Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
ANO XIII
No 301
NEUROCIÊNCIA
inteligente? ANIMAIS
Como a convivência
com bichos aumenta
O que neurocientistas dizem a capacidade de
sobre mitos e verdades a respeito concentração
do treinamento cerebral
carta da editora
Videogames
capa podem deixar
você mais
12 inteligente?
Tem ganhado força
a ideia de que dedicar
alguns minutos por
dia à prática de 26 Bem mais que 5 sentidos
determinados Mais importante do que o número de “portas
jogos torna nosso sensoriais” que temos é a maneira como
cérebro mais ágil. nos relacionamos com essas capacidades.
Neurocientistas Pesquisadores estudam o “valor agregado”
esclarecem o que que o cérebro confere aos dados sensoriais
está comprovado brutos que apreendemos
sobre manter
por Bruce Durie
nossas habilidades
por Simon Markin
especial
8 O efeito dos mantras
sobre o cérebro
Avanços na
Exames de ressonância magnética
mostram que a memorização e a
recitação das sílabas produzem
36 luta contra
o que pesquisadores chamam de
“efeito sânscrito”: o aumento do
a ENXAQUECA
tamanho das regiões cerebrais
Depois de um
associadas à função cognitiva
longo período
sem novidades,
22 Bichos fofos aumentam neurocientistas
sua concentração começam a
Estudos desenvolvidos em centros de desenvolver
pesquisas de vários países mostram tratamentos que
que o convívio com esses simpáticos podem prevenir e
seres é capaz de alterar – para evitar as dores
melhor – vários aspectos da química por R. Allan Purdy e
cerebral. O resultado pode ser a David W. Dodick
diminuição do estresse, da depressão
e até de problemas cardíacos
4
www.mentecerebro.com.br MENTE E CÉREBRO ON-LINE
Visite nosso site e participe de
Presidente: Edimilson Cardial nossas redes sociais digitais.
Diretoria: Carolina Martinez, www.mentecerebro.com.br
Marcio Cardial e Rita Martinez facebook.com/mentecerebro
32 Líderes não nascem prontos twitter.com/mentecerebro
Editora-chefe: Gláucia Leal Instagram: @mentecerebro
Não é possível determinar um conjunto Editora de arte: Sheila Martinez
Colaboradores: Maria Stella Valli
de traços de personalidade que garantam e Ricardo Jensen (revisão) REDAÇÃO
a boa liderança: as características Tratamento de imagem: Comentários sobre o conteúdo
Paulo Cesar Salgado editorial, sugestões, críticas às
desejáveis dependem da natureza Produção gráfica: matérias e releases.
do grupo. Os mais hábeis são os se Sidney Luiz dos Santos redacaomec@editorasegmento.com.br
tel.: 11 3039-5600
adaptam e aprendem a despertar nos PUBLICIDADE fax: 11 3039-5610
Gerente: Almir Lopes
colegas o desejo de cooperação almir@editorasegmento.com.br Cartas para a revista Mente e Cérebro:
Rua Cunha Gago, 412
Escritórios regionais: 1o andar – São Paulo/SP
Brasília – Sonia Brandão CEP 05421-001
34 Proteínas artificiais para facilitar (61) 3321-4304/9973-4304
o diagnóstico de Alzheimer sonia@editorasegmento.com.br Cartas e mensagens devem trazer o
Rio de Janeiro – Edson Barbosa nome e o endereço do autor.
Anticorpos no sangue de pacientes (21) 4103-3846 /(21) 988814514 edson. Por razões de espaço ou clareza, elas
barbosa@editorasegmento.com.br poderão ser publicadas de forma
pode ser um caminho para detectar reduzida.
TECNOLOGIA
mais cedo a doença e evitar que os Gerente: Paulo Cordeiro PUBLICIDADE
danos se alastram silenciosos pelo Analista programador: Anuncie na Mente e Cérebro e fale com
Diego de Andrade o público mais qualificado do Brasil.
cérebro, sendo detectados apenas Desenvolvedores: almir@editorasegmento.com.br
Thean Rogério
quando é tarde demais para revertê-los CENTRAL DE
MARKETING/WEB ATENDIMENTO AO LEITOR
Diretora: Carolina Martinez Para informações sobre sua assinatura,
Gerente de marketing: mudança de endereço, renovação,
Mariana Monné reimpressão de boleto, solicitação de
seções Eventos: Lila Muniz
Coordenador de criação e designer:
Gabriel Andrade
reenvio de exemplares e outros serviços
São Paulo (11) 3039-5666
Editor de vídeo: Gabriel Pucci De segunda a sexta das 8h30 às 18h,
3 Analista de web: Lucas Alberto
Analista de marketing:
atendimento@editorasegmento.com.br
www.editorasegmento.com.br
CARTA DA EDITORA Fabiana Simões
Novas assinaturas podem ser solicitadas
ASSINATURAS E CIRCULAÇÃO pelo site
6 Supervisora: Cláudia Santos
Eventos Assinaturas: Simone Melo
www.lojasegmento.com.br
ou pela
CINEMA Vendas telemarketing ativo: Central de Atendimento ao Leitor
Cleide Orlandoni
Números atrasados podem ser
FINANCEIRO solicitados à
46 Faturamento/contas a receber:
Karen Frias
Central de Atendimento ao Leitor
LIVROS pelo e-mail
Contas a pagar: Siumara Celeste atendimentoloja@editorasegmento.
Lançamentos Controladoria: Fabiana Higashi
Recursos humanos/Depto. pessoal: com.br ou pelo site
Roberta de Lima www.lojasegmento.com.br
MARKETING
Mente e Cérebro é uma publicação Informações sobre promoções,
mensal da Editora Segmento com eventos, reprints e projetos especiais.
conteúdo estrangeiro fornecido por marketing@editorasegmento.com.br
publicações sob licença de
Scientific American. Editora Segmento
Acompanhe a @mentecerebro Rua Cunha Gago, 412 – 1o andar
São Paulo/SP – CEP 05421-001
no Instagram www.editorasegmento.com.br
Spektrum der Wissenschaft
Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5 Edição no 301, fevereiro de 2018,
69126 Heidelberg, Alemanha ISSN 1807156-2.
do homem mau, sádico, misógino, abusivo e racista. A panhia das Letras). Para Freud, o estranhamento tem ori-
história se passa na década de 60, em plena Guerra Fria, gem em traumas da infância, é recalcado no inconsciente
quando Strickland captura um ser anfíbio (Doug Jones) e se torna, ao mesmo tempo, “familiar” e “suspeito”. O
de forma humanoide na América do Sul. Cultuada pelos criador da psicanálise considera que o inquietante é algo
povos nativos (possivelmente da Amazônia) como uma já conhecido, mas enclausurado. Quando sai de águas
espécie de deus, a criatura é torturada pelo militar que profundas e vem à tona, pode provocar medo. Mas tam-
insiste em afirmar seu poder e se manter no controle. bém atrai o olhar, é difícil ficar indiferente.
Aquilo que ele não conhece ou não entende o apavora O homem anfíbio, visto por Strickland e outros mi-
– e desperta sua ira. Nada o alegra, nada lhe parece su- litares como monstruoso, na verdade espelha a própria
ficiente: prevalece sempre uma aura soturna de dureza e monstruosidade de quem o olha. Já Elisa apreende no es-
infelicidade, como convém aos vilões. tranho a beleza e a possibilidade do encontro. A violência
Aos poucos, a faxineira se aproxima do anfíbio. Para é às vezes explícita, às vezes latente – mas há saída, existe
ela, não há motivo de temor, oferece ovos e apresenta a bondade e esperança. É possível que, por isso, além do
ele uma de suas paixões, a música. A história de amor se conflito da história em si o que prevaleça seja a emergên-
torna inevitável: os dois são “incompletos” como diz Eli- cia dos conflitos pessoais e a possibilidade de vê-los, por
sa, em linguagem de sinais (como se algum de nós fosse algum tempo, flutuar leves, na cadência da água.
completo). Ainda assim, essa percepção os aproxima de A linguagem proposta, assim como a usada por Elisa,
forma delicada, em contraste com a brutalidade do auto- foge ao convencional. Apesar do poder de cura, que se
ritarismo e do poder sem sabedoria. Os dois se encon- evidencia ao longo do filme, a criatura não confere a ela
tram em seus silêncios, em suas “estranhezas”. a recuperação da fala fluente. De fato, seu silêncio é, em
Para a psicanálise, a relação com o que estranhamos alguns momentos, a sua libertação. Além do mais, embai-
tem sido matéria de atenção e estudo. Há quase um sé- xo d’água não há espaço para sons, pelo menos não para
culo, em 1919, Freud escreveu o ensaio Das Unheimliche, aqueles com os quais estamos acostumados. Para Elisa e
na maioria das vezes traduzido para o português como O sua criatura amada a comunicação se dá pelo afeto. Entre
estranho e, mais recentemente, como O inquietante (Com- eles, a história é outra. (Por Gláucia Leal, editora-chefe)
fevereiro 2018 • mentecérebro 7
neurociência
O efeito
dos mantras
sobre o
cérebro
Exames de ressonância magnética mostram
que a memorização e a recitação produzem
o que pesquisadores chamam de “efeito
sânscrito”: o aumento do tamanho das regiões
cerebrais associadas à função cognitiva
shutterstock
Os participantes das duas equipes tinham na tentativa de imaginar o cérebro de pandi-
idade, gênero, habilidade manual, acuidade tas sânscritos treinados profissionalmente na
visual e auditiva similares. Índia. Embora essa pesquisa inicial, focada na
O que descobrimos na análise estrutural de comparação intergrupal da estrutura do cére-
MRI foi notável. Numerosas regiões cerebrais bro, não possa abordar diretamente a questão
dos panditas são dramaticamente maiores do do efeito sânscrito (que requer estudos funcio-
que a daqueles que compunham o grupo de nais detalhados com comparações de memo-
controle, com mais de 10% mais matéria cin- rização em linguagem cruzada, para os quais
zenta em ambos os hemisférios cerebrais e au- atualmente estamos buscando financiamento),
mentos substanciais na espessura cortical. Em- encontramos algo específico sobre a relação en-
bora os fundamentos celulares exatos da maté- tre o treinamento verbal intensivo de a memó-
ria cinzenta e as medidas de espessura cortical ria. Uma pergunta parece inevitável: o aumento
ainda estejam sendo pesquisados, o aumento substancial da matéria cinzenta de áreas funda-
dessas métricas se correlaciona consistente- mentais da memória verbal dos recitadores de
mente com a função cognitiva aprimorada. mantras significaria que essas pessoas são me-
O mais interessante para a memória ver- nos propensas a patologias e memória devasta-
bal é que o hipocampo direito (região do cé- doras, como a doença de Alzheimer? Ainda não
rebro que desempenha um papel fundamen- sabemos, embora alguns relatos de médicos
tal na memória de curto e longo prazo) dos ayurvédicos da Índia sugiram que essa hipótese
panditas apresenta mais matéria cinzenta em seja bastante possível. Se for assim, isso levan-
quase 75% dessa estrutura subcortical. Mui- ta a possibilidade de que exercitar a memória
tas funções de memória são compartilhadas verbal pode ajudar pessoas idosas em risco de
pelos dois hipocampos (um em cada he- comprometimento cognitivo leve, retardando
misfério cerebral). No entanto, o direito é o ou, ainda mais radicalmente, impedindo o iní-
mais especializado em padrões sonoros, es- cio da degeneração.
paciais e visuais. Faz sentido, portanto, que Se assim for, o treinamento precisa ser
tenhamos encontrado grande quantidade exato. Um dia eu estava filmando quatro pro-
de matéria cinza no hipocampo direito dos fessores de meditação de nível avançado de-
entoadores de mantras: a recitação requer monstrando as diferentes velocidades de re-
codificação e reprodução de padrões de som citação. Em meio a uma longa sessão, os qua-
altamente precisos. Os meditadores mostra- tro pararam de repente. “O que está errado?”,
ram também espessamento substancial das perguntei. “Um de nós cometeu um pequeno
regiões do córtex temporal direito que estão erro”, respondeu um deles. Comentei que o
associadas à entonação e a características da deslize era absolutamente imperceptível para
fala, uma espécie de identidade de voz. mim. “Mas nós percebemos”, disse outro. E
Nosso estudo foi uma primeira incursão reiniciaram a recitação desde o início.
10
capa • treinamento cerebral
Videogames
podem deixar
você mais
inteligente?
A promessa: dedicar alguns minutos por dia à
prática de determinados jogos para tornar nosso
cérebro mais ágil. A realidade: quando a ciência e
o comércio se cruzam, os resultados nem sempre
são os mais confiáveis
por Simon Makin
Em meio a opiniões divergentes, o que se sabe é que
aumentar nossas habilidades intelectuais à medida
que envelhecemos não é tarefa simples. No entanto,
fazer parecer que alcançamos resultados positivos é
surpreendentemente fácil
14
Essas mudanças, porém, se tornaram
evidentes somente nas pessoas com vasta e
complexa experiência no mundo real. O de-
clínio natural relacionado com a idade pode
afetar a plasticidade. A capacidade do cérebro
de formar novas conexões não é um bem sem
ressalvas. É provável que com o passar dos
anos esse recurso seja menos importante do
que a estabilidade cerebral, que nos permite
manter a aprendizagem e os hábitos neces-
sários. Além disso, a neuroplasticidade é me-
tabolicamente cara (exige grande quantidade
SUSANNE JAEGGI: empresas costumam citar de energia), por isso, em adultos, essas altera-
estudo de 2008 desenvolvido pela neurocientista ções estruturais não ocorrem tão facilmente.
para referendar a eficácia de seus produtos; a
No entanto, no início de 2000 diversos es-
pesquisadora, no entanto, faz parte de um grupo de
neurocientistas que contesta que exercícios cerebrais tudos finalmente demonstraram que os efei-
possam oferecer aos clientes recursos neurais que tos do treinamento cognitivo não eram tão li-
ajudam a reduzir ou reverter o declínio cognitivo mitados como muitos acreditavam. Em 2002,
um grupo liderado pelo neurocientista Torkel
Klingberg, do Instituto Karolinska, em Estocol-
Os indícios de que o sistema nervoso adul- mo, decidiu aplicar tarefas “adaptativas” de
to saudável também pode se transformar são memória (em que o grau de dificuldade muda
bem relevantes para os “empresários da cog- de acordo com o desempenho da pessoa) em
nição”. O exemplo mais famoso é um estudo crianças com TDAH. Esse tipo de exercício
de 2000 com ressonância magnética funcional toma como base um princípio amplamente
(fMRI) da neurocientista Eleanor Maguire e aceito de que aprendemos melhor quando
seus colegas da Universidade College London somos levados ao limite de nossas capacida-
que constatou que motoristas de táxi da capi- des, de forma que não fiquemos nem muito
tal inglesa, que conheciam a cidade detalhada- entediados ou frustrados. Os pequenos par-
mente, demonstraram diferenças marcantes ticipantes apresentaram melhores resultados
na forma do hipocampo (região associada em testes de raciocínio e atenção em compa-
com o armazenamento de informações de na- ração com um grupo treinado com programas
vegação) em comparação com condutores co- não adaptativos. A equipe observou também
muns. Quanto maior era o tempo de estrada, algumas evidências de reduções nos sintomas
maiores eram as alterações. de TDAH: as crianças se tornaram menos pro-
pensas a se distrair nas tarefas.
A memória de trabalho, uma medida da
nossa capacidade de manter e manipular in-
formações diante de interferências, é o alvo
ideal para o treinamento cognitivo. Essa região
funciona como uma espécie de espaço mental
e está envolvida na leitura e resolução de pro-
blemas, além de se correlacionar com medi-
das de quociente de inteligência (QI). A cone-
xão com a inteligência em particular inspirou
shutterstock
mesmo grau de contato que os participantes cientistas não podem prever se um cérebro
do teste com os pesquisadores. Agindo as- que passou por esses exercícios vai mostrar
sim, alguns cientistas notaram que os efei- aumento no funcionamento (o que implicaria
tos da transferência distante desaparecem. maior processamento) ou diminuição (maior
Em 2013, os psicólogos Charles Hulme, da eficiência).(Veja ilustração abaixo).
Universidade College London, e Monica Mel- É difícil produzir e demonstrar a transfe-
by-Lervåg, da Universidade de Oslo, condu- rência distante; por isso, boa parte do treina-
ziram uma meta-análise que combinou da- mento cerebral se concentra na “transferên-
dos de 23 pesquisas sobre o treinamento da cia próxima”: exercícios que conferem bene-
memória de trabalho. Eles descobriram um fícios em tarefas que usam habilidades se-
pequeno aumento nas medidas de transfe- melhantes. Esse recurso é menos ambicioso,
rência distante do raciocínio não verbal, mas mas também menos controverso. Muitos es-
nenhum quando consideravam apenas estu- tudos mostram que treinar uma capacidade
dos com grupos de controle ativos. Jaeggi e cognitiva específica, como a memória, pode
seus colegas argumentam, em uma pesquisa ajudar a melhorar o resultado em outras ta-
de 2014, que os últimos experimentos não refas usando tal habilidade, mesmo que não
conseguiram reproduzir suas descobertas favoreça ganhos, por exemplo, em exercícios
porque os voluntários não se envolveram o de raciocínio.
suficiente nos exercícios e, portanto, não pu- No entanto, não é simples demonstrar por
deram colher seus benefícios. que o desempenho aumenta. Podemos nos
Ao mesmo tempo que psicólogos procu- tornar mais craques em algo simplesmente
ravam evidências comportamentais da trans- pela prática; por isso, os pesquisadores de-
ferência distante, os neurocientistas explora-
vam se o treinamento poderia induzir mudan-
ças na atividade neural, demonstrando assim AUMENTO DA ATIVIDADE
a plasticidade biológica que muitos acredita- cerebral não é a mesma coisa
que melhor desempenho
vam existir por trás dos benefícios. Para tenta- cognitivo. A imagem mostra
rem identificar alterações no funcionamento o funcionamento neural
cerebral, em geral os pesquisadores solicitam médio dos participantes em
um regime de treinamento
aos participantes que realizem uma tarefa em para aprimorar a memória de
um escâner de ressonância magnética funcio- trabalho. É possível observar
nal, tanto antes como depois do treinamento que a atividade cresceu
nas primeiras sessões
cognitivo. A interpretação desses resultados,
(vermelho), o que indica
no entanto, pode ser difícil. A questão é saber aumento no processamento,
se as diferenças na atividade mental refletem e depois diminuiu (azul),
mudanças genuínas na capacidade cogniti- refletindo provavelmente
maior eficiência cognitiva
va ou simplesmente alterações na estratégia
neural decorrente da prática. Além disso, os
fevereiro 2018 • mentecérebro 17
capa
Fatos e mitos
Empresas que comercializam exercícios cognitivos são ousadas na hora vem mostrar que os benefícios associados
de falar sobre os benefícios que seus produtos oferecem. Mas será que com o treinamento envolvem mais do que a
há alguma verdade nisso? repetição – é preciso utilizar testes que sejam
Jogos cerebrais são projetados por neurocientistas e testados
diferentes dos exercícios cerebrais. No entan-
cientificamente? to, elaborar uma tarefa que exija apenas uma
Verdadeiro – Alguns produtos desse segmento (Cogmed e Posit única habilidade cognitiva é praticamente im-
Science, por exemplo) foram de fato desenvolvidos por cientistas. As possível. Tudo o que fazemos envolve vários
empresas por trás dessas marcas têm realizado diversos estudos com processos mentais, de modo que os efeitos
pesquisadores independentes. A maioria, aliás, fundamenta os jogos
da prática de uma atividade podem influenciar
em tarefas cognitivas criadas por especialistas, por isso pode usar os
experimentos relacionados para falar sobre os itens que comercializam. o desempenho (veja quadro à esquerda). Uma
das únicas maneiras razoavelmente confiáveis
O treinamento cerebral pode aprimorar que pesquisadores têm para identificar em
o desempenho em tarefas cognitivas? que medida os progressos refletem mudanças
Questionável – A real surpresa seria se os exercícios não
reais de uma capacidade cognitiva, e não avan-
favorecessem pontuações mais altas na tarefa praticada. Mas isso não
indica aumento das funções cognitivas. Para que os resultados sejam ços na habilidade de fazer o teste por causa da
convincentes, as empresas devem demonstrar que os benefícios prática, é medir cada resultado com a ajuda de
são transferidos para atividades diferentes das praticadas durante o vários exercícios que sobrecarregam essa ca-
treinamento. pacidade de maneiras distintas.
Ainda melhor do que testes múltiplos é
Exercícios cognitivos ajudam a tratar o TDAH?
um conjunto de técnicas estatísticas sofisti-
É possível – Pesquisadores apontam resultados positivos,
principalmente em relação ao treinamento cerebral para a cadas chamadas pelos cientistas de medidas
memória de trabalho da Cogmed, em crianças e adultos com TDAH e de fator latente, que podem revelar alterações
outros problemas com atenção. Os benefícios, porém, ainda não são nas habilidades subjacentes. Esses métodos
claros; alguns, aliás, foram contestados. Os problemas incluem o uso exigem diversas baterias de testes e grandes
de medidas subjetivas, como a avaliação de pais ou professores, e as
amostras. Por exemplo, em 2010 o psicólo-
divergências sobre grupos de controle apropriados.
go Florian Schmiedek, do Instituto Alemão
Jogos cerebrais previnem o declínio cognitivo? de Pesquisa Educacional Internacional, e os
Questionável – Alguns estudos sugerem que certos tipos de neurocientistas Martin Lövdén, agora no Ins-
treinamento podem ajudar a aprimorar o desempenho em tituto Karolinska, e Ulman Lindenberger, do
tarefas diferentes das praticadas durante o regime, independentemente Instituto Max Planck para o Desenvolvimento
da idade do participante. Outros estudos descobriram, porém, que
adultos mais velhos não se beneficiam dos ganhos. Além disso, não há
Humano, utilizaram a análise de fator laten-
evidências sólidas do impacto na vida real. te em um dos estudos mais rigorosos sobre
o treinamento cognitivo até hoje. O regime
Exercícios cognitivos podem prevenir ou retardar a envolveu 101 jovens e 103 adultos, que rea-
progressão da doença de Alzheimer? lizaram seis testes de velocidade percep-
Falso – A maioria das empresas, na verdade, é muito cuidadosa
tual, três de memória de trabalho e três de
para fazer declarações explícitas de eficácia no tratamento da patologia
e prefere apenas sugerir fortemente que seus produtos se esforçam memória episódica, administrados em uma
nesse sentido. No entanto, os estudos não demonstram evidências de média de 101 sessões de uma hora ao longo
que jogos cerebrais podem ajudar a prevenir Alzheimer ou demências de seis meses. Os pesquisadores usaram 14
em geral. medidas para avaliar os resultados, cobrindo
as transferências distante e próxima. Eles en-
reinamentos mentais podem ajudar a ser um motorista
melhor
contraram efeitos da transferência distante
Verdadeiro – Há fortes evidências de que contribuem para a sobre a memória episódica e o raciocínio, que
velocidade de processamento de tarefas (apreensão do campo de visão permaneceram por pelo menos dois anos.
o mais rápido possível), o que pode nos ajudar a dirigir melhor, como Os ganhos, porém, foram muito pequenos.
demonstra a redução de manobras perigosas em testes reais de condução. Além disso, os adultos mais velhos não se
SIMON MAKIN é jornalista científico. beneficiaram, provavelmente por causa da
18
Praticar qualquer tarefa tende a aumentar os resultados
sem necessariamente melhorar o desempenho em outras
atividades; ou seja, o treinamento cerebral pode favorecer
o desempenho em determinados games, mas isso não se
transfere de forma automática para a “vida real”
plasticidade em declínio, o que sugere que os sentado atrás do volante na hora do rush.
exercícios cerebrais podem ser menos úteis “Há diversos estudos que mostram que pes-
justamente para aqueles que mais precisam. soas que praticam jogos cerebrais se tornam
Embora importantes, esses estudos são melhores nessa atividade”, diz a psicóloga
raros porque exigem muito esforço profissio- Laura Carstensen, diretora do Centro Stan-
nal e bastante dinheiro. Em 2014, em uma ford sobre Longevidade. “Mas a verdadeira
revisão de pesquisas sobre a transferência, questão é: a transferência para o lado de fora
Schmiedek e seus colegas descobriram que do laboratório ajudou a aprimorar o desem-
apenas 7% dos experimentos utilizaram me- penho?”. Nesse caso, parece que sim.
didas de fator latente e menos de um quarto
nem sequer usou múltiplas classificações. CUIDADO COM O QUE COMPRA
Ironicamente, evidências sólidas de que Apesar do fio de esperança no horizonte, ain-
as técnicas de exercícios cerebrais podem ren- da não há prova incontestável de que o trei-
der benefícios reais mensuráveis finalmente namento cerebral resulte em transferência
emergiram num ambiente não convencional. distante de habilidades cognitivas, seja algo
O treino de velocidade de processamento é medido pelo aumento do QI ou pelo impacto
baseado em uma medida referida a um cam- no funcionamento da vida real. Além disso,
po útil de visão (a amplitude de espaço que os pesquisadores ainda debatem a importân-
percebemos de relance), desenvolvido há cia da transferência próxima. Assim, as alega-
quase 30 anos por Karlene, da Universidade ções da indústria em relação a turbinar a inte-
do Alabama, e pelo psicólogo Daniel L. Roen- ligência, os padrões neurais ou até mesmo o
ker, da Universidade Ocidental de Kentucky. funcionamento mental de uma maneira fácil
A tarefa exige que o participante fixe o olhar e rápida cada vez mais tomam como base ar-
num objeto central enquanto tenta perceber gumentos inconsistentes.
o mais rapidamente possível em que lugar da Outro fator preocupante tanto para as em-
periferia visual outros objetos aparecem. presas como para os clientes: é possível que
A diminuição do risco de acidente de trân- a maneira como jogos cerebrais focam deter-
sito foi usada como medida para avaliar a minadas habilidades cognitivas individuais
eficácia. Em um estudo de 2003, Roenker e não favoreça a variedade, que ajuda a tornar
seus colegas descobriram que o treinamento a aprendizagem eficaz. Por exemplo, em um
cerebral resultou em uma queda de cerca de estudo de 1978, os pesquisadores Robert Kerr
um terço de manobras perigosas em exames e Bernard Booth, da Universidade de Ottawa,
de condução do mundo real. Ainda não está descobriram que crianças que treinaram ati-
claro se os exercícios ajudam a aumentar a rar almofadas em alvos a dois e a quatro pés
capacidade cognitiva ou simplesmente refor- de distância mais tarde demonstraram maior
çam uma habilidade útil em algumas circuns- precisão quando miraram em objetos a três
tâncias reais. Essas considerações teóricas, pés (um intervalo que não haviam praticado)
porém, são de pouco interesse para alguém em relação a outros participantes da mesma
fevereiro 2018 • mentecérebro 19
capa
shutterstock
simples e os atacam com procedimentos alta- cognitivas simultaneamente e circunstâncias Is working memory
mente repetitivos. Esse esquema provavelmen- que se alternam constantemente, um cardá- training effective? A meta-
analytic review. Monica
te ajuda a ter melhor desempenho e de forma pio variado para ajudar a ampliar habilidades. Melby-Lervåg e Charles
rápida nos jogos, mas também pode produzir Exercícios físicos e ocupações sociais têm sido Hulme, em Developmental
Psychology, vol. 49, nº 2,
menor transferência. A Lumosity promete em constantemente associados ao envelhecimen- págs. 270-291; fevereiro
seu site que “apenas 10 ou 15 minutos diários to cognitivo saudável. Portanto, se você gasta de 2013.
do treinamento que oferece podem aprimo- 30 minutos por dia com treinamentos cere- Hundred days of cognitive
rar habilidades nesses exercícios ao longo do brais e isso significa deixar de passear com training enhance broad
tempo”. A afirmação pode ser verdadeira, mas seu cachorro, por exemplo, você está trocando cognitive abilities in
adulthood: findings from
não faz muito sentido. Praticar qualquer tarefa benefícios conhecidos por uma aposta. the COGITO study. Florian
pode contribuir para os resultados sem neces- Os exercícios cognitivos ainda têm um Schmiedek, Martin Lövdén
e Ulman Lindenberger,
sariamente melhorar o desempenho em outras longo caminho a percorrer. O problema, em Frontiers in Aging
coisas. Em outras palavras, conduzir trens co- como costuma acontecer, é que o negócio Neuroscience, vol. 2, artigo
nº 27; 13 de julho de 2010.
loridos numa tela não vai ajudar a desenvolver correu à frente da ciência. Na hora de faze-
essa habilidade no mundo real. rem o marketing sobre seus produtos, nem Exercising your brain: a
review of human brain
O fato é que é difícil vender jogos mais efi- todas as empresas se preocupam em se plasticity and training-
cazes porque são muito desafiadores. O trei- basear em evidências concretas. É possível induced learning. C. S.
Green e D. Bavelier, in
no dual n-back, por exemplo, é extremamente que um dia as pesquisas ajudem a desen- Psychology and Aging,
complicado e desagradável – um grande pro- volver técnicas que colaborem, pelo menos vol. 23, nº 4, págs. 692-
blema para a indústria, considerando que a um pouco, em determinadas circunstâncias. 701; dezembro de 2008.
perseverança do cliente é fundamental para Nesse meio-tempo, prefiro calçar meus tê-
que alcance os benefícios. nis e sair para uma corrida.
20
V Congresso
clínica psiquiátrica
informações
gerais
Bichos fofos
aumentam sua
concentração
Estudos desenvolvidos
em centros de pesquisas
de vários países mostram
que o convívio com esses
simpáticos seres é capaz
de alterar – para melhor –
vários aspectos da química
cerebral. O resultado pode
ser a diminuição do estresse,
da depressão e até de
problemas cardíacos
shutterstock
22
“fofo”, em japonês) as pessoas ficavam mais
atentas a suas tarefas.
Em um artigo publicado pelo periódico
científico Plos One, os especialistas japone-
ses contaram a experiência: pediram 50 vo-
luntários, todos universitários, que executas-
sem tarefas que exigiam atenção, como um
popular jogo infantil oriental que consiste
em movimentar pequenos objetos com uma
pinça sem deixá-los cair.
shutterstock
J
á há alguns anos as pesquisas cien- para o trabalho torna a rotina mais amena,
tíficas têm mostrado que ter animais tanto para o dono do animal como para os
de estimação faz bem à saúde física colegas. Segundo estudo publicado no Jour-
e mental. A interação e o cuidado nal of workplace health management, adultos
costumam deflagrar a afetividade, a empatia que passam o dia em companhia de seu bi-
e o resgate da capacidade lúdica, mesmo em cho de estimação apresentam menores ní-
pessoas idosas. Mais recentemente, porém, veis de hormônios associados ao estresse,
vários estudos têm oferecido respaldo para a como o cortisol, ao fim do dia.
constatação de que os efeitos positivos dessa Pesquisadores da Universidade Virginia
proximidade entre raças vão ainda mais longe. Commonwealth colheram, durante uma se-
O convívio com animais teria efeitos sobre o mana, saliva de 450 funcionários de uma em-
metabolismo das pessoas, a ponto de influir presa de varejo que permite a presença dos
em aspectos da cognição. Uma das mais bichos de estimação. Aproximadamente 30
recentes e inusitadas utilidades dos animais deles levaram seu cachorro para o trabalho
é a habilidade de favorecer a capacidade de pelo menos um dia durante a pesquisa. Nes-
concentração dos humanos. E os bichinhos só se grupo, o nível de estresse diminuiu da ma-
precisam cumprir um único requisito: parecer nhã para a noite, ao contrário das pessoas
fofos para quem os observa. que deixaram seu bicho em casa e das que
Pesquisadores da Universidade de Hi- não tinham um. Estas, aliás, apresentaram
roshima estudaram o efeito que imagens maiores quantidades de cortisol.
de filhotes flagrados com alguma expressão A análise de questionários e entrevistas
divertida, fantasiados com roupinhas ou em revelou que o aumento da sensação de bem-
posições engraçadas exercem sobre a cog- -estar não fica restrito aos proprietários dos
nição. Eles descobriram que após observar animais. Observações como “ter cães aqui
fotos de um animal kawaii (que quer dizer alivia o estresse”, “os bichos aumentam a
fevereiro 2018 • mentecérebro 23
animais
Bem
que
mais
5 sentidos
Não importa quantas “portas sensoriais” temos. Atualmente,
cientistas acreditam que o que realmente conta é a maneira como
nos relacionamos com essas capacidades, como se fosse uma
espécie de “valor agregado” que o cérebro confere aos dados
sensoriais brutos – e envolve não só sensações, mas também
memória, experiência e processamentos cognitivos sofisticados
Q
uantos sentidos você tem? É
muito provável que tenha res-
pondido cinco, com base numa
ideia que vem desde os tempos
de Aristóteles e ainda é muito presente na
cultura popular. Mas é preciso saber que sua
resposta está equivocada. Tente pegar um
cubo de gelo com uma das mãos e um garfo
aquecido com a outra e poderá comprovar que
tato é pouco para descrever as duas sensações.
Ande num trem-fantasma, desses que existem
nos parques temáticos, e diga se tudo o que
vivenciou pode ser explicado apenas com a
visão, a audição e o toque. Não há dúvida
de que nossos sentidos não cabem apenas
26
em cinco categorias. No entanto, determinar Em geral, estamos cientes de nossa ca-
quantos são depende de como entendemos pacidade de sentir as variações de tempera-
os sistemas sensoriais. tura e de pressão, a posição das articulações
Uma possibilidade é classificá-los segundo (propriocepção), o movimento corporal (ci-
a natureza do estímulo. Assim, haveria apenas nestesia), o equilíbrio e outras sensações,
três tipos, em vez de cinco: mecânico (tato e como sede ou estômago vazio. Mas existem
audição), luminoso (visão) e químico (gusta- outros sistemas de monitoração dos quais
ção, olfação). Alguns animais também con- nunca teremos a menor noção, como a de-
tam com a eletrorrecepção. Esses três grupos tecção do pH do fluido cerebrospinal ou do
de sensações exigem sistemas sensoriais bem nível de glicose na circulação.
diferentes. Algo que se dissolve na língua, pro- Também poderíamos, com a mesma fa-
duz um aroma que penetra no nariz e se en- cilidade, definir “sentido” como um sistema
caixa em um receptor não tem nada a ver com formado por um tipo celular especializado que
o movimento de uma célula pilosa no ouvido reage a um sinal específico e se reporta a certa
interno ou com um fóton que atinge a retina. parte do cérebro. Assim, o paladar não seria
outubro 2017 • mentecérebro 27
percepção
ENCONTRO DE
SENSAÇÕES:
a obra O som
amarelo, de 1912,
é uma mistura de
cores, luz, dança
e ritmo
shutterstock
único sentido, teria quatro divisões, cada uma paradamente. À medida que estudamos em
voltada para a distinção de um sabor: doce, detalhes as estruturas dos órgãos sensoriais,
salgado, azedo e amargo. Os neurologistas parece que temos cada vez mais sentidos.
classificam a dor como cutânea, somática ou Entretanto, por mais intrigante que tudo
visceral, dependendo de onde é sentida, mas isso seja, a sensação sozinha não é realmen-
isso significa que estariam em diferentes sis- te tão importante assim. Quando falamos de
temas sensoriais ou que seria simplesmente sentidos, o que realmente queremos dizer
uma questão de geografia corporal? são sensações ou percepções. Do contrário,
Considere o exemplo da audição. Seria não estaríamos muito acima do nível de uma
um único sentido ou várias centenas, um ameba ou de uma planta. A maioria dos se-
para cada célula pilosa coclear? Talvez isso res vivos se vira muito bem com apenas dois
seja levar as coisas um pouco longe demais, canais sensoriais: tato e luz (não necessaria-
mas é interessante notar que podemos per- mente visão). Uma planta cujo crescimento
der a audição de alta frequência sem perder segue a luminosidade está meramente rea-
a acuidade de baixa frequência e vice-versa. gindo mecanicamente a um estímulo.
Portanto, talvez devêssemos pensar nelas se- Já os humanos veem luzes e sombras.
Além disso, percebemos objetos e pessoas
e suas respectivas posições no espaço. Ouvi-
Alguns pesquisadores trabalham com mos sons e identificamos vozes, músicas ou
a hipótese de que o cérebro esteja diversos ruídos. Sentimos o gosto ou o chei-
ro de uma complexa mistura de sinais quími-
organizado para fazer uma “mistura cos, e sabemos reconhecer a diferença entre
dos sentidos”; parece haver “conversas um sorvete, uma laranja ou uma berinjela. A
cruzadas” entre diferentes áreas sensoriais. percepção é o “valor agregado” que o cére-
bro organizado confere aos dados sensoriais
Não por acaso, identificamos objetos mais brutos. Ela vai muito além da paleta de sen-
facilmente se ouvirmos um som relevante sações e envolve memória, experiência e pro-
ao mesmo tempo que os vemos cessamentos cognitivos sofisticados.
28
ESCUTA SELETIVA
O que ouvimos, por exemplo, é bem mais Escritores, pintores
que o simples somatório de sons coletados
por cada ouvido. Vários processos entram e músicos
em cena, alguns dos quais permitem que o
cérebro identifique de onde vem o barulho.
Filtros complexos nos permitem barrar um O escritor russo Vladimir Nabokov (1889-1977) ainda era pequeno
tipo de som enquanto prestamos atenção a quando explicou a sua mãe que as cores das letras do alfabeto dos
outro. No conhecido “fenômeno da festa”, cubinhos de madeira que ganhara estavam “todas erradas”. A mãe
por exemplo, ignoramos todos os ruídos irre- entendeu perfeitamente o drama do filho porque, além de lhe ocorrer
levantes enquanto participamos de uma con- o mesmo, ela tinha outras sensações estranhas, como ver cores
versa, e conseguimos mudar rapidamente de enquanto ouvia música.
foco se mais alguém mencionar nosso nome. O compositor russo Alexander Scriabin (1872-1915) incluiu um
Isso significa que estamos sempre “ouvindo” teclado mudo e luminoso na sinfonia Prometeu, o poema do fogo. O
o som ambiente, mas nem sempre o esta- instrumento deveria acender e apagar luzes coloridas organizadas
mos “escutando”, a menos que ele se torne em forma de raios e nuvens, que se difundiriam pelo ambiente até
subitamente significativo. Nossa percepção culminar numa luz branca tão forte que provocaria dor nos olhos da
vai muito além da sensação pura e simples. plateia. Contemporâneo de Scriabin, o pintor russo Vassily Kandinsky
A vida dos animais é bem mais fácil. (1866-1944) desenvolveu mais profundamente o conceito de fusão
Em geral o dilema de sobrevivência deles, sensorial, explorando a relação entre som e cor e valendo-se de
quando deparam com outro ser vivo, se re- termos musicais para descrever suas obras. O som amarelo, de 1912,
sume a três perguntas: devo comê-lo, fugir é uma mistura de cores, luz, dança e ritmo. “Abandona teu ouvido
ou me acasalar? Nessa tomada de decisão, à música, abre teus olhos à pintura e para de pensar! Pergunta-
eles contam com tudo que puderem dedu- te somente se o pensamento te tornou incapaz de entrar em um
zir dessa nova experiência, bem como com mundo até agora desconhecido. Se a resposta for sim, o que queres
a memória de outras semelhantes. Contudo, mais?”, escreveu o pintor.
animais mais primitivos, com equipamento A mistura entre sons e cores esteve presente na vida do compositor
neural mais limitado, são facilmente engana- húngaro Franz Liszt (1811-1886), que costumava se dirigir aos
dos por flores de cores brilhantes ou por ad- músicos com frases do tipo “Não tão violeta, por favor”. Sem
versários que conseguem inchar e aumentar compreender, muitos deles preferiam levar na brincadeira, embora
de tamanho, que têm marcas que parecem Liszt afirmasse que
olhos ou exalam cheiros bizarros, para citar realmente via cores
apenas alguns truques que a evolução ela- enquanto regia
borou. Quanto mais alto na escala filogené- ou tocava. Outro
tica − o que significa processos perceptivos músico sinestésico
mais complexos −, menos o organismo está foi o americano
à mercê de seus sentidos primitivos. Duke Ellington
(1899-1974).
NÃO É O QUE PARECE
O ponto básico é que cometemos um erro
ao nos concentrar nos sentidos e, até, em
discutir a quantidade deles. O que importa
é a percepção – a sensação é o que a acom-
panha. Para os seres humanos, isso tem im- FRANZ LISZT (1811-1886)
dizia “ver cores” quando
plicações dia a dia. Uma delas é nosso julga- compunha ou tocava; o
mento de tamanho. compositor costumava se
A coerência de nossa visão de mundo dirigir aos músicos com
frases do tipo: “Não tão
nasce do fato de os objetos geralmente não violeta, por favor”
outubro 2017 • mentecérebro 29
percepção
não
anos especialistas afirmaram que bons líderes
teriam talentos inatos, usados para conquistar
seguidores e despertar o entusiasmo da equipe
ou conseguir obediência. Essa teoria sugeria
que pessoas com perfil de líder poderiam ser
bem-sucedidas em qualquer situação. Nos
últimos anos, porém, vem surgindo uma nova
imagem de liderança. Em vez de simplesmente
Proteínas para
diagnosticar
Alzheimer
Anticorpos no sangue de pacientes
O
organismo humano dispõe de milhões de anti-
podem ser um caminho para detectar corpos com especificidades que permitem que
cada um deles se conecte a um agente invasor
mais cedo a doença e evitar (antígeno). As células imunológicas “reconhe-
que os danos se alastrem silenciosos cem” a proteína estranha e agem sobre ela, tornando-a
pelo cérebro, sendo detectados apenas inócua. Assim que uma pessoa entra em contato com
determinado antígeno, por exemplo, o HIV (da aids), o
quando é tarde demais para revertê-los sistema imunológico se “lembra” dele e rapidamente ativa
grande quantidade de anticorpos específicos para combatê-
-lo – o que pode ser detectado pelo teste. Para o Alzheimer,
entretanto, não havia até pouco ha tempo nenhum exame
de sangue semelhante que detectasse anticorpos, pois a
busca pelo malfeitor molecular não tinha sucesso.
Para mudar isso, cientistas coordenados por Thomas
Kodadek, do Instituto de Pesquisas Scripps, em Júpiter,
na Flórida, recorreram a moléculas sintéticas semelhan-
34
Testes e exames
de imagem
O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa que
acomete neurônios de diversas regiões cerebrais. Por isso,
as pessoas afetadas – cerca de 46,8 milhões em todo o
mundo, segundo estimativas da Organização Mundial
da Saúde (OMS) – não sofrem apenas de problemas de
memória, mas também de outros distúrbios cognitivos que
incluem a fala, a capacidade de concentração, de orientação
espacial, de raciocínio e cálculo. Não há cura e as terapias
disponíveis apenas retardam o desenvolvimento da doença
por alguns poucos anos.
Exames como análises do fluido espinal, ou líquido
cefalorraquidiano, e tomografias por emissão de pósitrons
(PET), podem detectar sinais de doença iminente e ajudar
a identificar a janela pré-clínica, mas eles são caros ou
difíceis de manipular. Hemogramas, exames de varredura
fotos: tiago falótico
Avanços na
luta contra a
EN
XA
Depois de um longo período sem novidades,
neurocientistas começam a desenvolver novos
tratamentos que prometem não só nocautear
as dores debilitantes como também preveni-las
QUE
CA
por R. Allan Purdy e David W. Dodick
OS AUTORES
R. ALLAN PURDY é professor de medicina da Universidade Dalhousie, da Nova Escócia. É presidente da Sociedade Americana de Cefaleia
(AHS, na sigla em inglês) e do Comitê de Educação da Sociedade Internacional de Cefaleia (IHS). DAVID W. DODICK é professor de neurologia
e diretor do programa de dores de cabeça da Clínica Mayo, do Arizona. É presidente do IHS, diretor da Fundação Americana de Enxaqueca
(AMF) e ex-presidente da AHS.
36
especial •
H
á 18 meses, Stephanie*, hoje com fato é que, em suas várias formas, a enxaque-
22 anos, vive com enxaqueca. Em ca é um dos problemas neurológicos mais
geral, a crise começa com um comuns, afetando aproximadamente 15%
distúrbio visual que os especia- da população do planeta, de acordo com es-
listas chamam de aura – linhas cintilantes timativas da Organização Mundial da Saúde
em ziguezague que se movem pelo campo (OMS), e considerado o décimo mais incapa-
de visão e se expandem gradualmente, até citante. Somente no Brasil cerca de 30 milhões
que não se enxergue mais nada. Em seguida, de pessoas sofrem de enxaqueca, segundo
chega a dor, principalmente do lado esquerdo dados da Academia Brasileira de Neurologia.
da cabeça. E, para piorar, a sensibilidade à luz, A doença traz grandes desafios, tanto em
ao som e ao cheiro aumenta e, muitas vezes, relação ao tratamento quanto à prevenção.
transforma estímulos comuns (mesmo um Segundo estudos populacionais feitos nos Es-
perfume) em algo insuportável, o que piora tados Unidos (onde uma em cada cinco mu-
sensivelmente o desconforto. lheres e um em cada 16 homens enfrentam
Quando chegou à clínica de neurologia esse quadro), apenas um quarto dos que têm
em Halifax, na Nova Escócia, onde um de enxaqueca episódica (15 dias ou menos por
nós (Purdy) atende, Stephanie disse que já mês) e menos de 5% dos que sofrem com o
tinha tentado vários medicamentos, mas to- problema de forma crônica (15 dias ou mais
dos haviam falhado ou desencadeado efeitos no mesmo período) consultaram um profis-
colaterais intoleráveis. No ano passado, os sional de saúde ou receberam diagnóstico
sintomas tinham se agravado e se tornado as- preciso e terapia adequada. A mais nova clas-
sustadores. Agora, à medida que sua visão se se de medicamentos no mercado remonta ao
desvanece, uma sensação de formigamento início dos anos 1990. Depois que a crise co-
se move lentamente: começa na mão direita, meça, tomar esses fármacos alivia a dor em
sobe pelo braço e, por vezes, alcança o rosto e menos de um terço das pessoas. Além disso,
a língua – um sinal de que a cegueira pode es- os potenciais efeitos colaterais não permitem
tar prestes a chegar. Ao mesmo tempo, ela co- que muitos usem esse tipo de droga.
meça a ter dificuldade para encontrar palavras Agora, porém, quem sofre de enxaqueca
e se fazer entender para os outros. Stephanie tem razões para acreditar que o sofrimento
teme que a enxaqueca a leve a um acidente está prestes a acabar. Avanços na compreen-
vascular cerebral, o que, de fato, é um risco. são de redes neurais e mensageiros quími-
Para alguns, as dores representam um cos que causam os sintomas têm permitido
incômodo ocasional; para outros, um flagelo o desenvolvimento de diversos tratamentos
persistente. No caso de pacientes como Ste- sofisticados que interrompem as crises ou
phanie, as crises podem significar alterações impedem que comecem. Assim como maior
peculiares na percepção e nas sensações. O conhecimento sobre o cérebro tem ajudado
* O nome da paciente foi alterado, juntamente com alguns detalhes do caso, para proteger a privacidade.
38
PARA ALGUMAS
PESSOAS, a
enxaqueca começa
com uma aura visual
cintilante que pode
shutterstock
borrar parcialmente
a visão. Veja o efeito
simulado na imagem
EM BUSCA DO ALÍVIO
Os primeiros tratamentos para a enxaqueca
eram fundamentados na superstição e feiti-
çaria, que vão desde a sangria até a abertura
de um buraco no crânio para libertar espíritos
malignos. No século 19, a doença era conside-
rada psicossomática, juntamente com outros
Começando no córtex visual, na parte posterior do cérebro (à esquerda), a DAC se estende desconfortos, sofridos principalmente por
como uma onda de atividade elétrica (roxa) aproximadamente de 2 a 3 milímetros por mulheres. Essa noção começou a mudar em
minuto, desencadeando uma aura visual. Quando atinge os córtices parietal e temporal
meados do século 20. Diversos experimentos
(centro), pode causar dificuldades de fala, e, em seguida, sensações de formigamento
podem ocorrer em um dos membros ou na cabeça, na faixa sensorial (direita, verde). da década de 1940 realizados pelo neurologis-
ta Harold Wolff, do Centro Médico Cornell, do
Após qualquer fator desencadeador de crise (estresse, luzes Hospital de Nova York, levaram à moderna
brilhantes, alterações hormonais e falta de sono), a DAC começa teoria vascular da enxaqueca – notavelmente,
tipicamente no córtex visual, na parte posterior do cérebro, causando que a dor vem da dilatação e distensão dos va-
os padrões de ziguezague e a visão borrada, características clássicas sos sanguíneos dentro e fora do crânio. Wolff
da aura. A onda, então, pode viajar para a faixa sensorial do lobo mediu a amplitude das pulsações desses
parietal, induzindo a uma perturbação motora que começa pela mão canais no couro cabeludo durante as crises
e sobe até a face e a língua. Para alguns que sofrem com o problema, e após a administração de um fármaco que
a fala é a próxima a ser atingida, culminando na afasia. contraía os vasos. As descobertas levaram à
Enquanto atravessa o cérebro, a DCA pode estimular também adoção do primeiro e genuíno medicamento
neurônios de detecção de dor, diretamente ou por meio da de enxaqueca: tartarato de ergotamina, um
inflamação que excita as fibras que irrigam a superfície externa e poderoso vasoconstritor derivado do fungo
sensível do cérebro. Elas, então, liberam diversos neurotransmissores da cravagem que trazia um alívio do incômo-
químicos ou proteicos (entre eles o peptídeo CGRP) capazes de do que coincidia com a constrição da artéria
transmitir sinais de dor do sistema nervoso periférico para o central. no couro cabeludo.
No entanto, dois terços das pessoas com enxaqueca não Nas décadas de 1970 e 1980, os pesqui-
apresentam aura. Para elas, o gatilho da enxaqueca ainda está sadores da Universidade Erasmus de Roter-
em fase de pesquisa. A DAC pode ocorrer no tecido cerebral dam, na Holanda, e da Universidade de Nova
cortical ou subcortical, sem dar origem a sintomas sensoriais. Gales do Sul, em Sydney, na Austrália, obser-
Ou diferentes mecanismos podem gerar uma crise nas estruturas varam uma associação entre a enxaqueca e
cerebrais subcorticais que ajudam a processar luz, som e outros a serotonina: os níveis do neurotransmissor
estímulos sensoriais, além de influenciar os neurônios sensores caíam no sangue e subiam na urina durante
de dor. Ou talvez ambos funcionem em conjunto. Nos dois casos, as crises. Em outras palavras, o corpo estava
a DAC é uma complexa ponte entre a enxaqueca e seus notáveis perdendo serotonina. Eles descobriram tam-
sintomas neurológicos. bém que administrar o neurotransmissor,
40
Em estudos com novas drogas de anticorpos,
aproximadamente 70% dos pacientes tiveram queda de
mais de 50% no número de dias com dor de cabeça. Os
sintomas de enxaqueca desapareceram em um a cada seis
bem como a ergotamina, durante o ataque neos por todo o corpo; por isso, pessoas com
aliviava o desconforto. Na época, a ideia era doenças cardíacas ou com histórico de AVC
que a perda de serotonina fazia com que os não podem fazer uso.
vasos sanguíneos relaxassem e dilatassem, Os triptanos, porém, representavam um
causando enxaqueca. grande avanço para aqueles que poderiam,
No entanto, o tratamento com ergotami- então, tomar uma pílula ou injeção e inter-
na e o neurotransmissor pode trazer sérios romper uma dor de cabeça debilitante em 30
problemas. Ambos podem provocar efeitos minutos. Significavam também um triunfo na
colaterais preocupantes, como náuseas, vô- ciência do desenvolvimento de drogas – em-
mitos e cólicas – o que já costuma ocorrer bora a compreensão da neurobiologia subja-
com quem sofre de enxaqueca. A ergotamina cente não fosse tão clara. Como as pesquisas
pode causar também perigosas reduções no revelariam em breve, a principal causa da en-
fluxo sanguíneo. xaqueca não era a dilatação dos vasos sanguí-
Na década de 1970, o farmacologista Pa- neos da cabeça. E a maior colaboração do trip-
trick Humphrey, na época na empresa farma- tano não estava relacionada com a constrição
cêutica britânica Glaxo, começou a procurar desses canais. Tratava-se de algo mais. E o
uma maneira de reproduzir os efeitos bené- desenvolvimento de drogas mais eficazes de-
ficos da serotonina sem os prejuízos. Hum- penderia do desvendamento desse mistério.
phrey trabalhava com a suposição de que a
dilatação dos vasos sanguíneos dentro e fora MÍSSEIS GUIADOS
do crânio era responsável pela enxaqueca e Na década de 1980, em torno da mesma épo-
de que drogas que podiam se ligar aos recep- ca em que Humphrey estava trabalhando com
tores de serotonina poderiam proporcionar os triptanos, o neurocientista Lars Edvinsson,
alívio. Ele se empenhou no desenvolvimento da Universidade de Lund, na Suécia, encon-
de um fármaco que pudesse fazer exatamente trou um composto conhecido como peptídeo
isso, e o resultado, após uma década, foi o su- relacionado ao gene da calcitonina (CGRP, na
matriptano, que, assim como a ergotamina, sigla em inglês) nos nervos que cercam os
tanto aliviava a dor como contraía os vasos vasos sanguíneos dentro do crânio. O com-
sanguíneos. Seria a primeira droga da família posto tinha sido descoberto recentemente
dos triptanos. no sistema nervoso central e no periférico.
Entretanto esses medicamentos também As evidências sugeriam que ele servia como
têm limitações. Trazem alívio total para ape- mensageiro químico da dor. O CGRP é tam-
nas aproximadamente 30% dos que sofrem bém um vasodilatador potente. Edvinsson,
com enxaqueca. No entanto, para muitos, a que estuda o fornecimento de sangue para o
dor de cabeça retorna no mesmo dia. Os trip- cérebro, acreditava que isso podia contribuir
tanos também podem desencadear também para o desenvolvimento da enxaqueca.
diversos efeitos colaterais desagradáveis, Nas duas décadas seguintes, experimentos
como sonolência, tonturas, formigamento, de muitos pesquisadores confirmaram a ideia.
aperto no peito e rubor no rosto e pescoço. Os cientistas descobriram, por exemplo, que
As drogas podem contrair os vasos sanguí- os níveis sanguíneos do CGRP aumentavam
fevereiro 2018 • mentecérebro 41
especial •
Terminação
do nervo trigêmeo
CGRP Anticorpo
Antagonista Vaso
de CGRP sanguíneo
Receptor de CGRP
Nervo trigêmeo
Receptor
de CGRP
Anticorpo
Célula glial
Vasos sanguíneos
CGRP
Anticorpo
com dor de cabeça caiu mais da metade. E um mais de 85% das pessoas que iniciam o trata-
em cada seis pacientes ficou completamente mento com os medicamentos preventivos de
livre da enxaqueca durante o acompanhamen- hoje interrompem em um ano.
to. A melhora apareceu logo após três dias da Ainda assim, o tratamento com anticorpos
administração do anticorpo. Várias indústrias monoclonais não será para todos. A adminis-
farmacêuticas estão desenvolvendo pesquisas tração do medicamento é feita por via intrave-
e, salvo imprevistos, o primeiro desses anticor- nosa (o que exige uma visita ao médico a cada
pos estará disponível até o fim de 2018. três meses) ou depende de injeção mensal
Os monoclonais serão um salto à fren- autoaplicada. E ainda há dúvidas sobre a segu-
te dos tratamentos preventivos atualmente rança de longo prazo no que diz respeito à obs-
disponíveis, que incluem betabloqueadores, trução de uma proteína encontrada por todo o
como propranolol e diversos medicamentos corpo. Essa preocupação é particularmente re-
para pressão arterial. As drogas mais antigas levante para pacientes com doenças cardiovas-
têm respostas semelhantes, mas um efeito culares e hipertensão, porque se acredita que o
perceptível pode levar semanas ou meses CGRP seja importante na manutenção do tono
para aparecer. Muitas vezes, a dose precisa dos vasos sanguíneos e na compensação do
ser aumentada ao longo do tempo e os efei- baixo fornecimento de sangue para o cérebro
tos colaterais, como ganho de peso, perda de e o coração durante AVCs e ataques cardíacos.
cabelo, disfunção cognitiva e sedação, podem Não está claro também se os fármacos s
impedir os pacientes de atingir uma quantida- seguros durante a gravidez – uma conside
de eficaz ou continuar com a droga. De fato, relevante porque a maioria das pessoas
44
enxaqueca que procura tratamento são mulhe- servada em ensaios anteriores parece estar
res em idade fértil. Muitas vezes, o problema relacionada especificamente com as drogas, e
diminui na menopausa. não com o bloqueio do CGRP.
Para os pacientes que não podem fazer Uma nova família de drogas chamadas de
uso dos anticorpos ou não são beneficiados ditanas, que visam receptores de serotonina,
por eles, e para muitos que preferem tratar en- promete grandes resultados. A lasmiditana,
xaquecas apenas quando surgem, permanece atualmente em desenvolvimento, é seletiva
a necessidade de tratamento seguro, eficaz e para receptores de serotonina localizados
personalizado das crises agudas. Idealmente, apenas em neurônios e não em vasos sanguí-
os analgésicos seriam em forma de pílula e neos, o que significa que deve ser segura para
não causariam a constrição dos vasos san- os 20% dos pacientes com enxaqueca que têm
guíneos, como os triptanos. Duas classes de fatores de risco cardiovasculares. Em um re-
medicamentos em fase de desenvolvimento cente ensaio clínico com lasmiditana, 2.231 in-
prometem esses resultados. Ensaios clínicos divíduos que receberam tratamento para uma
de antagonistas de receptores de CGRP mais única crise, um terço dos pacientes ficou sem
recentes demonstram serem estes tão efica- dor em duas horas (um de nós, Dodick, aju-
zes quanto os triptanos, mas sem causar os dou a projetar o experimento e a analisar os re-
efeitos prejudiciais. A toxicidade hepática ob- sultados). Essa taxa de sucesso é semelhante
à dos triptanos, mas sem os riscos associados
à constrição dos vasos sanguíneos. De fato,
mais de 80% dos pacientes do estudo tiveram
um ou mais fatores de risco cardiovasculares.
Não surgiram problemas de segurança.
PARA SABER MAIS
- P R I -
F
- M E I R O S -
s primeiros R
- P S I C A -
psicanalistas – Atas da
sociedade psicanalítica E
- N A L I S -
de Viena. Vol. 1
( 906/1908). Sigmund U
- T A S -
Freud. Org. Marcelo
Checchia, Ronaldo Torres D
e Waldo Hoffmann. Hedra, VOL. 1
1906/1908
As noites de quarta-feira
Diferentemente dos textos clínicos e teóricos de Freud, ou de suas
correspondências, o livro convida o leitor a acompanhar de as vívidas
discussões vivas entre o criador da psicanálise e alguns de seus interlocutores
mais próximos
Há momentos em que nada parece interessante, o que fez o garotinho que protagoniza a história
brinquedo nenhum parece ter graça. Mesmo no escrita pelo sul-africano Hiawyn Oram e ilustrada
caso de gente grande, livros, filmes ou tarefas pelo japonês Satoshi Kitamura.
que em geral atraem nossa atenção de repente O personagem de No sótão, lançado pela Pequena
se tornam (ao menos momentaneamente) Zahar, encontra uma escada que lhe permite chegar
desinteressantes. É o sentimento de tédio, que a lugares inusitados, que o distraem do tédio. Para
faz com que tudo pareça sem graça. Para o escapar da sensação de solidão, o menino brinca
neurocientista Daniel Weissman, pesquisador da com a própria criatividade e é assim que descobre
Universidade de Michigan em Ann Arbor, é possível amigos como uma família de camundongos e um
que nessas ocasiões algumas partes do nosso tigre listrado. Em suas aventuras, abre janelas que
cérebro estejam espontaneamente desconectadas. abrem outras e outras janelas – sem precisar acessar
Em seus estudos, ele constatou que quando nos a internet. Conhece uma aranha, aprende a fazer teias
cansamos de executar uma tarefa ou de prestar e percebe que um ninho de besouro pode ser um bom
atenção ao mundo a nossa volta colocamos lugar para descansar. Aventuras não faltam para o
parcialmente “em repouso” algumas áreas neurais, lugar aonde o menino descobre que pode ir: um sótão
diminuindo a atividade de comunicação. Segundo o particular, sem limites. Em tempos de brinquedos
cientista, parece haver uma diminuição significativa eletrônicos em alta e imagens que surgem detalhadas
da comunicação entre as áreas cerebrais ligadas em telas reluzentes, obedecendo ao comando de
ao autocontrole, visão e linguagem. E é nesse dedinhos ágeis, deixar de lado a diversão que vem
momento que podemos acessar outras conexões – pronta e recorrer à imaginação é fundamental à saúde
por exemplo, deixando que a imaginação flua. Foi mental das crianças. (Gláucia Leal, editora-chefe)