Sie sind auf Seite 1von 17

Cadernos de Arte e Antropologia

Vol. 2, No 2 | 2013
Criatividade e protagonismo indígenas

A história está no “drama”: jovens Xokó e


produção de socialidade com linguagem das artes
The history is in the "drama": young Xoko Indians and the production of
sociality with the languages of art

Natelson Oliveira de Souza

Publisher
Núcleo de Antropologia Visual da Bahia

Electronic version Printed version


URL: http://cadernosaa.revues.org/440 Number of pages: 43-58
DOI: 10.4000/cadernosaa.440
ISSN: 2238-0361

Electronic reference
Natelson Oliveira de Souza, « A história está no “drama”: jovens Xokó e produção de socialidade com
linguagem das artes », Cadernos de Arte e Antropologia [Online], Vol. 2, No 2 | 2013, posto online no dia
01 Outubro 2013, consultado o 01 Outubro 2016. URL : http://cadernosaa.revues.org/440 ; DOI :
10.4000/cadernosaa.440

The text is a facsimile of the print edition.

© Cadernos de Arte e Antropologia


CADERNOSAA
A história está no
linguagem das artes
“drama”: jovens Xokó e produção de socialidade com

Natelson Oliveira de Souza


PINEB/UFBA1

O artigo explora alguns discursos e práticas de jovens índios Xokó, os quais apon-
tam para estratégias de produção da socialidade do grupo, pequeno povo indígena
ribeirinho situado no estado de Sergipe, Brasil, tendo em vista o seu processo
de territorialização presente na própria vida diária. Das diversas estratégias,
aquela que faz uso de linguagens das artes, objeto de análise neste texto, alcança
grande importância para o grupo mais jovem, uma vez que envolve um tipo
inovador de economia nativa de comunicação intersubjetiva com os não índios,
assim como entre eles mesmos. O uso da escrita e da linguagem teatral toma o seu
devido espaço quando está em causa, para os Xokó, o ato de transmitir, eficiente e
eficazmente, aos diversos interessados que constantemente os procuram, o signifi-
cado étnico do seu modo de ser e o percurso histórico que experimentaram para ser
o que são na vida contemporânea.
Palavras-chave: índios Xokó; juventude; história; socialidade; arte

Introdução

Inicio este texto com um breve panorama. Os Xokó são um pequeno povo indígena ri-
beirinho situado entre os estados de Sergipe e Alagoas, Nordeste do Brasil. Ocupam uma ilha
e uma porção de terras continentais no baixo rio São Francisco, margem direita a jusante do
rio, no município de Porto da Folha, estado de Sergipe. Trata-se de um povo cujo território e
ascendência reporta-nos às missões jesuíticas e capuchinhas estabelecidas no final do século
XVII, e encarregadas de efetuar conversões relativamente unilaterais dos sistemas de crenças
das populações nativas americanas, i.e., convertê-los ao cristianismo, assim como integrá-los,
num momento posterior, ao sistema social e laboral da nova colônia portuguesa. Não realizo,

1 Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro. Mestre em Antropologia (PPGA/
UFBA). Email: natelson81@hotmail.com

Cadernos de Arte e Antropologia, n° 2/2013, pag. 43-58


aqui, uma descrição mais densa dessa história, apenas recorro a este e outros aspectos por neces-
sidade de fornecer ao leitor breves contextualizações.

A história dos índios Xokó é demarcada por conflitos violentos por terras e territórios,
infortúnios bastante comuns a praticamente todas as populações nativas americanas. Trata-se
de uma característica muito persistente ainda na contemporaneidade, uma vez que diversas
populações culturais e étnicas, tais como quilombolas, ribeirinhos, pescadores, camponeses, sem
terras, entre outras, continuam sendo, no mundo rural, alvos destacados de pressões do capital.
Isso ocorre, muitas vezes, à margem da constituição brasileira e dos tratados internacionais em
vigor. Casos contemporâneos amplamente conhecidos são aqueles que envolvem os Guarani-
Kaiowa e o agronegócio, e a instalação da usina hidrelétrica de Belo Monte, marcada por lacu-
nas procedimentais estatais com riscos à segurança biológica, cultural e territorial de grandes
porções da Amazônia brasileira, como o rico Parque Indígena do Xingu.

Recentes propostas polêmicas de portarias e emendas constitucionais voltadas às Terras


Indígenas têm tensionado gravemente os povos atingidos. Essas medidas estatais contemporâ-
neas, que têm sido repelidas, sistematicamente, pelos povos indígenas brasileiros – provocando
preocupantes agravamentos e solidariedade relativamente ampla da sociedade civil organizada
em redes virtuais e físicas –, podem ser conhecidas através do recente pronunciamento oficial
de Sônia Guajajara, em Doha, no Qatar2, no âmbito da conferência da ONU sobre o clima.
Menciono este pronunciamento porque ele realça, de modo bastante objetivo, um tipo de histó-
ria visivelmente pautado em conflitos de visões de desenvolvimento cultural e sócio-econômico,
no qual as populações tradicionais e os povos indígenas se encontram em notória desvantagem.

Pelo foco da minha pesquisa, cujo presente artigo é um dos seus desdobramentos, presto
atenção aos efeitos deste contexto também entre os índios mais jovens, uma vez que eles, por um
lado, quando não nascem e crescem já experimentando diretamente as situações de violência,
física ou simbólica, criadas por colonos e determinadas “políticas públicas”, por outro, conhe-
cem, desde cedo, as narrativas dos mais experientes sobre suas histórias de vida recorrentemente
marcadas por graves violações de direitos fundamentais decorrentes da relação assimétrica que
têm estabelecido com o Estado e a sociedade nacional. Exemplos amplamente conhecidos desta
assimetria são os difundidos e arraigados predicativos que veiculam uma imagem negativa do
índio, ora como um ser pertencente genuinamente ao passado (essencialismos), ora “atrasado”
convenientemente (instrumentalismos) em relação ao modelo único de desenvolvimento e mo-
dernização.

Os índios mais jovens não estão alheios a estas questões e, cada vez mais, constatamos o
aprofundamento das suas articulações, em âmbito nacional, em torno da construção de uma
política indígena efetiva que contemple, também, o protagonismo das juventudes nos enfren-
tamentos dos problemas que afligem seus respectivos povos. O mais recente discurso oficial-
-coletivo é a Carta da Juventude Indígena à Sociedade Brasileira3. Podemos mencionar, ainda,
o recente encontro de um grupo de jovens lideranças com o atual presidente do STF, ministro

2 Ver Cimi (2012).


3 Carta produzida no II Seminário Nacional da Juventude Indígena ocorrida de 25 a 30 de novembro de 2012,
em Brasília. Disponível em: <http://tinyurl.com/clyh7un>. Os vídeos com as discussões ocorridas neste seminário
estão disponíveis em <http://www.ustream.tv/recorded/27352697>, acessos em: 28/04/2013.

pag. 44 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA


Joaquim Barbosa, cujo objetivo principal teria sido a busca de uma maior celeridade ao julga-
mento das condicionantes oriundas da PET-33884.

No caso dos jovens Xokó contemporâneos ao meu estudo5, eles são marcados duplamente
pelas situações acima descritas, pois tanto vivenciaram, quando crianças, parte do tempo de
violência decorrente do longo litígio em torno da terra com a então poderosa família Britto6,
quanto cresceram, já num momento que denominam tempo de paz, ouvindo os mais velhos
referirem a esta história, seja em ambiente familiar, nas escolas indígenas ou nas constantes
reuniões coletivas, quanto em âmbitos mais amplos do movimento interindígena brasileiro.
Esta exposição contínua aos fatos violentos vividos e/ou memorados permitiu que os jovens
não apenas experimentassem um sentimento particular7, como também construíssem releituras
e práticas estratégicas a fim de continuar atribuindo, eles mesmos, sentido à história vivida e/ou
transmitida. Isso permitiu um engajamento permanente nas tentativas de superação das condi-
ções adversas junto aos seus parentes mais experientes.

Atento a estes aspectos de suas vidas, busco analisar uma faceta deste engajamento a partir
da perspectiva e ações locais do jovem fomentador de uma linguagem cênica que busca contar a
história recente da luta indígena: Anísio Xokó. Tendo em vista que esta linguagem se apóia no
recurso da memória, descreverei como alguns jovens narram, através de residuais recordações de
infância, alguns momentos considerados tensos entre índios e pistoleiros da família supracitada
na década de 1980, sem perder de vista, sobretudo, o sentimento que vem à tona entre eles, ca-
racterizado por uma patente condolência em relação aos constrangimentos sofridos pelos seus
pais e os mais antigos índios Xokó nesta disputa. A partir destes aspectos, analiso como surge
a apropriação da linguagem das artes já em um contexto posterior e mais pacífico, e como esta
passa a funcionar – ainda que marginalmente – como estratégia agregadora de sociabilidades
deste povo, sobretudo da juventude local na re-produção da memória em face da história apre-
endida; e frente àqueles que constantemente os procuram, demonstrando interesse em saber
mais sobre as suas vidas, a exemplo dos estudantes das escolas e faculdades regionais e dos
sucessivos pesquisadores acadêmicos que, na linguagem teatral, são criativamente incorporados
como personagens interpretados pelos próprios indígenas.

Por fim, analiso como o exercício dessas linguagens é por eles impulsionado a fim de ob-
jetivar um sentimento de ser indígena mediante a relação com as experiências de vida entre si
e no âmbito da interetnicidade, i.e., na relação histórica e mutuamente representacional expe-
rimentada no contato com outras populações indígenas e mesmo com os não índios, cujo con-
tato é mais imediato na região em que vivem. Cabe frisar que a necessidade desta objetivação
possui um sentido específico voltado à re-produção e transformação contínuas de um estado de
bem-estar social, tomado, aqui, como dinâmica da socialidade8 do grupo, e de sua relação com

4 Cf <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235057>, acesso em 28/04/2013.


5 Souza (2011).
6 Grandes proprietários de terras do noroeste do estado de Sergipe que, desde os fins do século XIX, tomaram
posse das terras da antiga missão catequética da Ilha de São Pedro e protagonizaram sucessivas disputas com os
índios Xokó. Ver: Arruti (2004; 2009) e Dantas (1980; 1997).
7 Considerando o peso da idade e dos desafios decorrentes de circunstâncias bastante conflituosas a que estão
constantemente submetidos, assim como o duplo trânsito, cada vez mais intenso, entre os contextos vivenciados
entre as terras indígenas e fora delas. Ver Virtanen (2007).
8 O conceito é referido na literatura como uma forma momentânea caracterizada por um estado pleno de
bem-estar por parte de um grupo social. A socialidade concerne a tipos de relação praticados pelos grupos sociais,
cujas intenções e projetos são orientados por um horizonte comum plenamente desejado. É na construção da socia-

A história está no “drama” pag. 45


os não índios. Dito de outra maneira, o exercício busca a manutenção da mutualidade do ser9
tanto quanto for possível, através de um processo de identificação e territorialização incessante
erigido na própria vida diária; assim como nos espaços além de suas fronteiras, visando a modi-
ficação de nuances históricas indesejáveis, construídas ao longo do contato com os não índios.

A tensão na memória

O discurso dos mais experientes, que remonta à trajetória histórica dos índios Xokó para
atribuir sentido à vida diária da terra indígena, é percebido como uma referência fundamental
para os jovens no que tange à construção de uma disposição afetiva específica em torno do que
se entende por “identidade Xokó”, e do que eles são e/ou deveriam ser no decorrer do tempo,
enquanto “continuístas” de um território muito recentemente conquistado. Nesse sentido, pode-
-se afirmar, em alguma medida, que esta disposição10 está relacionada, em parte, a duas dimen-
sões: i) como já dito, com as histórias contadas pelos pais e demais parentes que protagonizaram
diretamente o conflito; e ii) com fragmentos de “memórias” da infância da parte dos próprios
jovens adultos com os quais dialoguei, qual seja, com aqueles que em meu estudo tinham cerca
de trinta anos. Cabe destacar, então, que uma parcela dos jovens ouviu e vivenciou a luta, ao
passo que outros apenas dela ouviram falar, do que resulta que há entre eles percepções bastante
diferenciadas no presente contexto de pesquisa.

Ao ouvir, interessado, suas histórias de vida, meu objetivo parecia-lhes algo um tanto esti-
mulante, pois não era comum pesquisadores buscarem o passado justamente em suas falas, mas
naquelas dos mais vividos. Alguns ficavam surpresos e hesitantes quando eu solicitava conversar
sobre as suas histórias. Joana11, que estava prestes a fazer o vestibular, por exemplo, expressou
desconforto diante de meu incomum pedido. Dominada pela timidez, recuou, não obstante
tenha se disposto a falar em outra ocasião: “eu não sou muito boa nisso, meu avô [o pajé] e
minha avó sabem contar melhor”. De um modo geral, as memórias que recolhi remetem-nos
ao contexto de privações em que viviam os pais e parentes destes jovens e, simultaneamente, às
vantagens que os fazendeiros insensíveis a tais condições buscavam extrair-lhes, mesmo que eles
estivessem enfrentando as piores condições de sobrevivência. Este contexto de subalternidade
é algo marcante na lembrança daqueles que conversaram comigo. O cacique Bá costumava me
dizer: “hoje, todos nós vivemos em um paraíso. Com todos os problemas que ainda enfrenta-
mos, nem se compara. E é por isso que temos que lutar para não perder nunca mais nenhuma
destas conquistas”.

lidade que se materializam as moralidades e eticidades do grupo e os códigos que visam à garantia da organização
social que se aproxima de um tipo ideal. Ver McCallum ([1989] 2001), Strathern ([1988] 2006) e Viegas (2007).
9 Sahlins (2011), em sua análise recente sobre parentesco, trabalha com a noção-chave ‘mutuality of being’ para
demonstrar que a construção de uma rede de parentes ocorre, sobretudo, pela percepção da mútua implicação da
existência de uma pessoa em outras.
10 Esta disposição não deve ser considerada sob a perspectiva de que ela condicionaria os jovens a um mundo
social dado, no qual eles conseguiriam apenas uma rígida adaptação aos valores sociais já estabelecidos pelos mais
experientes. Devemos considerar que os jovens, assim como os veteranos, são atores sociais que desempenham um
papel criativo em sua própria historicidade, sendo agentes – isto é, portadores de agência (Ortner 2006) – diante
dos fenômenos do cotidiano que produzem a socialidade Xokó, um tipo de disposição afetivo-relacional posta em
prática no cotidiano da aldeia.
11 Nome fictício.

pag. 46 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA


Paulinho, neto do meu anfitrião, pajé Raimundo, afirma que jamais vivenciou nada pareci-
do com o que lhe diziam, e que a atual situação da aldeia representa, de certo modo, uma dívida
de todos para com os anciãos. No conjunto de suas memórias, o que mais ficou marcado para
ele foi o injusto sistema de relações econômicas que prevalecia na produção de alimentos da fa-
zenda, na época anterior aos atos organizados de resistência indígena para recuperação da Ilha.
Este período é caracterizado como um tempo de sofrimento coletivo bastante acentuado, cujas
condições materiais de existência eram extremamente precárias. Seus parentes ainda viviam
como meeiros da família Britto. Tudo o que era produzido pelos índios Xokó em suas terras,
embora na posse da família Britto, era dividido, obrigatoriamente, de acordo com o sistema de
meia12, mediante o qual os usurpadores da terra retinham, levando em consideração, também,
a qualidade da produção, entre metade a dois terços da colheita de uma família. O restante, na
maioria das vezes, não era suficiente para atender a família, relatou-me. Paulinho encara este
fato como um ato paradigmático das injustiças que acometiam seus parentes mais experientes,
sem que houvesse qualquer assistência do Estado para impedir que isso continuasse a acontecer.
Isso, dizia-me, causava-lhe revolta, sentimento central que o levou, assim como outros Xokó
mais jovens, a ter mais comprometimento com a luta, a indianidade e a conquista territorial dos
Xokó e do movimento indígena de um modo mais amplo.

Numa conversa com Anísio, criador do “Drama”, ele me relatou uma tensa recordação do
tempo de criança, quando lhe era permitido, na ocasião em que seu povo enfrentava proibições
de entrada e utilização de recursos naturais da área contígua à Ilha de São Pedro13, acompanhar
o pai para coletar fechos de madeira na Caiçara14, parcela da terra indígena ainda sob a posse dos
Britto e na qual mantinham a criação de seu gado sob forte vigilância armada:

[…] a gente era um povo pobre, não existia aposentadoria … eu não sei por que … E a gente vivia da panela,
da cerâmica … minha mãe, meu pai … até pra gente sobreviver às custas da cerâmica era um pouco difícil
porque o barro apropriado pra construção era na Caiçara, e pra isso tinha que ir buscar lá … não podíamos ir
por conta do fazendeiro … muitos jagunços, pistoleiros … mas ainda lembro quando eu ia buscar lenha com
meu pai … a terra, os fazendeiros dividiu por muitas cancelas … sabe o que é cancela? […] quando a gente
vinha e ia daqui pra lá, passar sem peso dava pra abrir a cancela e fechar, mas de lá pra cá, vinha com peso,
não tinha condições de fechar a cancela porque era muito alta … aí meu pai … eu lembro, eu era pequeno …
lembro quando ele passava pela cancela, ele mandava eu ficar com uma certa distância já no bote … pra gente
atravessar … a gente atravessava o canal de bote. Atravessava e ainda atravessa … ele empurrava a cancela pra
longe que era pra dar tempo de chegar no rio, que a cancela ia lá, voltava e batia … se tivesse pistoleiro por
perto, numa certa distância … chamava atenção … E aí ele com fecho de lenha muito grande nas costas saía
correndo, pegava a canoa … já jogava o fecho, jogava o bote pra fora, quando eles vinham aparecer na beirada
do canal, a gente já vinha no meio do canal pra cá e pronto […]

Apesar dessa participação perigosa de Anísio nas idas e vindas pelas matas contíguas,
vale registrar que a necessidade de vigilância dos Xokó entre si e os parciais impedimentos de
mobilidade concernentes aos menos experientes ocorriam praticamente em todos os âmbitos
da vida diária da Ilha. Conforme Bá relatou, por qualquer mínimo descuido dos pais, jovens e

12 Conhecida no Brasil como ‘agricultura de meação’, é um sistema de exploração de mão-de-obra de lavradores


rurais sem posses, por parte de grandes proprietários.
13 Território conquistado no final da década de 1970 e início da década de 1980, como resultado do 1º ciclo
da intensa luta estabelecida contra a família citada, a partir de 1978. É neste território que atualmente reside o
povo Xokó. Ver Dantas (1997) e Arruti (2004; 2009); e Boletim da Comissão Pró-Índio-SP (1983), disponível em
<www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PBCPISP051983014.pdf> acesso em 28/04/2013.
14 Parte contígua à Ilha de São Pedro. É a porção continental do território indígena e que também esteve sob
disputa (2º ciclo de luta), sendo conquistada, efetivamente, apenas em dezembro de 1991. Consiste em uma densa
mata fechada atualmente utilizada para caça, roçados e rituais.

A história está no “drama” pag. 47


crianças, uma vez desassistidos, poderiam se afastar nas matas, para brincar ou tomar banho no
lado crítico do rio, na estreita margem localizada ao sul, entre a Ilha e a Caiçara. Tratava-se do
local de maior potencial de conflitos, onde poderiam ser alvos das más intenções dos homens
a serviço dos fazendeiros, visto que os confrontos mais imediatos ocorriam, sobretudo, com os
capangas a serviço dos Britto.

Não era muito raro, contaram-me, eles serem repreendidos pelos pais por conta desse
descuido. As brincadeiras que ocorriam entre eles eram restritas ao centro da Ilha, aos olhos de
todos. Certamente, isso afetava, sensivelmente, os mais jovens, pois muitos deles, em particular
as crianças, eram submetidas a uma forte tensão, cuja lógica, de certa maneira, deveria soar um
tanto incompreensível devido às suas tenras idades, mas que seria inevitavelmente desvendada
algum tempo depois, no contexto em que o litígio já estava consumado. Esta história passou
a servir como um vetor fundamental para a construção de uma nova socialidade Xokó, assim
como serviu de suporte para a mobilização coletiva em torno das posteriores políticas locais
de identidade, centradas nas novas conquistas de políticas públicas de Estado direcionadas ao
desenvolvimento autônomo dos povos indígenas.

Na perspectiva dos jovens adultos que vivenciaram parte do processo, a compreensão, ain-
da que tardia, da lógica do que enganosamente lhes parecia ilógico nas restrições de mobilidade
promovidas pelos pais e demais parentes, nos tempos em que eram crianças, certamente produ-
ziu efeitos consideráveis sobre suas identidades já “amadurecidas” na rotina segura da aldeia. Um
destes efeitos certamente se refere aos possíveis condicionamentos morais (considerados rela-
tivos) que viriam a atingir, em alguma medida, as suas dinâmicas cotidianas de agencialidades.
Entre essas dinâmicas destaca-se a elaboração de uma reconstituição cênica destas memórias,
conforme analisarei num âmbito bem particular deste artigo, qual seja, nas práticas norteadas/
norteadoras pelas/das linguagens específicas das artes como suporte para uma transmissão desta
história e do estado de indianidade.

A Linguagem das artes

Como não descrevi, anteriormente, o exato contexto histórico no qual se desenvolve o en-
redo teatral, cabe, aqui, um brevíssimo panorama15. A peça remonta à última luta dos “caboclos
da Caiçara” (como eram antes conhecidos) pela recuperação das terras da Ilha e Caiçara, antes
em posse dos Britto. Esta luta, em uma perspectiva historiográfica, pode ser dividida em dois
ciclos de eventos. O primeiro ciclo se inicia em setembro de 1978, quando os caboclos retomam
a Ilha de São Pedro, desencadeando um longo litígio, na justiça, contra os Britto. Os índios são
expulsos e um ano depois, diante da morosidade do processo, retornam novamente à Ilha, dis-
postos a não mais saírem. Neste mesmo ano, Delvair Melatti, antropóloga da FUNAI, reconhe-
ce a ascendência indígena dos Xokó, ao tempo que a documentação comprobatória é compilada
pela igreja de Propriá-SE e por acadêmicos de universidades, logrando êxito as reivindicações
dos caboclos em relação à Ilha. O segundo ciclo da luta refere-se ao processo de disputa da
Caiçara, território contíguo, que termina apenas em 1991 com a homologação das duas porções
de terras pelo governo Collor. Com o fechamento do primeiro ciclo, em meados de 1984, eles
se inserem parcialmente em um novo contexto que denomino “rotinização da aldeia”, no qual

15 Para uma leitura mais densa sobre esta luta, ver indicações na nota 13.

pag. 48 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA


passam a se organizar de modo a estabelecer o novo cotidiano da Ilha, assim como da própria
indianidade.

No período ‘entre-ciclos’, além do processo estrutural de reorganização da aldeia indígena


reservado aos primeiros anos, como a política representacional interna, a nova economia local
e o sistema simbólico e ritual propriamente indígena, uma das primeiras atividades promotoras
de sociabilidade16 entre eles, que perpassou a dimensão étnica, foi a construção de uma peça
teatral organizada por um indígena chamado Rogério Xokó, no início dos anos noventa. A peça
foi a Paixão de Cristo, com a qual ele mobilizou a rede de parentes para que tudo ocorresse da
melhor maneira possível, proporcionando um novo espaço de convivência e, por suposto, uma
maior coesão social entre os membros da rede em torno de uma nova rotina, bastante comemo-
rativa e promissora para a vida mais tranquila que estava sendo restabelecida, apesar das novas
dificuldades que prenunciavam o segundo ciclo de lutas.

Cabe mencionar que a realização de peças sobre a Paixão de Cristo teria sido uma prática
mais ampla e recorrente naquela região17, devido ao forte catolicismo popular presente na cul-
tura sertaneja. A antropóloga norte-americana Jan Hoffman-French desenvolveu pesquisas, na
segunda metade da década de 1990, no Mocambo, comunidade quilombola vizinha aos Xokó,
e verificou a existência destas peças (plays). No Mocambo, assim como na Ilha de São Pedro,
as apresentações cênicas também passaram a funcionar como instrumento de apoio ao próprio
processo de reconhecimento étnico. No entanto, há uma diferença fundamental entre as moti-
vações imediatas em torno do teatro encenado pelos jovens do Mocambo, no período específico
analisado por French, em 1997, e o contexto mais recente daquele encenado pelos jovens Xokó,
e aqui analisado.

Em 1997, os moradores do Mocambo estavam no auge do processo de reconhecimento


étnico perante o Estado, enquanto os índios Xokó já haviam sido reconhecidos anos antes.
No Mocambo, o teatro descrito por French18 vislumbrava um duplo processo de auto e alter-
-reconhecimento identitários em torno de uma história fundacional que pudesse justificar a
reivindicação do lugar enquanto remanescente de quilombo. Como todos os moradores não
resguardavam uma memória coletiva segura baseada em uma origem histórica compartilhada, o
teatro descrito pela autora teria sido representado com vistas a colaborar na modificação desta
“deficiência”, convergindo as memórias fragmentárias e difusas para o reconhecimento de uma
origem comum baseada em Antônio do Alto, tido como o negro fundador da comunidade do
Mocambo.

No que concerne ao teatro Xokó, ele ocorre num período em que o processo de auto e
alter-reconhecimento oficial já está aparentemente consolidado, muito embora não constitua
uma realidade acabada, conforme analisarei mais detidamente nas conclusões deste artigo. Os

16 Note-se que, tendo em vista que uso os dois termos, sociabilidade difere de socialidade. O primeiro, presente
na sociologia de Georg Simmel, refere à dimensão mais pura e lúdica da relação social. O ser humano tende na-
turalmente a se relacionar sem que para isso haja, necessariamente, motivações e finalidades objetivas. Strathern
(1999: 18-19) difere os termos da seguinte maneira: "Sociality is frequently understood as implying sociability,
reciprocity as altruism and relationship as solidarity, not to speak of economic actions as economistic motivations”.
17 Cf. Hoffman-French (2002; 2009): “Local sertanejan culture is entwined with centuries-old rural folk
Catholic practices, such as praying over people who are ill, using local herbs and plants to treat ailments, pre-dawn
processions dedicated to patron saints, passion plays, festivals, and a complex system of godparentage.” (2002: 24,
grifo meu).
18 Ver French (2009: cap. 6).

A história está no “drama” pag. 49


jovens Xokó lidam com o seu teatro de um modo que é possível percebê-lo como em um estágio
distinto ao dos vizinhos, ou seja, eles praticam a performance não mais tão focada na obtenção e
consolidação de reconhecimento elementar [primeiro estágio], visto que essa etapa é considera-
da efetivada, o que não era o caso do Mocambo em 1997. Os jovens Xokó, em verdade, encenam
a peça muito mais para manter e re-produzir o que já foi obtido e consolidado, focando, então, a
redução das assimetrias sociais que persistem entre eles, o Estado e os não índios. Este processo
está implicado em uma construção de socialidade perante um tipo ideal já dado e não em vias
de construção, como seria o caso do Mocambo em 1997.

Figura 1: livros artesanais.

Relatando este fato, i.e., a realização cênica da Paixão de Cristo, Anísio revela que, ao
assisti-la ainda criança, foi-lhe despertado, imediatamente, o interesse pela criação artística, seja
na escrita literária, seja na elaboração de roteiros para encenações similares àquela promovida
por Rogério. Ao prestigiar a apresentação, ele se inquietou tentando desvendar o modus operandi
da linguagem teatral, pensando em como era possível a organização das falas, das pessoas em
seus momentos de entrar em cena, do enredo, das conexões entre as temáticas entrelaçadas e, so-
bretudo, lançando-se ao desafio de pensar como ele teria feito se fosse o próprio diretor. Este foi
o princípio das posteriores atividades criativas sistemáticas de Anísio. Alguns anos depois, ele
passou a vasculhar livros velhos e a escrever, incessantemente, sobre temas diversos, guardando
e compilando tudo o que elaborou. Numa das nossas conversas, ele me mostrou alguns de seus
pequenos livros artesanais guardados entre um considerável volume de papéis organizados em
pastas plásticas. Tratam-se, basicamente, de histórias fictícias, contos e poemas que contêm, em
seus criativos títulos, de modo bastante sugestivo, alguns elementos das históricas relações com
os não índios, seja com as populações negras, cuja relação de parentesco com os Xokó é bastante

pag. 50 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA


acentuada19, seja com os regionais “brancos”, diante dos quais sempre enfrentaram questionáveis
tabus.

Ao tempo em que ele me apresentava seus diferentes registros, eu aproveitava a sua dispo-
sição para lançar-lhe algumas de minhas perguntas fundamentais de pesquisa, e assim pudemos
conversar de maneira espontânea. O modo como Anísio respondia a algumas delas diferia, radi-
calmente, das formas mais protocolares de respostas que eu conhecia acerca de indagações bas-
tante conhecidas pelos indígenas. “Quando você diz que é índio, o que isso significa para você,
Anísio?” Perguntei-lhe. Ele manteve-se um instante em silêncio e, considerando que eu parecia
requerer uma resposta nem tanto óbvia ou imediata, pensou por alguns segundos e sacou, entre
os papéis, um de seus cadernos de poemas que estava entre as pastas. Ficou a vasculhar por al-
gum tempo e escolheu uma poesia que ele havia escrito alguns dias antes, justamente pensando
nisso. E recitou:

O amor que lhe tenho


Não tem preço nem pressão
É brando como um beija-flor
Ativo e bravo como um leão
Arde no peito direito
E no esquerdo faz pulsar meu coração

O amor que lhe tenho


É profundo como o mar
Sem fim como o infinito
É luz sem razão pra se apagar
É um talento que não se explica

E nesse prazer que posso expressar


O amor que lhe tenho
Me faz enxergar o meu dever
Fazer dos direitos meu caminho
O qual ao teu lado devo percorrer

É do amor que lhe tenho


Que busco paz para viver

Logo após, ele passou a me explicar qual era o significado, o qual julgava ser apenas o co-
meço – muitas vezes negligenciado por quem pergunta – de uma resposta possível para a minha
indagação. Ele parecia sugerir que eu atentasse para o fato de que qualquer resposta ou conclu-
são para esse tipo de questão não deveria ser satisfeita de forma tão imediata, através de uma
resposta sintética, objetiva e, sobretudo, conclusiva: “é um talento que não se explica”. Isto é, pa-
recia sugerir que qualquer tentativa nesse sentido estaria implicada, necessariamente, nas com-
plexas dinâmicas de subjetividades, desejos e potencialidades contextuais de cada pessoa que se
sente indígena, sendo este o meio fundamental dela mesma identificar, em palavras, como se

19 Os Xokó são vizinhos da comunidade quilombola Mocambo. Para saber mais sobre estas relações de paren-
tesco e segmentação étnica, ver Arruti (2001).

A história está no “drama” pag. 51


percebe e é percebida entre aqueles que assim também se sentem em condições compartilhadas
de existência, não obstante com direitos e deveres, como ele aponta em alguns dos versos:
Então, ser índio, hoje, é a razão da minha paz. É a minha vida, eu acho que em lugar nenhum eu conseguiria
viver [ …] a não ser aqui, porque aqui é onde eu posso … onde eu tenho varias opções de trabalhar, de con-
seguir meu pão, de ter a liberdade de expressar o que eu sou … eu costumo dizer e pensar … que deveria ter
nascido no tempo da batalha mesmo, porque … apesar do mundo hoje está muito globalizado, tecnologia
muito avançada, muitos jovens já com a cabeça totalmente diferente … eu costumo dizer que deveria ter nas-
cido no tempo antigo. Por quê? Porque eu tenho orgulho de ser isso e eu tenho consciência que eu morreria
mas não negaria a minha identidade, o meu prazer de ser … se hoje dissesse, se hoje fosse determinado que a
gente tinha que deixar tudo isso pra trás … toda a … televisão, todo objeto de … que não é compatível com
a nossa realidade de antes, e hoje é … se fosse pra deixar tudo isso pra trás, pra cada um construir agora seu
rancho no meio do mato, e viver lá em comunidade, eu faria isso com todo prazer …

Apesar do momento instigante provocado pela pergunta, retomei a conversa sobre as ati-
vidades em torno da peça teatral já conhecida pela comunidade. Ele relatou que Rogério Xokó
não estabeleceu uma rotina para as apresentações da peça na aldeia, de modo que não hou-
ve mais encenações. Sentindo que tinha capacidade para dar continuidade às apresentações,
Anísio, anos depois, tomou a iniciativa de articular com alguns jovens parentes a possibilidade
de construir uma nova peça que pudesse ter longevidade maior, e, desta vez, o conteúdo seria a
história recente da luta do povo Xokó, de maneira que pudesse encená-la, anualmente, na se-
mana em que eles comemoram a conquista definitiva da terra, nove de setembro. Essa escolha
fez-se, sobretudo, em atenção ao contexto em que costumam receber diversos visitantes não
índios que vão até a Ilha querendo saber um pouco mais sobre suas vidas, sua história e cultura
étnica, um significado mais preciso para o que é ser indígena.

Os Xokó ressentem-se de um certo grau de repetição quando professores, estudantes, pes-


quisadores, entre outros, procuram-lhes – em especial as lideranças – para conhecer a história
da luta, fenômeno que tem se tornado regular no decorrer dos anos, em especial a partir do
processo de “rotinização da aldeia”. Nesse sentido, cientes de que esta constante procura é fun-
damental para o processo de desestigmatização20 da cultura indígena – sobretudo a deles, que
tem marcante parentesco com populações negras locais, que é alvo constantes de visões céticas e
puristas de não índios em torno da identidade –, passaram a articular, com o uso da criatividade,
maneiras alternativas para re-contar os fatos. O que pode ser traduzido como uma espécie de
economia do discurso historiográfico nativo em sua relação performática intermitente com os
vizinhos não índios. Conforme Anísio me explicou, diante desse contexto de interesse sistemá-
tico dos não índios pela cultura Xokó, o “drama teatral” desempenharia o papel estratégico de
poupar, até certo ponto, as mais antigas lideranças nas épocas de comemoração da retomada,
quando recebem um grande número de não índios interessados no que há ali de tão especial,
como o próprio fato de serem índios. Ao me explicar estas intenções, de certa maneira pragmá-
ticas embora não reduzidas a isso21, Anísio sintetiza: “se querem saber a história, nós contamos
ali [na peça teatral]”. Solicitei, então, que me narrasse como funcionava a estrutura e a organi-
zação deste ato cênico que eles denominam “O Drama”.

Trata-se de uma peça de teatro improvisada, i.e., feita com muito esforço coletivo da parte
dos jovens e sem dispor de qualquer tipo de apoio financeiro. O acesso ao material cênico básico
depende do que os participantes conseguem contribuir a partir do que já possuem. A peça é

20 Ver Arruti (2001).


21 Na conclusão deste artigo analiso o ato a partir de uma dimensão cujos efeitos eu julgo serem mais comple-
xos, pois estão intimamente implicados em anseios diversos que almejam um modelo de relação.

pag. 52 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA


realizada sempre que há contexto favorável nas datas comemorativas, pois nem sempre Anísio
obtém sucesso em mobilizar o interesse de um número mínimo de jovens para a sua viabili-
zação. Movimenta cerca de quarenta e cinco jovens – estimativa de Anísio – o que representa,
praticamente, a metade da juventude da aldeia engajada na encenação da história recente da
luta, na qual eles constroem autonomamente os cenários, os textos, os improvisos e ensaios
“secretos”22 semanas antes da data de apresentação, que costuma acontecer um dia antes da data
principal da festa. O motivo principal da antecipação é que o dia nove de setembro é completa-
mente reservado à apresentação performática do Toré23; à missa católica; ao almoço coletivo que
eles oferecem aos visitantes; aos discursos das lideranças; e às longas menções honrosas políticas,
tidas como as atividades principais da programação, nas quais toda a comunidade se envolve,
independente da faixa etária. Portanto, este dia, como pude observar em trabalho de campo, já
é, de fato, bastante sobrecarregado de atividades.

Figura 2: Apresentação do Toré aos visitantes (9 de setembro de 2011).

No que tange à escolha do momento histórico chave da peça, cabe mencionar que o con-
flito por terras entre índios Xokó e colonos é conhecido desde o início do século XVII, quando
o colonizador Pedro Gomes recebe uma doação de 30 léguas em quadra de terras da coroa
portuguesa, dando origem ao extenso Morgado de Porto da Folha. No entanto, “O Drama” se
concentra na história de conflitos violentos e litígios judiciais que os Xokó tiveram, ao longo do
século XX, com a última família que tomou posse irregular do território indígena, favorecida
pela Lei de Terras de 1850. Esta história conflituosa se configura como fato definitivo para a
mudança radical da vida dos índios Xokó. É no seu decorrer que a transformação mais pro-
funda ocorre, inclusive na indianidade, quando se opera uma espécie de “viagem da volta”. É
neste contexto que os jovens atores destacam, cronologicamente, os diversos momentos difíceis

22 Distantes da observação dos mais experientes, tanto para garantir-lhes a surpresa, quanto a autonomia e o
próprio protagonismo dos jovens em torno da construção do enredo.
23Ver Grünewald (2005).

A história está no “drama” pag. 53


aos quais seus parentes estiveram submetidos e, sobretudo, a superação decisiva alcançada num
processo virtuoso de etnogênese indígena24, i.e., um radical processo de transformação socio-
cultural.

A chegada de um pesquisador/historiador na terra indígena é o ponto de partida da ence-


nação. As suas perguntas a um Xokó ancião provocam a sua memória e a peça recorre à conheci-
da técnica do flashback, com a qual os jovens reencenam o modo como era organizada a vida nos
tempos em que predominava subalternidade laboral e religiosa, para em seguida apresentarem
como ocorre a tomada de consciência coletiva, e, consequentemente, os desafios e violências daí
decorrentes. Por fim, representam os contextos nos quais ocorrem a conquista dos direitos e as
transformações posteriores no âmbito da “rotinização da aldeia” até o momento presente, qual
seja, o início do diálogo entre o interlocutor externo e o experiente índio numa “aldeia plena-
mente consolidada”.

Figura 3: Crianças participando do Toré.

Numa revisão da literatura mais recente sobre os índios Xokó, pode-se perceber que O
Drama ainda é bastante marginal, e jamais foi comentado enquanto um acontecimento que
detém a sua devida importância na formação étnica dos jovens, se confrontada com o trata-
mento dado a outros elementos das manifestações mais tradicionais e emblemáticas da política
de identidade local. Como são os casos do complexo ritual do Ouricuri e o Toré, considerados,
com razão, as principais “locomotivas” das identidades dos povos indígenas do Nordeste e da
continuidade histórica da cultura nativa. Acontece que, nesta metáfora que aqui lanço mão, os
“vagões” restantes trazem à tona, também, importantes e diversos elementos – que poderiam
ser percebidos apenas como “supérfluos da identidade” – para a compreensão ainda mais ampla

24 Ver Bartolomé (2006) e Pacheco (2004). Ver também: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/


quem-sao/etnogeneses-indigenas>, acesso em 28/04/2013.

pag. 54 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA


do modus operandi da construção étnica e relacional de povos como os índios Xokó. E esta peça
cênica juvenil ainda persiste enquadrada como um exemplo patente destes elementos aparente-
mente residuais e à espera de uma legitimação um tanto maior.

À guisa de conclusão: a produção da socialidade

A apropriação de uma linguagem das artes através da concepção de uma peça de teatro que
sirva como suporte para contar a história do povo Xokó, sobretudo aos não índios que visitam a
Ilha com seus diversos interesses, certamente possui efeitos bem mais complexos do que aquele
proporcionado pelo objetivo pragmático mais imediato de Anísio: poupar as lideranças mais
idosas da tarefa intensa e cíclica de contar e recontar a história para os inúmeros pesquisado-
res interessados. Pode-se supor que esta apropriação é um desmembramento autônomo, entre
outros, da matriz relacional que constitui o modo de vida cotidiano dos índios Xokó, i.e., um
suporte performativo, como tantos outros, a exemplo do Toré, no qual eles põem em evidência
o desejo de um modelo relativamente estável de relação entre si e os não índios, cada parte com
as suas características, de modo que os diálogos e práticas (re)produzam ao máximo possível
um sentido compartilhado, uma mutualidade afetiva. O objetivo central desse desejo seria pro-
porcionar, por um lado, a coesão entre os parentes Xokó e, por outro, o respeito mútuo entre
eles e os visitantes não índios através da construção e manutenção de uma intersubjetividade
incessante. Este anseio constitui parte fundamental do que proporciona o estado de socialidade
dos primeiros.

Nas propostas analíticas centradas neste conceito, pode-se compreender que a abordagem
do conceito de socialidade surgiu a partir de um contexto de crítica à ideia hegemônica de socie-
dade até então pactuada nas ciências humanas, estabelecida mediante uma série de dicotomias,
tais como parte/todo, indivíduo/coletivo, biológico/cultural entre outros pares antinômicos, de
tal maneira que o foco na inter-relação imanente a estes pares permaneceu, até certo ponto,
prejudicado. Nesse sentido, aqueles que passam a recorrer ao conceito de socialidade como ins-
trumento de análise inserem-se numa vertente de pensamento que, basicamente, busca rejeitar
a ênfase hierárquica da investigação em uma das partes dos esquemas opositivos (binarismo),
para focar, então, nos fenômenos da relação como dimensão propriamente (des-)constitutiva
das pessoas e dos diversos (des-) vínculos entre elas [a sociedade]. Ou seja, busca-se foco pri-
vilegiado para os processos relacionais, os quais proporcionam sentido e, sobretudo, dinâmica à
vida e ao cotidiano – tanto em seus aspectos objetivos quanto subjetivos e intersubjetivos, e que
se conectam um ao outro de modo a compreendermos que a pessoa e o mundo social não são
dados a priori, mas mutuamente construídos e transformados de modo incessante, a partir dos
processos de vivência que ocorrem nas próprias contingências da vida diária.

Como podemos compreender, então, no âmbito destas abordagens, o uso da linguagem


das artes pelos jovens Xokó? Em quais processos sociais significativos as suas agências e cria-
ções artísticas estão implicadas, tendo em vista as suas vivências históricas com a própria rede
de parentes indígenas e com os não índios com os quais mantêm relações cotidianas? Uma das
respostas possíveis é que o uso de uma peça de teatro, no contexto descrito neste artigo, funciona
como um suporte que apresenta, sucintamente e seletivamente, o acúmulo de relações mar-
cantes que os índios Xokó historicamente estabeleceram entre eles mesmos e com “os outros”,
i.e., com os não índios. A apresentação em si (sua forma e conteúdo) não seria suficiente para

A história está no “drama” pag. 55


compreendermos seus significados e motivações; seria preciso pensarmos a quais fenômenos ela
se conecta. Para isso eu formulei duas perguntas que me conduzem a alguns fenômenos distin-
tos e, ao mesmo tempo, complementares: i) ‘para que’ eles protagonizam? ii) ‘com quem’ eles se
conectam para o desenvolvimento da performance artística?

No primeiro caso [para que], podemos pensar que suas motivações e protagonismo se vol-
tam à própria constituição local da política de identidade, de territorialização e de parentesco
indígena, ou seja, ao self associável a um grupo de afins e um lugar, tendo em vista o acúmulo
de histórias e memórias adquirido especialmente com os mais experientes, os quais cumprem,
por sua vez, um amplo papel pedagógico construído nos roteiros de vida social estabelecidos
desde a “rotinização da aldeia”, assim como no próprio cotidiano. No segundo caso [com quem],
podemos pensar, por um lado, que eles visam produzir relação positiva (socialidade) entre eles
mesmos enquanto parentes, a fim de garantir a permanente territorialização assim como a pró-
pria indianidade, dois elementos que não são vistos entre os Xokó como realidades acabadas.
E, por outro lado, visam constituir um tipo de “socialidade interétnica” com os vizinhos não
índios, cujas relações demonstram, claramente, serem inexoravelmente assimétricas25, a fim de
construírem, mutuamente, uma rede social que esteja o máximo possível de acordo com os seus
anseios. Ainda que regidos por diferentes gramáticas sociais, buscam um modo de relação que
seja capaz de romper com as persistentes rotas de colisão, ou ao menos diminuir os seus efeitos
mais deletérios.

Numa possível leitura perspectivista, se bem a compreendo, estas situações suscitam a ideia
de que a realidade não é um dado26, de modo que ela sempre tende a ser vista sob dois ou mais
pontos de vista, tal como é considerada pela teoria relativista. A realidade seria, então, o tipo de
relação que se acentua/prevalece – não necessariamente objetivo, ou sintético de uma relação
dialética – na dinâmica do encontro destes pontos de vista27. Por um lado, se os visitantes se
dispõem a viajar até a Ilha de São Pedro para assistir ao Drama, é no sentido claro de i) buscar
estabelecer um tipo de relação, de conhecer a história local onde ela mesma se expressa através
das pessoas; ii) dispor as suas referências práticas e teóricas anteriores à prova para saber em que
podem se transformar essas experiências. Por outro lado, se os Xokó elaboram uma laboriosa
peça de teatro visando estes outros é, também, no sentido de i) transmitir o conhecimento de si
e de seu povo para além de suas fronteiras porque isto seria, em alguma medida, necessário para
a plena efetivação do seu reconhecimento; ii) e este, para estar completo, depende, além do pró-
prio auto reconhecimento dos índios, da rede social mais ampla e da mútua perspectiva dos não
índios. Estas dimensões certamente não se esgotam, mas fiquemos apenas nesta amostragem.

Este encontro assimétrico de subjetividades distintas busca proporcionar – quando su-


perada a fase da dúvida, o confronto de visões – uma leitura mútua dos atores em questão, e,
consequentemente, um novo modo de relação mais próximo possível de uma compreensão
compartilhada positiva da diversidade social e cultural que envolve ambas as perspectivas, e não
o aspecto oposto, qual seja, os diálogos e as práticas hostis com o fim de reforçar, ou ampliar,
a dúvida sobre a autenticidade do outro – o que promoveria uma anti-socialidade. De todo

25 Apesar do reconhecimento oficial, eles ainda afirmam sofrer, constantemente, com as dúvidas e preconceitos
em torno de sua indianidade.
26 Se tomarmos a realidade como objeto, podemos dizer que “a noção relativista do objeto como coisa em si não
tem nenhum lugar ‘nesse mundo marcado pela variação dos pontos de vista’” (Lima, 1996: 33 apud Pansica, 2008:
17).
27 Pansica (2008: 19).

pag. 56 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA


modo, isso não quer dizer que a mutualidade das novas visões, porventura proporcionadas pela
experiência da peça, implique necessariamente em igualdade de percepções. Um não índio que
assim se reconheça e seja reconhecido muito dificilmente compreenderá, exatamente, o que é ser
um índio, e vice-versa. No entanto, isso não os condena à incapacidade perpétua de estabelecer,
através de uma incessante troca de experiências e de historicidades, um conhecimento e uma
relação positivas entre si.

Enfim, a produção de socialidade almejada pela linguagem teatral construída pelos jovens
Xokó parece refletir esta busca contínua por um modelo de relação que reflita um estado de
bem-estar e de bem-viver basicamente momentâneos e desejáveis, um estado da vida e não uma
versão acabada desta, sem possibilidades de novas transformações.

Referências bibliográficas

Arruti, José Mauricio. 2001. “Agenciamentos Políticos da “Mistura”: identificação étnica e seg-
mentação negro-indígena entre os Pankararu e os Xocó.” Revista Estudos Afro- Asiáticos
23(2): 215-254.
______. 2004. “A Produção da Alteridade: O Toré como Código das Conversões Missionárias
e Indígenas.” Coimbra: VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro (www.ces.uc.pt/lab2004/inscri-
cao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf ).
______. 2009.“Da Memória Cabocla à História Indígena. Conflito, Mediação e Reconhecimento
(Xocó, Porto da Folha/SE).” Pp. 249-270 in: Mitos, Projetos e Práticas Políticas: Memória
e Historiografia, edited by Celestino, M.R., Soihet, R., Azevedo. C. And Gontijo, E. São
Paulo, SP: Civilização Brasileira.
Bartolomé, Miguel A. 2006. “As Etnogêneses: Velhos Atores e Novos Papéis no Cenário
Cultural e político.” Mana 12(1): 39-68.
Cimi. 2012. “Pronunciamento de Sônia Guajajara na Coletiva de Imprensa em Doha – COP-
18” (http://www.cedefes.org.br/?p=indigenas_detalhe&id_afro=9637).
Comissão Pró-Índio de SP. 1983. “A Outra Vida dos Xokó.” Boletim 14 (may/june): 1-25 (www.
cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PBCPISP051983014.pdf ).
Dantas, Beatriz G., Dallari, Dalmo. 1980. Terra dos Índios Xocó: Estudos e Documentos. São Paulo,
SP: Comissão Pró-Índio de SP.
Dantas, Beatriz Góis. 1997. Xokó: Grupo Indígena em Sergipe. Aracaju, SE: Secretaria de Estado
da Educação do Desporto e do Lazer.
French, Jan Hoffman. 2002. “Dancing for Land: Law-making and Cultural Performance in
Northeastern Brazil.” Political & Legal Anthropology Review 25 (1): 19-36.
______. 2009. Legalizing Identities: Becoming Black or Indian in Brazil’s Northeast. Chapel Hill,
NC: The University of North Carolina Press.
Grünewald, Rodrigo (Ed.). 2005. Toré: Regime Encantado do Índio do Nordeste. Recife, PE:
Editora Massangana.
McCallum, Cecilia. 2001. How Real People Are Made: Gender and Sociality in Amazonia. Oxford:
Berg Press.
Ortner, Sherry B. 2006. “Power and Projects: Reflections on Agency.” Pp. 129-154 in Anthropology
and Social Theory: Culture, Power, and the Acting Subject., edited by idem. Durham and
London: Duke University Press.

A história está no “drama” pag. 57


Pacheco de Oliveira. João (Ed.). 2004. A Viagem da Volta: Etnicidade, Política e Reelaboração
Cultural no Nordeste Indígena. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa Livraria and LACED.
Pansica, Rafael Rocha. 2008. Sobre o Perspectivismo Ameríndio e Vice-versa. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social), Florianópolis, SC: UFSC (https://repositorio.ufsc.
br/handle/123456789/103213).
Souza, Natelson Oliveira de. 2011. A Herança do Mundo: História, Etnicidade e Conectividade
entre jovens Xokó. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Salvador, BA: UFBA (https://
repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/7104).
Sahlins, Marshall. 2011. “What Kinship Is (Part One).” Journal of the Royal Anthropological
Institute. (N.S.) 17, pp. 2-19.
______. 2011. “What Kinship Is (Part Two).” Journal of the Royal Anthropological Institute
(N.S.)17, pp. 227-242.
Strathern, Marilyn. 1999. Property, Substance and Effect: Anthropological Essays on Persons and
Things. London: Athlone Press.
______. 2006. O Gênero da Dádiva: Problemas com as Mulheres e Problemas com a Sociedade na
Melanésia. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.
Viegas, Susana de Matos. 2007. Terra Calada: os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia.
Rio de Janeiro, RJ e Coimbra: 7 Letras and Almedina.
Virtanen, Pirjo. K. 2007. Changing Lived Worlds of Amazonian Indigenous Young People:
Manchinery Youths in the City and the Reserve, Brazil-Acre. PhD thesis. Latin American
Studies, University of Helsinki.

The history is in the "drama": young Xoko Indians and the production of
sociality with the languages of art

This article explores some discourses and practices of young Xoko Indians, which point to strategies for
the production sociality of this group – a small indigenous community located in the state of Sergipe,
Brazil – in view of their process of territorialisation, as present in everyday life. Among their various
strategies, those that makes use of the languages of art attain special importance for the younger mem-
bers of the community, as it fosters a certain kind of an economy of native inter-subjective communica-
tion with non-Indians, and among themselves. The use of writing and theatrical language becomes
especially important when it comes to communicate efficiently and effectively to the many outsiders of
the community the meaning of their “ethnic” way of being and to demonstrate what, historically, made
them be what they are today in contemporary society.
Keywords: Xoko Indians; youth; history; sociality; art

pag. 58 CADERNOS DE ARTE E ANTROPOLOGIA

Das könnte Ihnen auch gefallen