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Kathleen E.

Woodiwiss
Cinzas ao Vento
Sinopse
Alaina MacGaren - Ocultando sua beleza sob o disfarce de um menino, ela parte para Nova Orleans,
sem saber o que o destino irá lhe reservar...
Cole Latimer - Cuidando dos feridos na guerra de Secessão, o cirurgião ianque não imaginaria o que
se escondia sob a pele de seu refugiado - a quem ele resolveu ajudar...
Este é o romance ardente com as chamas de uma paixão grandiosa, que capta o confronto entre
pessoas determinadas e orgulhosas. Mesmo sem jamais serem dominados por alguém, eles não
podem esquecer a noite em que suas almas foram marcadas a fogo... KATHLEEN E.
WOODIWISS, consagrada autora dos bestsellers Uma Rosa do Inverno, Ame um Estranho e Um
Amor Tão Raro, nos brinda com mais esta emocionante história de amor, ambientada na Nova
Orleans do século XIX. Em clima de suspense e muita emoção, o talento confirmado de uma das
autoras mais importantes de ficção histórica da América.

OBRAS DA AUTORA
AME UM ESTRANHO
UM AMOR TÃO RARO
UMA ROSA DO INVERNO
Kathleen E. Woodiwiss

CINZAS AO VENTO
Woodiwiss, Kathleen E.
Título original norte-americano ASHES IN THE WIND
Copyright © 1979 by Kathleen E. Woodiwiss Publicado mediante acordo com a autora

Dedicado à memória dos meus pais, Gladys e Charles, Com amor

Lamento
Oh, meu lar!
Minha terra ensolarada,
De gente querida,
De dias tranqüilos,
Você desapareceu!
Desapareceu sob o calcanhar
Pesado da GUERRA
O verme de milhões de pernas
Que rasteja indiferente sobre
A minha terra e deixa um rastro
De destruição, de vidas despedaçadas
E corpos inertes.
Você me abandonou! Sozinho! Esquecido!
Jogado como uma folha ao sabor da corrente.
Onde quer que eu pare para descansar,
Encontro — o Desespero.
Você despedaçou a própria textura
Da minha alma com sua partida
Você fugiu das minhas mãos.
E para onde quer que eu me volte, encontro
O cheiro odiado da GUERRA,
Aquele cheiro acre de
Cinzas! Cinzas!
Cinzas ao vento!
Capítulo Um
23 de setembro de 1863
NovaOrleans

A ÁGUA DO RIO longo e lamacento bateu com enganosa tranqüilidade na base do cais quando o
barco fluvial abriu caminho, devagar, entre os navios de guerra da União, aproximando-se do cais. A
duzentos metros, a parte principal da frota estava ancorada no meio do rio, distante da cidade e da
hostilidade dos seus habitantes. Canhoneiros acachapados e feios, com os conveses quase cobertos
pela água, pareciam porcos espojando-se no meio dos mastros altos das fragatas esguias e elegantes.
Algumas embarcações de vários tipos mantinham os motores ligados, preparadas para ação, caso
fosse necessário.
Uma névoa escura cobria a cidade, e o ar úmido parecia comprimir o calor sufocante sobre os
destacamentos de soldados de túnicas azuis, que esperavam, nas docas, a chegada do barco fluvial
com rodas laterais. Com o vermelho e verde do casco, antes brilhantes, agora desbotados, o barco a
vapor parecia um animal desajeitado e castigado pelas intempéries, com fumaça e fogo saindo dos
dois chifres enormes e negros. Balançando, ele se aproximou para encostar cautelosamente no cais
baixo, onde o Mississippi tocava o porto da cidade. Grandes cabos de amarração estenderam-se
como tentáculos gigantescos para
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a terra e roldanas e cunhas estalavam entre os gritos dos homens, à medida que a embarcação se
avizinhava do cais.
Chegados ao fim da viagem, os passageiros agrupavam-se no convés, com suas bagagens, ansiosos
para desembarcar, cada um com um objetivo diferente, embora fosse difícil determinar uma ação
específica naquele grupo. Lá estavam os ansiosos para enriquecer, as aves de rapina, as prostitutas, os
aproveitadores, todos descendo sobre a cidade de Nova Orleans para arrancar tudo que pudessem
dos cidadãos empobrecidos pela guerra e muito mais do invasor ianque. Quando abaixaram a
prancha de desembarque, moveram-se todos ao mesmo tempo, ansiosos para deixar o navio, aos
empurrões e cotoveladas, até serem detidos por uma fileira de soldados da União. Uma segunda fila
formou imediatamente atrás da primeira e então os homens separaram-se, abrindo um corredor que
ia desde o convés de carga até a prancha. O murmúrio de protesto dos passageiros transformou-se
em gritos e vaias quando os soldados confederados, sujos, magros e andrajosos começaram a passar,
arrastando os pés na medida em que permitiam os grilhões que os prendiam.
No meio da escada do tombadilho, outrora elegante, um jovem pequeno e magro parou e ficou
imóvel entre os passageiros detidos pelos soldados. Sob o chapéu amassado e gasto, enfiado até as
orelhas, os olhos cinzentos e alertas brilhavam no rosto sujo de fuligem. A roupa, grande demais para
ele, acentuava a magreza do corpo. Uma corda grossa, amarrada na cintura, segurava a calça folgada.
As mangas da camisa, sob o casaco de algodão leve, estavam arregaçadas até a metade para deixar a
descoberto os pulsos e as mãos magras. Uma mala de vime estava no chão, ao lado das botas,
também grandes demais, com as pontas viradas para cima. No meio da fuligem que cobria o rosto,
sobressaía o nariz queimado de sol. Fisicamente, o menino não aparentava mais de doze anos, porém
sua atitude de deliberada reserva o fazia parecer mais velho. Ao contrário dos outros passageiros, ele
apenas observava, atento e pensativo, o desembarque dos seus concidadãos derrotados.
Os prisioneiros foram recebidos pelo destacamento de soldados, enquanto que, a bordo, os
federalistas formavam atrás do seu comandante, permitindo finalmente o desembarque dos outros
passageiros. Desviando os olhos dos prisioneiros, o menino apanhou a mala e começou a descer para
o convés inferior. A mala de vime batia nas suas pernas e enganchava na roupa dos que passavam.
Ignorando os
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olhares curiosos, procurou controlar a mala de vime e continuou a descida. Um homem, atrás dele,
de braço com uma mulher espalhafatosamente vestida e pintada, impacientou-se com a lentidão do
menino e tentou passar na frente dele, quase o derrubando. A mala de vime bateu violentamente no
corrimão e ricocheteou, acertando a canela do homem. Com um palavrão, ele se voltou, meio
agachado, empunhando uma faca. O menino recuou, assustado e encostou-se no corrimão, sem tirar
os olhos da lâmina longa e fina.
— Gaúche cou rouge! — O sotaque era cajun e o tom da voz gutural e furioso.
Os olhos negros, ousados e arrogantes no rosto moreno, examinaram o menino de alto a baixo. Aos
poucos a fúria se dissolveu, o homem, pouco mais alto do que o menino, endireitou o corpo e
guardou a faca.
— Tenha cuidado com esse seu lixo, buisson poulain. Quase me fez precisar do cirurgião. — Os
olhos cinzentos do menino, muito claros, fuzilaram ouvindo o insulto e seus lábios contraíram-se.
Ele compreendeu perfeitamente a ofensa, e sua vontade era revidar da mesma forma. Segurando
com força a mala de vime, examinou o casal com olhar de desprezo. A mulher era óbvia e o homem,
a camisa de cores vivas e o lenço vermelho atado ao pescoço, sob o casaco de brocado, o
denunciavam como escória de cidade atrasada, cuja presença na cidade grande era geralmente
resultado de enriquecimento repentino e misterioso.
Ofendida com o olhar desdenhoso do menino, a mulher segurou novamente o braço do
companheiro e o apertou contra o seio farto.
— Ora, dê uns safanões nele, Jack — disse ela. — Ensine esse atrevido a respeitar os superiores.
O homem sacudiu a mão, furioso, e olhou com impaciência para a mulher.
— O nome é Jacques! Jacques DuBonné! Lembre-se disso! Algum dia esta cidade será minha. Mas
nada de safanões, ma douceur. Tem gente olhando... — Com um gesto, indicou o capitão ianque,
encostado na amurada do convés principal. — Gente que tem boa memória. Não queremos ofender
nossos anfitriões ianques, chère. Se o menino fosse mais velho, eu talvez tivesse prazer numa luta,
mas ele mal foi desmamado. Não merece nossa atenção. Não pense mais nisso. Então, vamos?
O menino viu os dois descerem para terra, com os olhos cheios de
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ódio. Para ele, os dois eram piores do que os ianques. Eram traidores do sul e de tudo que ele amava.
Percebendo que era observado, ergueu o rosto para o convés. A expressão do homem era de
compaixão, uma coisa que ele não queria dos ianques. O oficial alto e grisalho o fazia lembrar a
derrota dos confederados, no Delta. Sentindo que não podia suportar aquele olhar, agarrou a mala de
vime e desceu correndo para o convés inferior.
Uma pista de desembarque, em plano mais baixo, acompanhava a linha do cais, para os barcos
fluviais com menor altura do convés. Alguns metros do espaço plano eram destinados a carga e
descarga, e uma rampa íngreme para veículos subia até os armazéns, com degraus laterais para
passageiros. Quando o menino começou a subir laboriosamente os degraus, com sua mala pesada,
uma pequena caravana de carroças cobertas, dos federais, parou no alto da rampa. Obedecendo ao
comando brusco de um sargento muito suado, alguns soldados desceram das carroças e começaram a
vir na direção do barco de rodas laterais, parado no cais.
Apreensivo, ele observou a aproximação dos ianques. Depois, evitando olhar para eles, continuou
seu caminho com passo delibera-damente cauteloso. Mas, à medida que os soldados chegavam mais
perto, seu nervosismo aumentava. Pareciam caminhar diretamente para ele. Será que sabiam?
Com um aperto na garganta, viu o primeiro soldado chegar perto e seguir direto para a prancha de
embarque, acompanhado pelos outros. O menino olhou rapidamente e viu que estavam apanhando
mercadoria no barco e levando para as carroças.
Mesmo assim, pensou ele, é melhor sair de perto desses ianques o mais depressa possível.
Quando chegou ao topo da escada, tratou de passar por trás de uma pilha de barris, de onde não
podia ser visto do barco, e depois passou para a sombra protetora dos armazéns. Cicatrizes negras
marcavam as pedras do cais. Armazéns escurecidos pelo fogo, alguns com a madeira nova da
reconstrução recente eram a lembrança dolorosa dos milhares de fardos de algodão e barris de
melaço queimados pelo povo da cidade para impedir que caíssem nas mãos dos invasores de casacos
azuis. Há mais de um ano a cidade à beira do rio rendera-se à frota de Farragut e não era uma
perspectiva agradável ter de viver com o inimigo.
Uma risada estridente chamou sua atenção. Jacques DuBonné
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ajudava a volumosa companheira a entrar num coche de aluguel. O menino olhou invejosamente
para a carruagem. Não tinha dinheiro nenhum e teria de caminhar muito até a casa do tio, e sem
dúvida encontraria muitos ianques pelo caminho.
A presença opressiva dos casacos azuis estava por toda a parte. Era a primeira vez que ele se
aventurava em Nova Orleans depois da queda da cidade e sentia-se como um estranho rodeado de
inimigos. Nunca o cais tivera tanto movimento. Soldados levavam suprimentos para os barcos e dos
barcos para os armazéns. Era grande o número de trabalhadores negros, e o suor corria livre no calor
escaldante. Um palavrão alto o fez saltar para o lado. A carroça cheia de barris de pólvora, puxada
por seus cavalos enormes, passou rapidamente por ele. O cocheiro, esbravejando, chicoteava os
animais, que avançavam, tirando fagulhas das pedras do chão com os cascos pesados.
Quando recuou, o menino colidiu com quatro soldados da União. Um deles disse, imitando a fala
arrastada do sul.
— Vejam só! Um caipira visitando a cidade.
O jovem sulista voltou-se e olhou para os homens com um misto de ódio e curiosidade. O mais
velho mal podia ser chamado de adulto, e o mais novo tinha o rosto coberto ainda pela penugem
leve da adolescência. O que falara passou uma garrafa vazia para o companheiro e, adiantando-se,
parou na frente do menino com as pernas separadas e os polegares enfiados no cinto. Era muito alto,
e o menino ergueu os olhos para ele, apreensivo.
— O que está fazendo aqui, seu caipira? — perguntou ele. — Veio ver os grandes ianques malvados?
— N-n-ão, senhor — gaguejou o menino, nervoso, desafinando na última palavra. Confuso com
aquela provocação inesperada, olhou para os outros. Estavam mais do que embriagados, com os
uniformes em triste desordem e ao que parecia procuravam apenas alguma diversão. Resolveu agir
com prudência.
— Eu vou me encontrar com meu tio. Ele já devia estar aqui... — Não terminou a frase mentirosa e
olhou para os quatro, esperando alguma simpatia.
— Vejam! — disse o soldado, voltando-se para os companheiros. — O menino tem um tio por aqui.
Será aquele? — Apontou para uma parelha de mulas. — Acha que algum daqueles pode ser seu tio?
O menino abaixou mais a aba do chapéu e estremeceu. Os quatro riam às gargalhadas.
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— Com licença, senhor—murmurou ele, fazendo um movimento para se afastar. Não queria servir
de diversão para ianques embriagados.
De repente o chapéu, foi arrancado da sua cabeça, deixando à mostra um chumaço de cabelos
castanhos avermelhados, estranhamente picotados e despenteados. Levou a mão à cabeça, como para
esconder aquela estranheza e abriu a boca para reclamar. Mas resolveu ficar calado e cerrou os lábios
com força. Estendeu o braço para o chapéu que no mesmo instante subiu para o ar.
— Homem! — gritou o soldado — Um belo chapéu!
Outro ianque apanhou o chapéu no ar e começou a examiná-lo atentamente.
— Sabem, acho que vi uma velha mula, rio acima, com um chapéu melhor do que este. Devia ser sua
prima.
O menino estendeu a mão novamente, e o chapéu voou outra vez. Furioso, ele cerrou os punhos e
arreganhou os dentes.
— Seu potro do mato de barriga azul! — berrou, com sua voz esganiçada. — Me dê meu chapéu!
O primeiro soldado pôs a mala de vime de pé e sentou-se em cima, forçando os lados frágeis para
baixo. Sua gargalhada transformou-se num grito de dor e raiva quando dois pontapés certeiros
atingiram sua canela magra e o joelho. Com um rugido, ele se levantou e segurou o menino pelos
ombros.
— Agora, escute, seu moleque barriga de porco — sacudiu o menino, com o rosto muito junto ao
dele, quase o sufocando com seu hálito azedo de cerveja. — Vou virar você ao avesso...
— Atenção!
O ianque soltou bruscamente o menino, que tropeçou na mala e quase caiu. Viu seu chapéu no chão
e correu para apanhá-lo, enfian-do-o na cabeça antes de se voltar com os punhos fechados, pronto
para a luta. Mas ficou perplexo quando viu os quatro soldados rígidos, em posição de sentido. A
garrafa de uísque espatifou no chão e o ruído do vidro quebrado foi acompanhado por um silêncio
ameaçador. Na frente deles estava um homem alto, resplendente no seu uniforme azul com botões
brilhantes, alamares nos punhos e dragonas douradas com as divisas de capitão. Sobre a faixa
vermelha e branca estava o cinturão de couro com o coldre. O chapéu de feltro Hardee sombreava o
rosto severo. Quando se adiantou, as tiras amarelas nos lados da calça cintilaram sobre o fundo azul.
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— Vocês! Homens! — rugiu ele. — Estou certo de que o sargento da guarda tem algum trabalho
para vocês muito mais interessante do que maltratar crianças. Apresentem-se imediatamente nas suas
unidades! — Olhou severamente para os quatro homens que, a custo, conseguiam manter o
equilíbrio, e depois ordenou: — Debandar!
O oficial viu os soldados se afastarem e então voltou para o menino os olhos muito azuis no rosto
bronzeado de sol. As suíças longas, de um tom castanho-claro, perfeitamente aparadas, acentuavam
os traços fortes e o queixo firme e anguloso. O nariz era fino e bem-feito, levemente aquilino, e não
havia a menor sombra de sorriso nos lábios generosos. Parecia um soldado profissional, com os
modos bruscos, o uniforme quase exageradamente impecável e a expressão austera. Os traços finos
denotavam boa ascendência, e os olhos penetrantes, sombreados por pestanas longas e escuras,
pareciam ver os mais recônditos segredos da alma do menino.
Gradualmente a expressão do capitão se abrandou e ele reprimiu o sorriso que ameaçava subir aos
lábios.
— Sinto muito, rapaz. Esses homens estão muito longe de casa. Temo que suas maneiras e seu
julgamento deixem muito a desejar.
O menino, impressionado com a presença de um oficial federalista, não encontrou palavras para
responder. Virou o rosto, embaraçado quando o capitão o examinou da cabeça aos pés.
— E você, rapaz. Está esperando alguém? — perguntou o capitão. — Ou fugindo de casa?
Encabulado, ele não disse nada, ignorando a pergunta, com os olhos perdidos ao longe. As roupas
usadas e grandes demais, os sapatos com as pontas viradas para cima, sugeriam penúria.
— Se está à procura de trabalho, precisamos de ajuda no hospital. Enxugando o nariz com a manga
suja, o menino examinou o uniforme azul-escuro do capitão.
— Não me interessa trabalhar para nenhum ianque. O oficial sorriu.
— Não vamos pedir que atire em ninguém.
Os olhos muito claros entrecerraram-se, cheios de ódio.
— Não sou lacaio para limpar as botas de nenhum ianque. Procure outra pessoa, senhor.
— Se insiste. — O capitão tirou do bolso um longo charuto e depois de acender, com gestos lentos,
disse: — Mas duvido que todo esse orgulho possa pôr comida na sua barriga.
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O jovem abaixou os olhos, consciente da fome que o torturava.
— Quando foi a última vez que você comeu? — perguntou o capitão.
A resposta veio rápida e acompanhada por um olhar furioso.
— Não acho que seja da sua conta, perna azul.
— Seus pais sabem onde você está?
— Iam se virar na cova se soubessem.
— Compreendo — disse o oficial com voz mais suave. Olhou para o cais, à procura de algum lugar
para comer, depois disse: — Eu ia sair agora para comer alguma coisa. Gostaria de me acompanhar?
Os olhos claros e frios ergueram-se para o capitão.
— Não preciso de esmolas. O ianque deu de ombros.
— Considere como um empréstimo, se preferir. Pode me pagar quando sua sorte melhorar.
— Minha mãe me ensinou a não falar com estranhos e nunca com ianques.
O oficial riu.
— Não posso negar a última parte, mas quanto à primeira, posso, pelo menos me apresentar.
Capitão Cole Latimer, cirurgião do hospital.
Agora, havia desconfiança nos olhos claros do menino.
— Nunca vi um médico com menos de cinqüenta anos, senhor. Aposto que está inventando tudo
isso.
— Garanto que sou médico. Quanto à minha idade, provavelmente posso ser seu pai.
— Pode estar certo que não é meu pai! — disse o menino, com voz desafinada. — Não um maldito
açougueiro ianque!
Quase encostando a ponta do dedo longo e firme no nariz arrogante do menino, o capitão disse:
— Agora, escute, menino. Certas pessoas aqui não iam gostar de ouvir isso. Pode estar certo de que
usariam medidas drásticas para tirar um pouco dessa sua arrogância. Eu o tirei de uma enrascada,
mas não pretendo bancar ama-seca de uma criança geniosa. Portanto, cuidado com os modos!
O rosto sujo de fuligem contraiu-se, furioso ainda. -,
— Posso tomar conta de mim.
O capitão Latimer deu uma risada zombeteira.
— Pelo que vejo, alguém precisa tomar conta de você. Quando se lavou pela última vez?
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— O senhor é o barriga azul mais intrometido que já vi!
— Moleque atrevido — murmurou Cole Latimer, com um gesto irritado. — Pegue sua mala e venha
comigo.
O menino ficou parado, olhando surpreso para o capitão, que deu alguns passos decididos na direção
da estalagem, parou e, sem olhar para trás, ordenou com voz áspera:
— Mexa-se, menino. Não fique aí parado de boca aberta. Enfiando bem o chapéu na cabeça, ele
apressou-se a obedecer, quase arrastando a mala pesada. Na frente da estalagem, Cole Latimer parou.
O menino estava muito perto dele, quase pisando os calcanhares das botas luzidias, e parou também,
bruscamente.
— Você tem nome? — perguntou o capitão.
O jovem remexeu-se inquieto, olhando em volta, apreensivo.
— Você tem nome, não tem? — repetiu Cole Latimer, com leve sarcasmo.
Com uma inclinação relutante da cabeça, ele disse que tinha.
— Ummm... Al! Al, senhor — balançou a cabeça, afirmativa mente.
O capitão jogou fora o charuto e ergueu uma sobrancelha.
— Alguma coisa errada com sua língua?
— N-n-não, senhor — gaguejou Al.
Olhando para o chapéu amarrotado, Cole estendeu o braço para abrir a porta.
— Não esqueça seus modos, Al, e procure um lugar para essa coisa que tem na cabeça.
Com um sorriso constrangido, Al olhou para as costas do ianque e entrou atrás dele. A dona da
estalagem, uma mulher gorducha, parou o que estava fazendo quando os dois atravessaram a sala e
escolheram uma mesa perto da janela. Com rosto inexpressivo observou o uniforme impecável do
ianque e as roupas do menino e voltou a picar os vegetais com a testa levemente franzida.
Imitando com relutância o capitão Latimer, Al tirou o chapéu e sentou-se na cadeira indicada pelo
ianque. Cole Latimer olhou incrédulo e visivelmente mortificado para a moita avermelhada e mal
cortada que era o cabelo do menino.
— Quem cortou seu cabelo desse jeito, rapaz?—perguntou, sem notar o tremor no lábio do jovem.
A resposta veio numa voz gutural:
— Fui eu.
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Cole riu.
— Seu forte não deve ser cortar cabelo.
Sem responder, Al vírou-se para a janela, procurando esconder as lágrimas que ameaçavam inundar
seus olhos. Cole chamou a mulher, que atendeu prontamente, parando ao lado da mesa com as mãos
na cintura.
— Hoje tem camarão—disse ela com o sotaque arrastado do sul. — Sopa de crustáceos ou o trivial.
Temos cerveja ou café, chá ou leite de vaca. O que vai querer, senhor? — perguntou, acentuando a
última palavra.
Cole ignorou a ironia agressiva, acostumado que estava com o desprezo dos sulistas por todos os
soldados de farda azul. Chegara em Nova Orleans quando o general Butler governava a cidade e a
animosidade do povo era muito maior. O general tentou governar como se Nova Orleans fosse uma
guarnição militar, decretando ordens e regulamentos que supostamente resolveriam qualquer
problema. Incapaz de compreender o orgulho obstinado do povo e de conviver com ele, Butler
falhou miseravelmente na sua missão. A cidade estava à beira de uma revolta quando ele foi retirado
do cargo por seus superiores. Butler, contudo, era severo também com os próprios homens e chegou
a enforcar uns poucos que foram apanhados roubando dos civis. Nova Orleans não era uma cidade
fácil de ser governada e, certamente, nunca por um homem como Butler. Por seu rigor, ele tornou-se
duplamente impopular, mas os sulistas teriam odiado qualquer general ianque colocado naquela
posição.
— Quero uma sopa de crustáceos e cerveja fria—disse Cole. — Para o menino, o que ele quiser,
menos cerveja.
A mulher se afastou, e Cole olhou outra vez para seu jovem companheiro.
— Nova Orleans parece um lugar estranho para um menino que odeia os ianques. Tem parentes
aqui, ou algum lugar para ficar?
— Tenho um tio.
— Isso é um alívio. Estava com medo de ter de partilhar meu alojamento com você.
Al engasgou e tossiu.
— Não vou dormir no alojamento de nenhum ianque, pode estar certo.
Com um suspiro de impaciência, o capitão voltou ao assunto de trabalho.
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— Suponho que precisa ganhar algum dinheiro, mas acontece que a maior parte dos civis está em
péssima situação. Só o exército da União pode oferecer emprego, e o hospital parece uma boa
escolha. A não ser, é claro, que prefira trabalhar com as turmas de limpeza das ruas.
Al mal conseguiu controlar a fúria.
— Você sabe escrever e contar?„— perguntou o capitão.
— Um pouco.
— O que quer dizer isso? Sabe só escrever seu nome, ou mais alguma coisa?
Olhando fixamente para o oficial, com raiva crescente, Al respondeu, com voz inexpressiva.
— Mais, se for preciso.
— Os negros que faziam a limpeza no hospital alistaram-se no exército — comentou Cole. — O
número de inválidos não é grande coisa, uma vez que os feridos que podem andar voltam para o
regimento ou para casa.
— Não vou ajudar a curar nenhum ianque — disse Al. Uma sugestão de lágrimas cintilou nos olhos
claros.—Vocês mataram meu pai e meu irmão e levaram minha mãe para o túmulo com sua
devastação infernal.
Cole sentiu pena dele.
— Eu sinto muito, Al. Minha missão é salvar vidas e curar pessoas, não importa a farda que estejam
usando.
— Sim, eu sei. Mas ainda não vi um ianque que não prefira, antes de tudo, cavalgar por nossas terras,
queimando e roubando...
— De onde você vem, para pensar isso de nós? — interrompeu o capitão, bruscamente.
— Da parte alta do rio.
— Da parte alta do rio?—disse o capitão, com sarcasmo evidente. — Não Chanceílorsville ou
Gettysburg? Já ouviu falar desses lugares, não ouviu?—Percebeu a contração no rosto de Al, que
baixou os olhos, mas continuou, em tom zombeteiro. — Muito bem, por sua resposta, suponho que
você era um maldito barriga azul, como eu, e viu um daqueles Johnny Rebs saqueando nossas terras.
De que lugar, na parte alta do rio? Baton Rouge? Vicksburg? Ou talvez Minnesota?
Os olhos cinzentos ergueram-se, chispando de fúria.
— Só um burro relinchante pode ser de Minnesota!
O dedo ameaçador aproximou-se outra vez do nariz do menino.
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— Não mandei ter cuidado com suas maneiras?
— Minhas maneiras são ótimas, ianque. — De forma ousada, afastou a mão do homem da frente do
seu rosto. — É você quem está me provocando. Sua mãe nunca disse que é feio apontar para as
pessoas?
— Cuidado — avisou o oficial, quase gentilmente. — Senão tiro sua calça e deixo seu traseiro em
fogo!
Com uma exclamação abafada, Al levantou-se da cadeira e curvou o corpo, como um animal
encurralado, com um brilho feroz nos olhos cinzentos. Com um gesto brusco, apanhou o chapéu e o
enfiou na cabeça.
— Se encostar um dedo em mim, ianque — disse em voz baixa e rouca —, leva uma facada. Não
vou deixar nenhum maldito perna azul...
Cole Latimer se levantou e inclinou-se para a frente. Os olhos azuis do capitão, frios como pedra,
fixaram por um longo tempo os de Al. Mas quando falou foi com voz baixa e lenta.
— Está me desafiando, rapaz? — Antes que Al tivesse tempo de se mover, o chapéu foi arrancado
da sua cabeça e atirado na mesa. Ele arregalou os olhos, e Cole continuou, no mesmo tom. — Sente-
se e cale a boca, ou faço o que prometi, aqui e agora.
Al engoliu em seco, sem coragem para enfrentar o capitão. Sentou-se rapidamente e o olhou para o
ianque com mais respeito. Cole se sentou também e disse com voz pausada e clara.
— Nunca bati em crianças nem em mulheres... — Sem tirar os olhos do capitão, Al ficou sentado,
imóvel. — Mas se me tentar, posso começar agora mesmo.
Al, inseguro agora, procurou se comportar do melhor modo possível. Ficou calado, com os olhos
baixos e as mãos cruzadas no colo.
— Assim é melhor — aprovou Cole. — Agora, de que lugar da parte alta do rio você é?
A resposta foi quase inaudível.
— Alguns quilômetros ao norte de Baton Rouge.
-A expressão severa do capitão transformou-se num leve sorriso.
— Espero que, no futuro, você modifique sua opinião a meu respeito — Al ergueu os olhos,
surpreso, e o oficial explicou: — Meu lar fica um pouco mais para cima... Minnesota.
Al foi salvo do misto de confusão e embaraço pela dona da
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estalagem, que chegou perto da mesa equilibrando a bandeja numa das mãos. Com o rosto
inexpressivo, ela pôs entre os dois a tigela com sopa de crustáceos cheirosa e quente, um prato de
biscoitos feitos na hora e outro com peixe frito empanado com farinha de milho. Mal ela se afastou,
e Al já estava mastigando um pedaço de peixe e enchendo a boca com colheradas de molho.
Percebeu então que Cole o observava e, encabulado, começou a comer mais devagar. O capitão
Latimer sorriu, depois voltou a atenção para seu prato.
Apesar da pressa inicial, o menino se satisfez rapidamente e depois de algum tempo passou a comer
mais devagar ainda, enquanto Cole continuava saboreando sua comida. Quando terminou, Cole se
recostou na cadeira e limpou a boca com o guardanapo.
— Sabe onde mora seu tio?
Al respondeu com uma rápida inclinação da cabeça. Cole se levantou da cadeira, pôs o dinheiro na
mesa e apanhou o chapéu, fazendo um gesto para que Al o acompanhasse.
— Venha. Se meu cavalo ainda estiver aí fora, vamos dar um jeito de levar você à casa do seu tio.
Al apanhou a mala e caminhou para a porta, atrás do homem. Nem pensou em recusar a oferta.
Montar era muito melhor do que andar a pé. Lutando com o peso da mala e das botas, saiu atrás do
seu guardião. O par estranho, o menino sujo e o oficial impecavalmente fardado, caminhou até o
cavalo castanho, de pernas longas, preso pela rédea na sombra de um telhado. Cole olhou para o
menino magro e para a mala pesada.
— Acha que pode se agüentar na garupa com sua mala?
— Posso sim. — Al cambaleou um pouco. — Eu monto desde pequeno.
— Suba, então. Eu passo a mala depois.
Cole segurou o cavalo, enquanto Al se esforçava para alcançar o estribo e, quando finalmente
alcançou, não conseguiu passar a perna para o outro lado da sela.
— Desde pequeno, hein?
De repente, Al sentiu a mão forte do homem no seu traseiro, impulsionando-o para cima. Com os
olhos arregalados e mortificado, foi içado para o dorso do animal. Voltou-se zangado para o ianque,
mas Cole já estava levantando a mala e ajeitando-a na frente dele.
— Eu diria que teve uma vida muito fácil até agora, Al. Você é macio como uma mulher.
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Sem outro comentário, o capitão montou, passando a perna por cima do santantonio. Ajeitaram-se
por um momento, e então Cole se virou para trás e perguntou:
— Tudo pronto?
Ouvindo a resposta afirmativa, fez o cavalo dar meia-volta e saíram do cais. O animal era magnífico e
bem treinado, mas não estava acostumado com nenhum peso extra, por mais leve que fosse. Al tinha
de lutar com a mala, com o dorso escorregadio do animal e com sua relutância em tocar no capitão.
Seus esforços só serviram para deixar o cavalo mais agitado. Finalmente, Cole perdeu a paciência e
disse.
— Al, firme seu traseiro e fique quieto aí atrás; do contrário, vamos acabar no chão. — Levou o
braço para trás, segurou a mão pequena de Al e a apertou contra o lado do seu corpo. — Aí, segure
no meu casaco. Agora, a outra mão também, e fique quieto.
Desajeitado, Al obedeceu e finalmente se acomodou. O animal acalmou-se e tudo ficou mais fácil. A
mala estava entre os dois, segura pelos braços de Al. Assim era melhor, pensou ele. Pelo menos, não
precisava encostar-se no odiado casaco azul.
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Capítulo Dois
A CIDADE FORA relativamente poupada da batalha. Ao longo do rio eram visíveis as cicatrizes da
luta, mas à medida que se afastavam do cais, a vida parecia normal, como antes, não prejudicada pela
presença dos soldados da União. Lojas e casas estreitas, adornadas com sacadas com grades de ferro
trabalhado, encostavam umas nas outras. Os jardins bem-cuidados eram protegidos por portões de
ferro ornamentado, e as árvores cresciam nos lugares mais estranhos. Seguindo a orientação do
menino, depois de passarem pelo Vieux Carré, as avenidas eram mais largas ladeadas por pequenos
gramados na frente das casas. Árvores de magnólia combinavam o perfume das suas flores grandes,
que pareciam feitas de cera com a fragrância do jasmim e da pervinca crespa. Mais adiante, os jardins
eram maiores, e as casas grandes estendiam-se sob os carvalhos seculares. Cole olhou para trás e
disse, em tom de dúvida:
— Tem certeza de que sabe para onde está nos levando, Al? Aqui é onde moram os ricos.
— Sim. Com a pouca riqueza que vocês, os ianques, nos deixaram. — Deu de ombros e apontou: —
Já estive aqui antes. Fica logo adiante. Por ali.
Logo depois ele indicou uma estrada estreita, que passava por uma cerca viva alta e levava a uma casa
de tijolos bastante espaçosa.
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Arcadas de tijolos sombreavam a galeria do primeiro andar, e numa das extremidades da varanda
uma escada espiral de ferro levava a uma sacada enfeitada com filigranas, que se estendia por toda a
frente da mansão. Enormes carvalhos protegiam a casa do calor do sol, e sob seus galhos generosos
a casa das carruagens aparecia atrás do portão de ferro trabalhado, que levava ao terreno da
propriedade.
Cole percebeu a ansiedade crescente do menino quando fez o cavalo entrar na trilha sinuosa calçada
de tijolos. Pararam na frente da galeria, e Cole apeou, passando as rédeas pelo anel de ferro do poste
de madeira. Depois ergueu a mão para apanhar a mala. Assim que a tirou da sela, Al saltou para o
chão e, correndo para a porta, tocou várias vezes a campainha. Como qualquer bom criado, o capitão
ficou atrás, carregando a mala.
Al olhou apreensivo para o capitão e depois recomeçou a tocar a campainha. Ouviram passos dentro
da casa, e a porta foi aberta por uma mulher jovem e muito bela, um pouco mais alta do que Al.
Olhou confusa para os dois, e Cole tirou o chapéu e o segurou debaixo do braço. Um oficial ianque
naquela varanda era um acontecimento estranho, mas não tanto quanto a careta de súplica no rosto
do menino.
— Senhorita. — Cole não viu o menor sinal de reconhecimento no belo rosto da moça e começava a
suspeitar da credibilidade de Al — Este menino diz que a conhece. É verdade?
A mulher olhou espantada e quase com repulsa para Al. Franziu o nariz enojada.
— Meu Deus, certamente eu não poderia... — De repente, parou, e deixou escapar uma exclamação
abafada: — Al... Al...
Vendo os olhos assustados do menino, ela parou, evidentemente confusa. Olhou, nervosa, para o
capitão, depois, outra vez para Al.
— Al? — tentou outra vez e então, encorajada pelo sorriso do menino, disse: — Ora, Al, é você!
Nós não o... ah... esperávamos. Minha nossa! Mamãe vai ficar surpresa. Pode estar certo, vai ficar
perplexa quando vir você!
A bela jovem de cabelos pretos e brilhantes olhou para Cole, agora com um sorriso radiante.
— Espero que Al não tenha feito nada muito horrível, coronel. Mamãe sempre dizia que Al tinha
idéias próprias. Ora, nunca se sabe o que ele vai aprontar.
— Capitão, senhorita — corrigiu Cole, em tom delicado. — Capitão Cole Latimer.
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Al disse, apontando com o polegar sobre o ombro.
— O doutor me deu uma carona do navio até aqui.
A moça arregalou os olhos, admirada, olhando do capitão para o cavalo amarrado no poste.
— Não vai me dizer que vieram no mesmo cavalo desde... Al tossiu alto e voltou-se para o ianque.
— Esta é minha prima Roberta. Roberta Craighugh.
Ele respondeu como um cavalheiro à bela jovem, de cabelos pretos, olhos escuros e vestido de verão
cor de pêssego, com decote generoso, bateu os calcanhares e se inclinou levemente.
— É uma honra conhecê-la, srta. Craighugh.
A mãe de Roberta era francesa, e o sangue romântico dos franceses correu célere nas veias da jovem
sob o olhar apreciativo do belo oficial ianque. A guerra privara-a de tantas coisas boas da vida e logo
faria 22 anos e seria uma solteirona. Sabia que, sem a companhia de um homem, a mulher não era
nada na vida. Mas seu espírito animou-se com a perspectiva de outra conquista. O que fazia tudo
mais interessante era o fato de ele pertencer à lista dos proibidos, os detestados ianques.
— Não posso dizer que já conheci muitos soldados do norte, capitão — disse ela. — Tenho ouvido
tantas histórias perturbadoras a seu respeito. Porém—ela mordeu, pensativa, a ponta do dedo —,
não me parece o tipo de homem capaz de andar por aí assustando pobres mulheres indefesas.
Os dentes brancos brilharam num sorriso malicioso, e Cole respondeu:
— Eu me esforço para não fazer isso, senhorita.
Roberta corou, excitada, e seus pensamentos dispararam. Ele parecia muito mais homem e mais
seguro de si do que aqueles meninos tolos que a tinham sufocado com propostas ardentes antes de
partirem para defender a confederação. Conquistá-los fora um desafio para ela, mas esse ianque seria
com certeza muito mais interessante.
Como se se lembrasse de repente do primo, Roberta voltou-se para ele.
— Al, por que não entra? Dulcie vai gostar de ver você, tenho certeza.
Dispensado, mas não disposto a sair de onde estava, Al olhou apreensivo da prima para o ianque. Já
vira aquela expressão nos olhos de Roberta antes e sabia que não significava nada de bom para ele,
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nem para o capitão. Ver o inimigo cortejar Roberta era o mesmo que olhar pelo cano de um rifle. Ele
preferia não estar na ponta perigosa quando a arma disparasse.
Depois de limpar a mão suja na calça folgada, Al a estendeu para o homem.
— Agradeço muito o passeio, capitão. Espero que encontre o caminho de volta sem problemas. —
Com a cabeça, Al indicou o sol que brilhava entre as árvores. — Parece que vai chover. Acho que é
melhor o senhor ir antes...
— Bobagem, Al — interrompeu-o Roberta. — O mínimo que podemos fazer é retribuir a bondade
do gentil cavalheiro. Estou certa de que ele gostaria de um pequeno descanso depois dessa viagem
longa e quente.—Sorriu calorosamente para Cole.—Não quer entrar, capitão? Dentro de casa está
mais fresco. — Ignorando a preocupação do primo, ela abriu mais a porta e convidou docemente. —
Por aqui, capitão.
Al olhou demoradamente para os dois quando entraram na casa, com os dentes cerrados de raiva, os
olhos como duas chispas de fogo. Pegou a mala pesada e a arrastou para dentro, mas no processo
bateu o cotovelo e resmungou várias palavras que o capitão não teria aprovado, caso tivesse ouvido.
Felizmente, a atenção do oficial estava ocupada, enquanto ele seguia Roberta para a sala de estar
quase vazia de móveis.
— Deve desculpar a aparência desta sala, capitão. Antes da guerra era muito mais elegante.— Com
um gesto recatado, ela estendeu a saia rodada na frente da cadeira de Cole e pousou com graça
fidalga na beirada do sofá de seda desbotada. — Só sobrou ao meu pai uma lojinha para sobreviver.
E nós tínhamos tanto! E agora, quem pode pagar os preços exorbitantes que ele é obrigado a pedir?
Imagine um dólar por um sabonete, e eu que me acostumei tanto com os perfumes franceses. Não
suporto nem olhar para aqueles sabonetes ásperos feitos por Dulcie.
— A guerra parece tirar o melhor de todos, senhora — comentou Cole, com ironia.
— A guerra não foi tão difícil de agüentar enquanto aquele horrível general Butler não desceu sobre
nós. Desculpe a minha franqueza, capitão, mas eu odiava aquele homem.
— Como a maioria dos sulistas, srta. Craighugh.
— Sim, mas poucos tiveram de suportar o que suportamos. Os
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armazéns do meu pai foram tomados por aquele homem horrível. Imagine, ele ficou até com os
nossos móveis e objetos de valor só porque papai não quis assinar aquele miserável juramento de
lealdade. Eles iam até tomar esta casa, imagine só! Mas papai cedeu... só para garantir minha
segurança e a de mamãe. Então houve a afronta a todo o sul com aquela ordem para que as mulheres
fossem tratadas com menor cortesia pelos homens dele. Não posso imaginar um cavalheiro como o
senhor, obedecendo a essa ordem.
Cole sabia de cor a Ordem Vinte e Oito do General Butler, pois provocara grande furor entre os
civis. A intenção de Butler era proteger seus homens dos insultos das mulheres de Nova Orleans,
mas o tiro saiu pela culatra, e no fim teve como resultado maior simpatia pelo sul.
— E eu, srta. Craighugh, não posso imaginá-la merecendo tal tratamento.
— Devo confessar que eu tinha medo de sair de casa, temendo ser importunada. Foi um alívio
quando o exército da União resolveu substituir o general Butler, e agora eles têm aquele bondoso
general no comando da cidade. Ouvi dizer que Banks dá os mais luxuosos bailes e que é muito mais
cordial. Já esteve num desses bailes, capitão?
— Infelizmente tenho estado muito ocupado no hospital, srta. Craighugh. Raramente tenho um dia
para mim mesmo, mas hoje tive muita sorte. Depois da inspeção no hospital, feita essa manhã pelo
general, consegui ter a tarde de folga. Agora, sei que foi uma sorte.
Al ouviu a conversa de pé, tentando captar a atenção da prima e ao mesmo tempo ficando fora do
campo de visão do oficial. Mas percebeu que Roberta estava completamente absorta na companhia
de Cole e não queria ser interrompida. Para obrigá-la a lembrar os bons modos, ele deixou a mala
cair barulhentamente no chão de mármore.
Roberta sobressaltou-se.
— Oh, Al! Você deve estar faminto, criança, e o jantar ainda vai demorar anos. Vá pedir a Dulcie
alguma coisa para comer. — Sorriu para Cole. — Meu Deus, há tanto tempo não recebemos visitas,
que quase esqueci meus modos. Capitão Latimer, não quer ficar para o jantar? Dulcie é uma das
melhores cozinheiras de Nova Orleans.
Al virou os olhos para o teto em total incredulidade. Como Roberta Podia dizer uma coisa daquelas?
Surpreso com o convite, Cole demorou para responder. Geralmente só as mulheres fáceis se
rebaixavam e se entregavam ao inimigo, e mesmo
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elas nem sempre eram muito agradáveis. Embora isso tivesse significado para ele longos meses de
abstinência, não estava disposto a se arriscar com uma bela e perigosa simpatizante dos
confederados. Também não fora tentado a ir para a cama com aquelas cuja segurança podia ser
provada por quase todos os homens da União sediados na cidade. Não o desagradava a idéia de se
demorar na companhia daquela beldade, mas precisava considerar certas coisas. O pai dela, por
exemplo. Cole preferia evitar o risco de ser obrigado a um casamento.
— Não vou permitir que recuse o meu convite, capitão — disse Roberta, com um muxoxo tentador,
certa de que ele ia aceitar. Afinal, isso nunca tinha acontecido com ela. — Acredito que não tenha
tido oportunidade de apreciar a hospitalidade de Nova Orleans.
— Dadas as circunstâncias, seria esperar demais — sorriu Cole.
— Muito bem, então está resolvido — disse Roberta, satisfeita. — O senhor fica. Afinal, trouxe Al
para casa, e nós lhe devemos isso.
Vendo que não ia conseguir a atenção de Roberta, Al resmungou baixinho e foi para a cozinha. As
botas, grandes demais, batiam barulhentas no chão, marcando sua passagem pela casa. Era como um
dobre de finados, ecoando pelas salas quase vazias, e Al procurou pisar com mais leveza. A casa era
pouco mais do que a sombra do antigo esplendor, e era doloroso ver as paredes nuas e os nichos e
estantes desprovidos dos objetos valiosos que ostentavam antes. Não havia mais também o
movimento constante dos criados. Al imaginou que todos, exceto Dulcie e sua família, tinham
partido.
Abriu a porta da cozinha. A velha negra estava preparando o cozido para o jantar. Dulcie era uma
mulher forte, mas não gorda, de ossos grandes. Ela parou de raspar a cenoura e passou as costas da
mão na testa. Com o canto dos olhos percebeu o menino sujo e malvestido e disse:
— O que está fazendo aqui, menino? — Largou a cenoura e levantou-se, limpando as mãos no
grande avental branco. — Se quer comida, devia entrar pelos fundos e não ficar andando pela casa
do seu Angus como um ianque atrevido.
Temendo que pudessem ouvi-la na sala, Al procurou fazer com que ela falasse mais baixo,
apontando para a parte da frente da casa. Vendo que ela não tinha compreendido, aproximou-se e
pôs a mão no braço da mulher.
— Dulcie, sou eu, Al...
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— Deus do céu!—o grito pareceu soar por toda a casa e terminou de repente, quando Al tampou a
boca de Dulcie com a mão.
Na sala, Roberta olhou preocupada na direção da cozinha e depois sorriu para o capitão,
murmurando atrás do leque:
— Al sempre arruma alguma coisa com Dulcie.
Para evitar maiores explicações, Roberta começou a falar animadamente. A cor do uniforme do
oficial não era mais relevante. Ele era um homem completo e total, como mostrava seu modo de
andar, de falar, os gestos. A voz, cheia e sonora, provocava arrepios na espinha dela. Os modos dele
eram suaves e educados, mas Roberta pressentia que não era homem de agüentar impertinências.
Cole estava à vontade com ela e certamente estaria também num grupo só de homens. Mal o
conhecia, mas se sentia aquecida por sua presença, e excitada com a idéia de ser outra vez cortejada,
depois de tanto tempo.
Quando resolveu ajudar Al, Cole estava resignado a ter um dia perdido. Raramente conseguia uma
tarde que fosse de folga no hospital. E agora mal podia acreditar naquela virada dos acontecimentos.
Estar ali, naquela sala arejada, conversando agradavelmente com uma bela mulher, era uma
recompensa maior do que poderia esperar por dar proteção a um pequeno órfão. Sentia-se relaxado,
ouvindo a conversa leve e animada de Roberta. Então uma carruagem parou na frente da casa,
silenciando de imediato a bela jovem. Com a testa franzida, Roberta levantou da cadeira, com gestos
nervosos.
— Perdoe-me, capitão. Creio que meus pais chegaram. — Preparava-se para correr para o hall
quando a porta se abriu bruscamente e Angus Craighugh entrou como uma bala, acompanhado pela
mulher. Angus era baixo e troncudo, descendente de escoceses, com cabelos grisalhos e rosto largo e
vermelho. Leala Craighugh era uma mulher agitada, pequena e gorducha, com alguns fios brancos
entre os cabelos escuros. Os olhos grandes e escuros demonstravam toda sua preocupação. A
ansiedade do casal dizia que tinham visto o cavalo lá fora, com os arreios dos federalistas. Só podiam
pensar o pior.
Roberta não teve tempo de explicar a presença do capitão, antes que os pais o vissem. Cole levantou-
se cortesmente e, enfrentando agora os olhares atônitos de Angus e de Leala.
— Algum problema? — perguntou Angus. Olhou rápido para a filha, mas não deu a ela tempo para
responder. Voltou-se, zangado, para o oficial. — Senhor, minha filha não está acostumada a receber
cavalheiros desacompanhada, especialmente ianques. Se quer falar
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comigo, podemos ir ao meu escritório, onde não perturbaremos as senhoras.
Cole ia responder, mas Roberta foi mais rápida.
— Papai, querido... este é o capitão Latimer. Ele encontrou Al no cais e teve a bondade de trazê-lo
até aqui.
Confuso, Angus olhou zangado para a filha. A indignação no rosto corado cedia lugar ao espanto.
— Al? Ele? O que é isso, Roberta? Uma brincadeira?
— Por favor, papai — segurou a mão de Angus, com os olhos negros e brilhantes nos dele. — Ele
está na cozinha comendo alguma coisa. Por que você e mamãe não vão até lá para vê-lo?
Um pouco consternado, Angus obedeceu a sugestão da filha. Outra vez a sós com Cole, Roberta
ficou mais calma. Com um sorriso cintilante, ia começar a falar do calor daquele dia quando um grito
agudo partiu da cozinha, seguido de uma pausa, e depois palavras rápidas e confusas, em francês.
Roberta levantou-se de um salto, mas se refez rapidamente quando viu que o capitão já caminhava
para a cozinha.
— Não, por favor — pediu segurando o braço dele.
Não precisou insistir mais porque Angus apareceu, amparando e consolando a mulher, que,
encostada nele, murmurava frases desconexas. Angus a fez sentar-se numa poltrona.
— Talvez eu possa ajudar, senhor — ofereceu-se Cole.—Eu sou médico.
— Não! — A resposta foi brusca e instintiva. Angus agradeceu o oferecimento com um gesto e,
procurando se controlar, disse, um pouco mais calmo: — Não, por favor. Desculpe minha mulher.
Foi só um susto... um rato. — Deu de ombros, embaraçado.
Cole pareceu aceitar a explicação até ver Al encostado no batente da porta.
— Acho que compreendo — disse ele.
Roberta olhou, nervosa, para o primo, torcendo as mãos, ansiosa.
— Al mudou tanto, que qualquer pessoa ficaria chocada... Leala, recobrando um pouco a
compostura, procurou se endireitar na cadeira. Evitando cuidadosamente olhar para Al, tentou voltar
à pose natural.
— Deve nos perdoar, capitão — disse Angus, muito tenso e com voz seca. — Não é sempre que
temos a visita de um oficial da União.
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Estávamos certos de que havia algum problema, depois, ver o... ah... o menino, Al...
Al entrou descansadamente na sala, arrastando as botas enormes no tapete puído. Sorriu, com os
dentes brancos brilhando no rosto sujo de fuligem.
— Desculpe, tio Angus. Nunca fui muito bom para escrever e, além disso, não ia poder mandar
nenhuma carta para cá.
Angus estremeceu levemente ouvindo a voz do menino, e Leala agora parecia não poder tirar os
olhos do sobrinho, acompanhando todos os seus movimentos.
— Está tudo bem, Al — disse Angus. — Estes são tempos difíceis.
Com um sorriso trêmulo, Roberta disse:
— Espero que não nos considere um bando de patetas, depois disso tudo, capitão.
— É claro que não — garantiu Cole, cortesmente, olhando com expressão divertida para o menino.
Angus deu um passo e ficou entre Al e o capitão.
— Espero que aceite nossa gratidão por ter trazido Al para nós. Não sei aonde ele poderia ter ido
parar se não fosse pelo senhor.
Al caminhou para o centro da sala e olhou para o ianque com ar de desafio. Cole respondeu com um
sorriso de canto de boca.
— Na verdade, senhor, ele estava tendo problemas com alguns soldados quando eu os interrompi.
— Ooooh! — exclamou Leala, abanando o leque com força. Angus olhou rápido para a mulher.
— Está se sentindo bem, mamãe?
— Oui — disse ela, meio engasgada, acenando afirmativamente com a cabeça. — Estou muito bem.
Angus voltou-se para Al.
— Houve alguma dificuldade? Você está bem?
— É claro que estou! — Al gingou o corpo e ergueu o pequeno punho fechado. — Mais um pouco
e eu teria acabado com aqueles barrigas azuis.
Angus olhou estranhamente para ele.
— Muito bem — suspirou. — Ainda bem que você está aqui, a salvo, e que tudo terminou.
Com um sorriso maroto, Al corrigiu:
— Não terminou. — Todos olharam para ele, contendo a respiração,
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menos Cole. Al continuou, com um largo sorriso: — Roberta convidou o doutor para jantar.
O leque de Leala caiu no chão com um estalo e ela desmoronou na cadeira com um gemido, olhando
incrédula para a filha. Com uma carranca ameaçadora, Angus olhou para ela também. Foi um longo
momento de embaraçoso silêncio.
Cole achou melhor aliviar a tensão.
— Estou de plantão esta noite no hospital, senhor. Infelizmente não posso aceitar o convite.
— Oh, capitão — ronronou Roberta, ignorando o descontentamento dos pais. — Certamente vai
permitir que demonstremos nossa gratidão por trazer Al. Quando estará livre outra vez?
Cole achou interessante a insistência e a determinação de Roberta.
— Se não houver nenhum imprevisto, devo ter a noite livre na sexta-feira da próxima semana.
— Então deve jantar conosco na sexta-feira — disse Roberta, docemente, a despeito da carranca do
pai.
Cole não podia ignorar a relutância do casal e voltou-se para Angus:
— Se tiver a sua permissão, senhor.
Demonstrando em silêncio sua desaprovação para a filha, Angus cedeu, resignado. Sem ser rude e
ofensivo, não tinha saída.
— É claro, capitão. Apreciamos muito o que fez por Al.
— Foi o mínimo que pude fazer, senhor — respondeu Cole, delicadamente. — Achei que ele
precisava de uma mão amiga. Estou muito aliviado por vê-lo em casa, com os parentes.
— Sim! — zombou Al. — Um pirralho a menos para se preocupar. Vocês, barrigas azuis, fazem uma
porção de órfãos e depois têm a coragem de passear os traseiros em salas esvaziadas pelos ladrões
que são seus homens...
Leala gemeu, trêmula e medrosamente, e torceu as mãos, com um olhar de súplica para o marido.
Angus apressou-se a servir uma dose de cherry forte, pôs o copo na mão trêmula de Leala e esperou
que ela tomasse um bom gole. Depois olhou zangado para Al.
— Tenho certeza de que o capitão Latimer não teve nada a ver com isso.
— É claro que não — concordou Roberta, olhando de soslaio para Al.
O capitão era a pessoa mais excitante que tinha visto desde a
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ocupação de Nova Orleans, e ela não ia deixar que o primo estragasse sua primeira oportunidade,
naquela guerra aborrecida, que havia tanto temp o a obrigava a viver como uma solteirona. Na
verdade, estava disposta a usar todos os recursos disponíveis para fazer uma amizade extremamente
vantajosa. Abaixando as longas pestanas, provocadoramente, sorriu para Cole e com imenso prazer
percebeu que ele a observava com aquele olhar que em todos os tempos os homens sempre
reservaram para as mulheres tentadoras. O capitão estava maduro, pronto para ser colhido.
Angus percebeu a troca de olhares, ficou rígido e não disfarçou o desagrado quando Cole olhou
diretamente para ele com um sorriso.
— Sua filha é muito bonita, senhor. Há muito tempo que eu não tinha o prazer de uma companhia
tão agradável.
Para desconforto de Angus, Al bufou como um bezerro zangado, atraindo o olhar intrigado do
capitão. Cole podia entender o descontentamento do pai, mas a reação do menino o surpreendia. Os
olhos deles se encontraram por um momento, os cinzentos e claros respondendo com zombaria a
interrogação dos azuis. Quase com arrogância o menino esguio caminhou para onde Leala estava
sentada. O copo de cherry estava na mesa ao lado dela, e numa saudação irônica, Al o ergueu para o
capitão e, agora com uma expressão de ódio intenso, bebeu o que restava.
— Al... — Cole falou baixo, e só o menino percebeu a ameaça na sua voz. — Você está magoando
sua tia. Estou certo de que seria prudente ter modos. Na presença de senhoras, um cavalheiro deve
tirar o chapéu.
Leala torceu as mãos outra vez ansiosa e olhou furtivamente para o marido. Parecia prestes a ter um
ataque de nervos.
— Capitão, está tudo bem — disse Angus rapidamente, mas a mão de Al já estava subindo para o
chapéu amarrotado. Seus olhos eram como adagas, fixos no ianque. O chapéu foi tirado da cabeça e
atirado para o outro canto da sala. Roberta deixou escapar uma exclamação abafada, Angus franziu a
testa, horrorizado, antes de recuperar a voz. Seu grito fez estremecer as vigas do teto.
— Que diabo você fez?
O gemido de Leala começou baixo e foi aos poucos aumentando de volume. Ela atirou as mãos para
o alto e depois as cruzou como quem pede a ajuda divina.
— Oh, Angus, Angus, o que foi que ele fez? Ooooh!
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Angus serviu rápido outro copo de cherry e o entregou para a mulher.
— Tome, Leala, beba — pediu ele, e com uma rara presença de espírito, disse para o capitão: — Al
sempre teve medo que o tomassem por uma menina.
Al virou o rosto, mas Angus disse, secamente:
— Al, acho que está na hora de você tomar um banho. Pode ficar com o quarto de sempre. E —
apontou para a mala de vime — leve essa bagagem com você.
Quando Al saiu da sala, Angus balançou a cabeça com ar incrédulo.
— Essa mocidade de hoje! Não sei aonde vamos parar. Não têm nenhuma disciplina. — Ergueu os
braços como que ansioso para dizer o que pensava. — Só fazem o que querem!
Cole procurou aliviar a tensão.
— Ele parece um bom menino, senhor. Cabeça dura, talvez. Teimoso! Sujo! Isso é verdade. Mas
pode vir a ser um grande homem.
Só depois de alguns meses Cole compreendeu a expressão dolorosa de Angus Craighugh naquele
momento.
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Capítulo Três
L PÔS A MALA de vime sobre a cama e deixou-se cair, cansado, ao lado dela. No barco, sua cama
era um fardo de algodão, e era um mistério insondável o fato de uma coisa que começa tão macia
transformar-se em algo tão duro e desconfortável. O pouco sono que conseguiu era sempre breve e
agitado. O frescor do nascer do dia era o único alívio e à medida que as horas se adiantavam e o ar
ficava mais quente e mais úmido precisava ficar alerta para que um pequeno descuido não destruísse
o melhor dos planos. O jogo fora bem jogado, e passara até no teste com Roberta.
Al levantou-se da cama e foi para a janela quando a porta se abriu e as duas filhas de Dulcie entraram
carregando uma pequena banheira de latão. Provavelmente, pensou Al, tinham sido avisadas para
evitar qualquer comoção na casa, enquanto o capitão estivesse presente. As meninas lançavam
olhares curiosos para as costas do menino alto e magro, enquanto preparavam o banho morno. Mas
nem uma palavra foi dita e depois de arrumar as toalhas e o sabonete nos lugares certos, elas saíram
do quarto, fechando a porta em silêncio.
Mãos sujas mergulharam na água, como conchas, e a levaram ao rosto encardido. Um suspiro de
prazer escapou dos lábios cansados. Mais alerta agora, os olhos cinzentos examinaram o quarto.
Alguns móveis tinham desaparecido, mas o que restava era bastante familiar.
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O quarto parecia dar as boas-vindas ao pequeno errante, como quem recebe um amigo, evocando
lembranças do passado. Eram necessárias para ofuscar as mais recentes. Não era o lar, mas a melhor
coisa que via nos últimos quinze dias.
Al voltou-se para o espelho rachado ao lado da banheira. Um sorriso tristonho apareceu no rosto
pensativo. Como se fossem dotadas de vontade própria, as mãos ergueram-se e os dedos passaram
entre o cabelo vermelho-escuro picotado. As botas foram atiradas para longe, logo acompanhadas
pela calça folgada demais e pelo paletó. A camisa chegava até os joelhos, e dedos ágeis a
desabotoaram e a juntaram ao restante das roupas.
Alaina MacGaren estava agora na frente do espelho, com panta-lonas retas e uma combinação de
criança que apertava os seios jovens, tornando-os quase invisíveis. Molhadas de suor e sujas, as
roupas de baixo aumentaram a pilha no canto do quarto e, livre afinal, ela deu um longo suspiro de
alívio. O espelho reafirmava o fato de que as dificuldades do último ano a tinham emagrecido ao
máximo. Alaina não queria mais pensar na fome responsável pelo que o espelho mostrava. Afinal,
não podia se queixar, a magreza ajudou o disfarce. Com dezessete anos, conseguia passar por um
garotinho bem debaixo do nariz dos ianques. O capitão Latimer sequer desconfiara.
Com alguma irritação, lembrou a atitude calorosa e entusiasta de Roberta, que certamente garantia a
volta do ianque à casa dos Craig-hugh. Mas para Alaina isso era um problema. De um momento para
o outro, podia ter de voltar ao disfarce.
Precisava pensar também em trabalho. Depois de ver a situação de quase pobreza dos tios, não podia
aceitar sua caridade. Estava resolvida a trabalhar para se manter, mas o que o capitão dissera era
verdade. Poucos civis podiam lhe dar emprego. Além disso, que lugar podia ser melhor para uma
jovem procurada do que um hospital da União? A idéia aguçava sua imaginação.
Alaina estudou atentamente a imagem no espelho. Por quanto tempo poderia se fazer passar por
menino no hospital ianque? Havia alguma coisa que podia traí-la? O nariz fino e atrevido parecia
uma peça extra entre as faces, queimado de sol e descascado e o rosto de formato quadrado, com as
maçãs altas, podia passar por um rosto de menino, apesar de ser bonito. Talvez nem mesmo os
olhos, grandes, brilhantes e cinzentos, protegidos pelas pestanas longas, negras e
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sedosas, fossem um empecilho. Mas a boca! Era macia demais! Muito vermelha e delicada! Sem nada
de masculino!
Pensativa, Alaina franziu os lábios, fez uma careta e sorriu para o espelho. É isso, pensou, se eu
puder manter os lábios firmes — pode dar certo!
Alaina examinava o próprio rosto, pensando apenas nos riscos que podia representar. A despeito dos
esforços da mãe, ela sempre fora uma menina levada e estabanada. Depois, os anos de pesada
responsabilidade, uma dieta de fome e trabalho árduo como que abafaram as mudanças naturais da
idade. Diante de todos esses obstáculos a natureza, com infinita paciência, caminhou devagar. Era
um tempo de sobrevivência, não de sonhos e desejos de uma adolescente. Agora, a mente enrijecida
pela necessidade, pensava apenas no melhor modo de se sair bem com o disfarce. Não passava
sequer por sua cabeça a possibilidade daquele rosto, em algum tempo, no futuro, fazer com que um
homem esquecesse todos os seus outros objetivos na vida.
A porta da frente foi aberta e fechada, e Alaina espiou por entre as tábuas da veneziana da porta da
varanda que dava para o jardim. O capitão Latimer saiu da casa, pôs o chapéu e caminhou para o
cavalo. Com relutância, Alaina admitiu que ele era uma figura esplêndida e de certa forma
excepcional. Alto, com as costas muito retas, magro e musculoso, emprestava ao uniforme dignidade
e elegância raras. Admitia também que ele era bonito, com traços fortes e bem-feitos e olhos azuis
cheios de vida. Mas era um ianque e isso, para Alaina, era uma falta imperdoável. Afastando-o
completamente da lembrança, Alaina voltou para a banheira. Se Roberta estava encantada com ele,
esta prima não estava. Não podia aceitá-lo, assim como não aceitara o tenente arrogante que, um mês
antes, em Briar Hill, a ameaçara de ser enforcada como espiã. Na verdade, se ele soubesse de tudo,
provavelmente o capitão Latimer concordaria com o tenente.
Entrando na banheira, Alaina começou a passar vigorosamente o sabão feito em casa no corpo e na
cabeça. Aquela fora a parte mais difícil, mas o cabelo longo e ondulado tornou-se um risco ao qual
não podia se expor. Escondida num velho celeiro, na margem do rio, Alaina realizou a dolorosa
operação, para o caso de o chapéu ser levado pelo vento ou por um encontrão desajeitado no meio
do povo.
Tudo começara inocentemente. No princípio, os soldados confederados apenas pediam comida e
abrigo, uma ou duas noites de descanso antes de continuarem seu caminho. Sua mãe, Glynis Mac
Garen,
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os recebia de boa vontade e, quando ela morreu, Alaina passou a fazer o mesmo, esperando que em
algum lugar alguém estivesse alimentando e abrigando seu irmão Jason, agora o outro único
sobrevivente dos MacGaren da Louisiana. Banks e seus abutres tinham deixado muito pouco quando
ocuparam Alexandria, mas Alaina continuou a atender os soldados depois que os ianques arrasaram
Briar Hill. Então, mais de quinze dias atrás, um jovem soldado morreu no seu celeiro, deixando com
ela uma mensagem para o general Richard Taylor. Foi fácil para ela levar a mensagem ao
acampamento dos confederados. Porém foi a sua desgraça. O filho mais velho de uma família de
brancos degenerados, alvo das recusas constantes de Alaina, a seguiu até o acampamento e de volta a
casa. Mais uma vez ele insistiu para morar na casa dos MacGaren, como dono e senhor, oferecendo-
se para casar com ela, agora que Alaina estava sozinha no mundo. Mas Alaina o expulsou
empunhando a pistola do pai. O pretendente rejeitado apressou-se em delatar Alaina aos ianques,
sem dúvida recebendo uma boa recompensa por sua... lealdade.
Com o coração cheio de ódio, Alaina lembrou-se do tenente ianque que subiu a cavalo até Briar Hill,
acompanhado por um grupo de soldados negros. Montado no seu cavalo, ele apenas observou,
satisfeito, quando os soldados a cercaram, montados, assustando a vaca que ela levava para o pasto.
Mas quando o tenente se cansou da diversão, mandou que seus homens revistassem a casa, à procura
de soldados confederados. Depois, abrindo a parte superior do coldre, como uma advertência,
obrigou-a a entrar na frente. Uma vez lá dentro, ele fechou a porta e fez uma proposta insultuosa, em
termos do mais baixo calão.
Alaina respondeu com desdém que só concordaria com o que ele propunha num dia muito frio,
capaz de transformar o inferno em gelo. O galante tenente tentou então tomá-la à força, na sala.
Ouvindo os gritos de Alaina, Saul entrou na sala como um furacão e vendo a fúria do velho criado
negro, o miserável covarde fugiu como um cão, com o rabo entre as pernas, chamando seus homens
e prometendo que a faria enforcar, junto com aquele maldito negro. Eles voltariam, o tenente
prometera em alto e bom som. Então, antes de chegar à estrada, ele ergueu a pistola e matou a vaca
com um tiro entre os olhos. As ameaças não a assustaram, mas aquele ato de crueldade gratuita gelou
o coração de Alaina. Era uma vingança mesquinha, sem pensar em quem ia sofrer.
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A dor de deixar seu lar atormentava-a ainda. Parecia que séculos tinham-se passado desde o dia em
que pôs tudo que possuía na velha mala, assumiu a identidade de garoto e subiu na garupa do único
cavalo que restava em Briar Hill, atrás de Saul. Durante mais de uma semana percorreram o campo,
escondendo-se quando avistavam soldados da União, voltando para casa apenas uma vez, para
apanhar comida, nas primeiras horas do dia. Estavam em Baton Rouge quando Saul, ao atravessar a
rua com uma preciosa sacola de comida para os dois, foi detido por um grito. Alaina, de onde estava,
viu o tenente correndo para ele, fazendo sinal aos soldados para segurar o fugitivo. Poucos homens
poderiam deter o homem grande e forte e muito menos segurá-lo. Saul correu pela rua estreita,
afastando-se dela, e Alaina recuou, alerta para se certificar de que não estava sendo observada.
Chegando onde estava o cavalo, com um salto ágil, montou e partiu da cidade. Naquela noite ela
percorreu as ruas, à procura de Saul, e finalmente parou para dormir, fora da cidade. Saul não
apareceu e depois de percorrer o campo à procura dele, comendo apenas milho cru de um campo
abandonado, Alaina trocou o cavalo por uma passagem no barco fluvial e foi para Nova Orleans.
As lembranças avivaram a dor da saudade de casa, e Alaina resolveu pensar em alguma coisa menos
dolorosa. Terminou de tomar banho, vestiu uma roupa velha e puída e começou a arrumar seus
pertences. O vestido negro usado no enterro da mãe era o melhor que tinha. Os outros dois, de
musselina, estavam muito remendados. Alaina balançou a cabeça, lembrando. Aquele soldado idiota,
no cais, quase amassara a mala, e ela teve medo de que a mala caísse quando estava na garupa do
capitão Latimer. Seria difícil explicar por que um menino carregava uma mala cheia de roupas de
mulher. O capitão estava certo de ter salvo um pequeno órfão. Na verdade, levara para a segurança
da família uma jovem procurada como espiã por seu exército e caçada como um animal perigoso.
Bateram de leve à porta e quando Alaina mandou entrar, Leala irrompeu no quarto, acompanhada de
perto por Angus e Roberta.
— Alaina, minha filha! Você me pregou um susto!—disse Leala, em tom carinhoso, beijando a testa
da jovem onde as mechas curtas do cabelo, quase seco, pareciam penas de pássaro. — E o seu
cabelo! Seu lindo cabelo! Todo cortado!
— Por que saiu de Briar Hill?—perguntou Angus, bruscamente. — Quando estivemos lá para o
enterro da sua mãe, você estava
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resolvida a ficar. Faz quase um ano que Glynis morreu. Porque mudou de idéia? Espero que Jason
não tenha...
— Não! — Alaina não queria nem pensar que o irmão mais velho tivesse morrido, como o mais
novo, Gavin's e seu pai. — Não — repetiu, mais calma. — Acontece que quando os ianques
ocuparam Alexandria, pisotearam nossas plantações com seus cavalos, destruíram os celeiros,
fizeram os escravos se alistar no exército, mataram o gado para satisfazer sua gula e tomaram nossos
cavalos de montaria, não deixando coisa nenhuma para a nossa sobrevivência. Arrastaram até a
mulas, não sei se para comer ou para montar. — Andando de um lado para o outro, ela contou a
história, com gestos largos, torcendo as mãos finas quando a lembrança era dolorosa demais. — Não
tenho idéia do que aconteceu com Saul. Se o tenente o apanhou, deve estar morto ou na prisão.
— Mas o que pretende fazer agora, Lainie, minha querida? — perguntou Roberta, arregalando os
olhos inocentemente.
Angus pigarreou e, sem escolha, disse, com magnanimidade.
— Vai ficar aqui, conosco, é claro. Não pode fazer mais nada.
— Mas, papai — implorou Roberta. — O capitão Latimer certamente vai voltar. O que ele vai
pensar se descobrir que Al é uma moça?
— Não devia ter convidado o capitão, Roberta — resmungou o pai.
— Oh, papai — com um sorriso carinhoso, ela beliscou de leve o rosto de Angus. — Pense no
quanto ele pode fazer por nós. Não acha que está na hora de começarmos a tirar dos ianques em vez
de dar a eles tudo que temos? Com a manteiga a oito dólares o quilo e a dúzia de ovos a cinco
dólares, como podemos continuar vivendo? Dulcie vai cada vez menos ao Mercado Francês, e seus
fregueses estão cada vez mais "miseráveis" para fazer negócios e pagar as contas. Veja, há meses não
compro um vestido e agora temos outra boca para alimentar.
Roberta! — exclamou Leala, escandalizada. Se Alaina tinha ainda dúvidas sobre a necessidade de
arranjar emprego, a sinceridade crua de Roberta as dissipou.
— Não quero ser um peso para vocês — disse ela. — O capitão Latimer está à procura de um
menino para trabalhar no hospital, e eu vou aceitar o emprego... como Al.
Não vai fazer nada disso! — protestou Leala. — Nunca ouvi uma coisa tão ridícula! Imagine! Uma
jovem inocente trabalhando para aqueles ianques sujos! Ora, sua mãe ia sair do túmulo para me
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assombrar se eu permitisse uma bobagem dessas. Pobre Glynis, desejava que você crescesse como
uma dama. E agora, olhe para você! Ma petite, o que vai ser de você? — Leala dissolveu-se em
lágrimas, Incapaz de aceitar o que aquela guerra terrível fizera a sua sobrinha.
— Ora, vamos, mamãe — disse Roberta, dando pancadinhas afetuosas no ombro de Leala.
Embora sempre tivesse sido magra e angulosa, Alaina vivia rodeada de rapazes, atraídos por seu
senso de humor e seu charme, e Roberta não estava disposta a dividir qualquer atenção masculina
com a prima. Alaina, vestida como menino, não seria competição para ela. Na verdade, podia ser até
divertido. Alaina sempre fora desembaraçada demais para uma prima do campo.
— Os ianques não vão saber que é Lainie. Vão pensar que é só um menino... Al... isso é tudo. E se
ela representar bem seu papel, ninguém vai descobrir. É uma boa peça para pregarmos aos ianques.
Angus, em silêncio, concordava com a mulher. Glynis, irmã de Leala, preocupava-se com o fato de
Alaina não demonstrar muito interesse pelos modos finos de uma dama. Alaina sempre preferiu as
brincadeiras mais ousadas dos irmãos, e Angus não duvidava de que ela soubesse atirar e montar
como qualquer homem. Se alguém podia levar adiante essa farsa, esse alguém era Alaina.
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Capítulo Quatro
.ALAINA OBSERVAVA os longos e sinuosos filetes de chuva no vidro da janela. Encontrar o hospital
certo foi bastante difícil, mas esperar pelo capitão Latimer estava sendo pior ainda. Começava a
pensar que ninguém se dera ao trabalho de informar o médico de que Al estava à sua espera para
tratar do emprego. Mas o que podia esperar quando um garoto de cara suja pedia para falar com um
cirurgião muito ocupado? Se estivesse usando anquinhas e um chapéu elegante, Alaina podia apostar,
teria melhores resultados.
Aquela devia ser a sala de descanso dos médicos. O sofá estreito, porém, e os móveis simples e em
pequeno número indicavam que eles não passavam muitas horas ali.
Passos apressados soaram no corredor e pararam à frente da porta. Alaina saltou da banqueta alta em
que estava sentada e, com o chapéu na mão, esperou a entrada do capitão Latimer. Vendo a testa
franzida no rosto severo do médico, de repente ela compreendeu a bobagem do que estava fazendo.
Independente do que pensava do capitão Latimer, sabia que ele não era tolo. Por quanto tempo
poderia esconder dele sua verdadeira identidade?
Quando a viu, o capitão controlou a irritação por ter sido chamado do seu trabalho e atravessando a
sala, aproximou-se do lavatório. Tirou
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o avental longo e branco, manchado de sangue, e o jogou num cesto, antes de se voltar para o
menino.
— Pelo menos parece que você aprendeu bons modos desde a última vez que nos vimos —
comentou, com mais severidade do que pretendia. Percebendo a confusão do garoto, apontou para o
chapéu amarrotado
— Pensei muito sobre o emprego que me ofereceu — começou Alaina, delicadamente, embora
revoltada por ter de pedir alguma coisa a um ianque. — E como meu tio não tem meios para
alimentar outra boca, achei que a coisa certa para mim é aceitar. Isso, se ainda precisar de mim,
senhor — disse, carregando no sotaque do sul.
— É claro que precisamos, Al. Agora mesmo, se você puder — Alaina fez um gesto afirmativo e o
capitão sorriu brevemente. — Ótimo, vou mostrar o que tem de fazer, depois tenho de voltar ao
trabalho. Um barco caiu numa cilada a alguns quilômetros daqui, rio acima, e eles estão trazendo os
feridos. Ao que parece, seus concidadãos têm dificuldade para reconhecer a cor do nosso uniforme,
porque muitos passageiros civis estão chegando feridos também.
Alaina reagiu com uma voz gutural.
— Então esses tais de civis não passam de ratos ambiciosos! Eles sobem o rio só para roubar
algodão das plantações e vocês, barrigas azuis, fingem não saber de nada.
Cole encheu de água uma bacia de porcelana e olhou de soslaio para o garoto sujo.
— De qualquer modo, para mim são apenas seres humanos.
— Ah! Muito pouco humanos! — zombou Alaina. — Não vou chorar por nenhum deles.
— Talvez eu não deva deixar você trabalhar nas enfermarias — disse Cole, tirando a camisa e
lavando o rosto e os ombros. A luz do sol refletiu num medalhão de ouro que pendia de um cordão
do seu pescoço, desenhando pontos de luz dançantes na parede. — Estou pensando se você não
pode prejudicar demais nossos soldados.
Os olhos cinzentos entrecerraram-se.
— Desde que eu não tenha de bancar a ama-seca para nenhum deles, vou fazer meu trabalho e vou
fazer bem — garantiu ela. — Não precisa se preocupar com isso. É claro... — Olhou para ele com
sarcasmo. Se seus sentimentos fossem outros, podia ter admirado o peito largo ou o movimento dos
músculos fortes sobre as costelas e nos braços. Mas Alaina saboreava seu ódio pelos ianques. — Se
acha
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que seus companheiros têm alguma coisa a temer de um menino órfão, então, meu senhor, acho
melhor não me dar o emprego.
Cole riu alto. Estava convencido de que Al era o mais agressivo e honesto garoto que já conhecera. E
duas vezes mais sujo!
— Pensei ter ouvido seu tio mandar você tomar um banho. Al respondeu, irritado:
— Mostre o que quer que eu limpe, barriga azul, e eu começo meu trabalho. Mas deixe-me fora dos
seus planos. Um pouco de sujeira nunca fez mal a ninguém.
Cole sorriu, zombeteiro.
Não sei nem como é sua cara, debaixo de toda essa sujeira.
- Não precisa saber. Só porque é a favor de água e de banho, não quer dizer que devo adotar seus
vícios. — Alaina não estava gostando do modo como ele olhava para sua roupa suja e para a bacia e
perguntou, secamente: — O que quer que eu faça por aqui? Disse que precisava voltar ao trabalho,
não disse?
Cole vestiu a camisa e um avental limpo. Os dois percorreram as oito enfermarias, parando em cada
uma para uma explicação breve e precisa do que Alaina deveria fazer. As enfermarias eram salas
amplas, com camas de lona e sobre elas homens envoltos em ataduras. Havia uma espessa camada de
poeira sob as camas e ataduras velhas e desbotadas atiradas no chão.
— Ainda não falamos sobre o pagamento — disse Alaina. — Quanto vai me pagar?
— O mesmo que ganha qualquer bom soldado da União — respondeu Cole. — Um dólar por dia e
ajuda de custo.
— Aceito as refeições — disse Al.—Mas, como não vou dormir aqui, me pague um dólar e dez e
está combinado.
— Parece justo — admitiu Cole. — Mas acho bom merecer esse dinheiro
Alaina ergueu os ombros. Não ia fazer nenhuma força para convencer um maldito ianque. Assim que
o capitão a deixou, acionou a bomba do poço, encheu um balde com água e raspou dentro dele
aparas de um pedaço de sabão de lixívia. Depois passou a escova molhada em todos os cantos,
debaixo de cada cama, de cada armário e cada cadeira, raspando com força a camada de sujeira. Sua
presença não despertou a curiosidade dos homens, mais interessados na própria dor do que no
menino magro e sério. Raramente um deles tentava uma
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conversa, mas como Al não estava disposto a trocar amabilidades, ficava calado, comprimindo os
lábios, e os homens desistiam.
Com um dia de trabalho, Alaina limpou duas enfermarias. A sujeira encardida de muitas semanas
tornara-se parte integrante daquela ala do hospital. Quase ao anoitecer, Alaina examinou o chão que
acabava de limpar. Seus joelhos estavam em carne viva, a pele das mãos queimada pelo sabão. Não
servia de consolo saber que tinha mais seis enfermarias para limpar. Mas essas tinham de esperar
outro dia. Mesmo para um garoto, estava na hora de parar, e ela não queria andar na estrada depois
do anoitecer.
Cansada e dolorida, ela seguiu pelo corredor com suas botas largas demais. Pelo menos, o resultado
do seu trabalho era muito visível. As duas enfermarias estavam quase brilhando de tão limpas. O
assoalho esfregado, os vidros das janelas lavados, a poeira das mesas retirada. Nem mesmo o capitão
Latimer podia achar defeito. Alaina não o via desde aquela manhã, o que era bastante conveniente. Se
as duas enfermarias estavam limpas, o mesmo não podia ser dito dela — e o capitão evidentemente
não gostava de falta de higiene.
A viagem de volta, montada no velho Tar (abreviatura de Tarna-tion), o cavalo do tio, não contribuiu
para aliviar seu cansaço. Quando chegou em casa, Roberta a recebeu na porta dos fundos, muito
bem penteada e com um vestido elegante de musselina verde claro. Alaina sentiu o contraste entre as
duas. Antes de sair de casa, naquela manhã, esfregara uma mistura de graxa, terra e água no cabelo,
para disfarçar o brilho. Não via a hora de lavar a cabeça e tirar aquela massa pegajosa. Quando
passou pela prima, escondeu as mãos vermelhas e as unhas rachadas e correu para a despensa, ao
lado da cozinha. Com o esvaziamento dos suprimentos dos Craighugh, a despensa fora transformada
num pequeno lavatório, com a vantagem de ficar perto da cozinha, onde podiam preparar um banho
quente sem precisar carregar água para cima. Foi aí que Alaina passou boa parte do começo da noite,
em vez de jantar com a família. Não se apressou, lavando bem a cabeça, cortando e limpando as
unhas, passando creme nas mãos. Era um Pequeno luxo que permitia a si mesma, mas depois de
fazer o papel de menino durante todas aquelas semanas, era bom sentir-se como mulher outra vez.
Onde as súplicas da mãe tinham falhado, o confinamento obrigatório no disfarce de garoto
conseguiu alguns resultados no trabalho de fazer com que Alaina desejasse ser uma dama.
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No quinto dia de trabalho no hospital, Alaina voltou a limpar as duas primeiras enfermarias. Dessa
vez o trabalho foi rápido, porque a sujeira era menor. Espalhou baldes vazios para o lixo, e os
soldados começaram a usá-los. Alguns, entediados com os dias passados na cama, chegaram até a
ajudá-la.
Para seu desconforto, ao meio-dia, quando se sentou para almoçar, o capitão Latimer aproximou-se
com o prato na mão e sentou-se ao lado dela. Al olhou para ele e depois para as outras mesas vazias.
Havia só duas pessoas na sala.
— Qual é o problema, barriga azul? Não encontrou outro lugar para se sentar?
— Desculpe, Al, eu não sabia que você prefere comer sozinho — disse o capitão secamente, sem
fazer nenhum movimento para se levantar.
— Por que pensa que eu venho almoçar tão tarde? — perguntou Al, com atrevimento. — Não gosto
de comer com qualquer um. Meu estômago não agüenta a comida na companhia de gambás.
— Pare com essa bobagem e coma — disse Cole, secamente. — Não vai crescer muito mais se não
comer melhor — apontou para a bolsa de couro ao lado do prato de Al. — O que você tem aí
dentro?
— Para que quer saber? O capitão deu de ombros.
— Bem, acho que é só curiosidade. Aposto que não é uma muda de roupa, porque nunca o vi
vestido de outro jeito.
— Se quer mesmo saber, é comida — resmungou Al. — O que eu não consigo comer aqui, levo
para casa. — Entrecerrou os olhos e passou a ponta do dedo no nariz fino. — Alguma objeção?
Ele disse que não, tomou um gole de café e depois tirou do bolso um envelope marrom fechado
com um sinete, que parecia oficial. Jogou o envelope na mesa, na frente dela, e Alaina viu que era
endereçado a Al Craighugh.
— Para que isso? — perguntou, desconfiada.
— Seu ordenado de uma semana.
Alaina abriu o envelope. -..
— Mas tem sete dólares aqui — observou, contando o dinheiro.
— O tesoureiro resolveu arrendondar a quantia. Você fez por merecer esse dinheiro.
O capitão viu o menino amarrar o dinheiro cuidadosamente na
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ponta do lenço, e continuou a comer, pensativo. Depois de algum tempo perguntou:
— O que vai fazer com toda essa riqueza? Comprar roupas?
— A metade vai para o tio Angus, para pagar o quarto, depois, pretendo guardar o que sobrar —
disse Alaina, simplesmente.
— Se quiser ganhar algum dinheiro extra, estou precisando de alguém para fazer a faxina no meu
apartamento, no Pontalba, enquanto estou trabalhando no hospital.
— Tem certeza de que pode confiar em mim, ianque? — provocou Al.
— Você quer o trabalho ou não? — perguntou Cole, paciente.
— Onde fica esse tal de como-se-chama? — Alaina carregou a gíria sulina.
— Apartamento — explicou Cole. — Fica na praça Jackson. Você sabe onde é, não sabe?
— Sei. — Al balançou a cabeça afirmativamente. — Como eu entro?
— Com uma chave—zombou o capitão, tirando a chave do bolso e estendendo para ela. — Vou
pedir outra ao proprietário. Pode ficar com essa. Eu espero a mesma qualidade de trabalho que vi
aqui no hospital e pago três dólares por semana.
— Três dólares por semana? — repetiu Alaina, atônita. — O senhor é rico ou o quê?
— Eu posso pagar o seu trabalho.
Alaina deu de ombros.
— Não faz diferença se é rico ou não. Vou limpar seu apartamento e não vou roubar nada.
— Foi o que pensei. Quer o pagamento adiantado?
— Posso esperar. Além disso, acho bom segurar o que tem agora enquanto pode, para o caso do
general Taylor tomar Nova Orleans. Pode precisar comprar um lugar para descansar a cabeça
quando for capturado pelos Johnnies.
— Vou pensar nisso quando chegar a hora, se chegar — respondeu o capitão.
Alaina levantou-se e suspendeu a calça.
— Tenho de voltar para o trabalho, agora, ianque. Não posso dizer que foi um prazer conversar com
o senhor.
Cole não conseguiu conter um sorriso. Às vezes, o moleque o
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exasperava, mas havia nele alguma coisa agradável que Cole não sabia definir.
Os dias passaram rapidamente, e a cada momento Roberta ficava mais inquieta e impaciente,
esperando a sexta-feira do jantar combinado com Cole Latimer. Examinava centenas de vezes o seu
melhor vestido. Não queria que nada tirasse o brilho do que estava preparando. Na verdade,
nenhuma ave do paraíso jamais se preocupou tanto com a aparência quanto Roberta. Perfeccionista,
chamou a atenção de Dulcie, na véspera da visita do capitão, porque a sala de estar há dois dias não
era limpa, como se, resmungou a velha criada, não tivessem coisas mais importantes para fazer do
que arrumar a casa para um ianque.
O tempo passou, e chegou finalmente o dia tão esperado por Roberta e tão temido por Alaina.
Enquanto a prima mais velha cochilava tranqüilamente com as cortinas fechadas, a mais jovem tirou
o indignado e velho Tar do estábulo, montou no seu dorso magro e ossudo e o cavalo e a amazona
seguiram, no passo laborioso e lento, para o hospital. Logo o cavalo passou para um trote
chacoalhante, pontuado por bufos e grunhidos, até se convencer de que nada daquilo o faria voltar
ao conforto do estábulo.
Alaina chegou cedo ao hospital e já encontrou uma fila de ambulâncias na porta, e os atendentes
descarregavam dezenas de feridos. Ela adivinhou o motivo. Embora o Mississippi estivesse aberto
aos federais desde meados de julho e Baton Rouge fosse considerada segura, o general Taylor estava
recrutando homens para o exército confederado na parte alta da Louisiana e usando o sistema de
guerrilha contra as alas externas do exército ianque.
O sangue e a aparência dos ferimentos logo fizeram Alaina se afastar dos corredores e a última vez
que viu o capitão, naquela manhã, ele estava selecionando os feridos que podiam esperar algumas
horas, ou até mesmo alguns dias. Estes últimos eram raros, pois apenas os gravemente feridos eram
mandados de volta ao hospital da cidade, para tratamento. O resto era tratado nos hospitais de
campanha.
Durante toda a manhã, Alaina evitou chegar perto das salas de operação, e o cheiro do clorofórmio
espalhava-se cada vez mais forte pelo hospital. Não podia imaginar como o capitão ia corresponder
às expectativas de Roberta, naquela noite. Como Alaina não pretendia comparecer ao jantar, teria de
esperar para saber o resultado.
No fim da tarde ficou difícil para ela continuar seu trabalho, pois
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não podia mais evitar as enfermarias onde os feridos recém-chegados estavam sendo atendidos.
Enquanto trabalhava, muitas vezes tinha de desviar os olhos para não ver um ferimento aberto e
sangrando, e o cheiro da carne putrefata revirava seu estômago. Mas quando viu um toco de perna
amputada, Alaina saiu correndo pela porta mais próxima para vomitar lá fora. Nesse exato momento,
Cole saiu para respirar um pouco e testemunhou a sua humilhação, escondida atrás de uma moita.
Sem olhar para ele, Alaina aceitou o lenço molhado que Cole ofereceu. Com mãos trêmulas, passou
olenço na testa e no rosto, e só então encontrou coragem para erguer os olhos.
— Está melhor agora? — perguntou o capitão, solícito.
Com o orgulho ferido, Alaina não perdoou o capitão por estar ali naquele momento.
— Ianque, deve-me três dólares.
— É claro. — Sem poder conter o riso, Cole contou o dinheiro e o estendeu para ela, dizendo com
ironia: — Eu diria que você dá mais para fazer limpeza do que para a medicina. Nunca vi ninguém
tão melindroso quanto você.
— Tem alguma queixa sobre a limpeza do apartamento? — perguntou Alaina, furiosa.
Cole balançou a cabeça.
— Nenhuma.
— Então eu agradeceria se guardasse seus comentários para o senhor mesmo.
Dizendo isso, Al entrou com passo decidido no hospital, quase ameaçando desistir de limpar o
apartamento dele. Mas acontece que era provavelmente o dinheiro mais fácil que ela jamais ganharia,
pois o capitão Cole Latimer era tão limpo e ordeiro quanto sugeria sua aparência. E três dólares era
muito dinheiro para jogar fora, só por orgulho. Para falar a verdade, sentiu prazer em evitar o capitão
Cole pelo resto do dia. Uma pequena vingança, mas que estava ao seu alcance.
A volta para casa, naquele dia, no dorso magro e ossudo do velho Tar foi outro teste de resistência.
O instinto do velho animal para achar o caminho do estábulo era perfeito e ele reclamou muito
pouco até chegarem ao velho estábulo. À luz fraca da lanterna dependurada numa das vigas de
madeira do teto, ela viu que Jedediah, o marido de Dulcie e cocheiro dos Craighugh, deixara feno
novo na manjedoura e um balde com água ao lado. Era um alívio não ter de fazer essas coisas,
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e Alaina pensou em se lembrar de agradecer ao empregado. Apanhou um punhado de aveia para Tar,
que já estava cochilando, sabendo que o tio Angus, se soubesse, ia reclamar o desperdício do
precioso grão.
Até então, seu tio só tinha usado Tarnation quando o atrelou a uma pequena aranha em péssimo
estado para provar aos ianques sua pobreza. Talvez Angus estivesse certo, pois conseguiu ficar com
dois cavalos, um animal de bom gênio que usava na sua carroça de rodas altas e o velho Tar, que
parecia uma coleção de ossos unidos aleatoriamente por uma rede de tendões visíveis a olho nu, tudo
isso disfarçado sob o couro cheio de cicatrizes. Tar tinha dois passos. O normal parecia ser o passo
lento e desconjuntado, talvez mais rápido do que o de um homem. Mas quando aparecia alguma
égua bonita e garbosa, o sangue fervia em suas veias e ele arqueava o pescoço esquelético, abanava a
cauda maltratada e com grande esforço conseguia realmente erguer os cascos do chão, o que tinha
como resultado um trote de quebrar a espinha de qualquer cavaleiro.
Com suas roupas sujas e surradas, Alaina sentia uma grande afinidade pelo feio animal. Um punhado
da aveia de Angus, uma vez ou outra, era seu dízimo para o velho animal. Ela procurava também não
desfalcar a despensa dos Craighugh, fazendo as refeições no hospital, guardando um pouco dos
melhores petiscos na sua bolsa de couro para usar na cozinha, ou, ocasionalmente, para um pequeno
lanche, tarde da noite. Pagava ao tio Angus, religiosamente, no fim da semana. A frugalidade
escocesa do tio se manifestava então num embaraçado murmúrio sobre as agruras da guerra, antes de
guardar o dinheiro na bolsa. Alaina sabia que as mercadorias para a loja estavam racionadas desde a
ocupação e os livros de Angus estavam sobrecarregados de dívidas dos fregueses. Saber que não
estava aumentando essa carga para o tio dava a ela uma sensação de liberdade.
Diminuiu a luz da lanterna e, no escuro, Alaina seguiu pelo caminho de pedras que levava à casa.
Num ato de extravagância e bondade, Dulcie deixara um toco de vela aceso na cozinha e água
fervendo, no fogo, para o banho. Alaina esperava não ter de trabalhar até tão tarde todos os dias,
mas com o grande número de feridos, não teve oportunidade de terminar rapidamente seu trabalho,
e nenhum ouvido amigo para ouvir suas queixas. Aparentemente, os médicos tinham pouca
compaixão para os saudáveis e perfeitos.
Na antiga despensa, empilhou a roupa de menino no chão e mergulhou o corpo dolorido na água
morna, com um suspiro de prazer
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e alívio. Depois de um dia longo e cansativo, quando só a idéia de um bom banho a fazia continuar,
queria desfrutar esse prazer ao máximo e sem pressa. Recostou a cabeça e fechou os olhos, deixando
o calor penetrar aos poucos no corpo.
De repente, a maçaneta da porta girou e Alaina, sentando-se na banheira, apanhou uma toalha. Sem
bater, Roberta entrou, com um belo robe de crepe da China vermelho. Ergueu a mão para proteger
os olhos da luz, revelando a renda finíssima sob a manga larga.
— Ouvi quando você chegou.
Modestamente, Alaina se cobriu com a toalha. Não queria comparar seu corpo com as curvas
voluptuosas da prima. Roberta começou a andar de um lado para o outro no pequeno espaço da
despensa transformada em banheiro.
— Você tem idéia do dia que eu passei?—perguntou ela. — Pois foi terrível! Terrível! Pode estar
certa, Lainie, querida. Não sei onde este mundo vai parar!
Tudo indicava que ia ser uma longa conversa e embora a intrusão não fosse do seu agrado, Alaina
disse calmamente:
— Parece que está numa situação difícil, Robbie. Pensei que tinham um convidado para o jantar,
hoje.
— Não tivemos! — Roberta girou o corpo, agitada. — Oh, puxa vida! Eu queria que os malditos
ianques acabassem com essa guerra deles!
— Acho que estão fazendo o melhor possível — disse Alaina, começando a ficar aborrecida. Às
vezes ela se perguntava de que lado Roberta estava, mas, afinal, a prima não dera nada para a guerra,
anão ser as horas de lamentação pelas pequenas inconveniências.
— Quanto antes, melhor, é o que eu acho! — Roberta cruzou os braços no peito. — Então o resto
de nós vai poder continuar com a vida que levávamos antes!
— Acho que o sr. Lincoln tem outras idéias — disse Alaina, secamente.
— Aquele idiota do mato! — disse Roberta, de frente para a prima. — Estou farta de ouvir o nome
desse homem! Estou farta de tudo isto... de toda essa matança!
Alaina olhou para a prima com as sobrancelhas erguidas. Roberta, raramente, talvez nunca, se
preocupava com as vítimas da guerra.
— Seja o que for que a aborreceu, deve ser alguma coisa muito séria.
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— Vou dizer o que me aborreceu! Veja isto! — Tirou um papel amassado do bolso e o sacudiu
debaixo do nariz de Alaina. — Por alguma maldita razão, o capitão Latimer não pôde vir esta noite!
Mandou isto. — Furiosa, sacudiu o bilhete acima da cabeça, fazendo bruxulear a luz da vela numa
prateleira alta. — Uma desculpa inventada! Uma emergência. Bobagem! Tudo que os ianques fazem
é marchar na praça Jackson ou passear a cavalo para cima e para baixo nas ruas, com ares
ameaçadores. Como alguém pode sair machucado desse modo? O general Banks não faz outra coisa
senão roubar algodão e outras coisas! Ora, quase ninguém morreu desde que aquele idiota do Butler
enforcou William Mumford, e ninguém pegou febre amarela desde que aquele velho ianque ficou
com medo de pegar. Imagine, mandar todos aqueles homens limpar as ruas! Nova Orleans nunca
esteve tão limpa! E nós todos torcendo para que os ianques todos morressem com a febre.
O banho de Alaina estava esfriando, para não falar no fato de ela começar a se sentir um tanto
encharcada. Era contra seus sentimentos defender um ianque e suas razões para não comparecer ao
jantar, mas ela compreendeu que seu conforto estava em jogo. Com relutância, ela disse:
— Houve uma escaramuça na parte alta do rio, Roberta. Os feridos foram trazidos para a cidade e os
médicos estavam muito ocupados. Eu tive de pegar em ataduras ensangüentadas e roupas cheias de
lama esta tarde para abrir caminho nos corredores e enfermarias.
— Roupas cheias de lama! — Roberta agarrou a explicação como um abutre agarrando um pedaço
de carne crua. — Lainie! Não vai me dizer que você fica lá quando eles tiram as roupas dos soldados!
Ofendida com a maldade da prima, Alaina disse com os dentes cerrados:
— Ainda não vi nenhum homem nu! E gostaria que parasse de me chamar de Lainie. Sabe que
detesto esse apelido!
— Acho que você sempre preferiu Al a qualquer coisa mais delicada — disse Roberta. E ignorando a
expressão de desagrado de Alaina, sentou-se na banqueta ao lado da banheira e continuou: — Afinal,
por que Cole tinha de atender aqueles homens? Certamente eles têm outros médicos para fazer os
curativos.
— Há outros médicos — concordou Alaina. — Mas parece que precisavam de todos, hoje.
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Roberta percebeu a irritação crescente da prima e mudou de assunto, embora não inteiramente.
— Você deve saber muita coisa sobre o capitão Latimer.
— Só os comentários dos outros médicos.
— Você espiona os médicos do hospital? — perguntou Roberta, inclinando-se para a frente.
Alaina disse, ofendida:
— É claro que não. Acontece que não sou surda. Eles não se importam com quem está ouvindo.
— Fale sobre Cole — pediu Roberta.
— Cole? — perguntou Alaina, olhando intrigada para a prima.
— Ele é rico? Rico de verdade?
— Como vou saber? — disse Alaina, irritada. — Só sei que pode me pagar três dólares por semana
para limpar seu apartamento, e parece que o dinheiro nunca falta para ele.
— Você não me contou que está limpando o apartamento dele — observou Roberta, pensativa. —
Aposto que papai também não sabe disso.
— Não posso me dar ao luxo de recusar três dólares por umas poucas horas de trabalho — disse
Alaina, secamente. — E não vejo nada de errado nisso, uma vez que o capitão Latimer nunca está
em casa quando faço a limpeza.
— Quer dizer que ele deixa você ficar sozinha no seu apartamento?
— Por que não? Nunca roubei nada, em toda a minha vida!
— Mas ele não sabe disso.
— Ele confia tanto em mim que me deu a chave.
— A chave? Do apartamento do capitão Latimer? — O interesse de Roberta crescia a cada segundo.
— Como você consegue trabalhar a semana toda no hospital e fazer a faxina no apartamento
também?
— Limpo o apartamento depois do trabalho, nas noites que ele está de plantão. Não fica longe do
hospital, por isso é mais fácil para mim.
— E onde é que o capitão mora? — perguntou Roberta, docemente.
Alaina olhou para ela, desconfiada. Com um sorriso, Roberta disse:
— Se não me disser, Lainie, eu conto ao papai que você está fazendo a faxina no apartamento
daquele ianque. Acho que ele não vai aprovar. Pode proibir você de continuar trabalhando.
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— Não sei o que você está tramando, Roberta—disse Alaina—, mas, na verdade, não me importo.
Se quer tanto o capitão Latimer, pode ficar com ele.
— Onde ele mora? — perguntou Roberta, ansiosa. Alaina deu de ombros.
— Apartamentos Pontalba. Qualquer outra coisa você pode perguntar diretamente ao bom capitão.
— Você é má, Lainie — queixou-se Roberta. — Sempre gostou de me provocar e me criticar. Está
tendo o que merece, por ser tão maldosa.
— É mesmo? — disse Alaina, com o sotaque e a gíria do sul. — A verdade nunca me fez mal
nenhum, mas não vai ouvir nada mais da minha boca, sobre sua senhoria o capitão!
Roberta ficou amuada por um momento, mas ao perceber que a prima não estava impressionada,
mudou de tática.
— Vou perguntar ao capitão, quando ele chegar.
— Quando chegar? — Alaina endireitou o corpo na banheira, segurando com força a toalha. —
Quer dizer que o capitão Latimer... vem aqui... apesar da sua falta desta noite?
Roberta era a própria imagem da doçura angélica, vendo que conseguira impressionar a prima.
— Eu não contei, Lainie? Ele escreveu dizendo que vai tentar vir na próxima semana, se o convite
ainda estiver valendo. — Com um tom autoritário, continuou: — Portanto, quero que você diga a ele
que está combinado para a próxima sexta-feira. Papai concordou.
Alaina franziu o nariz, como se estivesse sentindo um cheiro esquisito.
— Afinal, o que você vê naquele ianque?
— Tudo. — Roberta riu, alegremente. — Mas, especialmente, um jeito de sair deste buraco
miserável. — Inclinou-se para a frente, com os olhos cintilando, como para dizer um segredo. —
Não contei que ele endereçou a carta a mim e assinou apenas "Cole?" — Abraçou os joelhos e
balançou o corpo, satisfeita.
— Está contando agora—murmurou Alaina, não muito convencida. Apoiou o cotovelo na borda da
banheira e o queixo na mão. Podia adivinhar, palavra por palavra, o que ia ouvir.
— O modo como ele olhou para mim — suspirou Roberta, semicerrando os olhos, lembrando
encantada: — E bem na frente do papai! Você viu, não viu, Alaina? — Ignorando a perplexidade da
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prima, continuou: — Oh, ele é ousado, esse Cole! Pode estar certa, Alaina, vou enrolar aquele ianque
de pernas longas no meu dedo mínimo!
Levantou-se da banqueta com uma risada deliciosa e, afastando com o pé o babado da bainha do
robe vermelho, saiu do cubículo com um passo de dança.
— Feche a porta, por favor — pediu Alaina, furiosa. Roberta voltou-se sorrindo.
— Bem aqui, neste dedinho! — cantarolou, erguendo a mão, com o dedo mínimo dobrado. Depois,
acenando um adeus, fechou a porta, finalmente deixando Alaina em paz, no seu banho.
Alaina saiu da água fria e olhou para os dedos enrugados. "Bem em volta do dedo mínimo", imitou,
sarcástica. "Bem em volta..." De repente, franziu a testa e bateu com o pé no chão, murmurando,
furiosa: "Ianque idiota!"
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Capítulo Cinco
NÃO ERA DIFÍCIL para Alaina evitar o médico ianque, sempre muito ocupado; mesmo assim,
com maior freqüência do que desejava, era obrigada a suportar sua companhia. Uma certa
animosidade apareceu entre o menino, Al, e o homem, Cole, e mais de uma vez ela percebeu a
reprovação severa nos olhos dele. Embora isso fosse uma garantia de que ele não desconfiava do seu
segredo, Alaina perguntava a si mesma se tudo que ele via não era a sujeira do seu rosto, o ponto
principal da sua desaprovação. É claro que ele não sabia do tratamento ao qual ela submetia o cabelo,
todas as manhãs. A terra com graxa substituía o chapéu amassado que ela estava proibida de usar no
hospital, mas era mais um motivo para o capitão pensar em obrigá-la a um banho.
— Algum dia destes — ameaçou ele —, vou ensinar você a se lavar. Veja seu cabelo! Tão duro que
um fio pode servir de prego.
— Aposto que o senhor nasceu com um pedaço de sabão na boca — respondeu Alaina, com
acentuado sotaque sulino. — Nunca vi ninguém tão interessado em banho.
— Isso nos leva à questão do que você tinha na boca quando nasceu — disse Cole, afastando-se.
Na noite em que o capitão visitou Roberta, Alaina arranjou um jeito de ficar bem longe de casa. Não
tinha nenhuma intenção de
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comparecer ao jantar. Seu disfarce, além de provocar a desaprovação do ianque, provavelmente o
faria imaginar como Angus permitia que o menino se sentasse à mesa tão sujo e malvestido.
Assim, Alaina conseguiu escapar da reunião daquela noite, mas não do relato de Roberta, mais tarde.
A prima irrompeu no seu quarto, quando Alaina estava quase dormindo.
— Oh, Lainie, foi a noite mais maravilhosa da minha vida! Sabe, o pai de Cole também é médico e
viuvo desde pouco depois do nascimento de Cole. Tenho certeza de que são ricos.
— Perguntou a ele? — Alaina bocejou, aconchegando mais as cobertas na cama macia.
— É claro que não, tolinha. Não seria educado. Mas eu sei que são. — Roberta sorriu maliciosa. —
Cole já viajou para o exterior e estudou no leste, onde ele e o pai têm propriedades, além da casa
onde moram, em Minnesota. Imagino que, quando o velho morrer, Cole vai herdar toda a fortuna.
Ele já possui algumas propriedades. Agora, diga, um homem sem dinheiro pode se gabar de ter tudo
isso?
Alaina olhou para o teto, pensativa.
— Ele se gabou?
— Ora, Lainie, você é irritante — ralhou Roberta. — É claro que não. Mas eu sei como fazer as
perguntas certas para saber o que quero.
— Acho que vou perguntar a ele se é rico — disse Alaina, pensando alto. — É isso que você quer
saber, não é?
— E por que não? — perguntou Roberta, na defensiva. — Hoje em dia, uma mulher deve defender
os próprios interesses. E estou cansada de usar estes trapos que sobraram da guerra. Vou encontrar
um homem rico que possa comprar tudo que eu quero.
Alaina reprimiu outro bocejo.
— Roberta, é muito tarde, e estou cansada. Quase dormi lá fora, esperando que aquela criatura fosse
embora. Podemos conversar em outra hora? Tenho de levantar junto com o sol.
Roberta suspirou, compreensiva:
— Pobre Al, você tem uma vida dura. Mas afinal...
— Eu sei! Não é mais do que eu mereço!—Irritada, Alaina bateu com a mão fechada no travesseiro.
— E o capitão Latimer parece que foi enviado para cá só com o propósito de perturbar meu sono!
Agora Al fazia a ronda das enfermarias em dois dias, limpando, esfregando, como se quisesse provar
ao capitão Latimer que valia cada
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centavo do que estava recebendo, apesar da sua aparência. Os soldados feridos começavam a
apreciar aquela quebra na monotonia do hospital. Al agora trocava palavras com eles, às vezes
observações agressivas, mas à medida que os conhecia como indivíduos, e não como o símbolo do
inimigo, seu tom suavizava.
Eram feitas perguntas sobre onde moravam, sobre suas famílias, suas origens, tendências políticas e
outros assuntos. Alguns soldados esforçavam-se para manter o bom humor naquele lugar tristonho.
Com esses, Al trocava gracejos leves. Outros, deixavam-se abater, dominados pela dor e pelo esforço
para sobreviver. Para esses, Alaina oferecia um desafio e nova vontade de viver. Para os gravemente
feridos, embora com relutância, oferecia pena e simpatia e uma estranha ternura agridoce. Prestava
alguns serviços aos que não podiam se mover, como comprar um pente, um pincel de barba ou um
vidro de perfume de lilás para a namorada que o esperava em casa. Diariamente levava as cartas dos
soldados ao correio, e o garoto com o balde, as vassouras e os esfregões era esperado ansiosamente
por todos os que não podiam sair das enfermarias. Era uma centelha de luz, pequena, mas muito
apreciada e desejada. O silêncio monótono e triste das enfermarias fora substituído pelo sorriso
jovem e muitas vezes maroto do pequeno faxineiro. O cheiro de poeira e de lixo foi substituído pelo
odor pungente do sabão e do óleo de pinho. Os gemidos de dor eram substituídos muitas vezes por
uma risada abafada ou pelo murmúrio de experiências partilhadas.
Para Alaina, tudo começou como um simples emprego — uma tarefa, um modo de ganhar dinheiro.
Logo se transformou num tempo de conflito. Sua simpatia continuava firme com a Confederação,
mas, embora a contragosto, começava a gostar de alguns daqueles homens, muitos um ou dois anos
apenas mais velhos do que ela e vários deles muito mais jovens. Valentes e convencidos de estarem
certos, marcharam para a luta, como o pai e os irmãos de Alaina, e agora estavam deitados nas
estreitas camas da dor, indefesos, à espera da cura e das recompensas — ou da morte.
Houve momentos, em Briar Hill, em que a morte parecia a única coisa que os ianques mereciam.
Agora, era uma experiência dolorosa ver a luta, desesperada e fracassada de um daqueles mesmos
ianques, contra a morte. Ela os conhecia! Eram humanos! Sentiam dores! Sofriam! Morriam! Mais de
uma vez, na privacidade dos próprios
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sentimentos, levou as mãos trêmulas aos lábios para conter desesperadamente os soluços, enquanto
as lágrimas desciam livremente por suas faces. Por mais que tentasse, não conseguia controlar a
emoção, parecia cada vez mais vulnerável à dor e à agonia de observar, indefesa, a vitória da morte.
Naquela manhã, no começo de novembro, Alaina prometeu a si mesma manter distância de todos
que estivessem perto daquela porta sinistra. Depois de pensar sobre o assunto, concluiu que o
melhor modo era não chegar perto.
A temperatura estava agradável e amena quando ela tomou o bonde, a caminho do hospital. Roberta
pedira ao pai a carruagem e o cavalo, e Angus não teve alternativa senão ir para o trabalho na velha
aranha, puxada por Tar, deixando Alaina perto da sua loja. Daí ela foi a pé até a igreja de Santo
Agostinho, onde tomou o bonde para o hospital.
— Está atrasado — observou Cole, passando por ela, no corredor.
— Sim, estou. Não é fácil pagar condução com a miséria que vocês ianques me pagam — respondeu
ela às costas do capitão, que já caminhava rapidamente para o outro lado. Alaina abriu a boca para
dizer mais alguma coisa, mas fechou, vendo o dr. Mitchell, o cirurgião-chefe, saindo de uma das
enfermarias. O oficial grisalho e bondoso, notando a agitação no rosto do menino, olhou para as
costas do capitão, no fim do corredor, e franziu a testa.
— Algum problema, filho? — perguntou. Alaina procurou disfarçar o desconforto.
— Não, senhor.
— Então, é melhor começar seu trabalho. Chegaram sete ambulâncias durante a noite, e tem muita
coisa para ser limpa. O capitão Latimer está ocupado demais para discutir seu ordenado agora.
— Sim, senhor — murmurou Alaina.
O general Clay Mitchell era o único ianque que ela não ousava desafiar. Era um irlandês grande, de
peito largo, que impunha respeito a todos, no hospital. Mas havia algo de bondoso naquele homem.
Alaina não podia tratar rudemente um cavalheiro como aquele, mesmo se tratando de um ianque.
Perto da ala da cirugia tinham posto algumas camas, para acomodar os recém-chegados. Alguns
contorciam-se de dor, enquanto que outros choravam baixinho. Um deles estava separado dos
outros e tão imóvel que parecia morto. Uma atadura cobria seus olhos e um filete
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de sangue escorria do canto da boca. Estava coberto com um lençol para proteger das moscas o
ferimento que, aos poucos, substituía a brancura do pano por uma mancha vermelha. Seu estado era
tão grave, que os médicos preferiram tratar primeiro os que tinham melhores probabilidades de vida,
se fossem atendidos de imediato.
Alaina recuou lentamente, pensando, chega, eu já vi bastante! Apanhou os petrechos de limpeza e
começou a esfregar vigorosamente o assoalho de madeira, na extremidade de uma enfermaria onde
tinha certeza de não haver nenhum soldado agonizante.
Estava escrito, porém, que não ia cumprir a promessa feita a si mesma. Ali no refúgio seguro, de
repente ouviu um apelo repetido, fraco e desesperado. Durante algum tempo, tentou ignorar o
chamado. Sem dúvida, alguém o atenderia. Era uma coisa simples, apanhar água para o soldado
ferido. Mas não competia a ela! Nunca mais!
Mas Alaina não podia ouvir mais nada, e ninguém atendia o pedido do soldado. Num gesto decidido,
ela mergulhou a escova na água do balde e começou a esfregar com mais força. Mas nada abafava a
súplica fraca e constante.
— Para o diabo com tudo isto! — praguejou ela, em voz baixa, levantando-se rapidamente. Foi até o
fim do corredor, onde o soldado continuava assustadoramente imóvel. Então viu que ele passava a
língua lentamente nos lábios ressequidos e rachados.
— Espere — disse ela, no ouvido do ferido, temendo que a dor o impedisse de ouvir. — Vou
apanhar água.
Tocou de leve na mão magra do ferido e correu até a sala de refeições, para apanhar um copo.
Quando voltou, pôs o braço sob a cabeça do soldado, erguendo-a o bastante para ele poder beber a
água. Então, de repente, alguém segurou seu pulso com força.
— Não faça isso! — ordenou Cole, tirando o copo da mão dela. — Vai fazer mais mal do que bem.
— Viu o espanto no rosto sujo do menino e continuou, com voz mais suave: — Nunca se dá de
beber a um homem com ferimento de bala. Veja, vou mostrar como se faz.
Tirou um pano limpo de um armário próximo, molhou com a água do copo e passou
cuidadosamente nos lábios secos do ferido. Molhou o pano outra vez e deixou cair algumas gotas na
boca do homem. Alaina observava em silêncio. Cole começou a falar com o soldado com voz baixa e
firme:
— Este é Al. Ele vai ficar com você por algum tempo. — Alaina balançou a cabeça, desesperada
para sair dali. Cole franziu a testa, e
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com um gesto a impediu de dizer alguma coisa. — Fique calmo. Logo vamos tratar dos seus
ferimentos. Estão desocupando a sala de cirurgia agora.
Cole segurou a mão de Al e pôs nela o pano molhado.
— Quero ver você aqui quando voltar. Se alguém perguntar, diga que está obedecendo ordens
minhas.
Alaina fez um gesto afirmativo.
— Procure reconfortá-lo o máximo passível. Não me demoro. Ela assentiu outra vez, e Cole se
afastou. Alaina estendeu a mão para a jarra e a bacia que estavam na mesa ao lado. Gentilmente,
lavou o filete de sangue do rosto do soldado, depois a testa e em volta da atadura que cobria seus
olhos, afastando as moscas insistentes.
— Al? — perguntou a voz fraca e áspera.
— Sim, estou aqui — murmurou Alaina, inclinando-se para ele. Com esforço, o soldado finalmente
conseguiu dizer:
— Obrigado.
Sentindo-se feliz por ter cedido ao sentimento de compaixão, procurou controlar o tremor dos lábios
e disse, com sua linguagem de moleque do sul:
— Sempre às ordens, ianque.
Cole parou na porta da sala de estar dos oficiais, ouvindo chamar seu nome. O sargento Grissom
aproximou-se dele.
— Uma jovem senhora quer vê-lo, capitão. Está esperando no vestíbulo.
— Não tenho tempo... — começou a dizer Cole, secamente.
— Ela disse que é urgente, senhor. Disse que é um caso que não pode esperar.
Cole franziu a testa, intrigado. Mas tinha muito que fazer.
— Ela está ferida?
O sargento Grissom sorriu:
— Eu diria definitivamente que não, capitão.
— Então, alguém está ferido?
— Ela não disse, senhor.
— Muito bem, veja se algum dos outros médicos está livre para atendê-la.
O sargento ergueu as sobrancelhas espessas.
— Ela disse que tem de ser o senhor, capitão. E está esperando há quase uma hora.
Com um suspiro, Cole tirou o relógio do bolso.
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— Tenho só um momento. Diga à senhora que descerei logo.
O capitão tirou apressadamente o avental. Havia manchas escuras também no seu uniforme. Não
eram os trajes apropriados para receber uma senhora, mas não podia fazer nada. O tempo era curto.
Abotoou a gola da túnica e caminhou apressado pelo corredor.
No vestíbulo, Roberta levantou-se do banco com um sorriso cintilante, quando viu o capitão.
— Parece surpreso por me ver, capitão — abaixou as pestanas, modestamente. — Acho que minha
visita inesperada pode parecer inconveniente.
— É claro que não, srta. Craighugh. — Cole segurou a mão dela, delicadamente — Só agora me
disseram que uma senhora estava à minha espera. Se o sargento Grissom tivesse dito que era uma
dama tão bela, eu teria me preparado melhor. Mas, deve compreender, estive muito ocupado.
— Não precisa explicar, capitão. — Roberta franziu o nariz levemente, desviando os olhos das
manchas escuras na roupa do médico. Sabia muito bem o efeito daquela expressão, depois de ter
ensaiado na frente do espelho. — Talvez o motivo da minha visita seja um tanto presunçoso,
capitão.
— Continue, srta. Craighugh — disse ele, com um sorriso. — Sua voz é a coisa mais suave que ouvi
durante todo este dia e não vou questionar esse momento de boa sorte.
— É muito galante, capitão. — Roberta inclinou levemente a aba do chapéu para que o capitão
pudesse admirar seu perfil aristocrático. Conhecia a beleza do nariz longo e um pouco voltado para
baixo, das maçãs do rosto salientes, da curva tentadora dos lábios carnudos. — Eu estava passando
na minha carruagem, quando lembrei do quanto seu trabalho é cansativo. Não tem tempo para um
descanso, nem para uma refeição tranqüila. Um homem precisa comer, não é mesmo, capitão? E
ninguém pode culpá-lo por tirar alguns momentos para isso. Conheço um lugarzinho divino no
Vieux Carré, onde servem o mais delicioso camarão. Não gostaria de me fazer companhia, capitão?
Embora toda sorrisos e olhares tentadores, Roberta conteve a respiração, à espera da resposta. Há
uma semana vinha planejando isso e ficaria arrasada se ele não aceitasse.
— Srta. Craighugh, peço as mais humildes desculpas. Preciso
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ainda atender a muitos feridos. Se não fosse isso, teria o maior prazer com sua companhia.
Roberta não deixou transparecer o desapontamento. Cole não era um colegial apaixonado que ela
podia conduzir à vontade. Tentou outra abordagem.
— Não seria uma distância tão grande para o senhor ir jantar conosco esta noite.
Cole sorriu.
— O que seu pai ia dizer, srta. Craighugh? Tenho a impressão de que ele preferia que sua filha não
desse atenção a um ianque.
Os cantos dos lábios de Roberta ergueram-se levemente.
— Ora, capitão Latimer, não me parece um homem que se importa com a opinião dos pais.
Cole riu e seus olhos brilhantes a acariciaram demoradamente.
— Ao contrário, srta. Craighugh. Eu me preocupo muito com o que os pais pensam. Quanto ao seu
convite, prefiro evitar a surpresa e não aparecer sem aviso prévio.
— Não se preocupe com isso. Sei como levar meu pai. Dulcie está preparando um delicioso
bouillabasse, e tenho certeza de que o senhor não vai querer perder isso.
Os lábios bem-feitos do capitão ergueram-se num sorriso preguiçoso, que aqueceu o coração de
Roberta.
— Se não houver nenhum imprevisto, estarei livre mais tarde, esta noite.
Roberta disfarçou perfeitamente a alegria.
— Então, espero ansiosa pela sua visita, capitão. Agora, devo deixar que volte ao seu trabalho. —
Fez uma pausa, esperando algum protesto, mas teve de esconder outra vez o desapontamento
quando viu Cole olhar discretamente para o relógio na parede. Pousou a mão, de leve, na mão dele e
caminharam para a porta. — Já o detive por muito tempo, capitão. Vai me perdoar, não vai?
Certamente não sei muito sobre sua profissão, para imaginar que pode ir e vir quando desejar.
— Estou inconsolável — disse ele, conduzindo-a até a carruagem. — Mas posso garantir que sua
visita iluminou o meu dia.
— Esta noite, então? — murmurou Roberta.
— Esta noite. — Cole sorriu, acenou um adeus e voltou correndo para o hospital, sem olhar para
trás.
Roberta imaginou aquela figura alta e esguia, conduzindo-a num
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salão de baile. E todo aquele dinheiro, também! Estremeceu de prazer. Então bateu com a
sombrinha nas costas do banco do cocheiro.
— Jedediah, dê uma volta na praça Jackson, antes de voltarmos para casa. Há séculos não passeio de
carruagem.
Roberta abriu a sombrinha para proteger a pele delicada do sol, mas sem esconder sua beleza dos
soldados que passavam na rua.
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Capítulo Seis
O MAJOR MAGRUDER esperava Cole no topo da escada, com as mãos cruzadas nas costas, as
pernas separadas. Evidentemente tinha visto seu encontro com Roberta.
— Apanhou uma bela mulher, capitão Latimer.
— Srta. Craighugh—informou Cole, surpreso com a curiosidade do major.
— Uma mulher fácil sulista, suponho.
— Mulher fácil, não creio. Sulista, sim. É prima de Al, e eu teria mais cuidado com os adjetivos
quando o menino estiver por perto. Ele tem um modo todo especial de dizer o que pensa.—Cole
sorriu à idéia do major, baixo e gordo, frente a frente com Al.
— Ora! — disse o major Magruder. — Um moleque muito atrevido para o lixo que é.
— Lixo não, major—corrigiu Cole.—Ele vem de uma fazenda, em algum lugar rio acima. Perdeu os
pais na guerra.
— Está muito ansioso para defender os rebeldes — zombou o major. — Daqui a pouco vai dizer
que tem pena de Lee.
Cole olhou diretamente para o major.
— Eu simpatizo com todos os homens que sofrem. Por isso me tornei médico. E considero meu
juramento muito sagrado.
— Ora! — disse Magruder outra vez, entrando na sala de descanso
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onde Cole começou a lavar as mãos. — Devia ter alguma experiência de combate, filho. —
Derramou um pouco de água da jarra nas mãos e passou os dedos no cabelo, na frente do
espelho.—Passei quatorze anos no exército. Estive no México. Oito anos como tenente. — Olhou
para as divisas de Cole. — Aqui está você, capitão, com dois anos de serviço. — Encostou no
lavatório e cruzou os braços, como preparando-se para partilhar uma grande sabedoria com o
homem mais novo. — Seus juramentos não iam servir muito no calor da batalha, com homens
caindo à sua volta. Você escolhe aqueles pelos quais pode fazer alguma coisa, e a ética não tem a
menor importância. Dá uma gota de láudano para o resto e os leva para a sombra. Se ainda estiverem
vivos quando voltar, então você tenta tratar seus ferimentos.
Cole balançou a cabeça, rejeitando o conselho. Sabia que tinha pouca experiência no campo de
batalha, mas duvidava da possibilidade de adotar aquela atitude em qualquer ocasião.
Magruder disse:
— Estava à sua espera para convidá-lo para juntar-se a nós. — Cole ergueu os olhos, surpreso, e o
major deu de ombros.—A sugestão foi de Mitchell, não minha. Os outros médicos vão ao Sazerac,
para uma pequena comemoração. Ouviu falar da derrota dos Confederados em Broad Run, não
ouviu?
— Derrota? Bem. Ouvi falar também da... como podíamos chamar... retirada tática do velho Rosey,
em Chickamauga.
— Só comemoramos as vitórias — fungou o major. — Antes do fim desta guerra, vamos devolver
em dobro tudo isso aos malditos rebeldes.
— Só uma coisa é certa agora — falou Cole, enquanto lavava o rosto.—Seja qual for o lado que
vença, vai haver muito derramamento de sangue ainda.
— Impressionado, capitão? — zombou Magruder, erguendo a sobrancelha.
Cole apanhou a toalha.
— Não, major, apenas vejo tudo isso como um maldito desperdício.
— Então recusa-se a comemorar conosco? — Magruder aguardou a resposta, como um falcão à
espera da presa.
— Neste momento, vou levar o soldado cego para a cirurgia e ver o que posso fazer por ele. Depois,
se sobrar algum tempo, pretendo jantar com a srta. Craighugh e os pais dela.
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— Está perdendo seu tempo com aquele soldado — avisou Magruder. — Provavelmente ele não
passa de hoje. Faria melhor se saísse mais cedo para aproveitar a companhia da srta. Craighugh.
Cole dependurou a toalha e vestiu um jaleco limpo.
— Seja como for, major, continuo comprometido com meu juramento. O mínimo que posso fazer é
tentar.
— Como queira, capitão, mas vai apenas provocar maior sofrimento antes da morte. Além disso, é
trabalho para, no mínimo, dois médicos...
Um atendente abriu a porta da sala.
— O último já está na sala de operação, capitão e já começaram a aplicar o clorofórmio.
Cole fez um gesto afirmativo e quando o atendente saiu, voltou-se para o major.
— O dr. Brooks concordou em me ajudar.
— Brooks! Aquele velho rebelde? Tenha muito cuidado com ele. É bem capaz de cortar o pescoço
do rapaz.
— Ele fez o mesmo juramento que eu — disse Cole, com voz firme. — E leva a profissão tão a
sério quanto eu. — Com a mão na maçaneta da porta, acrescentou, pensativo. — E se quer saber, ele
não é um rebelde. Na verdade, perdeu muitos amigos quando se manifestou abertamente contra a
secessão. — Abriu a porta. — Agora, se me der licença, major, preciso trabalhar.
Magruder o acompanhou, visivelmente aborrecido. Sempre se ofendia quando os mais moços não
acatavam seus conselhos. Da porta da ala de cirurgia viu o pequeno faxineiro com um pano molhado
na mão e o rostinho magro preocupado. Irritou-o a idéia de que bons dólares da União estavam
pagando a irresponsabilidade daquele moleque sujo.
— Vá fazer seu trabalho — ordenou Magruder, com brusquidão. — Já descansou muito por um dia.
Cole olhou para trás e controlou-se para não dizer nada. Al olhou para ele interrogativamente, e a um
movimento da cabeça do capitão, afastou-se rapidamente.
— Parece que tem uma queda especial para recolher gente perdida -— zombou Magruder. — De
agora em diante, resista à tentação de nos impingir seus protegidos. Aquele garoto não merece
confiança.
Cole sorriu, benevolente.
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— Eu não sei disso, major. Nunca tive dúvidas em dar as costas a ele. É pequeno demais.
— Ah! — disse Magruder. — Os pequenos são os piores. Atingem sempre os lugares mais sensíveis.
Cole riu, embora o major não tivesse percebido o próprio humor.
— Vou me lembrar disso, major.
Quase três horas depois, a maca com o soldado cego saiu da sala de operações.
— Tenham cuidado — ordenou Cole aos atendentes. — Ele tem mais pontos do que uma colcha de
retalhos, e é muito mais delicado.
O dr. Brooks enxugou as mãos na toalha.
— Você acha que retirou tudo?
Com um suspiro, Cole tirou o avental sujo de sangue.
— Logo saberemos. Por enquanto, só podemos esperar e rezar para que não apareça uma peritonite.
— A sorte dele foi ser atendido por você. Já vi médicos menos capazes e menos pacientes na minha
vida.
Cole deu de ombros.
— Se você vai tentar, é bom fazer do melhor modo possível. O dr. Brooks tirou o relógio do bolso.
— Quase seis horas. Vou dar uma olhada na enfermaria lá em cima e depois comer alguma coisa.
Não creio que um jovem como você queira jantar com um velho como eu.
— Tenho compromisso com uma jovem esta noite—sorriu Cole.
— Muito melhor companhia do que eu, tenho certeza. — O velho médico foi até a escada e parou.
— Aquele garoto faxineiro que tenho visto por aí... não estaria disposto a repartir comigo o trabalho
dele?
— Quer dizer, Al?
— Não sei o nome dele. Nem sei como é sua cara. Toda vez que passo pelo hospital, ele está de
quatro, esfregando o chão. A única coisa que posso reconhecer é o seu traseiro.
— Não tenho certeza, mas vou pensar — disse Cole.
O velho médico balançou a cabeça, compreensivo.
— Bem, se resolver afirmativamente, pode trazê-lo.
Quando Cole saiu do hospital, encontrou Al sentado na grade, ao lado do seu cavalo. O capitão
olhou interrogativamente para ele.
— Pensei que já tivesse ido embora. O que está fazendo aqui a esta hora? — Cole olhou para os
cavalos amarrados na grade. — Onde
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está aquele pangaré que você chama de cavalo? Não vai me dizer que eleojogounochão.
— Não estou com ele hoje—respondeu Alaina, jogando no chão os pedaços de um graveto seco. —
Roberta ficou com a carruagem e o tio Angus teve de se contentar com o velho Tar.
— Então você ficou a pé.
— Não é bem assim. Vou tomar o bonde até a loja. Tio Angus ainda deve estar lá.
— E se não estiver?—perguntou Cole, olhando atentamente para o menino.
— Não estou pedindo para me levar para casa!—afirmou Alaina, zangada. Ficava arrepiada só em
pensar. Viajar na garupa, sem a valise de vime entre os dois podia causar mais problemas do que ela
queria imaginar. Na verdade, Alaina começava a perceber que cada vez mais parecia uma mulher
adulta sem o disfarce.
— Então, o que está esperando? — perguntou Cole.
— Eu estava pensando—não era fácil admitir que se preocupava com um ianque. — Estava
pensando se... se foi tudo bem com aquele último soldado.
Cole segurou o cavalo pela rédea e o fez dar meia-volta. Depois olhou fixamente para o garoto sujo,
até Al dar de ombros.
— Eu também" tenho meus momentos de fraqueza, como todo mundo.
Cole riu.
— Al, você me surpreende.
— Ele conseguiu, não foi? — Protegendo os olhos da luz do sol poente, Alaina tentou ver o rosto
do oficial.
— Sim, Bobby Johnson conseguiu — disse Cole. — Se tudo for bem por alguns dias, talvez ele
possa voltar para casa.
— Era o que eu queria saber.
Al começou a descer da grade e no processo sentiu que ia perder as botas pesadas e largas. Num
esforço para evitar que caíssem, levantou as pernas. Não foi a descida mais elegante da sua vida, mas
foi talvez a mais rápida. O chão duro estava bem ali à espera do seu traseiro macio. Seu grito
assustou o cavalo de Cole. De repente, percebendo que podia ser pisoteada pelo enorme animal,
Alaina levantou-se de um salto, deixando as botas para trás. Foi demais para Cole, e sua gargalhada
mereceu um olhar furioso de Alaina.
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— Seu ianque miserável! Ia deixar essa mula velha pisar em mim!
— Ora, Al—riu Cole.—Eu estava só vendo você apear daquela grade. Foi você quem assustou Sarg.
Não ponha a culpa em mim.
Alaina esfregou o traseiro dolorido, desejando poder gemer no seu tom de voz natural.
— Vai ficar dolorida. — Cole ofereceu de graça sua sabedoria.
— Se aceita o tratamento de um médico ianque, tenho linimento na sala dos médicos. Posso fazer
uma massagem...
— Não, senhor.—Alaina balançou a cabeça, muito séria.—Não vou tirar as calças para nenhum
ianque!
Cole teve certeza de que toda a rua podia ouvir a voz de Al. Com um suspiro doloroso, ele fechou os
olhos.
— Agora que todo mundo está olhando para nós e sem dúvida pensando o pior, está satisfeito?
Al riu alto e alegre, enfiando os polegares no cinto da calça.
— Vou rir quando o enforcarem, capitão.
, — O major Magruder bem que avisou — disse Cole, secamente.
— Eu devia ter dado atenção a ele.
— Bem, eu também não gosto nem um pouco dele.
— Se quer transporte para casa — disse Cole, perguntando a si mesmo por que se dava ao trabalho
—, vou para lá dentro de poucos minutos. Pode esperar no meu apartamento, enquanto eu troco de
uniforme..........
Alaina entrecerrou os olhos:
— Vai ver Roberta?
— Ela me convidou para jantar. — Cole ergueu uma sobrancelha.
— Não preciso perguntar o que você acha. Posso ver no seu rosto.
Irritada, Alaina cruzou os braços no peito.
— Não é da minha conta que criaturas Roberta convida para jantar. Ela sempre gostou de cafajestes
e coisas assim. De qualquer jeito, a mesa não é minha. Só não espere que eu jante com vocês. Só
como com ianques quando não posso evitar.
— Quer ir comigo, ou não? — perguntou Cole, impaciente.
— Não estou disposto a andar no lombo desse pangaré de passo duro — disse ela, massageando o
traseiro.
— Eu estava pensando em pegar a carruagem no meu apartamento. — Cole deu de ombros. — Faça
como quiser. Acho que um garoto tão melindroso quanto você devia andar vestido de mulher. Por
falar
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nisso — apontou para os pés nus de Alaina —, já vi muito sapato de mulher maior do que seus pés.
Embaraçada, Alaina curvou para baixo os dedos dos pés.
— Ia apanhar a carruagem? — perguntou ela. Cole fez um gesto afirmativo.
— Quer vir comigo? --,
— Eu o encontro no apartamento, talvez — disse Alaina, meio encabulada. Não gostava de aceitar
favores de ianques, mas assim podia economizar alguns centavos, e isso para ela era uma fortuna.
— Se você não estiver lá quando eu sair—disse Cole, montando no cavalo —, não vou esperar.
Alaina apanhou as botas.
— Vou estar lá, ianque.
E estava mesmo, até cedo demais. Esperou por Cole, no outro lado da rua. Vigiando a janela do
apartamento, deu uma volta na praça, até ser empurrada rudemente por um grupo de soldados, que
passava fazendo algazarra. Na luz fraca do fim do dia, Alaina olhou para as costas deles e depois se
voltou para a estátua de Andrew Jackson, em cuja base Butler mandara acrescentar a frase "A
UNIÃO DEVE SER E SERÁ PRESERVADA".
— Típico de um ianque tripudiar sobre o vencido — disse ela, com desdém.
Ouviu o trote do cavalo e o ruído das rodas da pequena carruagem aberta e, voltando-se, acenou
para o capitão. Ele puxou as rédeas, parando ao lado dela.
— Pensei que você não ia chegar em tempo.
Alaina viu o rosto dele, no lusco-fusco do começo da noite, e os botões dourados do uniforme
refletindo a luz dos apartamentos. Às vezes ainda se surpreendia com a beleza dele.
— Tem certeza de que a viagem é de graça?
Cole tirou um charuto comprido do bolso interno e abotoou a túnica até em cima.
— Al, eu imaginei — disse ele, acendendo o charuto e tirando uma baforada — que você soubesse
quando deve ficar calado, especialmente quando pode perder o que quer.
Al protestou, indignado.
— Foi você quem ofereceu! Eu pedi alguma coisa? Pedi? Cole ergueu as rédeas para bater com elas
no dorso do cavalo.
— Se não quer aceitar...
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— Espere! — Alaina mordeu o lábio, e Cole, recostando-se no banco, sorriu para ela. — Eu gostaria
de uma carona.
Ele indicou o banco com um movimento da cabeça.
— Suba.
Alaina deu um passo para a traseira da pequena carruagem, pensando em sentar-se no lugar da
bagagem, mas a pergunta de Cole a fez parar.
— Aonde você vai?
Ela deu de ombros, apontando para a traseira da carruagem. Cole bateu com a mão no banco, ao seu
lado.
— Sente-se bem aqui, onde posso ficar de olho em você. De agora em diante, acho que vou seguir o
conselho de Magruder.
Depois de uma pequena hesitação, Alaina obedeceu. Não gostou de sentar-se tão perto dele,
especialmente sentindo aquele cheiro bom de banho e de roupas limpas, contrastando com o fedor
rançoso do seu cabelo. Pouco à vontade, puxou para baixo a aba mole do chapéu e ficou imóvel e
em silêncio durante quase toda a viagem. O contraste entre os dois era doloroso demais, ele, um
ianque e um homem, ela, uma jovem mulher.
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Capítulo Sete
O COAXAR DOS sapos e o trinado dos grilos enchiam a noite, e da sala vinha o som de vozes e de
riso masculino, sonoro e claro. Uma brisa fria e lânguida ondulava suavemente os galhos dos
enormes carvalhos, balançando as folhas e levando o perfume dos arbustos floridos até a varanda do
quarto de Alaina. O brilho suave e prateado do luar iluminava o rosto delicado e pensativo da jovem,
de pé na porta da varanda. Alaina era prisioneira no próprio quarto, impedida de sair pela presença
do ianque na casa. Estava só, e a tristeza da solidão era uma dor surda nas profundezas da sua alma.
Nunca antes se sentira assim confinada, e o riso cristalino de Roberta, na sala, parecia fechar as
paredes à sua volta. Penetrava zombeteiro na sua mente, transformando o quarto numa câmara de
tortura.
Alaina virou-se para o espelho de corpo inteiro, na parede do quarto. O que viu não a consolou.
Mesmo com o capitão Latimer na casa, conseguira tomar banho na antiga despensa, depois deu a
volta na casa e subiu a escada externa até seu quarto. A figura solitária no espelho mostrava mais a
jovem mulher do que revelavam as roupas do seu disfarce, mas o cabelo escuro e crespo era curto
demais e a camisola folgada e velha não melhorava sua aparência.
Olhou para o armário, para o pouco que tinha e sentiu uma estranha vontade de vestir algo belo e
feminino, de rir com a alegria
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da sua alma de mulher, em vez de esconder as formas suaves do corpo e engrossar a voz até ficar
com dor de garganta.
O disfarce era necessário. Mas se tornava cada vez mais difícil vestir as roupas folgadas e velhas e
assumir uma personalidade que a cada manhã lhe parecia mais repugnante. Aos poucos, aquela
fantasia estava roubando sua feminilidade.
Uma ilusão a perseguia. Imaginava o alto e elegante capitão Latimer passando por ela, de braço com
uma mulher vestida de seda vermelho vivo. O rosto dele estava animado e cheio de vida, sua atenção
toda voltada para a mulher, e de joelhos ele jurava amor eterno. A mulher estendia a mão sobre a
bela cabeça, como para sagrá-lo cavaleiro, e os lábios dele tocavam os dedos delicados e subiam
acariciantes pelo braço nu. A imagem ficava mais clara, e os lábios vermelhos e generosos que ele
beijava eram os lábios da sua prima Roberta.
Alaina saiu para a varanda, para o frescor da brisa noturna, fugindo da visão à qual "Al" não
pertencia. Dúvidas martelavam pesadamente as paredes semidesmoronadas da sua confiança. Nunca
podia esperar vir a ser a mulher que Roberta era, uma mulher que atraía os homens, onde quer que
aparecesse. Seu destino era ser apenas o magricela e feio Al, com jeito de menino, sem nenhum
encanto. Por mais doloroso que fosse, esfregar o chão parecia ser seu futuro, enquanto que Roberta,
só com um sorriso desamparado, podia ter o mundo aos seus pés.
Alaina desceu lentamente a escada, até poder ver a varanda do térreo. Um feixe de luz saía da sala de
estar, iluminando os degraus mais baixos, e ela parou ali, temendo ser vista. Na outra extremidade da
varanda coberta estavam as cadeiras e o banco em volta dos quais, nas raras visitas à cidade, ela e os
irmãos brincavam, quando eram pequenos, enquanto Roberta passava o tempo todo enfeitando suas
bonecas de porcelana com vestidos e chapéus finos.
O riso de Roberta cortou a quietude da noite, acompanhado da risada profunda do capitão e da do
tio Angus, baixa e relutante.
— Capitão, parece que o senhor já esteve em toda a parte — arrulhou Roberta. — Além do seu
estado, qual a sua parte favorita do mundo? Paris, talvez?
Alaina espiou pela janela da sala e viu Cole, quando ele respondeu galantemente.
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— Não vi nada em Paris mais belo do que estou vendo agora, srta. Craighugh.
Alaina ergueu os olhos para o céu, pensando seriamente em rezar pela alma do ianque. Angus
pigarreou significativamente, e Cole levantou-se.
— Entretanto, por mais que aprecie sua encantadora companhia — disse ele —, é tarde e preciso ir.
— Beijou de leve a mão macia e branca de Roberta, e Alaina apertou as suas, ásperas e vermelhas,
entre os joelhos. Estava tão interessada em ver a partida do capitão que nem pensou em se esconder.
— Espero que nos visite mais vezes — murmurou Roberta, recatadamente, passando o braço pelo
dele e conduzindo-o à porta.
Alaina encolheu-se na sombra quando o capitão saiu para a varanda. Roberta saiu com ele, e a jovem
viu claramente quando a prima, acariciando o peito dele, inclinou-se provocativamente, apertando os
seios contra o uniforme azul.
— Vai voltar, não vai, Cole?
Alaina sentiu o rosto em fogo quando, no seu papel de espectadora involuntária, viu a resposta
ardente do capitão. Roberta foi apertada contra o peito forte. Os lábios dele procuraram os da moça,
com um fervor que tirou o fôlego de Alaina. Era a primeira vez que via um homem beijar uma
mulher daquele modo e embora sentindo-se uma intrusa, o sangue ferveu excitado em suas veias. De
repente, a idéia de ser beijada assim por Cole Latimer a fez sentir calor e atordoamento. Quando ele
tocou o seio de Roberta, era o de Alaina que estava tocando e era o de Alaina que crescia sob a
camisola.
— Vai voltar amanhã, não vai, Cole? — suplicou Roberta, num murmúrio. — Não vai me deixar
aqui sozinha, vai?
— Tenho muito trabalho — disse ele, com a respiração entrecor-tada, acariciando com os lábios o
rosto dela.
— Trabalho? — O apelo de Roberta foi suave e discreto. — Não pode esquecer o trabalho por um
momento, Cole? Amanhã estarei aqui, completamente sozinha. Mamãe vai para a loja, e papai precisa
ir ao mercado. Não quer vir, por favor? — A mão muito branca cobriu a dele, apertando-a sobre o
seio bem-feito, que quase saltou do decote. — Teremos a tarde toda só para nós.
Alaina não podia entender como Roberta conservava-se tão calma sob as carícias, quando ela, só de
ver, tremia como um salgueiro ao vento. A sensação latejante do desejo que pulsava em suas
entranhas
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era nova para ela e, com relutância, concluiu que, se estivesse no lugar de Roberta, a essa altura
estaria quase desmaiando.
Passos soaram no hall, e Roberta, afastando-se, alisou o vestido e ajeitou o cabelo.
— Preciso ir — murmurou Cole. — Seu pai está ficando impaciente.
,, — Eu o espero amanhã. — Roberta sorriu ternamente.
., Cole, que já se afastava, parou.
- — Sinto muito, Roberta, mas não posso deixar o meu trabalho. Então ele partiu, e Roberta,
amuada, viu a pequena carruagem se afastar. Passar algumas horas sozinha, em casa, com o capitão,
seria o modo mais certo de levar aquele namoro espasmódico a um rápido casamento e
provavelmente seriam surpreendidos por sua mãe, que só ia ficar fora de casa por uma ou duas
horas.
— Papai? — chamou ela.—Preciso de um vestido novo, alguma coisa muito bonita.
— Roberta! Nada disso! — Angus apareceu na porta. — Você sabe como tem sido difícil conseguir
o pouco que estamos ganhando na loja. Não tenho nenhum sobrando.
— Oh, papai, não se preocupe tanto. Amanhã é dia do pagamento de Alaina, e tenho certeza de que
madame Henri pode esperar o que o senhor lhe paga todas as semanas.
— Roberta, não posso! Não seria direito!
— Papai, vou pegar um homem rico — disse ela, friamente. — E preciso de toda a ajuda que
possam me dar. Se usar estes farrapos, ele vai pensar que só quero o seu dinheiro.
— Se você está pensando naquele ianque... — Angus estava sinceramente furioso. — Rico ou não,
não quero vê-lo outra vez nesta casa! Esta noite perturbou muito sua mãe, o que os vizinhos vão
pensar?
— Oh, que me importam os vizinhos. São um bando de velhos ranzinzas.
— Devia mostrar mais respeito, Roberta — censurou Angus.
— Eu sei, papai. — Roberta deu um suspiro profundo. — Mas estou farta de viver com migalhas.
— Venha para dentro e vá se deitar, minha filha. Não adianta preocupar sua linda cabecinha.
— Não me demoro, papai. A noite está tão agradável. Quero aproveitar mais um pouco aqui fora.
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— Está bem, mas não fique até muito tarde.
Cantarolando baixinho, Roberta valsou pela varanda. Já se imaginava num baile, como os que Banks
costumava dar, com um lindo vestido e, é claro, acompanhada pelo mais belo homem que já tinha
visto.
De repente, com uma exclamação abafada, de susto, parou vendo a sombra na escada tomar forma
humana.
— Al! — sibilou ela, reconhecendo a prima. — O que está fazendo aqui? Pensei que estivesse no
quarto.
— Meu nome é Alaina — corrigiu a jovem, e dando meia-volta, de camisola e descalça, começou a
subir a escada. — Se não se importa, quer me chamar pelo meu nome?
Roberta sorriu com desdém, furiosa porque a prima estava espiando.
— Você sempre se pareceu mais com Al do que com qualquer Alaina.
Alaina virou o corpo rapidamente, olhou fixamente para o rosto zombeteiro da prima, e voltando-se
outra vez, continuou a subir, dizendo por sobre o ombro:
— Pelo menos você não me vê me atirando para cima do ianque.
— Você está com ciúmes! — Roberta foi atrás dela. — Está com ciúmes porque nunca vai conseguir
pegar um homem como Cole Latimer. Você e seus ossos... ora, ele a expulsaria da cama com sua
risada!
Alaina estremeceu, atingida em cheio pela crueldade da prima, sabendo que ela estava dizendo a
verdade.
— E vou dizer mais uma coisa, Alaina MacGaren — continuou Roberta, enfática: — Vou obrigar
Cole Latimer a se casar comigo.
Alaina virou um pouco para trás, e Roberta sorriu triunfante.
— E qual vai ser sua desculpa quando ele descobrir que não é virgem? — peguntou Alaina,
calmamente.
Chocada, Roberta perguntou:
— Como você sabe? - Alaina deu de ombros.
— Ouvi Chad Williamson se vangloriando para os irmãos Sha-tler. É claro que estão todos mortos,
portanto, acho que sou a única pessoa que sabe.
Roberta fechou os punhos e os ergueu ameaçadoramente para a prima.
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— Se contar a Cole, juro que conto seu pequeno segredo! — Um pouco mais calma, ela procurou
recuperar o domínio. — Além disso, tudo foi há muito tempo, eu tinha só quinze anos... e foi só
uma vez. — Fez uma careta. — E de qualquer modo, eu não gostei. Todos aqueles bufos e
apalpadelas. Fiquei completamente exausta e durante uma semana não podia me sentar direito.
— O capitão Latimer é médico. Talvez ele descubra... Roberta interrompeu, rapidamente:
— Vou pensar em alguma coisa para convencê-lo. Vou fazer com que acredite em mim!
Alaina entrou no quarto e disse:
— Acho que ele tem muita experiência com mulheres. Roberta estava bem atrás dela.
— Estou dizendo! Vou fazer com que ele acredite!
Alaina olhou para ela e disse, calmamente:
— Mas primeiro tem de fazer com que ele queira casar com você.
Roberta disse, com desdém:
— Isso é tão fácil quanto estalar os dedos. Na verdade, ele talvez já esteja muito perto disso...
Alaina balançou a cabeça, pensativa:
— Sim, talvez você consiga realizar seus planos. Pode até enganá-lo na cama, como disse. Mas,
pergunto, será que você vai ser feliz, Roberta... quero dizer, feliz de verdade?
— Não seja absurda! É claro que vou. Ele tem dinheiro...
Alaina riu com desprezo.
— Você acha que isso chega para a felicidade verdadeira. A mulher deve partilhar a cama com o
marido com prazer, ter seus filhos...
— Filhos! Não vou me arruinar pelo filho de ninguém!
Alaina olhou para a prima, sentindo pena dela.
— Se você ama realmente um homem, quer os filhos dele.
— Isso é o que você sente! E você, pobre patinho feio, vai ter muita sorte se merecer o olhar de
algum homem!
— Se acabou os insultos — murmurou Alaina, sem muita convicção —, eu gostaria de me deitar
agora. Preciso chegar cedo ao hospital.
— É claro! Precisa descansar bastante para esfregar bem o chão. Cole disse que você faz isso muito
bem.
Percebendo que acertara o alvo, Roberta saiu graciosamente para
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o corredor, fechando a porta. As lágrimas de revolta encheram os olhos de Alaina, umedecendo as
pestanas espessas. Magoada com o ataque de Roberta, apagou a luz, e no escuro olhou para o feixe
de luar que entrava no quarto. Os insultos a feriram profundamente e eram mais assustadores porque
eram o eco dos seus próprios pensamentos.
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Capítulo Oito
A: MANHÃ DE sexta-feira chegou numa desordem para Alaina. Ela dormiu demais e a partir daí o
dia degenerou numa loucura frenética. Os esfregões pareciam especialmente desajeitados, e ela
tropeçou no balde cheio d'água, derrubando-o e caindo esparramada no chão. Esfregou o cotovelo
arranhado e, resmungando, furiosa, levantou-se. Com o canto do olho viu o capitão Latimer
entrando no corredor para ver o motivo de todo aquele barulho. Sua desaprovação e censura quase
lhe valeram um balde de água no rosto. Quando ele se afastou, Alaina começou a torcer a roupa
molhada. Podia dispensar perfeitamente a disciplina paternalista do ianque.
Quase no fim da manhã ela encontrou tempo para ver como estava Bobby Johnson. Encontrou o
jovem soldado ainda sob o efeito da morfina aplicada para aliviar a dor. Para ela era o bastante saber
que ele estava vivo.
No começo da tarde, Alaina mais uma vez tornou-se alvo da atenção de Cole. Estava lavando a
última janela quando notou que ele a observava, pensativo. Isso não a perturbou. Outro ianque
qualquer talvez pudesse descobrir seu disfarce, mas o capitão Latimer só se interessava pela sujeira da
sua roupa e cabelo. Parecia cego para qualquer outra coisa.
Alaina continuou a limpar o vidro da janela e só quando ele chegou perto, virou-se rapidamente para
trás, em atitude de defesa.
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— Calma, não vou bater em você — disse Cole. — Pelo menos, não ainda.
Alaina passou a manga suja no nariz, fungando ao modo típico de Al.
— Meu pai me avisou para nunca dar as costas a um barriga azul — o olhar zombeteiro o examinou
de alto a baixo —, ianque!
— Isso deve ser difícil para você, no meio de todos esses bons soldados da União — disse Cole,
sarcástico.
— Está certo, ianque. — Alaina tirou do bolso da calça um lenço rasgado e assoou o nariz
ruidosamente. — Em todo canto, estou sempre de costas para um estrangeiro.
— Se já terminou—disse ele, impaciente—, tenho mais trabalho para você, embora não seja do meu
agrado.
— Eu devia saber — lamentou-se Alaina, com um gemido. — Quando não está criticando minha
aparência, está inventando algum trabalho para mim. O que é agora, barriga azul? Limpar mais
vômito ianque? — Alaina detestava aquela palavra!
Cole sorriu. Aquela atitude de permanente hostilidade era irritante, mas Cole preferia atribuí-la a uma
espécie de defesa. O menino desafiava deliberadamente qualquer censura ou punição, quase
instintivamente, e por isso, imaginava Cole, nunca chegava a receber nenhum dos dois. Controlando-
se, respondeu:
— Uma coisa muito pior, eu creio.
Alaina procurou não demonstrar sua preocupação. Sabia que não era uma ameaça vã e se ele
pretendia fazer com que ela limpasse a sala onde os médicos faziam as amputações, deixaria o
emprego. Não tinha estômago para isso.
— Venha comigo. — Cole deu um passo para a porta, e parou, percebendo a hesitação de Alaina. —
Muito bem, mexa-se! — ordenou.
Furiosa, Alaina pensou que aquele homem tinha o dom de irritar as pessoas.
— Pensei que ia visitar Roberta esta tarde. Por que ainda está aqui?
Cole ergueu a sobrancelha, ameaçadoramente.
— Acho que você foi mal informado.
Alaina ergueu os ombros.
— Do jeito que estava tão ansioso para ir à casa dos Craighugh, ontem à noite, achei que ia querer
estar com Roberta o maior tempo possível.
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— Fui mandado para Nova Orleans para tratar dos feridos, não para cortejar mulheres, por mais
agradável que seja essa idéia. E você — os olhos azuis fitaram os olhos cinzentos — foi empregado
para fazer a limpeza. Agora, venha comigo.
Para alívio de Alaina, subiram para o terceiro andar, onde ela nunca estivera. O dia estava quente, e
ali em cima o calor era mais intenso. O suor grudava a camisa áspera nas costas e nos ombros e
pingava entre seus seios. Até na túnica imaculada de Cole apareceu uma listra escura no meio das
costas.
Alaina esforçava-se para acompanhar o passo rápido do capitão, arrastando suas botas largas e
pesadas. Passaram por um corredor e chegaram a outro, menor, com um sargento sentado a uma
mesa e um soldado montando guarda na frente de uma porta. Outra porta, no fim do corredor,
estava entreaberta, e Alaina viu um grupo de soldados da União jogando cartas ou descansando.
Quando viu os dois, o sargento levantou-se para abrir a porta guardada pelo soldado. Alaina viu uma
enfermaria duas vezes maior do que as dos andares inferiores. Mas os pacientes eram soldados
confederados, como indicava os restos andrajosos dos uniformes que usavam. Alguns estavam
deitados imóveis, olhando para o teto, outros agitavam-se e gemiam de dor. Alaina ouviu a
respiração rascante do soldado perto da porta. Ele virou a cabeça para os recém-chegados e tentou
sorrir, mas foi impedido por um terrível acesso de tosse. Alaina sabia que aqueles homens eram
prisioneiros, que, quando estivessem melhor, seriam mandados para Ship Island ou Fort Jackson.
— Este é Al — disse Cole para os homens. — Ele vai fazer a limpeza da sua enfermaria. —
Estendeu o braço para empurrar Alaina para a frente, mas ela resistiu.
— Tire suas mãos de mim, ianque — rosnou ela. — Fique longe de mim que vamos nos dar muito
bem.
Um rebelde alto e magro riu alto.
— Oh, capitão, vejo que arranjou um garoto bravo. De onde o tirou?
— De uma briga com alguns dos nossos soldados — respondeu Cole, secamente. — Meu erro foi
pensar que ele estava em desvantagem. Na verdade hoje eu sei que salvei os soldados de um
verdadeiro desastre.
Um homem, na outra extremidade da enfermaria, ergueu-se um pouco na cama e perguntou:
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— Ei, garoto, como é que está trabalhando para os ianques? Sua mãe não lhe ensinou nada?
Alaina deu de ombros.
— Ela tentou, mas eu preciso comer de vez em quando.
O homem deitou-se outra vez e ficou pensativo.
— Pois me parece que eles não estão lhe dando bastante comida. A última vez que vi um garoto
franzino como você ele estava no colo da mãe. Talvez você seja muito novo para saber que gente
respeitável prefere morrer de fome a limpar o lixo em poder dos barrigas azuis.
Al foi até os pés da cama do homem e olhou para a sujeira à sua volta.
— Não tem nenhum lixo podre de barrigas azuis por aqui, companheiro, é tudo de Johnny Rebelde.
Alaina enfrentou firme o olhar furioso do homem. Os outros riram, divertidos e, finalmente, com o
rosto muito vermelho, o soldado rosnou:
— Comece a trabalhar, antes que eu dê umas vassouradas no seu traseiro.
Alaina olhou para a perna boa do homem, dobrada sobre a outra imobilizada por duas talas de
madeira.
— Tente fazer isso, Johhny — disse ela —, e vai precisar de talas na outra perna também.
Qualquer dúvida que Cole pudesse ter sobre a segurança do garoto desapareceu. Al era um galinho
de briga, que sabia se defender muito bem.
Um homem de cabelos brancos entrou na enfermaria, e Alaina estremeceu, reconhecendo o dr.
Brooks, médico e amigo dos Craig-hugh.
— Capitão Latimer — disse ele —, se tem um momento, gostaria de sua opinião sobre um assunto.
O dr. Brooks foi até a cama de um soldado, falou com ele por um momento e começou a tirar o
lençol que o cobria. Alaina não esperoupara ver se o ferido usava algo mais do que a atadura em
volta do estômago. Na sua pressa, virou-se para trás e colidiu com o capitão.
— Al — disse ele, zangado. — O que deu em você?
-Alaina inventou uma desculpa.
— Acho que é o calor.
— Pois então tire esse maldito casaco. Você parece a ponto de
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ficar cozido. — A mão que ele estendeu na direção dela, como para ajudá-la a tirar o casaco, foi
afastada com um tapa sonoro.
— Já disse para não tocar em mim! —avisou Alaina, quase gritando. Uma cadeira foi derrubada no
corredor, e o guarda adentrou na enfermaria, seguido pelo sargento, ambos preparados para dominar
qualquer desordem. Esfregando as costas da mão, Cole olhou furioso para Al.
— Um dia destes, Al — disse ele, com os dentes cerrados.—Um dia destes.
— Eu avisei, não avisei? Não toque em mim! Eu já disse! Mas você não escuta! A culpa é sua.
— Al! — Com os músculos do rosto contraídos e os olhos azuis semicerrados, ele continuou: —
Tem idéia do quanto você é irritante?
Ela ergueu os ombros magros, e Cole, sem se voltar, disse para o sargento.
— Está tudo bem. Quero que fiquem de olho neste garoto esquentado enquanto ele estiver
trabalhando aqui. Se não tomarmos cuidado, ele começa outra guerra.
Com um último olhar de advertência, Cole passou por Al e aproximou-se do dr. Brooks. Evitando
olhar para o corpo magro na cama e para o ferimento que Cole examinava, Alaina começou a
arrumar a sala. Apanhou vários livros de poesia que estavam debaixo da cama ao lado da porta.
— Ei—disse o soldado com voz rouca, fraco demais para erguer a cabeça. — Você é de algum lugar
aqui perto?
— A parte alta do rio — respondeu Al, de joelhos, esfregando o chão e apanhando os livros. —
Perto de Red.
— Camponeses, eu aposto — disse o homem grande na outra extremidade da enfermaria.
Alaina ficou tensa, mas nem olhou para ele. Levantou-se com os livros nos braços.
— Por acaso, não conhece uma jovem que mora a uns vinte quilômetros de Alexandria, conhece? —
perguntou o soldado com sua voz sibilante. — Uma coisinha muito bonita. Não muito maior do que
você. Certa vez ela nos deu um pouco de comida — Ele engoliu em seco, com dificuldade. — E nos
deixou passar a noite no seu celeiro. Não sei o nome dela, mas um homem grande e negro cuidava
para que todos a tratassem com respeito. Ela o chamava de Saul...
Sem olhar para ele, Alaina disse:
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— Todo mundo foi embora de lá. Provavelmente ela também saiu, como todos nós.
— E uma pena. — Ele tossiu e depois continuou. — Eu estava pensando que... talvez, quando esta
guerra acabar e eu sair da prisão... estava pensando em passar por lá outra vez. Ela era uma
verdadeira dama... partilhando conosco o pouco que tinha. Eu gostaria de retribuir o favor, de algum
modo. Com mãos trêmulas, Alaina arrumou os livros ao lado da cama.
Um jovem cheio de sonhos que logo seriam esmagados entre os muros de uma prisão. Como podia
dizer a ele que o menino magro, sujo e despenteado era tudo que restava da jovem dos seus sonhos?
Surpresa, sentiu a mão no seu ombro e ergueu os olhos para o dr. Brooks.
— Então, você é o jovem sobre o qual o capitão Latimer nos preveniu—disse ele, com um
sorriso.—Não foi fácil, mas finalmente consegui que ele nos cedesse sua ajuda.
Os bondosos olhos azuis cintilaram e a boca se abriu de espanto quando ela ergueu o rosto.
— Meu Deus!
Alaina fez uma careta, vendo que ele a reconhecera. O dr. Brooks ia sempre à casa dos Craighugh
quando nas ocasiões em que ela e sua família estavam de visita. Várias vezes ele comentava em tom
de brincadeira o fato de ela preferir brincar com os meninos, como se fosse um deles.
O dr. Brooks pigarreou e, voltando-se, segurou o braço de Cole, levando-o para a porta.
— Há outra coisa que quero conversar com o senhor, capitão. A morfina está quase no fim...
Os dois homens saíram para o corredor, e Alaina finalmente soltou a respiração devagar. O dr.
Brooks ia guardar seu segredo com o mesmo cuidado com que guardava as vidas dos confederados
daquela enfermaria.
Uma brisa leve a acariciou, fazendo-a voltar à realidade. Sim, estava muito mais fresco agora. E de
repente, ela percebeu que fazia menos calor ali do que em qualquer outra enfermaria do hospital.
Levantou os olhos e viu a clarabóia por onde o ar quente saía, deixando entrar a brisa fresca de fora.
— Os idiotas dos ianques ainda não descobriram — disse o rebelde alto e magro, acompanhando o
olhar de Alaina. — Eles nos
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enfiaram aqui para evitar que a gente fuja pela janela, mas não perceberam que é o lugar mais fresco
do hospital.
Com um largo sorriso, Alaina lembrou do sargento derretendo no corredor sem ar. Ultimamente era
raro o dia em que podiam conquistar alguma vitória, por menor que fosse, contra os ianques.
O dr. Brooks voltou para a enfermaria e olhou para Alaina.
— Quero falar com você em particular, Al—disse ele —, quando terminar seu trabalho.
No sábado, Alaina trabalhou na loja do tio, sob a orientação de Roberta. Na sexta-feira fizera tudo
que precisava fazer no hospital e o capitão lhe deu o sábado de folga. Logo que soube disso, Roberta
tratou de requisitar a ajuda da prima, pois aquele era seu dia de trabalhar na loja. Durante quase todo
o dia, Roberta providenciou para que Alaina não tivesse um momento de descanso, enquanto ela se
encarregava de atualizar os livros da firma. Sentada à grande mesa de trabalho do pai, ela era alvo das
atenções dos ianques que passavam pela loja. Com prazer, via-os passarem indiferentes pelo garoto
que esfregava o chão ou arrumava as prateleiras.
O domingo era dia de igreja e visitas sociais. Como Alaina não podia se vestir adequadamente e
acompanhar os Craighugh, ela ganhou algumas horas livres da vigilância e da provocação constante
de Roberta. Dulcie e sua família freqüentavam outra igreja, onde geralmente passavam o dia todo.
Assim, Alaina tinha a casa só para ela. Sem pressa, tomou banho, perfumou-se, pôs o melhor vestido
de musselina e, por um pequeno espaço de tempo, saboreou o fato de ser mulher.
No começo da tarde, olhou pela janela, e para seu espanto, viu o capitão Latimer aproximando-se da
casa, a cavalo. Em pânico, Alaina correu para o quarto. Não tinha um minuto a perder! Vestido e
sapatos foram tirados às pressas e a calça e a camisa detestadas vestidas. As botas chegavam quase
até acima dos tornozelos, escondendo a meia comprida de mulher. Passou no rosto a mistura que
estava sempre pronta, de terra e fuligem. O chapéu servia para esconder o cabelo lavado. Não tinha
tempo nem disposição para sujá-lo outra vez com a mistura pegajosa.
A campainha da porta soou uma vez e, logo depois, outra. Alaina prendeu a respiração, esperando
que ele desistisse. Finalmente ouviu os passos na varanda. Esperou ansiosa, contando os segundos.
Da
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porta da varanda do seu quarto não via nem sinal do ianque ou do cavalo. Desceu a escada com
passos leves, para não fazer barulho. Correu entre os arbustos para os fundos da casa, até avistar a
porta aberta do estábulo. Sua intenção era selar o velho Tar e refugiar-se no bayou, onde não seria
perturbada. Saltou por cima do arbusto e, com um rápido olhar para trás, correu para dentro. No
impulso da corrida, chocou-se em cheio com as costas do capitão Latimer, que estava bombeando
água para o cavalo e o atirou esparramado, de braços, sobre a palha que cobria o chão de terra.
Ainda sob o efeito do susto, Alaina viu o capitão se levantar resmungando. Cuspindo pedaços de
palha, ele reconheceu seu assaltante e, estendendo a mão, segurou com força o braço dele.
— Seu caipira desajeitado! — rugiu ele. — O que pensa que está fazendo?
Os dedos dele machucavam seu braço, e de repente Alaina lembrou que estava ainda com as roupas
íntimas femininas. O espartilho acentuava a curva dos seios sob a combinação fina e delicada e
moldava a cintura. Se ele a tocasse, Al teria muito que explicar. Nunca Alaina fora segura com tanta
rudeza. Instintivamente, tomou a ofensiva.
— Tire as mãos de mim, ianque! — gritou ela. — Não tem o direito de encostar nem um dedo em
mim!
Furiosa, puxou o braço, com a impressão de ter deixado um pedaço de pele entre os dedos dele.
Passou a mão no lugar dolorido e se afastou para um canto mais escuro do estábulo.
Arrependido da reação violenta, Cole disse:
— Desculpe. — Começou a limpar a terra e a palha da farda. — Tenho certeza de que foi um
acidente e... — Fez uma pausa e olhou atentamente para ela. — Foi um acidente, não foi?
— Claro. —Alaina se acalmou um pouco.—Não o vi, no escuro.
— Afinal, do que você estava fugindo? — Então, ele riu. — Aposto que me viu e ficou com medo
que o estivesse procurando para trabalhar.
— Não tenho medo de trabalho — disse Alaina, ofendida.
— Não, acho que não — concordou Cole. Abriu a túnica até a cintura e lavou o rosto e as mãos na
bomba-d'água. — Eu trouxe meu cavalo para beber água, antes de voltar para a cidade. Na verdade,
tenho poucas horas livres e pensei em fazer uma visita à sua prima. — Lavando a nuca e depois
enxugando com um lenço, não viu a expressão
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de desprezo de Alaina. Apanhou as luvas e olhou em volta, procurando o chapéu. Encontrou-o no
chão, no lado de fora da porta. Escovando a poeira com os dedos, voltou-se para Alaina: — Como
parece que não tem ninguém em casa, vou voltar para a cidade. Pode informar Roberta da minha
visita. — Viu o menino se afastar dele, com os ombros curvados para a frente. — Qual é o
problema?
— Você machucou meu braço — disse Alaina, zangada, com os olhos entrecerrados e acusadores.
— Peço desculpas por isso... se você pedir desculpas por me derrubar. — Esperou, com um olhar
zombeteiro.
— Está bem—foi tudo que Alaina concedeu, pensando no prazer que teria em acertar o traseiro do
barriga azul com seu sapato pesado.
De repente, Cole franziu a testa. Ergueu uma sobrancelha, inclinou-se para Alaina, fungou com força
e perguntou, admirado.
— Que negócio é esse? Você está virando mulher? O coração de Alaina quase saiu pela boca.
— Está cheirando como se tivesse tomado um banho de perfume — disse ele.
— Ora! Isso!—Alaina procurou freneticamente uma explicação, depois ergueu os ombros. — Idéia
de Roberta. Ela disse que eu cheiro muito mal e jogou uma porção de água de rosas em cima de
mim.
Cole disse, rindo:
— Começo a compreender por que estava fugindo de mim. — Segurou as rédeas do cavalo, pôs o
chapéu na cabeça e abotoou a túnica —Fique tranqüilo, Al, seu segredo está seguro comigo. Mesmo
assim, não o aconselho a chegar no hospital perfumado desse modo.
Alaina olhou para ele com desprezo. Acompanhou-o então para ter certeza da sua partida. Chegaram
na frente da casa juntos com a carruagem dos Craighugh.
— Ora, capitão Latimer—exclamou Roberta, alegremente, acenando: — O que o traz aqui hoje? —
O sorriso gelou nos seus lábios quando viu Alaina. — Não me diga que veio ver nosso pequeno Al.
Galantemente, Cole ofereceu a mão para ajudá-la a descer.
— Tenho algumas horas livres e pensei que a encontraria em casa.
— Hum-hum. — Angus pigarreou e desceu, estendendo a mão para Leala. — Sinto muito, mas
nossa filha tem um compromisso esta tarde, capitão.
— Mas, papai! — gemeu Roberta, pronta para discutir, mas o
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olhar furioso do pai a fez desistir. Teve medo de criar uma cena que afastasse para sempre o capitão.
— Vamos visitar uns amigos e eles fazem questão da presença de Roberta.
Era uma mentira deslavada, mas Angus não pretendia ceder outra vez ao capricho da filha e arriscar-
se a ter um ianque por genro. Ele fazia quase todas as vontades de Roberta, mas permitir que se
casasse com um ianque era uma coisa muito diferente.
— Espero que não tenha esperado muito, capitão — disse Roberta, com um belo sorriso. Convencer
o pai não seria problema. Era só uma questão de tempo.
— Al fez perfeitamente as honras da casa — disse Cole, rindo —, e devo confessar que não agüento
mais tanta atenção.
— Al? — Roberta olhou desconfiada para a prima. — O que ele andou... bem... dizendo?
— Não quero privá-lo do prazer de contar tudo. — Cole olhou para as costas de Angus. A
hospitalidade do pai de Roberta parecia muito limitada e para evitar que sua presença fosse motivo
de uma briga de família, lamentou: — Infelizmente, preciso ir. Já me demorei mais do que devia.
Pesarosa Roberta o viu montar e sorriu tentadoramente quando o capitão levou a mão ao chapéu.
— Bom dia, srta. Craighugh. — Olhou para Al: — Eu o vejo amanhã.
Cole partiu e Roberta esperou que os pais entrassem em casa para voltar-se, furiosa, em direção à
prima. Com voz baixa, mas autoritária e cortante, perguntou:
— Como foi que você fez as honras da casa para o capitão Latimer? Sua cadelinha, se contou a ele...
— Minha nossa! Não sei o que deu em mim. — Alaina fingiu a inocência de um idiota. Sabia muito
bem o que a prima temia e era perfeitamente compreensível que retardasse a resposta naquele
momento.
— Alaina MacGaren! Eu arranco todo esse cabelo horrível da sua cabeça!
Alaina deu de ombros.
— Não foi o que eu disse, mas o que eu fiz.
As sobrancelhas de Roberta ergueram-se bruscamente, e os pensamentos passaram céleres por sua
mente.
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— Tivemos uma luta no estábulo. — Alaina passou a língua nos lábios como que saboreando o
tormento que estava infligindo à prima. — Ele até gostou do meu perfume.
— Lainie! — Roberta quase gritou. — Está brincando comigo outra vez! Eu sei que está! E se não
me disser exatamente o que aconteceu, vai se arrepender.
— Ora, fique calma — disse Alaina. — Você parece que vai explodir. Eu só o derrubei de cara no
chão.
— Acho bom que tenha sido só isso — disse Roberta, ameaçadora. — Acho muito bom que tenha
sido só isso!......
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Capítulo Nove
ESTAVA MAIS fresco agora. O calor terrível do fim do outono terminou. O cabelo de Alaina
cresceu, provocando olhares de desagrado do capitão Latimer. Com relutância, ela se submeteu à
habilidade e à tesoura da tia Leala. O corte bem-feito e curto combinou muito bem com seu rosto,
acentuando a beleza dos olhos grandes e cinzentos, os traços frágeis e as maçãs do rosto, salientes e
delicadas. Com a melhora na dieta, seu corpo começou a tomar forma, sob a roupa desajeitada do
disfarce cada vez mais difícil para ela.
Era segunda-feira e, como de hábito, os cirurgiões reuniam-se de manhã, bem cedo, para fazer a
ronda das enfermarias. Era, em parte, uma oportunidade para os soldados fazerem suas queixas e
seus pedidos. Mas o major Magruder ficava sempre ao lado do general, com papel e caneta na mão, e
um olhar de advertência para os que criticavam demais a equipe do hospital. Era quando os médicos
decidiam quais os soldados que podiam desocupar os leitos e voltar para suas unidades.
Alaina mal começara a trabalhar quando uma coluna de soldados com fardas cinzentas, acorrentados,
desceu do terceiro andar. O dr. Brooks lutou arduamente para conservar aqueles homens no
hospital, até estarem completamente restabelecidos, certo de que sua ida para a prisão, antes disso,
era o mesmo que uma sentença de morte. Uma
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dor imensa apertou o coração de Alaina. Para muitos deles, a guerra tinha terminado. A não ser que
conseguissem escapar das bem guardadas prisões dos ianques, não veriam mais nenhuma batalha, e
passariam seus dias num doloroso confinamento. Alguns dos prisioneiros sorriam ou diziam algumas
palavras quando passavam por ela. O sargento musculoso, cuja perna Alaina ameaçara quebrar,
ergueu o punho fechado.
— Anime-se, rapaz — sorriu para o rostinho sujo. — A guerra não terminou ainda. — As palavras
soaram vazias, como se o soldado estivesse tentando animar a si mesmo.
Antes que Alaina pudesse pensar numa resposta adequada, o hall de entrada estava vazio, apenas
com o eco do tilintar das correntes. Tantas esperanças tinham ido para a guerra com esses homens,
havia menos de dois breves anos! Alaina sentiu um aperto na garganta e as lágrimas ameaçaram
descer pelo seu rosto. Ergueu os olhos e viu que Cole a observava. Sua expressão não dizia nem a
metade do que estava sentindo. Naquele momento, odiava os ianques com todas as suas forças. Ver
a passagem dos prisioneiros era como ver o irmão acorrentado! Ela odiava a guerra! Odiava o
inimigo! Odiava acima de tudo e de todos, o capitão Cole Latimer!
Cole, discretamente, deu as costas a ela, e continuou com sua ronda. Deixaria que o tempo curasse a
dor daquele menino desamparado. Qualquer coisa que dissesse agora, só serviria para atiçar o ódio
que ele sentia.
Para consternação de Alaina, aquela manhã trouxe também outra leva de prisioneiros para a
enfermaria do terceiro andar. Vários chegavam em macas e eram levados para a cirurgia. Entre eles
estava um jovem soldado da cavalaria atingido na perna por uma bala explosiva minié, que abriu um
ferimento enorme do meio da coxa até o joelho. O general Mitchell deixara o hospital depois da
ronda da manhã, deixando o major Magruder no comando. O major Magruder e o major Forbes
resolveram amputar a perna na altura do quadril, uma vez que não podiam retirar os pedaços de
chumbo. Cole soube da decisão por acaso, através do comentário de um atendente, e apressou-se a
procurar seus superiores.
— Tem de ser amputada! — declarou Magruder, zangado, depois de ouvir a opinião de Cole.
— Pelo amor de Deus, major! — disse Cole, tentando se controlar.
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— Estamos falando da perna de um homem, não dos quartos de uma mula. O ferimento não está
infeccionado.
— Os estilhaços estão a grande profundidade e a infecção é uma questão de tempo. Não podemos
retirar os pedaços de chumbo. O major Forbes e eu já tentamos.
— Pois então tentem outra vez — insistiu Cole. — É o mínimo que podem fazer.
— Temos de atender outros feridos — respondeu Magruder, irritado. — Alguns dos nossos homens
estão esperando, não podemos perder tempo.
Cole ficou furioso.
— Não há nenhum que não possa esperar. Um ou outro ferimento sem gravidade, isso é tudo.
Cavalheiros, este homem certamente vai precisar da perna, depois da guerra. Vocês, seus
açougueiros, não pensam nisso?
— Açougueiros! — Magruder ficou rubro de raiva. Não gostava nem um pouco daquele novato, que
não respeitava a opinião dos mais velhos e mais experientes. O homem desconhecia por completo os
problemas mais importantes do momento. Só a responsabilidade da administração já era um encargo
pesado. A fúria contra o capitão era como uma serpente pronta para o bote, no seu peito. Não ia
admitir que interferisse nas suas decisões, nem que as questionasse.
— Capitão, se não desistir dessa idéia, eu o denuncio por insubordinação — ameaçou o major. —
Sua simpatia pelo inimigo vai ser o fim da sua carreira. Agora, ordeno que se retire. Temos muito que
fazer.
Cole deu meia-volta e saiu da sala, quase atropelando Alaina, que estava esfregando o corredor. Ela
não pôde deixar de ouvir a discussão e pela segunda vez, naquela manhã, seus olhos encontraram os
do capitão.
— Vai ficar aí parado e deixar que eles façam o que querem?
— Vá chamar o dr. Brooks — disse Cole. — Depressa!
Não precisou repetir a ordem. A despeito dos sapatos, Alaina disparou pelo corredor, subiu a escada
e num instante voltou com o velho médico esbaforido e ofegante. Cole segurou o braço do dr. rooks
e o levou para a sala onde Magruder se preparava para amputação.
— Cavalheiros, se continuarem — disse Cole, secamente —,
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terão de responder ao dr. Brooks, que os responsabilizará pelo tratamento desumano dado a um
prisioneiro.
O major Magruder jogou o bisturi na mesa e perguntou, incrédulo.
— Está me ameaçando, capitão Latimer?
— Não, major—respondeu Cole quase suavemente.—Mas não acredito que o cirurgião-chefe possa
tolerar esse tratamento de um prisioneiro de guerra.
— Está se arriscando muito, capitão Latimer — advertiu o major Forbes.
Cole calmamente cruzou as mãos nas costas.
— Talvez esteja, senhor, mas espero que, se algum dia uma decisão igual tenha de ser feita a meu
respeito, alguém leve em consideração o fato de que eu dou muito valor às minhas pernas.
Magruder rosnou.
— Se tem tanto amor por este Johnny Rebelde, então o senhor e seu bom amigo sulista podem
tentar salvar esta maldita perna, embora isso possa significar a morte do homem.
Cole Latimer não recusou o desafio. Assistido pelo dr. Brooks, começou a trabalhar. Alaina a todo
momento espiava na porta, ansiosa para saber se o jovem soldado ia sobreviver. Quando Cole
finalmente saiu da sala de operação, Alaina estava no corredor. Os olhos cinzentos e muito claros
fizeram a pergunta, e depois de um longo momento, Cole respondeu:
— Ele vai viver.
— E a perna? — perguntou Alaina, temendo o pior.
— Com a perna também. — Cole sorriu.
Cole viu um lampejo de dentes muito brancos no largo sorriso feliz e teve a certeza de que o menino
dera um passo para ele, depois parou. Com uma leve e embaraçada inclinação da cabeça, Al voltou
rapidamente ao seu trabalho, deixando Cole intrigado. Evidentemente, Al se recusava a demonstrar
qualquer emoção positiva, como gratidão, e parecia só se sentir à vontade envolto numa perversa
beligerância.
A condição de Bobby Johnson melhorou lentamente. As doses de morfina, aos poucos, iam ficando
menores e mais espaçadas. Mas, sempre que Alaina parava ao lado da cama e dizia alguma coisa, o
soldado virava a cabeça para o outro lado, sem responder.
Numa manhã chuvosa, Alaina encontrou o soldado com papel e caneta, tentando escrever uma carta.
Ficou atrás da cama dele, para
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ver o que já tinha conseguido. O papel estava cheio de borrões de tinta e as linhas escritas subiam e
desciam, encontrando-se e se misturando, numa confusão.
— Ninguém vai poder ler isso — disse ela.
Ele parou de escrever bruscamente, depois, num gesto lento, amarrotou o papel. Com um soluço
seco, Bobby atirou o papel na parede.
— Ei, ianque! Está fazendo sujeira que eu tenho de limpar!
A resposta foi rápida e amarga.
— Seus Johnnies Rebeldes fizeram uma sujeira em mim que ninguém pode limpar.
Alaina bufou com desdém.
— Os cemitérios estão cheios de sujeiras maiores do que a sua e não são só barrigas azuis.
O soldado virou a cabeça de um lado para o outro no travesseiro.
— Eu preferia estar morto. Agora vou para casa para ser alimentado por minha mulher pelo resto da
vida. Não posso pedir isso a Jeannie! Qual a mulher que quer um cego por marido?
— Tenho a impressão de que ela vai ficar muito feliz quando você voltar para casa, ianque.
— Meu nome não é ianque! — rugiu ele.
— Eu sei. É Bobby Johnson. Nós nos conhecemos na ala da cirurgia.
Depois de um longo silêncio ele perguntou:
— Você é Al?
— Isso mesmo.
Bobby Johnson suspirou.
— Acho que tive muito tempo para sentir pena de mim mesmo.
Alaina olhou para o jovem, querendo consolá-lo, mas com medo de se envolver. Optou pelo
sentimento melhor.
— Não sei ler muito bem, mas às vezes não tenho nada melhor para fazer. Quer que eu leia para
você, às vezes?
— Seria muita bondade sua.
Nos dias que se seguiram, Alaina procurava terminar logo seu trabalho, sentava-se ao lado do
soldado ianque e lia para ele. Bobby Johnson aos poucos começou a responder ao humor leve de
Alaina e até ditou uma carta para sua mãe e outra para a mulher. Só quando leu a última página do
pequeno romance e fechou o livro, Alaina ergueu os olhos e viu o olhar apreensivo de Bobby.
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— Qual o problema? Não gostou do livro? — perguntou ela, desapontada.
— Eu gostei — respondeu Bobby, lentamente. — Mas notei que, à medida que você lia, sua voz
ficou mais suave. Aposto que você já estudou bastante, a despeito do que diz.
Com um calafrio, Alaina conteve a respiração, compreendendo o erro terrível.
— Sei também que você não é Al. — Ele estendeu a mão e segurou o pulso dela. — Você é
pequena... uma mulher pequena. Sim! Sim! Você é uma moça! Onde arranjou o nome de Al?
— Alaina — murmurou ela.
— Jovem? — Passou os dedos pela mão pequenina. Embora áspera não era a mão de uma velha.
— Dezessete — Alaina mordeu o lábio e perguntou, timidamente: — Vai contar para alguém?
— Quero que me explique por que quer que pensem que é um garoto e então eu resolvo.
Confiando com relutância no julgamento do jovem, Alainacontou seus motivos, sem esconder nada.
— Não sou culpada de espionagem—murmurou. — Mas, como você disse, é o meu juiz agora.
Minha liberdade depende do que você decidir.
Depois de um longo, ameaçador e ansioso momento, ele disse:
— Sempre gostei da história de Oliver Twist. Quer ler para mim? Lágrimas de alívio desceram pelo
rosto dela e ela começou a arrumar a coberta da cama.
— Meu tio tem o livro em casa. Eu trago amanhã. Deu alguns passos, e parou.
— Não vai contar ao capitão Latimer, vai? H
— Não se não for preciso — disse ele.
A chuva continuou a cair sobre a cidade, e no sábado, quando parecia haver alguma esperança do
tempo melhorar, as névoas espessas do começo do dia transformaram-se numa chuva pesada. O céu
de chumbo pairava pouco acima dos telhados e entre as pedras das ruas corriam pequenos riachos de
lama. Al teria folga naquela tarde. Como resultado do seu trabalho árduo da semana, o hospital
cintilava de limpeza. Uma inspeção cuidadosa nas enfermarias a convenceu de que nada mais tinha a
fazer. Porém, quando deixou a última delas, viu o
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chão de mármore do vestíbulo do hospital sujo e encardido. Era um desafio. Ia precisar de todo seu
talento para trazer de volta a beleza original do padrão delicado dos veios do mármore.
Algumas horas depois, Alaina olhou com satisfação para o piso que acabava de esfregar. Basta agora
um pano molhado para ficar perfeito, pensou, e então posso ir para casa.
O trabalho estava quase terminado, e ela torcia o pano pela última vez quando ouviu vozes no lado
de fora. A porta se abriu e alguns oficiais acompanhados por dois civis entraram no hospital.
Atravessaram o vestíbulo, deixando atrás deles as marcas dos pés enlameados e ignorando o olhar
furioso do pequeno faxineiro.
Irritada, Alaina mergulhou o esfregão outra vez no balde e começou a apagar as marcas de lama no
mármore. Nem bem tinha começado quando a porta se abriu outra vez dando passagem a mais um
par de botas enlameadas. O esfregão parou de repente e Alaina disse.
— Ei, ianque. Não pode limpar seus...
— Saia do meu caminho, seu idiota!
Empurrada brutalmente, Alaina tropeçou no esfregão e caiu. Jacques DuBonné continuou seu
caminho, arrogante, sem se importar com a lama escura que suas botas deixavam no mármore limpo.
Quando já estava a alguns passos de Al, parou e perguntou:
— Onde está o doutor...?
A frase foi interrompida bruscamente por um chlap quando o esfregão molhado chocou-se com seu
rosto e as pontas soltas de pano enrolaram-se na sua cabeça. DuBonné ergueu o braço, mas antes
que pudesse se livrar do esfregão, Alaina despejou a água suja do balde sobre a cabeça dele. Furioso,
cuspindo e bufando, ele enfiou a mão dentro do casaco para tirar sua faca. A lâmina brilhou
ameaçadora na luz fraca da tarde chuvosa.
Alaina recuou, ainda com o balde na mão e começou a rir, caçoando do cajun encharcado. Então,
dois braços negros e fortes a agarraram por trás, erguendo-a do chão e imobilizando-a. Ela lutou para
se livrar, com uma série de palavrões que teria feito corar um arrieiro. Esperneando freneticamente
nos braços do negro, ela viu o sorriso maldoso congelar-se no rosto de Jacques. O homenzinho
avançou, girando a faca ameaçadoramante na mão direita.
— O que é isso? O que está acontecendo aqui? — rugiu Cole, da escada, correndo para o vestíbulo.
Estava de saída, com a farda de gala completa, com chapéu e tudo.
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Num gesto furtivo, Jacques escondeu a faca, mas o negro não fez nenhuma menção de soltar a
prisioneira. Com os braços dormentes, Alaina deixou cair o balde, que rolou barulhentamente pelo
chão de mármore.
Cole parou a alguns passos dos três.
— Ponha o garoto no chão — ordenou ele, com um gesto para o negro. — Se for preciso eu o
castigo. — O homem gigantesco apenas olhou para ele e o capitão repetiu, com voz autoritária: —
Ponha o garoto no chão, eu disse!
O negro não se moveu. Cole abriu o coldre e pôs a mão na coronha da pistola. Jacques falou com o
negro numa língua que Alaina não conhecia. Com um sorriso, o gigante abriu os braços, ela
escorregou para o chão, com um gemido de dor e ficou sentada onde tinha caído, respirando com
dificuldade.
Jacques entrecerrou os olhos.
— Eu conheço você do navio! — rosnou ele. — Você está me devendo muita coisa. Da próxima vez
vou cobrar em dobro!
Alaina levantou-se com dificuldade, e Jacques tirou o casaco encharcado, voltando-se furioso para o
capitão:
— Está vendo? — Apontou para o sangue na manga. — Estou ferido. Vim procurar um médico e
este pequeno... filho de muitos pais...
Com o rosto contraído de raiva, Alaina avançou para ele com o punho fechado, mas Cole agarrou a
calça dela, e um bom pedaço do traseiro, provocando um grito de dor. Alaina começou a lutar outra
vez, mas Cole a puxou para trás, com mão firme.
Sem tirar os olhos do garoto furioso, Jacques continuou:
— Ele me atacou com o esfregão e o balde! — Passou a mão no colete de brocado agora sujo e
molhado: — Veja! Minha roupa! Arruinada!
Livrando o traseiro da mão de Cole, Alaina olhou com desprezo para os dois homens.
— Ele precisava de um banho.
— Esse animalzinho vai me pagar o prejuízo! — rugiu Jacques, dando um passo para ela.
Cole adiantou-se e segurou o braço do homem.
— Duvido que o garoto possa pagar o seu lenço, quanto mais suas roupas. Pode ter certeza de que
será castigado. — Voltou-se para Alaina: — Você está aqui para limpar, não para sujar.
100
— Era justamente o que eu estava fazendo quando esse asno chegou da cocheira. Essa mula não
sabe nem limpar os pés.
Cole olhou para o chão e compreendeu a revolta de Al, mas era seu dever cuidar do ferido. Sem dar
oportunidade ao homenzinho para continuar sua reclamação, disse:
— Deixe-me ver isso. — Levantou a manga ensangüentada da camisa, examinou o ferimento e
depois olhou intrigado para o homem. — Parece um corte de sabre. Onde arranjou isso?
— Bobagem! — Jacques sacudiu a mão no ar. — Eu tomei uma casa no campo para pagamento de
uma dívida. O xerife é um homem da cidade. Não quis entregar a intimação, por isso eu resolvi
entregar. Umm, madame Hawthorne! É uma louca! Não quis aceitar os papéis. Escondeu uma
espada debaixo da saia e quando eu tentei entregar a intimação — estendeu o braço ferido, indignado
—, ela me atacou. Zing! — Riu com desdém. — Agora o xerife tem de prender a mulher. Dei uma
lição na velha.
— Seu miserável... — gritou Alaina, mas se calou vendo o olhar de Cole e ficou carrancuda, atrás
dele.
— Eu estava de saída — disse Cole, bruscamente. — Mas acho que posso atendê-lo. — Voltou-se
para Al: — Falo com você depois. Agora, limpe esta sujeira.
Alaina se eriçou como um porco-espinho enraivecido. Apanhou o esfregão e com os olhos
entrecerrados seguiu os dois homens que se afastavam. O negro foi atrás dele, depois de brindá-la
com um largo sorriso.
— Vamos limpar o ferimento e desinfetar—disse Cole, caminhando ao lado de DuBonné. — Não é
profundo. Basta um curativo simples.
Alaina terminou o trabalho e guardou os apetrechos de limpeza, apressadamente. Não pretendia
esperar nenhum castigo. Enfiou o chapéu na cabeça e tratou de sair do hospital. Depois de tantas
ameaças não cumpridas, dessa vez o capitão Latimer podia cumprir a promessa.
Indignada ainda, quando chegou em casa bateu a porta da cozinha com mais força do que devia,
ignorando os vidros das janelas, que tremeram nos caixilhos. Não estava disposta a agüentar a
conversa fútil de Roberta, mas desde a última discussão a prima passara a esperar por ela na porta
dos fundos. Com Angus na loja e Leala quase sempre com ele, Roberta não tinha nada para fazer e
ninguém com quem conversar. Levantava tarde, passava horas cuidando da própria aparência, e
muito antes do jantar começava a se vestir cuidadosamente.
101
Quando Alaina chegava, cada fio de cabelo estava frisado, as unhas feitas e o belo vestido impecável.
Foi exatamente assim nessa tarde.
— Francamente, Al. — Roberta tinha prazer em usar o nome masculino. — Nunca sei se é você ou
o entregador, entrando pela porta dos fundos. Você desempenha muito bem seu papel!
— É! E vou passar a usar uma arma, também! — disse Alaina. A gíria sulina enfatizava sua fúria. —
Antes desse negócio acabar, vou liquidar alguns bichos fedorentos.
Roberta ficou muda de espanto. Dulcie, que estava ao lado do fogo, mexendo o cozido, perguntou:
— O que foi que você arranjou agora, menina? Já não tem encrenca bastante sem matar nenhum
animal ianque?
Alaina tirou os sapatos pesados, jogando-os para longe.
— Eu fui maltratada, machucada e ameaçada. Passei a manhã de joelhos, esfregando o chão, só para
ver um rato imundo sujar tudo outra vez. Tive o traseiro agarrado e manipulado por aquele ianque de
pernas compridas...
Roberta abriu a boca, escandalizada.
— Ele vai ser o primeiro a ser furado! — disse Alaina, brandindo o dedo na frente de Roberta. —
Você vai ver. Depois vou apontar a arma para aquele verme, Jacques DuBonné, e fazer ele se arrastar
de barriga até a casa da sra. Hawthorne, para ela acabar o que começou!
Roberta estava chocada. Nunca tinha visto a prima tão furiosa.
— Alaina! O que deu em você?
— Raiva muito justa, foi isso que deu em mim! Muito justa! Sabe o que significa, Roberta? —
Avançou para a prima com o rosto crispado.
Gaguejando palavras incoerentes e balançando a cabeça, Roberta recuou até uma cadeira e se sentou,
olhando boquiaberta para os olhos cinzentos flamejantes.
— Significa que tenho uma causa justa! — Inclinou-se para a prima trêmula, depois endireitou o
corpo e, quase calma, começou a andar arrogantemente pela cozinha. Ergueu um braço
dramaticamente. — Causa justa! Sim! Posso alegar isso no meu julgamento!
— Que julgamento é esse? — perguntou Dulcie, com as mãos na cintura e o queixo erguido num
gesto provocante. — O que você andou fazendo, miz Alaina? Vai me dizer agora mesmo!
— Nada, ainda — respondeu Alaina, com ar superior. Apanhou um nabo descascado, deu uma
mordida e depois de engolir continuou. — Mas vou fazer. Quando eu acabar, Jacques DuBonné —
cuspiu o
102
nome, com ódio — vai desejar nunca ter posto os olhos na sra. Hawthorne.
— Está falando naquela velha senhora que vai à loja do papai? — perguntou Roberta, preocupada.
Alaina ficou alerta.
— Você a conhece?
— Bom, ela não aparece muitas vezes quando estou na loja — esquivou-se Roberta, em dúvida
sobre o quanto devia contar para Alaina. Afinal, a prima podia prejudicar o que parecia um
relacionamento muito proveitoso com Cole.
— Mas você sabe onde ela mora— insistiu Alaina.
— Não exatamente. — Roberta deu de ombros. — Em algum lugar ao norte da estrada do rio, eu
acho...
Alaina foi até onde estavam os sapatos e os calçou.
— Vou descobrir, nem que leve a noite inteira!
— Escute, Lainie, não faça isso! Não faça nenhuma bobagem — implorou a prima, assustada.
Alaina enfiou o chapéu na cabeça e sorriu, mostrando os dentes brancos e brilhantes.
— Isso depende do que você chama de bobagem, Robbie. Acontece que eu não acho bobagem dar
uns tiros em alguns vermes nojentos. — Ergueu os ombros, calmamente. — Tudo depende deles.
Antes de sair, Alaina foi até seu quarto e apanhou a pistola do exército que pertencera ao seu pai.
Ninguém na casa sabia da existência da arma que ela levava bem escondida na valise. Era um Colt44
cano longo, quase pesado demais para suas mãos, mas que ela sabia como usar. Pôs a arma na sacola
de couro e passou a alça pela cabeça e por um ombro. Apesar das suas ameaças, não pretendia fazer
uso da pistola, mas — só por precaução — ajuntou o saco de pólvora, a espoleta e a caixa de balas.
O peso da arma, junto ao corpo, dava uma sensação de segurança.
Mais de uma hora depois de Alaina sair montada no velho Tar, Cole apareceu na porta da casa dos
Craighugh.
— Ora, capitão Latimer—sorriu Roberta, já recuperada do efeito da fúria de Alaina. — Pensei que
tinha esquecido de mim.
— Infelizmente, esta não é uma visita social, Roberta — disse ele, com a maior delicadeza possível.
— Gostaria de falar com Al, se ele estiver em casa.
— Al? — Roberta ficou arrasada. Tinha certeza de que Alaina,
103
disfarçada de garoto, não podia competir com seus esforços para a conquista de Cole, mas não
imaginou que a animosidade entre os dois podia desviar a atenção dele da sua pessoa. Disfarçou a
irritação com um muxoxo e, batendo as pestanas provocadoramente, disse: — Ora, capitão, não vai
me dizer que veio de tão longe só para ver aquele garoto. E eu pensando que tinha vindo para me
ver. Estou muito desapontada.
— Sinto muito — desculpou-se Cole. Com um sorriso hesitante, Roberta disse:
— Ele estava em casa, mas saiu há algum tempo.
— Ele disse aonde ia? Preciso resolver isto antes de ele chegar no hospital na segunda-feira. Não
posso permitir que coisas como essa voltem a acontecer.
Roberta pensou por um momento, tentando resolver se seria melhor contar tudo o que sabia, para o
caso de Alaina fazer o que tinha prometido, ou fingir ignorância. O problema com a mentira era que
Cole podia descobrir.
— Posso dizer, capitão, que Al estava furioso. — Hesitou outra vez, imaginando a reação de Alaina,
mas depois continuou corajosamente. —Eu e Dulcie quase morremos de medo. Al estava
ameaçando dar um tiro num verme chamado Jacques e eu juro, ele saiu à procura de encrenca.
Apesar de tudo, Cole sentia-se responsável por Al.
— Para que lado ele foi?
— Bem para a estrada do rio. — Ergueu o braço, apontando. — Desça mais ou menos um
quilômetro por ali, depois siga para o norte uns três quilômetros. Não pode errar. Uma casa grande
de madeira com telhado em ponta e só uma varanda na frente. O poste para amarrar cavalos é de
ferro e tem a forma de um negrinho com a argola na mão.
Cole ia se afastar, quando Roberta pôs a mão no seu braço.
— Vai ter cuidado, não vai, capitão? Al atira muito bem e mencionou a intenção de dar um tiro em
você.
— Garoto esquentado! — resmungou Cole.
Jacques dissera que pretendia voltar à casa da sra. Hawthorne com o xerife. Era bem do estilo de Al
se meter em mais encrenca do que podia resolver.
104
Capítulo Dez
A CHUVA parara há algum tempo, mas as ruas e estradas de terra eram ainda verdadeiras armadilhas
de lama. O passo arrastado do velho Tar atirava torrões de terra para os lados, lento demais para a
impaciência crescente de Alaina. Não estava disposta a agüentar a determinação teimosa do animal
de voltar para o estábulo, porém, por mais que o incitasse, conseguia apenas uns arrancos breves
para a frente, e Alaina castigava os flancos magros do animal com a vara de salgueiro. Quando
chegou ao fim da trilha enlameada viu realizados seus piores temores. Arbustos altos impediam a
vista completa da casa da sra. Hawthorne, mas sob os galhos dos imensos carvalhos podia ver
claramente o pátio na frente. Duas carruagens vazias esperavam na entrada, uma delas, um elegante
landau, a outra, uma carruagem simples de quatro rodas. Alaina imaginou que Jacques chegara antes
dela e possivelmente, como ameaçara, na companhia do xerife.
Alaina fez Tar sair da estrada e desmontou do dorso magro do animal. Deixou os sapatos ao lado do
arbusto onde amarrou Tar e, sentindo o frio da relva molhada nos pés descalços, aproximou-se
furtivamente da alta cerca viva, até poder ver a frente da casa. Logo avistou Jacques DuBonné e, com
satisfação, notou que ele demorara o tempo suficiente para trocar de roupa. O negro enorme estava
preguiçosamente encostado num dos lados da carruagem elegante, e
105
outro homem, quase tão grande quanto ele, estava ao lado de Jacques, perto dos degraus de entrada.
De frente para eles, numa das extremidades da varanda longa, Alaina viu uma mulher alta, de cabelos
brancos, que devia ter uns sessenta anos. Seu porte era altivo e decidido e as mãos, cruzadas
imperiosamente sobre o punho de um sabre brilhante, indicavam o desafio mudo e claro. Ela usaria a
arma se fosse preciso.
Alaina correu ao lado dos arbustos até encontrar uma abertura, nos fundos da casa. Deu a volta e
parou num lugar de onde podia ver sem ser vista. Alguns arbustos cresciam ao lado da casa, e ela se
abaixou atrás deles, para não perder nem uma palavra da conversa.
Jacques agitava os braços furiosamente, exigindo que o xerife fizesse alguma coisa.
— Estou dizendo! Eu tenho o documento que prova que comprei do banco esta propriedade! —
disse ele, tirando um pacote do bolso e batendo nele com a mão aberta. — Está tudo aqui, xerife.
Agora, insisto que prenda esta mulher!
A calma do homem da lei pareceu enfurecer mais ainda o homen-zinho. O xerife olhou para ele,
mastigando tabaco, tranqüilamente, e o francês esbravejou:
— Faça alguma coisa!
— Bem—disse o xerife.—Estou tentando ouvir o que esta velha senhora tem a dizer, mas o senhor
não me está dando muita oportunidade, sr. Bonny.
— DuBonné! — corrigiu Jacques, furioso. — E o que acha que ela tem a dizer, xerife, que possa
anular isto? — Sacudiu o pacote sob o nariz do xerife. — Exijo que faça alguma coisa, do contrário,
terei de apelar para uma autoridade mais alta.
O xerife resmungou e, tirando o chapéu, aproximou-se timidamente da extremidade da varanda onde
estava a mulher.
— Madame, desculpe, mas tenho de cumprir meu dever, como o homem disse.
— É claro, xerife — respondeu a mulher com voz firme e áspera, mas estranhamente agradável. —
Mas eu gostaria de saber se o sr. DuBonné o informou sobre minha destreza no uso da espada do
meu marido. Por enquanto, não tive oportunidade de usá-la num representante da lei.
— Madame—balançou a cabeça com tristeza —, eu preferia que a senhora viesse comigo
pacificamente.
106
A velha senhora ergueu o queixo com orgulho.
— Declino respeitosamente o convite. Conheci muito bem a sua mãe, xerife Bascombe. Era uma
ótima mulher.—A sra. Hawthorne fez uma pausa para maior efeito, depois atacou com sarcasmo: —
Se ela estivesse viva, tenho certeza de que ficaria extremamente magoada se soubesse que o senhor
me tirou da minha casa sem nenhum motivo válido.
— Bem... ah, senhora... eu... eu... — gaguejou o xerife e não terminou a frase, com o rosto muito
vermelho.
— Deve fazer cumprir a lei! — exclamou Jacques, dando alguns passos para a frente. — Paguei um
bom dinheiro ao banco por esta propriedade! Não vou admitir que a tirem de mim! Prenda essa
bruxa velha!
— A dívida de que está falando, meu jovem, foi paga há mais de um mês — informou a sra.
Hawthorne. — Eu tenho o recibo...
— Recibo, coisa nenhuma! — disse Jacques. — A senhora declarou a existência desse documento,
mas eu ainda não vi a prova.
A mulher continuou, calmamente, ignorando a interrupção.
— Uma carta do banco confirmando o recebimento, devidamente assinada por testemunhas.
— Não existe! — exclamou Jacques, dando mais alguns passos para a frente.
A sra. Hawthorne sorriu tristemente.
— Seja como for, senhor, vai ficar um pouco mais arranhado se puser o pé nesse degrau.
Balançando a cabeça, irritado, Jacques resmungou alguma coisa. Não significavam nada para a sra.
Hawthorne nem para o xerife, mas ouvindo-as, Alaina lembrou que, um pouco antes do negro deixá-
la ir, o francês tinha murmurado a mesma coisa. E, como antes, o negro moveu-se, obedecendo o
comando — deslizando lentamente para o outro lado da carruagem, onde podia pegar a mulher de
surpresa. Alaina imediatamente tirou do bolso a pistola do seu pai e com dedos trêmulos verificou se
estava carregada.
O negro movia-se na direção da varanda, dando a volta na carruagem do xerife, enquanto Jacques
continuava a discutir com a mulher. Alaina saiu de trás dos arbustos, firmou os pés bem separados
no chão e apontou para o peito largo do negro, segurando a arma com as mãos e cuidadosamente
puxando o cão da pistola para trás. O negro ficou imóvel quando ouviu o estalido duplo e, movendo
apenas os olhos,
107
descobriu de onde vinha a ameaça. Franziu a testa, onde brilhavam pequenas gotas de suor e olhou
boquiaberto para o menino frágil e para a enorme pistola.
Alaina moveu a pistola e o negro obedeceu cautelosamente, dando um passo para o lado, na direção
dos outros, enquanto ela se adiantava para a frente. Jacques, a princípio, notando apenas que o
empregado estava voltando, sibilou suas ordens outra vez, naquela língua que ninguém entendia.
Então o garoto apareceu e ele parou de falar, abrindo a boca, espantado.
— Você! — disse, finalmente, recuperando a voz.
O xerife girou o corpo rapidamente, e Al o cumprimentou com uma inclinação calma da cabeça.
— Boa tarde para todos.
— O que significa isto? — rugiu o xerife. — Largue essa arma, menino, antes que machuque alguém.
— Sou bem capaz disso...—Al franziu os lábios, pensativamente —..se vocês não se afastarem da
varanda para a sra. Hawthorne poder respirar.
Jacques obedeceu rapidamente, pois já conhecia o gênio do menino. Mas o xerife ignorou a
criaturinha insignificante e ergueu o pé para o primeiro degrau da escada.
— Ora, vamos, sra. Hawthorne...
O estampido ensurdeceu-os por um momento e uma grande lasca de madeira saltou de baixo do pé
do xerife, fazendo um buraco no degrau. Ele cambaleou para trás, o cão da pistola estalou outra vez
e o negro interrompeu o passo que ia dar quando a arma tornou a apontar para seu peito. Ele
abaixou o pé e relaxou o corpo. O xerife olhou boquiaberto para o menino, certo de que ele estava
louco. Então fechou a cara e, sacudindo furiosamente o dedo no ar, disse:
— Seu idiotazinho maluco! Vou quebrar essa pistola no seu traseiro antes de levar você para a
cadeia! Sou um homem da lei e...!
Foi interrompido por um grito e o tropel de cavalo. Cavalo e cavaleiro avançaram para eles, e com a
pose teatral de um oficial da cavalaria, o capitão Latimer apeou da sela, antes do cavalo parar.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou ele, passando as rédeas pela argola no poste. Tirando
as luvas, aproximou-se, olhando a cena na porta da casa.
— Bem, não acredito que seja da sua conta, moço. — O xerife deu uma cusparada de saliva preta na
relva e olhou irritado para o ianque.
108
Cole enfiou as luvas no cinto e casualmente levou a mão ao coldre da arma.
— Permita-me lembrar, senhor, que toda a área ocupada está sob lei marcial. Por definição, isso
torna sem efeito toda autoridade civil. O senhor pode ser responsabilizado pelo que acontece na sua
área sem a aprovação do governador militar.
O xerife praguejou em voz baixa e apontou para o garoto.
— Eu vim aqui cumprir o meu dever de oficial da lei e aquele moleque atirou em mim.
Alaina deu de ombros inocentemente quando o capitão olhou para ela com a testa franzida.
— Eu podia atravessar ele com uma bala, se quisesse — apontou para o negro com o cano da arma
—, quando ele estava tentando pegar a pobre senhora por trás.
— Al, abaixe essa arma — ordenou Cole.
Calmamente, Al pôs a pistola ainda com o cão armado no chão da varanda e encostou o cotovelo ao
lado dela, com a mão muito perto da coronha. Por um momento, pelo menos, deixaria que ele fosse
senhor da situação.
— Pergunto outra vez! — disse Cole, olhando para os outros. — O que está acontecendo aqui?
Jacques começou a falar rapidamente, em tom ofendido:
— Aquela velha, ela não paga suas dívidas. O banco pôs a casa à venda. Eu comprei! Aqui estão os
papéis! Tudo legal!
— Importa-se se eu der uma lida nesses papéis?—perguntou Cole.
— O senhor vai ver — disse Jacques, satisfeito, entregando os documentos para o capitão.
Cole examinou tudo por um momento, depois, olhou para a mulher.
— O que a senhora tem a dizer sobre isto?
— Eu pago minhas dívidas — informou a sra. Hawthorne altivamente. — Todas. Tenho o recibo.
— Recibo! — zombou Jacques. — Ela diz que tem, mas não vi nada ainda!
— Senhor, eu não minto — disse ela, desafiadoramente, erguendo a sobrancelha. — E também não
engano as pessoas.
— Posso ver o seu recibo? — pediu Cole.
A sra. Hawthorne olhou friamente para ele.
; — E por que vou confiar num ianque, senhor
?109
Uma risada divertida de Al fez com que o capitão olhasse zangado para ele.
— Ora, aí está uma mulher com uma boa cabeça em cima do pescoço — disse o menino.
A sra. Hawthorne aceitou o cumprimento com uma graciosa inclinação da cabeça.
— Muito obrigada, criança, eu também acho que tenho.
Al fez um gesto casual.
— Mas eu acho que, mesmo sendo ianque, este é digno de confiança. — Acariciou ternamente a
coronha da pistola — Pelo menos, tanto quanto outro qualquer.
— Agradeço a sua bondade, criança, mas estou um pouco confusa. Talvez eu deva confiar em você,
vendo que impediu esse negro idiota de me atacar, mas por que devo acreditar na sua palavra?
— Bem, eu não sou amiga daquele homem.—Al indicou Jacques com um movimento da cabeça. —
Então, tenho de ser sua amiga.
— Por algum motivo, isso me parece razoável — disse a sra. Hawthorne, com riso nos olhos.
Ergueu a espada e apontou com ela para Cole. — Você conhece bem este aqui?
— Isso mesmo, eu conheço — informou Al, com relutância. — É o serra-ossos no Hospital da
União.
Obrigada a fazer escolha, a sra. Hawthorne hesitou por um momento, depois resolveu. Tirou do
decote do vestido um papel que entregou para Cole, dizendo:
— Considerando a minha idade, pensei que era o lugar mais seguro para esconder o papel.
— Sim, senhora — disse Cole, contendo o riso e, desdobrando o papel, leu atentamente.—Isto
parece em ordem, xerife—disse ele, lendo outra vez. Voltou-se para o francês:—Talvez o banco
tenha se enganado.
— Não! — gritou Jacques, sacudindo seus documentos. — Eu comprei esta propriedade!
— Se está dizendo a verdade, o banco deve devolver seu dinheiro, senhor, pois o recibo da sra.
Hawthorne me parece em ordem. Diz aqui que esta propriedade está isenta de qualquer dívida e
promete uma escritura definitiva. A data é bem anterior à dos seus documentos. — Xerife! — Cole
voltou-se para o homem da lei, deixando Jacques com sua fúria. — Aparentemente temos um bom
motivo para crer que houve um engano.
— Tem toda razão, ianque! — exclamou Jacques, raivoso. —
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Você e este bastardo imundo se meteram numa encrenca. Vocês interferiram com Jacques DuBonné.
— Cerrou os punhos, furioso. — E Jacques promete, seu casaco azul, isso vai ser a sua morte! O
capitão olhou friamente para o cajun.
— Minha profissão é proteger a vida, senhor. — Sua voz estava baixa e macia como seda, e até
Alaina conteve a respiração. — Mas posso fazer exceção para casos especiais.
Jacques lutou contra o desejo de vingança e a certeza de que estava agindo como um tolo.
Finalmente controlou-se e foi para a carruagem.
— Vou estar no banco logo que abrir, na segunda-feira de manhã, para esclarecer isto — prometeu
ele, fazendo uma grande curvatura. Falou com o empregado na língua estranha e o negro subiu para
a boléia. — Então nós vamos ter uma conversinha, Monsieur le Capi-taine. — Sentou-se na
carruagem e, com um aceno, mandou o negro levá-lo da cena da sua derrota.
Cole voltou-se para o xerife Bascombe:
— Se a sra. Hawthorne permitir, apresentarei este documento ao banco na semana que vem, para
exigir uma explicação e um pedido de desculpas.
— Faça ele assinar pelo papel! — A voz anasalada de Al desfez a tensão do ambiente. — Faça o
capitão assinar um como-se-chama, como isso que a senhora recebeu do banco.
Cole virou-se rapidamente para o menino, com um olhar gelado. Com voz quase delicada, avisou:
— Não me provoque.
Com expressão petulante, Al encostou-se na coluna da varanda.
— Acho melhor dar o papel para ele, sra. Hawthorne. Aquele Jacques pode muito bem voltar depois
que o capitão for embora e tirar da senhora. — Al deu de ombros. — É a coisa mais segura que tem
a fazer.
— Muito obrigado pela confiança — zombou Cole.
— Não é confiança em você — respondeu Al, atrevidamente —, é só uma questão de escolha.
— Aceito a ressalva.
Cole olhou para o xerife. Al nunca facilitava as coisas, especialmente quando se tratava de tirá-lo de
alguma encrenca.
— Tenho certeza de que, como um cavalheiro mantenedor da lei, xerife, pode compreender que o
menino só estava tentando proteger os direitos da senhora. Não pretendia fazer mal a ninguém.
111
— Bem, eu não sei... — O xerife coçou a cabeça.
— Ótimo! — Cole resolveu por ele. — O menino trabalha no hospital sob minha direção, se
precisar dele para algum esclarecimento.
O xerife deu de ombros, com relutância.
— Acho que ele não me feriu. — Apontou para a madeira lascada e depois franziu a testa para Al. —
É melhor ter cuidado com essa arma, menino. Há uns... oito ou dez anos que não enforcamos
ninguém da sua idade.—Virou o rosto para Al não ver o largo sorriso e piscou para Cole. Depois,
inclinou a cabeça para a sra. Hawthorne. — Voltarei para saber como ficaram as coisas e não vai ser
uma visita como a de hoje, com o sr. DuBonné nos meus calcanhares. Bom dia, senhora, doutor!
O xerife subiu na charrete e estalou a língua para fazer andar os cavalos.
— Agora quero seu recibo assinado, capitão — declarou a sra. Hawthorne. — E vou esperar
ansiosamente para saber o que o senhor descobriu.
— Sim, senhora. Vou tratar disso o mais depressa possível. — Depois de assinar o recibo, ele olhou
para Al. —Posso levar você para casa, antes que se meta em mais encrenca?
— O que você pensa que é, meu anjo da guarda ou coisa assim? Posso tomar conta de mim. E não
preciso da sua ajuda para chegar em casa. Eu tenho Tar.
— Talvez eu deva voltar à casa do seu tio para avisar a sua prima que você está bem. Vai levar algum
tempo para conseguir pôr esse animal na direção certa.
Al entrecerrou os olhos.
— Sim, faça isso, ianque.
Cole calçou as luvas.
:
— Fico satisfeito por ter sua aprovação — disse rindo, enquanto montava.
— Trate de não fazer nada para ser apanhado pela família — disse Al.
Cole fez o cavalo dar meia-volta e riu zombeteiramente.
— Não precisa se preocupar, Al, sei tomar conta de mim mesmo.
— Ah, ah! — disse Alaina, com pouco caso, e franziu a testa quando ele desapareceu de vista.
— Entre, criança — a voz áspera da mulher interrompeu seus pensamentos —, e tome uma xícara
de chá antes de ir. Tenho poucas visitas ultimamente, muito menos de pessoas amigas.
112
Pela primeira vez desde sua chegada, Alaina se deteve para observar a mulher. O rosto era enrugado
e muito velho, mas ainda rosado e havia uma centelha nos olhos castanhos, que a idade não podia
apagar.
— Como é que devo chamá-lo? — perguntou a mulher.
— Al.
— Al? Nada mais? — Ergueu uma sobrancelha elegante.
— O resto não tem nenhuma importância.
— Isso é uma questão de opinião, criança.
— Bem, por enquanto, pode me chamar só de Al.
— Está bem, Al. — Acentuou o nome estranhamente, examinando o menino com atenção. —
Agora, diga-me, com que fim você entrou nesta trilha estreita? Como a estrada termina na margem
do rio, só posso supor que veio me visitar.
— Sim, senhora. Aquele gato-do-mato, Jacques, espalhou lama no meu chão limpo do hospital e
começou a gritar, dizendo que ia trazer o xerife aqui para prender a senhora. Achei que ele me devia
uma. Foi uma beleza aquele corte que a senhora fez no ombro dele, senhora.
— Obrigada, meu querido — respondeu a sra. Hawthorne, graciosamente, olhando para a espada.
— Detestei sujar a espada naquele verme, mas tenho certeza de que Charles compreenderia.
— Charles?
— Meu marido. Sou viúva. — Estendeu a mão, mostrando o jardim florido e muito bem-cuidado,
no outro lado da estrada estreita que levava à casa. — Está enterrado lá, com minha filha, Sarah.
Morreram de febre amarela, antes da guerra.
— Eu sinto muito — murmurou Alaina.
— Oh, não precisa ter pena. Os dois tiveram uma boa vida, e acredito que estão num lugar melhor
agora. — Segurou a porta bem aberta. — Espero que goste de chá. Não suporto aquela chicória que
fazem passar por café hoje em dia.
Alaina entrou e a seguiu por um corredor frio. Sem parar, a sra. Hawthorne virou a cabeça e
perguntou:
— Alguma vez explicaram a você a etiqueta sobre o uso de chapéus? Alaina engoliu em seco e,
tirando o objeto ofensivo da cabeça, murmurou.
— Sim, senhora.
— Quantos anos você tem?
— O bastante para saber um pouco e adivinhar mais um pouco, senhora.
113
— Sim, acredito. — Indicou uma cadeira ao lado da mesa, na sala. — Sente-se aí, criança. Não me
demoro. A água já está quente. Eu estava preparando o chá quando aqueles homens horríveis
chegaram.
Alaina olhou para a tapeçaria do forro da cadeira, depois procurou outra que não pudesse ser
estragada pela sujeira das suas roupas e trocou as duas de lugar. Sentada na beirada da cadeira, ela
examinou a sala. Tudo parecia em ordem, não faltava nada, não se via nenhuma marca de quadros
retirados nas paredes. Os móveis estavam perfeitos, em boa condição. Era raro encontrar uma casa
que não tivesse sido roubada e depredada.
A sra. Hawthorne voltou com um maravilhoso serviço de chá de porcelana, pôs a bandeja na frente
de Alaina e começou a servir. Sentada numa cadeira de espaldar alto, ela mexeu o açúcar na sua
xícara, com a colher, enquanto examinava Alaina atentamente. Constrangida com aquele exame,
Alaina tomou um gole de chá. Quando ergueu os olhos, viu que a mulher ainda a olhava com
atenção.
— Por que será que tenho a impressão de que você está brincando comigo?
Alaina engoliu com dificuldade mas conseguiu afetar inocência.
— Senhora?
— Suas roupas! Por que anda por aí fantasiada de menino? Alaina abriu a boca para responder, mas
então sentiu o impacto das palavras e perdeu toda a pose. Ficou imóvel, paralisada, sem conseguir
pensar.
A sra. Hawthorne sorriu e tomou um gole de chá.
— Acho que não estou sendo justa, porque tenho uma vantagem sobre você. Antes de me casar,
lecionei numa escola para meninas. Nenhuma delas conseguia me enganar por muito tempo.—
Tomou outro gole de chá e balançou a cabeça. — Você é boa. Muito boa. Acho que o uso liberal
que faz da sujeira—franziu o nariz, com desagrado — serve para desarmar muita gente. Mas há uma
suavidade no seu andar e no seu porte. — Riu brevemente. — E nunca vi um homem que se
preocupasse com uma cadeira ou que não fosse desajeitado com a xícara de chá.
Alaina ficou em silêncio.
— Agora — inclinou-se para a frente, com os olhos castanhos cheios de curiosidade —, quer me
contar por quê?
O sol estava baixo no céu quando Alaina atravessou o quintal dos Craighugh. Logo que conseguiu se
acalmar, ela havia contado tudo
114
para a sra. Hawthorne, descrevendo com detalhes a teia de eventos que a levara às atuais
circunstâncias. A sra. Hawthorne ouviu, atenta e interessadamente. Foi uma tarde muito melhor do
que se tivesse ficado na companhia irritante de Roberta. A prima a esperava na cozinha com um
sorriso complacente.
— Onde esteve esse tempo todo, Lainie? Perdeu a visita do capitão Latimer.
— Ótimo — balançou a cabeça. — Tive o suficiente de calças listradas por um dia.
Roberta riu e examinou as próprias unhas com atenção.
— Francamente, Lainie, você não é nem um pouco feminina.
— Se quer dizer que arrumo minha cama, lavo e passo minha roupa e trabalho para viver, está certa.
Quando você trouxe algum dinheiro para casa?
Roberta fungou delicadamente.
— Que horror, uma dama tem outras responsabilidades.
Dulcie olhou para o teto e, batendo as panelas, voltou ao trabalho.
— Isso mesmo — resmungou Alaina. — Como ser preguiçosa e engordar.
— Preguiçosa! Gorda! Como se atreve! — Os seios opulentos de Roberta forçaram o corpo do
vestido quando ela pôs os ombros para trás. Antes que pudesse revidar a ofensa, a porta da despensa
bateu com força. Dulcie riu baixinho. Roberta olhou furiosa para as costas da empregada e saiu da
cozinha. Quando passou pela porta da sala, seu pai ergueu a cabeça do jornal que lia, olhando por
cima dos óculos.
— Com quem você estava falando?
Roberta parou na porta.
— Oh, Lainie acabou de chegar em casa. „ Leala ergueu os olhos do bordado.
— Às vezes acho que Alaina está trabalhando demais, Angus. Passou o dia todo fora outra vez.
Aquela pobre menina.
— Hum! — Angus voltou ao jornal. — O trabalho é bom para ela. Vai ensinar um pouco de
responsabilidade.
Roberta não gostou.
— Talvez eu deva também arranjar um trabalho, papai.
— Você não, minha querida. — Sorriu ternamente para ela. — Você é outro tipo de senhora.
Satisfeita com a indulgência do pai, Roberta foi para o quarto, para sonhar com a vida de mulher de
um oficial ianque, e durante um bom
115
tempo Alaina teve o prazer de um banho quente e tranqüilo. Então a porta se abriu. Alaina virou a
cabeça, pronta para reclamar, mas era apenas Dulcie com uma toalha limpa no braço. Dulcie pôs
uma barra de sabão feito em casa ao lado da banheira e, cantarolando baixinho, começou a apanhar a
roupa suja de Alaina, alisando a camisola que a menina ia vestir. Alaina estranhou aquele
comportamento mas compreendeu quando apanhou a barra e sentiu o perfume estranhamente
familiar, muito parecido com o que Roberta guardava ciumentamente.
— Dulcie! Eu não acredito! — disse ela, atônita.
— Eu fiz sim. A srta. Roberta reclama tanto do sabão que eu faço, que achei que ia reclamar só um
pouco mais se eu mostrasse que não tem diferença, só um pouco de água de rosas, entre o meu
sabão e aqueles sabonetes que o pai costumava trazer para ela.
Alaina largou a barra e apanhou um pedaço pequeno do outro que estava ao lado da banheira.
— Acho melhor guardar esse para Roberta. — Al teria muito que explicar se chegasse perto dos
ianques cheirando como um jardim florido. Bastava o capitão Latimer já tê-la surpreendido toda
perfumada.
Dulcie resmungou, e insistiu:
— Acho que não é direito. A srta. Roberta tem todas aquelas roupas bonitas e perfumes e você não
tem nada, só sujeira e essas roupas de homem. O sr. Angus não quer gastar nem um centavo e
muitas vezes usa o dinheiro que você ganha esfregando o chão para aqueles ianques para comprar
fazenda para Roberta fazer outro vestido.
— O dinheiro que dou para ele mal dá para pagar minha pensão.
— Você não pára em casa bastante tempo para dar despesa ao sr. Angus — protestou Dulcie. — E
quase sempre mais parece uma órfã miserável. Quando vai parar de andar por aí com essas roupas e
começar a agir como uma dama?
Alaina deu um suspiro.
— Eu não sei, Dulcie. Às vezes penso que nunca.
Alaina ia fazer a faxina no apartamento de Cole no domingo, porque sabia que o capitão estaria de
serviço até o fim da tarde. Procurava ficar o maior tempo possível fora da casa dos Craighugh, para
evitar a provocação constante de Roberta. Mas teve de procurar Cole no hospital para dizer que
tinha perdido a chave.
— Não precisa dizer o que está pensando — avisou ela. — Posso ver nos seus olhos.
116
— Depois do que aconteceu ontem, estou procurando não dizer nada a você—disse ele, entregando
a chave. —Porque se eu começar, não sei se vou poder parar.
— Teve oportunidade de visitar Roberta—lembrou ela. —Devia estar feliz por isso.
— Não tanto quanto ficaria se pudesse dar umas boas palmadas em você.
Alaina olhou para ele.
— Já verificou os papéis da sra. Hawthorne, ianque?
— Se ainda não sabe, os bancos não abrem aos domingos.
— Não tenho dinheiro para guardar—disse Al.—Como ia saber o horário do banco?
Cole olhou desconfiado para ela.
— Está reclamando outra vez?
Alaina deu de ombros com petulância. -
— Apenas declarando um fato.
— Por falar nisso, o que você faz com o dinheiro? Já não ganhou bastante para comprar outra
roupa?
— Nem penso nisso, enquanto esta não acabarr.
Cole abriu a boca para retrucar, mas Al não deu tempo.
— Tenho de ir agora, se quiser acabar seu apartamento antes da noite. Não está me pagando para
ficar aqui de conversa fiada.
— Esteja lá para abrir a porta quando eu chegar — disse Cole quando ela já se afastava. — Ou então
traga a chave de volta.
— Está bem, está bem.
Logo depois do meio-dia, Cole estava almoçando quando o sargento Grissom entregou a ele a
correspondência. Depois de aspirar rapidamente o perfume de duas cartas, uma de Xanthia Morgan,
a outra de Carolyn Darvey, ele as guardou no bolso da túnica para ler em casa, com mais vagar. Ficou
desapontado por não encontrar nenhuma carta do pai e depois viu num envelope a letra caprichada
de Oswald James, advogado e grande amigo da sua família. A carta era datada de quase duas semanas
atrás. Cole abriu o envelope. Um peso esmagador caiu sobre ele ao ler a primeira linha.
"Sinto informar que seu pai faleceu durante a noite..."
Roberta mandou Jedediah parar ao lado da praça Jackson e, dizendo para esperar por ela, desceu da
carruagem e seguiu a pé, ignorando com altivez os soldados da União, que paravam para admirá-la.
Tinha outros objetivos
117
em mente e não estava disposta a pequenos flertes. Estava atrás de caça mais gorda. Um médico
ianque, para ser mais exata.
A chave que levava na mão enluvada, tirada do bolso do casaco de Alaina, era uma garantia de que
tudo ia correr bem. Até mesmo convencer o pai a deixar que ela fizesse uso da carruagem numa
tarde de domingo fora fácil. Quando Cole Latimer chegasse ao apartamento, ela estaria vestida de um
modo a vencer qualquer relutância da parte dele. Embora até então o ianque não tivesse
demonstrado qualquer relutância, nunca se podia saber até que ponto um homem podia chegar para
defender a própria liberdade.
Caminhava rapidamente, batendo com os saltos do sapato no chão. Estava ansiosa para pôr em ação
a estratégia bem planejada. Nem a repugnância à idéia de se submeter ao ato pouco digno por meio
do qual os homens provavam sua virilidade era suficiente para dissuadi-la. Depois de dormir com
Cole, podia dizer que estava grávida e mesmo que ele não estivesse disposto a fazer o que era certo,
Roberta tinha certeza de que seu pai o convenceria.
Na véspera, Roberta interrogara alguns proprietários das lojas vizinhas, e sabia exatamente onde
ficava a casa de Cole. Ele jamais dera essa informação, demonstrando um grande senso de
autodefesa contra certos tipos de ataque.
Roberta ouviu passos e escondeu rapidamente a chave, olhando para trás. Cole Latimer caminhava
na direção dela. O sorriso breve e formal do capitão, quando tirou o chapéu para cumprimentá-la,
não era encora-jador. Mas Roberta voltou-se para ele com um sorriso tímido.
— Ora, capitão Latimer, é exatamente a pessoa que eu esperava encontrar.
— Não veio para ver Al? — Cole lembrava distintamente ter dito a ela que estaria de serviço nesse
domingo. Estava ali apenas porque o chefe da cirurgia, quando soube da morte do seu pai, deu a ele
a tarde de folga, uma vez que não tinham muito serviço no hospital.
— Al? — perguntou Roberta, apreensiva. Seus planos estavam indo por água abaixo rapidamente. —
Ora, pensei que aquele moleque tinha ido pescar ou coisa assim.
— Ele está aqui — disse Cole e, passando por ela, girou a maçaneta e abriu a porta. Os sapatos
grandes demais de Al estavam ao lado da porta e da sala ao lado vinha o barulho de uma escova
passando no chão.
Roberta entrou antes que Cole a convidasse, e ele fechou a porta.
118
— Al? — chamou ele.
Um grito que mais parecia o berro assustado de um leitãozinho precedeu o ruído dos pés descalços,
correndo.
— Pensei que ia trabalhar esta tarde, ianque!
Alaina parou de repente na porta da sala quando viu Roberta. As primas se entreolharam sem
nenhum prazer, e então Al encostou no batente da porta, coçando o lado do nariz com a ponta do
dedo.
— Parece que tem companhia, capitão. Acho que agora vai querer que eu acabe a faxina e vá
embora, certo?
— Não, não está certo — disse Cole, secamente, saindo para a varanda. Olhou para os dois lados da
rua e viu Jedediah esperando na carruagem. Voltou para dentro e olhou para Roberta. — Para não
prejudicar sua reputação, vou pedir a Al que a acompanhe até sua carruagem. — Ergueu a mão
quando Roberta abriu a boca para protestar. — Perdoe meus modos, mas acabo de saber que meu
pai faleceu e temo que esta tarde eu não seja boa companhia.
— Seu pai? — perguntou Roberta. — Morto? — Ele balançou a cabeça afirmativamente, e Roberta
compreendeu que agora não havia mais ninguém entre Cole e todo aquele dinheiro.
Alaina puxou levemente a prima pelo braço.
— Vamos, Robbie, acho que o capitão quer ficar sozinho. — Virou-se para Cole, hesitante: — Eu
volto para terminar o que já comecei e depois vou para casa. Posso fazer o resto amanhã ou depois.
Roberta sentiu-se ofendida por ser levada para fora como uma menina malcomportada. Alaina não
fez nenhum comentário e foi saudada entusiasticamente pelo empregado negro.
— Miz Al! — disse ele, rindo. — Fico contente porque era você que miz Roberta veio ver. Eu estava
aqui sentado imaginando o que ia dizer para o sr. Angus se esses ianques fizessem algum mal para
ela.
— Leve a srta. Roberta para casa, Jedediah e não pare para nada. Logo estarei em casa.
— Sim, senhorita — disse o homem, com um largo sorriso. — Não paro para nada. — Ouviu isso,
miz Roberta?
— Você faz o que eu mandar, Jedediah—disse Roberta, zangada. — Agora, leve-me para casa e
depressa.
— Sim senhora, é isso mesmo que pretendo fazer.
119

Capítulo Onze
Em NOVA ORLEANS todos comentavam que Grant estava rindo satisfeito porque os homens de
Law tinham batido em retirada, pensando que um bando de mulas assustadas fosse uma carga de
cavalaria, numa batalha noturna perto de Wauhatchie, Tennessee. Mas uma explicação mais sóbria
dos confederados dizia que os rebeldes já haviam sido repelidos por Orland Smith e Tyndale quando
aconteceu o "ataque das mulas". Porém, para desgosto e embaraço do sul, os ianques recomendavam
entusiasticamente a promoção das mulas ao posto de cavalos.
A cidade estava quieta, quase completamente silenciosa, e todas as pessoas que Alaina via quando
passou, no começo da manhã, montada no velho Tar, demonstravam a tristeza e a amargura de uma
nova derrota. Naquele ano o Natal seria sombrio para todo o sul. Aquela já era uma segunda-feira
bastante sombria.
No estábulo do hospital, Alaina prendeu Tar numa baia vazia e tirou às escondidas um pouco de
feno da manjedoura levando para ele. Vendo o cavalo do capitão Latimer no estábulo, caminhou
para a porta dos fundos do hospital, assobiando despreocupadamente, como um garoto.
Dependurou a mochila e o chapéu num gancho perto da porta, depois foi apanhar os esfregões, as
vassouras e os baldes. Quando saía de costas do closet, com os braços cheios dos utensílios de
limpeza,
120
teve de desviar-se rapidamente para não ser derrubada por um atendente apressado, com os braços
tão carregados quanto os dela, mas de ataduras limpas. Ele não parou para se desculpar e continuou
pelo corredor, desaparecendo na sala de operações.
Alaina ficou olhando furiosa até ele entrar na sala, depois, resmungando comentários sobre a
grosseria dos ianques, encostou os instrumentos do seu trabalho na parede, ao lado do closet. Com o
passo mais calmo do mundo, ela caminhou para a enfermaria 5. Era cedo, e tinha tempo para visitar
Bobby Johnson antes de começar a trabalhar.
Os soldados da União a cumprimentaram com uma estranha reserva, sem o humor um tanto
grosseiro de sempre. Quando ela entrou, o silêncio envolveu a enfermaria. Alaina viu o leito vazio, e
depois o lençol estendido sobre uma grande mancha, no chão. O vermelho-escuro do sangue quase
seco passava do assoalho para o pano. Sem olhar para ninguém, Alaina deu meia-volta e saiu da
enfermaria, lutando contra os pesadelos horríveis que ameaçavam tomar conta da sua mente. Deixou
a porta bater atrás dela e correu pelo corredor para a sala de operações, respirando fundo para aliviar
a dor no peito. Ouviu a voz zangada de Cole.
— Quem fez o último plantão da noite?
— OmajorMagruder. —Alaina não reconheceu a voz do homem que respondeu.
— Não vou permitir que me culpe por isto! — defendeu-se o major. —Eu fiz a minha ronda, e tudo
estava bem. Especialmente ele!
Alaina ficou nas pontas dos pés e espiou pelo vidro do centro da porta. Cole e o dr. Brooks estavam
trabalhando no paciente e o atendente, muito pálido, passava para eles as compressas brancas que
voltavam vermelhas de sangue. Ela via o peito do paciente subindo e descendo com a respiração
fraca. O sargento-médico, ao lado da cabeça dele, aplicava a anestesia, pingando, de tempos em
tempos, algumas gotas na máscara de pano e arame que cobria a boca e o nariz do rosto envolto em
ataduras.
— Mais devagar! — disse o dr. Brooks para o sargento.
— Por que, especialmente ele? — perguntou Cole, manejando a agulha e o categute.
Magruder, encostado num armário no canto da sala, sem fazer nenhum esforço para ajudar,
respondeu:
— Quando fiz a ronda das dez horas ele estava resmungando alguma coisa sobre a mulher e um
filho.
121
Cole ergueu os olhos por um segundo e disse, com um sorriso sarcástico:
— E o que foi que disse para ele, major?
— Simplesmente mandei que calasse a boca e procurasse se portar como um homem — fez uma
pausa, depois continuou, como que achando que precisava de mais uma desculpa. — Ele estava
perturbando o resto da enfermaria.
Os dois médicos, inclinados sobre a mesa de operação, ergueram o corpo ao mesmo tempo; o dr.
Brooks olhou atentamente para Cole e este olhou para Magruder. Alaina pôde ver então o ferimento
de bordas irregulares no abdome do paciente e o sangue que saía. Nauseada, recuou para encostar-se
na parede. Suas pernas pareciam ter-se transformado em geléia. Ouviu a voz de Cole como se viesse
através de um túnel, tensamente controlada, mas selvagemente cáustica.
—- Major, como espera que um simples garoto aja como um homem?
— Ele é homem bastante para ter uma mulher! — A fúria, ou talvez o medo de Magruder, começava
a aparecer. — De qualquer modo, eu disse que era perda de tempo tratar dele, desde o começo.
Naquele momento Alaina desejou ouvir os gritos de um major ianque brutalmente espancado, mas,
para seu desapontamento, Cole continuou, em voz baixa e quase cortês, embora um pouco abafada,
porque ele se inclinou outra vez para seu trabalho.
— Quem o encontrou?
— O sargento, na ronda das quatro horas — disse o major.
— O que aconteceu com a ronda das duas horas?
st Magruder respondeu outra vez:
: — Verifiquei todos os leitos brevemente e não encontrei nada de anormal.
Cole disse então, secamente:
— Um dos homens disse que acordou pouco depois da meia-noite, ouvindo alguém chamar. A cama
de Johnson estava vazia, mas o homem não ouviu mais nada e voltou a dormir. O senhor não viu
um homem no chão, no meio da enfermaria?
— Eu já disse, não vi coisa alguma! — protestou Magruder. Fez-se silêncio então, cortado apenas
por uma ordem ou uma breve troca de palavras entre os médicos. Alaina queria fugir dali, mas suas
pernas recusavam-se a fazer qualquer movimento. Então a porta se abriu, empurrada pelo ombro do
capitão Latimer.
122
— Deixem que ele descanse um pouco, antes de removê-lo — disse ele para o atendente.
O dr. Brooks saiu também da sala.
— Você fez todo o possível, Cole. Se ele vai viver ou morrer depende de Deus agora.
— Eu não entendo por quê... — Vendo que o dr. Brooks franzia a testa, olhando para o outro lado
da porta, ele interrompeu a frase e voltou-se. Viu a agonia nos olhos cinzentos de Al, as marcas das
lágrimas no rostínho sujo e os lábios trêmulos.
— É Bobby Johnson — disse Cole, gentilmente. — Ele caiu. Abriu quase todos os pontos. Perdeu
muito sangue. — Passou a mão na testa, como para aliviar a frustração. —Nós suturamos outra vez...
mas eu não sei. — Estendeu o braço, esboçando um gesto de consolo, mas a mãozinha de Al afastou
a dele e um soluço subiu à garganta do garoto.
— Tire folga o resto do dia...
— Não! — interrompeu Al, reunindo toda a coragem que lhe restava ainda. Deu as costas aos dois
médicos e correu pelo corredor com os ombros curvados para a frente, como se estivesse carregando
metade do peso do mundo. Ouviu-se o barulho dos baldes batendo um no outro e logo o ruído
regular da bomba-d'água do poço sendo acionada.
Todos na enfermaria sabiam da amizade entre o pequeno faxineiro e o soldado cego, embora Al não
admitisse abertamente. Os outros homens observavam Alaina com simpatia, e quando ela se
ausentava por alguns minutos, ninguém saía para procurá-la.
Levaram o soldado Bobby Johnson de volta ao leito com o maior cuidado. O capitão Latimer,
sempre que tinha um momento livre, ia verificar o estado do doente. Johnson estava imóvel e pálido.
As horas passavam, e ele não demonstrava nenhum sinal de que ia recuperar a consciência. Alaina
lutava contra a vontade de estar bem longe dali, se o pior acontecesse e o desejo de estar perto dele
se Bobby voltasse a si. Nunca se afastava muito da enfermaria 5. Quando precisava fazer alguma
coisa naquela extremidade da sala, apressava-se a sair porque não suportava mais ver aquela forma
inerte na cama.
Cole ouviu o murmúrio fraco outra vez e olhou com atenção para os lábios de Bobby.
— Quem?
123
— Doutor Latimer. — Cole inclinou-se para o leito. — Como está se sentindo, Bobby?
— Muita dor! — foi a resposta simples. — Como fogo!
— Por que... você se levantou? — Cole procurou outras palavras para esclarecer a pergunta.
— Sede! — O soldado entendeu. Passou a língua nos lábios rachados e secos. — Como agora! Não
podia pedir ao major. — A voz era trêmula e rouca, e Cole passou um pano molhado nos lábios dele.
—Eu tinha de fazer alguma coisa sozinho, pelo menos uma vez. Tinha de... agir... como um homem.
Cole tocou a mão dele.
— Descanse agora. Não se preocupe. Estou aqui.
A resposta foi um sorriso fraco, que desapareceu quando Bobby Johnson foi mais uma vez
dominado pelo sono.
Furioso com a impossibilidade de fazer mais, Cole voltou-se e viu Al parado nos pés da cama,
observando o soldado pálido com um olhar distante.
— Tomara que Magruder tropece e caia dentro de uma privada uma noite destas — sibilou ela.
— Não pode culpá-lo. — Cole recostou-se na cadeira e tentou explicar. — Ele não podia saber o
que ia acontecer.
Foi como se Al não tivesse ouvido. Com um sorriso sem alegria, ela continuou:
— E espero que seja eu quem passe a rasteira nele.
— Não terminou seu serviço por hoje?—perguntou Cole, olhando para o garoto.
— Acho que sim. — Ergueu os olhos para ele.
— Vou avisar Magruder para andar com cuidado nas noites escuras.
Sem tirar os olhos dos dele, Alaina disse:
— Faça isso, ianque. — As palavras eram as que Cole esperava, mas faltava um pouco do antigo
amargor.
— Você está fraquejando, Al — provocou Cole. — Pensei que odiava todos os barrigas azuis da
União.
— Vá para o inferno, ianque! — Dessa vez não faltava nem um pouco do rancor antigo.
— Vou passar a noite no hospital — disse Cole, quando Alaina se afastou.
Virando apenas a cabeça, ela respondeu:
124
— Então talvez eu tenha um pouco de paz, para variar.
Pela primeira vez naquele dia soaram risadas descontraídas na enfermaria 5.
O dia seguinte passou sem novidades. Todos esperavam ansiosamente a melhora do jovem soldado.
Alaina notou que o abdome dele estava distendido, formando uma saliência sob o lençol. A cor das
ataduras não era mais vermelho vivo, mas escuro, quase negro e com um cheiro desagradável. Ele
passava a maior parte do tempo semi-in-consciente, em parte devido às altas doses de láudano que
estava tomando, mas às vezes gemia e se contorcia, como se um animal estivesse roendo suas
entranhas. Alaina não suportava ver aqueles espasmos, nem a idéia de estar longe dele quando
acordasse. As horas passavam com uma lentidão torturante. Não parecia haver nenhuma mudança
no estado de Bobby Johnson e quando a chuva fina começou a cair, no fim da tarde, Alaina teve a
impressão de que o mundo todo estava chorando tristemente.
A volta para casa foi gelada, sob a chuva, e quando chegou, Alaina ficou um longo tempo sentada no
estábulo. Não queria ver Roberta e precisava controlar as próprias emoções. Não conseguiu nem
uma coisa nem outra, e só muito tarde mergulhou num sono agitado.
Não foi sem esforço que Alaina saiu da cama quente para o frio da madrugada. Só depois de lavar o
rosto com água quase gelada, seu cérebro começou a funcionar. A aplicação de fuligem e graxa foi
feita entre estremecimentos de repulsa, e o fato de Roberta estar roncando ruidosamente quando ela
desceu para sair não melhorou a situação. Outro desafio à sua força de vontade foi tirar o velho Tar
da baia quente para a chuva leve e gelada que continuava a cair.
Só depois de uma hora de trabalho pesado, Alaina deixou de sentir os calafrios provocados pela
viagem na madrugada chuvosa. Bobby Johnson continuava imóvel como morto, a não ser por um ou
outro estremecimento que percorria seu corpo enfraquecido. Cole recusou-se responder as perguntas
de Alaina e irritou-se quando ela insistiu. As horas passaram sem que a sensação de peso a deixasse, e
ao meio-dia, embora sem apetite, ela conseguiu comer um pouco. No meio da tarde, ela desceu a
escada da enfermaria dos confederados e viu dois atendentes saindo da enfermaria 5 carregando uma
maca coberta com um lençol e dirigindo-se para a sinistra construção de tijolos que chamavam de
"necrotério". Ninguém precisou dar a
125
notícia, pois um rápido olhar para a enfermaria confirmou seus temores. O dr. Latimer estava
sentado ao lado do leito vazio de Bobby Johnson. Com o coração apertado de dor, mas com os
olhos secos, ela parou ao lado de um oficial que observava a passagem da maca, em silêncio. Logo
depois, Cole Latimer saiu da enfermaria com uma expressão de revolta e mágoa nos olhos escuros.
Passou pelo garoto, que ergueu a mão para fazer uma pergunta, e caminhou para a sala dos médicos.
Alaina ficou imóvel e desanimada no corredor, e de repente sentiu a mão pesada no seu ombro.
— Eu o avisei, é claro — disse o oficial. — Ele cometeu um erro.
— Não é verdade!—Alaina olhou furiosa para o rosto do homem e com um movimento brusco
livrou o ombro da mão dele. — O capitão Latimer é o melhor cirurgião deste hospital!
— Ora, quanta lealdade — zombou Magruder. — Estou certo de que o capitão gostaria de ouvir
isso. Mas o que eu estava dizendo era que o médico se deixou envolver emocionalmente com um
caso sem esperança. — Deu de ombros. — Eu o avisei.
Alaina olhou para os próprios sapatos grandes demais para seus pés. A agonia seria menor se
conseguissem empedernir o seu coração, mas nesse caso seria igual a Magruder, incapaz de sentir
qualquer emoção terna que faz a vida digna de ser vivida.
— Por que não tira folga o resto do dia, garoto?—sugeriu o major com magnanimidade.
— Prefiro ficar ocupado, obrigado — disse secamente.
— Como quiser. — O major Magruder sorriu e olhou pensativa-mente na direção da sala dos
médicos. — O capitão tentou fazer isso quando soube da morte do pai, mas exagerou. Quem sabe se
isso não custou uma vida?
Magruder afastou-se antes que Alaina pudesse responder e por sorte dele não havia nenhuma privada
por perto.
Alaina passou o resto do dia excepcionalmente calada. Outro soldado da União já estava no leito de
Bobby, na enfermaria 5. Para evitar a enfermaria, Alaina resolveu fazer faxina na sala dos médicos,
pouco usada porque eles tinham pouco tempo para descanso. Não tinha visto o capitão Latimer
desde que ele saiu da enfermaria e os outros médicos, acostumados com a presença da morte, não
fizeram nenhuma pergunta ao garoto.
Desconhecendo, porém, o segredo de Alaina, as conclusões deles estavam muito longe da verdade. A
confusão na mente da jovem era
126
muito mais profunda do que poderiam imaginar. A antipatia que sempre sentiu pelos nortistas
transformou-se em ódio com a guerra. Agora conhecia os rostos e os nomes dos inimigos. Não eram
mais casacos azuis anônimos, com galões e botões brilhantes, eram homens e garotos, sorridentes e
tristes, felizes ou descontentes, rindo, brincando, sofrendo, morrendo, como os amigos de quem
tinha se despedido, como seu pai e seus irmãos adorados. Seres humanos com corpos terrivelmente
frágeis quando atingidos por balas ou estilhaços de metal. Alaina tinha de descer ao fundo da sua
alma para encontrar o ódio antigo.
Distraída, Alaina passava um pano no espaldar de uma cadeira, tentando definir os próprios
sentimentos. Não podia oferecer consolo à mãe ou à mulher de Bobby Johnson, mas esperava
ardentemente que alguém, em algum lugar, tivesse encostado a mão amiga no peito do seu pai e do
seu irmão nos seus últimos momentos. Sentiu que as lágrimas subiam aos seus olhos, mas procurou
controlá-las ao ouvir passos no corredor. Umjovem soldado passou pela porta, depois parou e
voltou, espiando para dentro.
— Ah, você está aí, Al. O dr. Brooks quer falar com você no escritório dele quando terminar seu
trabalho.
O soldado afastou-se antes que ela pudesse perguntar alguma coisa. Terminou de tirar o pó da
cadeira, apanhou os baldes, o esfregão e a vassoura e saiu da sala. Estava quase na hora de ir para
casa, e era melhor ver o que o médico queria. Era a primeira vez que o dr. Brooks a chamava.
Agora, com o frio, a subida ao terceiro andar era menos cansativa. Para aliviar sua sensação de
deslealdade, parou na enfermaria dos confederados para uma breve troca de palavras e depois seguiu
pelo corredor, na direção do escritório do dr. Brooks. Aporta estava aberta e ela conseguiu um
sorriso matreiro quando entrou. O médico levantou rapidamente da cadeira e caminhou na direção
dela.
— Quer alguma coisa, doutor? — perguntou Alaina, na sua linguagem de garoto da rua.
Em silêncio, ele passou por ela e fechou a porta. Alaina ouviu a chave na fechadura e ergueu uma
sobrancelha interrogativamente. O dr. Brooks segurou o braço dela e a levou para uma cadeira.
— Fale direito agora, Alaina. Estamos sozinhos e ninguém pode nos ouvir. Sente-se aqui.
Alaina obedeceu e, confusa, viu o médico começar a andar de um
127
lado para o outro na sala. O dr. Brooks abriu a boca várias vezes para falar, mas não disse nada, cada
vez mais irritado. Finalmente, apanhou um maço de papéis na mesa e o estendeu para ela, agora
como que procurando se desculpar.
— Recebemos isto todas as semanas, Alaina. Os exércitos trocam mensagens por meio de
mensageiros especiais.
Sem saber do que se tratava, Alaina começou a ler.
Estados Confederados da América
Compilado pelo Estado-Maior do Quartel General
Exército da Virgínia do general Lee
Assunto: Relatório de Baixas
1. Lista completa de Feridos
2. Mortos;
3. Desaparecidos em ação;
4. Desertores.
Nota: Esta seção para as áreas ocupadas pela União de Loiíisiana, Mississippi e Alabama.
Alaina sentiu um frio no estômago. Agora tinha apenas um irmão vivo! Jason! E tinha visto listas
como essa duas vezes antes. Com temerosa lentidão ergueu os olhos para o rosto preocupado do dr.
Brooks. Fechou a boca com força para evitar o tremor dos lábios, e depois começou a ler
rapidamente a lista em ordem alfabética até chegar à letra M. Desceu o dedo pela coluna da esquerda
até encontrar o que temia.
MCGAREN, JASON R., CAPITÃO, DESAPARECIDO EM AÇÃO, POSSIVELMENTE
MORTO. 4 DE OUTUBRO, 1863.
O resto ficou embaçado. Quatro de outubro! Há mais de um mês! Jason! Jason! O filho mais velho
Jason! Jason, alto e forte! Amado irmão mais velho Jason! Alaina lembrou-se do dia em que Gavin,
três anos mais novo do que Jason, pôs carrapichos sob a sela dela e foi Jason quem a tirou de cima
do cavalo assustado. Jason! Seu herói. Pobre Jason, morto!
— Alaina! Alaina! — As palavras penetraram seu sofrimento e ela se deu conta de que o bom
médico esfregava suas mãos entre as dele. — Você está bem? Está tão pálida!
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Alaina fez um gesto afirmativo, pensando vagamente por que não tinha lágrimas. Recostou-se na
cadeira, tirou as mãos das do médico, e como se o maço de papéis se tivesse transformado numa
coisa nojenta o empurrou do colo para o chão. Seus lábios se contraíram e franziu o nariz como se
estivesse sentindo um fedor insuportável.
— Alaina, tenha esperança! — ordenou o dr. Brooks. — Diz apenas que ele está desaparecido, não
morto.
— É a mesma coisa! — Sua voz era um soluço e um protesto. — Igual às outras vezes. Primeiro,
desaparecido, depois, mais tarde, a carta dizendo que seu corpo está enterrado em algum lugar e que
ele está oficialmente morto.
O dr. Brooks não podia negar. Tinha visto muitos desses relatórios. Geralmente eram feitos antes do
término completo da batalha e raramente continham o nome de todos os mortos. Tudo que podia
fazer era tentar consolar Alaina, mas agora os soluços começavam, doloridos e secos.
— Ele não... queria... nos deixar. Mas era... o que tinha de fazer... Todos os homens se alistaram. —
Alaina inclinou a cabeça para trás e as lágrimas desceram por seu rosto. Ela chorou finalmente,
sentindo todo o impacto da dor.
— Isso é horrível! Maldita guerra! Maldita luta! Maldita matança! Quando vai terminar? Oh, Jason!
Jason! — Cobriu o rosto com as mãos, soluçando tristemente. O dr. Brooks pôs a mão
carinhosamente no ombro de Alaina e deu a ela um lenço limpo.
— Quando Deus achar — disse ele com voz suave — que os homens esgotaram sua fúria idiota,
quando estiverem cansados de tanta carnificina, a guerra vai terminar. Ele nos dá livre-arbítrio,
entrega-nos nossas vidas para fazermos o que bem quisermos. Eu peço, minha filha, não culpe Deus
pela insensatez dos homens.
Alaina encostou a cabeça no ombro do velho médico e deixou que as lágrimas corressem livremente.
O dr. Brooks a fez deitar-se num pequeno sofá e sentou-se ao lado dela com a mão no seu ombro.
Quando finalmente seu corpo parou de tremer, Alaina mergulhou num sono exausto e profundo.
Estava escuro e era tarde quando Alaina abriu os olhos. O dr. Brooks levantou-se da cadeira ao lado
da mesa e aproximou-se dela.
— Acha que pode ir para casa agora, minha filha?
Alaina esfregou os olhos inchados e vermelhos e fez um gesto afirmativo.
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— Minha carruagem a espera na frente do hospital.
— Não! — exclamou ela.—Não, obrigada, dr. Brooks. Eu tenho o velho Tar. Além disso — sorriu
para o velho amigo —, uma carruagem não é lugar para um garoto andrajoso.
O médico suspirou.
— Como quiser, Alaina. — Olhou para ela, pensativo, depois segurou sua mão. — Não existe
ninguém como você, Alaina MacGaren. Poucas jovens teriam suportado o que você suporta, com
tanta força de espírito. Porém, até um garoto pode ter problemas a esta hora da noite.
— Eu tomo cuidado — garantiu ela, em voz baixa. Viu sua imagem refletida no vidro da janela, os
olhos vermelhos e inchados e perguntou timidamente: — O capitão Latimer ainda está no hospital?
— Não. Ele saiu cedo esta tarde. Magruder o acusou de permitir que a dor da perda do pai
interferisse no seu trabalho. Acho que o major ainda está ofendido por causa do incidente com a
perna. Desta vez ele acusou Cole abertamente de descuido no tratamento de Bobby Johnson.
— Mas não é verdade! — exclamou Alaina. — A culpa foi de Magruder!
— Eu sei disso, mas Magruder precisa pôr a culpa em outra pessoa, para não ser acusado de
negligência. — O médico balançou a mão, num gesto irritado. — Quando saiu, Cole me disse que
pretendia mandar o decoro para o inferno.
Pouco mais tarde, Alaina montou no velho Tar e seguiu na direção do rio. Não queria voltar ainda
para a casa dos Craighugh. Angus e Leala deviam estar numa reunião política àquela hora, e Alaina
não estava disposta a aturar a conversa de Roberta. Sentindo-se extremamente solitária, cavalgou
devagar, seguindo a margem do rio. O murmúrio suave da água era enganador, fazendo com que o
Mississippi parecesse um rio calmo e inofensivo. Mas, na verdade, tinha toda a força das chuvas do
outono na sua corrente e todos sabiam que costumava mudar seu curso de um dia para o outro,
abrindo novos regatos.
A chuva parara havia algum tempo, e a lua em quarto minguante pairava alta, entre as nuvens, que
passavam rápidas, lançando tímidas faixas de luz na superfície do rio. Alaina procurou não pensar no
próprio problema que se complicava cada vez mais. Desmontou e sentou-se na margem do rio,
abraçou os joelhos, encostou o queixo
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nos braços e olhou para os distantes navios da União. A raiva e a fúria renasceram dentro dela.
— Traidor! — disse, para o rio.—Você trouxe os ianques à nossa porta. Traidor desavergonhado.
Você não tem honra? Não tem nenhuma lealdade?
Nenhuma resposta veio das profundezas, mas pela mente de Alaina desfilou uma longa coluna de
homens com fardas azuis e cinzentas, todos imperfeitos, como se o artista não tivesse ainda
completado o quadro. Uns sem braços, outros sem pernas, alguns só com um olho ou apenas a
metade do rosto. Caricaturas não terminadas! Restos da guerra! Meios-homens! Ou menos do que
isso! Era um pesadelo, a essência do que podia ser encontrado em qualquer hospital, da União ou
dos Confederados.
Algo estranho surgiu na superfície do rio. Uma árvore enorme deslizava na direção da margem onde
Alaina estava. Quando chegou perto da margem, encalhou no fundo, depois rolou pesadamente,
levada pela correnteza. Um braço apareceu à luz da lua, e Alaina ficou de pé, certa de que não tinha
nada a ver com sua imaginação. O movimento do homem, para segurar melhor na balsa improvisada,
agitou a água da margem.
Alaina olhou rapidamente em volta. Logo o homem estaria fora do seu alcance e não poderia fazer
nada para ajudá-lo. O tronco de árvore foi apanhado num redemoinho e começou a girar,
ameaçando atirar o homem na água outra vez. Ele ergueu os braços e soltou um grito fraco antes de
afundar. Alaina não entendeu as palavras mas o som delas a fez agir rapidamente.
Tirou o casaco pesado, correu pela faixa de terra até chegar ao rio e lançou-se na água. Nadou,
lutando contra a correnteza, que tentava puxá-la para o fundo e que ao mesmo tempo levava o
tronco e o homem na sua direção. Respirou fundo e mergulhou, sentindo a água passar rapidamente
por seus dedos. Quando o tronco passou por cima dela, Alaina subiu, procurando desesperadamente
alcançar o homem. Sua cabeça assomou na superfície, bem ao lado da dele.
Não tinham tempo para amenidades, nem muito ar nos pulmões. Alaina segurou o homem pelos
cabelos e com toda força que tinha começou a nadar, não lutando contra a correnteza, mas
deixando-se levar por ela. Seus pés enterraram na lama macia, e sempre segurando os cabelos do
homem, ela respirou fundo, depois o levou para a água rasa. Quase sem forças, conseguiu erguê-lo
para a margem alta e o pôs
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deitado de bruços sobre outro tronco, na margem, com a cabeça para a terra.
O homem tossiu e começou a vomitar a água que tinha bebido, indicando que havia ainda vida no
seu corpo. Alaina levantou o rosto dele e parou, boquiaberta. Era Cole Latimer! Sua mente estava
num turbilhão. Acabava de salvar um ianque, azul como um gaio e só de ceroula. Alaina, de repente,
viu Jason morto, com os olhos sem vida abertos para aquele mesmo céu noturno. As lágrimas
subiram aos seus olhos e, tremendo de frio, com a roupa molhada, Alaina caiu de joelhos ao lado do
capitão. O choro sentido e de revolta não abrandou a angústia e sua mente concentrava-se apenas no
que devia fazer. Controlou-se com esforço e enxugou as lágrimas misturadas à água que pingava do
seu cabelo.
— Seu ianque burro, isca de jacaré — disse ela com voz rouca e trêmula. — Escolheu uma noite fria
como gelo para nadar.
Pôs o capitão sentado, com as costas contra o tronco de árvore. Com um gemido, Cole inclinou a
cabeça para trás. Um filete de líquido escuro e pegajoso escorreu pela testa dele. Alaina procurou
com as pontas dos dedos e encontrou uma saliência grande sob os cabelos do capitão.
— Alguém o acertou em cheio, ianque. Me parece que você estava completamente bêbado, ainda por
cima, e neste pedaço de terra, isso é loucura. Pensei que tinha dito que sabe se cuidar.
O problema agora era o que fazer com ele. Não tinha mais a chave do apartamento e despido como
estava, ele também não tinha. Além disso, não podia desfilar com um oficial da União só de ceroulas
no meio da praça Jackson. Coisas incríveis podiam acontecer para os dois.
Aparentemente, não tinha alternativa senão levá-lo para a casa dos Craighugh. Seu tio costumava
ficar na reunião política até tarde, às vezes voltava quase no fim da noite. Se isso acontecesse, seria
fácil entrar com o capitão sem que Roberta visse. De manhã teria muito que explicar, e o tio Angus
ia ficar furioso, mas Alaina deixaria isso a cargo de Roberta, que seria muito mais eficiente do que ela
para acalmar o pai.
Alaina correu até onde deixara Tar, amarrou os cordões dos seus sapatos e os dependurou na sela,
depois levou o animal para onde o capitão estava. Cole agora tremia incontrolavelmente. A única
coisa seca era seu casaco, e Alaina, batendo os dentes de frio, o agasalhou com ele.
Passou o braço do capitão por seus ombros e o fez ficar de pé, cambaleando perigosamente sob o
peso. Com grande esforço o fez
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endireitar os ombros. Outro trabalho de força e paciência foi montar Cole no velho Tar, que bufou,
reclamando daquele abuso. Toda a pose habitual de Cole na sela desapareceu quando ele inclinou o
corpo sobre o pescoço do animal. Alaina resmungou furiosa quando Tar empinou, quase derrubando
o cavaleiro. Segurando a brida do cavalo, ela o conduziu outra vez para o tronco de árvore na
margem do rio. Subiu no tronco e montou.
— Vamos, ianque! Sente-se direito!
A ordem finalmente penetrou sua quase inconsciência, e Cole ergueu o corpo na sela. Alaina se
ajeitou na frente do capitão e virou para trás quando ele apoiou a cabeça pesadamente nas suas
costas. As mãos dele deslizaram para os quadris de Alaina, e ela conteve-se para não empurrá-lo para
trás com os ombros. Na condição em que Cole estava, isso podia lançá-lo para fora da sela e nunca
mais ela ia conseguir levar todo aquele peso para cima outra vez.
Seguiram pelas estradas secundárias e caminhos pouco usados até a casa dos Craighugh. A casa
estava escura, e no estábulo brilhava a luz fraca de uma lanterna. Alaina tinha quase certeza de que
Roberta já estava dormindo, tendo apenas os criados por companhia. Conduzindo Tar sobre a
grama, para não fazer barulho, foram diretamente para o estábulo. Alaina desmontou e outra vez,
com esforço e tenacidade, fez o capitão desmontar também. Pôs a mão rapidamente sobre a boca
dele quando Cole, erguendo os olhos vermelhos, resmungou alguma coisa, e o empurrou para a
parede perto da porta.
— Devia ter vergonha. Ficar bêbado desse jeito, e deixar que dessem uma pancada na sua cabeça e
roubassem sua roupa. Isso é demais, ianque.
Deixou Cole encostado na parede e levou Tar para a baia, premiando o velho animal com uma ração
extra. Agradeceu fervorosa e silenciosamente o fato de a carruagem de Angus não estar no estábulo.
Quando voltou para onde deixara o capitão, Alaina parou, atônita. Cole tinha desaparecido. Mil
idéias passaram por sua mente. Onde ele estava? Chamou em voz baixa, passou pelo bebedouro dos
cavalos e de repente, sentiu o peso dele nas suas costas. Os dois caíram de cabeça dentro do
bebedouro, Alaina por baixo. Pensou que ia morrer afogada antes de se livrar do peso de Cole.
Tossindo e tentando respirar ao mesmo tempo, de pé dentro do bebedouro, quase sufocada com a
água que engolira, Alaina esbravejou.
— Barriga azul! — Ergueu o braço e com um golpe certo fez o
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capitão perder o equilíbrio e rapidamente o puxou para dentro. Quando o puxou para fora, tossindo
e tentando respirar, aproximou o rosto do dele e disse, furiosa: — Da próxima vez que quiser me dar
um banho, ianque, acho bom fugir depressa. Eu só não o afogo agora porque você está bêbado
demais para ter medo.
— Fr-frio — disse ele, ainda engasgado, tremendo para provar o que dizia.
Batendo os dentes também de frio, Alaina saiu de dentro do bebedouro, puxou primeiro uma perna
do capitão, depois a outra e o pôs sentado na beirada da vala comprida de madeira. Olhou para a
janela do quarto de Roberta, temendo que o barulho a tivesse acordado. As janelas estavam fechadas
e o quarto de Dulcie, em cima da garagem das carruagens, estava ainda escuro.
Alaina levou o capitão para os fundos da casa e estremeceu com o rangido da porta. Outra vez com
o braço dele em volta dos seus ombros, levou-o para dentro. Olhou para trás e notou que estavam
deixando uma trilha molhada por onde passavam. Tinha de fazer alguma coisa!
— Espere aqui — murmurou ela, sentando Cole numa cadeira. — Vou apanhar alguns acolchoados.
— Correu para a despensa onde, naquela manhã, vira alguma roupa de cama dependurada para arejar
e voltou com os acolchoados. Quando passou pelo fogo, empurrou a pesada chaleira com água para
o centro, e atirou alguns gravetos secos sobre as brasas. Se conseguisse levar o capitão para a cama,
voltaria à despensa para um bom banho quente.
Quando estavam os dois enrolados nos acolchoados, ela o segurou pelo braço e o fez levantar-se da
cadeira. Atravessaram a casa lentamente e começaram a subir a escada. Tinham subido alguns
degraus quando Alaina tropeçou na ponta do acolchoado, bateu a canela no degrau e soltou Cole.
Tentou segurar-se no corrimão, não conseguiu e desceu de barriga vários degraus. Foi um momento
de completo caos, porque Cole caiu também. No chão, no fim da escada, com Cole em cima dela
Alaina cerrou os dentes para não gemer de dor. Livrou-se do peso e tampou outra vez a boca do
capitão quando ele começou a resmungar palavras ininteligíveis.
— Fique quieto! — sibilou ela. — Se eu o deixasse no estábulo, o tio Angus podia pensar que era um
intruso e dar um tiro em você. O lugar mais seguro é lá em cima, no quarto de hóspedes. Mas não
podemos acordar Roberta. Está entendendo? — Alaina duvidava que
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ele pudesse compreender e, ajeitando o acolchoado sobre os ombros, murmurou furiosa: — Eu
nunca imaginei que você pudesse ficar tão bêbado.
Alaina tentou a escada outra vez e conseguiu, quase carregando o homem com o dobro do seu peso
e levando-o para o quarto de hóspedes, ao lado do seu. Ficava logo depois do quarto de Roberta,
mas bem distante do quarto dos tios. O luar entrava pela janela, e Alaina não precisava de luz para
saber onde estavam os móveis. Puxou para baixo as cobertas da cama macia e com um movimento
brusco fez Cole deitar-se. Agradecendo em silêncio o luar que adensava as sombras, despiu a ceroula
ensopada, levantou as pernas dele para cima da cama e o cobriu.
— Pela primeira vez, ianque, você não está implicando comigo.
Saiu e fechou a porta. Numa questão de minutos, Alaina estava na banheira. A água quente aliviou o
cansaço, substituindo-o por um agradável torpor. Deliberadamente, apanhou o sabão perfumado e
começou a ensaboar a cabeça e o corpo. O disfarce era a última coisa com que queria se preocupar
nessa noite, e naquele momento, estava insensível a qualquer perigo. Com um suspiro cansado,
recostou a cabeça na beirada da banheira, olhando para as sombras fluidas da luz da vela no teto.
Sentia-se como uma concha vazia, sem forças, incapaz de sofrer. O que o amanhã reservava para ela,
Alaina não queria adivinhar, nem imaginar. O dia seguinte parecia estar a uma eternidade de
distância.
Seus pensamentos vagavam no mundo da fantasia. Um belo vestido! Seu cabelo longo e brilhante!
Dançando nos braços de um homem! De repente, lembrou dos braços fortes de Cole quando
estavam a cavalo e o rosto para o qual erguia os olhos era o dele, cheios de calor e dele eram os
braços que a cingiam.
Alaina sacudiu a cabeça, furiosa. Isso era loucura! Cole Latimer era um ianque!
Zangada, levantou-se, enxugou-se e apanhou a camisola limpa. Estendeu as roupas molhadas perto
do fogo e sentou-se para pentear o cabelo. Só depois de algum tempo conseguiu acalmar seus
pensamentos e subiu para o quarto. A casa estava silenciosa quando Alaina se deitou na cama limpa e
quente. Calculou que deviam ser onze horas ou meia-noite, e a lua continuou sua viagem no céu
quando ela entrou no refúgio do sono.
Duas horas depois, Alaina acordou assustada, ouvindo um baque surdo e o barulho de alguma coisa
rolando no chão. Sons abafados de
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movimento vinham do quarto de hóspedes, e depois uma voz de homem, praguejando.
Esse idiota ainda vai acordar Roberta, pensou Alaina. Saltou da cama, apanhou o roupão e abriu a
porta do quarto cautelosamente. Não viu ninguém. Correu descalça pelo corredor, entrou no quarto
de hóspedes e fechou a porta.
Nem bem acabou de fechar a porta, Alaina se deu conta da idiotice que acabava de fazer, entrando
no quarto de Cole vestida como estava. Cole Latimer não estava mais inconsciente, mas de pé ao
lado da cama, tentando acender o lampião. A manga de vidro estava no tapete onde tinha caído.
O luar atravessava as cortinas, iluminando todo o quarto. Embora ainda atordoado pela bebida, Cole
notou a mulher encostada na porta. Não podia explicar aquela visão, nem por que estava num quarto
estranho. Sem dúvida era uma situação extremamente precária. Ao que sabia, a qualquer momento ia
aparecer um marido furioso, ou pelo menos um pai irado disposto a defender a honra da filha. Por
falar nisso, ela parecia bem jovem.
— Senhora — começou ele, irritado por sentir a língua grossa e pesada. — Temo ter invadido sua
casa.
Alaina compreendeu que não podia fugir agora e que tinha de enfrentar a situação. Ainda assim, foi
uma sorte ter chegado a tempo. Os Craighugh podiam chegar a qualquer momento e se
encontrassem o ianque vagando pela casa, o resultado seria desastroso para todos.
Alaina resolveu tirar vantagem da confusão evidente de Cole. Ouvindo os soldados no hospital,
aprendera coisas de arrepiar os cabelos.
Sua risada macia quebrou o silêncio do quarto.
— Certamente não resolveu ir embora, depois de ter prometido ficar toda a noite, capitão? Será que
já esqueceu? — Alaina imitou a descontraída familiaridade da mais experiente cortesã, com voz doce,
suave e culta. Parecia fácil. Ela podia fazer aquele papel tão bem quanto o do garoto atrevido. Ainda
assim, agradecia a sombra que encobria a nudez de Cole, pois a brincadeira podia se voltar contra ela.
Embora não tivesse idéia de como tinha ido parar ali, a mente confusa de Cole aceitou a situação
óbvia. Apesar de sempre evitar os bordéis para preservar a própria saúde, esta era sem dúvida uma
companhia com a qual, de bom grado, passaria a noite. Afinal, há algum tempo não tinha esse prazer.
A satisfação do desejo que o acometeu de repente não precisava de muita agudeza mental de sua
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parte. Sua mente, embora um tanto confusa, era bastante pragmática e, tendo encontrado uma
explicação, aceitou-a satisfeito.
Alaina lembrou que o tio tinha uma garrafa de conhaque escondida em algum lugar daquele quarto e
aproximou-se do armário. Não era a hora do capitão se recobrar da bebedeira. Se ele bebesse o
bastante para voltar para a cama, certamente dormiria tranqüilo pelo resto da noite.
Quando ela passou na frente da janela, um raio de luar atravessou sua roupa. A revelação das
formas"esbeltas e perfeitas aguçou o apetite do capitão. O desejo incendiou seu corpo, excitando-o.
— Aqui está, capitão — disse a voz macia. — Tome outro drinque. — Alaina pôs na mão dele um
copo quase cheio de conhaque e escapou rapidamente da outra mão que se estendeu para ela. Disse
com uma risada provocante: — Beba primeiro, capitão.
Cole levou o copo aos lábios e experimentou. A bebida era de boa qualidade. Mas não era de
admirar, pensou ele. Na cidade ocupada, os bordéis eram os únicos estabelecimentos que
continuavam a funcionar regiamente, e esse, sem dúvida, estava acima de qualquer outro que já tinha
visto.
— Ora, francamente, capitão. — Ela pôs a mão no peito dele e o empurrou de leve. — Devia voltar
para a cama. O ar está um pouco frio e pode ser fatal. — Cole tentou discernir os traços dela, mas
estava escuro demais. —Preciso fazer uma coisa lá embaixo, mas volto logo, não vou demorar.
Alaina sorriu mentalmente da própria esperteza. Não tinha nada para fazer lá embaixo, mas ele
certamente cairia no sono assim que ela saísse do quarto.
Cole não gostou da idéia. Há muito tempo não tinha o prazer de estar com uma mulher bonita e
embora não pudesse ver o rosto dela, o perfume e a voz suave despertavam seu desejo. Tomou a
bebida com um gole impaciente, mal sentindo o calor do conhaque no corpo incendiado de
excitação e pôs o copo sobre a mesa.
— Descanse um momento, capitão — disse Alaina, docemente, afastando-se na direção da porta. —
Eu realmente preciso ir.
Furioso com a falta de firmeza das suas pernas, Cole a segurou pelo braço quando Alaina já estava na
porta. Ela ergueu os olhos surpresa, e não disse nada. Seu coração disparou. Cole parecia tão alto e
tão imenso e tão ameaçador, assim inclinado sobre ela!
— Quero pelo menos um beijo — murmurou ele, com voz arrastada —, do contrário, vou me
cansar de esperar. Venha — Cole
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a puxou para ele. — Dê-me uma amostra da sua mercadoria para que eu possa esperar ansioso sua
volta.
Se não fosse pela pressão do corpo dele contra o seu, eliminando toda a confiança que ela podia
ainda sentir, Alaina teria dado um suspiro de alívio. Mas aquele homem era ousado demais para
permitir isso. Há poucos momentos ela estava se considerando muito experiente, mas agora, quando
Cole a puxou contra o corpo dele com a mão forte, Alaina teve plena consciência do quanto era
inocente. O instinto para fugir da clara evidência da excitação dele era quase sobre-humano. Porém,
uma experiente dama da noite não ficaria chocada nem recusaria um beijo ao cliente. Embora esse
caminho não levasse exatamente para onde ela queria ir, não tinha outra saída.
Enchendo-se de coragem, Alaina ficou nas pontas dos pés, oferecendo os lábios e, à luz da lua, viu o
brilho nos olhos dele e o contorno nítido dos traços fortes do rosto. Uma sensação completamente
nova a envolveu, e por um momento tudo parou sob o fluxo da excitação que percorreu todo seu
corpo. Conscientemente, Alaina a dominou. Responderia rapidamente ao beijo e nada mais.
O ardor dos lábios macios e suaves que prenderam os seus inundou todo o corpo de Alaina. Ela
fechou os olhos, entregando-se ao abraço, ao gosto de conhaque daquela boca, à pressão do corpo
dele contra o seu, sentindo que estava sendo tratada como mulher e desejada por um homem forte e
cheio de vida. Atordoada, afastou-se um pouco, perguntando vagamente a si mesma se ia desmaiar.
No pequeno intervalo de silêncio, ela tentou controlar o violento tremor que a assaltou.
— Sabe realmente como prender uma mulher, capitão — murmurou ela. — Mas agora preciso ir.
Cole olhou para ela com a testa franzida.
— Não... outro?
Alaina ergueu os olhos, confusa, e então compreendeu. Corou furiosamente e disse, com um riso
provocante:
— É claro que não, capitão. Mas tenho outras obrigações, você sabe.
Cole a apertou contra o peito outra vez, impaciente. Sem outro lugar para pôr os braços, Alaina os
passou pelo pescoço dele.
— Mais um pouco — murmurou Cole, cobrindo com beijos quentes o pescoço dela —, então talvez
eu a deixe ir.
O idiota! Pensou ela. Durante todas aquelas semanas ele a atormentara
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e dominara, sem encontrar o menor traço de feminilidade. Pois bem. Ela daria à sua arrogância uma
amostra do que era realmente.
Quase com avidez, Alaina encostou o corpo no dele, sem compreender o efeito devastador desse ato
sobre o belo capitão. Os braços de Cole a apertaram e sua boca procurou a dela, exigente, invasora,
sensual. Com uma das mãos segurou a cabeça de Alaina, enquanto devorava com avidez os lábios
úmidos. Cole sentiu o seio firme sob a roupa fina contra seu peito e, embora ainda sob o efeito da
bebida, desejou possuir aquela mulher completamente.
Um turbilhão de fogo girou na mente de Alaina. Sentiu que seus braços e suas pernas perdiam toda
força. Ergueu um pouco a cabeça e Cole passou a língua lentamente nos lábios dela, depois penetrou
na boca, lenta e possessivamente. O cheiro do conhaque a invadiu e a realidade fugiu do seu alcance.
Não via motivo para lutar. Logo ele ficaria satisfeito, pensou ingenuamente, e depois podia passar o
resto da noite sossegado na cama. Alaina aconchegou o corpo nos braços dele e a mulher há tanto
tempo reprimida sentiu-se livre para gozar o abraço de um homem. Não qualquer homem, mas Cole
Latimer.
Cole aliviou a força do abraço, e Alaina teve de se encostar nele para não cair. Os lábios dele
acariciaram sua testa e beijaram ardentemente seu pescoço. De repente, Alaina percebeu que as mãos
de Cole estavam dentro do seu roupão, agora completamente aberto. A única coisa que os separava
era a camisola muito fina. As coxas dele esfregavam-se familiarmente nas suas e a mão desceu para as
nádegas macias.
Alaina livrou-se do encantamento. Abaixou o braço e o empurrou com o cotovelo. Virou para o
outro lado e encostando o ombro no peito de Cole, libertou as duas mãos para se defender. Num
instante a mão dele subiu para seu seio, acariciando a carne macia por cima da camisola, e ele
inclinou a cabeça para beijá-lo.
Com uma exclamação abafada, Alaina afastou-se, e ao mesmo tempo em que segurava as mãos
ávidas do capitão, encostou-as no peito dele, com pancadinhas leves, como dando ordem para que
ficassem ali.
— Capitão Latimer, seu entusiasmo me espanta. Para a cama, capitão, e tome outro drinque. Pode
ficar certo que voltarei correndo logo que puder. Mas agora, preciso ir.
Sorrindo, mas com a testa franzida, ele disse:
— Não tenho idéia do que precisa fazer, menina, mas estou certo
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de que pode esperar. Neste momento... — Alaina viu a determinação nos olhos dele — tenho de ter
você.
Os braços dele a envolveram e num instante estavam na cama. Alaina estremeceu violentamente
quando sua camisola foi levantada e sentiu o calor escaldante da masculinidade dele. Rapidamente ela
rolou para o lado e saltou da cama. Sua fuga foi impedida por um puxão forte, que a impediu de
respirar por um momento. Cole segurava a ponta do seu roupão. Desesperada, Alaina despiu uma
das mangas, pensando em tirar a outra e fugir. Mas Cole continuava a puxar, e ela não conseguia tirar
o braço, preso ao ombro pela pressão do tecido. Apavorada agora, ela se abaixou e firmou os pés no
chão. Cole estava deitado de costas e não tinha ponto de apoio para puxá-la para ele. Alaina puxou
freneticamente o roupão, tentando tirá-lo da mão dele, enquanto Cole procurava livrar o braço do
lençol.
— Capitão, por favor — pediu Alaina, procurando disfarçar o medo. — Teremos muito tempo mais
tarde. Deixe-me sair só por um momento. — Seu braço estava quase livre, e ela se animou. — Pode
ficar certo, meu senhor ianque — disse, carinhosamente. — Voltarei assim que minhas obrigações
permitirem.
O roupão deslizou do corpo dela. Estava livre! O braço dele se estendeu, segurando-a acima do
cotovelo, com uma força incrível para aquelas mãos finas e sempre tão bem lavadas. Alaina tentou
abrir os dedos dele sem resultado, e Cole a puxou para a cama, lentamente. Agora, sem o roupão,
Alaina estava deitada em cima dele, movendo o corpo tenso na tentativa de evitar a pressão daquela
espada incandescente, que parecia queimar sua carne através do tecido fino da camisola. Agora, os
lábios de Cole brincavam com a ponta do seu seio. O cordão da gola se abriu, expondo toda a glória
dos seios magníficos e quando ele os acariciou com a ponta da língua, agora sem o empecilho do
tecido da camisola, Alaina conteve a respiração. Um tremor de excitação percorreu seu corpo e toda
a força desapareceu. Erguendo a cabeça, Cole olhou nos olhos dela e sorriu.
— Minha senhora, vou possuí-la agora.
Alaina balançou a cabeça, numa negativa frenética. O medo misturou-se ao prazer inefável do
contato do corpo dele.
— Preciso ir — protestou, ofegante, e repetiu, agora com um soluço. — Preciso ir.
— Não, menina, quero você agora. Paguei por toda a noite e tenho direito.
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Embora sem conseguir nenhum movimento para preservar a própria modéstia, Alaina viu nas
palavras dele uma nova saída. Tentou abaixar a camisola, mas as mãos dele estavam no caminho,
acariciando sua barriga, passeando pelos quadris e coxas, num contato ousado e excitante.
— Mas essa é a questão — murmurou ela com urgência, sabendo que Cole não tinha dinheiro com
ele. — Você não pagou.
Cole franziu a testa e olhou para trás. Nem sinal de suas roupas. Se a soltasse agora, certamente ela
iria fugir. E ele a desejava desesperadamente. Tirou o cordão de ouro e o medalhão do pescoço e os
estendeu para Alaina.
— Isso vale mais de três vezes o seu preço. Será sua garantia.
— Não, eu não posso! — murmurou Alaina, mas ele passou o cordão pela cabeça dela. O calor do
medalhão queimou seu peito. — Por favor, capitão, eu imploro...
— Cole — murmurou ele, com os lábios muito perto dos dela.
— Por favor, capitão... eu não posso!
— Cole! — insistiu ele.
— Cole — murmurou ela, cheia de medo.
Ele sorriu e imediatamente eliminou a distância que os separava. Uma loucura cega tomou conta de
Alaina. Cole estava em cima dela e os olhos de Alaina se arregalaram ao sentir o calor do corpo dele.
Aquela ereção ardente a tocou, invadindo a privacidade da sua carne macia de mulher.
— Oh! — gemeu ela, com a voz embargada, com medo daquilo que forçava gentil, mas
insistentemente, a resistência do seu corpo. Alaina ergueu o corpo tenso para o peito largo e ardente
de Cole. — Cole, escute...
Uma dor lancinante explodiu em suas entranhas, e quando ele a penetrou teve uma sensação de
plenitude. Alaina apertou o rosto contra a base do pescoço dele, mordendo o lábio até sentir o gosto
de sangue, enquanto lágrimas de dor desciam por seu rosto. Então a boca ávida procurou seus lábios
e ele a beijou, longa e ternamente, até a dor começar a diminuir. Cole não se apressou, saboreando
cada momento de prazer, e durante aquela espera, um êxtase novo e estranho começou a crescer
dentro dela, uma sensação que Alaina não podia satisfazer ou negar. A espera foi como um impacto
nos seus sentidos. O calor pulsante dele a aquecia, e ela começou a responder aos beijos ardentes e
selvagens. Ela o abraçou e sua língua brincou timidamente com a
141
dele. Nem percebeu o momento exato em que ele começou a se mover sem nenhum esforço, com
perfeita naturalidade. Mas de repente ela parou de pensar! Arqueou o corpo contra o dele e
respondeu instintivamente à paixão devoradora com um ardor feroz. Cada movimento, agora forte e
intenso, a transportava a um novo plano de prazer, e cada plano era tão completamente repleto de
contentamento que Alaina tinha certeza de que não podia chegar mais alto. Mas continuava a subir—
e mais — e mais. Seu mundo libertou-se de todas as restrições e subiu para uma satisfação quase
insuportável. A respiração áspera e rouca de Cole ecoava as batidas do seu coração e o fervor
selvagem e perfeito os levava aos píncaros do prazer. Eram dois seres unidos num redemoinho de
paixão, mas separados do mundo, voando sem esforço com suas próprias asas. Ele gemeu alto, e
Alaina o beijou. Em algum lugar tinha ficado sua tímida incerteza da inocência, e ela era conduzida
agora pelas chamas ardentes do desejo. Lábios e corpos fundiram-se num calor que tocava o mais
profundo das suas almas e os deixou finalmente exaustos como brasas ao vento, devolvidas lenta e
suavemente para a terra.
Muito mais tarde, tudo voltou ao lugar. Cole, livre da tensão do corpo e da mente, exausto,
procurava se agarrar àqueles momentos, evitando que o sono o privasse deles. Mas, afinal vencido,
entregou-se, perdendo todo o contato com a realidade.
A mente de Alaina se recompôs, voltando das profundezas do universo, e ela percebeu que estava
aninhada no corpo forte e quente de Cole, com o braço dele sobre sua cintura e sua respiração
fazendo adejar as mechas crespas de cabelo na sua testa.
— Cole? — murmurou ela, não completamente acordada e então no milésimo seguinte de segundo,
Alaina MacGaren compreendeu o que acabava de fazer. Ela! Ela mesma! Aquela filha dileta da
Confederação acabava de dormir com um oficial ianque!
Um gemido de angústia escapou dos seus lábios antes que ela pudesse evitar. Com um movimento
brusco, tirou o braço dele de cima do seu corpo e, ajoelhando na cama, bateu com o punho fechado
no ombro de Cole, fazendo-o virar de costas. Mas tudo que conseguiu foi um resmungo incoerente.
Ele acabava de mergulhar no sono profundo que ela tanto esperara.
Soluçando furiosa, Alaina cobriu a frente do corpo com a camisola e apanhou o roupão. Na porta
virou-se e olhou através das lágrimas para o homem na cama, depois, chorando amargamente, saiu
do
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quarto, sem fechar completamente a porta. No seu quarto encontrou asilo e segurança. Deitou-se
sob as cobertas, enrodilhada, cobrindo o ouvido com o travesseiro. Ali, completamente exausta,
Alaina soluçou e muito antes do que poderia ter imaginado, a paz doce do sono a envolveu.
Roberta acordou ouvindo um grito abafado e foi até a porta, cheia ainda de sono. Nesse momento,
outra porta se abriu e o luar iluminou por um segundo o vulto de Alaina na frente do quarto de
hóspedes, e ela viu a prima correr chorando para o próprio quarto. Os soluços sentidos despertaram
a curiosidade da prima mais velha.
Roberta acendeu um lampião e foi até a porta deixada entreaberta pela prima. Levou a mão ao
pescoço quando viu o homem na cama. Não podia ver o rosto, mas o peito dele subia e descia com a
respiração regular do sono profundo. O quarto cheirava a conhaque, e Roberta viu a garrafa e o copo
sobre a mesa. Cautelosamente, ela chegou mais perto da cama e à luz da lua viu as manchas de
sangue no lençol.
Ora, ora, a coisinha à-toa dormiu com um homem! Roberta riu. Mas o riso foi substituído por uma
exclamação de horror quando reconheceu o homem na cama. Capitão Cole Latimer!
A prostituta! Uma fúria selvagem cresceu dentro dela. Ela me enganou e o tirou de mim! A cadela!
Ela dormiu com ele! E ele era meu! Meu!
Tudo o que Roberta queria agora era vingança! Queria cortar o rosto de Alaina com as unhas,
esbofeteá-la até suas faces ficarem em carne viva. Quase correu para o quarto de Alaina, para
arrancá-la da cama, mas as pequenas manchas de sangue a impediram de fazer isso. Roberta olhou
para elas e sua mente começou a arquitetar um plano. Podia ser sua chance de armar a rede para o
capitão. Se ele estava bêbado, como devia estar, para dormir com aquela garota insignificante,
certamente não ia lembrar de nada quando acordasse no dia seguinte. E se lembrasse?
Não importa, Roberta sorriu, maliciosa. Papai se encarrega de tudo.
Apagou o lampião e tirou a camisola, deixando-a cair no chão. Depois, aninhou-se contra o peito de
Cole. Ele não acordou, e os olhos de Roberta brilharam de satisfação. Alaina tinha resolvido todos os
seus problemas, até deixando as provas da perda da virgindade.
143
Capítulo Doze
UM BERRO raivoso rasgou a calma do sono de Cole. Assim que abriu os olhos vermelhos para a
fraca luz do quarto, punhos gordos abateram-se sobre seu rosto e sua cabeça. Completamente
atordoado e desorientado, ergueu os braços para se proteger, para evitar que a dor cegante abrisse
sua cabeça em duas. Além dos punhos, estava sendo agredido com palavrões e todas as pragas
conhecidas, tendo como fundo os gritos estridentes de mulher. Era como se estivessem massacrando
seus nervos expostos. Mas isso não era o fim da tortura. Os dedos do homem agarraram seu pescoço
e começaram a apertar.
— Papai! Não! — A voz da mulher era agora mais insistente, mais aguda, mais urgente. — Escute,
papai! Por favor!
De repente, Cole ficou farto de toda aquela bobagem. Ergueu o braço atirando para longe seu
assaltante. Angus, que não era abstêmio e tinha bebido bastante no comício, atravessou metade do
quarto cambaleando, antes de recuperar o equilíbrio. Seus olhos pareciam querer saltar das órbitas de
tanta raiva, mas, aos poucos recobrou parte da razão. Desistiu de matar o ianque com as próprias
mãos. Com todos os diabos, ia apanhar a arma!
Cole viu o homem sair correndo do quarto, depois recostou-se no travesseiro, apertando as têmporas
com as mãos, tentando aliviar a tremenda dor de cabeça. Passou os dedos cautelosamente na
saliência
144
dolorida sob o cabelo. Entre as pálpebras que pareciam de areia, seus olhos focalizaram Roberta só
com um acolchoado cobrindo sua nudez. Só depois de alguns momentos ele compreendeu o que
estava acontecendo.
Praguejando em voz baixa, Cole sentou-se na cama e olhou em volta. Imediatamente viu o lençol
manchado e sua mente protestou. Que diabo fizera?
Não teve tempo para encontrar uma explicação lógica, pois Angus Craighugh entrou com um
enorme revólver elt. O homem parou a um passo da cama e, segurando a arma com as mãos,
começou a lutar para puxar o cão.
— Pode começar a rezar! — urrou Angus, com a papada balançando. — Seu molestador de crianças!
— Espere um maldito momento! — rugiu Cole, começando a ficar furioso. Saiu da cama com o
lençol enrolado na cintura. Não fazia idéia de como aquilo acontecera, mas por nada do mundo ia ser
morto por um tiro deitado na cama. Não podia negar o que fizera naquela noite. O sangue no lençol
era prova suficiente, e ele lembrou da mulher quente e vibrante sob seu corpo. Mas aí a confusão
entrava em cena outra vez. Era difícil encaixar o corpo de Roberta na sua lembrança. Ela abaixou os
olhos escuros timidamente sob o olhar dele, e a evidência era arrasadora, até para o culpado.
— Angus, não! Não pode fazer isso! — implorou Leala.—Pense na reputação da nossa filha! Os
ianques vão espalhar a notícia antes do dia nascer. E além disso você será enforcado.
Roberta ajeitou o acolchoado, como procurando resguardar sua modéstia, e finalmente disse:
— Ele prometeu casar comigo, papai. E eu o amo.
Cole olhou rapidamente para ela, imaginando as cretinices que devia ter dito, mas a fúria de Angus
cresceu.
— Um ianque!
— Angus, acalme-se — advertiu Leala. — Lembre-se da sua dispepsia! Vai ficar uma semana de
cama.
— Um ianque! — gemeu Angus, balançando a arma precariamente.
— Eu o amo, papai, e quero casar com ele.
Os dois homens olharam para Roberta, atônitos. Mas o pai, que jamais havia negado coisa alguma à
filha antes, resolveu que o mínimo que poderia fazer por ela agora era o casamento apressado.
145
— Vista a calça — ordenou Angus, apontando o revólver para Cole. — Fique decente para o pastor.
Cole olhou em volta, completamente atordoado. Nem sinal da sua farda.
— Parece que não tenho os trajes apropriados. O vermelho do rosto de Angus ficou quase roxo.
— Onde você os escondeu?
— Pergunte à sua filha — sugeriu Cole, com calma.
Angus arregalou os olhos e quase se engasgou com os impropérios. Precisava se conter para não
voar para o ianque e fazê-lo em pedaços. Na verdade, o que o detinha era a incerteza de poder
realizar esse desejo. Olhou furioso para Roberta, que deu de ombros e gaguejou alguma coisa
ininteligível.
— A calça de Al está na despensa—disse Leala, quando o marido se voltou para ela, esperando uma
solução. — Anão ser isso, só temos as suas roupas.
— Nunca! — Não queria ver o contraste da sua roupa no corpo musculoso do ianque, certamente
muito larga na barriga e muito curta nos braços e nas pernas.
— Al não vai se importar — disse Leala docemente, com um olhar hesitante para o capitão. —
Quando Jedediah for avisar o pastor, pode passar na casa do capitão e trazer roupas mais decentes.
Al vai precisar da roupa de manhã.
— Senhora, se estou sem minha roupa, estou sem a chave do meu apartamento. — Cole não tinha
intenção de ser caridoso e nem acomodado.
— Bem — deixe isso comigo, mamãe — disse Roberta. — Por que você não vai apanhar a calça de
Al enquanto eu falo com Jedediah?
Intrigado, Cole viu as duas saírem do quarto. O cabelo de Roberta, longo e sedoso, caindo sobre os
ombros, também não combinava com suas lembranças. Recordou então o momento em que era
tirado do fundo de um poço escuro ou de um lago. Al... e o estábulo. Cole passou a mão na cabeça
dolorida. Não conseguia organizar as lembranças. Havia uma mulher no escuro e um corpo ávido
respondendo ao seu com um ardor que o levou a um prazer intenso e inesquecível. Por que Roberta
não parecia ter nada em comum com aquela mulher?
Leala voltou e estendeu a calça ainda úmida de Al. Cole apanhou a peça de roupa com desdém.
— Agora, vista-se — ordenou Angus.
146
Apesar da arma ameaçadora, da dor latejante na cabeça e da confusão de sua mente, Cole conseguiu
vestir a calça que, além de desconfortavelmente molhada, era curta demais e apertada nos quadris,
acentuando sua masculinidade.
— Isso serve—disse Angus, eliminando as dúvidas de Cole com um movimento da arma. — Posso
garantir, senhor, que não teremos muitas testemunhas deste ato, não se eu puder impedir.
Jedediah foi acordar o pastor e conseguiu chegar de volta a casa antes dele, embora tivesse passado
pelo apartamento do dr. Latimer. O pastor Lyman não primava por sua rapidez. Na verdade, era um
procrastinador e, se em vez de Jedediah, Angus tivesse ido chamá-lo, teria pedido algum tempo para
se organizar. Mas, como a mensagem foi transmitida por Jedediah, que parecia extremamente
apressado, o pastor Lyman achou melhor não demorar. Mesmo assim, a aurora tingia o céu ao leste
antes que ele tivesse chegado à casa dos Craig-hugh. Aessa altura, Angus estava para estourar de
impaciência, e Cole já se encontrava vestido com a farda da União, apanhada pelo velho criado. Era
o uniforme de gala, reservado para ocasiões especiais e inspeções. Evidentemente, ficava muito
melhor do que a calça molhada e apertada de Al, que ele deixara dependurada no trinco da porta do
quarto do menino.
A cerimônia prosseguiu com rígida formalidade para todos, menos para Roberta, que pairava em
êxtase no sétimo céu. Quando foram ditas as palavras finais, declarando-os casados, ela se atirou nos
braços de Cole, beijando ardentemente os lábios dele. Tendo alcançado seus fins, Roberta esqueceu
os meios e, cheia de felicidade, segurou o braço de Cole.
De repente ouviram uma batida pesada e sonora na porta. Dulcie, fungando com o avental no rosto,
foi atender e levou para a sala um sargento da cavalaria. O homem cumprimentou a todos com uma
breve inclinação da cabeça, depois, vendo Cole, empertigou-se, fazendo continência.
— Seu chapéu, sargento—lembrou Cole, secamente. Sua cabeça doía ainda, e ele precisava
urgentemente de uma boa noite de sono. — Há senhoras presentes.
O pescoço do sargento ficou rubro acima do lenço amarelo e ele tirou o chapéu.
— Desculpe, capitão — disse ele. — Temos ordem para revistar todas as casas. Simpatizantes dos
confederados, usando nossas fardas,
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invadiram o hospital esta manhã e ajudaram alguns rebeldes a fugir. Podem estar escondidos em
qualquer lugar, senhor. Cole ergueu as sobrancelhas.
— Alguém ferido?
— O sargento e o guarda. O chefe dos rebeldes estava vestido de capitão-médico e levaram só os
prisioneiros que podiam andar. Ao que parece, todos conseguiram escapar, senhor.
— Eu passei a noite aqui, sargento, e não vi nenhum rebelde. Entretanto, convém revistar o abrigo
das carruagens e os estábulos.
— Sim, senhor! — O sagento ficou parado, aparentemente constrangido.
— O que há? — perguntou Cole.
— Todos os soldados e oficiais foram chamados, senhor, e devem se apresentar imediatamente às
suas unidades.
— Faça o que tem de fazer, sargento, e quando estiver pronto, vou com você. Não tenho montaria.
O homem fez continência, deu meia-volta e saiu, com o sabre batendo na perna a cada passo.
— Acho que isso é demais! — exclamou Roberta. — Acabamos de nos casar e você já vai para
aquele hospital nojento!
Cole ergueu uma sobrancelha mas não disse nada do que estava pensando. Desculpou a raiva dela
por conta de desapontamento. Mas ela devia lembrar que estavam em guerra e que ele tinha de
obedecer ordens.
— Mamãe? — implorou Roberta, procurando ajuda.
— O capitão Latimer precisa ir, Roberta — disse Leala, com voz firme.
— Papai? — disse com voz chorosa.
Para Angus seria um alívio ver o ianque fora da sua casa e não estava em situação de oferecer
consolo à filha.
— O trabalho antes do prazer, minha querida — e mordeu a língua, vendo o olhar de reprovação do
pastor. Muito vermelho, ele pigarreou. — Deixe que o capitão cumpra seu dever.
— Ooooohh! — choramingou Roberta. — Estão todos contra mim. — Deu meia-volta e saiu
correndo da sala, e mesmo quando entrou no quarto seus soluços ainda podiam ser ouvidos.
O sono profundo de Alaina foi perturbado pelos soluços no corredor. Ouviu vozes masculinas e
movimento na frente da casa. Levantou e correu para a janela. Vários soldados ianques acabavam
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de desmontar no pátio de entrada e um sargento dava instruções indicando vários pontos da
propriedade. Seu primeiro pensamento foi que Cole havia descoberto sua verdadeira identidade e os
chamara.
Alguém levara suas roupas para o quarto e a calça estava dependurada no trinco da porta. Alaina
vestiu-se rapidamente e passou fuligem e terra no rosto e nos cabelos. Correu para a escada, mas
parou quando Dulcie, que passava no hall, olhou rapidamente para cima e com um gesto da cabeça
indicou a sala. Compreendendo o aviso, Alaina enfiou o chapéu na cabeça e desceu cautelosamente.
Encostou-se no batente da porta da sala, evitando olhar para Cole. Ele estava resplendente no
uniforme de gala e muito belo, apesar da testa franzida. Alaina ficou curiosa para saber como ele
conseguira a roupa.
— O que está acontecendo? — perguntou ela, inocentemente.
— Al! Você nunca toma banho? — perguntou Cole, irritado. Alaina fez um gesto de pouco caso.
— Podia pegar os parasitas que vocês têm, se tomasse.
— Olhe esses modos! — vociferou Angus, traindo sua impaciência. — Já tivemos muitos incidentes
esta manhã, e agora chega.
— Incidentes? — Alaina examinou cada rosto, parando no de Cole. — Que incidentes? Tudo que fiz
foi trazer o capitão para casa depois...
— Você fez o quê? — berrou Angus, levantando-se da cadeira. — Você! Você trouxe esse ianque
para cá? Para a minha casa? Você sabe o que fez?
Alaina deu de ombros, olhando rapidamente para Cole, cuja atitude rígida a deixou mais confusa
ainda. Preocupada, tentou explicar.
— Ele deve ter ficado bêbado e foi assaltado e roubado, depois atirado sem roupa no rio. Eu só
pesquei o homem. Não sabia para onde levá-lo, pois estava só de ceroulas e tudo o mais. — Olhou
para Cole e disse zangada: —Não sabe que algumas ruas não são seguras? Nem mesmo para um
todo-poderoso capitão ianque?
Rosnando furioso, Angus avançou ameaçadoramente para ela, mas Leala segurou o braço do marido.
— Tenha calma, Angus. O menino não fez mais do que nós mesmos teríamos feito.
— Uma ova! Um ianque? — grunhiu Angus. — Devia deixá-lo se afogar. — Acabava de descobrir a
causa de todas as suas desgraças. Olhou furioso para Alaina, que, desconcertada, esfregava a ponta
do
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pé no tapete. — Foi você quem trouxe esse ianque à nossa casa na primeira vez, também. — A raiva,
agora com um alvo, crescia dentro dele. — Se não fosse por você, seu vagabundo, esse casamento
não teria...
— Angus! — exclamou Leala, horrorizada com a conclusão do marido.
Resmungando furioso, Angus saiu da sala, pisando duro, e subiu para o quarto.
— Casamento? — Alaina estava mais confusa do que nunca. — Que casamento? Quem?... Você? —
Olhou para Cole, com uma sensação nauseante de horror. Perguntou, falando muito devagar: —
Você estava amarrado a alguma mulher?
— Não até esta manhã — resmungou Cole. Muito corada, Leala tentou explicar.
— O capitão Latimer e Roberta foram... bem... encontrados... juntos esta manhã. Angus achou que
era seu dever chamar o pastor Lyman.
— Deus santíssimo!
A xícara de café tilintou na mão do pastor. Aquele garoto era novo demais para usar esse tipo de
linguagem. Ia falar com a sra. Craighugh sobre a educação do menino, imediatamente.
Leala ouviu o som de pés correndo e olhou para a porta. Alaina tinha desaparecido.
— Alguma coisa errada com o garoto? Ele saiu tão de repente! O pastor Lyman levantou-se da
cadeira.
— Acho que ele fugiu muito nervoso. Parecia bastante embaraçado com o que aconteceu aqui a
noite passada.
Cole franziu a testa, sem entender nada. Podia jurar que tinha visto lágrimas nos olhos de Al.
— Talvez esteja na hora de alguém contar a Al os fatos da vida — murmurou ele. — O menino me
parece ingênuo demais.
O pastor não concordou.
— Pois não me parece, pela linguagem dele.
Leala não pretendia discordar de nenhum dos dois, mas procurou moderar o julgamento que
estavam fazendo de Alaina.
— Precisamos ser tolerantes — disse ela. — Ontem à noite o dr. Brooks esteve aqui para nos dizer
que... bem... o irmão mais velho de Al está na lista dos desaparecidos. Os pais de Al morreram, o
irmão
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do meio também, e agora o mais velho. Essa pobre criança tem sofrido demais.
Cole passou a mão na testa, tentando afastar a dor insistente. Agora compreendia as lágrimas de Al.
O menino tinha o direito de chorar, depois de perder tantas pessoas queridas.
Sentada no quarto, Alaina torturava mais ainda o velho chapéu, torcendo-o entre os dedos,
controlando-se para não gritar. Continha os soluços que faziam estremecer seu corpo. Os gemidos e
lamentos de Roberta atravessavam as paredes da casa, e Alaina queria poder externar o próprio
sofrimento. Mas duas mulheres gritando ao mesmo tempo certamente provocariam muitas
perguntas.
Sabia exatamente o que acontecera. Roberta jurara casar com Cole, e com um gemido de raiva,
Alaina compreendeu que preparara o prato para a prima.
Ouviu a voz de Cole na frente da casa e foi até a janela da varanda. O sol começava a aparecer sobre
as copas das árvores, e o céu era todo lilás e rosa. Seus olhos acompanharam os movimentos de
Cole. Depois de uma breve conversa com o sargento, ele montou no cavalo de um soldado e
afastou-se da casa dos Craighugh. Assim que ele saiu, Roberta parou de chorar, e logo o rangido do
estrado da cama indicou onde ela pretendia passar o resto do dia. Alaina ouviu os passos cansados de
Leala no corredor, a caminho do quarto, e a casa ficou em silêncio. A loja não ia ser aberta nesse dia.
151
Capítulo Treze
A MANHÃ estava ainda começando quando Alaina saiu do banho repousante que não fora
interrompido nem mesmo por Dulcie. A velha criada estava estranhamente calada e pensativa. Como
seu patrão, ela não gostava da idéia de um ianque na família. A casa estava silenciosa, e Alaina
compreendeu que os Craighugh estavam exaustos depois dos acontecimentos daquela madrugada.
Com um suspiro, Alaina estendeu na cama o vestido preto, tantas vezes já usado, apesar da sua
pouca idade, o chapéu também preto com véu, os sapatos pretos de saltos altos e o espartilho. Não
queria voltar ao hospital naquela manhã. Ia ao enterro de Bobby Johnson, já que não podia ir ao dos
seus entes queridos. Ao lado do túmulo dele prestaria um tributo silencioso ao jovem soldado e ao
seu irmão. Depois, como antes, guardaria a mágoa no fundo da alma, para continuar sua vida.
Pediu a Jedediah para aprontar a carruagem e um bom cavalo, pois certamente os Craighugh não iam
precisar dela antes do meio-dia. A uma certa distância do cemitério, mandou Jedediah esperar por
ela, e, descendo da carruagem, continuou a pé, com o rosto coberto pelo véu. Uma longa fila de
"fornos" de tijolos caiados de branco estava pronta à espera dos caixões. Ali, naqueles túmulos que
pareciam pequenos fornos de olaria, os mortos eram postos para o descanso final.
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Alaina parou na extremidade da fileira de túmulos com o coração disparado. Cole Latimer estava
entre os soldados que acompanhavam os caixões, e Alaina, olhando para o homem alto e belo, teve a
impressão de que ia desmaiar. Havia outros homens ao lado dele, vestidos do mesmo modo, mas
Alaina só via Cole, agora alguém que ela conhecia intimamente. Mas não tinha por que se preocupar,
pensou. Mesmo que ele a visse, jamais a associaria a Al, nem à mulher com quem fizera amor,
porque estava convencido de que era Roberta. Mas Alaina não conseguia dominar o tremor nas
pernas.
Mordendo o lábio e juntando toda a coragem que nem imaginava existir ainda, Alaina juntou-se às
outras mulheres também de preto, muitas com crianças pela mão. Queria passar o mais despercebida
possível. Havia uma longa fila de caixões simples de pinho, todos cobertos com a bandeira da União.
Para alguns soldados mortos era um lugar de descanso temporário, até a família reclamar seus
corpos, no fim da guerra.
O capelão terminou as orações para o primeiro caixão, os soldados, a uma ordem do capitão
Latimer, o puseram na pequena câmara e passaram para o seguinte. Dadas as circunstâncias daquela
manhã, Cole Latimer só conseguiu estar presente no enterro de Bobby, ofere-cendo-se para
comandar os soldados encarregados dos funerais, evidentemente uma tarefa nada agradável.
Cole estava ainda distante do caixão de Bobby Johnson quando ergueu os olhos e viu uma mulher
pequena e esbelta ao lado dele. Estava de luto, e depois de uma prece breve, ela pôs carinhosamente
um buquê de flores sobre a bandeira que cobria o caixão. Curioso, Cole viu a mulher se afastar para a
sombra de um enorme carvalho. Por mais que tentasse, Cole não conseguia imaginar um rosto ou
um nome para aquela mulher, embora a graça decidida dos seus movimentos parecesse familiar.
Quando estavam prontos para pôr o caixão do soldado Johnson na pequena câmara, Cole voltou-se,
pensando em trocar algumas palavras com a estranha. Mas o capelão, seguindo a direção dos seus
olhos e notando a figura graciosa da mulher, puxou-o pela manga para continuar a cerimônia.
— Vamos capitão — disse o homem. — O dever primeiro, o senhor sabe. Neste momento estes
homens merecem toda a nossa atenção. Terá muito tempo para dar os pêsames depois.
Quando o capelão puxou Cole para perto do caixão, Alaina deu
153
um suspiro de alívio. Sua roupa servia como disfarce a distância, mas não queria arriscar que Cole a
visse de perto.
A bandeira foi retirada e dobrada de acordo com a tradição militar. Cole pôs as flores sobre o caixão
de pinho, e os soldados o puseram no nicho. Cole pediu licença aos outros, mas quando passou
pelos homens, a mulher pequena e elegante já ia longe, andando apressadamente. Ele a seguiu, sem
saber bem por quê.
Alaina olhou para trás e seu coração disparou outra vez. Assim que passou pelo portão do cemitério,
ela ergueu o véu e começou a correr. Queria chegar na carruagem antes que Cole a alcançasse e tarde
demais viu o homenzinho de cabelos pretos na sua frente.
— Mon Dieu! — exclamou Jacques DuBonné, furioso, cambaleando com o impacto do encontrão.
Atordoada, Alaina levou a mão à testa. Foi então que Jacques notou a pequena figura vestida de
negro e a beleza encantadora do seu rosto. Repetiu Mon Dieu!, mas agora com sincera admiração,
examinando a bela mulher de alto a baixo, tão frágil e pequenina que o fazia parecer alto e forte.
— Mademoiselle! — Fez uma curvatura, com o chapéu na mão. — Permita que me apresente...
Só chegou até aí. Olhando ansiosamente para trás, Alaina viu que Cole se aproximava com passos
rápidos. Não tinha tempo para Jacques DuBonné. Passou por ele e virou a esquina. Chegou onde
estava a carruagem, subiu rapidamente dizendo.
— Depressa, Jedediah! Vamos embora! O capitão Latimer está atrás de mim!
Jedediah bateu as rédas nas costas do cavalo e gritou:
— S'imbora, mula! O ianque vem vindo!
Estavam entrando em outra rua quando Cole apareceu na esquina e viu apenas o vulto da mulher de
preto com o véu voando como uma bandeira atrás dela.
Intrigado, Cole voltou-se e viu Jacques DuBonné olhando para ele boquiaberto. Só depois de um
tempo o cajun recobrou a fala.
— Voltamos a nos encontrar, hein, doutor? — Ergueu o queixo, na direção em que a carruagem
tinha desaparecido. — Conhece la petite mademoiselle?
Cole ergueu a sobrancelha.
— O senhor a conhece? O francês riu.
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— Parece que concordamos pelo menos numa coisa, hein, mon-sieurl Ela é uma coisinha gostosa,
não?
— Suponho que já foi informado de que a sra. Hawthorne recebeu a escritura definitiva da
propriedade. — Cole ignorou deliberadamente a observação do homem e tirou um charuto do bolso,
olhando para o rosto muito corado do francês.—No banco, ninguém soube explicar o acontecido.
Um descuido, disseram eles. — Acendeu o fósforo com a ponta da unha, levou a chama ao charuto e
o acendeu. — Porém, com uma investigação mais detalhada, fiquei a par de uma coincidência muito
interessante. Fatos iguais a esse têm acontecido no banco, com todas as decisões favorecendo um tal
Jacques DuBonné, por falta de provas em contrário. Estranho, não acha? — Olhou fixamente para o
homenzinho. — Se a sra. Hawthorne não estivesse de posse daquele documento, estaria hoje sem
casa e o senhor teria ganhado a propriedade por um preço irrisório. — Cole ergueu os ombros
calmamente. — É claro que não tenho provas, mas posso dizer que o senhor teve sorte por
encontrar um amigo tão bom no banco.
Com um esgar zombeteiro, o francês disse:
— Como disse, monsieur, não tem provas.
Cole sorriu, o homem levou a mão à aba do chapéu e, dando meia-volta, foi embora.
Cole olhou para a esquina onde desaparecera a carruagem da possível viúva, depois voltou para o
cemitério. Por algum motivo, aquela mulher o interessava muito.
Quando não havia mais perigo de serem seguidos, Jedediah fez o cavalo diminuir a marcha, e Alaina
recostou-se no banco, fechando os olhos, tentando diminuir o ritmo do seu coração. Sabia que, fosse
porque fosse, sem dúvida tinha despertado a curiosidade de Cole. No futuro precisava ser mais
cautelosa quando saísse vestida de mulher.
— Para onde, agora, miz Alaina?
— Para o hospital, Jedediah. Se o capitão não estiver lá, talvez eu possa falar um momento com o dr.
Brooks.
Mas quando chegaram, as carroças do enterro estavam entrando nos estábulos, e Alaina viu Cole na
charrete com o capelão. Logo ele estaria no hospital, e ela não queria se arriscar a ser vista outra vez.
O dr. Brooks costumava almoçar em casa, e Alaina mandou Jedediah levá-la até a residência do velho
médico. Uma mulher negra carrancuda abriu a porta e levou Alaina ao escritório.
155
Logo depois do meio-dia, o dr. Brooks chegou em sua charrete e entrou em casa, parecendo
preocupado. Ele era muito dedicado aos soldados da sua enfermaria e estava satisfeito porque os
poucos que tinham fugido não iam passar o resto da guerra numa prisão federal. Mas outros assuntos
precisavam da sua atenção.
O dr. Brooks parou quando viu a jovem que o esperava. Um tanto hesitante, perguntou:
— Alaina?
A jovem desatou a fita sob o queixo e tirou o chapéu, balançando o cabelo curto e brilhante.
— Meu Deus, menina — riu o médico. — Você representa tão bem o papel de Al que às vezes é
difícil lembrar que é na verdade uma bela mulher.
Alaina jogou o chapéu numa cadeira e tirou as luvas. Havia pensado muito no que ia dizer.
— É muita bondade sua, dr. Brooks — disse, com delicadeza. — Mas ultimamente, até eu tenho
dificuldade. Esse disfarce está tomando conta de mim.
— Minha filha! Minha filha! — O dr. Brooks viu a angústia nos olhos enormes e no rosto delicado.
— Eu não sou mais uma criança! — Seus lábios tremiam. — Sou uma mulher! — Torceu as mãos
finas. — E desejo um homem para me tratar como mulher.
De repente o dr. Brooks compreendeu e a observou com mais atenção.
— O capitão Latimer, talvez? Ouvi dizer que ele casou com Roberta esta manhã.
Alaina ficou pensativa e triste. Foi até ajanela e ficou algum tempo em silêncio. Ergueu os ombros
estreitos com um suspiro entrecortado. Cruzou os braços e disse, em voz quase inaudível:
— O que vou fazer? — Não esperou a resposta. — Vejo Roberta e as outras mulheres com belos
vestidos e cabelos longos e sedosos. — Olhou para as mãos vermelhas, depois passou os dedos finos
pelo cabelo curto. — E eu tenho de cortar o meu e usar aquelas roupas andrajosas, sem direito de ter
o prazer de ser o que sou.
O médico pensava ainda numa resposta, quando a governanta entrou na sala trazendo na bandeja um
bule de chá, uma tigela com canjica, outra com verduras, mais galinha frita e pão de milho quente. O
aroma da comida despertou o apetite de Alaina, que não comia nada
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desde a véspera. Aceitando o prato das mãos da criada, Alaina por um momento esqueceu seus
problemas. Seu espírito jovem reagiu. Sentou-se na cadeira oferecida pelo médico e enquanto
comiam, contou tudo o que acontecera depois que saiu do consultório dele, na noite anterior, sem
mencionar seu envolvimento com Cole.
— O tio Angus me culpa por ter levado o capitão Latimer para casa. Acho que já não sou tão bem-
vinda para a família Craighugh. Preciso procurar outro emprego e outro lugar para morar. Tenho
algum dinheiro guardado, mas dificilmente poderei viver só com o que ganho no hospital. Vou ter de
pagar casa e comida e estou aqui para perguntar se o senhor sabe de algum emprego de que eu possa
gostar.
O dr. Brooks levantou-se e começou a andar pela sala, muito perturbado. Passou a mão na cabeça,
despenteando o cabelo branco e farto. Finalmente disse:
— Alaina, esta manhã tive de defender Al para convencê-los de que ele não teve nada a ver com a
fuga. Se você desaparecer agora, certamente farão uma investigação que poderá descobrir sua
verdadeira identidade. Isso seria difícil de explicar. — Apoiou a mão fechada na mesa e olhou para
ela. — Devo recomendar que guarde absoluto segredo a esse respeito. Estão oferecendo duzentos
dólares de recompensa para quem der informação sobre uma tal Alaina MacGaren.
Alaina arregalou os olhos.
— Ao que parece — continuou o médico —, os prisioneiros confederados tomaram um barco
fluvial que levava mais de cem mil dólares a bordo. Os seis ianques que o guardavam foram mortos e
os fugitivos do hospital obrigaram o capitão a desembarcá-los na parte alta do rio. O navio chegou
esta manhã e já estão organizando a perseguição.
— Mas porquê...
O dr. Brooks ergueu a mão, interrompendo-a.
— Havia uma mulher morena e pequena com cavalos à espera dos fugitivos, onde desembarcaram.
Ouviram um dos rebeldes chamá-la pelo nome: — Alaina MacGaren.
Alaina ficou atônita, paralisada. O dr. Brooks esperou um momento, para ela absorver o significado
do que acabava de dizer. Finalmente seus olhos se encontraram.
— Você não pode abandonar o disfarce. Se Alaina MacGaren for apanhada, eles a enforcarão, ou
pelo menos a farão passar muitos anos
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numa prisão ianque. Não existe esconderijo mais seguro do que a casa dos Craighugh, onde o garoto
Al está morando. Al deve voltar ao trabalho, do contrário, será interrogado. Se não for encontrado,
as coisas ficarão muito difíceis para Angus e Leala.
Alaina balançou a cabeça com veemência e fechou as mãos com força. Queria tanto encontrar uma
falha no raciocínio do médico e escapar daquele papel odioso, mas sabia que o dr. Brooks estava
certo.
A semana passou, e todos os soldados e oficiais federais continuaram de prontidão. Até a recém-
casada teve de passar as noites sem o novo marido. Roberta vociferava contra essa crueldade e
ridicularizava os bilhetes de pedido de desculpas de Cole. Era demais para ela, que choramingava, e
se isolava no quarto, para grande alívio de todos na casa.
Se Roberta exasperava-se com a ausência de Cole, Angus irritava-se com a presença de Alaina. A
cada dia que passava, a situação ficava mais perigosa para ela. Os soldados que haviam saído em
perseguição dos rebeldes voltaram com uma história que despertou a ira de todos. Todos os feridos
fugidos do hospital foram encontrados não muito longe do lugar do desembarque. Todos
assassinados com tiros nas costas e deixados onde morreram, os dezesseis. No meio da carnificina
havia partes da farda azul da União, entre elas a farda de um capitão-médico. A mulher, os cavalos, o
dinheiro e os homens que atraíram os feridos para fora do hospital não foram encontrados. A pista
se perdia no começo de um extenso pântano. O cavalo do capitão Latimer fora encontrado perto do
cais onde o barco fora tomado pelos fugitivos.
Os sulistas se revoltaram. Até uma semana atrás, Alaina MacGaren era considerada uma heroína, mas
agora a definiam como uma traidora cruel, e até mesmo como a prostituta do misterioso bando de
bandidos e piratas que assaltavam as lojas dos homens honestos, quer confederados, quer
federalistas.
A recompensa para quem capturasse os bandidos, oferecida fora da cidade, era agora de mil dólares
ianques, em ouro, e quanto aos cidadãos de Nova Orleans, prometiam as honras eternas de herói a
quem denunciasse e levasse Alaina MacGaren à justiça. A fazenda Briar Hill foi confiscada pelos
federais e posta à venda. Até ser vendida, ficaria cercada e a casa fechada com tábuas nas janelas e
nas
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portas, para evitar que o povo, revoltado contra Alaina MacGaren, a destruísse.
Nas esquinas, grupos de pessoas falavam em voz baixa e observavam, desconfiados, os que
passavam. Felizmente estavam à procura de uma bela mulher e não de um garoto sonolento num
cavalo velho, quando Alaina passava a caminho do hospital, entre a neblina da manhã. A tensão
pairava no ar, e todas as vozes eram de revolta e desprezo.
No hospital o clima era o mesmo e até os feridos ianques revoltavam-se contra a terrível carnificina.
Alaina acabava de deixar seus instrumentos de trabalho quando um cabo armado a intimou a
acompanhá-lo. Foi conduzida ao terceiro andar em passo acelerado e estava sem fôlego quando
parou na frente da porta guardada por dois soldados.
— Espere aqui — disse o cabo para o pequeno faxineiro. Então ele bateu na porta, que se abriu
apenas um pouco, e trocou algumas palavras com a pessoa do outro lado.
— Venha — disse para Al, abrindo completamente a porta. Alaina deixou escapar uma exclamação
abafada e o pânico nos seus olhos era real. Ela nunca tinha visto tantos oficiais, tanto azul e dourado
numa única sala. Cole estava na extremidade de uma mesa longa, com o rosto tenso e preocupado,
embora tivesse inclinado a cabeça para ela, num gesto encorajador. Ao lado dele estava o dr. Brooks,
muito pálido. Ele e Alaina carregavam o peso de um segredo que podia destruir a ambos, o capitão
Latimer e outros.
Alaina compreendeu que muita coisa dependia da sua atuação nos próximos momentos. Lembrou-se
da sra. Hawthorne e limpou o nariz na manga com uma fungadela. Quando ofereceram uma cadeira,
ela aparentemente tropeçou de tão assustada.
O chefe da equipe médica, general Mitchell, inclinou-se para a frente, na cabeceira da mesa e Alaina
olhou deslumbrada para as estrelas na farda dele.
— Fique calmo, menino — disse o general, bondosamente. — Isto não é um tribunal. É apenas uma
comissão de inquérito.
Alaina balançou a cabeça quase espasmodicamente e limpou o nariz outra vez, enquanto com a outra
mão coçava a orelha.
— Precisamos fazer algumas perguntas. O dr. Brooks nos informou da sua perda recente. Quero
apresentar meus sinceros pêsames.
A manga subiu para o nariz outra vez e os olhos assustados e muito abertos não desgrudavam das
estrelas douradas no ombro do general.
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— Ao que parece, você tirou o capitão Latimer do rio, na noite da fuga.
— Sim, senhor! — E então as palavras saíram numa torrente, com uma pressa ansiosa. — Ele estava
boiando numa árvore, lá perto da margem da estrada de ferro. Estava indo para o fundo quando os
galhos engancharam em algo. Quando levei ele para a terra, ele estava como nasceu, menos as
ceroulas compridas, é claro e...
— Mais devagar, menino — disse o general com a leve sugestão de um sorriso. — Gostaríamos de
saber toda a história. A que horas você encontrou o capitão no rio?
— Deve ter sido antes das onze — disse Alaina, pensativa, mordendo a ponta do dedo e revirando
os olhos para o teto. — Isso mesmo, aquele relógio velho estava batendo onze horas quando eu
cheguei com ele em casa. — Olhou outra vez para as estrelas douradas e acelerou: — O senhor
compreende, ele só de ceroula e tudo o mais, e como foi o capitão quem me arranjou o emprego e
tudo o mais, eu achei que não era bom atravessar a praça com ele, de ceroula e tudo o mais, quero
dizer. Então levei ele para casa comigo. Foi antes das onze. Umas dez e pouco. — Balançou a cabeça
confirmando a lógica do próprio cálculo e franziu os lábios.
— E o capitão Latimer passou toda a noite na casa dos Craig-hugh? — perguntou o general.
— Oh, sim senhor! O senhor compreende, senhor, aí é que está o problema. Ele passou a noite
com... bem... quero dizer... o tio Angus pegou a pistola e... bem... eu estava dormindo... no primeiro
pedaço, o senhor sabe! E... bem, o capitão levou uma pancada na cabeça e isso talvez... bem... assim,
atrapalhou as idéias dele... — Alaina girou o dedo indicador em volta da orelha e olhou de soslaio
para Cole, que estava com os cotovelos na mesa e a cabeça nas mãos, enquanto o dr. Brooks lutava
com um acesso de tosse.
A maioria dos oficiais presentes estudava atentamente o teto da sala.
— E... ora... bem, seja como for... ele teve que casar com minha prima, Roberta e, bem, sim, senhor,
posso dizer com certeza que ele passou a noite toda lá... eu acho... — Seu tom era de incerteza.
— Isso é tudo, Al. — O general arrumou os papéis que estavam na sua frente, sobre a mesa. —
Pode ir agora, e muito obrigado.
Ela levantou-se e murmurou:
— Não tem de que, senhor. -
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O cabo abriu a porta para ela, e só quando se viu sozinha na sala dos médicos os joelhos de Alaina se
dobraram. Ficou sentada, com o corpo todo tremendo, por algum tempo, tentando se controlar. Não
conseguiu completamente, mas estava apanhando o esfregão e a vassoura quando alguém entrou na
sala e, erguendo os olhos, ela viu Cole. Alaina largou os utensílios de limpeza e endireitou o corpo.
— Acho que arranjei uma encrenca para você.
— Não. — Cole olhou demoradamente para o menino e depois passou a mão na cabeça. — Eu já
tinha contado tudo que consegui lembrar. Eles só queriam uma confirmação.
— O quê?
— Você foi ótimo. Escute! Deixe essas coisas aí. Quero que faça uma coisa para mim. Não sei
quando vou poder ir à casa da sra. Hawthorne e — tirou um envelope do bolso da túnica — ela
pode precisar disto, embora eu saiba que o nosso amigo Jacques não vai mais incomodá-la.
Descobriram o homem responsável pelas negociatas e agora ele está desempregado. Pelo menos,
nenhum banco da redondeza o aceitará.—Olhou para Al e bateu com a mão no envelope. — Acha
que pode chegar lá sem se perder, ou coisa assim?
Alaina puxou a barra do casaco de algodão.
— Acho que o meti numa encrenca tremenda.
— Não, nada disso! — exclamou Cole. — Eu me meti numa encrenca. E fique longe do rio! Na
próxima vez eu talvez me atire na água sem ajuda de ninguém! — Caminhou para a porta e parou. —
E pode tirar folga o resto do dia.
Ele saiu, e Alaina não hesitou um momento. Pelo menos com a sra. Hawthorne podia lavar o rosto e
agir como um ser quase humano.
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Capítulo 14
AGORA, MAIS DO que nunca, Alaina sentia a pressão do disfarce. Seu nome estava em todas as
bocas e sofria com a crueldade da mentira que lançava a vergonha sobre o nome da sua família.
Alaina MacGaren, procurada pela União e pela Confederação. Os dois lados queriam vê-la
enforcada. A pena mais leve, se fosse apanhada, seria o desterro para a ilha Ship, ou o Forte Jackson.
Mas para esses lugares eram enviados os sulistas leais, e ela sofreria nas mãos deles, se pensassem que
tinha ajudado a assassinar os confederados fugidos do hospital.
Ela e os Craighugh estavam presos na ironia dos acontecimentos. Alaina não podia ir embora, tanto
para seu bem, quanto para o deles, e eles eram obrigados a aceitar sua presença. Afinal, eram
parentes, e sabiam da sua inocência. Mesmo assim, para Angus era impossível ficar muito tempo na
mesma sala que Alaina. Leala apenas balançava tristemente a cabeça, a única da família que
demonstrava alguma simpatia pela sobrinha. Leala não suportava o sofrimento da jovem. Mas ela
também temia que a presença de Alaina em sua casa pudesse prejudicar toda a sua família. Já
sofreram muito com a ocupação, e Leala não suportaria ter de dar mais do que já tinham dado. Para
os vizinhos, que sabiam do seu parentesco com Alaina MacGaren, a família censurava abertamente
os atos dessa mulher. Não podiam se
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arriscar a negar a culpa de Alaina. Se todos a julgavam uma renegada, eles também tinham de julgar.
Era a oitava noite que Cole passava no hospital e havia oito noites seguidas Roberta ia para o quarto
e chorava em altos brados, não permitindo que ninguém tivesse paz até ela adormecer.
Com um copo de leite na mão, Alaina atravessou o hall, pensativa, e passou pela porta da sala vazia.
Ainda não passava das oito da noite, mas Angus e Leala já tinham subido para o quarto, talvez com
esperança de esquecer as preocupações por algum tempo ou, com a porta fechada, diminuir a
intensidade dos lamentos de Roberta.
Alaina parou com o pé descalço no primeiro degrau da escada quando ouviu o ruído das patas de
cavalo na frente da casa. Espiou pela janela estreita ao lado da porta e viu a farda azul com as listras
amarelas nos dois lados da calça de um oficial ianque. Cole! Sua mente girou num turbilhão. Afinal
ele chegou!
Alaina olhou rapidamente para o espelho no hall. O garoto Al franziu o nariz para ela, com ar de
nojo e, para completar a imagem, Alaina levou o copo aos lábios, levantando-o até fazer um bigode
de leite no rostinho miúdo. Com uma careta, despenteou o cabelo, depois abriu a porta e encostou
no batente para ver o capitão desmontar e prender o cavalo no poste.
— Pensei que você havia abandonado a gente — comentou Al, atrevido. — E do jeito que Roberta
anda gritando, acho que ela também pensou.
Cole olhou rapidamente para ela, tirou a sela do cavalo e a pôs no ombro, sem uma palavra.
Alaina estava disposta a provocá-lo ao máximo.
— A gritaria já dura oito dias... noite e dia. — Deu de ombros. — Não vi você todos esses dias no
hospital, e para falar a verdade, você não apareceu nem uma vez. Acho que foi a algum lugar. Talvez
rio acima. Até Minnesota, talvez?
— Limpe essa boca — disse Cole, irritado, passando por ela e entrando no hall.
Alaina recuou e encostou-se na parede, olhando para ele, curiosa, quando Cole pôs a sela numa
cadeira.
— Não entendo por que voltou para toda essa gritaria. — Com a cabeça indicou o quarto de
Roberta. — Mas, para dizer a verdade, não sei como você conseguiu tudo aquilo depois que o deixei
na cama
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aquela noite. Estava mais bêbado do que um gambá velho. Quase que me afogou na água dos
cavalos, antes da gente entrar.
Cole olhou de soslaio para o menino despenteado, lembrando alguma coisa daquela noite.
— Pois me parece que foi você quem quis me afogar.
— Ah, ah, então você lembra! — Alaina riu como um moleque e deu alguns passos para o capitão
com os polegares enfiados no cinto de corda e o examinou de alto a baixo. — Não estava tão
elegante e orgulhoso naquela noite, capitão, não estava, mesmo. Na verdade, se bem me lembro,
parecia um idiota... para um serra-ossos ianque.
Alaina viu, com satisfação que acertara o alvo.
— Você não limpou a boca — lembrou ele, secamente. Alaina tamborilou nos quadris com as mãos.
,, — O que fico imaginando é se você não preferia ter ficado no rio, agora que está amarrado e tudo
o mais.
— Não diga bobagem — disse Cole.
Alaina percebeu o olhar preocupado, quase imperceptível, na direção do quarto de onde vinha a
choradeira.
— Pode ficar descansado — garantiu ela, com impertinência. — Robbie está quase terminando. Não
vai demorar muito.
Cole bateu nos bolsos, como se tivesse esquecido alguma coisa, e olhou em volta.
— Não está procurando uma desculpa para ir embora, está? Eu já disse, pode ficar descansado.
Cole olhou zangado para ela.
— Você nunca pára de falar?•
Al riu, satisfeito.
— Nervosinho, não é?
Cole abriu a boca para responder, mas antes que pudesse dizer uma palavra, a porta do quarto de
Roberta se abriu e ela apareceu. Lá de cima ela só podia ver Alaina.
— Pensei ter ouvido vozes...
Então ela viu Cole. Com um grito de alegria, despencou, correndo escada abaixo, sem se importar
com a camisola de seda transparente. Atirou-se nos braços dele, sufocando-o com beijos frenéticos.
— Oh, Cole! Meu querido! Estava tão preocupada com você! Magoada, Alaina desviou os olhos
daquela recepção exuberante, desejando estar a quilômetros dali, em qualquer lugar, desde que não
pudesse ver a cena.
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Cole olhou para as costas do garoto. Os pequenos ombros pareciam encolhidos e tímidos. O capitão
pensou que sabia a razão.
— Roberta, estamos embaraçando o garoto.
— Que garoto? — perguntou Roberta, com espanto verdadeiro, até encontrar os olhos de Alaina. —
Oh, ele! Ora, fiquei tão feliz quando vi você, Cole, que nem pensei nele. — Com falsa timidez, levou
a mão ao peito, procurando chamar a atenção de Cole para sua quase nudez. Passara os últimos días
atormentada pelo medo de que, por falta de consumação, o casamento pudesse ser anulado. Alaina
podia contar tudo a Cole. Afinal, aquela menina atrevida dormira com ele quando Cole estava
bêbado demais para saber o que estava fazendo. Não duvidava que a prima fizesse de tudo para
separá-los agora.
Mas, com a proximidade da consumação, olhou desafiadoramente para Alaina, saboreando a vitória.
Alaina desviou os olhos e enfiou as mãos nos bolsos, encabulada.
— Venha, querido — arrulhou Roberta, dando o braço para ele. — Você deve estar exausto.
— Preciso levar o cavalo para o estábulo.
— Bobagem! Al pode fazer isso.—Acenou para Alaina por cima do ombro. — Ele é muito bom
nisso.
Depois de uma noite de sono agitado, Alaina levantou-se na hora de costume e vestiu o disfarce.
Sem olhar para o espelho, passou a fuligem no rosto e nos braços. Não queria ver os olhos
vermelhos para não lembrar as lágrimas daquela noite. Covardemente, cobrira a cabeça com o
travesseiro, temendo ouvir algum som do quarto de Roberta, qualquer prova das atividades dos
recém-casados.
Desceu para a cozinha, arrastando os sapatos pesados. O aroma dos biscoitos quentes misturava-se
ao odor surpreendente, mas muito apreciado, do verdadeiro café. Ficou mais surpresa ainda quando
viu Cole sentado à mesa. Imaginara que ele ia dormir até mais tarde. Mas Cole estava vestido e
pronto para o trabalho. Essa foi sua primeira impressão, até chegar mais perto. Cole nem ergueu os
olhos quando ela entrou na cozinha e Alaina, sentando-se de frente para ele, notou a expressão
preocupada e distante dos olhos dele, fixos nas chamas na lareira, enquanto girava a colher na xícara
vazia. Ela lançou um olhar interrogativo para Dulcie, mas a criada apenas deu de ombros.
Evidentemente, Cole trouxera o café e ao que parecia precisava
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muito dele. Num gesto de delicadeza, Alaina apanhou o bule e derramou o líquido escuro na xícara.
Era a primeira vez que o via assim, absorto e pensativo. Mas o capitão foi bruscamente arrancado do
devaneio quando um movimento mais rápido da colher derramou o café escaldante no seu colo.
Com um grito, ele ficou de pé, esfregando a roupa furiosamente com o guardanapo. Alaina olhava
para ele, boquiaberta
— O que está querendo fazer, seu bobo! Me castrar? — gritou Cole. Ainda saía fumaça da lã da sua
calça, e ele estava praticamente dançando.
Num impulso de momento, Alaina apanhou um balde e jogou água fria na calça do capitão. Cole
levou quase um minuto para retomar o fôlego. Olhou furioso para Alaina, e Dulcie, disfarçando o
riso com a mão sobre a boca, saiu da cozinha. Era um dia especial aquele em que se podia encharcar
de água um ianque sem ser punido.
— Desculpe — disse Alaina, encolhendo-se na cadeira. — Eu não sabia que você ia fazer isso! Achei
que estava com cara de quem precisava de um pouco de café.
— Acho que não posso mais agüentar os seus favores. — Disse Cole, desabotoando a túnica.
— Está bem! — Alaina ficou furiosa com tanta ingratidão. — Da próxima vez, eu deixo você no rio.
— Acho que seria muito melhor para mim — resmungou Cole, e com uma careta puxou o tecido
molhado da calça para afastar a sensação desagradável. — Diabo! Você me queimou até os ossos.
.,; Alaina corou intensamente...
— Acho que preciso ir agora.,., -Cole ergueu a mão.
— Não vai escapar assim. Vá lá em cima e peça a Roberta os meus alforjes. Eu tenho algumas
pomadas para queimaduras.
— Mas ela deve estar dormindo! — Alaina não queria nem chegar perto daquele quarto. — E detesta
ser acordada.
Cole controlou-se para não dizer o que estava pensando. Depois da submissão inicial, Roberta
demonstrou uma incapacidade quase total para o prazer. Na verdade, parecia que tudo era
desagradável para ela. Não tinha nada daquela mulher excitante e embriagadora da noite fatal.
Cole franziu a testa, e Alaina saiu correndo para cumprir a ordem.
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Já o tinha enfurecido bastante por um dia. Se continuasse, as conseqüências poderiam ser terríveis.
Bateu timidamente na porta, e Roberta perguntou, com voz sono-lenta:
— Quem é?
— Sou eu, Al. O capitão quer os alforjes dele.
Roberta apareceu na porta com a fina camisola de seda. Entrecerrou os olhos e perguntou,
desconfiada:
— Por que ele mesmo não veio?
— Ele se queimou — explicou Alaina. Fez um gesto impaciente. — Ele quer os alforjes. Se quiser
ter a bondade de pegar eles para mim.
— Francamente, Al, precisa falar desse jeito quando estamos sozinhas? — censurou Roberta, sem
demonstrar nenhum interesse pela queimadura de Cole.
— Com um ianque em casa, não vou correr nenhum risco. Roberta sorriu com superioridade.
— Acho que me esqueci de agradecer, Laine, por trazê-lo para casa. Acho que me poupou muito
tempo e esforço.
Alaina ficou impassível.
— Será que os alforjes estão por aí?
Roberta entrou no quarto, e Alaina evitou olhar para a cama, enquanto a prima procurava os alforjes.
Quando os encontrou, voltou com eles para a porta.
— Você facilitou tanto as coisas para mim, Laine — disse ela—, que eu não resisti. E Cole jamais
perceberá a diferença. Para ter certeza disso, acho melhor avisar. Se pensa que pode contar para ele
sem que os ianques descubram quem você é, está me subestimando... Al.
—- Pode ficar descansada, Robbie — disse Alaina, com ironia. — Como também não quero que ele
saiba, será nosso profundo e eterno segredo.
— Então estamos entendidas. — Roberta ergueu as sobrancelhas interrogativamente. — E vai ficar
longe dele?
— Isso é difícil — respondeu Alaina e, dando meia-volta, desceu correndo a escada, dizendo:—Além
de trabalharmos no mesmo lugar, agora moramos na mesma casa.
As batidas dos seus pés nos degraus abafaram a resposta de Roberta. Quando Alaina chegou na
cozinha, Cole estava no banheiro
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e ela falou através da porta fechada, com mais vivacidade do que sentia.
— Peguei seus alforjes, ianque. Vou deixar aqui perto da porta. Agora tenho de correr antes que
aqueles barrigas azuis me descontem a hora.
Apanhou o chapéu e saiu rapidamente pela porta dos fundos, para não ouvir a resposta do capitão.
Quando, mais tarde, Cole entrou no saguão do hospital, Alaina abraçou o cabo do esfregão e disse
com um sorriso maroto:
— Está atrasado, ianque. O major Magruder andou perguntando onde você estava.
Cole olhou zangado para ela.
— Não tenho dúvida de que você explicou com o prazer e os detalhes de sempre.
— Pode apostar, ianque. — Al riu, satisfeito. — Acho que de agora em diante vão chamar você de
sr. Rabo Quente em pessoa.
Cole olhou para o teto, como à procura do auxílio divino para não perder a calma.
— Se eu pensar por algum tempo no que disse — resmungou ele —, talvez chegue à conclusão que
é uma espécie de piada.
— Não fui eu quem inventou. Foi você mesmo quando estava se derretendo todo com a lembrança
de Roberta.
— Eu não estava me derretendo com lembrança nenhuma — corrigiu Cole, secamente.
— Bem, pelo menos era o que parecia! — Acusou Al. — Sentado lá, mexendo a colher na xícara
vazia! O que mais eu poderia pensar?
— Eu tinha outras coisas para pensar, sem ser Roberta — disse Cole. — E não é da sua conta o que
eu estava pensando.
— Eu perguntei? Perguntei?
— E nem precisa. Vi a curiosidade nos seus olhos.
— O que viu foi só ódio, ianque.
— Se me odeia tanto — zombou Cole —, por que me tirou do rio?
— Só vi quem era depois que o tirei da água. Quase joguei você outra vez no rio. Agora estou
pensando que devia ter feito isso quando tive oportunidade.
Cole bufou impaciente e seguiu pelo corredor, pensando que Al jamais ia admitir qualquer bom
sentimento para com um ianque, mesmo que fosse capaz disso.
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Terminado o trabalho do dia e procurando um pretexto para não ir para a casa dos Craighugh,
Alaina levou Tar para a velha estrada do rio. Mas aparentemente não ia se livrar da companhia de
Cole, por mais que o evitasse. Estava quase chegando à casa da sra. Hawthorne quando um tropel de
cavalo afez virar na sela. Reconhecendo o animal e o cavaleiro, Alaina gemeu alto.
— Ianque! — exclamou ela, quando Cole se aproximou. — Será que você não tem casa? O que está
fazendo aqui?
— Esta é a primeira oportunidade que tenho de falar com a sra. Hawthorne. Alguma objeção? —
perguntou, com ironia.
— Eu vim para cá só porque pensei que você estava em casa com Roberta — disse Al. — Ela não
está esperando por você?
— Eu não disse a hora que ia voltar. — Cole deu de ombros. — E preciso tratar deste assunto.
Alaina levou o velho Tar para o poste de ferro onde amarravam os animais. Estava desapontada
porque esperava descansar do disfarce e ser ela mesma. Esses momentos eram cada vez mais
importantes para ela. A presença de Cole era inconveniente.
— Eu não me importaria se você estivesse um pouco mais ansioso para voltar para casa —
resmungou Al, desmontando. — Já vi mais entusiasmo num velho boi que meu pai tinha.
— Graças a você, não posso ser o marido amoroso durante alguns dias. E se não entende o que
estou dizendo... — Franziu a testa quando Alaina ergueu os olhos claros para ele. — Você quase me
inutilizou.
De cabeça baixa e com os ombros curvados para a frente, Alaina caminhou para a varanda da casa.
As coisas iam ser um pouco turbulentas na casa dos Craighugh por algum tempo e talvez essa noite
fosse prudente ficar na sombra protetora de Cole, caso Roberta estivesse esperando para falar com
ela. Em certas ocasiões, era melhor evitar encrencas do que se atirar de cabeça no meio delas.
Porém, a caminho de casa, Cole tocou no assunto que Alaina preferia evitar. Durante algum tempo,
ele ficou em silêncio, pensativo, procurando convencer seu cavalo a acertar o passo com o velho Tar.
Então de repente, disse:
— Al, tem certeza de que não me levou a outro lugar antes da casa dos Craighugh?
Era difícil responder casualmente, e ela perguntou, com voz rouca.
— Em que tipo de lugar você pensa que esteve?
Cole olhou atentamente para ela, procurando ver o rosto do
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menino no escuro, mas Alaina abaixou a aba do chapéu e virou para o outro lado.
— Quantos anos você tem, Al?
— Quantos você acha?
— Treze, no máximo... talvez.
— Treze serve — Alaina puxou outra vez a aba do chapéu. Às vezes, o escuro revelava mais do que
deveria.
— Sabe alguma coisa sobre casas... de má reputação?—perguntou Cole.
Alaina tossiu, engasgada.
— Talvez.
— Tenho a impressão de ter estado numa casa dessas — disse ele.
— Pode ficar descansado, ianque. Não esteve em nenhuma.
— Tem certeza?
— Claro. Tanta como estar sentada aqui no velho Tar. — Alaina deu de ombros. — A não ser que
fosse antes de cair no rio. Talvez você tenha ido lá primeiro e acabou sendo roubado por uma
daquelas mulheres.
Cole não encontrava consolo para seus pensamentos. Havia também o medalhão perdido, mas ele
não conseguia dar uma seqüência lógica às lembranças. Tudo não passava de um conjunto vago de
impressões.
Mais tarde, quando Alaina, no seu quarto, esperava que todos se retirassem para a noite, a porta se
abriu violentamente e Roberta entrou.
— Sua sonsinha — exclamou Roberta. — Você fez de propósito, não fez?
Alaina enfrentou as adagas do olhar de Roberta com um sorriso tranqüilo.
— Se está falando do que aconteceu esta manhã, Robbie, se fosse de propósito, eu teria feito um
trabalho muito melhor. Ter um ianque sob o mesmo teto me deixa um pouco nervosa. — Ergueu as
mãos abertas. — Não posso nem tomar banho antes de ele ir para a cama. E por falar nisso —
apanhou a camisola e o roupão limpos — acho melhor tomar meu banho agora que ele já está
deitado.
— Alaina! — explodiu Roberta. Estendeu a mão para deter a prima, mas parou vendo o brilho de
aço nos olhos dela.
— Diga o que quiser, Roberta. — Alaina sem perceber, imitou o
170
tom suave e ameaçador de Cole, olhando fixamente para a mão estendida da prima. — Mas jamais
me toque.
— Fique longe de Cole — vociferou Roberta, frustrada. — Está ouvindo?
— Como eu já disse — Alaina enfatizou a última palavra, secamente —, não vejo como isso é
possível agora.
Saiu do quarto, bateu a porta e desceu correndo a escada. No refúgio da despensa transformada em
banheiro, respirou aliviada. Roberta parecia disposta a consolidar mais ainda sua posição de esposa.
Toda a segurança de momentos atrás desapareceu, substituída pela incerteza e o desapontamento.
Uma mulher de classe jamais se deixaria envolver numa trama como aquela que estava vivendo e se
acontecesse, sem dúvida nunca permitiria que fosse tão longe. Mas o fato de Cole não perceber a
diferença entre as duas últimas mulheres com quem fizera amor feria seu orgulho e alimentava sua
raiva, mais ainda talvez do que o truque de Roberta.
Alaina despiu a roupa de Al e a amassou sob os pés. No espelho de corpo inteiro, há pouco levado
para a antiga despensa, viu o rosto sujo e o cabelo despenteado de Al e o corpo de uma jovem
mulher com roupa de baixo de criança. O longo cordão de ouro pendia cintilante do seu pescoço,
com o medalhão aconchegado entre os seios. Alaina o ergueu com dedos trêmulos e se aproximou
da luz para examiná-lo. De um lado, em relevo, havia um brasão, tendo como elemento principal
dois corvos com as asas abertas. Do outro lado, gravadas com letra rebuscada, estavam as palavras
PROPRIEDADE DE C. R. LATIMER.
O impacto a deixou momentaneamente atordoada, mas Alaina não podia tirar o cordão do pescoço
agora. Se foi Roberta quem apanhou a chave do apartamento de Cole, como Alaina tinha quase
certeza, não havia nenhum lugar seguro na casa para esconder o medalhão. Se o pior acontecesse e
ela estivesse grávida, seu filho ia precisar de um pai enquanto a mãe apodrecia na prisão. Cole
merecia saber que tinha um filho e com quem. O medalhão seria a prova da paternidade. Isso pelo
menos Alaina ia exigir, a certeza de que seu filho seria bem cuidado. Não pediria nada mais.
Domingo de manhã os Craighugh foram à igreja, como sempre, e embora Cole tivesse trabalhado até
de madrugada, Roberta insistiu
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para que ele os acompanhasse. Não queria deixá-lo sozinho em casa com a prima.
A ausência de Cole significava algum tempo de descanso para Alaina, tempo esse que foi
drasticamente reduzido pela chegada intempestiva e gritante de Roberta. Cole tentara preveni-la de
que ela seria esnobada pelos conhecidos por ter-se casado com um ianque, mas Roberta, ansiosa para
mostrar sua nova propriedade, o belo e garboso marido, não deu ouvidos a ele e o desprezo de todos
na igreja foi um golpe tremendo no seu orgulho.
— Nunca mais vou à igreja — disse ela, jogando o chapéu na mesa da cozinha.
— Ora, ora, Roberta — disse Leala, com um olhar hesitante para Cole, que calmamente acendia o
charuto no fogo da lareira.
— Vocês vão ver! Eles vão me pagar! Vou dar o maior e mais maravilhoso baile que esta cidade já
viu e não vou convidar nenhum deles! Nenhum!
Cole, com os olhos entrecerrados por causa da fumaça do charuto, disse:
— E quem vai convidar, minha querida?
— Ora... — Roberta pensou por um longo momento. Aparentemente, não encontrou muita gente.
— Ora, o general Banks e a mulher. — E com mais ênfase: — Vou convidar os ianques!
Leala, com uma exclamação abafada, sentiu que ia desmaiar e procurou a cadeira mais próxima,
abanando-se freneticamente. Dulcie, que estava no fogão, voltou-se com um olhar ameaçador. Por
sorte, Angus estava ainda no abrigo das carruagens.
Cole examinou a ponta do charuto.
,- —Isso ia impressionar todo mundo.
Roberta não percebeu o sarcasmo e sorriu satisfeita.
— É claro.
— Porque esse barulho todo? — perguntou Al da porta.
— Não interessa! — disse Roberta, zangada. Alaina deu de ombros e entrou na cozinha.
— Achei que não era mesmo da minha conta.
— Hum — rosnou Dulcie. — Miz Roberta está com a idéia maluca de convidar um bando de
ianques para uma festa.
— O quê! — Alaina esqueceu a voz áspera de Al, de tão espantada.
Cole olhou para ela intrigado, e Alaina rapidamente apanhou uma
172
xícara de café. Queimou a língua com o primeiro gole e com uma careta bateu a xícara no pires.
Olhando para os olhos cizentos do garoto, Cole ergueu o charuto numa saudação silenciosa.
— Cole! Jogue essa coisa no fogo — ordenou Roberta, quando percebeu o gesto do marido para
Alaina. — Me dá náuseas!
— Náusea? — perguntou Angus, entrando na cozinha e olhando para a filha com desgosto. — Será
que você já está... grávida?
O queixo de Roberta caiu de surpresa, e Alaina apertou com força a asa da xícara. Não estava
preocupada com a condição de Roberta, mas com a sua. Olhou para Cole que sorria divertido. Ele
não ia achar tão engraçado, pensou Alaina, se visse a barriga de Al crescer a cada dia!
— Papai, você está sendo indelicado — censurou Roberta. Viu Alaina caminhando para a porta e
disse, fingindo preocupação: — Al, você está cinzento. Não vai me dizer que também está enjoado.
— Estou — disse Al —, mas por causa da sua idéia de convidar todos aqueles ianques.
— Que ianques? — quis saber Angus, facilitando a fuga de Alaina, olhando agressivamente para a
filha, que já não parecia tão certa da idéia da festa.
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Capítulo Quinze
A PRESENÇA DE COLE trouxe para os Craighugh uma rica abundância há muito esquecida por todos,
exceto talvez por Roberta. Dulcie não precisava mais economizar certas coisas como sal e açúcar.
Até a fúria de Angus se abrandou com o novo suprimento de conhaque na sua adega. Cole comprou
um carro de quatro rodas de uma antiga família da cidade e alguns bons cavalos, e no dia seguinte
uma grande quantidade de ração chegou ao estábulo. Cole demonstrou maior prodigalidade do que
Angus nos melhores tempos. O pêlo do cavalo dos Craighugh luzia e o velho Tar já não se parecia
tanto com uma mula.
Agora Roberta queixava-se porque tinha dinheiro para comprar, mas não existiam mais belos
vestidos à venda. Mesmo assim, quase todos os dias ela saía para fazer compras e voltava pelo menos
com um par de sapatos elegantes que, assim que Alaina chegava em casa, era calçado e exibido.
Durante suas noites inquietas, Alaina descobriu que Cole também sofria de insônia. Enquanto
Roberta dormia tranqüilamente, ele andava pela casa, como se procurasse algo mais do que o
conforto do leito conjugal. Na verdade, Cole estava extremamente preocupado. Roberta aceitava
suas carícias com um mínimo de resposta, como se estivesse com pressa de acabar o mais depressa
possível. Sem nem sinal do ardor
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e do entusiasmo que ele lembrava. Até mesmo as demonstrações de paixão de antes do casamento
tinham desaparecido por completo.
— Meu Deus, Cole — disse Roberta, certa noite, quando Cole passou a língua possessivamente nos
lábios dela —, você não pensa que uma dama pode beijar desse jeito, pensa? É revoltante!
Cole franziu a testa.
— Mas uma vez você gostou. Roberta ficou ofendida.
— Nunca!
Cole passou a mão na nuca, massageando os músculos tensos. Não se sentia à vontade com Roberta,
nem para uma conversa comum.
— O que aconteceu com o medalhão que lhe dei? Sinto falta dele.
— Medalhão? — perguntou Roberta, sem entender. Cole abriu a janela.
— Você sabe, aquele que dei a você naquela noite — disse ele, irritado com a impossibilidade de
lembrar claramente. Partes separadas daquele meio sonho começavam a voltar à sua memória, mas
sem uma seqüência e nunca poderia encontrar uma explicação para o que lembrava. Ao que parece,
colocara o cordão no pescoço dela porque estava sem dinheiro. Mas isso não tinha lógica.
Dificilmente poderia dizer que Roberta se venderia por um cordão de ouro, por mais que ela
gostasse de gastar o dinheiro dele agora. — Pelo menos, tenho a impressão de ter dado a você.
— Com certeza você o perdeu. — Roberta deu de ombros. — Se estiver aqui em casa, pode estar
certo de que vou encontrá-lo.
No dia seguinte, quando chegou do hospital, Alaina encontrou seu quarto na maior desordem. Não
havia um canto que não tivesse sido revistado. Os lençóis e o colchão estavam amontoados no chão.
Alaina olhou atônita para o caos.
"Ela podia pelo menos ser mais cuidadosa", sibilou Alaina, sabendo exatamente a quem se referia.
Furiosa, começou a arrumar a desordem quando ouviu os passos de Cole no corredor. Antes que
pudesse fazer qualquer movimento, ele passou pela porta aberta. Um longo silêncio acompanhou a
parada de Cole no corredor. Ele voltou e olhou para dentro com espanto e incredulidade.
— Al! Que desordem horrível! Devia se envergonhar. Alaina fechou os olhos, frustrada, dominando
a vontade de gritar, dizendo que ele era mais do que cego e mais do que burro, especialmente
naquele momento.
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— Só porque você traz todas essa rações do exército para encher nossas barrigas não tem direito de
mandar nesta casa! Eu faço o que bem entendo no meu quarto. Quando tenho vontade, arrumo.
Não admito que um barriga azul com botões dourados fique me espiando toda hora! Agora, dê o
fora daqui!
Ela bateu a porta na cara dele e parou, tremendo, ouvindo os passos, que se afastavam. Com dedos
trêmulos, segurou o medalhão entre os seios. Era a única coisa que Roberta podia estar procurando.
Isso significava que Cole estava começando a lembrar mais daquela noite. Com o tempo, ele podia
lembrar tudo, e o que ia acontecer então? E o que ia acontecer com seu filho, se realmente estivesse
grávida?
A tensão entre Alaina e o tio diminuiu um pouco, talvez em parte porque ela passava a maior parte
do tempo no hospital ou na casa da sra. Hawthorne. Nesses lugares, pelo menos ela podia escapar
dos olhares ferinos e das insinuações aparentemente inocentes de Roberta. Mas a vida na casa dos
Craighugh nada tinha de tranqüila. Depois de algumas semanas de duvidosa felicidade conjugal, eram
cada vez mais freqüentes as discussões entre Roberta e Cole. Depois de conseguir um belo e luxuoso
guarda-roupa, Roberta queria agora exibir os novos vestidos e adereços nas festas e bailes dados
pelos federais. Angus, com determinada obstinação sulista, recusava abrir sua casa para os ianques,
aumentando a frustração da filha.
Todos diziam que as mulheres dos oficiais, entre elas a do general Banks, vestiam-se luxuosamente, e
Roberta queria impressioná-las com a própria opulência. Estava farta dos olhares de censura das
sulistas. Além disso, não era nada interessante mostrar seus novos vestidos a viúvas vestidas de preto
ou a mulheres cujos maridos estavam lutando em algum lugar distante. Se ela pudesse comparecer a
pelo menos uma daquelas festas importantes, tinha certeza de que seria considerada a mulher mais
bem vestida de Nova Orleans. E comparecer acompanhada por um belo oficial federal seria o
máximo da glória. O problema era que Cole, por sua profissão, não dispunha de muito tempo livre, e
Roberta tinha de se contentar com um mínimo de compromissos sociais sem importância.
Em vez de ficar em casa, como fazia antes, esperava levar uma vida movimentada e alegre. Mas logo
compreendeu que, embora Cole fosse generoso com o dinheiro, seu tempo era cuidadosamente
racionado. O objetivo de Roberta agora era exigir mais desse tempo para
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ela, uma vez que o marido parecia dar mais valor a ele do que ao dinheiro. Quando Cole não chegava
na hora combinada, Roberta emburrava ou tinha crises nervosas. Na verdade, se Cole não
continuasse a agir como se acreditasse que Al era apenas um garoto de cara suja, que precisava de
disciplina, Roberta teria acusado Alaina de tentar tirá-lo dela, prendendo-o no hospital.
Foi marcada a data para a venda de Briar Hill pelos federais, e Alaina começou a ficar inquieta. Jurou
para si mesma que, de algum modo, compraria novamente sua casa, mas com o que ganhava isso era
impossível. Mais uma vez precisava vestir suas roupas de viúva. Primeiro, porém, tinha de convencer
Cole a lhe dar um dia de folga.
Alaina começou a se vestir com certa dificuldade, porque a camisa estava um pouco apertada.
Felizmente estava livre da preocupação de estar grávida, mas cada vez era mais difícil disfarçar o
crescimento natural dos seios. Nessa manhã a tarefa parecia mais complicada porque estava com
pressa. Queria falar com Cole antes de ele sair de casa.
Cole era sempre o primeiro a se levantar, só perdendo para Dulcie. Logo depois Alaina acordava, e
em geral os dois já haviam saído quando o resto da família descia para o café. Roberta era sempre a
última e sempre reclamava que os outros tinham acabado com a melhor comida que seu marido
trazia para casa. Na verdade, quando viu Dulcie servindo-se da despensa agora farta, como se a
comida pertencesse a todos, Roberta reclamou. Mas Cole disse com firmeza que era realmente para
todos, e ela cedeu, com relutância.
Alaina entrou na cozinha, com os seios devidamente apertados sob a camisa e arrastando os sapatos
no chão. Cole estava fazendo a farta refeição da manhã, preparada por Dulcie para ele. Depois do
capitão ter afirmado que tudo que trazia era para uso de todos da casa, Dulcie começou a
reconsiderar sua opinião a respeito dos ianques, e agora admitia que este tinha algumas qualidades.
Embora ainda bastante reservada com ele, o silêncio que reinava na cozinha quando Alaina chegou
falava claramente de respeito mútuo, concedido relutantemente por Dulcie.
Alaina sentou-se na caixa de lenha ao lado da lareira, dando bom dia para Dulcie. Depois de algum
tempo, Cole ergueu os olhos e pôs o garfo no prato quando viu que Al o observava com expressão
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estranha. Dulcie olhou de um para o outro, tentando adivinhar qual era o problema.
— Está pensando em alguma coisa?—perguntou Cole, e esperou curioso a resposta.
Alaina apenas deu de ombros. Depois, virou uma cadeira ao contrário, de frente para ele, montou no
assento e apoiou o queixo nos braços cruzados sobre o espaldar, de modo que só o nariz e os olhos
brilhantes apareciam entre a manga do casaco e o cabelo despenteado e sujo. Só então respondeu,
com a voz abafada pelo braço.
— Meu trabalho está todo em dia e por isso eu queria saber se posso ter folga hoje.
Cole olhou para ela com a testa franzida.
— O que você tem de fazer que é tão importante? — Levantou a mão, antes de ouvir a resposta. —
Não me diga. Eu sei! Vai tomar um banho e precisa de um dia inteiro para tirar toda essa sujeira.
Os ombros de Dulcie estremeceram com um riso abafado, mas ela voltou rapidamente ao trabalho,
quando Alaina franziu a testa ameaçadoramente. Os olhos acinzentados entrecerraram-se e ficaram
mais escuros. A jovem vestida de menino fungou e esfregou a manga no nariz.
— Tenho de fazer umas coisas. — Olhou para as vigas do teto para não ver a expressão de Cole. —
Preciso de sapatos. Guardei algum dinheiro e tenho de comprar outras coisas. Tenho de visitar um
ou dois amigos. Afinal, nunca tive um dia de folga desde que cheguei aqui.
— Sapatos novos! — Cole recostou-se na cadeira, atônito. — Roupa nova! Um esfregão e sabonete,
talvez? Espere, deixe-me ver se está doente. — Estendeu a mão para a testa de Alaina.
— Não toque em mim, barriga azul — disse ela, evitando a mão dele como se fosse um ferro em
brasa. — Não estou doente. Só não vou trabalhar hoje, isso é tudo.
— Acho que merece. — Cole levantou-se. —Preciso ir.—Tirou as luvas do cinto e colocou-as,
dirigindo-se para a porta dos fundos. Então parou e olhou para trás. — Se por acaso você tomar um
banho, passe pelo hospital antes de se sujar outra vez. Eu gostaria de ver como você é quando está
limpo.
Abaixou a cabeça para passar na porta e saiu, sem ouvir a resposta. O tom de voz bastava para saber
que não era um elogio.
O jovem funcionário do banco, completamente absorto no que escrevia no grande livro-caixa, levou
algum tempo para perceber que o
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ruído de saltos altos no chão de mármore parara na frente da sua mesa. Levantou a caneta do livro e
ergueu os olhos atrás dos óculos. Respirou fundo quando viu a mulher esbelta e bem-feita, com a
perfeição da qual os homens falam sempre, mas raramente vêem. A roupa era muito comum no sul,
a da viúva ainda de luto, o vestido cinza-escuro ou preto. O que podia ver do rosto e dos olhos
grandes com pestanas espessas o fez desejar que ela erguesse o fino véu negro para confirmar que a
beleza do rosto combinava com a do corpo, ou até mesmo a excedia.
Imediatamente sua atitude passou do aborrecimento pela intrusão para a mais amável boa vontade.
— Posso ajudá-la, senhora?
— Senhor, fui informada que pode.—A voz macia, suave e fluida provocou arrepios na espinha do
jovem.
— É claro, senhora.—Levantou-se, aproximou uma cadeira para ela e sentou-se outra vez. — E o
que posso fazer pela senhora esta manhã?
Alaina ergueu o véu cuidadosamente para que ele visse sua expressão de desamparo. Precisava ter
muito cuidado para não revelar sua verdadeira identidade. O homem esqueceu todos os assuntos
importantes quando olhou para aqueles olhos claros e profundos.
— Meu pai morreu, senhor e me deixou uma pequena herança.
— Alaina exagerou o modo de falar arrastado do sul. — Estou pensando em me mudar de Nova
Orleans, talvez para outro distrito próximo, talvez na parte mais alta do rio. Queria saber se existe
alguma propriedade à venda que sirva para uma viúva de posses limitadas. Preciso ter cuidado com
meu dinheiro, pois é o último que me resta. O senhor compreende, não posso comprar nada muito
caro. — Sorriu.
— Agora, será que o senhor sabe de alguma propriedade, digamos ao norte daqui, que esteja à
venda? Ouvi falar de uma fazenda abandonada, nas proximidades de Alexandria. Parece que fica na
margem de um rio. Eu adoro rios, e o senhor? Qualquer rio.
— Oh, sim... sim é claro, senhora. — Ele balançou a cabeça afirmativamente. — Agora, deixe-me
ver — Examinou vários papéis que estavam sobre a mesa. — Há uma propriedade que está à venda
há pouco tempo, mas a senhora não ia querer.
— Meu Deus, senhor, por quê? — Alaina bateu as pestanas, parecendo inocentemente confusa. —
Alguma coisa errada com a propriedade?
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— Ora, não! Mas pertenceu à família daquela mulher renegada, Alaina MacGaren.
O coração de Alaina disparou e teve de esperar um momento para poder falar com calma.
— Gostaria de saber por quanto estão vendendo essa fazenda. É muito cara?
— Oh, na verdade não, senhora — o homem riu. Aquela coisinha jovem e bonita podia pedir
qualquer coisa a ele. Ela não devia ter mais de vinte anos, e nesses tempos difíceis uma mulher
precisava da proteção de um homem forte. — A propriedade vai ser vendida em leilão pelos ianques
e o mínimo que estão pedindo é apenas cinco mil dólares. Bem, dólares ianques.
Alaina engoliu em seco e suas esperanças se transformaram em desespero. Só cinco mil dólares da
União! Considerando seu salário no hospital, ela talvez conseguisse comprar o poste de amarrar
cavalos na frente da casa.
— Esta propriedade está sendo vendida por meio de lances secretos e a data do leilão é, deixe-me
ver... abril... dia 12 de abril, senhora. As propostas serão afixadas em todos os bancos do território
ocupado pela União nesta área.
— Meu Deus. — Alaina deixou transparecer seu desapontamento. — Acho que não tenho tanto
dinheiro. Será que tem alguma coisa por um preço menor?
Foi a vez do homem ficar desapontado.
— Não, senhora, nada. O resto ainda vai ser vendido em leilão, e a senhora terá de arriscar.
— Preciso conversar primeiro com meu tio—murmurou Alaina, levantando-se da cadeira com as
pernas fracas e um pequeno sorriso. — Muito obrigada por sua atenção, senhor.
Com um aperto no coração, Alaina afastou-se da mesa do homem. A quantia estava tão acima das
suas possibilidades que parecia um sonho. Na verdade, a única pessoa que conhecia que talvez
pudesse dispor de tanto dinheiro era Cole Latimer, e Alaina não tinha a mínima idéia de como podia
falar no assunto com ele.
Ansiosa para ficar sozinha e pensar, quando saiu do banco Alaina só viu o homem quando ele parou
na frente dela, impedindo sua passagem. Ergueu os olhos surpresa e viu os olhos negros e brilhantes
de Jacques DuBonné.
— Mademoiselle! — disse ele, com uma grande curvatura e um
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sorriso malicioso no rosto moreno. Finalmente encontrara a jovem viúva que estava procurando. —
Encontramo-nos outra vez!
Rapidamente, Alaina abaixou o véu e deu um passo para o lado, mas o homem fez o mesmo,
continuando a impedir sua passagem.
— Peço perdão, mademoiselle. — Ergueu as mãos abertas. — Não vou deixar que escape outra vez.
Depois daquele primeiro encontro não vi nem sinal da senhora. Era como se tivesse sumido da face
da terra.
Alaina olhou friamente para o homem.
— Não posso imaginar por que estava à minha procura, senhor, mas me parece que perdeu seu
tempo. Eu não o conheço e não pretendo modificar essa situação. Agora, se me deixar passar...
— Ma chérie! — disse Jacques rapidamente.—Não percebe que estou apaixonado pela senhora?
Agora que a encontrei outra vez, não permitirei que vá embora sem a promessa da sua companhia.
Talvez esta noite...
— Não seja ridículo! Não vê que sou viúva? Seu convite é impróprio, senhor, e se não me deixar
passar, pode estar certo de que vou gritar.
A ousadia do homenzinho começava a irritá-la. Alaina tentou passar por ele, mas Jacques a segurou
pelo braço.
— Este é um lugar muito público para tratar de assuntos delicados, ma chérie. Minha carruagem e
meu cocheiro estão no outro lado da rua. Posso levá-la aonde quiser e poderemos conversar com um
pouco de privacidade — disse ele.
Jacques ergueu a mão fazendo sinal para o cocheiro negro do elegante landau, que imediatamente
bateu com as rédeas nas costas do cavalo e começou a se aproximar.
— É muita presunção sua, senhor. Não concedo minha companhia a qualquer estranho. — Alaina já
estava saturada do homem e queria ir embora. Várias pessoas pararam para assistir à cena e se isso
parecia não perturbar Jacques, certamente perturbava Alaina. Puxou o braço, livrando-o da mão do
homem e com um olhar gelado e furioso que pareceu perfurar o véu disse: — Deixe-me passar.
— Ora, ma petite. Não seja difícil — riu ele, despreocupado, ignorando os protestos de Alaina.
Entre as várias mulheres que conquistara, muitas cediam rapidamente por algumas moedas e como
Jacques nunca tivera oportunidade de conhecer uma senhora honesta, não tinha idéia de como um
cavalheiro tratava uma dama. Estava
181
acostumado a usar as mulheres para seus próprios fins e quando cansava, as dispensava. Essa viúva
despertava seu interesse, e Jacques não pretendia se privar do prazer. Passou o braço pela cintura fina
de Alaina e começou a arrastá-la para a carruagem. — Vou levá-la para um passeio na minha
carruagem e depois podemos... Aaaiii!
O grito explodiu da sua garganta quando o salto fino e elegante acertou com força o peito do seu pé.
Ele afastou o pé rapidamente e segurou o braço de Alaina outra vez, mas por pouco tempo. Jacques
cambaleou para trás com o impacto da violenta bofetada. Nunca podia imaginar tanta força numa
mulher tão pequena. Mas agora chega, pensou ele. A raiva o cegou. Nenhuma prostituta podia abusar
de Jacques DuBonné! Recuperando o equilíbrio, avançou para ela, com intenção de retribuir a
bofetada.
Então, com uma exclamação de surpresa, o francês sentiu-se agarrado pela nuca e erguido do chão
com tamanha violência que o chapéu voou da sua cabeça. O homenzinho levou a mão ao bolso para
apanhar o punhal, mas a mão na sua nuca o impediu, e de repente ele sentiu a lâmina fina encostada
nas próprias costas quando seu casaco foi virado para trás. Jacques sabia que o punhal era muito
afiado e temeu que a lâmina fina se partisse ou sentisse o gosto do seu sangue. As pontas dos seus
pés mal tocavam a calçada e ele não podia virar para ver seu assaltante.
O negro enorme parou o landau e se preparou para descer e entrar na briga. Mas parou quando viu o
cano de uma Remington44 apontado diretamente para seu peito largo. Lenta e cuidadosamente, o
negro voltou a sentar-se no banco da carruagem.
Cole Latimer pôs o homenzinho no chão com um tranco.
— Ao que parece, monsieur DuBonné — disse ele calmamente com os olhos azuis frios como aço
—, sempre o encontro atacando mulheres ou crianças.
Jacques ajeitou o casaco com um puxão violento e apanhou o chapéu. Limpando-o com a manga,
olhou furioso para Cole.
— É a terceira vez que interfere nos meus assuntos, capitaine docteur. — Pôs o chapéu na cabeça.
— Não sou homem de ignorar esse tipo de dívida por muito tempo.
Cole desarmou o cão da arma e a pôs no coldre, deixando deliberadamente a parte de cima aberta.
Voltou-se para a mulher e levantou de leve a aba do chapéu.
— A senhora está bem?
182
Era quase impossível ver o rosto atrás do véu. Ela respondeu com um breve gesto afirmativo.
A senhora quer dar queixa contra este homem?
A cabeça com o chapéu preto balançou negativamente.
Então, devo presumir que o caso está encerrado.
Alaina arriscou uma resposta.
— Minha eterna gratidão, capitão.
A voz baixa, suave e aveludada ecoou na memória de Cole, mas ele não teve tempo para pensar
nisso, pois Jacques zombou.
— Tenha cuidado, capitain docteur, não estou acostumado com interferências. Da próxima vez, a
coisa vai ser diferente.
Cole fechou a aba do coldre.
— E o senhor, monsieur DuBonné, tenha cuidado também. A experiência me ensinou que
ferimentos de bala são muito mais perigosos do que os de arma branca.
Com um riso zombeteiro, Jacques olhou em volta.
— Parece, monsieur, que nós dois perdemos. — Apontou para o vulto apressado, quase no fim da
rua.
Cole a viu desaparecer na esquina e não percebeu o gesto feito por Jacques para um homem alto e
magro que saía de um prédio no outro lado da rua. O homem respondeu com uma rápida inclinação
de cabeça e saiu apressadamente em perseguição da jovem viúva.
Jacques caminhou calmamente para a carruagem que o esperava e voltou-se para o oficial da União.
— Um bom dia, capitain docteur Latimer. Outra ocasião, talvez.
Cole tocou a aba do chapéu...!„,,,,,....
— Talvez.
A carruagem partiu, e Cole ficou pensativo. Queria saber mais sobre a jovem viúva. E aquela voz!
Era como uma nuvem perfumada na sua mente, fugidia como o vento. Mas em algum lugar ele a
ouvira antes e precisava descobrir quando e onde.
Alaina entrou na casa dos Craighugh, sem perceber que fora seguida por um homem que mais tarde
informaria DuBonné que a viúva morava na mesma casa que o médico do exército federal.
Ainformação confundiu o cajun e desfez qualquer plano que ele podia ter para apanhar a mulher.
Porém, mais estranho era o fato de que nunca mais
183
ela fora vista saindo da casa, embora o homem alto a tivesse vigiado por várias semanas.
Erguendo a saia, Alaina subiu correndo a escada e encontrou Roberta no andar superior. Embora
tivesse passado muito do meio-dia, ela estava ainda de camisola e roupão.
— Aonde você foi com essa roupa? — perguntou Roberta, asperamente.
Alaina passou por ela, tirando o chapéu.
— Fui ao banco para me informar sobre a venda de Briar Hill.
— Você fez o quê? — gritou Roberta, entrando no quarto de Alaina. — Você põe nossas vidas em
perigo só por causa de uma fazendinha de nada? Como se atreve!
Alaina voltou-se rapidamente, com os olhos escuros e furiosos.
— Afazendinha de nada, "minha querida" — disse em voz baixa e inexpressiva —, era o meu lar. O
lugar que minha família trabalhou para construir. É lá que descansam os ossos cansados da minha
mãe. Quando falar dela, acho melhor ter mais respeito para evitar que alguma coisa terrível aconteça
a você.
— Tem coragem de me ameaçar! Se não fosse por você, não teríamos motivo para nos preocupar
agora. Devia ter cuidado para não ser entregue à justiça.
— Se não fosse por mim, minha querida, você nunca teria casado com o capitão Cole — lembrou
Alaina. — Isso não vale qualquer perigo?
O olhar furioso de Roberta foi suficiente para perceber que a lembrança era extremamente ofensiva.
— Algum dia Cole e eu vamos embora daqui. De costas, tirando o sapato elegante, Alaina disse:
— Aquela sra. Mortimer que estava ontem aqui quando cheguei do hospital... ouvi vocês duas
falando sobre Washington. É para lá que pretende levar Cole?
Roberta sorriu com malícia.
— Você tem orelhas bem grandes, querida.
— Quando você recebe ianques em casa, preciso ficar com os olhos abertos. — Os cantos da boca
de Alaina curvaram-se para cima, num arremedo de sorriso. — Chame de instinto de conservação.
— A sra. Mortimer é casada com um oficial da União—corrigiu Roberta.
— Como eu disse, uma ianque.
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Ela vai falar com o marido sobre a transferência de Cole para Washington. Talvez seja designado
para a equipe do presidente. Ele é inteligente...
— Ora, ora! Vejo que tem altas ambições para ele. O ianque já sabe disso?
— Por enquanto não precisa saber. Logo será informado.
— Quanta bondade sua. Sem dúvida vai ficar eternamente grato a você por toda a vida por ajudar
sua carreira.
— Não seja sarcástica — disse Roberta. — Estou fazendo isso para o bem dele. Pelo menos, é mais
do que você faria se seu plano de roubar Cole de mim tivesse dado certo. O melhor que poderia
fazer era dar a ele um bando de filhos agarrados nas abas do casaco.
— Tem razão — concordou Alaina, balançando as mãos no ar teatralmente. — Como sempre!
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Capítulo Dezesseis
A CIDADE CAPTURADA no Mississippi refletia a fortuna da Confederação e, para
desapontamento do exército de ocupação, o infortúnio da União. Em setembro a cidade toda
aclamou a derrota da União em Chickamauga, e em outubro os cidadãos estavam quase arrogantes,
com esperança de voltarem para as mãos dos confederados, quando Lee atravessou o Rapidan a
caminho do norte outra vez. Novembro começou, e Lee acampou para o inverno no mesmo lugar
de onde partira havia um mês. A cidade ficou silenciosa e o povo tristonho, e então Grant obrigou os
homens de Bragg a fugir de Chattanooga e Longs-treet não conseguiu romper as linhas da União em
Knoxville. Nova Orleans desistiu do sonho de se unir novamente à causa do sul.
O Natal e o Ano-Bom foram desanimados e comemorados apenas na intimidade dos lares, assim
mesmo, não em todos. Em fevereiro, cresceu a tristeza quando Sherman lançou um ataque vitorioso
no Mississippi, quando os exércitos do Leste estavam ainda imobilizados. A fragata ianque,
Housatonic, foi afundada pelo pequeno submersível Hunley e embora não fosse um feito de
importância, foi grande em heroísmo e comemorado por seu brilhantismo. A notícia do sucesso dos
confederados em Olustee, Flórida, perdeu o brilho quando os
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ianques nomearam governador da Louisiana um tal de G. Michael Hahn, que, embora nativo, era um
anti-secessionista ardoroso.
Agora chegavam os ventos de março para secar a terra e torná-la mais firme para as botas dos
soldados. O quinto dia do mês, um sábado, escolhido para a posse do novo governador, amanheceu
tempestuoso e com uma brisa forte. Terminada a cerimônia com a presença maciça dos soldados da
União na praça Lafayette, seguiu-se uma comemoração de extrema extravagância.
Um coro de mil homens cantou o "Coro dos Ferreiros" com o acompanhamento de todas as bandas
do exército, e centenas de canhões atiraram em uníssono, controlados por maquinismos elétricos.
Todas as igrejas receberam ordem de tocar os sinos, e a combinação de sons era magnífica, embora
um tanto desafinada.
De manhã bem cedo, Alaina desceu para a cozinha e sentou-se ao lado do fogo, enquanto Dulcie
preparava seu cereal de milho e salsichas. As chamas dançavam debaixo do caldeirão preto
dependurado sobre o fogo, e as bolhas cresciam e estouravam na superfície da água.
— Ele não está atrasado? — perguntou Alaina, indicando com a cabeça a porta da antiga despensa.
Dulcie pôs o prato na mesa e murmurou:
— Seu Cole trabalhou até tarde ontem à noite e miz Roberta ainda não deu ao homem um minuto
de paz desde que ele acordou. Os ianques estão se enfeitando para comemorar a eleição daquele
traidor como governador e ela quer que o seu Cole leve ela naquele baile elegante que o general
Banks vai dar esta noite. Agora que ela e seu Cole vão se mudar para Washington, miz Roberta
cismou que é uma ianque. Mandou Jedediah levar ela na casa da miz Banks, ontem, enquanto você e
seu Cole estavam no hospital. E voltou só falando das boas maneiras daquela mulher.
Alaina fungou com desprezo e derreteu um pouco de manteiga no cereal quente. Com as mãos na
cintura, Dulcie franziu a testa quando viu Alaina pôr açúcar no cereal.
— É assim que aqueles ianques comem isso! Não vá virar um deles também!
— Dulcie? — chamou Cole do banheiro, antiga despensa, onde estava tomando banho.
— Sim, senhor, seu Cole! — Ela aproximou-se da porta.
— Peça para Jedediah trazer a água agora, se estiver quente.
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— Jedediah não está aqui, seu Cole. Miz Carter, no outro lado da rua, ficou doente e perguntou para
o seu Angus se Jedediah podia ir buscar o médico.
— Tive a impressão de ouvir a voz de Al, ele está aí?
Dulcie trocou um olhar preocupado com Alaina, que estava sentada na ponta da cadeira, em posição
de alerta.
— Sim, senhor — respondeu Dulcie, devagar. — Seu Al está sentado bem aqui.
— Então diga para ele trazer a água. Este banho está gelado.
Alaina arregalou os olhos. Depois de um breve momento, disse, em voz alta:
— Se quer água, barriga azul, venha buscar você mesmo. Vou carregar muita água durante o dia
inteiro e não pretendo começar agora.
— Al!—Rugiu Cole, furioso.—Traga essa água agora mesmo! Alaina largou o garfo na mesa e foi até
a porta do banheiro.
— Não vou levar coisa nenhuma, barriga azul!
— Entre aqui agora! — ordenou Cole, quase gritando. — Senão, vou esfolar esse seu traseiro magro.
— Tem de me pegar primeiro, ianque!
— Pois vou pegar — avisou Cole. — E não só vou esquentar seu traseiro como também mostrar
para que serve um banho!
Alaina ficou calada. Não duvidava que ele fizesse isso.
— Al! — A paciência do capitão estava no fim.
— Está bem! Está bem! — gemeu Alaina, com a petulância de um garoto. Foi até o fogo e verificou
a temperatura da água com a ponta do dedo. Então um brilho malicioso apareceu nos seus olhos.
Derramou água fria no caldeirão e experimentou outra vez. Quase perfeito. Depois disso o ianque
nunca mais ia pedir para Al levar água para seu banho. Encheu um balde com a água do caldeirão,
depois, com a língua entre os dentes carregou o balde pesado até a porta do banheiro.
— Al!
— Estou indo! — gritou ela. — Mantenha o corpo ensaboado, ianque! Estou chegando!
Evitando o olhar escandalizado de Dulcie, ela entrou no banheiro, escancarando a porta.
— Aqui está a sua água, barriga azul.
Antes que Cole tivesse tempo de responder, Alaina esvaziou o
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balde nas costas dele. Cole soltou um rugido rouco, com o choque da água quente demais. Alaina
deixou cair o balde e quando o viu segurar os lados da banheira para se levantar, achou que estava na
hora de desaparecer. Ela correu com uma risada alegre e zombeteira. Cole, furioso, enrolou uma
toalha na cintura e saiu atrás, quase escorregando no chão molhado. Alaina olhou para trás e parou
de rir, vendo a raiva fria nos olhos azuis do capitão. Deu uma volta rápida e pôs Dulcie entre ela e o
ianque.
— Seu moleque atrevido! Vou esquentar seu traseiro! — exclamou Cole.
— O que há, capitão?—perguntou Alaina com completa inocência — Não estava bem quente?
— Seu vagabundo idiota! — Cole correu para ela, ansiando por vingança. — Está na hora de você
aprender para que serve um banho!
Alaina resolveu o dilema de Dulcie, saindo de trás dela e começando a atravessar a cozinha, tendo o
cuidado de deixar a grande mesa de madeira entre ela e o inimigo.
— Só porque pensa que agora é uma espécie de parente — informou Alaina, solene, passando o
dedo num pouco de farinha sobre a mesa —, não pode pôr as mãos em mim mais do que antes.
— Vou pôr as mãos em você, sim, senhor! — avisou ele, dando a volta na mesa.
Cole abaixou para evitar o sapato que voou para cima dele. Mas não evitou o segundo, que o atingiu
na canela. Alaina, que na verdade não tinha intenção de machucá-lo, contraiu o rosto quando ouviu o
rugido de dor do capitão. Mas sem parar para pensar nisso, ele atacou outra vez. Rindo como um
garoto, Alaina começou a correr em volta da mesa.
— O que está acontecendo aqui?—perguntou uma voz estridente, e os três olharam para a porta e
viram Roberta.
— Aquele moleque quase me queimou outra vez! — disse Cole, entre os dentes cerrados. — E
quando eu acabar o que pretendo fazer, ele vai precisar de uma bolsa fria no traseiro!
— Cole! Pare com isso! — gritou Roberta, vendo Cole avançar outra vez para a prima, que se
afastou da mesa para apanhar os sapatos.
— Não antes de ensinar bons modos para esse moleque! — disse Cole. — Já está na hora de alguém
fazer isso!
O capitão correu atrás do garoto, que ria satisfeito, e chegaram à porta dos fundos. A porta fechou-
se com força, e Roberta, temendo
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que o marido seguisse Alaina para fora, estendeu o braço de um batente ao outro, na frente dele.
— Preciso falar com você — disse ela, secamente. — Lá em cima, se não se importa.
— Eu estava tomando banho — disse Cole, voltando para o banheiro. — E pretendo acabar, agora
que me livrei daquela pequena ameaça.
— E desfilou nu na frente das mulheres da casa — zombou Roberta.
Segurando a toalha na cintura, Cole parou, virou-se para trás e fez uma pequena curvatura para
Dulcie.
— Mil perdões. Eu me esqueci, no calor da vingança.
Dulcie não conseguiu evitar a risada sonora, enquanto mexia a panela, virada para o fogão.
— Aquele Al sabe correr.
— Cole! — Avisou Roberta, com voz tensa. — Fique longe daquele menino!
Cole ergueu uma sobrancelha.
— Bem, não posso fazer isso, minha querida. Eu o levei para o hospital como um garoto
abandonado e não tenho nenhum motivo para despedi-lo. E como deve saber, minha cara — a voz
suave tinha tom de sarcasmo —, é lá que eu trabalho.
— É demais! — disse Roberta, com os dentes cerrados. — Podia muito bem me levar ao baile hoje à
noite, mas se preocupa mais com aquele hospital do que comigo.
Cole não se deu ao trabalho de responder. Ultimamente, era o único lugar onde podia escapar da
constante implicância de Roberta. Notou que Dulcie saíra discretamente da cozinha.
— Não nega, então — zombou Roberta. — Não pode. Cole balançou a cabeça lentamente.
— Não comece com isso outra vez, Roberta. Há poucos dias pedi ao major Warrington para ficar no
meu lugar e saí com você.
— E ficou tremendamente infeliz, não foi?
— Se está lembrada, meu amor—enfatizou a expressão carinhosa —, fomos ao teatro na noite
anterior e depois ao Antoine's. Dormi três horas. Estava cansado!
— Sempre que sai comigo está cansado! — queixou-se Roberta —Mas pode correr atrás daquele...
daquele menino pela cozinha toda!
— Ora, o que uma coisa tem a ver com a outra? — Cole ergueu
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a mão num gesto resignado. — Não vai dizer que está com ciúmes daquele molequinho sujo.
Não seja ridículo! E só que você nunca parece ter tempo para mim mas está sempre com ele. —
Com um gesto da cabeça, indicou o pátio lá fora.
Não se preocupe. — O sarcasmo estava evidente agora em sua voz. Ele não vai conosco para
Washington.
- Hum! — Roberta jogou o cabelopreto para trás. — Acho que você prefere ficar aqui a fazer parte
da equipe pessoal do sr. Lincoln.
Com um suspiro cansado, Cole balançou a cabeça.
— Roberta... duvido que me ponham na equipe pessoal do presidente. Ele tem muitos coronéis para
servi-lo. Para sua informação, Washington tem um grande hospital que o general Grant mantém
sempre lotado de feridos. A única coisa de que pode ter certeza é que provavelmente terei de me
ocupar mais com a burocracia.
— Mesmo assim, é uma promoção importante. E se não fosse por mim, você teria jogado fora essa
oportunidade. Mas agora, provavelmente, será promovido a general e podemos morar em
Washington e conhecer todos os amigos do presidente. Isso, é claro, quando a União vencer a
guerra.
— Eu gostaria que Grant tivesse tanta certeza disso quanto você. — Cole olhou atentamente para
Roberta com curiosidade. Ao que parecia, os planos dela para os dois estavam mais adiantados do
que ele imaginava. — Você precisa saber também que, quando a guerra terminar, volto para minha
casa e para a medicina.
— O quê? Para ser massacrado pelos índios como toda aquela pobre gente? Oh, eu ouvi falar
daqueles selvagens que andam soltos pelos campos. Nunca vou morar num lugar desses. Nunca!
Cole fez meia-volta e entrou no banheiro, batendo a porta. Praguejando, tirou a toalha e entrou na
banheira, mas Roberta foi atrás.
— Não vai escapar de mim assim, Cole Latimer! — Caminhou para a banheira. — E ainda
precisamos resolver o assunto desta noite. Eu quero ir ao baile!
Cole ergueu a mão, irritado.
— Pois então, vá! Mas eu preciso trabalhar!
— Você não se importa que eu vá com outro homem—disse ela, com um soluço de raiva. — Você é
frio. Não tem sentimentos!
Cole olhou para ela, incrédulo.
— Senhora?
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— É gelo que corre em suas veias! — acusou Roberta, chorosa.
— Bem, minha cara — disse ele, bem devagar. — Já vi o gelo derreter mais depressa em Minnesota
do que você na cama.
— O que quer dizer? — perguntou Roberta, ofendida.
— Vamos falar claro, Roberta. Desde que nos casamos você parece ter perdido todo o interesse. Se
quer saber a verdade, gostei mais de você na primeira vez, depois que Al me tirou do rio.
Por um momento, Roberta olhou para ele boquiaberta, depois o ar estalou com o impacto da sua
palma contra o rosto de Cole.
— Como se atreve! Como se atreve! —esbravejou ela, agitada. — Só porque não me comporto
como qualquer prostitutazinha que dorme com você em troca de um presentinho insignificante, você
me insulta desse modo! Eu sou uma dama, Cole Latimer, e nunca esqueça disso! Posso garantir que
uma dama não gosta de ser apalpada e acariciada!
Com uma expressão intrigada, Cole passou a mão no rosto vermelho.
— É estranho, mas acho que lembro de ter dado um presentinho por seus favores. Para ser exato,
um medalhão. — Olhou para os seios arfantes, revelados pelo decote generoso do roupão de renda.
— E às vezes, Roberta, tenho a impressão de que há duas pessoas em você, uma completamente
diferente da outra. Onde está a mulher que tive nos braços naquela noite, Roberta? Será que ela se
escondeu, agora que o casamento está garantido?
Roberta empertigou o corpo, indignada, olhou para ele com ódio, deu meia-volta e saiu do banheiro,
batendo a porta. Cole recostou a cabeça na beirada da banheira, ouvindo os passos rápidos
atravessando o chão de tijolo da cozinha. Aquela mulher, pensou ele, estava transformando sua vida
num inferno.
Distraidamente, apanhou um sabonete feito em casa que estava entre os outros perfumados,
recentemente comprados por Roberta. O perfume suave o envolveu, despertando uma lembrança
fugidia. Um vulto impreciso flutuou em sua mente, e Cole ouviu as palavras combinadas com o riso
cristalino e sonoro...
"Mas essa é a questão, capitão, você não pagou."
Cole abriu os olhos. Aquela voz outra vez! Ele devia estar ficando louco! Nem tinha visto o rosto da
viúva e já estava imaginando a mulher nos seus braços!
Logo depois que Cole saiu para o hospital, Roberta foi à casa do
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general, expôs seu problema à sra. Banks e conseguiu um acompanhante para o baile. Passou a tarde
toda se preparando, experimentando vários vestidos até encontrar um do seu agrado. Antes de se
vestir para a grande ocasião, dormiu algumas horas para estar descansada e bela durante toda a noite.
Cole nunca mais ia esquecer essa lição.
Embora Dulcie tivesse passado o dia todo ocupada cortando e preparando para defumar a carne de
um porco comprado por Cole, Roberta deu ordens expressas à velha criada para arrumar seu quarto
quando ela saísse para a festa. Dulcie estava ainda resmungando quando Alaina chegou em casa
naquela noite, depois de ajudar a sra. Hawthorne com algumas tarefas pesadas.
— Miz Roberta saiu para uma festa com um ianque, sem avisar o seu Cole, o seu Angus ou miz
Leala, que foram passar a noite na casa de parentes. Vai ter muita pena voando nesta casa se miz
Roberta não chegar antes do seu Cole. — Dulcie bateu na mesa um pedaço de lingüiça que acabava
de rechear e balançou a cabeça tristemente. — E eu vou ver penas voando também se não limpar e
arrumar o quarto antes da miz Roberta chegar. Cora Mae e Lucy saíram para fazer companhia à miz
Carter porque o doutor disse que ela precisa ficar na cama. Eu nem acabei de limpar lá em cima com
todo este porco precisando ser defumado antes que chegue o calor. Miz Roberta não se importa se a
gente tem o que comer ou não.
Embora estivesse cansada, Alaina se ofereceu para ajudar. Uma vez que Cole estava pagando bem à
família de Dulcie e todas as despesas, Roberta assumira o lugar de dona da casa. Agora que era uma
mulher rica, Roberta revelou-se dominadora e autoritária, e esperava que Dulcie e sua família
cuidassem dos seus interesses pessoais, acima das necessidades de Angus e Leala. Aos poucos a casa
estava deixando de ser um lugar agradável para todos que moravam nela.
Tarde da noite, Alaina ajudou Dulcie a dependurar os presuntos e o resto da carne, e a limpar a
cozinha. Depois, vendo que Dulcie estava exausta, convenceu-a a ir para a cama, garantindo que,
depois do banho, ia arrumar o quarto de Roberta.
Alaina só compreendeu a enormidade da tarefa para a qual se oferecera quando parou na porta do
quarto da prima e olhou desanimada para os montes de sapatos, anáguas, anquinhas, roupas de baixo
e acessórios, espalhados por todo o canto. Debaixo de pilhas de anáguas e meias de seda, a cama
estava ainda desarrumada. Alaina notou que
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no meio da desordem não havia nem uma peça que pertencesse a Cole. A roupa dele estava
arrumada no armário alto levado para o quarto de Roberta para esse fim.
Alaina levou os dedos frios às têmporas. Estava cansada e queria dormir, mas prometera a Dulcie
arrumar o quarto, e não ia faltar com a palavra.
O tamborilar da chuva na janela foi o prenúncio da tempestade que se abateu sobre a casa. Alaina
sobressaltava-se cada vez que um relâmpago estrondeava no ar, seguido de perto pelo rugido do
trovão. Estava trabalhando à luz de um lampião a querosene, em cima da cômoda, ao lado da porta.
Angus, num assomo de vingança, que nem foi notado pelo objeto da sua mesquinharia, retirara os
lampiões do quarto, deixando apenas um. Cole, que sempre chegava tarde, atravessava a casa às
escuras e às escuras ia para a cama.
Alaina dobrou cuidadosamente as meias de seda e guardou os belos vestidos, segurando alguns deles
na frente do corpo quando passava pelo espelho. O contraste com seu roupão simples era a marca da
sua pobreza. Lembrou então que nunca conseguiria dinheiro suficiente para comprar Briar Hill. Não
tinha coragem de tocar no assunto com Cole, porque seria difícil explicar para que Al precisava de
um empréstimo tão vultoso.
Timidamente, Alaina tirou o roupão. Sua camisola tinha ainda um pouco de renda fina, embora
costurada no meio, onde Cole a rasgara naquela noite.
Alaina continuou a trabalhar em silêncio, admirando as belas roupas. Pertenciam a outra mulher, mas
era um prazer tocar as sedas finas, os veludos macios, os corpetes dos vestidos bordados com
pérolas, ou o vestido de baile vermelho enfeitado de preto.
Um relâmpago cortou o céu escuro, e a chuva desceu como uma densa cortina. O pequeno relógio
de cabeceira tocou delicadamente a meia-noite, e Alaina olhou para ele atônita, imaginando para
onde fora o tempo. Faltava pouca coisa para guardar, depois arrumar a cama e podia ir dormir.
Pouco depois, quando estava dobrando uma anágua, Alaina ficou imóvel, escutando. Teria ouvido
um barulho no hall ou era apenas o estrondo distante do trovão? Independente do que fosse,
resolveu que era melhor se apressar. Não queria ser apanhada no quarto nem por Cole nem por
Roberta.
Fechou rapidamente a porta do armário e parou de repente. Dessa vez,
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tinha certeza de que alguém caminhava no corredor, na direção do quarto de Roberta. Não parecia o
ruído de botas pesadas, nem de saltos altos. Mas estava chovendo muito. Cole teria tirado as botas na
porta dos fundos, ao passo que Roberta entraria com os pés molhados, sem se dar ao trabalho de
tirar os sapatos.
Com o coração aos pulos, Alaina apagou o lampião. Mas ele vai acender outra vez, pensou. Com
cuidado para não fazer barulho, ela pôs o lampião no chão ao lado do biombo. O quarto estava
agora completamente escuro, mas Alaina sabía que Cole tinha uma vantagem sobre ela. Seus olhos já
estavam adaptados ao escuro!
No meio do quarto, Alaina olhou em volta, indecisa. Não podia passar por ele no corredor! Cole
pensaria que era Roberta e a faria parar. Um lugar para se esconder, então! Debaixo da cama! Deus
me livre! Ficaria presa como uma testemunha involuntária se os dois resolvessem fazer amor. O
biombo! É claro!
O trinco da porta girou, e Alaina voou para fazer companhia ao lampião. Mas não tão depressa
quanto devia. Quando a porta se abriu, Cole percebeu a camisola branca quando ela saltou para trás
do biombo.
— Você ainda está acordada? — Sua voz tinha um eco da discussão daquela manhã.
Outro relâmpago ziguezagueou no céu quando Cole pôs a túnica molhada sobre a cadeira ao lado da
lareira. Alaina espiou pelo canto do biombo e o viu tirar a camisa e caminhar para onde o lampião
devia estar. Cole passou a mão cautelosamente pela parte superior da cômoda. Não encontrou o que
procurava e, praguejando em voz baixa, abriu uma das gavetas e tirou um charuto e um fósforo.
Acendeu o charuto e ergueu o fósforo ainda aceso. Alaina recuou para trás do biombo quando Cole
começou a procurar o lampião pelo quarto.
— Onde foi parar o lampião? — resmungou ele. — Foi até a janela, afastou as cortinas e abriu um
pouco os vidros. O aroma da chuva misturou-se ao do charuto. Cole ficou parado na janela, olhando
a noite e a chuva, enquanto fumava calmamente. Finalmente desabo-toou a calça e sentou-se na
cadeira para tirá-la. Ia tirar a roupa de baixo quando voltou-se e olhou pensativamente para o
biombo.
— Roberta! Você está doente?
Alaina ouviu os passos que se aproximavam. Cole estava intrigado com o silêncio da mulher. Se ela
ainda estava emburrada por causa do baile, iam ter outra noite de discussão e atrito.
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Cole jogou o charuto na lareira e chegou perto do biombo. Estendeu a mão para dobrá-lo quando a
coisa toda caiu para a frente, empurrada por uma força raivosa. A parte de cima atingiu o peito de
Cole, e um vulto branco passou por ele. Furioso, Cole afastou o biombo, estendeu o braço e segurou
o tecido fino da camisola de Alaina. O barulho do tecido rasgando precedeu uma exclamação
assustada ao mesmo tempo que um pé pequenino, de chinelo, acertou sua canela.
— Que diabo, Roberta! O que deu em você? — Ignorou os tapas das mãos ligeiras e a empurrou.
Alaina bateu contra a cama, subiu rapidamente e saiu pelo outro lado. Cole estendeu a mão e tudo
que conseguiu pegar foi a camisola vazia. Não era preciso muita força para rasgar o tecido fino e
muito usado, mas Cole a puxou com raiva e a camisola se desfez como teia de aranha.
Cole atirou os pedaços da camisola para longe e correu para os pés da cama, para apanhar a mulher.
Mesmo no escuro era possível perceber os movimentos dos dois corpos nus. Quando percebeu que
ele estava se aproximando, Alaina desviou e correu para o outro lado da cama. Cole foi mais rápido
e, atirando-se para a frente, a apanhou em cheio. O contato foi um choque para ambos. Os seios
macios tocaram de leve o peito forte e largo, e Alaina recuou com uma exclamação abafada. Mas
naquele breve encontro, Cole teve certeza de uma coisa. Aquela mulher não era Roberta! Era muito
pequena, muito esbelta, muito leve. Ele estendeu a mão para o cabelo dela e imediatamente as
lembranças todas voltaram. O cabelo curto! O corpo esbelto! Cole não podia acreditar.
— Quem diabo...? — Seus olhos procuravam ver no escuro e perguntou outra vez, num murmúrio
rouco: — Quem é você? Quem... é... você?
O relâmpago cortou o céu com uma luz quase cegante, e naquele momento Cole viu perfeitamente
Al com seu cabelo curto e despen-teado.
— Meu Deus! — exclamou ele, vendo rápida e vagamente o medalhão entre os seios redondos e
brancos. — Al!
— Alaina! — O nome murmurado era como um grito de dor.
— Era você! Era você naquela noite!
Alaina tentou fugir, mas ele a segurou pelos pulsos. Ela lutou para se libertar.
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- Quer ficar quieta?—exclamou ele, aumentando a pressão dos dedos no pulso frágil.
Alaina resistiu à dor, até Cole resolver usar outra tática, para não machucá-la. Segurou os pulsos dela
com uma das mãos, e com a outra puxou para ele. Alaina arregalou os olhos, assustada.
Não! - Exclamou, com medo do que ele pretendia fazer. Estavam sozinhos na casa. Não havia
ninguém para impedir Cole de possuí-la outra vez. — Me largue!
Então, fique quieta — ordenou ele.
Aos poucos ela obedeceu, e Cole a soltou. Alaina correu para a porta, mas quando estava quase
alcançando a maçaneta, Cole a segurou. À memória de Cole era como um livro aberto pela primeira
vez, e ele queria algumas respostas.
Alaina lutou contra ele, cega e insanamente, tentando soltar o braço. A noite em que ele tomara sua
virgindade estava viva em sua lembrança. Não ia subestimar outra vez a força e o ardor de Cole.
Despida como estava era muito vulnerável e tudo que queria era estar a salvo no seu quarto, com a
porta trancada.
— Pare com isso! — Cole segurou a mão dela. — Eu só quero conversar — disse ele.
Segurou-a contra a parede, tentando evitar que ela continuasse a se debater, usando o próprio peso,
mas estava consciente demais do corpo morno de Alaina e dos bicos dos seios que pareciam queimar
seu peito. Cole começava a ficar extremamente excitado e os movimentos dela acendiam mais seu
desejo. Seu corpo estava molhado de suor e só com esforço conseguiu lembrar que era um
cavalheiro.
— Oooh n-ã-ã-o! — gemeu Alaina. As coxas de Cole pareciam esmagar as suas e ela não podia ter
dúvida da excitação dele.
Cole afastou-se e a levou até a cama, onde vira o roupão branco.
— Vista-se!
Alaina obedeceu rapidamente, mas não parou de tremer.
— Onde está o lampião? — perguntou Cole, rispidamente, tão furioso com ela quanto com ele
próprio.
Alaina respondeu com voz trêmula:
— Atrás do biombo.
— Não fuja outra vez — avisou ele. — Você me deve pelo menos isso e se fugir sou capaz de
derrubar esta casa para encontrá-la.
— Não lhe devo nada, ianque — disse Alaina, com revolta na voz.
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— Fique onde está! — ordenou Cole. Depois de levantar o biombo, ele encontrou o lampião e o
levou para a cômoda. — Eu pretendo descobrir exatamente o que diabo está acontecendo aqui. —
Acendeu o pavio e, recolocando a manga de vidro, aumentou a luz até as sombras serem expulsas
para os cantos do quarto. Puxou Alaina para perto do lampião, segurou o queixo dela e aproximou o
rosto da luz. Cole olhou atônito para o rostinho molhado de lágrimas.
— Diabo! Eu devia saber!
O cabelo castanho escuro, com reflexos vermelhos, emoldurava o rostinho delicado de pele macia e
branca. Os lábios eram sensuais e suaves. Mesmo sem o disfarce, o rosto era de Al.
O riso subiu quase trêmulo do peito de Cole.
— Eu devia ter dado um banho em você na primeira vez que nos encontramos.
— Tolo! Idiota!—E como se isso não fosse suficiente, disse com desprezo. — Ianque!
Ignorando as ofensas, ele virou o rosto dela para um lado e depois para o outro.
— Quantos anos você tem?
Olhando furiosa para ele, Alaina disse, com os dentes cerrados:
— Dezessete... quase dezoito.
Com um suspiro de alívio, Cole disse:
— Tive medo que fosse muito mais nova.—Outra luz se acendeu em sua mente. — Alaina? —
Ergueu uma sobrancelha. — Não por acaso Alaina MacGaren?
— É claro! — Afastou a mão dele do seu rosto e esfregou as marcas dos dedos dele no braço. —
Alaina MacGaren! Espiã! Assassina! Inimiga do norte e do sul! Quanto está agora? Dois mil dólares
por minha cabeça? O que vai fazer com tudo isso?
— Que diabo, menina, se você estava comigo, então não podia...
— Você é tão rápido em suas deduções—disse ela com desprezo. — Mas, diga uma coisa, capitão
Latimer, quem vai me defender? Eu levei os objetos de um homem morto ao seu comandante e me
tornei espiã por não permitir as liberdades de um ianque. Fui obrigada a fugir da minha casa e me
disfarçar de menino! Você mancharia o nome de Roberta para limpar o meu? Ou inventaria alguma
mentira, para depois se atrapalhar todo com ela e piorar a minha situação? Condenaria os Craighugh
à prisão por dar asilo a uma fugitiva? Contaria que se
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enganou de virgem, renegaria seus votos matrimoniais e faria com que tudo parecesse certo na sua
mente confusa?
Alaina afastou-se de Cole, prometendo a si mesma fazer em pedaços o braço dele se tentasse segurá-
la outra vez. Ergueu os olhos e sibilou, entre os dentes cerrados:
Acha que eu imploraria alguma coisa a um ianque? Faça o que quiser. O que ditarem seu orgulho e
sua honra, mas não espere limpar sua consciência na minha cama! Vá procurar sua bela mulher, a que
você escolheu. E deixe-me em paz!
Quase sufocando com os soluços que subiam do seu peito e cega pelas lágrimas, ela correu para a
porta e a abriu. A exclamação de horror fez Cole se voltar. Roberta, em todo o seu esplendor, estava
parada na porta, com a boca aberta. Por um momento, ela não conseguiu fazer mais nada além de
olhar para o rosto de Alaina e depois para o roupão transparente, antes de virar o rosto e notar a
seminudez de Cole.
— Assim que eu viro as costas — avançou como uma fúria, e Alaina recuou cambaleando —, vocês
dois se entregam aos seus divertimentos sujos. Posso imaginar há quanto tempo vocês estão... —
Continuou com acusações tão obscenas, que Cole perdeu a paciência.
— Roberta! Cale essa maldita boca! Roberta olhou para ele e disse com voz chorosa:
— Como pôde fazer isso? Como teve coragem de andar com essa... vagabunda? Será que você leva
para a cama qualquer assanhada que se ofereça?
Alaina, ofendida, exclamou:
— Eu nunca me ofereci!
— Prostituta! — gritou com voz estridente e no mesmo instante a palma da sua mão estalou
violentamente no rosto de Alaina. Antes que Cole pudesse intervir, Alaina avançou para a prima com
o punho fechado. Ela não foi tão delicada quanto Cole fora naquela manhã. Na verdade, estava há
tanto tempo fazendo papel de garoto que a força do soco fez a prima maior e mais pesada rodopiar,
tropeçar e cair sentada numa poltrona, perdendo toda a vontade de medir forças com sua atacante.
Roberta fechou os olhos e ficou prudentemente imóvel.
Cole foi até o lavatório, molhou a ponta de uma toalha e aproximou-se de Alaina para limpar o filete
de sangue que corria da sua boca, mas ela desviou o corpo rapidamente.
199
— Não toque em mim, ianque! — avisou ela. — Fique com as mãos longe de mim. — Arrancou a
toalha da mão dele. — Você já nos causou muito mal.
Com um sorriso de desprezo para Roberta, Alaina ajeitou o roupão e, dando meia-volta, saiu do
quarto de cabeça erguida, batendo a porta com força.
Cole molhou outra toalha e chegou perto de Roberta. Ela também arrancou a toalha da mão dele e
correu para o espelho. Preocupada, inclinou-se para a frente, para examinar a marca vermelha no
queixo.
— Oooh! — choramingou ela. — Estou marcada pelo resto da vida! Nunca mais serei a mesma! Ela
arruinou meu rosto. — Entre-cerrou os olhos, ameaçadoramente. — Nem que seja a última coisa
que eu faça, vou me vingar daquela cadelinha.
— Considerando os resultados do primeiro encontro, minha querida — disse Cole, com voz fria —,
sugiro muito cuidado com esse negócio de vingança, do contrário, pode ter um prejuízo muito
grande.
Roberta jogou o cabelo para trás num gesto arrogante.
— Lainie sempre teve inveja de mim. Sempre invejou minha beleza e, sempre que pode, procura me
magoar. Se aquela prostituta-zinha pensa que pode sair desta impunemente...
Cole fechou a janela contra a brisa fria. A tempestade tinha passado, deixando como lembrança uma
garoa fina, que tamborilava nas vidraças.
— Uma vez que era ela a virgem na minha cama, e não você, Roberta—disse ele, com um sorriso
frio —, sugiro que escolha outros adjetivos. Esses que você atira tão descuidadamente podem voltar
ao lugar de onde saíram.
Roberta ficou nervosa.
— O que quer dizer, Cole, meu querido? O que foi que Laine disse? Você, mais do que ninguém,
devia saber que não pode confiar nela. Ora, Alaina traiu até aqueles pobres prisioneiros indefesos...
Cole olhou para ela, e Roberta calou-se. Ele apanhou uma calça no guarda-roupa e vestiu.
— Ela não me disse nada, Roberta. E você, minha querida, mais do que ninguém — a repetição da
frase reforçava a ironia —, sabe perfeitamente que Alaina nada teve a ver com aquele massacre no
rio.
Cole vestiu a camisa de campanha de lã pesada, e Roberta procurou ler alguma coisa na expressão
dele.
— Como posso saber? — perguntou, cautelosa.
200
Cole parou de abotoar a camisa.
- Será que é tão difícil de compreender, minha senhora? A verdade pura e simples é que Alaina é a
mulher com quem fiz amor naquela noite... a única. Sendo assim, minha querida, foi você quem
armou aquele truque sujo contra nós.
Mentira! —exclamou Roberta, procurando avidamente alguma coisa que fizesse da sua mentira
verdade. — Uma grande mentira! Eu já disse, Cole, Alaina encheu sua cabeça com mentiras. Você
estava bêbado demais para lembrar, mas...
Roberta sobressaltou-se quando Cole deixou cair as botas no chão, na frente da cadeira.
Está enganada, minha senhora. Eu podia estar bêbado mas disso eu me lembro. — Sentou-se para
calçar as botas. — Sempre estranhei o fato de você ser tão diferente da mulher que tive nos braços
naquela noite. Mas até esta noite, eu não podia imaginar que ela pudesse ser nenhuma das mulheres
desta casa. Pelo menos agora eu sei a verdade.
Roberta teve de aceitar a situação. Seu plano para casar com ele não era mais segredo. Temia que
Cole a abandonasse. Sem o dinheiro dele, voltaria à existência miserável e monótona. Jamais iria para
Washington. Seria ridicularizada por todas aquelas viúvas horríveis que esnobara.
Estendeu os braços para Cole num gesto de súplica:
— Oh, querido! Fiz aquilo só porque eu o amava demais. — Considerou que torcer um pouco as
mãos e parecer confusa podiam ajudar seu papel. — Cole, você não pode imaginar o quanto o
desejei. —Com um sorriso tímido, deu alguns passos e sentou-se no colo dele. — Fiquei
descontrolada quando descobri que você estivera com Laine. Não podia desistir de você sem lutar.
— Segurou a mão dele e a levou ao seu seio. — E eu não sou mais bonita? Não sou mais mulher?
Cole olhou para ela friamente.
— Minha senhora, aquela garotinha, por mais que possa parecer um menino, pode dar aulas de
como ser mulher no melhor bordel da cidade. — Sorriu. — Pelo menos, ela não tem medo que um
homem desmanche seu cabelo.
Com uma exclamação abafada, Roberta ficou de pé e ergueu a mão para esbofeteá-lo. Cole olhou
fixa e friamente para ela, e Roberta,
201
com a lembrança recente da experiência com Alaina, achou melhor desistir. Tinha outros meios de
dobrar um homem.
—- Alaina deve ter demonstrado bastante entusiasmo para você lembrar tão bem. Mas, afinal, você
parece mesmo preferir mulheres libidinosas e posso imaginar que ela desempenhou perfeitamente as
tarefas da profissão.
— Tarefas! — Cole riu. — Por Deus, é verdade! Você acha que fazer amor é um trabalho pesado!
Roberta ergueu o nariz com arrogância.
— Você não pensa que uma dama gosta de ser apalpada, pensa?
— Se partilhar algum prazer no leito conjugal está além da capacidade de uma dama, então para o
diabo com as damas! — rosnou Cole. Pôs a mala de couro sobre a cama e continuou. — Seja Alaina
o que for, o desempenho dela naquela noite foi que lhe arranjou um marido.
— O que quer dizer? — Insistiu Roberta, segurando Cole pela manga, tentando fazer com que
olhasse para ela. — O que quer dizer?
Cole voltou-se e, inclinando-se, obrigou-a a sentar-se outra vez na cadeira. Sem se preocupar com o
forro de tapeçaria, pôs o pé no assento, ao lado dela e, apoiando um braço no joelho dobrado,
aproximou o rosto do de Roberta.
— A única coisa que marcou aquela noite foi o prazer que aquela mulher me proporcionou.
Portanto, sejam quais forem as razões que você alega para fazer o que fez, tem de agradecer a Alaina
o sucesso do seu plano.
— Eu não acredito nisso — zombou Roberta. — Se bem me lembro, papai tirou a escolha das suas
mãos completamente.
— Minha senhora, eu sou médico, mas sou também um soldado. Acredita mesmo que um velho
caduco pode me assustar? Pense o que quiser, minha cara, mas saiba que seu pai não foi um guardião
muito eficiente. Eu podia ter escapado se não estivesse pensando nos momentos maravilhosos que
passei com Alaina.
Roberta torceu as mãos, agora de verdade, e Cole continuou a arrumar a mala. O silêncio arrastou-se
por uma eternidade e, afinal, Roberta, não suportando mais a tensão, perguntou:
— Você vai me deixar?
— Não tenha medo, minha cara. — Ele sorriu com ironia.—Vou levá-la para Washington e fazê-la
desfilar ao meu lado, como você quer. Fiz a minha cama e tenho de deitar nela.
202
Então aonde vai agora?
O general Banks vai fazer uma campanha no rio Vermelho. Há poucos momentos atrás, eu não tinha
decidido se devia me oferecer para acompanhá-lo ou não. Resolvi ir.
Mas isso pode demorar meses! O que vou fazer durante esse tempo?
Cole olhou para o vestido de baile dela e apanhou a mala.
Tenho certeza de que vai encontrar algum meio de passar o tempo. Não acredito que minha ausência
vá impedi-la de se divertir.
Mas, Cole — choramingou ela, seguindo-o até a porta. Ele parou e olhou para a mulher. — E se
alguma coisa acontecer a você? Não precisa tomar algumas providências antes de partir?
Se está falando de dinheiro, minha cara — seu tom era áspero não vejo motivo para deixar meus
bens para você. Você terá o suficiente e se por acaso houvesse um herdeiro, meu advogado
providenciaria para que tudo fosse guardado para ele. Você receberá uma pensão. — Ele sorriu. —
O resto será doado para caridade, já que não tenho nenhum parente.
— EAlaina?
— Isso, minha senhora, não é da sua maldita conta. -, Ansiosa, Roberta o seguiu no corredor.
— Mas eu sou sua mulher.
— Vou deixar a charrete no hospital e quando for avisada de que partimos, pode mandar Jedediah
apanhá-la — disse ele, ignorando as palavras dela. Olhou inexpressivamente para a porta do quarto
de Alaina e caminhou para a escada. Ouviu os saltos de Roberta atrás dele e voltou-se, antes de
começar a descer.
— Deve se preparar, minha senhora, para a mudança para Minnesota quando a guerra terminar.
Roberta abriu a boca.
— Minnesota! Aquele lugar esquecido por Deus! Não pode pedir isso a uma dama bem-nascida!
— Minha senhora, não estou pedindo. Se vai comigo ou não, a decisão é sua, mas eu irei, de
qualquer modo.
203
Capítulo Dezessete
Ao LONGE, PARA nordeste, a última linha da borrasca parecia uma cadeia baixa de montanhas,
dissipando sua furiosa energia com lampejos de luz em ziguezague. A tempestade rugia e rolava,
assolando os pântanos da costa, afastando-se do céu claro como cristal do quadrante oeste, onde a
lua pairava alta e brilhante. No silêncio que sucede à tempestade, a neblina erguia-se dos rios, dos
lagos e dos pântanos estendendo uma densa cortina sobre todo o Delta. De qualquer ponto alto da
parte principal da cidade, podiam ser vistos os telhados dos prédios altos, e as casas pareciam grandes
pedras negras dentro de um canal móvel e branco. Além delas, os mastros das embarcações
marcavam o lugar em que a frota ianque estava ancorada, no rio.
No outro lado da cidade, a pouca distância da casa dos Craighugh, Cole Latimer conduzia o cavalo e
a charrete através da neblina misteriosa e cintilante. Só as batidas das patas do cavalo no chão úmido
e o som metálico das rodas rasgavam o manto abafado do silêncio. Com o rosto tenso, Cole olhava a
névoa cinzenta e praguejava mentalmente contra a própria estupidez. Um tolo, o maior dos tolos,
pensava ele. Como não percebera a diferença entre as duas mulheres? Eram opostas como o leste e o
oeste, ou, ele sorriu, talvez como o norte e o sul.
204
Não tinha percorrido uma grande distância quando um vulto escuro atravessou rapidamente a rua,
no meio da neblina, e desapareceu atrás de um enorme carvalho. Como não notasse mais nenhum
movimento, Cole, pensando numa emboscada, parou a charrete e tirou a pistola do coldre.
Você aí! Atrás da árvore! — chamou ele. — Saia para onde eu possa vê-lo.
Nenhuma resposta. Cole ergueu a arma e o clique duplo do cão sendo puxado para trás ecoou na rua
nevoenta. Ia chamar outra vez quando um vulto pequeno e negro apareceu. Cole abaixou a pistola,
reconhecendo a viúva na qual ele e Jacques estavam interessados. Guardou a arma no coldre,
amarrou as rédeas na charrete e desceu. Tocou a aba do chapéu cortesmente e aproximou-se dela.
— Minha senhora, é muito tarde e a noite está muito escura para uma senhora andar na rua sem
proteção. Posso fazer alguma coisa para ajudá-la?
A jovem balançou a cabeça, negativamente.
— Talvez possa levá-la a algum lugar?
Outra vez a negativa silenciosa. O que mais Alaina podia fazer? Se dissesse uma palavra, ele a
reconheceria. Amaldiçoando sua falta de sorte, começava a pensar que nunca ia se livrar daquele
ianque. Para qualquer lado que se virasse, lá estava ele, de tocaia.
Cole tirou as luvas e as enfiou no cinto.
— Minha senhora, como um cavalheiro, não posso deixá-la aqui, desacompanhada. Não quero ser
indiscreto, mas se me disser para onde deseja ir, eu a levo sem nenhum compromisso. Posso garantir
que não precisa ter medo de mim.
Alaina sorriu em silêncio. Se pudesse mudar a voz com a facilidade com que mudava de roupa, teria
dado uma resposta que Cole jamais esqueceria.
Ele tirou um charuto do bolso da camisa, depois procurou o fósforo. Ao que parecia, ia haver uma
longa conversação unilateral e, do modo como iam as coisas, era o mesmo que falar sozinho.
— Devemos esperar aqui, minha senhora? — perguntou ele. — Pelo menos até a senhora decidir
onde quer que eu a leve. Dou minha Palavra, não pretendo ir embora sem ter certeza de que a
senhora está em segurança.
Frustrada, Alaina o viu virar de lado para acender o fósforo na moldura de metal da charrete. Com o
fósforo aceso, Cole voltou-se,
205
disposto a esperar pacientemente de pé na rua. Ia levar a chama ao charuto quando as batidas
impacientes do pé da jovem chamaram sua atenção. Ergueu as sobrancelhas, percebendo que o
tamanho da viúva era exatamente o de... Al... ou Alaina. É aquela pequena atrevida...
Segurando o charuto entre os dentes, aproximou a chama do chapéu preto e com a outra mão ergueu
o véu. Seus olhos encontraram os de Alaina e ele esqueceu o fósforo, até a chama alcançar seus
dedos. Com uma exclamação surda, Cole atirou o fósforo para longe e balançou a mão.
— Queimou-se, capitão? — perguntou Alaina, condescendente.
— Sim! — disse ele, irritado, jogando o charuto na sarjeta.
— Quem brinca com fogo, capitão... — provocou ela. — Bem, você conhece o ditado.
— Aprendi a ter muito cuidado com meninos perdidos e panelas quentes — resmungou ele. —
Tenho de aumentar a lista para incluir viúvas e fósforos, ou talvez reduzir tudo para apenas Alaina
MacGaren.
— Como queira, senhor. Mas não tive nada a ver com isso — lembrou ela. — O descuido foi seu.
— Não lhe ocorreu ainda que devia ter me contado tudo que aconteceu naquela noite — disse ele,
ainda zangado. — Se não estou enganado, teve muito tempo para evitar o casamento.
— Mas, capitão — ronronou Alaina, sorrindo com malícia. — O senhor parecia tão ansioso e
satisfeito. Como eu podia perturbar tanta felicidade?
— Maldição, mulher — rugiu ele, depois abaixou a voz cautelosamente. — Será que é tão boba que
não saiba porque casei com ela?
— O tio Angus teve algo a ver com o negócio, se não me engano — disse ela, atrevidamente.
— Perdoe-me — disse Cole, com desprezo — por ter pensado que você e Roberta eram tão
diferentes. Afinal, parece que as duas pensam do mesmo modo.
— E o que quer dizer com isso? — perguntou Alaina, indignada.
— Não importa — rosnou ele. — Será meu segredo eterno. De qualquer modo, duvido que acredite.
— Com um gesto irritado, apontou para o vestido preto. — Teve tempo para fazer as malas? Ou
está só com a roupa do corpo?
Alaina foi até a árvore e voltou com a mala de vime e, quando ergueu os olhos, Cole estava muito
perto dela, dominando-a com sua
206
altura. Com as mãos na cintura, ele a observava com evidente desaprovação.
— Srta. MacGaren, eu não me arrogo o título de cavalheiro nato — disse, com voz firme. — E a
senhorita, certamente, nunca disse que é uma dama. Entretanto, vamos, de comum acordo, procurar
parecer duas pessoas educadas e finas. — Inclinou-se e tirou a mala da mão dela. — Se me permite,
mademoiselle. — Curvou o corpo, batendo os calcanhares e estendeu a mão num convite.
Ofendida, Alaina levantou a cabeça e ajustou o xale de lã nos ombros. Podia se arranjar muito bem
sem o conselho daquele ianque, e sem sua ajuda. Se ele queria tanto sua mala de vime, podia deixá-la
com ele e seguir seu caminho na noite escura, livre do peso. Na verdade, estava resolvida a fugir dele,
mas a sarjeta, bem à sua frente, estava cheia de água e não podia passar por cima sem se voltar para
ele. Erguendo a saia quase até os joelhos, levou um pé para trás, preparando-se para saltar o
obstáculo. Mas de repente a noite se inclinou e ela foi erguida do chão por braços fortes e apertada
contra o peito largo, do qual se lembrava tão bem.
— Como se atreve! — exclamou ela. — Solte-me! Ponha-me no chão!
— Então, esforce-se mais para parecer uma dama—recomendou Cole, sem nenhum movimento
para obedecer. Caminhando a passos largos, ele começou a fazer uma preleção sobre como ser uma
dama.
— Uma mulher fina nunca mostra os tornozelos sem mais nem menos, nem carrega a própria mala,
quando na companhia de um cavalheiro.
— E vai me dizer que um cavalheiro pode segurar uma dama com tanta grosseria? — perguntou,
zangada, mas passando o braço pelo pescoço dele e ajeitando-se comodamente naquele ninho. —
Devo dizer que, a despeito das várias ameaças contra sua pessoa, Al foi tratado com mais gentileza.
Talvez eu tenha escolhido o disfarce errado. Sem dúvida, você seria mais delicado com o garoto.
— Pode ser — murmurou ele, com voz distante, parando ao lado da charrete. — Mas prefiro sua
forma atual à daquele pequeno espantalho.
Estavam tão próximos que Alaina podia ver claramente o rosto dele, e o sorriso suave e preguiçoso
despertava lembranças ardentes que, embora excitantes, eram extremamente perturbadoras. O calor
e o estremecimento que percorreram seu corpo a fizeram perder por
207
completo a compostura. Virou o rosto, revelando o rubor que teria passado despercebido na neblina
da noite.
— Capitão, quer fazer o favor — procurou pôr os pés no chão. — Suas familiaridades persistentes
me cansam. E permita-me lembrar que é um homem casado.
Cole a pôs na charrete, furioso outra vez.
— Um fato que pesa muito mais na sua discrição do que na minha, srta. MacGaren.
Cole pôs a mala de vime ao lado da sua na parte traseira da charrete e cobriu as duas com a lona.
Acendeu um charuto rapidamente, e à chama do fósforo Alaina viu a expressão furiosa do rosto dele.
Sem dizer nada, afastou-se para o lado, para que Cole pudesse sentar-se no banco. Mas quando ele
ergueu o pé para subir, ela pôs a mão sobre o assento de couro e quando Cole ergueu os olhos
intrigado, ela sorriu condescendente.
— Sinto falta da mala entre nós dois, capitão.
— Será que é mágica e pode proteger sua virtude? — perguntou secamente. — Quer que eu vá
apanhá-la?
Com afetada timidez, Alaina olhou para as mãos cruzadas no colo.
— Que virtude, capitão? — Sua voz baixa e suave era quase um grito na noite escura.
A resposta foi explosiva.
— Maldição!
Sem mais nada para dizer, Cole subiu na charrete e ergueu as rédeas. Depois de um longo momento,
ele as abaixou outra vez e, recostando-se no banco, apoiou o pé na proteção de madeira.
— Ainda não disse para onde quer ir, srta. MacGaren.
— Não estou pensando em nenhum lugar especial, capitão. — Tenho pouco dinheiro para gastar
com hospedagem, como deve saber. Tinha pensado que talvez o dr. Brooks me desse abrigo por
uma noite.
— Tenho ainda o apartamento no Pontalba — informou Cole, com voz inexpressiva. — Como vou
me ausentar por algumas semanas, está à sua disposição. Pelo menos terá privacidade e algum tempo
para acertar as coisas.
Alaina inclinou a cabeça para trás com um riso brusco e breve.
— É claro, capitão, e durante essas semanas passo a ser considerada sua amante, e quando voltar,
certamente essa situação se tornará realidade. Oh, onde está você, cavalheiro gentil?
— Que diabo, menina. — Cole ergueu as rédeas outra vez e pôs
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a charrete em movimento. — Os restos da sua virtude são os maiores obstáculos que já
enfrentei. — Olhou zangado para ela. — Sinto profundamente a dificuldade da sua situação
e sei que em parte a culpa é minha. Ofereci o apartamento com a melhor das intenções. —
Mordeu o charuto quase no fim, e depois de uma pausa, continuou: — Estou farto da sua
choradeira. Vai ficar no apartamento e não se fala mais nisso.
Alaina retribuiu o olhar furioso, mas ficou calada, sem ceder nem recusar. Seguiram por
alguns minutos em silêncio, enquanto Cole fumava o charuto e se acalmava, pondo em
ordem os pensamentos. Alaina foi arrancada da sua meditação pelo riso breve e sem humor.
— A noite o incomoda, capitão?
— Acabo de me lembrar, srta. MacGaren que, nos últimos meses, três pessoas entraram na
minha vida modificando-a. Não tinham um rosto definido, mas todas traziam a marca desta
guerra. Primeiro foi um garoto andrajoso fugido de casa, e eu pensei que ele precisasse da
minha atenção. Depois, uma mulher que deixou sua marca em mim, sem que eu soubesse
exatamente como era seu rosto. Por fim, a viúva que, embora com o rosto coberto por um
véu, tinha um corpo que despertou minha imaginação e me fez procurá-la por toda a parte.
— Olhou de soslaio para Alaina. — Agora, descubro que são a mesma e única pessoa. Diga-
me, srta. MacGaren, estou mais rico ou mais pobre com essa descoberta?
O franzido da testa de Alaina transformou-se num sorriso agridoce e ela olhou
pensativamente para a neblina espessa.
— Alguém já escreveu, capitão, que a guerra é um inferno?
A charrete continuava na noite escura, as rodas girando sobre as pedras da rua, as patas do
cavalo batendo ritmadamente, o banco rangendo, mas nenhum dos dois disse mais nada. As
ruas estavam desertas. A violência da tempestade havia tirado até os bêbados das calçadas e
por alguns breves momentos, naquela hora da madrugada, parecia uma cidade sem vida.
Cole puxou as rédeas e pararam na frente do prédio de tijolos vermelhos onde ele morava
antes. Ele desceu, retirou a mala dela da charrete e voltou para ajudar Alaina a descer. Ela
ficou sentada, com o corpo rígido e o queixo levantado, numa atitude de obstinada
insubordinação. Cole não pôde deixar de admirar a coragem daquela mulher. Não conhecia
nenhuma igual a ela, e a verdade era que Alaina,
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sob qualquer forma de disfarce, tinha o dom de perturbá-lo profundamente.
— Vai criar dificuldade, srta. MacGaren? — perguntou, com olhar intrigado.
Os olhos claros voltaram-se para ele com profundo desdém.
— Quer que me mandem para a ilha Ship, capitão?—perguntou, em voz baixa e rouca.
Cole pôs a mão na proteção de madeira da charrete e olhou para ela.
— De modo algum. Sei que é inocente de pelo menos duas acusações.
— Então, eu imploro, senhor. Não use meu nome, que todos conhecem e odeiam.
— É claro. — Cole tocou na aba do chapéu. — Peço desculpas, minha senhora. Serei mais
cuidadoso. — Alaina viu a sombra de um sorriso no rosto dele. — Tem preferência por algum
nome?
— Nenhuma, capitão.
Com um sorriso irônico, ele estendeu a mão para ajudá-la a descer.
— Al não serve mais. Temos também, é claro, Laine. — Alaina olhou furiosa para ele, e Cole
balançou a cabeça, rindo. — Não, acho que não.
Cole teve o cuidado de não encostar a mão nas costas dela quando a conduziu até a porta do
apartamento, por mais que desejasse tocá-la. Quanto a Alaina, estava temerosa de entrar no
apartamento, agora que não tinha mais o disfarce de Al para protegê-la daqueles olhos que a tocavam
como nunca fora tocada antes. Preocupada e silenciosa, esperou que ele abrisse a porta e depois
virou o rosto, ouvindo passos apressados na direção deles.
— Capitão! Capitão Latimer!
Um jovem tenente aproximou-se de Cole com a mão estendida, e Alaina virou rapidamente o rosto
para o outro lado. Percebeu que Cole se pôs entre ela e o tenente e sentiu-se grata pela consideração.
— Ouvi dizer que casou e deixou o apartamento, capitão — disse o homem, sacudindo a mão de
Cole. — O que está fazendo aqui a esta hora da madrugada?
Cole franziu a testa, compreendendo que o tenente continuava a fazer jus à fama de maior curioso e
novidadeiro do exército da União.
— Tive uma noite muito longa, tenente, e minha mulher sofreu
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um choque terrível. — Isso pelo menos não era mentira. — Quer nos dar licença?
— É claro, senhor. Não tive intenção de perturbar...
Cole segurou a porta aberta para Alaina, pôs a mala de vime perto da entrada e acendeu o lampião
antes de voltar-se para fechar a porta. O tenente continuava no corredor, esticando o pescoço para
ver melhor a mulher de preto. Com um olhar gelado, Cole disse:
— Boa noite, Baxter.
O tenente não teve outro remédio senão desaparecer. Cole fechou a porta e ficou parado ouvindo os
passos, que se afastavam. Depois voltou-se e encontrou o olhar acusador de Alaina.
— Eu o deixei escolher um nome para mim, senhor, mas o senhor foi longe demais, fazendo o
homem pensar que sou a sra. Latimer.
Cole deu de ombros.
— Se ele pensar que é minha mulher, não vai ser incomodada por mais nenhum homem enquanto
eu estiver fora e Baxter não terá nada para comentar enquanto eu estiver aqui.
— Muito confortável para o senhor—observou ela, com sarcasmo. Cole franziu a testa, irritado.
— Talvez eu deva pensar no fato de que me deve alguma recompensa por me fazer casar com outra
mulher. — Sua irritação cresceu. — Ou devo ser grato? Será que enriqueceu minha vida com seu
silêncio? Menina, eu estaria muito melhor se você não tivesse feito essa brincadeira comigo.
Alaina tirou o chapéu e passou os dedos trêmulos no cabelo curto. Cole ficou parado na frente dela,
alto e forte, olhando-a nos olhos. Reconhecendo a verdade do que ele acabava de dizer, Alaina não
encontrou resposta, e num instante abandonou a postura de coragem e desafio.
— Vou sair agora—disse Cole, com voz mais calma, percebendo o medo dela. Levou a mala de vime
para o quarto e acendeu o lampião na mesa-de-cabeceira. Olhou para Alaina parada nos pés da cama,
sem poder tirar os olhos daquela bela mulher. Como se deixara enganar tão completamente? — Você
sabe onde estão as coisas. Vou deixar a chave. Não esqueça de trancar a porta quando eu sair.
— Não vou me esquecer — murmurou ela, timidamente, abaixando os olhos.
— Alaina. — O nome soou como o vento nas árvores. Cole
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estendeu o braço e acariciou uma mecha de cabelos dela entre os dedos, mas ela recuou, na
defensiva, protegendo a cabeça com o braço.
— Eu já disse! — Sua voz embargada era um grito de raiva. —. Não gosto de ser tocada!
Cole abaixou a mão e respirou fundo.
— Volto de manhã com comida.
— Não preciso de esmola — murmurou Alaina. — Posso cuidar de mim.
Cole olhou rapidamente para ela.
— Eu cheguei a uma conclusão a esse respeito no dia em que nos conhecemos, quando você estava
quase morta de fome. Continuo pensando do mesmo modo.—Foi até a sala, tirou a capa
impermeável do armário e caminhou para a porta. — Vou voltar.
Cole saiu, e Alaina, depois de girar a chave na fechadura, encostou-se na porta, sentindo-se fraca e
desanimada. Não suportava a idéia de passar a noite naquele apartamento, dormir na cama de Cole,
rodeada por tudo que era dele. Cole pertencia a Roberta, e Alaina não tinha direito nenhum sobre
ele.
Começou a trabalhar freneticamente. Sabia o que devia fazer. Embora cansada, não podia ficar além
do tempo necessário para mudar seu disfarce. Despiu-se e dobrou a roupa cuidadosamente na mala
de vime, depois vestiu as roupas de Al. Com um estremecimento de nojo, mais uma vez passou no
rosto e nos braços a fuligem da lareira e enfiou o chapéu amarrotado na cabeça.
Depois de certificar-se de que não havia ninguém por perto, Alaina saiu do apartamento e foi como
Al, o garoto sujo e descalço, que começou a descer cautelosamente a escada, mas no último patamar,
viu-se frente afrente com o tenente Baxter, com olhos de sono, envolto num roupão e carregando
um jarro com água. Sem parar, Alaina disse o nome dele com voz alta e clara e acrescentou:
— Bom dia, senhor — passando rapidamente.
Antes que o tenente, cheio de sono, tivesse tempo de responder, o garoto já estava longe.
O tenente Baxter olhou para a escada, pensando nas diversas coisas que devia fazer, uma das quais
era alertar o prédio todo para que procurassem o garoto invasor. Imaginou as carrancas dos coronéis,
majores e capitães se os acordasse àquela hora. Depois de um momento, Baxter deu de ombros,
resmungou alguma coisa e voltou para a cama.
212
. parou na sombra da porta para calçar as meias de lã e os sapatos grandes demais, depois afastou-se
do Pontalba com calma para não despertar atenção. Estava longe da praça Jackson suficientemente,
quando viu uma grande carroça pesada que ia para o norte, certamente com alguma mercadoria. O
cocheiro cochilava no banco e não percebeu quando o garoto subiu na traseira da carroça, nem
quando ele desceu no cruzamento da estrada do rio.
A sra Hawthorne sempre levantava cedo para ver a neblina pesada do nascer do dia no Sul.
Geralmente recebia o sol passeando no seu jardim florido. Nessa manhã, quando abriu a porta, viu
"Al" sentado na mala de vime, encostado numa das vigas da varanda e dormindo profundamente. A
velha senhora ajoelhou-se ao lado de Alaina e sacudiu delicadamente o ombro dela, até os olhos
claros se abrirem.
Venha, minha filha — disse ela. Ajudando Alaina a ficar de pé, ela a levou para dentro, a fez sentar-
se num sofá da sala e a cobriu com um xale de lã. Exausta, Alaina apenas esboçou um sorriso de
agradecimento e voltou a dormir. — Durma, minha filha — disse a sra. Hawthorne, suavemente. —
Está segura aqui, e eu a chamo quando o café estiver pronto.
Descansada e mais animada, depois de comer, Alaina recostou-se na cadeira para tomar o café forte e
quente, feito especialmente para ela, e olhou para o relógio.
— Não devia ter me deixado dormir tanto, sra. Hawthorne. São quase dez horas.
— Você precisava do descanso, Alaina. Mas que história é essa sobre seu capitão? Está se
escondendo dele também?
— Especialmente dele! — exclamou Alaina. — Estou farta de ver aquele barriga azul aparecendo em
todo lugar que eu vou.
— Compreendo.—A sra. Hawthorne observou a jovem zangada e nervosa por um longo tempo. —
Muito bem, quais são seus planos?
— Vou para casa. Gostaria de ver Briar Hill mais uma vez, antes que seja vendida. — A idéia de
algum ianque esparramado na sala de estar da sua mãe apertava-lhe o coração.
— Mas, minha filha, como vai viajar? — perguntou a sra. Hawthorne.
Alaina mordeu o lábio, nervosa.
Se eu disser, os ianques podem obrigar a senhora a contar a
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eles, ou até levá-la para a cadeia. Não posso deixar que corra esse perigo.
A sra. Hawthorne deu uma gargalhada e inclinou-se para Alaina, com os olhos brilhantes.
— Escute aqui, minha jovem. Há anos que não me divirto tanto. Ora, desde que você apareceu, o
sangue voltou a circular nas minhas veias. Eu temia estar condenada a um fim de vida monótono e
sem cor, mas agora mal posso esperar o que vai acontecer no próximo minuto. No meu tempo,
enfrentei homens muito melhores do que os que existem hoje, à exceção do seu capitão ianque. Acha
mesmo que eu ia deixar que você saísse por aí sem a minha ajuda? De qualquer modo — indicou
com um gesto imperioso as roupas de Alaina — o dr. Latimer já conhece esse disfarce.
Alaina estremeceu.
— E o da viúva também. Aquela criatura sarnenta provavelmente vai me procurar só por maldade.
— Você foi um garoto por muito tempo, Alaina — observou a sra. Hawthorne. — Uma jovem
senhora tem mais cuidado com a linguagem que usa.
Alaina abaixou os olhos, lembrando a observação semelhante de Cole. Estava muito acostumada
com os modos de Al para abandoná-los de repente.
A sra. Hawthorne olhou para o relógio.
— Tenho certeza de que o seu capitão estará aqui antes do anoitecer. Temos de andar depressa para
que esteja longe antes dele chegar.
— Nós? — Alaina ergueu as sobrancelhas, mas a sra. Hawthorne já estava na cozinha. Voltou com
uma pequena vasilha de barro cheia com um líquido marrom e espesso e a pôs no centro da mesa.
— Isto é tinta de nogueira—explicou ela.—É usada para colorir lã e outros tecidos, mas poucos
sabem que pode colorir a pele também. Dura bastante, uma semana ou duas. — Fez uma pausa, com
os olhos cintilando de excitação. — Se misturar com óleo de algodão e aplicar como deve, vai
parecer uma mulata.
— Mas isso vai ser ainda mais perigoso. Posso ser apanhada e tomada por uma escrava fugida —
disse Alaina, apreensiva.
A sra. Hawthorne mal podia conter seu entusiasmo. Inclinou-se para Alaina.
— Tenho um amigo em Gretna, do outro lado do rio. É um
214
homem rico e independente. Para ele, os ianques são uns tolos e os rebeldes mal orientados. Sei que
ele nos ajudará.
Depois de algumas horas de sono na sala dos médicos, no hospital, Cole foi fazer os preparativos
para a próxima viagem. Logo que terminou, voltou para o apartamento, com comida e uma caixa de
roupas debaixo do braço. Não foi fácil comprar um vestido e os acessórios num domingo, mas à
custa de dinheiro, conseguiu que uma modista abrisse a loja. Sua primeira batida discreta na porta
não teve resposta. Bateu com mais força. Não se ouvia nenhum som no apartamento. De repente,
Cole teve a intuição de que Alaina tinha ido embora. Tirou a chave do bolso, abriu a porta, pôs as
compras na mesa do hall e chamou.
— Alaina? Alaina? — Percorreu rapidamente todo o apartamento. Sim, ela se fora, com o pouco que
tinha, não parando nem para descansar, pois na cama havia apenas a marca da mala de vime. —
Maldição! — exclamou Cole, furioso por ter confiado nela, por permitir que ela fugisse tão
facilmente. Só podia pensar que ela devia estar a caminho do seu destino, independente de qual
fosse.
Procurou o tenente Baxter e ficou sabendo que ninguém saíra do prédio naquela hora, a não ser um
garoto andrajoso. Cole não parou para responder as perguntas curiosas do homem. Correu para a
charrete e foi direto para a casa do dr. Brooks. Mas a governanta negra apenas ergueu os ombros.
— Não, senhor. O doutor não está e ninguém esteve aqui hoje. Só sabia de outro lugar onde podia
procurá-la, a casa da sra. Hawthorne. Ansioso para não permitir que aumentasse a distância entre ele
e Alaina, na sua fuga para algum lugar que ele não conhecia, Cole impacientou-se com a lentidão da
sua charrete de quatro rodas. Censurava-se por acreditar que Alaina ficaria onde ele a deixara. Aquela
mulher ainda ia acabar com ele.
Na casa da sra. Hawthorne, caminhou rapidamente para a varanda e bateu à porta, até perceber
movimento lá dentro. Esperou, batendo impaciente a luva na perna e logo foi recebido por um
grande sorriso.
— Ora, capitão! A que devo a sua visita?
— Alaina MacGaren esteve aqui? — perguntou ele, entrando na sala.
A sra. Hawthorne olhou para ele, espantada.
— Meu Deus, capitão. O que o senhor quer com ela?
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A sra. Hawthorne viu os olhos ameaçadores fixos na mala de vime que estava onde Alaina deixara.
Olhou para ela, furioso.
— A jovem se foi, capitão. Não adianta procurar por ela. Deixou toda a bagagem aqui.
— Para onde? — rugiu ele. — Para onde ela foi?
A sra. Hawthorne deu de ombros, e sorriu docemente.
— Texas, talvez. Ela tem alguns amigos lá. Ou talvez Mississippi. Se não me engano, ela disse que o
pai era do Mississippi. Ou talvez...
Com um rosnado que fez a sra. Hawthorne erguer as sobrancelhas, Cole foi até a mala de vime.
Abriu-a e encontrou as roupas da viúva, depois as de Al. Que diabo ela era agora? Voltou-se
rapidamente e viu que a sra. Hawthorne o observava calmamente.
— Como ela foi? Como estava vestida? De homem ou de mulher?
— Tantas perguntas irritadas, capitão. Não admira que ela tenha fugido do senhor — disse ela, com
ironia.
.,, — A senhora deu um cavalo para ela?
— Aceita chá, capitão? — perguntou ela, servindo uma xícara. Cole abanou a mão, com impaciência.
,- — Ela está a cavalo ou com uma charrete?
— A cavalo, eu acho — disse a sra. Hawthorne. — Mas, pensando bem, talvez de charrete. Ela
monta muito bem, o senhor sabe?
— Não duvido disso. Mas que disfarce ela estava usando?
— Ora, capitão — sorriu ela com benevolência. — Ela me fez prometer não contar ao senhor. E eu
sou uma mulher de palavra.
— E não vai me dizer para onde ela foi?
— Alaina não quer que eu conte nada ao senhor, capitão. — Ela ergueu as mãos abertas,
desculpando-se. — Sinto muito. Vejo que está perturbado. O senhor teme pela segurança dela?
— É claro. Ela não tem dinheiro, nem comida...
— Preparei um cesto com comida para ela, portanto, não vai passar fome pelo menos por uns três
ou quatro dias, mas ela não quis aceitar dinheiro. Garantiu que sabe se cuidar.
Cole bufou com desdém.
— Capitão? — A sra. Hawthorne olhou atentamente para ele. — Parece muito preocupado com
aquela jovem. Ela é sua parente?
— Distante, por casamento — respondeu ele, começando a andar pela sala.
— Uma pessoa especial, então? Sua amante, talvez? Cole virou-se rapidamente para ela.
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Dificilmente! — exclamou. — Até ontem eu pensava que ela era um garoto.
— Bem, isso deixa apenas uma coisa. — A sra. Hawthorne, depois de determinar o fato em sua
mente, cruzou as mãos e lançou a acusação: — O senhor está apaixonado por ela.
Cole cruzou as mãos nas costas e lutou para conter o riso com o absurdo da idéia. Inclinou-se para a
frente e disse, como quem explica alguma coisa a uma criança retardada:
— Sra. Hawthorne...
— Não precisa ser tão formal, capitão. Tem permissão para usar meu primeiro nome, se quiser. Tally
é como todos me chamam. — Empertigada na cadeira, esperou que ele continuasse.
— Tally. — Cole fez uma pausa para ordenar as idéias e tentou outra vez: — Eu me casei há poucos
meses e conhecia Alaina apenas como "Al", antes disso. Simplesmente sinto-me responsável por ela.
Alaina tem... bem... um talento especial para se meter nas maiores encrencas e é muito esquentada
para evitar problemas. Quero apenas oferecer a ela minha proteção constante.
— É claro, capitão. — A voz e o sorriso eram angelicamente inocentes. — E tem feito um belo
trabalho nesse sentido.
Cole olhou para os olhos brilhantes e compreensivos e teve a impressão de que Tally Hawthorne
estava tanto do seu lado quanto contra ele. Era uma situação confusa, que não dava ensejo a maiores
argumentos. Apanhou o chapéu e as luvas e chegou na porta.
— Boa noite, Tally.
— Sinceramente, desejo que tenha sorte na sua missão e que encontre aquela menina, capitão. Agora,
boa noite.
Cole abriu a boca para responder, mas a sra. Hawthorne recolhia o bule e as xícaras de chá, como se
ele já não estivesse ali. Cole foi embora.
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Capítulo Dezoito
NA SEGUNDA-FEIRA, o sétimo dia do mês dos ventos, o capitão Cole Latimer levantou-se cedo.
Com um último olhar para o apartamento, apanhou seus alforjes e partiu, aliviado por ver terminar
aquela noite inquieta e insone e dirigir a mente para um novo objetivo. No hospital, apanhou as
ordens que o designavam como oficial-médico da Primeira Divisão do 19° Corpo do Exército, sob o
comando do general William H. Emory, e recebeu a pesada maleta de couro recurvada na
extremidade inferior para se adaptar à sela, com os instrumentos para atendimento médico de
campo. Parou por um momento na porta da sala dos médicos e olhou para dentro. "Al" podia ter
resolvido voltar. O desapontamento foi mais amargo pelo fato de reconhecer a própria fraqueza em
esperar o impossível.
Passando pelo quadro de avisos, apanhou um volante que notara vagamente antes e guardou no
bolso. Depois de comprar a passagem no barco a vapor para Gretna, tirou o papel do bolso da
túnica e leu atentamente.
BRIARHILL
LEGALMENTE CONFISCADO propriedade da renegada
ALAINAMACGAREN
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800 hectares, aproximadamente300 cultiváveis (estimados)
Casa, estábulo, casa para carruagens intactos. Outras construções externas ". precisando reparos.
Lance mínimo aceitável: 5.000 dólares "
Somente lances secretos.
Leilão: 12 de abril de 1864”
Encostado na grade de ferro do pequeno barco a vapor, Cole olhou para o rio. Tão certa quanto o
rangido do pequeno barco era sua conclusão de que Alaina estava voltando para casa, nem que fosse
para um último olhar. O itinerário da marcha do exército atravessaria Cheney ville, a poucos
quilômetros de Briar Hill. Talvez tivesse a sorte de ver, de passagem, o pequeno vulto tão familiar.
Em Gretna, Cole levou o cavalo para o vagão de transporte de animais, do trem que ia para Brashear
City, onde estava o exército, depois foi para o vagão de passageiros, esperando poder recuperar um
pouco do sono perdido na noite anterior. Mas sua mente cansada negou-se a proporcionar esse
descanso e, sem poder fechar os olhos, a viagem pareceu interminável.
O major Magruder esperava ansiosamente por ele na estação de Brashear City. O major protestara
com veemência quando recebera ordens para fazer parte da campanha, mas agora que Cole se
oferecera para tomar seu lugar, estava impaciente para voltar ao seu confortável apartamento em
Nova Orleans. Assim que o capitão desceu do trem, ele se aproximou e, dispensando o cumprimento
formal, foi logo dizendo:
— O acampamento dos médicos fica a quatro quilômetros a oeste, na margem do lago. É um ótimo
lugar, mas tenha cuidado com os mosquitos. Atacam impiedosamente, com tanto sangue ianque à
disposição. — Com voz monótona, desfiou um rosário de ordens diretivas e descreveu o estado
geral de prontidão da equipe médica, dizendo que Cole poderia pôr-se em movimento
imediatamente. Então fez uma pausa e pigarreou: — Alguma pergunta, capitão? — Cole disse que
não tinha perguntas, e Magruder se animou.—Ótimo! Então
219
não vai precisar de mim e vou apanhar meu cavalo. — Deu alguns passos, depois olhou para Cole
com um sorriso: — Eu lhe desejaria boa sorte, capitão Latimer, mas acredito que essas frivolidades
não têm lugar em sua primeira campanha.
A maioria das unidades pelas quais Cole passou parecia estar em estado de completo repouso, e não
de alerta, e preparada para a partida a qualquer momento. Os homens que conseguiam evitar os
grupos de trabalho passavam o tempo descansando. O hospital de campanha não era exceção, e o
ambiente lembrava um piquenique domingueiro.
O sol apenas começava a tocar as copas das árvores quando o encarregado conduziu Cole à barraca
até então ocupada pelo major Magruder, e já era noite quando ele voltou do refeitório dos oficiais. À
luz de um único lampião, ele assinou o diário da unidade e entrou na sua barraca.
O dia 8 de março amanheceu claro e ensolarado, com a promessa da continuidade do bom tempo. O
capitão Latimer levantou-se antes do sol, e depois de um lauto café da manhã, voltou para sua
primeira inspeção ao pequeno destacamento sob seu comando. Não encontrou nenhuma ordem do
dia, e um cabo, na barraca da administração, informou que isso não existia e que o major Magruder
era responsável pela organização da unidade médica. Esperando o pior, Cole procurou o sargento-
ajudante e os dois foram ao estacionamento dos veículos. Tinham 25 carroças de suprimento e o
mesmo número de ambulâncias reforçadas, além de cinco transportes de medicamentos. As
ambulâncias eram novas e estavam em boas condições. Mas quando abriu a parte traseira de uma
carroça de suprimentos, Cole desejou que Magruder caísse finalmente numa fossa de privada, como
Alaina queria. Voltou-se para o sargento e perguntou com voz fria como um sopro de inverno:
— Onde estão os conhecimentos de embarque destas carroças?
— Não temos conhecimentos, senhor — disse o homem, calmamente. — Nós só as carregamos
com tudo que estava disponível. O major disse que não tinha importância. De qualquer modo, em
caso de luta, todas as carroças ficariam agrupadas.
— E como vamos encontrar alguma coisa sem descarregar todas? Acha que gostaria de fazer isso,
sargento? — O tom incisivo de Cole dizia claramente que tinham cometido um erro. — Sugiro que
escolha alguns homens para descarregar essas carroças e arrumar essa desordem.
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— Mas, senhor! — O sargento olhou para Cole e não disse mais nada.
— Sargento. — Cole começou, em voz baixa, quase com gentileza. — Se esta carroça for atingida
por uma bala de canhão, cerca de dois hectares de pântano ficarão cobertos de ataduras, o que não
acontecerá com nenhum soldado, durante todo o resto da campanha. Na outra, está todo o láudano
e todo o 41cool. Se ela cair num braço do rio, teremos o bando mais feliz de jacarés da redondeza.
— Sim, senhor. — O sargento-ajudante compreendeu. — Vou destacar os homens, senhor.
Imediatamente, senhor.
Foi um dia para pôr à prova a alma de qualquer homem. Foram organizadas ordens de serviço,
consignadas cinco carroças de suprimento e cinco ambulâncias para cada divisão. Foram escolhidos
os homens que iam dirigir cada carroça, dois padioleiros e um enfermeiro para cada ambulância. Um
cirurgião assistente era responsável pelas carroças com os medicamentos, e todas as carroças deviam
acompanhar a equipe do comandante da divisão. Depois, todos os suprimentos foram separados,
anotados e divididos pelas carroças, de modo que a perda de uma delas não prejudicasse
permanentemente toda a campanha.
Ao cair da noite, tudo parecia mais em ordem e as carroças estavam carregadas. Cole armou seu
mosquiteiro e escolhia mentalmente os adjetivos apropriados para o major Magruder quando um
mensageiro chegou à sua barraca. Depois de uma continência perfeita, o jovem soldado informou o
capitão de que o grupo do Quartel General e as duas divisões do 13° Corpo do Exército deviam
liderar a marcha, ao amanhecer do dia 9. A divisão de Cole, a primeira do 19° Corpo, seguiria assim
que a estrada estivesse livre logo depois do cruzamento.
O céu vermelho como sangue, no começo do dia, poderia ser interpretado como um terrível
presságio. A neblina desfez-se ao primeiro calor do sol e os pensamentos sinistros desapareceram
com ela. A divisão levantou acampamento e se pôs em marcha no meio da tarde, e ainda não tinham
perdido de vista o local da partida quando receberam ordem de acampar para a noite. Cole
perguntou a si mesmo se Magruder estaria dirigindo aquela campanha.
O dia 10 de março começou cinzento e enevoado, e antes que fossem acesos os fogos para o café,
uma chuva fina começou a cair. Cole vestiu a capa impermeável e puxou para baixo o chapéu Hardee
antes de montar seu ruão. Determinara que uma das ambulâncias
221
ficaria ao seu lado, enquanto não fosse necessária em outro lugar, e nela guardou seu equipamento
médico.
O exército do general Franklin, embora formado por homens experientes, não tivera tempo ainda
para funcionar como uma unidade. As colunas marchavam em filas irregulares, e à medida que o
solo, antes firme, se transformava em um traiçoeiro mar de lama, as paradas tornavam-se mais
freqüentes. O Bayou Teche corria à direita, e à esquerda estendia-se o pântano negro. Sair da estrada
significava passar da incerteza para a calamidade.
A garoa fina transformou-se numa chuva pesada e insistente, que durou todo o resto do dia. A lama
vermelha grudava tenazmente em tudo que a tocava e parecia estar por toda a parte. Naquela noite,
quando acamparam, as carroças ficaram onde tinham parado, e cada um procurou um pedaço de
chão sólido, ou semi-sólido, para descansar o corpo exausto. Com a pouca madeira seca que
encontraram, acenderam as fogueiras, e uma densa névoa subiu do pântano, envolvendo a coluna de
32 quilômetros de extensão. Um dos últimos pensamentos de Cole, antes de mergulhar no sono tão
necessário, foi de que as forças da natureza pareciam combinadas para evitar que ele chegasse a Briar
Hill, enquanto Alaina ainda estava lá. Nos dias seguintes, seu desespero cresceu, pois a chuva
continuou incessantemente.
Sob a mesma chuva fria, o objeto dos pensamentos de Cole, parada, com os olhos rasos de lágrimas,
olhava para a longa avenida de carvalhos. As janelas e a porta da frente da casa branca estavam
fechadas com tábuas cruzadas. Era uma grande casa tipo chalé, de estilo antilhano, com telhado
longo e em declive, janelas de sótão e varandas com colunas circundando três lados. Para Alaina era
o lar! Briar Hill! Depois de quase cinco dias, finalmente estava em casa.
Bateu com as rédeas nas costas dos dois cavalos decrépitos e os animais seguiram pelas poças d'água,
puxando a velha carroça fúnebre. O caixão envolto em pano preto, dentro da traseira envidraçada da
carroça, era suficiente para afastar os curiosos, e ninguém prestou atenção ao garoto mulato sentado
na boléia, pois as pequenas bandeiras amarelas, nos dois lados, eram um aviso de que o morto fora
vítima da febre amarela e as pessoas preferiam manter uma distância respeitosa.
Um chapéu alto em forma de chaminé cobria o cabelo curto e
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despenteado de Alaina e o casaco tipo fraque disfarçava seu corpo de mulher. A pele fina e clara
estava escurecida com tinta de nogueira, completando o disfarce do jovem criado levando o patrão
morto para casa. A carroça era do agente funerário, amigo da sra. Hawthorne. Como a velha senhora,
ele a ajudou com entusiasmo, dizendo que não precisava se preocupar em devolver a carroça
fúnebre.
— Se você é amiga de Tally, minlja cara — garantiu ele —, sinto-me honrado por poder ajudá-la.
Além disso, a carroça é quase tão velha quanto eu e não vale o trabalho de trazê-la de volta. Não se
preocupe com isso.
Assim, Alaina começou sua viagem para casa e com voz lamentosa e lenta avisava os que ousavam
chegar mais perto: "Afastem-se! O meu patrão morreu de febre e os ianques dizem que ele teria de
ser queimado se ficasse onde estava. Mas a patroa quer que seja enterrado perto da casa em que ele
nasceu."
Dossel de galhos cobertos de musgo caíam gotas de chuva. Alaina lembrou dos seus últimos dias em
Briar Hill e das suas dificuldades quando os ianques ocuparam Alexandria, em 1863. O inimigo
confiscou toda a colheita, o gado, o algodão e a madeira, e queimara muitas casas. Briar Hill escapara
do fogo, mas não da devastação dos seus campos nem do roubo dos animais e do algodão. Alguns
fazendeiros conseguiram esconder nos pântanos umas poucas barcaças carregadas de algodão, mas,
mesmo assim, Banks saiu da cidade com um bom suprimento da fibra preciosa. Entretanto, suas
perdas pareciam superficiais, comparadas ao que dera ao capitão Latimer. Aquela noite estava para
sempre gravada na sua lembrança.
As folhas das árvores eram novas e verdes, sem dúvida apressadas pelas intermináveis chuvas da
primavera. As azaléias estavam em flor e, mesmo sob a chuva, tinham a cor viva e vibrante dos dias
felizes. Mas, afinal, só as pessoas e as circunstâncias mudam nos tempos difíceis. A primavera chega
todos os anos com sua explosão de cores e de perfumes. As árvores continuam de pé, no meio da
dor e do sofrimento, para trazer nova vida sob o sol escaldante ou sob a chuva fria.
Chegando mais perto, Alaina viu a grande cruz vermelha pintada na porta e sentiu toda a injustiça
das acusações que pesavam nos seus ombros. Fora condenada como traidora, por seu próprio povo,
sem nenhuma oportunidade para se defender. A cruz significava o veredicto. Eles a matariam, se
pudessem.
223
Trêmula, Alaina desceu do carro e subiu os degraus da frente da casa. O riso leve da mãe ecoou em
sua mente e os rostos do pai e dos irmãos passaram como fantasmas por sua lembrança. Fora feliz
naquela casa, com sua família, mas nada restava da alegria que morava antes ali. O encanto de Briar
Hill, bem como seus entes queridos, estava morto para sempre.
Com passos lentos, Alaina caminhou pela varanda, para o lado da casa, olhando atentamente para
cada janela fechada com tábuas. Arbustos floridos cresciam contra as paredes, e seu perfume se
misturava ao cheiro limpo da chuva. Era o cheiro de casa, pensou Alaina.
A cozinha ficava atrás, separada da casa. A port ados fundos estava fechada apenas com uma tábua.
Alaina passou por baixo dela e com o ombro forçou a porta, que sempre fora difícil de abrir quando
o tempo estava úmido. Entrou, fechou a porta rapidamente, e procurou ajustar os olhos à escuridão
inusitada que envolvia a sala de jantar. Só um ou dois raios da luz mortiça da tarde passavam pelas
frestas das janelas, e o som dos seus passos era vazio e cavernoso. Quando seus olhos se
acostumaram à luz fraca, percebeu que a maior parte dos móveis desaparecera. Correu para o quarto
dos pais, depois para a sala, mas estavam quase completamente vazios, ocupados apenas pelas
sombras da sua lembrança. Não podia ver nem tocar os objetos, que durante tantos anos foram parte
da sua vida. Era como a morte de um ente querido e a dor intensa apertou seu coração.
Alaina caminhou lentamente para seu antigo quarto, onde a maior parte dos móveis estava
exatamente como deixara. Sentou-se na beirada da cama, cansada, desanimada, com uma sensação de
desespero e de vazio. Com um soluço surdo, deixou que as lágrimas descessem livremente dos olhos.
Agarrou-se com as duas mãos ao colchão desforrado, como se por um simples ato de vontade
pudesse agarrar as lembranças da sua casa. A porta dos fundos rangeu e passos pesados soaram na
sala. Cheia de medo, Alaina levantou-se, para enfrentar o intruso. Mas quando o viu, ficou paralisada,
com os olhos muito abertos, as lágrimas esquecidas, uma expressão de incredulidade no rostinho
fino.
— Miz Alaina? — perguntou a voz tão conhecida, incerta ainda. O negro gigantesco aproximou-se
mais, hesitante.—É você, menina?
— Saul! — O grito de alegria vibrou no silêncio da casa, e Alaina lançou-se para a frente, para a
proteção dos braços fortes. Chorava
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agora de alegria, enquanto Saul batia, desajeitadamente, nas suas costas — Oh, Saul, pensei que você
estava morto!
Não, senhora — sorriu ele, recuando um pouco. — Aqueles ianques ficaram à minha procura quase
uma semana, mas eu consegui enganar todos. Eu não queria levar os ianques para onde você estava,
Miz Alaina.
— Pensei que eles o tinham apanhado, por isso fui para a casa do tio Angus — fungou ela.
— Durante todo esse tempo, eu fiquei alerta, esperando. Achei que cedo ou tarde você ia voltar.
Com todas as coisas que ouvi, sabia que estava numa encrenca muito grande. Miz Alaina, parece que
as mentiras ficam cada vez piores. — Inclinou a cabeça para o lado e riu baixinho, olhando para ela.
— Ninguém ia conhecer você desse jeito. Está quase da minha cor.
Rindo e enxugando as lágrimas, Alaina apontou para um canto do quarto onde antes havia um
armário.
— Mas para onde foi tudo, Saul? Já não parece a mesma casa. Saul bufou, com desprezo.
— Aquele bando de chacais do fim da rua carregou uma porção de carroças e quando voltei, já
tinham tirado quase tudo. Eu dei uma espiada na casa dos Gillett, sem que eles me vissem e, sim
senhora, lá estava uma boa parte do que está faltando na casa. Quando o seu Jason voltar da guerra,
vamos ter uma conversa de arma contra arma com aquele lixo. O moleque mais novo, Emmett, vive
dizendo para todo mundo que foi ele quem expulsou você daqui. Não vai falar mais quando o seu
Jason voltar para casa.
Alaina suspirou.
— Acho que Jason não vai voltar, Saul.
— Ah, nããão — gemeu ele, lamentosamente. Com lágrimas nos olhos, o velho homem abaixou a
cabeça e a balançou com tristeza.
— Como você está vivendo? — perguntou Alaina, com voz trêmula.
Saul enxugou o rosto com a manga.
— Oh, não tenho tido problema, Miz Alaina. Passo quase o tempo todo no andar térreo e quando
aparece alguém por perto, eu me escondo no sótão. Aqueles Gillett vieram uma noite e eu peguei
umas correntes e comecei a arrastar pela casa toda, gemendo como uma porção de espíritos. Eles
voaram para casa. E nunca mais voltaram.
225
— Bem feito—resmungou Alaina. — Não passam de um bando de covardes.
— Sim, senhora, isso eles são mesmo — concordou Saul. — Então, faz pouco tempo apareceu um
homem elegante a cavalo com outros homens, um deles era aquele ianque que acusou a senhora de
espiã. Bom, o homem elegante disse que ia comprar Briar Hill quando a casa fosse a leilão. Ele e
mais dois homens e uma mulher com calça de homem foram para o bosque. Eu fui atrás e fiquei
bem perto. Eles enterraram alguma coisa lá e eu acho que era um dos homens, porque só os três
voltaram, o homem elegante, o tenente e a mulher. Ainda não tive coragem para cavar para saber o
que foi que eles enterraram.
A idéia de que um assassino ia comprar Briar Hill encheu Alaina de amargor. Tinha de fazer tudo
para evitar. Com voz decidida, disse:
— Temos de descobrir o que foi que eles enterraram. Saul olhou para ela, com ar de dúvida.
— Vai desenterrar um homem morto, miz Alaina. Ele já está lá há algum tempo.
— Se eu quiser limpar meu nome, precisarei provar que eles são assassinos, para reaver Briar Hill. É
o meu lar e não vou desistir sem luta!
— Sim, senhora — murmurou Saul, sem muita certeza.
— Vamos esconder a carroça fúnebre e os cavalos num barracão, depois, assim que anoitecer, vamos
ao bosque, com lanternas, para ver se descobrimos o que o homem elegante enterrou.
Naquela noite os dois jantaram relativamente bem. Tinham descoberto algumas espigas de milho no
celeiro, e a velha moenda logo os reduziu a farinha grossa. Restavam poucos ninhos no velho
galinheiro, e algumas galinhas tinham conseguido voltar, depois de espantadas pelos ianques. Alaina
achou meia dúzia de ovos e na despensa ao lado da cozinha encontrou sal e fermento que,
misturados com os ovos e com a farinha, produziram um pão dourado e delicioso. Feijões secos
foram cozidos com uma fina fatia de bacon do pedaço que Saul tinha na mochila e, para completar,
várias percas, pescadas por Saul, foram passadas na farinha e depois fritas. Pelo menos por alguns
momentos, puderam esquecer as dificuldades da guerra.
A lua subiu laboriosamente no céu noturno, formando halos prateados em volta das nuvens baixas,
que passavam rapidamente por ela. Alaina lavou as vasilhas de madeira num balde com água, depois,
apanhando um lampião, olhou para Saul.
226
Com um suspiro, ele se levantou, sem demonstrar nenhuma vontade de fazer o que ela queria. Mas
fez um gesto afirmativo.
— Vou pegar a pá.
O estranho casal começou apercorrer o bosque, à proccura do lugar certo, e foi quase com surpresa
que Saul parou num lugar de terra mais fofa entre dois pés novos de carvalho com marcas para
indicar o caminho. Evidentemente, alguém pretendia voltar ao lugar.
Com grande relutância, Saul começou a cavar, enquanto Alaina segurava a lanterna. A chuva era
agora úma garoa fina; esporádica, mas a terra estava encharcada e pesada. Ao fim de 45 ninutos, a pá
de Saul tocou em alguma coisa — alguma coisa muito dura. Por mais contrário que fosse ao que
estavam fazendo, o velho criado ficou curioso. Não era um corpo que eles tinham enterrado.
— Miz Alaina, chegue mais perto com a lanterna—pediu ele — Tem mais alguma coisa aqui.
Tirou mais uma pá de lama e imediatamente perdeu o entusiasmo, quando viu o que restava da mão
humana, precariamente pregada ao braço que estava sobre um enorme baú coberto de metal. Alaina
recuou e tropeçou, com a mão sobre a boca. Até então sua coragem baseava-se na quase certeza de
que nenhum crime podia ter sido cometido nas terras de Briar Hill e que Sam devia estar enganado.
Agorra a verdade, aparecendo de repente, a deixou fraca e nauseada.
— Oh, meu Deus, miz Alaina. Eu estava certo. Eles mataram o homem.
Tremendo, Alaina ficou calada, enquanto Saul se esforçava para tirar o baú pesado da cova. Quando
finalmente conseguiu içá-lo para fora, Alaina passou a mão na superfície para retirar a tinta úmida e
aproximou a lanterna. As letras USA estavam escritas na parte superior do baú, identificando um
objeto de propriedade da União, impaciente e curiosa, Alaina tentou destorcer o arame forte que
fechava o baú. A placa de metal com a meia argola sugeria a existência de um cadeado, que devia ter
sido quebrado.
— Afaste-se um pouco, miz Alaina — disse Saul, e tateu com a pá no arame. No segundo golpe, o
arame se partiu, e Sau levantou a tampa. Com uma exclamação de surpresa, Alaina ajoelho:-se ao
lado dele. Dentro do baú havia maços de dinheiro ianque, envoltos em Papel, camadas e camadas de
notas, sobre um colchão de moedas de ouro de vinte dólares.
— Minha nossa! — murmurou Saul, quase com reverência.
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— É dinheiro ianque! — Alaina declarou o óbvio, tão espantada quanto ele. Nos compartimentos do
baú havia alguns papéis que ela examinou rapidamente. — Isto é uma folha de pagamento. Com
ordens para ser levada de Washington para Nova Orleans e de Nova Orleans para o exército
comandado pelo general-de-brigada T. Kilby Smith. Tem mais de cem mil dólares aqui! — Fez uma
pausa e então lembrou: — Ora, deve ser isso! — Sacudiu os papéis para Saul e explicou para o
homem incrédulo: — Este é o dinheiro que disseram que eu roubei em Nova Orleans! Mas não é
mesmo uma coisa? Ora, é como se aquele homem elegante tivesse certeza de comprar a casa e já
estivesse se mudando para cá.
Alaina parou pensativa. Entrecerrou os olhos, e o brilho que apareceu neles começou a preocupar
Saul. E se o que ela estava pensando fosse trazer encrenca para os dois?
— Miz Alaina...? — começou ele, com voz ansiosa, mas ela apenas olhou para ele.
— Pode ficar certo, Saul, se Alaina MacGaren for enforcada por este roubo, ninguém mais vai ficar
com este dinheiro.
— O que vai fazer com ele, miz Alaina?
— Por enquanto, vamos esconder onde seja possível apanhá-lo rapidamente e fugir, se o homem
elegante voltar.
Saul fungou.
— Vamos ficar numa bela encrenca se formos encontrados com esse dinheiro. Com esse baú
debaixo do nariz é o mesmo que ter uma corda no pescoço, só esperando que alguém dê um puxão.
E se aquele homem elegante pegar a gente, não vamos ficar melhor do que aquele outro lá no
bosque.
— É só tomar cuidado para não sermos apanhados por ninguém. A terra voltou para a cova, e o
lugar foi perfeitamente disfarçado, como antes. O baú foi guardado provisoriamente numa mala
velha, no estábulo. A bandeja da velha mala foi coberta com arreios velhos e fivelas. Uma vez que
nenhum dos dois fugitivos tinha mentalidade criminosa, não levaram em conta o fato de que só um
homem absurdamente honesto podia passar por uma tampa ou por uma porta aberta sem parar para
ver o que tem dentro.
O rio, cheio quase até a borda, corria lamacento e vermelho sob o sol do dia 14 de março. Acima do
verde das copas das árvores, o céu era uma festa de cores; rosas vibrantes e douradas cintilavam
sobre uma
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outra faixa de azul brilhante. A névoa verde-azulada no horizonte leste intensificava-se a cada minuto,
e da mesma direção vinha o som que ribombava como trovão, mas sem nenhum brilho de
relâmpagos. Alaina olhou para a testa franzida de Saul.
- Está ouvindo? — perguntou ele.
Alaina fez um gesto afirmativo, olhando outra vez para o leste.
— Canhões! — disse Saul. — Bem grandes! Bem ao longe, no outro lado de Marksville. A uns trinta
quilômetros, mais ou menos.
Forte De Russy — murmurou Alaina. — Foi reativado, e aposto que os ianques estão tentando
tomá-lo outra vez.
— Eles podem vir para cá, miz Alaina. — O negro enorme torceu as mãos, angustiado. — Minha
nossa, não temos nada mais para dar. Desta vez vão queimar a gente.
— Pregue outra vez na porta aquele aviso dos ianques: "Entrada proibida" — disse Alaina, decidida.
— Vão pensar duas vezes antes de pôr fogo numa coisa que lhes pertence. Nós ficamos numa das
casas de madeira por algum tempo. — Sorriu com um ar malicioso. — Se os barrigas azuis
chegarem, tenho de passar por sua parenta, ou coisa parecida.
No dia seguinte, cessou o som dos canhões. O pequeno forte fora tomado, a guarnição aprisionada e
no dia 16 a frota de navios de guerra dos ianques subiu o rio Vermelho, escoltando uns trinta barcos-
transporte, que levavam três divisões de veteranos sob o comando do general A. J. Smith. Outra
divisão, comandada por outro Smith, o general T. Kilby, ficou para arrasar o Forte De Russy e, com
exuberante generosidade, estender suas atividades depredadoras a todo o campo em volta.
Recém-saídos do comando de Sherman, os casacos azuis demonstraram grande habilidade nos
negócios da guerra. Simsport já havia sentido o calor das tochas dos ianques e a luxuriante pradaria
de Avoyelles não ia ser poupada. Habitada pelos pacíficos acadianos, com uma rica tradição de
liberdade e de um modo geral simpatizantes da causa da União, a área logo encheu-se de
"monumentos a Sherman". As chaminés queimadas eram as únicas coisas ainda de pé onde antes
havia enormes e luxuosas casas de fazenda.
A chuva continuava a transformar o solo em lama, enquanto os Ianques espalhavam a destruição na
pradaria. Em Shreveport, quartel-general do Exército Confederado do Oeste, o general Kirby Smith,
o erceiro com o sobrenome tão auspicioso, preocupava-se, angustiado,
229
mas não podia liberar o general Taylor e sua pequena divisão da Louisiana para o ataque, enquanto o
exército dos casacos cinzentos, do Oeste, não fosse reposicionado dos postos distantes e
concentrado para enfrentar o avanço da União. O general-de-divisão Richard Taylor, filho de
Zachary e cunhado de Jeff Davis, só podia recuar, recrutando voluntários enquanto se retirava, na
esperança de que em algum lugar tivesse oportunidade de defender o solo do seu estado natal.
A preocupação de Alaina era a mesma — como proteger seu lar das destruidoras hordas azuis que se
aproximavam cada vez mais. Nem a chuva podia lavar o cheiro de cinza que impregnava o ar. Na sua
metade da pequena cabana de madeira, ela procurava descansar no colchão de algodão, duro e cheio
de calombos, imaginando a qual teste seria submetida agora, praticamente cercada pelos ianques.
A chuva parou, e a noite envolveu-se em silêncio. A brisa do leste intensificava o cheiro de cinzas e
fumaça. Alaina cobriu a cabeça com o cobertor, num vão esforço para se proteger da odiada essência
da guerra. Era desanimadora a idéia de que, procurando se livrar de Cole, caíra no meio de um perigo
muito maior. E dessa vez estava encurralada, sem ter para onde fugir.
Alaina esperou. O medo era opressivo. Ela e Saul não ousavam se aventurar muito longe da cabana.
Viviam com o temor de que, a qualquer momento, o inimigo aparecesse com suas tochas
flamejantes.
Então, quando parecia que Briar Hill seria o próximo alvo, a divisão de Kilby Smith cansou do
passatempo. Os homens voltaram para os barcos e seguiram para o norte, para se juntar ao exército,
que, também pelo rio, já chegara a Alexandria. Mas o intervalo durou pouco, e logo outro enxame de
casacos azuis da União aproximou-se de Briar Hill.
Exigindo o máximo de velocidade do velho animal que montava, Saul chegou na cabana, abanando o
chapéu e gritando:
— Eles estão chegando! Eles estão chegando! Até onde se pode avistar, eles estão chegando!
Alaina levou a mão trêmula ao peito para acalmar as batidas do coração. Saul, ofegante, caminhou
para a varanda.
— Eles têm carroças e homens até onde se pode ver, miz Alaina. — Parou por um momento para
retomar o fôlego. — Eu vi eles! Um pouco depois do lugar onde eu estava caçando.
— Estão vindo para cá? — perguntou Alaina, com voz tensa.
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Acho que vamos ver alguns deles, miz Alaina. Estão mandando patrulhas para todos os lados.
Então vamos ficar perto da cabana até passarem.—Suas mãos estavam fechadas, num gesto de
desafio e desespero. — Tomara Deus que não resolvam pôr fogo em tudo.
Só no dia 20 de março, a infantaria de Franklin chegou a Cheneyville, e era quase meio-dia quando a
vanguarda do 19° Corpo entrou na cidadezinha, na extremidade noroeste da pradaria de Avoyelles.
Cole preparou tudo para poder se ausentar na parte da tarde e juntou-se à patrulha montada, que
seguia na direção de Briar Hill. A pouco mais de três quilômetros e meio do acampamento a estrada
fazia uma curva para oeste e chegaram a um pequeno regato. Uma estreita estrada de terra ia para a
direita, e um pouco mais abaixo via-se um grupo grande de cabanas rústicas. Todas pareciam
construídas com qualquer material que estivesse disponível. Os habitantes, pelo menos os que se
podia ver, embora muito sujos de terra, pareciam brancos. Àpassagem da patrulha, crianças eram
recolhidas da lama e levadas para dentro das casas. As crianças maiores e os adultos procuravam não
se aproximar da estrada, preferindo manter uma boa distância dos cavaleiros estranhos.
Pouco adiante, na estrada que seguia o regato, havia uma fileira de cabanas, bem construídas com
toras. A maior parte delas estava vazia e aparentemente saqueada, pois pedaços de móveis
espalhavam-se em volta. O mato invadia os jardins, antes bem-cuidados, e as portas pendiam dos
batentes. Cole notou que só a cabana no fim da pequena rua parecia estar habitada. Uma fina espiral
de fumaça saía da chaminé e um negro grande estava encostado na grade da varanda, olhando para
os ianques que se aproximavam. Além das casas, outra estrada estreita de terra entrava por uma
espessa cerca de roseiras silvestres, e acima das copas de cinco enormes carvalhos avistava-se o
telhado inclinado de uma casa. Numa tabuleta quebrada que pendia do poste de madeira viam-se as
letras... HILL.
Através do vidro sujo da janela, Alaina via os cavalos da Patrulha ianque passar, chapinhando na
lama. Os dois oficiais QUE VINHAM À frente da pequena coluna eram quase idênticos, com os chapéus
Hardee e as capas de chuva cinza-azuladas. Porém o que estava mais perto da cabana montava muito
empertigado na sela do cavalo ruão que parecia...
231
Alaina olhou para o rosto do homem, limpando com a mão a fuligem do vidro para ver melhor.
Então, com uma exclamação de espanto, encostou-se na parede, ao lado da janela.
Cole Latimer! O nome era como ferro em brasa em sua mente. Como ele podia ter descoberto onde
ela estava? Como?
Cole levantou a mão para o companheiro, indicando que ia deixar a patrulha e puxou as rédeas do
cavalo, parando bem na frente de Saul.
— Você pertence à fazenda?
— Eu pertencia, mas sou livre agora — disse Saul. — E não tem ninguém aqui para negar isso.
— Por acaso não viu a jovem que morava aqui? A que chamam de Alaina?
O negro coçou a cabeça.
— Minha nossa, ianque, ela foi embora há muito tempo. Todos os brancos que moravam na casa-
grande ou morreram ou fugiram. Há muito tempo não aparece nenhum branco por aqui. Só aqueles
Gillett, no fim da estrada. Mas aquilo é gente ruim, e quando aparecem sempre arranjam encrenca. O
seu MacGaren não se dava com essa gente.
— Tem certeza de que nunca mais viu a moça? — insistiu Cole. Com uma risada surda, Saul ergueu
os ombros enormes.
— Quase todo mundo que passa por aqui pergunta a mesma coisa, ianque, e eu digo a mesma coisa.
Cole olhou em volta, visivelmente frustrado. O homem não tinha nenhum motivo para confiar num
oficial ianque, e Alaina era teimosa demais para aparecer por vontade própria. Mas Cole esperara o
improvável.
— Se por acaso você vir a moça, quer dizer que Cole Latimer perguntou por ela? Diga que... não vou
desistir facilmente.
Saul olhou atentamente para ele.
— Está querendo a recompensa, senhor?
— Apenas diga isso. Ela sabe o que significa.
Cole fez o cavalo dar meia-volta e seguiu na direção da casa. Passada a cerca viva alta, era como
entrar em outro mundo. Cole examinou a casa e o terreno, pensativo. Podia compreender o ódio de
Alaina por todos que tinham roubado seu mundo, reduzindo-a à pobreza. Na verdade, era difícil
acreditar que ela tivesse forças para conviver por mais de seis meses entre os seus inimigos.
Os carvalhos enormes, cobertos de musgo, erguiam-se ao lado do imenso gramado, que parecia
ecoar com o riso de crianças. Por um
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momento, Cole imaginou a menina magra e ágil brincando de pique com os irmãos. A imagem foi
substituída pela lembrança dos olhos cinzentos cheios de lágrimas e, depois, o vulto essencialmente
feminino rapidamente iluminado pelo luar que entrava pela janela. Parecia que nunca ia se libertar
daqueles fantasmas, eles o acompanhavam, aonde quer que fosse.
Chegando mais perto da casa, Cole viu as tábuas cruzadas que fechavam as portas e janelas e a cruz
vermelha pintada na porta da frente. Ficou indignado. Santo Deus, Alaina mal podia ver sangue!
Como podiam acusá-la de assassinato?
Conduziu o cavalo para o pátio dos fundos. Alaina, na janela da cabana, praguejou baixinho. Correu
para a porta dos fundos e saiu, fechando bem o casaco de lã no pescoço. Passou pela fileira de
cabanas até chegar ao canteiro de magnólias, que circundava o pátio. Nos fundos da casa, abaixou-se
atrás de alguns arbustos altos, de onde podia ver o capitão. Não ia confiar num ianque, por mais
intimamente que o tivesse conhecido.
Cole olhou para o estábulo, depois para o abrigo das carruagens. Estavam intactos, embora com as
portas quebradas e abertas. Atrás do estábulo, no começo do vasto campo, havia outros celeiros e
barracões, alguns bastante depredados. Cole parou por um momento no portão que dava para o
campo, com um estranho sentimento de pena de não ter conhecido os MacGaren. Para criar e
educar uma pessoa como Alaina, deviam ser pessoas dignas de serem conhecidas.
Quando virou o cavalo para se afastar do portão, percebeu uma forma estranha num dos barracões.
Curioso, desmontou para examinar o objeto coberto por uma lona. Era uma carroça fúnebre com
vidro dos dois lados, com um caixão dentro e todo sujo de lama seca, a mesma lama que ele passara a
conhecer tão bem nos últimos dias. Duas bandeirolas amarelas nos lados do carro indicavam o que
ele carregava. Com a mão enluvada, Cole ergueu a tampa do caixão. Aliviado, viu que estava vazio.
Com uma careta, repôs a lona. Pelo menos não estava pronto para usar uma daquelas coisas e
esperava não estar por muito tempo ainda.
Passou a mão pela roda enlameada e voltou para seu cavalo. Uma imagem se formou em sua mente.
Podia ver a carroça fúnebre com as bandeiras amarelas surgindo da neblina da sua lembrança com o
Pequeno cocheiro na boléia. Disfarçada de menino, essa era a resposta; ela estava vestindo calças
outra vez.
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Cole montou. A patrulha estava distante agora, e precisava se apressar para alcançá-la. Oficiais da
União sozinhos não eram especialmente populares naquela área, e Briar Hill despertava lembranças
que deviam ser postas de lado por enquanto.
Alaina conteve a respiração quando ele passou por onde ela estava escondida. Cole não parecia ter
pressa para alcançar a patrulha e só quando chegou na estrada ele esporeou o cavalo e partiu no
galope.
Alaina foi examinar a carroça fúnebre e no caminho passou pelo barracão onde deixara os cavalos,
antes de Saul os esconder num pequeno bosque no pântano, além dos campos. Alguma coisa branca
moveu-se no alto de uma porta e, aproximando-se, Alaina viu que era um papel dobrado preso numa
fresta da madeira. Ela o desdobrou e leu o aviso do leilão de Briar Hill com seu nome em letras
maiúsculas sob a palavra renegada. Nas costas do papel havia uma mensagem escrita a tinta.
"Al. Você deve cobrir de terra o estérco fresco deste lugar. É uma pista perigosa. Gostaria de vê-la
em N.O. quando eu voltar. Temos assuntos importantes para tratar.
CL."
— O que aquele ianque estava bisbilhotando, miz Alaina? — perguntou Saul, correndo para ela.
Alaina dobrou o papel e guardou no decote do vestido.
— Acho que só estava curioso sobre Alaina MacGaren, como todo mundo.
— Ele me pareceu um pouco mais insistente do que "todo mundo" — resmungou Saul.
Alaina balançou a cabeça, concordando. Aquele era um ianque do qual não ia se livrar tão cedo,
pensou ela.
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Capítulo Dezenove
A GUERRA CONTINUOU, inexorável. Os exércitos do leste enfrentavam-se ainda um de cada
lado do Rapidan e preparavam-se para a ofensiva da primavera. O mesmo famoso Butler, de Nova
Orleans, marchava com seu exército para o norte, para atacar Richmond. No centro, Sherman
refinava sua tática com uma marcha através do norte do Mississippi, até Meridian e voltando,
enquanto que Steel, saindo de Little Rock, marchava na direção de Shreveport, numa ação diver-siva,
com o fim de afastar as forças de Kirby Smith da investida de Banks, na parte alta do rio Vermelho.
O sul não tinha muito o que comemorar. O general Forrest comandou seu pequeno grupo de
cavalaria num ataque de surpresa no oeste do Tennessee e do Kentucky. Bragg, depois de recuar para
Chickamanga, foi destituído do comando e substituído pelo general Joe Johnson, que deu início a
uma retirada perfeita para Atlanta. Em Louisiana, o General Dick Taylor relutantemente recuava à
frente do exército de Banks, dando tempo para a chegada de reforços.
O general Banks, por seu lado, continuou calmamente a execução da sua campanha. Depois de parar
por algum tempo em Nova Orleans Para as festas da posse do governador, tomou o barco a vapor
para juntar-se aos seus homens em Alexandria e no dia 29 deu ordem de marcha ao seu exército,
enquanto que ele, como ex-político, ficou na
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cidade para assistir à primeira eleição em abril. Mais uma vez escolheu o transporte mais fácil e na
noite do dia 2 juntou-se novamente aos seus soldados. Finalmente, no dia 6, o general Banks e seus
homens saíram de Natchitoches para o que devia ser a última etapa da jornada. Seu objetivo era
tomar Shreveport, e era óbvio para o general, como ele mesmo afirmou, que a Confederação não
podia pôr em campo um exército capaz de vencer seus trinta mil homens, experientes e fiéis, bravos
e aguerridos.
Mas a paciência de Dick Taylor chegara ao fim e ele se recusou a deixar seu estado sem luta. O local
foi a Encruzilhada Sabine e durante muito tempo os soldados da União iam lembrar desse nome
com um estremecimento. Foi aí que Banks permitiu que sua longa coluna, as unidades separadas por
caravanas de carroças de três e quatro quilômetros de comprimento, fosse atacada por uma força
feroz de cerca de nove mil confederados. O exército cinzento teve um bom desempenho,
praticamente "enrolando" a imensa linha de casacos azuis sobre ela mesma, até a batalha se
transformar numa debandada. A chegada da noite deu a Banks tempo para respirar, e ele reuniu seus
homens abatidos na cidadezinha de Pleasant Hill, onde se organizaram e prepararam para o
confronto. Na tarde seguinte, pouco antes do anoitecer, Taylor lançou outro ataque no flanco
esquerdo da União, com um movimento giratório para a esquerda. Quando estavam prestes a iniciar
outra debandada, os confederados, atacados no flanco direito pelos veteranos de A. J. Smith, foram
obrigados a lutar. Foi uma repetição do dia anterior, mas em sentido contrário, e como na véspera, a
noite pôs fim ao conflito.
Banks ficou eufórico com o sucesso, mas seus generais aconselharam a retirada, todos menos Smith,
que só com ordens especiais desistiu de perseguir os rebeldes. No outro lado do campo de batalha,
Taylor recuou para o rio mais próximo e acampou para a noite. Ao nascer do dia foi acordado por
seu superior, Kirby Smith, que, informado da derrota, ordenou a retirada da força de Taylor para
Mansfield. Foi assim que os dois exércitos se retiraram do campo de batalha; Taylor revoltado, Banks
em desgraça.
O Exército da União recuou para Grand Encore e para a proteção dos pesados canhões da frota de
Porter, o mesmo que havia sido severamente castigado pelo texano, Green, e por sua cavalaria do
oeste, quando a frota tentou entrar no Loggy Bayou. Os soldados azuis foram muito mais rápidos na
contramarcha e num só dia chegaram a
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Natchitoches, mas com a triste nota de terem deixado os feridos que não podiam andar à mercê dos
confederados, porque alguém mandara de volta, antes do começo da batalha, todas as carroças com
os suprimentos médicos. Foi esse fato doloroso que prendeu o capitão Latimer nas garras do cruel
destino do qual não ia escapar impune.
Os dois habitantes de Briar Hill estavam havia pouco mais de três semanas com uma dieta de bagre,
galinha, ovos e um ou outro coelho. A lembrança dos presuntos curados com açúcar, guardados
agora no fumeiro dos Gillett, aguçava o paladar, mas não alimentava o corpo. A solução imediata
parecia ser uma incursão no depósito de carnes dos Gillett.
Alaina fez nova aplicação da tinta de nogueira com a mesma repugnância com que vestia as roupas
de Al. Saul foi apanhar um dos cavalos escondidos no pântano e os dois "malfeitores" saíram de casa
no começo da noite. Deixaram os cavalos a certa distância da casa dos Gillett, amarrados ao lado de
um pequeno bosque, onde seria fácil apanhá-los caso precisassem fugir. Aproximaram-se do
depósito de carnes sorrateiramente, pois os membros da família muito unida costumavam dar
passeios a qualquer hora. O sol continuava a descer, tocando já o horizonte, quando Alaina e Saul
atravessaram a espessa cerca viva e se esconderam atrás de uma árvore caída, na entrada do pátio dos
fundos dos Gillett.
A uns três metros ficava a forte construção de toras de madeira, que servia de fumeiro, e ao lado da
portinhola baixa descansava o imenso Emmett Gillett, o mesmo cujo pedido de casamento, um ano
atrás, provocara em Alaina um acesso de riso incontrolável, antes de ela expulsar o homem sob a
mira de uma espingarda. Emmett tinha também a honra de ser o mesmo que a denunciara como
espiã aos ianques.
Uma porta bateu, um assobio cortou a quase escuridão, e um garoto magro apareceu com uma
lanterna acesa, que dependurou num poste, ao lado do fumeiro.
Emmett levantou-se e puxou a cintura da calça para cima.
— O que está fazendo aqui, Tater? — perguntou, com voz autoritária.
— Vim trazer uma luz — o garoto ajustou o pavio até a luz parar de tremer. — Seu pai não quer que
você se machuque no escuro, é só isso.
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Emmett olhou desconfiado para o menino, sem saber se estava sendo insultado ou não. Resolveu
que precisava impressionar o garoto com o relato de um dos seus grandes feitos. Encolheu a barriga
flácida, endireitou os ombros estreitos e balançou nos calcanhares descalços.
— Sim, senhor, Tater. Eu quase capturei sozinho aquele ianque. — Deu alguns passos solenes,
batendo com a mão no cinto preto com coldre e pistola da União, que apertava sua cintura.
— Ora Emmett. Eu sei que você viu aquele ianque no bote no rio esta manhã e correu para casa,
berrando por seu pai.
— Eu não berrei!
— Berrou sim. Eu ouvi.
— Escute aqui, Tater Williams. O pai me deu esta arma porque eu capturei o ianque.
— Ora, Emmett, seu pai só deixou você usar ela por algum tempo, enquanto você vigia a porta, para
você parar de gritar que ia se atrasar para o jantar. Se aquele ianque aparecesse aqui agora, sua pele ia
cair vazia no chão, de tão depressa que você ia sair correndo.
— Não é verdade. Não tenho medo de nenhum ianque. Você vai ver! — Emmett apanhou uma vara
de bambu, enfiou na pequena abertura da porta, girou-a violentamente e depois, abaixando o corpo,
gritou para dentro: — Ei, ianque. Você está acordado?
A vara de bambu deu um salto para dentro, como se tivesse sido puxada. Tater gritou e Emmett
segurou a ponta com as mãos gorduchas. De repente ele arregalou os olhos e foi puxado
violentamente para a frente. Bateu com a testa nas toras de madeira do fumeiro e gritou de dor
quando raspou as juntas das mãos nos dois lados da pequena abertura por onde a vara de bambu
desapareceu como por encanto. Antes que Emmett tivesse tempo de ficar de pé, a vara de bambu
reapareceu zunindo e o atingiu comforçanabarriga, atirando-o para trás, numa poça de água e lama.
— Abra essa porta, seu sapo — disse uma voz rouca —, que eu mostro como estou acordado.
Abaixada atrás do tronco de árvore, Alaina apertou com força o braço de Saul. Com o rosto tenso,
ela disse, quase semmover os lábios:
— Precisamos tirar aquele ianque idiota lá de dentro.
— Miz Alaina? — murmurou Saul. — Não precisamos tanto do presunto. Vamos procurar algumas
boas galinhas.
Alaina olhou para ele zangada, depois percebeu que Saul não compreendera seu raciocínio. Abaixou
e encostou a mão no tronco.
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- Esqueça o presunto. Precisamos tirar o ianque de lá.
Emmett levantou-se com uma praga e levou as juntas esfoladas à boca, olhando para a abertura na
porta.
Acho melhor ter cuidado, ianque — resmungou ele, com o acompanhamento da risada de Tater. —
Posso acabar com você com esta arma aqui.
Seu pai disse que se você tirasse essa pistola do coldre—Tater lembrou ao primo —, ele lhe daria
uma boa surra.
E você, vá para casa, e fique com o resto das crianças — rosnou Emmett. — Tenho muito que fazer
e não posso perder tempo conversando com criança.
Tater obedeceu de boa vontade, e a noite ficou silenciosa. Emmett não deu importância à lama, que
começava a secar no seu traseiro. Outro vulto surgiu das sombras e uma jovem grandalhona entrou
no círculo de luz da lanterna.
— Ei, Jenny — disse Emmett, com mais suavidade na voz —, quer que eu tire o ianque para fora
para você ver?
— Seu pai disse que ninguém pode tocar naquela porta — informou a jovem, com voz seca.
— Ah... Jenny... ah... quer ir para trás do fumeiro e... ah, conversar um pouco?
— Você sabe que estou noiva, Emmett. Willy pode quebrar sua cabeça só por dizer isso... se ele
souber.
— Ora, Jenny, ele não precisa saber. — Emmett arrastou os pés na terra.
— Sua mãe mandou trazer um pouco de sopa e leite para você agüentar até o jantar. — Jenny
estendeu para ele a caneca e o prato de lata com sopa, pão e biscoitos.
— Não posso ir agora e jantar de verdade? — gemeu Emmett.
— Não! Eddie vem ficar no seu lugar dentro de uma ou duas horas.
— Uma ou duas horas! Ora, eu já passei a tarde inteira aqui!
— Você não está aí nem há uma hora, e seu pai disse para você ficar andando, para não dormir de
pé.
— Bom, guardar este ianque é trabalho duro — protestou Emmett.
— Duro para você, talvez. É claro que, para você, ficar acordado já é bem difícil.
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— Mais ninguém está trabalhando duro assim — disse Emmett, quando ela já ia longe.
A última luz do dia desapareceu, e Emmett ficou sozinho com seu prisioneiro. Era uma tarefa
tediosa, e ele bocejou até quase quebrar a mandíbula. Começou a andar de um lado para o outro,
passando bem longe do alcance da vara de bambu. Nuvens espessas passavam no céu, e a lanterna
balançada pela brisa lançava longas sombras fantasmagóricas e dançantes no chão. Sons abafados
vinham da noite, e Emmett lutava com sua imaginação, que enchia o escuro de ianques sorrateiros.
Gostaria que o pai não tivesse sido tão específico a respeito de tirar a arma do coldre. Podia muito
bem usar o consolo da pistola bem tratada e carregada.
Saltou sobressaltado, ouvindo um barulho leve nos arbustos e teve a impressão de ver o movimento
de um pequeno vulto.
— Tater? É você? — Um longo silêncio foi a resposta. — Tater Williams, venha já aqui, agora
mesmo! Não me atrapalhe, seu porcaria. Tenho uma tarefa muito importante para fazer.
Emmett ouviu apenas mais silêncio e, dando de ombros, tentou assobiar com os lábios secos.
Voltou-se para recomeçar a andar e uma exclamação de susto ficou presa na sua garganta. Um negro
gigantesco estava a menos de um metro dele. Os olhos do ogre cintilavam com chamas amarelas
refletindo a luz do lampião e braços maciços ergueram-se para ele. Com um berro desafinado,
Emmett girou o corpo e fugiu. Não dera quatro passos quando voou no ar e bateu com uma
pancada surda na parede sólida do fumeiro. Seu corpo escorregou molemente para o chão,
escapando do seu demônio do modo mais difícil.
Saul inclinou-se e rolou o corpo inerte para o lado, com um suspiro de alívio quando percebeu a
respiração de Emmett e o galo enorme na testa.
Alaina aproximou-se de Saul como uma sombra, e com um gesto mandou que ele tirasse o cinturão
com a arma da cintura de Emmett. Depois começou a tentar afastar o pesado tronco de árvore
encostado na porta do fumeiro e recuou rapidamente para evitar a pancada da vara de bambu.
— Ouça, você! Pare com isso! — sibilou ela, com a boca perto da abertura. — Viemos ajudá-lo.
Bateu no ombro de Saul e apontou para a tora de madeira. Ele a afastou da porta com um só
movimento, depois voltou ao trabalho de
240
amarrar Emmett. Alaina escancarou a porta, ajoelhou-se e, com um gesto, mandou o ianque sair.
Cole Latimer se arrastou para passar pela porta baixa e encostou-se pálido e fraco, na parede,
respirando fundo o ar fresco e limpo, enquanto seus salvadores amordaçavam o guarda e o jogavam,
todo amarrado, através da portinhola pela qual ele acabava de sair. O menor entrou no fumeiro e
logo reapareceu carregando um presunto inteiro. Fecharam a porta e a tora de madeira voltou ao
lugar.
Saul passou o braço de Cole por seus ombros, e Alaina os acompanhou, apagando todas as suas
pegadas com as folhas de um ramo de árvore. Passaram pela lama pegajosa, depois por um pequeno
bosque e finalmente chegaram onde estavam os cavalos. Cole foi erguido sem cerimônia para o
cavalo em pêlo, e puseram na sua mão um punhado de crina. Saul levou o cavalo para o campo
aberto, e Alaina seguiu atrás, alisando a terra, arrumando o mato amassado, apagando os sinais da sua
passagem.
Atravessaram a cerca viva, onde o perfume de magnólia era intenso, e chegaram aos fundos de uma
casa grande e escura. Havia alguma coisa familiar na casa, mas Cole, febril e atordoado, não podia
precisar o que era. Foi retirado da sela, e o homem pequeno levou os cavalos para o esconderijo,
enquanto o homem grande o levou para a casa, quase carregado. Depois de algum tempo, o pequeno
voltou e os dois entraram em intensa atividade, no escuro. Então um fósforo foi aceso, depois uma
vela e mais outra. Os vultos dos dois iam de um lado para o outro na sala fracamente iluminada.
Ajoelharam-se ao lado dele, e então o vulto menor riu e o maior que, ele via agora, era um negro, riu
também, mostrando os dentes muito brancos. Cole não sabia qual era a graça e olhou confuso para
eles até o menor ficar de pé e tirar o chapéu, balançando a cabeça e o cabelo curto ainda, mas não
mais masculino e virando o rosto para a luz.
— Alaina! — exclamou Cole, com uma intensa sensação de alívio. — Meu Deus, Alaina! — Parecia
uma prece do dia de graças.
Séria agora, ela estendeu a mão trêmula e tocou a coxa dele. A frente da perna direita da calça, do
quadril até o joelho, estava rasgada, deixando ver uma atadura improvisada. À luz fraca das velas,
Alaina viu que toda a perna e a bota estavam cheias de sangue vivo e o resto da farda cheio da lama
seca dos pântanos. Enfraquecido, Cole caiu para trás, no chão, e com um suspiro fechou os olhos,
entregando-se
241
finalmente à intensa fadiga e à inconsciência, sentindo-se seguro e em paz.
Alaina olhou para o homem adormecido e quando falou, sua voz estava áspera:
— Saul — disse, em tom decidido —, acho melhor levarmos o capitão para a cama.
— Mas, miz Alaina — disse Saul, atônito —, a única cama na casa é a do...! — Naquele tempo não
se podia admitir que uma jovem senhora sugerisse que um homem fosse levado para sua cama,
independente das circunstâncias. Mas era um claro sinal dos tempos o fato de que essas sutilezas não
eram mais possíveis, e Saul aceitou a ordem.
Alaina percebeu a aquiescência dele.
— Depressa, Saul! Ele pode estar morrendo!
Sem nenhuma palavra, Saul apanhou o ianque ferido nos braços fortes e subiu a escada atrás de
Alaina, que carregava um lampião. Ela abriu a porta do quarto, entrou e puxou para baixo as
cobertas da cama. Depois, afastou-se para o lado, para que Saul pusesse o capitão enlameado sobre o
colchão. Estremeceu quando Saul arrumou a perna ferida sobre a cama, provocando um leve gemido
de Cole.
— Acho melhor você ver primeiro o ferimento para depois começarmos a fazer a limpeza — disse
Alaina, começando a puxar uma das botas, cheia de lama seca. Conhecia suas limitações e deixou a
cargo de Saul a tarefa de retirar as ataduras que estavam grudadas no ferimento. Sentiu um aperto no
estômago quando viu o enorme orifício na coxa de Cole. Um tremor de medo percorreu seu corpo, e
ela viu mentalmente a padiola coberta sendo levada para o necrotério do hospital. Afastou, irritada,
esse pensamento, rejeitando a possibilidade, mas seus lábios moveram-se numa prece ardente e
silenciosa.
— Não sou médico, miz Alaina — comentou Saul, examinando o ferimento. — Mas acho que não é
nada bom, por isso temos de levar ele para alguém que possa fazer alguma coisa.
Alaina mordeu o lábio, preocupada:
— Não podemos confiar em nenhum médico por aqui. Temos de levá-lo a um hospital da União.
— E onde tem isso, miz Alaina? Sem ser este aqui, não vejo um ianque há dias... só confederados,
andando pelo mato. Ouvi dizer que eles estão enfiados lá em Alexandria, mas tem muito casaco
cinzento daqui até lá. Como a gente vai passar com ele?
242
- Não sei — gemeu ela. — O dr. Brooks é o único em quem confio, mas ele está em Nova Orleans...
e é uma longa viagem.
Não se pode saber quando aqueles ianques vão sair de Alexandria, miz Alaina. A gente pode levá-lo
para lá e não encontrar nenhum médico para tratar dele. Acho que vamos ganhar muito mais tempo
se sairmos agora mesmo para Nova Orleans.
Talvez você tenha razão, Saul — suspirou ela.
Até lá, acho melhor eu lavar a perna dele e ver o que posso fazer para amenizar o sofrimento dele.
Vou acender o fogo e esquentar água. Já que vamos fazer alguma coisa, acho melhor dar um banho
nele.
Será que pode procurar uma agulha e linha para costurar outra vez essa calça, se eu abrir bem na
costura? — perguntou Saul, caminhando para a porta do quarto. — Pode machucar um pouco se eu
passar a calça pelo buraco que ele tem na perna.
— Farei uma renda com fios, se for preciso—disse ela, decidida. — Pode abrir.
Alaina correu para a cozinha. Dependurou um caldeirão com água sobre as cinzas mortas da grande
lareira e começou a acender o fogo. Com as patrulhas dos confederados por toda a parte, tinha mais
motivos para ser cautelosa, mas tarde da noite não tinha perigo acender a lareira.
Abriu a porta do pequeno elevador manual, na parede, ao lado da lareira na casa-grande, e pôs dentro
dele a bandeja com linimentos e remédios que sua mãe usava para os pequenos ferimentos, depois
juntou lençóis e toalhas de linho, que não tinham interessado aos Gillett, porque eram preguiçosos
demais para usar alguma coisa além de acolchoados sujos no inverno e detestavam água e sabão. Seu
quarto ficava bem em cima da sala de jantar e o pequeno elevador, escondido atrás da porta de
madeira, ao lado da lareira, ia do primeiro ao segundo andar. Era movido por meio de uma corda
numa roldana. Alaina bateu na parte interna da parede para avisar Saul de que o elevador estava
subindo, depois puxou a corda até ele chegar à altura do seu quarto.
Quando Alaina subiu com uma panela com água quente, a roupa imunda de Cole estava empilhada
ao lado da cama. Assim que ela entrou, Saul apressou-se a cobrir a parte inferior do corpo do capitão
com uma toalha, para não chocar os valores tão bem protegidos de Alaina, bem como sua própria
ingenuidade.
243
— Eu dou banho nele—informou Alaina.—Você trata da perna.
— Miz Alaina, se não se importa que eu pergunte.—Saul hesitou. — Por que este herói ianque é tão
importante para a senhora? Não era ele que estava à sua procura?
Alaina começou a cortar um dos lençóis em tiras, para ataduras.
— Ora, ele é o marido da srta. Roberta. Saul ficou surpreso.
— Miz Roberta casou com um ianque? E o seu Angus detestando tanto eles!
— Ainda detesta, e descobriu por que quando conheceu este aqui — respondeu ela e depois franziu
o nariz olhando para o ferimento em carne viva. — Acho melhor começarmos a trabalhar antes que
o capitão perca todo o sangue no meu colchão.
— Sim, senhora — concordou Saul, olhando curioso para Alaina quando ela se inclinou para o
homem ferido. Saul só a vira tão preocupada quando estava tratando da mãe agonizante. Porém, era
verdade que, como todos os MacGaren, Alaina se entregava de corpo e alma a tudo o que fazia.
— Ele está febril — disse ela, encostando a mão no pescoço de Cole.
— Quem sabe é melhor eu pôr uma compressa com remédio neste ferimento para tirar a infecção.
— Qualquer coisa que possa ajudar — murmurou ela, olhando para Cole.
Ele gemia uma vez ou outra e abria os olhos como se estivesse delirando. Estava com olheiras
escuras sob as pestanas espessas e a barba por fazer não disfarçava a palidez do rosto. Não o deixe
morrer, repetia ela mentalmente. Não o deixe morrer.
Trabalharam durante algum tempo, trocando uma ou outra palavra, enquanto, semiconsciente, Cole
gemia e procurava afastar as mãos grandes e negras que limpavam e medicavam sua carne ferida. Os
músculos da perna se contraíam quando a dor forte demais o tirava por momentos da inconsciência.
Os olhos febris fixavam-se na pequena cabeça inclinada sobre ele, enquanto Alaina lavava seus
braços e o peito com água morna e sabão. Lentamente ele ergueu o braço para tocá-la, murmurando
seu nome, mas o esforço foi demais, o braço caiu sobre o colchão, e Cole voltou para o mundo
suave e abençoado da inconsciência.
244
Saul olhou pensativo do ianque para Alaina, depois, franzindo a testa, apontou para o ferimento.
pode apostar que ainda tem alguma coisa nesse buraco. Não sei o que é, mas se for uma bala de
chumbo vai envenenar o sangue, se não for tirada logo.
Alaina disse, preocupada:
Mas você não pode tirá-la?
Está muito fundo, miz Alaina... Perto do osso, eu acho. Depois, não tenho nada para fazer isso.
Podemos levá-lo para Nova Orleans?
Não sei, miz Alaina. Com a compressa e as ataduras na perna, a gente talvez possa levá-lo até lá sem
que fique pior do que está agora... talvez até melhore um pouco.
— Assim que amanhecer, veja se descobre um meio de sairmos com ele. Se seguirmos para o sul,
vamos encontrar menos confederados no caminho.
Saul pôs uma compressa no ferimento e passou a atadura para juntar as bordas, depois levantou o
capitão para Alaina estender o lençol limpo na cama. Com a dor aliviada pela compressa
medicamentosa, Cole mergulhou num sono profundo, que não foi perturbado nem quando Alaina
fez sua barba. Agora ele parecia mais com o capitão Cole Latimer, e Alaina estava profundamente
consciente da nudez do homem. A Luz fraca do lampião, o corpo bronzeado contrastava com o
branco do lençol. Era um corpo muito bem-feito, com ombros largos, cadeiras estreitas e coxas
fortes e longas e uma fina linha de pêlos descia pelo meio da barriga. Alaina sentiu o rosto em fogo
quando percebeu que estava olhando demoradamente para ele e apressou-se a cobri-lo com um
lençol.
— Fique um pouco com ele, Saul. Vou preparar o jantar.
Saiu rapidamente, sem esperar resposta. Procurou o ar da noite para refrescar o calor do rosto e só
depois de muito tempo seus dedos deixaram de tremer.
245
Capítulo Vinte
COLE LATIMER FICOU imóvel por um momento. Um som muito leve, vindo de algum lugar, o
convenceu de que estava acordado. Era dia claro e pelo conforto da maciez do colchão,
compreendeu que estava numa cama e completamente despido entre cobertas limpas. Não tinha
idéia de que lugar era aquele. Sentia uma dor surda na perna. Tocou o lugar dolorido e seus dedos
encontraram uma atadura limpa e firme. Abriu os olhos lentamente e ficou atônito ao ver o dossel
rendado da cama.
Um vulto esguio, vestido como um garoto, passou pelo quarto e, embora o rosto fosse muito escuro,
quase negro, Cole reconheceria aquele perfil em qualquer parte do mundo. Umedeceu os lábios secos
com a ponta da língua e chamou:
— Al? — Sua voz soou áspera e rouca.
Alaina voltou-se rapidamente e olhou com ansiosa atenção para Cole.
— Como está se sentindo?
— Pode me dar um pouco de água? — murmurou ele.
— Se for permitido, doutor — disse ela, suavemente.
Cole acenou afirmativamente, sorriu e fechou os olhos. Ouviu os passos afastando-se da cama e
voltando. Abriu os olhos e encontrou os dela. Alaina o ajudou a levantar a cabeça, e Cole bebeu
avidamente
246
a água fresca. Estava sem febre, mas sentia dor em todos os músculos do corpo e a perna não parava
de latejar.
— Quer comer alguma coisa? — perguntou ela. — Temos sopa e pão de milho.
— Não vai fazer falta? — Cole olhou atentamente para ela. Alaina riu.
— Embora eles não saibam, os Gillett estão contribuindo para nossa alimentação. Eles e os ianques
roubaram todos os nossos animais; portanto, acho que nos devem isso.
— Sim, acho que sou capaz de comer alguma coisa — admitiu ele. — Há alguns dias que minha
espinha dorsal está raspando meu estômago.
Cole comeu com apetite a sopa de feijão, com presunto e legumes. Alaina o fez recostar num
acolchoado dobrado e dois travesseiros. Cole recusou a ajuda dela para comer. A comida o
reanimou, mas teve consciência das suas limitações quando tentou mover a perna e sentiu a dor
aguda, quase insuportável.
Alaina fez uma careta de dor, imitando a dele.
— Dói ainda?
Cole passou a mão de leve sobre as ataduras.
— Acho que é um estilhaço de bala de canhão.
— O que aconteceu? Pensei que os médicos sempre trabalhassem longe do campo de batalha.
Era uma história tão frustrante quanto a inspeção da desordem deixada por Magruder nas carroças
de medicamentos. Depois da derrota do primeiro dia e da vitória do segundo, Cole revoltou-se
contra a ordem de recuar, deixando para trás os feridos. Lembrava-se perfeitamente de como tudo
começara. Foi chamado para atender os feridos de uma bateria duramente castigada pelo inimigo e,
quando estava fazendo esse trabalho, teve uma discussão com um arrogante coronel, chefe da polícia
militar de Franklin. Queriam que ele deixasse para trás os feridos que não podiam andar.
Obstinadamente, Cole permaneceu com os feridos e com a ajuda de um soldado raso e um sargento
levemente ferido conseguiu tirar duas carroças do pântano para onde os rebeldes as haviam
empurrado. Os três homens recapturaram quatro mulas que tinham fugido para o bosque e as
atrelaram nas carroças. Acabavam de pôr os feridos nas carroças quando uma patrulha de
confederados apareceu no alto da colina, acima do vale onde estavam. Cole deu ordem ao sargento e
ao soldado para fugir

247
com as carroças e apanhando um dos novos rifles Henry, de repetição, tentou conter o inimigo até as
carroças terem se afastado. Os rebeldes não conheciam o rifle de fogo rápido e abrigaram-se,
aparentemente indecisos sobre o que deviam fazer. Mas logo foram buscar o canhão leve e novo, de
carregar pela culatra, capturado da cavalaria da União, no primeiro dia da batalha, e começaram a
atirar na clareira onde ele estava.
A partir daí, suas lembranças eram vagas e confusas. Quando achou que as carroças estavam seguras,
ele dispersou os homens que manejavam o canhão com uma rajada final do rifle Henry, amassou a
arma contra o cano de um canhão abandonado e correu para seu cavalo. Acabava de montar quando
outra bala atingiu alguns barris de pólvora e ele teve a impressão de que toda a clareira fora pelos
ares. Lembrava claramente de ter visto um enorme pinheiro começar a cair sobre sua cabeça e de
sentir um forte impacto na coxa. Lembrava então do galope através dos pântanos, deitado sobre o
pescoço do cavalo apavorado, com os tiros espocando atrás dele. Lembrava-se de ter passado uma
atadura malfeita sobre o ferimento, e depois apenas as longas horas de sol cegante e calor
insuportável, de moscas vorazes, mosquitos ávidos e vários animais que, por nunca terem visto um
ser humano, apenas olhavam curiosos para o homem e o cavalo. Lembrava de seu cavalo ter dado
uma volta para se distanciar de um jacaré que erguera a cabeça, e acompanhara sua passagem com
olhos frios e maldosos. Chegou a noite e voltou o sol, e outra noite de frio intenso passada sob um
enorme carvalho coberto de musgo, procurando se proteger um pouco da chuva. Depois, tudo
parecia um caleidoscópio de imagens passageiras, dias escaldantes e noites geladas, insetos de todos
os tipos e o cavalo seguindo exausto pela estrada. Tentou conduzir o animal na direção do sul e do
leste, calculando que mais cedo ou mais tarde chegaria ao rio Vermelho. O lugar parecia familiar, mas
atordoado como estava, não conseguiu indentificá-lo. Quando viu a canoa na margem de um braço
de rio, trocou o cavalo esgotado pela oportunidade de se deitar e deixar-se levar pela corrente.
Queimado de sol, com os lábios rachados, ele via os galhos das enormes árvores cobertos de musgo
passando lá em cima, enquanto a canoa descia o rio. De repente, mãos brutais o seguraram, e Cole
sentiu uma dor lancinante na perna. Quando voltou a si, estava no fumeiro quente, enfumaçado e
abafado dos Gillett.
248
O silêncio paciente de Alaina não foi completamente recompensado. Cole balançou a cabeça e
ergueu os ombros.
— Tudo está ainda muito confuso e, de qualquer modo, não há muito para contar. — Olhou em
volta. — Estamos em Briar Hill?
Ela fez um gesto afirmativo.
— No meu quarto. — Um pouco embaraçada, apressou-se a explicar: — É o único que ainda tem
uma cama.
Cole olhou para ela.
— Não é próprio de um cavalheiro tirar a cama de uma senhora, mas agradeço do mesmo modo. É a
melhor que tive em muito tempo. — Olhou para a roupa e para a pele escurecida dela, depois
perguntou, curioso: — Foi você quem tratou da minha perna?
— Foi Saul. Eu só lavei e costurei algumas peças de roupa e lavei você... — Parou de repente,
mordendo o lábio quando Cole ergueu as sobrancelhas, interrogativamente. Na verdade, Alaina não
tivera nenhuma dúvida em dar banho nele. Estava muito mais preocupada com a saúde do homem
ferido do que com a impropriedade de uma mulher solteira dar banho num homem nu. A guerra
tirava a inocência da terra e das pessoas. Mas, agora, desejava que Cole não olhasse para ela daquele
modo.
— Deve admitir que é uma inversão das coisas. — Ele sorriu. — Eu estava certo de que ia ser ao
contrário.
— Você me ameaçou muitas vezes com um banho — disse ela, perturbada com o olhar dele.
— O que eu gostaria de saber é por que se deu ao trabalho de me salvar dos Gillett... — Olhou para
ela pensativo, imaginando se devia acreditar quando Alaina dizia que o odiava.
Os olhos cinzentos o fuzilaram.
— Talvez eu tenha errado! Porque você é o ianque barriga azul mais ingrato e teimoso que já
conheci!
Alaina deu meia-volta, pronta para sair do quarto, mas Cole segurou a mão dela.
— Acredite, eu sou grato. Sei que, considerando o que os Gillett provavelmente pretendiam fazer
comigo, você salvou a minha vida. Foi um alívio acordar esta manhã...
— Esta tarde — corrigiu Alaina, sem perdoá-lo ainda. Livrou os dedos dos dele e recuou, enfiando
as mãos nos bolsos do casaco grande demais para ela. — Você dormiu quase um dia inteiro. Agora,
se me der licença, tenho de fazer algumas coisas.

249
Saiu apressada, sem dar oportunidade a Cole de detê-la outra vez e foi para a cozinha, praguejando
baixinho contra o homem que estava lá em cima, na sua cama. Atiçou os sentimentos de revolta até
reconstruir seu ódio saudável pelo barriga azul. Sentia-se muito melhor assim.
A noite envolvia a terra e no oeste o céu flamejava com o brilho das nuvens de cor magenta e rosa,
com molduras douradas, quando Alaina saiu de casa para procurar ovos no galinheiro. Preparara a
comida para a viagem e cozinhara os ovos que tinha em casa, mas pensou que alguns ovos mexidos
para o jantar ajudariam Cole a recuperar as forças. Ele ia precisar, para a viagem.
Estava dentro do galinheiro quando percebeu, através de uma abertura nas tábuas, vultos movendo-
se furtivamente na entrada do bosque.
"Aposto que é Emmett", pensou ela, "outra vez fazendo das suas." Encostou-se na parede e olhou
pela abertura. Eram dois homens a cavalo. Desertores? Fossem cinzentos ou azuis, não tinham boas
intenções. Dependendo do lado que defendiam, um ianque ferido e imobilizado podia ser uma presa
cobiçada.
Com cautela, Alaina voltou para a casa. Saul levara sua pistola, assim restava apenas a Remington de
Cole. A porta do seu quarto estava aberta e Cole sentado na beirada da cama. Vestira a roupa de
baixo e tentava colocar a calça. Apalidez e os músculos tensos do rosto indicavam que o esforço
provocava muita dor.
— Temos companhia — anunciou ela, em voz baixa. — Podem ser os Gillett, ou talvez desertores.
— Apanhou a pistola de cima da cômoda. — Deite-se e fique quieto. Vou ficar vigiando.
— O que vai fazer com isso? — Ele indicou a arma.
— Usar, se for preciso — respondeu ela, simplesmente.
— Deixe-a comigo. — Estendeu a mão. — Se vai haver tiroteio, quem vai atirar sou eu.
— Você não está em condição nem de ficar fora da cama — protestou ela.
— Meu Deus, mulher — disse ele, irritado. — Eu me arrastei pelo pântano para chegar até aqui. É
claro que posso sair da cama. Agora, me dê essa arma.
Parada na porta, ela hesitou, relutando em ceder. Com enorme esforço, Cole ficou de pé e suspendeu
a calça, cambaleando.
250
- Quer se deitar! — disse Alaina, preocupada e, aproximando-se, o empurrou gentilmente para trás.
Cole estendeu o braço e tirou a arma da mão dela.
Muito obrigado, srta. MacGaren.
- sei Como usar a arma — protestou ela. — Além disso, não pretendo atirar em ninguém.
-
Esta é a diferença entre nós. — Cole puxou o cão pela metade e virou o cilindro para verificar se
estava carregado. — Onde estão nossos visitantes?
Alaina apontou para a janela que dava para o bosque, e Cole se levantou outra vez, com o corpo
muito ereto.
Pode me ajudar a chegar até a janela?
Percebendo que Cole não ia desistir, Alaina passou o braço pela cintura dele, apoiando o peito com a
outra mão. Quando sentiu o braço nos seus ombros, passou pela mente dela a lembrança daquela
noite, dos braços que a apertavam contra aquele peito forte e dos lábios mornos que brincavam com
os dela...
Abaixando a cabeça, obrigou-se a pensar apenas no que estava fazendo. Ele pertencia a Roberta,
repetia para si mesma, e de nada adiantavam seus desejos e sua ansiedade.
A despeito do passo difícil e arrastado de Cole, chegaram à janela, e ele encostou-se na parede
enquanto ela apanhava a cadeira e a banqueta para a perna ferida. Com ajuda dela, Cole sentou-se.
Uma mancha escura apareceu na atadura, indicando que aquela perna não devia fazer nenhum
esforço.
— Você está bem? — perguntou ela, ansiosa, e a resposta, com uma leve inclinação da cabeça, não a
convenceu. Alaina agachou ao lado da banqueta, de onde podia observar os movimentos dos
visitantes, sem ser vista.
A noite adensou seu manto de trevas e embora se esforçassem, não viam mais nenhum movimento
na entrada do bosque, nem no pátio da casa. Então uma luz se moveu entre as árvores e se
aproximou. Um dos homens carregava uma lanterna. Os dois pararam na entrada do bosque, um de
frente para o outro, gesticulando furiosamente. Ambos vestiam guarda-pós e chapéus, mas a lanterna
estava muito baixa parauminar seus rostos. Um era mais baixo, e daquela distância parecia quase de
porte delicado. Uma mulher? Era ele — ou ela — que segurava a lanterna e brandia o outro braço de
forma acusadora. Num
251
breve gesto de violência, o menor esbofeteou o maior e imediatamente recuou para evitar a resposta.
— Estão vindo para a casa — disse Alaina. Cole observava atentamente o progresso dos dois.
— Parece que procuram alguma coisa. Estão indo para o abrigo das carruagens.
— Você acha que podem ser... — Alaina levou a mão à boca, quando percebeu o que quase dissera.
Saul avistara dois homens e uma mulher saindo do bosque onde tinham encontrado o baú e o morto.
Aqueles eram dois homens... ou, possivelmente, um homem e uma mulher... sem o tesouro... mas
talvez à procura dele.
Cole tentou ver o rosto dela no escuro
— O que você ia dizer?
Alaina ergueu os ombros.
— Nada.
Depois de alguns momentos, os dois saíram do abrigo das carruagens, ameaçando-se mutuamente
com os punhos fechados.
— Seja o que for que estão procurando, parece que não encontraram — observou Cole, com uma
careta de dor.
— Não pertencem à família dos Gillett—disse Alaina, pensativa, desejando que o homem levantasse
mais o lampião.
— Agora vão para o estábulo.
— O estábulo! — Alaina foi até a janela e os viu entrar onde ela e Saul tinham escondido o baú.
— Eles vão encontrar, na certa — murmurou ela.
— Encontrar o quê? O que há lá dentro, Alaina?
— Alguns arreios velhos e outras coisas — resmungou ela, passando a mão na cabeça. Por que ela e
Saul não tinham pensado num esconderijo mais seguro? Por que os ladrões tinham de voltar tão
depressa? Por quê? Por quê?
— Você não está preocupada com alguns arreios velhos — insistiu Cole. — O que tem medo que
eles encontrem?
Alaina gemeu baixinho, torcendo as mãos.
— Saul e eu encontramos uma coisa enterrada no bosque e guardamos numa mala velha, no
estábulo.
— Que coisa?
— Um baú. — Para não dar maiores explicações, disse apressadamente: — Saul estava aqui quando
eles o enterraram e ele disse que
252
Tinham deixado um homem no bosque. Nós o encontramos numa cova junto com o baú. "
- Eles o mataram?
Suponho que sim.
Com uma careta, Cole passou a mão na perna.
- Estão saindo do estábulo agora.;Carregando alguma coisa.
Alaina sabia exatamente o que tinham encontrado. Aproximou-se mais da janela e seu sangue gelou
quando os dois começaram a caminhar para a casa. -
Estão vindo para cá — murmurou ela.
Cole fez menção de se levantar, mas Alaina o empurrou para a cadeira.
Fique quieto — sibilou. — Você está fraco como um gatinho
faminto e certamente não pode enfrentar os dois sozinho. Só vai conseguir ser morto. — Cole ia
protestar, mas ela resolveu a situação. — Vamos esperar aqui, juntos, ou, eu juro, vai ter de passar
por cima de mim para chegar àquela porta. Agora, fique onde está.
Alaina correu para a porta e a trancou rapidamente. Voltou e abriu a porta do poço do pequeno
elevador.
— Às vezes, o som de vozes chega até aqui — explicou ela, mais assustada do que queria
demonstrar.
Esperaram, num silêncio angustiante. Então ouviram o som de madeira lascada. Estavam tirando a
tábua da porta dos fundos. Aporta rangeu quando a abriram e alguma coisa pesada foi arrastada para
a sala que ficava debaixo do quarto.
As vozes dos homens ecoavam na casa, muito altas, numa discussão selvagem, mas não dava para
entender as palavras. Cole ergueu o braço e pôs a mão sobre a de Alaina, que segurava com força seu
ombro, procurando tranqüilizá-la. Os dedos finos relaxaram a pressão, como que entregando a ele a
responsabilidade da defesa dos dois.
Depois de algum tempo, tudo ficou em silêncio, e os dois compreenderam que um dos homens saíra
pela porta dos fundos. Pela janela podiam ver o vulto alto correndo para o bosque. O homem
desapareceu entre as árvores e quando voltou trazia dois cavalos, e como se estivesse ansioso para se
juntar ao companheiro, ele correu, Puxando os animais. Assim que entrou, a sala de jantar
transformou-se outra vez num centro de gritaria indignada, mas Cole e Alaina só
253
podiam ouvir claramente o que dizia o que estava mais perto da lareira. Ele negava as acusações do
outro.
— Se eu o tivesse escondido, acha que levaria você até lá? — O outro riu e ele continuou. — Eu
teria levado para bem longe daqui. — Agora, seu tom era quase de súplica. — Meu Deus, fui eu
quem fez aquela cadelinha fugir daqui e sem a minha ajuda você nunca teria pensado em fazer com
que todo o povo da região saísse à procura da traidora, enquanto nós fugíamos calmamente.
Alaina franziu a testa. Conhecia aquela voz, e o que ele estava dizendo era estranho. Obviamente
falavam dela, mas quem, além de Emmet...
— Não fui eu quem deu a informação sobre o carregamento? E lembre-se de que fui eu quem
arriscou o pescoço na noite que atiramos aquele homem no rio. Se eu fosse apanhado usando a farda
dele... diabo! Este negócio todo é absurdo demais para você me acusar desse modo. Se os homens de
Banks não tivessem sido obrigados a recuar, esta propriedade ainda estaria para ser vendida em leilão,
e podia ser sua, como tínhamos combinado. Mas agora que os rebeldes retomaram a cidade, você
está com medo.
Nós? Um ianque? Alaina inclinou a cabeça, para ouvir melhor.
— Oh, claro, foi muito bom você ter vindo procurar o baú, porque está claro que mais alguém
pretende fazer o mesmo. Mas não venha para cima de mim só porque alguns dos nossos planos não
deram certo. Ainda podemos tomar a propriedade e vender em leilão. Enquanto isso, o baú está
seguro conosco e podemos dividir tudo entre nós dois agora mesmo.
Como se essas palavras tivessem acalmado o outro, eles se calaram, e Alaina e Cole agora só ouviam
os ruídos de movimentos. Depois de algum tempo os movimentos também cessaram e as vozes
soaram outra vez, entre risos de alívio. Então, bruscamente, a alegria foi interrompida por um grito,
o ruído de luta e depois silêncio.
Alaina conteve a respiração e os dois esforçaram-se para ouvir. Os passos de uma única pessoa,
pesados e lentos, evidentemente arrastando alguma coisa, saíram da casa. Voltaram e carregaram para
fora outra coisa pesada. Dessa vez o silêncio reinou por uma eternidade. Não ouviram as patas de
cavalo, indicando que alguém se afastava da casa e então um ruído leve subiu da varanda da frente.
Depois de algum tempo, os passos voltaram e pararam na porta dos
254
fundos. Outro som, agora de líquido derramado e o cheiro pesado de óleo de carvão invadiu o
quarto.
As unhas de Alaina enterraram-se no ombro de Cole, mas ele mal notou e, com esforço, levantou-se
da cadeira. A fumaça subiu pelo poço do elevador e o estalar das chamas confirmaram as suspeitas
dos dois. Ouviram então o tropel do cavalo afastando-se da casa, e Alaina correu para fechar a porta
do elevador.
— Malditos! Malditos todos eles! — exclamou ela. — Eu devia ter matado os dois assim que os vi!
— Alaina estava quase sufocada pelos soluços e pela fumaça que enchia o quarto. Seu corpo todo
tremia de ódio por aqueles que haviam posto fogo em sua casa. Um soluço trêmulo escapou dos seus
lábios, misturando-se ao estalar sinistro do fogo lá embaixo. Cole a segurou pelos ombros e a sacudiu
até ela se acalmar.
— Alaina! Escute. Temos de sair daqui antes de ficarmos encurralados pelo fogo. Está entendendo?
— Sacudiu-a outra vez, exigindo uma resposta. — Você compreendeu?
Ela anuiu com a cabeça, murmurando uma resposta confusa. Tossindo, ela passou o braço de Cole
por seus ombros, tentando ajudá-lo, mas quando chegaram na porta, encostou-o na parede e voltou
correndo para a cama.
— Alaina! Vamos!
— Você não pode sair por aí seminu! — disse ela, apanhando a roupa e as botas de Cole, além do
acolchoado da cama. Apanhando a túnica, Cole escondeu dentro dela uma miniatura que tirou da
parede, enquanto Alaina tentava em vão girar a chave na fechadura. Cole afastou as mãos trêmulas
dela e abriu a porta. Fumaça pesada e densa subia pela escada, penetrando em suas narinas e fazendo
arder seus olhos, quase obrigando-os a recuar.
— Vamos sair daqui! — Cole a segurou pelo braço e claudicou penosamente para o corredor.
— Veja! — exclamou Alaina, apontando. — Devem ter posto fogo na frente da casa. Está toda em
chamas!
— Vamos tentar os fundos!
Ela o ajudou a descer a escada, suportando o máximo possível do peso dele. Quando chegaram ao
último degrau, Cole, quase saltando numa perna só, foi até o hall e parou por um instante. A outra
extremidade da sala de jantar estava em chamas e a porta dos fundos era um inferno de fogo.

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Com um grito abafado, Alaina apontou para as pernas que apareciam na outra porta do hall.
Arrastando a perna ferida, Cole tentou chegar na porta. O homem estava semi-agachado sobre um
baú aberto e vazio, marcado com as letras USA. Cole examinou rapidamente o ferimento de faca nas
costas do homem e verificou se ainda respirava. Nada.
— Ele está morto? — perguntou Alaina, tremendo.
— Está. — Cole rolou o corpo, tirando-o da posição estranha. As pernas se esticaram lentamente e a
faixa amarela apareceu na calça azul-escuro, quando o guarda-pó se abriu.
— Um ianque! — exclamou Alaina. Então viu o rosto do homem e disse: — Ora, é o tenente Cox!
Foi ele que disse a todos que eu era uma espiã!
A pistola do oficial, metade fora do coldre, estava enganchada no guarda-pó e a outra mão segurava
um pedaço de brocado de seda. Cole abriu os dedos do homem e depois tirou do baú a única coisa
que restava, o maço de papéis.
— Saul e eu encontramos o baú—explicou Alaina, rapidamente. — Era o carregamento de ouro
roubado em Nova Orleans. Eles o enterraram no bosque, com o corpo do outro homem, e Saul e eu
escondemos o baú no estábulo.
Cole jogou os papéis no baú.
— Bem, agora tem um a menos para receber sua parte.
— Saul disse que um homem elegante e uma mulher estiveram aqui, com o tenente Cox, na noite em
que enterraram o dinheiro.
As labaredas cresceram, fazendo-os recuar. Cole agarrou Alaina e, arrastando a perna, atravessou o
hall e abriu a porta que dava para o outro lado da casa. A sala estava quase sem fumaça e Cole,
empurrando Alaina para dentro, fechou a porta. Tinham passado pela única porta e só podiam sair
agora por uma das janelas. Cole arrancou a perna de madeira de uma mesa e com ela quebrou os
vidros da janela. Depois começou a tentar soltar as tábuas cruzadas. De repente, mãos fortes, do lado
de fora, arrancaram as tábuas como se fossem feitas de pano, e as persianas foram abertas. O rosto
de Saul apareceu na abertura, e Cole, levantando Alaina do chão, passou-a para fora. Então, quando
se preparava para sair também, foi içado pelos braços fortes de Saul. Cole rilhou os dentes quando
sua perna raspou no peitoril da janela e depois apoiou todo o peso do corpo em Saul que,
rapidamente, levou os dois para o abrigo do estábulo. Cole deixou-se cair ao lado
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de Alaina sobre a palha úmida, ambos tossindo para livrar os pulmões da fumaça. Cole imaginou se
depois disso teria ainda prazer em acender e fumar um charuto.
Saul olhava apreensivo para os dois, e Cole o tranqüilizou, erguendo a mão.
— Você viu por acaso um homem a cavalo saindo da casa? — perguntou ele, com voz rouca.
— Não, senhor. Atravessei o campo correndo quando vi o fogo saindo da porta dos fundos. Não vi
ninguém.
Sentada na palha, encolhida, Alaina olhava para a casa em chamas. As labaredas subiam da porta dos
fundos, alcançando o segundo andar e a frente estava completamente tomada pelo fogo. As lágrimas
desciam dos seus olhos e soluços abafados estremeceram seu corpo quando, finalmente, ela se
entregou à dor imensa. Tentando confortá-la, Cole estendeu o braço para ela, mas Alaina esquivou-
se, zangada.
— Não toque em mim, ianque! — disse, voltando para ele o rosto molhado de lágrimas. — Você e
seu maldito exército azul já me custaram quase mais do que posso suportar!
Cole deixou que ela chorasse a perda, frustrado por saber que não podia fazer nada para evitar a
destruição de Briar Hill.
— Não acha que devemos sair daqui — sugeriu ele — antes que algum curioso apareça, atraído pelo
fogo?
Alaina parou de chorar e levantou-se de um salto.
— Os Gillett! Vão correr para cá assim que virem o fogo. Temos de sair daqui!
— Sim, senhora — concordou Saul ardorosamente. — Mas por onde? Aquele lixo branco vem pela
estrada e na outra direção estão as patrulhas da cavalaria dos confederados. E de qualquer modo, não
podemos ir muito longe, no escuro.
Alaina sentiu-se como uma raposa acuada na toca, mas teve uma idéia.
— Atrele os cavalos na carroça fúnebre. Vamos atravessar o campo e nos esconder ao lado do regato
esta noite.
Voltou-se bruscamente, entregou as botas para Cole e foi até a cozinha apanhar a comida preparada
para a viagem, não se oferecendo para ajudá-lo.
Deixando para trás a casa em chamas, o estranho trio saiu com a carroça fúnebre para a vastidão do
campo. Saul afastou um pouco o
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caixão pesado e Cole deitou-se ao lado dele, onde podia esticar a perna ferida. Alaina virou-se para
trás e seus olhos encheram-se outra vez de lágrimas quando viu uma explosão de chamas surgir
sobre as copas das árvores. O clarão do fogo iluminava o campo, e as sombras, negras e fluidas,
alongavam-se na frente deles. Ouviram os gritos excitados dos Gillett, na estrada, perto da casa, com
a impressão de que a qualquer momento eles os avistariam atravessando o campo, mas os Gillett
estavam entretidos olhando para o fogo, e os três conseguiram chegar a salvo no bosque.
Na completa escuridão, sob as árvores, Saul os conduziu para um lugar protegido, ao lado do regato.
Depois de cuidar dos cavalos, ele ficou na entrada do refúgio, para montar guarda. Encolhida dentro
do casaco muito grande para ela, Alaina olhava tristemente para o reflexo das chamas nas nuvens
baixas.
Por volta da meia-noite, o fogo diminuiu e uma chuva fina começou a cair. Protegido com uma capa
de chuva, Saul encostou-se num tronco de carvalho. Alaina sentou-se na porta aberta da parte de trás
da carroça, descansando a cabeça nos joelhos dobrados, procurando ficar o mais distante possível de
Cole. Com a chuva, os mosquitos desapareceram, e agora era possível dormir.
A manhã chegou escura e a chuva fina continuou a cair das nuvens baixas. Cole saiu da carroça
espreguiçando-se para aliviar os músculos doloridos. Saul acendeu o fogo para esquentar um pouco
de presunto, mas Alaina não estava em lugar nenhum. Saul ergueu os olhos quando Cole,
caminhando com dificuldade, foi até a frente do carro e encostou-se na roda dianteira. O negro pôs
uma fatia de presunto e um pedaço de broa de milho no prato de lata e disse:
— Não é grande coisa, senhor — sorriu, oferecendo a comida—, mas vai ficar bem no seu estômago
até o cair da noite.
Cole apanhou o prato.
— Onde está Alaina? — perguntou.
— Oh, miz Alaina, ela foi andar um pouco.—Saul preparou outro prato, cobriu, guardou sob o
banco do carro e começou a preparar o terceiro. — Desconfio que ela voltou para a casa. Vou atrelar
os cavalos e vamos até lá, antes de partir.
Só avistaram o que restava da casa quando chegaram ao portão. Os carvalhos que antes a protegiam
do sol, nus e retorcidos, eram caricaturas grotescas do que tinham sido. As vigas queimadas que se
erguiam das ruínas eram como os ossos de um animal gigantesco
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morto em terrível agonia. Filetes de fumaça espiralavam para o alto e as gotas da chuva chiavam na
madeira ainda em brasa. O cheiro da cinza molhada pairava pesado no ar da manhã.
Alaina estava um pouco além dos estábulos, ajoelhada na lama vermelha, as mãos cruzadas no colo.
O chapéu alto estava ao seu lado, no chão. Saul saltou da carroça e, aproximando-se, pôs gentilmente
a mão enorme no ombro dela.
Miz Alaina? — Sua voz era suave, como se relutasse em perturbá-la. — Temos de ir agora... antes
que aqueles Gillett acordem e voltem para cá.
Alaina ergueu os olhos vermelhos, respirou fundo, e disse, com voz trêmula:
— Tudo se foi, Saul. Não sobrou nada.
— Eu sei, miz Alaina. — Olhou para as ruínas ainda quentes e seus olhos encheram-se de lágrimas.
— Mas não vou dizer adeus. Algum dia tudo vai voltar e...
A dor embargou sua voz, e ela se calou. Com um longo suspiro, deu as costas à ruína.
— Mas agora precisamos ir, miz Alaina.—Ajudou-a a se levantar e apanhou o chapéu, limpando-o
com a manga antes de entregar a ela.
Alaina o enfiou na cabeça, levantou a gola do casaco, transformando-se outra vez no garoto escuro e
magro. Sentado na porta traseira da carroça, Cole olhou admirado para aquela transformação. Onde
estava agora aquela doce mulher que ele tivera nos braços por uma noite e que sonhava em
recapturar?
Alaina chegou perto da carroça e, inclinando a cabeça para o lado, olhou pensativamente para ele.
— O que vamos fazer com ele? — Seu tom era todo inocência, mas Cole teve a vaga e temerosa
impressão de que ela já sabia a resposta.
— Bom. — Saul passou a mão no queixo e disse, com voz mais arrastada do que nunca. — Estive
pensando nisso. — Olhou para o caixão e depois para Alaina, erguendo a sobrancelha. Ela fez um
gesto afirmativo com um sorriso maroto.
— Oh nããão! — gemeu Cole, compreendendo a intenção dos dois.
— Até onde pensa que pode chegar, ianque, com todo esse azul e esses botões brilhantes? —
perguntou Alaina, impaciente.
Cole deu um suspiro exagerado de submissão.
259
— Que Deus me livre desta mulher.
— Ponha o ianque aí dentro — disse ela para Saul, sorrindo satisfeita quando o capitão,
semicerrando os olhos azuis, parecia prometer uma vingança. Ele passou a perna pelo lado do caixão,
ajudado por Saul. Assim que o capitão se deitou, Saul fechou a tampa sobre pequenos pedaços de
madeira espaçados para permitir a entrada do ar. O crepe preto foi arrumado para esconder a
pequena abertura e a porta de trás se fechou. Cole suspirou quando a carroça se pôs em movimento.
Pelo menos estava aquecido e seco, mas era um fraco consolo, com o riso de Alaina soando ainda
nos seus ouvidos.
Atravessaram outra vez o campo até a estrada estreita que acompanhava o braço do rio. Alaina
apoiou um joelho no banco e virou-se para trás. Podia ver ainda as ruínas de onde subia a fumaça e
que nada tinham a ver com a casa que ela amava. As belas glicínias trepadeiras tinham desaparecido e
jamais voltariam. Briar Hill era agora um amontoado de celeiros, estábulos e cabanas de toras de
madeira. A grande casa branca, orgulho dos MacGaren, não existia mais. Tudo que restava eram as
lembranças que passavam agora pela mente de Alaina.
Sentou-se outra vez ao lado de Saul, aconchegada dentro do casaco muito grande, protegendo-se da
umidade da manhã. As lágrimas que desceram por seu rosto combinavam com o dia, que começava
pesado e opressivo. Uma brisa fresca balançava as folhas das árvores, trazendo o cheiro da fumaça e
as cinzas. Durante muito tempo, esse cheiro fez parte das suas lembranças de Briar Hill.
260
Capítulo Vinte e Um

O CARRO FÚNEBRE acabava de entrar na estrada de Marksville quando o ruído de patas de


cavalo os fez sair da estrada e esconder-se entre arbustos. Saul desceu para amordaçar os cavalos, e
Alaina correu para a traseira da carroça e avisou Cole. Logo apareceu o vulto rotundo de Emmett
montado numa mula que não parecia dar grande importância apressa frenética do cavaleiro.
Castigado duramente com uma vara de salgueiro, o animal corcoveou e escoiceou para trás,
arruinando a pose de Emmett. A mula então trotou quase normalmente por algum tempo, e o
homem, recuperando o equilíbrio e o ritmo da respiração, recomeçou o castigo com mais ardor. Foi
assim que Emmett passou pelo grupo de árvores e moitas onde a carroça fúnebre estava escondida.
— Não sei para onde ele vai — disse Cole, quando Saul voltou para perto da carroça. — Mas duvido
que chegue lá com essa montaria.
— Aquele é o caminho para Marksville — resmungou Saul.
— Provavelmente ele vai avisar o xerife de que há um ianque solto por aí — disse Alaina. — Acho
melhor irmos para Cheneyville, para o caso de haver confederados por aqui.
Cole olhou para ela, intrigado. Para uma sulista convicta, Alaina estava muito interessada em proteger
um ianque. Porém os motivos dela eram extremamente confusos.
261
Percebendo que ele a observava, Alaina puxou para baixo a aba do chapéu e resmungou:
— O que está olhando, ianque? Olha para mim como se eu tivesse duas cabeças.
— Desculpe — disse ele. — Só estava tentando decidir qual é a verdadeira Alaina MacGaren.
No fim da tarde os três chegaram a uma cidadezinha e discretamente esconderam a carroça num
barracão vazio, ao lado dos trilhos de uma estrada de ferro abandonada. Saul fechou as portas do
barracão e mal tinham começado a jantar presunto frio e ovos cozidos, sentados em caixas e com
uma esteira no meio, quando o tropel de muitos cavalos os imobilizou.
— É uma patrulha dos confederados — murmurou Saul, espiando por uma fresta da porta e, depois
de um longo momento, acrescentou: — Parece que pretendem acampar bem em cima de nós.
Alaina engoliu rapidamente o pedaço de presunto que tinha na boca, sem sentir o gosto.
Botas pesadas soaram muito perto do barracão e eles ficaram em silêncio, quase sem respirar. Um
oficial e um sargento passaram pela frente da porta.
— Verificou este lugar, sagento?
— Antes dos homens chegarem, senhor. Não encontrei nem uma barata. Revistamos todos os
celeiros e barracões da cidade, também. É difícil que alguém possa passar, com as quatro estradas
patrulhadas por nossos homens.
O capitão continuou a andar, mas o sargento foi até o lado do barracão para urinar. Alaina estava
ouvindo atentamente a conversa, mas quando o ruído diferente soou contra a madeira do barracão,
ela virou o rosto muito corada.
Com os confederados tão perto, os fugitivos moviam-se agora com extrema cautela. Cobriram os
focinhos dos cavalos com sacos de ração para que ficassem quietos e calmos. Cole ficou com a
pistola à mão, e Saul envolveu os tirantes dos arreios com tiras de pano, para evitar o barulho
metálico.
Tensos, eles esperaram. Parecia só uma questão de tempo para algum explorador curioso abrir a
porta e descobri-los. Era como estar nu na praça principal da cidade, esperando que alguém
chamasse a atenção para a sua nudez. Um jovem soldado aproximou-se e se apoiou na porta por um
longo tempo, com a mão na maçaneta, enquanto
262
conversava com os companheiros. Dentro do barracão, os três ficaram imóveis, ouvindo o som das
vozes, mas não as palavras, olhando para a fechadura de metal que chacoalhava cada vez que o
jovem soldado mudava de posição.
As duas folhas da porta bateram uma na outra quando o homem se afastou, ouvindo a chamada para
o jantar. Com as pernas bambas e um suspiro de alívio, Alaina sentou-se numa caixa quando os três
soldados se afastaram. Cole pôs a pistola no coldre, e Saul executou uma dança silenciosa na terra
seca.
De repente ouviram uma pancada surda no outro lado do barracão e uma portinhola baixa foi
empurrada contra a terra que a prendia. Alaina e Cole apontaram as armas para o intruso, e Saul
empunhou um pedaço de pau quase tão grosso quanto seu braço. A portinhola se abriu
completamente e um pequeno vulto entrou, batendo nas pernas para tirar a poeira da calça. Era
Tater Williams.
Cole relaxou, encostado na roda da carroça fúnebre, e o garoto caminhou hesitante para eles, sob a
mira das duas pistolas. Tater apontou para trás com o polegar e explicou:
— Tem uma caixa de madeira do lado de fora. — Olhou para a arma do capitão. — De qualquer
modo, não vou fazer nenhum mal a vocês.
— Como nos encontrou? — perguntou Cole.
— Eu segui vocês. — O garoto parecia perfeitamente calmo. — O velho Gillett mandou Emmett
pegar a mula e me deixou a pé. —-Sorriu com superioridade. — É claro que aquela mula velha e
Emmett nunca se entenderam. Achei que a pé eu podia chegar na frente dele. Eu devia contar ao
assistente do xerife a fuga do capitão e tudo o mais. — Notando a suspeita nos olhos deles,
apressou-se a acrescentar: — Eu contei, é claro, mas não disse onde o capitão estava agora.
Alaina olhou atentamente para ele, curiosa para saber o que o garoto pretendia fazer. Tater esfregou
o pé descalço no chão de terra e olhou timidamente para ela.
— Não gostei nem um pouco do jeito que Emmett falou comigo, e quando vocês deixaram ele
amarrado no fumeiro, achei que devia alguma coisa a vocês. Ah! — O garoto tapou a boca com a
mão, para conter o riso. — Quando o velho Gillett encontrou Emmett todo amarrado e amordaçado
e tirou o pano da boca dele, Emmett começou a contar aos berros que um fantasma negro e uma
dúzia de ianques tinham atacado ele e que ele lutou contra todos até o fantasma negro
263
derrubar ele. Vocês tinham de ver a raiva do velho Gillett. Ele disse: "ponham a mordaça outra vez
na boca dele". — Tater teve outro acesso de riso, quase silencioso, atrás da mão.—O pai deixou
Emmett naquele fumeiro sujo até de manhã, e Emmett saiu de lá como um porco fugindo de um
bosque em fogo. O pai dele mandou ele se lavar no cocho dos animais antes de entrar em casa para
comer. Emmett jurou que, nem que fosse a última coisa que ia fazer na vida, ia fechar aquele capitão
naquele fumeiro até ele ficar defumado como um presunto.
Ouviram um grito e o acampamento dos rebeldes entrou em frenética atividade. As duas pistolas
desviaram de Tater, para grande alívio do garoto, e voltaram-se para a porta. O oficial confederado
passou pela frente do barracão, com alguns homens, e os fugitivos ouviram perfeitamente as ordens
que ele gritou para o sargento.
— Uma patrulha de ianques vinda de Alexandria está acampada a poucos quilômetros, na estrada.
Deixe os observadores avançados cobrindo a estrada e traga o resto dos homens. Vamos ver se
conseguimos perturbar um pouco o sono daqueles ianques.
Os homens montaram apressadamente e logo as barracas estavam vazias. Tater Williams tirou a
poeira do próprio ombro e disse, com orgulho:
— Eu também disse para um dos guardas da estrada que tinha visto uma patrulha de ianques
andando na estrada, perto do rio. — Olhou para os três e deu de ombros inocentemente. — Mas
tem mesmo! Eu passei mesmo por alguns ianques em algum lugar da estrada.
Alaina olhou para Cole com um sorriso esperançoso.
— Quem sabe nós podemos passar sem que nos vejam e levar você até a patrulha de ianques.
— Isso é meio difícil — disse Tater. — Aqueles ianques não podem ir muito longe sem atrair um
enxame de vespas cinzentas. Eles só dão uma espiada e voltam quando a situação fica difícil.
O desapontamento fez Alaina curvar os ombros e sentir finalmente a tensão e o cansaço das últimas
horas. Tensa e cabisbaixa, ela tentava pensar num modo de passar pelos bloqueios da estrada e
chegar a salvo em Cheneyville.
Tater agachou-se, sentando-se nos calcanhares e olhou para ela.a — Miz Laina? aí Alaina
sobressaltou-se ouvindo seu nome. Naquele momento
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Cole pensou seriamente se ele teria sido a única pessoa que se deixara enganar com o disfarce.
— Puxa, miz Laina. — Tater sorriu gentilmente. — Eu sabia desde o começo que você não era um
garoto e eu não conhecia nenhum amigo de Saul do seu tamanho. Eu sabia também o que Emmett
fez com você quando os ianques estiveram aqui no ano passado. Eu sempre gostei da sua família.
Eram todos bons para mim, e meu pai diz que eram todos boa gente, honestos e que era uma pena
que não existe mais gente assim. Miz Laina?—Tater puxou a manga de Alaina, e ela voltou para ele
os olhos cheios de lágrimas. — Eles construíram esses trilhos de máquina a vapor bem perto da
porta. Era para ir direto até Nova Orleans, mas com a guerra, só chegaram até aqui. Meu pai conta
que quando ele trabalhou para eles, deixaram o lugar para os trilhos preparado até quase Holmesville,
quando pararam o trabalho. Não tinham ferro nem madeira para continuar o trabalho, mas meu pai
diz que é um bom caminho para quem não quer ser visto. Aqueles Johnnies bloquearam a estrada,
mas só a outra parte, e eles não sabem nada sobre este caminho. Vocês podem pegar uma estrada
para o leste ou para o sul, seguindo o braço de rio, dependendo do lugar para onde querem ir.
Alaina tirou o chapéu e, fungando, limpou o nariz na manga antes de envolver o garoto num abraço
agradecido. Tater levantou-se rapidamente, encabulado e confuso. Depois de alguns momentos,
resmungou alguma coisa sobre boa sorte e saiu por onde entrara.
A noite desceu sobre a cidadezinha e um bando de nuvens fofas começou a brincar de pegador com
a lua. Saul saiu do esconderijo e depois de dar uma volta cautelosa pelo campo quase vazio, voltou
com vários cobertores. Naquele calor úmido e pegajoso era difícil adivinhar o que pretendia fazer
com eles. Então ele cortou os cobertores em tiras e embrulhou com eles os metais dos arreios e as
patas dos cavalos. Cole verificou sua pistola e entrou no caixão aberto, enquanto Saul e Alaina
abriam a porta do barracão.
A carroça fúnebre saiu como um fantasma silencioso. As portas foram fechadas e as marcas das
rodas apagadas da terra, e Alaina seguiu atrás, desfazendo todos os sinais. Saul levou os cavalos para
os trilhos enferrujados, acertando as rodas do carro, duas de cada lado de um trilho. Alaina subiu
para o banco ao lado de Saul, e a viagem começou.
Passaram em silêncio pelas casas iluminadas na borda da cidade
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e alcançaram o abrigo das árvores, antes que os cães percebessem sua passagem. Os trilhos
terminaram logo adiante, bem como os trancos da carroça, passando sobre os dormentes de madeira.
O chão liso preparado para os trilhos estendia-se até o pântano, numa linha reta, deixando para trás
as estradas guardadas pelos confederados. A primeira de várias pontes provisórias, para a passagem
das carroças com materiais da construção, estava ainda de pé, e eles a atravessaram com facilidade.
Antes do amanhecer estavam na estrada a leste de Holmesville, seguindo na direção do sol nascente e
do Mississippi. Com a chegada do dia, Cole recolheu-se, como um vampiro, ao seu caixão e depois
de algumas horas começou a sentir o desconforto da falta de espaço. O inchaço da perna ia agora até
o joelho e o tornozelo começava a ser apertado pela bota. Embora os calços de madeira facilitassem
a entrada do ar e de um pouco de luz, ele mal podia se mover lá dentro. Cada solavanco provocava
uma dor lancinante na perna e sua cabeça batia na tábua do caixão. Cerrando os dentes, ele procurou
pensar em outras coisas. Tentou evocar a imagem de Roberta. Sua beleza ardente e o corpo
curvilíneo seriam uma delícia se combinados a um pouco de vivacidade e agilidade de espírito.
Lembrando a testa sempre franzida e a língua ferina, Cole não encontrou conforto na lembrança.
Lentamente, dois olhos cinzentos e claros, com pestanas espessas, invadiram sua lembrança, ora
matreiros, ora muito abertos, espantados, depois risonhos, ameaçadores, furiosos, chorando. O
narizinho pequeno e bem-feito juntou-se àqueles lagos mesmerizantes, enfatizando sua expressão.
Lábios doces e cheios sorriam e convidavam, abrindo-se sob os seus. Seios jovens e macios erguiam-
se a cada respiração, respondendo ao seu corpo forte e musculoso, e os braços...
Chega disso! Energicamente Cole dominou esses pensamentos, mandando-os de volta para o fundo
de sua mente. Mas seu coração batia com força e o suor pingava da testa. De modo nenhum podia
atribuir tudo isso ao calor abafado do caixão.
Cole procurou pensar nas possibilidades do futuro próximo. Os planos para aquela viagem eram
improvisados, suficientemente flexíveis para permitir um sem-número de acontecimentos
imprevisíveis. Para tais eventualidades, ele dera a Alaina uma bolsa com moedas de ouro e de prata
que estavam escondidas no fundo da sua bolsa de balas, e por isso não foram encontradas nem
quando Emmett usou seu
266
cinturão. Agora tudo que tinha a fazer era suportar com paciência até poder sair da estreita prisão.
A manhã ia em meio quando chegaram a uma encruzilhada ao mesmo tempo que um grupo de
confederados a cavalo. Alaina bateu rapidamente na parte da frente do carro, avisando Cole para
ficar quieto, e Saul puxou as rédeas, para ficar bem atrás e em voz alta deu o aviso sobre a febre
amarela, apontando para as bandeiras nos dois lados da carroça. O oficial que comandava a patrulha
mandou abrir caminho para a carroça fúnebre, mas logo que eles passaram, os soldados seguiram
atrás, mantendo uma distância segura. Pelo resto da manhã, os cavaleiros confederados serviram de
escolta aos fugitivos, mas ao meio-dia eles saíram da estrada para descansar e comer alguma coisa à
sombra das árvores. Saul conteve o impulso de pôr os cavalos a galope, mas assim que teve certeza
de que não seriam ouvidos, entrou numa estrada lateral que acompanhava um regato preguiçoso. O
novo caminho era cheio de curvas para a direita e para a esquerda, mas não viram mais a patrulha
dos confederados.
Sob o sol do meio-dia, o caixão transformou-se num forno, e Cole começou a reclamar e praguejar
em voz alta. Finalmente Saul parou, e o caixão foi aberto para que o ianque pudesse respirar. A essa
altura a paciência de Cole chegara ao fim. Estava encharcado de suor e com o rosto muito vermelho.
Nem mesmo Alaina ousou responder ao olhar furioso do capitão, e sem dizer palavra deu a ele um
balde com água. Cole tirou a túnica de lã e a camisa para se lavar.
O sol há muito tinha desaparecido no horizonte quando a carroça fúnebre chegou à confluência de
dois rios e ao fim da estrada, a pouca distância de uma pequena cabana de madeira no meio de um
bosque de ciprestes. Iam perder muito tempo se voltassem para a estrada principal, além do perigo
que podiam correr, porém, ao que parecia, era a única alternativa.
Um velho magro, de barba, levantou-se da cadeira, na varanda da cabana, e com um garrafão de
bebida debaixo do braço, caminhou com passos incertos na direção do carro.
— Vocês querem atravessar? — perguntou ele com voz fraca e estridente, antes de chegar até eles.
— Sim, senhor — disse Saul com seu vozeirão. — Estamos levando o pobre patrão para a sua
família, mas não sei como a gente vai chegar lá.
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O homem riu e tomou um generoso gole do garrafão, sem tirar os olhos deles.
— B-e-e-e-em — pigarreou e passou a manga na boca. — Muita gente por aqui usa a balsa. É claro
que não levo qualquer um. Só os que podem pagar. Vocês têm dinheiro?
Alaina tirou do bolso um dólar de prata, entregou para Saul dar ao homem. O velho mordeu a
moeda, pensativo, lembrando o tilintar das moedas no bolso de Alaina.
— B-e-e-e-em — disse, com voz mais arrastada do que antes. — É dinheiro ianque e muito bom. É
claro que não chega.
O velho observou os dois quando Alaina puxou a manga de Saul. Com as cabeças muito juntas,
trocaram algumas palavras e ela mostrou ao negro alguma coisa na palma da mão. Saul olhou para o
homem e arregalando os olhos, disse, como se estivesse pensando alto:
— Nós só temos mais duas dessas moedas. O velho patrão não tinha muita coisa e o agente
funerário deu para a gente só as moedas brancas grandes e ficou com todas as pequenas amarelinhas.
— Não é o bastante para eu me arriscar com uma vítima da febre amarela — lamentou o homem. —
Tem certeza de que ele não deixou algumas das pequenas amarelinhas?
— Não deixou não, senhor. — Saul balançou a cabeça vigorosamente. — Mas o patrão não morreu
de febre nenhuma. Ele morreu naquela batalha com os ianques na parte alta do rio. O homem da
funerária disse que os pedaços de pano amarelos nos lados do carro iam servir para que os ianques
não chegassem perto.
— B-e-e-em, nesse caso, e porque sou um fiel confederado, vou levar vocês para o outro lado só por
três dólares.
O riso de Saul ia de orelha a orelha, embora ele e Alaina soubessem que o preço normal da passagem
era mais ou menos de um quarto de dólar. Depois de morder as outras duas moedas, o homem
seguiu por uma trilha estreita, que acompanhava o regato, e demorou tanto para voltar que eles
começaram a pensar que tinham sido enganados. Então viram uma velha barcaça. O casco chato fora
adaptado formando um convés aberto, que parecia mal ter espaço para a carroça fúnebre, protegido
por uma precária cerca de madeira. Saul desceu e apanhou o cabo que o homem jogou e puxou a
barcaça para a margem. O velho puxou para baixo um cabo forte de corda que atravessava o regato e
o passou por baixo das guias de ferro na proa e na popa de embarcação,
268
depois abaixou a cerca de madeira da popa e com tábuas reforçadas fez uma ponte entre a terra e o
barco.
A barcaça abaixou a proa precariamente quando os cavalos embarcaram, depois abaixou a popa
quando chegou a vez da carroça. Saul tossiu alto para abafar a reclamação furiosa do homem no
caixão e apressou-se a calçar as rodas do carro com pedaços de madeira. O barqueiro o observava
atentamente.
— Precisa cuidar dessa tosse, homem — disse ele. — Parece que está com a febre. — Bateu com a
mão no garrafão que estava seguro, encostado num dos postes da amurada improvisada. — Tenho
uma cura certa aqui mesmo. Se você tivesse outro dólar, eu podia vender uma dose.
Saul olhou para ele como quem não compreende, piscou os olhos e não disse nada, para
desapontamento do homem.
— Aqui, homem! Vou precisar de ajuda se quiserem atravessar com todo esse peso. Segure aquela
corda lá na frente e vá andando para trás. Assim!
Quando a barcaça alcançou a correnteza, os redemoinhos do pequeno rio cheio pela chuva
começaram a atirá-la para cima do cabo-guia, balançando-a de um lado para o outro, enquanto Saul
firmava o cabo e o velho procurava manter a embarcação quase reta com o remo largo e comprido.
A balsa embicava e balançava, e Alaina agarrava-se no banco alto da carroça e os cavalos, com os
olhos vendados, mantinham-se imóveis, tremendo apenas quando o balanço era muito pronunciado.
Dentro do caixão escuro, Cole imaginava qual seria seu fim. O balanço constante e violento parecia
virar de cabeça para baixo seu mundo negro, apertado e sem ar. Era demais! Se ia se afogar, não ia
ser preso num caixão. Ergueu a tampa com o cotovelo e segurou a borda do caixão. Recuperando
um pouco o equilíbrio, levantou mais a tampa, tirando o crepe negro que a cobria.
Quando Cole acabou de abrir a tampa do caixão, um grito lamentoso e apavorado cortou o ar. O
barqueiro, boquiaberto e com os olhos arregalados, recuou quando Cole sentou-se no caixão aberto.
Então, o homem deu meia-volta e antes que alguém pudesse impedir, atirou-se na água. Um
esguicho de água espumosa marcou sua aproximação da margem, enquanto Saul e Alaina riam às
gargalhadas do desespero do homem. Sem olhar para trás, o velho desapareceu entre as árvores e o
mato cerrado.
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Saul ajudou Cole a sair da carroça, mas não tiveram muito tempo para conversar porque a corrente
lançou a barcaça contra o cabo e começou a puxá-la para baixo. Com um grito, Alaina apontou rio
acima. Um enorme carvalho, arrancado pela força da água, descia velozmente na direção deles. Se
batesse na barcaça, iam naufragar, com pouca esperança de escapar da força da água. Tudo que
podiam fazer era soltar o cabo e deixar que a correnteza os levasse.
Com grande esforço, Saul abaixou o cabo e o soltou da guia de ferro. A barcaça girou, saltou e
afundou a proa. Os cavalos patearam nervosos. Saul soltou a guia da proa e a barcaça endireitou-se, e
sem ter de lutar contra a força da água, seguiu tranqüilamente, levada pela corrente.
O píer da balsa desapareceu numa curva, e Saul procurava mantê-los no centro do rio, longe dos
troncos de árvores que enchiam as margens. Era um trabalho árduo, e eles seguiram pelo caminho
tortuoso dos pântanos.
Depois de uma hora, saíram do regato para as águas lamacentas e amareladas de um rio largo.
Estavam no rio Vermelho, um pouco acima de Simsport. A barcaça balançava agora, embicava e
girava, e Saul, completamente molhado, esforçava-se para manter um equilíbrio relativo.
A proa da barcaça começou a afundar, erguendo a popa, dificultando o seu controle. Alaina abriu um
alçapão no convés e viu que metade do porão estava cheia d'água. O casco era dividido em
compartimentos por tabiques de madeira, mas não era uma embarcação construída para suportar um
grande peso na corrente forte. Cole amarrou uma corda na alça de um balde, e Alaina desceu pelo
alçapão. Ela começou a tirar a água vigorosamente, apoiando-se na amurada, e Cole puxava o balde
para cima e jogava a água no rio. Imediatamente conseguiram estabilizar a barcaça, mas logo tinham
de repetir a operação de retirada da água.
O sol desceu no céu, e a barcaça seguiu seu caminho, levada pela correnteza. Estavam indo na
direção certa, mas o problema era se manter na superfície. Não viram nenhum porto seguro até o sol
desaparecer atrás das copas das árvores.
De repente o apito agudo de um barco a vapor rasgou o silêncio do cair da noite e um navio fluvial,
com roda de pá, apareceu na curva do rio, atrás deles. Avistando a estranha embarcação, o barco
apitou de novo. A esteira branca de espuma desapareceu quando as rodas
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imensas quase foram paradas e o pequeno canhão, protegido por fardos de algodão, foi
imediatamente descoberto. O barco aproximou-se cautelosamente, Cole tirou a túnica azul e a
sacudiu acima da cabeça. Qualquer embarcação naquele trecho do rio tinha de ser da União. Um
homem saiu da cabina do piloto e apontou um telescópio para a barcaça. Cole vestiu a túnica e
mandou que Saul e Alaina retirassem rapidamente as bandeiras amarelas do carro. O barco a vapor
avisou que ia fazer a abordagem.
O esforço de ajudar a manter a barcaça na tona e, depois, sinalizar para o barco a vapor, foi demais
para Cole. Recostou-se na precária amurada até o levarem para bordo do barco ianque. Os cavalos
foram içados para bordo, mas a carroça fúnebre foi deixada para partilhar o destino da pobre
barcaça.
O barco transportava feridos para Nova Orleans e depois de um breve exame, Cole foi levado para
uma cabine vazia. Nenhum dos oficiais se opôs a que seus companheiros o acompanhassem até o
fim da viagem. Afinal, disse ele, os dois tinham salvo sua vida.
Cole dormiu pouco naquela noite, atormentado pela dor. Saul, deitado no chão, roncava alto, e
Alaina cochilou encolhida numa cadeira, ao lado da cama. O dia estava nascendo quando Cole
acordou de um breve cochilo e viu Alaina de pé, ao lado da janela, olhando pensativa para o nascer
do sol. Ele a chamou em voz baixa. Alaina aproximou-se da cama com um sorriso doce e cansado, e
Cole esqueceu o que ia dizer. Milhares de frases tolas de gratidão passaram por sua mente. Cole
escolheu uma delas com a idiotice de um homem apaixonado.
— Alaina... pode ficar com o dinheiro — murmurou ele, cretinamente. —Vou providenciar para que
Saul também seja recompensado.
O sorriso desapareceu, dando lugar a uma expressão de mágoa e tristeza.
— Dr. Latimer, o senhor pode conhecer o corpo humano, mas precisa aprender muito sobre as
pessoas. — Sua voz estava estranhamente tensa. — O dinheiro está na sua sacola de balas. Não
acredito que possa comprar Saul ou a mim nem por três vezes essa quantia.
Solenemente ela deu meia-volta e saiu da cabine. No silêncio que se seguiu, o vapor apitou
estridentemente três vezes, anunciando a chegada ao porto de Nova Orleans.
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Capítulo Vinte e Dois
COM A CHEGADA DOS feridos, o hospital entrou numa atividade frenética. O sargento Grissom,
na porta, dirigia os padioleiros. Alaina não estava disposta a ficar esperando do lado de fora e,
puxando Saul pela mão, entrou logo atrás de Cole. Os olhos do sargento passaram rapidamente por
ela, sem reconhecer, fixaram-se no negro enorme e voltaram, de repente, com uma expressão de
espanto.
— Que diabo...? — Examinou Alaina mais de perto. — Al, é você?
— Sim, senhor. — Alaina entrou no disfarce de Al com toda a facilidade da longa prática. — Eu tive
de me escurecer um pouco para que nós dois — apontou para Saul com o polegar sobre o ombro —
pudéssemos trazer o capitão até aqui. Alguns daqueles rebeldes não se importam muito com a idade
de um soldado.
— Levem o capitão para dentro—disse o sargento Grissom para os padioleiros e depois encostou-se
na porta, gritando para fora: — Deixem o restante das padiolas no corredor. — Caminhou ao lado
da padiola de Cole. — O dr. Brooks está ocupado com os feridos, mas vou ver se o major Magruder
pode dar uma olhada na sua perna.
Cole não disse nada, e o sargento o deixou no lado de fora da sala de operação, mas uma expressão
preocupada contraiu seu rosto quando ouviu o nome do major.
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— Você vai deixar que aquele velho açougueiro do major Magruder corte sua perna? — perguntou
Alaina, com voz muito suave.
Antes que Cole pudesse responder, soaram passos pesados no corredor e o major Magruder
apareceu e olhou furioso para Alaina.
— Açougueiro? Seu garoto atrevido. Vou mandar você à corte marcial por deserção.
— Eu não sou nenhum soldado barriga azul — disse Alaina, desafiadoramente. — E não desertei
coisa nenhuma. Só fui passar uns dias em casa.
— Deixe o menino em paz, major — com esforço, Cole ergueu o corpo, apoiado no cotovelo. — Se
Al não tivesse ido para casa, provavelmente eu agora estaria numa imunda prisão dos rebeldes.
Magruder voltou-se, surpreso.
— Ora, ora! Capitão Latimer! Por falar no demônio. Acabamos de receber a notícia de que estava
desaparecido em ação. Ao que parece, conseguiu ser assim uma espécie de herói. Vejamos, como foi
que aconteceu? O velho sargento fez um relatório muito elogioso, "o capitão ficou para trás a fim de
cobrir a retirada dos feridos", foi o que ele disse. Sozinho contra um regimento de cavalaria e uma
bateria de artilharia.
— Na verdade, eram só uma pequena patrulha e um canhão capturado pelos rebeldes — disse Cole,
laconicamente.
— Hum, deve lhe dar uma sensação de dever cumprido saber que dos cerca de quatrocentos feridos
deixados para trás em Pleasant Hill, os do seu hospital de campanha foram os únicos que
conseguiram voltar.
— Eu nem sabia disso, major.
— Não importa. — Magruder deu de ombros e limpou as mãos cheias de sangue numa toalha. —
Tenho certeza de que uma comissão de inquérito vai querer saber como apareceu por aqui, quando o
resto dos homens ainda está em Alexandria.
— Não tenho certeza de poder explicar isso — murmurou Cole. — Passei grande parte do tempo
dentro de um caixão. Mas graças a Al e aos seus amigos, estou aqui para explicar tudo que for
possível. E eu trouxe uma pequena lembrança comigo.
— Ah, sim, o ferimento, é claro. Precisamos dar uma olhada nisso. — Magruder ajoelhou-se ao lado
da padiola e, tirando uma tesoura do bolso, cortou as ataduras. Depois, com a ponta da tesoura,
afastou as bordas do ferimento, ignorando os dentes cerrados de Cole
273
e o suor que brotou na sua testa. Alaina estremeceu, mordendo o lábio e, com um som estranho,
virou o rosto para a parede.
Saul, com os olhos pregados no major, em poucos momentos chegou a algumas conclusões sobre o
caráter daquele oficial médico. Aquele era um ianque que devia ser evitado por quem estivesse
sentindo dor.
Magruder ficou de pé.
— Um estilhaço dos rebeldes, foi o que disse? Significa que é de bronze com uma boa porção de
chumbo. Dentro de algumas semanas seu sangue vai estar envenenado. Isso é certo. Essa perna tem
de ser amputada.
Com os lábios muito pálidos e rígidos de dor, Cole perguntou:
— Não pode tirar o fragmento? Essa perna está comigo há algum tempo e estou muito acostumado
com ela. Detestaria perdê-la agora.
O major deu de ombros.
— Já vi casos iguais antes. O metal está muito perto do osso. Provavelmente teríamos de quebrar a
perna para retirá-lo. Muitas artérias... vasos muito próximos. Se um deles for cortado, a perna
gangrena. E então, é só uma questão de tempo.
—- Acho que não—disse Cole, com voz fraca.—Era um canhão Wilkinson... de carregar pela
culatra, com bala de aço, não de bronze. Se não pode tirar o fragmento, apenas feche o ferimento e
nada mais.
— Discordo, capitão — disse Magruder, com arrogância. — Mas quem vai resolver sou eu. O
senhor não estará em condição de discutir, certo?
Cole olhou para o sorriso de desprezo do major e deitou-se outra vez na padiola.
— Talvez não, major, mas posso arranjar quem discuta por mim. — Tirou de baixo do rolo que
servia de travesseiro sua Remington44 e chamou:—Al?
Alaina voltou-se para os dois homens.
— Ainda tem a sua pistola?
— Bem aqui, capitão.—Bateu com a mão na sacola dependurada no ombro.
— Carregada?
— Sim, senhor — respondeu ela, balançando afirmativa e vigorosamente a cabeça.
— Saul, você sabe usar isto?
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— Bem, capitão — disse o homenzarrão com um largo sorriso. Não sou muito rápido para carregar,
mas sou bom para descarregar.
— Tome. — Cole entregou a pistola a ele. — Vocês dois entram na sala comigo e se alguém tocar
em qualquer coisa parecida com uma serra, comecem a atirar.
Magruder explodiu, enquanto o padioleiro levantava Cole do chão:
— Acha mesmo que vou operar com um garoto da rua e um negro ignorante com armas apontadas
para mim?
— Pense em alguma coisa, doutor—respondeu Cole, secamente. — Seja delicado e nem pense em
apanhar uma serra.
Os atendentes puseram Cole na mesa, e ele se acalmou um pouco vendo Alaina e Saul, um de cada
lado da sala. O sargento Grissom pôs o cone de gaze e arame sobre o nariz e a boca do capitão e,
erguendo um pequeno vidro, começou a pingar o anestésico na máscara.
A sala ficou silenciosa. Magruder trabalhou arduamente, procurando, empurrando, puxando o
pedaço de metal firmemente encravado no osso da perna. Chegou até a esquecer as duas pistolas que
acompanhavam cada movimento que fazia, até estender a mão, sem olhar, para a bandeja de
instrumentos. Dois estalidos soaram na sala. O médico ficou imóvel e ergueu os olhos para o cano
do Colt de Al apontado diretamente para seu peito. Olhou para a própria mão e começou a suar,
vendo que seus dedos estavam quase tocando uma serra de ossos. Cauteloso, desviou a mão para a
pinça que estava procurando.
O pedaço de metal estava profundamente enfiado no osso, e dentro do ferimento não havia nenhum
ponto de apoio para desencravá-lo. Uma sombra caiu sobre as mãos de Magruder e, erguendo os
olhos, ele viu o dr. Brooks ao seu lado.
— Nunca vai conseguir tirar isso — disse o dr. Brooks. — Não tem no que firmar a pinça.
— Hum, sim — concordou Magruder. — Mas é aço, não chumbo ou bronze dos rebeldes. Posso
apenas fechar o ferimento e esperar o melhor.
— A única coisa a fazer—o dr. Brooks passou a mão no queixo
— é isso, ou tirar a perna.
Magruder olhou para o médico mais velho por um longo tempo, depois balançou a cabeça e apontou
com a pinça para Al e para Saul.
— Eu nem pensaria nisso, dr. Brooks.
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Saul estava pouco à vontade rodeado de uniformes azuis e preferiu ir para a casa dos Craighugh.
Alaina ficou para esperar que Cole despertasse da anestesia. Depois, talvez fosse ver se a sra.
Hawthorne poderia recebê-la por uma ou duas noites. Ela repetiu várias vezes a história do
salvamento de Cole para satisfazer a curiosidade da equipe do hospital e finalmente permitiram que
entrasse no pequeno quarto onde Cole estava, com o pretexto de devolver a arma ao capitão. Alaina
olhou demoradamente para o perfil do homem na cama. Nunca o vira tão quieto antes, e todos seus
temores voltaram. E se ele tivesse alguma complicação séria — como Bobby Johnson?
Balançou a cabeça, rejeitando a idéia mórbida. Ele ia ficar bom. Tinha de ficar.
O dr. Brooks entrou no quarto. O dia de trabalho estava quase no fim, e fazia horas que Cole fora
operado. O médico bateu de leve no ombro dela e Alaina respondeu com um sorriso cansado, mas
se levantou imediatamente quando Magruder e o general Mitchell entraram para ver o paciente.
Ouviu as vozes dos dois homens, sem prestar atenção às palavras, enquanto esperava que Cole
recuperasse a consciência e pudesse ter certeza de que tudo estava bem.
Cole acordou lentamente, sentindo batidas surdas na cabeça e uma dor que pulsava em uníssono
com elas. Embora as cortinas estivessem fechadas, a luz era forte demais para seus olhos e para suas
pálpebras finas e secas. Viu o vulto pequenino de Al encostado na parede, mas seus lábios secos e o
cérebro atordoado não conseguiram dizer nada. Piscou os olhos várias vezes e viu que havia outras
pessoas no quarto. O dr. Brooks estava perto de Alaina, e Magruder, como sempre, ao lado do
cirurgião-chefe, falando sem parar, com uma voz que parecia raspar os nervos de Cole.
— É espantoso que o capitão tenha sobrevivido a essa prova tremenda — observou o major. —
Sem dúvida, foi uma sorte ser encontrado por Al e trazido de volta.
— Que capitão? — disse Mitchell. — Se depender de mim, ele logo será major. Afinal, não é todo
dia que um dos nossos médicos tem de defender seus pacientes, além de tratá-los.
O sorriso de Magruder desapareceu, substituído por uma expressão de desagrado, mas o general não
deu a menor atenção a isso e voltou-se para Al.
— Você salvou um dos nossos homens mais valiosos, jovem. Veremos o que pode ser feito quanto a
isso. Provavelmente vai receber
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algum tipo de comenda... talvez uma recompensa em dinheiro seja adequada.
Magruder, agora muito vermelho e furioso, nem procurou um pretexto para sua partida. Caminhou
para a porta e quando a abriu encontrou os olhos espantados de Roberta. Mais uma vez ficou sem
saber o que dizer. Passou por ela bruscamente e seguiu pelo corredor na direção da sala dos médicos,
onde estaria a salvo de toda aquela atenção que todos concediam ao capitão Latimer.
Alaina, consciente da sua aparência, encolheu-se no canto, atrás do dr. Brooks, quando a prima
entrou no quarto. Roberta era a epítome da última moda. Embora informada imediatamente da volta
de Cole e da sua condição, fez uma toalete cuidadosa e demorada. Cada mecha de cabelo estava
frisada com perfeição e balançava delicadamente quando ela se movia. O vestido de tafetá listrado
estava armado com anquinhas, que pareciam tomar todo o espaço do pequeno quarto.
Com um soluço dramático, Roberta correu para a cama de Cole e, atirando-se sobre o peito dele,
começou a chorar lamentosamente.
— Meu pobre querido! Meu pobre amado ferido!
O general Mitchell adiantou-se solícito, interrompendo por um momento o espetáculo.
— A perna do seu marido tem um ferimento grave, sra. Latimer, e o estilhaço ainda não foi retirado.
Temo que tenha de passar muito tempo na cama para uma boa cicatrização.
Despencando sobre a cama outra vez, Roberta recomeçou a choradeira.
— Oh, querido... querido! Se você tivesse ficado aqui, comigo... Cole submeteu-se ao abraço com
um silêncio estóico, até os dois médicos saírem do quarto. Assim que a porta se fechou, Roberta,
como era de esperar, empertigou o corpo e mudou completamente de atitude.
— Muito bem, você sem dúvida se meteu numa boa — disse ela, com desprezo. — Tudo por causa
daquela vagabunda com quem você dormiu. — Tirou as luvas e as jogou na mesa-de-cabeceira e
então ficou imóvel quando viu Alaina no canto. Com um olhar furioso e puro veneno na voz,
zombou. — E vejam só! Você está com ela debaixo do braço outra vez.
Avançou para Alaina com os olhos entrecerrados e perguntou:
— Que história é essa de arrastar meu marido por metade do estado e ainda por cima dentro de um
carro fúnebre? Se vocês dois pensam que podem me enganar...
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— Posso garantir, querida Robbie — interrompeu Alaina, secamente —, que estávamos muito bem
acompanhados. A maior parte do tempo por Saul, mas também por um número de soldados
confederados que sem dúvida deve satisfazer até mesmo os seus padrões exigentes. Depois, no barco
a vapor, havia também o número suficiente de barrigas azuis para manter as aparências. — Seus
olhos estavam frios. — Será que me permite dizer que você devia sentir-se feliz por ele estar de volta
vivo?
— Se tivesse me ouvido, jamais teria se oferecido para essa campanha — observou Roberta. — A
esta hora, estaríamos em Washington.
Cole virou a cabeça no travesseiro. Atordoado, ainda sob o efeito do clorofórmio, esforçava-se para
acompanhar a conversa. Alaina sorriu suavemente.
— Não quero desfazer suas esperanças, Robbie, mas acho que vocês não vão para Washington tão
cedo. Aparentemente você não ouviu o que o dr. Mitchell disse. Seu marido tem um longo tempo de
recuperação pela frente e, segundo ouvi, Magruder se ofereceu para ir no lugar do capitão.
— O que está dizendo? — Roberta ficou furiosa. — É claro que vamos para Washington! Um
médico ferido no cumprimento do dever... — Ela riu. — Ora, ele vai ser o sucesso da temporada, e
sob minha orientação provavelmente será promovido a general antes do fim da guerra.
— Já foi promovido a major sem a sua ajuda. — Alaina não resistiu à vontade de provocar a prima.
— E sem ir para Washington.
Roberta entrecerrou os olhos, cheia de ódio. Tinha certeza de que a prima estava satisfeita. A
cadelinha faria tudo para manter Cole perto dela, nem que ele ficasse aleijado. Num gesto ofendido,
ela estendeu o braço para a porta.
— Saia já daqui! Seus serviços, sejam lá quais forem, não são mais necessários. Posso tomar conta do
meu marido de agora em diante. Não preciso que você se meta na nossa vida.
Alaina deu de ombros, e passando o cinturão pela alça do coldre de Cole, foi até a cama e o pôs ao
lado do travesseiro.
— Quando quiser que eu mantenha outro barriga azul a distância, capitão, é só me avisar.
Com esforço, Cole conseguiu focalizar a vista no garoto sujo e
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escuro, procurando a mulher que ele sabia estar ali. Alaina era vagamente visível sob a tinta de
nogueira e o cabelo curto e eriçado.
— Aonde você vai? — perguntou ele, com esforço. Alaina ergueu os ombros magros sob o casaco
largo.
— Quem sabe?
Cole franziu levemente a testa e abriu a boca para uma pergunta, mas ela se afastou da cama.
Olhando rapidamente para Roberta, enfiou o chapéu na cabeça e caminhou para a porta, dizendo:
— Espero que não se lamente por eu trazê-lo de volta desta vez, capitão.
Assim que saiu do quarto, ela suspirou longa e sentidamente. Alguma coisa no fato de deixar um
homem ferido e indefeso nas mãos de uma bruxa rabugenta despertava seus instintos de proteção.
Mas, uma vez expulsa do quarto, dificilmente poderia ficar para proteger Cole da mulher.
Na frente do hospital encontrou o dr. Brooks esperando na sua charrete.
— Pensei que você ia querer condução. — Bateu no banco ao seu lado. — Suba aqui. Quero falar
com você.
Alaina hesitou, imaginando se ia receber más notícias outra vez.
— Não é nada sério, é? Quero dizer, o capitão vai ficar bom, não vai?
O médico riu.
— Acho que vai gostar da conversa.
Aliviada, Alaina subiu na charrete, contente por poder sentar o corpo cansado e dolorido ao lado do
amigo.
— A sra. Hawthorne e eu tomamos uma decisão — disse ele, calmamente.
Alaina olhou surpresa para ele.
— Eu não sabia que eram amigos.
— Nós nos conhecemos há alguns anos, mas esta é a primeira vez que concordamos em alguma
coisa.
— Pelo que sei da sra. Hawthorne — disse Alaina, com cautela não me surpreenderá se for alguma
coisa completamente absurda.
O dr. Brooks riu jovialmente, olhando para a estrada.
— Você a conhece bem, não é?
— Muito bem! — Apesar de sua aparente indiferença, Alaina estava curiosa. — Como pretendem
atormentar os ianques desta vez?
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— Minha filha, gostaria de se livrar dessas roupas sujas e se vestir como uma jovem senhora?
Alaina ficou atônita e depois perguntou, hesitante:
— Quer dizer, vestidos e tudo o mais?
— E tudo o mais que vocês, as jovens senhoras, gostam de usar. O dr. Brooks percebeu uma fagulha
de entusiasmo nos olhos dela.
— Suponho que você aprova a idéia?
— Oh, sim! Sim! — Alaina riu e tirou o chapéu, segurando-o junto ao peito. — Seria tão bom... mas
o senhor tem certeza? Por que resolveu isso?
— A sra. Hawthorne tinha certeza de que você ia voltar. — Ele deu de ombros. — Intuição
feminina, eu acho. Ela me procurou e perguntou se eu podia arranjar um emprego no hospital, para a
sobrinha...
— Quer dizer... neste hospital... com os ianques? Ele fez um gesto afirmativo.
— Eu já me informei. Você começa na segunda-feira de manhã... desde que possa voltar a ser branca
outra vez.
Naquela noite, na casa da sra. Hawthorne, Alaina se esfregou e se lavou numa grande banheira cheia
de água quente, até tirar os últimos vestígios da tinta da pele. Seu rosto adquiriu um rosado intenso,
devido em parte à esfregação vigorosa. A roupa que vestiu era da sra. Hawthorne, remodelada para
seu tamanho e embora fosse muito simples, a encheu de entusiasmo. Alaina era agora Camilla
Hawthorne, a nova sobrinha da sra. Hawthorne. O dr. Brooks conseguiu para ela um ordenado bem
melhor do que o conseguido pelo capitão.
Na segunda-feira bem cedo, seus saltos altos soaram na entrada do hospital. O cabelo curto estava
penteado para trás e preso numa trança postiça, comprada com o dinheiro da recompensa
providenciada por Mitchell. O vestido era cinza e simples, coberto por um avental longo e branco e
punhos protetores, que iam até os cotovelos.
O sargento Grissom a conduziu através das enfermarias sem demonstrar o menor sinal de
reconhecimento. Alaina ouvia com atenção o que ele dizia, embora talvez soubesse mais do que ele
como as coisas deviam ser feitas.
Só ao meio-dia ela teve tempo de ver como Cole estava passando. Equilibrando uma bandeja na mão
erguida, bateu à porta do quarto e entrou quando ele deu ordem, em voz baixa. Sentado na cama,
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encostado nos travesseiros, Cole tentava se barbear sozinho. Sem se voltar, indicou a mesa ao lado
da cama.
— Pode deixar aí — ordenou ele, secamente.
Alaina obedeceu e ficou parada vendo o capitão passar a navalha no rosto, deixando um caminho
aberto entre a espuma, tudo sem ajuda de espelho.
— Posso ajudar? — murmurou ela, com a fala arrastada, natural do sul.
Cole estremeceu ao ouvir a voz suave, a voz daquela noite, há tanto tempo. Virou a cabeça
bruscamente e encontrou os olhos cinzentos, sorridentes e cheios de calor.
— Alaina? — Ergueu mais o corpo, ignorando a dor lancinante na perna. — O que está fazendo
aqui? Quero dizer, com essa bandeja, esse avental e tudo o mais. — Olhou de forma apreciadora
para o vestido. — Está trabalhando aqui? Não é perigoso?
— Alaina? Ora, capitão, deve estar delirando. Meu nome é Camilla Hawthorne, e se pretende
conversar, por favor, não esqueça disso.
— Tem certeza de que... quero dizer... acho que eu não. — Cole pigarreou, um pouco irritado. —
Você é nova aqui?
— Já estive na cidade, antes. Mas desta vez vim de Atlanta para visitar minha tia. E para que eu não
ficasse sem fazer nada, o dr. Brooks sugeriu este trabalho. Parece que vocês perderam parte do seu
pessoal, e uma vez que os ianques concordaram em me pagar razoavelmente
— Alaina acentuou a palavra, para provocá-lo —, está bom para mim.
Cole compreendeu então.
— Parece que está se divertindo muito aqui, srta. Hawthorne.
— Camilla, por favor, capitão.
Cole olhou para ela, com ar de dúvida.
— Acho que vou usar srta. Hawthorne por algum tempo. A formalidade é mais eficiente para evitar
um deslize da minha parte.
Alaina ergueu os ombros de leve.
— Como quiser, capitão. E por que acha que estou me divertindo?
— Tirou a navalha da mão dele e, fazendo-o virar o rosto, começou a bancar o barbeiro. — Não vai
acreditar, mas tenho visto garotos magricelas com cabelos e rostos imundos e sinto-me muito feliz
por não ter de viver assim.
— Hum, sim. — Cole olhou para ela, sem virar o rosto. — Acho que me lembro de um garoto
assim. Um menininho bem sujo. Sempre
281
parecendo precisar de um bom banho. E tinha a boca quase tão suja quanto o resto do corpo.
Alaina estava agora com a navalha debaixo do nariz dele.
— Alguma vez viu o resto do corpo dele, capitão?
— Hum-hum — murmurou ele, com convicção, cuidando para não mover os lábios.
— E era mesmo tão sujo como está dizendo?
Dessa vez ele demorou mais para responder, e embora seus olhos estivessem sorrindo, os lábios
ficaram imóveis.
— Hum-hum.
Alaina largou a navalha, molhou uma toalha na água quase fervendo da bacia.
— Eu diria, capitão — falou, pensativamente —, que deve ter se enganado também com outras
coisas.
Antes que ele pudesse responder, seu rosto foi coberto com a toalha quente.
— Fique quieto — ordenou ela, empurrando a cabeça dele para o travesseiro. — Do contrário, pode
se machucar.
Um gemido de raiva e de dor soou sob a toalha, mas Alaina a segurou com força até Cole retirar a
mão dela.
— Você fez novamente, sua bruxa! Tenho certeza de que quer me ver assado vivo!
— Ora, capitão. — Alaina sorriu docemente para o rosto muito vermelho de Cole. — Só estava um
pouquinho quente. Para que todo esse barulho? — Voltou-se rapidamente para a porta, girando a
saia comprida do vestido e disse, antes de sair: — Volto depois para apanhar a bandeja.
Nos dias seguintes, Cole passou a reconhecer o estalar apressado dos saltos de Camilla Hawthorne
quando ela passava no corredor ou quando levava seu almoço com impecável pontualidade. Dia sim,
dia não, ela o barbeava, e para Cole aqueles eram momentos agradáveis e ao mesmo tempo
torturantes. Alaina prestava esse favor a muitos feridos da enfermaria, o que para os homens doentes
era uma verdadeira bênção. Quando não estava servindo as refeições para os que não podiam se
levantar da cama, ela apanhava os lençóis, trocava a roupa das camas, limpava o pó e fazia outros
serviços leves.
O trabalho pesado, antes a cargo de "Al", era feito agora por outro garoto, e embora sua aparência
fosse melhor que a do primeiro, ele era muito menos eficiente. Quando tinha tempo, Camilla
recolhia
282
cartas, distribuía a correspondência, parava aqui e ali para uma breve conversa, e às vezes lia para
eles. Gostava de representar os personagens das histórias que lia, usando sua imaginação, seu charme
e seu espírito de humor, com um talento até então insuspeitado.
O major Magruder era o único que parecia intrigado com ela. Todos no hospital antes notavam
apenas de passagem o garoto "Al". Quando o major perguntou se não a tinha visto antes, Alaina riu
bem-humorada e respondeu com outra pergunta:
— Já esteve em Atlanta, major?
Nesse tempo, Cole foi promovido a major, e a irritação e o ressentimento de Magruder com o fato
desviaram seus pensamentos da jovem empregada do hospital.
O major Magruder, porém, não precisava se preocupar tanto porque Cole nem teve tempo de reagir
devidamente à promoção. Estava preocupado com as atenções que um jovem tenente, designado
para a equipe de cirurgia, dispensava a Camilla Hawthorne. Disposto a demonstrar as próprias
qualidades, o jovem tenente praticamente a estava cortejando. Enquanto o novo major era obrigado
a ficar quase imobilizado na cama, o jovem tenente podia andar à vontade pelos corredores e pelas
enfermarias. Embora o objeto desse entusiasmo repelisse as atenções às vezes ridículas do tenente, a
mobilidade do jovem era sem dúvida uma grande vantagem. A maior frustração de Cole estava no
fato de não poder reclamar, uma vez que era um homem comprometido.
Esse compromisso foi demonstrado do modo mais intensamente feminino no dia em que Roberta
apareceu às onze horas da manhã e estava sentada do lado da cama quando Alaina entrou com o
almoço.
Atrás dela, para grande irritação de Cole, entrou o tenente com a bacia de água quente para o ritual
da barba. Alaina parou por um momento na porta, surpresa por ver Roberta. Era a primeira vez que
ela visitava o marido depois do dia da chegada de Cole ao hospital.
— Bom dia, major—disse Alaina, com a jovialidade de sempre, pondo a bandeja na mesa ao lado da
cama e cumprimentando a prima com uma leve inclinação da cabeça. — Sra. Latimer.
Cole sentou-se na cama com esforço, comparando seu rosto com a barba por fazer com o do
tenente, impecável. Alaina tirou a bacia das mãos do tenente, pôs na mesa, ao lado da bandeja e fez
as apresentações.
283
— Sra. Latimer, acho que não conhece o tenente Appleby. É o novo cirurgião da equipe.
Roberta estendeu a mão num gesto gracioso, o tenente inclinou-se sobre ela, como um verdadeiro
cortesão, mas logo olhou para Alaina e sorriu.
— Vai precisar de alguma ajuda aqui, srta. Hawthorne?
— Não, tenente. Muito obrigada — sorriu ela. — Acho melhor voltar para seu trabalho agora. Já
tomei muito do seu tempo.
Roberta sentiu profundamente os limites impostos à sua condição de mulher casada. O tenente era
bonito e irritava-a o fato de que Alaina sempre parecia tão à vontade na companhia dos homens,
como se não tivesse nenhum medo da natureza maldosa deles. Roberta gostaria de testar o próprio
charme naquele jovem, só para ver em quanto tempo ele ia esquecer sua prima.
O tenente Appleby saiu do quarto, e Alaina começou os preparativos para fazer a barba de Cole.
Roberta levantou-se, atravessou o quarto, fechou a porta e voltou, ficando de pé ao lado da cama.
Olhando fixamente para a prima, sibilou:
— O que você pensa que está fazendo aqui?
Alaina deu de ombros.
— Preciso ganhar a vida, e o dr. Brooks me conseguiu um emprego. Eu trabalho aqui.
— Entrando e saindo sorrateiramente dos quartos dos homens, eu suponho. — O tom de Roberta
era ofensivo, e ela ignorou a testa franzida de Cole.
Alaina olhou friamente para ela.
— Não preciso fazer isso sorrateiramente, Roberta, deixo isso para outras. — Deu as costas para a
prima e começou a preparar a toalha molhada.
Roberta segurou com tanta força na grade dos pés da cama que as juntas das suas mãos ficaram
brancas.
— E o que pensa que vai fazer com isso?
— Vou fazer a barba do major Latimer — respondeu Alaina. — Faz parte dos meus deveres.
— Eu faço isso! — disse Roberta. — Você, trate de sair daqui e fique bem longe deste quarto!
— Como quiser, sra. Latimer. — Alaina pôs a toalha na bacia e quando chegou na porta olhou em
volta do quarto.—Aqui no segundo
284
andar deixamos as portas abertas, sra. Latimer, para que os homens possam chamar, se precisarem de
alguma coisa.
Saiu antes que Roberta tivesse tempo de responder.
—. Eu sempre disse que aquela vagabunda ia ser a nossa desgraça, por causa dela estamos todos
vivendo com o medo de que alguém a reconheça como nossa parenta. É uma coisa horrível! —
reclamou Roberta, voltando para a cadeira. — Não se pode nem dizer o nome dela sem despertar
suspeitas. E agora ela está aqui, trabalhando no meio de todos esses homens, como uma pequena e
muito ocupada cortesã.
Cole recostou-se nos travesseiros e observou a mulher.
— Acho que está sendo muito dura com ela, Roberta. Você sabe tão bem quanto eu que Alaina é
inocente de todas as acusações.
— E eu acho que você está sendo muito condescendente com essa intrigante — respondeu Roberta.
— Como pode ser tão cego, Cole? Você viu o jeito dela com o tenente. Ela o está hipnotizando.
Alaina se comporta como se todos os homens fossem seus consortes... como se ela fosse uma
rainha... ou uma dádiva especial para os homens.
Cole ficou calado, mas concordou. Ela é!
— Eu me lembro de quando éramos pequenas. Era sempre Alaina que brincava com os meninos. Se
você quisesse encontrá-la, era só procurar os garotos e quase sempre, além de estar com eles, ela
estava vestida como eles, enquanto eu brincava com minhas bonecas e cuidava da minha virtude.
Apoiando-se no cotovelo, Cole ergueu uma sobrancelha e perguntou:
— Como foi então, minha cara, que Alaina conseguiu guardar a dela mais tempo do que você
guardou a sua?
Por um momento, os olhos escuros o fuzilaram, furiosos, mas depois ela disse com desprezo:
— Ora, magricela como ela era, que garoto ia levá-la a sério? — Se quer saber a verdade, Cole
Latimer — Roberta empertigou-se na cadeira —, se Alaina fosse mais amadurecida, teria perdido a
virgindade há muito tempo.
Irritado, Cole apanhou o pincel de barba e começou a ensaboar o rosto.
— E o que você vai fazer com isso? — perguntou Roberta, rapidamente.
— Vou ensaboar o rosto e depois vou me barbear. — Cole explicou o óbvio com voz seca.
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— Eu faço isso! Incline a cabeça mais para trás um pouco.
De repente, Cole ficou apreensivo.
— Não precisa fazer isso, Roberta. Acho que consigo.
— Já disse que faço isso! — levantou-se da cadeira e tirou o pincel e o copo das mãos dele. -
Só no fim da tarde, muito tempo depois de Roberta ter ido embora, Alaina voltou para apanhar a
bandeja. Cole estava deitado, com uma toalha cobrindo a parte inferior do rosto. Assim que a viu, ele
disse com voz furiosa, abafada pela toalha:
— Meu Deus, mulher! Sua crueldade é espantosa! Indefeso como estou, você me deixa nas mãos
daquela açougueira!
Cole tirou a toalha e Alaina olhou, atônita. Havia mais de vinte cortes no rosto dele e de muitos
ainda saía sangue.
— Vá chamar aquele cirurgião seu amigo antes que a pouca força que ainda tenho se acabe hoje. Ou
melhor, traga um pedaço de pedra-ume para fazer parar o sangue. Juro que durante uma semana nos
pântanos com um buraco de bala na perna perdi menos sangue do que esta tarde nas mãos de
Roberta.
Os passos apressados e o riso de Alaina ecoaram no corredor. Quando ela voltou com a pedra-ume,
Cole ergueu os olhos, com a toalha outra vez no rosto. Alaina molhou a pedra na água da bacia e,
com pequenos acessos de riso, aplicou-a no rosto dele.
— Não resolvi ainda, menina — observou Cole — se você me fez mais mal abandonando-me hoje
ou no dia do meu casamento.
— Seja como for, senhor — disse ela, em voz baixa, chegando muito perto dele —, desta vez não
pode alegar falsa identidade.
Sabendo que Alaina estava trabalhando no hospital, Roberta esforçou-se ao máximo para visitar Cole
todos os dias. Chegava bem cedo e só saía depois de todos os outros visitantes. Embora ela insistisse
em fazer tudo para ele, Cole estava decidido a não permitir que Roberta fizesse sua barba. Preferia
deixar crescer, disse ele.
A semana foi pródiga em insinuações e observações maldosas sobre a conduta passada e presente de
Alaina. Agora que fora revelada a verdadeira identidade da prima, Roberta procurava por todos os
meios fazer com que Cole a visse do pior modo possível. Era uma barragem de meias verdades e
mentiras deslavadas, um ataque que o atingia quando estava preso ao leito e obrigado a testemunhar
as
286
atenções do tenente Appleby. A perseguição tenaz do tenente despertava em Cole uma ira tremenda,
embora soubesse que não tinha nenhum direito. Era como uma ferida incurável, roendo suas
entranhas.
Na manhã de segunda-feira, Cole resolveu que não podia mais suportar aquela prisão. Um pouco
antes do nascer do dia pediu ao atendente um par de muletas e, com o corpo tenso, sentindo a dor
lancinante no local em que o estilhaço estava no osso da perna, levantou-se da cama, sentindo-se
muito fraco e sem nenhuma prática para usar aquele tipo de apoio. Seus músculos estavam flácidos
devido à longa inatividade, mas com extrema persistência, Cole começou a se exercitar. Da cama até
a parede e da parede para a cama, lenta e dolorosamente, vezes seguidas, ele se movimentou até
sentir as cãibras nos ombros e nas pernas. Mesmo assim, continuou, recusando ceder à dor.
Assim que a turma da manhã começou a chegar, Cole parou para ouvir os passos leves e rápidos no
corredor. Depois ouviu outros mais pesados, passos de homem, acompanhando os primeiros.
— Está muito bela esta manhã, srta. Hawthorne—disse Appleby com calor, e Cole imaginou o
homem olhando avidamente para o corpo bem-feito e extremamente feminino de Alaina.
Alaina respondeu em tom muito sério:
— O major Magruder estava perguntando pelo senhor. Precisam do senhor na cirurgia
imediatamente.
— O dever me chama — suspirou o jovem cirurgião, desapontado. — Mas meu coração fica com a
senhorita.
Cole ergueu os olhos para o teto. Se o homem dava tanta atenção ao seu trabalho quanto dava a
Alaina, era capaz de realizar milagres na cirurgia.
O tenente Appleby atendeu o chamado do dever e os passos leves e apressados continuaram na
direção do quarto de Cole. Quando pararam, Cole virou-se para a porta. Viu a surpresa nos olhos de
Alaina. Então ela entrou, e deixou na cadeira a roupa de cama que carregava.
— Já tem ordem para se levantar? — perguntou ela.
Com um sorriso mal-humorado ele respondeu:
— Melhor de pé do que agüentar outro dia na cama.
— Parece que está precisando de um descanso. Sente-se por um
287
momento, enquanto troco a roupa de cama, depois eu ando um pouco com você até Roberta chegar.
Ela vai gostar de vê-lo fora da cama.
— Não me trate com esse ar protetor, mulher. — Afastou-a abanando a mão, quando ela se
aproximou para ajudá-lo a chegar na cadeira. — Não preciso de uma ama tomando conta de mim
enquanto ando.
— Bem, alguém precisa estar aqui quando você quebrar esse pescoço tolo — disse ela.
— Se isso acontecer, pode deixar seu amiguínho praticar um pouco em mim. Tenho certeza de que
ele precisa dessa experiência. Parece muito mais interessado em cortejar as mulheres do que em
manejar o bisturi.
— Você não pode saber nada sobre a capacidade dele — protestou Alaina. — Nunca o viu na sala
de operações.
— Não. Mas já o vi correndo para cima e para baixo pelos corredores como um cãozinho ofegante,
atrás de você. Quando é que ele tem tempo para ser médico?
Alaina tirou a roupa da cama.
— O tenente Appleby só está sendo delicado e o senhor não tem nenhum motivo para ser tão
ferino.
— Já pensou em resfriar um pouco o ardor do tenente? — perguntou Cole, secamente.
— Eu não o encorajo, pode estar certo, major. — Foi até a porta e jogou os lençóis usados no
corredor. Voltou, apanhou a roupa limpa e olhou para ele. — Não fiz nada impróprio.
— Também não o desencoraja. Eu vi o modo que ele olha para você, como um filhotinho
assanhado, louco para pegá-la desprevenida num canto. Você age como se sua mãe nunca a tivesse
advertido contra esse tipo de homem.
— Oh, ela me advertiu sim — riu ela, zombeteira. — Mas esqueceu do seu tipo. Major, devo
depender do senhor para me aconselhar sobre aquilo que já tomou de mim? Na verdade,
comparando os dois, acho o tenente Appleby um santo.
Alaina deu as costas para ele e começou a arrumar a cama, mas Cole não ia permitir que ela tivesse a
última palavra. Esquecendo as muletas, estendeu a mão para segurar o braço dela e então seu corpo
girou lentamente em volta dos dois apoios. Cole segurou a grade dos pés da cama para não cair de
cara no chão e a muleta sob o braço direito escorregou para longe. Aperna ferida, não suportando o
peso do corpo,
288
começou a dobrar com uma dor insuportável. Com uma exclamação de susto, Alaina voltou-se
rapidamente, quando ele começava a cair. Correu para Cole, pôs o ombro sob o braço dele e o fez
endireitar o corpo.
Você está bem? — perguntou, ansiosa.
Cole olhou para os olhos preocupados, olhos muito claros, com a franja das pestanas espessas.
Alaina tinha uma bela boca, uma boca para ser beijada...
Alaina sentiu o braço dele nas suas costas e antes que pudesse fazer qualquer coisa, foi erguida do
chão ao encontro dos lábios semi-abertos de Cole. O beijo ardente traía o desejo intenso que o
consumia e invadiu-a como um relâmpago, desnudando sua própria paixão. Lutando
desesperadamente contra a loucura que ameaçava dominá-la, Alaina recuou um passo, trêmula e
chocada com a força dos seus sentimentos. Reagiu, mais pela ofensa do ataque em lugar tão público.
Sua mão estalou no rosto de Cole. Alaina fez meia-volta e caminhou para a porta, à procura de um
lugar onde pudesse desabafar sem que ninguém ouvisse seus soluços.
O som de botas pesadas ecoou no corredor e, com esforço, Alaina recobrou a compostura. Foi uma
vitória difícil conseguir chegar ao corredor com aparência calma e digna, mas quase perdeu
novamente o controle quando ouviu a voz conhecida.
— Ora, sra. Latimer!
Alaina voltou-se rapidamente, confusa e gelada, para o tenente Baxter, que corria para ela. Não tinha
nenhum modo de escapar daquela situação embaraçosa.
— Lembra-se de mim, não é, sra. Latimer? Quero dizer... na verdade, não fomos apresentados
naquela noite, no apartamento do seu marido... mas eu a reconheceria em qualquer lugar. E nunca
esqueço um rosto. — Riu e acrescentou: — Especialmente um tão bonito.
Alaina estava espantada demais para responder, mas o homem continuou com perguntas.
— Como está o major, hoje? Ouvi falar do seu heroísmo e da promoção. Ele tem todo o direito de
estar orgulhoso.
— O major Latimer... está... passando bem — disse ela. — O senhor... vai visitá-lo agora?
— Na verdade — ele riu, para encobrir o embaraço. Não podia confessar que estava com um
furúnculo num lugar indevido. —
289
Preciso tratar de um pequeno problema primeiro. Algum dos médicos está livre?
— Por que não verifica com o sargento Grissom? — sugeriu ela. — Se ele não estiver na recepção,
espere até ele chegar. Pode arranjar um médico para o senhor.
— Muito obrigado, sra. Latimer.
Alaina abriu a boca para corrigir o homem, mas ele fez meia-volta e caminhou apressado, e ela
encontrou os olhos arregalados e furiosos da prima. Roberta estava atrás do tenente Baxter quando
ele chamou Alaina e parou para ouvir a conversa.
— Você se atreve a passar pela sra. Latimer? — Roberta rilhava os dentes, avançando para Alaina.
Brandiu o punho fechado na frente da prima e disse: — Você só o terá por marido por cima do meu
cadáver!
Roberta passou por ela, entrou no quarto de Cole e bateu a porta. O major caiu vítima, de imediato,
de uma vívida e insultuosa descrição de seu caráter, e Alaine saiu, para não ter de ouvir as acusações
da prima. Muito mais tarde ela mandou uma atendente acabar de arrumar a cama de Cole.
A volta do major para a casa dos Craighugh foi comemorada com a recepção estóica de pelo menos
um membro. Angus Craighugh tinha quase desejado o pior e o desapontamento misturava-se agora
ao ressentimento que já sentia contra o genro. Cole foi levado para o quarto de hóspedes, enquanto
Roberta explicava demoradamente que ele ficaria mais bem instalado ali. Não que Cole se
aborrecesse com isso, mas notou que Roberta estava muito satisfeita por ter imaginado essa solução.
Depois de fazer o papel da esposa devotada por tanto tempo, Roberta começava a ficar inquieta,
sentindo-se limitada pelos deveres conjugais. Agora que Cole não estava mais sujeito à presença
diária de Alaina, ela retomou o ritmo da sua vida social, tomando chá com as mulheres dos militares
e aceitando convites para almoço de oficiais de alta patente que, ela pensava, poderiam ajudar a
carreira do marido.
Em julho, quando levava Alaina para a casa da sra. Hawthorne, depois de um dia de trabalho no
hospital, o dr. Brooks parou na casa dos Craighugh para entregar a Cole uma carta. Era o aviso
oficial da sua iminente baixa como médico do exército. Leala mandou Dulcie levar a carta
diretamente ao quarto do major, mas Roberta a interceptou na porta.
290
— Eu fico com isto. — Roberta estendeu a mão. — Volte para o seu trabalho.
Dulcie olhou apreensiva para a porta do major.
— Miz Leala disse para dar a carta diretamente para o major.
— Dê-me aqui, eu já disse! — exclamou Roberta, ameaçadoramente.
Nesse momento a porta se abriu e Dulcie, depois de entregar a carta para Cole, desceu rapidamente
para fugir à fúria de Roberta. A empregada estava na sala, servindo refrescos, quando um grito
tremendo ecoou pela casa, fazendo vibrar os vidros das janelas. Por um momento todos ficaram
imóveis, atônitos, e no silêncio ouviram uma porta sendo aberta e a voz de Cole, dizendo
calmamente:
— Bom dia, minha senhora.
A porta foi fechada suavemente, e logo depois aberta outra vez. Todos ouviram perfeitamente a voz
exaltada de Roberta.
— Não saia quando estou falando com você — gritou ela. — Podíamos ter ido para algum lugar,
podíamos ser alguém, se você não insistisse nessa campanha idiota!
— Aceita mais um pouco de limonada? — ofereceu Leala, nervosa, tentando distrair a atenção dos
visitantes da gritaria da filha. Mas Roberta levantou mais a voz estridente.
— Eu quero resolver isso aqui e agora!
— Não há nada para resolver. — O tom de Cole era quase gentil e ouviram o som da bengala e dos
seus passos da escada. — Estou sendo desligado por motivos de saúde, nada mais.
— Seu ianque covarde, sujo, idiota. Você me fez acreditar que iríamos para Washington, e enquanto
isso estava planejando deixar o exército para ficar aqui com aquela vagabunda suja com quem está
dormindo debaixo do meu nariz. Eu devia ter deixado que papai o obrigasse a casar com Lainie,
naquela noite, em vez de salvá-lo das garras dela! Aquela traidora! Lainie o teria arrastado para a
sarjeta, com ela. E você só sabe falar de como eu o enganei para casar comigo! Não vê o que fiz por
você! Devia me agradecer por tudo que fiz!
Alaina inclinou a cabeça, embaraçada sob os olhares espantados de Leala, do dr. Brooks e de Dulcie.
Profunda e dolorosamente humilhada, ouvia os impropérios de Roberta, descendo a escada atrás de
Cole.
— Às vezes eu acho que você planejou tudo isso só para evitar que eu tenha uma vida agradável!
291
Cole continuou sua descida difícil e comentou apenas, em voz baixa:
— Washington foi idéia sua, minha senhora. — Chegou ao hall e, sem perceber os olhares atônitos
dos que estavam na sala, voltou-se para a mulher e disse: — Washington acabou, Roberta. Darei
baixa assim que chegar em Minnesota.
— Minnesota! Que inferno!
Roberta arrancou a maleta da mão dele e a atirou contra a parede.
— Você e sua maldita perna sangrenta! Eu queria que a tivessem amputado. — Num gesto brusco,
deu um pontapé na perna direita de Cole. Ele virou o corpo e cambaleou com um gemido surdo,
segurando no batente da porta da sala.
Roberta avançou para ele, mas Cole segurou a bengala pela ponta inferior e a brandiu, como se fosse
uma arma. Roberta recuou para a sala, e Cole a seguiu, claudicando, com o rosto contraído de dor.
— Mulher — rosnou ele —, se fizer isso outra vez, eu... — Cole parou bruscamente quando olhou
para trás e viu os olhos atônitos dos assistentes. Só Alaina estava de cabeça baixa, com as mãos
delicadas cruzadas no colo. Cole controlou-se, empertigou o corpo e cumprimentou o dr. Brooks
com uma leve inclinação da cabeça.
Roberta virou-se rapidamente e, com o rosto em fogo, compreendeu que todos tinham visto seu ato
de vingança e raiva. Leala estava rígida na cadeira, olhando para longe.
— Roberta? Cole? — Sua voz era quase inaudível, mesmo no silêncio da sala. — Temos visitas —
disse ela.
— Eu vou dar uma volta — disse Cole, laconicamente, caminhando para a porta. — Não sei quando
voltarei.
Roberta, compreendendo a impossibilidade de se desculpar pelo que tinha feito, subiu a escada e
trancou-se no quarto. O dr. Brooks, vendo que não podia fazer nada para amenizar o embaraço de
Leala e de Alaina, despediu-se formalmente e saiu com a jovem silenciosa. Dulcie, na cozinha,
balançava a cabeça atordoada e Leala perguntava a si mesma como sua doce filha de belos olhos
escuros podia ter feito aquilo.
292
Capítulo Vinte e Três
O CALOR DO VERÃO assolava os campos do sul, abandonados desde o começo da guerra. Foi
um verão de derrotas para os confederados. Grant assumiu o comando do Exército da União da
região Leste e Robert E. Lee prosseguiu numa série de retiradas, numa guerra de escaramuças que
seu exército não podia sustentar, e chegou a Richmond. Sherman atacou Johnson na região Centro e
o valente militar sulino recuou, lutando, para Atlanta. Hood, o galante texano de um braço só,
substituiu Johnson e começou a batalha pela tomada de Atlanta, provocando o pânico e a evacuação
da cidade. Na região Oeste, chamada pelos confederados de Trans-Mississippi, Kirby Smith não
conseguiu alcançar Steele, em Ar-kansas, e voltou para o sul a tempo de permitir a fuga de Banks
para o outro lado do Atchafalaya. O mês de agosto passou com seu calor escaldante, e os soldados
vestidos de azul praticamente desapareceram do sul da Louisiana, quando Sherman e Grant exigiram
mais homens para substituir os mortos e feridos.
No fim de uma tarde de sábado, no começo de setembro, Alaina e a sra. Hawthorne trabalhavam no
jardim quando ouviram o ruído das patas de cavalo na estrada que ia dar na casa. Alaina viu uma
charrete e dentro dela o major Latimer, impecavelmente fardado. Ele parou na frente do poste para
amarrar cavalos e levantou o chapéu para as duas mulheres..
293
— Boa tarde, senhoras.
— Ora, major Latimer, que visita agradável — disse a sra. Hawthorne, calorosamente. — Aceita um
pouco de chá, ou talvez um conhaque?
— Não, muito obrigada, senhora. Na verdade, vim falar com Alaina. Devo partir dentro de alguns
dias... vou para casa... e precisamos resolver algumas coisas antes.
— É claro, major. — Ela sorriu. — Eu compreendo. Estarei lá dentro, se precisarem de mim. —
Parou na porta e disse: — Se não nos encontrarmos mais, desejo uma boa viagem. Que Deus o
acompanhe!
— Muito obrigado, senhora. — Cole tocou a aba do chapéu cortesmente e esperou que ela entrasse
na casa. Então olhou para Alaina, que continuava a cuidar dos arbustos do jardim. — Pode parar um
pouco com isso? — perguntou ele, em voz baixa. — Quero conversar com você.
Embora não estivesse pensando no que fazia, Alaina continuou a cortar as flores murchas.
1, — O que temos a dizer, major, pode ser dito enquanto trabalho.
Cole passou o polegar pelo couro frio das rédeas.
— Quero falar com você em particular, Alaina, e agradeceria se desse uma volta comigo enquanto
escuta o que quero dizer.
Alaina olhou para ele por um longo e indeciso momento, depois aproximou-se da charrete.
— Entre — disse Cole, suavemente, estendendo a mão. Alaina ergueu os olhos para ele. Cole estava
bronzeado de sol, e os olhos azuis brilhavam como pedras preciosas. Exatamente quando ela
pensava que não seria mais afetada por sua presença, ele aparecia, e todas as suas ilusões tão
cuidadosamente alimentadas eram destruídas. Por que não ia embora, deixando que ela se resignasse
com sua partida? Por que tinha de reacender seu sofrimento?
— Peço sua indulgência, Alaina. Vou partir dentro de poucos dias e desejo um momento do seu
tempo, se possível.
Relutantemente, ela tirou o avental e as luvas, deixando-os no poste de amarrar cavalos e subiu para a
charrete. Cole ergueu as rédeas e seguiu pela estrada paralela ao rio, só parando quando chegaram a
um lugar sombreado, que não podia ser visto da estrada.
— Espero que suas intenções sejam honradas, major. — Ela
294
tentou parecer descuidada. — Estou à sua mercê e o senhor parece determinado a comprometer a
minha reputação.
Cole enrolou as rédeas no suporte da charrete e recostou-se no banco. Desabotoando a túnica, tirou
do bolso interno uma pistola de cano curto que entregou a ela. Alaina olhou para ele,
interrogativamente.
Cole sorriu.
— Para acalmar seus temores, minha senhora.
Alaina examinou a pequena pistola de cano duplo, depois disse, com voz seca:
— Está descarregada.
— É claro — sorriu ele, tirando o chapéu. — Não sou completamente idiota. — Tirou a arma da
mão dela. — Sabe usar esta coisa?
— É bastante ineficaz sem a carga adequada, isso eu sei. Ignorando a ironia, ele começou a carregar a
pistola.
— Preste atenção — disse Cole. — Esta é a alavanca de segurança, para evitar acidentes.
— Por que está me dando este presente?
Cole fechou o tambor carregado e apontou para uma flor silvestre bem distante, antes de olhar para
ela.
— Depois que eu for embora, pode precisar de proteção convincente, e uma vez que atrai gente da
laia de Jacques DuBonné, quem sabe o que poderá acontecer? É a única coisa que posso oferecer
para garantir sua segurança. Pode-se dizer que é parte de um presente de despedida.
— Quer dizer que tem mais? Cole deu de ombros.
— Estaria interessada em abrir um negócio só seu?
— Seria ótimo, mas meus recursos são muito limitados.
— Eu posso fornecer os recursos — disse ele, devagar. — Posso providenciar tudo antes de partir, e
se houver algum problema no futuro, contratei um advogado na cidade para tomar conta de alguns
negócios meus aqui. Qualquer coisa de que precise, é só procurá-lo.
— Muito obrigada, major, mas não quero ser sustentada pelo senhor e nem por qualquer outro
homem. Sou bastante auto-suficiente e prefiro continuar assim.
— Que diabo, Alaina, não estou pedindo para ser minha amante. Apenas sinto-me na obrigação...
— Pois não precisa — interrompeu ela, secamente. — Não me deve coisa alguma e não vou aceitar
nada do senhor.
— Eu tenho dinheiro comigo... uns dois mil em ouro e a chave
295
do meu apartamento. Providenciei para que fique no meu nome enquanto você estiver na cidade.
Quero que aceite essas duas coisas...
— Não! — Alaina estava tão obstinada quanto ele. Tinha seu orgulho e suas razões, que não
pretendia discutir com Cole. — O senhor não pode me obrigar a aceitar!
Cole suspirou profundamente.
— É uma mulher muito teimosa, Alaina MacGaren. — Apanhou uma caixa de madeira trabalhada
de trás do banco e estendeu para ela. — Meu último presente — anunciou, secamente. — Este, eu
espero, não vai comprometer sua reputação.
Alaina olhou para ele, desconfiada, e abriu a tampa da caixa. Com uma exclamação de encanto, olhou
para o que havia no interior da caixa forrada de veludo. Era a miniatura, o retrato dos seus pais que
estava na parede do seu quarto, em Briar Hill.
— Mas como conseguiu isto?
— Minha mão a tocou quando estávamos saindo do quarto, naquela noite. Eu a tinha visto antes, na
parede, e achei que você gostaria de guardar como lembrança.
— Oh, sim! — Ergueu para ele os olhos marejados. — É o presente mais lindo do mundo! Muito
obrigada!
Impulsivamente, Alaina inclinou-se e beijou o rosto dele. A fragrância dos seus cabelos o envolveu e
um desejo selvagem libertou-se dentro dele. Como se agissem por conta própria, seus braços a
enlaçaram, puxando-a para ele. Há meses Cole não sentia a maciez e a doçura de uma mulher.
— Alaina... Alaina... eu quero você. — O murmúrio rouco e ardente a invadiu, libertando toda a
paixão proibida. Seus lábios se encontraram sedentos e ávidos. Cole a apertou contra o peito, e um
soluço subiu aos lábios dela. Todas as fibras do seu ser ansiavam por ele, mas sua mente se rebelou.
Cole pertencia a outra mulher, e dentro de poucos dias estaria longe. Se permitisse qualquer ternura
entre os dois agora, seria muito mais difícil suportar sua ausência.
— Cole... não — disse ela, ofegante, desviando o rosto do dele e tentando se libertar do abraço. —
Não podemos fazer isto.
A resposta apaixonada de Alaina despertou o desejo físico de Cole e sua mente ardia com o
desespero da paixão reprimida.
— Venha ao meu apartamento, Alaina — pediu ele, cobrindo o rosto e o pescoço dela de beijos
ardentes. — Fique comigo. Deixe que eu a ame como desejo. Temos só poucos dias.
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Balançando a cabeça, Alaina afastou-se, empurrando o peito dele.
— Não sou uma das suas aventuras—murmurou, com voz fraca. Não quero a vergonha de ter um
filho ilegítimo, enquanto você se gaba de outro bastardo. Tudo o que aconteceu entre nós foi um
erro...
Cole segurou a mão dela com força. A tensão que pressionava seu corpo não podia ser resolvida com
negativas nem raciocínios lógicos.
— Alguns erros, Alaina, não se pode simplesmente esquecer. — Olhou nos profundos olhos
cinzentos e disse, devagar e desesperada-mente: — Preciso de você, Alaina.
— Não — gemeu ela, tentando se afastar mais.
Cole a segurou pelos ombros, obrigando-a a olhar para ele e a sacudiu de leve. O que ele viu nos
olhos de Alaina foi algo completamente diverso do que os lábios dela diziam e o corpo miúdo e
esbelto tremia, negando suas palavras. O desejo dominou a razão. Procure silenciar seus protestos,
pensou ele, que o coração dela tomará conta. Apertou-a contra o peito e a beijou. Mas, como
sempre, a subestimou. Os dentes de Alaina fecharam-se violentamente sobre seu lábio. Cole recuou,
sentindo o gosto de sangue, e ergueu o braço para se defender da mão que se preparava para atingir-
lhe o rosto.
— Você pode me tomar à força, major, se quiser — a voz agressiva sibilava como aço em brasa. —
Mas isso não fará com que eu seja mais sua do que sou agora.
— Eu devia ter acorrentado você naquela noite — disse ele. — Tenho vivido num inferno desde
então.
Alaina apanhou a miniatura, jogou a caixa no chão da charrete e antes que Cole tivesse tempo de
detê-la, desceu, e olhando para trás, com os olhos cheios de lágrimas disse:
— Não serei mais o seu inferno, major. Está livre para viver com Roberta em Minnesota. Não quero
vê-lo nunca mais!
— Alaina! Volte aqui! — gritou ele, vendo-a correr quase cambaleando na estrada. — Que diabo!
Alaina! Volte aqui!
— Vá embora. Vá viver com sua preciosa mulher! — disse ela — E pode dar seu dinheiro, seu
apartamento e sua chave para suas amantes!
Praguejando baixinho, Cole fez a volta com a charrete.
— Alaina, entre já nesta charrete — ordenou, seguindo devagar ao lado dela. — Eu a levo para casa.
— E quanto custa a viagem? — perguntou ela, sem parar de
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andar. — Outra noite na cama? — Com uma risada áspera, continuou seu caminho. — Desapareça,
ianque! Saia da minha frente!
— Não está sendo razoável, Alaina!
— Razoável! Por que não quero dormir com o senhor e ficar grávida? É o senhor, meu caro major,
quem não está sendo razoável. Dentro de alguns dias vai partir, livre de qualquer obrigação que tiver
deixado comigo!
— Você pensa que gosto disso? — perguntou ele. — Acha que não prefiro ficar com você...
Alaina parou com as mãos na cintura.
— E o que ia fazer com Roberta? Pôr sua mulher de lado para dar um nome ao seu filho? Esqueça,
major. Não pode dar o que eu quero.
Continuou a andar com passo decidido, e Cole a acompanhou com a charrete.
— O que você quer, Alaina?
Ela parou para tirar uma pedrinha do sapato.
— O que toda mulher quer — disse, erguendo os olhos para ele. — E isso não é ser amante de um
ianque conquistador.
— Acredite no que quiser — disse ele —, mas não sou...
— Tem razão! Acredito no que eu quiser! — Essas foram suas palavras finais.
Cole a acompanhou na charrete até a entrada da casa da sra. Hawthorne. Então ficou parado até a
porta ser fechada e os passos dela soarem dentro da casa. Ele então entrou na pequena estrada e
voltou para a cidade, perguntando a si mesmo como podia ter cometido um erro tão cretino e
absurdo.
Tarde da noite, a sra. Hawthorne, acordada, ouvia os soluços amargos e dolorosos de Alaina no
outro quarto. Seu coração sofreu por ela — e pelo major. Aparentemente estavam presos em algo
que não podia ser facilmente resolvido —, e duvidava que a distância apagasse as chamas daquelas
emoções.
Um estremecimento percorreu o rio quando o último cabo foi solto e as rodas com pás levaram a
embarcação para o centro da correnteza. Leala enxugou os olhos, acenando freneticamente com o
lenço para a filha que partia. Angus, ao seu lado, ficou imóvel e silencioso, sabendo que, devido à sua
intervenção no casamento, não podia agora opor nenhuma objeção.
Quanto a Roberta, não cabia em si de raiva por ser arrastada para
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aquele mundo selvagem sobre o qual contava histórias de índios assassinos e que era habitado por
lenhadores rudes e ignorantes caçadores de peles. Só se conscientizou da amarga realidade desses
fatos naquele momento, ali, de pé no convés do barco fluvial. Os sonhos de Washington e da haute
société desapareceram, deixando um gosto amargo na sua boca. Para Roberta, sua infelicidade
resumia-se no fato de ter sido usada e depois traída por Cole. O homem alto e belo, apoiado na
bengala, ao seu lado, era agóra anátema para Roberta.
Ela olhou para baixo e viu a figura esguia e pequenina, com um vestido simples e leve, sozinha e
silenciosa, na margem alta do rio.
"Alaina!" O nome soou como uma praga na mente de Roberta. Ela sabe o que fez para mim! Oh, ela
sabe muito bem e como aquela cadelinha deve estar se divertindo com a minha desgraça!
— Você disse alguma coisa? — perguntou Cole.
Roberta olhou para ele e a frustração, o ódio e a raiva transformaram seu rosto numa máscara
medonha. Não suportava-mais tudo aquilo!
Bruscamente ela se voltou e correu para a cabine, escondendo o rosto atrás da mão enluvada. Cole a
seguiu vagarosamente e quando tentou abrir a porta viu que estava trancada. Depois de pensar por
um momento, apoiando-se pesadamente na bengala, foi até a recepção para arranjar outra cabine.
Naquela tarde, Alaina estava no quintal quando a sra. Hawthorne a chamou, da varanda da frente.
Alaina atendeu e viu Saul, parado na frente da casa, com o chapéu na mão. Desde sua chegada de
Briar Hill, ele estava trabalhando na loja dos Craighugh, e Alaina estivera poucas vezes com ele. Saul
parecia embaraçado, o que intrigou Alaina. Mas, erguendo os olhos, ela viu a charrete de Cole
Latimer na pequena estrada que ia até a casa.
— O major disse para eu trazer aqui, miz Alaina, e não quer saber de recusa. Ele disse que é sua
agora, para usar como quiser. — Saul girava o chapéu nervosamente com as mãos.—O major disse
também que se não quiser deixar o seu Angus mais zangado ainda, não tente devolver a charrete para
ele.
— Como vou cuidar do animal? — protestou Alaina.
— Bom, o major disse para a senhora não se preocupar com isso. Ele já arrumou tudo. Vão entregar
a ração e outras coisas que precisa, aqui mesmo, uma vez ou outra, e tudo o que a senhora tem a
fazer é assinar o recibo.
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Alaina olhou para Saul, furiosa e desconfiada.
— Isso não é tudo, é Saul?
--. — B-o-o-om. — Ele baixou os olhos e deu de ombros.
— Fale de uma vez — disse Alaina.
Com relutância, ele tirou uma chave do bolso e a estendeu para Alaina. Depois tirou uma pequena
sacola do cinto.
— O major diz que tem dois mil em ouro, bem aqui, e que esta é a chave do apartamento. Mandou
eu trazer aqui para a senhora, sem o seu Angus saber.
— Saul Caleb! — exclamou Alaina. — Está dizendo que aceitou dinheiro do ianque para mim?
— Não foi bem assim, miz Alaina.—Lançou um olhar de súplica na direção da sra. Hawthorne, que
observava os dois a distância. — Eu disse para o major que a senhora ia ficar danada e ele disse que
ele ia ficar danado se eu não fizesse o que ele estava mandando.
— Você nos meteu numa bela encrenca — disse Alaina.
— Sim, senhora, eu sei. Mas o major disse para eu não voltar para o seu Angus sem dar o dinheiro e
o cavalo para a senhora e ele me fez prometer, miz Alaina.
Alaina suspirou.
— Deixe o cavalo e a charrete. Pode ficar com o dinheiro... Saul balançou a cabeça vigorosamente.
— Não, senhora! Eu prometi que não ia ficar! Ainda por cima o major me deixou algum dinheiro
também.
— Alguém quer jantar? — perguntou a sra. Hawthorne, com voz suave, levantando da cadeira na
varanda. — Acho que estou sentindo o cheiro de coisa queimada.
— Ooooooh! —Alaina correu para dentro da casa, deixando Saul olhando tristemente para a bolsa
de dinheiro.
— Se você quiser, eu guardo para ela, Saul. — A sra. Hawthorne sorriu gentilmente. — Só para o
caso de alguma emergência em que ela precise do dinheiro.
Satisfeito por se ver livre da incumbência, Saul desatrelou o cavalo e o levou com a charrete para o
estábulo. Não queria ficar por perto e enfrentar outra conversa com Alaina.
A Sra. Hawthorne entrou em casa e guardou o dinheiro num armário. Ia chegar o dia em que Alaina
pensaria de modo diferente sobre os presentes do major. Até então, o dinheiro ficaria guardado em
segurança.
300
Capítulo Vinte e Quatro
SE O VERÃO FOI DE derrotas, o inverno foi de desastres. Lee estava sitiado em Richmond,
Atlanta caiu, e Sherman marchou para o mar, cortando ao meio a confederação do Leste e deixando
no seu rastro mais de noventa quilômetros de destruição. Quando o sul acordou na primavera, as
últimas esperanças dos confederados desapareceram. Lee fugiu de Richmond, e a cidade ficou à
mercê das botas pesadas de Grant e, finalmente, no dia 9 de abril, tendo recuado para o
Appomattox, Lee, sem nenhuma causa para defender, rendeu-se com seu exército andrajoso e
faminto. Cinco dias depois, o desastre foi maior. Lincoln foi assassinado! O sul desmoronou quando
Johnson, Taylor e Smith renderam-se ao inimigo. Jeff Davis tentou fugir e foi capturado no dia 10 de
maio, e, com uma fúria vingativa, o Congresso do Norte esfacelou o Sul com golpes selvagens. A
confederação foi punida severamente por sua arrogância, e como uma nuvem de gafanhotos, uma
horda de aproveitadores mergulhou como um bando de abutres para acabar de limpar a carcaça do
Sul.
O governador imposto à Louisiana era um homem basicamente honesto, mas extravagante, como
atesta o seguinte: um lustre de dez mil dólares para o palácio do governo e escarradeiras de ouro em
todos os escritórios. Na sua situação de porto, Nova Orleans foi reanimada com a volta dos barcos
estrangeiros. Como cidade, ela se desmantelou.
301
A mão-de-obra negra, barata, desafiava os imigrantes irlandeses, escoceses e alemães, e os soldados
da federação eram constantemente chamados para apaziguar as brigas e desordens.
O hospital, aos poucos, deixava de ser militar. Embora nominalmente ainda sob o controle do
exército, tinha agora só uma enfermaria reservada aos soldados, e o dr. Brooks passou a fazer parte
importante da administração. Alaina continuava a trabalhar como antes, aparentemente alegre e
jovial, mas nem a companhia da sra. Hawthorne conseguia amenizar suas crises de solidão. Recusou
o pedido de casamento do tenente Appleby e desencorajou outros pretendentes, porque não tinha
nenhuma disposição para ser cortejada.
Numa tarde tranqüila, ela foi chamada ao escritório do dr. Brooks. Quando entrou, o velho médico
estava com os cotovelos sobre a mesa e a cabeça entre as mãos. Ergueu os olhos quando Alaina
sentou-se na cadeira na sua frente e cruzou os braços sobre a mesa.
— Acabo de voltar da casa dos Craighugh — disse ele. —E mais uma vez tenho más notícias.
Alaina ficou imóvel e seu pensamento voou. O tio Angus? Tia Leala? Dulcie? Ou Saul? Quem?
— Leala recebeu hoje uma carta de Minnesota...
Alaina cerrou os dentes com força e ficou gelada de medo, sem coragem sequer de pensar.
O dr. Brooks continuou, com voz comovida:
— Roberta morreu. Ao que parece, teve um aborto. Uma febre a consumiu e a levou.
O alívio que sentiu deixou Alaina fraca e agradecida. Esperou a dor da perda, mas ela não veio.
Deixou o dr. Brooks e pediu o dia de folga para a visita obrigatória aos Craighugh, pensando em
oferecer sua ajuda no que eles precisassem. Dulcie atendeu a porta e depois de cumprimentar
chorando, ela disse, preocupada:
— O doutor deu uns pós para miz Leala e ela está dormindo lá em cima. O seu Angus voltou para a
loja. Miz Alaina—Dulcie torceu as mãos no avental —, eu não... sei o que fazer. O seu Angus só fala
que a senhora trouxe o ianque para cá e que foi por isso que miz Roberta morreu. Os dois estão
cheios de raiva, miz Alaina, e eu acho que é melhor, minha filha, esperar mais um pouco para essa
visita.
Alaina fez um gesto afirmativo e, sem uma palavra, subiu na charrete e foi para a casa da sra.
Hawthorne, triste e deprimida. Talvez
302
tivesse sido melhor para ela e para todos se nunca tivesse saído de BriarHill.
pepois da morte da filha, Angus Craighugh passava mais tempo na loja, trabalhando febrilmente, até
tarde. Mesmo assim, à noite entrava em todas as tavernas do caminho e quando chegava em casa
precisava de ajuda para subir a escada. Assim não foi surpresa a carta de Leala pedindo a Alaina para
voltar a morar com eles. Alaina passou várias semanas pensando no assunto. Relutava em voltar
porque a casa dos Craighugh despertava muitas lembranças, a maioria delas desagradáveis. Embora
compreendendo e simpatizando com a solidão da tia, só quando Leala a procurou no hospital Alaina
cedeu e concordou.
Logo se tornou evidente que Leala queria que Alaina tomasse o lugar da sua filha. Estava sempre
insistindo para que ela saísse para comprar roupas mais de acordo com a situação social dos
Craighugh. Chegou a sugerir que Alaina ficaria mais confortável no quarto de Roberta e não
compreendeu a recusa da sobrinha. Quando Leala, distraidamente a chamou de Roberta, Alaina
achou que estava na hora de acabar com aquele sonho que poderia se transformar num pesadelo.
— Tia Leala, estou morando aqui porque parece que isso a agrada, mas eu não sou Roberta, não
posso tomar o lugar de Roberta e não quero ser Roberta.
Leala torceu as mãos confusa e nervosa e seus olhos encheram-se de lágrimas.
— Desculpe, Alaina. Não tive intenção de fazer de você minha filha. Só que é fácil esquecer...
— Eu sei — disse Alaina com um suspiro. — Eu a amo e compreendo. Mas lembre que sou uma
pessoa diferente. Uma hóspede por algum tempo. Nada mais.
Depois disso, Leala parecia mais animada a cada dia que passava. Tendo finalmente enfrentado a
perda da filha, tornou-se menos difícil suportar a dor.
O tio Angus, porém, não conseguiu enfrentar tão bem a provação. Ficava fora de casa o maior
tempo possível, como se a simples presença de Alaina fosse demais para ele. Com a normalização do
movimento do porto, seus negócios floresciam e ele entregou-se inteiramente ao trabalho de ganhar
cada vez mais.
O fato de morar na casa dos tios representava outra ameaça para Alaina, e ela se deu conta disso
naquela manhã, em julho, quando saiu
303
com a charrete e encontrou um luxuoso landau bloqueando sua passagem. Alaina começou a fazer
uma volta, para passar pelo obstáculo, quando viu Jacques DuBonné descendo da carruagem. Com
um sorriso atrevido, ele se aproximou e pôs o pé no estribo da charrete, parecendo muito seguro e
vestido com gosto mais apurado do que antes. Na verdade, parecia mais um rico cavalheiro do que o
aventureiro e aproveitador que realmente era.
— Bom dia, minha senhora. — Levantou um pouco a aba do chapéu, elegantemente. — É um
prazer encontrá-la outra vez. Eu tinha quase desistido, embora meus homens estivessem procurando
a viúva por toda a cidade. Posso ter esperanças, agora que não está mais de luto?
— Monsieur DuBonné, o senhor não pode ter esperança nenhuma a meu respeito. Não gosto do
senhor e não pretendo mudar esse sentimento. Agora, se não se importa, preciso ir. — Ergueu as
rédeas para seguir, mas Jacques DuBonné pôs a mão sobre a dela. Alaina olhou quase com nojo para
os dedos curtos e grossos e depois ergueu lentamente os olhos para o homem. — Tem mais algum
assunto para discutir comigo, senhor?
Com os olhos nos dela, DuBonné passou os dedos no pulso frágil de Alaina., —Fui informado que
seu protetor deixou a cidade.
Alaina ergueu uma sobrancelha. —E quem poderia ser ele, senhor? Jacques sorriu.
— Estou falando do dr. Latimer. — Os dedos começaram a subir pelo braço dela. — Agora que ele
se foi, pensei que talvez eu pudesse lhe oferecer a minha proteção.
— É muita bondade sua, senhor. — Alaina sorriu calmamente. — Mas não preciso da sua tutela. —
A última palavra foi dita com evidente zombaria.
Inclinando a cabeça para trás, Jacques deu uma gargalhada.
— Mas, mademoiselle, a senhora não compreende. Anão ser que aceite a minha proteção, não terá
mais paz, nem de dia, nem de noite.
— Está me ameaçando, senhor?
Ele deu de ombros e ergueu as mãos abertas.
— Não tenho intenção de assustá-la, mademoiselle. Prefiro amenizar seus temores...
— A que preço? — perguntou Alaina.
Jacques pôs a mão no joelho dela, com um gesto possessivo.
304
- Eu gostaria de ser seu amigo íntimo, mademoiselle.
Os olhos de Alaina o fuzilaram.
. Tire as mãos de mim.
O homem deu outra risada e sua mão subiu mais na perna dela, e no momento seguinte ele estava
olhando para o cano da pequena arma que ue Alaina tirou da bolsa. Sem que ela precisasse dizer uma
palavra, o homem retirou cautelosamente a mão e recuou. Alaina sacudiu as rédeas, e a roda da
charrete quase passou por cima do pé de Jacques.
O negro enorme apareceu de trás do landau e subiu para a boléia, levando a carruagem até onde
estava seu patrão.
— O garoto-mulher do hospital, patrão? - Jacques olhou atônito para o empregado.
— O que quer dizer? O negro deu de ombros.
— Ela parece o garoto-mulher do hospital.
— Quer dizer, aquele que jogou água em mim?
— Sim, senhor. Aquele garoto-mulher do hospital. — Bateu no peito com a mão aberta.—Debaixo
do casaco, ela é mulher. Eu segurei ela uma vez e senti o macio... de mulher.
Jacques compreendeu.
— O mesmo garoto-mulher que estava com a arma na casa da sra. Hawthorne?
O negro balançou a cabeça afirmativamente.
— Compreendo! — Jacques subiu no landau e fez sinal ao empregado para partir. Por que uma
jovem mulher ia se disfarçar de menino? pensou ele. A não ser, é claro, que estivesse escondendo
alguma coisa. Mas o que podia ser? E como ele, Jacques, podia descobrir?
Angus Craighugh levantou-se da cadeira com ar desanimado quando o homem elegantemente
vestido entrou na loja, acompanhado por um negro cuja estatura lembrava Saul.
— Em que posso servi-lo, senhor — perguntou, solícito, adiantando-se para o homem.
Jacques DuBonné sorriu amavelmente, acariciando uma peça de seda que estava sobre a mesa.
— Muito bom gosto, monsieur.
— Está interessado em algum tecido, senhor? Acabei de receber uma coleção de sedas raras do
Oriente.
— Ah, deve ser uma coincidência.
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— Uma coincidência? Como assim, senhor?
— Fui informado de que um navio do Oriente foi capturado no golfo, sua carga roubada e depois
afundado com toda a tripulação.
— O que isso tem a ver com a seda, senhor?
— A carga do navio era seda e marfim, tapetes raros... como os que o senhor certamente tem em sua
loja. — Jacques sacudiu a mão na direção de um tapete dependurado na parede.
— Posso garantir, senhor — Angus ficou rubro, ofendido com a insinuação —, que paguei um bom
preço por esses artigos e se foram roubados, eu nada tive a ver com isso.
Jacques riu, descontraidamente.
— Nestes tempos de aproveitadores e de preços altos, não acha estranho conseguir uma boa
pechincha? Só um homem exagerada-mente escrupuloso questiona essa sorte. Ele agradece a
oportunidade e nem pensa em interrogar seus fornecedores.
— O que está sugerindo, senhor?—perguntou Angus, indignado.
— Estou dizendo que o senhor deve ter desconfiado de alguma coisa, mas preferiu ignorar, na
esperança de ganhar um pouco mais.
— Isso é ridículo! — protestou Angus, ofendido com a insinuação de desonestidade. Podia ser um
pouco frugal, talvez, mas desonesto, nunca! — Qual o seu interesse nesse assunto? O navio saqueado
era seu?
— Digamos, senhor, que Jacques DuBonné tem meios para saber de certas coisas e está interessado
em tudo que acontece na cidade. — Ergueu a mão, agitando os dedos num gesto misterioso e olhou
em volta. — Nunca se sabe quando pode acontecer um desastre. Um incêndio, talvez. Ou
vandalismo. — Deu de ombros. — Eu tenho muitos amigos e para alguns posso oferecer proteção,
uma vez que sou uma pessoa muito importante na cidade. Uma palavra aqui, outra ali, pode evitar
que as autoridades interfiram em assuntos que não lhes dizem respeito. Às vezes uma pequena
informação pode bastar para satisfazer meu desejo de justiça.
— Está procurando me chantagear, senhor?—perguntou Angus, desconfiado.
Jacques riu.
— É claro que não, monsieur. Eu jamais pensaria em ofender um homem tão íntegro como o
senhor. Apenas estou curioso sobre uma certa jovem que está morando em sua casa. Ela é sua
parenta, senhor?
Angus franziu as sobrancelhas e seu rosto ficou rubro.
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— Não, não é minha parenta — respondeu, zangado. — Apenas uma hóspede em minha casa... por
algum tempo.
— Eu sei que ela saiu da sua casa e morou em outro lugar durante algum tempo. Para onde ela foi?
— Uma vez que sabe de tudo, senhor, sugiro que procure se informar com seus amigos. Estou
muito ocupado para responder as suas perguntas.
— Seja como quiser, monsieur. Bonjour!
No dia seguinte, Angus chegou em casa furioso porque dois oficiais ianques tinham ido à sua loja
para examinar algumas peças de fazenda. Nos dias que se seguiram, a presença dos oficiais tornou-se
uma constante. Eles entravam, examinavam a mercadoria, compravam um rolo de fumo ou outra
coisa pequena qualquer, nas horas mais estranhas.
Os Craighugh notaram também que estavam sendo vigiados. Quando Alaina estava em casa, havia
sempre um homem encostado numa árvore, a cavalo ou dentro de uma carruagem parada. Saul
voltou a ser o guardião de Alaina, levando-a a todos os lugares, enquanto continuava a ajudar Angus
na loja.
Jacques, cada vez mais ousado, procurou Alaina no hospital e a encontrou limpando a sala dos
oficiais.
— Não pode fugir de mim, mademoiselle Hawthorne — riu ele, quando Alaina se voltou e o viu na
porta. — Agora sei onde trabalha e onde mora. Sei muita coisa a seu respeito.
— Sabe mesmo?—Alaina não demonstrou interesse e continuou tirando o pó da sala.
— Sei também que trabalhou aqui no hospital, disfarçada de menino... o menino que jogou um balde
com água em cima de mim.
Alaina não ergueu os olhos da mesa que estava limpando.
— Uma brincadeira, nada mais.
— Eu gostaria de informá-la, mademoiselle, que me tornei um homem muito importante e poderoso
— disse ele. — Adquiri muitas coisas e posso passar por um cavalheiro em qualquer lugar.
Alaina não disse nada. Tinha notado que agora ele falava como um misto de cavalheiro do sul e
fidalgo francês. Até vestia-se como um aristocrata.
— Adquiri um criado pessoal de uma das melhores famílias da cidade e ele me ensinou muita coisa
sobre o comportamento de um cavalheiro. Posso acompanhá-la nesta cidade com um tratamento
digno da realeza.
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Alaina olhou para ele, com um sorriso sereno.
— É pouco provável, senhor, uma vez que para isso ia precisar do meu consentimento e duvido que
algum dia o consiga. Acho que não compreende que estou perfeitamente satisfeita com a minha vida,
sem sua interferência. Agora, um bom dia para o senhor.
— Ainda não, mademoiselle.—Com uma risada, ele se adiantou, arrogantemente. Segurou o queixo
de Alaina e o ergueu, até seus olhos se encontrarem e apertou os dedos quando ela tentou virar para
o lado. — Eu posso possuí-la aqui e agora, mademoiselle. Não poderia fazer nada para evitar. Mas
prefiro oferecer algo melhor. Ser a minha companheira... quando tivermos convidados, e outras
vezes, quando estivermos a sós. Eu lhe darei os mais ricos vestidos e todas as mulheres da cidade a
invejarão...
— Como sua amante? — Alaina riu. — Está delirando, senhor. Jacques segurou os braços dela e
com brutalidade a puxou para ele.
— Nunca mais ria de mim, mademoiselle — voltou a falar com o sotaque cajun vulgar. — Do
contrário, vai se arrepender. Um rosto como o seu não suporta muito bem a força de um punho
fechado. É muito fino e frágil.
— Não serei amante de nenhum homem, senhor — sibilou ela, sem tirar os olhos dos dele.
— Tenho meios para convencê-la — sorriu ele, calmamente. Alaina estremeceu ouvindo a ameaça
grosseira e mais uma vez tentou livrar o rosto para não ver aqueles olhos negros que fitavam os seus.
Então, por cima do ombro de Jacques, viu o dr. Brooks entrando na sala. O médico adiantou-se
pigarreando ruidosamente, e Jacques virou-se para trás, sobressaltado com a intrusão.
— Srta. Hawthorne, está tudo bem? — perguntou o dr. Brooks.
— Devia ter avisado da sua chegada, meu velho—disse Jacques, furioso e com desprezo.
O dr. Brooks olhou para ele severamente.
— E o senhor, não devia estar no meu hospital incomodando e ameaçando jovens indefesas. Saia
daqui antes que eu chame o xerife, e nunca mais apareça.
— Pensa que pode ameaçar Jacques DuBonné — zombou o homem. — Eu posso fazê-lo em
pedaços para alimentar os jacarés, monsieur. Ninguém diz a Jacques o que deve fazer.
— E eu, senhor, farei com que todos os homens de bem desta
308
cidade organizem uma caçada ao rato, se o surpreender mais uma vez com as mãos nesta jovem.
Jacques dilatou as narinas, indignado, mas compreendeu que o homem estava falando sério.
— Eu vou, mas não porque me mandou.—Voltou-se para Alaina com um sorriso de desprezo. —
Pode estar certa, mademoiselle, que ainda não terminamos nosso assunto.
Alaina viu o francês sair da sala e depois voltou-se para o dr. Brooks:
— Temo que o sr. DuBonné esteja ficando um pouco entusiasmado demais com a idéia de me
conquistar. — Tentou parecer descuidada, mas não conseguiu e foi com voz trêmula que continuou:
— Acho que ele representa uma ameaça maior do que posso enfrentar agora. Saul me traz para o
trabalho e depois me leva para casa. Só saio acompanhada... por Jedediah ou por Saul. Quem sabe o
que esse homem pode fazer e se for uma questão de orgulho, não vai desistir enquanto não
conseguir o que quer.
O que parecia resultado de um conjunto de táticas intimidadoras levou Angus a negar
veementemente que tivesse algo a ver com o dinheiro da União, roubado pela renegada Alaina
MacGaren. Várias notas depositadas por ele no banco foram identificadas pelo número de série
como parte do dinheiro roubado e imediatamente um verdadeiro enxame de oficiais ianques desceu
sobre a loja com uma infinidade de perguntas. Angus só podia dizer que recebera aquele dinheiro
como pagamento de várias mercadorias. Os ianques não podiam provar o contrário, portanto, nada
mais podiam fazer no momento. Depois que eles se foram, Angus ficou um longo tempo sentado à
sua mesa, olhando fixamente para um maço de cartas de Roberta. Saul apareceu na porta dos fundos
dizendo que ia sair para apanhar Alaina.
— Quer que eu faça mais alguma coisa, antes de sair, seu Angus? Angus suspirou profundamente.
— Não, Saul, pode ir.
Muito tempo depois, Angus saiu da imobilidade e estendeu a mão para as cartas da filha. Abriu o
segundo envelope e desdobrou o papel de carta, para contar o dinheiro que ele continha, uma parte
do que depositara no banco. Eram notas novas em folha e só naquela carta havia pelo menos dois
mil dólares. As outras continham a mesma quantia, num total de quase vinte mil dólares em dinheiro
ianque nunca usado. Onde Roberta conseguira o dinheiro, ele não sabia — só sabia
309
que na primeira carta ela pedia que fosse guardado, para quando voltasse para casa.
Bateram à porta, e Angus guardou o dinheiro apressadamente, mandando o visitante entrar. Era o dr.
Brooks acompanhado por Tally Hawthorne. Angus levantou-se para recebê-los e ofereceu uma
cadeira à mulher.
— Nós viemos para falar sobre Alaina — disse Tally, sem rodeios. Angus franziu a testa.
— Não sei por que vieram aqui. Eu nada tenho a ver com ela.
— Alaina é sua sobrinha — disse a sra. Hawthorne.
-— Ultimamente, estou tentando esquecer esse fato.
— Angus! Como pode dizer isso! Ela é uma criança tão boa e doce! — protestou Tally.
— Não tão querida quanto a minha Roberta — disse Angus, amargamente. — Alaina só me criou
problemas desde que apareceu na minha casa e sua presença me transtorna. Rezo para ficar livre
desse tormento. Sou um homem velho e estou muito cansado.
— Sabe alguma coisa sobre Jacques DuBonné e das ameaças que tem feito para Alaina? —
perguntou o dr. Brooks, pacientemente.
— Ameaças contra Alaina! Meu Deus, o que está me atormentando são as ameaças que ele faz a
mim. Tenho medo que um dia desses esse homem ponha fogo na minha loja, ou na minha casa, ou
que provoque outra desgraça qualquer na minha família. Por que vou me importar com ela, quando
tenho meus próprios problemas com o sr. DuBonné?
— Tomei a iniciativa de escrever para Cole a respeito — informou Tally, imperiosa.
— Cole? Aquele mise...
— Angus! — censurou Tally, severamente.—Controle a língua!:
— Aquele ianque matou a minha filha! — disse Angus.
— Isso é ridículo! Não foi culpa de Cole — disse Tally.
— Ele a engravidou! — berrou Angus.
— Angus, sugiro que ouça o que Tally está tentando dizer—disse o dr. Brooks, com voz calma. —
Cole respondeu a carta dela e pode ser a solução dos seus problemas.
— Não estou interessado em nada que aquele ianque pode oferecer — disse Angus com veemência.
— Ele pediu a mão de Alaina em casamento — disse Tally, serenamente.
310
-— O quê? — Os olhos de Angus pareciam querer saltar das órbitas.
Tally fez um gesto afirmativo.
— Cole concorda que Alaina deve sair de Nova Orleans e seu pedido de casamento é a solução.
— Nunca! Nunca! — gritou Angus, com o dedo em riste. — Eu o verei apodrecer no inferno
primeiro!
— Tenho certeza de que você estará lá para recebê-lo, se esse for o destino de Cole — observou
Tally, com a mesma calma.
Erguendo o queixo, Angus perguntou com ironia:
— Você vem aqui me julgar, Tally Hawthorne, quando conseguiu se dar bem agradando os dois
lados, ianques e rebeldes!
Ela sorriu, quase amavelmente.
— Angus, ninguém parecia se importar com as minhas opiniões, nem seus todo-poderosos amigos
confederados, nem os ianques, portanto apenas deixei que ficassem na incerteza. E com exceção do
sr. DuBonné, ninguém me incomodou. Não vim aqui para julgar, mas para pedir que consinta no
casamento, como único parente de Alaina. Ela corre perigo nesta cidade. DuBonné está resolvido a
fazer de Alaina amante dele. Você não deve deixar que isso aconteça... se é ainda um homem
misericordioso.
— Deixem-me em paz — trovejou Angus. — Não quero mais ouvir falar nisso! Vão embora, vocês
dois!
— Muito bem. Angus. — Tally levantou-se, com um suspiro. — Mas quero avisar. Se você não der
seu consentimento, vai se arrepender pelo resto da vida.
— Alaina sabe alguma coisa sobre essa proposta? — perguntou Angus.
— Resolvemos falar com você primeiro—explicou o dr. Brooks.
— Não vão dizer nada a ela? — insistiu Angus.
— Darei a você algum tempo para pensar — ameaçou Tally. — Depois, quem sabe?
Eles saíram, deixando Angus sozinho na loja que estava agora na penumbra, com o cair da noite. Ele
começou a andar de um lado para o outro, abominando a idéia de fazer a vontade de Cole. Mas sabia
que Jacques DuBonné estava prestes a lançar sua armadilha, da qual jamais poderia escapar. E se o
homem soubesse que sua sobrinha era Alaina MacGaren, seria um inferno para todos. Angus estava
extremamente Perturbado. O que fazer, quando seu desejo era vingar-se de Cole, de
311
um modo ou de outro, o homem que roubara sua filha, sabendo, ao mesmo tempo, que corria grave
perigo se não concordasse com o casamento?
Depois de pensar por algum tempo nas suspeitas de Leala, Angus concluiu que não eram
verdadeiras. Roberta não podia fazer uma coisa daquelas com ninguém. Porém, se existia alguma
atração entre Cole e Alaina, e se ele consentisse no casamento, estaria proporcionando uma
satisfação ao ianque — a não ser que conseguisse mantê-los separados.
Angus parou de andar, olhando pensativamente para o chão, pensando nas opções que teria. O que
deveria fazer? O que deveria fazer?
O calor de agosto abateu-se impiedoso sobre a cidade e só à noitinha era possível ter algum
conforto. Sentada sozinha na varanda da casa dos Craighugh, Alaina olhava para o céu estrelado,
envolta numa aura de melancolia. Tinham jantado havia algum tempo, e Angus, para variar, chegara
em casa mais cedo e relativamente sóbrio. Há mais ou menos uma semana Jacques não aparecia na
loja, mas essa ausência era como a calmaria antes da tempestade. Nenhum deles conseguia ter
sossego.
A porta da frente abriu com um rangido, e Angus saiu para a varanda. Sentou-se na cadeira ao lado
de Alaina e pigarreou. Era evidente que queria falar com ela, mas só depois de um longo silêncio ele
disse:
— Eu escrevi para Cole, pedindo a ele para ajudá-la a se livrar de Jacques. — Pigarreou outra vez,
como se tivesse dificuldade para falar. — Ele a convidou a passar algum tempo em sua casa, no
norte, até tudo se acalmar. Eu, é claro, observei que isso poderia comprometer seriamente sua
reputação e sugeri o casamento como o melhor modo de resolver o problema. Ele aceitou, em
princípio, com a condição. — Pigarreou outra vez.
Alaina esperava, rígida, não se sentindo nem um pouco envaidecida com o que o tio estava contando.
Ficou francamente ofendida quando ele continuou:
— Cole aceita, desde que o casamento seja considerado como uma coisa temporária, um casamento
pró-forma, apenas no nome... um ato de conveniência, para ser anulado assim que seu problema
esteja resolvido.
— Compreendo! — disse Alaina, sentindo-se mais magoada e degradada do que queria admitir.
312
Angus apressou-se a continuar, antes que ela externasse sua indignação.
.— Não vejo nenhuma outra alternativa para você, Alaina, ou para mim. Jacques DuBonné é uma
ameaça grande demais para nós, aqui na cidade. Se ele descobrir que você é Alaina MacGaren, tudo
estará perdido. Mas como mulher de um ex-oficial ianque, um herói, estará relativamente segura. Sob
a proteção de Cole, pode deixar a cidade sem levantar suspeitas e Jacques não ousará interferir.
— Muito obrigada por seu interesse, tio Angus, mas prefiro não incomodar o major Latimer. Posso
deixar a cidade sem a proteção dele.
— Você não pode nem sair desta casa sem ser seguida por um dos homens de Jacques. Ele não a
deixará escapar. Ele conhece seus disfarces e sem dúvida avisou seus homens a respeito deles.
Enquanto estiver morando aqui, ele vai tentar nos persuadir a entregá-la de modo mais pacífico...
— Pacífico! — disse Alaina, com ironia. — É assim que o senhor chama isso?
— Jacques se gabou de ser capaz de grande crueldade. Se tiver confirmação de alguma coisa, num
instante estará aqui para levar você. Mas, por enquanto, está ainda às escuras, procurando algum
motivo sério para forçá-la a se submeter. Enquanto ele não tiver nenhuma prova, certamente tem
tanto medo das autoridades quanto nós. Não acredito que seja um homem muito honesto.
— Não quero ser um peso para homem nenhum e não vou aceitar a caridade do major Latimer —
disse ela.
— Se não quer pensar em você, pense no sofrimento da sua tia, se for apanhada — observou Angus.
— Se o senhor quiser, eu vou embora! Não preciso ficar aqui!
— Vai para onde? Para a casa da sra. Hawthorne? Ou do dr. Brooks? Teria coragem de pôr a vida
deles em perigo também?
Frustrada e revoltada, Alaina levantou-se rapidamente, mas Angus ergueu a mão, antes que ela
começasse a falar.
— Pense no assunto. Você nos deve isso.
Alaina correu para dentro da casa, ferida e humilhada pelo único homem que vivia nos seus sonhos.
Angus olhou para a noite silenciosa. Agora que resolvera, teria de continuar. Por mais que a idéia o
desagradasse, pediria a ajuda de Tally e do dr. Brooks para convencer Alaina de que o casamento
com Cole era a única porta aberta para a sua
313
liberdade. Quando ela chegasse em Minnesota, estaria tão amargurada com Cole Latimer que não ia
haver nenhuma esperança para os dois. No fim da tarde, do dia seguinte, Alaina foi chamada ao
escritório do dr. Brooks. No passado, isso sempre significara más notícias e imaginou qual o
cataclisma que ia se abater sobre ela dessa vez. Quando entrou no pequeno escritório, o Dr. Brooks
levantou-se e fechou a porta. A sra. Hawthorne estava sentada, muito empertigada no canto da sala.
Tally parecia uma rainha com seu porte régio, o chapéu de abas largas e o véu preso sob o queixo.
Suas mãos estavam apoiadas no cabo da sombrinha. Ela cumprimentou Alaina com um sorriso suave
e uma inclinação de cabeça. Alaina olhou interrogativa-mente para o dr. Brooks que, recostado na
cadeira, girava na mão um bisturi, observando-a por cima dos óculos. Depois olhou para a sra.
Hawthorne, e para o médico outra vez, mais confusa, percebendo as expressões de desaprovação nos
rostos dos dois.
— Eu fiz alguma coisa errada? — perguntou, quebrando o silêncio insuportável.
A sra. Hawthorne abaixou os olhos e moveu a sombrinha apoiada no chão.
— Não exatamente errada, Alaina, mas uma coisa tola. Alaina sentou-se, completamente atônita.
Com um olhar pensativo e distante, o dr. Brooks balançou a cabeça, concordando.
Alaina não tinha idéia do que podia ter feito para incorrer no desagrado dos seus amigos e
benfeitores. Olhou para as mãos e as cruzou no colo, para esconder o tremor. Respirou fundo,
contendo as lágrimas e deu de ombros.
— Eu... não sei por que estão aborrecidos comigo — murmurou suavemente.
A sra. Hawthorne olhou para o dr. Brooks, que inclinou a cabeça num gesto afirmativo.
— O dr. Brooks e eu — começou ela, com voz severa — despendemos um esforço considerável
para fazer você sair da Louisiana. Pelo menos, até as coisas se acalmarem um pouco. Não foi fácil
convencer Angus a nos dar sua cooperação e seu consentimento. Agora, soubemos que você rejeitou
a idéia sumariamente.
Alaina olhou para ela, atônita.
— Quer dizer que a senhora e o dr. Brooks... mas o tio Angus disse que ele... — Estava mais confusa
do que nunca.
— Ora! — disse a sra. Hawthorne com desprezo. — Para um
314
homem inteligente em todos os outros assuntos, Angus Craighugh é um tolo quando se trata de
coisas delicadas.
O Dr. Brooks riu.
.— Tally, sejamos justos — reprovou ele, suavemente. Voltou-se para Alaina e disse, com ar um
tanto autoritário: — Angus nos informou do fato de que escreveu várias cartas para Cole... e nos
disse qual foi a sugestão de Cole. Parece-me, Alaina, que você decidiu levada por um impulso
emocional, que podemos compreender, mas pedimos agora que reconsidere.
— Não foi nada disso! — protestou Alaina, insultada com o julgamento.—Não fiquei zangada. Ouvi
todas as razões apresentadas pelo tio Angus e simplesmente discordei da idéia de atravessar metade
do país para esperar que as coisas se acalmem.
O dr. Brooks inclinou-se para a frente e começou a bater com a lâmina do bisturi no mata-borrão.
— Alaina, às vezes me pergunto se você tem idéia do perigo que corre. Jacques conseguiu uma
posição de importância na cidade, o bastante para ser perigoso, e sabemos que é muito persistente.
Não vai deixá-la em paz. Ele vai esperar até chegar o momento favorável e então, minha querida,
você estará em apuros. Angus apresentou suas razões, mas duvido que tenha dito tudo. Ele pode se
livrar das acusações de DuBonné porque sem dúvida pode provar que é honesto nos seus negócios.
Mas se descobrirem quem você é, Angus e Leala serão julgados também. Por dar asilo a uma pessoa
considerada, tanto pelo Norte quanto pelo Sul, uma criminosa desprezível, eles podem ter todos os
seus bens confiscados e acabar a vida em uma prisão.
"Na verdade, se for descoberta, o mesmo pode acontecer a Tally e a mim. Se Alaina MacGaren
desaparecer por algum tempo, que prova podem ter de que ela morou na cidade? Se você for
embora, haverá tempo para investigações e para provar a falsidade das acusações Você precisa sair da
cidade urgentemente. Mas para onde poderia ir? Para casa? Esconder-se nos pântanos, com a ameaça
de ser apanhada pelos Gillett, ou por qualquer outro? Se pudermos mandar você Para uma cidade
distante, como viajará e como vai viver? Certamente não pode ser como Alaina MacGaren. Cada
capitão de navio, cada xerife vai suspeitar de uma jovem viajando sozinha. Mas se viajar como a noiva
de um médico respeitável, um herói ferido, quem vai Pensar em Alaina MacGaren? Duvido que
possam suspeitar da sra. Latimer, e você irá morar numa comunidade distante, perto da fronteira,
315
livre de Jacques, livre das suspeitas das autoridades, livre para descansar e desfrutar de um pouco de
paz e de uma vida agradável.
O dr. Brooks fez uma pausa e Alaina procurou em vão um protesto lógico. A sra. Hawthorne tomou
a palavra.
— Todos gostamos muito de você, Alaina — disse ela. — E não queremos vê-la torturada ou
maltratada por um capricho. Mas deve compreender que é um peso para nós, um peso que
suportaríamos alegremente, mas que tememos perder por algum infeliz acaso. Se você estiver a salvo
e num lugar distante, estaremos livres para nos defender, se for preciso, e muito mais livres para
defendê-la das falsas acusações. O major Latimer garantiu em sua carta que compreende a situação, e
garante também... — Um leve sorriso assomou nos lábios dela — que duvida que você tenha o bom
senso de aceitar. Se não me engano, ele diz... — Tirou uma carta da bolsa e procurou o trecho
desejado. — Ah, aqui está: "Ela tem uma queda para bobagens e encrencas que supera todas as
considerações do bom senso. Apresento a sugestão com toda a boa vontade e espero que tenham
sorte na sua tentativa de convencê-la, embora eu duvide muito que consigam. Espero ansiosamente
sua resposta."
A sra. Hawthorne dobrou a carta e a guardou na bolsa. Alaina, muito corada, olhava para as mãos
cruzadas no colo. O dr. Brooks e a sra. Hawthorne trocaram um rápido olhar e um gesto afirmativo.
Depois voltaram-se para Alaina, esperando a resposta.
A mente de Alaina era um turbilhão. Que supera todas as considerações do bom senso! O cretino,
miserável, idiota! Podia imaginar o sorriso zombeteiro e a túnica cheia de botões brilhantes. Aquele
palhaço desajeitado. Tem pena de mim e faz o papel de salvador com muita arte, mas não me quer
para mulher.
Profundamente revoltada, empertigou-se na cadeira. Bem, eu não o quero para marido!
Então todos os argumentos desfilaram por sua mente como um rio caudaloso e suas defesas foram
vencidas. Peso! Ameaça! Perigo! Absurda! Tola! E um que não foi dito — indesejada!
Falando baixinho, ela cedeu.
— Tudo bem. Eu vou embora. Vou casar com ele... fico até o perigo passar... mas nem mais um
momento.
O dr. Brooks e a sra. Hawthorne relaxaram e sorriram. Tinham ganhado a primeira etapa do plano.
Mas logo Alaina estaria fora das suas mãos e iam depender de uma orientação maior para realizar o
resto.
316
Capítulo Vinte e Cinco
EM CERTAS OCASIÕES, Jacques DuBonné emprestava dinheiro a juros muito altos. Arriscava
muito pouco, porque sempre tinha como garantia propriedades que valiam bem mais do que o
dinheiro emprestado. Foi na capacidade de usurário que naquela brilhante manhã de setembro
entrou na loja em frente à de Craighugh, para falar com o dono.
— O senhor está muito atrasado no seu pagamento, monsieur. Jacques DuBonné não tem muita
paciência quando se trata de dinheiro. Ou paga o que deve, ou perde a loja. O senhor compreendeu?
— Evidentemente essa era sua intenção, desde o começo — acusou o comerciante.—Tenho
observado seus movimentos e sei que forneceu a Angus Craighugh dinheiro e mercadoria para que
ele possa baixar os preços e tirar meus fregueses. Faz isso para o tio daquela ladra e assassina Alaina
MacGaren e tira vantagem da situação difícil de um homem honesto.
— Pardon, monsieur, o que foi que disse?
— Disse que esse era seu plano desde o começo.
— Non! Non! O que disse sobre Alaina MacGaren? O comerciante olhou para ele, furioso.
— Todos que o conhecem podem lhe dizer que Angus Craighugh é tio daquela cadela traidora!
317
Jacques ajeitou o chapéu alto e bateu levemente com o cabo trabalhado da bengala no peito do
homem.
— Tem até amanhã à noite para pagar sua dívida, monsieur. Se não quer perder a loja, não perca
nem um minuto.
O francês saiu e olhou demoradamente para a loja de Angus Craighugh, antes de subir no seu landau.
Às vezes valia a pena esperar.
Uma neblina leve envolvia a cidade, transformando as árvores e as casas em sombras indistintas,
quando Saul e Alaina saíram na charrete, no começo da noite. Na casa dos Craighugh, Alaina correu
para a porta dos fundos, enquanto Saul levava a charrete e o cavalo para o estábulo. Quando entrou
na cozinha, Dulcie disse:
— Miz Leala está na sala, menina. E tem um cavalheiro com ela. Não sei o que ele quer aqui, mas
veio de longe, de Minnesota, a mandado do seu Cole.
Alaina ajeitou o cabelo úmido.
— Acho que ninguém teve a idéia de contar, Dulcie. Vou seguir os passos de Roberta.
— O quê? — Dulcie ergueu as sobrancelhas, desconfiada.
— Vou casar com o dr. Latimer.
Com uma expressão de espanto, Dulcie, murmurou:
— Meu Deus! Isso não é uma surpresa?
— Uma surpresa — murmurou Alaina, incerta. Apesar de tudo, estava contando os dias, esperando
ansiosamente seu salvador ianque. Já estavam em setembro e não tinham recebido nem uma palavra.
Respirou fundo e disse: — Acho melhor eu ver o que esse homem quer.
Quando os passos de Alaina soaram no hall, as vozes na sala cessaram, e assim que ela entrou um
homenzinho elegantemente vestido levantou-se gentilmente. Ao seu lado estava uma grande mala de
couro.
— Alaina, minha filha, este é o sr. James — disse a tia Leala. — O advogado enviado por Cole.
— É um prazer, srta. Haw... bem... srta. MacGaren — corrigiu ele, com um sorriso bondoso. — O
dr. Latimer explicou com detalhes a sua situação, mas esqueceu de falar na sua juventude e na sua
beleza.
— O dr. Latimer, no passado, foi bastante prejudicado pela fuligem e pela poeira — respondeu
Alaina. — Ele jamais conseguiu ver o que havia sob elas. Mas, diga-me, senhor, como um homem
tão gentil veio a conhecer o dr. Latimer?
318
Confuso com a ironia velada, ele explicou cortesmente:
— Sou amigo da família Latimer há algum tempo. Conheci o pai dele.
E está aqui para providenciar os detalhes do casamento. Suponho que tem cópias das cartas, do
contrato e tudo o mais? — Alaina o observava com curiosidade, quase esperando ouvir dele as
razões pelas quais o casamento devia ser adiado.
— É meu objetivo principal e tenho comigo todos os documentos.
Ele inclinou a cabeça e pôs a mala de couro na frente dela. — O dr. Latimer mandou também
algumas roupas para o casamento e para sua viagem para o norte.
— Isso não era necessário — disse Alaina, secamente. — Consegui fazer um bom enxoval e
pretendo aceitar o mínimo possível da caridade do dr. Latimer.
O sr. James tossiu discretamente. Fora avisado da obstinada independência de Alaina e tentou
acalmá-la.
— Talvez a senhorita deva pelo menos ver os presentes. Talvez encontre alguma coisa que a agrade.
— Quando o dr. Latimer vai chegar? — perguntou ela.
— Oh, vejo que não compreendeu por que estou aqui. Tenho a procuração do dr. Latimer e estou
preparado para representá-lo no casamento.
— Quer dizer que aquele ianque barriga azul não pode nem comparecer ao próprio casamento? — A
voz dela se elevava a cada palavra.
— O dr. Latimer tem tido alguns problemas, ultimamente...
— Problemas! — repetiu ela, com o rosto em fogo.
O sr. James, desconcertado, ia explicar, mas Alaina não deu tempo. Com uma exclamação abafada,
ela saiu da sala e correu para a porta, levada por um impulso irresistível de sair daquela casa. Leala foi
atrás, pedindo a ela para voltar, mas Alaina estava cega de raiva. Ouviu a tia chamar por Saul. Com os
olhos cheios de lágrimas, atravessou correndo o extenso gramado e chegou à rua, fugindo para a
densa neblina da noite como se estivesse sendo perseguida por cães ferozes.
Depois de algum tempo, mais calma, Alaina percebeu que estava muito longe da casa. Ofegante,
encostou numa das árvores que ladeavam a rua para descansar. Teve a impressão de ver sombras que
se alongavam nos dois lados da avenida. Mas quando parou, elas desapareceram.
319
Então, do meio da noite, ouviu o ruído de patas de cavalo nas pedras da rua e o lento ranger das
rodas de uma carruagem.
Levando a mão ao lado do corpo, para aliviar a dor, Alaina começou a se afastar do som. As sombras
voltaram e a carruagem continuou a segui-la. Chegou a uma esquina, onde a lâmpada da rua brilhava
fracamente na neblina e aproximou-se do círculo de luz como se fosse um porto seguro no mar
noturno. Tentou enxergar através da névoa e então, como por magia, uma sombra apareceu ao seu
lado. Era uma magnífica parelha de cavalos negros, puxando um landau da mesma cor. A carruagem
parou, e Alaina recuou assustada quando o negro enorme, o criado de Jacques DuBonné, desceu do
banco do cocheiro. O homem parou e inclinou a cabeça, como se estivesse procurando ouvir alguma
coisa.
— Miz Alaina? Miz Alaina? — A voz de Saul, abafada pela neblina soou fracamente.
— Saul! — gritou ela com toda força. — Aqui. Ajude-me! Alaina voltou-se para correr outra vez,
mas os braços do negro a envolveram. Quando ela abriu a boca para gritar, o punho gigantesco
chocou-se, quase com delicadeza, com a ponta do seu queixo. A luz desapareceu e ela flutuou no
espaço, num vazio profundo e negro.
O enorme criado de Jacques apanhou Alaina nos braços e quando se voltou viu Saul arremetendo
com fúria contra ele. Mas antes que pudesse alcançá-lo, Saul foi dominado por meia dúzia de
desordeiros das docas. Lutou para se livrar dos assaltantes enquanto via o negro, Gunn, carregar
Alaina para a carruagem, virar o rosto dela para a luz, para ser identificada por alguém e depois,
abrindo a porta, a fez entrar. Com um assobio estridente, o homem pôs a carruagem em movimento
e desapareceu na noite.
Saul voltou toda a atenção aos seus adversários. Torceu o braço de um deles, que ameaçava abrir sua
cabeça com um enorme pedaço de pau. O homem gritou de dor, e Saul, tirando a arma improvisada
da mão dele, girou-a no ar como uma espada mortífera. Em pouco tempo, os seis homens estavam
estendidos no chão, e Saul agachado respirava profundamente. Examinou os rostos de dois deles.
Eram asseclas de Jacques DuBonné.
Enfiando o pedaço de pau no cinto, Saul correu de volta para casa. Saltou rapidamente sobre os
arbustos e as cercas baixas, e enquanto corria pensava que não convinha contar o ocorrido aos tios
de Alaina. Angus provavelmente ia explodir, e Leala estaria doente antes do fim
320
da noite. Assim, Saul foi direto para o estábulo. Passou o bridão num dos melhores cavalos de Cole e
o levou em silêncio até a rua, antes de montar. Bateu com os calcanhares nos flancos do animal, e
homem e cavalo dispararam no meio da noite.
Quando chegou ao bairro pobre dos negros emancipados, Saul guardou o cavalo no barracão de um
amigo e continuou a pé à procura dos que tinham informações sobre o baixo murido, naquela
cidadezinha miserável e semicivilizada. Uma palavra aqui, outra ali, uma informação dada com
relutância e logo ficou sabendo onde ficava a sede da pior corrupção da zona do porto.
Alaina moveu-se, depois gemeu. Uma luz fraca desenhava sombras sinistras nas suas pálpebras. Uma
dor surda na base da cabeça subiu para os olhos, latejante e persistente. Abriu-os e viu o vulto
impreciso de um homem sentado a uma mesa, sobre a qual havia uma lâmpada. Piscou os olhos para
ver melhor e imediatamente arrependeu-se, vendo o riso zombeteiro de Jacques DuBonné. Ele se
recostou na cadeira, com as abas da casaca dobradas sobre as coxas e as pernas muito abertas.
— Ah, minha cara mademoiselle Hawthorne. — Sua voz quase cantava de satisfação. — Bem-vinda
ao mundo dos vivos. Eu começava a temer que Gunn tivesse exagerado sua força.
Ignorando o homem, Alaina olhou em volta. Estava deitada num fardo de algodão coberto por um
fino pano de brocado de seda. A sala era pequena e silenciosa como uma caverna. Não se ouvia
nenhum som de fora e as paredes, contra as quais se empilhavam caixotes e barris, pareciam feitas
com um único bloco de pedra. Alaina não tinha a menor idéia de onde estava.
— Sente-se bem para discutir certos assuntos, chérie—perguntou Jacques, com voz melosa.
Alaina tentou responder, mas só conseguiu um som áspero e surdo da garganta seca. Começou a se
levantar, mas a sala girou em volta dela.
— Bem, seja como for, acredito que vai recuperar logo a voz. Não conheço nenhuma mulher capaz
de ficar calada por muito tempo.
Alaina pôs os pés no chão e recostou-se no fardo de algodão, esperando passar a náusea e a tontura.
321
— Não esqueça essa sensação, srta. Hawthorne, e nem a gentileza de Gunn. Com isso poderá evitar
muita dor no futuro.
Alaina olhou para ele, frustrada e furiosa. Em vão tentou falar outra vez e apontou para um balde
com água e uma concha de metal, dependurados perto da porta.
— Por favor, ma chérie, sirva-se à vontade. Tudo que desejar... dentro dos limites da razão, é claro.
Alaina sentia-se muito melhor, mas procurou caminhar cambaleando até a porta. A água era morna e
velha, mas mesmo assim ela bebeu avidamente. Depois encostou-se na parede, passando a mão na
testa, enquanto estendia a outra para o lado. Com um movimento brusco, ela ergueu a tranca e abriu
a porta, mas parou tão de repente que a saia do vestido girou em volta das suas pernas. Gunn a
esperava semi-agachado, com os braços abertos, bloqueando a passagem, com um largo sorriso.
Alaina olhou para ele, desapontada, e a risada do homenzarrão ribombou pelo corredor de pedra.
Alaina bateu a porta com força e encostou-se nela, ouvindo o riso zombeteiro de Jacques penetrar
em sua carne como lâminas de desespero.
— Muito bem, srta. Hawthorne. Hesito em dizer que sua partida repentina esteja fora dos limites da
razão. Afinal, ainda não chegamos a nenhum acordo.
Alaina recuperou a voz e respondeu:
— Pensa que pode abusar de mim e encontrar segurança em qualquer parte do sul? Qualquer
cavalheiro, sulista ou ianque, vai persegui-lo como se fosse um cão danado.
— Por Camilla Hawthorne? Sim, tem razão. — Com um sorriso desdenhoso, ele deu de ombros. —
Mas, por Alaina MacGaren, assassina, ladra e traidora? Duvido. — Olhou para as mãos. — Ora, são
capazes até de me concederem um prêmio... ou uma medalha.
Alaina tentou lutar contra o medo que ameaçava dominá-la. Reconhecia agora a tolice de ter saído de
casa tão intempestivamente.
Jacques levantou-se, ajeitou o casaco e começou a andar pela sala, como um frango eriçando as penas
para uma galinha.
— Conheci muitas mulheres orgulhosas antes, ma chérie. Havia uma crioula que se considerava a
propriedade mais preciosa do mais belo conquistador do Delta. Em poucos dias ela estava se
arrastando, implorando para que eu a levasse para a cama. Então, foi uma beldade sulista, que veio
para cá depois do cerco de Memphis. Oh, ela era
322
extremamente arrogante. Porém, pouco mais de uma semana da minha hospitalidade a fez ver a luz e
ela veio para mim de vontade própria.
— Pensa que me assusta — disse Alaina — com essa descrição nojenta das suas conquistas?
— Assustar? — Jacques parou de andar e os olhos negros a examinaram de alto a baixo. — Ora, é
claro que não, ma chérie. Se eu quisesse assustá-la, chamaria Gunn ou uma dezena dos meus
homens. Gostariam muito de assustá-la. Na verdade eles disputariam o privilégio dos seus gritos.
Não quero assustá-la, Alaina, apenas destacar as vantagens da minha proteção permanente.
Dominando a vontade de vomitar, Alaina olhou para ele num silêncio desafiador.
Jacques começou a andar outra vez, dizendo em tom casual:
— Conheço algumas estalagens... várias na costa... outras bem no meio do pântano. Abrigam os
homens que não quiseram se expor aos perigos da guerra e fugiram... dos dois lados... procurando
um lugar de paz, longe do conflito.
— Desertores! — exclamou Alaina, com desdém.
— HUmm, pode ser isso. E há os que nem sempre são muito exigentes sobre a procedência da
mercadoria que querem vender.
Alaina disse o nome deles também:
— Piratas. Patifes, todos eles.
— Talvez. — Jacques tirou o chapéu e alisou a pluma brilhante.
— E existem muitos outros, homens que não suportam os rigores da sociedade civilizada. O único
senão é que há poucas mulheres entre eles. Elas não gostam da vida rude do lugar. Assim, os homens
ficam muito entusiasmados quando uma coisinha jovem e bonita é posta à sua disposição. Às vezes o
tratamento é muito rigoroso... pode-se dizer brutal mesmo. Ahhh... mas aí está, mademoiselle
MacGaren. — Pôs o chapéu na cabeça outra vez. — Aí está! Ora, se uma coisinha linda e jovem
passar alguns meses com esses homens, pense nas coisas que ela pode aprender. Como agradar um
homem... oh, de vários modos.
— Fez uma pausa e olhou para ela com as narinas dilatadas. — E quando voltar, ela vai dar valor aos
benefícios da vida da cidade... muito menos monótona e cansativa.
Alaina olhou demoradamente para ele e sua decisão foi como uma Porta fechando-se em sua mente.
Não podia ceder. Além desse ponto, havia somente a liberdade ou a morte. Ela descobriria um modo
de matar Jacques ou se matar.
323
— Espera me convencer da sua gentileza, senhor? — riu ela. Os olhos negros entrecerraram-se
ameaçadoramente. Deu um passo para ela, empertigando o corpo gorducho e pequeno.
— Eu a avisei, mademoiselle, não ria de mim. — O sotaque gutural da ralé apareceu outra vez.
— Ah, Jacques DuBonné! O eterno cavalheiro—zombou Alaina e continuou: — O senhor não se
adapta à sociedade fidalga, sr. DuBonné. É uma pena que nunca venha a saber por quê.
— Eu sou Jacques DuBonné. O cavalheiro de Nova Orleans! — Com o rosto rubro de raiva,
segurou rudemente os braços de Alaina e a atirou para longe da porta. — Eu sou Jacques DuBonné.
— Apontou para o próprio peito com o polegar. — Eu cheguei do rio sem nada!
— De uma casa-barco miserável, sem dúvida — disse Alaina, massageando o braço e afastando-se
dele.
— E agora sou rico! E metade da cidade é minha!
— Quer dizer que roubou metade da cidade — corrigiu Alaina, secamente.
— Dos preguiçosos e estúpidos incapazes de segurar o que possuíam — vociferou Jacques. — E dos
cegos ianques que vivem polindo os botões e desfilam pela rua nos seus belos cavalos. Eu faço meu
jogo e venço todos eles! Eu! Jacques DuBonné!
— O senhor nunca enfrentou homens de verdade, seu farsante. Faz seu jogo com mulheres velhas,
viúvas e crianças. — Alaina teve o cuidado de ficar do outro lado da mesa.
Os olhos de Jacques brilharam na luz fraca, e ele arreganhou os dentes amarelados num esgar,
avançando vagarosamente para ela.
— Eu já o vi se arrastar muitas vezes na frente de um homem — provocou Alaina. — Não passa de
um homenzinho miserável.
— Homenzinho. — O rosto dele se crispou. Lançou-se para a frente, fingindo que ia para a esquerda
e atacando pela direita, tentando segurar o braço de Alaina, mas ela desviou rapidamente. Então ele
ergueu a mão para atingi-la na cabeça, mas Alaina abaixou o corpo e pisou-lhe com o salto pontudo
no peito do pé. Ele soltou um grito de dor, e Alaina escapou, deixando um pedaço do vestido na
mão dele.
— Vou lhe dar uma lição, sua cadelinha! — rosnou DuBonné, manquitolando para ela. — Você vai
se arrastar e me chamar de patrão DuBonné, como uma negra porca.
— Está se traindo! Você é um porco, com toda a finura de um porco. — Alaina girou o corpo,
desviando-se do ataque. — Tropeça
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nas próprias botas de couro fino — disse ela, recuando. — Sente-se muito melhor descalço na lama.
Pareciam dois animais selvagens, semi-agachados, um rodeando o outro.
— Pensa que eu me entregaria a gente da sua laia? Pensa que pode me levar viva para um dos seus
imundos chiqueiros? Eu o servi com água suja e esfregão, senhor, e se vier atrás de mim, vai ter
muito, muito mais do que isso, seu filhote de corvo arrogante.
Perdendo a paciência, Jacques, com um berro de raiva, saltou sobre ela, agitando os braços,
descontrolado. Alaina atacou com o punho fechado e embora não tivesse feito pontaria, atingiu o
francês no meio das pernas. DuBonné amoleceu o corpo, procurando se apoiar nela, com os olhos
vidrados e sem poder respirar. Alaina tentou empurrá-lo e sua mão escorregou sob o casaco do
homem, até a axila. Num reflexo, ela segurou o cano da pequena pistola e, encostando o ombro no
peito dele, retirou a arma do coldre.
Jacques segurou o pulso dela com a mão esquerda. Sua atenção estava dividida entre a luta e a dor na
virilha. Alaina torceu o pulso e mordeu o polegar do homem até ele recuar com um berro, sem largar
a mão que segurava a arma. A mão e a pequena pistola chocaram-se com força contra a cabeça dele e
a arma disparou. Um orifício redondo apareceu na orelha de Jacques, um pouco antes do sangue
começar a escorrer. Ele recuou cambaleando e gemendo, mas ainda vivo e apenas levemente ferido.
Alaina tentou armar o segundo cano da arma que ela não conhecia. Jacques apanhou a lâmpada da
mesa e a ergueu acima da cabeça. Alaina armou a pistola e, apontando para a lâmpada, fechou os
olhos e atirou. O estampido ecoou, misturado ao ruído do vidro quebrado e com o grito de Jacques.
Alaina abriu os olhos e viu Jacques de pé, com o braço erguido e em chamas, e óleo e vidro por toda
a parte. No instante seguinte todo o lado direito de Jacques estava em chamas, e com outro grito
estridente ele caiu no chão, rolando desesperado e espalhando fogo onde encostava. O homem em
chamas levantou-se, apoiado no fardo de algodão, e apanhou o brocado de seda para apagar o fogo.
Com uma expressão maligna, DuBonné, ignorando o fogo que tomava metade da sala, levou a mão
esquerda à parte de trás do Pescoço e tirou vagarosamente o estilete longo e afiado.
— Você ganhou o lugar em que vai morrer! — A voz tensa e
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sibilante misturou-se com o estalar das chamas. Aproximou-se de Alaina e ela ergueu a arma outra
vez.
— Ainda não está satisfeito?
— Está vazia! — disse ele, com um esgar de dor e de desprezo. — Só tem dois tiros.
Ouviram um grito fora da sala e depois o barulho estrepitoso da porta, espessa, mas muito antiga,
sendo despedaçada. Alaina eJacques voltaram-se para o vulto negro e enorme que se erguia do chão,
sobre a madeira da porta. Era Saul.
Alaina gritou o nome dele e viu Gunn estirado no corredor. Jacques recuou rapidamente para o meio
das chamas e com um único movimento empurrou a mesa para cima de Saul. O estilete voou da mão
do francês e com um grito de raiva, ele subiu no fardo de algodão e içou o corpo através de um
pequeno alçapão entre as vigas do teto.
O fogo cresceu, as chamas atingiram as mercadorias empilhadas contra a parede, e a fumaça invadiu
a sala. Saul segurou a mão de Alaina e a levou para a porta. Gunn gemeu e fez um movimento
quando passaram por ele e correram pelo corredor estreito, forrado com os corpos inertes dos
outros guardas. Puxando Alaina pela mão, ele subiu um lance de escada e entraram num grande
armazém repleto de fardos de algodão, alguns com a marca em letras grandes "C.S.A.", riscada e
substituída pelas letras "U.S.N". Quando a frota de navios de Porter navegou para o norte,
comentou-se que a marinha da União chamava-se agora Associação dos Ladrões de Algodão, da
Marinha dos Estados Unidos. Aqueles eram alguns dos fardos que tinham dado origem a esse
comentário.
Murmurando uma desculpa, Saul passou o braço forte sob as pernas de Alaina, deitou-a sobre seu
ombro e correu. Uma luz bruxu-leante aparecia no armazém quando encontraram a porta e saíram.
Ouviram gritos e depois uma voz estridente: "Encontrem a mulher! Encontrem a mulher! Mil
dólares para quem a trouxer de volta!"
— Uh! — disse Alaina, sacudida pelos passos longos e rápidos de Saul. — Os... ianques...
ofereceram... muito... mais.
Correram pelo cais, entre o rio e a fileira de armazéns. Finalmente, Saul entrou numa viela estreita.
Alaina quase ficou sem ar quando ele desceu correndo a margem alta do rio e entraram no bairro
pobre e superpovoado dos negros. Saul a pôs no chão e seguiram mais devagar. Saul apanhou um
cobertor estendido para arejar, numa cerca de madeira, e cobriu com ele os ombros de Alaina,
escondendo o vestido
326
de cor viva e formando um capuz para esconder o rosto. Ouviram os gritos dos que os perseguiam e
esconderam-se num abrigo de zinco, enquanto eles passavam. As chamas erguiam-se agora do teto
do armazém de Jacques, devorando com avidez o algodão empilhado. As atenções concentravam-se
no incêndio.
Nem mesmo os asseclas de Jacques gostavam de ficar muito tempo no bairro negro, e os fugitivos,
escondidos, os ouviam reclamar. Depois de algum tempo, Saul conduziu Alaina pelas ruas estreitas,
até a casa do amigo, onde deixara o cavalo.
Alaina não podia voltar para a casa dos tios, nem para a sra. Hawthorne. Todos sabiam que o dr.
Brooks era seu amigo e ela não podia se esconder na loja a de Angus. Um único lugar era seguro
naquele momento.
Quando Saul voltou, encontrou a casa dos Craighugh numa agitação trepidante. Ele explicou que
Alaina estava a salvo e relatou o plano que haviam feito. Era quase meia-noite quando ele saiu com
uma mochila e um grande embrulho, que foram postos no bagageiro da charrete. Saul saiu sem
pressa, aparentemente sem notar os dois homens que o seguiam a uma distância discreta.
Quando Saul já estava longe, Angus e Jedediah tiraram uma grande mala do estábulo e a puseram na
carroça velha e decrépita. Logo depois, Jedediah saiu com a carroça e seguiu na direção oposta à de
Saul. Um homem o seguiu também.
Dulcie e Angus passearam calmamente em volta da casa, até se certificarem de que não tinha mais
ninguém vigiando, e então ele abriu um pequeno portão atrás do estábulo, raramente usado, e a filha
mais velha de Dulcie, Cora Mae, passou por ele, puxando o velho Tar, atravessou o jardim do
vizinho, montou e, seguindo por ruas estreitas e secundárias, foi para o hospital. O velho relógio de
pé do dr. Brooks batia as badaladas da meia-noite quando a governanta foi acordada por batidas
insistentes na porta. Resmungando, ela vestiu o roupão e abriu a porta da cozinha. Uma jovem negra
a esperava pacientemente.
— Tenho um recado para o dr. Brooks.
— Saia daqui, menina — disse a governanta. — Não vou acordar o doutor a esta hora da noite. Volte
amanhã.
Ela fechou a porta e a menina bateu outra vez com insistência.
— Tenho um recado importante para o doutor — repetiu ela, quando a porta foi aberta outra vez.
— O patrão disse que tenho de
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dar para ele e não deixar ninguém me atrapalhar. Diga ao doutor que é sobre miz Lainie.
A governanta olhou zangada para a menina. Cora Mae sorriu e começou outra vez.
— Tenho um recado importante para o doutor...
Embora sonolenta, a governanta sabia reconhecer uma pessoa persistente.
— Eu sei. Você já disse! — Sacudiu o dedo para Cora Mae. — Vou falar com o doutor e se ele não
disser que é importante, volto aqui e lhe dou uma surra.
Cora Mae esperou pacientemente do lado de fora da porta, com as mãos cruzadas na frente do
corpo. Depois de alguns momentos, ouviu voz de homem e o barulho de chinelos descendo a
escada, acompanhado pelos resmungos da governanta.
— As crianças hoje em dia não têm mais respeito. Tirando os mais velhos da cama a essa hora da
noite.
A porta da cozinha se abriu, e o dr. Brooks apareceu, tentando amarrar o cinto do roupão com uma
das mãos, enquanto com a outra ajeitava os óculos.
— Entre, menina. Entre—disse ele.—Qual é o recado, Cora Mae?
Cora Mae olhou desconfiada para a governanta, que estava parada ao lado da lareira.
— Não posso dizer para mais ninguém, só para o senhor.
— Está tudo bem, Cora Mae. — O dr. Brooks olhou para a governanta por cima dos óculos. —
Tessie só vai ouvir do outro lado da porta. De qualquer modo, ela sabe de tudo que acontece nesta
casa.
Tessie fungou, ofendida, mas não se mexeu, e Cora Mae, tirando um envelope do bolso, entregou-o
ao médico. O dr. Brooks abriu o envelope, retirou a chave que ele continha e olhou para ela sem
compreender.
— Essa é a chave do... ah... — Cora Mae olhou para o teto por um momento — capitão doutor de
miz Roberta... da sua... sua casa lá no Pontalba.
O dr. Brooks ergueu as sobrancelhas.
— Quer dizer o apartamento do major Latimer, no Pontalba? Cora Mae balançou a cabeça
afirmativa e vigorosamente.
— Sim, senhor, é para isso essa chave.
— E o que tem a ver com a srta. Alaina?
— B-o-o-m. — Cora Mae ergueu a mão aberta e começou a
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contar nos dedos. — Miz Lainie, ela diz que não está mais zangada com o "casamento"... e que ela
vai fazer com... com o "homem da lei?" Mas algum homem — ela passou para o dedo seguinte —,
Jack peBone, acho que era. Ele pegou miz Lainie e arranjou encrenca para ela, — Cora Mae voltou
para o primeiro dedo, balançou a cabeça e passou para o terceiro.—Miz Lainie diz... ou Saul diz que
Miz Lainie diz... para o senhor ir apanhar ela com a chave para os dois irem para o Pon... Pon... o
lugar que essa chave abre, e esperar lá dentro. — Cora Mae passou para o quarto dedo e pensou por
um momento. — É isso mesmo! Então o seu Angus, ele vai trazer o homem da lei... e o pastor... e
vocês vão ter o casamento.
Cora Mae abaixou a mão e a escondeu atrás das costas, com um largo sorriso, orgulhosa do sucesso
da sua missão, enquanto o médico pensava no que acabava de ouvir, e Tessie olhava para a parede,
resmungando entre dentes.
O dr. Brooks olhou para a chave e começou a repetir bem devagar:
— Vamos ver se eu entendi... srta. Alaina concorda com o casamento.
Cora Mae ergueu a mão e começou a contar nos dedos. O médico continuou:
— Porque Jacques DuBonné a apanhou e isto provocou muita encrenca. E eu devo pegar esta chave,
apanhar a srta. Alaina e ir com ela para o apartamento do major Latimer, onde vamos nos encontrar
com Angus, o advogado e o pastor.
Cora balançou a cabeça afirmativamente, e então o sorriso feliz desapareceu e ela olhou apreensiva
para o polegar erguido.
— Sim, senhor, sim senhor! — disse preocupada. — Mas tinha mais uma coisa. Eu usei todos os
dedos quando eles falaram. Tem mais alguma... — Calou-se e ficou pensativa.
O médico e a governanta esperaram, contendo a respiração.
— Oh! — O sorriso voltou, maior do que antes, e ela abaixou o polegar, com a outra mão,
orgulhosa. — Miz Lainie está esperando lá... onde ficavam os soldados rebeldes feridos.
— No hospital? — perguntou o dr. Brooks. — Na antiga ala dos confederados? É claro. Eu devia
ter adivinhado. Você fez muito bem, Cora Mae, e espero que a srta. Alaina — ele olhou para a
governanta que balançou a cabeça, confusa — esclareça as dúvidas que eu possa ter. Mas diga-me
uma coisa, menina, por que veio às escondidas e pela Porta dos fundos?
329
— Saul diz que aquele homem DeBone tem um bando de ralé branca na rua, procurando miz Lainie,
e a gente precisa ter cuidado para eles não acharem ela.
— Muito bem, Cora Mae. Você tem condução para voltar?
— Eu tenho o velho Tar. Está lá adiante, na rua.
— Então, volte para casa, com o mesmo cuidado com que veio até aqui.
Cora Mae saiu, e ele voltou-se para a governanta:
— Vou me vestir. Depois, vou apanhar a charrete e o cavalo no estábulo do hospital. Se alguém
perguntar, diga que fui chamado ao hospital.
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SEGUNDA PARTE
Capítulo Vinte e Seis
UMA LEVE NEBLINA pintava a superfície do rio de cinza-avermelhado, diluindo as cores do
outono na floresta espessa. Encostada na amurada do convés superior, Alaina olhava a paisagem do
norte, naquela faixa estreita de água cheia de ilhas. Penhascos cinzentos e baixos erguiam-se nos dois
lados. Então uma corrente mais escura aos poucos avançou da margem leste, até que, ao chegar a um
rochedo mais alto, se transformou em outro rio de águas mais claras que desaguava no Mississippi.
Alaina foi informada de que aquele era o Saint Croix e que dentro de algumas horas chegariam ao
fim da viagem.
Mais uma vez um barco fluvial a levava para longe do cheiro do fogo e das cinzas, para uma nova
fase de sua vida. Não podia negar um sentimento de expectativa, mas uma sensação estranha a
torturava. A idéia de que era agora mulher de Cole Latimer era estranha e perturbadora, e só com
esforço conseguia disfarçar sua inquietação. Quanto mais se aproximava do seu destino, mais os
pensamentos tumultuavam-lhe a mente e sentia-se agitada depois de uma noite insone. Naquela
manhã levantou-se antes do nascer do dia, arrumou seus pertences e guardou a valise de vime junto
com a maleta de couro na outra mala maior, dentro da qual começara sua viagem. Caía uma garoa
fina, e Alaina decidiu não usar um dos seus melhores vestidos, temendo que a chuva e a lama o
e
stragassem. Preferiu o vestido preto, enfeitado agora com a renda bege.
333
Sua pressa foi inútil porque teve de esperar a manhã inteira, tendo como única distração a paisagem
variada e seus pensamentos. Estava impaciente e irritada, não com a pressa de chegar, mas por
ansiedade e medo. Esperara encontrar-se com Cole pelo menos com a aparência digna, mas
decididamente não estava num dos seus melhores momentos. Receava ser confundida com uma
parente pobre. Porém, seu sangue escocês não permitia que expusesse nenhuma peça do novo
guarda-roupa ao acaso dos elementos, só por uma questão de orgulho. O chapéu preto e o velho
casaco cinza confederado bastavam para protegê-la do vento frio e úmido, embora não fossem
elegantes.
O vermelho-ferrugem da floresta de outono, gradualmente, foi substituído por uma ou outra casa,
perto da margem. Depois de uma curva, além da última ilhota, um rochedo separava os rios como a
proa de um barco enorme. No topo erguia-se um forte com muros de pedra onde tremulava a
bandeira azul e listrada da federação. Uma estrada íngreme na face esquerda da colina descia até a
margem estreita, onde se enfileiravam várias casas de madeira ao lado de um cais de pedra. Quando o
barco se aproximou da margem, o capitão deixou a cabine de comando e orientou o timoneiro até a
embarcação encostar no cais.
— Podem amarrar! — gritou ele para a tripulação no convés inferior. — Desliguem os motores! —
O homem abaixou as defensas. Com um único apito, estridente e breve, o barco parou e os motores
silenciaram.
Várias carroças esperavam a chegada do barco, e um pouco afastada via-se uma berlinda toda
fechada. Dois homens estavam ao lado dela e com a convicção das mulheres, Alaina reconheceu no
mais alto e esbelto o seu marido, Cole Latimer. Os passageiros começavam a desembarcar, mas as
pernas de Alaina pareciam de chumbo. Ficou parada, imóvel, sem tirar os olhos do homem apoiado
numa bengala fina e preta.
Nesse momento, o sr. James saiu apressadamente da sua cabine com um maço de documentos numa
das mãos e a valise na outra. Vendo Alaina, o pequeno e elegante advogado aproximou-se e ficou ao
lado dela. Segurando a valise entre as pernas e a amurada, ele ficou em silêncio.
Uma rajada de vento com chuva miúda e fria varreu o convés, e Alaina aconchegou mais seu casaco,
pensando nos acontecimentos que tinham feito de duas pessoas tão diferentes marido e mulher. Cole
esperava no cais, como um moreno lorde teutônico, combinando perfeitamente com a paisagem
selvagem e chuvosa. Mesmo antes de trocarem as primeiras
334
palavras, Alaina estava convencida de que tudo fora um terrível engano. Logo ela estaria deixando o
abrigo seguro e temporário do navio e saindo para um novo mundo, totalmente estranho.
O sr. James acenou até captar a atenção de Cole. Erguendo a cabeça, ele acenou também. Quase
imediatamente olhou para a mulher encostada na amurada. Alaina sentiu os joelhos fracos, esperando
algum sinal de reconhecimento. No Sul, um cumprimento discretamente caloroso era de praxe
nessas ocasiões, mas Cole não demonstrou de modo algum tê-la reconhecido. Sequer se afastou da
carruagem.
O sr. James levou a mão respeitosamente à aba do chapéu e disse:
— Se está pronta, minha senhora, podemos desembarcar agora.
Com um gesto afirmativo, juntando toda a coragem, ela acompanhou o advogado na escada. No
convés inferior encontraram Saul, com toda a sua bagagem numa trouxa de cobertor. Saul pôs no
ombro a mala de Alaina e acompanhou os dois.
Com uma palavra para o cocheiro, Cole, apoiado na bengala, caminhou lentamente para o navio. O
ar frio penetrava a fazenda do casaco pesado que ele tinha nos ombros e parecia se instalar na perna
ferida. A viagem fora longa e a imobilidade, na carruagem, deixara sua perna rígida e dormente.
Nesse momento ele desejou que o navio, em vez de parar ali, em Forte Snelling, terminasse a viagem
em Saint Anthony, muito mais acessível para ele. Mas ele trazia correspondência e suprimentos para
o forte e dali seguiria para o rio Minnesota.
Quando se aproximou para receber Alaina, Cole respirou aliviado ao ver Saul. Temia que o fiel
criado não tivesse sobrevivido à guerra e suas conseqüências trágicas. Mas voltou toda a atenção para
Alaina e franziu as sobrancelhas sob o chapéu de copa baixa e abas largas. Estava ansioso para saber
a disposição de espírito de Alaina. Percebeu um arde seriedade na jovem que ele só conhecia como
temperamental e imprevisível. Não havia nela nada da frivolidade comum às jovens da época. Seus
movimentos tinham uma graça fluida, mas com uma intensidade de propósito que era ao mesmo
tempo encantadora e desconcertante. Era como se, depois de examinar todas as alternativas, tivesse
feito sua escolha da qual não pretendia desistir. Talvez as dificuldades e atribulações da guerra a
tivessem roubado de todo senso de humor. Cole não viu naquela mulher nem sinal do estabanado
"Al". A Alaina que desembarcava, descendo a rampa de madeira, parecia fria e distante como uma
rainha nômade, procurando ignorar o máximo possível um evento desagradável. Cole compreendia
335
a relutância de Alaina em viver no meio dos odiados ianques e, pior ainda, estar casada com um
deles, e preparou-se para o pior. Estava agora fechando o círculo, saindo das fúrias constantes de
Roberta para o frio desdém da prima, e o futuro não parecia sorrir para ele.
Alaina observou discretamente o marido quando ele parou ao lado da rampa de desembarque. Sob o
casaco verde, posto casualmente sobre os ombros, ele parecia mais magro. Estava vestido de negro, e
apenas o colete de brocado prateado e a camisa de seda muito branca quebravam a severidade do
traje. Parecia um jogador da margem do rio, só que mais sofisticado. Era a primeira vez que o via
sem a farda azul e dourada, e Alaina teve a impressão de estar vendo um estranho, o que a assustou,
especialmente porque a intensidade dos olhos azuis parecia chegar até sua alma. Esquecera do
quanto eram profundos e perscrutadores. Pareciam possuir o dom mágico de descobrir a mentira
mais bem disfarçada ou escondida. Com esforço, Alaina controlou o impulso de voltar à cabine para
fugir àqueles olhos.
A mudança, compreendeu ela, era mais profunda do que a roupa que ele vestia. Aos poucos, Alaina
se deu conta de que aquele era um homem que nenhum deles conhecia. Cole entrara em suas vidas, e
Roberta viu nele a salvação da vida tristonha do Sul. Agora, havia nele a sugestão de uma ousadia
ameaçadora. Parecia capaz de se manter distante do mundo, mas apenas com sua presença dominava
o ambiente, como agora. Cole levantou o chapéu para ela, e Alaina quase esperou vê-lo bater os
calcanhares com uma curvatura zombeteira. Mas o estilhaço de metal na perna limitava bastante sua
agilidade.
— Espero que tenha feito boa viagem, minha senhora.
A voz tinha a mesma sonoridade profunda, e Alaina perguntou a si mesma se ele teria alguma falha
importante da qual ela pudesse retirar alguma força. Cole ergueu as sobrancelhas quando notou o
casaco de lã e o vestido preto.
— Vestida de luto, Alaina? — sorriu ele, com olhar irônico. — Geralmente o casamento é motivo de
alegria e riso.
Alaina abriu a boca para responder, mas uma rajada de vento, com chuva fina e gelada, quase a fez
perder o fôlego. Virou o rosto rapidamente, e Cole, adiantando-se, parou na frente dela, como um
escudo contra o vento e a chuva, tendo cuidado para não tocá-la.
Saul pôs a mala no chão, na frente deles, levantou a gola do casaco e bateu com os pés no chão para
ativar a circulação. Seus sapatos muito usados não eram proteção suficiente contra o frio e a
umidade.
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— Por Deus, homem! — Cole estendeu a mão. — Será que ninguém o informou sobre a
temperatura aqui no norte?
— Não, senhor. — Saul sorriu, mostrando os dentes muito brancos. — Mas estou aprendendo bem
depressa, senhor.
Alaina achou que devia explicar a presença de Saul.
— Eu tive de trazê-lo comigo... pela mesma razão que precisei vir
.começou como quem pede desculpas, mas logo compreendeu que não precisava nem dar
explicações. — Pode estarcerto, major Latimer, que não estamos pedindo mais caridade. Paguei a
passagem dele, e Saul pode arranjar trabalho. Se não com o senhor, com outra pessoa qualquer.
— Com outra pessoa qualquer? — disse Cole, incrédulo. — Minha senhora, não quero nem ouvir
falar nisso. O homem salvou a minha vida. — Olhou para Saul. — Estou precisando de um novo
capataz para o trabalho no campo. Você tem alguma experiência? — Saul fez um gesto afirmativo, e
Cole resolveu: — O lugar é seu, se quiser.
Com um largo sorriso, Saul apanhou outra vez a mala e a levou para o bagageiro da carruagem de
Cole.
Sem dar tempo a Alaina para agradecer, chamou o cocheiro.
— Olie, acompanhe a sra. Latimer à carruagem. Eu volto logo.
— Sim, decerto, dr. Latimer.—O homem forte, de cabelos claros e aparentando mais de quarenta
anos, levantou o boné de aba estreita e disse para Alaina: — Olie vai tirá-la deste frio, sim?
Alaina controlou o desagrado por ser entregue aos cuidados de outra pessoa, pensando que talvez
fosse melhor assim, pois podia evitar o olhar perscrutador de Cole. Com um sorriso frio, ela
acompanhou o homem até a carruagem.
Cole voltou-se então para o sr. James com ar interrogativo, depois, olhando por sobre o ombro do
advogado admirou o andar e o corpo gracioso de Alaina. Admirado, sentiu que a lembrança de uma
única noite voltava agora a aquecer seu desejo. Antes de subir na carruagem, Alaina voltou-se e olhou
para os dois homens e, sobressaltada, viu os olhos azuis fixos nela com atenta intensidade. Cole
olhava para ela como se a tivesse apanhado despida num lugar público. Retribuindo o olhar com uma
expressão altiva, apoiou a mão na que Olie estendia e entrou na carruagem. Ela sabia muito bem o
que o advogado estava contando para Cole.
Uma manta de peles estava sobre o banco traseiro, e embora Parecesse quente e convidativa, Alaina
sentou-se no outro banco, de costas para o cocheiro. Enquanto esperava, procurou relaxar, olhando o
rio
sinuoso, mas sua mente via apenas aqueles olhos azuis. Seus
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lábios recurvaram-se num leve sorriso. Aquele ianque podia ignorá-la, porém cedo ou tarde teria de
notar sua presença.
O Sr. James entregou a Cole a certidão de casamento.
— Depois que saímos de Nova Orleans, o resto da viagem foi tranqüilo — disse ele.
Cole parecia preocupado.
— Disse que ela parecia relutante em aceitar o contrato antes de ser raptada por Jacques?
— Exatamente, dr. Latimer. Quando soube que o senhor não ia comparecer, ficou furiosa e saiu
correndo da casa. — Pigarreou, discretamente. — Se não me engano, ela disse que o senhor podia
apodrecer num lugar muito quente antes que consentisse com esse casamento.
Cole passou a mão na perna dolorida e praguejou em voz baixa. A pequena atrevida! Sempre
orgulhosa e teimosa demais para seu próprio bem, e se isso não bastasse parecia ter uma forte
tendência para se meter em encrencas.
— Os homens de Jacques estavam decididos a encontrá-la, senhor — informou o sr. James. —
Tivemos de esconder sua esposa dentro de uma mala para que pudesse embarcar sem ser vista. Na
verdade, ela armou uma grande confusão no cais do porto, inclusive um incêndio que destruiu todo
o armazém de Jacques. Imagino que o sr. DuBonné deve estar escondido, porque o xerife ficou
sabendo dos fardos de algodão que ele escondia no armazém.
Cole fez um gesto brusco na direção de uma das carroças.
— Murphy veio conosco para apanhar alguns suprimentos. Se quiser, pode voltar para casa com ele.
A sra. Latimer e eu vamos parar num hotel e não sei quando iremos para casa. Se não fosse isso, eu o
convidaria a nos acompanhar.
— Não é preciso, senhor. Guardei minha charrete e o cavalo aqui perto. Agradeceria se Murphy
quiser me levar até o estábulo.
Cole tirou a carteira do bolso e entregou várias notas ao advogado.
— Aqui está. Dê isso a Murphy e, por favor, diga-lhe para arranjar roupas quentes para Saul, antes
que o pobre homem morra de frio.
— Certamente, dr. Latimer. — O sr. James apanhou o dinheiro e correu para a carroça, enquanto
Cole olhava pensativo para a carruagem e para o vulto de Alaina dentro dela.
Cole deixou o casaco e o chapéu no banco desocupado e sentou-se ao lado dela. Apanhou a manta
de peles e a pôs sobre os joelhos
338
de Alaina, inclinando-se para arrumar a manta atrás dela. Evitando olhar para ele, Alaina sentiu o
perfume discreto da colônia de Cole. Queria ficar o mais distante possível dele e para isso ergueu
entre os dois uma barreira de silêncio. Fora uma afronta ao seu orgulho saber que ele a aceitava como
esposa mas não a queria como mulher. Se fosse outro homem, ela duvidaria da sua virilidade, mas no
caso de Cole sabia que não se tratava disso. Fossem quais fossem as limitações impostas pelo
ferimento, a impotência não era uma delas. Na verdade, no seu último encontro em Nova Orleans
ele havia demonstrado que continuava com suas tendências de conquistador insaciável. Agora que
sabia das condições determinadas por ele para o casamento, o fato de Cole tê-la desejado fisicamente
era uma ofensa. Seu orgulho ansiava por vingança.
Com um grito do cocheiro, os cavalos partiram, e Cole segurou a alça de couro para firmar o corpo.
Alaina notou que a única concessão que ele fazia ao frio era cobrir a perna ferida com uma ponta da
manta. Cole não parecia afetado pela temperatura inclemente.
Alaina só prestou atenção ao movimento da carruagem quando Cole estendeu o braço e firmou a
mão na janela, tocando o busto dela com o cotovelo, para evitar que caísse para a frente.
Para Alaina, o gesto muito íntimo era uma afronta. Como ele se atrevia! Abriu a boca para reclamar
quando a carruagem começou a subir uma ladeira, e se não fosse o braço de Cole ela teria caído de
bruços no chão. Com uma exclamação abafada, segurou com força o braço protetor, sem perder a
dignidade.
Olie assobiou para os cavalos e estalou o chicote. Esticando os arreios, os animais começaram a
subida íngreme. Finalmente, num último esforço, chegaram ao topo da colina, e o cocheiro os fez
seguir a passo mais lento. Agora que tudo estava calmo, Cole passou para o outro banco, de onde
podia apreciar melhor a vista. Percebendo que ele não estava interessado em nada que fosse
superficial, Alaina sentia o olhar que penetrava no mais íntimo do seu ser.
Pode olhar! Pensou Alaina indignada, virando o rosto para a janela. Sem dúvida, ele comprou pelo
menos esse direito.
Passaram pelo portão do forte e pela área aberta, fora dos muros. O interior da carruagem escureceu
quando entraram numa floresta de álamos enormes, e cerca de dois quilômetros adiante a estrada
descia Para um vale pouco profundo. Logo estavam passando pelo leito Pedregoso de um pequeno
regato. Alaina ouviu o murmúrio da água
339
caindo mas não podia ver nenhuma cachoeira. A carruagem seguia, balançando e saltando, e ela não
tirou os olhos da janela, como se estivesse muito interessada na paisagem. Aquele olhar constante e
indiscreto a fazia ferver de indignação. Alaina amaldiçoou o dia em que conheceu Jacques DuBonné.
Se não fosse por ele, não estaria ali, casada com aquele ianque arrogante que tinha a audácia de
examiná-la como se ela fosse um petisco raro posto à sua disposição. Sentiu-se quase satisfeita por
ter escolhido o vestido de luto, pois com qualquer outro ia sentir-se despida e violentada por aqueles
olhos azuis.
De repente, percebendo que Cole estava falando com ela, Alaina voltou-se. Aguardava, com o
charuto numa das mãos e o fósforo na outra, sua resposta.
— Você se importa? — Ergueu o charuto.
— Não, é claro que não. — Agora ele vai fumar e olhar, pensou ela, virando outra vez para a
paisagem lá fora. Passavam agora por ruas cheias de lama e água, na entrada de uma cidade que
crescia rapidamente, mas Alaina não tinha tempo para pensar no que via. Então, Cole falou outra
vez:
— Quer por favor tirar esse chapéu ridículo? — disse, abrindo um pequeno orifício na ponta do
charuto com o fósforo apagado. — Eu gostaria de vê-la melhor.
Fervendo por dentro, ela obedeceu e prendeu uma mecha de cabelos no coque, na nuca. Tendo se
vestido e se penteado apenas com a ajuda de um pequeno espelho, a bordo, Alaina sabia que, além
de parecer uma indigente, estava com o cabelo em desordem. Aexpressão de desagrado de Cole
contribuiu mais ainda para seu constrangimento. Ele estava praticamente destruindo a ponta do
charuto com o fósforo.
— Usa essa carranca para assustar crianças, major?
Irritado, Cole pôs o charuto na boca, acendeu o fósforo na sola do sapato e levou a chama à ponta
do charuto. Os olhos azuis a observavam através da fumaça que espiralou no ar.
Alaina passou a mão no vidro da janela, procurando um meio de escapar daquele olhar audacioso.
— Ouvi muitas histórias de índios selvagens, de neve mais alta do que um homem e de grandes
lobos andando nas ruas. Não vejo nada disso. Apenas uma cidade crescendo no meio de uma
floresta.
— Essas histórias tinham algum fundamento, minha senhora. — A intensidade dos olhos azuis a fez
corar. Cole fez um gesto com o charuto. — Essa manta é feita com a pele de vários lobos de
inverno.
340
Alaina passou a mão no pelo brilhante e macio.
—- Eu os imaginava esbranquiçados, com pêlo curto e áspero.
Cole fez uma careta de dor quando a carruagem passou por um buraco na rua. Estavam chegando ao
centro da cidade, onde algumas construções de tijolos e pedras espalhavam-se no meio de outras
menores. Algumas eram feitas com toras de madeira e fachadas falsas, outras eram estruturas
monolíticas com dois, três, e até quatro andares. Calçadas altas de madeira ligavam um prédio ao
outro, uma necessidade, pois as ruas, sem calçamento, eram verdadeiros rios de lama.
Cole tirou um frasco de bebida do bolso e tomou um longo gole. percebendo a pergunta silenciosa
nos olhos dela, disse:
— Aquele pedaço de metal me incomoda demais. Tem um modo muito desagradável de me fazer
lembrar da sua presença.
— O major Magruder tinha uma idéia melhor — murmurou ela. — Ainda não mudou de opinião?
Cole fungou com desprezo e tomou outro gole de bebida.
— É melhor sentir a dor, que serve para lembrar que a perna ainda está aí, do que sentir coceira
numa perna que não existe mais.
Cole inclinou-se para a frente e pegou o casaco dela com dois dedos, examinando a fazenda.
— Por que não usou as roupas que eu mandei?
Com olhar distante, Alaina lembrou seu primeiro encontro com o sr. James e com a caixa de couro.
Fora preciso um rapto para que o advogado não voltasse com uma resposta negativa. Alaina queria
poder dar essa resposta agora mas sabia que o confronto direto levaria a uma discussão séria. Pelo
menos por enquanto, era melhor evitar qualquer coisa que pudesse terminar como o último encontro
dos dois. Procurando falar com a maior suavidade possível, ela abordou um assunto que feria
extremamente seu orgulho.
— Dr. Latimer, o senhor me prestou um grande serviço, enviando seu representante para o
casamento e permitindo que eu escapasse de uma situação aflitiva. Por isso, eu lhe devo muito.
Muito mais do que poderei pagar. Parece que preciso estar sempre lembrando que não sou rica...
— Você é minha mulher. — A voz era suave, embora o sorriso fosse zombeteiro.
Alaina balançou a cabeça obstinadamente, corando de frustração Por ter de explicar.
— Repito. Não sou rica, mas pretendo pagar tudo que gastar
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comigo. Alguns meses devem ser suficientes para que os federais apanhem Jacques, agora que sabem
tudo sobre ele. Talvez na primavera eu possa voltar para limpar meu nome. Quero que saiba que me
aborrece muito ter de depender da sua indulgência, até então. Sendo assim, se eu aceitar as roupas,
belas e caras como são, estarei aumentando uma dívida que dificilmente poderia pagar como
pretendo.
Cole inclinou-se para a frente, até ter certeza de que os olhos cinza de Alaina estavam vendo seu
sorriso de escárnio.
— Alaina Latimer, se você fosse capaz de se cuidar sozinha, não estaria aqui.
Alaina corou intensamente, reconhecendo a verdade. Até sua independência fora roubada, e deixava-
a furiosa o fato de ter de depender daquele homem. Por mais que quisesse negar, não podia. A
verdade era dolorosa, mas não tinha como negá-la. Porém, estava resolvida a não ser um peso para
ele, social ou financeiramente. Assim pelo menos poderia conservar um pouco da auto-estima.
Cole recostou-se no banco e tirou uma baforada do charuto, pensativamente.
— A roupa foi presente de casamento, Alaina, e não me agrada que você se vista como uma
enjeitada sem lar.
— Casamento?—riu ela, com desdém.—É assim que chama isto?
Com o rosto impassível, atrás da fumaça, ele disse:
— Ah, sim, o sr. James me contou que você não queria casar.
— Perdoe-me, major, por não estar disposta a me casar. Se tivesse escolha, não estaria casada. Mas o
sr. DuBonné deixou-me sem alternativas.
— É muita bondade sua, minha senhora — sorriu ele, com sarcasmo —, considerar-me o menor dos
dois males.
— O menor de dois males ainda é um mal, major Latimer. —-Alaina abaixou a cabeça e continuou,
calmamente: — Pensei que era o melhor que podia fazer, na ocasião. Posso ainda reconsiderar.
— Então sacrificou-se, casando comigo. Ainda sou o inimigo?
— Não foi nenhum sacrifício — sua voz era dura e seca. — O casamento pode ser anulado, se o
aborrece. Quanto ao resto, não o considero como inimigo. A guerra terminou.
Cole bateu a cinza do charuto cuidadosamente e olhou para ela com ar de dúvida.
— Ao que parece, minha senhora, esta guerra está apenas começando.
342
Capítulo Vinte e Sete
A CARRUAGEM ENTROU em outra rua lamacenta e parou na frente de um prédio alto de tijolos.
Uma placa num canto da construção de cor creme o identificava como Nicollet House. Para facilitar
a descida de Cole, com a perna ferida, Olie parou bem junto à calçada de madeira. A chuva estava
mais forte, e num instante o casaco e o chapéu de Cole ficaram encharcados.
— Tem bagagem? — perguntou um jovem musculoso, sem deixar a proteção da porta do hotel.
Alaina ergueu os olhos surpresa quando Cole apontou para o bagageiro da carruagem. Não esperava
ficar num hotel com Cole.
Quando ela chegou na porta da carruagem, Cole a segurou pela cintura e, levantando-a, levou-a para
debaixo do pequeno terraço no segundo andar, acima da porta principal, que formava uma espécie de
marquise.
Atravessando o saguão, de braço com o marido, Alaina sentiu o contraste das suas roupas com o
luxo do ambiente. Logo percebeu também que atraíra a atenção de quase todos os homens que
estavam Por perto. Certa de que não merecia aquela admiração, perguntou a si mesma com ironia, há
quanto tempo eles não viam uma mulher.
Apontando para a escada, Cole deu a chave para o jovem musculoso, que imediatamente subiu com a
mala. Com a mão nas costas da mulher, num gesto possessivo, Cole a conduziu através do saguão.
343
Alguns homens o cumprimentaram rapidamente, mas vendo a expressão nos olhos dele, desviaram o
olhar e continuaram sua conversa.
No restaurante quase vazio, eles jantaram tranqüilamente, embora para Alaina a expressão
carrancuda de Cole parecesse ameaçadora. Ela estava praticamente devorando a sobremesa, depois
de tanto tempo sem comer nenhum doce, quando o jovem voltou com a chave e afastou-se
satisfeito, contando a gorjeta.
Saíram do restaurante e depois de subir o primeiro lance da escada, Alaina protestou contra a mão
nas suas costas, que a empurrava sem nenhuma gentileza. Cole parecia não perceber a força que
estava fazendo.
— Major, por favor! Tem medo de me perder?
Cole abriu a porta do quarto, e respondeu, empurrando-a para dentro:
— Minha experiência com a senhora me fez compreensivelmente cauteloso. A senhora tem o hábito
de desaparecer nos momentos mais estranhos, deixando um homem em situação bem difícil.
A resposta veio logo:
— Se eu tivesse ficado, senhor, ia se considerar obrigado a casar comigo e não com Roberta. Será
que ia achar melhor?
— O menor dos dois males, sem dúvida — zombou ele. Alaina sentiu que corava sob o olhar dele.
— Como disse, minha senhora, melhor eu do que Jacques. — Fechou a porta com a ponta da
bengala. — E melhor a senhora do que Roberta.
— Considerando as brigas entre os dois, não acho que seja um elogio — disse ela, secamente.
— Sim, é verdade que não gostávamos muito um do outro. — Pôs o chapéu e o casaco numa
cadeira. — Pensando bem, a senhora e eu nos damos muito melhor.
Alaina sentia-se tão vulnerável quanto naquela primeira noite. Atravessou o quarto, nervosa,
procurando pôr a maior distância entre os dois.
— Será que já esqueceu das nossas inúmeras discussões, senhor?
— Lembro-me de algumas vezes em que a senhora perdeu a paciência... como no hospital depois do
meu ferimento. Sem dúvida achou que meu desejo era um crime.
— O senhor era um homem casado! — disse Alaina, rapidamen te
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- E não gostei de ser apalpada e acariciada num lugar público onde qualquer pessoa podia ver.
— Peço desculpas, minha senhora. — Cole curvou-se com um sorriso irônico. — Eu devia ter
esperado o tempo e o lugar mais oportunos.
— Sabe que não é isso que quero dizer —respondeu, com dignidade.
— A senhora andava pelas enfermarias, erguendo muito mais do que o espírito dos soldados —
observou Cole, francamente. — Na verdade, o tenente Appleby parecia ansioso para fazer o papel
do garanhão, enquanto eu tinha de ficar deitado, vendo o tenentinho correr atrás da senhora como
um colegial um tanto avançado em anos. E a senhora permitia!
— Por que não? Era muito agradável ser cortejada por um cavalheiro, para variar, e, a despeito do
que pode ter imaginado, ele nunca deixou de agir como um cavalheiro. Se está lembrado, o tenente
também era solteiro, ao passo que o senhor não era. O senhor só queria outra amante para seu
estábulo, mas ele queria uma esposa.
— Ele a pediu em casamento? — perguntou Cole, e ao gesto afirmativo de Alaina, quis saber. —
Então, por que não casou com ele?
— Eu não confiava nem um pouco nos soldados ianques, especialmente nos oficiais. — Erguendo
uma sobrancelha, ela olhou para ele. — Além disso, eu não o amava.
Cole riu.
— Também não me ama. Já deixou isso bem claro.
Alaina desviou os olhos e ergueu os ombros.
— O senhor também.
Inquieta, procurou evitar os olhos dele. A cada momento que passava, tinha menos certeza dos seus
motivos para casar com ele. Ao que tudo indicava, a vida dos dois não ia ser calma. Alaina estava
cansada de lutar para sobreviver. Tudo que desejava era um tempo breve de paz e contentamento.
Porém, casada com Cole, isso não Parecia possível.
Ela andou pelo quarto, depois voltou-se, percebendo que Cole ainda a observava. Ele a conhecia o
suficiente para quase adivinhar o que estava pensando. Mas é claro que ele sabia que a suíte tinha só
um quarto. Cole passou por ela, entrou no quarto, tirou o paletó e a gravata, dePois abriu o colete e a
camisa.
345
— Eu pensei que íamos para a sua casa antes do cair da noite — disse ela, timidamente.
Cole ergueu os olhos por um momento e depois começou a arregaçar as mangas da camisa.
— Temos muito tempo para isso, Alaina. Não tenha medo.
— Se tem negócios na cidade, major, talvez Ole possa encontrar o sr. James ou Saul, antes que
deixem a cidade, e eu posso ir com eles. Aqui, só vou atrapalhar.
Cole ficou tenso. Então ela ia desempenhar ao máximo o papel de virgem relutante, quando ambos
sabiam que não existia nenhum motivo para isso.
— Não vou admitir que ande por aí sacolejando numa carroça como uma empregadinha. Pode estar
certa, minha senhora, de que a conduzirei à minha casa com mais dignidade do que parece desejar.
— Vocês, ianques, têm a mania de falar sobre orgulho e dignidade — respondeu ela, altaneira. —
Ultimamente, tenho obtido poucas oportunidades de desfrutar esses luxos.
Cole adiantou-se para ela, e Alaina quase recuou. Mas enchendo-se de coragem, ficou firme,
enfrentando o olhar dele.
— Sim, a senhora pode desfrutar esse luxo... eu — bateu no peito para acentuar a palavra — posso
me dar a esses luxos. — Empertigou o corpo, mas sem tirar os olhos dos dela. — Sugiro que
abandone essa idéia tola sobre as roupas que comprei. Se não pode aceitar o casamento comigo, em
caráter privado, deve considerar seu dever em relação às aparências. — Olhou para ela, furioso. —
Não devia ser muito difícil, minha cara, para quem já desempenhou tantos papéis.
Alaina decidiu que, para não permitir que suas emoções interferissem no fato de ser mulher dele, era
melhor ficar calada. Porém, como Cole parecia esperar uma resposta, apenas deu de ombros.
— Apenas eu não esperava uma situação de tanta intimidade com o senhor, isso é tudo.
— A idéia de partilhar a cama comigo é por demais desagradável — perguntou ele, secamente.
— Não é só o fato de partilhar a cama que me preocupa. É o que pode acontecer nela. — Ergueu o
narizinho bem-feito e voltou para a sala de estar.
Cole praguejou em voz baixa. Enganara-se pensando que Alaina estava vencida ou desanimada. Ela
era a epítome da teimosia e do orgulho do Sul, uma das mais leais divisões da humanidade.
Momentaneamente
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vencida pelas circunstâncias, ela não se deixava abater, porém, apesar de todo o gênio e o ardor de
espírito, Alaina não tinha nada da maldade de Roberta, e embora ela o evitasse abertamente, ele não
sentia repulsa nem desencorajamento. Na verdade, tudo aquilo era para Cole um desafio.
Ele foi para a sala e, solícito, tentou ajudá-la a desfazer o nó na fita que prendia seu casaco. „,
— Posso me arranjar sozinha, muito obrigada — disse ela, afastando-se das mãos dele.
Cole encostou no batente da porta do quarto.
— Como queira, minha senhora. Vai ser interessante observar por quanto tempo pode ignorar este
casamento.
— Se fosse um casamento de verdade, acredito que não seria possível. — Desfez o nó e tirou o
casaco. — Mas este não é um casamento, senhor. É um contrato, e muito temporário.
Alaina voltou-se arrumando o cabelo e ficou outra vez imóvel sob aquele olhar que a despia. Os
olhos azuis pousavam nos seus seios, desciam para a cintura e deslizavam preguiçosos por seu corpo.
— Espero não desapontá-lo, major.
— Ao contrário, minha senhora — respondeu ele. — A senhora desabrochou muito além das
minhas expectativas. — Coçou a palma da mão, pensativo. — Estava só imaginando o impacto que
vai causar quando eu a apresentar como minha mulher.
— Por que sou do Sul? — perguntou Alaina, sem compreender a observação dele. — Ou porque
casou tão depressa depois da morte de Roberta?
Cole achou graça.
— Isto é ainda a fronteira, minha senhora. Ninguém espera que um homem fique viúvo o tempo
suficiente para passar o inverno sozinho.
— A não ser que tenha comentado com alguém a minha situação, senhor, não posso imaginar
porque vão se interessar por mim...
— Não tenho o hábito de discutir meus assuntos particulares com pessoa alguma—garantiu Cole.
Voltou-se para a cômoda sobre a qual "avia várias garrafas e alguns copos. Olhou para ela
interrogativamente Alaina balançou a cabeça. Cole serviu uma dose de conhaque. -—
- Todos yrão querer saber como arranjei uma mulher tão bela sem sair do território. Prima de
Roberta?" Certamente vão murmurar e, depois, perguntar: "Será que os dois eram amantes?" — Cole
riu alto,
347
vendo o olhar furioso de Alaina. Tomando a bebida, ele passou por trás dela para chegar à cadeira.
— Na verdade, Alaina, o que parece é que você ultrapassou sua prima sob todos os aspectos.
Sem saber se era um elogio ou um insulto, Alaina sorriu brevemente.
— Não quero parecer pouco inteligente, mas o que exatamente quer dizer com "sob todos os
aspectos?
Cole respondeu com uma pergunta: "
— Alaina, por acaso sabe o quanto é bonita?
Alaina foi tomada de surpresa. Bonita, vestida desse modo? Desconfiando de uma afronta,
perguntou, cautelosa:
— Está zombando de mim?
Cole olhou para ela, incrédulo.
— Aindavirginal,Alaina?
Ela corou intensamente.
— O senhor, melhor do que ninguém, devia saber! Porém, na verdade—sua voz sugeria reprovação
—, devo lembrar que me tomou por Roberta.
Olhando para ela, Cole tomou um gole da bebida.
— Não completamente.
— Oh? — seu tom era de incredulidade e desdém. — Quer dizer que não foi enganado como
alegou? — Riu, com zombaria. — Então, meus ouvidos me enganaram. Eu juraria que o ouvi se
queixar amargamente por ter se casado com Roberta.
Dessa vez Cole olhou para ela apenas de relance.
— Infelizmente, só depois do casamento, descobri que a paixão não era um dos fortes de Roberta,
sem dúvida muito diferente da mulher com quem fiz amor na casa dos Craighugh.
Alaina afastou-se dele, para evitar-lhe os olhos irônicos.
— Se não se importa, major, eu gostaria de me refrescar um pouco.
— É claro, minha senhora.
Alaina correu para o quarto, e ele disse:
— O luto de viúva não lhe fica mal, Alaina, mas entristece muito o ambiente. — Ela parou e olhou
para ele. — Eu gostaria que usasse um vestido mais apropriado para a ocasião.
— Ocasião? — Ela repetiu, friamente. — Eu não sabia que estávamos comemorando alguma coisa,
senhor.
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Eu fiz da senhora uma mulher honesta — disse ele, falando devagar. — Não acha que é razão
suficiente?
Dominando a ira, ela disse, com os dentes cerrados:
Seu ianque bobo! Levou muito tempo para encontrar a mulher certa!
Cole riu alto, e Alaina entrou no quarto, muito corada, com os olhos chamejando de pura raiva.
Como aquele homem ousava embaraçá-la falando sobre sua virtude quando ele mesmo a tinha
roubado? Cole a atingira no seu ponto mais delicado, e Alaina queria imaginar uma vingança tão sutil
que ele nem percebesse que a estava recebendo. Ou então vingar-se abertamente, para que ele
sentisse a ponta da adaga na carne. Mas não conseguia pensar em algo capaz de penetrar aquela casca
grossa.
Ela trancou a porta e tirou o vestido preto, pensando com raiva no homem que estava na sala ao
lado. Ele sabia muito bem como provocar sua ira. Lavou o rosto e os braços na água quase gelada.
Mas isto serviu apenas para serenar o calor da sua revolta.
Escovou o cabelo até ficar brilhante e sedoso e, virando as pontas para baixo, o prendeu com uma
rede de seda cinza. Entre os seios e atrás da orelha aplicou o perfume delicado que Cole mandara
com a roupa e ao qual ela não conseguiu resistir. Jamais revelaria, porém, sua fraqueza. Ele que
adivinhasse.
Olhou com carinho para o vestido simples de seda cinza-prateada que tirou da sua fiel mala de vime.
Cole ficaria surpreso ao ver que ela não eraumapobretona, pensou ela. Com cuidado, ergueu o
vestido acima da cabeça e o vestiu. Fora comprado com seu dinheiro arduamente ganho mas, como a
maioria das suas roupas, era usado, pertencera a uma jovem amiga da sra. Hawthorne. O corpo do
vestido simulava um casaco curto de estilo Zuavo delineado com fita cinza-prateada franzida. Linho
bordado enfeitava a blusa de decote quadrado, cor de malva, e engageantes da mesma fazenda faziam
o fundo Para as mangas abertas do casaco. Pelo menos, vestida assim, ninguém Podia tomá-la por
uma indigente sem lar.
Recostado no divã confortável, Cole esperava que Alaina terminasse de se vestir e quando ela
finalmente apareceu na porta do quarto, ele ergueu os olhos. Como sempre, o exame de Cole foi
minucioso. O maior elogio foi o movimento brusco com que ele se levantou. Mas Parecia confuso.
"— Não me lembro de ter mandado esse vestido.
349
— Eu tinha algum dinheiro — murmurou Alaina, baixando os olhos, estranhamente feliz por ter
conseguido a aprovação dele e satisfeita também por ter ganhado um ponto.
— Fica muito bem — admitiu ele.
Alaina agradeceu o cumprimento com um sorriso leve e suave. Pensou que talvez estivesse
enfrentando aquele casamento de modo errado. Roberta teria sido mais sedutora, fazendo uso dos
próprios dons para dominar a situação. Às vezes, os métodos da prima mais velha tinham sucesso.
Mostrar discretamente o busto, tatalar sedutoramente as pestanas e algumas palavras doces podiam
conseguir muito de um homem. Mas, Alaina não acreditava que Cole se deixasse manobrar com
tanta facilidade. Sem tirar os olhos dela, Cole aproximou-se, e Alaina conteve-se para não recuar
quando ele estendeu a mão para o seu decote. Os dedos dele eram como brasas na sua pele quando
ergueram o medalhão aninhado entre seus seios.
— Pensei que não estivesse mais usando isto.
Alaina ergueu os olhos, temendo ter perdido mais terreno do que pensava ter ganhado. Sua pele ardia
ainda com o calor dos dedos dele e ela mal podia respirar.
— Uso para me lembrar das tolices do passado, senhor.
— Tolices, minha senhora? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Acha que aquele momento não foi
mais do que uma tolice?
Olhando para o rosto muito corado de Alaina, Cole repôs o medalhão entre a maciez dos seios e
com extremo cuidado ajeitou o cordão em volta do seu pescoço. Alaina ficou imóvel, olhando para
ele com uma sugestão de riso nos lábios. Antes de ela sair de casa, o tio Angus a advertira de que a lei
não reconhecia um casamento casto. Na verdade, advertiu ele, a abstinência devia ser guardada como
o único meio de anular o casamento quando chegasse o momento. Alaina lembrou as palavras dele
com extrema clareza. "O homem é um ianque e ele já abusou da minha pobre Roberta até a morte.
Eu estaria negligenciando meu dever de guardião se a deixasse partir despreparada para essa situação
calamitosa. Quero que saiba também que nem o dr. Brooks nem a sra. Hawthorne têm qualquer
responsabilidade nesse assunto. A responsabilidade é toda minha."
Ali estava ela, porém, enfrentando aquele "libidinoso aventureiro ianque", na sua caverna luxuosa,
mais preocupada com a própria reação do que com o toque das mãos dele. Alaina conteve a
respiração quando a mão de Cole desceu, roçando no seu busto, e descansou
350
possessivamente no seu quadril. Ergueu para ele os olhos cheios de docência e, como uma gata que se
espreguiça, experimentou as garras afiadas da própria força de vontade.
.— Dr. Latimer — murmurou docemente —, se não me engano, concordamos que seria um
casamento apenas no papel. Por acaso esqueceu?
— Duvido — disse ele — se o acordo resistirá ao teste da carne. Alaina riu com suavidade, e Cole
visualizou uma jovem mulher nua nos seus braços.
— Nada como votos de castidade para atiçar o desejo de um homem, não é mesmo, major? — Bateu
de leve no pulso dele. — E onde está a minha virtude, senão desfeita na cama de um ianque?
— Então é esse o caso. — Cole retirou a mão, lutando para controlar o desejo intenso, e olhou para
a janela. — Possuída na cama de um ianque, agora quer vingança.
— Vingança, meu senhor? — O riso, baixo e profundo, zombava dele. — Diga, por favor, que tipo
de vingança pode uma dama sulina imaginar contra seu marido ianque?
Cole voltou-se bruscamente para ela, com os olhos ardendo de ira.
— Creio que não preciso dizer, minha senhora, pois tenho certeza de que sabe.
Alaina percebeu que acabava de descobrir uma falha na armadura dele, mas não sabia o que a
provocara.
O momento de silêncio aumentou mais ainda a distância entre os dois. A expressão furiosa de Cole
solapava de certa forma a coragem que a fortalecera até ali. Foi com alívio que ouviu a discreta
batida. Cole caminhou, mancando para a porta, e antes que ele a abrisse, Alaina observou.
— Major, se está esperando alguém, ou se tem negócios para tratar e prefere ficar sozinho, eu vou
para o quarto.
O tratamento formal o desagradou.
— Fique, minha senhora — disse, com voz firme. — Eu informarei quando desejar privacidade. Por
enquanto, tem permissão para ficar.
Alaina cruzou as mãos como uma criança censurada, perguntando a si mesma se ele sabia que era
uma mulher adulta.
Cole abriu a porta e um homem gorducho entrou na sala. Depois de remover várias camadas de
agasalhos, o gorducho apanhou a Pequena valise que pusera no chão, entre os pés, e olhou em volta.
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— Ah, suponho que esta seja sua senhora—disse ele, jovialmente, caminhando para Alaina. — Não
vai acreditar o que seu marido encomendou para a senhora. O melhor! Sem dúvida, o melhor!
— É mesmo?—Com surpresa e espanto, Alaina olhou para Cole.
— Oh, é mesmo, minha senhora! — disse o homenzinho gorducho, apontando para a valise. —
Com sua permissão, doutor.
Cole fez um breve gesto afirmativo, e o homem abriu as correias da valise. Lentamente, fazendo
suspense, ele levantou a tampa da maleta.
Maravilhada e com espanto, Alaina viu, sobre o veludo escuro, uma coleção de jóias digna de uma
rainha. Em volta de um anel de ouro com brilhantes e rubis artisticamente incrustados, dispunham-
se vários colares de pérolas, um de esmeraldas com brincos combinando e um pingente de ouro com
brilhantes formando um desenho rebuscado, tendo ao lado um par de brincos de pingentes de
brilhantes.
Apoiado na bengala, Cole aproximou-se e estendeu a mão para examinar as jóias.
— Todas perfeitas, senhor — disse o joalheiro com um sorriso beatífico.—Eu mesmo verifiquei.
Veja estes brilhantes. Já viu alguma coisa tão cintilante? A senhora não quer experimentar?
Cole apanhou o colar e voltou-se para Alaina. Para não provocar a fúria dele na frente do joalheiro,
Alaina permitiu que ele o pusesse no seu pescoço. De pé, na frente de Alaina, Cole inclinou-se sobre
o ombro dela para fechar o colar e por um momento Alaina sentiu a sensação estranha e excitante
dos braços que a envolviam e do peito forte, que aparecia abaixo da gola desabotoada da camisa.
— Lindo! — murmurou Cole, mal olhando para o pingente.
— Sim! Sim, muito lindo! — ecoou o homenzinho gorducho.
— Alaina, por favor, o meu casaco. — Cole indicou o quarto com uma inclinação da cabeça. —
Pode apanhá-lo para mim, meu bem?
— É claro — murmurou Alaina, estranhamente aquecida pela palavra carinhosa, embora sabendo
que era só para preservar as aparências, assim como os vestidos e as jóias. Cole pretendia expor uma
bela fachada e esperava que ela fizesse o mesmo.
No quarto, Alaina apanhou o casaco de Cole e, com ar pensativo, alisou a fazenda cara. Era como se
o casaco guardasse uma presença mágica, pois, por um momento, se sentiu dominada por um desejo
físico tão intenso que quase parou de respirar. Como seria fácil deixar que as aparências deslizassem
para a realidade — se não houvesse
352
aquelas condições do contrato que os separavam. Cole era um homem belo e jovem. Mesmo sem as
emoções mais delicadas, como o amor, podiam ter um casamento. Quem podia predizer os milagres
que o futuro reservava? Porém, a fronteira entre os dois fora definida pelas palavras e pela vontade
dele, e seu orgulho não permitia que ela a cruzasse.
Cole tirou do bolso do casaco a carteira de couro, contou várias notas e as deu ao homem.
— Foi um prazer fazer negócio com o senhor, dr. Latimer. Avise-me quando precisar dos meus
serviços novamente, por favor.
Cole levou o homem até a porta, garantindo que ia procurá-lo. O joalheiro despediu-se dos dois com
uma breve inclinação da cabeça, e partiu.
Agora, não precisavam mais representar, pensou Alaina com ironia. Pelo menos enquanto estivessem
a sós, Cole podia esquecer as palavras carinhosas. E Alaina precisava lembrá-lo da sua posição.
— Major, acho que não posso aceitar essas jóias. Jamais poderei pagá-las.
— Não seja ridícula, Alaina — disse ele, apanhando o anel da caixa de veludo. —É claro que vai usá-
las como eu espero.—Segurou a mão esquerda de Alaina e pôs o anel de ouro, brilhantes e rubis no
seu dedo anular. — E este anel, minha senhora, jamais deverá sair da sua mão.
— Um anel de casamento — murmurou Alaina, olhando incrédula para a jóia.
— Será que é um presente tão estranho de um marido para a mulher? Ou será que duvidava que
fosse receber algum? Peço desculpas pela demora. Não foi fácil fazê-lo chegar até aqui. — Deu de
ombros. — Uma confusão sobre a inscrição na parte interna do anel, eu suponho. Talvez tenham
estranhado o nome.
Era compreensível, uma vez que seu nome podia ser escrito de vários modos. Mas não era isso que
preocupava Alaina. Considerando as condições do casamento, o anel era valioso demais.
— Major, não estamos realmente... quero dizer... —No momento, ela não conseguiu encontrar as
palavras. — Estamos casados, é certo. Mas ao mesmo tempo não estamos realmente... — Cole a
observava com curiosidade, e Alaina corou, confusa. — Eu não esperava, isso é tudo. Não esperava
nada disto. — Mostrou a maleta. - Não posso aceitar, de modo algum.
353
— Isso é pura tolice, Alaina — disse ele, impaciente. — O valor das jóias não deprecia com o uso, e
você vai usá-las. Vai ser apresentada como minha mulher e deve se vestir de acordo com essa
situação.
Aparências, outra vez! Sua vida estava se tornando uma série de representações e de falsas
aparências. Em algum ponto ela teria de reclamar o direito de ser ela mesma.
— Se, como disse, as jóias não perdem nada do seu valor com o uso, então consinto em usá-las. —
Alaina sabia pensar com lógica. —. Mas as roupas, senhor, são diferentes. Só as usarei quando puder
pagar.
— Como espera poder pagar se não quer aceitar dinheiro nem de mim?
Alaina deu de ombros.
— Eu fiz a limpeza do hospital por um salário. Posso limpar sua casa por um ordenado.
Cole ergueu a mão e disse com ironia:
— Tenho todos os criados de que preciso.
— Então, no seu consultório, talvez. Eu ajudei o dr. Brooks...
— Isso é ótimo, minha senhora—disse Cole, secamente.—Mas infelizmente não tenho mais muitos
clientes.
Alaina ficou surpresa.
— Quer dizer que desistiu da medicina?
— Mais ou menos isso — disse ele, encerrando o assunto.
Alaina não pretendia irritá-lo mais. Mesmo assim, disse, com voz firme:
— Se não pode arranjar um emprego para mim, major, tenho de recusar os vestidos.
Agora Cole estava realmente furioso. Conhecia Alaina muito bem para saber que ela não mudaria de
opinião com muita facilidade. Mas estava resolvido a não vê-la malvestida. Com uma risada que fez
Alaina erguer os olhos com desconfiança, ele disse:
— Já pensou em trabalhar na função de minha esposa? Alaina ficou tensa, percebendo onde essa
conversa os levaria.
— De acordo com o contrato, senhor, ninguém pode ter dúvida de que é isso que eu sou.
Exatamente o que sugere que eu faça para merecer um salário?
Como se estivesse pensando no assunto, Cole encostou a mão fechada nos lábios.
— Tenho uma governanta, duas arrumadeiras, uma cozinheira
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um menino de recados e um homem para atender à porta. Excluindo esses deveres, o que mais sobra?
O dever mais óbvio de uma esposa não foi mencionado, mas Alaina não ia se deixar levar pela
zombaria.
— Senhor, uma vez que temos um acordo, suponho que esteja se referindo ao dever de anfitriã.
— Anfitriã? Senhora da minha casa? — Ele a observou por um momento. — Sem nenhuma prática?
— Eu aprendo depressa — informou ela.
.— Talvez eu esteja pensando em outra coisa — disse Cole. Os olhos calmos de Alaina encontraram
os dele. Como queria tirar aquele sorriso zombeteiro dos lábios de Cole! Perguntou, secamente:
— E o que sugere, senhor?
Cole abriu a boca para responder, mas sua expressão mudou bruscamente, passando da perplexidade
para a raiva.
— Como a senhora sugeriu, é claro... anfitriã — respondeu, gentilmente. — Será meu refúgio,
protegendo-me da sociedade aborrecida de mães que não se conformam com o fato de que um bom
partido continue solteiro e dos pais com pistolas enormes. Será a minha representante, minha
delegada com plenos poderes, por assim dizer. Esse será o seu dever! — Apanhou o casaco do
espaldar da cadeira e começou a abotoar a camisa. — Em troca, minha senhora, deve se vestir de
acordo com sua posição.
Alaina não teve tempo de responder porque Cole caminhou manquitolando para a porta, e antes de
sair disse:
— Fique à vontade, meu amor. Posso levar algum tempo para lembrar que ainda sou um cavalheiro.
Cole saiu e bateu a porta. Alaina ouviu a chave girar na fechadura e depois os passos irregulares do
marido, no corredor. Respirou fundo e tremulamente, percebendo que estava contendo a respiração
quase desde o começo da conversa.
Passou a mão na testa. Então, seria uma prisioneira. Sim, Cole trancara a porta. Mas, pelo menos
naquele momento, estava livre da Presença avassaladora do marido.
Sem se impressionar com o luxo que a rodeava, Alaina foi para o quarto e tirou o vestido e o colar.
Um imenso cansaço a envolveu. O confronto com Cole esgotara suas energias, e as poucas horas de
sono da noite anterior não seriam suficientes para continuar a luta. Pairava em sua mente o
pensamento de que passar a noite no sofá da sala não
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estava além das possibilidades. Dormir na mesma cama com Cole Latimer era sem dúvida uma idéia
desesperadora e teria de evitar isso a todo custo.
Tirou a rede que prendia o cabelo e balançou a cabeça para dar liberdade às mechas avermelhadas.
Quando foi soltar o espartilho, as tiras, muito velhas, se partiram, libertando seu corpo muito antes
do que ela esperava. Irritada, pôs o espartilho sobre a cômoda e começou a soltar a cintura da
anágua. Teria de tirar as tiras do espartilho comprado por Cole, ou não usar nenhum. Sem dúvida,
em certos momentos, sua recusa em usar os presentes pesava mais para ela do que para ele.
Surpresa, ouviu a chave na fechadura. Não podia imaginar o que o teria feito voltar tão depressa, e
sentiu um pouco de medo, pensando nas jóias.
Pôs o casaco de lã nos ombros e parou na porta da sala. Com alívio, viu Cole entrar. Carrancudo, ele
atirou na cadeira o casaco que levava no braço e quando se virou para fechar a porta, Alaina viu que
a perna da calça dele estava descosturada de cima a baixo.
— O que aconteceu? — perguntou, preocupada.
— Enganchou num maldito prego — resmungou ele.
Alaina conteve o riso mas não o disfarçou, pelo tom com que disse, voltando para o quarto.
— Se tirar a calça e a trouxer para cá, eu conserto.
Tirou a caixa de costura da mala, mas Cole rugiu, da sala.
— Que diabo, mulher, acha que vou ficar por aí de ceroulas. Vou trocar de roupa e o hotel que se
encarregue de consertar.
Alaina fechou cautelosamente a porta do quarto, para evitar que ele entrasse, mas descobriu que a
chave desaparecera. Viu um brilho de metal no chão e quando se abaixou para apanhar, a porta foi
aberta violentamente, atingindo-a no traseiro. Alaina endireitou o corpo como um boneco de mola,
e, sentindo-se completamente ridícula, olhou para Cole.
— Vejo que sua idéia de como preservar minha privacidade deixa muito a desejar, minha senhora.
Não tenho nenhuma intenção de andar pela sala como um corvo pelado enquanto troco de roupa.
Pretendo trocar aqui, no meu quarto, que é o lugar certo.
Alaina sacudiu a cabeça, impaciente.
— Nesse caso, senhor, eu espero lá fora.
Alaina deu um passo e Cole, numa decisão repentina, estendeu o
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braço e bateu a porta na frente dela. Alaina parou, surpresa, e ergueu os olhos para ele.
Com a chave na mão, pronta para me trancar aqui? E com o casaco nas costas, pronta para fugir? —
Tirou a chave da mão dela. Acho que não, minha senhora. Vai ficar no quarto até eu acabar de me
vestir.
Cole trancou a porta e jogou a chave para longe, descuidadamente. Sua pontaria foi notável. A chave
bateu na parede e com um tinido quase musical caiu dentro da escarradeira.
Os olhos de Alaina acompanharam o trajeto do metal brilhante, e depois de uma breve pausa, ergueu
uma sobrancelha, interrogativa-mente.
— Acho que vai ter dificuldade para recuperar a chave, senhor. Cole olhou de relance para o
cuspidor e deu de ombros.
— É propriedade do hotel. Eles que a apanhem.
Alaina deu de ombros também. Fez meia-volta, e o casaco se abriu, revelando a anágua muito
remendada.
— Que diabo é isso? — Cole tirou o casaco dos ombros dela, atirando-o numa cadeira. Com um
olhar de leve surpresa, ela esperou a censura. — Por todos os santos, minha senhora! Já vi coisa
melhor numa mendiga.
— Sua atenção à roupa feminina é espantosa, senhor. Na verdade, parece muito bem-informado
sobre roupas de baixo de mulher, e coisas assim — disse ela, alisando a anágua velha. — Mas esta
peça tem me servido muito bem, e eu a mantenho em bom estado de conservação.
— Um feito de extrema diligência, minha senhora, sem dúvida alguma — zombou Cole, e num gesto
rápido desatou o laço que prendia a anágua.
— Senhor! — Exclamou Alaina, quando a saia caiu no chão. Cole olhou para a calça comprida de
algodão que, embora de corte imperfeito, ajustava-se ao corpo dela, acentuando as formas bem-
feitas.
— Tenho uma mulher que se veste como uma fazendeira — resmungou ele, para ninguém em
particular —, embora eu lhe tenha dado o que há de melhor para vestir.
Exasperado, ele apanhou a calçadeira e colocou o sapato. Alaina o observava com um olhar irônico e
tolerante, como quem olha para uma criança com um acesso de raiva. Aquilo ofendia o senso de
Propriedade de Cole. Notando a atitude condescendente de Alaina,
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resolveu contra-atacar, exercitando sua autoridade. Repetiu o que dissera antes, mas dessa vez em
tom de quem não admite ser contrariado.
— A partir deste momento, minha senhora, vai se vestir como convém à sua posição de sra. Latimer.
— Quando o senhor sair — disse ela, calmamente.
— Agora! Alaina olhou desafiadoramente nos olhos dele.
— Não! Quase com incredulidade, Cole perguntou:
— O que foi que disse, minha senhora?
Uma vaga lembrança passou pela mente de Alaina, mas ela não se demorou para analisar o sentido
da atitude fria e controlada do marido.
— Eu disse não!
Apobretona atrevida! Ela ousava desafiá-lo! Cole atirou a camisa e o colete numa cadeira, foi até a
mala e tirou a valise de couro que mandara para ela. Abriu-a e começou a tirar as peças de roupa,
jogando-as descuidadamente sobre a cama.
— Aqui está! — Atirou aos pés dela uma combinação finíssima e elegante. — Vai vestir isto! E mais
isto! — Foi atirando a calça rendada, comprida e larga nas pernas, meias de seda, anáguas delicadas e
um espartilho de cetim e renda. Por fim, retirou da mala um vestido de viagem verde-escuro,
enfeitado com rolotê de couro e botõezinhos bege-escuro, que ele estendeu na cama, com mais
cuidado e para o qual apontou com o dedo em riste. — E isto! Quero vê-la vestida com essas roupas!
Alaina, mais calma, agiu com uma teimosia tão intensa quanto a dele. Deixou as roupas no chão e,
sem uma palavra, ergueu os olhos, desafiadoramente. Depois, deu as costas ao marido e começou a
bater com um dos pés no chão, com impaciência.
Cole olhou para a cama, com um sorriso quase libidinoso, imediatamente substituído por uma
carranca. Deu alguns passos para o lado e apanhou a tesoura da caixa de costura. Rapidamente,
segurou a tira que prendia a calça de Alaina e a cortou. Com uma exclamação de espanto, Alaina
evitou que a calça caísse, mas com a habilidade de um cirurgião, Cole cortou as alças da combinação,
que Alaina também conseguiu segurar a tempo. Ela girou o corpo e olhou para ele, indignada.
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— Ah! — Cole sorriu, condescendente. — Agora, tenho sua atenção. — Estendeu a perna para a
frente e fez uma curvatura zombeteira. — Ao seu dispor, minha senhora. Temos todo o tempo do
mundo.
Segurando a combinação na altura do pescoço, Alaina procurava esconder os seios do olhar ávido e
possessivo de Cole. Virando para a própria mala, ele escolheu uma calça e a estendeu na cama.
Então, desabotoou o cós da calça rasgada e sentou-se na beirada da cama para tirá-la. Mas não
resistiu à curiosidade e olhou para trás. A roupa continuava empilhada no chão, e Alaina estava agora
num canto do quarto, de costas para ele. Cole observou com prazer a coluna perfeita do pescoço
dela e a curva dos quadris. A extrema feminilidade daquele corpo acendeu seu desejo, e ele sentiu a
ereção sob a roupa de baixo que vestia.
Levantou-se e ficou atrás dela, sem tocá-la, mas muito próximo, de modo que Alaina não podia se
mover sem encostar nele. Apoiando o braço na parede, Cole olhou para a curva tantalizante dos
seios dela, cobertos apenas pela fina combinação, e para a mão delicada que a segurava. Cole desejava
acariciar aquele corpo macio, abraçá-lo com força e satisfazer o desejo que o atormentava.
— Você é mulher, Alaina — murmurou ele, com voz rouca.
— Sou mesmo? — Alaina segurou com mais força a combinação junto ao pescoço, erguendo os
seios com o gesto, quase o enlouquecendo. O desejo o devorava, o incendiava, e era todo por ela.
— O bastante para enlouquecer um homem — disse ele, em voz baixa. Luzes estranhas dançavam
no cabelo brilhante de Alaina e os ombros sedosos refletiam a luz suavemente.
— Eu não tinha a mínima idéia — desculpou-se ela, com ironia, embora a proximidade dele quase a
fizesse perder os sentidos. — Mas talvez o senhor queira provar suas palavras.
— Provar?
— Sua insanidade! Sua loucura! — Alaina esforçou-se para Parecer casual e petulante. — Mas não
precisa muita coisa. Um Pouquinho de espuma nos cantos da boca basta para me convencer.
O perfume embriagador que ela estava usando misturava-se à essência de mulher, invadindo a mente
de Cole e aquecendo seu Sangue. O calor do desejo o torturava.
Ainda bem que está casada, Alaina, pois certamente ia acabar como a amante de um príncipe
europeu. Você foi feita para o amor.
359
A proximidade dele ameaçava destruir a calma de Alaina. Mas apenas ameaçava.
— Casada? Um arranjo temporário? Seu procurador enviado a um lugar distante para trocar votos
com uma mulher que não tinha outra escolha? Casamento? É isso que chama de casamento?
— Sim. — Ele estendeu a mão, para acariciar o ombro macio. — Legal e válido em qualquer
tribunal.
Alaina esquivou o corpo da mão dele, quase sem poder respirar.
— Eu diria que é apenas um acordo.
" — É claro — riu ele. — Um acordo para desfazer as dúvidas do seu tio e convencê-lo a assinar os
papéis. Segundo a minha definição, você é minha mulher.
— Com castidade e autocontrole — continuou ela, procurando não perder o fio do pensamento e,
no esforço, deixando de perceber o significado das palavras. Sob os seios macios, seu coração batia
agitado, forte demais para acreditar que ele lhe era indiferente.
— Nós somos marido e mulher—disse Cole, com voz rouca. — O que castidade e autocontrole têm
a ver com isso?
— Nós somos, dr. Cole Latimer — a voz dela soou monótona e desanimada—, herói, ferido da
União, e Alaina MacGaren, procurada por assassinato, traição, roubo, espionagem e outros crimes.
— Está aqui porque me casei com você.
— Estou aqui porque não tinha escolha. —
Alaina riu.
— Escolha? Sim, é claro. — Preferiu ignorar o sentido das palavras dela. — Escolha. Você é a
melhor escolha, meu amor — passou a mão no cabelo dela, quase com reverência. — A nata do que
há de melhor.
As palavras, ditas com voz suave, provocaram respostas excitantes em lugares que ela preferia
ignorar. Tolamente, pensara que toda aquela chama provocada pela presença dele fora apagada pela
ofensa das condições do casamento, se não completamente morta, pelo menos quase impossível de
ser novamente acesa. Mas Alaina começava a compreender a tolice dessa idéia. Cole tocava, ela
fervia. Era um fato que seu orgulho dificilmente aceitava, especialmente quando a exigência de um
casamento casto partira dele. O que Cole esperava dela? Que fosse uma mulher de vontade fraca
para se sujeitar aos seus desejos e caprichos?
— Usa a palavra amor com muita leviandade, senhor, quando é um sentimento que deve ser
provado, antes do casamento, com devoção e compromisso.
Cole encostou o rosto nos cabelos dela, aspirando sua fragrância. Um estremecimento percorreu o
corpo de Alaina. Encostou-se na parede, tentando fugir ao contato que a excitava.
— Procure se controlar, senhor — avisou, com voz seca. — Isto não faz parte do nosso acordo.
— Para o diabo com acordos e outras coisas — resmungou Cole. O que você realmente precisa só
um homem pode dar, e não permitirei que nenhum outro o faça.
Puxando-a para longe da parede, Cole a ergueu nos braços, enquanto Alaina se esforçava para não
deixar cair a combinação.
— Major! — Sua voz estava ofegante. — A brincadeira já foi longe demais. Ponha-me no chão!
— Brincadeiras são para crianças, meu amor. Mas isto é algo mais, algo entre um homem e uma
mulher. — Sem tirar os olhos dos dela, ele caminhou para a cama. — Não vai mais haver nenhum
fingimento no nosso leito conjugal.
Ajoelhando sobre a cama, ele a deitou e antes que Alaina pudesse fazer um movimento, seus braços
a enlaçaram. Cole abaixou o corpo, quase se deitando sobre ela, prendendo o braço e a mão que
segurava a calça larga e comprida com seu peso. Alaina nem tentou se livrar, temendo tocar em
alguma parte crítica de Cole, levando-o a interpretar mal sua intenção.
Estava bem viva em sua mente a lembrança do quanto lutara naquela noite e do quão fora inútil.
Cole parecia com a mesma disposição. Nem estava pensando em libertá-la até que seu casamento se
consumasse.
Os dedos dele subiram até a mão que segurava a combinação, na altura do pescoço, roçando seus
seios, acelerando sua respiração e seu pulso. Cole beijou a mão fechada e passou o braço dela em
volta do Próprio pescoço. Seus lábios então desceram para os dela. Foi um beijo excitante, breve e
suave, a língua dele traçando o contorno dos lábios trêmulos de Alaina, enquanto ele tentava ainda
fazê-la ceder. A respiração quente acariciou a orelha dela e os dentes fortes mordiscaram o Pescoço,
provocando arrepios deliciosos por todo seu corpo. Alaina fechou os olhos, relaxou nos braços dele,
cheia de calor, e se entregou. Então, abriu os olhos de repente, com uma exclamação de espanto. A
c
ombinação descera e agora a boca de Cole era uma chama ardente
361
no seu seio. Alaina estremeceu, respondendo ao calor daquela carícia. Sentiu a rigidez da ponta do
seio e um impulso irreprimível de erguer o corpo para ele, abrir as pernas trêmulas e deixar que sua
masculinidade satisfizesse seu desejo.
Contudo, um resquício de sensatez no seu íntimo gritava numa agonia terminal e batia
freneticamente com os punhos fechados na suavidade do seu desejo de prazer. Não! Faça-o parar!,
rugia a voz da consciência. Afaste-o! Foi ele quem quis o acordo! Faça com que o cumpra! Sua mente
voltou a funcionar, definindo-o como uma criança mimada que nunca aprendera o significado de um
não. Toda mulher que desejava, ele possuía. Dentro de quanto tempo ia encontrar outra que o
agradasse mais? Uma vez despertada sua ira, Alaina a conduziu com perfeição, relaxando o corpo
completamente, não mais reagindo às carícias.
A mão de Cole estava na calça rasgada dela, abaixando-a, acariciando a curva sensual do quadril. Os
dedos caminharam sob a fazenda, para baixo, e seus lábios voltaram aos dela. Virando a cabeça para
o lado, Alaina conseguiu evitar o beijo.
— Então é assim que vai ser? — murmurou ela. — Do mesmo modo que antes?
Cole ergueu o corpo e olhou para ela, sem compreender. Com um leve sorriso, Alaina continuou,
olhando para os ardentes olhos azuis.
— Já me deu as jóias. Qual vai ser o pagamento desta vez? Devo aceitar as roupas? — Tirou o braço
do pescoço dele e levou os dedos ao medalhão. O cordão de ouro cintilava sobre a pele macia e
clara. — Será que tem outro igual a este? Oh, major — riu suavemente. — É realmente extravagante
quando satisfaz seus desejos.
A suavidade do tom não amenizou a ironia da frase. Cole sentiu que seu desejo começava a
desaparecer, mas, procurando ignorar esse fato, inclinou-se mais, para beijá-la na boca.
— Foi assim que conquistou Roberta... com doce devoção? — perguntou ela, inocentemente.
Rilhando os dentes, Cole ergueu-se, frustrado. Saiu da cama e com as narinas dilatadas olhou furioso
para ela. Alaina sentou-se na cama, apreensiva, com os braços cruzados na frente do peito.
— Então eu não valho o preço? — perguntou ela, como se estivesse ofendida.
Praguejando selvagemente, Cole apanhou sua roupa e saiu do
362
quarto. Um pouco depois, Alaina apareceu na porta, vestida só com um roupão comprido e observou
Cole que se vestia com gestos nervosos. Ele sentou-se para calçar os sapatos, mas fez uma careta de
dor quando calçou o pé direito. Esticou a perna, esfregando a coxa para aliviar a dor, depois ergueu os
olhos e viu a expressão tensa e preocupada de Alaina.
— Guarde sua piedade, minha senhora—resmungou ele.—Não sou um pobre aleijado para me
satisfazer com as migalhas da sua compaixão. Está bem claro que o sangue dos Craighugh corre em
suas veias.
Alaina ergueu o queixo, ofendida.
— Fazer com que cumpra sua promessa é uma ofensa grande demais para seu orgulho?
— Minha senhora, as lâminas afiadas e duplas da sua língua ferem mais profundamente do que
Roberta jamais conseguiu ferir. Como Roberta, a senhora tem seus meios para tentar um homem, até
fazê-lo implorar aos seus pés, mas quando chega a hora da verdade, sabe como afastá-lo, como um
troféu arrancado das entranhas de um animal vivo.
— Como ousa dizer que minha simples recusa ofende sua mas-culinidade?
Cole olhou para ela incrédulo. Ninguém o tentava com tanta desfaçatez, desde que ele era pequeno.
Até Roberta sabia onde parar. Para não externar sua fúria, Cole saiu da sala, bateu a porta e olhou
furioso para um criado que, assustado, saltou rapidamente para sair do seu caminho.
Outra vez sozinha, Alaina não se entregou ao prazer da vitória, tomada por um vago temor de ter ido
longe demais.
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Capítulo Vinte e Oito
A ESTRADA QUE ia para noroeste passava sinuosa entre colinas baixas e por florestas de árvores
muito altas, que misturavam as cores do outono, escurecidas pela chuva, com o verde intenso dos
pinheiros. A tempestade de vento que assolava a região, quando saíram da cidade, começava a
amainar. A chuva diluía-se numa neblina esgarçada e rodopiante, como se a decisão de Cole de
continuar viagem para casa não desse à natureza outra escolha senão abrandar e refrear seu acesso de
violência. O campo estava imóvel, num arfante repouso. Gotas de chuva indecisas tremiam nas
pontas das longas e verdes agulhas dos pinheiros, enquanto que o solo, o espesso tapete de folhas
molhadas, abafava as batidas das patas dos cavalos.
Sentada, rígida e em silêncio, num canto da carruagem, Alaina estava muito consciente do perfil
carrancudo de Cole, delineado contra a janela de vidro. Estava ao lado dela, com o pé direito apoiado
no banco da frente para amenizar o desconforto da longa viagem. Embora a bela parelha de cavalos,
com seu passo regular e rápido, já tivesse percorrido vários quilômetros e o céu pesado já começasse
a anunciar a chegada da noite, tinham trocado poucas palavras. Era um silêncio pesado e nem um
pouco pacífico.
A estrada acompanhava agora um rio e os cavalos diminuíram o passo quando se aproximavam de
uma curva fechada. De repente, um
364
grito distante quebrou a serenidade da floresta, e Olie puxou as rédeas com força para fazer parar os
animais. Cole tirou o pé do banco e pôs a cabeça para fora. Alaina olhou para ele, ansiosa. Não era
naturalmente medrosa, mas as histórias que ouvira sobre os índios sioux eram suficientes para fazê-la
temer aquela região selvagem e seus habitantes. Acalmou-se quando Cole, depois de examinar a
estrada, recostou-se no banco e tirou um charuto da cigarreira de prata.
Através da janela traseira da carruagem, Alaina viu um cavaleiro, que se aproximava no galope.
Quando ele chegou perto, notou que se vestia como um cavalheiro e seus traços tinham uma beleza
rude. Era grande, tinha ombros largos e peito forte. Sob a aba do chapéu de pele de castor aparecia o
cabelo castanho avermelhado, com as pontas viradas para cima. Ele parou a montaria ao lado da
carruagem e, inclinando-se, olhou para dentro.
— Que diabo, Cole — disse ele. — Esqueceu que tem vizinhos? Cole olhou para ele e sem
responder levou o fósforo aceso ao charuto. Aparentemente sem se importar com a indiferença do
major, o estranho apeou e amarrou seu garanhão na traseira da carruagem. Voltou, abriu a porta e
como alguém com muita autoridade ou muita audácia, jogou o chapéu no banco vazio e entrou na
carruagem.
— O mínimo que podia ter feito era parar e nos apresentar sua nova esposa — censurou ele. Bateu
com a mão no teto e disse para Olie: — Pode continuar, homem. Vou com vocês até a casa. —
Sentou-se no banco de frente para os dois e examinou Alaina atentamente. — Quanto tempo tenho
de esperar, Cole, ou prefere que me apresente?
Cole cedeu com relutância.
— Alaina, permita-me apresentar um dos meus vizinhos. O primeiro e o mais próximo, dr. Braegar
Darvey.
Alaina estendeu a mão, indecisa, sem saber se era uma brincadeira ou não. Ele segurou a mão dela e a
beijou galantemente.
— O prazer é todo meu, pode estar certa, sra. Latimer. — Recostou-se no banco e apoiou as pernas
fortes no chão por causa do balanço da carruagem. Ocupando quase todo o banco, ele abriu os
braços sobre o encosto. — Acontece que não me canso de maldizer o dia em que meu pai, que Deus o
tenha, olhou para seu primeiro filho e resolveu dar a ele o nome do seu avô. — Sua voz sugeria um
leve sotaque irlandês e o brilho jovial dos olhos não disfarçava a ameaça do sorriso. - Para dizer a
verdade, é um nome valoroso, e aquele bom senhor do
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passado tremeria no túmulo, fazendo estremecer a charneca, se eu não me orgulhasse dele. Mas é
preciso muita prática da língua para pronunciá-lo devidamente. — Inclinou a cabeça na direção de
Cole, que, ignorando a conversa, olhava para fora, e disse em voz baixa para Alaina, como quem
revela um segredo. — Aprendi que o lapso de um bêbado não merece a minha ira e dou a ele apenas
o crédito que merece. Uma vez que seu marido não quer contar, eu conto. — Empertigou o corpo e
disse, em tom didático: — Meu nome é Braegar, soletra-se B-r-a-e-g-a-r. Agora, tente.
— Bri-gar. — Alaina respirou devagar. — Braegar Darvey!
— Oh, certo e perfeito! — rugiu o homenzarrão. — A senhora deve ser uma doce colleen dos
campos verdes.
Com um riso leve, Alaina carregou o sotaque.
— Meu próprio pai era escocês dos Highlands, senhor, e eu posso mostrar o tartan e as armas da
minha família como prova.
— Ora, ora, somos quase parentes. Os irlandeses e os escoceses sempre fizeram muito pelo país, não
concorda?
,— É claro que sim — sorriu ela.
Cole riu zombeteiramente, olhando para os dois.
— Uma vez que o bom homem, o dr. Latimer, é tão reticente, eu me encarrego das amenidades ao
meu modo — informou Braegar, cruzando as pernas com o relho apoiado no joelho. — No passado
— recostou-se no banco e suspirou, como que sentindo prazer com a lembrança — éramos
praticamente as únicas pessoas nesta região, os Latimer e os Darvey. Cole e eu fomos criados quase
como irmãos, ele órfão de mãe, eu órfão de pai. Mas, a guerra nos separou e seu marido não
consegue controlar a inveja.—Com um sorriso largo e malicioso, continuou: — Na verdade, sra.
Latimer, quem deve sentir inveja sou eu... todas essa viagens e aventuras, e nem sei mais o quê.
Alaina percebeu que a presença de Darvey não agradava Cole, pois sua expressão de
descontentamento acentuou-se ameaçadora-mente depois que o irlandês beijou-lhe a mão.
— Fico aliviado por saber que é um amigo, dr. Darvey, e que não está atrás do meu escalpo.
Braegar deu uma gargalhada sonora que demonstrava seu grande amor pela vida.
— Suponho que todos os estranhos fiquem um pouco assustado s com o que ouvem a nosso respeito.
Sinto muito se a assustei.
— Não me assustou, senhor — sorriu ela, graciosamente.
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Entrei em pânico, certa de que ia ser assaltada por selvagens. Seu grito de chamamento foi
exatamente o que eu esperava ouvir deles.—Ficou séria e perguntou: — Mas como... bem, como
quase irmão do meu marido, também esteve no exército?
Ele sorriu de leve, com bom humor.
Tenho um defeito que me incapacita para o exército.
Alaina ficou chocada, pois ele parecia perfeitamente robusto e saudável. Não era nada que se
percebesse, mas não seria delicado insistir no assunto.
Braegar percebeu sua consternação.
— Uma espécie de defeito mental...
— Ele é insano! — observou Cole, secamente. O irlandês apresssou-se a explicar.
— Acontece que, desde o começo, eu compreendi que os rigores da vida militar não combinam com
minha natureza delicada.
— O que ele quer dizer — rosnou Cole — é que não passa de um malandro completamente
indisciplinado!
Alaina olhou escandalizada para o marido. Braegar também ficou sério e franziu a testa, não tanto
ofendido quanto procurando adivinhar o estado de espírito de Cole.
— Seu marido tem inveja da minha perfeita condição física — disse ele, em tom de brincadeira. —
Aquele pedaço de metal na perna fez dele um homem muito rabugento. — Voltou-se para Alaina
com um largo sorriso. — Se algum dia se cansar desse mau humor, não esqueça que tem um refúgio
muito próximo, onde uma pessoa tão bela quanto a senhora será sempre bem-vinda. Na verdade,
sinto-me tentado a roubá-la deste homem de coração negro.
O sorriso de Alaina sugeria uma leve desconfiança.
— Senhor, suponho que quando alguém faz uma sugestão tão escandalosa a uma senhora, na frente
do marido dela, não pode estar falando sério. — Ergueu uma sobrancelha e sorriu. — Se algum dia
disser algo parecido em particular, vou desconfiar muito dos seus motivos.
- Bem — disse Braegar, com humor. — Cole atira muito bem. Dizer qualquer coisa escondido dele
pode ser muito perigoso.
- E ele é um conquistador de primeira — resmungou Cole, secamente, sem tirar os olhos da floresta,
agora muito escura e envolta na neblina. — Seu objetivo é sempre desonrar qualquer mulher, tola o
bastantepara se deixar levar por sua conversa envolvente.
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Braegar aceitou a observação com um longo suspiro.
— Minha família também se queixa e minha mãe está sempre ameaçando me deserdar. Não pode
imaginar como as mulheres se aproveitam da minha natureza gentil.
Certa de que tudo não passava de piada, Alaina sorriu, mas ficou séria imediatamente quando Cole
olhou para ela de soslaio, erguendo uma sobrancelha. Alaina abaixou a cabeça e alisou a manta sobre
os joelhos. Cole olhou com desprezo para o chapéu preto com véu. Alaina insistia em usá-lo, mesmo
sabendo o quanto isso o desagradava.
Braegar não notou essa troca de olhares.
— Minha mãe esperava ansiosamente pela sua volta, Cole — disse ele. — Está convencida de que
deve dar sua aprovação a este casamento e impaciente para conhecer sua esposa. Se for conveniente,
ela gostaria que você e Alaina fossem jantar em casa amanhã à noite.
Cole franziu a testa.
— Infelizmente, amanhã espero o advogado para tratar de alguns negócios.—Deu de ombros, vendo
a expressão preocupada de Alaina. — Entretanto, não vejo motivo para que o jantar seja impedido
por negócios. Se quiser trazer Carolyn e sua mãe, estou certo de que Alaina terá o maior prazer em
recebê-las.
Com jovial curiosidade, Braegar perguntou:
— Será que também estou sendo convidado?
— Acho que Annie vai adorar sua presença — respondeu Cole, secamente. — Vocês, os irlandeses,
gostam de estar sempre juntos.
— Annie é uma jóia rara, Cole — riu Braegar. — Você devia se convencer disso.
Cole sacudiu a cinza do charuto.
— Não creio que você possa dizer o que ou quem devo apreciar.
Braegar olhou para Alaina apreciadoramente, ignorando a carranca de Cole.
— Acho que você se saiu muito bem sem minha ajuda. Mas sua jovem esposa parece ser o melhor
esforço que já fez até agora. — Piscou para Alaina, quando ela ergueu os olhos e continuou: — Se
seus negócios o obrigarem a se ausentar amanhã à noite, Cole, farei o melhor possível para entreter
sua mulher.
Os olhos azuis brilhantes voltaram-se para o amigo inexpressiva-mente, depois, com lentidão
deliberada, Cole tirou o charuto da boca e o examinou com atenção, girando-o entre os dedos.
Ergueu os olhos
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novamente e se não fosse pela frieza que havia neles, sua resposta poderia parecer bem-humorada.
— Nesse caso, terei simplesmente de considerar sua presença e arranjar meus negócios de acordo.
Alaina percebeu a incerteza que passou rapidamente pelos olhos de Braegar, por um momento
tirando o brilho da sua jovialidade.
— Ora, Cole, não está preocupado com a minha reputação, está? Deve saber que não passa de
exagero das más línguas.
Alaina não conseguiu definir a expressão de Cole. Podia ser desgosto ou irritação. Mas os músculos
do seu rosto ficaram tensos e ele aparentemente controlou-se para não responder. Impaciente,
apagou o charuto e continuou a olhar pela janela.
Passavam agora entre árvores altas, uma vez ou outra chegando até o rio e voltando para a floresta
outra vez. A luz fraca do fim do dia começava a desaparecer no horizonte, mas a noroeste
relâmpagos riscavam o céu, iluminando as nuvens pesadas. O vento tocava as copas das árvores,
fazendo estremecer as folhas e esgarçando a neblina, porém, mais perto do solo, nem uma brisa
soprava. Quando deixaram a proteção do bosque, foi como abrir a porta para uma tempestade
furiosa. Rajadas violentas de vento varriam os campos, açoitando os cavalos com as folhas soltas.
Alaina viu de relance uma grande mansão no alto de um penhasco, de frente para o rio. Então, a
carruagem entrou numa curva e árvores altas bloquearam a vista da casa. A carruagem parou
finalmente, e Olie saltou para segurar os bridões dos animais. Cole abriu a porta e desceu. Apoiado
na bengala, contemplou as nuvens turbulentas, verde-acinzentadas, que se agitavam no céu, depois,
voltou-se para Braegar e disse:
— Não vai conseguir chegar em casa antes da tempestade. Acho melhor ficar para jantar.
Braegar desceu também e com os polegares nos bolsos do colete olhou para o céu. Uma violenta
rajada de vento atingiu as árvores, balançando as copas num ritmo frenético, e os relâmpagos
dançavam no céu, dominando todo o espaço escuro.
— Vou ajudar Olie com os cavalos — disse ele, acenando para Peter, o filho do cocheiro, que já
estava ajudando o pai a descarregar a bagagem. Braegar segurou a ponta da orelha e, olhando para
Cole, disse, cuidando para que Alaina não o ouvisse: — Não costumo impor minha presença a dois
recém-casados na sua primeira noite. Mesmo
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assim, se fosse você, Cole, eu teria ficado no hotel por um bom tempo antes de voltar para casa,
cheia de criados.
Braegar, sem saber, atingiu um ponto delicado. Rindo da próprja piada, montou no seu garanhão e
galopou, descendo a colina. Cole o observou com ar preocupado.
Alaina apareceu na porta da carruagem, e Cole aproximou-se para ajudá-la a descer. Com um sorriso
estranho, como se acabasse de ouvir uma piada de mau gosto, ele estendeu o braço para a casa
escura.
— Latimer Housa lhe dá as boas-vindas, minha senhora.
Pinhos retorcidos, cedros e umas poucas e mirradas árvores decíduas, nodosas e quebradas pelo
vento, enrugadas pelos invernos gelados, agrupavam-se muito perto da casa, escondendo algumas
das janelas do primeiro andar. A pedra cinzenta e trabalhada erguia-se do meio das árvores,
inclinando-se para dentro, formando uma parede lisa. A partir do segundo andar, a estrutura era de
tijolos e os detalhes mais adornados. As janelas da parte superior eram estreitas e altas, com vitrôs de
cristal que pareciam piscar, refletindo os relâmpagos. A varanda na frente parecia ter sido construída
muito depois da casa. 0 telhado inclinado, de duas águas, erguia-se agressivo para o alto, e uma
plataforma protegida por grade de ferro trabalhado estendia-se entre as duas torres laterais. A
silhueta da casa desenhava-se irregular contra o céu tormentoso, riscado de púrpura e cinza e negro,
fracamente iluminado pelos últimos vestígios da luz do dia.
Por um momento Alaina teve a impressão de que, no topo do penhasco, se agachava um monstro
ameaçador e antigo, apertando o corpo numa agonia, tentando se defender dos tormentos que ainda
guardava. Alaina procurou afastar esses pensamentos absurdos. Não sabia coisa alguma sobre aquela
casa, mas estava certa de que, dada uma oportunidade, dentro de pouco tempo o riso e a alegria
cantariam entre suas paredes. Ultimamente, grande parte da sua vida fora de sofrimento e luta.
Estava na hora de esquecer o passado recente e procurar os melhores momentos que a vida podia
oferecer.
Alaina olhou para Cole, procurando defender os olhos das gotas de chuva trazidas pelo vento. Com
o braço estendido para a casa, ele disse em voz alta, para superar o silvo do vento:
— Acho melhor entrarmos antes da tempestade.
O vento açoitava as roupas deles. Com os movimentos dificultados pelas anáguas, que pareciam
puxá-la para trás, Alaina adiantou-se
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com um esforço em cada passo. De repente, o chapéu foi arrancado da sua cabeça e antes que ela
pudesse segurá-lo, as fitas frouxamente amarradas sob o queixo se abriram. O chapéu voou,
libertando-se numa dança louca, fugindo do seu alcance.
Deixe que o vento o leve! — exclamou Cole com satisfação.
Alaina viu o chapéu desaparecer dentro da noite. Afastando o cabelo do rosto, ela voltou-se para
Cole. Ele observava com prazer o pequeno objeto negro, que rodopiava ao vento.
— Não precisa ficar tão satisfeito — disse Alaina, secamente, passando por ele, ignorando o vento
que erguia a saia e a anágua.
Com um largo sorriso, Cole caminhou para a casa. Estavam ainda na escada quando começaram a
cair grandes gotas de chuva, o prenúncio da torrente que se seguiu. Um homem alto e magro abriu a
porta maciça de carvalho e apanhou os agasalhos do patrão.
— Não tínhamos certeza de que fosse voltar esta noite, senhor. Murphy disse que ia ficar no hotel.
— Uma mudança nos planos, Miles — disse Cole, tirando o casaco de Alaina. Apresentou-a ao
mordomo e depois disse: — O dr. Darvey logo estará aqui. Quer avisar Annie de que ele talvez fique
para jantar?
O mordomo inclinou a cabeça, observando discretamente a nova patroa. O vestido era simples e
deselegante, mas ela o usava com uma graça e uma pose que eram um prazer para os olhos. Parecia,
quieta e reservada, mas observadora e inteligente. Miles imaginou se alguma coisa escapava àqueles
olhos cinzentos. O olhar que Alaina dirigiu ao criado era honesto, gentil e tranqüilo. O mordomo
resolveu que devia ser mais cuidadoso dessa vez. A primeira sra. Latimer também era bonita, mas
sem aquela honestidade aberta e observadora.
Peter, o jovem ajudante, parou perto da escada, curioso para ver a nova patroa, e Miles, de passagem,
o empurrou levemente, lembran-do-o dos seus deveres. O sorriso com que o jovem contemplava
Alaina passou de tímido a embaraçado e ele apressou-se a subir a escada com a bagagem.
— Você enfeitiçou o garoto — disse Cole bruscamente. — Eu nunca o vi tão atordoado.
Descendo os pequenos degraus do vestíbulo, Alaina atravessou o hall de entrada, passando as mãos
nos braços, sentindo a umidade da
Talvez, major, ele apenas esteja com medo do senhor.
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— Eu nunca o vi agir desse modo antes.
— Como nunca o vi antes, não posso discutir isso, mas não acredito na sua insinuação de que minha
simples presença possa perturbar seus criados — voltou-se para ele —, ou, como foi que o senhor
disse certa vez, erguer muito mais do que o espírito do jovem? — Olhou friamente para o marido.
— Garanto, senhor, que essa não é a minha intenção.
Evitando o olhar de zombaria de Cole, Alaina examinou o hall. Os lampiões a óleo pouco
contribuíam para alegrar o ambiente. A escada enorme de pau-rosa trabalhado ficava junto à parede e
o tema de folhas de videira do entalhe repetia-se nas colunas do hall. Aquele conjunto era
extravagante e um tanto confuso, mas tudo brilhava com a ordem e a limpeza características do
dono.
Com as duas mãos apoiadas na bengala, Cole disse, com leve ironia.
— Com o tempo, vai se acostumar.
Temendo que seu desagrado fosse aparente, Alaina passou a mão numa coluna caprichosamente
entalhada.
— Eu estava apenas admirando o trabalho da madeira...
Cole desceu os dois degraus que separavam a porta de entrada do hall e olhou para ela com ar de
dúvida.
— Eu sempre respeitei sua franqueza, Al, mesmo quando não é muito elogiosa. Seria capaz de
comprometer seus padrões para agradar um ianque?
Alaina empertigou o corpo e respondeu com ironia.
— Quaisquer padrões, que eu porventura possuía, foram de tal modo maculados que não têm mais
nenhuma semelhança com aqueles valores preciosos da minha juventude. — Com voz mais terna,
continuou: — Acho que isso faz parte do crescimento. Desistir dos sonhos em favor da realidade é o
preço que todos temos de pagar.
Cole sorriu.
— Disse muito bem, minha senhora. Alaina viu com desconfiança a aprovação no rosto dele. O
calor e o riso dos olhos azuis aumentaram sua confusão. Cole olhou para o alto da escada. Alaina
acompanhou o olhar dele mas viu apenas sombras escuras.
— Mindy? — perguntou Cole, com voz suave.
Alaina olhou para ele, imaginando o que Cole podia ter visto na
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escuridão do alto da escada. Ouviu o som rápido de um movimento furtivo, mas quando ergueu os
olhos outra vez não havia ninguém.
Então passos apressados soaram, vindos de outra direção e com um farfalhar de saias de tafetá, uma
mulher de cabelos escuros cruzou o patamar no topo da escada e parou, olhando para baixo. Por um
segundo, ela pareceu uma ilusão, um retrato inacabado, abandonado pelo artista quando percebeu
que o modelo havia envelhecido além da beleza feminina e que ele a capturara exatamente como era.
O cabelo negro, com poucos fios brancos, estava penteado severamente para trás e preso em um
coque simples, na nuca. Um longo avental branco cobria a frente do vestido negro que, com a gola e
os punhos brancos engomados, fez Alaina lembrar dolorosamente o que vestia.
.— Boa noite, senhor, senhora. — Os olhos escuros pousaram, rapidamente, surpresos no vestido de
luto de Alaina.
— Peter trouxe a bagagem da senhora, senhor, e não sei qual o quarto que devo preparar.
Cole tirou o relógio do bolso para esconder sua ira. So a idéia dessa decisão o irritava muito.
— Mostre os quartos para a sra. Latimer, sra. Garth, e deixe que ela escolha.
A mulher inclinou levemente a cabeça e olhou outra vez para Alaina.
— Se quiser ter a bondade de me acompanhar, senhora. Sentindo o olhar atento e severo de Cole,
Alaina subiu a escada.
A escolha podia ser sua, pensou, mas ficava subentendido que a suíte principal não estava na lista.
Cole podia satisfazer seus caprichos, mas era tudo que ele desejava do casamento — e dela. A
governanta conduziu-a pelo corredor.
— Vou mostrar o quarto da primeira sra. Latimer — disse ela. — Dá para o rio e é muito elegante.
Ela o preferia aos quartos menores.
— E o seu patrão. — Alaina não pôde deixar de perguntar. — onde ele dorme?
A sra. Garth não pareceu surpresa com a pergunta.
— O dr. Latimer dorme onde tem vontade, senhora. Exceto quando a perna o incomoda. Então,
acho que ele não dorme.
A governanta entrou num quarto escuro e começou a acender os lampiões. Desse modo, Alaina foi
vendo o aposento aos poucos. Veludo vermelho-escuro cobria as paredes. O teto era revestido de
seda vermelha, franzida num apanhado no ponto de onde pendia o
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lustre de ouro e cristal. Era como estar dentro de uma tenda ricamente decorada. Havia vermelho e
dourado por toda a parte, e o chão era coberto por preciosos tapetes orientais. Almofadas grandes e
elegantes amontoavam-se na frente da lareira de mármore ricamente trabalhado, junto com uma
espreguiçadeira. Se havia janelas, estavam bem escondidas atrás das cortinas pesadas, debruadas com
borlas douradas. No meio de todo aquele luxo, a cama coberta de cetim dourado reinava absoluta.
Era o tipo de decoração espalhafatosa e exagerada que descambava para o mau gosto e o vulgar,
como os pesados ornatos barrocos.
A sra. Garth, sem notar o desagrado de Alaina, abriu o guarda-roupa. Dentro dele amontoavam-se os
vestidos avidamente colecionados por Roberta, mas raramente usados. Foi demais para Alaina. Sem
uma palavra, fez meia-volta e saiu do quarto. No outro lado do corredor viu uma porta meio aberta e
a empurrou. Comparado ao quarto que acabava de ver, aquele parecia vazio e árido. A lareira de
tijolos estava escurecida, mas sem cinzas, e Alaina sentiu uma corrente de ar frio. Uma cama com
dossel, coberta por uma simples colcha de retalhos, uma mesinha-de-cabeceira, um guarda-roupa de
madeira lisa e uma bergère eram todo o mobiliário do quarto. Sobre o assoalho de tábua simples
havia dois pequenos tapetes. Mas o quarto, no canto posterior da casa, tinha uma magnífica vista
para o rio e para as colinas a oeste. Cortinas de linho cobriam as janelas, permitindo a entrada da luz
do sol durante o dia.
— Este quarto está ocupado? — perguntou Alaina.;,;,,
A sra. Garth, parada na porta, atrás dela, respondeu:
— Não, senhora.
— Então pode mandar Peter trazer para cá minha bagagem. –
— Sim, senhora. — A governanta atravessou o quarto e abriu a porta que dava para o pequeno
banheiro, onde havia uma banheira de metal, um lavatório com bacia de porcelana branca, uma jarra
e outras conveniências, simples mas úteis, tudo que era necessário para o conforto.
Alaina ouviu os passos irregulares de Cole no corredor. Ele entrou no quarto e olhou em volta, com
o mesmo sorriso de quando o vento carregara o chapéu de Alaina. Inclinou a cabeça, dispensando a
sra. Garth, que saiu, fechando a porta. Erguendo uma sobrancelha, Cole olhou demoradamente para
Alaina, até perceber a expressão irritada dela. Então, com uma risada, ele disse:
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- Então! Não gostou do quarto vermelho.
Alaina entrecerrou os olhos, querendo descobrir o que havia de tão engraçado na sua escolha.
— Eu preferia estar na tenda de um sultão com a ameaça iminente de violação. Pelo menos, tenho
experiência suficiente para saber que poderia sobreviver a isso.
Cole foi até o banheiro e inspecionou a jarra de água antes de olhar outra vez para ela com aquele
sorriso irritante.
— O que a desagrada no quarto vermelho? — Deu de ombros. — Roberta gostava dele.
Alaina rilhou os dentes, frustrada.
— Já nos confundiu uma vez antes, major.
— Sim, e está sempre me fazendo lembrar disso. — Pôs a mão na maçaneta da outra porta do
banheiro, mas depois, como que reconsiderando, atravessou o quarto e chegou à porta. — Annie vai
servir o jantar dentro de pouco tempo. Eu a espero na sala de estar.
Alaina compreendeu o que diziam os olhos dele. Devia se vestir adequadamente para o jantar.
A tempestade desceu sobre a casa com a ferocidade de um animal enlouquecido. A chuva cascateava
pelos vitrôs das janelas, e os relâmpagos estalavam num crescendo ameaçador. Alaina foi ao
encontro dos homens, na sala, procurando aparentar calma, a despeito da turbulência que se
desencadeava sobre a mansão. Sua aparência era bem melhor, agora que, com certo alívio, trocara o
vestido preto pelo cinza de seda.
Cole estava de pé, de costas para o fogo, mas se voltou para a porta quando Braegar parou de falar
no meio de uma frase e levantou-se, apressado.
— Está maravilhosa, minha senhora — disse Braegar, adiantan-do-se para conduzi-la à cadeira que
acabava de deixar. — Sua beleza empalidece o encanto de uma flor de magnólia na primavera.
— Conhece tão bem a magnólia, dr. Darvey? — perguntou ela. Sua risada suave e melodiosa como
sinos de prata numa noite calma de inverno penetrou na mente de Cole, envolvendo-a numa teia de
encantamento.
Ele olhou para toda aquela beleza, mas, ao contrário de Braegar, não fez nenhum comentário.
— Antes da guerra, fui muitas vezes à Louisiana — disse Braegar,
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sentando-se. Ansioso para conversar com uma mulher tão bela, sorriu malicioso e continuou: — Se
soubesse que era onde a senhora morava, eu teria atravessado o pântano mais profundo para cortejá-
la.
Cole disse com ironia:
— O anjo da guarda dela devia estar fazendo horas extras. Braegar respondeu, com bom humor:
— Eu poderia acreditar nisso... se não fosse o fato de ela estar casada com você. — Voltou-se outra
vez para Alaina e, apoiando os cotovelos nos joelhos, segurou o copo de conhaque entre os dedos
longos e fortes. — Francamente, começo a pensar que cometi um erro quando não me alistei. Cole
parece ter sido mais do que recompensado por seus sofrimentos. Na verdade, invejo a sorte que o
levou a conhecê-la.
Alaina riu.
— E eu começo a pensar que o senhor é um conquistador, dr. Darvey, e que seu entusiasmo não se
deixa abalar com o fato de eu ser casada.
— Mulheres casadas são mais seguras — resmungou Cole. —É difícil imaginar quantos maridos
foram enganados por causa dele.
Braegar ergueu as mãos abertas, num gesto de súplica.
— Eu sou inofensivo!
— Duvido — rosnou Cole.
Alaina deu um suspiro de alívio quando Miles anunciou que o jantar estava servido. A sala de jantar,
como todo o resto da casa, era decorada com ostentação e exagero. A mesa era comprida demais, as
cadeiras grandes demais. Tudo era rica e pesadamente trabalhado, com uma grandiosidade quase
sufocante. Cole observou a reação de Alaina, que olhou em volta com o rosto inexpressivo, evitando
qualquer demonstração que pudesse levá-lo a duvidar da sua credibilidade outra vez.
As portas das sacadas abriam-se para o leste e quando um relâmpago cortava o negror do céu
tempestuoso, os cristais cintilavam com uma infinidade de gotas de chuva. Além das janelas e abaixo
do penhasco, o rio sinuoso aparecia através das árvores que, açoitadas pelo vento, se encolhiam
contra a casa.
Depois de conduzi-la a uma extremidade da mesa, Cole sentou-se na outra, com Braegar no meio. a
porta de vaivém da cozinha se abriu e uma mulher gorducha e grisalha entrou na sala e pôs uma
travessa fumegante, com batatas, bem no centro da mesa. Depois recuou com
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um suspiro satisfeito. Com as mãos na cintura, ela cumprimentou Braegar e examinou Alaina
atentamente.
— Sim, muito bonita, sem dúvida — disse, com um gesto afirmativo e apresentou-se: — Meu nome
é Annie, meu bem. Annie tyíurphy- Eu cuido da cozinha e faço a comida. — Olhou para Cole e
apontou com o polegar. — Embora o meu trabalho não seja apreciado pelo senhor, ali. É uma
vergonha eu ter de me apresentar, quando há tanto tempo cuido do conforto dele. — Olhou
significativamente para o copo na mão de Cole.
— Você gosta de criar caso, Annie Murphy — disse Cole.
— Hum. Muito obrigada, senhor, pelo comentário. Gostaria que eu dissesse o que penso do senhor?
— Deus me livre.
— Devia ser um cavalheiro como este aqui — indicou Braegar com uma inclinação da cabeça. —
Ele, sim, tem modos finos, sempre rindo e falando bem de todos. — Fez uma pausa, considerando a
distância entre Cole e Alaina, depois franziu os lábios, pensativa. Saindo da sala, comentou em voz
baixa, mas para ser ouvida: — E o sr. Braegar é também muito mais amistoso!
O irlandês quase se engasgou de tanto rir. Alaina sorriu caridosamente para Cole, satisfeita por ver
que ele corava.
— Como deve ter percebido — advertiu Cole —, Annie faz e diz o que bem entende. Como
trabalha aqui há pelo menos vinte anos, está certa de que não pode ser despedida e não aceita ordens
de ninguém.
— Acho que ela é maravilhosa! — Alaina deu de ombros e voltou a atenção para a comida, sem
outro comentário.
Durante a refeição, Braegar ficou encarregado da conversa, pois Cole manteve um silêncio
obstinado. Alaina notou que ele não se serviu de batatas, apenas de carne e vegetais, ao passo que
Braegar comeu de tudo, com muito apetite. Miles servia a mesa com a maior formalidade,
demonstrando grande respeito pelo patrão, em completo contraste com a jovialidade efervescente de
Annie. Mas os dois Pareciam se dar muito bem e quando Annie o cutucou com o cotovelo,
chamando sua atenção para as batatas no prato de Alaina, ele apenas Sorriu, com um gesto afirmativo.
. Aí está alguém que sabe o que é bom — disse a cozinheira, olhando para Cole. — Nem um pouco
como o senhor.
Cole não ergueu os olhos, mas murmurou secamente:
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— Uma pessoa pode aprender a tolerar quase qualquer coisa, quando esteve prestes a morrer de
fome.
— Ora, deixe disso, senhor.—Annie balançou a cabeça e foi para a cozinha, resmungando sobre
certas pessoas que se consideravam acima da boa comida irlandesa.
Como a chuva aparentemente ia durar a noite toda, foi providenciado um quarto para Braegar. Na
verdade, a tempestade passou, mas muito depois da meia-noite, deixando no seu rastro um silêncio
imóvel. A neblina envolvia a noite com fiapos brancos, enquanto lá no alto a lua flutuava entre os
vapores esgarçados. Aninhada sob o acolchoado de penas, Alaina não dormia, atenta aos passos que
conhecia tão bem agora. Aquele não era um casamento casto, não com aquela torrente de paixão que
pairava entre eles, não com os sentimentos mais de uma vez demonstrados. Amor, ódio, raiva, desejo
— afinal, havia diferença entre eles?
Alaina adormeceu suavemente, sem ouvir os passos esperados e passou para o mundo dos sonhos.
Deslizava sobre a superfície de um mar cintilante e azul, a bordo de um navio com mastros enormes
e velas largas enfunadas ao vento. Os mastros, com seu rangido ritmado, murmuravam e suspiravam
em sua mente, como se o sonho procurasse substância real. Então, de repente, estava acordada e
compreendeu imediatamente o que a havia perturbado. Sentia uma presença ao lado da cama, a
silhueta de um vulto alto, delineada contra as janelas do quarto.
— Cole? — suspirou ela.
Ouviu a porta se fechando e compreendeu que estava sozinha outra vez. Só depois de muito tempo,
porém, aquela sombra silenciosa deixou sua mente.
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Capítulo Vinte e Nove
ALAINA ACORDOU com o nascer do dia e por um momento aninhou-se mais entre as cobertas,
temendo o momento de pôr os pés no chão frio. Finalmente, cedendo ao inevitável, descobriu-se e
pôs um xale sobre os ombros. Com toda aquela pedra e tijolos e seu porte de fortaleza, a casa era fria
e cheia de correntes de ar. Aquele agasalho fino não serviria de proteção num inverno rigoroso, a
julgar pela amostra do seu hálito gelado.
Atravessou o quarto correndo e sentou-se de pernas cruzadas ao lado da lareira alta, aproveitando o
resto de calor. Jogou sobre as brasas lascas de lenha e com os foles atiçou o fogo até as chamas
aparecerem. Adicionou achas de lenha e logo o calor era tanto que ela recuou. Aquecida, foi até a
janela para sua primeira visão do campo do norte. Seus olhos beberam avidamente aquela beleza
magnífica, o rio lânguido, a névoa transparente, que deslizava na superfície da água, o brilho das
árvores e o rochedo escarpado no outro lado. Deixando a janela, resolveu preparar o banho. Porém,
não havia água no pequeno banheiro. Com relutância, envolveu-se outra vez no xale e desceu para a
cozinha, à procura de Annie. Viu a água, que fervia num largo caldeirão de cobre, sobre o fogão de
madeira. Annie desculpou-se e disse:
Logo vou mandar Peter com a água para seu banho, meu bem.
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E agora que sabemos que costuma levantar cedo, não precisará mais descer.
Voltando para a escada, Alaina notou que a porta do escritório de Cole estava entreaberta e espiou
para dentro. Franziu o nariz com repugnância quando sentiu o cheiro de fumo e bebida, mas, apesar
disso, era talvez o lugar mais confortável da casa. Os livros nas estantes cobriam as paredes, e a mesa
grande ficava ao lado da janela redonda. Na frente da lareira havia um sofá de couro ladeado por
duas cadeiras e uma mesinha de centro. Aquele escritório tipicamente masculino combinava muito
mais com a personalidade do dr. Latimer do que todo o resto da casa.
À luz fraca do amanhecer, Alaina viu Cole sentado na cadeira, de frente para a janela. Os pés estavam
apoiados numa banqueta e as pernas cobertas com uma espessa manta de lã. O colarinho do paletó
de veludo estava levantado, quase cobrindo o queixo. Silenciosamente ela aproximou-se da cadeira e
viu a caixa de charutos aberta sobre a mesinha, o cinzeiro de vidro repleto e o copo de conhaque
quase vazio. Cole acordou e os olhos de Alaina encontraram os dele. Ela segurou as pontas do xale
na cintura e de repente percebeu que a sala estava muito fria.
— Dormiu aqui? — perguntou Alaina, curiosa. Cole passou a mão no rosto.
— Às vezes, minha perna obriga-me a ficar sentado... não deitado... e fazendo exercício uma vez ou
outra. Praticamente já desisti do conforto de uma noite inteira na cama.
Alaina lembrou do vulto no seu quarto naquela noite, imaginando o que ele estaria pensando ao vê-la
dormir. Passou a ponta do dedo na borda do copo e disse:
— Há sempre a solução de Magruder.
Cole franziu a testa.
— Sua simpatia é demais para mim.
Alaina inclinou levemente o copo.
— Parece que está dependendo muito da bebida para seu conforto
— Não sei de nada melhor para conseguir um pouco de conforto, sem enfrentar reclamações.
— Suponho que está se referindo à sua falecida esposa — respondeu ela —, uma vez que eu nunca
reclamo de coisa alguma.
— Tem razão. Mas procuro não lhe dar as costas, temendo que possa usar a arma que estiver à mão
para se vingar de mim.
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— E eu, senhor, a partir de agora serei mais cuidadosa no meu quarto. — Cole ergueu os olhos, e ela
perguntou, inocentemente: — Ou será que tinha algum assunto importante para discutir comigo?
Cole apanhou um charuto e o examinou atentamente.
— Na verdade, minha senhora, temos muito que conversar. Alaina inclinou-se para a frente, e Cole
desviou os olhos dela.
— Será que me enganei, senhor? Pensei que tínhamos encerrado o assunto no hotel.
Cole acendeu o fósforo com a ponta da unha e observou a chama.
— Não se iluda, Alaina. O assunto está longe de estar resolvido. Soaram passos no corredor e com
uma breve batida à porta, a sra. Garth entrou carregando uma bandeja com café quente e conhaque
numa garrafa de cristal. A governanta serviu o café para Cole com uma boa dose de bebida e depois
de esvaziar o cinzeiro e apanhar o copo usado, saiu da sala.
— É isso que toma de manhã? — perguntou Alaina, surpresa.
— Deve experimentar, meu amor — respondeu ele, zombando. — Ouvi dizer que aquece o coração
mais frio.
— Não vejo nenhum sinal de ter aquecido o seu, major—e dando meia-volta saiu da sala, sem
esperar resposta.
Voltando para o quarto, Alaina começou a escolher a roupa para aquele dia. Não havia lugar no
armário alto para seu limitado guarda-roupa. Estava repleto de vestidos de noite, casacos, roupas
caseiras, como o do quarto de Roberta. Precisava encontrar um lugar para guardar a roupa da prima,
resolveu Alaina. Não as queria no seu quarto.
Tirou vários vestidos caros e pôs sobre a cama. Depois foram as capas, longas e curtas. Casacos,
sapatos, chapéus. A maior parte parecia nunca ter sido usada. Atônita, Alaina olhou para aquelas
roupas postas de lado por Roberta, mais ricas e luxuosas do que Qualquer coisa que uma MacGaren
jamais vira. Tudo fora escolhido com cuidado, cada peça era uma preciosidade nos detalhes e no
corte, avia sedas e veludos, tafetá xadrez e liso, chapéus com plumas ou teitados com véus
transparentes para serem usados presos sob o queixo. Entristecida com tanto desperdício, lutou
contra a depressão que ameaçava minar seu orgulho. Como seria fácil ceder ao desejo de Cole e
permitir que ele a vestisse com todo aquele luxo.
Alaina usou cinco dos seis baldes de água quente para tomar um banho demorado. Depois de
suportar por tanto tempo a sujeira de Al,
381
prometeu a si mesma que desfrutaria completamente o prazer de ser mulher. Com esse objetivo em
mente, usou o perfume dado por Cole, achando que isso não comprometia de modo algum sua
recusa em usar as roupas. Passou loção na pele limpa e macia, sentindo o prazer de uma toalete
demorada. Escovou os cabelos até conseguir um brilho acetinado, deixando-os soltos, e vestiu as
calças de algodão. Procurando não pensar na roupa de baixo finíssima que Cole queria que usasse,
sentou-se na beirada da cadeira para colocar as meias pretas de algodão que iam até os joelhos. O
espartilho estava agora com as fitas retiradas do outro, dado por Cole. Mesmo depois de ele ter
jogado no chão suas roupas, Alaina cedeu apenas no uso das fitas. Mas a tentação era grande. As
meias de seda eram um luxo que ela jamais experimentara e o espartilho uma visão de sonho.
Uma porta bateu com força e Alaina ficou imóvel, apavorada. Alguém estava no quarto! Alguém
com uma bengala e um passo claudicante! Olhou para o espelho de corpo inteiro, levado para seu
quarto na noite anterior, antes do jantar, e lá estava ela, com os braços erguidos acima da cabeça, no
ato de vestir a combinação, o busto nu e os olhos cinzentos arregalados. Então Alaina compreendeu
a expressão de zombaria do marido na noite anterior. A outra porta do banheiro dava para o quarto
de Cole! Entre tantos quartos daquela casa, escolhera justamente aquele!
Com os dentes cerrados, Alaina acabou de vestir a combinação, pensando que cada farfalhar de
fazenda certamente fazia Cole lembrar sua presença. Foi para o quarto de vestir e fechou em silêncio
a porta que dava para o banheiro. Na noite anterior notara que nenhuma porta da casa tinha chave,
exceto a da frente.
Consternada, ouviu abrir a outra porta do banheiro. Seguiu-se o ruído de água, e logo após outro,
que só depois de algum tempo ela reconheceu. Cole estava afiando a navalha para fazer a barba.
Recomeçou a se vestir apressadamente. Enquanto ele se barbeava, teria tempo para terminar a
toalete.
Vestiu o velho espartilho, com cuidado para não fazer nenhum ruído. As fitas novas, enfiadas nos
ilhoses, embaraçaram-se, dando nós impossíveis de serem desfeitos. Mordendo o lábio, Alaina tentou
desfazer os nós nas costas e depois virou o espartilho de trás para a frente. Tudo que conseguiu foi
uma unha quebrada e o fim da sua paciência. Então a porta do quarto de vestir se abriu. Vestido
apenas
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com a calça, Cole encostou-se no batente, limpando o resto da espuma DO rosto e observando a luta
de Alaina com o espartilho.
Com uma exclamação de desespero, deu as costas para o marido e virou o espartilho para aposição
certa, mentalmente saboreando todas as desgraças que podiam se abater sobre o idiota que invadia
daquele modo a privacidade de uma dama.
Não existem chaves na sua casa, major?—perguntou, furiosa.
Nunca precisei delas—respondeu ele, confiante.—Tudo que está aqui é meu.
Alaina virou a cabeça e olhou friamente para ele.
- Suponho que estou incluída nisso.
— Especialmente você, meu amor — riu ele. Pôs a toalha no ombro nu e claudicou até ela para
desvencilhar os nós do espartilho. Como por mágica, as fitas desembaraçaram-se rapidamente sob
seus dedos. Cole ajeitou o espartilho e começou a apertar as fitas.
Olhando por sobre o ombro, Alaina procurou parecer mais indignada do que estava, mas a verdade
era que aquilo lhe dava prazer. Além disso, Cole manejava tão bem as fitas que certamente era
melhor deixar o trabalho a cargo dele.
Terminada a tarefa, Cole acariciou ternamente o traseiro redondo e bem-feito e depois, empurrando
o cabelo de Alaina para o lado, murmurou no ouvido dela.
— Todos dizem que é bom aquilo que acaba bem. Mas você, menina, é a coisa mais bem acabada
que já vi... bem, que já vi durante muito tempo.
Não preparada ainda para perdoar a invasão da sua privacidade, Alaina virou o corpo rapidamente e
só muito tarde percebeu seu erro. Estava muito perto do peito largo e forte e um olhar de relance
para o espelho a informou de que não estava tão vestida quanto pensava. Um tremor percorreu seu
corpo, que nada tinha a ver com medo. Não podia se afastar dele sem parecer que estava fugindo e
estendeu a mão para a anagua. Numa tentativa de ignorá-lo para assim apressar sua partida, começou
a vestir a anágua, rapidamente, pela cabeça. Não queria Parecer vulnerável, mas Cole Latimer era
uma ameaça real à sua paz de espírito e à sua compostura.
Entrou aqui por alguma razão especial?—perguntou ela, com o rosto sob a roupa.
" Sim, queria falar sobre uma coisa.
alaina ajeitou a anágua na cintura e viu Cole encostado na cama,
383
contando algumas notas de dinheiro. Aproximando-se, enfiou um grosso maço de notas entre os
seios dela.
— Foi uma anfitriã encantadora a noite passada. Braegar ficou muito bem impressionado.
Rubra de indignação, Alaina apanhou o dinheiro e, puxando com um dedo o cós da calça dele, o
devolveu do mesmo modo que tinha recebido. Com um sorriso tenso, disse:
—Eu jamais aceitaria seu dinheiro, major Latimer.
Cole ergueu uma sobrancelha.
— Mudou de idéia?
— Oh, não se preocupe, major. Estarei aqui para protegê-lo das frivolidades sociais, mas pode
guardar seu dinheiro.
Cole foi até a cama e ergueu a manga de um vestido de tafetá cor-de-rosa.
— Se não aceita o dinheiro, então isto deve valer quase a mesma coisa.
Atônita e ofendida com a sugestão, Alaina disse:
— Quer que eu use as roupas de Roberta?
A fúria nos olhos dele fazia parecer carícia a zanga dela.
— Acha que eu vestiria minha mulher com roupas usadas? — Com um gesto largo mostrou as
roupas empilhadas na cama. — Tudo isto foi comprado para a senhora!
— Oh, major—gemeu Alaina, embaraçada com o próprio engano. — Jamais poderei pagar sequer
uma pequena parte de...
— Major! — trovejou ele. A raiva era como uma tempestade no seu rosto. — Que diabo, mulher,
também afiou as garras para me atormentar? Vai receber meus convidados desta noite de modo a me
fazer parecer um homem mesquinho e miserável? Eu proíbo!
Alaina cerrou os dentes num desafio obstinado. Furiosa, respondeu.
— Eu me vestirei de modo que não terá nada a reclamar, major Latimer!
— Vai se vestir como deve se vestir minha mulher! E se não consegue me tratar de modo mais
carinhoso, pelo menos na frente dos convidados use meu primeiro nome!
Cole saiu do quarto e os ouvidos de Alaina zuniram com a batida da porta do banheiro.
O café da manhã foi muito parecido com o jantar da noite anterior. Cole ficou em silêncio, enquanto
Braegar se encarregava da conversa
384
Logo depois, o irlandês se despediu, garantindo que voltaria à noite, com a família. Quando ficaram
sozinhos na sala de jantar, Alaina percebeu que Cole examinou seu vestido simples, de musselina
estampada cor de vinho, quando ela foi até a janela. Procurando evitar uma discussão, resolveu
escolher um assunto mais leve.
— Se me permitir, gostaria de conhecer a casa.
— Mas é claro. Vou mandar a sra. Gartb. acompanhá-la — resmungou ele. — Tenho de trabalhar
um pouco no escritório.
— Eu não estava pedindo companhia—explicou Alaina.—Não quero incomodar ninguém.
— Minha senhora — disse ele, com um suspiro cansado —, nunca a vi pedir nada e isso me irrita
quase tanto quanto as exigências absurdas de Roberta. Os criados estão aqui para nos servir. A sra.
Garth a acompanhará.
Cole levantou-se e saiu da sala. Pouco depois, quando passou pelo hall, Alaina notou que a porta do
escritório estava fechada. A sra. Garth, como guia da excursão pela casa, evitou chegar muito perto
de onde o patrão estava trabalhando.
A casa era um mistério. Os aposentos eram exageradamente rebuscados ou simples demais. A única
decoração adequada era a dos quartos dos empregados, no terceiro andar. A excursão em nada
contribuiu para animar Alaina, e ela quase se arrependeu da idéia. Toda a mansão parecia envolta
numa aura de tristeza, e ficou feliz quando pôde finalmente escapar para o ar livre. A porta do
escritório estava aberta, e Alaina imaginou que Cole devia ter terminado o trabalho e estava em
algum outro lugar da casa.
Na varanda, ela saboreou o encanto das montanhas e das florestas. A brisa, um pouco fria, enchia
seus pulmões com o perfume da primavera. Alaina caminhou até a extremidade da varanda e voltou,
familiarizando-se com a paisagem do norte que a interessava muito mais do que a casa.
Alaina parou para examinar o grande sino dependurado na varanda. Nesse momento Miles apareceu
na porta, tocou o sino duas vezes e, com uma delicada inclinação de cabeça, voltou para dentro.
Na ala oeste, Alaina passeou entre os canteiros de rosas, cheios de mato e arbustos secos e mirrados.
Ajoelhou-se ao lado de um arbusto espinhoso, onde uma única flor lutava para sobreviver, e
arrancou o mato que o rodeava, mas sua atenção chegava tarde demais, pois as folhas já estavam
queimadas pela geada da noite.
385
Alaina ficou imóvel, sentindo de repente que estava sendo observada. Com a mão em pala sobre os
olhos, ergueu a cabeça e viu que a janela do quarto de Cole dava para o jardim. Não podia ver nada
através do vidro da janela, mas teve a impressão de perceber um movimento rápido. Cole estaria lá
em cima? Alimentando seu mau humor? Arrependido de ter casado com ela?
Alaina não tinha a resposta. Na verdade, talvez jamais chegasse a compreendê-lo, pois Cole parecia
resolvido a ficar sempre longe dela.
Olie aproximou-se da casa, dirigindo uma carruagem aberta. O cocheiro parou, saltou e a
cumprimentou jovialmente.
— Está aí fora aproveitando o sol, patroa?
— Oh, sim — riu ela. — Está um dia lindo. Muito melhor do que ontem.
— Sim, sim. Um bom dia para um passeio de carruagem, talvez? Relutando admitir que Cole não a
tinha convidado, Alaina indicou o sino com um gesto.
— Para que serve isto, Olie? Miles o tocou há pouco.
— Ah, é o sinal para a gente saber no estábulo que o doutor quer a carruagem fechada ou esta aqui.
O velho patrão construiu a casa muito longe dos estábulos, que foram construídos antes.
— E este roseiral, Olie. Não tem ninguém para tomar conta dele?
— Acho que não. — Tirou o boné e coçou a cabeça, pensativo. —Não vemos o último jardineiro há
muito tempo. O antigo não voltou da guerra.
— Você também esteve na guerra, Olie?
— Estive. Cuidando dos cavalos, como agora.
Cole saiu para a varanda, vestindo calça preta de boca estreita, camisa de seda e colete de couro da
mesma cor. Com um aceno, Olie correu para ele e conversaram por alguns momentos, enquanto
Alaina observava discretamente o marido. Não podia deixar de admirar aquele corpo alto, musculoso
e bem-feito e o rosto bronzeado de sol
No silêncio que se seguiu à volta de Olie para o estábulo, Cole voltou-se para ela. O chapéu de aba
baixa escondia seus olhos, mas dava para perceber a testa ainda franzida. Alaina esperou que ele
falasse, ajeitando o xale nos ombros. Passou um longo momento, Cole não disse nada. Então, saltou
para a carruagem e, apoiando o Pé esquerdo no anteparo, levantou as rédeas, mas ficou imóvel,
olhando para o cavalo na sua frente. Observando-o discretamente, Alaina
386
caminhou até os degraus da varanda e ia começar a subir quando Cole
falou.
— Deseja alguma coisa, minha senhora?
Alaina voltou-se, hesitante.
— Não vi Saul ainda e estava imaginando como ele vai indo. Ele tem tão pouca roupa e...
.— Suba aqui — disse Cole, afastando-se para o lado e dando-lhe um lugar. — Eu a levo até Saul.
.— Vou apanhar meu chapéu — disse ela, com entusiasmo.
Nesse momento a porta se abriu, e Miles estendeu uma capa longa com capuz, comprada por Cole.
— Vai precisar disto, senhora.
Alaina olhou para Cole, imaginando se o mordomo estava obedecendo às ordens dele, mas o marido,
com o olhar distante, parecia não se dar conta do que estava acontecendo. De um modo ou de outro,
ela fora apanhada, e para não provocar uma discussão na frente do mordomo resolveu aceitar a capa.
Aceitando a mão oferecida por Cole, Alaina subiu na pequena carruagem. Ele segurou a mão dela
mais tempo do que o necessário e havia agora a sugestão de um sorriso nos seus olhos.
— Vou avisar, minha senhora, este passeio tem um preço. Durante o tempo que durar, só poderá
dizer coisas amáveis.
Contrita, Alaina abaixou os olhos.
— Cole — murmurou. — Peço desculpas por ter recusado as roupas. Se for paciente comigo,
tentarei não embaraçá-lo. Mas não vou aceitar mais do que poderei pagar...
— Por que não?—Cole olhou nos olhos dela. — Eu devo a você e a Saul mais do que posso pagar.
— Soltou a mão dela e incitou o cavalo, em voz alta, impedindo-a de responder.
Alaina segurou no braço do banco para se firmar. No ar fresco da manhã, o belo animal levou-os
num trote rápido descendo a encosta, na direção do bosque onde Olie desaparecera. Depois de dar a
volta num enorme olmo, pintado ainda de outono, entraram numa trilha estreita, com uma fileira de
álamos muito altos num dos lados. A Pequena carruagem aberta passou rapidamente pela sombra
com pimtas de sol e logo chegou a um vasto campo com um grupo de casas no meio. Entre elas havia
um longo barracão e um estábulo que dominava todo o resto como uma galinha entre os pintinhos.
Um longo latido anunciou sua chegada, e Cole fez o cavalo diminuir o passo.
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Um cão preto e enorme, quase do tamanho de um potro, que saía das moitas ao lado da estrada, os
acompanhou correndo. A carruagem parou e o cão sentou-se, esperando. Assim que Cole saltou,
com um latido de alegria o cão fez uma volta completa em torno da carruagem e do cavalo e voltou
para Cole. Parecia confuso e desapontado quando Cole ajudou Alaina a descer.
— O que é ele? — perguntou Alaina.
— Um cachorro, naturalmente. — Vendo o olhar furioso dela, Cole riu. — Um mastim.
— É lindo — murmurou Alaina.
— Eu não diria isso — resmungou Cole. Estalou os dedos e ordenou: — Soldado, venha
cumprimentar a senhora.
O cão deu alguns passos para ela, e Alaina, um pouco apreensiva, viu que a cabeça dele chegava bem
acima da sua cintura. Instintivamente, recuou, mas Soldado, calmamente, sentou-se na frente dela e
ergueu a pata, inclinando a cabeça enorme para o lado, observando-a com os olhos amarelos, como
se a estivesse avaliando.
— Ele espera que aperte sua pata — informou Cole, suavemente. Enchendo-se de coragem, Alaina
apertou a pata oferecida e a língua rosada pendeu da boca do animal, quase com um sorriso.
— Ele é manso, não é? — perguntou Alaina, cautelosa, quando Soldado foi inspecionar as rodas da
charrete. — Quero dizer... ele não come gente, come?
Ainda desconfiada, chegou para mais perto do marido quando o mastim voltou para eles num trote
rápido, mas, para seu alívio, Cole o mandou ficar sentado e esperar.
Cole olhou para ela intrigado. Não podia imaginar que Alaina tivesse medo de alguma coisa. Roberta
odiava Soldado e não o queria perto da casa, mas nunca demonstrou tanto medo. Perguntou,
incrédulo:
— Este é Al? Com medo de um animal inofensivo?
Alaina ajeitou a capa, embaraçada por se ter deixado levar pelo medo.
— Eu não disse que estava com medo dele. É só que gosto de saber em que pé estou com os
ianques e suas criaturas.
Nesse momento Cole viu Al, o garoto atrevido ali na sua frente. Olhou para o rosto que, durante um
tempo, ele acreditou ser de um menino, mas não viu nenhum motivo para ter sido enganado. Via
apenas um rosto muito feminino, delicado e bem-feito. Ali à luz do
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dia, com os olhos brilhantes e alegres, protegidos pelas pestanas espessas e o tom avermelhado dos
cabelos castanhos, acentuado pelo sol, Alaina era simplesmente estonteante. Seria possível ter
mudado tanto desde o tempo em que era Al? Ou tudo seria devido à sua cegueira?
— Se prefere não levá-lo para casa, ele pode continuar aqui, no estábulo.
Alaina deu de ombros.
— Se os modos dele são melhores do que os seus, leve-o para a casa. Acho que vou precisar de um
bom guarda-costas.
— Ah, minha senhora. — Cole riu. — O preço é realmente muito alto. Só palavras amáveis, por
favor.
— Desculpe. — Ela coçou o nariz, embaraçada. — Eu esqueci. Cole olhou fascinado para aquela
mistura de Al e bela mulher numa única pessoa.
— O sol vai queimar seu nariz se continuar andando sem chapéu — sorriu ele.
— Se não está lembrado, senhor, não tenho mais um chapéu.
— Tem outros — observou Cole. Alaina ergueu os olhos para ele.
— O senhor tem outros, major. Eu não tenho nenhum.
Cole ergueu as sobrancelhas, mas antes que pudesse responder, uma exclamação alegre o
interrompeu.
— Miz Alaina!
Voltando-se, Alaina viu Saul correndo para eles. Com um sorriso de dentes muito brancos ele se
aproximou, e, sem esquecer as boas maneiras, tirou o chapéu.
— Ora, Saul — riu ela, examinando a camisa vermelha de lã, a calça segura por suspensório de cor
viva, botas de cano alto e um colete de couro. — Quase não o reconheci em toda essa elegância.
— Sim, senhora, miz Alaina. Na verdade, eu nunca fui tão rico. Imagine, tenho mais roupas do que
posso usar de uma vez só. Até um daqueles ternos da união, com seu perdão, major, um daqueles
com botões atrás. — Coçou as costelas com um ar quase de sofrimento. — Mas acho que eles
venderam as pulgas com ele.
— A lã pode dar comichão num dia quente — riu Cole. Olhou Para trás, para o sol de outono e
perguntou: — Está com frio, Saul?
O negro abriu um largo sorriso.
— Não, senhor. Estou muito bem, obrigado.
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— Isso é bom — sorriu Cole. Com a mão nas costas de Alaina, inclinou a cabeça na direção do
estábulo. — Olie quer me mostrar alguma coisa. Não demoro.
O cão foi atrás dele, e Alaina, depois de olhar longamente para o marido que se afastava, mancando,
prestou atenção no que Saul dizia.
— O seu Cole me deu uma casa só para mim, miz Alaina. Para um ianque, tenho de dizer que ele
não é dos piores.
Alaina sorriu.
— Então, você está sendo bem tratado? E gosta daqui?
— Bom... as pessoas... elas são boas e a casa é boa e a roupa é quente. Mas, miz Alaina — Saul ficou
sério —, sinto muita falta daquele sol bonito e quente que a gente tinha lá em casa. Parece que este
daqui não aquece tão bem.
— É o mesmo que tínhamos lá — murmurou ela. — Talvez um pouco menos amistoso. —
Olhando para o estábulo, disse, como se estivesse pensando alto: — Ao que parece, o major não
sofre muito com o frio. Talvez tudo seja uma questão de costume.
— Sim, senhora, pode ser. — Apontou para trás, por cima do ombro. — Acho melhor eu voltar
para o trabalho agora. Tenho de trabalhar para não ficar devendo nada para o seu Cole, quando for
embora.
— Quando for embora?
— Oh, não quero dizer que vou agora, miz Alaina. Mas quando chegar o dia e eu puder, eu volto
para casa. Se quiser voltar também, é só me avisar. A gente vai embora do mesmo modo que veio.
— Obrigada, Saul — sua voz era um murmúrio. — Porém, como você, devo alguma coisa ao major
e não tenho meios para pagar. — Parou, vendo Soldado sair do estábulo — Conversamos sobre isso
outro dia. Acho que o major está voltando.
Saul fez um gesto afirmativo.
— Cuide-se bem, miz Alaina. E como eu disse, agente vai embora para casa quando a senhora
quiser. A gente pode mandar o pagamento para o seu Cole depois.
Saul voltou para o trabalho. Cole saiu do estábulo, e Alaina notou que parecia aborrecido. Lá no alto,
o moinho girava rangendo. A brisa sussurrava entre as árvores, e as folhas cor de ferrugem voavam à
sua frente, batendo nas pernas de Cole.
— Alguma coisa errada? — perguntou Alaina.
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Cole a ajudou a subir na charrete, sentou-se ao lado dela e só então respondeu:
— Esta noite, alguém jogou várias selas e arreios no bebedouro dos animais e pôs sal por cima.
Alaina podia imaginar o tempo e o trabalho que teriam para recuperar a flexibilidade e a maciez do
couro ou a despesa que significaria se tivessem de comprar outros jaezes.
— Por que iam fazer uma coisa dessas? Com um profundo suspiro, Cole respondeu:
— Não tenho a mínima idéia.
— Isso já aconteceu antes?
— Não, nunca.
Alaina franziu a testa, preocupada.
— Se está pensando que eu... ora, eu nem sabia onde ficava o estábulo até esta manhã.
— Eu sei disso, Alaina — disse ele, em voz baixa.
— E Saul também não faria! — garantiu ela, enfaticamente.
— Que diabo, Alaina! Não estou acusando nenhum dos dois.
— Considerando que somos os únicos rebeldes por aqui, certamente vão pôr a culpa em nós! —
insistiu ela.
— Bem, talvez alguém tenha pensado exatamente isso! Ou talvez achem que eu ajudei muito o
inimigo. Quem pode saber? Só sei que é um tremendo desperdício, nada mais.
Sentado ao lado da carruagem, Soldado levantava uma nuvem de poeira, batendo com a cauda no
chão, esperando a ordem do dono, com os olhos amarelos brilhando de antecipação. Cole bateu com
as rédeas nas costas do cavalo e disse:
— Tudo bem, Soldado. Venha.
O cão latiu de alegria e começou a acompanhar o passo rápido do cavalo. Iam tão depressa que
Alaina nem tinha fôlego para conversar, e Cole também não quebrou o silêncio. Seguiram assim,
como que ignorando um ao outro. Passaram sob árvores enormes e mesmo agora, no plano, o cavalo
não diminuiu o passo. O mato alto na beira da estrada abriu-se de repente numa clareira, e Alaina viu
uma casa grande, coberta de trepadeiras, meio escondida entre as árvores. Cole Passou sem desviar o
olhar, mas Alaina virou-se para trás, intrigada, embora as folhas avermelhadas escondessem os
detalhes, ela viu o sol refletido nos vitrôs das janelas entre a rede de trepadeiras que
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cobria a parede escura e no alto o telhado inclinado, de cedro e as chaminés de tijolos.
— O que é aquilo? — perguntou Alaina, apontando com o queixo para não largar o braço do banco
da carruagem.
— A casa velha — disse Cole, sem se voltar. — O Cottage. A primeira casa que meu pai construiu
quando veio para cá.—Franzindo a testa, continuou: — A casa principal foi construída para a minha
madrasta.
Alaina esperou, mas ele não disse mais nada, aparentemente não disposto a falar no assunto, e ela
não insistiu.
— Foi muito generoso com Saul. Eu sou muito grata — murmurou ela.
— Simplesmente tentando pagar a minha dívida. Chegaram a uma encruzilhada, e Cole fez parar o
cavalo, voltando-se para ela.
— Vocês dois salvaram a minha vida. Isso vale qualquer pagamento, qualquer coisa de que
precisarem.
— Por isso concordou com o casamento? — Alaina não podia deixar de perguntar.
Concordou? Cole recostou no banco e passou a mão na perna. Qual era o jogo dela agora? Queria
uma resposta que eliminasse qualquer idéia de violentação? Muito bem, se era isso que Alaina queria,
era o que ia ter.
— Senti que tinha uma certa obrigação... e você era quase da família... prima de Roberta.
Durante um longo momento, entreolharam-se, em silêncio. Cole compreendeu que sua resposta nem
chegava perto do que ela esperava e inclinou-se para a frente.
— O que não compreendo é por que se deu ao trabalho de me salvar, arriscando o pescoço dessa
forma.
O narizinho se ergueu no ar com toda a altivez de um nariz muito mais nobre. Não ouvindo
nenhuma resposta, Cole insistiu:
— Porquê?
Alaina deu de ombros com indiferença e, exagerando a fala arrastada do sul, retribuiu na mesma
moeda.
— Você era da família, casado com Roberta e tudo o mais. Depois, tenho uma coisa com animais
feridos. Não suporto vê-los sofrer.
Cole olhou para ela com uma expressão estranha.
392
— E isso é tudo? Só porque eu era parente?
Alaina olhou para a frente.
— Foi o que eu disse, ianque.
Cole sacudiu as rédeas e eles partiram. Dessa vez o silêncio era quase tangível, mas não podiam
ignorar a proximidade dos seus corpos no pequeno banco da carruagem. Cole tentou pensar em
outras coisas, mas não era fácil deixar de sentir a presença daquela mulher que o interessava tanto.
— Com todos os rostos dos seus disfarces—disse ele, finalmente —, não consigo descobrir qual
deles poderia me levar ao porto seguro. Se o melhor guia seria Al, a viúva de corpo delgado e sempre
tão severa ou a tantalizante Camilla Hawthorne. E há também a outra que, embora eu tenha tido nos
braços, nunca cheguei a ver claramente.
— Não tenho nenhuma vontade de lembrar aquela noite, senhor —disse Alaina, com pedantismo.—
Muitas coisas foram ditas, muitos beijos excitantes foram trocados para que possa ser recordada com
tranqüilidade.
Desviou o rosto para não ver o riso nos olhos dele e durante um longo tempo olhou para Soldado,
que marchava ao lado da carruagem. Às vezes, pensou ela, desanimada, tinha a impressão de que
jamais se livraria do seu papel de garoto faxineiro, ou dos outros que representara.
Os ventos da tempestade tinham desnudado as árvores das suas folhas brilhantes. Apenas os
carvalhos teimosos eram mais do que fracas manchas das cores do outono. Soldado às vezes
embrenhava-se no bosque ao lado da estrada e quando seguiam pela margem do rio, entrava na água
rasa, latindo para rãs, para patos selvagens e para os pequenos peixes que saltavam assustados.
Quando chegaram na entrada de Saint Cloud, Cole fez o cavalo diminuir a marcha e com um assobio
e a ordem de "fique quieto", fez Soldado sentar na parte de trás da carruagem.
— Ele é manso—disse Cole, respondendo a pergunta que Alaina não chegou a fazer —, mas as
pessoas geralmente interpretam mal seu sorriso e além disso ele não se dá muito bem com cavalos
estranhos.
Alaina abriu a boca mas, lembrando da promessa de só dizer poisas amáveis, desistiu da comparação
que ia fazer. Segundo o velho ditado, quem não tem nada de bom para dizer, deve ficar calado.
Assim, o passeio prosseguiu em silêncio.
Depois de passarem por várias lojas, no fim da rua larga, cheia de
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lama e buracos, seguiram na direção de uma espécie de armazém baixo de tijolos. Quando se
aproximaram, Alaina viu vários homens descansando ou cochilando na calçada de madeira das docas.
Numa das portas estava pintado um anúncio de cerveja e na outra, letras simples diziam:
Clube dos trabalhadores
Cerveja 5 centavos
Comida 50 centavos -,;
Cama: Uma noite 25 centavos,
com travesseiro, cobertor, 50 centavos.
Cole parou ao lado das docas e amarrou as rédeas no suporte do chicote e depois tirou de baixo do
banco uma bengala retorcida, maior e mais pesada do que a que costumava usar. Era pintada de
preto e o cabo era nodoso e curvo. Dobrando várias vezes a perna enrijecida pela imobilidade, ele
sorriu para Alaina.
— Preciso pôr um anúncio para contratar novos empregados. Alguns dos rapazes exageraram no seu
entusiasmo para provar seu valor e muitos empregadores foram prejudicados. Entretanto, se tudo
correr bem, não devo demorar. — Com o cartaz debaixo do braço, ele desceu, apoiado na bengala.
— Eu lhe peço, minha senhora, não saia da carruagem.
— Acho que não precisa se preocupar com isso — disse Alaina, olhando para os homens que
começavam a demonstrar interesse nos recém-chegados.
Cole estalou os dedos e Soldado saltou da traseira da charrete para ficar de vigia no lugar indicado
pelo dono.
— Sentado!
O cão obedeceu.
— Fique! Vigie!
Com a língua para fora da boca, Soldado entendeu e os olhos amarelos voltaram-se para os homens
nas docas.
Depois de olhar em volta, Cole entrou no bar. Assim que ele desapareceu, os homens se
aproximaram da charrete. Não era todo dia que viam uma mulher tão bonita, e acabavam de chegar
do acampamento distante e solitário. Sem demonstrar que os observava, Alain a apanhou o chicote do
suporte e examinou o cabo trabalhado, deixando a longa tira de couro dependurada ao lado da
charrete.
Um homem grande, com cabelos louros compridos e uma barba
394
que escondia todo o pescoço e camisa de lã xadrez, adiantou-se e parou bem perto da charrete.
Soldado começou a rosnar baixinho, mas o homem, ignorando-o, ergueu o pé na direção do
pequeno estribo.
— Se eu fosse o senhor, não faria isso — avisou Alaina.
— Oh, minha senhora. Eu tenho mesmo muito medo desse cachorro — disse ele com uma
gargalhada, seguida pelos risos zombe-teiros e de aprovação dos outros homens.—Eu quebro o
pescoço dele assim! — As mãos enormes fizeram um gesto de torcer. — Se a senhora gosta do
cachorro, mande ele ficar quieto.
O homem ameaçou dar um pontapé em Soldado e o cão, semi-agachado, rosnou ameaçadoramente,
mostrando os dentes longos. O pêlo nas suas costas ficou eriçado.
— Que diabo, cachorro! Não tem nenhum respeito! — O homem olhou em volta e encontrou um
pedaço de pau de um metro de comprimento. — Vou lhe ensinar, cachorro!
Ele brandiu o pedaço de pau e acertou em cheio o peito de Soldado. Foi como bater no tronco de
uma árvore. O cão segurou a arma improvisada entre os dentes e com um movimento rápido da
cabeça a tirou da mão do homem, jogando-a para o lado. Os olhos amarelos chispavam de ódio, as
presas longas brilhavam muito brancas e com um rosnado ameaçador, o enorme animal preto
avançou.
— Soldado! — Ouvindo o comando, o cão ficou imóvel. — Sentado! — Soldado voltou para seu
lugar ao lado da charrete, com os olhos atentos e o pêlo ainda arrepiado.
O homenzarrão olhou para Cole e disse:
— É um homem de sorte! Gundar quebra o cachorro assim! — Outra vez fez o gesto de torcer e
quebrar com as mãos enormes.
— Você teve sorte! — disse Cole, apontando para Soldado com a bengala.—Essa raça de cães
persegue os lobos e os mata por esporte. O principal trabalho deles é apanhar touros selvagens e
grandes ursos. Soldado teria feito picadinho de você.
Gundar ouviu, primeiro com temor respeitoso, depois com raiva, Por ser considerado menos
perigoso do que um touro ou um urso.
— Ach! Você fala muito. — Procurou recobrar a admiração dos companheiros. — Você vai!
Gundar gosta da pequena senhora. Nós falamos depois!
Virou de costas para Cole, deu um passo na direção da charrete, e então pareceu mergulhar para
Alaina, caindo de bruços no cais de ladeira, com a cabeça dependurada para fora. Cole enganchara o
cabo
395
curvo da sua bengala no tornozelo do homem e puxara com força. O homen louro virou de costas e
sentou-se no chão, olhando furioso para Cole. Enfiou um dedo na boca e o retirou manchado de
sangue. O que ele disse então podia ter sido em qualquer idioma e talvez fosse bom Alaina não ter
entendido, mas, na verdade, as palavras saíram tão mastigadas quanto sua língua.
— Apequena senhora — disse Cole, com ironia—é minha mu...
O dinamarquês explodiu do chão de madeira, agarrou Cole na altura da coxa e, erguendo-o do chão,
arremeteu-o para a frente, até baterem ambos bem no meio do anúncio de cerveja. Com uma
exclamação de espanto, Alaina começou a se levantar do banco com o chicote na mão, como se
estivesse pronta para usá-lo. Vendo o dono praticamente pregado na porta pelo homenzarrão,
Soldado começou a latir furioso. Cole atravessou a bengala sob o queixo do homem, com a ponta
apoiada no ombro e levantou o cabo com toda a força. Com a cabeça forçada para trás, o
dinamarquês soltou Cole. Alaina sentou-se outra vez, com o corpo tenso e rígido.
A expressão de Cole era um misto de dor e de esforço, mas não era hora de pensar numa perna
ferida. Desviando para o lado, bateu no traseiro do homem com a bengala, provocando um berro de
raiva. O dinamarquês girou o corpo, ficando de frente para o adversário, e Cole atacou, brandindo a
bengala, e atingiu o homem bem debaixo das costelas, deixando-o completamente sem ar.
Resfolegando e engasgado, Gundar cambaleou para trás, e Cole, segurando a bengala pela ponta, o
seguiu. Bateu com a bengala primeiro num lado da cabeça do homem, depois no outro. Era como se
estivesse batendo num barril. Ouvia o som, mas não via o efeito. Cole bateu com mais força. Dessa
vez, a cabeça de Gundar estalou, inclinou para trás com o impacto e seus olhos começaram a ficar
esgazeados.
Cole segurou a bengala na frente do peito, como se fosse um rifle e atacou com o cabo grosso,
fazendo o homem girar até ficar tonto. Na beirada do cais, Gundar balançou como um enorme
pinheiro, prestes a desabar. Cole resolveu o problema empurrando de leve o peito dele com a ponta
da bengala. O gêiser de lama que se ergueu da margem do rio espantou o cavalo, que pateou,
nervoso. Alaina segurou as rédeas e o acalmou, falando em voz baixa.
Cole, apoiado na bengala, olhou para os outros homens, com ar de desafio, mas ninguém parecia
disposto a defender a honra do vencido Gundar. O dinamarquês, coberto de lama, apareceu na
beirada
396
do estrado, e Cole ajeitou cuidadosamente no banco a primeira parte do seu corpo a entrar em
contato com o anúncio de cerveja. Alaina olhou para ele, preocupada. Cole assobiou e bateu na parte
de trás da charrete, chamando Soldado. Depois bateu com as rédeas nas costas do cavalo e
afastaram-se do clube.
— Você está bem? — perguntou Alaina, ansiosa. — Machucou a perna?
— Um pouco, talvez. — Olhou para ela. — Mas vai ficar boa. Alaina olhou para trás. Os homens
tinham ajudado Gundar a subir no cais e o lavavam com baldes de água. Ela estremeceu, pensando
no banho gelado.
— Eles parecem gostar tanto de brigar quanto de beber—observou ela.
— Um bando de desordeiros — concordou Cole —, mas bons trabalhadores, assim que saem da
cidade.
— Precisa de mais homens na fazenda? — perguntou Alaina, surpresa.
— Não na fazenda. Tenho uma boa extensão de floresta de boa madeira e está na hora de fazer uso
dela.
Alaina notou que seguiam o rio, mas não estavam voltando para casa.
— Aonde vamos agora? — perguntou, curiosa. — Vai me levar para conhecer sua amante?
Cole olhou para ela espantado, depois franziu a testa ameaçadoramente.
— Nada disso, minha senhora — riu. — Fui informado no clube que um amigo meu está na cidade.
Ele será um excelente capataz para o grupo de trabalho do norte.
Alguns momentos depois chegaram a uma casa grande e branca com ornatos de mau gosto. Um
homem alto e magro, quase do tamanho de Cole, porém mais jovem, apareceu na varanda quando a
charrete parou na frente do poste de amarrar cavalos.
Com um assobio agudo, Cole apontou:
— Soldado, mate!
Soldado arremeteu para fora, fazendo estremecer o banco da charrete. Alaina prendeu a respiração,
mas o cão, latindo alegremente, subiu os degraus no galope e pondo as patas enormes nos ombros
do homem, começou a rosnar com ferocidade fingida.
397
— Sente-se, seu sacana filho da mãe! — riu o homem, tentando evitar as lambidas de Soldado. —
Cole! Mande ele parar!
— Isso é para você aprender a não empurrar seus vira-latas para os amigos — riu Cole.
O jovem louro tentava ainda acalmar o entusiasmo de Soldado.
— Vira-lata! Ah! — disse ele. — Provavelmente ele tem um pedigree melhor do que o seu.
Cole desceu da charrete, e Alaina percebeu a tensão dos músculos do pescoço dele quando seu pé
tocou o chão, e com muito cuidado ele apoiou aos poucos o peso na perna direita. Tirou a bengala
leve de baixo do banco e claudicou até o outro lado da charrete, para ajudá-la a descer. Pôs a mão de
Alaina no braço e caminhou com passos cautelosos para a varanda da casa.
— Minha mulher, Alaina—apresentou Cole, subindo os degraus da entrada. — Franze Prochavski,
um simples polonês.
— Polonês, não! — O riso de Franze era encantador, quase infantil. — Prussiano! E como qualquer
outro bom e firme alemão, Cole não consegue entender a diferença.
— Austríaco! — corrigiu Cole com um largo sorriso.
— É claro! — Os olhos escuros de Franze brilhavam de satisfação. — Mil desculpas, Herr Latimer.
Uma jovem atraente, grávida, saiu da casa e aproximou-se deles. Seus olhos azuis e joviais eram
cheios de calor, como o sorriso.
— Minha mulher, Gretchen — apresentou Franze.
— Não tivemos oportunidade de conhecer a primeira mulher de Cole—disse Gretchen com um
sotaque leve e encantador. — Por isso, fizemos questão de conhecer a segunda. Estou feliz por ver
que ele soube escolher. — Segurou as mãos de Alaina. — Espero que desta vez Cole tenha
oportunidade de fazer um bebê também.
Sentindo o olhar de Cole, Alaina corou e, confusa, murmurou algumas palavras adequadas.
— Para nós esta é a segunda vez que fazemos um bebê — disse Gretchen, e continuou, com certa
tristeza: — Mas isso foi antes de Cole voltar da guerra. A parteira disse que o bebê estava errado e foi
sufocado pelo cordão. Desta vez, Cole vai tomar conta de tudo.
— Você confia demais em mim, Gretchen — censurou ele, gentilmente.
— Isso porque eu sei que você é o melhor médico por aqui. Você não diz que não? Você vem para o
norte, está certo?
398
— Não estou mais clinicando — disse ele, em voz baixa.
— Não! — exclamou ela, arregalando os olhos. — Mas você gostava tanto! Como foi fazer isso?
Alaina observou o marido, mais curiosa do que Gretchen. Cole olhou para o chão, franziu a testa e
deu de ombros.
— As circunstâncias me levaram a achar melhor desistir da profissão.
Gretchen voltou-se para Alaina, quase escandalizada, sem poder admitir que um médico tão bom
quanto Cole fosse obrigado a tomar essa decisão.
— Não pode convencê-lo a mudar de idéia?
— Eu não sei — murmurou Alaina, suavemente. — Ele não me disse por que desistiu da medicina.
— Olhando nos olhos de Cole, ela continuou: — Mas é uma pena, porque ele era um médico muito
bom.
Gretchen olhou para um e depois para o outro, convencida de que, se alguém podia fazer Cole
mudar de idéia, esse alguém era aquela jovem mulher, quer ele admitisse ou não.
Gretchen insistiu para que tomassem uma xícara de chá, acompanhado pelo melhor pão doce que
Alaina já havia experimentado. Sentados à mesa, na frente da lareira, Alaina ficou sabendo que a casa
pertencia aos pais de Gretchen, que no momento estavam fora. O jovem casal morava numa fazenda
perto das terras de Cole.
Quando Cole e Franze resolveram seus negócios, a tarde estava quase no fim. Gretchen ficou na
porta até a charrete desaparecer de vista e depois, voltando-se para o marido com um doce sorriso,
disse:
— Cole irá ao norte quando nosso bebê estiver para chegar.
Franz olhou para ela, atônito.
— Como você sabe?
Sempre sorrindo, ela respondeu:
— Eu sei.
399
Capítulo Trinta
QUASE NO FIM DO dia, uma brisa quente de sudoeste começou a soprar sobre os campos semi-
adormecidos. Interrompendo a toalete, Alaina abriu a janela para receber a carícia do ar morno. O rio
corria sinuoso nos dois lados do rochedo, cintilando aos raios do sol poente. Uma vez ou outra, um
vento leve acariciava a superfície da água. Do mesmo modo, os pensamentos passavam por sua
mente, perturbando a paz daquele momento. Lembranças criavam ondas ou desenhavam formas
estranhas nas rochas escondidas sob a superfície. A idéia de que Cole casara com ela movido apenas
por um sentimento de gratidão era como uma rocha imensa que perturbava o fluxo da sua lógica.
Sua própria aceitação aparentemente casual das circunstâncias era a brisa que murmurava irrequieta,
provocando confusão. Para ela, Cole abusara da sua sensibilidade, mas não conseguia sentir uma
revolta suficiente para tratá-lo como ele merecia.
Com um suspiro, ela voltou à toalete, escolhendo seu melhor vestido de noite de tafetá amarelo com
finas listras pretas. Uma larga tira de renda preta enfeitava diagonalmente a frente da saia rodada. A
gola era larga e pregueada e as mangas bufantes adornadas com renda preta. Alaina desejou, por um
momento, que Cole estivesse presente para ajudá-la com a fileira de pequenos botões, nas costas.
Porém, seu
400
marido estava no escritório, tratando de negócios com o advogado da pensilvânia.
Num gesto de arrependimento, Alaina tirou a cadeira que prendia o trinco da porta do banheiro que
dava para o quarto de Cole, uma providência inútil, uma vez que ele não estava lá. Um delicado
carrilhão bateu a meia hora, e Alaina olhou com surpresa para o aparador sobre a lareira. Durante sua
ausência, alguém levara um pequeno relógio para o seu quarto. Os Darvey deveriam chegar dentro
de mais ou menos trinta minutos. Ela estava pronta, mas Cole não subira ainda para se vestir.
Alaina abriu a porta do quarto para poder ouvir a chegada dos convidados e voltou para a frente do
espelho, para verificar mais uma vez se alguma falha na sua toalete poderia desagradar a Cole,
lembrando-o da sua recusa em usar as roupas que ele comprara. O cabelo, escovado com capricho,
estava sedoso e brilhante, repartido ao meio e preso atrás por uma rede de seda. Não podia saborear
a contento a sensação de estar bela e muito feminina devido à incerteza de qual seria a reação de
Cole. Os pingentes de brilhantes nas orelhas talvez fossem um ponto a seu favor no julgamento do
marido, mesmo assim, Alaina não podia confiar na imprevisibilidade de Cole.
Alaina sentiu um frio na espinha ao ouvir um leve murmúrio e teve a impressão de ver um rápido
movimento refletido no espelho. Voltou-se rapidamente, mas não havia ninguém na porta. Percorreu
o corredor com o lampião e depois o deixou num suporte, no lado de fora do quarto. O intruso teria
de se expor à luz agora, o que era pouco provável, pois, evidentemente, preferia as sombras.
Ouviu vozes no hall de entrada. Miles recebia os convidados. Alaina respirou fundo, preparando-se
para receber os amigos do marido, desempenhando seu papel de anfitriã. Desceu a escada, pensando
na sombra que vira no espelho. Quem era Mindy, o que tinha ela a ver com a casa... e com Cole?
Braegar ouviu o farfalhar do tafetá do vestido de Alaina e olhou Para a escada. Imediatamente
esqueceu que estava ajudando a irmã a tirar o agasalho, fascinado pela mulher que descia os últimos
degraus. Caminhou para ela, deixando a cargo de Miles as duas mulheres que o acompanhavam.
Batendo os calcanhares, Braegar fez uma leve mesura e inclinou-se sobre a mão de Alaina, no gesto
tradicional de respeito.
401
— Minha senhora, sem dúvida nenhuma sua beleza aquece este clima frio do norte.
— É muito galante, senhor — respondeu ela, com um sorriso gracioso.
Atravessou o hall, ao lado de Braegar, e passando pelo mordomo, pediu:
— Miles, quer avisar o dr. Latimer de que nossos convidados chegaram?
— Sim, minha senhora. — Depois de uma leve curvatura, Miles foi até a porta do escritório e bateu
de leve.
A irmã de Braegar olhou para Alaina.
— Fiquei curiosa para saber por que Braegar estava tão ansioso para chegar aqui esta noite—disse
ela secamente. — Agora posso ver a razão.
Alaina não sabia ao certo como aceitar a observação, mas, amiga ou inimiga, a mulher era convidada
na casa do seu marido e devia ser tratada com o calor da hospitalidade sulina. Nada melhor do que
uns sorriso radiante para desarmar um inimigo ou encantar um amigo. Seus lábios curvaram-se
graciosamente, e ela estendeu a mão.
— Você deve ser Carolyn.
Um pouco atrasado, Braegar indicou a família, com um gesto largo.
— Gostaria que conhecesse minha santa mãe, sra. Eleanore McGivers Darvey e, como já adivinhou,
esta é Carolyn, minha irmã mais velha e solteira.
Com um sorriso frio a mulher loura disse:
— Estávamos ansiosas para conhecê-la, sra. Latimer. — O título pareceu dito com dificuldade. —
Como já conhece Braegar, compreende por que não me casei ainda. — Olhou para o irmão.—
Poucos homens têm coragem de entrar para uma família com prova evidente de idiotice congênita.
Alaina conteve o riso, mas não o brilho dos olhos. Provavelmente era só o humor irônico de Carolyn
que a fazia parecer pouco amistosa.
Braegar empertigou o corpo, fingindo-se ofendido, mas antes que pudesse responder, sua mãe
protestou:
— Meninos! Meninos! Esta jovem senhora vai pensar que criei um par de gralhas briguentas!
— Absolutamente — disse Alaina, com delicadeza. — Isso me traz doces lembranças da minha
família.
402
Uma resposta bastante educada, pensou Eleanore, vagamente Mas não estava disposta a aceitar a
jovem mulher de Cole com tanta facilidade. Na sua opinião, Cole era o único culpado pelo fracasso
do primeiro casamento. Houve um tempo em que seu sonho era vê-lo casado com Carolyn, mas os
interesses dele estavam sempre voltados para outras paragens, ignorando a jovem prendada ao seu
alcance. Talvez a proximidade constante fosse o motivo. Para Cole, ela era como uma irmã. Porém,
suas aspirações reviveram depois da morte de Roberta. Esperava que ele tomasse juízo e procurasse
uma mulher mais perto de casa. Mas Cole escolhera uma estranha. Outra mulher do sul. E Carolyn
continuava solteira, aos 27 anos.
Aporta do escritório se abriu e ouviram a voz de Cole.
— Deixo tudo a seu cargo, Horace.
Com um sorriso, Alaina olhou para os dois homens. Cole estava ainda com a roupa escura, que usara
durante o dia, e parecia precisar mais do que nunca do apoio da bengala. Apele muito branca em
volta dos lábios tensos indicava dor e quando ele parou por um momento, olhando para os
convidados, Alaina perguntou a si mesma se não estava procurando descansar o mais possível a
perna ferida. Com um olhar rápido, mas minucioso, Cole examinou a toalete de Alaina, antes de
atravessar o hall. Inclinou a cabeça para Braegar e sorriu para as mulheres. Apresentou o advogado
aos Darvey e depois, passando o braço possessivamente pela cintura de Alaina, concluiu:
— Minha mulher, você a conheceu esta tarde. Horace Burr segurou a mão de Alaina.
— Peço desculpas por tomar o tempo do seu marido, sra. Latimer. Pode me perdoar?
— Só se nos der o prazer de jantar conosco, sr. Burr. — Desempenhando com calor e brilho seu
papel de anfitriã, Alaina estava consciente da sensação estranha que despertava nela o cheiro do
marido, um misto de couro, charuto e conhaque.
Horace riu satisfeito.
— Será um grande prazer ser incluído numa companhia tão agradável e encantadora. — Segurou a
mão da sra. Darvey.— Finalmente tenho o prazer de conhecê-la, depois de tantos anos ouvindo os
e
logios que os Latimer fazem à sua pessoa.
Viúva há mais de dez anos, a sra. Darvey não ficou indiferente ao galanteio do advogado. Era uma
mulher ainda atraente, e a atenção a agradou.
403
Alaina voltou-se e, pondo a mão no peito de Cole, ergueu o rosto para os olhos azuis que a
observavam atentos, como sempre, fazendo-a corar.
— Você quer trocar de roupa para o jantar?
Embora tivesse falado em voz muito baixa, Carolyn ouviu e para ela significou que Alaina estava
censurando o marido por não estar devidamente vestido ou atrasado para o jantar.
— Deixe isso, Cole. Nós nos conhecemos há muito tempo para nos preocuparmos com essas
formalidades. — Terminou a frase que, tempos atrás, seria tida como uma leve brincadeira, com voz
quase sumida, vendo o olhar gelado de Cole. Talvez seu tom sugerisse uma censura a Alaina. A
atitude de Cole para com a nova mulher era muito protetora. — Quero dizer — terminou Carolyn,
timidamente —, é só um jantar entre amigos, nada formal.
Braegar foi mais direto.
— Desde que Cole não esteja cheirando a estábulo, posso permitir que fique como está. — Ajeitou o
próprio paletó. — E não faz sentido ficarmos aqui conversando quando há um excelente conhaque
na sala.
Os convidados dirigiram-se para a sala, e Cole ficou um momento parado, com Alaina. Passou a mão
pela fileira de botões nas costas dela, e seus olhos encontraram os dela, como sempre, procurando
descobrir qual era o jogo da mulher. Com um sorriso, Alaina arrumou o colarinho dele e alisou a
camisa, num gesto muito íntimo.
— Não estou lhe proporcionando refúgio contra as mães preocupadas com as filhas solteiras?
Cole quase sorriu. Devia ter adivinhado!
Alaina enfiou o braço no dele e, quando começaram a andar, assustou-se com a insegurança do passo
de Cole e com a força com que ele se apoiava na bengala.
— Você está bem? — perguntou, ansiosa. Cole resmungou, tranqüilizando-a.
— Fiquei muito tempo sentado e a perna está um pouco rígida. Logo vai melhorar.
Na sala, Cole ficou de pé atrás da cadeira dela e quando Miles terminou de servir os convidados, ele
indicou, com a cabeça, a garrafa de cristal no aparador. Miles serviu um pouco da bebida no copo
redondo e esperou que o patrão provasse. Cole franziu as sobrancelhas, e Miles, com um erguer de
ombros, pôs a garrafa e o copo na
404
mesinha ao lado da cadeira de Alaina. Cole tomou o primeiro drinque e inclinou-se para servir o
segundo, sob o olhar preocupado da mulher.
— É só para você, Cole? — perguntou Braegar. — Ou vai permitir que Miles nos sirva outra vez?
Cole fez um sinal para o mordomo, que imediatamente apanhou outra garrafa de cristal e serviu
Braegar.
— Eu prefiro o costume de Cole de tomar conhaque antes da refeição. É muito mais civilizado.
Eleanore parecia aborrecida e olhou severamente para Cole e para Braegar.
— Devo lembrar que o gosto exagerado pela bebida pode arruinar a vida de um homem.
Quando Miles voltou, anunciando que o jantar estava servido, Alaina levantou-se e deu o braço para
o marido.
— Sr. Burr, quer ter a bondade de acompanhar a sra. Darvey?
Vendo que o par de Alaina já estava escolhido, Braegar, relutantemente, ofereceu o braço a Carolyn e
acompanhou a mãe e o advogado. Assim, Alaina fez com que ninguém tivesse de caminhar atrás de
Cole. Batendo de leve com a mão no braço dele, seguiu sozinha para a cabeceira da mesa, onde
Braegar delicadamente segurou a cadeira para ela. O irlandês sentou-se à esquerda da dona da casa,
de modo que ficaram distantes dos outros, que estavam na outra cabeceira. Alaina percebeu o olhar
zangado de Cole e perguntou a si mesma o que fizera de errado.
Horace estava segurando a cadeira para Eleanore, e de repente Cole percebeu que Carolyn ficara
sozinha. Cole ia se aproximar para ajudá-la, mas Horace já estava segurando a cadeira de Carolyn.
— Descanse, dr. Latimer — disse o homem mais velho. — Sei que sua perna o está incomodando.
Cole corou embaraçado e com o orgulho ferido. Aparentemente, era incapaz do menor ato de
cavalheirismo, e todos estavam sempre lembrando sua invalidez. Sentou-se, resmungando:
— Não sou mais doutor. Desisti da medicina.
Atônito, Braegar recostou-se na cadeira. Não podia imaginar o motivo pelo qual Cole perdera o
interesse na profissão à qual era tão dedicado. Cole sempre fora compenetrado nos estudos, na sua
preocupação com os pacientes, ao passo que ele, Braegar, confiava mais na sua afabilidade e simpatia
do que na própria habilidade como médico. Na juventude, ambos tinham sido orientados por
Frederick
405
Latimer, que os encorajava com zelo e amor pela medicina, mas Cole possuía um dom especial para a
cirurgia que Braegar jamais tivera.
— Talvez ele ache que sua habilidade foi prejudicada de alguma forma — só percebendo que tinha
pensado em voz alta quando viu o olhar de Alaina, e apressou-se a explicar, para não ser mal-
compreendido. — Cole é o melhor cirurgião desta área. Não posso imaginar por que ele desistiu da
medicina.
Sem satisfazer a curiosidade de Braegar, Cole tomou outro copo de conhaque. O fato de o amigo
estar tão perto de Alaina aborrecia-o mais do que suas conjecturas.
O jantar começou a ser servido. Fossem quais fossem as opiniões políticas de Annie, ela provou que
não era uma irlandesa simplória especializada em batata cozida, mas uma excelente cozinheira, que
conhecia a cozinha de muitos países.
Quando retomaram a conversa, Eleanore tocou num assunto que havia muito tempo a intrigava.
— Cole, você não nos contou nada sobre Alaina. Como se conheceram e como você arranjou esse
casamento por procuração. Para ser franca, não sei bem como funciona esse sistema. É legal, não é?
Quero dizer, você não trouxe essa pobre menina para cá sob um falso pretexto, certo? Meu Deus! —
A sra. Darvey levou a mão ao rosto, como se estivesse escandalizada com os próprios pensamentos.
— Vocês estão casados, ou não?
De onde estava, com a mesa toda entre eles, Alaina viu a tensão no rosto de Cole. Não podia dizer se
era de raiva ou de dor.
— Pode ficar descansada, tia Ellie — garantiu Cole. — Foi tudo muito legal.
— Mas nada cristão, Cole — reprovou Eleanore. Fez uma pausa enquanto Miles a servia e depois
continuou: — Acho que seu pai não aprovaria. Um casamento na igreja é muito mais garantido.
Quem sabe você possa convencer o reverendo a realizar a cerimônia, só para fazer calar as más
línguas.
— Para o diabo com as más línguas — rosnou Cole. — Não vou dar a elas mais motivo para
comentários.
— Mamãe, sabe que por causa do ferimento Cole tem dificuldade para viajar — disse Carolyn. —
Tenho certeza de que o sr. Burr, como advogado, pode garantir a legalidade do casamento por
procuração.
406
— Tem razão, minha senhora. É perfeitamente de acordo com a lei.
Alaina viu o olhar de desprezo de Annie quando saiu da sala, empurrando o carrinho. Todos comeram
com prazer e elogiaram o prato principal de carne de veado grelhada, mas Eleanore não estava ainda
convencida da legalidade do casamento de Cole.
— O que seus pais acharam desse tipo de casamento, Alaina? Sem dúvida não gostaram muito.
— Meus pais estão mortos, senhora — disse Alaina, controlando a irritação, compreendendo que a
pergunta não fora feita com maldade. Alguém que ficara durante todo o tempo longe do conflito não
podia entender certas coisas. — Meu pai e meus irmãos foram mortos na guerra. Minha mãe morreu
tentando cuidar da nossa fazenda, enquanto os soldados da União destruíam nossos campos e
nossos animais. Eu fugi para Nova Orleans, para escapar das atenções de um oficial ianque que jurou
enforcar a mim e a Saul como espiões. Conheci Cole nas docas, no dia em que cheguei, quando ele
me salvou da atenção inconveniente de alguns soldados bêbados. Isso foi há dois anos, senhora. O
dr. Latimer foi casado com minha prima e quando ela morreu, ele pediu-me em casamento. Para
evitar um relacionamento questionável com um rato do rio, eu aceitei. — Cruzou as mãos no colo e
enfrentou o olhar perturbado de Eleanore com expressão calma e segura. — Deseja saber mais
alguma coisa, sra. Darvey?
Embaraçada com o resultado da própria indiscrição, Eleanore respondeu, contrita:
— Não, minha filha. Acho que respondeu adequadamente.
No silêncio que se seguiu, Cole observou Alaina com um misto de sorriso e censura. Não era nada
lisonjeiro para ele o fato de ela ter aceitado o casamento como último recurso. Precisavam resolver
muitas coisas além do uso das roupas compradas por ele.
— Soldados bêbados, atacando jovens senhoras? — disse Eleanore de repente, voltando-se para
Cole. — Deus do céu, Cole. Foi a isso que nosso exército ficou reduzido? Acho que devo falar a
respeito com o governador.
Então todos começaram a falar ao mesmo tempo. Cole desistiu de explicar, e logo eles se acalmaram,
todos, exceto Braegar, que estava procurando se desculpar com Alaina.
— Perdoe a maldita impertinência das nossas perguntas... Eleanore empertigou o corpo, indignada.
407
— Cuidado com a linguagem quando fala com uma jovem senhora, Braegar Darvey! Gostaria de
lembrar que, apesar da minha idade, posso pedir desculpas dos meus erros... se for o caso!
Com um largo sorriso, Braegar pôs a mão sobre a de Alaina.
— Então, peço desculpas por meu comportamento, embora eu seja capaz de apostar que já ouviu
coisas muito piores do seu próprio marido, pois sei que ele não é melhor do que eu nesse particular.
O sorriso tranqüilo de Alaina desapareceu quando viu a expressão de Cole. A zanga dele parecia
provocada por alguma coisa que Braegar havia dito ou feito, e ela não sabia o que podia ser.
Descartou a idéia de ciúme, pois, na sua opinião, Cole era muito mais bonito e mais interessante do
que o amigo. Às vezes Braegar parecia um garoto levado, inteligente, mas excessivamente brincalhão.
Também não aceitava a possibilidade de Cole se ressentir com a saúde e boa disposição física de
Braegar. Parecia algo muito mais pessoal e mais conseqüente.
— Não posso acreditar que Cole tenha casado para cumprir um dever — disse Braegar, dando de
ombros. — É típico, sem dúvida. Ele sempre foi um perfeito cavalheiro, tanto no amor quanto na
guerra. Para o diabo com a própria pessoa, por assim dizer. — Vendo o olhar de censura da mãe,
Braegar procurou ser mais comedido na linguagem. —Minha santa mãe é testemunha disso e se
existe alguém capaz de dizer a verdade, esse alguém é ela. — Inclinou-se para a frente e olhou para
Cole, notando a irritação indisfarçada do amigo.—Quanto a mim, a beleza de uma mulher seria um
motivo mais importante do que minha honra, e não acredito que, quanto a isso, haja muita diferença
entre nós dois. — Fez uma pausa, deixando que suas palavras calassem nas mentes dos ouvintes e
depois ergueu um brinde.
— Ao seu casamento, Cole, sejam quais forem as razões. Mas, se foi por honra, seu gosto certamente
melhorou muito.
— Braegar! — A mãe estava atônita com a indiscrição do filho.
— Que brinde é esse? O sr. Burr vai pensar que somos a família mais mal-educada que já conheceu.
Braegar deu de ombros.
— Eu só quero dizer que, se o primeiro casamento de Cole foi por amor e o segundo por honra, este
último foi um contrato muito melhor. Se acham que sou indiscreto e honesto demais, paciência. Mas
se o homem é cego demais para ver o tesouro precioso que acaba de ganhar, eu digo que não passa
de um maldito tolo!
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— Não acho que Cole seja cego ou tolo, Braegar Darvey!—disse Carolyn.
O irmão tornou a erguer os ombros, com indiferença.
.— Você sempre se gabou de conhecer Cole melhor do que eu.
Annie Murphy voltou com o carrinho, levando os pratos retirados por Miles e entregando a ele os de
sobremesa. Como sempre, formal E perfeito, o mordomo pôs na mesa o pudim de ameixas com
calda de rum. Ergueu os olhos para o teto quando Braegar continuou.
— Seria um grande desperdício Cole casar com Alaina por sua honra e não por ele mesmo.
— Você só a conheceu ontem — lembrou Carolyn, secamente. — Como pode fazer um julgamento
em tão pouco tempo?
Com impaciência, Cole pôs para o lado o prato de sobremesa, e ignorando o olhar desaprovador de
Annie, empurrou a cadeira e levantou-se.
Carolyn olhou para ele, surpresa.
— Aonde você vai, Cole? Deve comer o pudim, está delicioso.
— Ele não gostou de ser chamado de tolo — disse Braegar, sorrindo.
— Por todos os santos do céu! — exclamou Cole, olhando para o teto. Apoiando as mãos na mesa,
olhou para cada um dos Darveys com um sorriso sem humor. — Sinto-me como um camundongo
ferido, acossado por um bando de corvos. Mais cedo ou mais tarde, vocês vão me fazer em pedaços,
deixando só os ossos.
— Corvos, ora que idéia! —Eleanore ergueu o queixo, imperiosamente.
Cole continuou, ignorando a interrupção.
— Será que não conseguem entender que apenas me casei com duas mulheres que, por acaso, eram
primas? Ambas moças finas do sul? Ambas bonitas? — Ergueu a mão aberta, com a palma para fora,
como quem faz um juramento. — Talvez não tivesse sido apenas um ato de cavalheirismo, como
preferem pensar. Na verdade, fomos levados ao altar pelo — olhou para Alaina e terminou a frase
com mais gentileza do que ela esperava — destino. Nos dois casos o casamento Parecia a única
solução.
Para Alaina, a última frase não tinha nada de elogiosa e merecia uma resposta à altura. Com um
sorriso cintilante, ela apoiou o cotovelo na mesa e disse, docemente, exagerando o sotaque arrastado
do sul.
— Você, seu ianque cabeça-dura. Se me comparar outra vez com
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Roberta, vai pensar que t-o-o-o-do o exército confederado passou po r cima de você, mulas, carroças
e tudo o mais.
O sorriso era tão cativante e o tom tão doce que, só depois de algum tempo, todos compreenderam
o significado das palavras. Cole ergueu uma sobrancelha e sorriu. Horace Burr pigarreou e acabou a
bebida que tinha no copo. Carolyn esforçou-se para conter o riso. As sobrancelhas de Eleanore
subiram tanto quanto era possível. Braegar ficou de pé e bateu palmas. Depois de um momento, só
se ouvia na sala o som alegre de risadas na cozinha. O carrinho com a pilha de pratos usados ficou ao
lado da cadeira de Cole, como prova muda da saída apressada de Annie.
— Peço desculpas, Al — disse Cole, também arrastando as palavras. — E jamais tive intenção de...
— Al! — Carolyn engasgou e olhou atônita para Cole. — Quer dizer... que... ela — fez um gesto
vago para a outra ponta da mesa — é... — Não conseguiu continuar. Lembrou rapidamente os
detalhes do relacionamento de Cole com "Al", contados em suas cartas.
Receosa, a sra. Darvey ousou perguntar:
— Este é o mesmo Al... que... escaldou você? — Toda a família se divertira com as histórias das
cartas de Cole.
Braegar recostou-se na cadeira, a princípio atônito, depois pensativo, lembrando o "Al" mencionado
na correspondência do amigo. Lembrou também que a mera menção do nome "Al" provocava em
Roberta verdadeiros acessos de fúria.
Carolyn pensava na passagem em que Cole prometia algum dia tirar as calças do garoto e dar umas
boas palmadas no seu traseiro. Olhou para Cole completamente chocada. Na verdade, todos
olhavam boquiabertos para ele, à espera de uma resposta, enquanto Alaina, com um sorriso
satisfeito, recostou-se na cadeira e ficou calada. Queria ver como Cole ia explicar tudo a eles.
Cole tornou a sentar-se e olhou para seus convidados.
— Esse mesmo! — Tirou um charuto do bolso e mordeu a ponta, enquanto os Darveys esperavam,
ansiosos. — Alaina se disfarçou de menino para não ser molestada pelos soldados da União. Naquele
tempo eu era apenas mais um barriga azul para ser evitado e levei o garoto "Al" para a casa dos tios
onde, no mesmo dia, conheci Roberta. — Olhou para a ponta do charuto e continuou: — Eu só...
bem... fiquei sabendo do segredo depois do meu casamento com Roberta.
— Impossível! — afirmou Braegar.
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Deve ter sido horrível! — Carolyn franziu o nariz. — Vestida como um garoto! — Olhou para
Alaina. Era difícil de acreditar.
Minha pobre querida! — exclamou Eleanore e, levantando-se, aproximou-se de Alaina. — Depois de
tudo o que passou, minha filha, não a culpo por nos odiar.
Alaina sorriu para o marido e perguntou, com ar inocente:
— Cole contou da aventura no estábulo.— Respondeu com um largo sorriso à testa franzida do
marido. — Ou quando caímos no bebedouro dos animais. Mencionou nossa briga na cozinha,
quando Dulcie evitou que ele me desse uma surra?
— Pobre menina! — exclamou Eleanore e depois olhou para Cole. — Seu animal!
Irritado, Cole pôs o charuto na boca e acendeu o fósforo com a unha do polegar. Começou a fumar,
sem tirar os olhos de Alaina. Eleanore abanou a mão para afastar a fumaça do charuto.
— Cole! Francamente. Não compreendo o que você acha interessante nessas coisas horríveis!
Alaina levantou-se graciosamente. Era melhor escapar enquanto tinha tempo. Afinal, as portas sem
chaves impediam que ela evitasse a surra que Cole prometera tantas vezes a "Al".
— Talvez as senhoras prefiram ir para a sala e deixar os homens com seus charutos e sua bebida —
sugeriu ela, como uma anfitriã delicada.
Quando chegou na porta, Alaina virou-se para trás e viu os olhos de Cole fixos nela. Havia naquele
olhar algo mais ardente do que fúria, mas Alaina não sabia dizer o que era.
O sr. Burr levantou-se, com os outros dois homens, e disse que ia viajar muito cedo no dia seguinte.
— Terá notícias minhas o mais breve possível, Cole — disse o advogado, quando os dois
caminharam para a porta. — Pode ficar certo de que farei de tudo para resolver os problemas sobre
os quais conversamos. — Os dois homens trocaram um aperto de mãos amigável. — Você tem aqui
uma grande família, Cole, e uma mulher encantadora. Será um prazer visitá-los novamente quando
trouxer o relatório.
O advogado saiu, e Cole fechou a porta da frente. Atravessou o vestíbulo com uma careta de dor,
mas lembrando a atenção com que Braegar o observara durante toda a noite, procurou dar ao rosto
uma expressão mais tranqüila, dirigindo-se para o escritório
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Na sala, Alaina acompanhava distraidamente a conversa um tanto constrangida de Eleanore Darvey,
pois a lembrança daqueles ardentes olhos azuis não saía da sua mente. Ultimamente, parecia que seus
pensamentos estavam sempre voltados para Cole.
A sra. Darvey não ousava parar de falar, temendo fraquejar na sua decisão de aceitar o casamento
por procuração sem mais perguntas indiscretas. Carolyn procurava encaixar os detalhes da passagem
de Cole por Nova Orleans com o que acabava de ouvir e também não prestava atenção no que a mãe
dizia. A casa parecia estranhamente silenciosa, embalada pela voz monótona de Eleanore. Então a
paz foi desfeita pelo ruído de vidro quebrado e o rugido de Cole.
— Que diabo, homem! Para mim chega!
— Cole, escute!
— Saia daqui! Saia da minha casa, antes que eu o ponha para fora!
As mulheres sobressaltaram-se. Alaina levantou-se e acompanhou as convidadas até o hall, pedindo a
Miles seus agasalhos. Braegar saiu do escritório como uma fúria e atravessou o hall, com o rosto
muito vermelho, os olhos chispando e resmungou.
— Maldito animal selvagem!
Não disse mais porque percebeu o olhar preocupado de Alaina. Murmurando um pedido de
desculpas, segurou a mão dela, mas Cole, apoiando uma das mãos no batente da porta do escritório,
fuzilava-o com os olhos e ele recuou. Braegar inclinou levemente a cabeça e saiu da casa. Espantada,
Eleanore olhou demoradamente para Cole, antes de sair também. Carolyn, confusa, apanhou o
agasalho das mãos de Miles e voltou-se para Alaina. Abriu a boca para falar, reconsiderou e
despediu-se com a maior graça possível. Miles fechou a porta, evitando olhar para Alaina, entrou na
sala, apagou o fogo e foi para os fundos da casa. Alaina olhou para Cole, esperando uma explicação,
mas ele apenas resmungou e voltou ao escritório, batendo a porta com força.
Alaina ergueu o queixo, ofendida, como se tivesse levado uma bofetada. Subiu a escada e refugiou-se
no quarto. Se o dono da casa podia saborear sua raiva sozinho, ela também podia.
Aos poucos a casa serenou com a rotina tranqüila do começo da noite. Durante algum tempo ela
ouviu os ruídos dos criados na cozinha e na sala. Depois, Peter fechou a porta dos fundos e saiu para
a casa do pai. Logo o silêncio só era quebrado pelos estalidos e murmúrios, os ruídos
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sempre presentes de uma mansão de pedra e tijolos. Até o carrilhão do pequeno relógio parecia
abafado quando deu a meia-noite.
A tensão e os acontecimentos daquela noite a deixaram deprimida e sem sono. Sentada na frente da
lareira, Alaina olhava para as chamas, pensando na sua situação. Para poder se vestir decentemente,
gastara em roupas e na passagem de Saul quase tudo que tinha. Para não ficar completamente sem
dinheiro, sacrificou os bens menos importantes. Sua camisola era velha e muito remendada e nem de
longe parecia fazer parte do enxoval de uma noiva. Passando a mão distraidamente no tecido muito
usado, Alaina ergueu os olhos para o espelho. Viu uma mulher, não mais magra e ossuda, mas de
corpo esbelto e bem-feito. Para alguma coisa valeu o trabalho pesado, pois a aparência saudável e rija
do seu corpo atraía mais admiração do que Roberta jamais conseguira. Cole não estava satisfeito.
Queria vê-la com as roupas que havia comprado—os vestidos caros e elegantes que ela tanto
desejava usar, mas que não podia pagar. E o objetivo dele? Queria que ela continuasse
representando, mostrando ao mundo que formavam um casal amoroso, enquanto na vida real
sentiam-se separados por uma intensa animosidade?
Alaina olhou para os olhos cinzentos e preocupados refletidos no espelho. Sabia o que a atormentava
mais do que tudo. Não conseguia afastar da lembrança aqueles momentos no hotel. Cada carícia,
cada beijo estava gravado na sua memória com uma clareza que incendiava seu corpo de desejo.
Passos claudicantes soaram no corredor e Alaina ficou tensa, com o coração disparado. Dessa vez
Cole iria para ela com raiva ou com desejo? Pretendia ficar de pé ao lado da sua cama, outra vez,
vendo-a dormir? Ou teria outro objetivo?
Os passos pararam e a porta do seu quarto se abriu. Cole entrou com o rosto tenso, os olhos
vermelhos, a testa franzida. Vestia ainda a calça preta estreita e a camisa de seda que estava agora
aberta até a cintura, desnudando o peito musculoso. Instintivamente, Alaina temeu que ele estivesse
embriagado, mas Cole não demonstrava nenhum sinal disso. Na verdade, parecia perfeitamente
controlado.
Os momentos passaram, e Alaina sentiu as pernas fracas sob o olhar intenso do marido. O lampião a
óleo, atrás dela, desenhava a Silhueta do seu corpo sob a camisola fina e larga e os olhos de Cole
pareciam devorá-la. Quase sem poder respirar, ela esperou imóvel, de
413
pé, ao lado da cadeira. Então, ele deu alguns passos para a frente, e Alaina procurou a proteção do seu
roupão.
— Quer falar comigo, major? — Passou por ele e fechou a porta, para não parecer uma escolar
apavorada.
Os olhos de Cole a seguiram quando ela voltou para a lareira e sentou-se na ponta da cadeira, com as
pernas trêmulas.
Tentando ignorar aquilo que realmente o atormentava, Cole disse, gentilmente:
— Estava muito bela esta noite, Alaina.
O silêncio dela foi quase agressivo. Cole claudicou até o guarda-roupa e com a bengala ergueu a
ponta do espartilho, que estava dependurado na porta. Sem esconder seu desgosto, ele abriu a porta.
O vestido de luto estava bem visível e à mão, no meio dos outros, luxuosos e belos.
— Quando você desceu do navio, ontem, eu quase esperei ver Al escondido atrás da sua saia.
Alaina olhou de soslaio para ele.
— Você sempre teve problema com isso.
— Mas está claro que Al partiu para sempre.—Apesar do esforço que fazia, sua voz estava áspera e
seca, e Cole censurou-se por isso, vendo a reação de desafio nos olhos dela.
— O garoto nunca foi realmente apreciado por ninguém, major.
— Nem todos concordarão com isso — murmurou ele, com ar distante.
Alaina ergueu as sobrancelhas, com riso nos olhos.
— É mesmo, major?
O título aumentou a irritação que ele procurava controlar.
— Que diabo, Alaina! — A exclamação explodiu, sobressaltan-do-a. Abrindo a outra porta do
guarda-roupa, Cole estendeu a mão para os vestidos.
— Tem um armário cheio de roupas finas à sua disposição e entro aqui e a encontro vestida com
andrajos!
Alaina esfregou o nariz com as costas da mão.
— Tem razão, senhor. São andrajos, mas são meus. — Empertigou o corpo na cadeira. — Será que
o desapontei esta noite? Ou o embaracei na frente dos seus convidados?
— Não, é claro que não! — respondeu ele, asperamente. — Foi um crédito para a minha casa.
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— Muito obrigada, senhor! — O agradecimento tinha uma leve sugestão de ironia.
Cole olhou em volta. Tudo estava em ordem. Não havia nada que lembrasse Al, pensou ele, mas muita
coisa dessa mulher imprevisível, que ele apenas começava a conhecer.
— Pensei que talvez o tivesse desagradado — disse ela, suavemente, ajeitando o roupão sobre o
joelho. — O senhor estava tão carrancudo...
— Só por causa daquele asno arrogante e atrevido! Aquele conquistador imoral que ficou o tempo
todo ao seu lado. Sem dúvida Braegar ficou muito atraído por você, desde o princípio.—Olhou para
ela, fazendo-a lembrar que estava pouco vestida. — Mas não pretendo dividi-la com ele.
Nem bem acabou de falar, Cole sentiu que acabava de despertar um vulcão que ia explodir no seu
rosto. Mais tarde, ele teria de reconhecer que não passou de uma espiral de fumaça. Insultada, Alaina
levantou-se de um salto e o enfrentou com os olhos em fogo.
— Acho que não precisa se preocupar com isso, dr. Latimer! Não sou uma peça de xadrez para ser
usada de acordo com a conveniência de pessoa alguma! — Furiosa, começou a andar pelo quarto. —
Que espécie de homem é o senhor? Que tipo de homem convida pessoas para jantar e depois as
expulsa da sua casa? Suas qualidades de anfitrião deixam muito a desejar! Na verdade, comportou-se
como uma mula do exército...
Cole interrompeu com um rosnado:
— Eu só expulsei Braegar.
— Por que o odeia tanto? — perguntou Alaina, girando o corpo para olhar nos olhos dele. — É
porque ele ainda pode ser médico?
— Médico! Ora! Aquele desajeitado...
— Chega! — interrompeu Alaina, severamente, percebendo que ele ia começar a insultar o amigo.
— Ele também insistiu para que eu amputasse a perna! — continuou Cole, ignorando a exclamação
dela. — Corte de uma vez e fique livre dela, foi o que ele disse!
— Pare com isso! — O início do fogo do vulcão apareceu nos olhos dela. — Não me interessam
suas queixas. Vejo que se tornou um homem odioso e vingativo!
— Ora, por todos os santos! — riu ele, com ironia. — Acho que você e Roberta eram parentes mais
chegadas do que dizem. Odioso e
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vingativo! As palavras dela, exatamente, em várias ocasiões. Ataca-me com a mesma fúria com que
sua prima me atacava! — Sua voz era rouca e áspera. Os olhos brilhavam ferozmente, espelhando a
raiva que o consumia. Não podia se livrar do desejo odioso do seu corpo, aliviar sua paixão com um
abraço. — Mas você tem um ponto a seu favor. Ela prometeu o que não podia dar. Você nega o que
pode dar! O vulcão rugiu dentro dela. Com os olhos frios como aço, Alaina deu um passo para ele.
— Eu já avisei para não me comparar com ela, barriga azul!
— Ah, sim, a inocente. — Cole aceitou o desafio, num impulso louco. — Você saiu... ela entrou!
Vamos enganar o ianque! Pegar o barriga azul na armadilha! Puxá-lo para baixo! Fazê-lo em pedaços!
Quanto a cadela da sua prima lhe pagou para sacrificar sua virgindade?
Piá!
O som da mão de Alaina chocando-se com o rosto de Cole ecoou no quarto. Ele segurou o pulso
dela no ar e a apertou contra o peito nu, abafando os protestos com um beijo brutal e ardente, seus
lábios abrindo os dela, sua língua invadindo-a com selvageria. O desejo libertou-se dentro dele e Cole
não procurou controlá-lo. Ergueu-a do chão e encostou as coxas macias na sua masculinidade ereta.
Alaina sentia o corpo todo incendiado de desejo. Mal podia respirar. Não podia pensar. Os seios
doíam apertados contra o peito musculoso. O membro dele era como fogo contra seu corpo. Não
tinha forças para lutar contra ele, nem queria. Então Cole a libertou bruscamente. Alaina cambaleou
para trás, sem ar, sem nenhum sentimento de raiva.
— Fique avisada, minha senhora — disse ele com voz rouca, livrando-se do transe. — Experimentei
as dificuldades do casamento, mas isso acabou. A senhora me pertence e eu tomarei tudo que
desejar, quando...
— O senhor concordou... — negou Alaina, com voz fraca.
— Quando eu quiser! Quando eu quiser! — garantiu Cole. Apanhou a bengala do chão, saiu do
quarto e fechou a porta.
Como uma sonâmbula, atordoada e atônita, Alaina começou a abaixar a luz dos lampiões, até o
quarto ficar quase completamente às escuras. Sem tirar o roupão, deitou-se sob as cobertas,
enrodilhada como uma bola, segurando os joelhos. Mas a pressão do desejo insatisfeito ardia ainda
no seu corpo. Só às primeiras horas da manhã sua mente conseguiu o alívio do sono.
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Capítulo Trinta e Um
A NEBLINA DA MANHÃ envolvia ainda o vale quando Alaina levantou-se e vestiu-se
caprichosamente, decidida a conversar com Cole sobre o contrato do casamento. Ou tinham um
casamento, ou não tinham, mas não estava disposta a ficar à mercê dos seus caprichos.
Quando ela desceu a escada, Miles correu para o hall, vestindo apressadamente o colete, e quando
Alaina se aproximou do escritório, ele se plantou na frente da porta.
— Bom dia, senhora — cumprimentou, fazendo o nó da gravata. Com seu mais radiante sorriso
matinal, Alaina disse:
— Eu ia ver se meu marido já havia levantado.
Miles bloqueou completamente a entrada dela.
— Perdoe, senhora, mas tenho ordens do doutor para não deixar que seja perturbado por ninguém.
E—engoliu em seco, nervosamente —, com seu perdão, outra vez, senhora—pigarreou —,
especialmente Pela senhora. — Abaixou a cabeça e ajeitou o relógio de bolso.
No silêncio que se seguiu, Alaina ouvia as batidas da bengala de Cole como se ele estivesse andando
pela sala. Com a maior delicadeza possível, ela livrou Miles do embaraçamento.
— Eu compreendo, Miles.
Alaina terminou de tomar café e a cadeira, na outra extremidade da mesa, continuava vazia. O lugar
de Cole nem estava posto e embora
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a comida estivesse deliciosa, ela mal a tocou. Quando ia voltar para o quarto, viu a sra. Garth com a
mão erguida para bater na porta do escritório. A governanta ficou imóvel, esperou Alaina passar por
ela e abaixou o braço lentamente. Na outra mão, levava uma bandeja com uma garrafa de conhaque
fechada. Percebendo que a mulher estava esperando que ela saísse do hall, Alaina subiu a escada com
o corpo muito empertigado. Antes de chegar no quarto, ouviu a sra. Garth bater na pesada porta de
carvalho do escritório.
Alaina ficou pensativa. Era como se todos na casa soubessem e procurassem esconder dela o que
estava acontecendo. Se Cole estava procurando resolver seus problemas com bebida, então os
criados tinham suas ordens; ele não devia ser incomodado.
Muito bem! Alaina ergueu o queixo, num gesto de desafio. Isso também ia passar. Cole teria de
aparecer mais cedo ou mais tarde.
À tarde, Olie encostou uma cadeira na porta do escritório e sentou-se, substituindo Miles na
vigilância. Lá dentro, Cole cantava uma música alegre, mas não era possível entender a letra.
No começo da noite, Peter entrou de guarda e na manhã seguinte Miles já estava de pé, vagueando
no hall, quando Alaina desceu. Ela não se aproximou da porta proibida. Respondeu o cumprimento
de Miles com uma inclinação da cabeça e foi tomar café. Por volta do meio-dia, Peter voltou. Na
hora do jantar não se ouvia nenhum som vindo do escritório, mas Olie estava firme no seu posto.
Na manhã do terceiro dia, Alaina desceu um pouco mais tarde do que de costume. Vestira-se com
cuidado especial, escovando o cabelo até ficar sedoso e brilhante e beliscando as faces para dar cor.
Sem dúvida, três dias e três noites eram suficientes para conseguir o consolo da garrafa. Mas a porta
continuava fechada, o escritório em silêncio, e Miles de guarda. Annie serviu Alaina numa bandeja de
prata coberta e mais uma vez a dona da casa fez sozinha a primeira refeição do dia. Com um
profundo suspiro, Alaina apanhou a xícara de café e foi até a janela, de onde se descortinava uma
bela vista do rio. Toda a sua decisão de resolver o problema com Cole desaparecera, dando lugar à
simples necessidade de vê-lo. Mas até isso parecia que era esperar demais.
O primeiro sinal de que estava sendo observada foi um arrepio na nuca, mas Alaina continuou de
costas para a sala, tomando o café, até o medo desaparecer. Nada a ameaçava, tinha certeza disso.
Num gesto repentino, ela se voltou. A porta da cozinha rangeu e se fechou.
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Havia alguém! Deixando a xícara na mesa, Alaina correu e empurrou a porta. Deu um passo para
dentro da cozinha e parou, com os ouvidos atentos. Não viu ninguém, mas ouviu o sussurro de uma
voz que se aproximava. A porta que dava para o depósito de frutas se abriu, e Annie entrou na
cozinha, carregando vários potes de barro. Quando viu a nova patroa, Annie ficou imóvel e parou de
cantarolar.
— Você viu alguém passar por aqui? — perguntou Alaina, confusa.
— Não, senhora. — Com um suspiro ela pôs os potes na mesa. — Como pode ver, eu estava no
porão. Como vou saber se alguém passou por aqui ou não?
— Sim, acho que tem razão — pensativa, Alaina voltou para a sala de jantar. Não gostava da idéia de
que estava começando a caçar sombras. Dava para duvidar da própria sanidade.
Irritada, Alaina resolveu que ultimamente ficava muito tempo sentada, pensando. Se era o melhor
que podia fazer para se ocupar, logo estaria recorrendo ao conhaque de Cole. O interior da casa era
bem-cuidado, mas muita coisa precisava ser feita na parte externa. O jardim de rosas estava lá, à sua
espera...
Alaina animou-se imediatamente. Encontrara alguma coisa para desviar seu pensamento de Cole.
Correu para o quarto e, sem se importar com a provável desaprovação do marido, escolheu o seu
pior vestido, o de luto, do qual retirou a gola de renda e os punhos. Encontrou um par de sapatos
velhos, um lenço para amarrar na cabeça, outro para prender na cintura e um par de luvas muito
usadas.
Alaina aproximou-se do jardim, com cautela, certificando-se primeiro de que as cortinas do escritório
de Cole estavam fechadas. Com o ancinho e a pequena pá de jardim, apanhados no depósito de
ferramentas, nos fundos da casa, começou a trabalhar diligentemente, de joelhos, arrancando
punhados de mato e folhas secas e arrumando as pequenas pedras, que circundavam os canteiros.
Seu objetivo era tanto aliviar a tensão acumulada nos últimos dias quanto melhorar a aparência do
jardim.
O calor do outono e o exercício logo se fizeram sentir. Alaina abriu a gola do vestido e,
desabotoando as mangas até os cotovelos, as arregaçou. Com a pequena pá, ela revolveu a terra em
volta das roseiras. Era um trabalho pesado, e depois de algum tempo recuou alguns passos, para
descansar e para ver o resultado do seu esforço. Tentou retirar a terra grudada na barra da saia, mas
não conseguiu.
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Tirou o lenço do cinto e enxugou o suor entre os seios, e quando ergueu a cabeça para enxugar o
pescoço, Alaina ficou imóvel. Cole a observava da janela do seu quarto. Ele estava bem-vestido, de
camisa limpa e tudo o mais, e ali estava ela toda suja de terra e com o vestido que ele detestava.
Cole tirou o charuto da boca e soltou uma baforada de fumaça na direção dela. Alaina desviou os
olhos para a fachada de pedra da casa, sem ver nada, gemendo mentalmente de frustração. Três
manhãs esperando. Três manhãs vestindo-se com o maior cuidado! Dois dias inteiros esperando que
o dono da casa aparecesse! Tudo isso para nada!
Ajanela fechou-se num estalido e quando ela ergueu os olhos Cole tinha desaparecido.
— Oh, porque eu tinha de ser apanhada deste jeito?—lamentou-se, em voz alta.
— Peço desculpas, minha senhora — disse alguém, vindo da frente da casa.
Alaina virou-se rapidamente, assustada, e viu Braegar, montado no seu cavalo puro-sangue pernas
longas. — Será suficiente — disse ele, desmontando — se eu voltar e prometer não olhar, desta vez?
— Atravessou uma velha cerca de madeira e amarrou o cavalo no galho de uma árvore decrépita.
Alaina passou a mão na saia, esperando que o corado do seu rosto não fosse muito aparente.
— Dr. Darvey! Eu não esperava visitas!
— Nesse caso...—Braegar abaixou o corpo enorme para apanhar do chão o lenço de Alaina —
..simplesmente tenho de me contentar com a beleza que está à mão. — Estendeu o braço para ajudá-
la a se levantar.
Por um breve momento, Alaina olhou para ele, confusa, depois, compreendendo o elogio, sorriu,
aceitando a mão oferecida. Para acompanhar o estado de espírito dele, fez uma leve curvatura.
— É extremamente galante, senhor, e alegrou sobremaneira meu espírito neste belo dia. — Com um
gesto largo, indicou o azul vibrante do céu e as belas cores de outono nas encostas. — Se seu
inverno é todo assim, acho que vou poder suportá-lo.
— Inverno! — disse Braegar, com desprezo. — Minha cara e inocente Alaina. Devo avisá-la de que
isto não passa de uns breves dias de calor, o que chamamos de verão indiano. Acho melhor se
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preparar para o inverno que está a caminho. — Apontou para as roseiras. — Sabe que estarão
mortas na primavera, se as deixar como estão?
— Oh? — Alaina olhou para o canteiro, sem acreditar que todo seu trabalho fora em vão.
Com um ar doutoral, Braegar aproveitou a oportunidade para um discurso.
— Talvez sobrevivam se as cobrir de terra e com uma espessa camada de folhas.
— Isso é tudo?
— Acho que sim.—Mas não parecia ter muita certeza.—Parece que funciona para as nossas.
Alaina sorriu.
— E fez toda essa viagem só para me ensinar a cuidar das roseiras. Sem dúvida é um cavalheiro.
Braegar tirou o chapéu.
— Senhora! Eu percorreria um milhão de quilômetros só para ver de relance seu belo rosto.
Alaina sorriu, incrédula.
— Senhor, devo dizer francamente que nunca ouvi tanta conversa fiada.
— Senhora! — exclamou ele, como se estivesse ofendido. — Acha que não sou sincero?
— Sou um pouco cética, senhor, quando se trata de irlandeses e de ianques — respondeu Alaina.
Braegar disse com os olhos risonhos:
— E a senhora veio para nos domar a todos, certo, Sra. Alaina? Ela fez um gesto afirmativo.
— Tanto quanto eu puder, dr. Darvey.
— Sim, e acredito que vai conseguir — disse ele, jovialmente. Alaina tirou as luvas e as guardou no
bolso do avental.
— Pensei que não ia vê-lo mais depois daquela noite. Braegar ficou sério.
— Cole e eu tivemos nossas diferenças antes. — Suspirou pesadamente. — Eu vim... — Parecia ter
perdido a loquacidade, e Alaina esperou com paciência. — Senti... necessidade... de um pedido de
desculpas.
Alaina balançou a cabeça lentamente.
— Não posso fazer isso, senhor. Tem de partir de Cole.
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— Não... não... — Balançou a mão num gesto quase irritado. —. Quero dizer, eu devo pedir
desculpas. Acho que foi culpa minha. Ultimamente, parece que não posso mais falar com Cole. Seja
qual for o assunto, sempre digo a coisa errada. Não sei o que é.—Caminharam juntos para a frente
da casa. — Pode ser ele, posso ser eu. Se eu sou a causa, não sei o que fazer, mas Cole está muito
diferente desde que voltou da guerra. — Visivelmente agitado, Braegar olhou para longe. — Ele foi
voluntário, cheio de patriotismo e lealdade, ousadia e coragem. Mas eu não via nenhum motivo para
arriscar minha vida, por isso paguei um homem para ir no meu lugar.
Ele segurou as rédeas do cavalo e caminharam em silêncio. Alaina pensou no pai e nos irmãos.
Finalmente, parou e olhou para ele.
— De certa forma, tem razão. É preciso um certo tipo de homem e um certo tipo de causa para
enfrentar uma batalha. Não posso concordar com o senhor, não posso aprovar o que fez — deu de
ombros. — Mas também não o condeno. Em muitas ocasiões eu teria fugido se tivesse
oportunidade.
Braegar olhou para ela por um longo momento.
— Alaina Latimer, você é um tipo especial de mulher e mais bondosa do que a maioria. É isso que
Cole tem contra mim? O fato de estar são, enquanto ele sofre com o ferimento?
— Acho que não — murmurou ela. — De certo modo, isso não parece combinar com ele.
Braegar estava confuso. Passou as rédeas sobre a cabeça do cavalo e pôs o chapéu.
— Talvez algum dia eu descubra o que o atormenta e então ele vai me contar tudo. — Tocou a aba
do chapéu e montou. — Se eu tiver sorte, vou vê-la outra vez. Transmita minhas desculpas ao seu
marido. Um paciente rico e com gota me espera.
Alaina estava de pé na varanda, vendo Braegar se afastar quando a porta se abriu atrás dela. Certa de
que era Cole, esperou que ele chegasse ao seu lado e disse:
— Não precisa se preocupar. Ele se foi. — Não obteve resposta e depois de um momento, ela
suspirou: — Ele veio pedir desculpas — olhou para Cole. — Por qualquer coisa que tenha dito.
Cole não disse nada, e os olhos de Alaina observaram a figura elegante, impecavelmente vestida, com
camisa branca de seda e calça e coletes listrados. Cole parecia cansado, abatido, e notando sua
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palidez, Alaina pensou que era uma pena o castigo que ele estava impondo ao próprio corpo.
— Eu estava esperando para tratarmos de um certo assunto disse ela com voz terna, mas firme.
— Desculpe-me, minha senhora. — Olhou rapidamente para ela. Eu estava indisposto.
— Sim, eu notei — respondeu ela, secamente, e depois mordeu o lábio. Não tinha intenção de ser
sarcástica.
Cole olhou para o campo e para as montanhas iluminadas de sol, sem responder.
— Fizemos um acordo, major—começou ela, mas hesitou vendo a expressão de desagrado do
marido. Terminou, com voz quase inaudível. — O senhor me procura sempre que tem vontade, e eu
quero saber suas intenções.
Com uma leve curvatura, Cole respondeu:
— Ora, honradas, é claro, minha senhora. Não foi uma parte do contrato? Se não me engano, foi
dita alguma coisa a respeito... na alegria e na tristeza, até que a morte nos separe.
Alaina sentiu-se ofendida pela forma sumária com que ele ignorou seu modo de agir. Cole parecia
dar tanta importância aos sentimentos dela quanto daria aos de Al. Provavelmente ainda tinha
dificuldade em vê-la como mulher. Cole confessara ter esse problema sempre que ela usava o vestido
de viúva.
Irritada, ela abaixou e começou a abotoar uma das mangas do vestido. Não podia precisar o motivo
do seu ressentimento contra o marido.
— Fizemos um acordo, senhor — insistiu ela, esperando uma resposta que contentasse seu orgulho.
— O senhor prometeu... e quebrou sua palavra...
— Tenho feito muitos juramentos, minha senhora—interrompeu ele. — Um, como médico, outro
para o meu país, outro como marido... e cheguei à conclusão de que, fazendo isso, caí em muitas
contradições.
O conflito surgiu pela primeira vez quando ele recebeu ordens Para abandonar os feridos no campo
de batalha, em Pleasant Hill. Desobedecendo as ordens, ele resolveu ficar. A conseqüência desse ato
não servia para aliviar sua dor, mas recebeu honras de herói. Cole considerou seu dever providenciar
a remoção dos feridos.
Seu juramento de médico entrou em conflito quando se casou com
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Roberta. Muitas vezes ela mentia para os pacientes, mandando-os embora. O último caso foi de uma
garotinha gravemente doente, levada à casa de Cole pelos pais. Roberta os recebeu na varanda e disse
que não podia se comunicar com Cole naquele momento, embora ele estivesse muito perto, na antiga
casa construída por seu pai. Braegar estava ocupado com uma bela paciente. A menina, Cole soube
depois, morreu naquela mesma tarde. Quando Cole interpelou Roberta, ela se limitou a dar de
ombros, dizendo que o mundo ficava muito melhor sem aquela gente miserável.
Assim, era como se todos os seus juramentos tivessem se voltado contra ele, e o último, não menos
do que os outros.
— Mencionou a honra, senhor — lembrou Alaina. Não ia deixar que o assunto ficasse sem solução.
— Mas o juramento foi triplo. O que me diz de amar e tratar com carinho?
Só depois de um momento, Cole respondeu:
— Eu a trato com carinho.
Mas Alaina não estava satisfeita.
— E amor?
Cole impacientou-se.
— Sempre suspeitei dessa coisa cintilante que acontece à primeira vista — resmungou ele. Olhou
para ela e continuou com voz deliberadamente lenta: — Como posso dizer o que é o amor? Quando
um homem e uma mulher começam a se compreender, o amor começa muito pequeno, e cresce com
o tempo. É uma coisa que um homem guarda dentro dele até desabrochar por completo.
Revolta e frustração tomaram conta de Alaina, e com uma pequena curvatura irônica ela disse:
— Com todo o respeito, major, acho que o senhor é um maldito tolo cego. Um filho é feito num
momento, mas dura uma vida inteira; Uma bolota de carvalho pode ficar durante anos na fenda de
uma rocha, mas quando o vento a leva para um solo fértil, ela brota com o primeiro calor da
primavera e se transforma num poderoso carvalho, que dura um ou dois séculos. Quanto a guardar o
amor, é a única coisa que deve ser dada, para que possa viver no nosso coração. Deve ser partilhado,
do contrário, fenece! — Seus olhos brilhavam e um caleidoscópio de emoções passava por seu rosto.
— O senhor, major, é como uma nuvem grande e negra num dia quente de verão. Ronca e estala e
enche o ar de ruídos. Seu relâmpago explode com força ameaçadora, assustando as criaturas
pequenas e fracas. Mas, enquanto
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a chuva não cair, enquanto não partilhar o que guarda no seu interior, a terra e a vida continuarão
ressecadas e áridas como antes. Até então continuará a rugir e rolar e a se destruir. Em outras
palavras, senhor, enquanto algum bem não for feito, o barulho e a fúria serão inúteis.
Antes que Cole erguesse uma sobrancelha, com divertida condescendência, Alaina atravessou a
varanda, com o tantalizante farfalhar das suas saias, e entrou na casa.
A entrada de Cole foi muito mais calma e quando desceu os degraus do hall de entrada, viu o último
movimento da anágua no segundo andar e logo depois ouviu a porta do quarto sendo fechada. O
olhar de Cole fez desaparecer a sugestão de um sorriso nos lábios de Miles.
— Mande Peter levar água para a senhora — disse Cole. — Sem dúvida ela vai querer um banho.
— Sim, senhor. E o senhor vai querer seu café agora? — O gesto afirmativo aliviou a ansiedade do
mordomo. — Annie vai gostar de ouvir isso, senhor.
Na sala de jantar, tomando o café com conhaque servido pela sra. Garth, Cole lutava para se libertar
de uma sensação comum na sua infância. Aúnica coisa que seu pai não tolerava era a tolice
consciente, e Cole aprendera desde muito cedo que, sempre que insistia numa bobagem, o pai o
conduzia novamente ao caminho certo com uma vara de salgueiro. Mais tarde, ele se arrependia por
ultrapassar os limites da sensatez. Era exatamente o tipo de remorso que sentia agora. Só faltava o
castigo com a vara flexível. Ele sabia, porém, que isso não mudaria o rumo que resolvera tomar.
Cole acabou de comer, ignorando deliberadamente o prato de batatas fritas, e recostou-se na cadeira
para tomar a segunda xícara de café, dessa vez sem o tempero da bebida. Desejou então ter prestado
mais atenção às palavras de Alaina. Só com muito esforço conseguira ficar sério, fascinado como
estava com a blusa desabotoada do vestido dela. A cada respiração, o busto, brilhando de suor,
ondulava tentadoramente, acompanhando as suas palavras. O pouco que lembrava do que ela dissera
sugeria uma sabedoria da vida profunda demais para sua pouca idade. Mas Cole já sabia que além do
rosto bonito, Alaina tinha um cérebro... bem ativo e bem alerta!
Ouviu a voz furiosa de Alaina no hall e, surpreso, empurrou a cadeira para se levantar no momento
em que ela apareceu na porta e atirou no colo dele o vestido de noite amarelo e preto. Antes que
Cole
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pudesse fazer qualquer movimento, ela estava ao seu lado, quase em cima dele, com o dedo em riste,
na frente do seu nariz.
— Seu barriga azul, seu rato do pântano — silvou ela, como um gato bravo —, prefiro andar nua a
usar qualquer coisa que comprou para mim!
A fúria fervia nos olhos cinzentos.
— Eu não me importaria nem um pouco, minha senhora — disse ele, calmamente. — Mas o que
provocou tudo isto?
Alaina tirou o vestido do colo dele com tamanha violência que Cole pensou que ia ser agredido.
— Não me trate com esse ar de superioridade, ianque cabeça de mula! — Sacudiu o vestido na frente
dele, mostrando as partes queimadas no corpo e na saia.
— Acha que eu faria uma coisa dessas? — Agora ele estava zangado. — Dane-se, mulher, não fui eu!
Olhando para o vestido arruinado e lembrando seu desejo de agradar o marido, Alaina não pôde
conter as lágrimas.
— Alaina — sua zanga esmoreceu e tentando consolá-la, passou o braço pela cintura dela. — Não
posso imaginar quem, nesta casa, seria capaz disso. Não é possível que uma rajada de vento tenha
atirado o vestido no fogo?
— Não havia nenhum fogo — murmurou Alaina. Passada a explosão de ira, ela sentia agora um
aperto no coração. — Alguém acendeu os gravetos na lareira e atirou o vestido sobre eles. —
Dobrou o vestido sobre o braço e passou a mão na manga não queimada.
— Por favor, acredite — disse Cole. — Eu jamais faria uma coisa dessas. Mas quem poderia ser?
Você tem alguma idéia?
— Não tem importância — disse ela, em voz tão baixa, que Cole teve de se esforçar para ouvir.
Apertando o vestido contra o peito, ela virou o rosto. — Era um dos meus melhores vestidos. A sra.
Hawthor-ne me ajudou a comprar. — Sua voz estava entrecortada. — Eu queria que se orgulhasse
de mim, não pelas coisas que pode me dar, mas por tudo que consegui trazer para você.
Cole enfrentara tantos acessos de raiva de Roberta que não os estranhava mais, porém se sentia
impotente e inseguro com as lágrimas de Alaina.
Ora, maldição! Sim, agora ele sabia. Chame a atenção dela! Provoque sua fúria! Qualquer coisa é
melhor do que isto, pensou ele.
— O que eu estou vendo? — perguntou em voz alta, em tom de
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afetuosa brinncadeira. — Esta é a mesma pessoa que atacou um homem com um esfregão? Aquela
que me tirou do rio e salvou minha vida no meio da guerra? A mesma que vejo chorando por causa de
um vestido estragado? Este é o Al?
Alaina olhou para ele, e Cole percebeu que cometera um erro. As lágrimas desciam livremente pelo
rosto dela. Com a voz entrecortada de soluços, Alaina disse:
— Eu era uma menina de cabelos longos, até a cintura, criada numa boa família, para ser uma jovem
senhora muito fina.—Suspirou profundamente, lutando contra as lágrimas e o aperto no coração. —
Eu os vi partirem, um a um. Enterrei minha mãe, depois tive de cortar meu cabelo bem curto. Tive
de passar terra e fuligem no rosto. Tive de usar roupas velhas e malcheirosas. Tive de aprender a
andar como um garoto, lutar como um garoto. Tive de ouvir suas ameaças de me dar um banho —
agora ela estava soluçando alto —, quando me sentia miserável por estar tão suja. — Inclinou-se para
a frente e olhou para ele com atenção. — Você não entende — sua voz era um gemido doloroso. —
Não havia nenhum Al. O tempo todo era apenas eu! — Bateu com a mão fechada no peito. — Eu
sempre fui Alaina! Nunca... existiu... nenhum... Al!
Soluçando e abraçando o vestido, Alaina saiu correndo da sala. Cole ouviu o choro dela até a porta
do quarto se fechar, deixando-o sozinho no silêncio opressivo.
427
Capítulo Trinta e Dois
O ESTRAGO NO vestido era irreparável, mas Alaina era bem mais forte que isso. No começo da
noite ela estava convencida de que podia suportar muito bem a perda de uma peça de vestuário. Mais
calma, percebeu que estava sentada numa poltrona de veludo verde, que não estava no seu quarto
quando desceu para cuidar do jardim. Era estranha aquela aparição de objetos enquanto ela estava
fora. Não tinha pedido nenhum deles. Primeiro, foi o espelho de corpo inteiro, no dia seguinte, o
relógio de carrilhão, depois, o tapete oriental e finalmente a poltrona instalada em frente à janela, de
onde podia admirar a bela paisagem. Não podia explicar essas coisas, nem a destruição do vestido.
A noite ecoou tristemente pela casa. O vento mudou, e rajadas ululantes sacudiam freneticamente as
árvores, levando as últimas folhas, desnudando os galhos, que se contorciam em agonia. Clarões
cegantes riscavam o céu, seguidos pelo ribombar ensurdecedor do trovão. Achuva açoitava os vidros
das janelas, descendo por eles como pequenos rios. Então, bruscamente, como chegara, a tempestade
passou, e tudo ficou quieto outra vez. A serenidade envolveu o sono, os lampiões foram apagados, e
a casa ficou escura e silenciosa. Alaina pensou ouvir os passos inquietos do marido, no escritório,
mas logo tudo cessou. A lua apareceu entre as nuvens, e Alaina mais uma vez
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começou a mergulhar no sono. Num vazio flutuante e negro, a calma foi perturbada pelo ruído
estranho de algo que parecia se arrastar em alguma parte distante da casa. Soldado uivou no corredor,
um som sinistro no meio da noite, entre os ruídos espectrais da mansão.
Num impulso de coragem, Alaina resolveu verificar de onde vinha o estranho som. Acendeu uma
vela, vestiu o roupão e abriu a porta, com cautela. Soldado estava sentado na frente do quarto de
Roberta e depois de um rápido olhar para Alaina, começou a arranhar a porta, ganindo, como se
quisesse entrar.
— Venha, Soldado — disse ela. — Não há nada aí.
Ele rosnou, como se não concordasse, e a vela quase caiu dos dedos trêmulos de Alaina.
Compreendendo que Soldado não ia desistir enquanto sua curiosidade não fosse satisfeita, Alaina
dominou o medo e abriu a porta do quarto de Roberta. Soldado entrou correndo, deu várias voltas,
farejando tudo e depois parou, como se estivesse ouvindo alguma coisa. Tudo parecia estar em
ordem. A janela estava aberta, e só se ouvia o ruído da cortina pesada balançando ao vento. Certa de
ter descoberto o motivo da excitação de Soldado, Alaina suspirou, aliviada.
— Foi isso que ouvimos, Soldado — disse, em voz alta, como tentando se convencer também. Foi
até a janela e, com surpresa, viu que as cortinas estavam secas, intocadas pela chuva que até poucos
momentos castigava a casa de todas as direções. Provavelmente um dos criados abrira a janela depois
da tempestade, para arejar o quarto. O ar gelado do começo de inverno atravessou a roupa fina de
Alaina. A atmosfera fria e tumular da suíte de Roberta não encorajava uma permanência mais
demorada. Chamou Soldado, mas ele gania agora para a parede, onde pequenos quadrados de vidro,
um muito junto do outro, criavam a ilusão de um grande espelho, emoldurado por uma alcova
forrada de veludo vermelho. Olhando para seu reflexo, Soldado parecia convencido de que havia
outro cão no quarto.
— Para fora, Soldado! — ordenou Alaina. — Para fora, já! Relutante, com o rabo entre as pernas, ele
obedeceu. No seu quarto, com a porta fechada, Alaina levou algum tempo para acalmar sua
inquietação.
De manhã, Alaina não apareceu para o café, e à pergunta de Cole, para a criada do segundo andar
informou que sua patroa não se sentia bem. Resolvido a saber o que estava acontecendo, ele subiu e
pela primeira Vez bateu à porta. Ouvindo a resposta murmurada, entrou. Alaina
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estava sentada na ponta da espreguiçadeira, pronta para se levantar. Quando viu quem era, encolheu-
se contra as almofadas, escondendo os pés sob a bainha da camisola e fechando a gola do roupão.
Murmurando um bom dia, voltou a pôr a compressa sobre os olhos. O quarto estava frio, o fogo
quase apagado, e o vento entrava pela chaminé.
— Devia ter chamado os criados para atiçar o fogo — censurou ele, gentilmente. — Vai morrer de
frio neste quarto.
Alaina fungou sob a máscara e afundou mais nas almofadas, ouvindo os passos irregulares dele na
direção da lareira. Cole fechou um pouco o abafador e pôs várias achas de lenha sobre as brasas,
depois se aproximou da espreguiçadeira e olhou para Alaina durante um longo tempo.
— Devo entender que não está se sentindo bem, minha senhora?
— Nada importante, senhor — murmurou ela.
— Pensei que estivesse lamentando a perda do seu vestido.
— Resolvi esquecer, como sugeriu.
— Não será difícil substituí-lo. Tenho certeza de que a modista, em St. Cloud, pode encontrar a
mesma fazenda e a mesma renda...
— Posso passar muito bem sem ele. Tenho outros, talvez não tão bonitos, mas que podem ser
usados.
Cole procurou um meio de quebrar a formalidade fria da conversa.
— Vou à cidade, tratar de negócios com Franz e estava pensando se gostaria de ir comigo.
Alaina ergueu um canto da compressa, olhou para ele e cobriu os olhos outra vez.
— Desculpe, senhor, mas estou indisposta hoje.
Cole ficou irritado. Quase com essas mesmas palavras ele havia se desculpado, bruscamente, na
véspera, e imaginou se era uma espécie de vingança. Roberta sempre recorria à desculpa de doença.
— Se está com dor de cabeça, minha senhora, posso mandar Annie apanhar um pouco de gelo. Tem
um efeito calmante...
— Minha cabeça está ótima, major — enfatizou o título.
Cole inclinou-se e passou a mão na testa dela. A compressa caiu e Alaina olhou furiosa para ele.
— Não estou com febre, major — disse ela, secamente.
— Então, não sei o que pensar, minha senhora...—começou ele, mas Alaina apanhou a compressa e
a jogou no chão.
— Não sabe o que pensar? Dr. Latimer! — rilhou os dentes e
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corou intensamente por ter de explicar. — Será que está além da sua capacidade compreender que
sou uma mulher? Sabe tão pouco sobre as mulheres que não pode imaginar por que estou realmente
indisposta? Compreendendo, Cole esforçou-se para não sorrir.
— Peço mil desculpas, minha senhora. Não imaginei que fosse uma coisa tão delicada. Como
marido, devo compreender suas inconveniências femininas, é claro, mas com a pouca intimidade que
há entre nós, estou de certa forma em desvantagem.
— Vá embora — gemeu ela.
Esperando que ele a deixasse em paz, Alaina fechou os olhos e recostou a cabeça nas almofadas.
Não se conformava com o fato de sempre ver sua dignidade reduzida a nada, nas suas discussões
com Cole. Por que ele não podia, pelo menos uma vez, vê-la como uma dama orgulhosa, digna e
serena? Roberta aparentemente sempre conseguia isso. Por que ela não podia?
— Vou deixá-la, minha cara, depois de providenciar seu conforto. Cole foi para o quarto dela e
Alaina, apreensiva, ergueu-se um pouco na espreguiçadeira. Ele voltou com uma garrafa de cristal
com conhaque e um copo. Serviu uma pequena dose e ofereceu a ela. Franzindo o nariz, com
repugnância, Alaina virou o rosto para o lado.
— Prefiro ficar sóbria e sofrer sozinha.
— Ora, vamos, Alaina — disse ele, bem-humorado. — A bebida acalma e aquece, e talvez alivie uma
parte do seu desconforto. Como médico, é a melhor coisa que posso receitar para seu caso.
Com relutância, ela aceitou o copo.
— Pensei que tinha abandonado a medicina.
— Como posso resistir com uma paciente cativa? — sorriu ele. Olhou para ele furiosa, mas não
resistiu quando Cole estendeu uma manta sobre suas pernas, prendendo-a sob os pés.
— Há alguma coisa na cidade que seu orgulho permita que eu compre para a senhora?
Alaina ergueu o narizinho atrevido, sem entender a pergunta.
— Bombons, talvez? — olhou atentamente para ela.
Alaina esqueceu a irritação. Há anos ela nem provava um bom-bom! Cole riu, vendo a resposta no
olhar ávido.
— Vou comprar tantos, meu bem, que vai engordar se comer todos. Então não terei escolha senão
anular o casamento.
Alaina respondeu com um sorriso.
— Ficarei satisfeita com pouco, senhor.
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— Porém, posso voltar tarde — avisou ele. — Vou contratar lenhadores para trabalhar no norte,
com Franz, e não sei quanto temp o isso pode demorar.
Alaina deitou a cabeça nas almofadas e escondeu seu desapontamento, apanhando a compressa e
cobrindo os olhos outra vez com ela. Cole foi até a porta.
— Provavelmente jantarei na cidade. Não precisa me esperar. Ela ergueu a compressa.
— E eu, senhor, provavelmente vou jantar no quarto. Não precisa se preocupar, serei cuidadosa na
escolha dos meus convidados.
Cole ficou sério, mas logo depois sorriu.
— Pelo menos, minha senhora, não preciso temer as atenções de Braegar por algum tempo.
Um brilho frio como aço apareceu nos olhos dela.
— Major Latimer, seu senso de moralidade me parece estranho. Não hesitou em me possuir, em
Nova Orleans, quando pensou que eu fosse uma prostituta, e estou certa de que teve muitas
mulheres. Suponho que alega como desculpa o fato de ser apenas a satisfação de uma necessidade
física. Por outro lado, interpreta um simples ato de atenção delicada como uma traição sórdida e
externa sua indignação violentamente.
— Há muitas coisas que não entende, Alaina.
— Concordo plenamente, senhor! — Com um misto de perplexidade e indignação nos olhos
cinzentos, ela esperou pacientemente que ele explicasse.
Cole abriu a boca para responder, mas resolveu o contrário. Com uma leve inclinação da cabeça, saiu
do quarto, deixando Alaina mais intrigada do que nunca. Ouviu os passos dele no hall. Como podia
compreendê-lo quando ele insistia em se envolver num manto de silêncio?
Era quase meia-noite quando ela o ouviu entrar no quarto ao lado do seu e depois no banheiro. Os
passos pararam na frente da sua porta. Alaina ouviu as batidas da cauda de Soldado no chão, e depois
Cole se afastou. Até muito tarde da noite ela ouviu os passos inquietos de Cole no escritório.
Na manhã seguinte, Alaina parou, surpresa, quando entrou na sala de jantar. Ao lado da sua xícara
estava uma lata artisticamente pintada e
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um ramo de pequenas margaridas amarelas, atado com uma fita. aquela época do ano era um toque
alegre e raro no ambiente.
Sorrindo, ela sentou-se e apanhou o cartão, que dizia, simplesmente, "Alaina". Levou o buquê ao
nariz, sensibilizada pela delicadeza de Cole. Sabia que a lata continha os bombons prometidos e
lembrou que geralmente eram fabricados nas cidades do leste e requeriam um transporte muito
cuidadoso para chegar até ali. Alaina perguntou a si mesma por que nem por um momento tinha
duvidado da promessa de Cole de comprar bombons para ela.
No mesmo momento, descobriu a resposta. Roberta adorava bombons. Na verdade ela os exigia,
mesmo nos tempos mais difíceis. Agora, ela estava morta. Será que nunca iria embora? Nunca
deixaria de atormentar suas vidas?
A porta da cozinha rangeu, e Cole entrou, parando para admirar a jovem mulher com um vestido de
seda cinzenta brilhante. A luz da manhã a envolvia num halo suave, fazendo-a parecer uma figura de
sonho, e Cole a observou quase com reverência. Alaina ergueu os olhos lentamente para ele e o
sorriso suave e quente quase o fez parar de respirar.
— Muito obrigada, Cole.
— Gostou dos bombons? — perguntou ele, suavemente. Alaina riu, alegre, como se estivesse se
preparando para uma aventura emocionante. Cole observou a expressão de encantamento quando
ela abriu a tampa da lata e arregalou os olhos, maravilhada. Apanhou um bombom, deu uma pequena
mordida e fechou os olhos, como que transportada para um lugar de prazeres, muito longe do
mundo.
— Decididamente pecaminosos! — riu ela, lambendo as pontas dos dedos. — Quer um?
Cole sentou-se na outra extremidade da mesa e disse:
— Olie jura que esse tipo de doce destrói a masculinidade. Alaina olhou para ele com um sorriso
zombeteiro.
— Acredita muito nas histórias dos velhos, dr. Latimer?
— Minha senhora, ultimamente, se alguém me disser que a água tem esse efeito, eu não teria meios
de provar o contrário — comentou ele, secamente.
Com os cotovelos na mesa, Alaina examinou atentamente um bombom.
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— Talvez deva provar alguns. Talvez acalmem sua natureza impetuosa.
— Agradeço a sugestão, minha senhora.—Olhou nos olhos dela — Embora deva dizer que mesmo
que minha natureza impetuosa tenha tido poucas oportunidades para se afirmar, tentarei controlá-la
melhor no futuro. — Olhou para o cabo de prata da sua bengala em forma de cão e disse, como se
estivesse pensando em voz alta: - Nunca imaginei que o casamento fosse tão parecido com a vida
num mosteiro.
Alaina pensou em várias respostas, mas não queria estragar a atmosfera agradável daquela manhã e
preferiu ficar em silêncio.
Chegaria a hora, naquele relacionamento um tanto atribulado, em que ela o faria lembrar de que ele
estava tendo exatamente o que pedira.
Na manhã seguinte Alaina desceu na hora habitual e encontrou Annie numa dança desesperada na
frente da lareira. O cheiro de chocolate queimado pairava no ar e quando a cozinheira se afastou um
pouco, Alaina compreendeu. As brasas apagadas da lareira estavam cobertas por uma substância
negra e pegajosa. A lata estava queimada também, retorcida, a tinta chamuscada e marrom.
Com uma exclamação de horror, Alaina correu para a lareira, tentando salvar a lata e quase queimou
os dedos. Então, ela a ergueu com o atiçador.
— É coisa do diabo, patroa — soluçou Annie. — Não sei quem fez isto, mas sei que é um demônio,
seja lá quem for.
Evidentemente a lata passara a noite toda na lareira, para estar tão queimada pelas brasas cobertas de
cinza. Os bombons foram jogados no fogo e a lata amassada. Não era o efeito de uma raiva
momentânea, mas de ódio frio e calculado. Evidentemente, Alaina tinha um inimigo naquela casa.
— O que houve? — perguntou Cole, na porta.
As duas mulheres voltaram-se para ele, Alaina com os olhos cheios de lágrimas, e Annie com a boca
aberta. Cole olhou para a lareira e depois para elas, e Annie apressou-se a explicar:
— A lata estava ali, senhor, quando cheguei para pôr a mesa. Alguma criatura maldosa anda por aqui,
e eu não tenho idéia de quem pode ser.
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— Talvez os outros criados saibam de alguma coisa — disse Cole. — Vou falar com eles,
imediatamente.
— Não foi acidente, senhor — afirmou Annie, com ênfase. — poi maldade pura, da pior espécie.
— É o que parece—disse ele, bruscamente.—Mas, de um modo ou de outro, isso tem de parar, nem
que eu precise despedir todos.
A cozinheira torceu as mãos, nervosa. Seria um choque para ela ser despedida. Depois de tantos
anos, sentia-se como parte da família Latimer, e Cole era como se fosse seu filho. Mas compreendia
que sua jovem mulher estava em primeiro lugar.
Procurando dominar o tremor, Alaina pediu licença e saiu da sala. Preocupado, Cole foi até o hall e a
viu subir lentamente a escada. Não tinha palavras para consolá-la e ficou olhando até ela desaparecer
no corredor. Ia voltar para a sala quando Alaina surgiu outra vez no alto da escada, com o corpo
rígido e o rosto muito pálido.
— Dr. Latimer! — A voz dela tremia de emoção. — Quer vir até aqui, por favor?
Cole subiu com a rapidez que permitia sua bengala, imaginando o que teria acontecido. Mentalmente
examinou as providências que tomaria se suas suspeitas fossem confirmadas. Mas quando entrou no
quarto de Alaina ele riu alto, aliviado.
— Não vejo nada de engraçado nisto! — disse Alaina, com os lábios quase brancos. — Estão
sempre trazendo alguma coisa para meu quarto, quando não estou presente! E agora isto! Afinal, o
que significa esta piada de mau gosto?
Apanhou a latinha pintada que estava sobre a cama e a estendeu para Cole. Tinha a metade do
tamanho da outra, mas os bombons eram os mesmos.
— É Mindy que está fazendo isso — respondeu Cole. — Acho que ganhou uma amiga.
— Mindy! — O riso de Cole aumentou sua fúria. — Quem é essa Mindy? Uma amante que mantém
nesta casa, debaixo do meu nariz?
— Amante? — Cole riu. — Eu diria que ela precisa de amor, sem dúvida, mas não desse tipo. Acho
que está na hora de conhecer Mindy. Venha comigo, meu bem.
Segurando a mão dela, Cole a levou a um quarto que ficava de frente para a suíte de Roberta. Abriu a
porta e a fez entrar. O quarto tinha a estranha aparência de nunca ter sido usado. Cole resmungou
al
guma coisa e voltou com Alaina para a escada.
435
- Cole! — reclamou ela, tentando livrar o pulso da mão dele. —. Solte-me! O que os criados vão
pensar?
— Esta é a minha casa, senhora, e pouco me importa o que os outros pensam.
Quando passaram por Miles e pela sra. Garth, na sala de jantar, os criados olharam para eles
surpresos. Alaina procurou manter uma pose digna, enquanto Cole a puxava para a cozinha.
Procurando acompanhar o passo irregular e largo do marido, Alaina estava um pouco ofegante
quando Annie voltou-se do fogão, segurando uma concha.
— Ora, este é sem dúvida um grande dia. A patroa e o patrão me visitando na cozinha. — Olhou
desconfiada para os dois. — Me faz pensar o que estão tramando.
Cole apenas sacudiu a mão no ar, deixando-a mais curiosa ainda. Annie ficou calada, enquanto Cole
examinava a cozinha. Ele procurou ao lado da caixa de lenha e na despensa, depois saiu para a
pequena varanda fechada dos fundos.
— Ah, você está aí—disse ele para alguém que Alaina não podia ver, estendendo a pequena lata. —
Você deu isto para a senhora, depois que a dela foi queimada.—Alaina não ouviu nada, mas
evidentemente ele recebeu alguma resposta. — Ela gostaria de agradecer e acho que está na hora de
você parar de se esconder. Venha. Não precisa ter medo desta — disse ele, estendendo a mão. — O
nome dela é Alaina e é uma senhora muito bondosa.
Com uma exclamação de surpresa, Alaina viu aparecer uma menina de seis ou sete anos, segurando
uma boneca de trapos contra o peito. Usava um vestido comprido e desbotado de chita sob o casaco
pequeno demais para seu tamanho, e embora a cozinha estivesse quente, ela tremia, como um
coelhinho assustado. Depois de um olhar rápido para Alaina, ela abaixou os olhos grandes e escuros
para os sapatos pretos e muito usados. O rostinho fino estava encardido e sujo de fuligem e o cabelo
longo embaraçado e maltratado.
— Ela não fala muito — disse Cole. — Mas esta é Mindy.
— Meu Deus, Cole! Que diabo você andou fazendo com esta menina? — perguntou Alaina,
horrorizada. — Ela está imunda!
— Eu comprei roupas para ela — deu de ombros. — Mas Mindy não quer usar. Ela tem um quarto
lá em cima, mas prefere ficar aqui na cozinha. Com todo o seu silêncio, Mindy é muito independente
muito parecida com alguém que conheci em Nova Orleans.
Alaina percebeu que Annie acompanhava tudo atentament.
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olhando por cima dos óculos com aros de arame, que usava na ponta do nariz. Cole acompanhou o
olhar da mulher, e Annie virou-se rapidamente para a cenoura que raspava na sopa. Porém, não era
do seu tipo deixar de fazer um comentário.
— De um modo geral, Mindy não gosta de gente, e eu acho que não se pode culpar a criança por
isso. A outra patroa vivia reclamando de ter de partilhar a casa com todos os mendigos que o patrão
encontra na rua. Chegou até a ameaçar Mindy com um amolador de navalha, mas o patrão apareceu
em tempo e não aconteceu nada.
— Annie, sua língua funciona demais e com muita freqüência — observou Cole, asperamente.
Annie não se impressionou.
— Eu digo o que penso, sem nenhum enfeite, pode estar certo. Mas a menina parece que gostou da
nova patroa. Há dias que Mindy a observa. — Annie deu uma fungadela e continuou: — Na
verdade, estava tão preocupada que deu para a patroa a lata que ganhou do patrão. Ninguém pode
negar que ela tem um bom coração, a pobre orfãzinha.
— Ela não tem nenhum parente? — perguntou Alaina.
— Tinha um tio — disse Cole —, que trabalhou aqui como jardineiro por algum tempo, depois que
voltei de Nova Orleans, mas ninguém sabe o que aconteceu com ele. Mindy está aqui desde que o tio
desapareceu.
— Mas onde estão os pais dela?
— O massacre, há três anos — disse Cole em voz baixa, fazendo um sinal para não tocar mais no
assunto.
Alaina tirou a lata da mão de Cole e a estendeu para a menina.
— Vou precisar de ajuda para comer tudo isto. Quer ficar com a lata e me ajudar?
Mindy piscou os olhos enormes e olhou para Cole. Ele fez um gesto afirmativo e ela olhou,
hesitante, para Alaina. Aceitou a lata e a aPertou contra o peito. Depois deslizou para a porta, ansiosa
para escapar.
Alaina sabia o que era o medo, a fome, a insegurança de não ter um lar e podia compreender
perfeitamente a ansiedade e o medo da menina.. Só a aparência dela era bastante para comover
qualquer pessoa, e Alaina era muito sensível. Em tom carinhoso, ela a chamou, dizendo:
Não vou machucar você.
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Mindy se encolheu, com medo, e tentou dar um passo para a porta mas Cole segurou seu braço.
— Ora, ora. Aonde você vai? Não ouviu o que a senhora disse? Mindy entrou em pânico quando ele
a puxou para perto de Alaina
Nervosa e apreensiva, apertou mais a lata e a boneca de pano contra o peito e resistiu, agarrando-se
desesperadamente na perna de Cole. A mãe de Alaina criara os filhos com mão gentil, mas firme.
Nunca foi áspera e nem condescendente. E foi a esse tipo de educação qu e Alaina recorreu naquele
momento.
— Eu gostaria de vê-la melhor, Mindy. Venha cá. — A voz, embora suave, não admitia
desobediência. Relutante, Mindy se aproximou e Alaina, estendendo o braço bem devagar, levantou
o cabelo dela e examinou a orelha e o pescoço imundos. Depois foi a vez das mãos pequeninas e
encardidas. Finalmente, Alaina olhou para Cole, que a observava com interesse. — Deixou esta
criança morar em sua casa, neste estado. Não posso acreditar!
O tom de reprovação o desagradou quase tanto quanto o exame desagradou Mindy.
— Minha senhora, parece me atribuir muita experiência em assuntos femininos, mas posso garantir
que isto está fora da minha alçada. Se puder me informar qual o melhor modo de tratá-la, eu ficarei
muito grato.
— O que toda criança precisa, senhor é de uma orientação suave, alguém que diga quando ela deve
tomar banho e o que fazer para se manter limpa. E essa, dr. Latimer, vai ser a primeira providência.
Agora, venha comigo, Mindy — disse ela, segurando a mão da menina. — Trataremos primeiro de
alguns dos seus problemas mais prementes.
Com alguma rebeldia nos olhos escuros, Mindy tentou resistir. Estava muito satisfeita com seu modo
de vida e podia passar muito bem sem um banho! Seu tio não se importava nem um pouco com a
limpeza, e embora o dr. Latimer tivesse insistido, ela sempre se escondia dos criados, até estarem
todos entretidos com seus afazeres. Assim, conseguira esse estado atual de conforto e não pretendia
abrir mão dele.
Alaina cruzou os braços e enfrentou calmamente aquela demonstração de teimosia.
— Muito bem, acho que posso chamar Peter, Miles e a sra. Garti para me ajudarem a segurar você
para o banho. Para mim, tanto faz que seja à força ou de boa vontade. Você vai tomar um banho.
A menina olhou para Cole, esperando que ele a salvasse daquela
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mulher, que a ameaçava com coisa tão terrível. Afinal, ele a havia protegido muitas vezes da fúria da
primeira mulher. Mas agora, ele apenas tirou o relógio do bolso, para ver as horas, completamente
desinteressado do seu problema. Vendo falhar o último recurso, Mindy não teve outra escolha senão
ceder. Submissa, abaixou a cabeça.
.— Venha comigo, então — disse Alaina, segurando a mãozinha da criança. — Dr. Latimer? — Os
olhos cinzentos voltaram-se para ele — Posso precisar da sua ajuda se encontrar alguma resistência no
caminho. Quer nos acompanhar?
— Vou mandar Peter levar água para a senhora — ofereceu Annie, com entusiasmo. Estava
impressionada com o bom senso demonstrado por aquela jovem e concordava com o método da
forçausada gentilmente. O que detestava era a violência desnecessária de Roberta.
Cole também estava impressionado.
— Minha senhora, se conseguir o milagre de levá-la calmamente para o banho, talvez a convença a
dormir no quarto, também.
Mindy balançou a cabeça vigorosamente.
— Mas por que não?—perguntou Alaina, quando passavam pela porta de vaivém.
Tossindo para chamar a atenção dos patrões, Annie disse:
— Desculpe a interrupção, patroa, mas como eu disse antes, a primeira sra. Latimer maltratava muito
a menina quando o patrão não estava e deram para a pequena Mindy o quarto perto do quarto
vermelho. Acho que a pobre menina tem medo que a sra. Roberta volte. É verdade que ela tem
medo de ficar lá em cima, sozinha.
— Veremos o que se pode fazer, então — disse Alaina. Quando chegaram ao quarto de Alaina, Cole
pôs mais lenha na lareira enquanto ela desembaraçava o cabelo de Mindy. A menina,
obedientemente, pôs de lado a lata colorida, mas não quis largar a boneca, nem quando Alaina tirou
seu casaco e seu vestido. Alaina franziu o nariz com o cheiro das roupas, lembrando o disfarce que
usara por tanto tempo. Pelo menos, quando era "Al", ela estava Sempre limpa, sob a roupa suja, o que
não acontecia com Mindy.
Cole observava a mulher pequena e esbelta, que resolveu se encarregar da criança. A cada dia que
passava tinha a impressão de conhecer mais Alaina. Mesmo assim, era uma personalidade tão
imprevisível que duvidava poder compreendê-la completamente ou deixarde descobrir uma nova
característica. Viu a carinhosa determinação nos olhos dela quando arregaçou a manga e protegeu a
frente
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do vestido com um avental. Alaina era uma mulher animada e vigorosa, e tudo que ele queria domar
era seu coração.
Atendendo ao pedido dela, Cole derramou água de uma jarra enquanto Alaina esfregava a cabeça de
Mindy sobre uma bacia. Percebendo que teria de abandonar a boneca para tomar banho, Mindy
agarrou-se a ela com mais força. Isso não perturbou Alaina.
— Ótimo. Ela parece que também precisa de um banho. Só que você precisa ter cuidado. A boneca é
muito mais delicada do que você e seria uma pena se ela se desmanchasse na água.
Cole sorriu quando Mindy, depois de pensar por um momento sentou a boneca na banqueta ao lado
da banheira. Nada de confusão nada de gritos, apenas a voz calma com uma lógica que a menina
podia compreender. Ele foi até o quarto, tirou do fogo um graveto com a ponta em brasa e acendeu
o charuto, antes de recostar-se numa poltrona para pensar na sua jovem mulher. Era capaz de
apostar que naquele momento Mindy estava arrependida de ter oferecido seus bombons para
substituir os que tinham sido queimados, pois Alaina a esfregava com o mesmo vigor com que
limpava o chão do hospital.
Depois de algum tempo, foi uma Mindy mais limpa, mais cheirosa, que apareceu na porta do
banheiro, enrolada em duas grandes toalhas. Alaina a levou até ele e ficou comovida quando Cole
jogou fora o charuto e pegou a criança no colo.
O guarda-roupa do quarto de Mindy estava repleto, mas Alaina descobriu algo muito estranho
quando foi apanhar a roupa para ela vestir. Tudo, até os calções com barra de renda, fora cortado ou
rasgado e depois devolvido ao lugar do mesmo modo como estava antes. Alaina escolheu as peças
que podiam ser consertadas com mais facilidade. De volta ao seu quarto, apanhou pente, tesoura,
linha e agulha e também o acolchoado de penas que estava na espreguiçadeira. Ajoelhando ao lado
de Cole, ela mandou Mindy ficar de pé, tirou as toalhas, enrolou a menina no acolchoado e começou
a pentear o longo cabelo molhado.
— Não sei por que e nem quando—murmurou ela, com voz calma e lenta —, mas toda a roupa que
você comprou para Mindy foi deliberadamente estragada. — O espanto de Cole deu lugar a uma
raiva furiosa e Alaina devolveu Mindy aos joelhos dele. — Imaginei que você não sabia, mas acho
que foi por isso que ela não quis usar nada.
Mindy escondeu o rosto no ombro de Cole quando Alaina estendeu o vestido de veludo vermelho
com gola e punhos largos, mostrando
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as costuras desfeitas. Mostrou também que a renda fora arrancada da roupa de baixo. Cole mal podia
se controlar de fúria.
.— Havia até carrapichos nas meias e manteiga nos sapatos. — Alaina balançou a cabeça, perplexa.
— Limpei os sapatos do melhor modo possível — levou à boca o dedo espetado por um dos
carrapichos — Mas limpar as meias foi mais difícil.
.— Roberta! — rosnou Cole.
.— Você acha que foi ela? — Alaina ergueu os olhos da agulha.
.— O jardineiro desapareceu uns dois meses antes da morte de Roberta, e quando eu trouxe a
menina para casa, ela teve um dos seus acessos de raiva. Provavelmente ela se vingou desse modo
porque não deixei que maltratasse a criança.
Alaina costurou em silêncio, por um longo tempo, perguntando a si mesma como a prima podia ser
tão vingativa. Roberta tinha tudo mas não conseguia ter prazer em nada. Como devia ter sido infeliz!
Mindy cochilava satisfeita nos braços de Cole. Alaina olhou carinhosamente para o marido, mas
quando ele ergueu a cabeça, voltou a atenção para o que estava fazendo, esperando que ele não
notasse o corado do seu rosto. Deu um ponto, puxou a linha para firmar o nó e perguntou:
— Você conhecia bem o tio de Mindy?
Cole disse com desprezo:
— O bastante para saber que não valia nada. Ele e Roberta fariam uma bela dupla.
— O que quer dizer com isso?
— Mindy tinha tanto medo dele quanto de Roberta. O homem parecia ter prazer em castigar a
menina, e uma vez ameacei despedi-lo se o visse batendo nela outra vez. Logo depois disso, ele
desapareceu, deixando a criança.
— Acho que Mindy pode viver muito melhor sem gente como essa — disse Alaina, olhando de
relance para o marido. — Mas o senhor, major, parece ter um jeito todo especial. Na verdade, Mindy
Parece gostar muito do senhor. Talvez deva adotá-la.
Cole ergueu uma sobrancelha e sorriu com ironia.
— Sempre pensei que a paternidade vem mais gradualmente. Primeiro a cama, depois as fraldas. Não
é assim que acontece, geralmente?
- Deve saber melhor do que eu, senhor.
Cole riu.
441
— Minha senhora, eu nunca tive filhos... pode acreditar!
Alaina olhou para ele com ar de dúvida. Apesar de tudo, el e e Roberta deviam ter encontrado alguma
coisa em comum.
— E o que me diz da sua primeira mulher? Ela não estava grávid a quando morreu?
Cole aconchegou mais o acolchoado nos ombros magros de Mindy e respondeu:
— Roberta e eu não dormíamos juntos... nem tivemos nenhum a intimidade depois que voltei da
campanha do rio Vermelho. Ela ficou grávida de outro homem qualquer.
Alaina abaixou a cabeça, olhando sem ver a costura que tinha nas mãos.
— Desculpe, Cole. Eu não sabia.
— Não precisa se desculpar, meu bem. Foi por consentimento mútuo. Roberta não sentia falta, e
eu...
Alaina ergueu os olhos, imaginando o que ele ia dizer.
— Também não — terminou Cole. — Pelo menos, não sentia falta dela.
— Eu acho que Roberta o amou, Cole.
— Não — ele balançou a cabeça. — Acho que ela não era capaz de amar ninguém. Roberta gostava
de fazer o papel da mulher rica. Talvez até tivesse orgulho em dizer que eu era seu marido, antes do
meu ferimento. Gostava de usar roupas caras e mostrar sua beleza, mas não para mim. Seu amor
resumia-se a isso. Roberta era como um regato raso, mas lodoso e escuro, com muito limo no fundo.
Alaina ergueu o vestido, procurando mudar de assunto.
— Tem ótimo gosto, dr. Latimer, e esta cor combina com a pele clara e os cabelos escuros de Mindy.
Ela vai ficar linda.
Cole massageou a perna. Era o que Alaina estava esperando. A discreta indicação de desconforto.
Levantou-se e estendeu os braços para tirar Mindy do colo dele, mas Cole segurou a mão dela.
— Minha senhora, vejo que tem instintos maternais. Devia ter muitos filhos.
Seus rostos estavam muito próximos quando os olhos cinzentos, cintilando de calor e afeição,
mergulharam nos dele. Em voz baixa e rouca, ela perguntou:
— Está sugerindo alguma coisa, senhor?
Cole recostou a cabeça na poltrona e ergueu uma sobrancelha.
— E se estiver?
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Alaina tirou Mindy do colo dele e sorriu.
.Nesse caso, devo lembrá-lo do nosso acordo.
Uma lição sobre o traje apropriado para uma jovem precedeu o café com dr. Latimer, no dia
seguinte. Mindy, que observara Alaina muitas vezes escondidas, imitou-a em tudo. O exemplo já
estava aprendido, e a menina era esperta e uma hábil imitadora. A verdade era que havia alguma coisa
naquela senhora que a fazia lembrar sua mãe.
Nos dias seguintes, Mindy respondeu positivamente ao tratamento carinhoso, mas firme de Alaina.
Quando descobriu pedaços de cardo seco entre os lençóis da menina, Alaina compreendeu sua
aversão para dormir naquela cama. Porém, Mindy continuava a não querer ficar sozinha no quarto.
Alaina pediu o conselho de Cole. Ele propôs que mudassem o quarto dela para longe daquele
cantinho de ódio que era a suíte de Roberta. Mindy ficou encantada com a idéia e alegremente ajudou
na mudança.
Depois de tudo arrumado, Alaina sentou-se na beirada da cama, de frente para Mindy. Passando a
mão no acolchoado novo, perguntou:
— Vai dormir aqui, agora?
Sem hesitar, Mindy balançou a cabeça, afirmativamente, sem nenhuma palavra, apenas com um
sorriso breve. Depois, ficou parada, com os olhos muito abertos, como se esperasse a volta de um
sonho mau.
— Oh, Mindy — exclamou Alaina, comovida —, pobre criança. —Estendeu a mão e quando Mindy
a aceitou, Alaina envolveu-a num abraço, acariciando os cabelos macios. — Somos iguais —
murmurou Alaina, tristemente. — Mas no meu caso, eu podia escolher e sempre sabia o motivo da
escolha. Mas com você foram os outros que resolveram tudo.
Naquela noite, Mindy tomou banho na banheira de Alaina e vestiu uma camisola quente e um
roupão. Depois, apanhou a boneca e a lata vazia e deixou que Alaina a levasse para a nova cama, sem
nenhuma reclamação. Ouviu a prece ligeira feita por Alaina, de joelhos ao lado da sua cama, e fechou
os olhos. Quando Alaina beijou sua testa, um leve sorriso apareceu nos seus lábios — e ficou.
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Capítulo trinta e três
ALAINA SABIA QUE quando Cole queria alguma coisa, nada o fazia desistir. Na verdade, ele era
extremamente persistente, não desviando a atenção do objetivo. Assim, quando ela se viu na situação
de algo desejado por ele, compreendeu que ia haver um confronto de dois temperamentos fortes.
Contudo, não tinha ainda nenhuma garantia definitiva de que não se sujeitaria aos caprichos dele e
não podia confiar nas suas atenções amorosas.
Cole a cortejava abertamente, sem disfarçar o intuito de levá-la para a cama, deixando bem claro que
podia tocá-la e manuseá-la quando quisesse. Não chegava ao ponto de forçá-la a satisfazer seus
desejos, mas Alaina não sabia até quando ele poderia se controlar.
Ele a apresentava como sua mulher e a convidou para acompanhá-lo, quando precisou tratar de
negócios em St. Anthony. Ficaram em quartos separados, no hotel, porque Alaina insistiu em levar
Mindy com eles.
Cole conseguiu contornar essa separação aceitando o convite para passar a noite em casa de amigos,
depois do teatro, e Alaina não teve escolha senão ficar no mesmo quarto com ele. Mindy ficou
sozinha num quarto e Alaina teve de enfrentar a situação de dormir na mesm a cama com Cole.
— Suponho que vai dormir numa cadeira — disse ela, esperançosa, quando ele começou a se despir.
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Cole olhou para ela, surpreso.
— Não tenho essa intenção, minha senhora. Esta cama dá muito bem para nós dois.
— Pensei que tinha problema para acomodar sua perna na cama. Ele sorriu, certamente divertindo-
se com a situação.
— Tem tanto medo de dormir com um ianque? Com um olhar gelado, Alaina respondeu:
— O senhor não me assusta nem um pouco.
— Pode me dizer, senhora, por que apagou todos os lampiões?
O riso zombeteiro a irritou:
— Se não fosse pelo fogo da lareira, eu teria de tatear no escuro para encontrar minha roupa.
— Ajudaria muito se encontrasse alguma — disse ela, com sarcasmo.
— Peço desculpas. — Curvou levemente o corpo, numa mesura irônica. Parecia indiferente ao fato
da fraca luz do fogo iluminar sua nudez. — Não sabia que era tão sensível a um corpo nu. Porém,
quero avisá-la de que não pretendo me envolver eternamente num casulo para não ferir sua
suscetibilidade.
Alaina segurou a camisola modestamente contra o peito quando ele se aproximou do canto escolhido
por ela para trocar de roupa. Já havia tirado o vestido e a anágua e lutava agora, como sempre, com
os cordões do espartilho. Cole viu a hesitação nos olhos dela e sorriu gentilmente.
— Precisa de ajuda?
Timidamente, Alaina virou de costas para ele. Durante um longo e quieto momento, ele se
concentrou na tarefa de desatar os cordões e depois acariciou o cabelo solto e os braços nus da
mulher. Afastando-se nervosamente, ela vestiu a camisola, protegendo-se com ela para tirar o resto
da roupa.
Com seu passo claudicante, Cole foi até a cama, abriu as cobertas e sentou-se, apanhando um
charuto, enquanto observava os progressos da modéstia de Alaina. Depois de vestir o roupão, ela
chegou ao outro lado da cama e se deitou rapidamente, procurando ficar o mais distante Possível
dele e segurando o acolchoado de seda sob o queixo. Quando Verificou quais eram suas alternativas,
resolveu que não estava disposta a passar a noite numa cadeira fria e dura.
Cole levantou as cobertas e deitou-se ao lado dela, com a perna direita dobrada. Percebeu que Alaina
estava com os olhos abertos, acompanhando a espiral de fumaça do charuto. Tentou imaginar o que
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ela estaria pensando. Durante toda a noite, Alaina comportou-se como uma esposa amorosa, na
frente dos seus anfitriões, cada leve e fingida carícia despertando nele um desejo intenso. Os amigos,
que tinham conhecido Roberta, ficaram encantados com o espírito ágil e jovial de Alaina. Cole
compreendia isso. Sua mulher era realmente adorável. Virou a cabeça no travesseiro e perguntou em
voz baixa:
— Está bem aquecida?
Alaina fez um gesto tímido de afirmação.
— E sua perna? Está doendo?
— Não precisa se preocupar, minha senhora — passou o charuto para a outra mão e cobriu melhor
as costas dela com o acolchoado.
— Eu queria agradecer por permitir que Mindy viesse conosco, Cole.
— Hum. — Antes de Cole acabar de fumar, Alaina estava dormindo, mas só depois de muito tempo
ele conseguiu a bênção do sono repousante.
A lua subiu no céu e o sono de Alaina tornou-se mais profundo. Liberada das restrições nos braços
de Morfeu, aninhou-se junto do corpo quente ao seu lado. Então uma voz tão suave, que parecia
fazer parte de um sonho, murmurou no seu ouvido:
— Está dormindo, Alaina?
— Cole? — suspirou ela docemente, sem deixar a maciez sedosa do sono. Aconchegou mais o corpo
ao dele, procurando a segurança daquela presença.
Cole ergueu-se um pouco, pôs o braço nas costas dela e aspirou o perfume dos cabelos soltos,
acariciando-os com os lábios.
— A não ser que deseje ser vítima das circunstâncias que podem fugir ao meu controle, Alaina,
sugiro que se afaste de mim... pelo menos a uma distância mais modesta.
Alaina arregalou os olhos de repente, compreendendo muito bem o que ele acabava de dizer. Estava
de lado, virada para ele, com a perna sobre o corpo nu do marido. O calor que emanava dela era a
prova concreta das suas palavras e sua ereção, firme e quente, parecia queimar sua carne.
— Desculpe — murmurou, embaraçada, rolando rapidamente para o outro lado da cama, onde ficou
imóvel, olhando para o teto. Agora estavam ambos bem acordados, com os nervos tensos como o
arco de um arqueiro. Só depois de muito tempo, a madrugada chegou para livrá-los daquela câmara
de tortura.
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De volta a casa, Alaina sentia-se mais segura, embora tivesse de suportar a entrada imprevisível de Cole
no seu quarto. Às vezes acordava durante a noite e via o vulto alto ao lado da sua cama, com os
ombros largos em silhueta contra o luar, que entrava pela janela, sempre que a insônia inquieta o levava
para ela.
Alaina desistiu de barrar a entrada dele, encostando uma cadeira na porta, para evitar o sarcasmo com
que Cole ridicularizava seu temor. O orgulho a incitava a mostrar que não tinha medo dele, embora
soubesse que, com isso, estava facilitando seu jogo, pois agora Cole entrava e saía à vontade dos seus
aposentos e parecia gostar especialmente de assistir a seu banho.
— Esta noite terei o privilégio de lhe mostrar a cidade — disse ele, numa dessas interrupções da
privacidade do banho de Alaina. — E desta vez — acariciou com o olhar os seios que ela procurava
cobrir —, espero que vista alguma coisa que favoreça seus dotes femininos. Vai me desculpar, mas
estou um pouco cansado do vestido cinzento.
Que favoreça meus dotes femininos!, esbravejou Alaina, mentalmente, e saiu do banho, controlando-
se para não atirar alguma coisa pesada contra a porta, que teve o cuidado de fechar, só porque seria a
primeira a ridicularizar tal acesso de fúria. Por todos os santos do céu, prometeu ela, vou mostrar a
ele o quanto sou feminina!
Trabalhou a tarde toda para fazer pequenas reformas no vestido de veludo, que, com o cinzento,
constituía agora todo o seu guarda-roupa pessoal digno de ser usado. Estudou o decote, perguntando
a si mesma se devia ser discreto ou ousado. Então, num impulso quase selvagem, apanhou a tesoura
e o transformou em algo muito além do que ditava a discrição. Aparentemente, Cole tinha uma
queda por seios, e ela estava resolvida a aguçar seu apetite ao máximo!
Antes de se vestir, encostou a cadeira sob a maçaneta da porta para evitar que Cole entrasse de
surpresa. Queria que o choque fosse total e inesperado, resolvida que, depois dessa noite, ele jamais
duvidaria da sua feminilidade.
Bateu de leve à porta e quando Cole respondeu, mandando-a entrar, Alaina empertigou-se,
preparando a cena, como Roberta jamais teria preparado. Cole estava concentrado em abotoar o
peitilho da camisa. Ergueu os olhos e a observou com evidente satisfação, até Alaina sentir que sua
imaginação penetrava muito além do que a cobria. Naquele
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momento, ficou certa de ter atingido seu objetivo, pois Cole estava tentando abotoar um botão que
não existia.
— Ainda não está vestido — murmurou ela.
Cole deu alguns passos para ela, para examiná-la de perto, seguindo o cordão de ouro que terminava
no medalhão aninhado entre os seios. A transparência da renda adicionada ao decote instigou a
curiosidade dele quanto ao tipo de combinação que ela estaria usando, se é que havia alguma.
Embora resolvida a não permitir mais que ele a tratasse casualmente, seu pulso acelerado e irregular a
avisava do possível perigo desse jogo. Cole não era nenhum colegial apaixonado e podia ultrapassar
os limites do autocontrole.
Alaina passou a mão no veludo cor de vinho.
— Este vestido é bastante feminino para seu gosto?
Levando a mão ao pescoço de Alaina e sentindo a pulsação acelerada, com o polegar Cole ergueu o
queixo dela e seus olhos se encontraram.
— Se fosse um pouco mais feminino, minha senhora, certamente não escaparia da minha cama esta
noite. É o máximo que posso suportar sem violar minha modéstia. — Sua mão deslizou pelos seios
bem-feitos, chegou à cintura e a puxou para ele. — Tem certeza de que não prefere passar a noite
aqui mesmo?
Apoiando os cotovelos no peito de Cole, evitando o contato, Alaina riu e começou a ajustar os
botões na camisa dele.
— Não esqueça suas boas maneiras, senhor. Olie logo estará aqui, para saber a causa da demora.
Ouvi a carruagem parar na porta há algum tempo.
Cole a soltou e apanhou a gravata, resmungando:
— Olie! Mindy! Annie! Miles! Tem sempre alguém nos ameaçando nesta casa. — Passou a gravata
sob o colarinho. — Por mim eu dispensava todos eles — foi até o espelho, para dar o nó — e a
violentaria à vontade.
Com uma risada Alaina voltou para seu quarto, dizendo:
— Não se esqueça do nosso contrato — zombou. — Procure seu colete e seu casaco, meu senhor.
Do contrário, vamos nos atrasar.
Com um sorriso malicioso para o espelho, Cole voltou-se para fazer o que ela dizia. Apanhando então
a cartola e dobrando a capa sobre o braço, saiu do quarto e encontrou Alaina no corredor.
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Com surpresa, viu que ela estava usando a capa com pele de raposa e capuz comprada por ele e um xale
preto de renda finíssima sobre os cabelos. Comportando-se como um perfeito cavalheiro, o senhor
da mansão Latimer ajudou sua mulher a subir na carruagem, e depois de sentar-se ao lado dela, bateu
com a bengala no teto, dando ordem a Olie para partir. Em seguida, passando o braço pelos ombros
de Alaina, voltou para ela toda a sua atenção. As lanternas da carruagem iluminavam suavemente o
decote de Alaina quando Cole abriu a capa de pele que o protegia.
— Agrada-me que tenha resolvido usar a capa, meu amor — murmurou ele, com voz rouca. — Fica
muito bem em você.
A terna carícia da voz dele fez vibrar as mais delicadas cordas do coração de Alaina. Porém, por mais
que desejasse corresponder com suavidade, ainda hesitava. Não podia confiar na própria capacidade
de conter os arroubos de Cole, pois falhara nesse sentido pelo menos uma vez antes. Sob muitos
aspectos, ele era como um lobo de presas afiadas e olhos penetrantes, pronto para devorá-la e
contendo-se apenas momentaneamente.
— Nunca usei uma coisa tão luxuosa antes, Cole. — Passou a mão na pele macia da capa. — É uma
beleza.
— Só porque a está usando, meu amor—murmurou ele, tocando o cabelo dela com os lábios.—O
perfume combina com sua aparência. Toda feminina, macia e doce.
Mentalmente, Alaina admitiu que o perfume escolhido por ele refletia muito bem seu estado de
espírito naquela noite, mas começava a suspeitar que, de sereia tentadora, estava se transformando
em lebre encurralada. Cole entrara no jogo com entusiasmo, e agora procurava dominá-la com
palavras doces e carícias ternas. Qual a mulher que poderia resistir ao assédio de um homem tão belo
e atencioso? Não podia se culpar por querer que aquilo continuasse indefinidamente, embora
sabendo que, num determinado ponto, teria de encontrar coragem para mantê-lo à distância.
Finalmente pararam na frente de uma casa grande, amarela, com três andares, com a cumeeira de
madeira trabalhada. Uma varanda, com o mesmo excesso de decoração de mau gosto, estendia-se por
tod
a a frente da casa.
" Que lugar é este? — perguntou Alaina quando Cole a ajudou descer da carruagem.
O melhor que a cidade tem para oferecer—disse ele, com um
449
largo sorriso. — Deve lembrar, minha senhora, que isto não é Nova Orleans. De modo algum se
compara ao hotel St. Charles.
— Hotel? — perguntou Alaina, surpresa.
— Stearns House, minha senhora. Vamos jantar aqui — explicou ele. — Ouvi dizer que há um
grupo de atores itinerantes na cidade Talvez possamos assistir ao espetáculo, depois do jantar.
— Vamos passar a noite aqui? — A voz era suave, a pergunta agressiva.
— Isso veremos, minha senhora — sorriu descontraidamente. —. É bem possível, se a senhora
quiser ficar.
— Não temos bagagem — disse ela, afastando toda a possibilidade de tal programa.
— Nesse caso, eu diria que não precisará dormir de roupão — sorriu ele.
Alaina corou intensamente, lembrando daquela noite.
— Sem dúvida, é muito ardiloso, senhor.
— Minha senhora, posso assegurar — disse ele, jovialmente — que não insistirei muito para que faça
qualquer coisa contra sua vontade. — Ofereceu o braço e pôs a mão sobre a dela. — Precisa me
perdoar, doçura. A senhora desempenha tão bem o papel de esposa amorosa que, sem sentir,
interpreto o papel de marido.
— E às vezes, senhor — disse ela, em tom delicado, mas sério —, fico completamente confusa com
o senhor e com esse seu tipo de casamento.
No saguão luxuoso, uma criada uniformizada recebeu os agasalhos dos dois, e Alaina, tirando o xale
da cabeça, envolveu com ele os ombros, discretamente. Por mais ousada que fosse com Cole, era
tímida demais para se expor aos olhares dos outros homens.
A recepcionista apareceu para conduzi-los ao restaurante, e Cole pôs a mão, delicada mas
possessivamente, na cintura delgada de Alaina. Passaram por um salão repleto de espelhos com
molduras douradas, cortinas de veludo e lustres de cristal. Chegando ao restaurante, escolheram uma
mesa isolada, num dos cantos da sala. A recepcionista afastou-se para apanhar o vinho, e Cole
segurou para Alaina uma cadeira de costas para o restante da sala, protegida dos olhares curiosos.
Antes de sentar-se, com a perna direita esticada para a frente, sob a mesa, Cole cumprimentou vários
conhecidos com uma inclinação de cabeça.
Cole segurou os dedos finos de Alaina, admirando-os, e
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olhou para ela. A proximidade o excitava e a beleza dela, o modo como os cantos dos olhos erguiam-
se levemente para cima sob a franja das pestanas espessas e a curva perfeita dos lábios cheios,
encantavam-no e o faziam desejar poder beijá-la naquele momento.
— Sua mão está fria — murmurou ele.
— E a sua está quente — respondeu Alaina, no mesmo tom, pondo a outra mão entre as dele. O
movimento revelou a curva perfeita dos seios ao olhar ardente de Cole. O decote ousado apenas
sugeria a visão tantalizante dos bicos rosados que ele ansiava por tocar. Uma dor surda cresceu na
parte inferior do seu corpo, um desejo que precisava ser satisfeito.
— Acho que nos tornamos uma espécie de curiosidade, doçura — observou ele, com um sorriso
zombeteiro. — Talvez seja conveniente dar a eles a oportunidade de ver que você não é um chacal
com duas cabeças.
— E o que sugere, senhor?
Cole olhou nos olhos cinzentos, cheios de calor. Era fácil ser atraído para suas claras profundezas.
— Uma pequena comemoração, eu acho, em honra da nova senhora Latimer. Nada extravagante,
alguns vizinhos e conhecidos para jantar e dançar.
Risos e vozes soaram, aproximando-se do restaurante. Os Latimer voltaram-se e viram aparecer na
porta Braegar e Carolyn Darvey, acompanhados por outro homem e outra mulher. Praguejando em
voz baixa, Cole amaldiçoou a sorte que os trouxera ao hotel exatamente naquela noite, e Alaina
notou que ele apertava o lado do rosto, como se sentisse alguma dor, enquanto olhava para a janela
perto da mesa.
— Cole, sejagentil—pediu ela.—Lembre-se, ele pediu desculpas.
— Minha senhora — disse ele, com um suspiro pesado —, não pode compreender a vontade que eu
tenho de estrangulá-lo.
Assim que os viu, Braegar acenou com um largo sorriso. Com um sorriso amarelo, Cole retribuiu o
cumprimento e resmungou:
— Alguma vez viu tantos dentes na boca de um único homem?
— Oh, Cole, por favor! — pediu Alaina, em voz baixa, com um olhar de súplica.
— Procure se cobrir, meu bem — disse ele, delicadamente. — desagrada-me extremamente a idéia
daquele homem olhando para você.
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Alaina ajeitou o xale, corando intensamente quando notou o quanto estava despida". Carolyn liderava
a procissão a caminho da mesa deles, cumprimentando conhecidos enquanto andava. Cole levantou-
se, quando viu que não tinham para onde fugir.
— Alaina! — Carolyn inclinou-se e encostou o rosto no dela e depois fez o mesmo com Cole. — É
um prazer encontrá-los aqui!
— Boa noite, srta. Darvey — disse Cole com voz seca e inexpressiva, quase ultrapassando os limites
da polidez.
— Srta. Darvey! — riu ela, pondo a mão no braço dele. — Meu Deus, Cole. Você está seco como
uma velha tábua embolorada. Sabe, precisa aprender a relaxar. Não admira que sua perna o
incomode tanto.
Braegar aproximou-se e explicou:
— A roda da nossa carruagem quebrou aqui perto e só pode ser consertada de manhã. Estávamos
preocupados, pensando que teríamos de passar a noite no hotel, mas desde que você está aqui, talvez
possa nos dar condução na volta... — Parou de falar, esperando a resposta.
Era muito pior do que Cole imaginara. Sua noite estava perdida. Certamente eles não podiam nem
desconfiar o quanto estavam atrapalhando, nem compreender sua frustração. Esperando que
desistissem, observou:
— Mas acabamos de chegar.
— Ora, isso é ótimo! — disse Braegar.—Jantaremos com vocês.
— Braegar, você não fez as apresentações — lembrou Carolyn.
— É claro! — Passou o braço pela cintura da mulher pequenina e ruiva.—Cole, acho que conhece
Rebelde Cummings e Mart Holvag, nosso principal paladino das forças da lei e da ordem.
Cole traduziu as palavras de Braegar, apresentando Alaina.
— Martin é o assistente do xerife e esta é Rebecca Cummings.
— Viu a surpresa nos olhos de Alaina e explicou:
— Quase todos os amigos a chamam de Rebelde. Ela passou vários meses com o pai, em Vicksburg,
depois da tomada da cidade — sorriu zombeteiramente-
— Quando voltou, estava falando como uma sulista. — Indicou Braegar com uma leve inclinação de
cabeça. — Ao que parece, está fazendo jus ao apelido.
Como se não tivesse ouvido, Braegar fez um gesto largo na direção de Alaina.
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— E esta, meus amigos, é a nova senhora do castelo do Barba- Azul-
.— Braegar! Como pode dizer uma coisa dessas? — Carolyn disse, zangada. — Não tem nenhuma
graça.
A provocação foi suficiente para deixar Cole tenso. Alaina, vendo a expressão do marido, levantou-se
graciosamente, e dando o braço para ele, ergueu os olhos suplicantes, até sentir que os músculos dele
estavam relaxados. Sentia-se desapontada também com aquela intrusão. A descoberta de que
começava a gostar das atenções de Cole foi como um raio de sol em sua vida. A não ser pela
investida grosseira de Jacques e o tímido assédio amoroso do tenente, Alaina jamais tivera a atenção
delicada e sincera de um homem, e o que sentia agora era muito mais do que a gratificação sentida
por uma mulher cortejada. Algo completamente diferente.
— Você é mesmo do sul? — perguntou Rebecca com o forte sotaque sulista, abrindo muito os
olhos. —Cole parece ter preferência pelas belas mulheres do sul. Eu estava imaginando o que há em
vocês que ele acha tão interessante.
— Meu sotaque sulista, talvez? — perguntou Alaina, imitando o ar inocente da outra, mas fazendo
questão de usar o sotaque fanhoso do norte. — É espantoso como a permanência num lugar afeta
nosso modo de falar. Depois de passar tanto tempo na companhia de Cole — sorriu para o marido
com solicitude e recebeu como resposta um olhar de aprovação —, aprendi palavras que eu nem
sabia existirem.
— É a pura verdade — disse Braegar. — Já ouvi Cole ir de uma ponta à outra do vocabulário e mais
ainda.
— Oh, eu acredito — disse Carolyn, com forte sotaque irlandês.
— Aqui está um irlandês que não aprendeu com ninguém e que fala Perfeito inglês.
— Ele me ensinou muita coisa. — Braegar deu de ombros.
— Como a chaleira ensina a panela a ser preta! — disse Carolyn.
— Ele tem a vantagem da juventude e das viagens com o exército disse Braegar, sem muita
convicção.
— Mas você tem o talento natural! — acusou Carolyn, balançan-do a cabeça, impaciente.
Braegar agradeceu o elogio com um sorriso carinhoso e mudou de assunto.
— Cole, não se importa que nos juntemos a vocês? Olhe! Podemos juntar aquela mesa à sua.
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Cole não podia recusar, mas tomou um gole de vinho e não f ez um movimento para ajudar na
manobra. Feito o arranjo, Carolyn sentou-se à direita de Cole, com Martin à sua direita. Braegar,
depois de segurar a cadeira para Rebelde, sentou à esquerda de Alaina. Fazendo isso, sem saber,
Braegar contribuiu para que Cole exagerasse no consumo da bebida e perdesse toda a alegria de
momentos atrás.
O jantar decorreu descontraído e alegre para todos, exceto para Cole, que só balançava a cabeça para
dizer sim ou não quando se dirigiam diretamente a ele. Durante a maior parte do tempo, ele
observou a vivacidade de Alaina e seu espírito de humor. O momento de ir para o teatro passou
despercebido. Só quando os últimos pratos estavam sendo retirados, Cole tirou o relógio do bolso e
deixou escapar uma exclamação de contrariedade. Aconversa cessou, e todos olharam para ele. Cole
guardou o relógio e explicou:
— Um grupo de teatro devia representar hoje no prédio da prefeitura e eu tinha planejado levar
Alaina. Mas acho que já perdemos mais da metade.
— Oh, estamos no fim da temporada e os bons grupos de teatro não vêm ao norte nesta época —
disse Carolyn. — Além disso, sei de fonte autorizada que este é um dos piores. Vocês saíram
ganhando.
— Acho que só resta agora a você, Cole — sorriu Braegar —, levar Alaina para casa e ir para a cama.
Cole prendeu a respiração, reconhecendo a pilhéria, mas desesperançado de conseguir se livrar, com
Alaina, do grupo intruso.
— Creio que está na hora de irmos para casa — disse Carolyn, contendo-se para não bocejar.—Cole,
não se importa em levar Martin e Rebelde também? Rebelde vai passar a noite conosco e Martin
deixou seu cavalo em nossa casa.
— Não sei se teremos lugar para todos — resmungou Cole.
— Nós daremos um jeito — afirmou Braegar.
Olie levou a carruagem para a porta do hotel, e os intrusos começaram a discutir sobre o melhor
modo de conseguir espaço. Cole passou pelo meio deles, segurou Alaina pela cintura e erguendo-a a
pôs dentro da carruagem. Entrou em seguida, sentou-se e apoiou a perna boa no banco da frente.
Então fez Alaina sentar-se no seu joelho e passou o braço em volta da cintura dela. Com uma
exclamação abafada, Alaina tentou controlar a anágua que ameaçava se erguer acima da sua cabeça no
espaço limitado. Segurando a ponta da capa enfeitada com pele, Cole protegeu a saia de veludo com
ela e depois,
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apoiando o pé sobre a parte inferior da armação de metal, subjugou a anágua rebelde. Então, olhou
sorrindo para os quatro que ainda discutiam, fora da carruagem.
.— Minha mulher e eu estamos indo para casa. Nós os convidamos para virem conosco, mas não
estamos dispostos a esperar enquanto discutem.
Todos apressaram-se a entrar na carruagem, fazendo-a pender para o lado e quase derrubando Olie
da boléia. Carolyn e Rebelde, valendo-se do fato de serem mulheres, instalaram-se alegremente no
banco da frente e o assistente do xerife, Holvag, empurrou Braegar e entrou atrás delas. Com um
largo sorriso, o primeiro que Alaina via no rosto dele, Martin ajeitou-se entre as "damas", passando
um braço pelo ombro de cada uma.
Braegar, do lado de fora, via a profusão de anáguas e calças, imaginando como ia arranjar lugar na
carruagem. Finalmente, ele entrou e, evitando as saias e as rendas, ia sugerir que Rebelde podia
sentar-se no seu colo, quando um tranco da carruagem o atirou no lugar ao lado de Cole.
Inesperadamente, Olie resolvera partir. Braegar inclinou-se para fechar a porta e depois encostou-se
no banco e cruzou os braços, frustrado.
— Se é assim que vamos viajar, dr. Latimer — reclamou ele —, vou sair e arranjar uma carruagem
digna desse nome!
Foi uma viagem infindável para os Darvey, mas finalmente Olie puxou as rédeas, pisou no freio e a
carruagem parou. O cocheiro desceu para abrir a porta. Ante a confusão de anáguas, sapatos e
tornozelos femininos, ele ficou sem saber para onde devia estender a mão a fim de ajudá-las a descer.
— Loucura completa — resmungou Olie e, desistindo da cortesia, voltou para seu banco, tentando
ignorar os sons no interior da carruagem.
Braegar escorregou para o chão, com a parada brusca, e não podia se levantar sem comprometer a
modéstia das senhoras. Arrastou-se de barriga para fora da carruagem, ficou de pé, ajeitou a roupa,
empertigou o corpo e estendeu a mão para Rebelde, que desceu, rindo a mais não poder. Martin
desceu em seguida e ajudou Carolyn.
Assim que eles desceram, Alaina passou para o banco ao lado do marido. Sentada no meio das
pernas de Cole, durante todo o tempo sentiu as batidas do coração dele contra seu braço e quando
tentou mudar de posição, para aliviar o peso na perna dele, as batidas
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aceleraram e ficaram mais fortes. Olhou para ele, surpresa, e então compreendendo, corou vendo a
expressão ousada dos olhos azuis. Agradecendo a falta de luz no interior da carruagem, ela tratou de
ficar imóvel pelo resto da viagem.
A carruagem partiu novamente, e Alaina aconchegou mais a cap a sentindo frio, agora que não estava
mais aquecida pelo calor do corpo de Cole. Agradecida, deixou que ele ajeitasse o manto de peles
sobre seus joelhos.
— Venha mais para cá, meu bem, e encoste-se em mim — disse Cole. — Assim nos aqueceremos
mutuamente e vai ser bom para a minha perna.
Alaina obedeceu, hesitante, e logo estava aninhada no calor do corpo dele. Não podia negar que era
muito mais confortável. O lugar parecia feito para ela e lhe dava uma sensação de segurança. Não
resistiu quando o braço de Cole a envolveu e, encostando a cabeça no ombro dele, esqueceu os
pensamentos sobre o lobo faminto e a lebre encurralada. Contudo, não podia evitar uma sensação de
descontentamento. As limitações impostas por Cole ao seu casamento a impediam do prazer de um
relacionamento mais íntimo com ele.
— Eu tinha planejado uma noite muito diferente — confessou ele, com os lábios nos cabelos dela.
— Pelo menos, um pouco mais de privacidade. — Acariciou o braço macio.— Acho que vou levá-la
comigo a St. Paul. Tão distante de casa, serão menores as possibilidades de interrupção.
— E qual seria seu objetivo, senhor? — perguntou ela, em voz baixa.
Cole desatou as fitas de seda da frente da capa de pele e respondeu.
— Talvez mantê-la cativa num quarto de hotel, por uma ou duas semanas, e fazer amor com você
como eu tanto desejo.
Erguendo a cabeça do ombro dele, Alaina procurou ver o rosto do marido na carruagem escura.
— Estou cada vez mais confusa, major. Realmente, não sei o que devo esperar deste casamento.
— Talvez seja melhor, meu amor — tentou dominar a tensão da voz —, aceitar nosso casamento
como outro qualquer e esperar o que qualquer recém-casada espera. Certamente já percebeu que esse
é meu desejo. Tortura-me a vontade de fazer com que seja minha outra vez, Alaina. Não penso em
outra coisa.
Alaina conteve a respiração quando a mão dele acariciou seu seio.
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Um mar e chamas
d escaldava cada nervo do seu corpo, e seu coração disparou quando os lábios de Cole
roçaram seu pescoço. Cole recostou-se no banco e a puxou para ele. Mais um momento e estaria sob
o corpo dele, impossibilitada de deter a viravolta completa do seu mundo. Ofegante, ela o empurrou,
sacrificando o conforto da manta de peles. Com mãos trêmulas tentou reparar o desalinho do
vestido. Uma sensação latejante que invadia seu corpo a fazia consciente da intensidade do próprio
desejo. Evitando os braços dele, Alaina protestou em voz baixa:
.— Mas não é um casamento qualquer, Cole. É o meu casamento e é um desastre.
— Não seria se o deixasse seguir seu curso natural.
— A culpa não é minha—exclamou ela, com voz lamentosa. — Sua tendência é sempre me acusar e
transferir para mim a responsabilidade. Acusou-me de traí-lo... de ajudar a levá-lo à armadilha de um
casamento desagradável, quando na verdade, dr. Latimer, o senhor parecia determinado a seduzir
Roberta sem ajuda de ninguém — ergueu a mão, evitando que ele a interrompesse. — Não pode
negar! Eu estava na varanda quando foi jantar com os Craighugh. Não pretendia espionar, mas fiquei
praticamente presa na escada quando o senhor e Roberta saíram da casa. Não pode negar que beijou
Roberta com mais entusiasmo do que seria próprio.
— E por que não? — perguntou ele. — Roberta era uma jovem que parecia faminta de amor e eu,
um soldado solitário, num lugar onde só recebia epítetos injuriosos. Se eu a tomar nos braços e beijá-
la, isso faz de mim um conquistador sem escrúpulos? Ou será que detesta o fato de ser tratada como
mulher?
— Oh, eu adoro ser tratada como mulher—garantiu Alaina, com fervor. — Especialmente por você.
— Pois então esqueça essas discussões sem sentido, Alaina. — Segurando-a pelos braços a fez olhar
para ele. — Eu sou um homem e você é minha mulher. Não tem direito de se negar a mim.
— Mas concordou que seria um casamento de conveniência aPenas.
— Bobagem! — Impaciente, Cole recostou-se no banco.
— Diga-me o que devo esperar—pediu Alaina, com voz embargada. Primeiro, promete que será um
casamento casto, então, minutos depois da minha chegada, quase me força, em plena luz do dia a
ceder aos seus desejos. Entra no meu quarto, ameaçando-me de
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violência, sempre que tem vontade. Agora quer me seduzir na carruagem. Fico pensando onde
acabará este casamento com toda essa sua inconstância.
— Minha senhora, não sou inconstante! — continuou rapidamente, vendo que Alaina estava pronta
para interromper. — Estou farto de suportar as picadas dos corvos nos meus ossos. — Inclinou-se
para a frente e disse, com a voz carregada de emoção: — Farto das harpias disputando minha cabeça.
Você recebe meus convidados com perfeição e desempenha maravilhosamente o papel de esposa
amorosa. Depois, foge de mim quando a quero tomar nos braços. Eu a vejo ajoelhada no jardim e o
impulso de possuí-la ali mesmo, naquele momento, queima como brasa dentro de mim. Senta-se ao
meu lado, muito digna, distante, reservada, enquanto o desejo martiriza meu corpo.
Alaina ouvia, atônita, com os olhos arregalados. Cole continuou com voz rouca e áspera, apertando-
lhe os braços.
— Eu a vejo, bela e calma, inclinando-se, tocando, dedilhando a música agridoce nas cordas do meu
desejo e sempre fora do meu alcance. — Segurou as mãos dela nas suas. — Não posso prometer que
jamais a possuirei à força. Não sei quanto tempo mais posso resistir deste modo. Quero que venha
para mim por sua vontade, mas quero avisar, minha senhora, sua lembrança domina minha mente,
noite e dia. Sonho com seus lábios nos meus, seus seios mornos contra meu peito. Tenho uma
porção de visões e a primeira delas incendeia minha lembrança com chamas brancas e suaves, mais
destruidoras do que as de um vulcão. Pense nisso, minha senhora, e procure entender o quanto me
provoca com uma pequena amostra dos seus seios, do contrário, vamos descobrir que meu limite
não está onde desejaríamos que estivesse.
Alaina não saberia dizer se foi ela quem escapou ou Cole que a libertou. Cruzando as mãos no colo,
ela abaixou a cabeça.
— Acho que construímos uma coisa muito frágil. Quero dizer, os votos que nos unem. — Sua voz
estava estranhamente abafada e ela balançou a cabeça, tentando evitar as lágrimas. — Será que devo
ser um brinquedo em suas mãos? Terei de passar o tempo todo imaginando se ultrapassei a
fronteira? Se esta noite vai me procurar, cheio de fúria Ou com palavras ternas? Ou talvez nem
apareça? O que o senhor pretende deste casamento, dr. Latimer? Será que um dia diremos adeus
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para nunca mais nos encontrarmos? Eu o aviso, senhor, que espero muito mais do que isso.
— Para mim, as promessas que trocamos foram bastante permanentes. — Cole parecia cansado.
Recostou-se no canto do banco, com o rosto escondido nas sombras.
— Eu apenas troquei algumas palavras com o sr. James, não com 0 senhor. E fizemos um acordo,
antes.
— Conversei com o sr. James a respeito e fui informado de que a promessa trocada foi até que a
morte nos separe. Sim, acho que foi o que ele disse. Uma vez de posse da minha procuração,
devidamente testemunhada e assinada, não acha que a promessa feita a Deus Sobrepõe-se a qualquer
acordo?
— Mas não concordou com a condição de que eu posso ir embora quando quiser?
— É isso que quer? Por isso se nega a mim? Existe outro homem mais importante do que eu em sua
vida?
Ouvindo o quase desespero na voz dele, Alaina respondeu:
— Não existe mais ninguém, Cole. Não quero sair daqui... sem você.
Seguiu-se um longo silêncio e só então notaram que estavam parados na frente da casa havia algum
tempo. Olie não estava na carruagem, e Cole ajudou Alaina a descer, sem uma palavra. O cocheiro
estava no hall de entrada, conversando com Miles, que não parava de bocejar. Olie corou sob o olhar
de censura de Cole e esfregando a ponta do pé no chão, embaraçado, disse.
— O senhor e a senhora estavam... bem... ocupados. E estava muito frio aqui fora.
Cole o dispensou com uma breve inclinação da cabeça e Alaina, constrangida, passando rapidamente
pelos dois criados, subiu para o quarto.
459
Capítulo Trinta e Quatro
NA MANHÃ SEGUINTE, quando Alaina desceu, Cole já havia saído. Miles informou que o patrão
fora a St. Paul comprar suprimentos de inverno para o grupo de trabalhadores que ia partir para o
norte. Surpresa por Cole não a ter avisado da viagem, Alaina observou:
— Há poucos dias Murphy foi encarregado de fazer essas compras. Por acaso, ele esqueceu alguma
coisa?
— Acho que não, senhora — disse Miles, procurando amenizar o desapontamento dela. — O dr.
Latimer resolveu começar a extrair madeira das suas propriedades este ano e como os trabalhadores
estão prestes a partir, verificou que precisa comprar mais alguns suprimentos. Murphy não tem muita
prática, e o doutor achou melhor ir com ele.
Apesar dos esforços de Miles, Alaina ficava cada vez mais confusa.
— No dia seguinte ao da minha chegada, o dr. Latimer foi a St. Cloud pôr um anúncio para recrutar
trabalhadores. Pensei que era alguma coisa decidida há muito tempo.
— Não, senhora — respondeu Miles. — O doutor não tinha intenção de enviar um grupo de
homens para o norte, antes da sua chegada.
— Mas como você sabe? — perguntou ela, surpresa.
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Miles explicou pacientemente:
— O sr. James muitas vezes tentou convencer o doutor das vantagens financeiras da extração de
madeira, mas até a sua chegada, o dr. Latimer não parecia interessado. — Miles corou,
compreendendo que estava falando demais com uma pessoa na qual achava que não podia confiar.
.— Sabe quando o dr. Latimer estará de volta? — perguntou ela, sem compreender o motivo do
interesse repentino de Cole pela nova atividade, mas certa de que tinha alguma relação com sua
presença naquela casa.
— Eles levaram várias carroças, senhora. Eu diria que levarão alguns dias para fazer todas as
compras. Se a senhora quiser se aventurar a algum passeio, o dr. Latimer deixou a carruagem e Olie
para servi-la.
— Não é necessário — murmurou ela. — Não tenho nenhum lugar para ir.
Alaina passou os dias seguintes na companhia de Mindy, mas não estava satisfeita. Acasa lhe parecia
estranha, com a atmosfera tristonha que a envolvia mais acentuada. Sem a presença de Cole, era
como se, depois da meia-noite, a mansão adquirisse vida. Ouvia sons que não podia explicar, vindos
do quarto de Roberta. Certa noite, teve a impressão de ouvir o cantarolar desafinado de uma voz de
mulher, na suíte vermelha, e lembrou que Roberta nunca tivera ouvido para música e era incapaz de
cantar qualquer coisa. Era como o caso do vestido amarelo e dos bombons. Não havia explicação
razoável para esses fatos e só podia pensar que alguém naquela casa não gostava dela.
Certo dia, ouviu o barulho de vidros quebrados e quando saiu do seu quarto para investigar, viu uma
réstia de luz sob a porta da suíte vermelha. Desde a partida de Cole, Soldado passara a dormir ao
lado da cama de Alaina, e, encorajada com a presença dele, pôs a mão na Maçaneta. Com surpresa,
verificou que alguma coisa no interior do quarto impedia que a porta fosse aberta.
— Fique aí, Soldado! Vigie!
Alaina estava resolvida a descobrir o que estava acontecendo. Não acreditava em fantasmas e tinha
certeza de que nem mesmo Roberta Podia voltar para assombrá-la. Portanto, devia haver uma
criatura viva atrás daquela porta!
Foi até seu quarto, vestiu o roupão e, voltando-se, viu-se no
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espelho. Uma figura vestida com roupas muito leves, com os bicos dos seios rijos sob a transparência
da camisola e do roupão. Não podia se apresentar aos criados vestida daquele modo. Com relutância,
apanhou do guarda-roupa o roupão de veludo, com forro de linho, nunca usado, e o vestiu. A
sensação de conforto foi imediata e tão agradável que, esquecendo o orgulho, Alaina calçou também
os chinelos quentes e novos.
Depois de bater insistentemente na porta de Miles, ouviu a resposta, pedindo para esperar um
momento. O mordomo apareceu sonolento, com o roupão vestido às pressas, mas quando chegaram
na frente da suíte de Roberta não havia nenhuma luz sob a porta.
— Fosse quem fosse, não pode ter saído, não com Soldado guardando a porta — disse Alaina, com
voz ligeiramente trêmula.— Ainda deve estar lá dentro.
Solícito, Miles segurou a maçaneta e empurrou e, para espanto de Alaina, a porta abriu-se facilmente.
Ela entrou atrás do mordomo e uma corrente de ar frio a fez estremecer.
Miles acendeu um lampião e examinou minuciosamente cada canto do quarto. Mas não havia
ninguém.
Docemente, Soldado chegou perto do espelho, olhou desinteressado para a própria imagem e deitou-
se aos pés de Alaina.
— Havia alguém aqui, tenho certeza! — exclamou Alaina, frustrada — Ouvi o barulho de vidro
quebrado e vi a luz sob a porta!
Não se via nem sinal de vidro em lugar algum, e Miles, embora sem querer duvidar da nova patroa,
achava difícil alguém ter desaparecido misteriosamente.
— Desculpe por perturbar seu sono, Miles. — Alaina não queria que os criados pensassem que
estava ficando louca, mas não ia pedir a ele que guardasse segredo do incidente. Era difícil até para
ela não duvidar da sua sanidade quando essas coisas aconteciam. — Parece que tudo não passou de
imaginação minha.
— Não me perturbou, senhora—disse ele, delicadamente. — E, por favor, não se preocupe. Não
posso explicar o que aconteceu, mas se a senhora diz que aconteceu, eu acredito — afirmou ele,
surpreso ao ver que estava sendo sincero. Na verdade, ele mal conhecia aquela jovem mulher.
Com um sorriso, Alaina agradeceu.
— Muito obrigada, Miles.
462
— Estará perfeitamente segura com Soldado, senhora. Procure descansar um pouco.
O silêncio voltou e, com Soldado perto da cama, Alaina finalmente adormeceu, mas não sem antes
pensar que seria um alívio ouvir a bengala de Cole no corredor.
Duas noites depois, Alaina acordou com o rangido do assoalho na frente da sua porta. Soldado
levantou a cabeça, com o pêlo das costas eriçado. Fosse quem fosse, não era Cole. Alaina viu a
maçaneta girar lentamente, e o cão saltou para a porta, rosnando e com os dentes arreganhados.
Passos apressados soaram no corredor, afastando-se. Alaina abriu a porta e não viu ninguém. Mais
uma vez, Soldado a levou para a suíte de Roberta, mas, como na última vez, tudo estava em ordem.
Nem pensou em acordar Miles outra vez. Voltou para seu quarto e encostou uma cadeira sob a
maçaneta da porta.
Alaina começou a achar que era uma ótima idéia Soldado dormir sempre ao lado da sua cama. Eram
amigos agora, e para fugir da atmosfera sinistra da casa, Alaina saía diariamente com Soldado e
Mindy, para passear nos bosques, que enfeitavam as encostas das colinas.
No fim da semana, foi acordada por ruídos novamente, mas dessa vez vinham do quarto de Cole.
Saltou da cama, vestiu o roupão e correu para a porta no outro lado do banheiro, onde o cão,
sentado, gania e arranhava a madeira ansiosamente. Um filete de luz aparecia sob a porta, e Alaina a
abriu sem dificuldade. Soldado entrou na frente dela e, abanando a cauda alegremente, correu para
Cole que desabo-toava a camisa, na frente da porta aberta do guarda-roupa. Ele acariciou a cabeça do
animal e depois ergueu os olhos para Alaina com um sorriso terno e acolhedor.
— Cole! — Ela riu, aliviada. — Eu não sabia que tinha voltado!
— Cheguei há pouco. Desculpe se a assustei. Ela deu de ombros.
— Estou feliz por ser você! Alguém que eu posso ver, afinal! Estava quase acreditando que há
fantasmas nesta casa.
— Eu a assustei? — disse Cole, surpreso.
— Oh, não foi você! — garantiu Alaina. Seu mundo parecia Seguro, agora que ele estava ali. — A
casa é tão grande e o menor som ecoa por toda a parte. É quase como se alguma coisa dentro dela
não gostasse de mim. Eu me sinto deslocada. — Abaixou os olhos, confusa.
463
Depois, com um misto de desculpa e euforia, acrescentou:
- Seja como for, estou feliz com sua volta, Cole.

não suportando o silêncio que se seguiu, sem levantar os olh os, Alaina correu para seu quarto,
fechando a porta.
Na manhã seguinte, ela estava semivestida quando ouviu Cole praguejando, furioso, no banheiro. O
que a preocupou não foi exclamação explosiva, mas o silêncio que a seguiu. Dando um nó na fita que
prendia a anágua na cintura, ela aproximou-se da porta do banheiro e bateu.
— Cole? Você está bem? — Não recebeu resposta e encostou o ouvido na porta — Cole? —
insistiu. — Você está bem?
A resposta foi um resmungo abafado, que não diminuiu sua preocupação.
— Cole? — bateu outra vez. — Se não responder direito, eu vou entrar.
A porta se abriu bruscamente e Cole, com uma toalha amarrada na cintura e segurando outra contra
o canto da boca, recuou para o lado e, fazendo um gesto largo, convidou-a a entrar.
Com as mãos na cintura e ignorando o olhar penetrante que parecia arrancar do seu corpo a
combinação, a anágua e o espartilho, ela disse:
— Pensei que estivesse machucado.
— Eu estou — disse ele, tirando a toalha do rosto para mostrar o corte fino no canto da boca. —
Dói quando eu falo.
Vendo tanto sangue, depois de uma exclamação abafada, ela perguntou:
— O que aconteceu?—Molhou outra toalha e começou a limpar o ferimento.
— Eu me cortei com a navalha — resmungou ele. Alaina ergueu uma sobrancelha, incrédula.
— Para um cirurgião, não parece muito hábil no manejo de um instrumento cortante. Fique quieto!
— ordenou ela, aplicando pedra-ume no corte. — É evidente que está sem prática.
Cole franziu a testa.
— Diria também que preciso de mais prática como marido?
— Pobrezinho — murmurou ela, fingindo pena. Com os olhos muito abertos e muito inocentes,
atirou seu dardo.
— Será que meu senhor está fraquejando sob a tensão?
Cole olhou fixamente para ela.
— Parece que ficou muito atrevida durante a minha ausência-
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Com um sorriso sereno, ela respondeu:
.Aprendi que nesta casa há algo muito pior do que um conquistador ousado, meu amor.
É mesmo? — Foi a vez dele perguntar com incredulidade: - E o que é, doçura?
Sorrindo, Alaina pôs a toalha na bacia e ergueu os ombros.
Sua ausência.
Fez meia-volta, com a anágua girando em volta das pernas e voltou para seu quarto. Pouco depois,
olhou para trás e viu Cole encostado no batente, observando-a com um sorriso esperançoso.
— Está pensando em ser razoável no que se refere ao nosso casamento?
Alaina olhou para ele, surpresa.
— Eu? Razoável? Que atrevimento!
— Está bem — disse ele, bruscamente. Virou o corpo, para sair, mas parou e olhou para ela. —
Antes de viajar, informei os criados de que teremos visitas neste fim de semana.—Com o rosto
inexpressivo, examinando uma unha quebrada, ele continuou: — Já é tempo de apresentá-la aos
nossos vizinhos.
Alaina ergueu o queixo, ofendida por ser posta de lado, privada da presença dele e depois tirada do
isolamento como uma boneca frágil, incapaz de suportar o excesso de uso e de amor, e receber
ordens de representar para os convidados dele.
— Quer dizer que vou ser exibida como um objeto de sua propriedade, major? Para frustrar as más
línguas?
Com o cenho franzido, Cole apanhou uma tesoura na penteadeira dela e começou a cortar a unha.
— Por acaso não me informou que um dos deveres de esposa é funcionar como anfitriã para o
marido?
Alaina desejou jamais ter dito aquilo.
— Não precisará fazer muita coisa. Os criados costumam ser muito eficientes, mas posso pedir a
Carolyn para ajudá-la, se precisar.
Cole examinou a unha, ignorando completamente a pouca roupa de alaina e para desfazer aquela
atitude de complacência, ela perguntou:
- Por que não o irmão dela? Os olhos azuis encontraram os dela no espelho e depois Cole voltou a
atenção para a unha. n Procurarei defender sua reputação do melhor modo possível, não Pedindo a
ajuda dele.
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- Não acha que é um pouco tarde para se preocupar com minha virtude, major? — disse ela, com
uma risada amarga. Depois, com um erguer de ombros, afastou o cabelo da testa. — Quero dizer,
devia ter se preocupado no dia em que o tirei do rio.
Cole jogou a tesoura na penteadeira com um gesto impaciente
— Naquela ocasião, minha senhora, eu acreditava que fosse quem dizia ser. Sendo assim, deve aceitar
uma parte da culpa. Foi muito convincente.
As palavras foram como sal numa ferida aberta.
— Devia estar muito ingênuo naquela noite, senhor. Acreditou na mentira de Roberta.
— Mas foi a sua que decidiu tudo — observou ele, e por um momento Alaina ficou imóvel sob o
olhar que a desnudou completa-mente. Voltou para o banheiro e fechou a porta.
Cole encostou-se na porta fechada, para aliviar a tensão do controle auto-imposto. Precisou de toda
força de vontade que possuía para não se trair. De um modo ou de outro, precisava dominar
completamente aquela fraqueza.
466
Capítulo Trinta e Cinco
A ARRUMADEIRA DO segundo andar fora contratada como criada particular de Roberta e
timidamente ofereceu-se para pentear a nova patroa na noite da recepção. Alaina achou muito
agradável a experiência. Nunca fora penteada por outra pessoa, a não ser sua mãe. O cabelo farto e
brilhante, artisticamente arrumado, ficava bem até com o vestido preto que ela estava usando para
terminar alguns afazeres domésticos.
Um desses afazeres de última hora era a supervisão do banho de Mindy. A menina não estava ainda
convencida de que água e sabão faziam bem ao corpo, nem mesmo que fossem necessários, e sem
algum encorajamento abstinha-se completamente de usá-los. Ia comparecer à festa por algum tempo,
até provar os doces deliciosos feitos Por Annie e conhecer alguns convidados. Agitada com a
expectativa, Mindy vestiu-se com a ajuda de Alaina, olhando encantada para o guarda-pó branco e o
vestido novo de veludo azul vivo. Depois, com Porte digno de uma grande dama, desceu a escada e
sentou-se no hall, no sofá levado da sala a fim de dar espaço para a dança. Estava Preparada para
receber os primeiros convidados.
Alaina subiu apressadamente para seu quarto e quando chegou na porta teve outra vez a estranha
sensação de estar sendo observada.
Dessa vez sabia que não era Mindy. Diminuiu o passo e voltou-se
467
rapidamente, examinando o corredor iluminado. Ninguém, por menor que fosse, poderia se
esconder ali. Então notou que a porta do quarto vermelho estava entreaberta. Curiosa, aproximou-se
e a abriu completamente. O quarto estava escuro, e nenhum movimento traía a presença de alguém.
— Cole? Cole, é você?
Nenhuma resposta. Apanhando um lampião do corredor, entrou cautelosamente e examinou as
sombras criadas pela luz fraca. Quando iluminou a cama, deixou escapar uma exclamação de
espanto. Sobre a coberta de cetim estava um vestido de baile vermelho-escuro, como os que Roberta
usava. Com um vestido como aquele, ela atrairia a atenção de todos os homens presentes.
Alaina sentiu um calafrio na espinha. Quase esperou ver Roberta surgir de um canto escuro e
apanhar o vestido, rindo da peça que acabava de pregar em "Lainie". Ali estava, o tempo todo, bem
debaixo do nariz de uma MacGaren, ainda casada com Cole, o marido fazendo parte da trama para
enganar a prima mais nova. Só uma brincadeira, diria ela, erguendo os ombros. Só uma brincadeira
para enganar "Al".
Alaina procurou se controlar, livrando-se daqueles temores absurdos que ameaçavam perturbar sua
mente. Sim, alguém estava brincando com ela, mas não era um fantasma.
Ergueu mais o lampião e iluminou a escrivaninha de Roberta. Alaina lembrou que a porta de sanfona
estava fechada na última vez que entrara no quarto. Agora estava aberta e sobre a mesa Alaina viu
um diário e uma pena da qual um pingo de tinta, caído lentamente no papel, formava um borrão,
como um ponto final malfeito. Alaina experimentou com a ponta do dedo. A tinta estava úmida.
Examinou a letra. Sim, era de Roberta.
Com mãos trêmulas, Alaina pôs o lampião sobre a escrivaninha e apanhou o diário para ler a última
página das memórias da prima.
- Vejo nos olhos de Cole. Ele fica parado nos pés da cama, sabendo o que eu fiz, sabendo que logo
vou partir deste mundo. Ele finge que me ajuda, mas eu sei que está ansioso para estar com ela outra
vez — aquela vagabunda da minha prima. Sei que irá para ela quando isto terminar—esta morte. Por
que—por que permiti que me usassem desse modo?
468
Com o coração disparado, Alaina folheou o diário, de trás para diante, até ver outra vez o nome do
marido.
"Quase desejo que Cole tivesse me visto hoje, abrindo minhas pernas para o prazer daquele cretino,
fingindo arder de paixão quando ele me possuiu. Como odeio os dois. Cole, por sua obsessão por
Lainie, por me enganar, e este tolo que eu matei suavemente..."
Alaina virou outras páginas e leu:
"Nenhum tolo precisa me dizer o que deve ser feito. Cole acharia divertido, se ele soubesse. Desde
que soube que Lainie era a prostituta em sua cama, naquela noite, ele nunca mais me procurou. Mas
não darei a ele o prazer de saber a minha condição. Disseram-me que há uma mulher na cidade que
pode me livrar desta coisa. Não devo esperar mais."
Alaina continuou folheando o diário, lendo um trecho aqui, outro ali.
"O idiota imundo pensou que podia ter-me à sua disposição só porque me surpreendeu escondendo
o tesouro, mas meu segredo está a salvo outra vez, longe de olhos curiosos como os dele. É meu
agora e sairei daqui muito rica!"
Alaina só se deu conta do tempo quando Cole a chamou. Do hall subiam vozes e risos alegres.
Percebeu que a festa já começara sem sua presença, e que Cole estava à sua procura.
Apanhando o diário, ela ergueu o lampião e saiu apressadamente. Encontrou Cole andando de um
lado para o outro, muito agitado, no Seu quarto, e pareceu aliviado quando a viu.
— Minha senhora, onde estava?
— Cole, veja isto... — começou ela, estendendo o diário para o marido.
— Não temos tempo, Alaina.—Apanhou o diário e o jogou sobre a cama. — Metade dos convidados
está aqui e ameaçam derrubar a casa se você não aparecer.
— Mas isto é importante — insistiu ela. — É o diário de Roberta!
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— Perdoe-me, minha senhora, mas não estou nem um pouco interessado em ler o que ela escreveu.
Estou mais interessado em levá-la para baixo. Pelo menos, metade dos convidados prometeu demolir
a casa, pedra por pedra, se eu não voltar imediatamente com minha mulher.
— Francamente, Cole — censurou ela. — Está exagerando.
— Minha senhora, não conhece meus convidados! Já acabaram com o vinho da adega e estão
procurando mais na despensa. — Com a rapidez que permitia a perna rígida, ele a levou até o
guarda-roupa. Afastou os cabides, um a um, impaciente e depois resmungou: — Deve haver alguma
coisa melhor. — Voltou-se para ela e disse, com seu antigo tom militar de comando. — Não me
importa a cor ou o feitio, mas esta noite vai se vestir como uma Latimer.
Na pressa, Cole esqueceu a cautela e o destino de todos que tratavam Alaina asperamente. Não
percebeu a expressão dos olhos dela, uma advertência clara para desistir daquela atitude.
— Senhor — disse Alaina, severamente —, pretendo me vestir como uma MacGaren.
— Uma MacGaren! — rugiu ele, em voz muito alta. — De um daqueles malditos clãs irlandeses, se
não me engano!
— Oh, não, senhor—disse ela, com um sotaque que deixaria seu pai orgulhoso. — Nada daquele
lixo irlandês das terras baixas, mas dos mais finos escoceses das terras altas!
— Um bando de mendigos, a julgar por esse trapo preto que veste. — Deu um piparote na gola
aberta do vestido preto, com desprezo. Era demais para seu orgulho.
— Trapo preto! — exclamou ela, incrédula, erguendo a voz. — É um bom vestido, que tem me
servido muito bem! E se eu resolver, vai servir para receber os melhores dos seus convidados
ianques!
Cole olhou para ela, apreensivo.
— Acredito que seja capaz disso, só para me humilhar na frente dos meus amigos. Muito bem,
minha senhora, veremos o que vai acontecer.
Antes que Alaina tivesse tempo de recuar, Cole segurou os dois lados da gola do vestido e o rasgou
até a cintura, junto com a roupa de baixo. Dando um passo para trás, Alaina olhou para o decote,
agora extremamente exagerado. Ergueu os olhos com uma expressão maro ta para o colete de Cole,
mas mudou de tática, resolvendo ser apen as
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mulher, doce e tentadora. Aproximou-se dele, com uma passividade suave.
— Cole? — disse ela, vendo que ele esfregava a mão no peito, certamente para aliviar a dor do
esforço de rasgar sua roupa.
Cole aprendera a desconfiar sempre que Alaina MacGaren ficava doce e gentil. Tentou se prevenir
contra qualquer tipo de ataque, mas em desvantagem, por não saber de que lado viria. Com gestos
lentos, Alaina começou a desabotoar o colete dele.
— Eu estava... pensando... — demorou, com fingida timidez, no último botão —..se você — com
um sorriso doce, puxou a camisa dele para fora da calça —..gostaria... — sua voz quase ronronava
quando ela pôs as mãos na frente da camisa —..de ter suas roupas... — e com um rosnado final —
..arrancadas do seu corpo!
Alaina puxou bruscamente para os dois lados, os botões voaram, espalhando-se pelo quarto e o peito
de Cole ficou nu. Satisfeita, Alaina sorriu, deu um piparote na gravata que pendia do pescoço dele e
saiu. Cole olhou atônito para a camisa rasgada. Entre a violência e a retirada, preferiu a última.
Porém, quando entrou no banheiro, a caminho do seu quarto, Alaina já estava lá.
— Use a outra porta, por favor — disse ela. — Vou terminar minha toalete.—Antes que ele pudesse
protestar, adiantou-se e fechou a porta.
Resmungando, Cole abriu a porta do corredor e imediatamente desejou não ter saído por ali. Carolyn
estava no topo da escada, conversando com Miles. Ela voltou-se e olhou para Cole, boquiaberta de
espanto. Miles olhou também e por uma fração de segundo, um caleidoscópio de expressões passou
por seu rosto. Com uma leve inclinação de cabeça para os dois, Cole abriu a porta do seu quarto e
entrou, aparentando a maior calma possível.
Alguns minutos depois, com uma camisa impecável, ele estava entre os convidados, renovando
antigos conhecimentos, negligenciados por muito tempo.
Cole notou que Carolyn o observava, mas sempre que seus olhos Se encontravam, ela escondia o
rosto com a mão enluvada ou virava Para outro lado. Durante toda a noite, Carolyn pareceu
examinar Cole com um misto de curiosidade e preocupação.
Cole já havia consultado o relógio de bolso três vezes quando a sala ficou em silêncio e os
convidados abriram passagem para a recém-chegada. Alaina parou na porta, com a saia muito armada
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tocando os dois batentes. Fez-se um silêncio de encantamento e admiração. Muito se comentara
sobre a nova mulher de Latimer, sobre uma jovem pequena e sem beleza. Ninguém estava preparado
para o que via agora.
Sob o impacto de tanta beleza, desapareceu o último resquício de irritação que Cole podia ter sentido
com seu atraso. Gratificado e surpreso, viu que Alaina vestia um dos vestidos comprados por ele,
uma encantadora criação de tafetá cor-de-rosa, que desnudava mag-nificamente seus ombros. Olhou
para ele, e a sala toda se iluminou com a luz do seu sorriso. Cole adiantou-se e ofereceu o braço.
Voltando-se para os convidados, ele a apresentou com orgulho.
— Senhoras e senhores — disse em voz alta e clara. — Minha mulher, Alaina.
Imediatamente um zunzum de vozes encheu o silêncio, e todos procuravam se aproximar, desejando
felicidades ao novo casal, apertando a mão de Alaina amistosamente. Os nomes se atropelavam em
sua mente, à medida que Cole os apresentava. Com o braço na cintura dela, numa atitude muito
possessiva, Cole conversava descontraído com seus amigos.
Alaina viu Braegar entre os convidados e teve de se conter para não rir do seu olhar atrevido.
Rebelde, ao lado dele, percebeu e também não gostou. Puxou irritada a manga de Braegar e olhou
furiosa paraAlaina.
Quando, terminados os cumprimentos, os convidados se afastaram, Alaina sentiu a mãozinha de
Mindy na sua e viu nos olhos da menina a satisfação e a certeza de que sua protetora era a mulher
mais bela da festa. O abraço carinhoso de Alaina intensificou a luz nos olhos escuros da menina.
— Minha senhora, acho que esta é a nossa dança — disse Cole, fazendo um sinal para os músicos.
Sorriu, vendo a surpresa dela. — Não se preocupe, posso dançar com passo lento.
Alaina corou.
—Nunca pensei que soubesse dançar.
A valsa começou.
— Posso não ser um par muito elegante, mas sou o mais determinado. E não a cederei sem luta às
hordas de jovens admiradores que esperam a vez de dançar com a senhora.
— Eu diria que dança melhor do que a maioria — disse Alaina com sinceridade. Cole dançava com
passo seguro e aparentemente o
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ferimento não prejudicava seus movimentos. — Acha que estou de acordo com os padrões das
mulheres Latimer, senhor?
— Minha senhora, temo que não. — Depois de um rodopio perfeito, ele continuou: — Esses
padrões foram definitivamente superados. A senhora acaba de determinar outros que não poderão
ser igualados ou suplantados nos próximos mil anos.
— E quanto aos seus padrões, senhor?
O calor nos olhos dele testemunhava a sinceridade das suas palavras.
— Se estivéssemos sozinhos, meu amor, eu provaria imediatamente o desejo que arde em mim.
— E o nosso acordo? — lembrou ela, gentilmente.
— Para o diabo o acordo! — Alaina olhou para ele, curiosa, e Cole abaixou a voz. — Tenho em
mente um acordo muito melhor, muito mais condizente com a idéia de casamento.
O coração de Alaina alegrou-se com a esperança de que tudo ficaria bem entre eles e poderiam ter o
prazer de conviver sem restrições. Mas uma dúvida pairava ainda em sua mente.
— Precisamos conversar mais sobre isso.
— Sim, tem razão. Porém, com mais privacidade.
— No meu quarto?
— Talvez. Ou no meu.
— Mais tarde?
— Por mais que eu desejasse que fosse agora, sim, mais tarde. A mão esquerda de Alaina subiu
discretamente do ombro para o pescoço dele e os dedos macios acariciaram a nuca de Cole.
— Não está nem um pouco interessado no diário que encontrei esta noite?
— O diário de Roberta? — Ergueu uma sobrancelha. — Devia estar?
— É uma descrição muito pessoal dos pensamentos dela.
— Então, acho que prefiro não tomar conhecimento — disse Cole, com desprezo.
Alaina olhou nos olhos dele.
— Roberta disse certa vez que jamais teria um filho, e a julgar Pelo que li no diário, ela tentou fazer
alguma coisa a esse respeito... e você sabia.
— Fiquei sabendo depois que ela voltou daquela açougueira —
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admitiu ele. — Tentei fazer o possível para salvá-la, mas a febre a levou.
— O tio Angus culpa o senhor pela morte dela.
— Imaginei isso.
— E culpa-me por levá-lo à casa dele.
De repente, Cole sorriu.
— Acho que eu devia tê-la levado para viver comigo, quando a conheci. Então, eu certamente ia
procurar lhe dar um banho e descobriria seu segredo.
— Provavelmente eu teria dado um tiro na sua perna, muito mais eficaz do que esse pedaço de metal
— riu ela. — Naquele tempo eu tinha uma verdadeira aversão por ianques.
— E agora?
— Posso suportar alguns poucos — sorriu com os olhos brilhando quando Cole apertou sua mão
carinhosamente.
Para Mindy o céu começou no momento em que o dono da casa a convidou para dançar. Sob a
orientação de Cole, ela logo aprendeu o ritmo e acompanhou os passos dele com graça natural.
Enquanto ele dançava com Mindy, Alaina rodopiava nos braços de outro par.
— Srta. Mindy, sabe que você é a mais bela do baile? — perguntou Cole, sorrindo para o rostinho
radiante.
Mindy balançou a cabeça e indicou Alaina. Cole concordou. Alaina era como uma borboleta
iridescente, liberta do casulo, luminosa, tentadora, hipnótica, fascinante.
Mais tarde, depois de ter levado Mindy para a cama, Alaina viu Cole caminhando para ela, com olhos
que a devoravam. Estava dançando com Braegar e inclinou a cabeça para o lado, procurando ver o
marido. Braegar virou também e com um gemido desapontado, viu Cole a poucos passos deles.
— Eu devia ter adivinhado! Minha primeira dança com ela e você já vem tomá-la de mim. É muita
crueldade sua, sr. Latimer. Não tem noção do que significa partilhar?
— Nenhuma — respondeu Cole, segurando a mão de Alaina e tirando-a dos braços do amigo.
Exceto pela dança típica, Virgínia reel, e os passos mais rápidos. Cole provou ser um ótimo
dançarino. Procurando ignorar a dor n a perna e as tentativas de Braegar de dançar com Alaina, ele a
tirava para dançar sempre que a música permitia.
Depois de algum tempo, quando Alaina procurou o marido para
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libertá-la da atenção constante dos homens, não o encontrou. Entrou no escritório à procura dele. A
sala estava vazia, iluminada apenas pelo fogo da lareira. Com um suspiro de alívio, ela sentou-se na
bergère e apoiou os pés na banqueta. Não era fácil ser anfitriã. Precisava ter resistência para manter o
sorriso e agüentar os pisões nos pés e o hálito carregado de uísque de alguns. Não importava o que
Roberta costumava dizer, na verdade, ser a grande dama do baile era muito mais trabalhoso do que
manter a intimidade com o marido—especialmente quando o marido era Cole.
A porta se abriu e ela esperou ouvir os passos irregulares. Mas não foi Cole quem entrou, para
desapontamento de Alaina.
Braegar Darvey, sem ver Alaina, caminhou para a lareira e ficou parado, numa atitude pouco habitual
para ele, olhando pensativamente para o fogo e tomando lentamente seu uísque.
— Parece profundamente absorto nos seus pensamentos, senhor — murmurou ela.
Braegar voltou-se, surpreso, e então riu.
— Devia estar, para não ver uma coisa tão linda sentada nessa cadeira.
— Alguma coisa o preocupa?
— Sim — disse ele. — Mas como está casada com Cole, e Roberta era sua prima, acho melhor não
falar do problema. Não é certo falar dos mortos.
— Primas ou não, na verdade Roberta e eu não éramos muito amigas.
— Sim, eu sei que ela a odiava. — Balançou a cabeça, afirmativamente. — Sempre que ouvia falar
em Al tinha um acesso de fúria. Especialmente quando era Cole quem o mencionava.
Alaina olhou para o fogo.
— Suponho que Roberta tinha motivo para isso.
— Tinha mesmo? — duvidou Braegar. — Agora que a conheço também, eu diria que o motivo era
criação de Roberta. — Olhou atentamente para ela. — Sabe o quanto Roberta era cruel?
— Se espera me surpreender dizendo isso, está enganado. Braegar tomou um longo gole de uísque e
começou a andar na frente da lareira.
— No dia em que conheceu Carolyn, Roberta deixou bem claro que não queria vê-la perto de Cole,
fosse em público, fosse em Particular.
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Alaina sorriu.
— Uma ameaça muito comum a Roberta, pode estar certo, Braegar Darvey.
Braegar aproximou-se dela.
— Roberta chegou a dizer à minha mãe que Cole não precisava da ajuda dela e que ela... Roberta... se
encarregaria das necessidades dele. Ela teve a audácia de tentar me levar para a cama. Não porque
quisesse dormir comigo, mas apenas para magoar Cole, atirando no seu rosto que seu melhor amigo
o estava traindo. Mas não passou de tentativa, eu juro. Ela se atirava para cima de mim, esfregava-se
em mim e chegou a dizer a Cole que eu havia tentado... bem...
Era engraçado ver aquele irlandês enorme tropeçando nas palavras. Se o assunto fosse outro, Alaina
teria sorrido.
— Quero dizer... que eu tentei... violentá-la! Chegou a ir ao meu consultório, em St. Cloud, e
começou... a se despir... insistindo para que eu a examinasse. Acho que fiquei furioso demais e a
mandei embora, depois de uma preleção sobre os deveres de uma boa esposa. Durante algum tempo,
não vi nenhum dos dois. Então, pouco antes da morte dela, vi Cole na cidade, e ele se recusou a falar
comigo. Depois disso, passou a me tratar do modo que trata hoje. Eu não sei por quê! Simplesmente
não sei!
Braegar apoiou o cotovelo no aparador da lareira, passou a mão na testa e continuou, com um
profundo suspiro:
— Deve ser alguma coisa que Roberta disse... e preciso descobrir, para desfazer o mal-entendido.
— Braegar — murmurou Alaina, suavemente. — Há três coisas que os irlandeses fazem muito bem.
Beber, falar e se preocupar. Por enquanto, você não me desapontou em nenhuma delas.
Braegar olhou para ela por um momento, como se fosse dizer alguma coisa, mas depois riu alto e
disse com acentuado sotaque irlandês:
— Ah, minha querida Alaina, você sabe como atingir o coração de um homem. Já fui escoiceado por
cavalos e a dor não foi tão intensa-
Alaina levantou-se e olhou para ele, com um sorriso tristonho.
— Roberta era uma pessoa estranha. Exigia que todos a amassem e sua definição de amor era
obediência cega e imediata. Seria muito mais feliz num reino distante, com muita diversão, sem
mulheres repleto de cavaleiros em armaduras brilhantes só para ela, só p ara cortejá-la, sem jamais
conquistá-la. Roberta gostava do papel da
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mulher bem-educada e bem-vestida, em público, mas os fatos normais da vida privada eram tediosos
e pesados demais para ela, e só os aceitava para construir um pedestal mais alto. Seu maior tormento
devia ser o fato de sempre ter desejado o papel de esposa e não sentir nenhum prazer com ele.
Braegar pôs o copo na mesa e bateu palmas.
— Ah, bela senhora, acaba de provar a falsidade da crença mais cruel de todos os tempos e meu
coração se alegra com isso.
Ele esperou, com os olhos brilhando, e Alaina mordeu a isca.
— E qual seria essa crença, senhor?
— Ora, minha senhora—os olhos castanhos cintilavam, zombeteiros —, de que todas as jovens
escocesas não passam de verdadeiras escravas, sem cérebro. — Continuou, apressadamente, ouvindo
a exclamação indignada de Alaina. — É claro que isso deve ter sido inventado por alguma inglesa
invejosa, pois, como qualquer um pode ver, a senhora tem uma boa cabeça sobre os ombros e um
grande coração, compreensivo e cheio de piedade. E, ó Senhor, um frasco tão pequeno e delicado
para conter tudo isso. — Segurou a mão de Alaina e inclinou-se levemente. Depois disse, com um
largo sorriso: — Se não fosse comprometida, eu seria o primeiro a saborear esse néctar até a última
gota.
Alaina aceitou o elogio um tanto ousado e respondeu à altura.
— Braegar Darvey, foi uma sorte seu pai ter escolhido esse nome para prevenir o resto da
humanidade e, que Deus nos livre, todas as mulheres do mundo.
— Você é a melhor de todas, menina. Mas o sr. Latimer é um homem abençoado por tê-la escolhido
para mulher.
— Alegra-me saber que admira tanto meu gosto!
Os dois voltaram-se rapidamente e de onde estava, parado na Porta, Cole teve a impressão de um
movimento furtivo, quase de culpa. O conhaque não conseguira aliviar a dor que o torturava, mas
serviu Para enevoar seu julgamento. Ou talvez estivesse julgando por ele "mesmo, sabendo que não
desistiria se os papéis estivessem trocados e a mulher fosse Alaina.
Cole bateu a porta com força e, apoiando as mãos no cabo da bengala, olhou para os dois com uma
expressão capaz de intimidar Qualquer espírito fraco.
— Divido minha bebida e meus cavalos, mas, senhor, não pretendo dividir com ninguém a minha
mulher.
Cole Latimer! — A bela e pequenina mulher pôs-se na frente
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dele com os braços na cintura e com o rosto rubro de revolta. — Como pode ser tão grosseiro! Não
tem motivo para nos acusar de coisa alguma!
Braegar adiantou-se, ficando ao lado dela, e Cole o encarou visivelmente mal-humorado.
— Já suportei muito de você, por amizade, Cole, e minha paciência enfraquece com o esforço. Se
tem alguma queixa, diga agora, ou...
— Amizade?—zombou Cole.—Amizade!—exclamou ele. — Fui enganado em minha casa, e você
diz que suportou muito em nome da amizade?
— Enganado! — Braegar e Alaina olharam para ele, atônitos. — Homem, acho que a dor afetou sua
mente. Enganado? Acha que este... eu? Está insano ou bêbado, mas, seja qual for o caso, é um idiota
consumado. Dez anos atrás eu o desafiaria para um duelo, só por isso.
Braegar fez menção de se retirar, frustrado, mas Cole o segurou pela manga.
— Dez anos atrás? E o que o impede agora, garoto irlandês? — zombou ele. — Não tem coragem
de lutar com um aleijado?
— Cole! — exclamou Alaina, temerosa.
Braegar ficou rubro de fúria. Prejudicado no seu julgamento, Cole investiu.
— Sim, e para o diabo com você, que se vangloria jovialmente dos seus feitos insignificantes, mas
quando na frente de algo mais sério, foge com o rabo entre as pernas.
Braegar virou a cabeça com tamanha força que o cabelo cobriu-lhe a testa.
— Quem se vangloria, senhor? — zombou ele. — Nós, os homens simples dos clãs irlandeses? Ou
vocês, filhotes dos alemães bitolados e covardes, que vendem a espada a quem der o maior lance e
servem a um rei estrangeiro? Quem é pior?
— Eu servi à União quando fui chamado — rosnou Cole. — Não paguei a nenhum homem para
morrer por mim.
— Compreendo. — Braegar olhou fixamente para Cole. — E acha que por isso pode caluniar as
pessoas e usar seu ferimento e sua bengala como uma medalha de bravura.
Alaina olhou de um para o outro, apreensiva. Estavam nariz contra nariz, com os rostos
selvagemente crispados, os olhos vermelhos e ferozes.
— Eu trocaria o estilhaço e a cicatriz por uma boa noite de
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descanso e um dia sem nenhuma dor — disse Cole. — Mas, quanto à bengala.—Ele a jogou para
cima e a apanhou no ar.—Dez anos mais ou dez anos menos, ela foi feita para partir a cabeça de um
irlandês com sua fala ciciada.
— Fala ciciada! Maldição, homem. Você foi longe demais! — Braegar tirou a bengala da mão de Cole
e a atirou para longe. Num instante, Cole foi levantado do chão e encostado na estante de livros.
— Braegar Darvey! — gritou Alaina, pondo-se entre os dois, de costas para Cole, empurrando o
peito largo e forte do irlandês. — Largue ele! Largue ele!
Darvey, controlando-se, recuou e largou Cole. Alaina esperou que houvesse um bom espaço entre os
dois e voltou-se para Cole. Seu coração se apertou. O olhar dele era de raiva e ódio.
— Não preciso da sua saia para me proteger, senhora—zombou ele. Olhou para Braegar. — Não há
lugar para nós dois aqui...
— Cole!
Cole viu o desprezo nos olhos da mulher. Lembrou da revolta dela na última vez que expulsara
Braegar da sua casa e não teve coragem de repetir o ato. Disse, com ironia amarga:
— Portanto, eu me retiro, até que a atmosfera esteja mais limpa. Passando por ela, apanhou a
bengala, uma garrafa cheia do armário de bebidas e saiu do escritório.
Os Darvey saíram cedo e como a festa terminou quase ao nascer do dia, Alaina estava sozinha no
hall, para se despedir dos convidados. Quando ela subiu, não se ouvia nenhum som no quarto de
Cole. O diário de Roberta não estava onde o deixara, mas como o quarto fora arrumado, imaginou
que um dos criados o guardara em outro lugar.
Alaina levantou-se com o sol e tomou café sozinha. O escritório estava vazio, e a porta entreaberta.
Continuou assim durante todo o dia. Nem sinal de Cole.
Com a chegada da noite, Alaina começou a se preocupar. Deitou-se cedo, deixando um lampião com
luz baixa, no corredor e outro no quarto de Cole. Bem mais tarde, foi acordada de um sono inquieto
Pelo rosnado de Soldado, e quando acendeu o lampião viu que era quase meia-noite. Depois de um
momento, Soldado se acalmou e voltou a dormir. Alaina apenas diminuiu a luz do lampião, para ficar
mais tranqüila. Mal se deitara outra vez e Soldado ergueu a cabeça, rosnando, com as orelhas
empinadas, os olhos alerta. O cão foi até a
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porta, sentou-se por um instante, depois voltou para o tapete onde dormia. Era demais!
Alaina levantou-se, vestiu um roupão quente e pôs no bolso a pequena pistola de cano curto. Calçou
os chinelos e, segurando o lampião bem acima da cabeça, chamou Soldado e os dois saíram para o
corredor.
Alaina examinou os quartos do andar. Estavam todos vazios e em ordem, o de Cole exatamente
como ela o deixara; a porta da suíte de Roberta estava fechada e Mindy dormia placidamente no
novo quarto.
Soldado trotava atrás dela, sem demonstrar nenhum interesse especial. Essa atitude do cão acalmou
seus temores, e Alaina resolveu descer a escada. Soldado ficou no hall, enquanto ela examinava o
escritório e a sala, e continuou calmo quando Alaina atravessou a sala de jantar e empurrou a porta
da cozinha. Como de hábito, Annie deixara um lampião com a luz baixa. O calor do fogão enorme
fazia da cozinha um lugar aconchegante e aparentemente seguro. Era aparte mais acolhedora da casa,
especialmente porque conservava um pouco do espírito jovial de Annie.
Alaina pôs o lampião na mesa e voltou para a sala de jantar. Arrumou a cadeira de Cole, que estava
meio virada para fora. De repente, sem nenhum motivo, sentiu que o cabelo se eriçava em sua nuca.
Olhou para a porta da cozinha. Estava ainda fechada. As janelas escuras eram altas demais para
serem alcançadas do lado de fora. Alaina voltou-se para sair da sala e soltou uma exclamação abafada.
Levou a mão ao pescoço enquanto a outra segurava a arma no bolso. Um vulto escuro estava parado
na porta do hall, com o rosto escondido pelas sombras.
— Cole! — exclamou ela, reconhecendo-o, apoiando-se na mesa, com os joelhos fracos de alívio.
Soltando a arma, ela levou a mão ao coração.
Cole deu um passo para a frente e Alaina viu o copo quase vazio na sua mão.
— Procurando por alguém, minha senhora?
Alaina tentou falar com segurança, mas percebeu que falhara quando ouviu a própria voz.
— Soldado ouviu alguma coisa... e ficou inquieto. Eu não sabia que o senhor estava aqui.
Ele fez um gesto largo com a mão que segurava o copo.
— Vejo que não tem convidados.
— Eu nunca tive. — Alaina ergueu o queixo. — Eram todos seus
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convidados. — Tentou ver o rosto dele na sombra — Uma vez que eStá de volta, suponho que a
atmosfera esteja mais limpa agora. Cole olhou por sobre o ombro e zombou.
— Minha senhora, acredito que sua presença é a atmosfera mais doce que esta casa já teve. —
Adiantou-se, até ficar com o rosto na luz fraca do lampião e procurou os olhos dela. Alaina viu os
traços duros do rosto do marido. Depois, ele olhou para o copo e o girou lentamente entre os dedos.
— Minha senhora, quero que saiba que eu estava chamando a atenção daquele maldito tolo irlandês,
não da senhora. Não me passou pela cabeça sugerir que a senhora não tenha agido como uma
perfeita dama.
— Temo que tenha errado o alvo — murmurou ela, fechando mais o roupão. — Ouvi dizer que a
bebida forte ou a ira podem fazer o homem agir tolamente.
— E a combinação das duas faz dele um perfeito idiota — terminou ele a frase. Tomou um gole de
bebida, depois, notando o olhar dela, abaixou a cabeça, num gesto submisso. — Confesso-me
culpado, minha senhora.
Alaina apontou para a cozinha.
— Quer comer alguma coisa? Annie fez pão e temos presunto... Cole balançou a cabeça.
— Eu jantei com Olie.
Alaina o examinou por um momento, entrecerrando os olhos.
— E onde passou a noite?
Cole virou o rosto, como se não quisesse responder, mas o silêncio que se seguiu o obrigou a dizer
alguma coisa.
— Com os cavalos... no estábulo.
Alaina conteve-se para não sorrir.
— E encontrou uma atmosfera mais limpa no estábulo, senhor?
Cole ergueu a sobrancelha.
— Direi que foi a conversa mais calma e gentil que ouvi nestes últimos dias. Mas, afinal, não posso
jurar que não haja uma mula uiandesa ou uma égua escocesa entre meus animais.
Ofendida com a comparação, Alaina aconchegou mais o roupão contra o seio.
— Desculpe-me, senhor. Tenho permissão de voltar para meu quarto? Está ficando frio.
, Ela não esperou a resposta e saiu com um último olhar significativo para o marido.
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Capítulo Trinta e Seis
A CARRUAGEM ENTROU numa rua estreita e sinuosa, atrás da loja de chapéus, depois saiu da
rua de terra e parou atrás de um pequeno bosque de abetos e pinheiros. Olie abriu a porta e esperou
pacientemente por alguns momentos.
Cole observou durante algum tempo a passagem coberta que levava aos aposentos particulares da
dona da loja, antes de descer da carruagem. Olie fechou a porta e perguntou em voz baixa.
— Na hora de sempre, senhor?
— O quê? — Cole olhou para ele, como quem acorda de um transe.
— Quer que o apanhe aqui na hora de sempre?—perguntou Olie, com voz paciente. — Ou vai
passar a noite?
— Não! — Cole respondeu tão asperamente, que Olie ficou confuso. Na verdade, o cocheiro não
esperava que o patrão procurasse a amante tão cedo.
— A hora de sempre, eu acho — disse Cole com um suspiro. Olie subiu para a boléia e a carruagem
partiu pela rua estreita. Cole aproximou-se da porta dos fundos. Não era por causa do ferimento que
ele arrastava os pés. Ficava cada vez mais difícil manter as mão s longe de Alaina, e nessa manhã,
observando-a sentada inocentemente na outra ponta da mesa, sentiu que precisava com urgência
descarregar
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toda aquela tensão. A não ser o uso da força, só tinha uma alternativa
.Xanthia Morgan.
Ergueu a bengala para bater na porta e parou com o braço no ar, quando a visão de Alaina surgiu em
sua mente, cauterizando seus pensamentos. Fechou os olhos para saborear melhor aquela ilusão, mas
ela desapareceu tão depressa quanto aparecera. De repente, não tinha mais certeza de que essa seria a
solução para seu problema e abaixou o braço com a bengala, para pensar por um momento. A
escolha foi roubada de suas mãos quando a porta se abriu e Cole viu a mulher de pernas longas,
cabelos fartos arruivados e corpo extremamente bem-feito. Xanthia Morgan.
— Cole! — exclamou ela, aliviada. — Vi sua sombra e pensei que fosse um assaltante. — Ergueu a
pequena pistola de cano curto e, embaraçada, guardou-a no bolso da saia. — Entre! Meu Deus, faz
tanto tempo! Eu temia que não viesse nunca mais. — Com um sorriso acolhedor, segurou a mão
dele e o fez entrar. Solícita, pôs o chapéu e as luvas de Cole sobre a mesa do hall e o levou para a
sala. Preparou um drinque e o estendeu para Cole, dizendo.
— Sente-se, querido, que eu o ajudo a tirar as botas.
— Não... quero dizer... — Ante o olhar preocupado dela, terminou. — Em um momento, Thia.
— Sua perna está rígida outra vez — observou a mulher. — Não me admira, do modo que você se
movimenta. Acho que devia cuidar mais desse ferimento ou procurar uma solução. — Cole deu de
ombros, friamente, e ela resolveu mudar de assunto. — Janta comigo? Pode ficar a noite toda?
— Tenho de voltar logo. — Viu o desapontamento dela e olhou para a bebida no copo. — Olie me
espera.
— Olie está sempre à sua espera, querido — lembrou ela, com voz calma. — Às vezes eu acho que
ele até gosta desse tempo livre no bar.
— Sem dúvida. — Não tendo nada mais para dizer, Cole tomou um gole da bebida.
Xanthia passou a mão na lapela dele e perguntou:
— Resolveu aquele acordo?
Cole olhou rapidamente para ela, sem disfarçar seu desagrado.
— Foi tudo resolvido por procuração, antes de ela vir para cá.
— Eu ouvi os comentários, é claro — admitiu Xanthia, virando o rosto, para esconder o desagrado.
— Eles jamais o perdoaram por
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ter casado com Roberta, e agora a cidade toda está cacarejando sobre sua nova mulher. Creio que a
está mantendo bem escondida porque os poucos que a viram estão esnobando os outros, e a
curiosidade os está devorando vivos.
Ela esperou, mas Cole não parecia disposto a satisfazer sua curiosidade. Xanthia tentou outra vez,
sabendo que estava errada, mas sem poder resistir.
— A srta. Beatrice mostrou-me alguns dos vestidos que você mandou fazer para sua mulher. — O
olhar severo de Cole a fez continuar rapidamente. — Oh, querido, não precisa se preocupar. A srta.
Beatrice não sabe nada sobre nós. Eu estava provando uns vestidos na loja quando ela começou a
elogiar as roupas encomendadas por você — fez uma pausa e continuou, com voz tranqüila: — Seu
maroto astucioso, os vestidos devem ter aquecido bastante o coração dela.
— Alaina... é diferente — resmungou Cole.
— Diferente como?
O silêncio dele era mais eloqüente do que qualquer frase. Xanthia percebeu que era melhor não fazer
mais perguntas sobre a mulher dele, aquela Alaina. Ficou na ponta dos pés para beijá-lo na boca e
surpreendeu-a a frieza de Cole.
— Cole? — Passou o dedo de leve na orelha dele e perguntou: — Estou tendo muita competição?
Cole respirou fundo e olhou para o fogo.
— Eu já expliquei as condições impostas por ela e os motivos desse casamento. Nada mudou.
— Provavelmente eu o conheço melhor do que ninguém, Cole— murmurou Xanthia. — Mas às
vezes me pergunto se o conheço realmente. Diz que ela salvou sua vida e acho que eu não teria tanto
medo se pudesse acreditar que casou só por gratidão.
— Não quero falar nisso, Thia. Ela acariciou a mão dele.
— Termine seu drinque querido, eu não demoro.
Antes que ele pudesse detê-la, Xanthia saiu da sala. Cole compreendeu que estava cometendo um
erro. A casa dela fora um refúgio tranqüilo no tempo de Roberta, mas não tinha mais a antiga
atração. Não era mais um lugar para escapar de alguma coisa, mas um lugar para enganar alguém. De
repente, era o lugar errado, o tempo errado
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e a mulher errada. Sentia-se pouco à vontade e queria estar em qualquer parte, menos ali.
Pôs o copo sobre a mesa e atravessou o hall, para o quarto de dormir. A porta estava
convidativamente aberta, e as cobertas da cama também. Sentada na banqueta baixa, na frente da
penteadeira, Xanthia escovava os cabelos longos. Quando o viu no espelho, sorriu e começou a
desabotoar o vestido.
— Isto... — seus olhos encontraram os dela, no espelho. — Eu já vou — disse Cole.
Ela virou-se na banqueta.
— Mas acaba de chegar.
— Eu sei. Foi um erro.
Vendo desmoronar suas esperanças, Xanthia perguntou, com voz rouca:
— Quer falar sobre algum problema?
— Não.
— Vai voltar?
— Não sei — não tirou os olhos dos dela.
Xanthia olhou demoradamente para ele, tentando controlar as lágrimas.
— Foi muito gentil ter vindo me dizer isso, Cole — falou, devagar. — Eu agradeço. Se mudar de
idéia, sabe que é sempre bem-vindo.
Cole fez um gesto afirmativo.
— Você foi minha amiga, quando eu precisei, Thia. Se precisar de alguma coisa, não hesite em me
procurar.
Xanthia empertigou o corpo e sorriu com esforço.
— Acho que o que eu mais preciso já pertence a alguém.
— Eu sinto muito, Thia—desculpou-se ele.—Aindanão resolvi muito bem a situação.
Cole tirou do bolso um maço de notas que deixou num vaso, ao lado da porta.
— Adeus, Thia.
Xanthia ouviu os passos dele e a batida da bengala até a porta dos fundos se fechar. Com toda aquela
conversa sobre o casamento não passar de um acordo, ele devia ter encontrado algo mais importante.
Precisava conhecer essa Alaina Latimer e verificar o que provocara esse ataque repentino de
fidelidade em Cole.
Com a neblina do começo da noite, a umidade fria instalou-se na
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perna ferida de Cole. Ele andou um pouco, parou para aliviar a dor latejante, e depois continuou,
apoiado pesadamente na bengala.
O som de um piano invadia a noite, e Cole sabia que, para um homem são, a taverna ficava a poucos
passos da loja de chapéus e presentes, de Xanthia. Geralmente, a taverna fechava as portas antes de
ele estar pronto para deixar os braços da amante, e Olie esperava na carruagem, atrás das árvores.
Agora, Cole maldizia a loucura daquela visita. Uma idéia completamente idiota!
Olie tinha ajeitado o corpanzil num dos cantos da taverna. Sua vontade era ficar no bar, conversando
com os conhecidos, mas nessa noite precisava pensar e procurar entender os últimos
acontecimentos. A mulher do dono do bar pôs a caneca com cerveja ambarina e espumosa sobre a
mesa, sem uma palavra. Embora Olie já tivesse pagado a bebida, provavelmente ela estava ainda
zangada por causa da mesa e de algumas cadeiras quebradas, resultado da última visita de Olie.
Depois de saciar a sede com vários goles de cerveja, Olie pôs a caneca na mesa e olhou para ela,
pensativo. Conhecia o bom dr. Latimer havia alguns anos e estava preocupado porque seu patrão
parecia estar se desviando para o caminho da bebida e das mulheres. Todo mundo comentava o que
acontecia na casa dos Latimer e seu filho, Peter, havia insinuado que de fato eles dormiam em camas
separadas, exatamente como com a primeira mulher. Como não era homem de dar ouvidos aos
comentários dos empregados, Olie passou a observar pessoalmente o casal. Na igreja, por exemplo,
ele os viu com a menina entre os dois, e as cabeças curiosas unindo-se atrás dos Latimer, como
pedras rolando por diferentes encostas e juntando-se, confusas, no meio do vale. Mais tarde, o ar lá
fora vibrava com o falatório, porque o dr. Latimer não ia à igreja desde que voltara da guerra e,
agora, aparecia sem mais nem menos, com a nova mulher e uma criança, ainda por cima, e estavam
casados havia tão pouco tempo! O fato de a sra. Latimer ser do sul não os preocupava tanto quanto
as especulações sobre sua idade, por que o dr. Latimer casara com ela e o que a menina era dela.
Bem, pensou Olie, qualquer um podia ver que ela era jovem demais para ter uma filha daquela idade
e que o dr. Latimer casara simplesmente porque ela era uma jovem muito bonita. Apesar dos
rumores sobre camas separadas, o doutor parecia muito apaixonado por ela e muito preocupado em
proteger a nova mulher dos olhares de todos. Depois, houve o passeio na margem
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do rio num dia muito belo e quente. Um sorriso radiante, como Olie nunca vira antes, iluminou o
rosto de Mindy quando abriram o cesto de piquenique preparado por Annie. Olie partilhou com eles
a comida e o prazer daquele dia. Observou a polidez perfeita de Cole, mas sem a intimidade que devia
haver entre marido e mulher. E viu também o olhar ávido, quase faminto, do patrão, acompanhando
os movimentos da senhora, quando ela brincava com Mindy. Rindo, alegre, ela abriu os braços, num
gesto largo, esticando o tecido do vestido sobre os seios, e o dr. Latimer corou intensamente quando
percebeu que Olie surpreendera seu olhar.
Quando se preparava para o primeiro gole da segunda caneca de cerveja, Olie parou embasbacado
com a mão no ar. Arregalou os olhos quando o patrão, sem uma palavra, sentou-se à mesa, na frente
dele. Mesmo com o piano, com as gargalhadas de alguns fregueses, os risos incessantes das moças do
bar, Cole ouviu perfeitamente as palavras de Olie.
— Eu estava pensando que talvez o senhor fosse um tolo e agora sei que é. Não consegue nada com
nenhuma das duas.
— Quando eu precisar da sua lógica norueguesa — disse Cole, asperamente —, eu peço.
— É, eu sei! — Olie balançou a cabeça loura, como se estivesse lamentando o problema do patrão.
— Desta vez o senhor se enredou de verdade. — Bateu com a mão fechada na mesa e antes que
Cole pudesse dizer alguma coisa, gritou para o homem do bar: — Sweyn! Traga a garrafa e dois
copos pequenos.
Imediatamente uma garrafa de uísque de idade duvidosa e dois copos foram levados para a mesa.
Quando o homem se afastou, Olie dispensou a Cole mais um pouco da sua sabedoria.
— Quando me sinto bem, eu tomo cerveja. Quando tenho problemas com mulheres, preciso de
alguma coisa mais forte para aparar as arestas.
Cole ergueu a sobrancelha, surpreso.
— O problema não é seu!
Erguendo os ombros e abrindo as mãos sobre a mesa, Olie disse:
— O senhor tem problemas... eu tenho problemas.—Tomou uma dose de uísque, acompanhada por
alguns goles de cerveja.
Cole fez o mesmo e com espanto teve a impressão de ter engolido fogo. Apanhou a jarra de cerveja,
para aliviar a garganta.
— Isso chega! — disse com voz rouca, afastando o copo.
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— Não, não! Duas mulheres é problema demais para um único drinque. — Olie serviu outra dose
grande, e a garrafa estava quase vazia quando Cole cobriu o copo com a mão, para parar com o
uísque.
— Mulheres podem deixar um homem numa sobriedade dos diabos — resmungou Cole. —
Especialmente aquela coisinha fofa com quem casei, e é uma pena desperdiçar uísque tão bom. —
Levantou-se e ficou imóvel por um momento, esperando que o mundo parasse de girar, enquanto
Olie enfiava a garrafa carinhosamente debaixo do braço antes de caminhar para a porta. Antes de
sair, num momento de lucidez, o cocheiro gritou para o homem do bar que era para pôr na conta do
dr. Latimer. Cole se encolheu com o berro de Olie perto do seu ouvido. Começava a pensar que
subestimara a força do uísque do cocheiro, mas conseguiu acompanhá-lo com tranqüila dignidade.
Foi uma longa viagem de volta, talvez porque Olie resolveu dar voltas pela cidade com o cavalo a
passo muito lento. O frio cortante do ar ajudou a dissipar um pouco os vapores da cabeça de Cole,
mas a dor leve e insistente, que ia e vinha, atrás dos seus olhos, era uma prova evidente de que aquela
bebida não era para qualquer um. Para piorar as coisas, Miles o esperava com más notícias.
— O dr. Darvey está aqui, senhor. Não sabíamos a que horas o senhor ia voltar e finalmente a
senhora resolveu começar a jantar sem a sua presença.
A irritação de Cole cresceu quando viu Braegar sentado à direita de Alaina, enquanto que ele teve de
atravessar a sala para sentar-se na outra extremidade da mesa.
— Mande Annie tirar essas malditas batatas da mesa! — rugiu Cole, descarregando sua ira na
primeira coisa inanimada que apareceu.
Annie abriu a porta da cozinha, vermelha como uma beterraba, e mais do que furiosa.
— Gente como o senhor, insultando a boa comida irlandesa. Considerando que não passa de um
pobre imigrante alemão, senhor, acho que posso entender.
— Austríaco! — corrigiu Cole, de cara fechada.
Annie enfrentou o olhar de Cole e empurrou o prato de batatas para perto dele.
— Se soubesse o que é bom para o senhor, tratava de pôr um pouco de carne debaixo dessa pele,
comendo um bom prato de batatas.
Cole olhou para ela como se Annie tivesse perdido o juízo. Alain a
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o conhecia o bastante para saber que aquela briga não acabaria bem. Levantou-se rapidamente,
apanhou o prato de batatas e, depois de entregá-lo a Annie, conduziu a cozinheira gentilmente para
fora da sala.
— Acho melhor não contrariá-lo esta noite, Annie. Sem dúvida a perna o está incomodando outra
vez. — Alaina não sabia se era isso ou não, mas serviu para aplacar a fúria de Annie, que se limitou a
fungar uma ou duas vezes, indignada. Quando voltou para a sala a sra. Garth estava pondo na mesa
os copos e a garrafa de cristal com conhaque. Alaina já notara a tendência da governanta para servir
grandes doses de bebida. O dr. Latimer já bebera muito nessa noite e não precisava de nenhum
reforço. Aproximando-se da mesa, Alaina disse:
— Pode deixar que eu faço isso, sra. Garth. Veja se Annie precisa de ajuda na cozinha.
Inclinando levemente a cabeça, a governanta obedeceu. Comparada com a generosidade da sra.
Garth, a dose servida por Alaina era simplesmente bem reduzida. Pôs o copo na frente do marido,
sentindo o olhar atento dele.
— Annie está esquentando sua sopa — murmurou ela. — Quer um pouco de café?
Cole disse que sim, só para mantê-la por mais tempo ao seu lado. Alaina cheirava a frescor e
suavidade, combinados com uma essência que sempre o excitava. O cabelo, preso na nuca, descia
pelas costas numa cascata de cachos soltos, e até o vestido de musselina cor de vinho, de gola alta,
parecia muito elegante à luz das velas.
— Onde está Mindy? — perguntou Cole.
— Você se atrasou tanto! Ela jantou e foi dormir. Desapontado e um tanto irritado, Cole a viu voltar
para a outra extremidade da mesa e sentar-se ao lado de Braegar. Durante o jantar, Alaina percebeu,
apreensiva, a irritação crescente do marido e rezou Para que a tempestade não desabasse antes de ser
dominada. Braegar também o observava, perguntando a si mesmo se devia tocar no assunto que
provocara a briga na noite da festa. Talvez só assim descobrisse o que atormentava Cole. Mas,
percebendo o estado de espírito do amigo, resolveu deixar para outra ocasião.
— Nunca disseram a vocês dois que é falta de educação ficar olhando para um aleijado? —
perguntou Cole, tomando um gole de conhaque.
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Cole terminou de jantar em silêncio, tomando mais café do que conhaque. Logo que saíram da mesa,
Braegar disse que precisava ir e Alaina foi com ele até o hall, demorando apenas o tempo necessário
para perceber o olhar furioso do marido. Depois, subiu para seu quarto. Cole subiu para o dele e
bateu a porta com força, resmungando alguma coisa sobre uma casa cheia de mulheres rabugentas.
Ele atirou o casaco na cadeira e nesse momento a porta do banheiro se abriu e Cole viu Alaina,
furiosa, desabotoando a manga do vestido.
— O senhor foi extremamente grosseiro. Houve certas vezes em que cheguei a ter dúvidas a seu
respeito, mas depois desta noite estou convencida. O senhor é o homem mais grosseiro e mal-
educado que já conheci!
Dando meia-volta, Alainafoi para seu quarto. Mas Cole não estava disposto a deixar passar o insulto
e foi atrás dela, claudicando e com uma expressão que anunciava tempestade.
— A senhora me chama de grosseiro, mas assim que dou as costas convida aquele palerma para a
minha casa e passa um bom tempo com ele. — Arrancou a gravata e começou a desabotoar o colete.
— A senhora o faz sentar-se à minha mesa e serve a minha comida. Minha senhora, devo dizer que
seu julgamento do caráter de um homem deixa muito a desejar! Aquele idiota vale-se de qualquer
desculpa para farejar minha casa quando estou ausente! E a senhora o convida, sabendo o que sinto!
— Voltou para seu quarto, deixando Alaina boquiaberta, olhando para a porta.
— Julgamento de caráter! — repetiu ela. Tirou o vestido e o atirou para dentro do armário. Depois
refez o caminho que começava a se tornar uma trilha muito batida, do seu quarto ao de Cole,
desamarrando os cordões da anágua. — Eu o convido! O que quer dizer com isso? — perguntou ela.
Cole andava de um lado para o outro, desabotoando o colarinho e a camisa.
— É claro que ele sabia que eu não estava em casa.
— Ele veio para falar com o senhor! — explicou ela, zangada— E ficou até sua chegada! Quando se
tornou aparente que o senhor não estava disposto a conversar, ele se foi. Acha isso questionável,
senhor, ou imagina que se trata de um caso de amor ilícito? Vai dizer outra vez que foi enganado?
Alaina tirou a anágua, voltou para o quarto e tirou do armário a camisola e o roupão velhos e muito
remendados. Cole voltou para a
490
Porta do quarto dela, tirando a camisa de dentro da calça. Com o peito nu, encostou-se no batente.
Alaina o ignorou. Cole sabia que estava sendo absurdo, mas se lançou de cabeça na insensatez.
— A senhora conquistou muitos admiradores, mas neste caso não teve o bom senso de perceber o
que aquele aproveitador está querendo.
Sentindo-se insultada, Alaina jogou a camisola e o roupão sobre a cama. Com as mãos na cintura,
desfechou sua cruzada contra a acusação ridícula e tola, sem lembrar que estava só de combinação,
calças e espartilho. Na verdade, aqueles trajes poderiam servir como a armadura mais galante numa
justa diferente, se tivesse pensado por um segundo em como estava vestida.
— Eu estava muito bem acompanhada, senhor! Os seus criados podem atestar minha conduta.
Pergunte a Annie, Miles, Peter ou à sra. Garth! Pode perguntar a todos eles, se tem dúvida sobre a
minha conduta na sua ausência.
— Conduta! Ah! Sentada à mesa, deixando que ele se babasse todo para o seu lado! Quanto aos
criados, começo a pensar que todos eles mentiriam para protegê-la! — Tirou a camisa e voltou para
seu quarto.
Alaina foi atrás dele.
— Mentir para me proteger! Sua mula cabeçuda! Eles são seus servos fiéis! Passaram a tarde toda
procurando desculpar sua ausência, e de modo tão insistente que, se eu fosse do tipo desconfiado,
pensaria que o senhor foi procurar alguma mulher da rua!
Cole atirou a camisa para longe, prendeu o pé da calçadeira e começou a tirar a bota.
— E se fosse verdade? — desafiou ele. — Por acaso recebi favores nesta casa suficientes para
satisfazer meus desejos normais?
Cole sentou-se na cama para tirar a outra bota.
— Muito bem, dr. Latimer, apressou-se em enviar seu representante com os termos do contrato!
Pois agora pode cozinhar no caldo que temperou!
Alaina voltou para o quarto e atirou para longe o sapato, fervendo de indignação. A coragem dele,
acusando-a de negar seus favores, quando partira dele...
— Por acaso tem medo de ver Al desembarcar no porto, major? " Perguntou ela, em voz alta.
Sentou-se na frente da penteadeira, tirou
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as meias e as deixou no chão. — Reclama tanto das suas próprias restrições. Certamente esperava que
eu não fosse digna da sua atenção
— Oh, eu sabia que era digna, certamente — sua voz atravessou o banheiro e as duas portas abertas.
— Foi seu jogo que me levou à armadilha. Se não fosse pela senhora, eu jamais teria casado com
Roberta.
Alaina levantou-se da banqueta e descalça atravessou o banheiro.
— E o senhor nem por um momento desconfiou que podia ter sido outra pessoa!
Cole ergueu as mãos, exasperado.
— Como eu ia saber? Pensei que só havia duas mulheres naquela casa. — A roupa de baixo justa
modelava o corpo alto e musculoso, acentuando o volume da sua masculinidade. Erguendo uma
sobrancelha, perguntou: — Acha que eu devia dar o crédito à sua tia, minha querida?
— Oooooh! É mesmo um desclassificado! — exclamou ela, voltando pela trilha muito batida para
seu quarto.
— Talvez devesse pôr a culpa naquele cara suja do Al — disse ele, mas desistiu do argumento com
um gesto. — Absurdo, eu teria pensado, sem saber que Al era uma mulher disfarçada de garoto.
Como nunca poderia imaginar uma senhora de família disfarçando-se em mulher da rua e
representando o papel com tanto entusiasmo.
Com uma exclamação indignada, Alaina foi atrás dele quando Cole voltou para o quarto. Se ele
pensava que ia ficar com a última palavra, estava muito enganado. Ignorando os ombros largos e as
costas nuas, segurando o cotovelo dele, ela o fez virar de frente.
— Para sua informação, senhor, não representei papel nenhum com entusiasmo.
— Foi ao meu quarto com muita disposição.
— O senhor estava bêbado e fiquei com medo que acordasse a casa toda e levasse um tiro.
— Muito bem! Devo ser grato pelo que fez, então? — Deu as costas e disse, por sobre o ombro: —
Importa-se se eu disser que não fiquei exatamente feliz por ser deixado a cargo de Roberta.
Alaina bateu com o pé no chão, impaciente, e voltou para o quarto.
— Parecia tão ansioso para conferir a ela todas as honras! Como eu podia impedir o casamento? Se
dissesse alguma coisa, na certa estaria agora apodrecendo numa das suas imundas prisões ianques.
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-— Então, resolveu salvar a própria pele — zombou ele, do outro quarto.
Irritada, Alaina passou a mão com impaciência pelas anáguas jependuradas no guarda-roupa.
— E o senhor quer me conquistar com belos vestidos e jóias valiosas! — Atravessou o banheiro para
ver a reação dele.
Cole atirou a calça no armário. A pequena provocadora com mentalidade de virgem! Vou fazer com
que compreenda a importância do que ela começou.
Encontraram-se ao lado da banheira, prontos para a luta.
— Talvez conheça mulheres que se vendem por tão pouco, major, mas eu não estou à venda!
Cole riu, zombando:
— Se é uma questão de preço, o que me diz do medalhão que está usando?
Era demais, pensou Alaina. Devolveria imediatamente aquela coisa! Com um gesto brusco tirou o
cordão pela cabeça e, sem querer, acertou com ele o rosto de Cole. Ela estava com os braços
levantados, e Cole pensou que ia ser agredido. Para evitar o ataque, segurou-a pela cintura e a puxou
para ele.
A força do abraço sufocou Alaina e ela sentiu o corpo musculoso contra o seu através da pouca
roupa que vestia. Entreolharam-se por um segundo e o tempo parou por uma eternidade. Então
lentamente, quase com hesitação, Cole aproximou os lábios dos dela.
O beijo leve e delicado transformou-se numa chama ardente. A raiva era agora uma fome
avassaladora. Acordos e contratos foram incendiados pela chama branca dos desejos mútuos. Tudo
voltou de repente, o fogo da paixão reacendido, os desejos ávidos despertados. Cole sentiu nos
braços o corpo daquela noite quase de sonho.
Alaina apertou o corpo contra o dele, consciente dos seus desejos, sabendo o que ele queria. Esperou
pelo brado de negação dos profundos recessos da sua mente, mas só ouviu o silêncio, como se sua
consciência a observasse com jovial aprovação.
Cole afastou-se um pouco com uma interrogação muda nos olhos azuis. Ela ia se negar outra vez? Ia
deixá-lo arder novamente no calor do desejo não-satisfeito?
O medalhão deslizou para o tapete quando Alaina, na ponta dos Pés ofereceu os lábios sedentos e
enlaçou o pescoço dele com os braços macios, com uma avidez que o surpreendeu, sem nenhuma
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intenção de recusar o que ele tanto desejava. Aquele era Cole — 0 homem. Aquela era Alaina — a
mulher. Nem a mais leve sugestão de Al os separava agora, e cada um via o outro como o objetivo há
tanto tempo e tão ansiosamente desejado. Os lábios se encontraram com uma urgência impaciente e,
abraçados, deixaram-se dominar pela força da paixão.
Murmurando palavras ininteligíveis, Cole beijou com ardor o pescoço delicado e a parte superior dos
seios, inclinando-a um pouco para trás, apoiada no seu braço, enquanto que com a outra mão
acariciava as nádegas e as coxas bem torneadas. Sentia uma urgência de conhecer e tocar cada parte
daquele corpo, possuí-lo inteiro, acariciar com os lábios a pele macia. Com os dedos entre os seios
dela, abriu a combinação até a parte superior do espartilho, expondo a perfeição tantalizadora dos
seios redondos aos seus olhos e suas mãos. Ondas de prazer percorriam o corpo de Alaina. Cole
inclinou-se e a tomou nos braços, com um olhar tão intenso que a deixou sem fôlego. Então, os
olhos azuis saciaram-se com a visão daquela seminudez. Um gemido escapou dos lábios de Alaina
quando os lábios dele acariciaram a ponta rosada e ereta do seu seio. A língua dele era uma tocha
ardente e todo o corpo de Alaina estremecia de prazer. Encostou o rosto no dele e com a ponta da
língua delineou sua orelha. Cole virou o rosto e mais uma vez seus lábios encontraram os dela com
uma avidez partilhada por ambos.
Vagamente, Alaina notou o tremor nos braços dele quando a carregou para a cama. Estavam
sozinhos num mundo só deles, longe dos lampiões acesos, dos galhos desnudos que batiam na
janela, do crepitar do fogo na lareira. Até o ferimento de Cole foi esquecido, pois não parecia
prejudicar em nada seus movimentos.
Sob a borda da pesada tapeçaria do dossel da cama, Cole retirou o braço, as pernas de Alaina
deslizaram ao longo do corpo dele, e antes dos seus pés tocarem o chão, o espartilho se abriu até a
cintura. Cole inclinou a cabeça para saborear o doce néctar dos lábios macios e sua língua perseguiu a
dela num jogo provocante. As alças da combinação foram abaixadas dos ombros, e Alaina
estremeceu de prazer quando as mãos de Cole pousaram sobre seu seio, descendo lentamente para
abaixar a calça larga que ia até os joelhos, fazendo-a deslizar para o chão. Com a mão entre os dois,
Cole tirou sua roupa de baixo e o contato da sua masculinidade renovou e repetiu a excitação sentida
por Alaina naquela primeira noite.
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Como duas plumas apanhadas pela brisa, deslizaram para o conforto macio da cama, os lábios
unidos, as respirações se confundindo. AS mãos de Cole acariciaram o corpo dela demoradamente,
com uma leveza ousada que a deixou sem ar. Suas coxas estremeceram e cederam ao toque dos dedos
dele, e um prazer imenso a envolveu. Sua respiração era rápida e superficial, e o coração batia num
ritmo selvagem.
— Oh, Cole — suspirou ela, com voz trêmula. — O que está fazendo? Isto é uma forma de tortura
que inventou para mim?
-— Não é tortura — respondeu ele, com voz rouca. — Isto é amor, o amor que fazemos juntos.
— Então quero que me ame mais — pediu ela. — E deixe que eu o ame. — Com dedos hesitantes,
acariciou a cicatriz na perna dele. — É permitido... tocar em você?
Contendo a respiração, Cole levou a mão dela ao membro ereto onde pulsava o sangue ardente do
seu desejo. Quando os dedos frios e delicados o tocaram, foi como se todo o seu corpo estivesse
derretendo ao calor de chamas irresistíveis. Cole estremeceu, ergueu o corpo sobre o dela, e pondo-
se entre suas pernas, a penetrou, com os músculos do seu abdome acariciando ternamente os dela.
Foi uma fusão. Um encontro perfeito. Homem e mulher. Marido e mulher. Suavidade cedendo à
força da masculinidade. Encantamento transformado em êxtase. Corpos movendo-se e deliciando-se
juntos. Dois seres unidos na felicidade pura da sua união, ávidos e descontraídos, entregando e
recebendo mutuamente muito mais.
E, como acontecera antes, viera aquilo que fazia do seu ato de amor algo único e sem igual.
Enquanto as ondas de puro prazer físico percorriam seu corpo, Alaina percebia que aquele era um
néctar especial de amor. Cole sabia. Era exatamente o que dominara sua mente durante todos aqueles
meses e agora ele a inundava com sua seiva, gemendo, estremecendo, alcançando sua alma, fundindo
os corpos ardentes na consumação mais perfeita do prazer.
Uma fina película de suor cobria seus corpos abraçados e imóveis, depois do amor, a paixão saciada,
os músculos exauridos. Cole virou o rosto para o cabelo de Alaina, espalhado sobre seu ombro, e
inalou o Perfume delicioso, lembrando as muitas noites de tortura, quando não conseguia tirá-la do
pensamento. Havia muito tempo ele sabia que alaina era o catalisador que agitava seu desejo, até
todo o seu corpo arder em chamas. Durante todos aqueles meses ele ardia de desejo —
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mas era só por ela. Agora, saciado, maravilhava-se com a totalidade do seu contentamento.
A temperatura abaixo de zero, depois de uma névoa pesada, desnudara completamente os galhos das
árvores, vestindo a paisagem com uma profusão de cristais, que cintilavam e dançavam sob o sol
nascente, cujos raios tímidos entraram no quarto para despertar a mulher. Alaina se espreguiçou
sensualmente sob o conforto do acolchoado de penas e só depois percebeu que estava sozinha na
cama. Sentou-se, segurando as cobertas contra o peito e olhou para o quarto vazio. O fogo crepitava
na lareira, expulsando o frio, mas era um pobre substituto para o calor do corpo de Cole. Então
ouviu ruídos tranqüilizadores que vinham do banheiro. Enrolada num lençol, ela correu descalça
pelo chão de tábuas de carvalho e encontrou Cole deliciando-se com um banho quente. Alegre,
quase provocante, ela inclinou-se e o beijou de leve na boca, fazendo-o lembrar a mulher tímida e ao
mesmo tempo ousada da noite anterior. Cole estava completamente apaixonado por aquela criatura
luminosa que entrara em sua vida. Havia mais mulher em Alaina do que ele jamais imaginara, sem a
atitude calculista de Roberta, mas com uma naturalidade essencialmente provocante. Saboreou a leve
carícia dos lábios dela e suspirou quando se afastaram dos seus. Com um sorriso maroto, e um olhar
que o deixou sem fôlego, Alaina o examinou atentamente.
— Precisa de ajuda, ianque?
— Para falar a verdade — disse ele, passando o braço pelo pescoço dela e puxando-a para ele, para
outro beijo. — Estou precisando urgentemente de companhia feminina.
Cole puxou o lençol que a cobria e a levou para cima do seu corpo, beijando avidamente sua boca e
seus seios.
— Finalmente — murmurou ele, com voz rouca, com os lábios no pescoço dela —, minha ameaça
de lhe dar um banho se concretiza. Mas nunca pensei que ia ser uma coisa tão agradável.
496
-Capítulo Trinta e Sete
Xanthia MORGAN desceu da sua modesta carruagem com a ajuda do cocheiro e, parando nos
degraus da entrada da casa dos Latimer, olhou para o céu escuro que parecia quase pousar no
telhado. Seu hálito era como uma geada no ar frio, e o vento gelado do norte açoitava seu rosto.
Precisava concluir rapidamente o que viera fazer ali se quisesse voltar para St. Cloud antes da
tempestade.
O mordomo abriu a porta, e ela sentou-se no sofá da sala e esperou que Alaina aparecesse. Naquela
manhã, ela vira Cole passar pela cidade, sozinho, na carruagem pequena de quatro rodas, e achou que
era uma boa oportunidade para conhecer a jovem recém-casada. Pelo menos teria a vantagem da
surpresa. Alaina estaria completamente despreparada.
Tirando as luvas, Xanthia examinou a sala. O gosto de Roberta tendia sempre para o vulgar e a
decoração exagerada e supérflua combinava com ela. É claro que a nova sra. Latimer não tivera
tempo para fazer inovações, mas Xanthia estava curiosa para ver se ela era igual à prima. Diziam que
ela era quase uma criança, e segundo Rebelde Cummings, uma jovem muito tímida e simples.
Embora os homens fossem imprevisíveis nos seus gostos, não podia confiar na opinião de Rebelde.
Roberta sempre demonstrava sua arrogância nas muitas visitas
497
que fazia à loja de chapéus. Muitas vezes não hesitava em arrancar um véu, uma flor, uma pena ou
outro ornamento qualquer que a desagradava, quando experimentava um chapéu, para depois
resolver comprar outro completamente diferente.
Passos rápidos soaram no hall, e Xanthia ouviu a voz ansiosa.
— Oh, Miles, quer pedir a Annie para fazer chá?
O relógio bateu as horas, e Xanthia a ouviu dizer, nervosa, em voz baixa:
— Duas horas! Metade do dia já se passou! Por que não me acordaram mais cedo?
Xanthia não atribuiu o atraso a uma noite e uma manhã inteira de amor. Pensou apenas que a nova
sra. Latimer era tão preguiçosa quanto a primeira.
— As ordens do dr. Latimer foram para não perturbá-la, senhora — disse Miles. — E ele pediu para
avisá-la que foi tratar de negócios em St. Cloud e que voltará o mais breve possível.
Com os olhos fixos na porta, Xanthia viu Alaina entrar na sala, com o rosto um pouco afogueado
pela pressa, o que acentuava o cinza-claro dos olhos. Por um momento, as defesas de Xanthia caíram
por terra, pois Alaina era exatamente o que ela mais temia. Não tinha nada da mulher tímida e sem
graça descrita por Rebelde. Era uma criatura exuberante, impetuosa, cheia de alegria de viver.
Embora Xanthia esperasse vê-la com trajes mais luxuosos, o vestido de musselina cor de ameixa, de
gola alta, mangas compridas justas e cintura acentuada era bonito e elegante. Naquele momento,
Xanthia compreendeu a paixão de Cole por Alaina e isso a atemorizou mais do que qualquer outra
coisa no mundo.
— Desculpe-me por fazê-la esperar, senhorita... ah... — Alaina sorriu, esperando.
— Na verdade, senhora. — Era melhor deixar as coisas claras desde o começo. — Sra. Xanthia
Morgan. — Pôs a bolsa e o embrulho que segurava em cima do divã, ao seu lado. — Tem havido
tanto falatório na cidade, Alaina, que eu precisava conhecê-la pessoalmente.
Percebendo o exame atento da mulher, Alaina perguntou, em voz baixa:
— E mereço sua aprovação, sra. Morgan?,..,
Xanthia fez um gesto afirmativo.
— Na verdade, a senhora é muito bonita.
— Permite-me que retribua o cumprimento, sra. Morgan?
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Xanthia não sabia ao certo como continuar.
— Suponho que esteja curiosa a meu respeito. - Alaina inclinou levemente a cabeça. — É amiga do
meu marido?
A mente de Xanthia procurou algo em que se agarrar, como se estivesse dentro de areia movediça.
Apergunta tirava a força do ataque que imaginara, e a resposta foi banal.
— Tenho uma loja em St. Cloud. Cole a comprou para mim. Xanthia calou-se quando Miles entrou
com o chá. Se esperava detectar alguma emoção em Alaina, ficou desapontada.
— Meu marido é um homem de atividades variadas, muitas das quais eu desconheço ainda, sra.
Morgan — respondeu Alaina, suavemente. — Deve me perdoar por não ter ouvido falar da sua loja.
Ele raramente fala sobre seus negócios.
Xanthia esperou que Miles saísse da sala. Declinando o oferecimento de açúcar e creme, aceitou a
xícara de chá servida por Alaina.
— Conheço Cole há algum tempo, cerca de uns sete anos. Alaina desviou os olhos do olhar curioso
da mulher e tomou um gole de chá. De repente desejou estar usando um dos maravilhosos vestidos
comprados por Cole e ter dado mais atenção ao cabelo, em vez de deixá-lo solto naturalmente sobre
os ombros. Xanthia estava artisticamente penteada, o vestido de seda marrom era fino e de bom
gosto, e o chapéu e o regalo cor de areia combinavam elegantemente com ele. Procurou
desesperadamente dominar a apreensão.
— Sra. Morgan... — começou ela, como quem vai fazer uma pergunta.
— Xanthia, por favor. Não me chamam de sra. Morgan desde que enterrei meu falecido marido. E
posso garantir que tenho poucas lembranças boas dele.
Alaina ergueu as sobrancelhas, um tanto surpresa, mas delicadamente não fez nenhuma pergunta.
— Oh, não é segredo — disse Xanthia, dando de ombros. Com a voz um tanto velada, continuou:
— Todos na cidade sabem como era meu casamento com Patrick Morgan. Ele era um bêbado, um
jogador, um safado. — Passou a unha longa na borda da xícara, lentamente. — Eu era de boa
família, compreende, e nunca havia conhecido ninguém como Patrick Morgan. Apaixonei-me
loucamente por ele, casei, contra a vontade dos meus pais, e vim com ele para cá. Oh, eu o teria
a
companhado até o fim do mundo, no primeiro mês do nosso casamento.
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Com um profundo suspiro, lembrou as vezes que Patric a espancara. — Fiquei grávida logo nos
primeiros meses, mas meu marido não queria aquela responsabilidade. — Fez uma pausa para
controlar o tremor da voz. — Quando minha gravidez se tornou evidente, ele começou a andar com
outras mulheres. Depois de uma noite de farra, ficou mais violento, e como resultado perdi a criança.
Eu teria morrido se uma amiga não me levasse a um médico jovem e competente. — Depois de uma
longa pausa, ela murmurou: — Foi assim que conheci Cole. Algumas horas depois, retiraram o corpo
do meu marido do rio. As testemunhas contaram que ele saiu nadando com seu cavalo para alcançar
a balsa, mas estava muito bêbado e foi vencido pela correnteza.
Alaina cruzou as mãos no colo.
— Por que está me contando isso, sra. Morgan?
Xanthia pôs a xícara no pires e deixou que suas palavras caíssem como um peso morto sobre Alaina.
— Desde então, conheço Cole tanto quanto uma mulher pode conhecer um homem.
— Oh? — Pondo a xícara na mesa, na sua frente, Alaina perguntou, com fingida surpresa: — Foi
casada com ele?
Com relutância Xanthia balançou a cabeça. A pergunta foi feita com timidez e hesitação.
— A senhora o conheceu antes de Roberta?
Xanthia reuniu toda a sua coragem.
— Sim.
Alaina olhou para as mãos no colo e girou o anel do seu dedo anular.
— Ele casou duas vezes desde que a conheceu?
Xanthia não tinha resposta para essa pergunta. Pelo menos não uma resposta que quisesse dar a si
mesma.
— Eu amo Cole.
Alaina lutou contra o conflito que cresceu dentro dela, e com um sorriso suave e tristonho apanhou a
xícara outra vez. Depois de um momento ergueu os olhos:
— Então, acho que não somos muito diferentes, sra. Morgan. porque eu também o amo.
!:
— Como é possível? Mal o conhece! — disse Xanthia, angustiada. Alaina deu de ombros.
500
— Eu o conheço tanto quanto a senhora, sra. Morgan. Talvez não jjá tanto tempo, mas tão bem
quanto a senhora o conhece.
O coração de Xanthia se apertou em desespero. Censurou-se por não ter agido com mais calma, mas
estava lutando por algo essencial para a sua felicidade. Deliberadamente abriu a bolsa e tirou um
maço de notas.
— Se é uma questão de dinheiro, eu lhedarei tudo de que precisar. Seja qual for seu... acordo com
Cole, eu a recompensarei regiamente se o deixar para sempre.
— Guarde o seu dinheiro, sra. Morgan — murmurou Alaina. — Não pretendo desistir do meu
marido por causa do capricho de outra mulher. Já passei por isso antes e lutarei com todas as minhas
forças para evitar que aconteça outra vez.
Xanthia guardou o dinheiro com um gesto brusco de revolta. Ia ser mais difícil do que imaginara.
— Cole me contou que a senhora salvou a vida dele. Evidentemente, ele acha que lhe deve alguma
coisa.
— Por salvar sua vida. — Alaina tomou um gole de chá, sen sentir o gosto. — Eu diria que é por
algo mais pessoal e mais íntimo.
Xanthia não conseguiu esconder sua exasperação.
— Tem coragem de prender um homem pelo que ele lhe deve? Alaina enfrentou a raiva evidente da
mulher, aparentando uma segurança que não sentia.
— Ele é meu marido, para ter e guardar, não é?
Xanthia sentiu o sangue subir ao rosto, com a revolta da derrota. Respirando profunda e lentamente,
partiu para o plano seguinte.
— Alaina, vejo que é uma mulher inteligente e bastante orgulhosa. As pessoas por aqui ressentem-se
por Cole ter escolhido uma sulista. Não o aceitarão e nem a você.
— Nesse caso, acho que conheci um grupo de pessoas insignificantes que gostam de Cole a despeito
dos seus dois casamentos — respondeu Alaina, com calma. — E parecem extremamente gentis.
Xanthia levantou-se, empertigada, e apanhou o pacote que estava sobre o sofá.
— Quer dar isto a Cole? Encontrei depois que ele saiu, ontem. — desfez o embrulho, revelando uma
camisa branca de seda. — Lavei e passei, como ele gosta.
— Meu marido sempre foi descuidado com suas roupas — riu Alaina. — Certa vez ele perdeu uma
farda inteira... e o pior é que
501
estava vestido com ela! Lá estava ele, de ceroulas, e tive de levá-lo às escondidas para a casa do meu
tio. Mas vou avisá-lo para ter mais cuidado. Uma coisa dessas pode comprometer sua reputação.
Quase comprometeu a minha.
Com os lábios brancos, Xanthia colocou as luvas e dirigiu-se para a porta, com passos rígidos.
— Eu a verei novamente, sra. Morgan?—perguntou Alaina, com delicadeza.
— Duvido — respondeu Xanthia, com voz surda. — Adeus, Alaina.
Logo depois da partida de Xanthia, o relógio bateu as três horas. Pouco antes das quatro, Mindy
chegou na porta da sala, mas resolveu não perturbar Alaina, que parecia muito ocupada com os
próprios pensamentos. Alaina continuava imóvel quando o relógio bateu a meia hora e não se moveu
nem quando ouviu a carruagem parar na frente da casa. Nem quando Cole chamou Peter para levá-la
para o estábulo. Nem quando ele entrou, batendo a porta, e perguntou a Miles onde estava sua
mulher. Só quando Cole entrou na sala, Alaina levantou-se da cadeira, apanhando o pacote deixado
por Xanthia. Deu um passo para o marido e atirou a camisa no rosto dele, apagando o sorriso dos
seus lábios.
— Sua amante deixou isto para você — disse Alaina, quase gloriosa na sua raiva. Outro passo e a
pequena mão fechada atingiu o estômago de Cole, com força, um pouco acima do último botão do
colete.
Apanhado de surpresa, Cole ficou sem ar.
— E isto é o meu presente, ianque!
Apanhou o xale na cadeira e passou rapidamente por ele, depois por Miles, que ficou parado,
boquiaberto, e saiu para a varanda.
— Alaina! — Cole recuperou a voz, quando a viu sair da casa. — Alaina, volte aqui!
Quase às cegas, Alaina desceu os degraus e correu pela entrada das carruagens. Assim que deixou a
proteção da casa, o vento gelado, com granizo, açoitou seu rosto com tamanha violência que ela mal
podia respirar. Alguma coisa, no fundo da sua mente, advertia qu e estava cometendo um erro, que
não estava vestida para enfrentar aquele tempo. Mas a raiva susperou a razão, e ela continuou. Pa ra
qualquer lugar, menos de volta àquela casa!
Viu a cabeça de Peter desaparecer no topo da colina. Era uma
502,
direção tão boa quanto qualquer outra, pensou. Correu atrás dele, sentindo o frio do solo gelado nos
pés.
A dor aguda no lado a fez diminuir o passo. Lá adiante, Peter entrou no caminho que levava ao
estábulo e desapareceu. A encosta tornou-se mais íngreme, e Alaina procurou andar mais depressa.
Ouviu o toque urgente do sino da casa. Uma vez! Duas! Alaina apressou o passo. O sino tocou
novamente. Duas badaladas urgentes, impacientes. Ouviu o assobio de Peter, incitando o cavalo ao
galope. Uma sensação de medo a envolveu. Não podia deixar que a vissem! Cole iria atrás dela se
soubesse onde estava. Saiu da trilha e escondeu-se atrás de uma moita de arbustos. A charrete passou
veloz por ela, com Peter inclinado para a frente, balançando as rédeas sobre o dorso do animal.
Assim que ele passou, Alaina voltou para a estrada estreita. Então viu a sombra escura entre as
árvores. Aantiga casa dos Latimer. Ficaria ao abrigo do frio e talvez livre dos que a procuravam.
Alaina tremia de frio, e embora os arbustos a protegessem um pouco do vento, precisava de algo
mais quente.
Entrou na casa e fechou a porta pesada. No hall escuro e silencioso, viu as portas que levavam aos
outros cômodos. No fim do corredor que atravessava a casa no sentido do comprimento, uma
grande janela delineava o corrimão de uma escada. Só o silvo lamentoso do vento e o arfar da sua
respiração quebravam o silêncio tumular da velha casa. Alaina abriu algumas portas. Em todos os
cômodos, os móveis, cobertos com panos brancos, eram como pálidos fantasmas, sem nenhuma
promessa do calor que ela procurava. Voltou para o hall e com dedos trêmulos abriu a porta dupla ao
lado da entrada. Viu uma sala mais clara, iluminada pela fraca luz do inverno, mas sua primeira
impressão foi de que uma força destruidora acabava de passar por ali. Cadeiras caídas, papéis
espalhados, livros encapados com couro retirados das estantes. No meio da desordem, a grande
lareira parecia um oásis de conforto. Precisava se aquecer ou voltar imediatamente para a casa na
colina. Seu orgulho escolheu a primeira alternativa.
A caixa estava cheia de lenha e de gravetos. Com as mãos dormentes de frio, Alaina procurou no
aparador sobre a lareira alguma coisa para acender o fogo. Seus dedos tocaram um objeto frio de
metal. Era uma pequena caixa que ela abriu e deu um suspiro de alívio. Uma Pederneira.
Logo as chamas amarelas e cor de laranja envolveram as achas de
503
lenha postas sobre os gravetos secos. Alaina estendeu as mãos sobre o fogo, sentindo as alfinetadas
do sangue que voltava a circular no s dedos gelados. A noite de inverno descia rapidamente sobre a
casa e só a luz do fogo afastava as sombras. Alaina resolveu acender um lampião, certa de que as
moitas e as árvores que envolviam a velha casa não deixariam passar a luz.
Aquecida, olhou em volta, curiosa. Viu estantes altas, com portas de vidro, como as que havia no
hospital, na frente de uma mesa longa e baixa. Uma delas continha instrumentos de metal, outra,
frascos e garrafas, caixas e latas, cuidadosamente etiquetados. Uma terceira continha ataduras e
compressas. A sala parecia um consultório médico, certamente o primeiro de Cole e do pai.
Sobre a lareirapendia o retrato de uma mulher muito parecida com Cole, evidentemente sua mãe. E a
madrasta? Alaina olhou em volta. Nenhum sinal de outra mulher. E não havia retratos na casa da
colina.
Alaina levou uma poltrona e uma mesa pequena para a frente da lareira. Depois se sentou na cadeira
de couro de costas retas e, quase sem pensar, a aproximou da mesa de trabalho sob a janela. Uma
pequena miniatura, sobre a mesa, chamou-lhe a atenção. Estava semi-escondida atrás de uma pilha
de papéis e uma balança de bronze. Apanhou a miniatura, sacudiu-a para tirar os cacos de vidro
quebrado e a aproximou da luz.
A fotografia estava quase totalmente destruída, mostrando apenas um corpo de mulher com vestido
longo e escuro e um avental engomado. Alaina retirou os últimos cacos de vidro presos ainda à
moldura e outra vez a levou para a luz. Com surpresa viu um rosto muito parecido com o seu. Olhou
para o retrato, lembrando. Nos últimos dias da convalescença de Cole um fotógrafo estivera no
hospital e a fotografou ao lado de alguns feridos. Aparentemente Cole conseguira uma cópia.
A fotografia tinha uma marca, como se alguém tivesse tentado parti-la ao meio. Alaina quase podia
sentir a raiva cega que se abatera sobre aquela sala, imaginando se toda aquela destruição fora dirigida
apenas à sua pessoa.
— Sua tolinha! — A voz ecoou na sala.
Alaina voltou-se rapidamente, com uma exclamação de medo e quase desmaiou de alívio quando
reconheceu o vulto alto do marido na porta. Procurando dominar o tremor e as lágrimas, ela se
apoiou na mesa com uma das mãos sobre o coração disparado.
504
— Pelo amor de Deus, Cole! — reclamou com voz fraca, recobrando sua indignação. — Será que
sempre tem de quase me matar de susto? Não podia ter anunciado sua presença de modo mais
gentil?
— E dar tempo a você para fugir outra vez? — perguntou ele, zangado. — Não se preocupou com
meu cuidado por sua segurança.
— Eu já disse antes. Sei cuidar de mim. Cole atirou a capa de peles na cadeira.
— Este não é o inverno suave do sul, meu amor, e acho melhor você aprender a respeitá-lo. —
Atravessou a sala, e Alaina notou que mancava de modo mais acentuado e estava sem a bengala.
Parou na frente dela, tirou as luvas e continuou: — É muito doloroso perder os dedos das mãos ou
dos pés, Alaina, e é fácil perder a vida exposta aos ventos gelados. Só um tolo aventura-se fora de
casa, quando se anuncia uma tempestade ou uma chuva de granizo, sem estar bem protegido contra
o frio.
O espírito de Alaina, por demais castigado naquela tarde, não tinha mais defesas.
— Como me encontrou?
— Vi as fagulhas saindo da chaminé. Se olhar pela janela verá que uma chuva de granizo está
cobrindo tudo de gelo. Eu ia voltar para casa e pedir a ajuda dos criados para encontrá-la, quando,
por acaso, olhei para este lado.
— Aceito a censura, meu senhor — respondeu ela, com o tom submisso de um escravo. — Devo
voltar para a casa ou esperar... à sua disposição... aqui mesmo?
Cole ignorou aquela humildade excessiva e Alaina, sem erguer os olhos, não viu o sorriso zombeteiro
nos lábios dele. Notando a fotografia que ela segurava, ficou sério e estendeu a mão.
— Uma lembrança muito querida da minha passagem por Nova Orleans — murmurou ele, com voz
distante. — Roberta disse que a tinha jogado no rio, mas vejo que foi outra das suas mentiras. —
Cole pôs a fotografia sobre a mesa e depois pôs mais lenha na lareira, estendendo as mãos para o
fogo.
— Este era o consultório do meu pai. — Com as mãos cruzadas nas costas, ele olhou
pensativamente para o fogo. Sua voz profunda Parecia penetrar as sombras da sala. — Eu costumava
vir aqui para ter um pouco de paz, para pensar, para fugir de — deu de ombros — qualquer coisa que
me aborrecia. — Voltou-se e, desabotoando o casaco, olhou em volta. — Uma semana antes de
morrer, Roberta veio
505
me procurar, mas eu estava na cidade. Ela encontrou sua fotografia e teve um acesso de fúria. —
Com um gesto lento, indicou a desordem que os rodeava. — Conheceu bem Roberta para saber que,
quando voltei, no dia seguinte, ela continuava cheia de raiva — prosseguiu com uma breve risada. —
Miles estava de folga, Annie estava escondida no depósito de frutas e as arrumadeiras do primeiro e
do segundo andar refugiadas nos seus quartos. A sra. Garth era a única que ousava andar pela casa.
Roberta me acusou... e a você, de tramar contra ela — sorriu com amargura. — Queria saber onde
você estava escondida. Alaina estava confusa.
— Mas por que guardou a fotografia?
Cole olhou para ela.
— Você não sabe, Alaina?
O que ela queria acreditar não tinha lógica, não depois da visita de Xanthia Morgan. Alaina virou o
rosto e começou a arrumar os papéis na mesa.
— Roberta sabia sobre a sra. Morgan? — perguntou, com ironia.
— Não — respondeu Cole. — E você também não sabe. Alaina virou-se bruscamente, pronta para
o ataque.
— Eu sei que você esteve na casa dela ontem... antes de me procurar cheio de ternura.
— É verdade. — Cole levou os ombros para trás, como se alguma coisa oprimisse seu peito. — Fui
procurá-la com as piores intenções, mas nada aconteceu. Antes mesmo de entrar na casa compreendi
que estava cometendo um erro. Não consegui estender a mão... nem tocá-la... nem sentir desejo. E
isso foi tudo, Alaina. Olie foi testemunha. Eu o encontrei na taverna momentos depois de ele ter me
deixado na casa dela. Tomamos um copo... ou dois... ou talvez três, não me lembro. Pode me
condenar pela intenção, mas deve me perdoar pela ação.
O calor que invadiu o corpo de Alaina não era devido ao fogo na lareira. Com voz hesitante,
perguntou:
— Por que guardou a fotografia?
Com um suspiro profundo, Cole segurou a mão dela, sentou-se na poltrona na frente do fogo e a fez
sentar-se no seu colo.
— Será tão difícil de compreender, Alaina? — perguntou, erguendo a sobrancelha, com um sorriso
nos olhos. Tirou os sapatos molhados de Alaina e pôs os pés pequeninos, calçados de meias, entr e
suas pernas e uma das mãos nas costas dela. — Já faz algum tempo
506
que estou apaixonado por você. Antes mesmo de sair de Nova Orleans. Eu tentei não dar
importância, achando que era um entusiasmo passageiro. Porém, mais tarde, tive de reconhecer a
verdade.
— Impossível! — Com um gesto largo, ela continuou: — Nosso casamento é prova disso! Se me
amasse, não teria exigido o acordo.
— Está brincando, senhora? — Cole riu, surpreso. — Nunca exigi coisa nenhuma.
— Mas o tio Angus disse que essa era sua condição!
— Então, ele mentiu para nos jogar um contra o outro. Tenho uma carta dele na qual afirma que
você fazia questão de um casamento apenas nominal... e que não viria para cá se eu não concordasse.
— Acariciou o braço dela. — Acho que Angus imaginou isso depois que escrevi ao dr. Brooks e à
sra. Hawthorne pedindo para que transmitissem a ele meu pedido.
— Você escreveu primeiro? — Alaina olhou para os olhos azuis e claros.
— A sra. Hawthorne escreveu contando o seu incidente com Jacques. Dizia que, se eu me importava
um pouco por você, devia deixar de bancar o indiferente e fazer alguma coisa a respeito. Aceitei o
conselho e a pedi em casamento. Se não fosse a carta dela, eu continuaria à procura de uma desculpa
para casar com você.
— Era tão difícil assim?
— Em Nova Orleans você rejeitou com tanta firmeza minhas tentativas, que fiquei em dúvida.
Resolvi esperar uma atitude mais favorável da sua parte.
— Queria mesmo casar comigo? — perguntou, surpresa.
— Minha senhora, eu a queria, de qualquer modo, essa é a verdade.
As lágrimas subiram aos olhos de Alaina e a ira desapareceu, substituída por emoções suaves e doces.
Depois de todas as lutas e discussões, podia acreditar naquele amor? Seria isso que ela desejara
durante todos aqueles meses do casamento de Cole com Roberta? Ser dona da sua ternura e envolta
por seus braços? Podia pôr de lado a desconfiança e ser a mulher carinhosa e gentil que desejava ser
para ele?
Num gesto quase tímido, enlaçou o pescoço dele com os braços macios e correspondeu com ardor
hesitante ao beijo apaixonado do marido. Lentamente, seus lábios trêmulos se abriram ao encontro
dos dele.
507
Alaina afastou-se um pouco e, encostando a testa no rosto dele procurou ordenar os próprios
pensamentos. Precisava de algum tempo para acostumar a mente à nova situação. Tudo estava
acontecendo muito depressa e hesitava em expor suas emoções cedo demais. Há tanto tempo as
escondia, e era difícil trazê-las à tona agora.
Uma vez controladas as batidas do coração, resolveu deixar para mais tarde as decisões importantes.
— Esta casa... fale-me sobre ela. Conte-me sobre a sua família. Cole recostou a cabeça na poltrona e
olhou para o quadro sobre a lareira.
— Não há muito para contar. Meu pai construiu esta casa para minha mãe logo depois de terem
chegado da Pensilvânia. Ela morreu quando eu tinha um ano e ele casou outra vez... acho que
pensou que com isso estava me dando uma mãe. Minha madrasta exigiu uma casa melhor. Desenhou
e mobiliou a casa na colina, e meu pai estava muito ocupado com seus pacientes para dar atenção ao
que ela estava criando, até o fim da construção. Ao que parece, ela também não gostou do que fizera,
pois seis meses depois fugiu com um jogador. Meu pai nunca mais a viu. Pode imaginar o quanto ele
ficou amargurado. Ela levou todo o dinheiro e objetos valiosos que encontrou à mão. Meu pai jurou
que jamais daria a ela um centavo. Deserdou-a e a qualquer filho que ela pudesse atribuir a ele.—
Cole encostou o rosto no cabelo de Alaina e ela acariciou com os lábios o pescoço dele. — Ao que
parece, os homens da família Latimer não tiveram muita sorte com suas mulheres... pelo menos, até
agora.
Depois de toda a animosidade que houvera entre eles, Alaina só desejava usufruir as emoções ternas.
Bem mais tarde eles voltaram para a casa na colina. Envolta numa manta de pele de búfalo para a
curta viagem, Alaina mal sentiu o vento e a chuva de granizo. Bastava a presença do homem amado
para que tudo estivesse perfeito.
Cole parou a charrete na frente da casa e a carregou nos braços. Os criados os esperavam ansiosos,
no hall. A ansiedade se transformou em sorriso quando ele abriu a manta de peles, mostrando Alaina
sã e salva. Mindy aproximou-se timidamente e não largou a saia de Alaina até esta levá-la para a cama
e garantir que não fugiria outra vez.
Alaina abriu a porta do seu quarto e parou de repente, olhando em volta. Seu primeiro pensamento
foi de que alguém estava brincando com ela. O guarda-roupa desaparecera, bem como o tapete, a
espreguiçadeira e o pequeno relógio de carrilhão. O quarto estava exatamente
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como na primeira vez que o vira, exceto pelas poltronas confortáveis na frente da lareira.
Alaina deu meia-volta, pronta para descer, furiosa. Então ouviu Cole no quarto ao lado e teve outra
idéia. Atravessou o banheiro e parou na porta que estava aberta. Tudo estava lá. O guarda-roupa ao
lado do de Cole, a espreguiçadeira perto da janela, o espelho no canto, o relógio sobre a lareira como
se sempre tivesse estado ali. Até o assoalho, tão frio sob seus pés naquela manhã, estava coberto com
o tapete macio tirado do seu quarto.
Cole estava sentado na frente do fogo ardente da lareira, com o joelho dobrado para aliviar a tensão
na perna ferida. Ergueu para ela os olhos brilhantes.
— Fez um jogo comigo, senhor, e levou todas as minhas peças para seu lado do tabuleiro.
Com um sorriso terno e tranqüilo, ele disse:
— O melhor meio de atraí-la para o meu quarto.
— Então, temos um casamento de verdade? Cole ergueu a sobrancelha, surpreso.
— É claro, meu amor! Ainda tinha alguma dúvida?
— Uma vez ou outra, senhor. Mas o que era um acordo frustrante parece ter se transformado em
algo quase bom demais para ser verdade.
— Então, daqui por diante, vai compartilhar meu quarto e minha cama, sra. Latimer?
— Vai me esperar?
— Não demore.
Alaina escolheu uma camisola no guarda-roupa e foi até o banheiro para se vestir como convinha a
uma recém-casada. Estava vestindo a camisola cinza azulada quando ouviu os passos de Cole
pararem na porta, como se ele estivesse impaciente com a demora. Depois se afastaram e Alaina
escovou rapidamente o cabelo.
Os passos voltaram para a porta e pararam outra vez. Passando a mão no cabelo, Alaina abriu a
porta. Lá estava ele, alto e esbelto, com um longo roupão de veludo. Os olhos de Cole, como chamas
ardentes, fixaram-se por um momento nos bicos dos seios que se desenhavam Provocantes sob a
renda da camisola e admirando a feminilidade Perfeitamente visível aos seus olhos ávidos. Sim, era
sem dúvida uma das camisolas escolhidas por ele.
— Você é linda — murmurou, quase com reverência.
509

Com um sorriso tímido, Alaina estendeu a mão e com um só movimento desatou o cinto do roupão
de veludo, abriu-o e, aproximando-se, juntou seu calor ao do corpo nu do marido. Enlaçou o
pescoço dele e o beijou com um ardor que nunca deixava de surpreender Cole. Ele a ergueu do chão.
A cama os convidava, e procuraram o conforto macio como uma só pessoa, como marido e mulher.
Para Alaina era como voltar para casa depois de uma eternidade. Cole era o lar para ela, e sentia-se
segura nos seus braços.
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Capítulo Trinta e Oito
O TEMPO PASSOU rápido e fugaz, apressando as horas doces demais para serem perdidas. Agora,
porém, havia sempre a promessa de novos e imediatos momentos de encantamento.
Antes de se levantar, de manhã, Alaina rememorou as horas daquele mês passadas nos braços de
Cole, na frente do fogo crepitante, correspondendo aos seus beijos e carícias ou conversando com
intimidade, ou ainda relembrando experiências partilhadas. Sorriu, tocando o medalhão que estava
outra vez entre seus seios. Pedras preciosas acentuavam agora sua beleza, mas a inscrição era a
mesma: PROPRIEDADE DE C. R. LATIMER. Agora tinham um casamento de verdade. E Alaina
o amava cada vez mais. Embora estivesse pronta para negar, e seu orgulho e seu preconceito se
rebelassem contra a idéia, esse amor criara raízes havia muito tempo no seu coração, expulsando o
ódio e a intolerância.
Apanhando a camisola do chão, ela a vestiu rapidamente e depois o roupão. Lembrou da inquietação
de Cole durante toda a noite, aparentemente sentindo muita dor, depois de ter tropeçado num fio
solto da passadeira da escada. Teria rolado os degraus se não tivesse se apoiado no corrimão. Alaina
notou a equimose na perna ferida quando ele se despiu para dormir, mas esqueceu quando Cole
começou a tirar-lhe a camisola que acabava de vestir. A lembrança do que
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acontecera depois a fez corar de prazer. Até relativamente pouc o tempo, ela teria arrancado o coração
de quem ousasse sugerir que um ianque barriga azul seria a razão e a alegria da sua vida. Agora, Col e
parecia o centro da sua existência.
Calçando os chinelos, Alaina começou a descer a escada, mas parou no meio, surpresa. Miles estava
de pé na frente da porta fechada do escritório, mais uma vez montando guarda contra um possível
intruso. O olhar do mordomo era um pedido de desculpas. Como da outra vez, Alaina estava
proibida de ver o marido.
— O dr. Latimer pede desculpas, senhora — murmurou Miles, embaraçado. — E pede à senhora
para perdoá-lo. Não pode acompanhá-la no café da manhã
Alaina suportou o dia da melhor forma possível, sem compreender por que Cole se trancara no
escritório, não permitindo nem a presença dela. Mais tarde, quando Olie substituiu Miles, Alaina
parou na frente do cocheiro com as mãos na cintura. Olie remexeu-se embaraçado na cadeira e olhou
para os pés, assobiando desafinado.
Os criados montaram guarda na porta durante quatro dias seguidos e no meio do quinto dia Alaina
perdeu a paciência. Ouvia a voz do marido cantarolando atrás da porta e do guarda inflexível. Na
opinião dela, Cole já tivera privacidade e bebida demais, e Alaina não suportava mais a solidão do seu
quarto.
Peter teve a pouca sorte de ser escalado para o turno da tarde quando a paciência de Alaina chegou
ao limite e ela desceu para o hall, disposta a pôr um fim naquele capricho idiota de Cole. O jovem
criado tinha medo da primeira mulher de Cole, mas esta ele idolatrava. Para Peter, Alaina era como
uma pequena e frágil boneca de porcelana. Apenas alguns meses mais jovem do que ela, Peter levara
uma vida muito resguardada naquele lugar isolado e não tinha experiência das manhas e dos encantos
das mulheres.
Seu coração disparou quando ela se aproximou com um sorriso capaz de derreter o mel no favo.
Peter levantou-se desajeitado, deixando cair o livro que estava lendo.
— Fique sentado, Peter — disse ela, docemente. — Eu só vou dar uma palavrinha com o doutor.
Peter começou a obedecer, mas de repente lembrou por que estava ali.
— Como, senhora? — Rapidamente ficou de pé na frente da
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porta. — As ordens do dr. Latimer são para... bem... não deixar a senhora entrar.
.— Ora, francamente, Peter! — Alaina pousou a mão na lapela do casaco dele e observou que Peter
estava tendo dificuldade para respirar. — Você sabe que um homem não pode ter segredos para sua
mulher. Eu sei que o doutor gosta de um bom conhaque, uma vez ou outra, e não sou contra isso.
Mas beber desse modo é ridículo. Preciso conversar com ele a respeito.
— Oh, não, senhora. Não é a bebida... quero dizer... a bebida é uma parte, eu acho, mas, na verdade,
é mais sua...
— Peter! — A voz de Miles estalou no hall. — Sabe o que o dr. Latimer disse, Peter!
Apesar da aspereza da voz de Miles, a presença do mordomo foi um alívio para Peter. Miles ficou de
pé ao lado dele, como uma caricatura do proverbial mordomo.
— Vocês querem mesmo me impedir de ver meu marido? — perguntou Alaina, incrédula, olhando
para os dois.
— Sim, senhora — respondeu Miles, secamente. — As nossas ordens são para garantir sua
privacidade. — Os olhos dele eram como duas armas apontadas para Alaina.
Calmamente, ela levou a cadeira de Peter para um canto do hall, de frente para a porta do escritório.
Voltou e ficou de pé ao lado dos dois, olhando fixamente para eles. Então, apontou para a cadeira.
— Peter, sente-se ali. — Sua voz soou calma mas com algo que não admitia discussão. Peter
obedeceu alegremente e Miles ficou sozinho na frente dela, com o olhar fixo na parede e, pequenas
gotas de suor porejando na testa.
— Miles?
Ele estremeceu ao som da voz macia e suave.
— Sim, senhora? — Sentiu um tique nervoso no braço direito.
— Você se considera um cavalheiro? — Alaina começou a andar de um lado para o outro, na frente
dele.
— Sim, senhora, é claro — fungou Miles. — Uma das melhores escolas da Inglaterra e uma das
melhores famílias. Na verdade, lecionei em várias escolas do continente.
— É mesmo, professor? — Alaina fez um gesto afirmativo. — Lecionou as artes masculinas, eu
suponho?
— Sim, senhora. Eu diria que sim.
— E é um cavalheiro da velha escola.
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- Sim, senhora.
Alaina parou de andar e pôs as mãos na cintura. Miles olhou para a parede, por cima da cabeça dela,
e o suor começou a descer para o rosto
— Alguma vez bateu numa senhora? — Sua voz tinha agora a aspereza de um interrogatório.
— Não, senhora! — respondeu Miles, escandalizado.
— Alguma vez teve de usar a força contra uma senhora?
— Não, senhora!
a — Você me considera uma dama?
— Oh, sim, senhora. Uma perfeita dama, sim. — Terminou a frase com voz menos decidida,
começando a perceber a armadilha.
Seguiu-se um longo silêncio, só quebrado pelas batidas do pé de Alaina no chão.
— Então, por favor, afaste-se, Miles—ordenou ela bruscamente. — Ou vou destruir sua reputação
agora mesmo.
Miles abaixou os olhos para ela e não viu nenhum vestígio de fraqueza na expressão decidida de
Alaina.
— Pai! — a súplica lamentosa de Peter ecoou no hall e quando Alaina estendeu a mão para a
maçaneta, Olie saiu da cozinha como um furacão, com um guardanapo preso no colarinho e a boca
cheia de comida.
Segurando a maçaneta, Alaina voltou-se, com uma sobrancelha levantada, como que perguntando o
que ele pretendia fazer. Olie, como os outros, não podia erguer um dedo para ela, e os três homens
ficaram imóveis. Alaina abriu a porta e entrou.
As cortinas estavam fechadas e o cheiro de fumo e de bebida de muitos dias a fez tossir, quase
sufocada. Cole estava andando em círculos no pequeno tapete na frente da lareira e quando ouviu a
tosse, voltou-se rapidamente e a viu entre as sombras da sala.
— Que diabo, Alaina! — rugiu ele. — Saia já daqui!
Encostando-se na porta fechada, Alaina olhou para ele com desdém. O que viu não foi o homem
sempre limpo e bem-vestido que conhecia. Cole estava com uma barba de quatro dias e um roupão
que ia quase até os pés, os olhos vermelhos e inchados, a boca contorcida num esgar e pesadamente
apoiado na bengala.
— Não acha que está na hora de tomar juízo, dr. Latimer?
— Deixe-me em paz, mulher — ordenou ele, com voz rouca. Com a ponta da bengala derrubou
tudo que estava sobre a mesa entre os dois. — Saia ou mando os criados levarem-na para fora!
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— Não vai adiantar, senhor — disse, serenamente. — Eles têm mais medo de mim do que do
senhor.
— É o que estou vendo! Nem todos juntos são capazes de impedir a entrada de uma mulher tão
pequena. — Agressivo, ameaçou: — Como não posso confiar nos meus criados, eu mesmo trato
disso!
Cole avançou para ela, e Alaina notou, espantada, a dificuldade com que movia a perna. Praticamente
a arrastava e estava com os dentes cerrados de dor.
— Cole?—Preocupada, ela deu um passo para ele.—Deixe-me ajudá-lo.
— Não! — exclamou Cole, afastando-se da mão que ela estendeu. Embaraçado com a própria
aparência, ele procurou fugir. A bengala escorregou no assoalho nu, e Cole caiu para a frente,
levando Alaina com ele para o chão. Imediatamente ele rolou para o lado, contorcendo-se de dor e
cerrando os dentes para não gritar. O roupão se abriu com a queda, e Alaina, ajoelhada ao ladc dele,
viu com espanto a perna ferida. Cole estava nu sob o roupão, pois não poderia vestir nenhuma calça
na perna inchada e roxa. Preocupada, Alaina estendeu a mão para tocar a pele distendida.
— Pelo amor de Deus, Alaina — disse Cole, com voz áspera, cobrindo-se com o roupão —, está me
castrando.
— Por isso você se fecha aqui? — perguntou, incrédula. — Por causa da perna?
— A única coisa que posso fazer é andar o tempo todo para manter a circulação e rezar para não
perder a perna.
Alaina sentiu um misto de alívio e de raiva por ele se afastar dela daquele modo.
— E pensou que eu ia gostar menos de você por causa disso? — Incrédula, apontou para a perna
ferida.
— Não seria a primeira.
— Como eu já disse antes, ianque, não sou Roberta! — Levantou-se, foi até a porta e a abriu. —
Olie! Miles! Peter! Venham até aqui! Agora!
— Alaina! — rugiu Cole, esforçando-se para se levantar. — peche essa porta!
Alaina viu a sra. Garth aparecer no hall com um novo suprimento de bebida e com um movimento
de cabeça indicou a escada.
— Leve para cima, para o quarto.
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— Maldição, mulher! — gritou Cole. — Preciso disso para aliviar a dor!
Ignorando o marido, Alaina recuou para dar passagem aos três homens.
— Levem o doutor para cima e o ponham na cama imediatamente.
— Ninguém vai fazer isso, com todos os diabos! — exclamou Cole. — Despeço os três se chegarem
perto de mim!
Olie olhou hesitante para Alaina, e ela disse:
— E eu os emprego outra vez — sacudiu a mão na direção de Cole. — Agora, mexam-se e levem o
doutor para cima. E pelo amor de Deus, tenham coragem! São três contra um!
Cole brandiu a bengala como uma arma e o cabo raspou a orelha de Peter. Olie e Miles olharam
inquietos do patrão para a patroa, esperando que a fúria prestes a descer sobre eles não fosse
permanente. De um modo ou de outro, ia ser um inferno.
Olie deu um passo à frente, esfregando nervosamente a ponta do nariz e olhando desconfiado para o
patrão.
— Ela diz para levar o senhor para cima. Eu acho que vamos levar o senhor para cima!
Batizados com uma longa lista de pragas e palavrões, Olie e Peter levantaram Cole do chão, e Miles
segurou com cuidado a perna ferida. Assim que o puseram na cama, Cole viu-se diante de nova
ameaça. Estava agora à mercê de Alaina. Ela começou a dar ordens como se tivesse nascido para
comandar.
— Sra. Garth, pode arejar o escritório e mandar fazer uma boa faxina. Peter, traga água quente para
um banho e ponha uma chaleira com água aqui na lareira. Preciso também de panos limpos. Miles,
você e Olie podem trazer a cadeira do doutor do escritório. Ele vai precisar dela por algum tempo.
Quero também um balde com neve e gelo, de preferência não derretidos.
Antes que Cole tivesse tempo de questionar as ordens, os criados correram a executá-las. Cauteloso,
ele perguntou:
— Agora que me trouxe para cá, quais são suas intenções? Alaina dobrou as cobertas da cama e pôs
vários travesseiros sob o joelho dele.
— Não tenho a presunção de dizer a você o que deve fazer, meu amor, mas me parece que um
médico devia ter mais cuidado com a própria saúde.
— Não respondeu à minha pergunta — insistiu Cole.
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— Quer tirar o roupão para eu fazer as compressas? Trago uma camisa de dormir limpa, se quiser.
— Compressas? — Cole ergueu o corpo, apreensivo.
— Compressas quentes e frias, para diminuir o edema. Isso pelo menos eu sei sobre remédios
caseiros. — Apontou casualmente: — O roupão, por favor. Pretendo ver o homem todo. Depois de
cuidarmos da sua perna, vou fazer sua barba e lhe dar um banho.
— Não sou inválido, minha senhora — afirmou ele. — Posso tomar banho sozinho.
— Vai ser difícil entrar na banheira. É mais fácil ser lavado aqui. Cole franziu a testa.
— Banho completo?
Os olhos de Alaina ergueram-se lentamente para os dele.
— Acho que o senhor pode lavar certos lugares.
— Acabou com as minhas esperanças.
— Bem feito — disse ela, com um sorriso maroto. — Quem fica andando com a perna nesse estado
merece uma boa limpeza nas orelhas.
Cole duvidou do espírito caridoso de Alaina e quase pulou da cama aos gritos quando ela pôs a
primeira compressa gelada na sua perna. Como se não bastasse, ela quase o escaldou outra vez, com
uma toalha encharcada de água fervendo.
— Cuidado com essa coisa! — gritou ele. — Pode acabar com nossa esperança de constituir família!
— Vou ter mais cuidado — desculpou-se Alaina, docemente contrita. — Mas acho que não precisa
se preocupar com isso, meu amor.
Olie e Miles entraram com a pesada cadeira de Cole, e Alaina retirou a compressa quente,
substituindo-a por outra de neve. Cobrindo sua nudez, Cole observou os criados. A retirada da
cadeira do escritório prenunciava uma mudança de hábitos. Não podia mais se isolar de todos, mas
ao que parecia coisa melhor estava sendo oferecida. Ficar preso num quarto com uma bela mulher
não era de todo desagradável.
Os escassos conhecimentos de Alaina sobre curas e tratamentos médicos deram resultado. À noite o
edema quase desaparecera e com a perna apoiada nos travesseiros, Cole pôde descansar. Para fazer a
vontade de Alaina, ficou na cama todo o dia seguinte, mas no terceiro, nada o impediu de se levantar.
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Capítulo Trinta e Nove

DEZEMBRO CHEGOU com toda a força, o vento norte carregado de neve cobrindo toda a terra
com um manto branco. Mindy, que nunca tomara conhecimento da importância daquela época do
ano, ouvia encantada as histórias e os fatos contados por Alaina sobre a neve e o Natal. Com
bastante antecedência, ela dependurou a meia na lareira, à espera do grande dia. Alaina aproveitou o
tecido do vestido queimado e fez um vestido para a nova boneca de louça comprada por Cole. Ele
fez um berço de madeira para a velha boneca de trapos e guardaram os presentes no sótão.
Depois de uma visita de Horace Burr, Cole esperou impaciente a manhã de Natal para dar seu
presente à mulher. Alaina fez para Cole um paletó para usar em casa e, como o presente mais
importante, mandou um criado solicitar a presença rápida de Braegar Darvey, enquanto Cole estava
em St. Cloud, tratando de negócios.
Alaina não esperava que o marido resolvesse os negócios mais cedo. Quando viu o cavalo de
Braegar, Cole ficou irritado e, encontrando a porta da sala fechada, seu ciúme explodiu. Se a amizade
entre os dois não impedira Braegar de ter um caso com Roberta, com Alaina, muito mais desejável,
certamente o irlandês ia se esforçar muito mais. Cole estava resolvido a não permitir que isso
acontecesse outra vez.
Passou rapidamente por Miles e abriu a porta da sala. Braegar
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estava inclinado para a frente, o rosto muito próximo do de Alaina e um copo de bebida na mão, mas
quando Cole abriu a porta ele recostou-se na cadeira e levou o copo aos lábios, calmamente.
Cole entregou o chapéu para Miles e tirou o casaco. Olhando para os dois com um sorriso irônico,
encostou a bengala na perna e começou a tirar as luvas. Alaina levantou-se, hesitante, e passando a
mão para ajeitar a saia, caminhou para o marido, de olhos baixos e muito corada.
— Por todos os santos—disse Cole com voz rouca, interpretando como culpa o evidente desaponto
da mulher. Olhou para Braegar. — Sempre que saio de casa, ao retornar encontro-o farejando em
volta da minha mulher. A julgar por suas atenções, eu diria que não tem uma mulher há muito
tempo.
Alaina arregalou os olhos cinzentos, frios como aço, e disse:
— Cole! Como pode dizer uma coisa dessas?
— Posso porque conheço bem esse conquistador barato!
— Eu o convidei — disse Alaina, furiosa.
Cole olhou para ela, um torvelinho de emoções passando por seu rosto. O ciúme o atormentava
profundamente. Com voz rouca, disse:
— Então, acho melhor eu ouvir essa história, porque sei que a senhora não está carente de atenção.
A insinuação a atingiu num momento em que estava mais vulnerável.
— Seu grosseirão inconveniente! — disse ela, com a voz entrecortada e, soluçando, saiu da sala e
atravessou correndo o hall. Apanhou a capa no closet e outra vez saiu de casa, batendo a porta.
Cole teria ido atrás dela, mas Braegar, com passos rápidos, o alcançou e, com a vantagem de pelo
menos cinqüenta quilos a mais, o segurou de cara contra a porta.
— Sua mulher procurou meus serviços, dr. Latimer — rosnou o irlandês —, porque queria ter
certeza antes de lhe dar a notícia. Goste ou não, homem, você vai ser pai no verão.
Cole arregalou os olhos e com esforço afastou Braegar da sua frente, abrindo a porta. Quando
chegou à varanda, o trenó afastava-se da casa. Alaina estalou o chicote nas costas do cavalo,
ignorando o chamado do marido.
— Alaina! Espere!
O cavalo de Braegar estava na frente da casa. Apesar da sua perna, Cole desceu correndo os degraus
da entrada e, soltando as rédeas do animal, presas no poste, montou rapidamente. As patas do
garanhão
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derraparam na neve sólida quando deu uma volta completa, estranhando por um momento o
cavaleiro. Os calcanhares de Cole bateram com força nos flancos do animal, que entendeu
imediatamente a mensagem e partiu no galope atrás do trenó, ultrapassando-o em pouco tempo.
Quando Cole gritou, para fazê-la parar, Alaina chicoteou seu cavalo com mais força, obstinadamente.
Numa corrida desabalada na neve Cole esporeou novamente o garanhão, e cercou o trenó no trecho
em que a neve era mais espessa e moitas cerradas estreitavam o caminho. A égua que puxava o trenó
tentou desviar e encalhou na neve acumulada nos lados da estrada. O garanhão de Braegar, agitado,
no impulso da corrida, empinou nervoso, com o pescoço alto e curvo, numa magnífica
demonstração de elegância, a despeito dos esforços de Cole para acalmá-lo. Dominando o animal,
finalmente, ele desmontou.
Apanhada num borrif o de neve, Alaina levantou-se e passou a mão no rosto e no casaco para tirar
os flocos brancos. Com a voz entrecor-tada por soluços ela disse:
— Você, seu ianque idiota, barriga azul... assassino, açougueiro, inútil!
Segurou as rédeas, tentando tirar o animal do monte de neve, mas Cole correu para ela.
— Alaina, acalme-se. Pode se machucar — exclamou Cole, procurando segurar o bridão do animal
assustado. Quando estendeu a mão, Cole escorregou na neve e caiu sobre o flanco da égua. O animal
recuou, afastando a rédea do seu alcance. Cole caiu de costas, sob as patas levantadas da égua, e
Alaina levantou-se no trenó com um grito de pavor. A pata do animal, desceu, atingindo o quadril
direito de Cole. Ouviram o estalo do osso partido e um grito rouco cortou o silêncio da noite.
Alaina desceu do trenó, foi para a frente da égua e, sacudindo os braços no ar, a fez recuar para o
meio da estrada, onde ela ficou tremendo por algum tempo, até se acalmar. Cole rolava na neve em
agonia, rilhando os dentes. Alaina ajoelhou-se ao lado dele e o segurou pelos ombros.
— Oh, Cole, meu querido, não se mova — murmurou ela, com urgência. — Vai piorar se não ficar
quieto.
Cole segurou a lapela do casaco de Alaina e encostou o rosto no peito dela, controlando-se
finalmente.
— Aquele animal idiota! — rosnou ele, com os dentes cerrados-— Aquele animal dos diabos!
Certamente vai me custar a perna!
— Quieto, querido — pediu Alaina. Passou a ponta da capa por
520
baixo das costas de Cole e o agasalhou com ela, fazendo do capuz um travesseiro e tremendo
violentamente quando o ar frio atravessou seu vestido de veludo. — Não se mexa. Vou pedir ajuda.
— Espere! — disse Cole, lutando contra a dor agonizante. Alaina inclinou-se e Cole segurou a mão
dela.
— Vou só procurar ajuda — garantiu, docemente. — Não me demoro.
— Alaina — com uma careta de dor, Cole tentou resistir ao sofrimento. — Desculpe o que eu disse.
Mas é que... eu a perdi uma vez... não quero perdê-la nunca mais. E não posso confiar... em Braegar.
Ele seduziu Roberta... e a engravidou... depois a mandou a algum lugar imundo para se livrar da
criança.
Alaina compreendeu finalmente e toda a mágoa desapareceu. Embora não pudesse acreditar que
Braegar fosse capaz de enganar o melhor amigo e, inadvertidamente, matar sua mulher, sabia que
Cole estava convencido da culpa do irlandês.
Com lágrimas nos olhos, ela aconchegou mais a manta em volta de Cole.
— Eu já disse antes, ianque, não sou Roberta, e o que ela fez ou deixou de fazer nada tem a ver
comigo.
— Nunca mais... vou comparar as duas — disse Cole, com voz rouca, tentando sorrir.
— Então procure pensar nisso enquanto vou buscar ajuda — murmurou ela, acariciando o rosto
dele e olhando para os olhos claros e azuis. — Vamos ter um filho, e assim você nunca mais
duvidará da minha fidelidade ou do meu amor porque ele vai ter os olhos maiores e mais azuis que já
apareceram na face da terra.
— Ela! — corrigiu Cole. Cerrou os dentes, esperando passar o acesso de dor e disse. — Quero
muito uma menina com o nariz e a boca da mãe.
Com doce sorriso, Alaina beijou carinhosamente os lábios dele e se levantou. Caminhou para o
garanhão, escorregando na neve lisa. Passou a rédea pela cabeça do animal, segurou o suporte da
sela, pôs o pé no estribo e montou, sem deixar que a saia longa e rodada a impedisse. Bateu com os
calcanhares nos flancos do animal e partiu. Logo que avistou a casa, acenou freneticamente para
Braegar, que estava na varanda.
— Toque o sino três vezes! — gritou ela. — Cole está ferido! Com o toque de emergência soando
no ar frio, Alaina virou o
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cavalo e voltou para onde estava Cole. Braegar desceu a encosta correndo e encontrou-a sentada,
com a cabeça de Cole no colo. O irlandês imediatamente tirou sua capa e a pôs nos ombros de
Alaina. Depois voltou a atenção para o ferido.
Logo depois chegou a carroça com os homens do estábulo. Orientados por Braegar, carregaram
Cole, com cuidado para não machucar mais a perna ferida. O esforço custou a Cole o pouco de
forças que lhe restavam e ele mergulhou nas profundezas da inconsciência.
— É melhor assim—disse Braegar. — Vamos levá-lo para a casa antes que fique enregelado de frio.
Braegar e Alaina acompanharam Cole, com Olie e Saul na boléia da carroça. Os outros homens
voltaram a pé para o estábulo. Os três homens carregaram Cole para o quarto. Miles foi apanhar a
maleta de instrumentos de Braegar, Annie tratou de ferver água e a sra. Garth pôs uma porção de
garrafas de conhaque ao lado da cama.
Com energia, Braegar convenceu Alaina a sair do quarto e pediu para Saul ficar, pois ele era quem
conhecia melhor os métodos de tratamento e cura.
Alaina esperou no seu antigo quarto, andando de um lado para o outro, torcendo as mãos aflita,
enquanto os minutos se arrastavam para uma hora e a hora para uma eternidade. A noite começava a
cair quando a porta do banheiro se abriu e Braegar entrou segurando alguma coisa enrolada num
pano.
— Foi uma fratura simples, de redução fácil — disse ele.
— Mas por que demorou tanto? — perguntou ela, ansiosa. Braegar abriu o pano que tinha nas mãos
e disse, com um largo sorriso.
— Acho que foi a maior sorte que aquele cabeça dura já teve, depois de casar com você. — Mostrou
o pedaço de metal escuro, levemente recurvado. — Tomei a iniciativa e depois de procurar por
algum tempo, encontrei isto. Soltou-se do osso com a fratura, e embora eu desconfie que Cole vá
sentir falta dele, vai se sentir muito melhor agora.
— Mas ele está bem?
Braegar franziu os lábios e fez um gesto afirmativo.
— Se não houver infecção, a perna vai ficar melhor do que antes. — Tirou um pequeno frasco da
maleta e entregou a ela. — Isto é láudano. Uma colher é suficiente quando a dor for muito forte, ou
se ele não puder dormir. Eu sei que Cole detesta isso, mas vai ajudá-lo e sua perna precisa muito
disso.
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Alaina desceu a escada com ele.
— Vai voltar amanhã?
Braegar pôs o casaco e o chapéu.
— É claro. Eu não deixaria de vir por nada do mundo. Finalmente tenho esse idiota magricela
justamente onde eu queria.
Notou a surpresa de Alaina e riu jovialmente:
— Ele não pode me pôr para fora aos pontapés e não pode ir a lugar nenhum. Vou esclarecer as
coisas de uma vez por todas e descobrir o que o atormenta.
Alaina abriu a boca para adverti-lo da seriedade das acusações de Cole, mas Miles estava perto da
porta e ela não gostava de discutir assuntos pessoais na frente dos criados, embora certa de que
pouca coisa escapava a eles.
Alaina tinha apenas cochilado um pouco quando um leve movimento no quarto de Cole a despertou.
Saltou da cama, no seu antigo quarto e, calçando o chinelo, atravessou o banheiro. Cole estava
imóvel na cama, mas com os olhos abertos. Ela passou pela cama e pôs uma acha de lenha no fogo,
ignorando completamente o efeito da luz das chamas na sua camisola transparente. A dor cruciante
na perna não impediu que o desejo intenso o dominasse.
Fascinado com o efeito dos mamilos eretos pelo frio, sob a camisola fina, Cole a observou em
silêncio. Alaina parou ao lado da cama com um olhar carinhoso e depois estremeceu de frio. Cole
estendeu a mão e abriu a coberta ao seu lado. Agradecida, Alaina aceitou prontamente o convite.
Aconchegada a ele, apoiou a cabeça no braço do marido para ver seu rosto. Pôs a mão no peito dele
e sentiu o pulsar acelerado do coração.
— Eu o amo — murmurou, com um suspiro. — Embora até pouco tempo atrás eu jamais admitisse,
acho que o amei antes mesmo de você tirar a minha virgindade.
Surpreso, Cole ergueu uma sobrancelha.
— Quando você saiu de Nova Orleans, tive a impressão de estar morta—admitiu ela,
timidamente.—Pensei que jamais o veria de novo.
— Então partilhamos da mesma solidão — murmurou ele, com voz rouca.
— Sabe que não precisa se preocupar com Braegar. Nunca me interessei por outro homem, só por
você.
A mão dele deslizou para a curva das costas dela.
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— Suponho que vai me pedir para agradecer a ele por ter cuidado de minha perna.
— Não seria nada demais. — Alaina apanhou o pedaço de metal na mesa-de-cabeceira. — Ele achou
que você podia viver melhor sem isto. Disse que a fratura soltou o estilhaço e ele tomou a iniciativa
de retirá-lo da sua perna.
— Braegar sempre foi muito obstinado em suas opiniões —. comentou Cole, irônico.
— É estranho, mas ele disse mais ou menos a mesma coisa de você. — Alaina passou a ponta do
dedo no cabelo que cobria o peito dele. — Não está satisfeito por que ele removeu o estilhaço?
— Vou ficar contente se não acontecer nada pior.
— E vai agradecer a ele — insistiu Alaina.
— Talvez.
— E vai dizer por que está zangado com ele?
— Não posso fazer as duas coisas no mesmo dia, minha senhora. A primeira agride meu orgulho e a
segunda fomenta minha ira.
— Tente. — Beijou demoradamente os lábios dele, apertando os seios contra o peito dele, e o
pensamento de Cole concentrou-se todo naqueles bicos firmes que pareciam perfurar-lhe o corpo,
mesmo através da camisola.
Cole beijou-a avidamente, esquecendo tudo o mais, inclusive a dor lancinante na perna.
Observar Alaina movimentando-se no quarto à luz fraca do nascer do dia, pondo lenha no fogo,
penteando o cabelo longo, que chegava até o meio das costas, como um manto precioso, foi, para
Cole, uma experiência excitante e feliz. Antes de descer para acordar o resto da casa, ela inclinou-se e
beijou de leve os lábios do marido. Mal ele começou a sentir sua falta, ela voltou com o café da
manhã. Ajeitou a bandeja sobre os joelhos de Cole e sentou-se na cama, ao lado dele, provando a
refeição matutina. Seus olhos cheios de vida e o sorriso franco e alegre fizeram daquela manhã um
momento sublime.
Alaina saiu do quarto com a bandeja e dessa vez demorou mais para voltar. Cole aproveitou para ler
algum material médico há tanto tempo ignorado. Absorto na leitura, notou um movimento na porta
e, erguendo os olhos, viu Alaina, imóvel, com as mãos cruzadas e uma expressão de alegre
expectativa. Sem uma palavra, ela se virou de lado, dando passagem a outra pessoa.
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— Bom dia, dr. Latimer. — O vozeirão de Braegar Darvey ecoou no quarto.
— Estava bom até há pouco — resmungou Cole, e viu o olhar de censura de Alaina. Erguendo o
corpo tanto quanto permitia a tala na perna, aceitou a ajuda dela para ajeitar os travesseiros.
Braegar atravessou o quarto, aparentemente muito bem disposto. Deixou a maleta numa cadeira e foi
até a lareira, onde ficou primeiro de frente, depois de costas, para se aquecer. Olhou para Cole, de
onde estava, levantou as abas do casaco e perguntou:
— Como está meu distinto paciente nesta gloriosa manhã?
— Receio que meu humor tenha piorado de repente — resmungou Cole, evitando os olhos de
Alaina.
— Certamente, meu rapaz, e aí está a causa de tudo. — Com gestos lentos e cuidadosos, Braegar
levou uma cadeira para uma distância segura da cama de Cole e uma banqueta para apoiar os pés,
sentou-se e disse, com acentuado sotaque irlandês: — É um grande peso para mim sentir que tenho
sido a causa do seu descontentamento nos últimos tempos. Parece-me justo, uma vez que o Senhor
misericordioso se dignou a retirar o estilhaço da sua perna, que eu procure agora retirar o mal-
entendido que há entre nós.
— E o que pretende fazer, então? — perguntou Cole.
Com um gesto afirmativo, Braegar tirou o cachimbo e a bolsa de fumo do bolso. Aparentemente
esperava que Cole começasse a falar. Cole segurou a mão de Alaina.
— Meu amor, quer dizer à Annie para mandar café e talvez um pouco de conhaque?
— Se viesse a perder a paciência com Braegar outra vez, não queria que Alaina estivesse por perto.
— Já mandei a sra. Garth trazer café e doces e o conhaque está ao lado da sua cama — respondeu
ela, docemente.
— Então, talvez você tenha algo importante para fazer—insistiu ele. — Vai ser uma conversa longa
e tediosa.
— Não tenho nada urgente para fazer, no momento — garantiu ela, com encantadora inocência. —
E prefiro ficar aqui com você.
Braegar riu, com o cachimbo na boca.
— Muito bem, doutor. Acho melhor começar a falar, uma vez que não pode deixar o quarto e nós
não pretendemos sair.
Cole recostou-se nos travesseiros e cruzou os braços, numa atitude de obstinação.
— Nesse caso, prefiro ficar calado.
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— Estou aqui para resolver isso de uma vez por todas — insistiu Braegar. — Podemos conversar
sobre o que você quiser, mas a não ser que eu ouça o que quero ouvir, voltarei amanhã, e depois de
amanhã, e depois, quantas vezes forem necessárias para que você resolva esclarecer o assunto.
— Que diabo, homem! — Cole empertigou o corpo, outra vez. — Espera que eu discuta os detalhes
da sua reputação na frente da minha mulher?
— Minha reputação, como você sabe muito bem, Cole, é quase toda uma questão de comentários
maldosos e sonhos esperançosos de certas pessoas. — Braegar reacendeu o cachimbo, e a fumaça
com o cheiro do fumo envolveu seu rosto.
— Na verdade, é mais uma questão de ética. Posso perdoá-lo por trair nossa amizade e ter um caso
com Roberta, mas mandá-la a uma parteira ignorante, quando ela ficou grávida, foi uma baixeza da
sua parte.
Braegar engasgou com a fumaça e tossiu, passando a mão rapidamente na perna da calça para tirar as
fagulhas oriundas do cachimbo. Passado o perigo, olhou para Cole, surpreso.
— Roberta? — disse ele. — E eu?
— Foi o que ela disse — declarou Cole. — No seu leito de morte, ela jurou que você era o pai.
— Uma mentira deslavada! — protestou Braegar.—Na verdade, Roberta tentou me conquistar,
provavelmente para ferir você, mas eu juro, Cole, deixei bem claro que não estava interessado nela.
Duas vezes eu a expulsei do meu consultório e ela me odiou por isso. — Pôs o cachimbo sobre a
mesa e apoiou os cotovelos nos joelhos. — Ela jamais me procuraria para fazer o que fez, pois sabia
que não teria minha ajuda, mesmo que eu fosse o pai.
— Cole — disse Alaina suavemente —, eu acredito nele. Você sabe que Roberta era capaz de
mentir... mesmo no seu leito de morte. Se ela encontrou minha fotografia na velha casa,
provavelmente fez isso por vingança.
— A vingança é um mestre cruel—comentou Braegar, secamente.
A ira de Cole desapareceu.
— Tem razão sobre Roberta. Ela jamais se entregaria sem um objetivo. Percebo agora que procurei
ignorar o fato de que Roberta não tolerava Braegar... nem a mim, para dizer a verdade.
— Mas, nesse caso — disse Alaina, como se estivesse pensando em voz alta —, quem pode ter sido
o pai?
526
— Quanto a isso, a escolha é bastante variada, minha querida — disse Cole. — Não tenho idéia, e
provavelmente jamais saberei.
— Na verdade, agora que sabe que não foi Braegar, não importa
Alaina acariciou o braço do marido. — Não havia outra coisa que você queria conversar com
Braegar, meu amor?
Cole ergueu uma sobrancelha, interrogativamente, percebendo a facilidade com que Alaina o estava
manobrando. O fato de não se importar com isso, prestando mais atenção à lembrança do contato
do corpo de Alaina contra o seu, era sinal evidente de sua paixão. Franziu a testa, fingindo raiva.
— Segundo Alaina, devo a você o favor de ter retirado o pedaço de metal da minha perna.
Braegar deu de ombros.
— Fiquei curioso. Saul me disse que o estilhaço estava enfiado no osso da sua coxa e não podia ser
retirado. Mas, quando o toquei, percebi que se movia. Correndo o risco de perder completamente
sua amizade, fiz uma pequena incisão para ver se podia removê-lo.
— Tem mãos muito hábeis, dr. Darvey — observou Cole, com sinceridade. — Não sinto nenhuma
dor no local da incisão. Nem meu pai teria feito melhor.
O irlandês corou de prazer. Era um grande elogio, porque Cole admirava extremamente o pai.
— A comunidade seria beneficiada com outro médico, se quiser voltar a clinicar, Cole.
Ansioso para convencê-lo, Braegar começou a descrever com detalhes as mais recentes doenças e
anomalias, pedindo a opinião do amigo e sua ajuda. Logo os dois estavam completamente absortos
na conversa, e Alaina notou o interesse do marido no assunto. Braegar era descritivo demais para seu
gosto e para seu estômago agora delicado. Os dois nem notaram quando ela saiu do quarto, e no ar
frio do corredor, Alaina sorriu confiante, certa de que logo Cole voltaria à profissão que tanto amava.
A troca de presentes começou muito cedo na manhã de Natal, na casa dos Latimer. Estava escuro
ainda quando Cole inclinou-se sobre Alaina e a acordou com um beijo terno e suave.
— Feliz Natal, meu amor — murmurou ele.
Alaina espreguiçou e ronronou contente, aconchegando o corpo no dele.
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— Feliz Natal para você também, meu querido — suspirou sonolenta.
— Tenho uma surpresa para você. Gostaria de adivinhar o que é?
— O que mais posso querer, quando tenho você e seu filho crescendo dentro de mim? — Esfregou
a ponta do nariz no pescoço dele. — O que mais uma mulher pode precisar?
Cole tirou de baixo do travesseiro um maço de papéis, amarrado com uma fita.
Alaina olhou para ele, intrigada.
— Que tal a escritura de Briar Hill?
Com uma exclamação de alegria, Alaina ajoelhou-se na cama e começou a desatar a fita, como uma
criança desembrulhando um presente. Depois desdobrou os papéis e leu avidamente as palavras que
garantiam a Alaina Latimer a propriedade exclusiva de Briar Hill.
— Oh, Cole — soluçou, com lágrimas de felicidade descendo pelo rosto. Abraçou o marido com
força, chorando de alegria. — Pensei que a tinha perdido para sempre. Muito obrigada, meu querido.
A brancura interminável do norte tornou-se pardacenta com a continuação do frio cortante, em
janeiro. O ar gelado secava a garganta e esticava a pele, e depois de alguns minutos fora de casa, os
dedos das mãos e dos pés ficavam doloridos e os lábios rígidos. Assim, quando na noite do quarto
dia do segundo mês Cole anunciou que na manhã seguinte partiria para a fazenda de Prochavski, no
norte, Alaina ficou preocupada.
— Falta uma semana para o parto de Gretchen — explicou Cole —, e ela ficará mais calma se eu
estiver presente. Se tudo correr bem, estarei de volta dentro de quinze dias.
Alaina não disse nada, e na imaginação via Cole perdido numa tempestade, coberto de neve.
Lembrou tudo que ele dissera àquela noite na casa antiga sobre os perigos de sair de casa no inverno
do norte.
— Deixei instruções para sua segurança e Olie ou Saul vão dormir na casa para que não tenha mais
medo.
Ele parou de falar, notando o olhar de rebeldia de Alaina.
— E quem vai tomar conta de você, meu senhor ianque? Se por acaso não notou, está um tanto
gelado lá fora. Acho que não vou deixar que vá sem a minha companhia.
Cole sorriu.
— Meu amor, eu juro que ficará muito melhor aqui e mais segura também. E deve pensar na sua
gravidez.
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Ela ergueu o narizinho atrevido.
— Tenho confiança absoluta na sua capacidade de tomar conta de mim.
— Mas estaremos sozinhos numa viagem de dois dias para ir e dois para voltar.
— Então, vai precisar da minha companhia, e Gretchen sem dúvida vai apreciar uma presença
feminina no meio de todos aqueles madeireiros, ou não sei como vocês os chamam.
Cole percebeu que Alaina estava decidida a ir com ele.
— Vejo que não vai desistir.
— Tem razão, senhor. Como você mesmo disse, eu o perdi uma vez, e não quero que isso ocorra de
novo. Além disso, já provamos que somos mais capazes de tomar conta um do outro do que de nós
mesmos. Isso devia ser o bastante para convencê-lo de que não podemos nos separar.
Cole ergueu a sobrancelha, divertido.
— Minha senhora, sem dúvida fez bom uso dos meus argumentos. Não posso deixar de ceder às
suas exigências.
Com um olhar carinhoso, Alaina aproximou-se do marido, que estava sentado no braço de uma
cadeira. Passou os braços pelo pescoço dele, e Cole abraçou sua cintura.
— Procurarei não dar muito trabalho, Cole — murmurou ela, docemente. — Se eu ficar aqui, vou
me preocupar o tempo todo.
— Devo confessar que a idéia de ter você só para mim, no meio do nada, é extremamente tentadora
— sorriu ele.
Inclinando-se para trás, apoiada nos braços dele, Alaina riu, vendo o olhar ávido de Cole no seu
decote.
— Tem certeza, senhor, de que não planejou tudo desde o começo?
Cole acariciou os lábios dela com a ponta da língua, apertando-a contra seu corpo, fazendo-a sentir a
força da sua masculinidade.
— A idéia me passava pela mente, sempre que eu pensava em deixá-la. Duas semanas é muito
tempo.
— Uma eternidade — suspirou Alaina, respondendo ao beijo ardente do marido.
Na manhã seguinte, quando Cole e Alaina saíram de casa, o trenó mais Pesado já estava pronto para
a viagem. Estava escuro ainda, sem lua, e o ar cortante adormecia os dedos das mãos e a pele do
rosto, embora
529
sem o menor sinal de vento nos galhos desfolhados das árvores. Col e acomodou Alaina, com roupas
de homem, entre a pilha de peles do banco do trenó e a caixa com a espingarda na parte de trás.
Então assobiou para Soldado e bateu com a mão na lona que cobria os suprimentos da viagem.
Sentou-se ao lado de Alaina e, respondendo com um gesto afirmativo às advertências dos criados
para viajar com cuidado, levantou as rédeas.
Os sinos do trenó ecoaram no ar parado quando Cole conduziu os cavalos para fora da propriedade.
Para Alaina, bem agasalhada com o casaco de peles com capuz, muito parecido com o que Cole
vestia, era como estar passando por um sonho muito branco. Tudo era silêncio e imobilidade,
congelado e inofensivo, a paisagem esperando pela magia da primavera que a libertaria do
encantamento do inverno. Alaina, encostada em Cole, não encontrava palavras que descrevessem seu
contentamento e seu amor por ele.
A primeira luz do dia tingia o céu no leste com um suave magenta quando passaram por St. Cloud.
Subiram a margem baixa do rio e entraram na Government Road, que seguia para o norte,
acompanhando o Mississippi. No fim da tarde, avistaram um prédio baixo e longo. Nos fundos, a
área coberta por um telhado inclinado servia de abrigo para os cavalos, e pouco adiante havia uma
cabana rústica de madeira. Ali passariam a noite e no dia seguinte, no fim da manhã, chegariam ao
seu destino.
Agasalhados num casulo de peles, fizeram amor à luz do fogo da lareira e de madrugada seguiram
viagem. Soldado caminhou ao lado do trenó durante algum tempo, mas não encontrando nenhum
animal para perseguir, subiu para a pilha de bagagem e adormeceu.
Franze Prochavski cortava lenha ao lado da cabana quando avistou o trenó e ouviu os latidos de
Soldado. Sorrindo, ele ergueu a mão e, largando o machado, foi ao encontro dos visitantes. Logo
Gretchen apareceu na porta. Rindo, feliz, fez sinal para Franze levá-los logo para dentro.
— Ela sabia que você viria — disse Franze para Cole, ajudando Alaina a descer do trenó.
Acrescentou, com sinceridade: — E estou muito aliviado por terem vindo.
Franze os levou para o interior da cabana e Gretchen pôs água no fogo para o chá e vários tipos de
pão e frios na mesa. Cole se ajoelhou para ajudar Alaina a tirar as botas, e assim que ela se livrou do
casaco
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de pele, Gretchen notou que estava grávida. Com um sorriso de satisfação, adiantou-se para abraçar
Alaina.
— É bom você e Cole fazerem um bebê juntos. Vai unir os dois ainda mais.
Para Alaina era a renovação do conhecimento feito havia alguns meses, e a personalidade esfuziante
e alegre de Gretchen fazia da pequena reunião um animado acontecimento social.
Cole percorreu sua propriedade e ficou satisfeito com o trabalho que estava sendo feito. Foi um
plano iniciado com a esperança de que Alaina lhe desse herdeiros. Quando estava casado com
Roberta não tinha nenhuma ambição de expandir sua fortuna. Agora, tudo era diferente, e cada
transação comercial que empreendia era para Alaina e para seus filhos.
Em atenção à gravidez adiantada de Gretchen, a cama do casal estava num canto da sala, no primeiro
andar da cabana. No sótão, sob o teto baixo, haviam posto outra cama, ao lado do calor da chaminé.
Era um estrado simples com cordas trançadas, mas as várias camadas de acolchoados de penas
faziam dele um lugar delicioso para o casal apaixonado e ali eles passaram muitas horas felizes.
No começo da noite do quinto dia da visita, Franze tentava ensinar um novo jogo de cartas, com
regras estranhas, chamado uíste que, ele jurava, fora trazido pelos mais recentes imigrantes da
Alemanha. No meio da explicação, Gretchen, com uma exclamação abafada, deixou cair as cartas.
Passada a dor, ela sorriu e disse apenas:
— Acho que começou.
As dores mantiveram-se irregulares durante toda a noite, mas ninguém dormiu. Faltando cerca de
uma hora para o nascer do dia, as contrações se estabilizaram e quando o sol começou outra jornada,
uma nova voz soou na cabana. Foi um parto normal, um menino, forte e saudável e faminto pelo
leite materno.
A mera presença de Cole dera a Gretchen a confiança que precisava e, apesar dos protestos de
Franze, no terceiro dia ela se levantou e voltou ao trabalho. Na hora da partida, Alaina, com
relutância, devolveu o bebê aos braços da mãe e arrumou sua roupa na venerável mala de vime.
O dia amanheceu frio e cinzento. Depois do lauto café da manhã, os Latimer se despediram, Cole
assobiou para Soldado e partiram na direção sul. Mal tinham chegado no rio quando finos flocos de
neve começaram a cair e o mundo diminuiu em volta deles, transformando
531
os pinheiros na margem do rio em formas distantes e indistintas. Mesmo protegidos pelas várias
mantas de pele, o frio os castigava.
Algumas horas depois, a neve ficou mais densa, formando uma espessa camada no solo, sobre a qual
o trenó deslizava. O vento gemia e uivava nas copas das árvores como um grupo de almas penadas
anunciando desgraças. Cortinas rodopiantes de neve os envolviam, e os cavalos tropeçavam e
escorregavam na camada de gelo.
Pouco depois do meio-dia, Cole afastou o trenó do rio e entraram num desfiladeiro sinuoso, que
atravessava a margem norte.
— Havia uma cabana de caçadores aqui — gritou ele, para ser ouvido no meio da fúria da
tempestade. — Temos de nos abrigar até o tempo melhorar.
A cabana baixa, de toras de madeira e teto de palha, protegida pela encosta, ainda estava lá. Entre ela
e o desfiladeiro um telhado protegia a área do que devia ter sido o curral. Soldado saiu para
inspecionar as redondezas, enquanto Cole e Alaina examinavam a cabana. A lareira de pedras,
embora um pouco danificada, ainda estava em condições de abrigo, e depois de acender o fogo, Cole
saiu para acomodar os cavalos. Voltou com o grande cesto com comida e a caixa com a arma.
Soldado entrou atrás dele e farejou cada canto da cabana antes de se deitar na frente do fogo.
Embora não fosse desprovida de riscos, era uma situação confortável. Uma pilha de feno bem seco
foi posta no trenó para aumentar seu peso. Tinham bastante lenha disponível e poderiam conseguir
mais com o machado enferrujado. A comida que tinham dava para vários dias, e uma pequena caçada
poderia reforçar o suprimento. Só restava procurar o maior conforto possível e inventar meios para
passar o tempo.
O conforto foi garantido com as pilhas de mantos de peles retiradas do trenó, e o brilho satisfeito
nos olhos de Alaina prometia providenciar o passatempo. A tempestade de neve uivava lá fora, e a
pequena cabana tornou-se um mundo à parte. Ao cair da noite, Soldado saiu para dar uma volta, e o
que aconteceu depois da sua saída foi um verdadeiro batismo da cabana no mais puro sentido
conjugal.
No morno calor do amor satisfeito, os dois ficaram deitados, de frente um para o outro, os quadris
unidos, seu hálito misturando-se, enquanto trocavam beijos lânguidos e demorados. Maravilhado,
Cole sentia os leves movimentos da criança contra seu corpo. Embora fosse médico e tivesse
testemunhado o milagre de um nascimento havia pouco tempo, aquele bebê era especial. Era algo
criado pelo amor dos
532
dois, e ele rezava para que tudo corresse bem e que depois de algum tempo tivessem várias provas
dessa devoção mútua.
— Você me enfeitiçou, Alaina Latimer — suspirou ele, com os lábios encostados nos dela.
Ela murmurou, como se alguém mais pudesse ouvir.
— Por que diz isso, meu amor?
— Desde a primeira noite em que nos conhecemos como homem e mulher, fiquei preso ao seu
encanto e nunca mais deixei de desejá-la. Chame de amor, se quiser, pois não posso negar que me
apaixonei por uma mulher cujo nome não sabia e cujo rosto nunca tinha visto.
— Mas você não disse que o amor deve crescer com o tempo? — perguntou ela.—E que desconfia
de qualquer sentimento que aparece de um dia para o outro entre duas pessoas?
— Sim, eu disse isso — admitiu.—Mas foi quando tratava ainda meu amor com muita cautela e
relutava em admitir que ele existisse.
Alaina riu e o beijou.
— Foi quando você era ainda um ogro, meu amor.
Cole sorriu e seus olhos brilharam à luz do fogo.
— Ainda sou, mas consigo disfarçar melhor. — Afastou a mecha de cabelos do rosto dela. — Mas
abandonei muita coisa em favor de algo mais brilhante e especial. E a cada dia que passa, meu amor
por você cresce incrivelmente.
— Você me amou de verdade, desde a primeira vez que fizemos amor? — perguntou ela,
timidamente.
— É claro. Você vivia nos meus sonhos. Mesmo sem conhecer seu rosto, você era uma sombra
branca no fundo da minha mente. Foi essa esperança que me fez casar com Roberta. O sonho
empalideceu e voltou como um pesadelo, quando descobri quem você era. O aço frio na perna me
torturava, mas o mais doloroso era o aço em brasa na minha mente.
— E com o que sonha agora?
Rindo, Cole abraçou-a carinhosamente, apertando-a contra o peito nu.
— Eu mudei muito, minha senhora. Desisti do aço. Ele não tortura mais nem minha perna nem
minha mente. Meu sonho vem para mim quando estou acordado, e quando fecho os olhos é à
procura de descanso, não de um vulto vago.
Um tremor percorreu o corpo de Alaina, seus lábios se encontraram e o desejo se acendeu
novamente.
533
A neve parou de cair no dia seguinte, mas o sol era um círculo indistinto no céu, e o vento continuou
inclemente, rodopiando e fazendo esculturas estranhas com os montes de neve. Ficaram mais um dia
na cabana e naquela noite o frio aumentou e o vento substituiu a tempestade.
Abraçados, uniram o calor dos dois corpos contra o frio cortante que nem o fogo alto na lareira
conseguia expulsar da cabana. Soldado encontrou uma pele muito velha na frente da lareira e, depois
de dar algumas voltas sobre ela, deitou-se para se aquecer. A pequena cabana ficou silenciosa,
enquanto o vento uivava nos pinheiros que a protegiam.
No meio da noite, Cole acordou, tenso e alerta. Soldado andou pela cabana e quando farejou a porta,
o pêlo eriçou e os cavalos relincharam nervosos lá fora. Então Cole ouviu outra vez o uivo sinistro
dominando o gemer do vento. Soldado se abaixou rosnando, e um dos cavalos relinchou outra vez,
apavorado.
Alaina acordou quando Cole saiu da cama improvisada. Em silêncio ela o viu vestir a calça de couro
e a camisa de lã que deixou desabotoada. Ele tirou o revólver do coldre e rodou o tambor para ver se
estava carregado. Então voltou-se e viu que Alaina o observava.
— Lobos — disse ele, em resposta à pergunta silenciosa dos olhos dela, acendendo um lampião. —
Estão assustando os cavalos.
Alaina rapidamente se agasalhou com um manto de pele, e Cole abriu a porta e ergueu a lanterna
para fora. Assim que viram a luz, cerca de meia dúzia de lobos cinzentos recuaram da área do
estábulo, mas Cole viu, pelo brilho dos olhos no escuro, que estavam agora sentados perto da linha
dos pinheiros, ainda ameaçadores. Ergueu a pistola e atirou para o ar até descarregar a arma. Os
olhos brilhantes desapareceram, mas por pouco tempo. Logo estavam de volta, em menor número,
mas com a mesma persistência.
Enquanto Cole recarregava a arma, Soldado saiu correndo da cabana. Reconhecendo um inimigo que
podiam enfrentar, os lobos avançaram rosnando, num ataque em massa. Soldado aparou o impacto
do primeiro lobo e abaixou a cabeça, enfiando as presas selvage-mente na garganta do atacante.
Depois, atirou o animal morto para trás. Soldado segurou o segundo adversário pela garganta quando
Cole viu Alaina passar rapidamente por ele. Logo em seguida, o estampid o dos dois canos da
espingarda quase o ensurdeceu. Um dos lobos deu uma cambalhota e caiu de cabeça num monte de
neve, onde ficou imóvel. Cole ergueu a pistola e com um tiro certeiro abateu o animal
534
que se preparava para atacar Soldado por trás. Deu os dois últimos tiros no atacante que estava à
vista, e viu o último morto, dependurado ainda da boca de Soldado. Depois de mais uma sacudidela,
Soldado jogou a vítima no chão, com desprezo, farejou um a um os lobos mortos e voltou para a
cabana, com sua calma habitual.
Cole olhou para a arma que tinha nas mãos. Não ouvira o estampido dos seus dois últimos tiros.
Sentiu o tranco da pistola, viu a faixa de fogo e viu os animais caírem mortos. Mas tudo que ouvia,
mesmo agora, era um zumbido surdo. Chamou Soldado e não ouviu a própria voz, mas o cão correu
para ele com a língua de fora e deitou-se novamente na frente do fogo.
Cole percebeu que Alaina estava massageando o ombro direito. Ainda saía fumaça da espingarda que
caíra das suas mãos transidas de frio, depois do tiro. Cole abraçou o corpo trêmulo da mulher.
Depois de um momento, mais calma, ela sacudiu a cabeça e, com lágrimas de alívio descendo pelo
rosto, pediu a ele para ver como estava Soldado.
O cão tinha um arranhão profundo no peito e pequenos cortes nas orelhas e nas pernas. Cole pôs
mais lenha no fogo, recarregou as armas e diminuiu a luz do lampião.
Sentada no meio das mantas de pele, Alaina observava o marido com um olhar cheio de ternura.
Cole pôs a arma no coldre e ajoelhou ao lado dela para examinar o ombro dolorido que começava a
ficar roxo. Quando Cole aplicou uma compressa na pele macia, Alaina virou a cabeça com um
convite nos olhos cinzentos. Ele a abraçou de repente, esquecendo os sinos que pareciam tocar
dentro da sua cabeça quando seus lábios se encontraram e se uniram avidamente...
Depois, enquanto Alaina dormia com a cabeça no ombro dele, Cole, olhando para as sombras que
dançavam no teto rústico, sentia a paz perfeita que só o amor de uma mulher pode proporcionar a
um homem — e podia outra vez ouvir o suspiro suave do vento nos pinheiros.
535
Capítulo Quarenta
OS VENTOS DE MARÇO chegaram com uma leve sugestão de calor e, no fim do mês, começaram
a aparecer áreas de água na superfície do rio. O gelo do lago ficou cinzento, e a última semana do
mês trouxe uma chuva fina e fresca. Ao cair da noite, porém, nevou outra vez, e o manto branco
tornou a cobrir a paisagem.
Abril trouxe dias quentes e nuvens fofas, o rio subiu acima do gelo, e as montanhas adquiriram uma
cor de terra acinzentada. Passou a lua cheia e o quarto crescente. Gansos e cisnes grasnavam durante
a noite e patos esvoaçavam sobre o rio, à procura de lugares para fazer seus ninhos.
A luz do relâmpago e o ronco do trovão acordaram Alaina no meio da noite. Ela levantou-se da
cama e foi até a janela para ver a tempestade que avançava para o penhasco, e rajadas de chuva
açoitaram os vidros. Alaina estremeceu e recuou ante a intensidade dos relâmpagos.
Os braços de Cole a enlaçaram por trás e ele passou a mão carinhosamente no ventre distendido.
Voltando-se, ela ergueu-se nas pontas dos pés para beijá-lo. Cole a carregou para a cama e a
tempestade de primavera rolou sobre a casa no penhasco, deixando após sua passagem uma paz
suave e terna, umanoite silenciosa para os amantes, que dormiam abraçados.
536
Maio trouxe a promessa das flores da primavera, e como não encontraram nenhum jardineiro, Peter
foi encarregado de revolver a terra no jardim das rosas. Cole acabava de atender um paciente, um dos
muitos dos últimos meses, e Alaina estava na sala com Mindy quando ela viu Peter entrar correndo à
procura de Cole. Ela saiu para o hall e quase foi derrubada pelo marido e por Peter, que corriam para
a porta. Curiosa, foi até a varanda e viu os dois homens cavando a terra do jardim. Ia descer os
degraus da frente quando alguém segurou sua saia. Voltou-se surpresa e viu Mindy tentando
desesperadamente evitar que ela saísse.
— O que aconteceu, Mindy? — perguntou, surpresa, mas a menina apenas balançou a cabeça
arregalando os olhos cheios de medo como os de um animal encurralado.
Percebendo que algo muito sério perturbava a menina, Alaina desistiu de ver o que os homens
estavam fazendo e ficou com ela. Tremendo incontrolavelmente, Mindy escondeu o rosto no colo de
Alaina.
Cole largou a pá e ia ajoelhar ao lado do buraco quando viu Alaina e Mindy na varanda. Ergueu o
braço e ordenou:
— Vá para dentro e leve a menina, Alaina.
Sem entender, Alaina obedeceu. Logo depois, Cole entrou no hall, e Peter desceu a encosta
correndo, na direção do estábulo. Assim que Cole entrou na sala, Mindy correu para ele e, abraçando
suas pernas, começou a soluçar sentidamente. Cole a ergueu do chão e ela escondeu o rosto no
ombro dele.
— Você sabe o que encontramos, Mindy? — perguntou em voz baixa, e a menina fez um gesto
afirmativo. Sim, ela sabia. — Encontramos o tio de Mindy enterrado sob as roseiras. Aparentemente
foi há muito tempo, talvez desde o desaparecimento dele.
Alaina sentou-se rapidamente, sentindo que perdia a força nas pernas. Estremeceu, lembrando que
havia revolvido a terra naquele mesmo lugar.
— Peter foi chamar o xerife — disse Cole. — Enquanto esperamos, vou levar Mindy para cima e
pedir a Gilda que fique com ela. Talvez consiga descansar um pouco. Sem dúvida, o xerife vai querer
interrogá-la. Os bracinhos apertaram mais seu pescoço e Cole, dando pancadinhas carinhosas nas
costas dela, disse: — Está tudo bem. Ninguém vai lhe fazer mal. De agora em diante, nós tomaremos
conta de você.
537
Quando ele saiu, Alaina ficou imóvel na sala silenciosa. Seu corpo estava enfraquecido com o
choque, mas sua mente voava, explorando mil e uma hipóteses. O que teria provocado a morte do
jardineiro? Como, o que e quanto Mindy sabia sobre a morte do tio?
— Ele foi assassinado — disse Cole, entrando na sala. — Aparte posterior da cabeça está esmagada,
como se tivesse sido atacado pelas costas. Tudo parece indicar que ele caiu diretamente na cova
quando foi atingido.
— Acha que ele mesmo cavou o túmulo?
— É possível, mas por quê? Não é preciso cavar tanto para plantar roseiras e não posso imaginar o
homem cavando a própria sepultura. Então, talvez estivesse enterrando outra coisa qualquer.
Cole deu de ombros.
— A não ser que Mindy possa nos contar alguma coisa, só podemos fazer conjeturas. Não havia
nada mais na cova, nenhum tesouro ou coisa parecida.
Tesouro? Apalavra ecoou em sua mente, procurando alguma coisa na memória. Roberta não
mencionava um tesouro no seu diário? Alguma coisa sobre sair de Latimer House com muito
dinheiro? Mas, onde estava o diário agora? Com quem? Com os assassinos do jardineiro?
Alaina mordeu o lábio, pensativa. Devia acreditar nas fantasias da prima? Talvez não passasse de
mais uma criação da mente deturpada de Roberta, e seria tolice levar a sério.
O assistente do xerife, Martin Holvag, atendeu o chamado de Cole, uma vez que conhecia a família.
Levou dois homens com ele e depois de terem retirado o corpo da cova estreita, ouviu atentamente o
relato de Cole. Alaina estava interessada nas roseiras, disse ele, e mandou Peter revolver e adubar a
terra. Peter descobriu primeiro o chapéu do jardineiro e depois, cavando mais fundo, o corpo.
Os homens do xerife revistaram o corpo do morto e encontraram um rolo de fumo, uma faca,
algumas moedas e numa bolsa, no paletó, três notas de dez dólares relativamente novas. O assistente
do xerife deu tudo a Cole, para ser entregue a Mindy, a única herdeira.
— Uma vez que ele era o tio de Mindy e meu empregado — sugeriu Cole, quando os homens
puseram o corpo na carroça —, o mínimo que posso fazer é providenciar um túmulo decente para o
corpo.
Martin fez mais perguntas, mas Cole não tinha as respostas.
538
— Sinto muito, mas não posso ajudar a esclarecer este caso. O homem desapareceu algumas
semanas antes da morte de Roberta. pensamos que tivesse fugido, deixando Mindy, porque não
queria mais tomar conta dela.
— E seus criados? Você os conhece bem, Cole?
— A sra. Garth e as duas arrumadeiras foram contratadas pelo sr. James pouco antes da minha volta
de Nova Orleans com Roberta. A não ser o jardineiro, que contratei depois de saber que o antigo
não voltou da guerra, os outros estão conosco há muito tempo e foram contratados por meu pai.
— Sua segunda esposa chegou depois do desaparecimento do jardineiro, mas e a primeira? —
insistiu Martin. — Ela poderia saber alguma coisa a respeito disto?
— Roberta o detestava. Para ela o jardineiro era o mesmo que lixo. Mas na verdade não dava muita
atenção a nenhum dos criados.
— Posso falar com Mindy agora? Talvez ela possa esclarecer alguma coisa.
Conversavam na varanda, e Cole indicou a casa com um gesto.
— Ela está na sala com Alaina. Está muito abalada e desde que a conheço, nunca a ouvi dizer uma
palavra, portanto, não sei o quanto ela pode revelar.
— Quer dizer que ela não pode falar?
— Não. Não acredito que não possa. Apenas não quer. Martin limpou os pés antes de entrar e,
timidamente, tirou o chapéu para Alaina. Quando o viu, a menina se encolheu na cadeira, chegando
mais perto de Alaina. Martin abaixou-se na frente delas, mas Mindy não ergueu os olhos.
— O dr. Latimer disse que você sabia que seu tio estava enterrado no jardim. Sabe quem o pôs lá?
Mindy ficou muito pálida e contraiu a boca convulsivamente, mas sem um som. Era como se
estivesse presa numa teia de terror.
Alaina a abraçou, acalentando-a contra o peito, e lançou um olhar de súplica para Cole.
— Talvez isso possa ser deixado para mais tarde, Martin—disse Cole. — Como pode ver, ela está
terrivelmente assustada.
— Se não se importa, vou levá-la para o quarto — murmurou Alaina e com alívio viu o assistente do
xerife fazer um gesto afirmativo.
539
Quando Alaina saiu da sala, Martin abordou outro assunto que o interessava.
— Cole, por acaso viu um pequeno barco passar no rio... branco com listras vermelhas. Não muito
grande, um barco com pás de roda, chamado Thatcher?
Cole estendeu um copo com conhaque a Martin e balançou a cabeça.
— Não recentemente. Mas há uma ou duas semanas.
Martin franziu a testa.
— Este que estou perguntando deve ter passado há dois ou três dias. Sem passageiros. Só a carga de
arados, arame e lenha. As únicas coisas de valor eram umas poucas caixas com rifles Winchester. Na
última quarta-feira, o barco passou pelas quedas-d'água e foi visto subindo o rio a uns vinte
quilômetros ao sul daqui. Depois disso, praticamente desapareceu.
Cole tomou um gole da bebida.
— Pode ter tido algum problema. Com tanto ferro a bordo, podia afundar como uma pedra.
— Bem, vou continuar a procurar — disse Martin, esvaziando o copo com um só gole. Olhou pela
janela. — Vejo que meus homens me esperam. Acho melhor levar o corpo logo para a casa
funerária.
Cole o acompanhou até a porta.
— Acho que o homem tinha um quarto na cidade e um cavalo velho usado por ele e pela menina.
Não deixe de me informar se descobrir alguma coisa.
Depois que o delegado partiu, Cole apanhou distraidamente os objetos encontrados no corpo do
jardineiro. Esfregou as notas entre os dedos. Eram lisas e brilhantes, mas emitidas no ano de 1863. A
julgar pelo estado de conservação, podia quase garantir que tinham sido enterradas algum tempo
depois do corpo do homem. Verificou os números de série. Eram consecutivos. Como um jardineiro
que ganhava seis dólares por semana podia ter alguma conexão com uma instituição financeira ou
um banco?
Aparentemente havia algo mais misterioso naquele caso, mas Cole não tinha idéia do que podia ser.
Amarrou todos os objetos num lenço e guardou numa das gavetas da sua mesa.
Os bisbilhoteiros fizeram logo uma série de conjecturas sobre o corpo encontrado no roseiral dos
Latimer. Uns diziam que o médico matara
540
o homem num acesso de ciúmes, mas não sabiam se dizia respeito à primeira ou à segunda mulher.
O fato de o morto ser de meia-idade, sujo, nada bonito, e certamente não poder competir com o
belo médico, parecia não ter importância. Uma matrona gorducha, com língua ferina, tinha certeza
de ter visto a atual sra. Latimer passeando com o jardineiro pelo campo, logo depois que chegou do
sul. Contou isso a Xanthia Morgan, enquanto experimentava alguns chapéus, e embora Xanthia não
tivesse intenção de defender Alaina, disse que jamais o dr. Latimer recorreria à violência, nem num
acesso de ciúmes. Além disso, acrescentou, dando de ombros, sabia de fonte segura que o casamento
dos Latimer era apenas um contrato e que o médico aceitara a jovem na sua casa por compaixão,
assim como recolhera Mindy.
A matrona de queixo triplo ergueu as sobrancelhas quase inexistentes, olhando para a chapeleira com
ar condescendente.
— Minha querida, é óbvio que não tem visto a sra. Latimer recentemente — disse a fofoqueira.
Com a superioridade de quem sabe das coisas, recusou dar mais explicações, deixando Xanthia
fervendo de curiosidade. Afinal, Xanthia repelira suas sugestões e era bem feito se fosse a última a
saber do estado da sra. Latimer. Contrato coisa nenhuma!
Naquela mesma tarde, Xanthia chegou na porta da loja quando uma grande carruagem preta entrava
na cidade. Ela a teria reconhecido em qualquer parte do mundo, bem como ao seu dono, o belo
homem de ombros largos. Cole Latimer estava na cidade. E o pensamento passou por sua mente.
Talvez, só talvez, ele a procurasse.
A carruagem parou na frente do escritório do sr. James, e o pulso de Xanthia acelerou. Não
importava que não tivesse parado nos fundos da sua casa. Olhou fixamente para o homem com
roupa escura que desceu. Cole estava muito bem, pensou ela, com um sorriso. E havia algo diferente
nele. Então percebeu que não usava mais a bengala e não mancava.
Cole voltou-se, e as esperanças de Xanthia desmoronaram. Uma mulher desceu da carruagem. Cole
estendeu a mão e a ajudou cuidadosamente e, apesar do xale que Alaina usava, Xanthia compreendeu
o que a matrona gorducha queria dizer. Alaina Latimer estava grávida.
Amargurada pelo ciúme, Xanthia olhou para a outra mulher. Um filho foi a única coisa que ela
tentou dar a Cole, mas não conseguiu, por mais que quisesse algum motivo para prendê-lo
definitivamente.
541
Cole ajudou Carolyn Darvey a descer e os três conversaram por alguns momentos. Cole consultou o
relógio, respondeu com um gesto afirmativo a uma pergunta de Carolyn, que deu de ombros,
afastando-se dos dois. Mas parou quando Alaina aproximou-se do marido e ergueu o rosto para ele.
Xanthia Morgan viu Cole abraçar a mulher e beijá-la na boca, com mais entusiasmo do que seria
próprio no meio da rua. Trocaram algumas palavras, e Cole apertou a mão de Alaina, antes de ela se
afastar com Carolyn. Cole ficou vendo Alaina caminhar para Carolyn e só depois de algum tempo
entrou no escritório do advogado.
Depois de quase uma hora, quando Xanthia vinha dos fundos da loja, viu Carolyn e Alaina à porta.
Por um momento, as duas mulheres se entreolharam, chocadas, mas Carolyn, examinando os
chapéus com entusiasmo, não notou o embaraço de ambas nem o corado intenso de Alaina.
Xanthia as cumprimentou delicadamente, evitando olhar abaixo da gola do vestido azul de Alaina,
encantadoramente feminino e sem dúvida muito caro e elegante. O chapéu enfeitado com fitas podia
rivalizar com os melhores da sua loja. Xanthia sufocou o monstro do ciúme com toda a sua força de
vontade e, respirando fundo, entregou-se ao papel de dona da loja.
— Posso ajudá-las, senhoras? — perguntou, solícita.
— Eu queria mostrar à sra. Latimer aquelas encantadoras touquinhas para bebês que você costumava
ter na loja — disse Carolyn, descontraidamente, ignorando por completo a gafe de ter levado Alaina
à loja de Xanthia. — Ainda tem alguma?
— É claro. — Xanthia abriu as portas de um armário e tirou um cesto cheio de pequenas toucas
enfeitadas com renda e com abas franzidas.
— Muito bem, aqui está uma para menino, Alaina. — disse Carolyn. — Olhe esta. Já viu coisa mais
bonita?
— Cole espera que seja menina — murmurou Alaina, desejando desesperadamente sair da loja e
voltar para casa.
Desapontada com a falta de interesse de Alaina e percebendo que alguma coisa a preocupava,
Carolyn não pediu para ver outras toucas. Quando saíram, ela perguntou:
— Está se sentindo bem, Alaina?
— Sim, é claro, Carolyn. — Alaina sorriu fracamente. — É só o calor, nada mais.
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Saíram para a calçada de madeira, e Alaina quase colidiu com um homenzinho muito bem-vestido.
Ergueu os olhos para se desculpar e estremeceu de terror. Embora usasse agora o cabelo mais
comprido para esconder a orelha esquerda, o homem era Jacques DuBonné.
Ele segurava na mão direita uma bengala leve com cabo de prata e a luva da mão esquerda.
Recobrando-se da surpresa, ele ergueu a mão para tirar o chapéu, notando o estado de Alaina. Com
um sorriso quase de zombaria, Jacques abriu a boca para dizer alguma coisa.
Pálida e trêmula, Alaina deu meia-volta e entrou na loja de Xanthia, ignorando a pergunta ansiosa e a
confusão de Carolyn. Alaina apoiou-se numa mesa cheia de chapéus e sentiu o mundo desaparecer à
sua volta e os joelhos dobrando sob seu corpo. Pequenos pontos negros cresceram, até tudo se
transformar num vazio escuro, e Alaina não viu quando Xanthia correu para ela e, amparando-a, a
deitou suavemente no chão.
— Alaina! — exclamou Carolyn, assustada, correndo para ela. Ajoelhada no chão, com a cabeça de
Alaina no colo, Xanthia ergueu os olhos e disse, com espanto:
— Ela desmaiou.
— Acho melhor chamar Cole — disse Carolyn. Já na porta, voltou-se e perguntou: — Quer tomar
conta dela, por favor?
— É claro. — Xanthia olhou para o rosto delicado da vitoriosa do seu jogo de amor. Soltou as fitas
que prendiam o chapéu de Alaina e o tirou com cuidado.
Jacques DuBonné, parado à porta do armazém geral, viu a jovem loura sair apressadamente da loja.
Ela entrou num pequeno escritório na mesma rua e logo reapareceu com o bom dr. Latimer. Jacques
sorriu com desdém. Então foi o major quem colheu o fruto e plantou sua semente.
Xanthia ergueu a cabeça quando a porta da loja se abriu de repente e Cole Latimer entrou,
transtornado. Para seu desapontamento, Cole mal olhou para ela e, ajoelhando-se, tomou Alaina nos
braços.
Xanthia levantou-se e apontou, hesitante, para os fundos da loja.
— Tenho um quarto nos fundos, se quiserem.
Cole inclinou a cabeça, num agradecimento silencioso, e seguiu pelo corredor que conhecia tão bem,
acompanhado por Carolyn. Quando Xanthia entrou no quarto, Cole já havia aberto a gola do vestido
de Alaina e passava uma toalha úmida no rosto e no pescoço dela. Alaina começava a voltar a si.
543
Os cílios espessos abriram aos poucos, ela olhou em volta, confusa, e depois, vendo Cole, ergueu o
corpo e passou os braços pelo pescoço do marido. Xanthia desviou os olhos, com o coração
apertado, quando Cole beijou carinhosamente a cabeça da mulher e afastou as mechas de cabelo do
seu rosto.
— Está melhor agora? — murmurou ele, com um sorriso terno.
— Cole, era Jacques! — disse Alaina, em voz baixa, encostando o rosto no peito dele. — Ele está
aqui em St. Cloud. Eu o vi!
Cole afastou-se um pouco, olhou para Alaina e viu o medo e a angústia nos olhos dela. Seus lábios
tremiam e as lágrimas desciam pelo rosto. Alaina estava terrivelmente assustada.
Voltando-se para Xanthia, Cole perguntou:
— Minha mulher pode descansar um pouco aqui? Preciso falar com o xerife. Não me demoro.
— Cole, não! — exclamou Alaina, segurando-o pela manga. — Pense no que ele pode fazer.
— Está tudo bem, Alaina. — procurou acalmá-la. — Confie em mim.
Os dois entreolharam-se, e Alaina, trêmula ainda, não procurou mais detê-lo. Cole a beijou na testa e
olhou interrogativamente para Xanthia.
A dona da loja fez um gesto afirmativo, decidindo naquele momento que não havia nenhuma
esperança para ela no que dizia respeito a Cole.
Chegando ao posto policial, Cole encontrou Martin Holvag de plantão. Disse a ele que um homem
procurado pela lei estava na cidade e pediu ao assistente do xerife para acompanhá-lo. Os dois
homens começaram pelos hotéis da cidade e, para surpresa de Cole, havia um recado para ele no
Stearns House. Jacques pedia que fosse ao seu quarto. Cole não hesitou. Com os músculos tensos e a
testa franzida, ele bateu à porta. O próprio Jacques a abriu, imediatamente.
— Ah, boa noite, dr. Latimer. — O sotaque cajun quase desaparecera. — Vejo que sua mulher lhe
contou sobre nosso encontro. Peço desculpas por tê-la perturbado. Minha intenção era procurá-lo e
apresentar minhas credenciais para tranqüilizar a todos. Se o senhor não tivesse vindo, eu o teria
mandado chamar.
— Realmente? — disse Cole, com irônica incredulidade. Jacques olhou para o distintivo de Martin.
— É claro, um representante da lei. Era de esperar e é muito bom
544
que esteja aqui. Entrem, cavalheiros. O que vou lhes mostrar não tomará muito tempo — avisou ele.
Fechou a porta e apanhando o casaco do espaldar da cadeira, tirou do bolso uma bolsa de couro,
usando desajeitadamente só a mão esquerda. Cole notou a outra mão enluvada, e quando Jacques
virou a cabeça, viu o orifício na orelha esquerda. Ajeitando o cabelo, Jacques abriu a bolsa,
mostrando um maço de documentos. Sacudiu os papéis sob o nariz de Cole e os entregou a Martin.
Depois, com um gesto largo, explicou:
— Apenas para provar que não sou mais procurado pela lei, cavalheiros. Esses documentos atestam
o perdão completo do governador do estado da Louisiana. E aqui — tirou outro papel da bolsa —
está a autorização de uma firma com sede em Paris para representá-los, a fim de estudar os possíveis
mercados nesta região.—Fez uma pausa, dando tempo aos dois homens para verificar os
documentos. Depois, examinando com arrogância as unhas da mão esquerda, disse: — Posso
garantir que sou muito considerado pelas partes em questão e tudo que vou fazer aqui é trabalho
honrado... e legal. Tem alguma pergunta?
Não convencido, Cole olhou atentamente para o homem. Os olhos de Jacques encontraram os dele
por um segundo.
— Dentro de um ou dois dias, dr. Latimer, deixo a cidade. Não tenho intenção de voltar num futuro
próximo.
Cole usou de franqueza.
— Não quero saber se tem seu perdão escrito em pedra pelo próprio Deus. Se o apanhar na minha
propriedade ou perto da minha mulher, providenciarei para que seja julgado por uma corte muito
superior.
— É uma ameaça, monsieurl
— Não, uma simples afirmação sobre o que deve ser nosso futuro relacionamento.
Jacques olhou para ele e fez um gesto afirmativo, franzindo os lábios.
— Acho que compreendo. E considerando o que aconteceu, monsieur, não posso culpá-lo. Porém,
tudo que desejo é tratar dos meus negócios em paz e foi para dizer isso que o convidei a vir até aqui.
Cole sorriu, sem humor.
545
— Ótimo e espero que conclua o mais rápido possível os seus negócios neste estado.
— Vou me lembrar disso, monsieur dr. Latimer, e bom dia para o senhor também, xerife. — Jacques
abriu a porta, um convite claro para que saíssem.
— Sou apenas o assistente, senhor — corrigiu Martin, saindo para o corredor. — Mas talvez o
senhor esteja sendo apenas um pouco prematuro.
Jacques estendeu a mão esquerda para Martin, mas Cole demonstrou claramente que não queria
nenhum contato com ele. Pôs o chapéu e acompanhou Martin.
Durante o trajeto da loja até a casa dos Darveys, onde deixaram Carolyn, Cole e Alaina não disseram
uma palavra. Carolyn, sentada no banco, de frente para os dois, esperava impaciente que dessem
alguma explicação. Finalmente, quando pararam na frente da casa, Cole disse, com um sorriso nos
olhos.
— O homenzinho que você viu na frente da loja foi um patife e um aproveitador durante a guerra.
Chama-se Jacques DuBonné, e foi especialmente por causa dele que Alaina teve de sair de Nova
Orleans. — Pôs o braço sobre os ombros de Alaina. — Por esse favor, eu posso quase agradecer a
ele.
Alaina olhou para ele com um sorriso nervoso. Procurara controlar suas emoções enquanto Carolyn
estava na carruagem, mas assim que ela desceu, desabafou:
— Por que Jacques tinha de aparecer agora? E se ele disser para todos que sou uma ladra, assassina,
até mesmo traidora?—perguntou, com voz angustiada. — Ele quer me ver na prisão. Oh, por que ele
não ficou longe de nós? — Tirou um lencinho do decote para abafar os soluços.
Enquanto ela falava, Cole esforçava-se para tirar do bolso um maço de papéis. Depois de desdobrá-
los, ele os alisou no colo de Alaina.
— Pode esquecer seus temores, meu amor.
Surpresa, Alaina apanhou os papéis, enxugando as lágrimas.
— Eu os apanhei hoje no escritório do sr. James — disse Cole. Vendo a expressão de espanto de
Alaina, ele sorriu. — Ao que parece, Horace Burr trabalhou bem. Entrou em contato com os
advogados que contratei na Louisiana, e sua influência junto ao tribunal federal foi de grande ajuda.
546
Cole folheou os papéis rapidamente, para que Alaina visse as assinaturas.
— Estes são depoimentos. Meu, de Saul, do dr. Brooks, da sra. Hawthorne e de várias outras
pessoas. Mas são os menos importantes.
— Os últimos documentos eram escritos com letra caprichada, carimbados e autenticados. —
Documentos do governador da Louisiana — Cole leu, acompanhando as palavras escritas com a
ponta do dedo. — Eximindo Alaina MacGaren de toda e qualquer acusação feita contra ela quando
o estado da Louisiana era membro da confederação etc. — Virou a página e apontou outra vez as
palavras, enquanto lia. — Do comandante da União do Distrito Centro Sul. Uma vez que foi
provada a falsidade dessas acusações, e uma vez que não existe nenhuma outra evidência de
transgressão, as acusações mencionadas são retiradas e declaradas nulas e sem valor. Este documento
deve ser endossado pelo departamento apropriado, em Washington. E aqui estão os endossos... —
Apontou para os carimbos e as assinaturas no fim da página. — E para seu benefício, minha
senhora—chegou à última página.—Uma carta do general Taylor, quando era ainda general da ativa
da confederação, declarando que você nunca foi espiã e que apenas uma vez entregou a ele os
objetos de um soldado morto — concluiu ele.
Cole recostou-se no banco, tirou um charuto do bolso e saboreou o perfume do tabaco, girando-o
sob o nariz.
— Acredito, minha senhora, que não perpetrou a vilania que descreveu.
Alaina folheou os documentos e leu as assinaturas através das lágrimas.
GENERALRICHARD TAYLOR. CSA
MAJOR C. S. LATIMER, CIRURGIÃO USA, APÓS.
DR. THADEUS BROOKS
GENERAL CLAY MITCHELL, CIRURGIÃO USA
REVERENDO P. LYMAN.
E de um juiz desconhecido, as palavras.
"Doravante saibam todos que, depois de cuidadosa investigação do assunto e das declarações
juramentadas de testemunhas de integridade comprovada, ficou determinado que Alaina MacGaren é
inocente dos crimes de que foi
547
Acusada e que ficam sem efeito todas as recompensas por sua captura. Anexas as cartas de
testemunhas que juraram perante Deus e sob juramento que ela foi injustamente acusada e que
jamais poderia ter tomado parte no roubo do dinheiro para impedir pagamento dos soldados da
Federação na data especificada, uma vez que na ocasião ela estava na companhia de um oficial da
Federação.
Alaina observou.
— Mas essas cartas do general Taylor... de Saul... têm datas muito antigas!
— HUmmmmm. — Cole estava visivelmente satisfeito. — Algumas delas foram assinadas antes da
minha partida de Nova Orleans. Contratei os melhores advogados da Louisiana para tratar do caso e
Horace Burr é o advogado mais influente do leste. Contei a ele exatamente o que aconteceu, dei
permissão para divulgar seus disfarces às possíveis testemunhas, e dei os nomes de todos os lugares
que você freqüentou.
— Contou tudo a ele?
— Foi preciso, minha senhora, mas eu o fiz compreender que a culpa foi minha e que você estava
tentando me salvar de uma situação muito aflitiva. O dr. Brooks declarou que ouviu quase a mesma
história contada por Roberta. Mas não precisa se preocupar com Horace Burr. Ele é um homem
muito discreto. Não, minha senhora! Não precisa ter medo de que nosso filho nasça numa prisão.
Exceto pelo casamento, é uma mulher livre. Alaina recostou-se no banco e riu, entre as lágrimas.
— Quanto ao cativeiro a que se referiu — disse, misturando o riso aos soluços —, eu queria estar
acorrentada a você para sempre — disse ela.
Aninhou-se no peito dele, chorando convulsivamente. Cole a embalou com ternura, desempenhando
com grande prazer o papel de marido.
548
Capítulo quarenta e um
PELAS CONTAS DE Alaina MacGaren Latimer, maio era seu oitavo mês de gravidez. Ela fazia os
cálculos baseada no ritmo de crescimento do seu ventre. Há muitos meses trocara os belos e
elegantes vestidos por outros, de cintura alta e saia solta, que combinavam melhor com sua condição.
A medida que os dias ficavam mais quentes, o campo tingia-se de verde e o perfume do lilás e das
flores de maçã enchia o ar. Na sombra da floresta estendia-se um tapete de violetas, interrompido
aqui e ali pela brancura das flores frágeis do trílio.
Fazia quase um ano que Alaina estava no norte e as cartas dos Craighugh eram raras. Assim, quando
Leala escreveu perguntando se os Latimer estariam dispostos a receber visitantes de Nova Orleans,
Alaina ficou surpresa e feliz. Respondeu imediatamente, dizendo que ela e Cole teriam o maior
prazer em receber amigos do sul.
Naquela segunda-feira, esperando ainda resposta de Leala, Alaina costurava na sala quando ouviu os
latidos de Soldado e foi até a janela. Uma estranha caravana aproximava-se da casa. A carroça de
Martin Holvag vinha na frente, seguida por uma enorme carruagem preta, decorada em vermelho-
escuro e dourado, digna de um chefe de estado, com dois guardas atrás e um cavalariço ao lado do
cocheiro, puxada por duas parelhas de belos cavalos.
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Alaina foi até o hall de entrada e ficou atrás de Miles. O cavalariço desceu e bateu à porta. Martin
Holvag, no banco da sua carroça coberta, observava, com um sorriso estranho.
Miles abriu a porta e olhou com desdém para o cavalariço.
— Esta é a residência do dr. e da sra. Latimer? — perguntou o homem, formalmente.
— Exatamente — respondeu Miles, no mesmo tom.
O cavalariço foi até a carruagem, desceu o pequeno degrau e abriu a porta. Uma mulher, de pequeno
porte e gorducha, desceu, segurando a saia graciosamente.
— Tia Leala! — exclamou Alaina, correndo para a varanda, obrigando Miles a recuar para não ser
derrubado por ela. As duas mulheres encontraram-se no último degrau.
Com lágrimas nos olhos, Alaina abraçou carinhosamente a tia. Sentiu que alguém tocava seu braço e
voltou-se.
— Sra. Hawthorne! — disse, com a voz embargada de emoção. — Nunca imaginei que viesse
também!
— Não podíamos deixar de vir — livrando-se do abraço, Tally recuou e examinou Alaina. — O
suspense era demais, mas — olhou para o ventre de Alaina — valeu a espera e a viagem. Eu
começava a pensar que me enganara. Mas fico feliz por ver que você e Cole acertaram suas
diferenças. E, ao que tudo indica, não perderam tempo.
Leala parecia um pouco confusa.
— Acho que agora o casamento não pode mais ser anulado.
Alaina riu e abraçou a tia.
— Acho que não, tia Leala. Desistimos dessa idéia há muito tempo.
Leala acariciou o cabelo macio da sobrinha.
— Espero que não esteja zangada, Alaina. Suas cartas diziam que tudo estava bem, mas eu precisava
ter certeza. Roberta queixava-se tanto da vida aqui no norte, que fiquei preocupada.
Alaina a abraçou de novo.
— Nunca estive mais contente em toda a vida, tia Leala, e tão feliz com sua vinda que sou capaz de
sentar aqui mesmo e rir de alegria o tempo todo.
Alaina lembrou então de mandar Miles avisar Cole da chegada das visitas, mas quando se voltou viu
o marido bem atrás dela.
— Cole! — seus olhos brilhavam de alegria. — Elas estão aqui!
— É o que estou vendo — respondeu Cole, sorrindo. Afelicidade
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esfuziante de Alaina era contagiosa. — Com toda essa gritaria, como não ia perceber? —
Cumprimentou as duas senhoras. — Angus veio também?
— Não! — respondeu Leala rápida e secamente. Depois, abaixou os olhos, embaraçada. — Não...
está muito ocupado com a loja. — Respirou fundo e fez um esforço visível para parecer alegre. —
Tudo vai muito bem, realmente. Muito melhor do que antes da guerra.
— Senhoras? — Um cavalheiro alto e bonito de meia-idade, parado ao lado da carruagem, conseguiu
finalmente a atenção das três mulheres. — Devo continuar a viagem agora. Foi um prazer conhecê-
las e considerarei um privilégio contar com sua companhia novamente.
A carruagem partiu, e Alaina olhou surpresa para as duas visitantes.
— Viajando com homens estranhos, senhoras? — estalou a língua nos dentes, balançando a cabeça.
— Foi idéia de Tally — defendeu-se Leala, corando.
— É claro que foi! — disse Tally, com orgulho. — Ele nos ofereceu sua carruagem, porque vinha
também para este lado, e não vi razão para recusar. Além disso, na minha idade, qualquer coisa que
eu faça é legal, moral e decididamente tediosa.
— Onde o encontraram? — riu Alaina.
— No hotel, em St. Anthony, quando desembarcamos — explicou Leala.
— Ele é conde, lorde, ou qualquer coisa assim— a sra. Hawthor-ne não parecia impressionada e deu
de ombros. — Seja o que for, um perfeito cavalheiro.
Sorrindo, Cole viu Alaina levar as duas mulheres para a casa e depois aproximou-se da carroça de
Martin. Trocaram um aperto de mãos e o assistente do xerife, apoiando o cotovelo nas costas do
banco, disse rindo:
— As senhoras chegaram na cidade esta tarde e foram direto ao xerife perguntar onde ficava sua
casa. Eu vinha para cá e o xerife sugeriu que as acompanhasse. Parecem duas senhoras sulistas muito
finas.
— Sim, elas são—concordou Cole, acrescentando com um largo sorriso: — Amais desembaraçada...
bem... praticamente arranjou meu casamento.
Martin disse então o motivo da sua visita.
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— Perdemos outro barco no rio. O Carey Downs, mais ou menos no mesmo lugar.
— Estranho — disse Cole. — Não compreendo como, depois de todo o trabalho para passar pela
queda-d'água, tenham naufragado na parte calma do rio.
— Perdemos uns dois no ano passado também — disse Martin. —Se não fosse pelos carros de boi e
o comércio de peles, a companhia de navegação já teria desistido de chegar até St. Anthony. Não
encontramos nenhum sinal dos barcos, nem destroços, nada.
Cole ficou pensativo.
— Se afundaram, subirão à tona dentro de alguns dias e então vai ser possível descobrir as causas.
Espero que consiga também descobrir alguma coisa sobre o tio de Mindy.
— Descobrimos onde ele morava. Encontramos apenas algumas cartas que parecem indicar que ele
veio de algum lugar do Missouri, antes de apanhar Mindy e depois procurou emprego nos
acampamentos de madeireiros. Nenhum parente, exceto a menina, e nenhum amigo. Mas eu
pretendo investigar a fundo.
— Eu o procurarei na minha próxima visita à cidade. Até então, espero que tenha sorte, Martin.
Martin levou a mão ao chapéu, sacudiu as rédeas e partiu. Cole ficou parado por um momento,
vendo a carroça se afastar. Martin era inteligente e muito prático, muito parecido com Carolyn.
Nunca dera atenção ao que comentavam na cidade, e agora esses rumores eram como cinzas na
lareira, e ninguém mais se interessava por eles. Porém, Martin era insistente na procura das respostas.
Era um homem sólido, confiável, incansável. Seria um ótimo marido para Carolyn Darvey.
Depois do jantar, as duas senhoras retiraram-se cedo, e Alaina e Cole, de braços dados, subiram
também. A casa estava silenciosa, exceto pelos estalos e rangidos, baques surdos e gemidos que
Alaina, embora com relutância, aprendera a aceitar. Agora, no quarto de Cole, mais longe da suíte de
Roberta, nunca mais foi perturbada por ruídos estranhos, e no verão Soldado passou a dormir fora
da casa. Desse modo, se houvesse algum ruído suspeito no quarto vermelho, Alaina não podia ouvir.
Cole gostava de ver Alaina se despir e preparar-se para a noite, por isso, quando ela já estava deitada,
ele apenas começava a tirar a camisa. Fascinado, observava a beleza radiante de Alaina, recostada nos
travesseiros, penteando o cabelo longo e brilhante. A luz suave do
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lampião formava um halo em volta dela, e com um sorriso Cole admitiu que sua mulher era
realmente angelical.
Pôs a camisa na cadeira e começava a tirar a calça quando bateram levemente à porta. Vestindo o
roupão, Cole foi abrir e encontrou Leala no corredor escuro, torcendo as mãos, nervosa e
embaraçada.
— Leala? O que aconteceu? Posso ajudá-la?
— Eu não queria incomodar, Cole, mas será que posso falar com vocês por um momento? —
perguntou com voz hesitante.
— É claro!
Alaina vestiu o roupão e calçou os chinelos. Ofereceu sua cadeira favorita, de balanço, para Leala e
serviu um copo de xerez da garrafa de cristal que estava sobre a mesa.
— Acho que lembro ainda da sua bebida preferida, tia Leala — disse, sorrindo, estendendo o copo.
— Oh, Alaina, minha filha, nunca vai imaginar o susto que me pregou quando apareceu
emNovaOrleans naquela noite. Com aquelas roupas imundas! Seu belo cabelo cortado. E com um
oficial ianque na minha sala! — sorriu, pondo a mão gentilmente no braço de Cole. — Simplesmente
escandaloso! Mas ao que parece, você domou o ianque, seu cabelo está mais bonito do que nunca, e
aprendeu a se vestir muito melhor. Eu diria que você ganhou sua parte da guerra.
— É muita bondade sua, tia Leala. — Alaina recostou a cabeça no peito do marido. — Mas, na
verdade, Cole fez a maior parte. Ele conseguiu que fossem retiradas todas as acusações contra Alaina
MacGaren e agora somos os donos de Briar Hill. No fim do outono, vamos ver o que precisa ser
feito e Cole sugeriu a construção de uma casa para passar o inverno. Ele refez a minha vida, tia Leala.
Cole abraçou a cintura volumosa da mulher.
— Eu diria que foi sua força que recusou admitir a derrota, meu amor, e...
— Chega! — riu Leala, erguendo a mão, fingindo embaraço. — Custei a acreditar quando Tally disse
que vocês estavam perdidamente apaixonados, mas agora vejo que ela estava certa. Deus me livre
provocar uma discussão entre vocês sobre suas virtudes. Isso é suficiente para mim, Alaina, minha
criança.—Segurou a mão da sobrinha. — Se não for inconveniente, Tally e eu gostaríamos de ficar
até depois do nascimento do bebê. E espero que perdoem uma velha se ousar considerar seu filho
como neto.
Os olhos de Leala estavam cheios de lágrimas e Alaina garantiu
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que não tinham nada para perdoar e que as duas podiam ficar o quanto desejassem. Com um suspiro
trêmulo, ela disse.
— Suponho que Angus teve algo a ver com aquele contrato horrível. Estou certa?
— Nem Alaina nem eu queríamos o casamento naqueles termos — disse Cole, procurando aliviar o
sofrimento de Leala.
— Eu sinto muito todo o mal que minha família fez a você, Cole — disse ela, triste. — E peço que
perdoe Angus e, se puder, Roberta.
— Alaina e eu estamos juntos agora, é isso que importa. Todo o resto é passado e está esquecido —
respondeu ele, generosamente.
— Muito obrigada, Cole — com um sorriso hesitante, continuou:
— Se minha filha não pensasse só nos próprios desejos e caprichos, teria dado valor ao homem
maravilhoso com quem casou — disse ela.
Leala ficou nervosa outra vez.
— Mas não foi para dizer isso que vim aqui. Tenho de contar uma coisa que está me atormentando.
— Com mãos trêmulas, levou o copo de xerez aos lábios, tomou tudo de um só gole, tossiu,
engasgada, e exclamou: — Sacré bleu! Pobre de mim!
Quando recobrou o fôlego, Leala cruzou as mãos no colo, empertigou-se, respirou fundo e começou
a falar.
— Há algumas semanas, senti-me muito solitária em casa e resolvi ajudar na loja. Deus é testemunha
de que o lugar precisava de uma limpeza, e eu estava retirando as latas que Angus costuma empilhar
sob a mesa, quando percebi que havia alguma coisa dentro de uma delas. Abri a lata e encontrei isto
— disse.
Tirou do bolso do roupão um embrulho pardo que entregou a Cole. Ele o abriu e sacudiu sobre a
cama. Notas de dinheiro novas em folha empilharam-se sobre o acolchoado verde.
Cole disse, surpreso.
— Deve haver mais de dez, talvez mais de quinze mil dólares aqui.
— Quase vinte — corrigiu Leala. — Encontrei o dinheiro num maço de cartas que Roberta mandou
para Angus, com o endereço da loja. Pedia ao pai para guardar o dinheiro em lugar seguro, não no
banco, para quando ela voltasse. Disse que ganhara cada centavo e que lhe pertencia. Eu...
interroguei Angus e tivemos uma briga terrível. Ele acusou Cole de ladrão, dizendo que Roberta
tinha todo direito a tomar o dinheiro. Jurou que ia usá-lo para vingar a morte dela, não sei como.
Não entendi nada do que ele disse. — Leala olhou para as mãos
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cruzadas no colo. — Mais tarde, fiz as malas, apanhei algum dinheiro na loja, mais este pacote e fui
procurar Tally. Precisava devolver isto a você, Cole. Não podia suportar a idéia de Roberta ter
roubado do próprio marido. Eu sei que ela não foi o que você esperava, e estou convencida de que
fui a culpada de tudo o que aconteceu a vocês — afirmou ela.
Leala começou a chorar, e Alaina, ajoelhando-se ao lado dela, abraçou-a com carinho.
— Tia Leala — murmurou —, não deve se culpar. A guerra foi cruel para muitas pessoas. Roberta
foi apanhada na flor da juventude, quando esperava coisas melhores. Apenas não teve forças para
enfrentar o desapontamento.
Leala ergueu os olhos marejados para Alaina e acariciou terna-mente o rosto da sobrinha.
— Muito obrigada, Alaina, nunca mais a chamarei de criança. Você é muito mais do que isso, agora
— concluiu.
Leala tirou um lenço do bolso, dobrou, e com um suspiro profundo disse:
— Isto me perturbou tanto. — Sorriu para Alaina e endireitou os ombros. — Mas me sinto melhor
agora. Acho que vou dormir muito bem esta noite.
Alaina a acompanhou até a porta, e Leala parou por um momento.
— Boa noite, minha querida — beijou o rosto de Alaina. — Vou pedir a Deus todas as bênçãos do
céu para você e sua família.
Cole olhava para o dinheiro com a testa franzida. Passou as costas da mão no queixo, pensativo.
— Não posso imaginar como Roberta tirou tanto dinheiro sem que eu desse por falta dele. —
Apanhou algumas notas. — Este dinheiro é novo em folha. Não vejo dinheiro assim desde... —
interrompeu a frase, como se acabasse de descobrir alguma coisa. Atirou as notas sobre a cama e saiu
apressado do quarto. Alaina ouviu os passos dele na escada, depois o rangido da porta do escritório.
Logo depois, Cole voltou com três notas de dez dólares na mão.
— Estas estavam com o jardineiro — disse, pondo o dinheiro sobre o travesseiro. Aproximou uma
banqueta da cama, sentou-se e começou a arrumar as notas numa determinada ordem. Fez várias
pilhas iguais de notas estalando de novas, exceto a última, formada por notas dobradas ao meio. Cole
a atirou para Alaina.
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— Este dinheiro foi dobrado e talvez guardado em bolsos ou em carteiras. Está vendo as bordas
amassadas?
Alaina fez um gesto afirmativo, mas sem compreender ainda
— Agora, veja. — Apanhou as três notas de dez e as juntou à pilha de notas dobradas. As três se
amoldaram perfeitamente às outras. —Além disso, o número de série destas três combina com o das
outras. São consecutivos.
— Mas o que significa isso, Cole?
— Significa que provavelmente tanto Roberta quanto o jardineiro estiveram com este dinheiro nas
mãos.
— Mas onde o arranjaram, se não foi roubado de você?
— Só posso fazer conjeturas, até mesmo absurdas, sobre a proveniência deste dinheiro.
Cole juntou as notas e as empilhou no aparador da lareira. Tirou a roupa, deitou-se na cama e,
cruzando as mãos sob a cabeça, olhou pensativamente para as sombras do teto.
— Martin disse que o jardineiro era do Missouri — pensou em voz alta. — Se pertencia a um
daqueles bandos que assaltam trens e coisas assim, pode ter trazido parte dos roubos.
— Mas como Roberta conseguiu tirar o dinheiro dele? Acha que eram amantes?
— Não posso imaginar Roberta dignando-se a dar atenção ao jardineiro da família. Além disso, era
um homem sujo, velho e mal-apessoado, certamente não o tipo que Roberta escolheria para ter um
caso. Ela simplesmente o detestava!
Alaina aninhou-se junto ao seu corpo, acariciando seu peito e sua barriga.
— Meu senhor ianque? — A respiração leve fez cócegas no ombro dele. — Vai pensar em Roberta e
em todo aquele dinheiro a noite toda? Ou vai acalmar meus ciúmes e me beijar, garantindo que,
mesmo gorda e feia, eu sou o amor e a luz da sua vida?
Com uma risada, Cole apagou o lampião e voltou para os braços dela, beijando o narizinho atrevido.
— Você é tudo pra mim, Alaina MacGaren Latimer, e para provar que a acho bela carregando meu
filho, vou fazer o possível para mantê-la assim durante muitos e muitos anos.
Alaina olhou para ele, com os olhos brilhantes.
— Todos os anos, meu senhor ianque?
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Cole pensou um pouco, depois sorriu para a mulher que ele tanto amava.
— Bem, quase todos.
Na manhã seguinte, cedo, Cole levou o dinheiro ao xerife e expôs sua teoria a Martin. Aquelas notas
novas eram mais uma parte do quebra-cabeça. Não levavam a nenhuma solução, como as escassas
provas que tinham até agora.
O caso foi quase esquecido, e o mês de junho passou como um sonho para Alaina. A sra. Hawthorne
e Leala estavam sempre ao seu lado e não podia fazer nada sem a decisão das duas sobre o que era
melhor para ela e para o bebê.
Sua barriga ficou mais baixa e seu caminhar mais desajeitado. Esperava a hora ansiosa, examinando
todos os dias o quarto preparado para o bebê, para ver se estava tudo em ordem. Cole mandou
limpar o mato do jardim da casa antiga e começou a atender os pacientes no consultório que
pertencera a seu pai. Braegar, quando aparecia, queixava-se de que seus pacientes o trocaram por
Cole e examinava Alaina para ver se tudo ia bem. Cativou completamente as duas senhoras visitantes
com sua retórica bombástica e suas opiniões políticas não-ortodoxas.
Foi um tempo agradável para Alaina, e ela saboreava cada momento com sua insaciável alegria de
viver e seu entusiasmo. Os Prochavsky desceram das florestas do norte para uma breve visita. O
negócio de extração de madeira ia muito bem e foram feitos planos para continuar no próximo
inverno.
Os Darvey foram convidados para jantar e graciosamente aceitaram a oportunidade de conhecer as
visitantes do sul. Depois de terem passado semanas sentados um ao lado do outro à mesa, Cole
conduziu sua mulher para a cabeceira e depois, com relutância, sentou-se na outra extremidade. Pelo
menos, de onde estava, podia admirar a beleza dela o tempo todo, e Braegar, para variar, resolveu
sentar-se à esquerda de Cole.
Naquela noite, Carolyn deixou a casa dos Latimer surpresa com a mudança de Cole. Ele era outra
vez o homem da sua mocidade, tranqüilo, calmo, delicado e com alguma coisa a mais. Sua
preocupação e carinho por Alaina mostravam-se evidentes e sinceros, mas não eram o motivo
principal da mudança. E sim o fato de que seu amor Por Alaina fazia dele um homem, completo,
autoconfiante, seguro.
557
Não era mais irascível e grosseiro porque agora a vida era agradável e maravilhosa para ele. Não
duvidava de Alaina porque ela não dava motivo para isso. Cole era outra vez um homem belo e
encantador, sob todos os aspectos, e ao seu lado Alaina, mesmo naquela condição, era a mais bela e
mais perfeita figura de mulher.
Na noite seguinte, estavam jantando quando ouviram um rosnado surdo e todos se voltaram para
Soldado, que cochilava ao lado da porta da sala. Ele ergueu a cabeça e levantou as orelhas.
— Está chegando alguém — disse Cole.
Um momento depois ouviram o tropel de um cavalo e os Latimer e suas duas hóspedes esperaram,
em silêncio. Passos pesados atravessaram a varanda e batidas fortes soaram à porta. Quando Miles
atendeu, Angus Craighugh passou direto por ele, bufando furioso.
— Fui informado de que esta é a casa do major Latimer. Estou certo?
— O dr. e a sra. Latimer moram aqui, senhor. — Miles examinou com desagrado o homem muito
corado com a roupa amassada. Para entrar desse modo na casa do seu patrão, não podia ser um
cavalheiro. — O senhor deseja ver o dr. Latimer?
Leala, que se levantara surpresa ao ouvir a voz do marido, sentou-se outra vez com as mãos cruzadas
no colo e a cabeça baixa. Percebendo o nervosismo da tia, Alaina levantou-se e foi até a porta da sala
de jantar.
— Tio Angus? — perguntou em voz baixa, chocada com a aparência dele. Angus estava mais magro
do que nunca, e parecia cansado e doente. Obviamente fizera uma viagem longa e apressada. Alaina
notou o cabelo despenteado e a falta de chapéu. Para um homem que em geral se vestia com
cuidado, Angus estava horrível. A gravata com o nó afrouxado pendia do colarinho aberto e os
sapatos estavam arranhados e sujos de poeira.
Ouvindo a voz dela, Angus voltou-se e parou, boquiaberto, olhando para a barriga da sobrinha. O
sangue subiu-lhe ao rosto e os olhos saltaram. Deu alguns passos para ela e procurou falar
normalmente, com um sorriso de desdém e zombaria. Só quando chegou muito perto dela,
conseguiu pronunciar as primeiras palavras.
— Sua prostitutazinha vagabunda! Não perdeu tempo em cair na cama dele, não é mesmo?
Na sua fúria, nem ouviu as exclamações de espanto das duas mulheres sentadas à mesa, mas quando
ergueu o braço para executar
558
seu ato de vingança contra Alaina, passos soaram atrás dele e mãos fortes o seguraram, afastando-o
de Alaina e fazendo-o dar meia-volta, colocando-o na frente dos olhos azuis frios e impiedosos de
Cole.
— Nunca mais levante a mão para minha mulher — disse Cole, secamente. — E se você não fosse o
idiota que é, eu revidaria seu insulto aqui e agora. Abusou do privilégio de hóspede em minha casa, o
que talvez considere uma retribuição devida, porém a verdade é que, na sua casa, não foi a pessoa
que sofreu o abuso quem fez uso dele. Sob o efeito dos acontecimentos da véspera, permiti que o
senhor cometesse um ato do qual todos nos arrependemos amargamente. Eu o aviso agora, senhor,
para o bem de todos os presentes, de agora em diante, quando entrar em minha casa, ou em qualquer
parte da minha propriedade, procure conter sua linguagem e seus modos... e trate minha mulher com
o maior respeito.
— Não vou tratar com respeito uma prostituta e ladra! — exclamou Angus.
Os olhos de Cole entrecerraram-se perigosamente.
— Tenha cuidado, homem. Está caluniando o que eu tenho de mais precioso. Ela era virgem quando
a possuí e jamais tirou um centavo de quem quer que fosse!
— Você é o ladrão! — disse Angus.
— Ora, Angus, pare com isso! — choramingou Leala, torcendo as mãos. — Foi Roberta quem
roubou o dinheiro de Cole!
— O dinheiro foi roubado muito antes disso! Era parte do pagamento do exército ianque roubado
do barco, em Nova Orleans. Eu já disse isso, você não ouviu?
— Acho melhor conversarmos sobre isso com mais vagar, Angus — disse Cole, estendendo a mão
para o braço dele.
— Fique longe de mim! — gritou Angus, levando a mão ao pequeno revólver que tinha na cintura.
Rapidamente Cole segurou a mão dele e forçou o braço de Angus para cima, apontando a arma para
o teto. Com a outra mão segurou a lapela do homem.
— Angus! Escute—rugiu ele.—Em outra ocasião você apontou uma arma para mim e até hoje me
arrependo de não tê-la tirado da sua mão. Precisa saber que o dinheiro tirado por Roberta não me
pertencia. Encontramos um homem enterrado no jardim nesta primavera, e três notas do mesmo
dinheiro com ele. Suspeito que Roberta tenha conseguido o dinheiro com esse homem, mas não
sabia de onde ele o tirara
559
A fúria de Angus não se abrandou.
— Agora quer sujar o nome da minha filha.
— Você já falou bastante, Angus, e não vou tolerar nada mais. — Cole tirou o revólver da mão dele
e o pôs sobre o aparador da lareira. Leala ficou de pé e deu alguns passos para os dois homens.
— E eu não vou tolerar mais nada! — Furiosa, ficou na frente do marido. Angus deixou-se cair
numa cadeira ao lado da porta, vencido.
— Você atravessou metade do país atrás de mim só porque tirei o dinheiro que pretendia usar contra
Cole. Chegou aqui como um furacão, no meio da noite, com toda a sua masculinidade ofendida e
ofendeu Alaina porque não se negou ao homem que ela ama. Roberta era minha filha também,
Angus, e tão linda e tão delicada. Mas, Angus, tem de entender que não era uma boa pessoa. A idéia
que fazíamos dela não era real. Ela enganou Cole. Enganou Alaina e a usou. Ela nos enganou e nos
usou. Agora você chega com toda essa violência, dizendo que é meu marido. Por acaso tive um
marido neste último ano? Um homem que cambaleia para casa todas as noites, passando de taverna
em taverna, com uma garrafa na mão? Era meu marido que entrava no meu quarto, fedendo a
bebida? Acho que não. — Balançou a cabeça devagar. — Era um estranho que eu via mas não
conhecia.
— Com os olhos marejados de lágrimas ela suspirou.
— Talvez se eu não tivesse sido tão leniente quando Roberta... se entregou... a um dos seus
namorados...
Angus ergueu os olhos, surpreso.
— Oh, sim — continuou Leala. — Eu sabia que ela não era... a virgem na cama de Cole. Ela me
contou a aventura com o namorado e prometeu não repetir nunca mais. Eu não contei para você. Sei
muitas outras coisas sobre ela que só me têm feito sofrer. Mas, Angus — fez uma pausa, esperando
que ele olhasse para ela outra vez —, vou sempre lembrar de Roberta como uma criança bela e doce,
e tentar esquecer o resto.
A sra. Hawthorne aproximou-se e abraçou Leala, que chorava agora desconsoladamente. Angus
ergueu a cabeça e viu o olhar severo dela.
— Você também, Tally? — murmurou ele.
— Acho que você permitiu que a dor perturbasse seu julgamento, Angus — disse a sra. Hawthorne,
secamente. — Na minha opinião, quanto antes sair da lama dessa sua autopiedade, mais cedo
começará
560
a ter prazer em viver outra vez. Leala tem razão. Saia desse buraco e faça com que sua vida volte a
significar alguma coisa.
— Por que vou fazer isso, se não significa coisa alguma? — perguntou Angus, com amargura.
Tally inclinou a cabeça para o lado, olhando para ele.
— Essa é a sua escolha, Angus. Mas não culpe a nós todos por não concordarmos.
— Cole? — Quase ninguém ouviu a voz suplicante de Alaina, mas Cole voltou-se imediatamente.
Ela estava semi-abaixada perto da porta, com a mão na barriga. — Cole, acho que começou.
Um silêncio tenso pairou sobre a sala. Cole ergueu Alaina nos braços e voltou-se para a sra.
Hawthorne.
— Tally, quer acordar os criados e informar que chegou a hora da sra. Latimer? Eles sabem o que
fazer.
Cole subiu a escada de dois em dois degraus com sua preciosa carga e abriu a porta do quarto com o
ombro. Ouviu passos apressados e, voltando-se, viu Leala entrar atrás dele, enxugando as lágrimas.
— Abra as cobertas da cama—pediu ele e quando Leala atendeu, deitou Alaina cuidadosamente
sobre o lençol limpo. Tirou o casaco, o colete e a gravata e desabotoou o colarinho.
— Vai precisar de lençóis limpos, Cole — disse Leala, tomando a iniciativa. — Onde estão?
— Ali. — Cole indicou o banheiro e inclinou-se para tirar os sapatos e as meias de Alaina.
A cada contração, Alaina mordia o lábio e quando a dor diminuía, suspirava aliviada. Sorriu
ternamente, vendo a preocupação do marido e acariciou o rosto dele.
— Eu o amo — murmurou ela. Cole levou a mão dela aos lábios.
— De repente, estou tremendo, Alaina. Eu já ajudei a trazer ao mundo muitos bebês, mas nenhum
me assustou tanto quanto este.
— Vai correr tudo bem, meu senhor ianque — disse ela, com o amor cintilando nos olhos. —
Depois de ter assistido ao nascimento do filho de Gretchen, se você errar eu posso corrigi-lo. Nosso
filho está chegando, dr. Latimer, e juntos vamos trazê-lo ao mundo. — Olhou atentamente para ele e
murmurou: — Confio em você... mais do que em qualquer outra pessoa.
Animado por essas palavras, Cole começou a agir com o melhor de sua habilidade e conhecimento,
mas não conseguia desligar o
561
coração e os sentimentos da jovem mulher, que apertava os dentes a cada dor e sorria para ele
quando passava. Enquanto Leala e a sra. Hawthorne se ocupavam com os preparativos, Cole segurou
a mão de Alaina, sem notar o leve azul do céu e o relógio de carrilhão que anunciava as primeiras
horas da manhã.
Quando o espasmo torturante a envolveu outra vez, Alaina segurou na cabeceira da cama e fez força
para baixo, seguindo a orientação do marido. Com uma expressão vitoriosa, sentiu finalmente a
cabeça da criança deslizar para fora e, com mais um esforço, começou a ajudá-la a sair por completo.
Então ouviu a voz que jamais ouvira antes, a voz do seu primeiro filho.
Com uma das mãos, Cole apertou a barriga dela e com a outra segurou a cabeça da criança.
— Estamos indo muito bem, Alaina. Agüente mais um pouco. Ele está vindo.
Livre da dor, afinal, Alaina ouviu a exclamação entusiasmada de Leala.
— É uma menina!
Cole segurou a criança com as mãos e com um largo sorriso a deitou sobre o corpo da mãe. Olhou
para Alaina e perguntou.
— Glynis Lynn Latimer?
Com um gesto hesitante, Alaina tocou a filha, que chorava a altos brados.
— O nome da minha mãe?
Cole fez um gesto afirmativo.
,— Achei que seria adequado.
— Glynis Lynn Latimer — repetiu Alaina, suavemente. — Sim, soa muito bem.
562
Capítulo Quarenta e Dois
ANGUS CRAIGHUGH, esquecido pelo resto da família, foi conduzido a um quarto de hóspedes por
Miles, que, estoicamente, providenciou roupa para ele dormir e mandou Peter preparar um banho.
No quarto silencioso e escuro, Angus tinha muito em que pensar. Jamais batera numa mulher antes,
porém, há poucos momentos, quase atacara a sobrinha grávida. Respondendo à sua pergunta ansiosa,
o mordomo garantiu que o parto não fora prematuro. Mesmo assim, Angus se preocupava, certo de
que sua atitude provocara o início do trabalho. Numa agonia, esperava notícias do quarto dos
Latimer. Considerando o que fizera, Cole fora relativamente brando e muito tolerante, permitindo
que ficasse em sua casa.
, De manhã, esperou na sala, enquanto os outros membros da família dormiam cansados, e procurou
ouvir os comentários dos criados.
"Uma menina!" "Pequenina!" "Saudável!" " A sra. Latimer está bem." "Dormindo."
Graças a Deus, pensou Angus, cruzando as mãos sobre os joelhos.
Jamais se perdoaria se tivesse acontecido alguma coisa desagradável.
Ergueu os olhos e viu uma menina de uns sete ou oito anos na porta da sala. Parecia tanto com
Roberta quando era pequena, que Angus se sobressaltou. A menina entrou e sentou-se numa cadeira
de
563
frente para Angus, cruzou as mãos e olhou para ele com olhos muito grandes e belos.
Angus pigarreou, embaraçado, e esfregou as mãos de dedos grossos na perna.
— Não me lembro de ter visto você antes.
Mindy inclinou a cabeça para o lado, pensou por um momento e depois sorriu. Evidentemente podia
dizer o mesmo a respeito dele.
— Eu sou... tio da sra. Latimer — identificou-se.
Mindy olhou para a escada no hall e coçou o nariz fino. Angus sentou-se na ponta da cadeira, quase
ansioso.
— Você é filha de quem?
Com um sorriso tímido, Mindy apontou para uma pequena moldura oval que estava na mesa ao lado
da sua cadeira. Angus levantou-se para olhar mais de perto e com surpresa viu que era uma fotografia
de Alaina e Cole. Voltou a sentar-se e olhou surpreso para a menina. Nesse momento, Miles
pigarreou discretamente na porta da sala.
— Annie gostaria de saber, senhor, se quer tomar o café agora. Os outros dormem ainda, e será só o
senhor e a menina.
Angus olhou para Mindy.
— Quer me fazer companhia... — esperou, mas Mindy apenas riu, cobrindo a boca com a mão.
— Mindy, senhor — informou Miles. — E não vai conseguir falar com ela. Não disse uma palavra
desde que o jardineiro a trouxe para cá.
— O jardineiro?
— O tio dela, senhor, mas ele já faleceu. O dr. e a sra. Latimer ficaram com a menina. Ela é órfã,
senhor.
Angus levantou-se e estendeu a mão para Mindy.
— Eu tive uma filha — disse, com um pouco mais de calor no olhar, uma centelha da vida há tanto
tempo apagada. — Ela era muito bonita, exatamente como você.
Mindy caminhou ao lado de Angus com a mãozinha na dele. Sorriu hesitante quando Angus olhou
para ela. Era um bom começo para ele.
Glynis Lynn passou sua primeira tarde sob o olhar atento e fascinado do seu pai. Cole jamais vira um
bebê tão bonito em toda a sua carreira. É claro que o fato de ser sua filha pesava na balança, mas não
estava disposto a discutir isso.
564
Olhou para Alaina, na cama, ao lado do berço. Ela abriu os olhos para o sorriso terno do marido.
— Ela tem seu nariz e sua boca — afirmou ele, carinhoso. Com um sorriso suave, Alaina disse:
— Como pode saber?
Cole sentou-se na beirada da cama.
— Por que é meu maior desejo.
— Sempre tem tudo que deseja?
— Tenho você. — Cole encerrou o assunto. — E ter você era o que eu mais desejava.
Bateram timidamente à porta, e Cole foi abrir. Angus esperava no corredor, um tanto embaraçado.
— Capitão Latimer... ah... major... dr. Latimer...
— Tente dizer Cole.
— Cole. — Angus ficou mais confiante.—Pensei muito durante a noite e parte do dia, e não
consegui entender coisa alguma. Sobre o dinheiro, quero dizer, e Roberta e tudo o mais que
aconteceu desde que nos conhecemos. Comecei a rezar... — riu, encabulado. — Não faço isso há
muito tempo, sabe? Mas parece que clareou minha cabeça. Sei agora que fui um tolo e quero pedir
desculpas por minha estupidez e por magoar Alaina. Peço que me perdoem.
Com um sorriso, Cole estendeu a mão. Nunca pensou que ouviria essas palavras dos lábios de
Angus, e com aquele aperto de mão aparentemente as coisas ficaram acertadas entre eles, pela
primeira vez.
— Às vezes, ser tolo é próprio da natureza humana. Eu já sofri desse mal muitas vezes. Se não fosse
assim, como aprenderíamos a ser sensatos?
Angus passou a mão na barba crescida, parecendo incerto outra vez.
— Acho que vou conversar um pouco com Leala.
Cole concordou.
— Sim, isso é ser sensato!
Os Craighugh e a sra. Hawthorne partiram uma semana depois do nascimento da menina. Angus
deixara a loja e todos os seus negócios para ir atrás da mulher, e Leala, sorrindo, admitiu que era um
fato novo na história do seu casamento Angus ter deixado de pensar em dinheiro
565
por alguns dias. Angus, encantado com Mindy, insistiu para que os Latimer a levassem com eles na
sua primeira visita ao sul.
Depois da companhia deles e do nascimento de Glynis, Alaina não achava a casa tão sombria,
porém, com a chegada do verão, o sol e o vento quente transformavam a mansão no alto do rochedo
num verdadeiro forno. Até Miles suava muito. Mas Alaina sabia conviver com o calor. Abria a gola
do vestido, arregaçava as mangas e continuava com seus afazeres de esposa e mãe.
Ao contrário da casa no rochedo, a outra, mais antiga, era agradável, protegida pelos álamos, e Alaina
passava grande parte do tempo com Mindy e Glynis, perto do consultório de Cole. Mandou fazer
uma faxina na casa e ajudou os empregados a restaurar o brilho dos móveis antigos. A casa dava uma
sensação de solidez. O assoalho era de carvalho e na cozinha o chão era de pedra. Enquanto no alto
do penhasco as janelas sacudiam barulhentas à menor brisa e toda a casa rangia e gemia com o
simples pousar de um inseto, a outra era firme e segura, e dentro dela podia-se esquecer o tempo que
fazia lá fora, fosse a mais violenta tempestade, o calor escaldante ou o vento frio. Fora construída
com carinho para durar muito tempo, e Alaina afei-çoou-se à sua vastidão e quietude, Sentia-se mais
à vontade entre aquela decoração de bom gosto do que na suntuosa mansão no penhasco.
Certa noite, durante o jantar, Cole sugeriu a possibilidade de passarem a morar na casa antiga, agora
que Alaina praticamente se instalara ali. Ele notara o crescente suprimento de roupas de criança e
toalhas e roupas de cama, para não mencionar as roupas de Alaina no guarda-roupa do quarto
principal, no segundo andar.
Alaina perguntou a si mesma se Cole podia adivinhar seus pensamentos e procurando dominar o
entusiasmo, respondeu:
— Acho uma boa idéia, meu senhor ianque.
Com um gesto, Cole indicou à sra. Garth que estava esperando sua habitual dose de xerez depois do
jantar. A governanta parecia mais surpresa com a idéia de morar na outra casa do que a própria
Alaina.
— Desculpe, senhor — disse ela, quase enchendo o copo dele com a bebida.
Cole já chamara sua atenção para o costume de servir doses exageradas e, ultimamente, muitas vezes
ele recusava a bebida com o café.
566
— Já pensou no que vai fazer com esta casa? — perguntou Alaina. Agora eles sentavam-se à mesa
um ao lado do outro.
— Estive pensando que daria um hospital razoável, sem dúvida, melhor do que muitos que tenho
visto.
A garrafa de cristal tilintou contra o copo, derrubando o vinho na mesa. A sra. Garth imediatamente
limpou a toalha com um pano, murmurando um pedido de desculpas, antes de sair da sala. Cole
olhou intrigado para ela. Mas esqueceu a governanta quando Alaina sentou-se no seu colo,
conquistando toda a sua atenção.
— Oh, Cole, acho que é uma excelente idéia! — exclamou ela, abraçando-o. — E Braegar pode
ajudá-lo no hospital. Os criados e eu podemos começar a levar roupas e outras coisas para a outra
casa, amanhã mesmo e no fim da semana, e em alguns dias a mudança estará feita. Então os
carpinteiros podem começar a trabalhar aqui, derrubando paredes, transformando uma parte em
enfermarias. Logo poderá começar a receber seus pacientes.
Cole porém já não estava interessado. As poucas anáguas e o vestido de musseline que Alaina passara
a usar no verão permitiam que ele sentisse o corpo macio junto ao seu. Depois do nascimento da
filha, Cole esperava o dia em que pudessem voltar a ser novamente amantes. Estavam quase em
setembro, Glynis estava quase com um mês e meio, e a abstinência começava a ser difícil para ele. O
contato do corpo de Alaina no seu colo fazia o sangue ferver em suas veias, e despertava o desejo.
— Minha senhora, por acaso sabe há quanto tempo não fazemos amor? — Sorriu, franzindo a testa
ao ver o olhar surpreso de Alaina com a mudança brusca de assunto. Brincou com os botões do
vestido dela. — Tenho outra idéia excelente, se estiver disposta a ouvir. Alaina encostou-se no peito
dele e pôs a mão sob a camisa,acariciando os músculos firmes, sentindo as batidas fortes do coração
de Cole. Encostou os lábios no ouvido dele e murmurou:
— Podemos discutir o assunto na privacidade do nosso quarto, meu senhor ianque?
No dia seguinte receberam um paciente para o hospital, antes mesmo de Cole informar os criados da
sua decisão. Rebelde Cummings e Braegar visitaram-nos e, durante o jantar, ouviram aparentemente
com pouco interesse a sugestão dos dois médicos trabalharem juntos. Então, quando se despediam,
Rebelde desmaiou, repentina e convenientemente
567
nos braços de Cole. Por mais que os dois médicos se esforçassem, não conseguiram fazê-la voltar do
desmaio. Os sais que puseram sob seu nariz apenas provocavam tosse, mas ela não despertava.
Alaina não gostou do modo como a mulher praticamente se atirou sobre Cole. Ficou tentada a
acordá-la com um bom beliscão, mas achou que, como uma respeitável mulher de médico, não podia
fazer isso. Afastou-se um pouco e apenas observou, calmamente. Braegar, preocupado, insistiu em
dizer que Rebelde não devia ser removida da casa e foi providenciado um quarto de hóspedes para
ela. Não que Alaina fosse indiferente às doenças ou acidentes das outras pessoas, mas já vira a cena
muito mais bem representada num almoço de domingo prestigiado por várias senhoras vaidosas.
Não sabia qual era o jogo da mulher, mas se Cole era o objetivo, estava resolvida a fazer com que ela
desistisse o mais depressa possível. Se fosse preciso, uma conversa calma e em particular com
Rebelde seria suficiente.
Rebelde ficou três dias na casa dos Latimer e foi embora depois de um confronto com Cole. Ao que
parecia, tinha o hábito de andar pela casa, tarde da noite, e num desses passeios entrou, por engano,
no quarto do casal quando Alaina e Cole trocavam beijos apaixonados. Se Rebelde se perdera
durante o passeio, imediatamente percebeu onde estava, vendo os dois vultos na cama, iluminados
pela luz da lua, que entrava pela janela. As costas nuas do homem e os braços que o envolviam
indicavam claramente que acabava de interromper um momento de grande intimidade.
Assustada com o rugido selvagem de Cole, Rebelde saiu correndo do quarto e de nada adiantou a
desculpa de que ela estava muito doente e entrara na porta errada. Na manhã seguinte, muito cedo,
Cole pediu a carruagem. Sem tomar café e evitando olhar para Cole, Rebelde partiu.
Na segunda terça-feira de setembro o sol nasceu no céu claro, mas no meio da manhã surgiram as
nuvens alongadas e finas. Alaina estava ainda na casa do penhasco porque o bebê não tinha acordado
para a mamada da manhã.
Alaina tomou banho e se vestiu para a pequena viagem encosta abaixo. Até o fim da semana estariam
residindo na antiga casa e alguns dias depois os carpinteiros e pedreiros começariam o trabalho na
mansão da colina.
568
Quando escovava o cabelo, no banheiro, ouviu um ruído no quarto e voltando-se viu, com surpresa
a sra. Garth na porta, com Güinys no colo. Era a primeira vez que a mulher tocava na menina, e sem
saber por que, Alaina ficou inquieta.
— Preciso lhe mostrar uma coisa, senhora — disse a governanta, com voz inexpressiva. — Quer me
acompanhar?
A sra. Garth deu meia-volta, atravessou o banheiro e parou na porta do quarto de Glynis, que dava
para o corredor. Alaina hesitou por um momento, como se tivesse um peso nos pés.
— Venha, sra. Latimer—ordenou a sra. Garth, na frente da porta, em tom quase agressivo. — Não
temos o dia inteiro.
— Deixe-me levar Glynis. Vou assim que trocar a fralda dela.
— Não posso esperar. Venha agora.
Alaina compreendeu que não tinha escolha, pois a mulher estava com sua filha. Com surpresa, viu a
sra. Garth entrar na suíte de Roberta, dirigindo-se diretamente para o espelho na alcova. Ela apertou
um botão no canto superior dos painéis prateados e, para espanto de Alaina, o espelho se moveu
para o lado, revelando uma passagem escura, na qual a sra. Garth entrou sem hesitação. Voltou-se,
chamando Alaina com um gesto. Alaina parou na abertura. Viu uma escada circular, junto à parede,
que parecia desaparecer na escuridão. Não era possível ver nada a não ser sombras. Alaina olhou
para cima e viu que os degraus iam até a altura do sótão e, a partir daí, outra escada dava acesso a
uma pequena porta, que só podia dar para a galeria no topo da casa. Uma janela estreita deixava
passar um pouco de luz.
A sra. Garth desceu alguns degraus e parou com a mão num pedaço de madeira, que se projetava da
parede.
— A senhora, vem, sra. Latimer? — A voz impaciente ecoou na torre.
— Não é melhor chamar Cole ou um dos criados? — perguntou Alaina, temerosa. Mordeu o lábio e
olhou para a filha adormecida, desejando desesperadamente tomá-la nos braços.
— Há muita coisa para a senhora ver lá embaixo. E não temos muito tempo. Venha!
Aúltima palavra foi dita asperamente, em tom de comando. Alaina obedeceu docilmente, pois a
escada não era um lugar próprio para tentar tirar a filha da mulher. Assim que Alaina passou pela
abertura, a sra. Garth moveu a alavanca de madeira e com um ranger de engrenagens o painel
espelhado fechou-se atrás dela. Alaina procurou
569
adaptar os olhos à escuridão. Ouviu o raspar de um fósforo e um lampião foi aceso. Com uma das
mãos mantendo o lampião acima da cabeça e com a outra segurando a criança, a sra. Garth começou
a descer a escada em espiral, e Alaina a seguiu. Uma corrente de ar passava por elas e parecia carregar
sons fracos e distantes. Continuaram a descida, até a madeira das paredes ser substituída por pedra
áspera e irregular, como se fosse um túnel natural no rochedo. O ar tinha agora um cheiro úmido e
os sons eram mais fortes. Alaina olhou para cima. A janela era apenas um pontinho de luz no topo
da escada. Imaginou que deviam estar abaixo do porão da casa e provavelmente quase ao nível da
água.
Escorria água nas paredes de pedra e ouviam nas sombras escuras guinchos fracos e metálicos.
Então, com medo e repulsa, Alaina viu os morcegos dependurados nas frestas das paredes de pedra.
No fim da passagem encontraram uma pesada porta de madeira. A sra. Garth acionou para o lado
uma alavanca e a porta, com um rangido de engrenagens, moveu-se, abrindo uma passagem estreita.
A sra. Garth passou e com um gesto chamou Alaina. Quando estavam no outro lado, ela puxou
outra alavanca e franziu a testa, quando a porta não se fechou de todo, deixando uma abertura de um
palmo.
— Essa coisa maldita! Nunca funcionou direito! — reclamou a governanta. Apanhou o lampião
outra vez e seguiu em frente. O chão era agora uma descida íngreme, e não apareceu outro ponto de
luz no alto.
Alaina, andando devagar, examinou a caverna em que estavam. Mercadorias variadas, caixas e barris
empilhavam-se contra as paredes. Atrás das portas gradeadas de uma pequena alcova havia vários
barris de pólvora e caixas longas empilhadas, com o desenho de rifles nos lados.
— Rifles? Maquinaria? — murmurou Alaina, com espanto, lembrando dos navios desaparecidos de
que Cole falara. Essa era a carga perdida. Seria possível que tivessem um esconderijo de piratas nos
porões da sua casa?
— Por aqui, por favor, sra. Latimer. — A voz da governanta tinha uma arrogância quase insultuosa.
— Estamos quase chegando.
A sra. Garth a conduziu a um pequeno espaço que parecia cavado na pedra para formar uma sala. A
mulher entrou, deitou a criança numa cama rústica encostada na parede. Alaina correu e pegou a
filha no colo. Ouviu um estalido metálico e voltando-se viu a sra. Garth
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encaixar um cadeado na porta da pequena caverna, transformando-a numa prisão.
— O que pensa que está fazendo? — exclamou Alaina, indignada. — Deixe-me sair daqui!
Com um sorriso sarcástico, a sra. Garth desabotoou a gola do vestido severo, revelando os seios
fartos achatados por uma tira de pano. Erguendo os braços, soltou o cabelo preso num coque
discreto e, balançando a cabeça, fez com que se espalhasse sobre os ombros. Não era mais o rosto
inexpressivo da sra. Garth, mas outro, com nova vida, mas repleto de desprezo e fúria.
— Estou cansada de me curvar e me humilhar. Vou recuperar o que sempre foi meu, sra. Latimer.
Amãozinha de Mindy apertou ansiosamente o vidro espelhado. Via-se no espelho, mas não podia ver
as pessoas que tinham passado através dele. Estava se vestindo no quarto quando ouviu as ordens
bruscas da sra. Garth e a resposta hesitante de Alaina. Curiosa, seguiu o som das vozes e entrou na
suíte temida de Roberta a tempo de ver a sra. Garth desaparecer com o bebê numa estranha abertura
da parede. Sua ansiedade transformou-se em terror quando viu sua adorada Alaina entrar também e
antes que pudesse chegar ao espelho, as mandíbulas daquele monstro escuro fecharam-se atrás de
Alaina. Apavorada, Mindy começou a bater e arranhar freneticamente o vidro espelhado, mas ele não
se abriu. Desanimada, levou uma cadeira para o corredor e sentou-se perto da porta, disposta a
esperar, escondida, que o espelho se abrisse outra vez. Cada vez que o relógio no hall badalava as
horas, a agonia de Mindy aumentava. Quando ouviu as doze badaladas, lembrou que era a hora em
que ela e os Latimer voltavam da casa antiga para o almoço. Isso significava que Cole ia chegar logo.
Ele saberia o que fazer. Providenciaria para que nada acontecesse a Alaina e a Glynis.
Foi uma longa espera, mas, à última badalada das doze horas, chegou à janela e viu Cole chegando a
cavalo. Desceu rapidamente a escada e parou na varanda, tremendo de impaciência quando Cole
passou por Peter, que estava ainda esperando para levar Alaina à casa antiga, como fazia sempre. Mas
Alaina não aparecera.
Peter respondeu com um erguer de ombros à pergunta de Cole. Suas ordens eram para apanhar a
patroa, mas, como qualquer um podia ver, continuava esperando por ela.
571
Preocupado, Cole entrou rapidamente na casa, sem dar atenção a Mindy, que puxava seu colete. Não
era hábito de Alaina deixar Peter esperando a manhã toda. Talvez ela estivesse doente. Subiu os
degraus de dois em dois, mas encontrou o quarto deles e o da criança vazios.
— Alaina? — Seguiu pelo corredor, verificando os outros quartos. — Alaina, onde você está? —
perguntou.
Desceu a escada apressadamente, passando por Mindy. Empurrou a porta de vaivém da cozinha e
perguntou a Annie. Mas a cozinheira apenas deu de ombros.
— Não a vejo desde o café da manhã, senhor.
Mindy parou no meio da escada, trêmula, frustrada, torcendo as mãos, ansiosa. Voltou-se, zangada, e
seguiu Cole, que agora não lhe parecia tão bondoso, escada acima. Encontraram-se quando ele saía
do quarto de Glynis, depois de examinar novamente os quartos e o banheiro.
— Mindy! — Ajoelhou-se ao lado dela. — Você viu Alaina? Com um sorriso, Mindy balançou a
cabeça numa afirmação vigorosa. Puxando-o pela mão, ela o levou ao quarto de Roberta e ao
espelho. Empurrou o vidro com as duas mãos e olhou para trás, para ver se Cole estava entendendo.
Cole fez um gesto afirmativo, impaciente.
— Sim, Mindy, é um belo espelho, mas agora preciso encontrar Alaina e Glynis.
Mindy apontou freneticamente para o próprio reflexo no espelho, mas Cole já estava na porta. Com
os olhos cheios de lágrimas de desapontamento, ela fechou as mãozinhas outra vez. Lembrou da sua
adorada Alaina falando sobre heróis e homens sábios. A adorada Alaina dissera que qualquer pessoa
podia realizar as coisas fáceis, mas os heróis e os homens sábios realizavam as coisas mais difíceis,
aquelas que ninguém mais tentava fazer.
Muito bem! Mindy não era um homem sábio, mas tinha de ser uma heroína se o belo Cole não
queria ouvir. Ouça! Ouça! Ouça, Cole! Por favor!
As lágrimas desceram por seu rosto e um soluço subiu à sua garganta. Enxugando os olhos, zangada,
Mindy desceu outra vez. Cole estava interrogando Peter.
— Não, senhor!—Peter balançou a cabeça.—Como eu já disse, ela pediu a carruagem para as nove
horas. Estou esperando desde então.
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— Ela não saiu da casa, ou coisa assim? — Cole estava extremamente preocupado. E se ela tivesse
saído pelos fundos, para descer a encosta íngreme? Se tivesse caído. Ou talvez estivesse no bosque,
com o tornozelo torcido, incapaz de carregar a criança. Talvez até mesmo inconsciente! A idéia de
Alaina e a filha indefesas em algum lugar da floresta o transtornava. Empurrando a mão insistente de
Mindy, foi procurar Miles.
— Não, senhor. A última vez que a vi foi quando subiu, depois do café. Ela não desceu depois disso.
Cole sabia que Miles estava sempre alerta a todos os movimentos da casa. Tentou se livrar outra vez
das mãos de Mindy, mas ela insistiu, puxando seu colete.
— Agora não, Mindy! — Soltou os dedos dela, sem notar o frenético movimento dos lábios da
menina, pedindo para ir com ela. — Preciso encontrar Alaina! Você não compreende? Alaina e o
bebê desapareceram! — falou aflito.
Empurrou a menina para o lado e entrou na sala de jantar, imaginando todo o tipo de desgraça.
— Peter! — gritou, de repente.
Peter estava na porta antes de morrer o eco da voz de Cole.
— Pegue a carruagem e vá buscar Olie e Saul e preste atenção para qualquer sinal da sra. Latimer
pelo caminho. Traga os dois o mais depressa possível e verifique se ela está na casa antiga.
Peter saiu correndo e logo partiu, incitando os cavalos ao galope.
Cole começou a andar de um lado para o outro, mentalmente cruzando pontes antes de serem
construídas. Parou na frente da janela e olhou para o rio, procurando o menor vestígio de
movimento no topo do penhasco.
Annie estava no hall, o almoço esquecido, com uma colher na mão e Miles, ao seu lado, torturava
nervosamente a gravata, até quase arrancá-la do pescoço.
— Tem alguma coisa ruim nesta casa! — Annie brandiu a colher como uma arma. — Os cabelos na
minha nuca estão arrepiados.
Miles remexia-se inquieto, frustrado. A idéia daquela casa, ou da outra, sem a presença cheia de vida
da patroa e da bela menininha, era inconcebível para ele.
Uma batida surda e constante fez Cole se voltar. Mindy estava batendo com as mãos fechadas na
mesa. Quando viu que Cole olhava para ela, fez com os braços o gesto de acalentar uma criança e
apontou
573
para a escada. Depois apontou para cima com um movimento de quem empurra alguma coisa.
Cole balançou a cabeça, tentando ser paciente.
— Mindy, não quero brincar com você agora. Não quero ver o espelho outra vez. Alaina e o bebê
desapareceram e não sei onde estão. Por favor, tente compreender.
Mindy balançou a cabeça afirmativamente, apontou para si mesma e repetiu os gestos que fizera
antes. Cole virou para a janela, para esconder sua irritação.
— Deixe-me em paz, Mindy.
As pancadas recomeçaram e não pararam quando ele se voltou furioso. Então Cole viu as lágrimas
nos olhos dela e sua raiva desapareceu. Não conseguiu censurar a menina outra vez.
Mindy ficou de pé com as mãos abertas sobre a mesa e começou a lembrar coisas do passado.
Lembrou de ser empurrada para uma moita de arbustos e avisada para não falar nem gritar,
independente do que acontecesse. Lembrou de como o pai caiu ferido e do trovejar dos mosquetes.
Lembrou os gritos da mãe quando os homens de cara pintada arrastaram-na para fora da casa em
chamas. Lembrou do baque surdo da enxada e do tio caindo na cova. Sua mente parou. Agora, era a
adorada Alaina e o bebê Glynis cujos olhos diziam coisas tão belas quando ela se inclinava sobre o
berço. Tinha passado o tempo de guardar silêncio.
A boca de Mindy se abriu e os lábios se contorceram com o esforço, mas tudo que conseguiu foi um
chiado ininteligível. Os chiados se transformaram em soluços, e ela bateu lentamente com as mãos na
mesa, frustrada. Os soluços ficaram mais intensos, sacudindo todo o corpo pequenino, e Cole não
sabia o que fazer para consolá-la. Aproximou-se e a tomou nos braços. Então as palavras estranhas
soaram como um murmúrio no seu ouvido.
— Papai! Papai! Mamãe! — De repente, Mindy se afastou dele, segurou o cabelo de Cole nos dois
lados da cabeça e olhou nos olhos dele. Seus lábios se moveram com dificuldade e conseguiu dizer:
— Na! Na! Ainya! Ainya!
,. — Alaina?
A cabecinha balançou afirmativamente.
— Nis!Nis!Inis!
— Glynis?
— Co! Col! — Fechou os olhos com força, procurando falar com
574
mais clareza. — Col! Vem! — Com um olhar de súplica nos olhos marejados de lágrimas, ela pediu:
— Col! Vem! Depressa! Depressa! Finalmente Cole compreendeu. Mindy sabia onde estava Alaina e
tentava dizer para ele. Cole deixou que ela o levasse de volta ao quarto de Roberta. Mindy foi direto
para o espelho e com os braços abertos apoiou as palmas das mãos no vidro. Virou a cabeça e olhou
para Cole.
— Porta! Porta!
— Porta? — repetiu Cole. — Uma porta?
Mindy indicou o espelho com um movimento dos ombros.
— Porta! Porta! Abrir!
— O espelho é uma porta, e Alaina passou por ela? Mindy balançou a cabeça, dizendo que sim.
— Inis! Inis!— apontou para o espelho. Cole examinou as bordas do espelho.
— Ar — Ar — Arth! Miz Arth! — disse Mindy, devagar.
— A sra. Garth? — Só então Cole lembrou que não tinha visto a governanta. Aproximou-se do
espelho e o examinou de alto a baixo. Os vidros tinham um fundo como mármore que deformava o
reflexo, mas não encontrou nem sinal de dobradiças ou de maçaneta. Então notou a marca de um
dedo na parte superior direita. Pôs a mão sobre a marca e empurrou. O espelho se moveu não mais
de dois centímetros. Empurrou com mais força e o vidro prateado abriu completamente.
— Mindy! Olie e Saul logo estarão aqui. Traga-os para cima e mostre esta porta.
Mindy correu para a porta do quarto e parou, olhando para ele.
— Col?
Cole estava pondo uma cadeira para segurar a porta e ergueu os olhos.
— Mindy ama Ainya e Inis — disse, lenta e cuidadosamente. Cole sorriu.
— Eu também as amo, Mindy. E... Mindy? Amo você também. Muito obrigado.
Com os olhos brilhando, Mindy saiu do quarto.
Apanhando um lampião da mesa-de-cabeceira, Cole começou a descida. Se houvesse alguém
escondido, esperando por ele, seria alertado pela luz. Sem ela, corria o risco de tropeçar e rolar
escada abaixo. Lenta e cautelosamente ele desceu, com a impressão de que estava indo para as
profundezas do inferno. Um filete de luz passava
575
pela pequena abertura da porta pesada, e percebendo que o chão era firme, Cole diminuiu a luz do
lampião. Sempre com cuidado, passou pela porta e começou a descida da rampa úmida. Havia
lampiões acesos em suportes nas paredes, mas sua luz era muito fraca. Parou para examinar a
mercadoria empilhada na caverna e depois a pequena cela, no canto, chamou sua atenção. O
pequeno vulto preso dentro dela era a mulher que ele amava e que procurava.
— Alaina? — murmurou Cole e, saindo do túnel, viu-se à frente do negro enorme chamado Gunn.
O homem desferiu um soco violento e depois da sensação de dor, Cole mergulhou na escuridão.
576
Capítulo Quarenta e Três
O ECO DO GRITO de Alaina morreu aos poucos nas paredes de pedra da caverna. Estava sentada
no catre, ao lado da filha adormecida quando a voz de Cole soou da escuridão além da pesada porta.
A esperança e o alívio que encheram seu coração foram imediatamente destruídos pelo violento
golpe de Gunn. Agora, de pé atrás das grades da prisão, ela viu o negro erguer Cole nos braços. Não
tinha dúvida de que Gunn podia matar ou aleijar um homem para o resto da vida só com um murro
daquela mão poderosa.
A sra. Garth chegou correndo da outra extremidade da caverna, acompanhada por alguns homens, e
com um gesto os mandou entrar na passagem de onde Cole acabava de sair. Alaina ouviu os passos
rápidos no outro lado da porta e momentos depois, subindo a escada.
A sra. Garth aproximou-se da cela, fez sinal para Alaina se afastar da grade e tirou uma chave do
bolso. Notando que Alaina olhava preocupada para o marido inconsciente nos braços de Gunn, ela
riu zombeteira.
— Ele esta bem, sra. Latimer. Um pouco abalado, talvez, mas nada grave. Gunn sabe ser delicado...
quando quer — avisou.
Ela abriu a porta da cela, e Gunn entrando, jogou Cole no chão. Imediatamente Alaina ajoelhou ao
lado do marido e apoiou a cabeça dele no colo, examinando o queixo, que começava a ficar roxo.
Não
577
tinha nada para aplicar na equimose, pois até aquele momento não recebera comida nem água. Seu
único consolo era que Glynis não estava sofrendo. Acriança, depois de mamar, brincou por algum
tempo no colo da mãe e adormeceu.
A sra. Garth observou desdenhosamente os cuidados de Alaina com o marido. Os dedos finos de
Alaina eram como pássaros delicados, acariciando o cabelo e o rosto de Cole.
— Isso mesmo, queridinha — zombou ela. — Trate bem dele. Acho bom você se divertir enquanto
pode. Vai acabar muito depressa.
Alaina esforçou-se para não demonstrar o que sentia. Não podia se entregar ao medo despertado
pela presença de Gunn. Era evidente que Jacques DuBonné era o mandante de tudo aquilo. A
insinuação da mulher confirmava seus temores, que ameaçaram destruir por completo sua coragem e
seu autocontrole.
Indefesa, Alaina viu a sra. Garth apanhar a chave assim que o negro saiu da cela, mas Gunn cutucou
o ombro dela com a ponta do dedo.
— Espere! — Era uma ordem, não um pedido, e a sra. Garth ficou imóvel, olhando arrogantemente
para o homem.
Gunn virou-se e afastou-se, sem nenhuma explicação, acompanhado pelo olhar furioso da mulher.
— Esse negro imundo nunca soube reconhecer seu lugar — resmungou ela, quando Gunn não
podia ouvir. — Um dia destes ele vai se descontrolar e nos matar a todos.
Gunn voltou com um balde de madeira com água e uma pilha de toalhas bordadas com a inicial L,
aparentemente roubadas há algum tempo. Abriu a porta de grade com o ombro, pôs sua oferenda no
chão, ao lado de Alaina, e ficou parado, até ela erguer os olhos. Aexpressão do homem era mais de
curiosidade do que de ameaça. Estendeu a mão e segurou o braço de Alaina, como se estivesse
examinando a qualidade da carne, os dedos longos abrangendo toda a circunferência do braço. Um
riso surdo rolou no seu peito.
— Menino-menina é mulher! Forte! Teve uma menina primeiro! Bom! Ganha muitas cabras quando
o homem se casa. O seguinte, menino. Grande! Forte! Como Gunn!
Voltou-se bruscamente e, sem dizer mais nada, saiu da cela e desapareceu. A sra. Garth bateu a porta,
trancou com o cadeado e observou maldosamente.
— Acho que você impressionou o cretino.
578
Alaina molhou uma toalha na água do balde, torceu e a aplicou no queixo de Cole, antes de
perguntar:
— Por que diz isso?
A mulher deu de ombros.
— Eu nunca o ouvi dizer mais de três palavras a ninguém, exceto para Jack.
Alaina sentou-se nos calcanhares e tentou conversar com a mulher antes do aparecimento de
Jacques.
— Francamente, sra. Garth. Devia pensar que, se meu marido encontrou esta passagem, outros estão
vindo para nos ajudar.
A Sra. Garth riu com desdém.
— Eu acho que se houvesse mais alguém, queridinha, teriam vindo com ele. Mas isso não importa.
Vão tomar conta deles, se aparecerem.
— Acredita mesmo que pode nos manter presos aqui para sempre? — perguntou Alaina, incrédula.
— Pense um pouco, sra. Garth...
— Sra. Garth! Sra. Garth! — a mulher imitou a voz de Alaina. — Como odeio esse nome! — Com
um sorriso, empertigou o corpo e disse: — Acho que já está na hora de me chamar de sra. Latimer.
Por uma fração de segundo Alaina demonstrou surpresa, mas depois olhou para a mulher e, com ar
de dúvida, observou sarcastica-mente:
— Oh! E por acaso também se chama Roberta? Os olhos escuros entrecerraram-se, furiosos.
— Está enganada, Alaina — disse ela, chamando-a pelo primeiro nome com desdém. — Nunca fui
casada com Cole Latimer, apenas sua madrasta, Tamara Latimer, a segunda mulher de Frederick
Latimer.
A suspeita tornou-se realidade. É claro, pensou Alaina! Sua mente explorava um campo cada vez
mais amplo. Quem podia conhecer melhor os segredos da casa do que a mulher para quem ela fora
construída? Aparentemente, nenhum dos dois Latimer conhecia a passagem secreta na suíte de
Roberta, os quartos que antes haviam pertencido a Tamara.
Agora que sabia a identidade da mulher, milhares de conjeturas passavam por sua cabeça e ela disse:
— Era você quem entrava e saía no quarto de Roberta, tentando me matar de medo, não era? — riu
com desprezo. — Mas não sou tão fácil de assustar como você esperava. Pensou mesmo que ia me
fazer fugir desta casa com suas bobagens? Ou nos separar, fazendo-me crer
579
que Cole queimara meu vestido, ou lançar suspeitas sobre mim, jogando os arreios e as selas na água
com sal? Gestos tolos e idiotas, sra. Garth — advertiu ela, ignorando o nome verdadeiro da mulher. -
— Não assustou ninguém, nem mesmo Mindy. Você é uma palhaça desajeitada, como seu amigo
Jacques.
— A tola é você — disse Tamara, com desprezo. — Devia ter ido embora quando ainda podia, ou,
melhor ainda, nunca devia ter vindo. Cole estava caindo nas minhas mãos com suas bebedeiras e a
depressão, que eu alimentava do melhor modo possível. Logo, ele sofreria um acidente e ninguém ia
questionar a causa, pois todos sabiam como ele bebia. Então eu seria a dona desta casa outra vez,
como tenho direito de ser. Mas você chegou e mudou tudo. Fez Cole voltar à medicina e vocês dois
planejaram transformar a minha mansão num abrigo para inválidos e doentes. — Seus olhos
cintilavam de indignação. — Pensa que eu ia permitir isso? Permitir que tocassem nas paredes da
minha mansão? — ergueu a voz, furiosa: — É uma idéia absurda!
— Na verdade — disse Alaina, com voz calma, quase cortês —, o que a preocupava era a descoberta
do seu covil de ladrões, o que a obrigaria a fugir para não ser apanhada. Suponho que está fazendo
seus joguinhos de pirataria desde que começou a trabalhar aqui. — Com a cabeça, indicou os barris
de pólvora e as caixas com os rifles. — Esta caverna é um armazém muito conveniente para
mercadorias roubadas. Mas, diga-me, como consegue fazer tudo isso? Teria de trazer os navios até a
entrada da caverna e descarregá-los durante a noite. Mas o que acontece aos barcos, depois? São
queimados? Afundados? Como os faz desaparecer?
Tamara sorriu com ar de superioridade.
— Um pouco das duas coisas, minha querida Alaina. — Ergueu as sobrancelhas, acrescentando com
orgulho: —E sem sobreviventes.
Sem sobreviventes! Alaina viu mentalmente a cena de carnificina, homens mortos a tiro ou a facadas.
Lembrou do incidente com o navio fluvial em Nova Orleans e dos prisioneiros confederados feridos.
Então, também, não houve sobreviventes, e Alaina MacGaren fora culpada pelo massacre. Em
algum momento Roberta conseguira acesso ao dinheiro daquele barco, o mesmo dinheiro
encontrado em Briar Hill e mais tarde levado pelo assassino do tenente Cox. De algum modo
chegara até ali, sem dúvida levado pelo assassino ou por um dos seus asseclas.
580
Um calafrio percorreu a espinha de Alaina, enquanto observava atentamente a mulher. Tamara era
pequena, de constituição aparentemente frágil. No escuro, passaria facilmente por uma mulher mais
jovem, e com uma peruca, uma mulher de cabelos vermelhos. Seria ela a assassina e ladra que se
fizera passar por Alaina MacGaren, durante a guerra? Seria ela a assassina de Cox?
— Tamara, você me deixou curiosa. — Um pouco de lisonja amistosa poderia conseguir as respostas
desejadas, e Alaina estava disposta esclarecer suas suspeitas. — Percebo que você e eu representamos
muitos papéis quando foi necessário à nossa sobrevivência ou nossa vantagem. De certa forma,
somos iguais. Passamos por muita coisa e vencemos muitos obstáculos. Somos capazes de sair em
busca do que desejamos. Mas Roberta era diferente, não era? Roberta roubou de nós. Armou ciladas.
Planejou. Eu tinha Cole na palma da minha mão, mas ela o tirou de mim. Agora, descobriram que
Roberta roubou algum dinheiro. Mas não foi de Cole, e começo a acreditar que o dinheiro era seu.
Minha suposição é correta?
— Aquela cadela! — rosnou Tamara. — Ela encontrou a passagem no espelho e veio bisbilhotar
quando nenhum de nós estava aqui. Eu trouxe o dinheiro de Nova Orleans e aquela intrometida
arrombou a fechadura desta cela para pôr as mãos nele. Estava seguro aqui, até Roberta chegar com
sua curiosidade e meter o nariz onde não era chamada. Ela levou tudo! Todo o dinheiro pelo qual eu
trabalhei tanto! Ela até matou o jardineiro quando ele a apanhou escondendo o baú com o dinheiro.
Ignorando a exclamação de horror de Alaina, ela continuou, venenosa:
— Ele também foi intrometido e isso lhe custou a vida. Roberta o agradou de todo modo, quando
ele exigiu que dividissem o dinheiro. Chegou até a dormir com ele, para acabar com suas suspeitas.
Dormiu com aquela imundície na minha cama! Sim, ela fez isso! — falou, revoltada.
Ofendida, a mulher bateu no peito para enfatizar o insulto.
— Na cama que eu mesma comprei e que Roberta dizia que era dela. Eu fiquei atrás do espelho e vi
tudo naquela noite. Ouvi tudo. Compreendi que estavam falando sobre o meu dinheiro. Mais tarde,
Roberta convenceu o homem a cavar um buraco no jardim, fazendo-o acreditar que iam enterrar a
fortuna.
Tamara riu com sarcasmo.
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— Ele não sabia que estava cavando o próprio túmulo. Eu vi tudo da plataforma no alto da casa. Vi
tudo o que ela fez. O dinheiro estava entre os dois, e o jardineiro pôs algumas notas no bolso para se
sentir bem enquanto trabalhava. Então Roberta o atacou por trás com uma pá e amassou a cabeça
dele. O homem caiu no buraco, poupando àquela cadela o trabalho de empurrá-lo, mas ela ficou
imediatamente de joelhos para tirar o dinheiro dos bolsos dele. Cobriu o corpo com terra e plantou
as roseiras bem em cima dele. Depois disso, eu a segui até a casa antiga. Teve de fazer várias viagens
para levar todo o dinheiro. Já viu aquela lareira grande na cozinha? Foi lá que ela o escondeu,
pregado na parede da chaminé. Provavelmente foi o único trabalho que ela fez em toda a vida. Assim
que ela saiu, eu apanhei o dinheiro, mas Roberta já tirara quase vinte mil dólares. Algumas semanas
depois, ela descobriu que estava grávida e perguntou a mim, sua governanta de confiança, onde
podia tirar a criança de modo discreto. Recomendei uma pessoa que nunca aprendeu a arte da
profissão. Como eu esperava, a mulher foi descuidada, e esse foi o fim de Roberta. Para mim, já foi
tarde.
Alaina mergulhou a toalha na água outra vez e renovou a compressa no queixo de Cole.
— O que vai acontecer conosco? — perguntou então.
— Você, minha querida Alaina — respondeu Tamara, sorrindo suavemente —, será apenas uma
criada, a ama da sua filha, enquanto eu farei o papel de avó por direito, embora de parentesco
distante. Vou dirigir esta casa como deve ser dirigida e nenhum pedreiro vai derrubar suas paredes.
— Talvez Cole tenha algo a dizer a respeito. A casa é dele.
— A casa é minha! Eu a desenhei! Eu a mobiliei! É minha Cada pedaço de madeira, cada tijolo! —
riu baixinho. — Cole Latimer deixará de existir. Sofrerá um acidente. Oh, terei o cuidado de fazer
com que seja identificado adequadamente de modo que a fortuna dos Latimer passe para seu parente
mais próximo. Terei de me tornar a guardiã da menina quando você desaparecer.
Um medo gelado envolveu Alaina e ela abaixou os olhos, procurando controlar o tremor da voz
antes de dizer:
— E esta caverna? Era parte dos seus planos, também?
— É claro — disse Tamara com orgulho condescendente. Frederick estava sempre muito ocupado
com seus pacientes para se preocupar com o que eu fazia. Ele nem tinha conhecimento da existência
582
desta caverna, antes da construção da casa. Tendo de viver neste maldito fim de mundo, eu não
pretendia ser massacrada por selvagens sedentos de sangue. Por isso fiz essa passagem, um caminho
de fuga. Frederick forneceu todo o dinheiro necessário para a construção da casa. Mas quando o
abandonei, ele me deserdou e perdi o direito de recuperar o que era meu... até agora. É claro que
ficará no nome da sua filha, a herdeira legal da fortuna dos Latimer, mas uma criança é apenas um
peão no tabuleiro. Pode ser manobrada e usada. Será como se a casa voltasse a ser minha. Mas não
cometa o erro de se julgar indispensável, minha querida. Só vou precisar de você para cuidar da
criança, mas, na sua falta, qualquer outra pessoa pode fazer isso.
— Vejo que planejou tudo. — Alaina parecia calma, mas seu coração palpitava tremulamente e o
suor porejava em todo seu corpo. O que eles tinham planejado para Cole a assustava mais do que
todo o resto. — Mas, diga-me Tamara, por que não ficou aqui? Tudo seria seu e tantas mortes seriam
evitadas.
Tamara arrancou os punhos brancos do vestido, jogou no chão e os amassou sob os pés, como se
odiasse qualquer lembrança da sua posição servil.
— Frederick Latimer só me queria para mãe do seu filho. Porém eu queria muito mais! Fama e
fortuna! Riqueza! Ele possuía tudo isso, é claro, mas não gostava de festas e das vantagens da
riqueza! — Ergueu o queixo, num gesto imperioso.—Apareceu um homem, belo, encantador. Um
jogador! Apaixonei-me por ele. Oh, você precisava nos ter visto juntos, Alaina. Nós demos vida ao
velho rio, de Pig's Eye até o Delta, e vice-versa. Mas havia um filho. Oh, não dele, mas do sr.
Latimer! Eu estava grávida quando fui embora! Mas fiz Harry acreditar que era dele e nunca contei a
verdade a ninguém. Harry e eu trabalhávamos nos navios fluviais. Por meio de sinais eu informava a
ele o jogo dos seus parceiros. Não que ele precisasse da minha ajuda. Harry podia fazer qualquer
carta que você escolhesse saltar do baralho. Mas preferia jogar com segurança.
Tamara encostou-se na grade da cela e olhou para a ponta fina do sapato preto.
— Então, às vezes, um dos seus parceiros queria uma mulher... e tornei-me outro tipo de chamariz.
Eu... acalmava os perdedores, e — ergueu a cabeça desafiadoramente — eles iam embora felizes e
satisfeitos. Mas Harry era genioso. Não gostava que o chamassem de trapaceiro. Atirava muito bem,
mas certa noite desafiou o homem
583
errado, um creolo de Nova Orleans. Tiraram Harry do rio com uma bala bem no meio da testa. —
Pôs o dedo na própria testa, indicando o lugar. — Fiquei sozinha, com um filho de um ano, mas eu
sabia também manejar o baralho e quando os fregueses não se importavam de jogar com uma
mulher, eu conseguia fazer um ou dois truques. Quando o movimento ficou fraco, descobri outro
modo de sobreviver. Então, dei um bom golpe e me instalei com meu filho numa pequena cidade
cajun. O menino lembrava muito bem da vida de luxo que levávamos e ensinei a ele tudo que eu
sabia. Quando ele cresceu, começamos a trabalhar juntos e pode estar certa de que éramos muito
bons — relatou ela.
Tamara deu de ombros.
— Bem, eu soube que Frederick tinha morrido e vim para cá para ver o que podia lucrar com isso.
Eu esperava e desejava que Cole não voltasse da guerra. Teria me poupado muito trabalho. Frederick
nunca se divorciou de mim. Legalmente, eu me apresentaria como sua viúva e certamente ia comover
o coração dos juizes. Ainda sou bonita e é difícil calcular minha idade. Mas agora, com sua filha, só
preciso convencer as autoridades que gosto muito de crianças e pretendo defender os interesses de
Glynis. Vai ser muito mais fácil reclamar a herança dela do que reconquistar meu direito à fortuna
dos Latimer. Mas... já falei muito e meu filho logo estará aqui. Vou deixá-la por algum tempo, Alaina.
Não vá para muito longe, está bem? — avisou ela.
Rindo da própria ironia, Tamara se afastou na mesma direção tomada por Gunn, deixando Alaina
muito perturbada com o funcionamento da mente daquela mulher.
Olhou para Cole com os olhos cheios de lágrimas, pensando que dentro de pouco tempo ele estaria
morto. Acariciou o rosto dele, procurando afastar essa visão sinistra. Carinhosamente continuou a
aplicar as compressas no queixo e na testa dele, até Cole voltar a si. Ele gemeu e abriu os olhos para
o rosto sorridente de Alaina.
— Bem-vindo de volta, meu querido — murmurou ela.
— Alaina! — Cole tentou sentar-se, mas interrompeu o movimento até o mundo cessar de girar.
Levou a mão cuidadosamente ao queixo atingido e olhou para as sombras, para amercadoria
empilhada. — Ao que parece, estávamos sentados bem em cima do covil dos ladrões.
— Acho que também cheguei a essa conclusão — observou
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Alaina. —E há muito mais do que se pode ver. São assassinos, Cole todos eles.
— Temos de sair daqui. — Cole levantou-se, examinou a porta de grades e voltou-se para Alaina: —
Mas neste momento, não sei como.
No catre, Glynis acordou choramingando, e Alaina a tomou nos braços. Ergueu a mão, chamando
Cole e quando ele atendeu, aninhou-se nos braços dele.
— Cole, eles vão assassiná-lo! — murmurou, desesperada. — Eles planejam tomar Latimer House...
Cole pôs o dedo nos lábios dela.
— Saul e Olie logo estarão aqui—murmurou, encostando o rosto no cabelo da mulher. — Portanto,
não se preocupe, meu amor. Vamos sair disto vivos e muito bem.
Mas Alaina não se deixou convencer.
— Mas Cole, eles mandaram alguns homens vigiar a escada.
— Então, vamos esperar e ver o que acontece. Saul sabe se cuidar, e com a ajuda de Olie talvez os
ladrões tenham uma surpresa. — Abraçou os ombros dela, confiante. — Não pretendo ser
dispensado tão facilmente quanto eles pensam.
Glynis chorava ainda, e ele a pegou no colo.
— Ela está molhada — reclamou.
— Isso é tudo que o preocupa? — riu Alaina, entre as lágrimas. Enxugou os olhos procurando evitar
qualquer outra demonstração de medo. A presença de Cole e sua segurança faziam tudo parecer
menos terrível. Ergueu a saia do vestido e rasgou um pedaço da anágua, como já fizera antes,
dobrando-o no colo. Estendeu os braços para a criança. Depois de ajeitar a fralda provisória e seca,
ela a entregou outra vez ao pai. Glynis continuava inquieta. Enquanto Cole a embalava suavemente,
Alaina encostou o queixo no ombro dele e disse: — Acho que vamos encontrar um velho amigo
antes do fim do dia. Foi Gunn que o trouxe para esta cela.
— Gunn? — Cole passou a mão no queixo e girou o pescoço para aliviar a dor na nuca. — É claro!
Como fui esquecer a arrogância de Jacques!
— Eu o encontrei exatamente do mesmo modo, quando ele me raptou em Nova Orleans —
comentou Alaina, pensativa.
Cole inclinou a cabeça e examinou com atenção o queixo delicado dela.
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— Gunn deve ter a habilidade de um cirurgião. Eu nunca notei nenhuma marca no seu queixo e não
estou vendo nada agora.
— Acho que Jacques disse alguma coisa parecida — respondeu Alaina, com um sorriso.
— Desculpe. — Cole beijou de leve os lábios dela.—Parece que hoje é meu dia de citar todo mundo.
— Este último não me parece uma citação — murmurou Alaina, ternamente. — Tem gosto de
original.
O choro de Glynis gradualmente se transformou em gritos furiosos, que só se acalmaram quando
voltou para o colo da mãe. A criança encostou a boca avidamente no seio dela e Alaina, depois de
olhar para as sombras da caverna, abriu o vestido. O choro parou, e Glynis começou a mamar
avidamente.
Cole observava, sem deixar que a situação prejudicasse seu eterno fascínio por seios nus. Passou o
braço por trás de Alaina, protegendo as costas dela da parede fria.
— É estranho que eu nunca tenha descoberto esta caverna — disse ele. — Mas a verdade é que
sempre detestei o quarto vermelho e raramente entrava nele, mesmo quando Roberta era viva.
— Cole, foi Roberta quem matou o jardineiro e o filho era dele. A sra. Garth viu tudo.
Cole aceitou a revelação com pouca surpresa.
— Ela devia estar desesperada.
— O homem a apanhou com o dinheiro roubado e queria obrigá-la a dividir com ele.
— Então eu acredito. Roberta era muito possessiva quando se tratava de dinheiro.
— Não podemos contar isso a tia Leala... nem ao tio Angus — pediu Alaina.
— Não. O choque seria demais para eles.
— Há outra coisa que você precisa saber... sobre a sra. Garth...
— Uma mulher muito interessante — disse Cole, quando viu o vulto da governanta passar
rapidamente de um lado para o outro, nas sombras da caverna, e atravessar a porta pesada de
madeira, com o costumeiro tilintar de correntes. — E muito ocupada.
Alaina pôs a mão na perna dele, chamando sua atenção:
— É algo que tem a ver com você, Cole.
Uma risada zombeteira ecoou na caverna, vinda do lugar para o
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qual Tamara tinha corrido e Cole e Alaina viram o homenzinho bem vestido de pé, com as pernas
separadas. Era Jacques!
Alaina cobriu a cabeça de Glynís e seu seio com a ponta do cobertor da criança, quando o francês se
aproximou da cela com passos arrogantes, agora que Cole estava atrás das grades. Alaina percebeu a
tensão no corpo do marido e nos músculos do seu rosto.
— E o que temos aqui? — perguntou Jacques com um sorriso sarcástico, parando na frente da porta
trancada. — Dr. e sra. Latimer, estou certo? É um prazer sua visita à minha humilde casa. E,
naturalmente, não posso esquecer a doce Glynis, que suga seu belo seio, Alaina. Oh, estar no lugar
dela, ma chérie. Seria um prazer imenso.
Os olhos de Cole eram dois pontos de aço azul.
— Aparentemente não levou a sério minha advertência no hotel.
— O que foi mesmo que você disse? — perguntou Jacques, fingindo profunda concentração.—
Alguma coisa sobre eu ser julgado por uma autoridade mais alta? — Riu com ironia. — Veremos
quem vai julgar quem, monsieur le docteur — falou ele.
Encostou o ombro na grade, tirou a luva e estendeu a mão direita deformada pelo fogo.
— Um presente da sua mulher, monsieur. Bem como isto. — Tirou o chapéu e afastou o cabelo para
mostrar a marca da bala na orelha.
"Lembra-se do nosso último encontro em Nova Orleans, Alaina? Se não me engano disse que
preferia se matar a entregar-se a mim. Muito bem, desta vez tenho algo mais eficiente para melhorar
seus modos. Se não se comportar, seu marido terá uma morte muito lenta e dolorosa.
Trêmula, Alaina encostou-se no braço de Cole.
— Isso é o melhor que pode conseguir de uma mulher? — perguntou Cole. — Assustá-la para que
se entregue? É assim que faz todas as suas conquistas?
Por um momento Jacques ficou abalado, mas depois continuou, como se não tivesse ouvido.
— É claro que pretendemos nos livrar do bom doutor, de qualquer modo. Mas se você cooperar,
Alaina, pode ser muito melhor para ele.
— Vejo que de nada valeram os perdões que recebeu—observou Cole. — Continua a ser um mau-
caráter e um desclassificado.
— Gostaria de ver novamente as minhas credenciais, monsieur le docteur? Aqui estão! — Tirou os
papéis do bolso e os passou entre
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as grades. — Pode examinar com calma. Oh! Aqui tem outras. — Passou outro pacote com papéis.
— Um pouco diferentes, mas igualmente aceitáveis perante a lei. E aqui, um perdão do México e
outro da França! Está vendo? Os países disputam entre si o privilégio de me conceder perdões. —
Sua risada ecoou na caverna e depois ele disse, satisfeito: — Na verdade, encontrei um homem
talentoso com uma caneta e com muito ódio por este mundo. — Deu de ombros. — Infelizmente
dei a ele a oportunidade de odiar o outro mundo também. — Ergueu as mãos abertas, num gesto
indefeso. — Vê o quanto estou confiante. Vou construir um império aqui, tão poderoso que
ninguém ousará me tocar. Na verdade, será sobre os ossos dos Latimer e da sua fortuna, mas devo
considerar tudo que vocês tiraram de mim. Alaina, minha mão e minha orelha. E monsieur le
docteur, a mulher que desejei para mim. Por isso, monsieur Latimer, estou tentado a mandar castrá-
lo — ameaçou ele.
Vendo o olhar tolerante de Cole, Jacques parou de falar, percebendo que não estava preocupando
nem um pouco o outro homem. Andou de um lado para o outro, por um momento, esfregando o
queixo, profundamente concentrado.
— O senhor também parece confiante, monsieur Latimer. — Olhou para Cole com a testa franzida.
— Será porque está pensando que alguém vem salvá-lo? Estará baseando suas esperanças na chegada
— deu um passo atrás e estendeu a mão para o lado — deste homem?
A gargalhada de Jacques abafou a exclamação de Alaina, estremecendo o ar no interior da caverna,
quando quatro homens carregaram Saul, amarrado e amordaçado para perto da cela e o atiraram no
chão. Cerca de meia dúzia de homens, com vários ferimentos e equimoses, o rodearam, armados
com bastões pesados. Saul também não estava ileso. Um filete de sangue saiu de um ferimento na
cabeça e um olho estava quase fechado. Um homem abriu a porta da cela e dois homens o
arrastaram para dentro. Cole levantou-se, esperando para examinar os ferimentos dele. A porta se
fechou, e Jacques observou Cole tratando do negro.
— Um desperdício, monsieur. Ele estará morto de manhã. Meus homens se encarregarão disso.
— Você também pode estar morto de manhã, monsieur DuBonné
— respondeu Cole, desamarrando as mãos e os pés de Saul. Lavou os ferimentos, enquanto Saul se
livrava da mordaça.
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— Ainda confiante, monsieurl — perguntou Jacques.
Cole, agachado ao lado de Saul, apoiou o cotovelo na perna e disse:
— Quando uma simples mulher pode enfrentá-lo e causar tanto dano à sua pessoa, apesar do seu
exército de assassinos, acha que devo me preocupar?
As palavras de Cole acertaram o alvo, e o homenzinho ficou imóvel. Depois, com um gesto irritado,
mandou os homens embora. Quando os passos deles se afastaram, ouviram outros, se aproximando.
Um farfalhar de tafetá anunciou a chegada de Tamara.
— Agora, temos todos, hein? — vangloriou-se Jacques com uma risada triunfante, voltando-se para
ela.
Tamara passou pela cela sem parar.
— As coisas foram muito bem para nós. Pensei que tínhamos perdido nossa chance quando o bom
doutor saiu do rio e voltou para nos assombrar. Mas nós o temos outra vez exatamente onde
queríamos. E agora não tem ninguém para salvar sua vida.
Cole levantou-se e inclinou a cabeça, observando a mulher, atentamente.
— Foram vocês que me atiraram no rio, em Nova Orleans? Com um gesto de desprezo, Tamara
ergueu as sobrancelhas.
— Matando dois coelhos com uma cajadada, mais ou menos. Quando soubemos que você estava em
Nova Orleans, depois que fui informada da morte do seu pai, achamos que não podíamos deixar
passar a oportunidade. E sua farda nos permitiu a entrada no hospital para libertar os prisioneiros,
um plano que engendramos para culpar Alaina MacGaren. Queríamos muito aquela propriedade dela
e seria nossa se os ianques tivessem tomado Shreveport na ocasião.
As coisas estavam indo depressa demais para Cole. Visivelmente confuso, ele perguntou:
— Você fora informada da morte do meu pai? Que interesse podia ter nele?
— Cole — começou a dizer Alaina, mas Tamara a interrompeu.
— Pode deixar, sra. Latimer. Eu mesmo conto.
— Contar o quê? — perguntou Cole, olhando para Alaina.
— Você não lembra de mim, Cole. — Ele voltou a olhar para ela. — Era muito novo e já faz tanto
tempo, embora, como pode ver, eu quase não envelheci.
Cole ficava cada vez mais perplexo.
589
— Eu devia conhecê-la?
— Bem, como eu disse, foi há tanto tempo que é possível que não lembre da sua madrasta.
—Tamara? — exclamou ele, surpreso.
:
Ela inclinou a cabeça levemente.
— É claro.
— E você está com esse bando de malfeitores? — perguntou Cole, incrédulo. Apontou para Jacques.
— Com esse mau-caráter desclassificado?
Tamara ergueu a cabeça, orgulhosa.
— Ele é meu filho.
Alaina olhou boquiaberta para Jacques, e Cole riu com ironia.
— Não meu parente, espero.
A — De modo algum! — respondeu Jacques, furioso.
— Ora, Jack... — Tamara procurou acalmá-lo para a revelação iminente. — Você...
Os olhos negros de Jacques pareciam soltar chamas.
— O nome é Jacques, m'mère, Ficaria satisfeito se a senhora o usasse.
Tamara sacudiu a mão no ar, com impaciência.
— Oh, Jack, está ficando pior do que Harry, com essa história.
— Henré! — Jacques estava cada vez mais irritado. — Henré DuBonné! Monpère! Henré DuBonné!
Foi a vez dos olhos de Tamara incendiarem-se de ira.
—Harry nunca teve um filho em toda a sua vida.
Jacques olhou para ela, incrédulo.
" — Não quer dizer que eu... e ele — olhou com nojo para Cole, que retribuiu na mesma moeda.
— Meio-irmãos. — Tamara elucidou o assunto do parentesco, sem mais rodeios. — O mesmo pai,
mães diferentes.
Jacques ergueu os braços com um brado de revolta. Olhou furioso para Tamara.
— Por que deixou que eu acreditasse durante todos esses anos que Henré era meu pai?
Ela deu de ombros, ignorando a irritação do filho.
— Não fazia sentido contar enquanto Frederick estava vivo. Ele jamais o teria reconhecido. Não ia
acreditar em mim, ou em você. Ora, você não se parece em nada com Frederick. Puxou o meu lado
da família. Desse modo eu sabia que só ia provocar frustração saber que
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era filho dele, sem poder provar. Foi mais simples assim, e você terá a fortuna dos Latimer através da
menina.
Jacques resmungou, não totalmente convencido:
— Eu devia ter suspeitado de alguma coisa quando mandou atirar monsieur le docteur no rio.
— Foi melhor assim, acredite, Jacques — garantiu Tamara. — Teremos a fortuna dos Latimer e tudo
que pertence a eles por meio da criança. E você pode fazer o que quiser com a mãe. Ela está em suas
mãos.
— É o que vocês pensam! — rugiu Cole. — Pelo menos, não enquanto eu estiver vivo!
Consolado com a idéia de possuir Alaina depois de tantos meses de espera, e desejando vingança,
Jacques riu com desdém.
— Isso, monsieur le docteur, logo será remediado. Ela será minha e você será morto. — Seus olhos
encontraram os de Alaina e ele inclinou de leve a cabeça, prometendo: — Vai ser minha, antes do
fim do dia. Pode ter certeza, ma chérie.
Alaina abotoou o vestido discretamente, sob o cobertor da filha, e Jacques voltou-se para Tamara:
— Acho melhor saírem agora, se quiserem alcançar o barco na curva do rio. Leva uma carga preciosa
que não quero perder e temos mais pedidos do que podemos atender no momento. Quanto mais
apanharmos, mais venderemos e mais ricos vamos ficar, m'mère.
— É bom que deixemos alguns homens aqui, para o caso daquele homenzarrão tentar alguma coisa
— sugeriu Tamara, indicando Saul com um gesto.
— Faça isso — respondeu Jacques. — Gunn pode ficar também, mas mande o resto sair agora. É
uma boa distância até a curva do rio e precisam estar posicionados quando o barco aparecer. Os
nossos homens a bordo esperam o ataque.
Tamara saiu para sua missão, e Jacques olhou para os prisioneiros com irônica condescendência. Mas
o sorriso desapareceu quando Cole sentou-se outra vez ao lado de Alaina e a abraçou
protetoramente. Para o francês, era um desafio direto.
Jacques sacudiu a luva no ar e zombou:
— Você terá pouco tempo com ela, até a minha volta. Nossos deveres geralmente nos chamam nas
horas mais impróprias. Mas garanto que, antes de voltar, encontrarei um lugar onde ela e eu
possamos ter um pouco de privacidade — avisou ele.
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Jacques afastou-se com uma gargalhada. Cole procurou acalmar Alaina, que se agarrava a ele
desesperadamente. Saul balançou a cabeça, preocupado.
— Sr. Cole, desculpe-me por me deixar apanhar. Eles estavam à minha espera.
— Onde está Olie? — murmurou Cole.
— Estava bem atrás de mim, mas acho que ouviu o barulho da luta e resolveu não entrar na
passagem. Ou talvez tenha ido buscar ajuda.
— Está vendo, Alaina? — disse Cole em voz baixa, junto ao ouvido dela. — Ainda há esperança.
— Oh, Cole. — Alaina estava chorando, com o rosto encostado no peito do marido. — Eu não
poderia viver se acontecesse alguma coisa a você.
— Não fale nisso agora, minha querida — acariciou o cabelo macio. — Seja corajosa. Garanto que
não tenho nenhuma intenção de permitir que esses bandidos executem seus planos.
Passos pesados soaram na caverna, e Gunn apareceu com uma Winchester brilhante na mão. Vestia
apenas calça e um colete de brocado, pequeno demais para seu torso enorme. Um remendo grande e
vermelho no colete reavivou a memória de Cole. O pedaço que faltava era o mesmo que ele tivera
nas mãos quando tentava decifrar o que estava acontecendo em Briar Hill, antes do incêndio. O
assassino do tenente Cox usava aquele colete, e era muito menor do que Gunn. Exatamente do
tamanho de Jacques.
Gunn parou na frente da cela e olhou para Saul, inclinando a cabeça, ora para um lado, ora para o
outro. Pôs o rifle no chão, fora do alcance dos prisioneiros, e agachou-se na frente de Saul, que
estava de lado para a porta. Saul voltou-se quando Gunn bateu com a mão no seu ombro.
— Você homem grande! — balançou a cabeça, confirmando a própria observação. — Grande como
Gunn. — Bateu no peito com a mão fechada, passou a mão pela grade e bateu no pé de Saul.
Depois, ergueu as mãos abertas. — Todos estes para pegar você — dobrou um dedo, deixando
nove. — Todos estes talvez não peguem — falou.
Gunn ficou de pé e olhou para Saul como se estivesse tentando resolver alguma coisa. De repente
segurou as barras de ferro da porta e as sacudiu, distendendo ao máximo os músculos dos braços e
do peito. Convencido de que não podia arrancar as grades, recuou e disse:
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— Gunn não quebra. Saul tenta. Sem hesitar, Saul segurou as barras no mesmo lugar e tentou. Mas
também sem resultado. Quando ele desistiu e se afastou da porta, Gunn, com uma risada de
satisfação, desapareceu nas sombras da caverna, certo de que os prisioneiros não iam sair da cela.
Jacques voltou depois do pôr-do-sol. Alaina não tinha mais esperança de que Olie chegasse a tempo
de salvá-los dos bandidos, e com Gunn vigiando-os, escondido nas sombras, não podia tentar abrir o
cadeado como Roberta fizera, mesmo que tivesse algum instrumento apropriado. Gunn e dois
homens postaram-se atrás de Jacques com as Winchesters apontadas para os prisioneiros. Cole e
Alaina ficaram tensos, e Saul levantou-se de um salto.
Tamara passou entre os homens para abrir a cela, e Jacques apenas observava com um sorriso
triunfante. Tamara ergueu o braço e disse para Alaina:
— Traga a criança para cá. Alaina apertou a filha com tanta força que Glynis acordou e
choramingou. O olhar de Alaina era a sua resposta. Tamara recuou e disse para Gunn:
— Se a sra. Latimer não fizer exatamente o que eu mandar, atire nele — indicou Cole com uma
inclinação da cabeça. — Nas pernas, para começar. Não queremos perdê-lo muito depressa. — Fez
uma pausa e acrescentou: — E se o dr. Latimer ou o negro tentarem alguma coisa, atire na mulher
— ordenou ela.
Viu o ódio feroz nos olhos de Alaina e explicou:
— Como vê, minha querida, todos vocês são dispensáveis. Só quero a criança, por isso não precisam
se preocupar com ela. Agora, traga-a para cá.
Lentamente Alaina obedeceu e, controlando sua revolta, entregou Glynis para a mulher. Tamara
fechou a porta da cela e recuou um pouco. Jacques aproximou-se então.
— Ela tem o que quer—indicou a mãe com um gesto. — Agora, vou tomar o que eu quero.
Alaina recuou trêmula para o lado de Cole, sob o olhar lascivo do homenzinho.
— As regras são as mesmas, ma chérie — sorriu ele com superioridade. — Se me desobedecer, seu
marido leva um tiro.
— Ora, vá para o inferno — disse Cole. — Não pense que vou entregá-la a você. Terá de me matar
primeiro.
593
Jacques deu de ombros.
— Então eu sugiro, minha querida Alaina, que mande seu negro segurar Cole... se quer que seu
marido viva até amanhã. Mando matar os dois, ele e o negro, se não vier para mim por sua própria
vontade.
Com a mente num sinistro torvelinho, Alaina deixou escapar um soluço de desespero. Sabia que
Jacques cumpriria a ameaça. Os rifles apontavam quase com avidez para os dois homens, à espera do
menor movimento suspeito. Se entregar-me a Jacques vai garantir mais um dia de vida a Cole,
pensou ela, então, vale a pena. Com algumas horas a mais de vida, talvez ele conseguisse escapar.
Tremendo, afastou-se de Cole, evitando o braço estendido dele, e rapidamente colocou-se atrás de
Saul.
— Segure Cole, Saul! — exclamou ela, chorando. — Se não quer que ele morra, segure Cole, pelo
amor de Deus!
Em vão Cole tentou se libertar dos braços de aço de Saul.
— Desculpe, sr. Cole — implorou Saul com voz dolorosa. —Miz Alaina diz segura, eu tenho de
segurar.
Jacques abriu a porta e fez sinal para Alaina sair.
— Agora, venha comigo, sra. Latimer.
— Não! — rugiu Cole, tentando escapar das mãos de Saul. — Eu o mato se puser as mãos nela,
Jacques! Juro por Deus!
Com os olhos marejados de lágrimas, Alaina acompanhou Jacques docemente. O brado de Cole
ecoou na caverna.
— Alaina! Não!
A porta fechou-se e a chave girou no cadeado. Saul soltou Cole, que se lançou sobre a porta,
sacudindo as grades de ferro.
— Alaina! Alaina! Meu Deus, Alaina!
Procurando não ouvir o chamado angustiado, Alaina olhou para Tamara, que sacudia Glynis,
tentando acalmar o choro assustado da menina. A mulher parecia estar se divertindo muito com tudo
aquilo. Quando seus olhos encontraram os de Alaina, ela riu e afastou-se para a outra extremidade da
caverna, afastando a criança da vista dos pais, mas não de suas mentes.
Cole sacudia ruidosamente as barras de ferro, praguejando furioso contra Jacques. O meio-irmão
olhou para ele com desdém e fez sinal para os guardas se afastarem.
— Podem ir. Ele está bem seguro, e eu os chamo se for preciso. Mas não vai ser necessário. Ou vai,
sra. Latimer?
Alaina olhava para o chão, e as lágrimas desciam por seu rosto,
594
pingando no vestido. Ela ouvia a fúria selvagem do marido, sacudindo as grades. Se existia alguém
capaz de abrir aquela porta com um esforço supremo da vontade, esse alguém era Cole, pois naquele
momento ele estava completamente insano.
Jacques a segurou rudemente pelo braço, puxando-a para ele. Agarrou o cabelo dela e inclinou sua
cabeça para trás, obrigando-a a olhar nos seus olhos.
— Eu o odeio, Jacques DuBonné — disse ela, com os dentes cerrados. — Qualquer coisa que faça
comigo, lembre-se, é só porque está ameaçando a vida de Cole. Não mudei minha opinião a seu
respeito. Você continua sendo um homenzinho desprezível.
Num acesso de fúria, Jacques ergueu o braço e a esbofeteou, e Alaina teria caído se ele não a
segurasse com a outra mão.
— Bastardo maldito! — gritou Cole e o ar estalou com a fúria da sua voz.
Atordoada, Alaina recuperou o equilíbrio, sentindo o gosto de sangue. Jacques puxou-a pelo braço,
levando-a para uma pequena alcova no interior da caverna. Um lampião aceso pendia da parede e
havia uma esteira no chão. Jacques a empurrou para a esteira e começou a desatar a gravata.
— Tire a roupa e abra as pernas para o meu prazer, sra. Latimer. Chegou minha hora da vingança.
Como um animal selvagem, Cole sacudia as barras de ferro com fúria crescente. Saul observou por
um momento, atônito com tanta ferocidade. O rosto de Cole contorcia-se de raiva e de pura e
implacável determinação. Então Saul concluiu que, se era isso que precisava para mover e dominar o
céu e a terra, convinha dar uma pequena ajuda
Saul lançou-se à tarefa cheio de vontade, unindo suas forças às de Cole. Vira as barras cederem um
pouco quando Gunn as forçara. Talvez houvesse alguma esperança, afinal.
Os músculos nos braços nus de Saul eram como os nós alongados no tronco de uma árvore enorme.
O ferro gemeu e começou a ceder um pouco. Os dois dobraram seus esforços, distendendo os
tendões dos pescoços e com os rostos horrivelmente contorcidos. A barra de ferro curvou-se, com
um gemido áspero, e de repente se partiu. Os dois homens cambalearam para trás. Cole
imediatamente voltou para a porta e passou o corpo magro pela pequena abertura. Se Saul não
conseguisse passar, ele voltaria para libertá-lo — depois de ter encontrado Alaina.
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Um ruído fraco, quase um suspiro, atraiu a atenção de Cole e, voltando-se, ele viu a figurinha miúda
de Mindy avançar para a luz fraca. Mindy tinha nas mãos a Remington de Cole.
Aproximando-se dela, Cole perguntou em voz baixa.
— Onde está Olie?
— Rio. Deu volta no penhasco, para o rio. Muitos homens saíram da caverna. Olie, Peter, todos os
homens da casa, Brag, xerife... lutam com eles.
Cole jogou a pistola para Saul e caminhou para as sombras, para onde Jacques havia levado Alaina.
Segundo Mindy, Olie, Braegar, o xerife e os homens da casa iam tentar a entrada da caverna, que se
abria para o rio, mas no caminho encontraram os homens de Jacques. Cole não podia prever o
resultado daquele confronto, mas ninguém na caverna parecia ter conhecimento do fato.
Cole correu no escuro, rápido e perigoso como um felino feroz, incitado pela visão terrível de Alaina
lutando nos braços de Jacques.
Uma luz fraca brilhava sobre sua cabeça e ele ouviu o ruído de roupa rasgada e os gritos abafados de
Alaina. Uma fúria gelada percorreu seu corpo, e assim que entrou na pequena alcova viu Alaina
tentando se esquivar dos beijos de Jacques. Cole lançou-se sobre o homem seminu que, ao vê-lo,
cambaleou para trás, com um grito de pavor. Mas não conseguiu fugir do assalto do animal furioso
que acabava de surgir das trevas.
Trêmula e soluçando de alívio, Alaina cobriu o corpo com a combinação rasgada e encostou-se na
parede, dando espaço aos dois homens, que se engalfinhavam numa luta de morte. O rosto de
Jacques era uma máscara de ódio, e seu hálito fétido passava ofegante entre os dentes amarelos e
cerrados. Pequeno e magro, lutava com a força da raiva insana e do medo de ser vencido outra vez.
Então, o punho de Cole chocou-se contra seu queixo e ele desabou flacidamente, frustrando a
esperança de Cole de um castigo mais demorado. Quando empurrou Jacques para longe, enojado,
um tiro soou na caverna onde ficava a cela. Cole, compreendendo que Saul precisava de ajuda,
segurou Alaina pelo braço que ela começava a enfiar na manga do vestido e a levou com ele. Voltou
correndo pelo túnel escuro, enquanto Alaina conseguia abotoar a frente do vestido. Não sabiam o
que os esperava ainda e estava resolvida a preservar o que restava da sua modéstia.
Passaram correndo pela porta da caverna e pararam de repente.
596
Saul apontava a Remington fumegante para Gunn, Tamara e mais dois homens brancos.
— Seu idiota! — gritou Tamara. — Temos três homens armados aqui! Não pode escapar!
— Bem, tenho esta arma aqui que pode levar uns dois de vocês comigo. Talvez a senhora primeiro,
se não devolver a criança para a mãe.
Indecisa, Tamara olhou para Alaina. Saul dobrou um dedo para ela.
— Vamos. Essa é a filha de miz Alaina e ela quer ela de volta.
— Isto é só temporário — disse Tamara, entregando Glynis para Alaina. — Eu a terei de volta antes
do fim da noite.
— Sobre o meu cadáver — disse Alaina.
— Saul!
O grito ecoou na caverna e todos se voltaram para Gunn, que entrou correndo com os braços
estendidos num desafio. A Winchester estava encostada num barril.
— Saul! Gunn luta com Saul! Você ganha, você está livre!
— Mate o homem, seu idiota! — berrou Tamara. — Mate Saul! Não pode deixá-lo ir!
— Não! — rugiu Gunn. Voltou-se para os companheiros: — Saul luta com Gunn! Sozinho! Se vem
alguém, Gunn quebra!—Fezogesto de quebrar alguma coisa com as mãos enormes.
Saul atirou a pistola para Cole, e os dois homens que se adiantavam para segurá-lo ficaram imóveis.
Cole recuou, com Alaina e a criança atrás dele, e quando chegaram na parede fez um sinal para Saul.
Saul arrancou o que restava da sua camisa de trabalho, e Gunn rasgou o colete e o atirou para longe.
Saul ergueu as mãos abertas. O gesto foi como um sinal e os dois homens atacaram ao mesmo
tempo e os dois corpos se chocaram com um estalo seco. Assim unidos, começaram uma luta de
pura força. Nenhum levou a melhor e separaram-se, começando a trocar golpes, que teriam
esfacelado os ossos de homens mais fracos, outra vez sem vantagem aparente para nenhum dos dois.
Como titãs negros, olhos avermelhados pelo calor da luta, chocaram-se outra vez, transformando-se
numa massa de músculos, que se retesavam e contorciam. Com as pernas afastadas, lutavam ombro a
ombro, cabeça contra cabeça. Com a respiração sibilante, as costas
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arqueadas, eram duas forças iguais em confronto. Então, de repente Saul torceu o corpo e seu braço
direito entrou sob o braço esquerdo de Gunn. Juntando as duas mãos na parte superior das costas do
oponente, ele o forçou para trás. Gunn começou a escorregar, mas resistiu. O braço de Saul dobrava-
se cada vez mais para trás e para cima. Gunn soltou um rosnado de dor e o estalo do osso quebrado
ecoou no silêncio.
Gunn desmoronou no chão, e Saul ficou de quatro com a cabeça pendendo para a frente, respirando
fundo e pausadamente. Gunn se arrastou até a pilha de mercadorias e, apoiando-se nela, ficou de pé
com o braço pendendo ao lado do corpo num ângulo estranho e com uma expressão amortecida e
atenta nos olhos.
Ouvindo um som atrás dela, Alaina voltou-se e gritou, prevenindo Cole. Jacques irrompeu furioso na
caverna, com uma arma na mão. Mergulhou de cabeça para Cole, que, apanhado de surpresa, foi
atirado para trás, e a Remington saltou da sua mão, deslizando no chão. Saul, num movimento
rápido, a apanhou e empurrou Alaina, quando Jacques apontou a arma para ela. Cole empurrou o
braço de Jacques para cima, e o estampido ecoou em ondas longas por toda a caverna. Cole segurou
o pulso de Jacques quando ele voltou a arma novamente para Alaina, e os dois homens rolaram no
chão, atracados. Jacques continuou a atirar e as explosões seguidas eram como um trovão contínuo e
persistente. Um filete de querosene escorreu de um barril atingido e um lampião caiu da parede,
esfacelando-se no chão. Num instante as chamas subiram do filete de óleo, perigosamente perto de
um barril de pólvora.
A arma na mão de Jacques estalou, vazia, e Cole largou o pulso de Jacques e rolou de costas no chão,
levando o adversário com ele. Mais uma vez seus punhos se chocaram contra o rosto do pirata do
rio, e Jacques cambaleou para trás, gemendo, com a mão na boca ferida.
De repente, um braço negro agarrou Jacques e o arrastou para trás. Com o braço bom, Gunn o
prendeu com força, enquanto Jacques, gritando de medo, lutava para se libertar.
— Gunn diz Saul está livre! Gunn nunca quebra promessa. Eles vão! Nós ficamos!
A resposta gritada de Jacques foi interrompida por um movimento do braço de Gunn e a cabeça do
francês pendeu para o lado. Quando Gunn o soltou, o corpo caiu lentamente, com o pescoço
partido.
598
Gunn fez um gesto para Saul.
- — Vá!
— Sim, senhor! — Saul apressou-se a obedecer.
Cole examinou rapidamente a caverna. Não viu nem sinal de Tamara, mas percebeu uma nova
ameaça. As chamas seguiam a trilha do filete de óleo na direção do barril de pólvora. Correu para
Saul e Alaina e gritou mandando que fugissem imediatamente. Tirou Glynis do colo da mãe e
seguiram na direção do túnel. Mindy estava escondida ao lado da porta para garantir que estivesse
aberta quando eles chegassem.
Contagiados pela urgência na voz de Cole, eles correram, e Saul, cansado da luta, quase não
conseguia acompanhar o passo célere de Alaina. Cole olhou para trás e viu o fogo chegando no
barril. Com um grito de aviso, ele se lançou sobre Alaina, sem largar Glynis, e Saul lançou-se sobre
Mindy, protegendo-as com seus corpos. O pequeno barril explodiu e o ar deslocado correu quente
pela passagem, acompanhando o estrondo. Barris, tambores de lata, fardos, caixas de madeira
ricochetearam contra as paredes, quebrando e espalhando seu conteúdo para alimentar as chamas
ávidas.
Ignorando o ardor nas costas, provocado pelas cinzas quentes da explosão, Cole se levantou e
conduziu os outros pelo túnel, que levava ao quarto de Roberta. Não disse a ninguém que com o
aumento do calor na caverna o túnel ia se transformar numa chaminé. A passagem seria
completamente destruída e logo a casa lá em cima se transformaria em madeira seca para a fogueira.
Subiram correndo a escada, Mindy carregada por Saul e Cole com a filha nos braços, empurrando
Alaina na sua frente. Glynis chorava, assustada, mas não tinham tempo para consolá-la. Um estrondo
terrível soou lá embaixo e um chuveiro de fagulhas espiralou na direção deles, acompanhado de um
calor intenso.
— A porta explodiu — gritou Cole. — Temos de sair daqui, do contrário seremos queimados vivos!
Alaina mal podia respirar e sentia uma forte dor no lado do corpo. Mas continuou a obrigar as
pernas fracas a galgar os degraus. Cole, com a mão no traseiro dela, a empurrava impiedosamente.
Então a fumaça os envolveu, provocando tosse e ardor nos olhos.
A porta do espelho estava fechada. Alaina tomou a filha no colo e apontou para a alavanca de
madeira. Cole a acionou, mas nada
599
aconteceu. Então os cabos que moviam a porta deslizaram das guias, inutilizados. As extremidades
estavam cortadas.
— Tamara! — rugiu Cole, gritando o nome como uma praga. — Devia ter adivinhado!
Saul pôs Mindy no chão, ao lado de Alaina, e empurrou com o pé até a pesada porta se abrir.
Entraram no quarto de Roberta, sufocados, respirando com dificuldade e logo trataram de alertar a
casa toda.
Quando se dirigiam para a varanda da frente, Olie, Braegar, Peter e o xerife chegavam, trazendo na
carroça os piratas do rio amarrados e os vitoriosos trabalhadores do campo.
Olie correu para Cole e explicou seu atraso.
— Quando fui atrás de Saul, percebi que não adiantava tentar descer pela escada; mandei então Peter
chamar o xerife e o dr. Darvey e fomos para o rio procurar a entrada da caverna. Quando dei a volta
no rochedo, vi um barco cheio de homens no rio e tivemos uma boa luta até a chegada do xerife.
— Está tudo bem — disse Cole. — Estamos salvos agora e os piratas foram apanhados, graças a
vocês.
Altas labaredas começaram a subir do alto do penhasco, anunciando o incêndio. Um assobio
estridente soou entre o rugido das chamas e foi diminuindo de intensidade quando uma pequena
língua de fogo apareceu no alto da torre da ala oeste e, alargando-se, transformou o telhado da torre
numa chuva de fagulhas. Libertadas, as chamas ergueram-se para o céu, numa dança de glória. Os
vidros das janelas partiram-se, saltando para fora, e o fogo subiu pelos tijolos, para alcançar os
beirais.
As chamas alcançaram o telhado e Braegar, segurando o braço de Cole, apontou para cima. Lá no
alto, na galeria no topo da casa, uma figura estranha agitava-se numa dança grotesca. O cabelo longo
e escuro rodava em volta da cabeça, despenteado pelo vento. Estava com um vestido vermelho, e
várias pessoas murmuraram o nome de Roberta, amedrontadas. Tamara agitou os braços para o céu
noturno numa súplica gritada com voz estridente. Então, voltando-se, viu o grupo de pessoas que a
observavam e apontou acusadoramente para elas. Ouviram a voz frenética dominando o rugido do
fogo.
— Latimer House é minha para sempre! Não podem tirá-la de mim! Nenhum de vocês a terá agora!
— Ela está louca! — Cole ouviu dizer e, voltando-se, viu Martin
600
Holvag ao seu lado. Notou também a presença de Rebelde, que, ao lado de Braegar, torcia as mãos,
choramingando desconsolada.
— Eu sei que está lá! Eu encontrei o diário de Roberta e ela diz que escondeu um tesouro. Tem de
estar na casa, e agora vai ser destruído pelo fogo!
— Você apanhou o diário de Roberta? — perguntou Alaina, surpresa.
— Bem, estava lá, esperando para ser apanhado — choramingou Rebelde.
— No meu quarto! — disse Alaina.
— Como eu ia saber que era seu? Aquela maldita casa tinha tantos quartos que fiquei confusa!
— Por isso entrou no nosso quarto naquela noite? — perguntou Cole, zangado. — À procura do
dinheiro que não lhe pertencia?
Rebelde torceu as mãos, nervosa, olhando com ar de súplica para Braegar, que parecia decididamente
enojado. Ele deu meia-volta e afastou-se, deixando-a com suas lágrimas e seus soluços.
Um novo dilúvio de fogo inundou a casa. O telhado curvou-se para cima, como um ser vivo
contorcendo-se em agonia e, de repente, afundou para dentro, acompanhado pelo som estranho de
um riso selvagem que só podia ser fruto da imaginação dos que presenciavam a cena, mas o som
sinistro rolou pela noite nas asas do vento.
A noite estava outra vez silenciosa quando os Latimer se retiraram para o quarto de casal da casa
antiga. Do segundo andar só se avistava o brilho vermelho no céu. Não os interessava, pois era ali,
no quarto amplo e confortável, que Cole via a filha brincar com os dedinhos dos pés, como fazem os
bebês, e onde Alaina, quase com timidez, arrumou um maço de notas sobre a cama, ao lado dele.
Cole ergueu os olhos, surpreso.
— O que é isso? Alaina corou.
— Está lembrado dos dois mil dólares que me ofereceu em Nova Orleans?
Ele balançou a cabeça lentamente, indicando que lembrava.
— Bem, a sra. Hawthorne me deu o resto do dinheiro quando nos visitou. Disse que guardara para
mim.
— O resto?
— Não tem mais dois mil dólares aqui — explicou Alaina. — Ela
601
usou parte deles para comprar os vestidos do meu enxoval. Sabe, não eram vestidos de segunda mão,
mas novos, comprados com seu dinheiro.
Cole riu, incrédulo.
— Quer dizer que durante todo o tempo em que se recusava a usar as roupas compradas por mim
estava usando outras compradas com meu dinheiro?
Alaina fez um gesto afirmativo.
— Eu não sabia, Cole. Vai me perdoar por ter sido tão cega e tão orgulhosa?
— Minha querida—riu ele, puxando-a para a cama, ao seu lado. — Você acrescentou à minha vida
um prazer que eu não teria encontrado com nenhuma outra mulher. Como posso ficar zangado com
você? Só posso me considerar afortunado por você partilhar da minha vida e desejar que
continuemos assim até ficarmos bem velhinhos.
— Esse é o meu plano, meu senhor ianque—murmurou ela, com os lábios nos dele —, e meu mais
ardente desejo.
602
Epílogo
QUASE UM MÊS DEPOIS, no fim da tarde, Cole estava sozinho na sala da casa antiga. Alaina
cuidava da filha, lá em cima, e a casa estava muito quieta, exceto pelo som ocasional de uma risada
alegre, vindo do segundo andar.
Cole chegou na janela e olhou para o caminho, que levava à casa. Admirado, viu um homem magro,
andrajoso, com um chapéu cinzento muito usado. Depois de examinar a casa, consultou um papel e
parecia hesitar em se aproximar da porta. À luz do crepúsculo era difícil ver seu rosto, mas Cole
tinha certeza de que não o conhecia. Curioso, saiu da casa e caminhou para o estranho.
Quando viu Cole, o homem empertigou o corpo e pôs as mãos nos bolsos do paletó.
— Tem algum assunto para tratar aqui, senhor? Ou procura um médico? — perguntou Cole.
O homem era jovem, talvez menos de trinta anos, e os olhos cinzentos pareciam desafiar Cole
quando ele respondeu.
— Talvez eu tenha um assunto a tratar aqui, senhor—havia uma sugestão de raiva na voz. — Ou
talvez não tenha. Estou procurando o dr. Latimer e me indicaram esta casa.
— Eu sou o dr. Latimer — disse Cole, observando o homem atentamente. — Vejo que é do sul e
embora não veja nenhum cavalo
603
ou carruagem, devo supor que percorreu uma grande distância para me ver. Gostaria de saber por
quê. É óbvio que não está doente.
— Eu vim a pé — disse ele, com voz inexpressiva.
— Vejo que foi oficial do exército confederado. — Cole indicou o casaco antes cinzento, com a faixa
dourada desbotada e o chapéu.
— E certamente sabe que lutei pela União. Por acaso está procurando algum parente?
— Não, maldito seja! — Com os lábios brancos de raiva, ele acrescentou: —Não tenho família,
graças a vocês, ianques. Também não tenho casa. Quando voltei da guerra, eu a encontrei
completamente queimada. Algum ianque a comprou por uma ninharia.
— Eu sinto muito que tenha perdido a família e a casa e sinto mais ainda que me considere culpado.
— Cole estendeu as mãos abertas e deu de ombros, num gesto de inocência. Mas vendo o ódio que
fervia nos olhos cinzentos, inclinou a cabeça para o lado e estudou o homem atentamente, com uma
expressão estranha. — Acho, porém, que começo a compreender sua visita. Será que a casa a que se
refere chama-se Briar Hill?
— Sim! — a resposta foi uma explosão, e desviando os olhos dos de Cole, ele virou o rosto.
— E por acaso, seu nome não será MacGaren? — insistiu Cole. O homem fez um gesto afirmativo.
— E você diz que não tem família? O homem olhou para Cole, claramente irritado.
— Meu pai e meu irmão morreram na guerra. Minha mãe morreu de desgosto. Minha irmã
desapareceu. Seus barrigas azuis disseram que ela era espiã e a perseguiram. Imagino que deve estar
em alguma infecta prisão ianque.
— Aparentemente tem muitos motivos para odiar — observou Cole. — Por acaso você é Jason
MacGaren?
Ele balançou a cabeça afirmativamente.
— Muito bem, você tem razão — continuou Cole, calmamente.
— Eu comprei Briar Hill pelo valor dos impostos atrasados e agora estão todos em dia. Posso
garantir que foi tudo muito legal.
— Legal! — exclamou Jason MacGaren. — Talvez legal, mas não foi direito. Estou aqui para reaver
a minha casa.
Cole deu de ombros.
— Acho que vai ser um pouco difícil, capitão MacGaren. Na
604
verdade, comprei a propriedade para minha mulher e está no nome dela.
— O senhor me envergonha! — disse Jason, com os dentes cerrados. Estremeceu de leve,
procurando se controlar. — Mas, afinal, tenho passado muita vergonha ultimamente. Se for preciso
implorar, então eu imploro. — Amassou o pedaço de papel entre os dedos e curvou os ombros para
se proteger da brisa fria. Com o olhar distante, continuou: — A casa é só cinzas. Os prédios externos
estão abandonados e podres. Os campos estão cobertos de mato e precisam ser limpos. Não pode ao
menos permitir que eu trabalhe como meeiro e me encarregue de reconstruir a casa?
Cole olhou demoradamente para o homem, que esperava sua resposta com os olhos cheios de ódio.
Então estendeu o braço e pôs a mão no braço dele.
— Capitão MacGaren, terá de conversar sobre isso com minha mulher—deu um passo para o lado.
— Por favor, entre. Coma alguma coisa conosco. Ela talvez concorde com a sua sugestão.—
Percebendo a relutância do outro, sorriu:—Pelo menos entre e tome um conhaque. É uma longa
caminhada daqui até a cidade, e tenho certeza de que minha mulher vai gostar muito de conhecê-lo.
Com um sorriso amargo e um erguer de ombros, Jason caminhou para a varanda. Cole o levou até a
sala e desculpou-se, enquanto servia duas grandes doses de conhaque.
— Minha mulher está lá em cima. Vou chamá-la. Não me demoro. Com licença.
Assim que saiu da sala, Cole subiu as escadas de três em três degraus, mas parou na frente da porta
do quarto e apagou o sorriso feliz dos lábios. Entrou calmo e descontraído.
— Alaina, temos um hóspede inesperado que deseja discutir uma ou duas coisas com você. —
Ergueu Glynis do colo dela e deu de ombros, antes que ela fizesse qualquer pergunta. — Desça e fale
com ele. Eu levo Glynis.
— Mas, Cole... — protestou Alaina, ajeitando o cabelo. — Quem é ele? O que quer comigo?
— Deixe que ele mesmo diga. Agora, vá depressa, antes que ele resolva ir embora.
Cole desceu a escada atrás de Alaina, com um sorriso largo e feliz. Quando ela entrou na sala, ficou
parado na porta, esperando. Jason estava sentado numa banqueta, olhando para o copo de conhaque.
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Quando ouviu o farfalhar da anágua, levantou-se, tirou o chapéu, voltou-se... e ficou parado,
boquiaberto.
— Jason!—A exclamação de Alaina era um acorde feliz de notas alegres. — Oh, Jason!
Num segundo os dois estavam abraçados. Jason fechou os olhos e encostou o rosto no cabelo dela,
quase a sufocando com a força dos seus braços. Quando ergueu os olhos para o sorriso feliz de Cole,
as lágrimas desciam por seu rosto.
— Você é um maldito ianque, Cole Latimer! — exclamou com voz rouca e embargada.—Não sei se
vou agüentar um cunhado desse tipo.
Apoiada no braço do irmão, Alaina acariciou a barba crescida no queixo dele e sorriu entre as
lágrimas.
— Não tem escolha, Jason MacGaren.—Em voz baixa e trêmula de felicidade, repetiu: — Nenhuma
escolha.
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Lamentto
Oh, meu lar!
Sua sabedoria excedeu de muito
Minha limitada compreensão.
Eu venci!
Sou três vezes abençoado!
Você estava comigo o tempo todo, apenas adormecido,
Esperando que deste solo rico as raízes brotassem e crescessem.
Você me ensinou isso.
E não temerei nunca mais
O odor da mudança.
A perda do ontem.
Sobre seus restos calcinados
Eu construirei o hoje!
E as bases do amanhã!
E nunca mais lamentarei
As cinzas ao vento.

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