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Belo Horizonte | Veneza

DIRETOR EDITORIAL ÂYINÉ


Pedro Fonseca

COORDENAÇÃO EDITORIAL
André Bezamat

CONSELHEIRO EDITORIAL
Simone Cristoforetti

PRODUÇÃO EDITORIAL
Fábio Saldanha

EDITORA ÂYINÉ
Praça Carlos Chagas, 49 2° andar
CEP 30170-140 Belo Horizonte
+55 (31) 32914164
www.ayine.com.br
info@ayine.com.br
GERTRUDE STEIN

PICASSO

TRADUÇÃO Priscilla Catão


REVISÃO Livia Deorsola
TÍTULO ORIGINAL:

PICASSO

© 2016 EDITORA ÂYINÉ

IMAGEM DA CAPA: Julia Geiser


PROJETO GRÁFICO: Estúdio Âyiné
UMA PRODUÇÃO: Zuane Fabbris Editor
SUMÁRIO

Picasso 7
Epílogo 47

Biografia 49
A pintura no século XIX era feita apenas na França e por franceses, para além
disso, a pintura não existia, no século xx ela foi feita na França, mas por espanhóis.
No século XIX os pintores descobriram a necessidade de sempre ter um
modelo diante de si, no século XX descobriram que nunca deviam olhar para um
modelo. Lembro-me muito bem, estávamos entre 1904 e 1908, obrigávamos as
pessoas – ou elas mesmas se sentiam obrigadas – a olhar os desenhos de Picasso e
a primeira coisa, a mais impressionante, que todas elas diziam (ou que nós mesmos
dizíamos) era que ele tinha feito tudo aquilo de forma tão maravilhosa que parecia
que havia usado um modelo, no entanto ele jamais usara um. E hoje em dia os
jovens pintores mal sabem que existem modelos. Tudo muda, mas não sem um
motivo.
Em 1900, aos 19 anos, Picasso chegou a Paris, entrando num mundo de
pintores que tinham aprendido absolutamente tudo o que sabiam enxergando o
que estavam vendo. De Seurat a Courbet, todos olhavam com os próprios olhos e
então os olhos de Seurat começaram a ficar apreensivos com o que estavam vendo,
ele começou a duvidar se conseguia enxergar olhando. Matisse também começou a
duvidar do que seus olhos conseguiam enxergar. Havia, então, um mundo pronto
para Picasso, que carregava consigo não apenas toda a pintura espanhola, como
também o cubismo espanhol, que é a vida cotidiana da Espanha.
Seu pai era professor de pintura na Espanha e Picasso escrevia a pintura como
outras crianças escreviam suas primeiras palavras. Ele nasceu fazendo desenhos,
não os desenhos de uma criança, mas os desenhos de um pintor. Seus desenhos não
nasciam das coisas vistas, e sim de coisas expressadas, enfim, para ele, eram
palavras, e o desenho sempre foi sua única maneira de falar – e ele fala bastante.
Fisicamente Picasso lembra a mãe, cujo nome terminou adotando. Na
Espanha é costume levar o sobrenome do pai e da mãe. O sobrenome do pai de
Picasso era Ruiz e o de sua mãe, Picasso. Fosse adotar a maneira espanhola,
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assinaria Pablo Picasso y Ruiz, e de fato algumas de suas primeiras telas são
assinadas como “Pablo Ruiz”, mas claro que “Pablo Picasso” soava melhor, “Pablo
Picasso y Ruiz” era longo demais para se usar como assinatura, então logo em
seguida ele começou a assinar suas telas como “Pablo Picasso”.
O nome Picasso tem origem italiana, a família provavelmente veio de Gênova
e chegou à Espanha por Palma de Mallorca. Os familiares maternos trabalhavam
com prata. Assim como Pablo, sua mãe era pequena e robusta, com um corpo forte,
pele escura, cabelos lisos, quase pretos, e não muito finos, já sobre o pai, Picasso
costumava dizer que parecia um inglês, o que era motivo de orgulho tanto para ele
quanto para o pai, alto, cabelo meio ruivo e uma maneira quase inglesa de se impor.
Os únicos filhos do casal eram Picasso e sua irmã mais nova. Aos quinze anos,
ele fez retratos a óleo dela, com ótimo acabamento, eram obras de um pintor nato.
Picasso nasceu em Málaga, em 25 de outubro de 1881, mas recebeu quase
toda sua educação em Barcelona, onde seu pai até quase o fim da vida foi professor
da academia de Belas Artes, e onde morou até a morte, sua mãe e sua irmã
permaneceram na cidade. A mãe morreu lá muito recentemente.
Como eu dizia, aos 19 anos Picasso chegava a Paris, onde morou pelo resto de
sua vida, exceto por algumas raríssimas e curtas visitas à Espanha.
Ele estava em Paris.
Seus amigos em Paris eram escritores, e não pintores, afinal, por que ter
amigos pintores quando ele conseguia pintar como pintava? Obviamente ele não
precisava de pintores em seu dia a dia e assim foi durante toda sua vida.
Ele precisava de ideias – todos precisam –, mas não ideias para pintura, não,
ele precisava conhecer aqueles que estavam interessados em ideias, mas quanto a
saber pintar, ele já nasceu sabendo tudo a respeito.
Ele logo conheceu intimamente Max Jacob e em seguida Guillaume Apollinaire
e André Salmon, e depois nos conhecemos, eu e ele. E muito depois, a Jean Cocteau
e aos surrealistas, essa é sua história literária. Entre os pintores, seus amigos íntimos
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eram Braque e Derain, ambos tinham um lado literário e foi isso que motivou a
amizade com Picasso. Mas esse contato aconteceu depois, bem depois da amizade
com Max Jacob, Guillaume Apollinaire, André Salmon e comigo.
As ideias literárias de um pintor certamente não são iguais às ideias literárias
de um escritor. O egotismo de um pintor é completamente diferente do egotismo
de um escritor.
O pintor não se concebe como alguém que existe em si mesmo, ele se
concebe como um reflexo dos objetos que colocou em suas pinturas e vive nos
reflexos de seus quadros, já um escritor, um escritor sério, se concebe como alguém
que existe por si só e em si mesmo, de nenhuma maneira vive no reflexo de seus
livros, para escrever ele precisa antes que tudo exista em si mesmo, mas para um
pintor conseguir pintar, a pintura precisa primeiro estar pronta, portanto o egotismo
de um pintor é de fato diferente do egotismo de um escritor, e é por isso que
Picasso, um homem que se expressava somente pela pintura, se relacionava apenas
com escritores.
Em Paris os pintores contemporâneos tiveram pouca influência sobre ele, mas
toda pintura de um passado muito recente o comovia profundamente.
Ele sempre se interessou pela pintura como um ofício, e certo incidente ilustra
o que digo. Em Paris havia uma escultora americana que queria expor suas telas e
uma escultura no salão. Ela sempre expunha sua escultura no salão onde era hors
concours e não queria mais expor seus trabalhos no mesmo lugar. Então pediu que a
srta. Toklas emprestasse seu nome para que assinasse as obras. E assim foi feito. Os
quadros foram aceitos em nome da srta. Toklas e fizeram parte do catálogo da
exposição. Na noite do vernissage, Picasso estava em minha casa. Mostrei o
catálogo a ele e disse que as obras eram de Alice Toklas, que nunca pintou na vida,
nunca teve um quadro exibido no salão. Picasso corou, ele disse não é possível,
reagiu, então ela pinta em segredo há bastante tempo. Nunca pintou, eu lhe disse.
Não é possível, não é possível, repetiu, o quadro exposto é um quadro ruim, mas se
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até mesmo alguém que nunca pintou antes tem sua primeira obra aceita num salão,
bem, então eu não entendo absolutamente nada. Calma, disse eu, ela não pintou o
quadro, apenas deixou que usassem seu nome. Ainda um pouco transtornado, ele
disse não, não, a pessoa precisa saber alguma coisa para pintar um quadro, alguma
coisa ela precisa saber.
Bem, ele estava em Paris, toda a pintura o influenciava e seus amigos literários
o estimulavam imensamente. Não quero dizer com tudo isso que ele era menos
espanhol. Porém, por um breve período, certamente foi mais francês. Acima de
tudo, o que é bem curioso, a pintura de Toulouse-Lautrec o interessava bastante,
porque, como foi dito, Lautrec também tinha um lado literário.
Quero insistir na questão de que o dom de Picasso é absolutamente o dom de
um pintor e de um desenhista, ele é um homem que sempre precisa se esvaziar, se
esvaziar por completo, é necessário que ele seja muito estimulado para ficar
suficientemente ativo e se esvazie por completo.
Ele sempre viveu a vida assim.
Depois dessa inegável influência francesa, ele se tornou completamente
espanhol outra vez. Logo seu temperamento espanhol voltaria a ser muito real em
seu íntimo. Retornou à Espanha em 1902 e as obras conhecidas como sendo de seu
período azul foram o resultado desse retorno.
Depois da temporada parisiense, a tristeza da Espanha e a monotonia da
coloração espanhola atingiram-no fortemente. Pois nunca se deve esquecer que a
Espanha não é como outros países do Sul, ela não é colorida, as cores na Espanha se
resumem ao branco preto prata ou dourado, não existe nada de vermelho ou de
verde. Nesse sentido, a Espanha não é nada sulista, é oriental, as mulheres de lá
vestem mais preto do que outras cores, a terra é seca e tem cor dourada, o céu é de
um azul quase preto, as noites estreladas também são pretas ou de um azul muito
escuro e o ar é muito claro, então tudo e todos são pretos. Mesmo assim eu gosto
da Espanha. Tudo que era espanhol impressionou Picasso em seu segundo retorno
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ao país e o resultado é o que se conhece como o período azul de seu trabalho. A
influência francesa que originara seu primeiro período ou de Toulouse-Lautrec
acabara e ele voltara à sua verdadeira personalidade, sua personalidade espanhola.
E eis que, em 1904, Picasso volta a Paris.
Ele morava em Montmartre, na Rue Ravignan, cujo nome mudou, mas da
última vez em que estive lá ela ainda tinha seu antigo charme, a pequena praça
estava idêntica à primeira vez em que a vi, um carpinteiro trabalhava numa esquina,
havia crianças, as casas continuavam praticamente iguais, o velho ateliê onde todos
eles moraram ainda estava de pé, talvez já então – pois estive lá da última vez há
dois ou três anos –, talvez o prédio tenha começado a ser demolido para outro ser
construído. É natural que se construam prédios novos, mas mesmo assim ninguém
gosta quando as coisas mudam e a Rue Ravignan daquela época era realmente
especial, era a Rue Ravignan, e foi lá que aconteceram muitas coisas importantes
para a história da arte século XX.
Enfim Picasso retornara a Paris mais uma vez, foi em torno de 1904, e ele
trouxera consigo as pinturas do período azul, um pouco da paisagem dessa
temporada que pintara em Barcelona. De volta a Paris, ele voltou a ser um pouco
francês mais uma vez, ou seja, foi seduzido pela França novamente, estava muito
próximo de Guillaume Apollinaire, Max Jacob e André Salmon e eles se viam
constantemente e isso mais uma vez amenizou sua solenidade espanhola. E então,
de novo precisando se esvaziar completamente de tudo que tinha, Picasso se
esvaziou do período azul, da renovação do espírito espanhol, e começou a pintar o
que hoje é chamado de seu período rosa ou arlequim.
Pintores sempre gostaram de circo, mesmo hoje, quando o circo foi
substituído pelo cinema e por boates, eles gostam de se lembrar dos palhaços e dos
acrobatas circenses.
Nessa época todos eles se encontravam pelo menos uma vez por semana no
Cirque Medrano e lá se sentiam muito lisonjeados por poderem ficar mais próximos
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dos palhaços, dos malabaristas, dos cavalos e seus cavaleiros. Aos poucos Picasso foi
se tornando cada vez mais francês, o que o levou ao período rosa ou arlequim. Em
seguida ele se esvaziou disso também, da poesia delicada da França e do circo, se
esvaziou das duas coisas, assim como se esvaziara do período azul e eu o conheci no
fim do período arlequim.
O primeiro quadro que tivemos dele é rosa ou arlequim, Garota com um cesto
de flores, fora pintado no apogeu do período arlequim, cheio de graça e delicadeza e
charme. Depois disso aos poucos seu desenho se enrijeceu, suas linhas se tornaram
mais firmes, suas cores mais potentes, naturalmente Picasso não era mais um rapaz,
era um homem, e então em 1905 ele pintou meu retrato.
Realmente não sei por que justamente nessa época ele quis trabalhar a partir
de uma modelo, mas tudo o empurrava nessa direção. Estava completamente
esvaziado da inspiração do período arlequim, sua nacionalidade espanhola voltava à
tona e eu era americana, e, de certa maneira, os Estados Unidos e a Espanha têm
algo em comum, talvez tenha sido por todas essas razões que Picasso quis que eu
posasse para ele. Nós nos encontrávamos na casa de Sagot, o marchand, de quem
tínhamos comprado Garota com um cesto de flores. Posei para ele durante todo o
inverno, oitenta vezes, e no final ele cobriu a cabeça com tinta, disse que não
conseguia mais olhar para mim, e foi embora mais uma vez para a Espanha. Foi a
primeira vez, desde o período azul e imediatamente após seu retorno da Espanha,
que ele pintou a cabeça sem precisar me ver novamente e ele me deu o quadro e eu
fiquei – e continuo – satisfeita com meu retrato, para mim, aquela sou eu, é a única
reprodução de mim que sempre sou eu.
Uma história engraçada.
Um dia, um rico colecionador veio até minha casa e quando viu meu retrato,
quis saber quanto eu tinha pago por ele. Nada, disse eu, nada?!, exclamou ele.
Nada, respondi, naturalmente ele me deu o quadro. Alguns dias depois contei isso a

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Picasso e ele sorriu. Ele não entende, reagiu, que naquela época a diferença entre
uma venda e um presente era desprezível.
Em 1909, Picasso estava de volta à Espanha e de lá trouxe consigo algumas
paisagens que certamente eram o começo do cubismo. Essas três paisagens eram
extraordinariamente realistas, e mesmo assim representam o começo do cubismo.
Picasso por acaso tirara algumas fotografias da vila que havia pintado, e eu sempre
achei hilário quando todos protestavam contra a fantasia dos quadros que tentavam
se parecer a fotografias, que tentavam fazê-los enxergar quase idênticos às
fotografias. Oscar Wilde dizia que a natureza fez apenas copiar a arte e realmente
há alguma verdade nisso e as vilas espanholas certamente eram tão cubistas quanto
esses quadros.
Então Picasso mais uma vez foi batizado espanhol.
Depois começou o longo período que Max Jacob chamou de Era Heroica do
Cubismo, e foi uma era heroica. Todas as eras são heroicas, ou seja, há heróis em
todas as eras em que são feitas coisas que não podem deixar de ser feitas, e nem
eles nem os outros entendem como nem por que essas coisas acontecem. Ninguém
jamais entende, antes de elas serem completamente criadas, o que está
acontecendo, e ninguém entende nada do que fez antes de terminar tudo. Picasso
disse uma vez que aquele que cria uma coisa é obrigado a torná-la feia. Com a
tentativa de criar a intensidade e o esforço de criar essa intensidade, o resultado
sempre produz uma certa feiura, aqueles que surgem depois podem tornar essa
coisa uma coisa bonita porque sabem o que estão fazendo, pois a coisa já foi
inventada, mas como o inventor não sabe o que vai inventar, a coisa que ele cria
deverá inevitavelmente ter sua feiura.
Neste período de 1908-1909, Picasso quase nunca expunha seus quadros,
seus seguidores expunham os seus, mas ele não. Ele disse que quando uma pessoa
comparece a uma exposição e olha os quadros de outros pintores, sabe que eles são
ruins, não há nenhuma desculpa para isso, eles simplesmente são ruins, mas quando
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são os quadros da própria pessoa, ela sabe por que eles são ruins e portanto eles
não são irremediavelmente ruins. Nessa época ele gostava de dizer algo que
também repetia posteriormente, as pessoas que compreendem são pouquíssimas e
depois, quando todos o admiram esses pouquíssimos que compreendiam, eles
continuam lá, e são tão poucos quanto antes.
Então Picasso voltou da Espanha, 1908, com suas paisagens que eram o
começo do cubismo. Para realmente criar o cubismo ele ainda teria um longo
caminho a percorrer, mas o começo já tinha se dado.
Pode-se dizer que o cubismo tem uma base tripla. Primeiramente. O século XIX
tinha exaurido sua necessidade de ter um modelo, pois a verdade de que as coisas
vistas com os olhos eram as únicas coisas reais tinha perdido sua importância.
As pessoas realmente não mudam de uma geração para a outra, desde o
princípio da história as pessoas são praticamente o que sempre foram, elas têm as
mesmas necessidades, os mesmos desejos, as mesmas virtudes e as mesmas
qualidades, os mesmos defeitos, de fato nada muda de uma geração para outra
exceto as coisas vistas e são as coisas vistas que constroem essa geração, em outras
palavras, nada muda nas pessoas de uma geração para a outra exceto a maneira de
ver e de ser visto, as ruas mudam, o modo de transporte nas ruas muda, as
construções mudam, os confortos das casas mudam, mas as pessoas de uma
geração para outra não mudam. Nas artes o criador é como todo o resto das
pessoas vivas, ele é sensível às mudanças pois a vida e sua arte são inevitavelmente
influenciadas pela maneira como cada geração está vivendo, pela maneira como
cada geração está sendo educada e pela maneira como as pessoas se movem, tudo
isso cria a composição dessa geração.
Neste verão li um livro escrito por um dos monges da Abadia de Hautecombe,
sobre um dos abades de Hautecombe, e nele o autor escreve sobre a fundação da
abadia e conta que o primeiro local foi num monte perto de uma estrada bem
movimentada. Então perguntei a todos os meus amigos franceses o que significava
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uma estrada bem movimentada no século xv, se isso significava que as pessoas
passavam por ela uma vez por dia ou uma vez por semana. Mais do que isso, eles
me responderam. Então a composição daquela época dependia da maneira como as
estradas eram frequentadas, a composição de cada época depende da maneira
como as estradas movimentadas são frequentadas, as pessoas continuam as
mesmas, a maneira como suas estradas são frequentadas é o que muda de um
século para o outro e é isso que constrói a composição que está diante dos olhos de
cada um daquela geração e é isso que constrói a composição que um criador cria.
Eu me lembro muito bem de estar com Picasso no Boulevard Raspail no
começo da guerra quando o primeiro caminhão camuflado passou. Era noite, e
tínhamos ouvido falar da camuflagem, mas ainda não a tínhamos visto e Picasso
impressionado olhou para ela e depois exclamou, sim fomos nós que fizemos isso,
isso é cubismo.
Na verdade a composição dessa guerra, 1914-1918, não foi a composição de
todas as guerras anteriores, a composição não era uma composição em que havia
um homem no centro cercado por muitos outros homens mas, uma composição
que nem tinha começo nem fim, uma composição em que um canto era tão
importante quanto outro canto, na verdade a composição do cubismo.
Atualmente outra composição está começando, cada geração tem sua
composição, as pessoas não mudam de uma geração para outra, mas a composição
que as cerca muda.
Agora temos Picasso voltando a Paris depois que o período azul da Espanha,
1904, passou, depois que o período rosa da França, 1905, passou, depois que o
período negro, 1907, passou, com o começo do seu cubismo, 1908, na mão. A hora
chegara.
Comentei que existiram três razões para a criação desse cubismo.
Primeira. A composição, pois a maneira de viver alterou a composição da vida
se estendera e cada coisa era tão importante como qualquer outra. Em segundo
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lugar, a fé no que os olhos estavam vendo, ou seja, a crença na realidade da ciência,
começara a diminuir. Para garantir que tinha descoberto muitas coisas, a ciência
continuaria descobrindo coisas, mas o princípio que fundamentava tudo isso tinha
sido completamente compreendido, a alegria da descoberta estava quase no fim.
Em terceiro lugar, o enquadramento da vida, a necessidade de que um quadro
exista em sua moldura e permaneça em sua moldura tinha acabado. Um quadro
ficar na moldura era algo que sempre existira e agora os quadros tinham começado
a querer sair de suas molduras e isso também criou a necessidade de o cubismo
existir.
A hora tinha chegado e o homem. Muito naturalmente foi um espanhol que o
sentiu e o realizou. Os espanhóis talvez sejam os únicos europeus que nunca
realmente têm a impressão de que as coisas vistas são reais, de que as verdades da
ciência levam ao progresso. Os espanhóis não suspeitam da ciência, eles
simplesmente nunca reconheceram a existência do progresso. Enquanto outros
europeus ainda estavam no século XIX, a Espanha, por causa da sua falta de
organização, e os Estados Unidos, por seu excesso de organização, foram os
fundadores naturais do século XX.
O cubismo estava começando. Ao voltar da Espanha Picasso voltou para a Rue
Ravignan mas a Rue Ravignan estava quase no seu fim, ele começou a se mudar de
um estúdio para outro no mesmo prédio e quando o cubismo estava realmente bem
estabelecido, ou seja, no momento dos quadros chamados Ma Jolie, 1910, ele tinha
saído da Rue Ravignan e pouco tempo depois saiu de Montmartre, 1912, e nunca
mais voltou.
Depois de sua volta da Espanha com suas primeiras paisagens cubistas à mão,
1909, uma longa luta começou.
O cubismo começou com paisagens, mas então Picasso, de modo inevitável e
imediato, começou a tentar usar a ideia que tinha para expressar pessoas. Os
primeiros quadros cubistas de Picasso foram paisagens, depois pintou natureza-
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morta mas, espanhol que era, sempre soube que as pessoas eram o que mais o
interessava. Paisagens e natureza-morta, a sedução das flores e das paisagens, da
natureza-morta, eram inevitavelmente mais sedutoras para os franceses do que
para os espanhóis, Juan Gris sempre trabalhou com natureza-morta, mas para ele a
natureza-morta não era uma sedução e sim uma religião, só que o êxtase das coisas
vistas, apenas vistas, nunca sensibiliza a alma espanhola.
A cabeça o rosto o corpo humano é tudo que existe para Picasso. Lembro que
uma vez estávamos andando e vimos um homem culto sentado num banco, antes
da guerra era possível que um homem culto estivesse sentado num banco, e Picasso
disse, olhe só aquele rosto, tão velho quanto o mundo, todos os rostos são tão
velhos quanto o mundo.
E então Picasso começou sua longa luta para expressar cabeças rostos e
corpos de homens e mulheres na composição que era sua composição. O começo
de sua luta foi difícil e sua luta continua sendo difícil, as almas das pessoas não o
interessam, ou seja, para ele a realidade da vida está na cabeça, no rosto e no corpo
e para ele isso é tão importante, tão persistente, tão completo que não é necessário
pensar em nenhuma outra coisa, e a alma é outra coisa.
A luta então começara.
A maioria das pessoas é mais predeterminada em relação ao que é a forma
humana e o rosto humano do que em relação ao que são flores, paisagens,
natureza-morta. Não todas. Lembro que numa das primeiras exposições de Van
Gogh havia uma americana e ela disse para o amigo, acho esses retratos de pessoas
muito interessantes porque não sei como as pessoas são, mas não gosto nem um
pouco desses quadros de flores porque sei muito bem como as flores são.
A maioria das pessoas não é assim. Não estou dizendo que elas conhecem
melhor as pessoas do que as outras coisas, mas elas têm convicções mais fortes a
respeito do que as pessoas são do que a respeito do que outras coisas são.

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Picasso, nesse período, costumava dizer que espanhóis não conseguem
reconhecer pessoas ao ver suas fotografias. Então os fotógrafos faziam duas
fotografias, um homem de barba e um homem sem barba, e quando os homens
saíam de casa por causa do serviço militar, enviavam um desses dois tipos de
fotografia para a família e a família sempre as achava bem parecidas.
É estranho com tudo, é estranho com as pinturas, uma pintura pode parecer
extraordinariamente estranha para uma pessoa e depois de um tempo não apenas
ela não parece mais estranha, como também é impossível achar o que havia de
estranho nela.
Uma criança vê o rosto da mãe, ela vê de uma maneira completamente
diferente da de outras pessoas, não estou falando do espírito da mãe, mas das
feições e do rosto inteiro, a criança o vê de muito perto, é um rosto grande para os
olhos de um pequeno, certamente a criança, durante um curto período, enxerga
apenas parte do rosto da mãe, ela conhece uma feição e não outra, um lado e não
outro, e à sua própria maneira Picasso conhece rostos como uma criança os
conhece e a cabeça e o corpo. Ele estava na época começando a tentar expressar
essa consciência e a luta era estarrecedora porque, com a exceção de algumas
esculturas africanas, ninguém jamais tentara expressar coisas vistas não como
alguém as conhece, mas como elas são quando alguém as vê sem se lembrar de ter
olhado para elas.
Na verdade em boa parte do tempo a pessoa enxerga apenas uma feição da
pessoa com quem está, as outras feições estão cobertas por um chapéu, pela luz,
pelas roupas para esporte e todos estão acostumados a completar o todo com base
no próprio conhecimento, mas Picasso quando via um olho, o outro olho não existia
para ele e apenas o olho que ele via existia para ele, e como pintor, particularmente
como um pintor espanhol, ele tinha razão, a pessoa enxerga o que enxerga, o resto
é reconstrução da memória e os pintores não têm nada a ver com reconstruções,
nada a ver com memória, eles se preocupam apenas com coisas visíveis, e então o
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cubismo de Picasso era um esforço para fazer um quadro dessas coisas visíveis e o
resultado foi perturbador para ele e para os outros, mas o que mais ele poderia
fazer?, um criador só pode fazer uma única coisa, ele pode continuar, é tudo que ele
pode fazer.
O começo dessa luta para expressar as coisas, apenas as coisas realmente
visíveis, foi desencorajador, até mesmo para seus amigos mais íntimos, até mesmo
para Guillaume Apollinaire.
Nessa época as pessoas tinham começado a se interessar bastante pela
pintura de Picasso, não uma quantidade enorme de pessoas, mas mesmo assim
várias, e então Roger Fry, um inglês, ficou muito impressionado com meu retrato e o
reproduziu na The Burlington Magazine, o retrato feito por Picasso ao lado de um
retrato feito por Rafael, e ele também ficou muito perturbado. Picasso me disse
certa vez, bastante amargurado, eles dizem que desenho melhor do que Rafael e
provavelmente eles têm razão, talvez eu realmente desenhe melhor, mas se sei
desenhar tão bem quanto Rafael tenho no mínimo o direito de escolher o que quero
e eles deviam reconhecer isso, esse direito, mas não, eles dizem não.
Eu era a única pessoa que o compreendia nessa época, talvez por estar
expressando a mesma coisa na literatura, talvez por ser americana, e, como
costumo dizer, espanhóis e americanos têm uma espécie de entendimento das
coisas que é igual.
Posteriormente Derain e Braque o seguiram e o ajudaram, mas nessa época a
luta continuou sendo uma luta para Picasso e não para os outros.
Agora ainda estamos na história do começo dessa luta.
Como eu disse, no fim do período arlequim ou rosa, Picasso começou a
enrijecer seus traços, sua construção e sua pintura e depois ele foi à Espanha mais
uma vez, e ficou lá o verão inteiro e quando voltou iniciou algumas coisas que eram
mais absolutas e isso o levou a fazer o quadro Les Demoiselles d’Avignon [As

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senhoritas de Avignon]. Ele foi à Espanha de novo e quando voltou trouxe consigo
três paisagens que foram o verdadeiro começo do cubismo.
É certamente verdade que nas aquarelas de Cézanne havia uma tendência de
cortar o céu não em cubos, mas em divisões arbitrárias, e o pontilhismo de Seurat e
de seus seguidores também acontecera, mas não teve nada a ver com o cubismo,
pois todos esses outros pintores se preocupavam com a técnica de expressar mais e
mais o que estavam vendo, a sedução das coisas vistas. Então, de Coubert a Seurat,
eles viam as próprias coisas, pode-se dizer que de Courbet a Van Gogh e a Matisse
eles viam a natureza como ela é, ou seja, como todos a veem.
Um dia perguntaram a Matisse se, quando ele comia um tomate, ele o
enxergava da mesma maneira como o pintava. Não, disse Matisse, quando eu o
como o enxergo da mesma maneira como todos o enxergam, e isso é verdade de
Courbet a Matisse, os pintores viam a natureza como todos a viam e a preocupação
deles era expressar essa visão, e fazer isso com mais ou menos ternura, sentimento,
serenidade, perspicácia, mas expressá-la como o mundo inteiro a enxergava.
As paisagens de Courbet sempre me impressionam, pois ele não precisou
mudar a cor para dar a visão de natureza que todos têm. Mas Picasso não era assim,
quando ele comia um tomate o tomate não era o tomate de todos, e seu esforço
não era o de expressar à sua própria maneira as coisas vistas como todos as veem,
mas expressar a coisa como ele a vê. Van Gogh, mesmo em seu momento mais
fantástico, mesmo quando cortou a orelha, estava convencido de que uma orelha é
uma orelha como todos a enxergam, a necessidade de ter a orelha talvez seja
diferente, mas a orelha era a mesma orelha que todos enxergavam.
Mas para Picasso, por ele ser espanhol, era completamente diferente. Bem,
Dom Quixote era espanhol, ele não imaginava coisas, ele via coisas e não era um
sonho, não era insanidade, ele realmente as via.
Bem, Picasso é um espanhol.

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Fiquei muito mais impressionada nesse período, quando o cubismo estava um
pouco mais desenvolvido, com a maneira como Picasso unia objetos e os
fotografava, guardei uma dessas fotografias, e pela força da sua visão não era
necessário pintar o quadro. Unir os objetos já os transformava em outras coisas, não
em outro quadro, mas em algo diferente, em coisas como Picasso as enxergava.
Mas, como costumo dizer, espanhóis e americanos não são como os
europeus, não são como os orientais, eles têm algo em comum, que é o fato de não
precisarem de religião nem de misticismo e de não acreditarem na realidade como o
mundo a conhece, nem mesmo quando a veem. Na verdade a realidade para eles
não é real e é por isso que existem arranha-céus e a literatura americana e a pintura
e a literatura espanholas.
Então Picasso começou e aos poucos surgiu o quadro Les Demoiselles
d’Avignon e quando isso aconteceu foi terrível. Lembro que Tschoukine, que tanto
admirava a pintura de Picasso, estava em minha casa e disse, quase chorando, que
perda para a arte francesa.
No começo, quando Picasso queria expressar cabeças e corpos não como
todos os enxergavam, o que era problema dos outros pintores, mas como ele os
enxergava, como alguém enxerga quando não conhece o que está vendo, no início
ele tinha a tendência inevitável de pintá-los como uma massa, como um escultor
faz, ou em perfil, como uma criança faz.
A arte africana começou a ter um papel na definição do que Picasso estava
criando em 1907, mas nas criações de Picasso a arte africana era na verdade como
as outras influências que num momento ou outro afastaram Picasso da maneira de
pintar que era sua, a arte africana e seus amigos cubistas franceses eram na verdade
coisas que consolavam a visão de Picasso em vez de ajudá-la, a arte africana, o
cubismo francês e mais tarde as influências italiana e russa eram como Sancho
Pança para Dom Quixote, queriam desviar Picasso da sua verdadeira visão que era
sua visão espanhola. As coisas que Picasso enxergava eram as coisas que tinham sua
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própria realidade, uma realidade não de coisas vistas, mas de coisas que existem. É
difícil existir sozinho e não conseguir ficar sozinho com as coisas, Picasso
primeiramente se apoiou na arte africana e depois em outras coisas.
Voltemos ao início do cubismo.
Ele começou a longa luta, não para expressar o que conseguia enxergar, mas
para não expressar as coisas que ele não conseguia enxergar; em outras palavras, as
coisas que todos têm certeza de que enxergam mas que na verdade não enxergam.
Como já mencionei, ao olhar um amigo a pessoa enxerga apenas uma ou outra
feição de seu rosto, na verdade Picasso não era nada simples e ele analisava sua
visão, ele não queria pintar as coisas que ele mesmo não enxergava, os outros
pintores se satisfaziam com a aparência, sempre com a aparência, que não era de
maneira alguma o que enxergavam e sim o que sabiam que estava lá.
Há uma diferença.
Agora as datas desse início.
Picasso nasceu em Málaga, em 25 de outubro de 1881. Seus pais fixaram
residência definitiva em Barcelona em 1895 e o jovem Picasso foi pela primeira vez a
Paris em 1900, onde ficou por seis meses.
A primeira influência em Paris foi Toulouse-Lautrec, nesse momento e
também posteriormente, até ele voltar a Paris em 1901, a influência do seu primeiro
contato com Paris foi bastante forte, ele voltou para lá na primavera de 1901, mas
não para ficar por muito tempo, e voltou para Barcelona mais uma vez. O contato
direto com Paris pela segunda vez destruiu as influências de Paris, ele voltou
novamente para Barcelona e ficou lá até 1904, quando verdadeiramente se tornou
um cidadão de Paris.
Durante esse período, de 1901 a 1904, ele pintou seus quadros azuis. A dureza
e a realidade que não são a realidade vista, que é espanhola, fizeram com que ele
pintasse esses quadros que são a base de tudo que fez posteriormente.

22
Em 1904 ele voltou para a França, esqueceu toda a tristeza espanhola e a
realidade espanhola, entregou-se, vivendo na alegria das coisas vistas, na alegria do
sentimentalismo francês. Viveu na poesia de seus amigos, Apollinaire, Max Jacob e
Salmon, como Juan Gris costumava dizer, a França me seduz e continua me
seduzindo, e acho que é isso, a França para os espanhóis é mais uma sedução do
que uma influência.
Então o período arlequim ou rosa foi um período de enorme produção, a
felicidade da França induziu uma fertilidade inédita. A quantidade e o tamanho das
telas que ele pintou nesse curto período, 1904-1906, são extraordinários.
Um dia, quando eu e Picasso estávamos discutindo as datas de seus quadros e
eu disse que aquilo tudo não poderia ter sido pintado durante um único ano, Picasso
respondeu, você esqueceu que éramos jovens e que fazíamos muita coisa em um
ano?
É realmente difícil acreditar que o período arlequim durou apenas de 1904 a
1906, mas é verdade, não há como negar, sua produção após seu primeiro contato
decisivo com a França foi enorme. Esse foi o período rosa.
O período rosa terminou com meu retrato, a qualidade do desenho mudara e
seus quadros já tinham começado a ter menos leveza, menos alegria. Afinal, a
Espanha é a Espanha e não é a França e o século XX na França precisava de um
espanhol que expressasse sua vida e era o que Picasso estava destinado a fazer.
Realmente e verdadeiramente.
Quando digo que o período rosa é leve e feliz tudo é relativo, os temas que
eram felizes eram um pouco tristes, as famílias dos arlequins eram famílias
miseráveis, mas do ponto de vista de Picasso era um período leve e feliz e um
período em que ele se satisfazia enxergando as coisas como os outros. E então em
1906 esse período acabou.
Em 1906, Picasso trabalhou no meu retrato durante todo o inverno, ele
começou a fazer pinturas em cores que eram quase monótonas, ainda com um
23
pouco de rosa, mas principalmente com uma cor de terra, com os traços dos corpos
mais firmes, com bastante força, era o começo de sua própria visão. Era como o
período azul, só que sentido mais intensamente e com menos cores e menos
sentimentalismo. Sua arte começou a ser bem mais pura.
Então ele renovou sua visão, que era a de coisas vistas como ele as via.
Não se deve esquecer nunca que a realidade do século XX não é a realidade do
século XIX de maneira alguma e Picasso era o único na pintura que sentia isso, o
único. A luta para expressar isso se intensificava mais e mais. Matisse e todos os
outros viam o século XX com os olhos, mas viam a realidade do século XIX, Picasso era
o único na pintura que via o século XX com os olhos e via sua realidade e
consequentemente sua luta foi aterrorizante, aterrorizante para si mesmo e para os
outros, porque ele não tinha nada que o ajudasse, o passado não o ajudava, nem o
presente, ele tinha de fazer tudo sozinho e, apesar de sua enorme força, ele
frequentemente é fraco, ele se consolou e quase se permitiu ser seduzido por
outras coisas que o desviavam de seu caminho.
Ao voltar de uma breve viagem à Espanha, onde passara o verão em Gósol, ele
voltou e ficou íntimo de Matisse, por meio de quem descobriu a escultura africana.
Afinal não se deve esquecer que a escultura africana não é naïf, nem um pouco, é
uma arte muito convencional, baseada em tradição e essa tradição é uma tradição
derivada da cultura árabe. Os árabes criaram tanto a civilização quanto a cultura
para os negros e portanto a arte africana que era naïf e exótica para Matisse
também o era para Picasso, um espanhol, algo que era natural, direto e civilizado.
Então foi natural que isso reavivasse sua visão e o ajudasse a percebê-la e o
resultado foram os estudos que o levaram a criar o quadro de Les Demoiselles
d’Avignon.
Repetidas vezes ele não recomeçou, mas continuou após uma interrupção.
Essa é a vida dele.

24
Foi mais ou menos nessa época que seu contato com Derain e Braque se
iniciou e aos poucos o cubismo puro passou a existir.
Primeiramente houve o esforço, ainda mais difícil do que com natureza-morta
e paisagens, de criar seres humanos em cubos. Exausto, Picasso se esvaziou durante
1907 e se acalmou esculpindo. A escultura sempre teve o incômodo de permitir que
se dê uma volta completa em torno dela, e o material de que é feita passa uma
impressão de forma antes mesmo que o escultor comece a trabalhar.
Já eu prefiro a pintura.
Tendo feito um esforço prodigioso para criar pinturas de acordo com sua
compreensão da arte africana, Picasso foi seduzido, logo após 1908, por seu
interesse na forma escultural, e não pela visão da escultura africana, mas, ainda
assim, esse foi um passo intermediário na direção do cubismo.
O cubismo é parte do cotidiano na Espanha, está na arquitetura espanhola. A
arquitetura de outros países sempre acompanha a linha da paisagem, o que é
verdadeiro para a arquitetura italiana e para a arquitetura francesa, mas a
arquitetura espanhola sempre atravessa as linhas da paisagem e essa é a base do
cubismo, o trabalho de um homem que não está em harmonia com a paisagem, ele
se opõe a ela e é justamente isso que é a base do cubismo e que é o cubismo
espanhol. E essa foi a razão para colocar objetos reais nos quadros, o jornal real, o
cachimbo real. Aos poucos, depois de os pintores cubistas usarem objetos reais, eles
queriam ver se com a força da intensidade com que pintavam alguns desses objetos,
um cachimbo, um jornal, seriam capazes de substituir o real pelos objetos pintados,
que por seu realismo demandariam que o resto do quadro se contrapusesse a eles.
A natureza e o homem são opostos na Espanha, eles concordam na França e
essa é a diferença entre o cubismo francês e o cubismo espanhol e é uma diferença
fundamental.
O cubismo espanhol é então uma necessidade, claro que é.

25
Agora estamos em 1908 e mais uma vez Picasso está na Espanha e de lá voltou
com as paisagens de 1909, que são o início do cubismo clássico e classificado.
Essas três paisagens expressam exatamente o que desejo deixar claro, a
oposição entre a natureza e o homem na Espanha. O redondo se contrapõe ao
cubo, uma pequena quantidade de casas dá a impressão de uma maior quantidade
de casas para dominar a paisagem, a paisagem e as casas não combinam, o redondo
se contrapõe ao cubo, o movimento da Terra é contrário ao movimento das casas,
na verdade as casas não têm movimento pois a Terra tem seu movimento, é claro
que as casas não devem se mover.
Tenho aqui diante de mim o quadro de um jovem pintor francês, ele também
cria seu vilarejo com algumas casas, mas aqui as casas se movem com a paisagem,
com o rio, aqui tudo combina, não é nada espanhol.
Os espanhóis sabem que não existe concordância, nem entre a paisagem e as
casas, nem entre o círculo e o cubo, nem entre a grande quantidade e a pequena
quantidade, era natural que um espanhol expressasse isso num quadro do século XX,
o século em que não há concordância em nada, nem entre o círculo e o cubo, nem
entre a paisagem e as casas, nem entre a grande quantidade e a pequena
quantidade. Os Estados Unidos e a Espanha têm isso em comum, e é por isso que a
Espanha descobriu os Estados Unidos e os Estados Unidos, a Espanha, na verdade é
por isso que ambos encontraram seu momento no século XX.
Então Picasso voltou da Espanha após passar o verão em Barcelona e em
Horta de Ebro e mais uma vez foi para a Rue Ravignan, mas era o começo do fim da
Rue Ravignan, na verdade ele saiu da Rue Ravignan apenas em 1910, mas o retorno
em 1909 foi o fim da Rue Ravignan, que já dera a ele tudo que poderia, aquilo tinha
acabado e agora começava a era feliz do cubismo. Ainda havia bastante esforço, o
esforço contínuo de Picasso para expressar a forma humana, isto é, o rosto, a
cabeça, o corpo humano na composição que ele alcançara a essa altura, as feições
vistas separadamente existiam separadamente e ao mesmo tempo era tudo um
26
quadro, nessa época a luta para expressar isso era algo feliz em vez de triste. Os
cubistas encontraram um marchand, o jovem Kahnweiler, vindo de Londres, cheio
de entusiasmo, querendo realizar seu sonho de se tornar um marchand, e hesitando
um pouco aqui e ali e definitivamente se interessando por Picasso. Em 1907 e em
1908, em 1909 e em 1910, ele fez contratos com os cubistas, um depois do outro,
franceses e espanhóis, e ele se dedicou a seus interesses. A vida dos cubistas se
tornou muito divertida, com a alegria da França seduzindo Picasso mais uma vez,
todos eram alegres, havia mais e mais cubistas, a piada era falar de alguns como se
fossem os cubistas novatos, o cubismo já tinha sido suficientemente aceito para que
se pudesse falar de cubistas novatos, afinal eles existiam mesmo e todos eram
alegres. Picasso trabalhava bastante como sempre, mas todos eram alegres.
Essa alegria durou até ele sair de Montmartre em 1912. Depois disso, nenhum
deles voltou a ser tão alegre. A alegria deles naquela época era uma alegria
verdadeira.
Ele saiu da Rue Ravignan, em 1911, para se mudar para o Boulevard de Clichy
e depois saiu do Boulevard de Clichy e de Montmartre para fixar residência em
Montparnasse, em 1912. A vida entre 1910 e 1912 era muito alegre, foi o período
do quadro Ma Jolie, foi o período de todas aquelas naturezas-mortas, as mesas com
suas cores cinzentas, com sua variedade infinita de cinza, eles se divertiam de todas
as maneiras, continuavam colecionando escultura africana, mas a influência não era
mais tão nítida, colecionavam instrumentos musicais, objetos, cachimbos, mesas
com franjas, taças, pregos, e nessa época Picasso começou a se entreter fazendo
quadros com zinco, latão, colagem. Ele não esculpia, mas fazia quadros com todas
essas coisas. Restou somente um dos que foram feitos com papel, que ele me deu e
eu o emoldurei dentro de uma caixa. Ele gostava de papel, na verdade tudo dessa
época o agradava e tudo acontecia muito animadamente e com enorme alegria.
Tudo continuou assim, mas houve interrupções, Picasso saiu de Montmartre
em 1912 e a alegria que tomava conta de tudo continuou a mesma, tudo sempre
27
continuava igual, mas Picasso nunca voltou a ser tão alegre, o momento alegre do
cubismo acabara.
Ele saiu de Montmartre para Montparnasse, primeiramente para o Boulevard
Raspail, depois para Rue [Victor] Schoelcher e finalmente para Montrouge.
Durante todo esse tempo ele não voltou para a Espanha, mas durante o verão
ele ficava em Céret ou em Sorgues, o começo da vida em Montparnasse foi menos
alegre, ele trabalhava bastante como sempre. Foi na Rue [Victor] Schoelcher que ele
começou a pintar com tintas Ripolin, começou a usar uma espécie de papel de
parede como fundo e uma pequena imagem pintada no meio, começou a usar papel
colado mais e mais ao pintar seus quadros. Depois começou a dizer que papel dura
tanto quanto tinta e, afinal, se tudo envelhece junto, por que não, e ele também
dizia, afinal, depois ninguém vai ver o quadro, vão ver a lenda, a lenda criada pelo
quadro, então não faz diferença se o quadro dura ou não. Depois ele será
restaurado, um quadro vive por meio de sua lenda, não por qualquer outra coisa.
Ele era indiferente em relação ao que poderia acontecer com seus quadros, embora
pensar nisso o afetasse profundamente, bem é assim que a pessoa é, por que não, é
possível ser assim.
Muito tempo depois, quando ele já tinha alcançado bastante sucesso, disse
certo dia, sabe, sua família, todo mundo, se você é um gênio e não tem sucesso,
todos o tratam como se você fosse um gênio, mas quando você começa a fazer
sucesso, quando começa a ganhar dinheiro, quando realmente faz sucesso, sua
família e todos deixam de tratá-lo como um gênio, eles o tratam como um homem
que se tornou um sucesso.
Então o sucesso começara, não um grande sucesso, mas um sucesso
suficiente.
Nessa época, quando ainda estava na Rue [Victor] Schoelcher, Picasso usou o
alfabeto russo em seus quadros pela primeira vez. Isso pode ser visto em alguns dos
seus quadros do período, é claro que foi bem antes de seu contato com o balé
28
russo. Então a vida seguiu em frente. Seus quadros se tornaram mais e mais
brilhantes em cores, mais e mais cuidadosamente trabalhados e aperfeiçoados e
então aconteceu a guerra, era 1914.
Nessa época seus quadros eram muito brilhantes em cores, ele pintava
instrumentos musicais e notas musicais, mas as formas cúbicas eram substituídas
continuamente por superfícies e linhas, as linhas eram mais importantes do que
tudo, tinham vida por si só e dentro delas mesmas. Ele pintava seus quadros não por
meio dos seus objetos, mas por meio das linhas, nessa época essa tendência se
tornava cada vez mais nítida.
Então estourou a guerra e todos seus amigos foram para a guerra.
Picasso ainda estava na Rue [Victor] Schoelcher, Braque e Derain foram
convocados e estavam no fronte, mas Apollinaire ainda não tinha ido, ele não era
francês, por isso não foi convocado, mas logo depois se voluntariou. Todos foram
embora. Picasso estava só. A partida de Apollinaire deve ter sido a que mais o
afetou, Apollinaire, que escrevia para ele tudo que sentia em relação a se tornar um
soldado, estávamos em 1914 e agora tudo era guerra.
Depois ele se mudou da Rue [Victor] Schoelcher para Montrouge e foi durante
essa mudança que os objetos feitos de papel e zinco e latão foram perdidos e
quebrados. Depois em Montrouge sua casa foi assaltada, os ladrões roubaram sua
roupa de cama. Isso me fez pensar na época em que todos eles eram desconhecidos
e em quando Picasso disse que seria maravilhoso se um ladrão de verdade
aparecesse e roubasse seus quadros ou seus desenhos. Seus amigos certamente
pegavam alguns de vez em quando, furtavam, se preferir dizer assim, mas, quando
Picasso já não era completamente desconhecido, um verdadeiro ladrão profissional,
um ladrão de profissão, aparecera e preferira roubar a roupa de cama.

29
Então aos poucos o tempo passou. Picasso começou a conviver com Erik Satie
e Jean Cocteau e o resultado foi Parade,1 que encerrou esse período, o período do
cubismo real.
Jean Cocteau foi para Roma com Picasso, 1917, para preparar Parade. Foi a
primeira vez que vi Cocteau, eles se aproximaram juntos para se despedir, Picasso
estava muito alegre, não tão alegre quanto nos dias da grande alegria cubista mas
suficientemente alegre, ele e Cocteau estavam alegres, Picasso contente por estar
viajando, ele nunca tinha visto a Itália. Nunca gostara de viajar, sempre ia para onde
os outros já estavam, Picasso nunca tinha o prazer da iniciativa. Como costumava
dizer a respeito de si próprio, ele tinha o caráter fraco e deixava que os outros
decidissem, e as coisas são assim, fazer seu trabalho já bastava para ele, decisões
nunca são importantes, para que tomá-las?
Então o cubismo passaria ao palco. Foi o verdadeiro começo do
reconhecimento geral do trabalho de Picasso; quando um trabalho é colocado no
palco, claro que todos vão vê-lo e, de certa maneira, se é colocado no palco, todos
são obrigados a vê-lo e por serem obrigados a vê-lo, claro, devem aceitá-lo, não há
nada a fazer. Na primavera de 1917, Picasso estava na Itália com Diagilev e com
Cocteau e foi ele quem criou o cenário e o figurino de Parade, que é completamente
cubista. Foi um imenso sucesso, foi produzido e obteve reconhecimento, claro,
desde o momento em que foi colocado no palco, então claro que alcançou
reconhecimento.
A Grande Guerra continuou mas estava chegando ao fim, e a guerra do
cubismo também estava começando a acabar, nenhuma guerra jamais acaba, claro
que não, ela dá apenas a impressão de terminar. Então a luta de Picasso continuou,

1 Parade é uma peça de balé com música de Erik Satie, argumento de Jean Cocteau e

cenário e figurinos de Pablo Picasso. Foi produzido em 1916-17 por Sergei Diagilev, fundador
dos Ballets Russes. Na resenha sobre o balé escrita por Apillinaire, foi usado pela primeira vez o
termo “surrealismo”. [N. do E.]
30
mas por um instante ela parecia ter sido vencida por ele em relação a si próprio e
por ele em relação ao mundo.
É extraordinário mas é verdade, guerras são apenas um meio de divulgar
coisas que já foram conquistadas, uma mudança, uma completa mudança
aconteceu, as pessoas não pensam mais como costumavam pensar, mas ninguém
sabe, ninguém percebe, ninguém realmente sabe disso, apenas os criadores. Os
outros estão ocupado demais com as atribulações da vida, eles não sentem o que
aconteceu, mas o criador, o verdadeiro criador, não faz nada, ele não está
preocupado com a atividade de existir, e ele não está na ativa, ou seja, ele não está
preocupado com a atividade da existência, ele é suficientemente sensível para
entender como as pessoas estão pensando, não está interessado em saber como
elas estão pensando, sua sensibilidade se preocupa em compreender como as
pessoas vivem, como estão vivendo. O espírito de todos mudou, o de muitas
pessoas mudou, mas quase ninguém percebe e uma guerra os obriga a reconhecer
esse fato porque durante a guerra a aparência de tudo muda com muito mais
rapidez, mas na verdade a mudança inteira já foi conquistada e a guerra é somente
algo que obriga todos a reconhecê-la. A Revolução Francesa acabou quando a
guerra obrigou todos a reconhecê-la, a Revolução Americana foi conquistada antes
da guerra, a guerra é apenas um agente publicitário que faz todos saberem o que
aconteceu, ela é isso.
Então quando o público reconhece um criador que viu a mudança conquistada
antes de uma guerra e que foi expressada pela guerra, e pela guerra o mundo é
obrigado a reconhecer a completa mudança em tudo, eles são obrigados a olhar
para o criador que, antes de qualquer outra pessoa, percebeu-a e expressou-a. Um
criador não está à frente de sua geração mas ele é o primeiro entre seus
contemporâneos a ter ciência do que está acontecendo com sua geração.
Um criador que cria, que não é um acadêmico, que não é alguém que estuda
numa escola cujas regras já são conhecidas, e que obviamente por já serem
31
conhecidas não existem mais, então um criador que cria faz parte necessariamente
de sua geração. Sua geração vive de maneira contemporânea, mas vive somente
assim. Na arte, na literatura, no teatro, enfim, em tudo que não contribui para seu
conforto imediato, eles vivem na geração anterior. É muito simples, hoje em dia, nas
ruas de Paris, cavalos e até bondes não podem mais existir, mas cavalos e bondes
são suprimidos apenas quando causam complicações demais, são suprimidos com
sessenta anos de atraso. Quando a guerra começou, Lord Grey disse que os generais
pensavam numa guerra do século xix, mesmo quando os instrumentos de guerra
eram do século XX, e apenas quando a guerra estava no seu auge foi que os generais
compreenderam que era uma guerra do século XX, e não do século XIX. O espírito
acadêmico é isso, não é contemporâneo, claro que não, então ele não pode ser
criativo porque a única coisa criativa num criador é a coisa contemporânea. Claro.
Como eu estava dizendo, no cotidiano é diferente. Um amigo construiu uma
casa moderna e sugeriu que Picasso também mandasse construir uma. Mas, disse
Picasso, claro que não, quero uma casa antiga. Imagine, disse ele, será que
Michelangelo teria ficado contente se alguém desse a ele um belo móvel
renascentista, claro que não. Ele teria ficado contente se tivesse recebido uma bela
gravura grega, isso sim.
Então é assim que as coisas são, um criador é tão completamente
contemporâneo que ele parece estar à frente de sua geração e para se acalmar em
sua vida cotidiana, deseja viver com as coisas do dia a dia do passado, não deseja
viver como um contemporâneo, como os contemporâneos que não se sentem
comovidos por serem contemporâneos. Parece complicado mas é bastante simples.
Então quando os contemporâneos foram obrigados pela guerra a reconhecer
o cubismo, o cubismo como tinha sido criado por Picasso, que enxergou uma
realidade que não era a visão do século XIX, que não era uma coisa vista mas sentida,
que não era uma coisa baseada na natureza mas oposta à natureza, como as casas
na Espanha se opõem à paisagem, como o círculo se opõe aos cubos. Todos foram
32
obrigados pela guerra a compreender que as coisas tinham se transformado em
outras coisas e que elas não continuavam sendo as mesmas coisas, eles foram
obrigados então a aceitar Picasso. Picasso voltou da Itália e, livre de Parade, que
acabara de criar, se tornou um pintor realista, fez até muitos retratos de modelos,
retratos que eram puramente realistas. É evidente que, na verdade, nada muda,
mas ao mesmo tempo tudo muda e a Itália e Parade e o fim da guerra, de certa
forma, deram a Picasso outro período arlequim, um período realista, não triste,
menos jovem, se preferir, mas um período de calma, ele se satisfazia em ver as
coisas como todos as viam, não completamente como os outros as viam mas
completamente o suficiente. Isso foi de 1917 a 1920.
Picasso sempre teve a necessidade de se esvaziar, de se esvaziar
completamente, de sempre se esvaziar, ele é tão preenchido que toda sua
existência é a repetição de um esvaziamento completo, ele deve se esvaziar, ele
nunca vai poder se esvaziar do fato de ser espanhol, mas pode se esvaziar do que
criou. Então todos dizem que ele muda, mas na verdade não é isso, ele se esvazia, e
no momento em que acaba de se esvaziar ele deve recomeçar a se esvaziar, ele se
enche novamente com muita rapidez.
Duas vezes na vida ele quase se esvaziou do fato de ser espanhol, a primeira
vez durante seu primeiro contato real com Paris, quando surgiu o período arlequim
ou rosa, entre 1904 e 1906, a segunda vez foi seu contato com o teatro, no período
realista, que durou de 1918 a 1921. Durante esse período ele pintou alguns retratos
muito bonitos, alguns quadros e alguns desenhos de arlequins e muitos outros
retratos. Esse período rosa adulto durou quase três anos.
Porém, claro que o período rosa não duraria nele. Ele se esvaziou do período
rosa, que inevitavelmente se transformou em outra coisa, dessa vez se transformou
no período de mulheres corpulentas e depois num tema clássico, mulheres com
panos, talvez esse tenha sido o começo do fim do seu período rosa adulto.

33
Certamente foram dois os períodos rosa na vida de Picasso. Durante o
segundo período rosa, não havia quase nenhum cubismo real, mas havia a pintura,
que era uma escrita que tinha a ver com o caráter espanhol, ou melhor, com o
caráter sarraceno, e isso começou a se desenvolver muito.
Vou explicar.
No Oriente a caligrafia e a arte da pintura e da escultura sempre foram muito
próximas, elas se parecem, se ajudam, se completam. A arquitetura sarracena era
decorada com letras, com palavras com grafismos do sânscrito; na China as próprias
letras já eram algo por si só. Porém, na Europa, a arte da caligrafia sempre foi uma
arte menor, decorada pela pintura, decorada por traços, mas a arte da escrita e a
decoração pela escrita e a decoração ao redor da escrita sempre foram uma arte
menor. Mas para Picasso, um espanhol, a arte da escrita – em outras palavras, a
caligrafia – é uma arte. Afinal, os espanhóis e os russos são os únicos europeus que
são realmente um pouco orientais e a arte de Picasso demonstra isso, não como
algo exótico, mas como algo bastante profundo. Ela é completamente assimilada,
claro que ele é um espanhol, e um espanhol consegue assimilar o Oriente sem imitá-
lo, consegue aprender coisas árabes sem ser seduzido, consegue repetir coisas
africanas sem ser enganado.
As únicas coisas que realmente seduzem os espanhóis são coisas latinas,
coisas francesas, coisas italianas, para eles o latim é exótico e sedutor, são as coisas
que os latinos fazem que são charmosas para os espanhóis. Como Juan Gris sempre
dizia, a escola de Fontainebleau foi uma completa sedução, e é claro que ela foi
inteiramente latina, era a Itália na França.
Então a sedução italiana surgiu para Picasso após sua primeira visita à Roma,
em seu segundo período rosa, que começou em 1918 com o retrato de sua esposa e
durou até o retrato do seu filho fantasiado de arlequim, em 1927, e tudo isso
começou com retratos, depois com as mulheres corpulentas, terminando com os
temas clássicos. Foi mais uma vez a sedução latina, dessa vez por meio da Itália. Mas
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acima de tudo foi sempre e sempre a Espanha e foi a Espanha que o estimulou a se
expressar pela caligrafia em seus quadros, mesmo durante seu período naturalista.
A primeira coisa que vi que demonstrava essa qualidade caligráfica de Picasso
foram várias xilogravuras que ele fez durante o período arlequim, o primeiro
período rosa de 1904. Havia dois pássaros feitos com uma única pincelada e
coloridos com uma única cor. Além dessas duas pequenas coisas, não me lembro de
outras coisas que eram realmente caligráficas antes do seu último período de
cubismo puro, ou seja, de 1912 a 1917.
Durante esse período os cubos não eram mais importantes, os cubos tinham
se perdido. Afinal a pessoa deve saber mais do que ela vê e não se vê um cubo por
completo. Em 1914 havia menos cubos no cubismo, cada vez que Picasso
recomeçava, recomeçava a luta para expressar num quadro as coisas vistas sem
nenhuma associação, mas simplesmente como coisas vistas, e são apenas as coisas
vistas que são conhecimento para Picasso. Coisas relacionadas são coisas lembradas
e, para um criador, certamente para um criador espanhol, certamente para um
criador espanhol do século XX, coisas lembradas não são coisas vistas, portanto não
são coisas sabidas. E então Picasso sempre e sempre iniciava sua tentativa de
expressar não as coisas sentidas, não as coisas lembradas, não as estabelecidas em
de acordo com relações, mas as coisas que existem, realmente tudo que um ser
humano pode saber a cada momento de sua existência, e não um conjunto de todas
as suas experiências. Então durante todo esse último período de cubismo puro,
1914-1917, ele tentou recomeçar seu trabalho, ao mesmo tempo que começava a
dominá-lo completamente. Foi no intervalo entre 1914 e 1917 que o domínio de sua
técnica se tornou tão completo a ponto de atingir a perfeição, não havia mais
nenhuma hesitação, agora que sabia o que fazer ele podia fazer o que quisesse, não
havia nenhum problema técnico o impedindo. Mas no final das contas o problema
permaneceu: como expressar não as coisas vistas por associação, mas as coisas
realmente vistas; não as coisas interpretadas, mas as coisas realmente conhecidas
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no instante em que são conhecidas. Durante toda sua vida, esse tinha sido seu
problema, mas o problema se tornara mais difícil do que nunca, agora que
dominava completamente sua técnica, ele não tinha mais nenhuma distração real,
não tinha mais a distração da aprendizagem, seu instrumento tinha sido
aperfeiçoado.
Nesse período, de 1913 a 1917, seus quadros têm a beleza de uma mestria
completa. Picasso fez quase tudo que queria, não colocou nos quadros praticamente
nada que não devia estar neles, não havia cubos, havia apenas coisas, ele conseguiu
colocar nelas somente o que de fato conhecia e tudo isso terminou com a viagem
para a Itália e com o preparo para Parade.
Depois da Itália e de Parade, Picasso teve seu segundo período naturalista,
cuja beleza pode ser reconhecida por qualquer pessoa e cuja técnica, que agora
tinha sido aperfeiçoada, permitia a ele criar essa beleza com menos esforço, essa
beleza existia por si só.
Esses quadros têm a serenidade da beleza perfeita mas não têm a beleza da
realização. A beleza da realização é uma beleza que sempre demanda mais tempo
para se mostrar como beleza do que a beleza pura. A beleza da realização não é
beleza durante sua criação, é beleza somente quando coisas posteriores são criadas
à sua imagem. É então que ela é reconhecida como beleza por sua fertilidade, é a
beleza mais bonita, mais bonita do que a beleza da serenidade. Bem.
Depois da Itália e de Parade Picasso se casou e, em 1918, ele saiu de
Montrouge para a Rue de la Boétie, lá ele ficou até 1937 e, durante esse tempo, de
1919 a 1937, muitas coisas foram criadas, muitas coisas aconteceram com a pintura
de Picasso.
Mas voltemos à caligrafia e à sua importância na arte de Picasso.
Era natural que o cubismo, de 1913 a 1917, lhe revelasse a arte da caligrafia,
com a importância da caligrafia vista na perspectiva oriental, e não na europeia. O
contato com a Rússia, primeiramente por meio do russo G. Apostrophe, como era
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conhecido, e depois do balé russo, estimularam seu sentimento pela caligrafia, que
sempre existiu em um espanhol, pois há muito tempo os espanhóis carregam a arte
sarracena dentro de si.
E também não se deve esquecer que a Espanha é o único país na Europa cuja
paisagem não é europeia, nem um pouco, portanto é natural que os espanhóis não
sejam europeus, apesar de serem europeus.
Então em todo esse período de 1913 a 1917 é possível ver que ele sentiu um
enorme prazer adornando seus quadros, sempre com uma tendência caligráfica e
não escultural, e durante o período naturalista, que sucedeu Parade e sua viagem à
Itália, o consolo oferecido ao seu lado espanhol foi a caligrafia. Lembro muito bem
que, em 1923, ele pintou duas mulheres absolutamente nesse espírito, um quadro
bem pequeno, mas toda a realidade da caligrafia estava nele, tudo que ele não
podia colocar em seus quadros realistas estava presente nas duas mulheres
caligráficas, que tinham uma vitalidade extraordinária.
A caligrafia, da maneira como eu a compreendo em suas obras, teve talvez seu
momento mais intenso no décor de Mercure. Aquilo foi escrito, escrito de maneira
tão simples, sem pintura, pura caligrafia. Um pouco antes disso ele fizera uma série
de desenhos, também puramente caligráficos, os traços eram extraordinariamente
traçados, também havia estrelas que eram estrelas que se moviam, elas existiam,
eram o próprio cubismo; em outras palavras, uma coisa que existia por si só, sem a
ajuda da associação ou da emoção.
Durante todo esse tempo o período realista estava começando a se aproximar
de seu fim, primeiramente alguns retratos terminavam com arlequins, pela primeira
vez Picasso quase desejara olhar para modelos. A pintura naturalista deu lugar a
mulheres corpulentas, inicialmente mulheres no litoral ou na água, com bastante
movimento, e aos poucos as mulheres corpulentas se tornaram esculturais. Dessa
maneira Picasso esvaziou-se da Itália. É o jeito dele.

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Durante o ano de 1923 seu prazer em desenhar foi enorme, ele quase repetiu
a fertilidade e a felicidade de seu primeiro período rosa, tudo era rosa. Isso
terminou em 1923. Foi nessa época que o período clássico começou, foi o fim da
Itália, que ainda aparecia em seus desenhos, mas na sua pintura ele tinha se
purificado da Itália por completo, de fato.
Então veio o período das grandes naturezas-mortas, 1927, e depois, pela
primeira vez em sua vida, se passaram seis meses sem que trabalhasse. Foi a
primeiríssima vez em sua vida.
É necessário pensar na questão da caligrafia, mas nunca se deve esquecer que
a única maneira que Picasso tem de falar, a única maneira que Picasso tem de
escrever é por meio de seus desenhos e pinturas. Em 1914, e depois desse ano isso
nunca cessou, ele passa a ter uma certa maneira de escrever seus pensamentos, isto
é, certa maneira de enxergar as coisas da maneira como ele sabia que as enxergava.
E foi dessa maneira que ele começou a escrever esses pensamentos, com desenhos
e com pintura. O povo oriental, o povo dos Estados Unidos e o povo espanhol
realmente nunca se esqueceram que não é necessário usar letras para escrever. De
fato, é possível escrever de outra maneira e Picasso entendia, realmente entendia
isso. Para recapitular. De 1914 a 1917 o cubismo mudara para superfícies bem
planas, não era mais escultura, era escrita, e Picasso de fato se expressava assim,
pois não era possível, realmente não era possível escrever por meio da escultura,
não, não era.
Naturalmente, nesse período de 1913 a 1917 ele esteve quase sempre
sozinho, e recomeçou a escrever tudo que conhecia, e ele conhecia muitas coisas.
Como mencionei, foi então que ele passou a dominar por completo a técnica da
pintura. E isso terminou com Parade.
Agora uma enorme luta começou novamente. A influência da Itália, a
influência do retorno de todos da guerra, a influência de um reconhecimento
significativo e a influência de sua alegria por causa do nascimento do filho o levaram
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a um segundo período rosa, um período completamente realista que durou de 1919
a 1927. Foi um período rosa, certamente foi, e assim como o primeiro período rosa,
este terminou quando Picasso começou a fortalecer e enrijecer seus traços e a
solidificar as formas e as cores; assim como o primeiro período rosa mudou com
meu retrato, este período rosa mudou em 1920, aproximadamente, com a pintura
de mulheres enormes e bem robustas. Ainda havia um pouco da memória da Itália
em suas formas e panos, o que durou até 1923, quando ele terminou os grandes
quadros clássicos. Então o segundo período rosa terminou naturalmente da mesma
maneira que o primeiro, ou seja, com o triunfo da Espanha. Foi durante todo esse
período que ele pintou pela primeira vez, entre 1920 e 1921, mais ou menos,
quadros cubistas bastante coloridos, bastante caligráficos e bastante coloridos e
depois mais e mais caligráficos e menos coloridos. Durante todo esse tempo a cor
desse cubismo era a cor pura, tinta Ripolin, que ele chamava de “a saúde da cor”.
Depois contarei algo sobre a cor de Picasso que é uma história e tanto.
Continuando.
Quando o segundo período rosa mudou para o período das mulheres
corpulentas, por volta de 1923, essa caligrafia estava em plena atividade e começou
a ser sentida nos grandes quadros, o que culminou em um desses grandes quadros,
La Danse [A Dança], e no fato de que o naturalismo, para Picasso, estava morto, e
ele não enxergava mais como todo mundo achava que ele enxergava.
Da mesma forma que o período puro do cubismo, ou seja, o cubismo dos
cubos, teve sua explosão final em Parade, assim a escrita pura desse período teve
sua explosão no balé Mercure, em 1924, nas Soirées de Paris.
Então começa uma história curiosa, como a história do período africano e a de
Les Demoiselles d’Avignon.
Picasso se purificara da Itália em seu segundo período rosa e das mulheres
corpulentas e dos temas clássicos. Ele sempre teve a Espanha dentro de si, ele não
se purificaria dela porque ela é ele, ela é ele próprio, então a escrita, que é a
39
continuação do cubismo, se não for a mesma coisa, prosseguia constantemente,
mas agora havia outra coisa, era a Rússia, e a luta para se livrar dela foi enorme.
Durante essa luta as coisas vistas como todos as viam quase o dominaram e para
impedir isso, para não ser seduzido por isso, pela primeira vez em sua vida, e em
dois momentos posteriores, ele parou de pintar, parou de falar como sabia falar, de
escrever como sabia escrever, com desenhos e cores.
Agora estamos em 1924, na produção de Mercure.
Nessa época Picasso começou a esculpir. Digo que a Itália tinha saído
completamente de dentro dele, mas a Rússia ainda estava nele. A arte da Rússia é
essencialmente uma arte camponesa, uma arte que se comunica com a escultura.
Saber falar por meio de desenhos e por cores requer bem mais distanciamento do
que falar por meio da escultura em cubos ou em formas redondas, e a escultura
africana era cubo e a escultura russa era redonda. Também havia outra diferença
importante: o tamanho das feições e das pessoas na escultura africana é um
tamanho real; o tamanho na escultura russa é anormal; então aquela arte é pura e
esta é fantástica e Picasso, sendo espanhol, nunca é fantástico, ele nunca é
pornográfico, mas a arte russa é as duas coisas. Outra vez uma luta.
O caráter espanhol é uma mistura da Europa e do Oriente, o caráter russo é
uma mistura do europeu e do oriental, mas não se trata da mesma Europa nem do
mesmo Oriente, mas como se trata da mesma mistura, a luta para se tornar ele
mesmo novamente foi mais difícil do que nunca, e essa luta durou de 1924 a 1935.
Durante esse período, seu consolo era o cubismo, arlequins pequenos e
grandes, e sua luta estava nos quadros grandes, cujas formas, apesar de serem
formas fantásticas, eram como todos as enxergavam, eram, se preferir, formas
pornográficas; em uma palavra: formas como os russos as enxergam, mas não como
um espanhol as enxerga.
Como mencionei e tenho repetido,a personalidade, a visão que tem Picasso é
como ele próprio, é espanhola, e ele não vê a realidade como o mundo inteiro a vê;
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então, sozinho entre os pintores, ele não precisava expressar as verdades que o
mundo inteiro via, mas as verdades que somente ele via, e esse não é o mundo que
o mundo reconhece como mundo.
Como ele não teve a distração da aprendizagem por conseguir criá-la a partir
da captação do que está vendo, por ter uma sensibilidade e uma ternura e uma
fragilidade que fazem com que ele deseje partilhar as coisas vistas por todos, ele
sempre se sente tentado, como um santo pode ser tentado, a enxergar as coisas
como de fato não as enxerga.
Isso aconteceu com ele repetidas vezes ao longo de sua vida e a maior
tentação ocorreu entre 1925 e 1935.
A luta foi intensa e às vezes quase mortal.
Em 1937 ele recomeçou a pintar, não desenhava nem pintava há seis meses,
como mencionei, a luta foi quase mortal em vários momentos, ele tinha que
enxergar o que enxergava e a realidade para ele tinha de ser a realidade vista não
por todos, mas por ele, e cada pessoa desejava afastá-lo dela, desejava forçá-lo a
enxergar o que ele não enxergava. Foi parecido com quando forçaram Galileu a
dizer que a Terra não girava. Sim, foi isso.
Pouco antes dos seis meses em que, pela primeira vez na vida, não desenhou
nem pintou, ele sentiu-se imensamente fértil. Um novo jeito de se encontrar outra
vez. Para que alguém consiga se encontrar novamente, uma produção enorme é tão
necessária quanto não fazer nada, então a princípio ele teve uma enorme produção,
que depois cessou por completo por seis meses. Durante esses seis meses, a única
coisa que ele criou foi um quadro feito a partir de pano cortado por uma corda;
durante o grande momento do cubismo ele fazia tais coisas, naquela época ele
sentia uma alegria imensa fazendo isso, mas agora era uma tragédia. Esse quadro
era lindo, esse quadro era triste e foi o único.
Depois de começar de novo, mas dessa vez com escultura e não com pintura,
ele quis escapar várias e várias vezes daquelas formas muito bem conhecidas que
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não eram as formas que ele enxergava, e foi isso que o induziu a fazer esculturas
que, de início, eram muito muito finas, tão finas quanto uma linha, não mais grossas
do que isso. Foi talvez por essa razão que Greco fez suas figuras da maneira como as
fazia. Talvez.
Quase ao mesmo tempo, Picasso começou a fazer estátuas enormes, tudo
para se esvaziar daquelas formas que não eram formas que ele conseguia enxergar,
e digo que essa luta era formidável.
Foi nessa época, ou seja, em 1933, que mais uma vez ele parou de pintar, mas
continuou fazendo desenhos, e durante o verão de 1933 fez somente seus desenhos
surrealistas. O surrealismo conseguia consolá-lo um pouco, mas não
verdadeiramente. Os surrealistas ainda enxergavam as coisas como todos os outros,
eles as complicam de uma maneira diferente, mas a visão é a de todos os outros,
enfim, a complicação é a complicação do século XX, mas a visão é a do século XIX.

Picasso enxerga nada menos que algo diferente, outra realidade. Complicações
sempre são fáceis, mas outra visão, diferente do resto do mundo, é algo muito raro.
É por isso que gênios são raros, complicar as coisas de um jeito novo é fácil, mas
enxergar as coisas de um jeito novo é realmente difícil, tudo impede a pessoa de
fazer assim, hábitos, escolas, cotidiano, razão, necessidades do cotidiano,
indolência, tudo impede a pessoa, e na verdade existem pouquíssimos gênios no
mundo.
Picasso enxergava algo diferente, não outra complicação e sim outra coisa, ele
não enxergava o desenvolvimento das coisas do mesmo jeito que as pessoas o
enxergavam no século XIX, ele via o desenvolvimento das coisas pela maneira como
elas não se desenvolviam, que assim era o século XX; em outras palavras, ele era
contemporâneo das coisas e enxergava essas coisas, ele não enxergava como os
outros, como o mundo inteiro achava que as enxergava; em outras palavras, como
eles mesmos as enxergavam no século XIX.
Durante esse período aconteceu outra coisa curiosa.
42
A cor que Picasso usava era sempre importante, tão importante que seus
períodos recebiam os nomes da cor que ele estava usando. Começando pelo
começo.
A primeira influência de sua primeira curta visita a Paris, em 1900, deu a ele a
cor de Toulouse-Lautrec, a cor característica da pintura daquele período. Durou
pouquíssimo tempo e, quando ele voltou a Paris e depois retornou à Espanha, as
cores que usou eram naturalmente espanholas, a cor azul, as imagens desse período
são sempre azuis. Quando voltou à França e a alegria francesa o deixou alegre, ele
pintou em rosa e esse foi chamado de período rosa. Havia um pouco de azul nesse
período, mas o azul tinha um caráter rosa e não um caráter azul, então era
realmente um período rosa, que foi seguido do começo da luta pelo cubismo, do
período africano, que tinha algum rosa mas que inicialmente usou o bege, e depois
o marrom e o vermelho, como no meu retrato, e depois disso houve um período
intermediário, antes do cubismo real, e foi um período bastante verde. Este é um
período menos conhecido, mas muito muito bonito, paisagens e grandes naturezas-
mortas, também algumas silhuetas. Depois disso houve paisagens pálidas, que aos
poucos deram lugar a naturezas-mortas cinza. Foi durante esse período cinza que
Picasso pela primeira vez de fato se mostrou um excelente colorista. Há uma
variedade infinita de cinza nesses quadros e, pela vitalidade da pintura, o cinza
realmente se torna cor. Depois disso, como Picasso tinha então se tornado um
colorista, seus períodos não receberam mais os nomes de suas cores.
Ele começou, em 1914, a estudar cores, a natureza das cores, se interessou
em fazer cores puras, mas a qualidade da cor que encontrava quando pintava em
cinza se perdeu um pouco, mais tarde, quando seu segundo período naturalista
acabou, ele começou mais uma vez a se interessar enormemente por cor, brincava
com cores para contrapor as cores aos desenhos, por ser espanhol era natural que
as cores não ajudassem o desenho e sim se contrapunham a ele, e foi em 1923 que
ele se interessou enormemente por isso. Foi também durante o período caligráfico,
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em 1923, e depois, que essa oposição entre desenho e cor se tornou mais
interessante.
Aos poucos, quando estava acontecendo a luta para não ser subjugado pela
visão que não era sua visão, as cores começaram a ser cores bem ordinárias, cores
que outros pintores usavam, cores que combinam com o desenho e, por fim, entre
1927 e 1935, Picasso teve a tendência de se consolar com a concepção de cor de
Matisse, foi no momento em que ele estava mais desesperado que isso começou e
terminou, quando ele parou de pintar, em 1935.
Na verdade ele parou de pintar durante dois anos e não pintou nem
desenhou.
O fato de alguém parar de fazer o que fez durante toda a vida é
extraordinário, mas pode acontecer.
Sempre acho incrível o fato de Shakespeare nunca ter voltado a tocar na pena
após parar de escrever, e se conhecem outros casos assim, coisas acontecem e
destroem tudo o que obrigava a pessoa a existir, e a identidade resultante das coisas
que foram produzidas – será que ela continua existindo, sim ou não?
Certamente sim, um gênio é um gênio, mesmo quando não trabalha.
Então Picasso parou de trabalhar.
Foi bem curioso.
Ele começou a escrever poemas, mas sua escrita nunca foi sua escrita. Afinal o
egotismo de um pintor é certamente diferente do egotismo de um escritor, não há
nada a se dizer a respeito disso, é diferente. É.
Dois anos sem trabalhar. De certa maneira Picasso gostou, foi uma
responsabilidade a menos, é bom não ter responsabilidades, é como os soldados
durante a guerra, a guerra é terrível, disseram eles, mas durante a guerra a pessoa
não tem responsabilidade, nem em relação à morte, nem em relação à vida. Então
esses dois anos foram assim para Picasso, ele não trabalhou, não cabia a ele decidir

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o que via a cada momento, não, para ele a poesia era algo a ser feito durante
meditações amarguradas, mas agradavelmente, num café.
Essa foi a vida dele durante dois anos, claro que ele sabia escrever, escrevia
muito bem com desenhos e com cores, sabia muito bem que escrever com palavras,
para ele, não era escrever. Claro que Picasso compreendia isso, mas ele não queria
se permitir despertar, há momentos na vida em que não se está nem morto nem
vivo e, por dois anos Picasso não estava morto nem vivo, não foi um período
agradável para ele, mas um período de descanso, ele, que precisara se esvaziar e se
esvaziar durante toda sua vida, passou dois anos sem se esvaziar, sem se esvaziar de
maneira ativa, na verdade ele se esvaziou de maneira realmente completa,
esvaziou-se de muitas coisas e, acima de tudo, de ser subjugado por uma visão que
não era a sua própria visão.
Como mencionei Picasso conhece, conhece muito bem os rostos, as cabeças,
os corpos dos seres humanos, ele os conhece da maneira como existem desde o
nascimento da raça humana, a alma das pessoas não o interessa, por que se
interessar pelas almas das pessoas quando o rosto, a cabeça, o corpo dizem tudo?,
por que usar palavras quando é possível expressar tudo com desenhos e com cores?
Durante este último período, de 1927 a 1935, as almas das pessoas começaram a
dominá-lo e a dominar sua visão, uma visão tão antiga quanto a criação das pessoas,
que se perdera em interpretações. Ele, que conseguia enxergar, não precisava de
interpretação e nesses anos, de 1927 a 1935, pela primeira vez as interpretações
destruíram sua própria visão e ele criou formas que não tinham sido vistas, mas
concebidas. É difícil expressar tudo isso com palavras, mas a distinção é clara e
nítida, é por isso que ele parou de trabalhar. A única maneira de se purificar de uma
visão que não era a sua era parando de expressá-la, e como era impossível para ele
ficar sem fazer nada, fez poesia, mas claro que era sua maneira de adormecer
durante o processo de desligamento das almas, das coisas que não lhe diziam
respeito.
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Enxergar as pessoas como elas existem desde que foram criadas não é
estranho, é direto, e a visão de Picasso, sua própria visão, é uma visão direta.
Finalmente a guerra irrompeu na Espanha.
Primeiramente a revolução, e depois a guerra.
Não foram os eventos em si que aconteciam na Espanha que fizeram Picasso
despertar, mas o fato de que eles tinham lugar na Espanha, ele perdera a Espanha e
aqui estava a Espanha não perdida, ela existia, a existência da Espanha despertou
Picasso, ele também existia, tudo que tinha sido imposto a ele deixara de existir, ele
e a Espanha, ambos existiam, claro que existiam, eles existiam, eles estão vivos,
Picasso começou a trabalhar, começou a falar como falou durante toda sua vida,
falando com desenhos e cor, falando com a escrita, a escrita de Picasso.
É assim que ele fala desde sempre, ele escreve assim, e tem sido eloquente.
Então em 1937 Picasso começou a ser ele mesmo mais uma vez.
Ele pintou um enorme quadro sobre a Espanha, escrito com uma caligrafia
continuamente desenvolvida e que foi a continuação do grande avanço feito por ele
em 1922, agora ele estava numa efervescência completa e, ao mesmo tempo,
encontrara sua cor. A cor dos quadros que ele tem pintado agora em 1937 são cores
fortes, cores leves mas que têm as qualidades das cores que até agora só existiam
em seu cinza, as cores podem se contrapor ao desenho, podem combinar com o
desenho, podem fazer o que quiserem, não é por poderem concordar ou discordar
do desenho que estão presentes, elas estão presentes apenas para existir, agora
Picasso certamente encontrou sua cor, sua verdadeira cor, em 1937.
Agora é o fim dessa história, não o fim da história dele, mas o fim da história
da história dele.

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Epílogo

Hoje os quadros de Picasso voltaram para mim vindos da exibição no Petit


Palais e mais uma vez estão em minhas paredes, não posso dizer que, durante sua
ausência, me esqueci de seu esplendor, mas eles estão mais esplêndidos do que
eram. O século XX é mais esplêndido do que o século XIX, sem dúvida é muito mais
esplêndido. O século XX tem bem menos sensatez em sua existência do que o século
XIX, mas a sensatez não leva ao esplendor. O século XVII tinha menos razão em sua
existência do que o século XVI, que consequentemente teve mais esplendor. Então o
século XX é isso, é uma época em que tudo se quebra, em que tudo é destruído,
tudo se isola, é algo mais esplêndido que um período em que tudo acontece
naturalmente. Então o século XX é um período esplêndido, não um período sensato
no sentido científico, mas esplêndido. Os fenômenos da natureza são mais
esplêndidos do que os acontecimentos diários da natureza, não há dúvida, então o
século XX é esplêndido.
Naturalmente foi um espanhol que compreendeu que uma coisa sem
progresso é mais esplêndida do que uma coisa que progride. Os espanhóis, que
adoram escalar montanhas a toda velocidade e descer montanhas lentamente, eles,
que foram feitos para criar a pintura do século XX, e foi o que fizeram, foi o que
Picasso fez.
Não se deve esquecer que a Terra vista de um avião é mais esplêndida do que
a Terra vista de um automóvel. O automóvel é o fim do progresso na Terra, é mais
veloz, mas as paisagens vistas de um automóvel são essencialmente as mesmas
vistas de uma carruagem, de um trem, de um vagão, ou a pé. Mas a Terra vista de
um avião é diferente. Então o século XX não é o mesmo que o século XIX e é muito
interessante saber que Picasso nunca viu a Terra de um avião, que por ser do século
XX ele inevitavelmente sabia que a Terra não é a mesma que era no século XIX, ele

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sabia disso, ele fez isso, inevitavelmente ele a fez diferente e o que ele fez é algo
que hoje o mundo inteiro pode ver. Quando eu estava nos Estados Unidos, pela
primeira vez viajei quase o tempo inteiro de avião e quando olhei para a Terra, vi
todas as linhas do cubismo feitas numa época em que nenhum pintor tinha voado
de avião. Vi, lá na Terra, as linhas de Picasso se misturando, indo e vindo,
desenrolando-se e desfazendo-se, vi as soluções simples de Braque, vi as linhas
movediças de Masson, sim, eu vi, e mais uma vez percebi que o criador é
contemporâneo, ele compreende o que é contemporâneo quando os
contemporâneos ainda não sabem de nada, mas ele é contemporâneo e como o
século XX é um século que vê a Terra como ninguém jamais a viu, e como tudo se
destrói no século XX e nada tem continuidade, então o século XX tem um esplendor
próprio e Picasso é desse século, ele tem aquela qualidade estranha de uma Terra
que ninguém jamais viu e de coisas destruídas como nunca foram destruídas. Então
Picasso tem seu esplendor.
Sim. Obrigada.

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BIOGRAFIA

Gertrude Stein, nasceu em 1874 em Allegheny, Pensilvânia. Formou-se em


letras em Harvard. Em 1903 se une ao irmão Leo na Europa e ambos passam a
morar em Paris. Em 1905 conhece Picasso e passa a ajudá-lo em sua carreira
artística. Em 1907 conhece Alice B. Toklas: dois anos depois Alice passa a morar na
casa dos irmãos Stein. Em 1909 Gertrude Stein publica seu primeiro livro Three
Lives. Em 1925 pública The Making of Americans, e em 1933 A Autobiografia de
Alice B. Toklas (Cosca Naify, 2009). Gertrude Stein faleceu em 1946.

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BIBLIOTECA antagon!sta

1. ISAIAH BERLIN | Uma mensagem para o século XXI

2. JOSEPH BRODSKY | Sobre o exílio

3. E.M. CIORAN | Sobre a França

4. JONATHAN SWIFT | Instruções para os Criados

5. PAUL VALÉRY | Maus Pensamentos & Outros

6. DANIELE GIGLIOLI | Crítica da Vítima. Um experimento com a ética

7. GERTRUDE STEIN | Picasso

8. MICHAEL OAKESHOTT | Conservadorismo

9. SIMONE WEIL | Pela supressão dos partidos políticos

10. ROBERT MUSIL | Sobre a estupidez

11. ALFONSO BERARDINELLI | Direita e Esquerda na Literatura

12. JOSEPH ROTH | Judeus errantes

50

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