinares
30 de agosto de 2004 das 14:00às 17:30 horas. -escolas e junto à comunidade que possibilitem, para a melhoria do ensino-aprendizagem
Auditório da Administração Regional do por um lado, a melhoria nas condições da dos alunos;
Riacho Fundo I - Distrito Federal docência e por outro, uma melhoria nas d) Desenvolver atividades coletivas na
condições de vida da comunidade local. REMA para o trabalho docente junto às
PROGRAMAÇÃO escolas e a comunidade;
Centrada na gestão sócio-ambiental da Sub-
14:00 - Abertura
bacia hidrográfica do Riacho Fundo, PRINCíPIOS DA REMA
. IsraelR S.Monteiro( aluno- 8"D) desenvolveu um projeto de ação, de cunho
. SibeleLucchcsi - REMA didático-participativoque agora implementa.
~ l\,r~..;~
1.~Al..I..A
..:I~
\..U
D~";_~
L a.ULU,a.
D
.1.'\.-
1\,r~1~.._L.;
J.y...AA.I,U\ Lli -