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Negras e negros no Sul do Brasil

Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

10 a 13 de julho de 2017
Florianópolis / SC
ISSN: 2447-3766

ANAIS 2017
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

10 a 13 de julho de 2017
Florianópolis / SC

ANAIS 2017
ISSN: 2447-3766

ORGANIZADORES DOS ANAIS


Dra. Joana Célia dos Passos - UFSC
Dra. Eliane Debus - UFSC
Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso - UDESC

Realização

ALTERITAS/UFSC

Apoios Parceiros
COMISSÃO ORGANIZADORA DO III COPENE SUL
GESTÃO ABPN (2016-2018)
Dra. Anna Maria Canavarro Benite - Presidente
Dra. Alessandra Pio Silva - Secretária Executiva
Dra. Fernanda Souza de Bairros - Diretora de Relações Institucionais
Dra. Ana Beatriz Sousa Gomes Bairros - Diretora de Relações Internacionais
Dra. Raquel Amorim dos Santos - Diretora de Áreas Acadêmicas

COORDENAÇÃO LOCAL
Dra. Joana Célia dos Passos - UFSC
Dra. Eliane Debus - UFSC
Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso - UDESC

COORDENAÇÃO EXECUTIVA
Dra. Joana Célia dos Passos - UFSC
Dra. Eliane Debus - UFSC
Dr. Carlos Alberto Silva - FURB
Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso - UDESC
Azânia M. Romão Nogueira - UFSC e NEN
Camila da Silva Santana - UFSC
Dandara Manoela Santos - UFSC
Fábio Garcia - Conselho Municipal de Políticas de Cultura de Florianópolis
Fanny Vidigal - UFSC
Gisele Karine Santos de Souza - UDESC
Ivanilde de Jesus dos Santos Ferreira - UFSC
Joseane Pinho Corrêa - UFSC
Josiane Beloni de Paula- UFSC
Maíra Pires Andrade - UDESC
Nattana Marques Pires - UFSC
Pamela Cristina dos Santos - UFSC
Patrícia Magalhães Pinheiro - UFSC
Stela Marcia Moreira Rosa - UFSC
Tatiana Valentin Mina Bernardes - UFSC
Ticiane Caldas Abreu - UDESC
Zâmbia Osório dos Santos - UFSC

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

COMITÊ CIENTÍFICO
Dra. Angela Maria de Souza - UNILA
Dra. Angélica Pereira – UFSC
Dra. Eliane Debus – UFSC
Dr. Carlos Alberto Silva - FURB
Dr. Deivison Moacir Cezar – ULBRA
Dr. Elison Antônio Paim - UFSC
Dra. Fernanda Souza de Bairros - UFRGS
Dra. Francis Solange Tourinho – UFSC
Dra. Georgina Helena Lima – UFPel
Dra. Giane Vargas Escobar - UFSM
Dr. Hilton Costa - UFPR
Dra. Ione da Silva Jovino - UEPG
Dra. Ivanilde Guedes de Mattos - UNEB
Dra. Joana Célia dos Passos – UFSC
Dr. José Rivair de Macedo - UFRGS
Dra. Karine de Souza Silva - UFSC
Dra. Lia Vainer Schuckman - USP
Dra. Lucimar Dias Rosa – UFPR
Dra. Maria Aparecida Rita Moreira - SED/SC
Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – FURG
Dra. Marivânia Conceição de Araújo – UEM
Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso - UDESC
Dr. Paulo Vinícius Baptista da Silva – UFPR
Dra. Sátira Pereira Machado - UNIPAMPA
Dra. Sônia Maria dos Santos Marques – UNIOESTE
Dr. Waldemir Rosa - UNILA

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Sumário
APRESENTAÇÃO....................................................................................................................................... 11

EIXO 1: LITERATURA E DEMAIS PRODUTOS CULTURAIS PARA


INFÂNCIA E JUVENTUDE E A DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE ROGÉRIO ANDRADE BARBOSA PARA CRIANÇAS E JOVENS E A TEMÁTICA


AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA..............................................................................................................14

CABELO E FEMINILIDADES NEGRAS: UM ESTUDO DAS NARRATIVAS NA LITERATURA INFANTO-


JUVENIL....................................................................................................................................................21

FRUIÇÃO E MAGIA: DO SILENCIAMENTO À VISIBILIDADE NEGRA NA LEITURA DE LIVROS DE


LITERATURA DE TEMÁTICA DA CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
32

NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA COMO POTENCIAL FORMATIVO NA CULTURA NEGRA..................41

CAROLINA MARIA DE JESUS E A “REFAVELA”: A LITERATURA PERIFÉRICA NO CURRÍCULO E A


CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA SALA DE AULA. IDENTIDADE E PERTENCIMENTO........................51

EIXO 2: ARTE E CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS

A IDENTIDADE CURITIBANA E O DISCURSO SOBRE A INVISIBILIDADE DO NEGRO NA CULTURA


POPULAR DA CIDADE..............................................................................................................................66

CAPOEIRA: PATRIMÔNIO IMATERIAL, CULTURA AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE NEGRA............78

EU CANTO SAMBA PORQUE SÓ ASSIM EU ME SINTO CONTENTE: O SAMBA COMO PRODUÇÃO DE


CUIDADO DA POPULAÇÃO NEGRA........................................................................................................88

NARRATIVAS E PERFORMANCES URBANAS: PENSANDO “ESPAÇO” A PARTIR DAS PRÁTICAS DE


CANTORES E CANTORAS DE RAP EM BLUMENAU..............................................................................100

POR ENTRE LINHAS E FOTOGRAFIAS: RETRATOS DO MUNDO/MODERNO/COLONIAL/DE GÊNERO


111

PROJETO SANKOFA - UM CURTO CIRCUITO NOS DISCURSOS VISUAIS SOBRE A ÁFRICA........... 121

CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS NEGROS NA ESCOLA DO TEATRO BOLSHOI NO BRASIL DE


JOINVILLE/SC: PRESENÇAS VISÍVEIS, PROJETOS E PERSPECTIVAS DE VIDA ATRAVÉS DA DANÇA.
135

EIXO 3: INTELECTUALIDADE NEGRAS

O TERREIRO DE CANDOMBLÉ COMO TERRITÓRIO DE MEMÓRIA, RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DE UMA


IDENTIDADE AFROCENTRADA..............................................................................................................153

EIXO 4: QUESTÕES URBANAS E POPULAÇÃO NEGRA

INTEGRAÇÃO DE IMIGRANTES HAITIANOS NO OESTE CATARINENSE: RAÇA E RELAÇÕES DE PODER


NO BRASIL NÃO MESTIÇO..................................................................................................................... 161

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Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

CENTRO CULTURAL MARRABENTA / PELOTAS-MAPUTO..................................................................172

SER NEGRO E GAY EM REDE LGBT: ABRINDO AS PORTAS PARA UM ESTUDO ENSAÍSTICO SOBRE SI
178

EIXO 5: CORPO, GÊNERO, SEXUALIDADES E INTERSECCIONALIDADES

CONCURSOS DE BELEZA NEGRA: AS MULHERES EM ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES


NEGRAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960 .....................................189

O EMPODERAMENTO DA MULHER NEGRA: UMA PRÁTICA DE MEDIAÇÃO CULTURAL ATRAVÉS DA


ARTE.........................................................................................................................................................196

REPRESENTACIÓN DE LA MUJER NEGRA EN PERÚ Y BRASIL........................................................... 205

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: RESISTIR PARA EXISTIR AS RELAÇÕES ÉTNICO – RACIAIS E DE


GÊNERO....................................................................................................................................................217

O ENSINO DA HISTORIA DA LUTA DAS MULHERES NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ABORDAGENS


POSSÍVEIS................................................................................................................................................224

EIXO 6: FEMINISMOS NEGROS

EXPERIÊNCIAS DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO - 1960-2003.................231

“MINHA MÃE TRABALHOU DE DOMÉSTICA, EU TRABALHEI EM CASA DE PATROA BRANCA E MINHAS


FILHAS TAMBÉM”: NARRATIVAS DE MULHERES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA TOCA/SANTA
CRUZ........................................................................................................................................................241

PROTO-FEMINISMO NEGRO EM SANTA CATARINA: UM ESTUDO DO ATIVISMO DE MULHERES NEGRAS


NA LUTA ANTIRRACISTA, SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX..........................................................251

EIXO 7: RELIGIOSIDADES E IDENTIDADES NEGRAS

A RELIGIÃO DE MATRIZ AFRICANA NA FRONTEIRA-OESTE DO RIO GRANDE DO SUL: IDENTIDADE E


DIVERSIDADE...........................................................................................................................................262

A VIDA COMUNITÁRIA DA BENZEDEIRA NEGRA DONA SANTA: REDES DE SOLIDARIEDADE NA REGIÃO


DA CAMPANHA DO RS............................................................................................................................270

O LUGAR SOCIAL DAS MULHERES NAS MANIFESTAÇÕES DO CACUMBI........................................281

PRETOS-VELHOS: REPRESENTAÇÃO DE AFRICANIDADE.................................................................. 294

PROJETO “SANKOFA” IDENTIDADE E REPRESENTATIVIDADE AFRO NA ESCOLA.......................... 304

REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO CIENTÍFICA ACERCA DA INFÂNCIA NAS RELIGIÕES DE MATRIZ


AFRICANA................................................................................................................................................314

SEGREDO DE QUARTO DE SANTO: O SAGRADO DOS SÍMBOLOS EM UMA CASA DE CANDOMBLÉ


SERGIPANA..............................................................................................................................................323

UM ENCONTRO DE FÉ E ADORAÇÃO ÀS SANTAS ALMAS: PERCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA EM TORNO


DA REPRESENTAÇÃO DOS PRETOS VELHOS NO GRUPO UNIÃO ESPÍRITA SANTA BÁRBARA- MACEIÓ/
ALAGOAS................................................................................................................................................ 334

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EIXO 8: AÇÕES AFIRMATIVAS NO ENSINO SUPERIOR E PROTAGONISMO

AÇÕES AFIRMATIVAS NO SUL DO BRASIL: UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS DE ACESSO AO ENSINO


SUPERIOR PÚBLICO............................................................................................................................... 345

A AUSÊNCIA DA LEI FEDERAL 10.639/2003 NO CURSO DE LICENCIATURA EM GEOGRAFIA: UM


RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA ALUNA COTISTA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA
CATARINA (2013 - 2016)........................................................................................................................ 355

AÇÕES AFIRMATIVAS: ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL E PERMANÊNCIA NA UFSC EM RELAÇÃO ÀS


QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS................................................................................................................ 364

COTISTAS RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR: TRAJETÓRIAS, PERCEPÇÕES SOBRE PRECONCEITOS E


PROJETOS FUTUROS.............................................................................................................................372

DISCURSO E PODER: UM OLHAR ACERCA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA UEPG EM 2013........... 388

EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL: A COR DO VESTIBULAR NO PARANÁ................................................401

ENCONTRO DE SABERES NA UNB........................................................................................................ 411

IGUALDADE NA DIVERSIDADE E A LUTA ANTIRRACISTA NO BRASIL: DAS POLÍTICAS DE REDISTRIBUIÇÃO


ÀS DE RECONHECIMENTO ....................................................................................................................422

NEGROS E INDÍGENAS: DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS AO MERCADO DE TRABALHO.433

NEGROS/AS E INDÍGENAS EGRESSOS/AS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA PÓS GRADUAÇÃO: INICIANDO


UM PERCURSO DE PESQUISA.............................................................................................................. 445

QUANDO TODO MUNDO QUER SER PARDO, O QUE FAZER? O CONTROLE SOCIAL AO ACESSO DAS
POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NAS UNIVERSIDADES FEDERAIS........................................... 455

HISTÓRICO DA IMPLANTAÇÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA UTFPR:............................................ 462

DA DOCUMENTAÇÃO DE IMPLANTAÇÃO ÀS EXPECTATIVAS DE SEUS EFEITOS – UMA LEITURA


PRELIMINAR............................................................................................................................................ 462

EIXO 9: QUILOMBOLAS, DIREITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS

06 DE FEVEREIRO COMO UM DIA DE CELEBRAÇÃO À HERANÇA PALMARINA: OS CAMINHOS DE LUTAS


DO QUILOMBO DOS PALMARES E SEUS SIGNIFICADOS PARA A PERPETUAÇÃO DAS TRADIÇÕES DE
MATRIZ AFRICANA EM ALAGOAS..........................................................................................................472

EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: FOTOGRAFIA NO ENSINO DE GEOGRAFIA......................... 482

ENTRE O QUILOMBO E O TERREIRO: PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO DE MULHERES E CRIANÇAS DA


TOCA DE SANTA CRUZ, PAULO LOPES (SC)....................................................................................... 493

A FESTA E A MÚSICA: COMO ELEMENTOS DE RESISTÊNCIA E PERTENCIMENTO PARA OS MEMBROS


DO QUILOMBO DE SÃO ROQUE/SC..................................................................................................... 503

QUILOMBO RINCÃO DOS FERNANDES ESPAÇO DE RESISTÊNCIA E CONHECIMENTO.................515

TERRA E CIDADANIA NA COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA DA INVERNADA DOS


NEGROS, CAMPOS NOVOS/ABDON BATISTA - SC..............................................................................524

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

EIXO 10: EDUCAÇÃO, RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E INFÂNCIAS NEGRAS

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03 NOS


COLÉGIOS DE APLICAÇÃO DO BRASIL: O ESTADO DO CONHECIMENTO A PARTIR DAS ATIVIDADES
DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA.........................................................................532

MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIAS NEGRAS INFANTIS NO CIBERESPAÇO................................... 542

UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA COM A HISTÓRIA, A CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NO


CURRÍCULO DA ESCOLA DE CAMPO................................................................................................... 555

VER NÃO BASTA, TEMOS QUE OLHAR – PRÁTICAS DE RESISTÊNCIAS NEGRAS NA ESCOLA...... 566

TERRITORIALIDADE E ANCESTRALIDADE: A PRESENÇA DOS GRIOTS EM SALA DE AULA.............573

EIXO 11: EDUCAÇÃO, RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E JUVENTUDES NEGRAS

A DECOLONIALIDADE E A INTERCULTURALIDADE COMO PROCESSO ESTRUTURANTE


PARA A APLICAÇÃO DA LEI 10.639/2003 EM SALA DE AULA.................................... 581
JUVENTUDES NEGRAS NO RIBEIRÃO DA ILHA - FLORIANÓPOLIS/SC: MARCAS E IDENTIDADES.592

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E AMBIENTE ESCOLAR: IMPLICAÇÕES DA LEI 11.645/08 NA FORMAÇÃO


DE PROFESSORES/A DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
608

‘SERVIÇO SOCIAL E QUESTÃO RACIAL NO BRASIL: A PERCEPÇÃO DOS JOVENS DO CENTRO


CULTURAL ESCRAVA ANASTACIA A PARTIR DO SEU PERTENCIMENTO ÉTNICO- RACIAL............615

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS NO PARANÁ: A APLICABILIDADE DA LEI 10.639/03


NAS INSTITUIÇÕES ESCOLARES PARANAENSES...............................................................................627

PDL – PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO DE JOVENS LIDERES: EMPREENDEDORES SOCIAIS E


PROMOTORES DE DIREITOS HUMANOS............................................................................................. 634

EIXO 12: SEGURANÇA PÚBLICA, VIOLÊNCIA E RACISMO

VIOLÊNCIA ESCOLAR EM BELO HORIZONTE: DA GLÓRIA AO CAOS NO LICEU...............................641

EIXO 13: NEGROS(AS), CIÊNCIAS EXATAS E TECNOLÓGICAS

EDUCAÇÃO E RACISMO AMBIENTAL EM FOCO..................................................................................652

ANÁLISE E PERFIL DAS ALUNAS NEGRAS INGRESSADAS ENTRE OS ANOS ENTRE 2013 E 2016 DO
CURSO DE ENGENHARIA MECÂNICA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.......................... 663

EIXO 14: MEMÓRIA E PATRIMÔNIO NEGRO NO SUL DO BRASIL

A INVISIBILIDADE AFRO-BRASILEIRA NO MUNICÍPIO GAÚCHO DE SÃO BORJA: FORMAS DE REAÇÕES


ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO.......................................................................................................................671

Página 8
A MÃO AFRO-BRASILEIRA DE EMANOEL ARAÚJO MOLDANDO O MUSEU AFRO BRASIL: O
DESDOBRAMENTO DE NOVAS MONTAGENS ARTÍSTICAS EM SUAS EXPOSIÇÕES........................681

A TRADIÇÃO AFRICANA DOS GRIOT’S: DO MALI AO BRASIL, DE “BOCA-OUVIDOS”... POSSIBILIDADES


NA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA!........................................................................................................... 690

BIBLIOTECA DE REFERÊNCIA NEAB/UDESC E A PRESERVAÇÃO DA DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL EM


SANTA CATARINA................................................................................................................................... 699

MEMÓRIA, ASSOCIATIVISMO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: OS CLUBES “NEGROS” DE LAGUNA-SC


NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX (1930-1950)..........................................................................708

O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO DA DIÁSPORA AFRICANA NO BRASIL..........................................719

O VOCABULÁRIO RACIAL NAS PÁGINAS DA IMPRENSA NEGRA.......................................................732

LIBERDADE E VISIBILIDADE AOS NEGROS E PARDOS DO SUL: CAMPOS DE PALMAS/PR 1867-1888


741

OS GRIOTS NA ÁFRICA OCIDENTAL: MEMÓRIA DE IMIGRANTES AFRICANOS NA CIDADE DE CHAPECÓ


– SC ..........................................................................................................................................................748

EIXO 15: PSICOLOGIA, RACISMO E BRANQUITUDE

A BRANQUITUDE NO PROJETO OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


DO NEAB/UDESC: UMA ANÁLISE DAS AÇÕES REALIZADAS NO MUNICÍPIO CATARINENSE DE ÁGUAS
MORNAS..................................................................................................................................................756

AS PUBLICAÇÕES DAS REVISTAS DE PSICOLOGIA: UMA ANÁLISE DA ABORDAGEM DA QUESTÃO


NEGRA E DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO...............................................................................767

BRANQUITUDE E PODER NAS RELAÇÕES ENTRE LOCAIS E IMIGRANTES HAITIANOS: FALANDO DE


RAÇA NO OESTE CATARINENSE............................................................................................................779

PROJETO OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS DO NEABUDESC: UMA


ANÁLISE ACERCA DA BRANQUITUDE E DA POLÍTICA DE AQUISIÇÃO DE ACERVO BIBLIOGRÁFICO DA
ESCOLA DE EDUCAÇÃO BÁSICA JÚLIO DA COSTA NEVES................................................................790

A PSICOLOGIA ENQUANTO INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DO RACISMO NO INÍCIO DO SÉCULO


XX..............................................................................................................................................................801

EIXO 16: HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

“A DESCOBERTA DA ÁFRICA”: RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS E POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL PARA A


ÁFRICA NAS PÁGINAS DA REVISTA VEJA (1969-1985)..................................................................... 809

“BAKIN! BALIBA! SAMBOUNE! APOYA! ABOUNKET!”: A ANCESTRALIDADE E COSMOVISÃO WOLOF


NOS FILMES LA NOIRE DE... E EMITAI DE SEMBÈNE OUSMANE (ÁFRICA OCIDENTAL, ANOS 1960-
1970)........................................................................................................................................................ 820

NEM LÁ, NEM CÁ: O SENTIMENTO DE NÃO PERTENÇA DE AFRODESCENDENTES E INDIANOS DE


PELE ESCURA PRESENTE EM O PAÍS SEM CHAPÉU DE DANY LAFERRIÈRE E AGUAPÉS DE JHUMPA
LAHRI....................................................................................................................................................... 829

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O AGIR DAS CANDACES NA ANTIGA CIVILIZAÇÃO KUSH DESMISTIFICA O LUGAR INFERIOR IMPOSTO
ÀS MULHERES NEGRAS E, PRODUZ NOVOS CAMPOS DE SUBJETIVAÇÃO, SABER E PODER...... 838

QUAL ÁFRICA ENSINAR? A HISTÓRIA DAS ÁFRICAS NOS RELATÓRIOS FINAIS DE ESTÁGIO
SUPERVISIONADO DO CURSO DE HISTÓRIA DA UDESC (2000 – 2015).......................................... 849

EIXO 17: MÍDIA E NEGRITUDE

DANÇO LOGO EXISTO, PENSO LOGO EXISTO: DEMOCRACIA RACIAL OU MITO DA DEMOCRACIA
RACIAL SOB UMA NOVA CONFIGURAÇÃO NO PROGRAMA ESQUENTA?....................................... 859

MULHERES NEGRAS NA MÍDIA: INVISIBILIDADE, ESTEREÓTIPOS E EMPODERAMENTO................872

RELAÇÕES RACIAIS NOS LIVROS DOS CURSOS TÉCNICOS NA MODALIDADE A DISTÂNCIA...... 883

MÍDIA E NEGRITUDE: O USO DOS FILMES NA (DES)CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS............... 893

EIXO 19: PRETAS E PRETOS NAS ENCRUZILHADAS DA ANTROPOLOGIA

NA FRONTEIRA: MULHERES NEGRAS NAS ARTES............................................................................. 905

OLHAR COLONIAL: CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA AFROCENTRICA SOBRE O FAZER


ANTROPOLÓGICO NO BRASIL...............................................................................................................915

EIXO 20: FILOSOFIA AFRICANA E O PENSAMENTO DA AFRODIÁSPORA

“A FERIDA ABERTA DO TALHO FUNDO NA CARNE DO MAPA QUE SEPARA AMÉRICAS


E ÁFRICA”: TELEOLOGISMO E MANUTENÇÃO DA ORDEM SOCIAL....................... 922
Índices 934

Página 10
APRESENTAÇÃO

O III Congresso de Pesquisadores Negros/as da Região Sul: desenvolvimento, patrimônio

e cultura afro-brasileira (III COPENE SUL) teve como principal objetivo promover a divulgação

da produção científica, tecnológica e cultural sobre desenvolvimento, patrimônio e cultura afro-

brasileira, incentivando a inovação e a geração de conhecimentos e a troca entre pesquisadores

e estudantes de ensino médio, graduação, pós-graduação e movimentos antirracistas do Brasil e

do Cone Sul.

Foi realizado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) nos dias 10, 11, 12 e 13

de julho de 2017 por meio do Grupo de Pesquisa Alteritas: Diferença, Arte e Educação em conjunto

com o Literalise – Grupo de pesquisa em literatura infantil e juvenil e práticas de mediação literária,

com o Programa de Pós graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina

(PPGE/UFSC), com a Secretaria de Ações Afirmativas (SAAD/UFSC), a Associação Brasileira de

Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), e a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), por

meio do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB).

O III COPENE SUL contou com as parcerias e apoios financeiros e logísticos do Programa

de Apoio a Evento no País – PAEP da CAPES, Edital Espaço Vivo e Edital Procultura SECART/

UFSC, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSC) e da UDESC.

Nos quatro dias de programação recebeu o número de 508 inscritos/as sendo que destes,

281 tiveram gratuidades: 64 estudantes do ensino médio; 100 professores da educação básica;

29 organizações do movimento negro (9 PR | 10 RS | 10 SC); 54 monitores/as; 29 membros

da coordenação executiva e 05 crianças. Foram apresentados 186 trabalhos nas categorias

comunicação oral e pôsteres. Devido ao seu caráter interdisciplinar agregou, pesquisadores/as e

profissionais – do ensino superior e da Educação Básica de diversos ramos das Ciências Humanas

e Sociais, Ciências da Natureza e Ciências da Tecnologia, além de contar com a presença de

estudantes do Ensino Médio.

O evento se efetivou por meio de conferências, mesas-redondas, lançamento de livros,

apresentações culturais, mostra cultural Negras Vozes e feira de afro empreendedores. Durante

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

o evento também foi realizado o Espaço Erê que teve como objetivo possibilitar que os adultos

inscritos no evento, em especial as mulheres, participassem do evento em conjunto com seus/

as filhos/as. Foram realizadas oficinas, brincadeiras e outras atividades direcionadas às crianças.

Os anais do III COPENE SUL asseguram a memória da produção acadêmica apresentada,

além de possibilitar aos/às leitores/as a incursão sobre o que tem sido pesquisado no sul do Brasil

tendo como foco a população negra e as questões raciais.

Agradecemos a todo/as que apoiaram financeiramente e integraram a organização do III

COPENE SUL, e desejamos que, este seja mais um instrumento para fortalecer a luta antirracista.

As/o Organizador/as

Página 12
EIXO 1: Literatura e demais produtos
culturais para infância e juventude
e a diversidade étnico-racial

O Grupo de trabalho “Literatura e demais produtos culturais para infância e


juventude e a diversidade étnico-racial” tem como objetivo agregar estudos
em torno das produções para crianças e jovens (literatura, música, dança,
teatro, entre outros), privilegiando textos concernentes às culturas africanas
e afro-brasileiras. Pretendemos através das discussões, evidenciar o papel
dessas produções para a (re)significação das identidades negras e, por
conseguinte, para a formação do repertório dos destinatários em espaços
de formação (Instituições de educação básicas e outros espaços formativos).
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE ROGÉRIO ANDRADE BARBOSA PARA


CRIANÇAS E JOVENS E A TEMÁTICA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

Eliane Santana Dias Debus, PPGE/UFSC


elianedebus@hotmail.com
Tatiana Valentin Mina Bernardes, PPGE/UFSC
tatyminabernardes@yahoo.com.br

Resumo

A presente comunicação apresenta a pesquisa realizada coletivamente no ano de 2015/2017 pelos


membros do Literalise - Grupo de Pesquisa sobre Literatura Infantil e Juvenil e Práticas de Mediação
Literária em Educação Básica e Superior, do Centro de Ciências da Educação (CED), da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) sobre a produção literária para infância e juventude do escritor
brasileiro Rogério Andrade Barbosa, em particular aquela que tematiza a cultura africana e afro-
brasileira. O primeiro passo da pesquisa se deu com o levantamento dos livros publicados pelo autor,
seguido da leitura, apreciação e resenha dos títulos, culminando com um encontro de formação com
o autor, momento que possibilitou a realização de uma entrevista, oficina de contação de história e
o compartilhamento das suas viagens e experiências. A análise e o estudo dos livros centraram-se
na reflexão sobre as contribuições significativas que a produção literária do autor proporciona para a
formação literária do leitor, e para a valorização e compreensão acerca das diferenças entre as pessoas e
a diversidade étnico-racial, social e cultural presentes nas sociedades. Para auxiliar o estudo, consultou-
se a legislação específica (Leis nº 10.639/2003 e nº 11645/2008), e as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (2004). Como resultado, efetivou-se a resenha de 82 títulos, bem como entrevista e registro
da formação realizada por ele junto ao Grupo que será publicizada em livro eletrônico ainda no ano de
2017. Constata-se que mapeamentos como estes, além de propiciarem a visualização do que se tem
publicado sobre o tema, contribui para a formação de leitores mais críticos sobre a realidade que nos
circunda.

Palavras-chave: Literatura Infantil e Juvenil. Temática africana e afro-brasileira. (Re)


contos.

Página 14
Introdução

A presente comunicação tem por objetivo apresentar o trabalho de pesquisa desenvolvido


pelo conjunto dos membros do Grupo de Pesquisa em Literatura Infantil e Juvenil e Práticas de
Mediação Literária em Educação Básica e Superior (Literalise), do Centro de Ciências da Educação
(CED) – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Nos anos de 2015/2017, o Literalise dedicou-se a analisar os títulos do escritor Rogério
Andrade Barbosa, professor, palestrante, contador de histórias e ex-voluntário das Nações Unidas
na Guiné-Bissau. Graduou-se em Letras na UFF (RJ) e fez Pós-Graduação em Literatura Infantil
Brasileira na UFRJ. Trabalha na área de literatura Afro-Brasileira e programas de incentivo à leitura,
proferindo palestras e dinamizando oficinas.
O autor publicou 82 títulos de Literatura Infantil e Juvenil, destes 45 livros são de temática
africana, 14 sobre o folclore brasileiro, 13 Juvenis, 10 sobre temas diversos, alguns traduzidos para
o inglês, espanhol e alemão e ainda tem 17 participações em livros.
A temática étnico-racial na literatura de recepção infantil e juvenil no Brasil tem recebido
destaque a partir das Leis nº 10.639/2003 e nº 11645/2008, bem como, a implementação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, publicada em Junho de 2004, que instituem a
literatura juntamente com o estudo da cultura e história africana, afro-brasileira e indígena como
obrigatórias nos Currículos da Educação Básica, Ensino Médio e Superior. Desse modo, segundo
Joana Passos (2012), as Leis em referência se complementam e alteram a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB) de 1996, colocando o direito à educação e a diversidade no mesmo
patamar como uma política afirmativa de Estado.
Na tentativa de atribuir um novo significado as narrativas que abordam a questão étnico-
racial o grupo teve como foco de análise, a reflexão sobre as contribuições que os títulos do autor
proporcionam à formação literária do leitor, a valorização e compreensão acerca das diferenças
entre as pessoas e a diversidade étnico-racial, social e cultural presentes nas sociedades.
A materialidade do trabalho se deu pela produção de resenhas dos títulos publicados
pelo autor, totalizando 82 resenhas produzidas ao longo dos anos de 2015/2017 por diferentes
membros do grupo.

Página 15
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1 - FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os estudos literários têm nos últimos anos apresentado uma noção de literatura de
forma mais ampla e se detido a pesquisas que contemplam os grupos emergentes, este fato
já é anunciado na década de 1990 quando em documento (CNPq) elaborado por “Avaliação e
Perspectivas: Curso de Letras”, elaborado por Nadia Gotlib. Estaria nesses grupos emergentes a
literatura feita por mulheres, a literatura popular – oral e de cordel – a literatura africana e a literatura
infanto-juvenil.
Esta constatação se acentua nos últimos anos e, no caso específico de nosso estudo,
podemos dizer que a literatura infantil e a temática africana se amalgamam e se tornam uma
tendência na escrita dos livros e nos estudos e pesquisas sobre eles. E, por certo, a Lei 10.639
contribui para essa disseminação, quando exige a obrigatoriedade do ensino da cultura africana e
afro-brasileira nas escolas. A lei ainda destaca que o conteúdo programático incluirá o “[...] estudo
da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro
na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinente à História do Brasil” (Art. 26-A, § 1o) e que deverá ser trabalhado
“[...] em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.” (Art. 26-A,
§ 2o).
Posteriormente, a Lei Nº 11.645, de 10 de março de 2008 vem reafirmar a obrigatoriedade
do estudo da história e cultura afro-brasileira nos currículos do Ensino Fundamental e Médio e
inclui as mesmas orientações para a temática indígena.
Em 2004, o Conselho Nacional de Educação (CNE) Institui Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana que devem ser observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos
níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem
programas de formação inicial e continuada de professores. De acordo com as Diretrizes, Art.
1°, § 1° “As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades
curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como
o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos
explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004.” Isso significa que as instituições de Ensino Superior
passam obrigatoriamente a incluir esses conteúdos em seus currículos sendo que o cumprimento
das Diretrizes é um quesito a ser considerado nas avaliações de condições de funcionamento.
Trata-se de um conjunto de orientações, princípios e fundamentos tendo como meta “promover
a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica
do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas, rumo à construção de nação democrática.”
(Art. 2°). Nesse aspecto a literatura aqui apresentada nas obras de Barbosa cumpre um importante
papel de valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros.
Outro documento importante a ser considerado no estudo da temática é o Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2009). O referido Plano Nacional

Página 16
objetiva colaborar para que todo o sistema de ensino e as instituições educacionais cumpram
as determinações legais enfrentando todas as formas de preconceitos, racismo e discriminação
e garanta a todos os sujeitos o direito de aprender com equidade, promovendo uma sociedade
mais justa e igualitária. Para cumprir os objetivos determinados no Plano, são apresentados seis
eixos estratégicos: 1) Fortalecimento do marco legal; 2) Política de formação para gestores e
profissionais de educação; 3) Política de material didático e paradidático; 4) Gestão democrática
e mecanismos de participação social; 5) Avaliação e Monitoramento e 6) Condições institucionais.
Também destaca as atribuições e responsabilidades entre os diferentes atores da Educação
brasileira, desde o Governo Federal, Estadual, Municipal até os Conselhos e Fóruns. Orienta um
conjunto de ações específicas a cada nível e ensino ou modalidade, no sentido de garantir e
efetivação das legislações que tratam da temática.
No âmbito das produções acadêmicas, destaca-se no cenário atual, vários estudos e
pesquisas, principalmente nas áreas de Letras e Educação que buscam refletir e problematizar
sobre as narrativas que trazem como temática, a cultura africana e afro-brasileira. Segundo Debus
(2007) podemos destacar o artigo de cunho histográfico de Maria Cristina Gouvêa (2000), com
análise sobre as representações sociais do negro na literatura de recepção infantil no Brasil, nos
30 primeiros anos do século XX. Diante do mito da democracia racial e visão etnocêntrica, os
personagens são marcados pelo desejo de embranquecimento. Aparta ainda os estudos de
Andréia Sousa (2001; 2003) voltados aos títulos produzidos em meados da década de 1980,
marcados por representações afirmativas da identidade negra. E ainda, a pesquisa de Oliveira
(2001) que dedicou os estudos sobre as personagens negras na literatura infanto-juvenil brasileira
nas publicações entre 1979 e 1989 e evidencia três aspectos: a denúncia sobre a situação social,
a denúncia da existência do preconceito racial, a descrição da beleza “marrom” e “pretinha” dos
protagonistas com a intenção de propagar o mito da democracia racial, segundo a autora.
Os estudos descritos exemplificam a variedade de pesquisas significativas produzidas por
pesquisadores de diversos campos do conhecimento na tentativa de analisar as publicações e a
circulação mercadológica de livros de recepção infantil que trazem a temática da questão étnico
racial.
As pesquisas foram impulsionadas a partir da Lei 10639/2003 que institui a obrigatoriedade
do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar da educação básica.
E nessa conjectura seguem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
étnico-Raciais e para o Ensino e Cultura Africana e Afro-Brasileira (2004), documento que indica
ações e encaminhamentos para implementação da Lei, destaca a literatura e o ensino de história e
artes como importantes áreas para a inserção da temática no currículo escolar.
Desse modo, a literatura ganha papel fundamental nos processos educativos e determinam
questões políticas e sociais para a formação de cidadãos democráticos, críticos e agentes em uma
sociedade pluriétnica e multicultural.
E nessa perspectiva constata se um aumento na produção de títulos que abordam a
temática étnico-racial e torna emergente para a sociedade brasileira a investigação e o estudo

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

sobre temas que abordem a história e cultura africana e afro-brasileira. E assim, contribuir para
o reconhecimento e disseminação da produção literária sobre a temática e exigir do mercado
editorial um olhar apurado sobre os títulos infanto-juvenis que são publicados.

2 - METODOLOGIA

Primeiramente realizou se um mapeamento da produção literária do autor e posteriormente


o levantamento do conjunto de títulos, para em seguida realizar uma busca em bibliotecas públicas
e privadas, nas livrarias e junto a alguns admiradores da literatura, na tentativa de localizar o maior
número de títulos. Após a reunião dos títulos, foi realizada a distribuição dos livros, cada integrante
do grupo, em média, ficou com quatro a cinco livros para ler, analisar e elaborar as resenhas. Na
ocasião, também foram planejados os critérios de análise para a elaboração das resenhas. Os
critérios se deram a partir das contribuições que os títulos proporcionam à formação literária do
leitor, em presença as abordagens narradas nas obras sobre a valorização e compreensão acerca
das diferenças entre as pessoas, a diversidade étnico-racial, social e cultural presentes nas
sociedades.
As discussões sobre os elementos e as características presentes nos livros, bem como,
as abordagens descritas nas resenhas, aconteciam a cada quinze dias, durante os encontros do
grupo de pesquisa.
Para contribuir com o estudo, o grupo realizou também, discussões sobre as legislações
específicas (Leis nº 10.639/2003 e nº 11645/2008), bem como, as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana (2004).
A pesquisa teve a contribuição do autor Rogério Andrade Barbosa que participou de um
encontro com os membros do grupo para dialogar sobre sua produção literária.
Como resultado, efetivaram-se as resenhas dos 82 títulos do autor, bem como entrevista
e registro da formação realizada pelo autor com o Grupo, que serão registradas em livro eletrônico
ainda no ano de 2017. Constata-se que mapeamentos como estes, além de propiciarem a
visualização do que se tem publicado sobre o tema, contribui para a formação de leitores mais
críticos sobre a realidade que nos circunda.

3 - RESULTADOS E DISCUSSÃO: ALGUNS COMPONENTES QUE NOS PERMITEM O


AMPLIAR O DEBATE

A investigação e pesquisa acerca das questões que envolvem a temática sobre a história e
cultura africana e afro-brasileira são imprescindíveis e precisam ser discutidas por todas as esferas

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da sociedade brasileira, no âmbito das políticas públicas, sociais e educativas.
Acredita-se que tais pesquisas possam contribuir para o reconhecimento, valorização e
divulgação da produção literária sobre a temática africana e afro-brasileira.
Nesta perspectiva, refletir sobre a literatura de recepção infantil e juvenil de temática africana
e afro-brasileira implica na problematização dos processos de produção do mercado editorial e as
possibilidades que a linguagem literária pode desenvolver para a promoção de ações e propostas
antirracistas nas instituições educativas.

Referências

BRASIL.  Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e


para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC/SECAD, 2004.

_______. Plano Nacional de Implementação das  Diretrizes Curriculares Nacionais para a


Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História  e Cultura Afro-brasileira
e Africana. Brasília: MEC/SECAD/SEPPIR, 2009.

DEBUS, Eliane. A representação do negro na literatura para crianças e jovens: negação ou


construção de uma identidade? In: Imaginário, identidades e margens: estudos em torno da
literatura infanto-juvenil. Vila Nova de Gaia Gailivro, 2007.

___________. A temática étnico-Racial nos Livros infantis da Pallas Editora. Anais II Congresso
Internacional de Leitura e Literatura Infantil Juvenil e I Fórum Latino- Americano de Pesquisadores
de Literatura, 2010.

____________. A escravização africana na literatura infantil e juvenil: lendo dois títulos. Currículo sem
Fronteiras, v.12, nº1, pp. 141-156, Jan/Abr 2012. Disponível em: <www.curriculosemfronteiras.
org>. Acesso em: 07/06/2016

GOUVEIA, Maria Cristina Soares de. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise
historiográfica. Texto apresentado no Congresso do Ische
(International Society conference of history of education), 23, 2000, Alcalá de Henares, Espanha.
Acessível em http://www.scielo.br

Lei Fe­deral Nº 10.639/03 que al­tera a Lei no 9.394, de 20 de de­zembro de 1996, Es­ta­be­lece as
di­re­trizes e bases da edu­cação na­ci­onal, para in­cluir no cur­rí­culo ofi­cial da Rede de En­sino
a obri­ga­to­ri­e­dade da te­má­tica “His­tória e Cul­tura Afro-Bra­si­leira”.

Lei Fe­deral Nº 11.645/08 que al­tera a Lei no 9.394, de 20 de de­zembro de 1996, mo­di­fi­cada pela
Lei no 10.639, de 9 de ja­neiro de 2003, Es­ta­be­lece as di­re­trizes e bases da edu­cação na­ci­
onal, para in­cluir no cur­rí­culo ofi­cial da rede de en­sino a obri­ga­to­ri­edade da te­má­tica “His­
tória e Cul­tura Afro-Bra­si­leira e In­dí­gena.

Pa­recer CNE/CP Nº003/2004 e Resolução Nº 01/2004, que instituem e regulamentam As


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Parecer CNE 02/2007 quanto à abrangência das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana

Pa­recer CNE/CEB Nº 07/2010, que de­fine as Di­re­trizes Cur­ri­cu­lares Na­ci­o­nais Ge­rais


para Edu­cação Bá­sica.

SOUSA, Andréia L. Nas tramas das imagens: um olhar sobre o imaginário da


personagem negra na literatura infantil e juvenil. 2003. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.

Página 20
CABELO E FEMINILIDADES NEGRAS: UM ESTUDO DAS NARRATIVAS NA
LITERATURA INFANTO-JUVENIL

PISANI, Patrícia Adriane Elias1 (UTFPR)


paep75@yahoo.com.br
SANTOS, Marinês Ribeiro dos2 (UTFPR)
ribeiro@utfpr.edu.br

Resumo

Este artigo apresenta as premissas de uma pesquisa em andamento acerca das articulações entre
tecnologias de gênero e narrativas sobre cabelos e feminilidades negras, no âmbito da cultura material.
Livros de literatura infanto-juvenil, que apresentam meninas negras como protagonistas, foram
selecionados como artefatos a serem analisados, considerando-se que os mesmos materializam
o conhecimento elaborado envolvendo assimetrias, estereotipias e resistências acerca da temática
abordada na pesquisa. As narrativas apresentadas nos livros serão problematizadas levando-se em
conta o contexto da produção literária afro-brasileira atual, influenciada pela lei nº 10.639/2003 e
pelas políticas públicas resultantes da militância dos movimentos sociais negros, as especificidades da
diáspora negra no Brasil e as reflexões epistemológicas quanto às tecnologias de gênero. O cabelo,
entendido como elemento de constituição étnica para as feminilidades negras, será estudado como
componente simbólico que concede sentido à expressão de pertencimento racial. Nessa perspectiva,
os tensionamentos entre as reflexões sobre o cabelo e a presença feminina negra nas narrativas, dar-
se-ão por uma abordagem discursiva da representação na literatura infanto-juvenil afro-brasileira.

Palavras-chave: Cabelo. Gênero. Raça. Cultura material. Literatura afro-brasileira.

1 Graduada em Educação Artística pela Universidade Tuiuti do Paraná. Mestranda no Programa de Pós-
Graduação em Tecnologia, na linha de Mediações e Cultura, pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
2 Doutora em Ciências Humanas pela UFSC e professora do Departamento Acadêmico de Desenho Industrial
e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Neste texto apresentamos o tema de estudo e os objetivos de trabalho de uma pesquisa


em fase inicial acerca da representação de meninas e mulheres negras. Abordaremos as
articulações entre tecnologias de gênero e narrativas sobre cabelos e feminilidades negras, no
âmbito da cultura material. Livros de literatura infanto-juvenil, que apresentam meninas negras
como protagonistas, foram selecionados como artefatos a serem analisados, considerando-se
que os mesmos materializam o conhecimento elaborado envolvendo assimetrias, estereotipias e
resistências acerca da temática abordada na pesquisa.
As narrativas apresentadas nos livros serão problematizadas levando-se em conta o
contexto da produção literária afro-brasileira atual, influenciada pela lei nº 10.639/20033 e pelas
políticas públicas resultantes da militância dos movimentos sociais negros, as especificidades da
diáspora negra no Brasil e as reflexões epistemológicas quanto às tecnologias de gênero. O cabelo,
entendido como elemento de constituição étnica para as feminilidades negras, será estudado
como componente simbólico que concede sentido à expressão de pertencimento racial. Nessa
perspectiva, os tensionamentos entre as reflexões sobre o cabelo e a presença feminina negra nas
narrativas, dar-se-ão por uma abordagem discursiva da representação na literatura infanto-juvenil
afro-brasileira.
A África tem sido historicamente representada de maneira genérica, sem considerar a
diversidade dos reinos existentes no período pré-colonial ou a variedade de países que foram
configurados durante e após a dominação colonial.
Maria Antônia Marçal (2007) aponta que até século XIX, muitos autores consideravam que
a África era um continente sem história, o que se configurou
como uma das primeiras barreiras epistemológicas que dificultava a produção científica
acerca deste continente. Assim, tentativas de “mostrar que o continente africano fica fora da história”
e a ênfase na “miscigenação com outros povos como um elemento que influenciou a construção
de grandes impérios na África” tornaram-se estratégias narrativas dominantes (MARÇAL, 2007, p.
81). A autora segue afirmando que, somente a partir da década de 1970, historiadores africanos e
europeus, motivados pela independência de vários países africanos, voltaram-se a uma pesquisa
científica sobre este continente.
São muitas as histórias sobre os reinos africanos, mulheres e meninas negras que
precisam ser visibilizadas. Um dos meios para esta visibilização pode ser a literatura. Algumas
destas histórias remetem a tempos imemoriais em narrativas sobre Euá, a misteriosa, Oxum, a
bela, Yemanjá, Iansã, Obá ou Nanã (PRANDI, 2002). Histórias ancestrais, que constituem corpos
que são de uma mulher, única e ao mesmo tempo plural. Corpos concebidos em sociedades que

3 A Lei nº 10.639, que foi aprovada em janeiro de 2003, alterou a Lei de Diretrizes e Bases – LDB n.º 9394/1996 e
tornou obrigatória a temática “História e Cultura Africana e Afro-Brasileira” em todas as escolas de ensino fundamental
e médio, da rede pública e particular do território nacional. Isto significa que, desde então, a história da África, dos
africanos e dos afrodescendentes, no Brasil, considerada em toda a sua complexidade cultural, deve passar a ser
objeto de estudo e constituir conteúdo a ser abordado, pedagogicamente, em todos os estabelecimentos de ensino.

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contam histórias que se trançam em tramas que explicam o mundo e dizem sobre a origem, o ser,
o estar e o devir mulher negra.
Porém, houve um momento em que estas tramas foram interrompidas, cortadas, desfeitas,
embaralhadas. Isto se dá na Diáspora Negra, um capítulo longo, dolorido, perverso, passado
e contíguo, ainda sendo escrito. Para as negras e negros que vivem a diáspora, são muitas as
facetas do descoser destas tramas e da desqualificação de seus corpos: racismo, escravidão,
eurocentrismo, heterocentrismo, opressão, exclusão. Mas também são muitas as faces da
sobrevivência e renovação destas histórias e empoderamento destes corpos: resistências, lutas,
força, sabedoria ancestral, movimentos negros, feminismo negro.
As tramas dos antigos reinos ancestrais ecoam ainda hoje. São contadas e recontadas em
antigas e novas narrativas e, ainda que timidamente, chegam até as meninas do agora (senhoras
do ontem e mulheres do amanhã). Estas meninas têm suas identidades e corpos representados
em artefatos que suportam tramas e medeiam viveres e saberes: os livros de literatura infanto-
juvenil.
É neste universo que se fundam os elementos da pesquisa apresentada neste texto.
Trataremos destas tramas, trançadas no ORI4, representadas em penteados que elaboram corpos,
identidades, diferenças, discursos, relações de poder e práticas sociais por meio da cultura material.
Entendemos os livros de literatura infanto-juvenil como artefatos tecnológicos que
materializam o conhecimento elaborado envolvendo assimetrias, estereotipias e resistências
acerca da representação de meninas e mulheres negras. Assim, selecionamos para a análise das
narrativas, livros de literatura infanto-juvenil que apresentam meninas negras como protagonistas
e que privilegiam o tema “cabelo”. A amostra prioriza os livros publicados em data posterior à Lei
nº 10.639/2003, período em que a produção editorial de temática africana e afro-brasileira passa
a ter maior representatividade.
Nossa amostra foi selecionada a partir do projeto idealizado pela socióloga e livreira carioca
Luciana Bento, a qual indica uma lista de cem livros5 protagonizados por meninas negras. O projeto,
que começou no início de 2016, é uma derivação do blog “A Mãe Preta”. Os títulos já selecionados
são: Os mil cabelos de Ritinha de Paloma Monteiro; O cabelo de Lelê de Valéria Belém; Dandara
seus cachos e caracóis de Maíra Suertegaray; O mundo no black power de Tayó de Kiusam de

4 A concepção antropológica yorùbá (i.e., o pensamento acerca do Homem) compreende o humano como
feito de àrá (corpo), mí (sopro/alma/elemento da vida), orí (cabeça/recetáculo do destino e da personalidade) e
ọkàn (coração, concebido como portador de inteligência e de conhecimento). Contudo, é a cabeça (orí) que recebe
particular atenção, considerado elemento central na identidade do sujeito, portadora do destino e divindade pessoal
(BALOGUN, 2007). O orí é, portanto, muito mais do que a cabeça física. Sendo vasilha da personalidade e do
destino, o orí é concebido como uma divindade-pessoal, motivo pelo qual o orí é alvo de cerimónias específicas, de
potenciação, equilíbrio e alimento, a fim de que o indivíduo esteja sempre de boa-saúde mental, e que o seu destino
(ìpin) se realize como revelado pelo oráculo. Dessa forma, o orí recebe todas as honrarias que recebe um Òrìṣà, embora
claro, sejam honrarias de feição individual e, desse modo, sem o impacto coletivo dos deuses populares. Ademais,
o orí é considerado ainda intermediário entre o sujeito e os Òrìṣàs, o veículo pelo qual as divindades interagem com
os humanos. FONTE: DIAS, João Ferreira. Horizonte: revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religiao, 2013,
Vol.11(29), pp.72-73. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4400005 - Acesso em 11 de
junho de 2017.
5 100meninasnegras.tumblr.com

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Oliveira; Cabelo Ruim? A História de três meninas aprendendo a se aceitar de Neusa Baptista
Pinto; O mundo começa na cabeça de Prisca Agustoni; O cabelo de Cora de Ana Zarco Câmara;
Os tesouros de Monifa de Sonia Rosa; Betina de Nilma Lino Gomes.
Sendo assim, optamos pelo desenvolvimento de uma Pesquisa Social-Qualitativa, cuja
discussão permeia os tensionamentos presentes nas narrativas sobre cabelo e feminilidades
africanas e afro-brasileiras, existentes em livros de literatura infanto-juvenil, as quais se configuram
em um campo fértil para a investigação sobre a constituição de identidade e a representação dos
negros. Há que se considerar a influência das políticas públicas resultantes da militância dos
movimentos sociais negros e as especificidades da diáspora negra no Brasil.

1. Cabelo, elemento étnico-racial que concede sentido identitário

O cabelo, entendido como elemento de constituição étnica para as feminilidades


negras, será estudado quanto aos aspectos simbólicos que concedem sentido à expressão de
pertencimento racial.
Para Nilma Lino Gomes (2003)

A força simbólica do cabelo para os africanos continua de maneira recriada e ressignificada


entre nós, seus descendentes. Ela pode ser vista nas práticas cotidianas e nas intervenções
estéticas desenvolvidas pelas cabeleireiras e cabeleireiros étnicos, pelas trançadeiras em
domicílio, pela família negra que corta e penteia o cabelo da menina e do menino. Pode
ser vista também nas tranças, nos dreads e penteados usados pela juventude negra e
branca. Se no processo da escravidão o negro não encontrava no seu cotidiano um lugar,
quer fosse público ou privado, para celebrar o cabelo como se fazia na África, no mundo
contemporâneo alguns espaços foram construídos para atender a essa prática cultural
(GOMES, 2003, p. 82).

A autora afirma que a manipulação do cabelo seria uma técnica corporal e um comportamento
social presente em diversas culturas. Porém, no caso da população negra brasileira, este processo é
conflituoso. Expressa “sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação e até mesmo de negação
do pertencimento étnico/racial” (GOMES, 2006, p. 210). Ela situa as múltiplas representações
construídas sobre o cabelo crespo em uma sociedade racista, a qual exerce forte influência no
comportamento individual.
Luane Bento dos Santos (2012) investigou as representações sociais que se realizam sobre
o cabelo crespo da mulher negra. Sua pesquisa apresenta uma discussão sobre os processos
de racismo e a corporeidade negra, principalmente quanto ao cabelo e à cor de pele. Segundo a
autora o racismo e a discriminação promovem os “problemas” relacionados ao cabelo dos negros.
Seja por meio do alisamento ou do reconhecimento da beleza dos cabelos crespos, os processos
de construção identitária das mulheres negras ocorreram por “mecanismos de introjeção de
inferiorização no ambiente escolar e familiar”.

Página 24
Bell hooks (2005, n.p.) assegura que “as respostas aos estilos de penteado naturais usados
por mulheres negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca”.
Segundo a autora “o grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos
sentimentos gerais sobre o nosso corpo” (hooks, 2005, s/p.). A esse respeito a estudiosa ainda
destaca que a “publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos bonitas
e atraentes se não mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo” (hooks, 2005, s/p.).
Ela afirma que não podemos nos resignar se sabemos que a supremacia branca informa e trata de
sabotar nossos esforços por construir uma individualidade e uma identidade (hooks, 2005, s/p.).
Nessa perspectiva, os tensionamentos entre as reflexões sobre o cabelo e as representações
de feminilidades negras nas narrativas, serão analisados por uma abordagem que investiga não
apenas as estratégias da linguagem e da representação, mas quais sentidos são articulados e
como o conhecimento elaborado na literatura infanto-juvenil afro-brasileira descreve relações de
poder, regula condutas, inventa ou constrói identidades e subjetividades, definindo o modo pelo
qual estas narrativas são representadas, concebidas e experimentadas.

2. Identidade na Diáspora Negra

A identidade pode ser compreendida como uma forma de posicionamento no mundo em


constante construção. Pode-se entender que ela está relacionada à constituição de relações e
referências culturais nos grupos sociais. A identidade é elaborada em meio à coletividade e se
define por meio das práticas linguísticas, das mais diversas manifestações culturais, das relações
com o sagrado, das constituições familiares, das formas de aprender e se relacionar.
Kabengele Munanga (2003) afirma que
no processo de construção da identidade coletiva negra, é preciso resgatar a história
e autenticidade do negro, desconstruindo a memória de uma história negativa que se
encontra na historiografiacolonial ainda presente em “nosso” imaginário coletivo e
reconstruindo uma verdadeira história positiva capaz de resgatar sua plena humanidade e
autoestima destruída pela ideologia racista presente na historiografia colonial (MUNANGA,
2003, p. 10).

O autor apresenta o conceito de identidade negra coletiva, ou negritude, como identidade


política, a qual reuniria “todos os negros e negras, de todas as classes sociais, de todas as
religiões, de todos os sexos, porque juntos todos são vítimas da discriminação e exclusão raciais”
(MUNANGA, 2003, p. 13).
Sobre a construção de uma identidade negra coletiva, Nilma Lino Gomes (2003) alega
que “a cultura negra possibilita aos negros a construção de um ‘nós’, de uma história e de uma
identidade” (GOMES, 2003, p. 79). Conforme a autora isto “diz respeito à consciência cultural, à
estética, à corporeidade, à musicalidade, à religiosidade, à vivência da negritude, marcadas por um
processo de africanidade e recriação cultural” (GOMES, 2003, p. 79).
É neste contexto, de tensões entre identidade e diferença, que o cabelo crespo, marca da
negritude, é explorado como elemento da alteridade. Na indicação de Gomes

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

(...) é um dos argumentos usados para retirar o negro do lugar da beleza. O fato de a
sociedade brasileira insistir tanto em negar aos negros e às negras o direito de serem
vistos como belos expressa, na realidade, o quanto esse grupo e sua expressão estética
possuem um lugar de destaque na nossa constituição histórica e cultural. O negro é o
ponto de referência para a construção da alteridade em nossa sociedade. Ele é o ponto de
referência para a construção da identidade do branco (GOMES, 2003, p. 80).

Hall (2007) se contrapõe a uma visão homogeneizante e naturalizada da negritude e da


ancestralidade. Ao dissertar sobre o conceito de identidade afirma:

“Esta concepção não tem como referência aquele segmento do eu que permanece,
sempre e já, ‘o mesmo’, idêntico a si mesmo ao longo do tempo. Ela tampouco se refere,
se pensamos agora na questão da identidade cultural, àquele ‘eu coletivo ou verdadeiro
que se esconde dentro de muitos outros eus _ mais superficiais ou mais artificialmente
impostos _ que um povo, com uma história e uma ancestralidade partilhadas, mantém
em comum’ (HALL,1990). Ou seja, um eu coletivo capaz de estabilizar, fixar ou garantir
o pertencimento cultural ou uma ‘unidade’ imutável que se sobrepõe a todas as outras
diferenças _ supostamente superficiais. Essa concepção aceita que as identidades não
são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas
e fraturadas; que elas não são nunca singulares, mas multiplamente construídas ao longo
de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ao ser antagônicos. As identidades
estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de
mudanças e transformação (HALL, 2007, p. 108).

Hall (2007, p. 109), afirma que “as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso” e que precisamos “compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais
específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas
específicas”. Para o autor as identidades
“emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o
produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica,
naturalmente constituída, de uma ‘identidade’ em seu significado tradicional – isto é, uma
mesmidade que tudo inclui uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação
interna (HALL, 2007, p. 109).

Hall sugere que pensemos em processos de identificação em vez de identidades. E são


estas as reflexões escolhidas para permear esta pesquisa.
3. Representações das feminilidades negras na literatura infanto-juvenil

É premente que as reflexões que abordam o racismo tornem-se cada vez mais recorrentes
em todos os espaços de discurso. Entendemos que a superação do silenciamento potencializa,
por meio do reconhecimento da discriminação e da desigualdade racial, a efetivação de políticas
de reparação.
Assim sendo, uma produção literária diaspórica, cujo discurso permeia os debates acerca
da representatividade das feminilidades africanas e afro-brasileiras, justifica-se como um meio

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para possibilitar que as meninas negras, na elaboração de sua identidade, encontrem referências
étnicas e culturais positivas. É necessário ressignificar a memória histórica das mulheres negras,
revisando o papel que desempenham na formação da população brasileira.
Eliane Santana Dias Debus (2017, s/p.) questiona se “teríamos, no Brasil, uma produção
literária de recepção infantil contemporânea que contribua para a noção de pertencimento das
crianças negras”. A autora problematiza as publicações e a circulação mercadológica de “livros
de recepção infantil que trazem a temática da cultura africana e afro-brasileira” (DEBUS, 2017,
s/p.) e constata “uma recorrência a aspectos culturais vinculados a temática da oralidade, em
especial a reunião de lendas e fábulas” (DEBUS, 2017, s/p.). Debus reafirma a importância da
representatividade para a criança negra ao alegar que as instituições educativas encontrarão, no
repertório literário afro-brasileiro, “um caminho possível para driblar a ausência das narrativas de
origem africana e afro-brasileira” (DEBUS, 2017, s/p.).
Débora Cristina de Araújo (2015, p. 125) alerta para o cuidado com o “otimismo
parcimonioso”, quanto à nova produção de obras infanto-juvenis. Ela reconhece os avanços
“em relação à representação e valorização de personagens negras” (ARAÚJO, 2015, p. 125),
porém “sem deixar de lançar um olhar crítico e realista sobre a baixa incidência de obras com
tais características quando tomadas proporcionalmente às publicações do mercado editorial
brasileiro” (ARAÚJO, 2015, p. 125). Segundo a autora, este “olhar crítico e realista lança-se
sobre manutenções de estereótipos que insistem em reificar a representação do ser negro a
características inferiorizantes” (ARAÚJO, 2015, p. 125).
Shirlene Almeida dos Santos (2016, p. 57), em seus estudos, chama a atenção para o
estereótipo como “a principal estratégia do discurso do colonizador”, que constitui uma “forma
de manipular as minorias, identificá-las e aprisioná-las numa condição inferior em todas as
esferas sociais, econômicas, acadêmicas, estéticas, dentre outras” (SANTOS, 2016, p. 57). Para a
autora, “o problema do estereótipo é a sua fixidez e sua consequente repetibilidade, viabilizando
concepções históricas equivocadas e embasando estratégias de marginalização” (SANTOS,
2016, p. 57), e que “é necessário duvidar, desconfiar das ideias arraigadas, testar, movimentar,
desconstruir a estereotipia, pois é onde residem os discursos de poder discriminatório” (SANTOS,
2016, p. 57).
4. Uma abordagem discursiva para análise das representações

Os artefatos de literatura infanto-juvenil serão analisados considerando-se a existência de


uma multiplicidade de identidades negras, constituídas discursivamente na diáspora e analisadas
no âmbito da cultura material.
Para Stuart Hall (2016),

Discursos são maneiras de se referir a um determinado tópico da prática ou sobre ele


construir conhecimento: um conjunto (ou constituição) de ideias, imagens e práticas que
suscitam variedades no falar, formas de conhecimento e condutas relacionadas a um
tema particular, atividade social ou lugar institucional na sociedade (HALL, 2016, p. 26).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

De acordo com este autor a “abordagem discursiva” se concentra mais nos efeitos e
consequências da representação – isto é, sua “política”. Neste caso, o pesquisador que se apropria
desta abordagem analisa

não apenas como a linguagem e a representação produzem sentido, mas como o


conhecimento elaborado por determinado discurso se relaciona com o poder, regula
condutas, inventa ou constrói identidades e subjetividades e define o modo pelo qual
certos objetos são representados, concebidos, experimentados e analisados (HALL,
2016, p. 27).

O foco deste conceito de análise “incide sobre linguagem ou significados e de que maneira
eles são utilizados em um dado período ou local”, apontando para
“a maneira como práticas representacionais operam em situações históricas concretas”
(HALL, 2016, p. 27).
Shirlene Almeida dos Santos (2016) ressalta que a representação “é um conceito e prática ao
mesmo tempo” (SANTOS, 2016, p. 29), além de ser essencial para “a construção das identidades,
especificamente a negra” (SANTOS, 2016, p. 29). A autora destaca as “boas representações”
(SANTOS, 2016, p. 29) como recursos importantes para “impactar a esfera pública e transformar
o imaginário coletivo, combater o racismo e desconstruir os estereótipos” (SANTOS, 2016, p. 29).
Teresa de Lauretis (1994), ao discorrer sobre as tecnologias de gênero, apresenta
proposições significativas para a investigação que pretendemos realizar. A autora sugere “pensar
o gênero, como representação e como auto-representação”. Ela afirma que o gênero é “produto de
diferentes tecnologias sociais, e de discursos, epistemologias, práticas e críticas institucionalizadas,
bem como das práticas da vida cotidiana” (LAURETIS, 1994, p. 208). Tais reflexões nos levam a
considerar, como recurso investigativo da representação, as estratégias discursivas presentes na
produção literária que se propõe a priorizar a representação identitária de meninas e mulheres
negras.
Sendo assim, o que se pretende com a abordagem discursiva de análise da amostra
selecionada, é problematizar os processos de mediação destas formas discursivas; analisar
os significados compartilhados; identificar categorias de representação; averiguar possíveis
assimetrias e suas influências na reprodução ou superação de estereótipos das feminilidades
negras.

Conclusão

Voltando às especificidades que esta pesquisa se propõe a investigar, a análise da


representação das feminilidades negras implica também em considerar “a construção do olhar
de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial sobre si
mesmos, a partir da relação com o outro” (GOMES, 2005, 43).
Segundo Nilma Lino Gomes (2011):

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Como toda a identidade, a identidade negra é uma construção pessoal e social e é
elaborada individual e socialmente de forma diversa. No caso brasileiro, essa tarefa torna-
se ainda mais complexa, uma vez que se realiza na articulação entre classe, gênero e raça
no contexto da ambigüidade do racismo brasileiro e da crescente desigualdade social
(GOMES, 2011, p. 110).

As reflexões desta autora nos apontam que para uma representação positiva de identidades
negras, pressupõe-se a superação de alguns desafios. Entre eles, reconhecer que estamos
tratando de uma sociedade que, historicamente, tem negado às mulheres e meninas negras o
reconhecimento de seus direitos de cidadania em condições de igualdade. Estes desafios estão
marcados pela diferença. Sobre este tema, Stuart Hall (2003) afirma que:

[...] é para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra que devemos
dirigir integralmente a nossa atenção criativa agora. Não é somente para apreciar as
diferenças históricas e experiênciais dentro de, e entre, comunidades, regiões, campo
e cidade, nas culturas nacionais e entre as diásporas, mas também reconhecer outros
tipos de diferença que localizam, situam e posicionam o povo negro. A questão não é
simplesmente que, visto que nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente,
somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças
– de gênero, sexualidade, classe. Trata-se também do fato de que esses antagonismos
se recusam a ser alinhados; simplesmente não se reduzem um ao outro, se recusam a
se aglutinar em torno de um eixo único de diferenciação. Estamos constantemente em
negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma
relação com os outros, mas com uma série de posições diferente. Cada uma delas tem
para nós o seu ponto de profunda identificação subjetiva. Essa é a questão mais difícil da
proliferação no campo das identidades e antagonismos: elas frequentemente se deslocam
entre si (HALL, 2003, p. 327-328).

Portanto, as reflexões acerca da estética negra na diáspora, situada na corporeidade das


meninas/mulheres negras afro-brasileiras, apresentadas em narrativas da literatura infanto-juvenil,
devem permear os sentidos de investigação desta pesquisa.
As considerações de bell hooks (2005, s/p.) reforçam o aporte da referida investigação,
quando a autora afirma que “devemos lutar diariamente por permanecer em contato com nós
mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros. Especialmente as mulheres negras e os
homens negros”. hooks entende que os corpos negros “frequentemente são desmerecidos,
menosprezados, humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena” (hooks, 2005, s/p).
Apontando uma atitude emancipatória, a autora diz que “celebrando os nossos corpos, participamos
de uma luta libertadora que libera a mente e o coração” (hooks, 2005, s/p).
Sendo assim, as narrativas sobre cabelo e feminilidades africanas e afro-brasileiras,
presentes em livros de literatura infanto-juvenil, configuram-se em um campo fértil para a
investigação sobre a constituição de identidades e a representação das mulheres e meninas negras.
Há que se considerar a influência das políticas públicas resultantes da militância dos movimentos
sociais negros e as especificidades da diáspora negra no Brasil, como potenciais que materializam

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

as assimetrias, estereotipias e resistências que serão identificadas e problematizadas ao longo da


pesquisa.

Referências

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resultados de pesquisas. Revista Ensino Interdisciplinar. Mossoró, v. 3, nº. 08, 2017. Disponível
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LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana Funck. In:


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MUNANGA, Kabengele. Negritude e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao avesso?


Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, v. 4, n. 8 • jul.– out. 2012 • p. 06-
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PRANDI, Reginaldo. Ifá o adivinho: histórias de deuses africanos que vieram da para o Brasil como

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

FRUIÇÃO E MAGIA: DO SILENCIAMENTO À VISIBILIDADE NEGRA NA


LEITURA DE LIVROS DE LITERATURA DE TEMÁTICA DA CULTURA
AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

PEREIRA, Sara da Silva (UFPR)


Sarasummer20@yahoo.com.br
CARNEIRO, Vanessa de Senia Monteiro
Vanessa.monteiro@sjp.pr.gov.br

Resumo

O presente trabalho retrata um projeto institucional desenvolvido pelo Centro Municipal de Educação
Infantil Flor-de-Lis, em São José dos Pinhais, Paraná, tendo como foco central a Literatura Afro-brasileira
no contexto da Educação Infantil. O projeto foi idealizado como forma de se garantir o estímulo à formação
do leitor, o conhecimento e o contato das crianças com outras culturas, o respeito à diversidade e o
desenvolvimento do interesse pela leitura literária, através do acesso à temática da cultura africana
e afro-brasileira. Sendo assim, a questão do texto literário surge bem delineada no documento, que
fundamenta a Literatura Afro-brasileira como contribuição para a noção de pertencimento, descartando
textos de cunho utilitário e primando pela fruição e o prazer pela leitura. A Educação Infantil, primeira
etapa da Educação Básica, tem o papel social de cuidar e educar crianças de 0 a 5 anos, tendo sua
organização curricular em campos de experiências. Por este viés, a Literatura é uma das experiências
oferecidas para que a criança tenha contato com a linguagem oral e escrita e está presente desde as
práticas com os bebês, permeando todo o trabalho desenvolvido nesta modalidade de atendimento.
Autores como REYES (2010), FONSECA (2012), ROSEMBERG (1984), DEBUS (2007), SOUSA (2001)
contribuem amplamente com a fundamentação teórica da proposta realizada pela instituição, que
mesmo em andamento, já mostra resultados profícuos. Fato este que pode ser comprovado tanto pela
riqueza das representações infantis quanto pela devolutiva dos demais envolvidos, que se materializa
em forma de registros realizados através de imagens e textos, passando a compor o acervo documental
da Unidade.

Palavras-chave: Educação Infantil. Literatura Infantil de temática da cultura africana e afro-


brasileira. Leitura.

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1 INTRODUÇÃO

O trabalho com a literatura na Educação Infantil vai além da formação de leitores, sendo o
fio condutor de outras tantas atividades permanentes que são desenvolvidas na Instituição e até
mesmo os bebês podem se beneficiar e deliciar com ela.
A literatura de temática da cultura africana e afro-brasileira nem sempre está presente nas
instituições de ensino e muitas vezes não há uma reflexão em torno dos livros que são oferecidos
às crianças, primando pela qualidade e pela nãopropagação de determinados estereótipos e
preconceitos em relação a alguns povos e culturas.
Partindo destas inquietações, o artigo traz em suas páginas a descrição de uma iniciativa
de um Centro Municipal de Educação Infantil no trabalho com a literatura que tematiza a cultura
africana e afro-brasileira, dando visibilidade a personagens negros através da leitura e contação
de histórias. Assim, além da fundamentação, a escrita retrata um detalhamento do projeto, um
mapeamento do acervo da Unidade, alguns percalços e dificuldades encontrados para que sua
realização se materializasse, bem como os resultados obtidos com o desenvolvimento do mesmo.

2 O PROJETO E SUA FUNDAMENTAÇÃO

O homem possui uma necessidade universal de fantasia para satisfazer suas necessidades
mais simples: seja para sonhar, seja para aliviar pressões cotidianas ou suavizar a vida. A literatura
aparece como forma de sistematização desta fantasia, sendo um direito de todos, assim como
todos os outros bens imateriais que a humanidade tem direito. Então, ousaríamos afirmar que é
grande a capacidade que a literatura tem de atender à nossa imensa necessidade de ficção e
fantasia.
A literatura, além de oportunidade de aprendizado, exprime o homem, auxiliando na sua
formação, alimentando sua inteligência e estimulando a reflexão pelo saber. Dessa maneira,
contribui grandemente para a formação integral do ser humano. Ela é indispensável e deve estar
presente na vida das pessoas de forma constante, pois fornece a base cultural necessária ao
homem, para que este possa viver plenamente sua subjetividade integrada à sua vida prática.
Reyes (2007, p. 13), destaca que “a literatura oferece material simbólico inicial para que
a criança comece a descobrir não apenas quem é, mas também quem quer e pode ser”. Sendo
assim, os adultos podem assumir este papel de oferecer este material simbólico às crianças. Eis
que aí reside um importante papel do professor de Educação Infantil.
Quando pensamos em literatura nesta etapa de ensino, logo nos vem à memória os contos
de fada e outras narrativas feéricas “localizadas num tempo não marcado do ‘Era uma vez...e num
espaço indefinido de ‘um lugar muito distante’”. (DEBUS, 2014, p. 234). No entanto, caberia aqui
a reflexão sobre estes livros no intuito de averiguar se os mesmos contemplam a diversidade em
suas páginas.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010, p. 21), apresentam

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

algumas orientações em relação à organização dos espaços, tempos e materiais, assegurando às


crianças “o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e
as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação”.
Sendo assim, acreditamos que os livros são ferramentas importantes para garantir esta
apropriação. Não que eles devam ser usados para fins específicos, mas que retratem em suas
páginas personagens em situação de prestígio e protagonistas de sua própria história, uma vez
que –no caso dos negros- foram silenciados e até mesmo invisibilizados por muito tempo na
literatura. Sem contar, os casos de livros que apresentam em suas páginas personagens negros
caricaturizados e que nada contribuem para a representatividade das crianças negras inseridas no
Centro Municipal de Educação infantil.
Rosemberg (1985), na obra Educação Infantil e Ideologia, remete a pesquisas realizadas
em livros infantis, onde verificou que estes, além de refletirem em suas páginas um preconceito
que ela considera revoltante, trazem um silenciamento de personagens negros, uma vez que os
mesmos não são representados nos livros.
Partindo destas prerrogativas, diretora e pedagoga resolveram se empenhar para
desenvolver um projeto institucional que levasse em conta a visibilidade do negro na literatura
infantil, estudando, ampliando o acervo, oferecendo formação continuada ao grupo e envolvendo
os pais no desenvolvimento do projeto que passaria a compor a proposta pedagógica da Unidade.
O Centro Municipal de Educação Infantil Flor-de-Lis, fica localizado no município de São
José dos Pinhais, região Metropolitana da grande Curitiba. Atualmente, na Unidade são atendidas
137 crianças, com idades entre quatro meses a cinco anos, distribuídas em turmas, de acordo com
a faixa etária:
• Creche: 3 meses a 3 anos (Infantil 1, 2 e 3);
• Pré-escolar: 4 e 5 anos (Infantil 4 e Pré).
O trabalho com Literatura é um desenvolvido desde que o CMEI1foi inaugurado, apesar da
precariedade dos livros. Nesta época, a Instituição contava com apenas 51 títulos e as salas de
aula não contavam com cantos de leitura.
A inauguração data de três de junho de 2014. Sendo um CMEI novo, segundo relatos dos
próprios funcionários e de pessoas da Secretaria de Educação, a unidade não recebeu nenhuma
das caixas enviadas pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola, uma vez que na época da
inauguração ainda não havia sido realizado o censo escolar da instituição.
Após a entrada desta gestão, em 2016, houve um investimento para a compra de livros,
sendo que foi estipulado que, em cada evento realizado pela Associação de Pais, Professores e
Servidores da Unidade, uma parte da verba seria destinada à compra de livros.
Outra medida adotada foi a implantação dos cantos de leitura nas salas de aula e também
na área externa, tendo inclusive um lugar preparado para receber os pais, onde havia livros
disponíveis para leitura e empréstimo por parte das famílias.

1 A partir deste ponto, utilizaremos CMEI para referir-se ao Centro Municipal de Educação Infantil.

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Até a presente data foram realizadas três compras e o acervo da unidade aumentou para
156 livros, todos de boa qualidade.
A Literatura de temática da cultura africana e afro-brasileira ainda não estava ocupando
lugar de destaque na Unidade, sendo relegada a segundo plano ou a iniciativas particulares por
parte da gestão. Portanto, para desenvolver o projeto relatado foi feito um diagnóstico para saber
de onde partir.
Alguns apontamentos foram levantados:
• o único livro que abordava esta temática era Menina bonita do laço de fita, de Ana
Maria Machado;
• existiam duas caixas fechadas com livrinhos, daqueles que se compra em lojas de um
real;
• sentiu-se necessidade de retomar a formação continuada a respeito da literatura,
incluindo agora a de temática da cultura africana e afro-brasileira;
• considerou-se que havia um livro que apresentava o personagem negro em situação de
desprestígio, uma vez que este era visto na história sob a ótica do branco, sendo o título
O amigo do rei, de Ruth Rocha;
• não havia livros da temática compondo os cantos de leitura das salas de aula;
• as crianças ainda não compreendiam a função do livro, rasgando-o e usando-o para
outros fins;
• os pais não eram envolvidos no trabalho com a Literatura Infantil.

Após o levantamento inicial, era o momento de se debruçar sobre alguns estudos para
fundamentar o projeto, uma vez que teriam que capacitar o grupo de trabalho, comprar livros
para trabalhar com as crianças e gostariam de contagiar a todos para que se envolvessem no
desenvolvimento do mesmo, obtendo êxito em sua aplicação. A intenção era que a literatura de
temática da cultura africana e afro-brasileira não ficasse apenas sendo mais um projeto institucional
desenvolvido pela Unidade ou que não fosse vista de forma unilateral, mas que esta passasse
a fazer parte das rotinas da Educação Infantil, trazendo ganhos para todos. As crianças negras
se sentiriam representadas e com a autoestima elevada por reconhecer-se em personagens em
situação de prestígio e as brancas passariam a respeitar e valorizar seus colegas, além de terem
contato com outras histórias, aprendendo que no mundo existe uma pluralidade de culturas e
todas devem ser valorizadas.
Sousa (2001, p. 212), em seus estudos sobre personagens negros na literatura infanto-
juvenil, relata a importância da escolha de livros que não propaguem estereótipos em suas páginas
e que incorporem a visão de mundo e a perspectiva do negro em suas histórias. De acordo com
esta autora,
As imagens das narrativas literárias, quando utilizadas adequadamente, longe de uma
visão etnocêntrica, branqueadora [...] oferece ao leitor re (a) presentações positivas do
negro, do descendente de africanos, contribuindo para uma “modificação da rede de
significados da palavra negro, mestiço”, pardo, possibilitando ao branco uma reeducação

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

quanto à visão estereotipada do negro, e a este elevação da autoestima e resgate de sua


cultura. (SOUSA, 2001, p. 212)

Uma leitura que muito contribuiu para o desenvolvimento deste projeto foi a de um relatório
do projeto de pesquisa da escritora Eliane Debus, intitulado As histórias de lá para leitores daqui:
os (re)contos africanos para crianças pelas mãos de escritores brasileiros. A pesquisa trouxe
um panorama de obras importantes a respeito da temática a ser desenvolvida. Tanto, que o ponto
de partida do projeto foi o livro Gosto de África: histórias de lá e daqui, de Joel Rufino dos Santos.
A partir desta obra, iniciou-se o trabalho com a equipe e também com as crianças. Sendo que a
primeira programação foi uma contação de história do conto As pérolas de Cadija, onde muitos
demonstraram vontade de querer conhecer um pouco mais deste universo mágico das lendas e
tradições africanas.
Para dar continuidade ao projeto, foram comprados mais livros que abordassem a temática
da cultura africana e afro-brasileira:

QUADRO 1-LIVROS ADQUIRIDOS PARA COMPOSIÇÃO DO ACERVO


TÍTULO AUTOR ILUSTRADOR EDITORA
Rosalind
Lulu adora Histórias Anna Mac Quinn Pallas
Beardshaw
O cabelo de Lelê Valéria Belém Adriana Mendonça IBEP Jr.
Com quem será que eu me
Georgina Martins Flavio Fargs Planeta Infantil
pareço?
O Menino Nito Sônia Rosa Victor Tavares Pallas
Um gol de placa Pedro Bandeira Adilson Farias Moderna
Alma de Rio Ellen Pestili Ellen Pestili Cortez
Toda criança tem direito a ler o Fabiano dos Santos
Rafael Lima Verde Cortez
mundo Piuba
Escola de chuva James Rumford James Rumford Brinque-book
A menina que não era Maluquinha
Ruth Rocha Mariana Massarani Melhoramentos
e outras histórias
Alice vê Sônia Rosa Luna DCL
Cadê Clarisse? Sônia Rosa Luna DCL

É o aniversário do Bernardo Sônia Rosa Luna DCL

Como é bonito o pé do Igor Sônia Rosa Luna DCL


O jovem caçador e a velha
Lucílio Manjate Brunna Mancuso Kapulana
dentuça
Bolsa nacional do
Dicionário afro-indígena Vanessa Alexandre Vanessa Alexandre
Livro
Os pescadores e suas filhas Cecília Meireles Cris Eich Global
Adaptação de Cristina
Joãozinho e Maria Agostinho e Ronaldo Walter Lara MAZZA
Simões Coelho
Koumba e o tambor Diambê Madu Costa Rubem Filho MAZZA

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O pente penteia Olegário Alfredo Iara Rachid MAZZA
Outros Contos africanos para Rogério Andrade
Mauricio Veneza Paulinas
crianças brasileira Barbosa
Denise
Contos da lua e da beleza perdida Sunny Paulinas
Nascimento
Karingana wa Karingana histórias Rogério Andrade
Mauricio Veneza Paulinas
que me contaram em Moçambique Barbosa

Histórias da avó: contos da mulher Recontadas por Burleigh


Siân Bailey Paulinas
sábia de várias culturas Mutén

FONTE: As autoras (2017)

Uma das pautas abordadas na formação foi a questão da nomenclatura da literatura para
desmistificar e esclarecer os profissionais sobre o que seria esta literatura de temática da cultura
africana e afro-brasileira. Com os livros em mãos, a equipe foi construindo um significado para
esta literatura, concluindo que –apesar de alguns dos escritores serem negros e escritores brancos
também escreverem a respeito- na maioria das histórias o assunto principal era a temática da
cultura africana e afro-brasileira. E, assim, a equipe foi refletindo acerca desta cultura e deste jeito
de tecer histórias. Um fato muito interessante foi vivenciado pela pedagoga quando foi procurada
por uma das professoras que trazia em suas mãos um livro de Georgina Martins e relatando que o
mesmo se referia à temática que estava estudando. Esta atitude levou a pedagoga a perceber que
a equipe já estava vendo os livros com outros olhos, assumindo uma atitude mais reflexiva acerca
dos mesmos.
As narrativas orais passaram a ser extremamente importantes dentro do projeto, uma vez
que a contação de histórias passou a fazer parte do mesmo. Para esta atividade, envolvendo a
oralidade, foram utilizados os livros de Celso Sisto: Lebre que é lebre não mia e Kalinda, a princesa
que perdeu os cabelos e outras histórias africanas e do livro Gosto de África: histórias de lá
e daqui, já citado anteriormente, De acordo com Fonseca (2012, p. 21), “as histórias narram o
que é genuinamente humano. Elas falam de nós mesmos. Por isso, precisamos tanto delas. As
histórias da literatura, antes de estarem nos livros, um dia foram entoadas, cantadas, dançadas,
declamadas.” Assim, no momento de contar a história, a contadora já reforça isto para a criança.
No entanto, sempre mostra que estas mesmas narrativas foram escritas através do reconto, como
é o caso dos livros supracitados, uma vez que acredita ser importante a criança conhecer o livro,
saber para que serve e o que este veicula.
Desta forma, o trabalho com a leitura dos livros é muito significativo em sala de aula. Assim,
os profissionais dão voz às palavras tecidas pelo autor, levando os pequenos a viajarem por um
mundo de imaginação e fantasia. É comum, ver crianças na Instituição com livros nas mãos.
Além de alguns comportamentos leitores, pode-se perceber que os mesmos fazem o reconto de
algumas histórias ouvidas, realizam a leitura pelas gravuras e demonstram grande interesse por
este tipo de suporte textual. Por isso, a importância deste material ser de qualidade e despido de
preconceitos e estereótipos em relação a determinadas culturas.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Os livros não deveriam fazer parte da rotina das crianças somente no CMEI, mas acompanhá-
la durante toda a vida, desenvolvendo nestas o hábito da leitura.
A participação dos pais na formação do leitor é essencial, pois esta formação deveria ser
iniciada pela família desde quando a criança nasce. Contudo, muitas vezes, estes não são leitores
e/ou não têm acesso a materiais de qualidade (ignorando muitas vezes o que é um livro bom) e
não se dão conta de como sua contribuição pode ser valiosa para despertar o interesse de seus
filhos pela leitura.
Pensando nisto e também como forma de promover uma aproximação entre as famílias
e um diálogo mediado pelo livro, os pais também foram privilegiados com esta temática. Dessa
forma, passou a compor o projeto a Sacola Viajante, onde as crianças levavam para casa o livro
para ser lido junto com os familiares e um caderno para que fossem relatadas as impressões
deixadas num momento como este. Este trabalho, além do engajamento das famílias, propiciou
uma riqueza incomensurável, uma vez que os relatados retornados por meio do caderno são de
uma profundidade e singeleza sem tamanho, retratando toda a beleza de um momento como este,
vivenciado pela família em torno do livro. Com certeza, este tipo de material comporá o acervo da
Unidade e fará parte do patrimônio da mesma.
O projeto desenvolvido ainda tem muito chão pela frente, haja vista que os estudos a
respeito do mesmo estão apenas começando e é de intensão das organizadoras investir muito
mais na ampliação do acervo da literatura de temática da cultura africana e afro-brasileira, tornando
este trabalho de caráter permanente. Os resultados já começam a aparecer, seja nas devolutivas
escritas registradas nos cadernos que acompanham a sacola Viajante, seja nas atitudes de
algumas professoras, que mostraram-se entusiasmadas com o projeto e já estão trazendo
livros de aquisição própria para dar continuidade ao trabalho ou ainda na percepção de que as
crianças negras se sentem mais representadas na Unidade, destacando através dos desenhos
características de sua aparência que aparecem retratadas nos livros e que agora mostram-se
positivas para as mesmas, como os cabelos e a cor da pele. Sem contar que, quando a professora
oferece massinha de modelar ou folhas de papel para que a criança desenhe o que mais lhe chamou
a atenção na história, é tão lindo ver seus desenhos, onde os personagens negros, de cabelos
cacheados se destacam em meio aos outros. As paredes do CMEI retratam uma nova história até
então esquecida e silenciada e quem entra naquele ambiente já percebe que aquele é um lugar
plural, onde a diversidade étnico-racial é trabalhada e respeitada e onde todas as crianças e suas
famílias têm a oportunidade de serem representadas, independente de sua cor, religião, gênero ou
idade.
Silva (2014, p. 61), em um artigo onde analisa as relações entre negros e brancos em
discursos brasileiros, analisa como a literatura pode operar para a manutenção de determinadas
hierarquias e chama a atenção para o fato de que “Histórias únicas nos conduzem ao erro, à
generalização ingênua, à estereotipia, ao exercício do autoritarismo. Persigamos as mil e uma
histórias.” Então, que este projeto, ainda que possa parecer ínfimo, possa contribuir com a quebra
desta hegemonia que até bem pouco tempo imperou na literatura infantil, sendo uma forma de

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enfrentamento e de visibilidade para personagens que por muito tempo estiveram à margem,
que através dele possamos espalhar muitas histórias, retratando as diferentes matizes de nossa
cultura.

3 A TÍTULO DE CONSIDERAÇÃO

A leitura ganha espaço enquanto ritual que reúne a família em torno de uma atividade
específica, solidificando relações e ampliando o repertório cultural de todos os envolvidos no
momento. Na Unidade, os pequenos, ao perceberem que a professora pegou um livro, já se
aglomeram nos tatames, sentando-se à espera da próxima história.
A parada para reflexão em torno da temática da literatura de temática africana e afro-
brasileira levou o grupo a perceber a importância deste trabalho na Unidade. De maneira geral,
percebeu-se uma participação maior dos pais, que deram retorno do trabalho por meio dos
registros no caderno que acompanha o livro na Sacola Viajante, anexando inclusive fotos da família
reunida no momento da leitura. Muitos pais têm deixado impresso nas páginas do caderno, relatos
carregados de sensibilidade e significações.
Nas constantes reavaliações feitas pela equipe diretiva,percebe-se que mesmo encontrando
alguns obstáculos há mais pessoas comentando sobre leitura de livros de envolvendo a temática
abordada e as paredes da Unidade retratam estas afirmações, mostrando que este trabalho é
viável e traz incomensuráveis ganhos para todos os envolvidos, contribuindo para a construção
de uma sociedade mais humana e para uma educação antirracista.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: 2010.

DEBUS, Eliane Santana Dias. O mundo feérico e suas releituras na contemporaneidade:


resenha. Revista Contrapontos Eletrônica, vol. 14, n. 1, janeiro-abril, 2014. Disponível em: www.
univali.br/periodicos. Acesso em 10 de julho de 2016.

______. As histórias de lá para leitores daqui: os (re)contos africanos para crianças pelas mãos
de escritores brasileiros. Relatório Programa Unisul de Iniciação à Pesquisa (PUIP). Florianópolis,
Unisul, 2007.

FONSECA, Edi. Interações com olhos de ler. São Paulo: Blucher, 2012.

REYES, Yolanda. La casa imaginaria: lectura y literatura en la primera infancia. Bogotá: Grupo
Editorial Norma, 2007.

Página 39
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e ideologia. São Paulo : Globo, 1984.

SILVA, Paulo Vinicius Baptista. Negros e brancos na Literatura e Literatura Infantojuvenil. In: Costa.
Hilton. Silva, Paulo Vinícius Baptista. Olhando para nós mesmos: alfabetização da diáspora e
educação da Relações étnico-raciais. Curitiba: NEAB-UFPR, 2014.

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NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA COMO POTENCIAL FORMATIVO NA
CULTURA NEGRA

CHAGAS, Jéssica Vicência das (UNESC)1


SILVA, Alex Sander da (UNESC)2

Resumo

Este trabalho pretende analisar a narrativa autobiográfica e questões étnico-raciais em Doze anos de
escravidão, a obra foi escrita por SolomonNorthup, um homem livre que foi escravizado.  Buscar-se-á
explicitar como a autobiografia pode contribuir nos estudos sobre as relações étnico-raciais. Bem como,
pensar em que sentido a literatura autobiográfica negra pode auxiliar na formação da cultura negra.
Considerando que as questões étnico-raciais estão diretamente ligadas à educação, sobretudo, a
partir da lei 10.639/03 que consistiu na obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e
africana nas escolas, cabe a nós, professores, orientarmos formas de trabalhar essas questões como
nossos alunos, gerando uma reflexão possível sobre a construção da própria identidade, a história e a
cultura brasileira.Isto posto, a proposta do artigo é aproveitar a questão da obrigatoriedade do ensino
da história e cultura da comunidade negra nos núcleos de educação básica e de ensino superior, a fim
de articular o conhecimento e a valorização de histórias afro-descendentes no contexto da formação
escolar. Parte-se então, do pressuposto de que se tomarmos os materiais literários disponíveis que
se aproximam do tema das relações étnico-raciais podemos produzir reflexões sobre a necessidade
da promoção da igualdade racial no ambiente escolar. Desse modo, estabeleceu-se como ponto de
partida do artigo a aproximação entre a Literatura autobiográfica e as questões étnico-raciais.Em um
primeiro momento faremos uma exposição dos principais pontos da obra escolhida como campo de
análise. Em seguida, trataremos da literatura autobiográfica, mais especificamente, de passagens da
obra Doze Anos de Escravidão.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Autobiográfica; Formação Identitária; Experiência; Memória


Coletiva.

1 Docente de Língua Portuguesa da SED/SC e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Formação Cultural
e Sociedade – GEFOCS do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESC. jvc@unesc.net
2 Docente/Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul
Catarinense – UNESC, líder do GEFOCS. alexsanders@unesc.net

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1 Introdução

As questões étnico-raciais estão diretamente ligadas à educação, sobretudo, a partir da


lei 10.639/03 que consistiu na obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e
africana nas escolas. Desse modo, cabe a nós, professores, orientarmos formas de trabalhar essas
questões como nossos alunos, gerando uma reflexão possível sobre a construção da própria
identidade, a história e a cultura brasileira.
Ao considerarmos isto, o principal fator motivacional deste trabalho deu-se a partir do
interesse em relacionar questões de identidade racial com o ambiente educacional, a fim de discutir
e ampliar o tema. Sendo assim, a proposta é aproveitar a questão da obrigatoriedade do ensino da
história e cultura da comunidade negra nos núcleos de educação básica e de ensino superior, a
fim de articular o conhecimento e a valorização de histórias afro-descendentes no contexto da
formação escolar.
Assim, partiu-se então do pressuposto de que se tomarmos os materiais literários disponíveis
que se aproximam do tema das relações étnico-raciais podemos produzir reflexões sobre a
necessidade da promoção da igualdade racial no ambiente escolar. Desse modo, estabeleceu-
se como ponto de partida do artigo aaproximação entre a Literatura autobiográfica e as questões
étnico-raciais.
Isto posto, pensou-se como campo de pesquisa a literatura autobiográfica de escravos,
mais precisamente a obra Doze Anos de Escravidão – TwelveYears a Slaveem título original.
Neste contexto, cabem algumas questões preliminares: Por que trazer uma obra estrangeira3
para este estudo? Quais as contribuições que esta obra pode oferecer aos estudos das relações
étnico-raciais no contexto escolar? Em que sentido a literatura autobiográfica negra pode auxiliar
na discussão sobre as relações étnico-raciais atualmente?
Na tentativa de responder a estas questões, primeiramente, apontamos que a escolha
da obra pautou-se no fato de ser um cânone na literatura de escravos e no crescente interesse
pela mesma a partir de sua adaptação cinematográfica em 2013. A adaptação homônima foi
vencedora de melhor filme do Oscar e de melhor filme dramático do Globo de Ouro, ambos em
2014. Em segundo lugar, podemos dizer que a tentativa aqui é possibilitar uma reflexão acerca
de conhecimentos que a literatura autobiográfica traz sobre pessoas negras que passaram pelo
horror da escravidão.
Neste artigo, pretende-se explicitar como a autobiografia Doze Anos de Escravidão pode
contribuir nos estudos sobre as relações étnico raciais. Bem como, pensar que sentido a literatura
autobiográfica negra pode auxiliar na discussão sobre as relações étnico-raciais atualmente.
Assim, numa primeira seção, faremos uma exposição dos principais pontos da obra escolhida
como campo de análise. Em uma segunda seção, trataremos da literatura autobiográfica, mais

3 Até o momento, não se conhece literaturas autobiográficas nacionais de pessoas que foram escravizadas.
Todas as obras do gênero “SlavesNarratives” que foram publicadas estão, originalmente, em língua inglesa.

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especificamente, de passagens da obra Doze Anos de Escravidão.

2 A AUTOBIOGRAFIA DE SOLOMON NORTHUP EM DOZE ANOS DE ESCRAVIDÃO

A obra Doze Anos de Escravidão apresenta a autobiografia de Solomon Northup, publicada


pela primeira vez em 15 de julho de 1853. Nela o autor relata o tempo passado como escravo
depois de ter nascido livre e de assim ter vivido por mais de trinta anos. A narrativa teve notoriedade
imediata após sua publicação, segundo Gates Jr (2012, p. 264) a obra:
Proporcionou a seus leitores [...] um relato detalhado da escravidão no Sul, incluindo as
táticas violentas de proprietários e feitores usadas para forçar os escravos a trabalhar e
os assédios sexuais e as crueldades ciumentas que as mulheres escravas padeciam por
parte de seus senhores e das esposas deles.

A narrativa vendeu em seus primeiros quatro meses de publicação 17 mil cópias e em


torno de 30 mil exemplares até janeiro de 1855. Recentemente a obra voltou a ter destaque no
meio acadêmico, particularmente, devido à sua adaptação cinematográfica em 2013. O livro traz
o relato de Solomon, que nasceu livre em julho de 1808 e era um violinista, filho de um ex-escravo,
casado e pai de três filhos, e que em 1841 foi enganado e vendido como escravo. Após 12 anos na
condição de escravidão, ele consegue de volta sua liberdade e escreve a autobiografia.
A obra foi um importante marco para o movimento abolicionista dos Estados Unidos, visto
que foi a “primeira a documentar um caso desses em detalhes” (GATES JR, 2012, p. 262), assim
como outras biografias de escravos que foram escritas e publicadas posteriormente. Somando-
se a isto, estas narrativas romperam com os conceitos comuns à época que somente os brancos
possuíam conhecimentos de leitura e escrita e que negros eram intelectualmente inferiores.
Nesse período, os negros eram ainda mais excluídos pela comunidade branca que se
considerava detentora da linguagem escrita. Neste ponto de vista, Northup vem romper com essa
ideia e marca o início da superação deste preconceito. Conforme Santos (2011), as narrativas de
escravos surgiram para delatar os sofrimentos do sistema de escravidão dos Estados Unidos.
Neste sentido, o autor foi conduzido a escrever e publicar suas memórias, não somente
como fonte de libertação de tudo que viveu, mas também por saber que sua narrativa de alguma
forma valeria para contribuir com a discussão sobre a escravidão no seu país e superar os conceitos
deturpados. Apesar de ter nascido e vivido livre antes de seu sequestro, Northup revela que esta
condição foi apenas uma casualidade, visto que toda a linha antecessora por parte de seu pai
havia sido escravizada e o mesmo fora libertado antes de seu nascimento.
Fica evidente que o autor, apesar de conhecer intimamente a escravidão da comunidade
negra, escreve somente sobre a sua relação com a escravidão.
Posso falar sobre a escravidão apenas na medida em que foi por mim observada — apenas
na medida em que a conheci e vivenciei em minha própria pessoa. Meu objetivo é dar uma
declaração simples e verdadeira dos fatos: repetir a história de minha vida, sem exageros,
deixando para outros determinarem se as páginas da ficção apresentam um retrato de
uma maldade mais cruel ou de uma servidão mais severa. (NORTHUP, 2014, p.17)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Na obra de Northup, destaca-se quão detalhadas são suas lembranças, pois além dos
locais por onde passou, o autor cita nomes de pessoas com as quais foi forçado a conviver e suas
experiências como escravo, desde as mais significantes até as mais ínfimas.
Neste relato, a fim de apresentar um relato completo e verdadeiro de todos os principais
acontecimentos da história de minha vida e de retratar a instituição da Escravatura tal
como a vi e conheci, é necessário falar sobre locais bastante conhecidos e sobre muitas
pessoas ainda vivas. (NORTHUP, 2014, p.42)

Segundo Benjamin (2012), a memória é fonte de experiência coletiva4


e olhando nesta perspectiva as memórias de Northup nos traz, além do desconforto perante o
sofrimento deste homem, um (re)conhecimento sobre os infortúnios vividos pela comunidade
negra, pois podemos depreender a complexidade de todos os momentos vividos pelo autor.
Objetivando manter-se vivo, Solomon é forçado a negar a si mesmo, distanciar-se de
sua identidade individual e apropriar-se da identidade de escravo fugitivo. Não podendo mais
assumir-se como homem livre, passa a viver como Platt, nome atribuído a ele na sua condição
de escravizado. Por meio da narrativa, Northup nos faz depreender que apesar de ter nascido um
homem livre e ter conhecimentos de leitura, escrita e música, que dificilmente outro escravizado
poderia ter, ele fora percebido tão somente pela cor de sua pele, portanto exerceria as funções
impostas como qualquer outro negro que vivera naquela época. Ele era então, somente mais um
em meio a tantos outros. Segundo Gates Jr (2012, p.260):
Northup passou a ser, de repente, um estranho para si mesmo, num local ainda mais
estranho, como, tendo seu dinheiro e seus documentos atestando o status de homem livre
sido roubados, e com uma surra espreitando qualquer tentativa de insistir na verdade, ele
foi forçado a assumir um novo e aterrorizante papel.

Acrescentando-se a isto, ele teve a difícil missão de não perder-se em si mesmo, pois estava
longe de sua liberdade e sua família, vivenciando então outra realidade que nunca verdadeiramente
conhecera, buscando:
Não ofuscar a seus traços psicológicos ao ponto de não mais almejar a liberdade que
era sua por direito e, acima de tudo, não cair no esquecimento profundo em função dos
traumas. (ALMEIDA; ROCHA, 2014, p. 8).

Apesar de ter sido publicada há mais de 160 anos e se tornado um sucesso na época, a
narrativa volta à tona após sua adaptação ao cinema, releitura vencedora do Oscar de melhor filme
em 2014, a obra trata com muito realismo de temas pouco debatidos, mas de enorme importância
para a sociedade.

3 Literatura autobiográfica e relações étnico-raciais

Quando tratamos da autobiografia como parte integrante da literatura, muitos são os

4 O conceito de experiência coletiva faz referência ao ensaio obtido em Walter Benjamin – Obras escolhidas.
Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin.
São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 114-119.

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pontos contraditórios, pois diversas vezes os próprios críticos literários divergem sobre quais são
os limites e o que pertence ou não ao campo literário. Neste sentido, no presente artigo, partiremos
do princípio que a autobiografia é sim parte integrante da literatura, visto que para Lejeune (2008
apud Soares 2012, p. 3) a autobiografia é: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real
faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade”.
Segundo Martins (2010, p. 1) a historicidade da autobiografia justifica-se pois, “os elementos
constitutivos da memória, individual ou coletiva são os acontecimentos vividos pessoalmente e
pelo grupo e pela coletividade à qual a pessoa pertence”. Deste modo a vivência pessoal de Northup
e a experiência coletiva da comunidade a qual pertencia têm uma fundamental importância para a
sociedade, pois a obra citada não trata somente do tempo passado como escravo e meramente da
escravidão, mas sim de toda uma luta, resiliência e resistência da comunidade negra, representadas
por Northup. Segundo a introdução (2014, p.9), o livro é:
Narrativa de um cidadão de Nova York sequestrado em Washington em 1841 e resgatado
em 1853 de uma plantação de algodão perto do rio Vermelho, na Louisiana.

Ao lermos a obra de Solomon, nos deparamos com diversos temas de grande relevância
histórica e com características singulares, que segundo Santos (2011), são características comuns
nas narrativas de homens e mulheres que foram escravizados, dentre elas estão o enfoque na
violência contra as mulheres, a forte ligação com a religiosidade, a linguagem e a escrita como
forma de se libertar da opressão.
A obra também aborda de modo ímpar a violência sofrida pelas mulheres negras, as quais
serviam aos seus “senhores” muito além do que as mesmas gostariam, e por isto sofriam também
com a tirania de suas esposas. A história de Eliza e seus filhos é um claro exemplo disto.
Eliza era escrava de Elisha Berry, um homem rico que vivia nos arredores de Washington.
Ela nascera, acho que disse, na fazenda dele. Havia alguns anos o homem caíra em
dissipação e sempre discutia com a esposa. Logo após o nascimento de Randall, eles se
separaram. Deixando a mulher e a filha na casa que sempre haviam ocupado, o homem
construiu uma moradia ali perto, na mesma propriedade. Para essa casa levou Eliza; e, com
a condição de que viveria com ele, ela e os filhos seriam emancipados. (NORTHUP, 2014,
p. 44)

Eliza é, no relato, a representação do que viveram inúmeras das mulheres negras


escravizadas, tinham filhos com seus senhores, pois viviam em total situação de servidão. No
caso de Eliza, por ter vivido como esposa de Elisha Berry, vivendo na mesma propriedade de sua
ex-mulher e filha,ela vira vítima da ira dessa família e acreditando que vai ser liberta junto com os
filhos, acaba em uma casa de escravos para ser vendida novamente. Nas palavras de Northup:
Exultante à perspectiva da liberdade imediata, ela se vestiu, e à pequena Emmy, em
suas melhores roupas, e trataram de acompanhá-lo com felicidade no coração. Ao
chegar à cidade, em vez de serem batizadas na família de homens livres, ela foi entregue
ao comerciante Burch. O documento que fora lavrado era um certificado de venda.
(NORTHUP, 2014, p. 45)

Como penalidade ainda maior para tudo que vivera Eliza acaba sozinha, sem os filhos, que

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

nunca mais voltara a ver. Northup, através da própria autobiografia, citando a passagem da vida
de Eliza, vem dar visibilidade à difícil situação vivida pelas escravas que sempre foram silenciadas,
tiveram seus anseios subjugados eque vivenciaram tantos momentos pesarosos quanto os
homens.O mesmo acontece quando Northup narra a vida de Patsey, que era a melhor colhedora
de algodão da última fazenda em que o autor viveu. Patsey era punida com frequência, não que
não conseguisse alcançar a meta na colheita de algodão, mas sim “porque quis o destino que
ela fosse escrava de um senhor atrevido e de uma senhora ciumenta” (2014, p. 153). No dizer de
Northup:
A pobre moça era realmente um objeto de dar pena. “O velho Cara de Porco”, como
Epps era chamado quando os escravos estavam sozinhos, surrara Patsey mais severa
e frequentemente do que nunca. [...] Ele a açoitava, apenas para gratificar sua senhora;
punia Patsey numa extensão quase intolerável por uma ofensa que ele próprio era o único
e irremediável causador”. (2014, p. 160)

Como é possível perceber, em diversos momentos da obra, Solomon expõe a trajetória


de mulheres e crianças negras que sofreram durante o período da escravidão com o domínio de
seus senhores e senhoras, sendo vítimas frequentes da violência presente nas fazendas em que
viviam, tanto quanto o próprio Northup ou qualquer outro homem que sofrera com a escravidão.
Neste sentido, o autor vem ao encontro com as ideias de Halbwachs (2006, p. 73), que a memória
autobiográfica anda em conjunto com a memória social, pois toda a história de vida faz parte de
uma história coletiva.
Em outro momento importante desta narrativa, destaca-se a forte relação com a religiosidade.
Assim como em outras narrativas de escravos, a religiosidade ganha um lugar de destaque na vida
de Northup e daqueles que passaram por diversos momentos de infortúnio perante a situação da
escravidão. Para Azevedo (2014, p. 222), “a historiografia considera que a religião é o centro vital
da vida africana, permeando todas as instâncias da vida social. Ela não está separada da vida,
como um departamento descolado”. Observa-se que para Northup, a religiosidade, além de ter
sido passada a ele como princípio, também aparece como prática pessoal de fé e força impulsora
nos momentos de maior dificuldade. Nas mais variadas passagens da narrativa, constata-se a
presença do apego à fé e ao espiritual, como pode-se destacar no momento em que o autor se vê
aprisionado e ainda sem entender o que de fato acontecera, recorre a orações:
Foi então que começou a ganhar espaço em minha mente a ideia, a princípio difusa e
confusa, de que eu fora sequestrado. Mas isso me parecia impossível. Deveria ser um mal
entendido – algum engano fatídico. Não era possível um cidadão livre de Nova York, que
não fizera mal a homem nenhum, tampouco violara qualquer lei, ser tratado de forma tão
desumana. [...] Senti que não havia confiança ou misericórdia em homens desprovidos
de sentimentos; e, voltando-me para o Deus dos oprimidos, deitei a cabeça sobre minhas
agrilhoadas mãos e chorei lágrimas amargas. (2014, p. 34)

O mesmo acontece durante a primeira agressão que Northup sofreu ainda no entreposto
de escravos, localizado muito próximo ao Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, D.C:
Golpe após golpe foi infligido sobre meu corpo nu. Quando seu incansável braço finalmente
se fatigou, ele parou e perguntou se eu ainda insistia em ser um homem livre. Eu insisti, e

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então os golpes recomeçaram, mais rápidos e com mais força, se é que isto é possível.
[...] A essa altura o diabo encarnado praguejava as imprecações mais demoníacas. Com
a força dos golpes o remo se quebrou, deixando o inútil cabo nas mãos de meu agressor.
[...] Roguei por misericórdia, mas minhas preces só foram respondidas com imprecações
e novos golpes. [...] Só posso comparar meus sofrimentos às agonias flamejantes do
inferno! (NORTHUP, 2014, p. 38-39)

Como se vê, a religiosidade está conectada à primeira experiência de Solomon como


escravo. No momento em que se vê preso em um entreposto de escravos e tenta, de forma ineficaz,
explicar a sua situação, Northup recorre a orações e referenciais espirituais para tentar aliviar o seu
sofrimento.
Há também na obra, uma certa forma de refutar a crença religiosa dos senhores e senhoras,
que se apegavam à religião e seus preceitos.Os mesmos faziam suas pregações aos escravos e
jejuavam aos domingos, o chamado Dia do Senhor, mas durante os dias posteriores mantinham
atitudes que não condiziam com a prática e os preceitos religiosos. No dizer de Northup:
Como Willian Ford, seu cunhado, Tanner tinha o hábito de ler a Bíblia para seus escravos
no domingo, mas num espírito bastante diferente. Ele era um comentador impressionante
do Novo Testamento. No primeiro domingo após minha chegada àquela fazenda, ele
reuniu todos e começou a ler o décimo segundo capítulo de Lucas. Quando chegamos
ao quadragésimo sétimo verso, ele olhou deliberadamente em volta de si e continuou:
“O servo que, apesar de conhecer a vontade de seu senhor” – aqui ele fez uma pausa,
olhando em torno mais expressivamente do que antes e recomeçando – “apesar de
conhecer a vontade de seu senhor, nada preparou” – outra pausa aqui – “nada preparou e
lhe desobedeceu, será açoitado com numerosos golpes”. (NORTHUP, 2014, p. 104 – 105)

Como é possível observar, os senhores das fazendas eram religiosos e tinham o hábito de
fazer a leitura da Bíblia aos escravos, entretanto não reconheciam estes homens e mulheres como
pessoas como eles, e sim como animais, contrariando e deturpando os preceitos do cristianismo.
Olhando para a narrativa de Northup, podemos depreender que a autobiografia de escravos não
pode ser facilmente desassociada da religiosidade. Para Santos (2011), separar as narrativas de
escravos da experiência religiosa seria dificultar a compreensão das primeiras manifestações
culturais da comunidade negra. Nas palavras de Santos:
Para entender o espaço político e cultural nos quais essas manifestações ocorreram, não
se pode excluir o contexto religioso e as devidas interações entre senhores e escravos,
igreja e comunidade, educação e religião. (SANTOS, 2011, p. 2)

Nesta perspectiva, a inserção da temática religiosa na narrativa é, de fato, além de uma fonte
de esperança diante de inúmeros sofrimentos vividos pelo autor, como também uma janela na qual
podemos vislumbrar a hipocrisia e o paradoxo da vivência religiosa da comunidade escravagista.
Outro ponto de destaque na obra é a identidade de Solomon Northup perante as diversas
dificuldades. Vivendo por doze anos em regime de escravidão, o autor apresenta, além de sua
própria identidade, uma identidade coletiva.
De acordo com Munanga (2012, p.9), a “identidade individual faz parte do processo de
construção do ser, significando sua existência”. Neste sentido, há uma interrupção da identidade
de Solomon, que volta a existir após sua libertação e abre-se espaço para a identidade coletiva

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

dos negros escravos do século XIX, portanto, ele não carrega somente o seu sofrimento, mas o de
todos que passavam pela mesma situação. Para Munanga (2012, p. 9), identidade coletiva é:
Categoria de autodefinição ou autoatribuição, que sem dúvida carrega uma carga de
subjetividade e de preconceitos em relação aos outros grupos. A identidade coletiva, em
vez de ser uma autodefinição ou autoatribuição, pode ser uma identidade atribuída por
outro grupo através de outros sinais diacríticos que não foram selecionados pelo próprio
grupo.

Por conseguinte, há em diversas passagens da narrativa a auto atribuição de Solomon


como sendo ele um escravo e essa percepção da condição de escravo é o que nos faz perceber
o quanto o olhar do outro influencia na nossa construção de identidade. Considerando que era
por meio da própria identidade que Solomon se afirmava como homem livre, não era suficiente
prendê-lo, seus sequestradores precisavam mudar a sua condição de homem livre e para isso lhe
deram além de um novo nome, uma nova identidade, para inclusive inferir uma relação de poder,
pois a identidade faz com que uma pessoa se reconheça como tal, é o que a define. Conforme
Coelho Silva (2015, p.2):
A produção das identidades e da memória são permeadas por relações de poder que
influem de maneira direta nas posições dos indivíduos em sociedade, assim a manipulação
de seus conteúdos é perfeitamente possível, já que há interesses a serem atendidos, que
nem sempre representam o interesse da maioria.

Ainda segundo o autor, as “relações de poder influem na construção dessa memória


coletiva e individual” e é claramente possível perceber o quanto estas relações influenciaram na
identidade do Solomon, que por inúmeras vezes se considerou realmente um escravo e não se via
mais como um homem que foi escravizado.
Embora tenha sido liberto 12 anos após seu sequestro, e consequentemente, voltando a
figurar verdadeira identidade de Solomon Northup, os traços deixados pela identidade de Platt
nunca foram esquecidos por ele e também não passam despercebidos pelo leitor desta narrativa.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pouco, ou nada, se fala dos detalhes do infindável sofrimento vivenciado pelos escravos, e
isto é algo que não devemos fechar os olhos, pois infelizmente o que foi vivido por eles continua
tendo sérios efeitos na construção da identidade da sociedade atual. O que conhecemos até agora,
na ampla maioria das vezes, não é sob a perspectiva do próprio escravizado e já que possuímos
cânones literários que podem nos trazer fundamentos históricos e que nos mostra que os negros
que foram escravizados não eram meramente escravos, mas sim pessoas reais, como qualquer
um de nós e que repentinamente se viram nesta situação degradante sem nenhum direito sobre a
própria vida.
Solomon Northup nasceu livre e precisou ser sequestrado e escravizado para conhecer
o que significado verdadeiro da escravidão. A partir da construção deste artigo, posso dizer que
para nos enxergarmos livres, precisamos conhecer os tão execráveis detalhes da escravidão.

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Precisamos conhecer, debater e aprofundar o assunto, pois por mais lastimoso que tenha sido
este passado, ele é real e deixou inúmeras marcas que não se dissiparam, mesmo com o passar
dos anos.
Já que este tema precisa ser debatido, é significativo que o façamos com uma história real,
que apesar de muito impactar, também tem muito a ensinar. De acordo com Gonçalves e Silva
(2010, p.41) “se propõe escola onde cada um se sinta acolhido e integrante, onde as contribuições
de todos os povos para a humanidade estejam presentes, não como lista [...], mas como motivos
e meios que conduzam ao conhecimento”. Sendo assim, mesmo partindo de um assunto doloroso
como a escravidão podemos discutir inúmeros pontos importantes da sociedade e da identidade
negra.
Ao longo da construção deste artigo, buscou-se evidenciar em aspectos narrativos
o potencial da literatura autobiográfica, apresentando se há ou não limites para a utilização de
narrativas autobiográficas como fonte de reflexão sobre as questões étnico-raciais, visto que esta
pode ser interpretada como uma recordação real e detalhada do passado.
Neste sentido, pretendíamos demonstrar que a literatura autobiográfica pode contribuir nas
reflexões a respeito das temáticas exigidas pela lei 10.639/03. Desse modo, entendemos que sua
potencialidade está em sua forma de narratividade e de experiência vivida pelo próprio autor. Essa
narratividade e experiência conduz o leitor a uma compaixão reveladora e solidária a condição
submetida homens e mulheres negras.

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CAROLINA MARIA DE JESUS E A “REFAVELA”: A LITERATURA
PERIFÉRICA NO CURRÍCULO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA SALA
DE AULA. IDENTIDADE E PERTENCIMENTO.

SANTOS, Ana Paula Freitas dos (UFRGS – Uniafro)1

Resumo

O presente trabalho relata a realização de uma intervenção pedagógica realizada junto a uma turma de
Ensino Médio de uma escola pública estadual do município de Porto Alegre, cuja temática foi a discussão
sobre os conceitos de raça, etnia e empoderamento a partir de estudos acerca da escritora negra
Carolina Maria de Jesus no currículo regular da disciplina de Literatura. A intervenção foi desencadeada
tendo como base as proposições do Curso de Aperfeiçoamento UNIAFRO: Política de Promoção da
Igualdade Racial na Escola – 3ª ed., oferecido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
através do Centro de Formação de Professores (FORPROF) no segundo semestre do ano de 2016.

Palavras-chave: Afrobetização. Carolina Maria de Jesus. Cultura Afro-brasileira. Currículo.


Empoderamento. Etnia. Lei n.º 10.639/03. Favela. Identidade negra. Literatura Afro-
brasileira, Literatura Periférica. Pertencimento. Raça.

1 Professora da Rede Pública do Estado do Rio Grande do Sul, licenciada em Letras – Português/Literaturas,
com aperfeiçoamento em Política de Promoção da Igualdade Racial na escola

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

A escola é “a nossa segunda casa” diz o ditado popular.


A escola é o lugar onde os pais enviam os filhos “para ser alguém na vida”, segundo a
filosofia de vida dos mais excluídos.
A escola ainda resiste numa sociedade capitalista e excludente.
A escola forma os cidadãos do futuro do país, e esses alunos são, para os professores, a
esperança de uma sociedade mais humana, mais igualitária e livre!
Livre da pobreza, do preconceito e do racismo que mata, dia a dia, um grande número de
jovens negros no Brasil.
A importância da escola para a juventude negra é vital!
O acesso a esse espaço de poder garante, muitas vezes, desde a única refeição do dia até
a possibilidade da entrada em um curso superior e o almejado diploma capaz de trazer o emprego
e a subsistência da população negra.
E, sonhando alto, como todo educador comprometido, vislumbro a existência de uma
sociedade onde os negros estejam presentes em todas as classes, principalmente, na parcela
mínima que compõe a elite brasileira.
A execução da Lei n.º 10.639/03, que trata da obrigatoriedade do ensino da História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena, ainda não está sendo totalmente posta em prática. Após 14 anos
de sua promulgação muitas escolas ainda contam somente com ações individuais de docentes,
conforme nos diz Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2017), professora emérita da Universidade
Federal de São Carlos e relatora da comissão que elaborou o parecer do Conselho Nacional de
Educação para as diretrizes curriculares da proposta.
Minhas ações individuais como docente em uma escola pública estadual localizada no
município de Porto Alegre me levaram para uma jornada de pesquisa e aperfeiçoamento constante
acerca desse tema que me é tão caro. Pois, sendo uma mulher negra, a primeira beneficiada desse
estudo sou eu, minhas raízes, minha cultura e minha identidade afro-brasileira. Consequentemente,
meus alunos de todas as etnias, têm se descoberto como indivíduos e cidadãos plenos.
Para tal fim faz-se necessária a reforma do currículo por meio da “descolonização” das
narrativas e inserção de elementos excluídos ao longo do processo de formação da História e
Cultura Brasileira

Literatura Afro-Brasileira

Quando tomei posse como professora de Literatura no Ensino Médio e recebi os conteúdos
programáticos encontrei um item presente em todos os períodos literários e literaturas: Literatura
Afro-Brasileira. Fiquei surpresa por um lado: que bom, já está no currículo! E decepcionada por
outro: o que é Literatura Afro-brasileira? Não saberia dizer, mesmo formada em Letras.

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A memória me levou para um lugar desconfortável: a fala de meus professores na graduação,
os quais insistiam em dizer que Cruz e Souza queria ser branco, que Lima Barreto era alcoólatra,
e não faziam nenhuma menção ao tom de pele mulato do grande gênio Machado de Assis.
Apagamento, silenciamento, exclusão. Era esse o aprendizado da Literatura Afro-brasileira
na Universidade.
Para contrapor esta prática de silenciamento penso que, se vamos ensinar a presença
africana na cultura brasileira, temos que mostrar a história da escravidão do ponto de vista do
dominado, do colonizado, do africano, que foi trazido numa migração forçada e em porões de
navios “tumbeiros”; onde quem resistia à exaustiva viagem se tornava escravo e objeto de posse
de alguém.
É preciso que o professor tenha sede de conhecimento, pois deverá revisar a historiografia e
buscar esse conteúdo que foi propositadamente apagado de nossos currículos. Aliás, precisamos
estudar África e América Latina, pois até hoje, muitas vezes nem no ensino superior o acesso a
essas disciplinas se faz presente.
Neste sentido, antes de apresentar ao meu grupo de alunos a figura de Carolina Maria de
Jesus, representante da Literatura Afro-Brasileira da década de 60 e escolhida por eles durante
a Semana de Consciência Negra como referência para aprofundamento dos estudos, optei por
abordarmos os literatos abaixo referidos, expoentes que nos auxiliam na tarefa de abordarmos a
temática com o respeito e profundidade que ela merece.
Como representante da poesia social e engajada contamos com a figura do poeta
abolicionista Castro Alves, autor do lendário poema “Navio negreiro”. Esse poema toca a alma
do leitor ao expor a violência e a desumanidade da escravidão. Castro Alves era um defensor da
Abolição da escravatura. E, sobre essa questão, é necessário esclarecer ou “escurecer” a passagem
da História: não foi a Princesa Isabel quem deu a liberdade aos negros. Foram os próprios negros
que sempre resistiram a esse domínio de várias formas, dentre elas fugindo para os quilombos!
Sobre isso podemos evocar os nomes de Zumbi, de Dandara e demais protagonistas
dessa luta. Entre eles, inclusive, escravos indígenas e brancos pobres. O Quilombo dos Palmares
foi a maior concentração de resistência negra na América Latina. Também é preciso citar os outros
milhares de quilombos espalhado pelo Brasil e que hoje estão sendo reconhecidos como territórios
quilombolas.
Na escola do Simbolismo contamos com o “cisne negro” Cruz e Souza, que eleva seu
sofrimento de miséria e preconceito racial através dos desejos de sublimação da matéria e de um
mundo etéreo, branco, como se imagina o céu. A sua história de vida é peculiar: filho de escravos,
nasceu durante a vigência da Lei do Ventre Livre e recebeu de seu senhor acesso aos estudos e à
profissão de jornalista. Porém, nada disso o impediu de sofrer preconceito e racismo, o que o levou
a tristeza e à doença. É considerado o maior representante do Simbolismo Francês no Brasil.
Assim como Cruz e Souza, Lima Barreto era jornalista e um crítico do Brasil republicano.
Trouxe o tema do preconceito racial para suas obras, relatando em obras ficcionais suas passagens
por hospícios e o seu vício do álcool. De modo geral, abordou em sua obra temáticas sociais cujas

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

narrativas davam protagonismo aos pobres, boêmios e arruinados. Por meio da sátira, criticava de
maneira sagaz e bem-humorada os vícios e corrupções da sociedade e da política. Foi severamente
criticado por alguns escritores de seu tempo por seu estilo despojado e coloquial, que Manuel
Bandeira chamou de “fala brasileira” e que acabou influenciando os escritores modernistas.
A esses três escritores supracitados soma-se o mestre e gênio da Literatura Brasileira
e Ocidental: Machado de Assis. É de suma importância a colocação de Machado na Literatura
Afro-Brasileira: um mulato, nascido no Morro do Livramento - também conhecido como “Pequena
África” - no Rio de Janeiro. Machado ascendeu às mais altas rodas dos intelectuais e burocratas
brasileiros e teve uma vida discreta, sem grandes tragédias pessoais. Mas, se analisarmos sua
obra com cuidado, veremos a crítica à sociedade escravocrata da época, que vivia como parasita
da mão de obra africana. Como parte dessa sociedade, a criticou duramente com sua fina ironia.
Além destes, junto com os nomes de Luiz da Gama e Elisa Lucinda temos o que podemos
chamar de grandes nomes da Literatura Afro-brasileira. Nós trabalhamos também a obra do Poeta
da Consciência Negra, Oliveira Silveira e sua luta pela mudança da data da Consciência Negra de
13 de maio pelo dia 20 de novembro, morte de nosso herói negro, Zumbi dos Palmares. Oliveira é
gaúcho e isso aproxima mais a identidade Afro-gaúcha de nossos alunos negros.
Ao estudarmos estes autores, para mim, estava contemplada então a Literatura Afro-
Brasileira, feita por escritores negros de vários estados do Brasil, inseridos dentro dos diversos
períodos literários da Literatura Brasileira, enfim, na linha do tempo da História do Brasil.
Porém, a Literatura, uma ciência que trabalha com a arte da linguagem, tem um poder que
ultrapassa o tempo e se eterniza nos corações dos leitores: a comoção!
Nesse grupo de escritores, uma se destacou por ter tocado o coração dos alunos que a
pesquisaram: Carolina de Jesus. Um aluno, que faltava muito e não se interessava pelas aulas foi o
sorteado para pesquisar a obra de Carolina. No dia da apresentação, com os olhos cheios d’água,
nos contou a história da catadora de papel que se tornou escritora. Uma história de superação que
fala à alma dos alunos, muitos deles, moradores da periferia. Uma história de uma mãe, guerreira,
batalhadora, que fez eles se lembrarem de suas mães. Uma escritora negra, favelada, catadora
de papel, que publica um livro de sucesso, traduzido para outras línguas e que vai ser o primeiro
retrato fiel das favelas brasileiras, para o mundo ler, conhecer e reconhecer como Literatura. Uma
história que se aproxima dos contos de fadas!
A partir daí, vi a necessidade de colocar em definitivo a escritora Carolina de Jesus
no currículo. Trazer a Literatura Afro-brasileira e Periférica para uma reflexão constante do lugar do
negro na sociedade que, depois de ocupar o papel de escravo, ocupa agora o lugar do favelado:
na periferia, na margem, na miséria e na fome.
O retrato da favela dos anos 60 não mudou muito no século XX, mas muito se apagou dos
artistas, escritores e sambistas dessa periferia.

Carolina Maria de Jesus e a “refavela”: a literatura periférica no currículo

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“[...] Refavela, aldeia de cantores, músicos,
e dançarinos pretos, brancos e mestiços.
O povo chocolate e mel.
Refavela, a franqueza do poeta; o que ele revela;
o que ele fala, o que ele vê.”
(Gilberto Gil)

Favela, periferia, margem, comunidade.


Numa linha de tempo da história da Literatura Brasileira, formada predominantemente por
homens brancos e letrados, surge uma mulher negra e com pouco estudo. Uma transgressão, uma
história de sucesso, uma representante de um povo que luta pela sobrevivência, resiste e vence!
Ela, diferente de Cruz e Souza, Lima Barreto e Machado de Assis, não tinha curso superior
nem profissão que provesse seu sustento. Foi no lixão que encontrou sua paixão: os livros! Foi
no lixão que catou folhas de papel em branco onde escreveu seus diários que resultaram no livro
Quarto de despejo: diário de uma favelada.
Para justificar a entrada dessa escritora em definitivo no currículo da escola precisei buscar
o conceito de Literatura Afro-brasileira e, nesse percurso, encontrei um professor que assim como
eu, é autodidata e está sempre se atualizando e pesquisando o tema, o colega Breno Lacerda. O
conceito abaixo foi extraído do conteúdo de seu blog2
[...]O conceito ainda está em construção,mas tem o ponto de vista culturalmente identificado
à afrodescendência como fim e começo. Se a Literatura é veículo de conscientização e
mobilização, a Literatura Afro-brasileira exalta a herança étnica e redefine a expressão
cultural afro-brasileira. Na segunda metade do século XVIII, início do século XIX, já temos
algum registro, mas o público leitor ainda é formado pelo homem branco. E segundo Zilá
Bernd, os temas e autores negros são aqueles visíveis e ativos que pretendem transformar
sua comunidade e vida, através de ações afirmativas, solidariedade e construção de
autoestima. A Literatura Afro-brasileira é uma criação vinculada com a África que nos
deixou um legado cultural vasto e primoroso. É através do conhecimento deste legado que
a criança negra será capaz de identificar-se enquanto pessoa pertencente ao grupo negro
e orgulhar-se de suas origens e de sua história. (LACERDA, 2014)

Carolina de Jesus não é a primeira escritora negra do Brasil. Na pesquisa realizada verifiquei
que Maria Firmina dos Reis, mulher e negra é considerada a primeira escritora brasileira a introduzir
o Romantismo no Brasil. Obviamente seu nome não consta nos livros didáticos, nem nos manuais
de Literatura. Assim como muitas outras, foi apagada da história.
Mas, e então: por que a escolha de Carolina?
Porque ela traz a voz da favela, do favelado. Ela é o sujeito na sua narrativa: traz consigo a
condição do negro excluído da sociedade. Tem a consciência de que a cor de sua pele é a mesma
da maioria dos moradores da favela. Ela é a consciência negra. Ela se move na condição de mulher,
na condição de mãe sozinha, com três filhos para alimentar. Traz a solidariedade para com seus
iguais, apesar de não aceitarem o seu sucesso. Traz a autoestima para a comunidade do Canindé.

2 Blog Breno Africanidades. Disponível em: http://brenoafricanidades.blogspot.com.br/search/label/


Conceito%20de%20Literatura%20Afro-brasileira. Acessado em 03/03/2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Os jovens alunos negros e negras do grupo com o qual desenvolvi essa proposta se
identificaram com a trajetória de Carolina, que viu na leitura e na escrita o caminho da liberdade.
Orgulharam-se de serem negros como Carolina era.
Eu, professora, me vi mergulhada nessa escrita que é feita de fome, suor e lágrimas.
Impossível não se emocionar em todos os encontros onde lemos os trechos desse “Diário de uma
favelada”.
Carolina traz para os nossos dias a história de uma das primeiras favelas de São Paulo:
Canindé. Lugar para onde ela se mudou depois de perder o trabalho de empregada doméstica.
Nas aulas de Literatura, sempre faço a contextualização da obra e uma reflexão sobre a
atualidade desse trabalho e suas relações de simetria com a contemporaneidade. Neste sentido
que aqui trago o conceito de refavela do cantor e compositor Gilberto Gil.
Refavela é o lugar para onde somos transportados ao colocar em perspectiva a favela nos
anos 60 e a favela de hoje, no século XXI. Quais seriam as diferenças? Muita coisa mudou, para
melhor. Até o nome “favela” vira “vila”, se lá tiver água encanada e luz. Na favela nasceu o samba.
Hoje, o funk, misturado com o rap dá samba também!
Mas, o que permanece igual? O sonho de morar no asfalto. O sonho com o centro da
cidade. O sonho da paz, sem a violência do tráfico e da polícia. Nos anos 60, as atividades ilícitas
eram pequenos roubos, onde o que era roubado ficava escondido nos barracos. Hoje, o tráfico de
drogas faz parte do dia a dia da favela e além do medo, traz a morte de muitos sonhos juvenis e o
luto das mães sem os seus filhos. O principal ainda não mudou: a miséria, a exclusão, o quarto de
despejo da cidade ainda é a favela. E é essa percepção que encontramos no trabalho de Gilberto
Gil. Inclusive, em sua biografia encontramos uma passagem de sua experiência na cidade da
Lagos, situada na Nigéria, onde permaneceu durante um mês:
(Gil disse ter reencontrado) [...] a paisagem suburbana dos conjuntos habitacionais
surgidos no Brasil a partir dos anos 1950, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-
as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por
várias razões, acabaram se transformando em novas favelas. (GIL, 2013, pág.190)

Esse diálogo entre Carolina e Gil não é gratuito. Carolina além de escritora era compositora
de sambas e, em Literatura, cada vez mais estudamos a canção popular na condição de poema: a
letra de música está carregada de poesia e lirismo.
Neste sentido, como proposta de releitura da obra de Carolina, pedi aos alunos que
escrevessem poemas sobre a favela, ou pesquisassem na Música Popular Brasileira, sambas ou
raps que a trouxessem como tema.
Nosso diálogo foi riquíssimo: muitos poetas foram pesquisados e muitos raps que falam em
superação e combate à violência, preconceitos e racismo oportunizaram o envolvimento de alunos
inseridos na cultura “Hip-Hop” - expressa em suas vestimentas, danças e vocabulário próprios.
Carolina presta-se também como referência para abordagem de outro conceito, o de
Literatura Periférica.

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A Literatura Periférica tem sido tema de debates nas Feiras Literárias no Brasil e na
Europa. Como marco de publicação desta corrente temos o romance Cidade de Deus3
de Paulo Lins.
Conforme pode ser observado na tese de doutorado pesquisador Mário Augusto Medeiros
da Silva (Unicamp/2011), é importante a reflexão acerca do compromisso com o desvelamento
dos pontos de contato e distanciamento entre as ideias de Literatura Negra e Literatura Periférica:
As ideias de Literatura Negra e Marginal/Periférica aparecem no Brasil ao longo do século
XX. Estão intimamente ligadas às formas de associativismo político-cultural dos grupos
sociais de origem. Geraram um número significativo de autores, temas, proposições
estéticas e políticas. Existem escritores que se atrelam àquelas ideias imediatamente e
as defendem; outros, apesar de negros e/ou periféricos, as repelem. Todavia, quase todo
escritor negro e periférico teve, de alguma maneira, de se referir a elas ou foi discutido
nesse diapasão, quando surgiu na cena pública como autor. Isso provoca discussões
interessantes: o escritor negro/periférico é necessariamente autor de uma Literatura
Negra/Periférica? Na passagem de personagem a autor, o que é tematizado literária e
socialmente por esses escritores? Por que as ideias de Literatura Negra/Periférica não
surgem e se desenvolvem como proposições estéticas “puras”, tendo que lidar geralmente
com as questões sociais nas quais seus grupos de origem estão envolvidos? (SILVA, 2011)

Mas e Carolina de Jesus, que surgiu antes de Cidade de Deus? Como inseri-la nesse
contexto da Literatura Periférica? Novamente em SILVA (2011) encontramos pistas para essa
compreensão:
Foi selecionado um recorte temporal que abarcasse o período contemporâneo, onde
uma autora negra brasileira se torna mundialmente famosa por sua escrita e tema, tão
singulares quanto sua origem social. Em 1960, a favelada catadora de papéis Carolina
Maria de Jesus sai do anonimato com a publicação de Quarto de Despejo. Por uma
série de razões, seu livro se torna um sucesso enorme e, por tantas outras, entre 1962-
1977, ela desaparece progressivamente até sua morte, quase tão anônima quanto seu
surgimento. Em 1997, outro autor negro de origem favelada se torna um escritor discutido
quase quotidianamente, repetindo e ampliando o sucesso de De Jesus: Paulo Lins publica
Cidade de Deus, um dos grandes romances da década. Entre ele e De Jesus existem
uma série de aproximações, que são discutidas na tese. Mas também é interessante a
maneira como eles lidaram com as questões sociais referentes a seus grupos e condições
originais, bem como as ideias estéticas que seus pares, ativistas, escritores e intelectuais
negros lograram criar. (SILVA, 2011)

Partindo deste entendimento planejei a aula sobre Carolina de Jesus. Aproveitei o tema
que estava sendo estudado pelas turmas do terceiro ano do Ensino Médio (Modernismo - mais
especificamente a Terceira Geração Modernista, também conhecida como Neomodernista ou
Pós-Modernista) e, intencionalmente, situei-a junto a seus contemporâneos de 1945 à 1960
(Clarice Lispector ,Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Rachel de Queiroz).

3 LINS, 1997,408 páginas.

Página 57
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Registrei no quadro uma breve biografia4 e aguardei a reação do grupo. Logo surgiram os
primeiros questionamentos:

Aluna: Sôra, ela era negra?


Professora: Sim!
Imediatamente a aluna, que não apreciava muito Literatura, correu para o celular procurando
fotos de Carolina.

Em outra turma, um aluno negro, que frequentemente sentava-se isolado do restante da


turma, fez uma exclamação:

Aluno: Sôra, essa história é mentira, né?


Além de responder que não, não se tratava de uma mentira, expliquei que ainda hoje
muitas pessoas encontram livros no lixão e os utilizam para estudar e, quem sabe, através deles
ingressarem em faculdades e empregos públicos.
Mas, também afirmei que sim: a história de Carolina é uma exceção que a levou do lixo ao
luxo. Conforme confirmado por ela mesma em seu diário:
“Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá...isto é mentira! Mas, as misérias
são reais” (Carolina de Jesus, 1995, página 41)

Após esses diálogos iniciais, dei continuidade às atividades contando um pouco sobre sua
vida e a oportunidade de estudo obtida por meio da oferta do dono da fazenda em que trabalhavam
os pais de Carolina.
Sobre isso, o processo de escolarização dos negros do Brasil, cabe ressaltar que:
[...] no século XIX, no Brasil, surgiu a necessidade da criação de uma “identidade nacional”
e essa só se daria com a educação da “massa inculta” e a “moralização” dos degenerados
e desonestos. (SANTOS, 2009)

Neste sentido, problematizei com os alunos as estratégias adotadas pelos negros que não
conseguiam chegar à escola. Falamos sobre as Irmandades e os Clubes Negros e seu fundamental
na escolarização, pois além de se alfabetizarem os negros se apropriavam dos códigos sociais e,
assim poderiam almejar a ascensão, de modo que o retorno dessa conquista retornasse para a
comunidade negra.
Destaquei o fato de que Carolina, antes de começar a escrever, foi uma leitora voraz já aos

4 Carolina Maria de Jesus, nasceu em Minas Gerais, moradora da favela do Canindé, era catadora de papel.
Reuniu em sua casa, todos os livros que encontrava no lixão. Também recolhia papel para escrever o seu diário onde
contava a difícil vida de moradora da favela. Descoberta por um jornalista, Carolina publicou seu primeiro livro e foi
sucesso de vendas e aceitação do público, inclusive sendo traduzida em vários idiomas, Ela é considerada uma
das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil. Obra: “Quarto de despejo: Diário de uma favelada” –
testemunho pessoal sobre a vida de miséria de uma moradora da favela na zona norte de São Paulo

Página 58
dois anos de idade e busquei informações complementares na pesquisa5 da historiadora Elena
Pajaro Peres sobre a Poética da diáspora. Em seu trabalho, PAJARO (2014) estuda aspectos da
vida de Carolina que vão além dos livros e do período em que a autora viveu em São Paulo como,
por exemplo, a convivência com seu avô (ex-escravo de origem bantu) que, na figura de griôt,
lhe repassou um vasto repertório cultural sobre a riqueza e nobreza deixadas para trás na África
ancestral e mesclada com tantas outras no Atlântico. Outra pessoa fundamental na infância de
Carolina foi o negro Manoel Nogueira: um oficial de justiça que, durante as tardes, em frente a
uma farmácia lia para os negros jornais, poemas de Castro Alves e textos de José do Patrocínio.
PAJARO (2014) nos conta ainda que, quando aprendeu a ler na escola Carolina foi tomada de
tamanha euforia que saiu às ruas lendo todas as tabuletas que via e, ao chegar em casa, marcada
pela cultura oral, não encontrou nada para ler. Uma vizinha foi quem lhe emprestou seu primeiro
livro, A escrava Isaura6
Em continuidade às atividades desenvolvidas, na aula seguinte iniciamos a leitura de
trechos da obra de Carolina. Inicialmente solicitei que os alunos realizassem leitura individual e
silenciosa para, em seguida, compartilharem em voz alta seu excerto preferido. Cada trecho lido
era comentado por mim, que instiguei questionamentos sobre o conteúdo da escrita de 1960 e
sua aproximação com a atualidade. Compartilho em seguida alguns exemplos:
Quem inventou a fome são os que comem. (frase dita por Carolina de Jesus)

Na discussão sobre esse trecho tivemos controvérsias. Solicitei aos alunos que me
explicassem o que entendiam sobre essa afirmação. Um grupo disse que alguns comem demais
e outros comem de menos. Outro disse que quem não comia era porque não trabalhava e que, os
que comem, às vezes também sentem fome. Abordamos então o contexto da favela dos anos 60,
dos desempregados em razão do analfabetismo e de pessoas que comiam no lixão. Um aluno,
inclusive, relacionou o tema ao documentário “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado.

Antigamente o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário. (frase dita por
Carolina de Jesus)

Muitos alunos não sabiam o que significava o termo calvário. Expliquei, além do significado
do termo, que essa frase marca a desilusão de Carolina com o papel da igreja dentro da favela.
Refletimos que hoje, no lugar da igreja católica, temos a igreja evangélica muito presente nas
comunidades carente e que, embora ajude a comunidade, não raro fomenta a intolerância religiosa
com os adeptos das religiões de matriz africana.

[...] em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios,
nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos

5 FENSKI, 2014
6 GUIMARÃES, 1875, 64 páginas

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

residindo debaixo das pontes. E por isso que eu denomino que a favela é o quarto de
despejo da uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos (Carolina de Jesus, 1995,
página 171)

Aproveitamos este excerto para discutir a questão das remoções e da especulação


imobiliária. Compartilhei com os alunos as aprendizagens que obtive no curso UNIAFRO/UFRGS,
em que discutimos e aprendemos sobre os Territórios Negros de Porto Alegre junto à mediadora
Fátima, que nos contou sobre a remoção dos moradores do bairro Ilhota para a Restinga. Neste
instante os alunos moradores da Restinga ficaram muito entusiasmados, fizeram questão de
relatar que conheciam essa história e que ela era verdadeira.
Nas favela, as jovens de 15 anos permanecem até agora que elas querem. Mesclam-se
com as meretrizes, contam suas aventuras (...) Há os que trabalham. E há os que levam
a vida a torto e a direito. As pessoas de mais idade trabalham, os jovens é que renegam
o trabalho. Tem as mães, que catam frutas e legumes na feira. Tem as igrejas que dá pão.
(Carolina de Jesus, 1995, página 16)

Esse trecho da obra de Carolina me trouxe a real dimensão do meu trabalho de educadora.
Levei-o para uma Oficina de Escrita Criativa para meninas da comunidade da Vila Chocolatão de
Porto Alegre, pré-adolescentes que participavam de um grupo da Biblioteca Comunitária. Uma
das meninas, ao ler o trecho lembrou-se da sua infância, de quando acompanhava sua mãe na
Feira Livre, na “hora da Xepa”. Durante esta recordação seus olhos encheram de lágrimas e os
meus também. Esse é o efeito da Literatura de Carolina de Jesus: o despertar do humano em cada
um de nós!

Depois da leitura dos trechos e dos comentários e conversas que surgiram solicitei aos
alunos que fizessem a (re)leitura dessa obra, expressando através de um poema seu entendimento
da (re)favela de Carolina de Jesus.
Em seguida, com o auxílio da professora da biblioteca da escola, promovi um concurso
entre as turmas. Na Semana da Consciência Negra fizemos um sarau na própria biblioteca: o
“Sarau Negras Poesias”, durante o qual lemos os poemas dos alunos e de alguns autores negros.
Um dos alunos cantou o trecho de um samba de Carolina, com o auxílio da professora de Artes
que levou flauta e o chocalho e que também cantou músicas de autores negros:
É triste a condição do pobre na terra
Rico quer guerra pobre vai na guerra
[...]
Rico faz guerra pobre não sabe por que
Pobre vai na guerra tem que morrer
Pobre só pensa no arroz e no feijão
Pobre não [se] envolve nos negócios da nação
Pobre não tem nada com a desorganização
[...]
Pobre e rico são feridos
Porque a guerra é uma coisa brutal
Só que o pobre nunca é promovido, rico chega a marechal.
(JESUS, 1961)

Página 60
Uma das alunas vencedoras do concurso leu o seu poema, que transcrevo aqui:
Realidade Urbana
Se somos o que comemos, e quem come lixo?
Infelizmente na atualidade, o homem é escravo do homem.
Toda riqueza é oriunda da exploração.
A indiferença entre as pessoas as tornam máquinas de fazer dinheiro
Perante a sociedade exploradora, os que possuem cor de pele mais escura
Não podem ser considerados humanos
Quando a população mais pobre começar a fazer, eles têm medo.
Karla Conceição, 2016

A temática da fome e da má distribuição de renda tocou muito aos alunos, assim


como o racismo, que foi discutido diversas vezes. Por fim, admitiu-se que sim: somos uma
sociedade racista.
A favela é negra e a fome é amarela, parafraseando Carolina de Jesus. O “Manifesto da
Refavela” de Gilberto Gil, traz o olhar poético sobre essa parte da cidade que Carolina chamava de
“quarto de despejo”:
Manifesto de Refavela
Refavela, como refazenda, um signo poético.
Refavela, arte popular sob os trópicos de câncer e de capricórnio.
Refavela, vila/abrigo das migrações forçadas pela caravela.
Refavela, como luz melodia
Refavela, etnias em rotação na velocidade da cidade/nação...
GIL, 2013

A cultura afro-brasileira na sala de aula, identidade e pertencimento


Formei-me como professora antes da criação da Lei n.º 10.639/03. Como autodidata,
comecei a pesquisar a cultura afro-brasileira que me é tão cara e tão presente: música, dança,
arte, culinária, religião, etc.
E a História? A história do povo negro no Brasil? Volto em minhas memórias e me vejo na 5ª
série do Ensino Fundamental, na aula de História do Brasil: a escravidão dos negros! As crianças
todas olham para mim, a única aluna negra na turma. Os risinhos de deboche. Eu, envergonhada,
pensava: eles pensam que posso ser escrava deles... Feridas na alma de uma criança que ainda vai
ser discriminada pelo seu cabelo, seu nariz, sua boca durante boa parte de sua vida. O desconforto
do racismo tem que servir para nos desacomodar e tomar uma atitude, e é isso que venho buscando
fazer em minha vida.
Como ensinar essa passagem da história da humanidade para as crianças brasileiras?
Onde buscar a parte boa da história do povo negro que foi apagada propositadamente? Uma
história em que, ainda hoje, o Egito, seus faraós e cientistas, ainda são representados por atores
brancos na televisão e nos filmes? Como lembrar que a escravidão já acontecia na Grécia Antiga?
Como “enegrecer” esse currículo e mostrar que o povo negro não apenas contribuiu para a
construção do país, mas que é a própria essência do país? Um país de maioria negra e a segunda

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

maior população negra do mundo?


Um tema doloroso e delicado, sim. Mas, como ensinar a cultura afro-brasileira sem falar
em racismo? Qual aluno negro no Brasil ainda não vivenciou na pele o olhar racista, a atitude
discriminatória, a exclusão social, a negação de seus direitos? E os alunos brancos? Muitos não
querem nem falar nesse assunto, pois isso não é com eles. E ainda outros, que estão em seus
lugares privilegiados onde nada os afeta e que nunca pensaram nesse assunto...
Qual o impacto que causamos ao entrar na sala de aula e nos assumirmos como uma
pessoa negra, com cabelos crespos e com a postura de uma “afrobetizadora7”? Como reagir aos
alunos que dizem que não, sôra, a senhora não é negra, a senhora já sofreu racismo? Não pode
ser, sôra, isso é racismo contra os brancos, etc.?
E então, em meio a essas reflexões, me vejo aluna do curso UNIAFRO/UFRGS – 3ª edição
e, junto aos meus colegas, percebo que meu cabelo crespo, silencioso, foi capaz de mobilizar
e encorajar minhas alunas negras a assumirem seus crespos e soltarem seus cachos. Uma
percepção ampla e intimamente celebrada por essa professora que às vezes desanima diante do
projeto de embranquecimento de seu país e do apagamento da sua ancestralidade.
Ensinar a cultura afro-brasileira é um trabalho que exige total comprometimento e sob
o qual tantos professores negros, quanto brancos estão sujeitos ao preconceito dos colegas: é
falar sobre uma lei que surgiu pela falta da narrativa negra. É preciso disposição para rever seu
aprendizado e “enegrecer” o currículo. É preciso se tornar um “afrobetizador” e colocar a lente
negra para enxergar o racismo e combatê-lo.
O projeto da “Consciência Negra” deve estar no currículo da escola não somente no mês
de novembro, mas durante todo o ano letivo e deve envolver toda a equipe de professores de todas
as disciplinas. Existe muito material disponível e o que se precisa é de força de vontade e união.

Considerações finais
A presença de uma mulher negra e pobre no currículo da Educação básica causa, ainda
hoje, estranhamento e perplexidade. Direcionar o olhar em direção à favela e às suas mazelas
que ainda são as mesmas de tempos atrás, nos faz ter a consciência necessária para mudar esse
cenário.
Na escola pública, em que muitos alunos são oriundos das periferias da cidade e
compreendem muito bem a estética da fome, Carolina de Jesus pode ser muito parecida com
suas mães, que trabalham fora e cuidam dos filhos sozinhas. Somadas a essas dificuldades, a cor
de suas peles, é também um obstáculo.
Discutir história e cultura afro-brasileiras é discutir a História do Brasil: país de origem
indígena que viu chegar em suas terras, portugueses, africanos, italianos, etc. Essa diversidade
étnica deveria criar uma sociedade igualitária, mas sabemos que ainda não é assim.

7 É a ideia que coloca professores negros que cursaram ou estão na universidade, realizando projetos de
sucesso na vida com o intuito de trabalhar o protagonismo negro e a experimentação positiva, um letramento corporal.

Página 62
O africano foi trazido à força e da sua força ergueu as pedras fundadoras de nossas cidades.
Depois do cativeiro: a exclusão, a marginalidade e a favela.
Se focarmos a história do negro no Brasil para o pós-abolição, veremos ainda o “capitão
do mato” vestido de farda criminalizando os jovens negros. Nossos presídios têm a maioria da
sua população carcerária formada por negros. Os hospícios estão cheios de vítimas do racismo
institucionalizado, que acabam por enlouquecer devido à recorrente exclusão dos círculos sociais.
Sobram para os negros os trabalhos braçais, os trabalhos domésticos e ainda o trabalho escravo.
Uma mulher negra no Brasil é a que ganha menos, depois do homem negro que ganha menos que
uma mulher branca.
O sistema de cotas raciais nas universidades está mudando esse cenário. Devido aos
programas sociais, muitos alunos do Ensino Médio Público são os primeiros em suas famílias
a concluírem os estudos e a sonharem com o diploma. E, quem sabe, se esse aluno encontrar
em seu currículo histórias como a de uma negra catadora de papel que se tornou escritora
internacionalmente famosa, também possa vir a sentir prazer na Literatura e, a partir de seus diários
e confissões, se tornar mais um escritor negro brasileiro!
REFERÊNCIAS

BARRETO, Lima, Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/


Lima_Barreto Acesso em 3 de março de 2017.

BRENO, Lacerda, Conceito de Literatura Afro-brasileira, março de 2014. Disponível em:http://


brenoafricanidades.blogspot.com.br/search/label/Conceito%20de%20Literatura%20Afro-
brasileira Acesso em 3 de março de 2017.

FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Carolina Maria de Jesus – a voz dos que
não têm a palavra. Templo Cultural Delfos, maio/2014. Disponível em: http://www.elfikurten.com.
br/2014/05/carolina-maria-de-jesus.html em 29/10/2016

GIL, Gilberto; ZAPPA,Regina (org). Gilberto bem perto. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

JESUS, Carolina Maria de, Quarto de despejo, diário de uma favelada, 4ª edição, São Paulo:
Editora Ática, 1995.

LAVORATI, Carla, Uma voz que vem das margens: Carolina Maria de Jesus, a cantora improvável,
ANTARES, Vol. 6, Nº 12, jul/dez 2014, UFSM. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.
php/antares/article/viewFile/2980/1813 Acesso em 3 de março de 2017.

PINA, Rute, Ensino de história da África ainda não está nos planos pedagógicos, para Brasil de
Fato, 09/01/2017. Disponível em: http://www.geledes.org.br/ensino-de-historia-da-africa-ainda-
nao-esta-nos-planos-pedagogicos-diz-professora/#gs.tHk_rH8 Acesso em 3 de março de 2017.

SANTOS, Isabel Silveira dos. Abram-se as cortinas: representações étnico racias e pedagogias
do palco no teatro de Arthur Rocha. Dissertação de Mestrado. Universidade Luterana do Brasil.
(ULBRA), 2009.

Página 63
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

SANTOS, Isabel Silveira dos. Pedagogias culturais no teatro de Arthur Rocha. In: Diversidade
Cultural afro-brasileira: ensaios e reflexões. Brasília: FUNDAÇÃO CULTURAL PALAMARES, 2012.
Disponível em: http//www.palmares.gov.br

SILVA, Mário Augusto Medeiros da, Literatura Negra e Literatura Periférica no Brasil, 07 de junho de
2011, UFRJ. Disponível em: http://www.universidadedasquebradas.pacc.ufrj.br/literatura-negra-
e-literatura-periferica-no-brasil/

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EIXO 2: Arte e culturas afro-
brasileiras e africanas

Este grupo de trabalho visibiliza pesquisas que articulem arte e cultura afro-
brasileira e africana como expressões de resistência aos processos de
escravização e colonização dos povos africanos. Dentre outros movimentos
artísticos e literários há que se considerar a estética corporal pela capoeira e
pelo samba e suas narrativas concebidas sob o ponto de vista dos modos
de ser e estar dos negros no mundo. Discutir a produção artística visual, bem
como os aspectos históricos, filosóficos, antropológicos e sociais negros,
considerando as peculiaridades das identidades e do sistema da arte
globalizado.
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A IDENTIDADE CURITIBANA E O DISCURSO SOBRE A INVISIBILIDADE DO


NEGRO NA CULTURA POPULAR DA CIDADE

CARVALHO, Tatiane Valéria R. de (Seed-PR)


tatianevaleria26@gmail.com

VIACAVA, Vanessa Maria Rodrigues (Seed-PR)


vanessaviacava@gmail.com

Resumo

Este trabalho tem por objetivo discutir a identidade curitibana problematizando a invisibilidade do negro
por meio das manifestações culturais de Curitiba relacionadas ao universo afro-brasileiro: o Carnaval e
o Movimento Hip-Hop. Para isso, é apresentado como ocorreu a construção da identidade paranaense,
forjada desde o Movimento Paranista de Romário Martins até a imagem da “capital ecológica” dos
governos Jaime Lerner, no fim do século XX, e caracterizado essas manifestações populares curitibanas,
que ocupam um lugar periférico no catálogo cultural da cidade,opondo-se a manifestações consideradas
“autênticas e tradicionais”, normalmente associadas à cultura europeia. Como representatividade do
Carnaval e do Movimento Hip-Hop curitibano é destacado o rapper e compositor de samba enredo
“Big” Ernani, que em suas letras parece ter incorporado o discurso da Curitiba ecológica e branca.
Além disso, optou-se por apresentar, brevemente, o conceito de Identidade (HALL, 2006) articulado
à análise do discurso acerca do samba enredo e do rap curitibano, a fim de evidenciar como esse
discurso europeizado foi incorporado pela sociedade e pelos agentes dessas manifestações culturais,
silenciando o discurso sobre a representatividade do negro na capital paranaense.

Palavras-chave: Identidade Paranaense. Carnaval. Movimento Hip-hop. Negro.

Página 66
1 INTRODUÇÃO

A presença de imigrantes europeus e os efeitos da modernização em Curitiba, na virada do


séc. XIX para o XX, interferiram na construção da identidade cultural dessa capital. Além disso, a
teoria do branqueamento e o Movimento Paranista criaram a ideia de Curitiba de cultura europeia;
e o planejamento urbano e a caracterização do espaço curitibano europeizado contribuíram para
um urbanismo utópico. É nesse contexto que o discurso disseminado criou a ideia de Curitiba como
uma cidade de Primeiro Mundo, onde há ordem urbana e harmonia racial, e em que se valoriza o
elemento europeu e invisibiliza o negro.
Nessa perspectiva, este trabalho tem por objetivo discutir a identidade curitibana
problematizando a invisibilidade do negro por meio das manifestações culturais de Curitiba
relacionadas ao universo afro-brasileiro: o Carnaval e o Movimento Hip-Hop.
Essas manifestações ocupam um lugar periférico no catálogo cultural da cidade, opondo-
se a manifestações consideradas “autênticas e tradicionais”, normalmente associadas à cultura
europeia, devido à valorização dos imigrantes na construção de um imaginário curitibano europeu,
forjado desde o Movimento Paranista de Romário Martins até a imagem da “capital ecológica” dos
governos Jaime Lerner, no fim do século XX.
Assim, neste trabalho, será abordado sobre o Carnaval e o Movimento Hip-hop
curitibano, a fim de mostrar como essas manifestações populares de matriz africanas são vistas,
discriminadas e invisibilizadas na capital; e, por meio de duas músicas do rapper e compositor de
samba enredo “Big” Ernani, será mostrado como o discurso europeizado criado para Curitiba foi
incorporado por parte dos agentes dessas manifestações culturais, silenciando o discurso sobre
a representatividade do negro na capital paranaense e destacando a Curitiba ecológica e branca.

2 IDENTIDADE CURITIBANA: DO PARANISMO AO LERNISMO

A construção da identidade paranaense ocorreu na metade do século XIX, quando o


Paraná deixou de ser parte da Capitania de São Paulo, em agosto de 1853, e passou a existir como
unidade política e cultural.  
Com o final anunciado da escravidão, a partir da década de 1870, um grande número
de imigrantes europeus muda o panorama da ocupação geográfica e racial do Paraná. Assim,
primeiramente, surge a ideia do branqueamento, que pretendia “clarear” a população do Estado
através da nova imigração, buscando criar uma identidade paranaense com a imagem do imigrante
ideal: loiro, de olhos azuis. Acreditava-se que, com a chegada dos imigrantes europeus, seria
estabelecida uma supremacia racial, em que, por meio da mestiçagem, se eliminaria os negros
ou, pelo menos, os traços da negritude. O que não ocorreu!! Inicia-se, assim, a busca de uma nova
identidade, porém que reconheça a diferença e tenha como ideia o progresso e o desenvolvimento
social. Surge, então, por volta do final do século XIX, o Movimento Paranista, que busca, com o

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

apoio de intelectuais, artistas, literatos, etc., criar uma imagem para o Paraná constituída por uma
cultura e novas tradições regionais; e uma realidade simbólica e diferenciada, que englobasse
os grupos étnicos presentes nesse Estado, a fim de que estes participassem em harmonia da
formação de um tipo ideal paranista: aquele que ama a terra.
No entanto, o modelo de civilização continuou a ser o europeu. Assim, entre os grupos
étnicos paranaenses, o índio passa a ser visto como um nativo bravo e guerreiro e o negro passa
a não existir na história paranaense (sob a alegação da pequena presença). A presença do negro
na história oficial e nas representações artísticas da constituição da população do Paraná é
praticamente inexistente. Esse determinismo racial pode ser considerado um dos ideais paranistas
para a construção de um Paraná branco e diferente.
Em 1930, com o fim da revista Ilustração Paranaense, o Movimento Paranista perde força.
Entretanto, suas ideias não se perderam com o fim da publicação, elas continuaram presentes no
imaginário da população.
Entre 1960 e 1970 foi iniciado um projeto urbanístico que visava um modelo de
desenvolvimento planejado e a modernização de Curitiba, a fim de solucionar alguns problemas
urbanos que haviam surgido. No entanto, esse projeto só foi concretizado, por meio da política
de planejamento político-institucional, na gestão do arquiteto e urbanista Jaime Lerner - prefeito
entre 1971-1975, 1979-1982 e 1988-1992, e governador reeleito entre 1994-2002.
É na terceira administração de Lerner (1988-1992) que se tem a concretização de ações
com enfoque para a ordem estética e uma política setorial voltada para o meio ambiente, que
causaram impacto nacional e internacionalmente. Assim, esses investimentos, que tiveram o
intuito de embelezar a cidade, resultaram em um aumento turístico e populacional, principalmente
de migrantes e imigrantes, devido à publicidade criada para a cidade: Curitiba, a cidade sorriso.
Portanto, foi a partir de 1990 que a cidade de Curitiba conseguiu destaque no Brasil e em outros
países e se consolidou como a “Cidade que deu certo”, “Capital ecológica”, “Cidade de primeiro
mundo”, que possui ordem urbana harmoniosa, sem conflitos sociais e raciais e um projeto
urbanístico a ser seguido.
Indiretamente é possível verificar que as modificações urbanísticas realizadas estão
relacionadas com o Movimento Paranista e à valorização do elemento europeu, ou seja, o poder
de persuasão simbólica das ideias paranistas foi mantido. Assim, hoje, passeando por Curitiba,
encontramos vários monumentos que homenageiam os imigrantes: Bosque do Alemão; Museu de
Arte Sacra da Arquidiocese de Curitiba, onde se encontram memórias dos primeiros portugueses;
Portal Italiano e Memorial da Imigração Italiana, no bairro Santa Felicidade; Portal Polonês; Bosque
João Paulo II e Monumento Semeador, que homenageiam a comunidade polonesa; Bosque de
Portugal, onde existe o Memorial da Língua Portuguesa em Curitiba; Praça da Espanha; Praça
da Polônia; Praça da Ucrânia; entre outros. Em relação à população negra, o único lugar que se
refere a ela é a Praça Zumbi dos Palmares, na região periférica de Curitiba, ou seja, em um lugar
isolado, fora da rota turística, sem visibilidade nos meios de comunicação. Essa praça, só reforça a
invisibilidade do negro e o seu lugar em Curitiba: na periferia.

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Assim, cabe dizer que o sucesso do planejamento urbano de Curitiba contribuiu e muito para
a ideia dela ser uma das melhores cidades do mundo para se viver: “cidade de primeiro mundo”,
“capital da qualidade de vida”. Isso porque, segundo Oliveira, (2000, p. 186), a “maioria dos seus
pobres não se encontra no núcleo, mas espalhada pela sua periferia, confirmando a funcionalidade
do papel desempenhado pelos municípios vizinhos na absorção de mazelas sociais e ambientais”.
Portanto, a imagem criada pelos paranistas, ao longo do tempo, foi sendo atualizada, reciclada
e reforçada. Verifica-se que os ideais foram materializados no planejamento urbano (centro versus
periferia) e no espaço urbano de Curitiba (arquitetura, parques, bosques, portais, todos baseados
na cultura europeia). E esse ideário fixado e apreendido pela população paranaense/paranista,
ainda hoje influencia os/nos discursos das manifestações populares de matriz africana, como o
carnaval e o Movimento Hip-Hop curitibano.

3 CULTURA POPULAR EM CURITIBA: CARNAVAL E HIP-HOP

Segundo Néstor García Canclini (2008), uma manifestação popular constitui-se de


processos complexos e híbridos que utiliza como signos de identificação elementos de diferentes
classes e nações. Nesse sentido, manifestações artísticas, enquanto expressão do elenco
das culturas populares, não se referem a uma manifestação fechada em si mesma, porque se
relacionam com os mais diversos agentes e circulam em múltiplos contextos sociais, isto é, as
culturas populares possuem uma grande interação entre diversos grupo sociais desde fins da
Idade Média, de acordo com o historiador Peter Burke (2010).
Em Curitiba, tanto o Carnaval quanto o Movimento Hip-Hop podem ser elencados como
exemplos de cultura popular nos termos destacados por Canclini e Burke, pois utilizam recursos
estéticos externos ao que o senso comum denomina como “cultura tradicional” ou “pura”. Essa
propriedade híbrida não é exclusiva dos gêneros samba e rap, mas, no contexto de Curitiba, onde
a identidade da cidade se construiu a partir de discursos que valorizam as etnias europeias, essas
expressões artísticas passam a ser classificadas como inferiores, periféricas e que não representam
a cidade como um coletivo imaginado, como podemos ver a seguir.

3.1 O CARNAVAL DE CURITIBA

O desfile das escolas de samba de Curitiba costuma ser denominado pela imprensa local
como um evento “feio e pobre”. A cada ano os jornais e as reportagens de televisão apresentam
pesquisas sobre a relação dos curitibanos com a festa carnavalesca e de acordo com esses
resultados, a população curitibana não se mostra totalmente contra os desfiles das escolas

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de samba da sua cidade, no entanto faz pouca (ou nenhuma) questão de prestigiar o evento
organizado pela prefeitura municipal através da Fundação Cultural de Curitiba (FCC). Os meios de
comunicação do estado do Paraná preferem enfatizar o imenso fluxo de carros rumo ao litoral do
Paraná e Santa Catarina, bem como os carnavais ao “estilo baiano”, nos balneários paranaenses.
Nos últimos 18 anos, a cidade de Curitiba vivencia outras experiências carnavalescas, o chamado
o psycho carnival, Zombie Walk Curitiba, CWB Eletronic Carnival.
Embora a capital paranaense não se apresente como um polo do samba no contexto
nacional e não possui um espaço definido como “sambódromo”, existem escolas de samba,
ritmistas, compositores e passistas, e esses sujeitos desfilam na avenida ao som de samba
enredo e participam de um concurso organizado pela FCC. Dessa forma, não é correto afirmar
que “Curitiba não tem carnaval” ou “não combina” com a festa carnavalesca, conforme afirmam
alguns jornalistas e reconhecidos escritores da cidade. O senso comum sugere como “verdadeiro”
o carnaval relacionado a um modelo estético de “carnaval espetáculo” das escolas de samba
cariocas ou paulistanas do grupo especial. E como as escolas de samba de Curitiba não se
assemelham às dimensões “colossais” do Rio ou de São Paulo são compreendidas como “falsas”
ou meras cópias de um modelo externo. Essa oposição entre o verdadeiro e o falso trata-se apenas
de uma observação preliminar, mas que sugere possibilidades de reflexão, especialmente as
noções de tradição, cultura popular no espaço urbano.
A antropóloga Selma Baptista conseguiu expressar como essas visões negativas se
conectam a um preconceito de classe e de cor. Segundo Baptista (2007), os movimentos para
acabar com o Carnaval curitibano são constantes na mídia. Além de ser caracterizado como
“carnaval polaco” pela sociedade, os sambas carnavalescos também recorrem a esse discurso
negativo para realçar o “mal jeito” dos passistas e das baianas brancas, e das baterias sem ritmo;
“uma explícita estratégia de ocultamento da população negra de Curitiba, conjugada a outro muito
recorrente: o de classe social” (BAPTISTA, 2007, p. 7).
Nas primeiras décadas do século XX, o carnaval de Curitiba se organizava dos bailes de
carnaval que possuíam um caráter nitidamente excludente, o acesso a essa forma de sociabilidade
e divertimento se fechava em “nichos étnicos”. E o espaço do corso na Rua XV de Novembro
significava uma continuidade dos festejos dos clubes, para a população menos privilegiados
da capital paranaense admirar o luxo e a sofisticação do carnaval dos ricos no elegante corso.
Dessa forma, durante o “primeiro carnaval”de Curitiba observados e observadores delimitavam as
fronteiras sociais entre ricos e pobres.
A partir dos anos 1940, o carnaval de Curitiba passou por mudanças, em especial o ano de
1946 quando a cidade presenciou a chegada de uma formação carnavalesca denominada escola
de samba. A Colorado foi organizada por pessoas simples, moradoras de uma região humilde da
cidade, a extinta Vila Tassi. Essa comunidade passou a se organizar como escola de samba ainda
em 1944 e dois anos depois rumou para a rua XV de Novembro para mostrar seu samba, sua
batucada. As demais escolas de samba de Curitiba dessa “primeira geração” se formaram a partir
de blocos carnavalescos ou se organizaram a partir de grupos de jovens formados nos clubes

Página 70
sociais e esportivos.
As escolas de samba da “primeira geração” do carnaval curitibano se definiram a partir de
duas matrizes diferenciadas. As escolas de samba Embaixadores da Alegria, Não Agite e D. Pedro II
passaram a se definir enquanto escolas como desdobramento de blocos carnavalescos formados
e sediados em clubes sociais. Apenas a escola Colorado da “primeira geração” apresentou uma
origem diferenciada e jamais foi bloco antes de se tornar escola de samba.
Em 1971 as escolas de samba de Curitiba deixaram de desfilar na rua XV de Novembro, o
concurso foi transferido para a Av. Marechal Deodoro da Fonseca. Além do significativo aumento de
escolas de samba, algumas delas passam a comportar um volume muito maior de componentes,
duas grandes escolas (Embaixadores da Alegria e Mocidade Azul) registraram mais de mil
componentes. Outro ponto marcante dos carnavais, nos anos 1980 e 1990, foi a presença de
blocos carnavalescos. Nesse período “considerado de modernização para alguns” os critérios de
julgamento do desfile e a negociação do repasse de verba da prefeitura passaram a ser definidos
na articulação entre a Associação das Escolas de Samba e a Fundação Cultural de Curitiba.
Os desfiles continuaram na Av. Marechal até 1998, quando houve forte pressão de
moradores dos prédios residenciais da região, que reclamavam da suposta “baderna” e da sujeira
deixada pelos foliões. Como solução provisória, a FCC transferiu o desfile para a Rua João Negrão,
no bairro Rebouças. Logo em seguida, em 1999, o concurso passou a se realizar na Rua Cândido
de Abreu, região do Centro Cívico, com a possibilidade de um maior número de arquibancadas
e de não atrapalhar o tráfego, mas que afastou o desfile do centro da cidade. Além disso, na rua
escolhida, que tem o Palácio do Governo às costas, existe uma curva, e o restante da reta possui
um saliente desnível, não sendo muito adequada para desfile. Assim, a nova rota carnavalesca
desgostou todas as escolas.
A transferência do desfile carnavalesco se insere num contexto mais amplo de crises mal
resolvidas entre escolas de samba e a FCC. Assim como procuramos demonstrar, a saída do
desfile da Av. Marechal expressa a crise de mediação provocada pela desarticulação da entidade
representativa e do esvaziamento de funcionários carnavalescos nos quadros administrativos da
prefeitura. O ano de 2014 ficou na memória foliã como o ano da volta do desfile carnavalesco à
Av. Marechal Deodoro da Fonseca. Poucos meses antes do carnaval, a FCC em seu site oficial e
nas redes sociais anunciou o retorno dos festejos carnavalescos da cidade para essa avenida -
a reivindicação histórica estava sendo atendida. Mas, ainda assim, sua visibilidade é secundária
diante das outras manifestações populares agora presentes no carnaval curitibano.

3.2 O HIP-HOP EM CURITIBA

Outra cultura popular da cidade de Curitiba invisibilizada é o Movimento Hip-Hop. Este


movimento surgiu na década de 1970, nas periferias dos centros urbanos dos Estados Unidos
da América. Ele se caracteriza por ter quatro elementos artísticos do Hip-Hop: o rap (Rhythm and

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

poetry), constituído pelo MC (mestre de cerimônia, cantor), que é a consciência e o cérebro; o DJ


(disc jockey ou dee jay), que é a alma, a essência e a raiz da expressão musical-verbal da cultura;
o graffiti, que representa a arte, expressa por desenhos coloridos feitos por grafiteiros nas ruas das
cidades; e o break, que se constitui na dança de rua.
No Brasil, o Movimento Hip-Hop chegou em 1980, no Estado de São Paulo e, rapidamente,
se expandiu para outras cidades. Foi, também, em 1980 que esse movimento surgiu em Curitiba.
E como em São Paulo, iniciou por meio do break - grupos se encontravam e faziam apresentações
na marquise do Shopping Itália. Em 1990, esse evento já não estava tão forte. No entanto, é nesse
ano que surge a primeira banda de rap curitibana: Projeto Niggaz. Somente partir de 1994 esse
movimento começa a ganhar destaque na cena curitibana, ganhando raiz e crescendo anualmente
a partir de 1997.
Atualmente, observa-se que esse movimento existe nas periferias de diversos países do
mundo e se caracteriza por se consolidar em espaços urbanos parecidos: localidades periféricas,
habitadas por sujeitos que vivem em condições de violência, pobreza e discriminação. Os
jovens perceberam que através da arte podiam transformar a realidade que viviam, expondo as
necessidades da periferia, seus ideais e conseguindo força para lutar contra as injustiças sociais
e raciais sofridas - “nesse sentido, o hip hop tornou-se ao mesmo tempo artístico, político e
ideológico” (SOUZA; FIALHO; ARALDI, 2005, p. 19).
Segundo Souza (2003, p. 59), o rap, um dos elementos do Movimento Hip-Hop, possui
características globais: problematizar a situação da população da periferia, vítima de preconceito
racial e social e da violência, ou seja, dos excluídos socialmente. “O palco do rap é, por excelência,
a rua, não-lugar, metáfora ou parábola da desterritorialização do ‘todo-cidade’ [...]” (CONTADOR,
2001, p. 117). E é nesse local, excluído do restante da cidade, que nasce o discurso do rap, que dá
corpo às histórias, protesta e critica, construindo, definindo e validando, assim, a identidade desse
movimento, mais especificamente do rap enquanto forma de expressão artística e performativa.
Por estar vinculado a um espaço marginal, excluído da cidade, o Movimento Hip-Hop é muito
discriminado. Como resposta social a este movimento, os grupos que detêm o poder na sociedade
associaram a imagem dos hip-hoppers a jovens delinquentes. Além disso, a vestimenta utilizada
tornou-se estereótipo de usuários de droga e de assaltantes. Outros fatores para discriminação
estão relacionados com sua história inicial no Brasil, marcada pela utilização de meios ilegais
(pichação) para divulgar a sua existência, e a forte relação do rap com o universo prisional.
O rap possui vários estilos; além de letras questionadoras e, dependendo do estilo,
agressivas, o rap possui uma linguagem própria, certo código interno, em que são utilizadas,
muitas vezes, gírias ou novos signos linguísticos para falar da realidade. Outra característica, que
parece ser global, tem relação ao fato de o rap se empenhar em ser local, buscando sempre falar
dos interesses da comunidade de origem (favela, periferia) dos rappers. Cabe destacar, também,
que o rap propõe uma visão estereotipada dos espaços, geograficamente circunscritos em centro
vs. periferia.
Esse estilo musical ainda se caracteriza de acordo com o ambiente em que o rapper vive.

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Assim, o rap curitibano tem uma identidade própria que também foi/é influenciada por questões
da história paranaense. Além disso, aqui em Curitiba, em pesquisas realizadas por Souza (2003),
verifica-se que a questão racial não é tratada pelos rappers nas letras de música. Para eles a questão
principal é o combate à pobreza, às questões sociais, visto que, na periferia, esses problemas são
iguais tanto para negros como para brancos. A discriminação não é contra o negro, mas sim contra
o pobre.
Portanto, o Movimento Hip-Hop curitibano, ao contrário dos de São Paulo e Rio de Janeiro,
onde “preto é preto”, “branco é branco, não se vê como um grupo excluído por causa da questão
racial. Talvez isso seja um resquício da própria invisibilidade do discurso sobre o negro na capital
europeia.

3 “BIG” ERNANI E O DISCURSO DA IDENTIDADE CURITIBANA

A cultura nacional pode ser considerada um discurso, “um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL,
2006, p. 50). E é a partir dessa produção de sentidos sobre a nação – obtidos em sua história (que
liga passado e presente) e na construção de sua imagem –, e da identificação do indivíduo com
ela, que as identidades são construídas.
Segundo Hall (2006), as diferenças entre as nações estão na maneira como são imaginadas.
Assim, a cultura nacional pode ser imaginada a partir de narrações, de estratégias representacionais
utilizadas para se construir uma identidade. É nessa perspectiva que a identidade regional do
Paraná, e Curitiba, foi criada.
Desse modo, tendo em vista esse processo de identidade, por meio do samba enredo e
do rap é possível verificar um discurso em que as representações associadas aos integrantes
do Carnaval e do Movimento Hip-Hop estão em conflito com outras de grande repercussão no
imaginário coletivo curitibano, o discurso criado pelo Movimento Paranista.
O que se verifica é que o discurso da cidade imaginada influenciou muitas gerações, entre
elas as que vivem nas periferias e que hoje ocupam lugares de destaque no carnaval e no hip-hop
curitibano, como o rapper e compositor de samba enredo “Big” Enani.
No cenário musical do rap curitibano, Ernani atua desde 2000 e no samba esteve até 2015
na escola de samba do bairro Santa Quitéria, a Embaixadores da Alegria, na ala de compositores
e também como ritmista da bateria, a “Locomotiva Vermelha” (recebe esse apelido pelo ritmo
acelerado dos sambas enredo). Em 2016 passou a integrar a rival Mocidade Azul, escola do bairro
Fazendinha.
Das músicas compostas por “Big” Ernani, para exemplificação da apreensão do discurso
identitário de Curitiba, destacamos duas. A primeira é o samba enredo “A paz é verde - Reverencia
a sagrada terra e clama pelo fim da destruição”. Esta música foi selecionada para o desfile do
carnaval da escola de samba Embaixadores da Alegria, de 2010. Ela é uma releitura de uma

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

composição encomendada por um grupo da prefeitura para o projeto do “Piá ambiental”. A escola
de samba havia sido convidada para fazer uma apresentação para o greenpeace em 2004, mas a
proposta acabou por não dar certo e o samba foi arquivado, até ser adaptada para o desfile.

A paz é verde - Reverencia a sagrada Venha embarcar


terra e clama pelo fim da destruição Com a Embaixadores no “navio”
Que salva o mundo
Big Ernani - Samba Enredo E também nosso Brasil ...

“Olhos de fogo” a velha índia Hoje... na Cândido de Abreu


Da “tribo cree” “a paz é verde”
Em meio a “flora” a a “fauna” ... profetizou E o guerreiro sou eu (Bis)
Uma terra então doente, pássaros no
chão É “ecológica” a “conscientização
Mares escuros, os peixes mortos ... Em busca da preservação (refrão)
“Destruição”

Surgem os “guerreiros do arco-íris”


Ensinando o branco a “reverenciar”
Escutando ecos infelizes
Minha gente para pra pensar (refrão)

A segunda é o rap “Pique Jardineiro”, de 2010. “Big” Ernani começou no Hip-hop como
integrante do grupo Art. de Rua. No período de 2006 a 2009, “Big” Ernani passou a trabalhar na
produção de seu primeiro CD solo, intitulado “Quem acredita sempre alcança”. A música “Pique
Jardineiro” seria então a música de trabalho, que retrata o caminho para um mundo melhor por
meio de metáforas relacionadas ao meio ambiente. É também em 2010 que ele recebe, pela
Câmara Municipal de Curitiba, uma comenda por sua relevante atuação em prol da cultura Hip-
Hop em Curitiba.

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Pique jardineiro Meio ambiente 100% mais florido
Crianças brincando nas pracinhas,
Big Ernani - Rap curtindo
Escorregador, trepa-trepa e carrossel
Se esse mundo fosse meu mandava Aviãozinho, só se for aquele de papel
plantar Aí, tive um sonho, nele vou firmar
Amor no coração do homem pra ele não Bens materiais não são mais fortes
matar que o ato de amar
Aí que tá, o mundo é de todos nós Alegria, sentimento magnífico
Por isso eu canto, encanto e planto a Vai de um gol no estádio até um
minha voz palhaço no circo
Microfone é o regador, água a rima Que faz de nossas vidas uma festa
Composta por fluidos positivos que dão É hora de mudar, mas pra gente o que
autoestima resta
Cada verso, cada palavra Resta cultivar a semente de um futuro
São gotas de carinho que molham bom
mentes aumentando a safra Já comecei através do meu som
De pessoas preparadas pro retorno Seiva no caule sangue na veia
O filho irá voltar, pai verá lá do trono O asfalto virou jardim
A glória restaurada aqui na terra As calçadas aqui são canteiros
O bem vencendo o mal E eu sou pique jardineiro até o fim
Muita paz, menos guerra [...]

O samba enredo e o rap são expressões do discurso do Carnaval e do Movimento Hip-


Hop. O discurso dessas expressões artísticas possibilita remeter à realidade de seus integrantes
por meio das marcas ideológicas (históricas e sociais) enunciadas. Portanto, podemos dizer que
o Carnaval e o Movimento Hip-Hop curitibano são atravessados pela identidade curitibana, e isso
pode ser percebido nas produções de “Big” Ernani, que parece ter incorporado o discurso da
Curitiba ecológica e branca, visto que ambas músicas têm como destaque um tema que pode ser
associado ao slogan “Curitiba, capital ecológica”, tão disseminado nas décadas de 1990.
O que se percebe é que tanto o samba enredo quanto o rap, manifestações populares
de matriz africana, são invisibilizados na cidade ou por meio do silenciamento, ou por serem
inferiorizadas a lugar de preto e pobre, ou por já estar embutido no imaginário do povo curitibano,
logo dos integrantes dessas manifestações, o discurso construído de Curitiba cidade europeia, em
que o negro não existe!!
Assim, essa ausência no discurso revela muito mais do que cala, funcionando quase como
uma denegação da questão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devido à imigração, o povo paranaense/curitibano passou a ser caracterizado como


heterogêneo, no entanto a imagem que imperava, e ainda hoje impera, é de um povo com

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Negras e negros no Sul do Brasil
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característica europeia. Além disso, para ajudar a conservar essa imagem, temos o planejamento
urbano e ambiental (monumentos, praças, portais) construído para homenagear os imigrantes
europeus. Nesse contexto, Curitiba passou a ser conhecida como Cidade europeia, Cidade
modelo, Capital ecológica, Cidade de primeiro mundo, em que se tem uma harmonia social e racial
e um planejamento urbano ideal.
Assim, verifica-se que o mito da ausência do negro no Paraná foi estabelecido há anos
pela sociedade paranaense, principalmente a curitibana. Isso pôde ser verificado por meio da
representatividade de Big Ernani, musico que transita tanto no carnaval quanto no Hip-Hop -
manifestações relacionadas à periferia, ao pobre e “preto”, mas que na capital difunde o discurso
imaginário quando retrata Curitiba como cidade ecológica. Ou seja, tanto o Carnaval quanto o
Movimento Hip-Hop curitibano apresentam uma manifestação/identidade local, seja no que
manifestam (discurso da identidade curitibana), seja no que calam (discurso sobre o negro e dos
problemas sociais da cidade).
Essa disseminação do discurso criado para identidade curitibana, que nega o negro, bem
como as manifestações populares ligadas a eles, como o Carnaval e o Movimento Hip-hop,
além de confirmar o mito da ausência do negro no passado, faz permanecer esse mito no futuro.
Quando a sociedade curitibana, nega a existência do negro e tenta invisibilizar suas manifestações
populares, ela tenta negar o outro lado de Curitiba: a periferia, bem como esconder o preconceito e
a ideologia da elite paranaense e curitibana, que busca valorizar o branco em detrimento ao negro.
Portanto, verifica-se que o discurso europeizado foi incorporado pela sociedade curitibana
e sobrepõe o discurso sobre o negro, bem como suas manifestações populares, silenciando, assim,
o discurso sobre a representatividade do negro na capital paranaense.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Selma. Carnaval curitibano: cidadania, cultura popular, etnicidade e políticas públicas
de cultura. Relatório de pós-doutorado, USP. São Paulo, 2005/2007. p. 7.

BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.

CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Edusp, 2008. p. 221.

CONTADOR, A. C. A música e o processo de identificação dos jovens: negros portugueses.


Sociologia, n. 36, set. 2001, p. 109-120. Disponível em: <www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/spp/
n36/n36a05.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2011.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de: Tomaz Tadeu da Silva e


Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

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SOUZA, J.; FIALHO, V. M.; ARALDI, J. Hip Hop: da rua para a escola. Porto Alegre, RS: Sulina,
2005. (Coleção Músicas).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

CAPOEIRA: PATRIMÔNIO IMATERIAL, CULTURA AFRO-BRASILEIRA E


IDENTIDADE NEGRA.

COSTA, Andressa Pinto da (UNIPAMPA)


pintocosta1990@bol.com.br
VOSS, Dulce Mari da Silva (UNIPAMPA)
dulce.voss@unipampa.edu.br
C02006
Resumo

Esse trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa na linha das teorias foucaultianas e da
análise de discurso acerca das práticas da capoeira. O estudo foi feito com base em depoimentos
de sujeitos praticantes, mestres, contra-mestres e instrutores dessa arte. Busca discutir a capoeira na
contemporaneidade como uma prática que, ao mesmo tempo, conserva traços da ancestralidade e da
história dos povos africanos e incorpora elementos de outras culturas. Defende que a capoeira possibilita
compreender as identidades afro-brasileiras produzidas na interação com diferentes sujeitos que a
praticam. Desse modo, não se pode falar numa identidade negra pura e na capoeira como uma marca
da cultura africana, mas de uma arte da existência que é praticada por diferentes sujeitos construindo a
cultura afro-brasileira a partir dos atravessamentos e das relações interculturais.

Palavras-chave: Cultura Afro-brasileira. Capoeira. Identidade Negra. Ancestralidade.

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Introdução

As questões étnico-raciais ainda são tratadas como tabus, nisso reside o perigo de certos
discursos ecoarem e proliferarem pelos cinco continentes. Por mais inofensivo que um discurso
possa parecer, sempre estará ligado ao desejo e ao poder. O sujeito que fala produz o objeto de
que fala, nisso há desejo e poder (FOCAULT, 1996).
Portanto, falar da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira se reveste de uma grande
importância quando os discursos pronunciados deixam de tratar negros/as como sujeitos inferiores
e passam a destacar a riqueza da diversidade cultural e das práticas dos grupos negros, incluindo
a capoeira.
É preciso pensar a História e a Cultura Africana e Afro-Brasileira para além da escravidão
negra. Compreender que os negros são sujeitos que produzem suas identidades na interação com
os demais grupos sociais e ao mesmo tempo sofrem influências culturais nessas relações.
A capoeira nasceu no século XVI, quando o Brasil era apenas uma colônia. A tática dos
senhores de escravos era misturar negros de diferentes culturas e línguas, dificultando assim a
comunicação entre eles. Porém esses grupos sentiram imensa necessidade de desenvolver
formas de proteção contra a violência dos colonizadores brasileiros.
Ao criar a capoeira, o povo negro encontrou estratégias de conduzir a si e ao outro,
expressando através do corpo, as palavras que não podiam ser ditas e os sentimentos que não
podiam tolerar. Até o ano de 1930, a capoeira era proibida no Brasil e vista como prática subversiva
e violenta, passível de aplicação do Código Penal. Essa visão mudou quando um capoeirista
corajoso, o Mestre Bimba resolveu apresentar a luta para o então Presidente da República
Getúlio Vargas que permitiu sua prática como esporte. Os negros causaram mais uma ruptura
quando conquistaram a retirada da capoeira do Código Penal, fizeram-na uma política de vida,
transformando luta em arte (NETO In: ALVEAL; LIMA; NASCIMENTO, 2011).
Assim, os negros faziam política, ou seja, interferiram na vida de cada um e da coletividade.
Criaram-se descontinuidades históricas, rupturas, quando sua prática que era chamada de luta foi
disfarçada com cantos e palmas ritmadas, tornando-se dança.
O belo disso tudo é que a vida encontrou um meio, ou melhor, o povo negro escreveu sua
própria história, desviando da chibata criando seu ritmo, seu gingado e transformando o choro
em canção mais alegre. Em retribuição ao sangue derramado e ao tempo de opressão, esse ser
histórico devolve ao mundo sua cultura e arte cheia de ginga, nascendo assim a capoeira. Utilizou
o que tinha ao seu dispor: o próprio corpo.
Hoje precisamos resgatar e contar esta história. Existe um forte movimento que une
educadores/as, professores/as, pedagogos/as na defesa da prática e do ensino da capoeira
nas escolas brasileiras. Buscam inserir esta arte nas aulas de Educação Física por entenderem
os benefícios trazidos par o corpo em termos de equilíbrio, concentração, aumento dos reflexos,
coordenação motora.
Mas, quando associada apenas aos benefícios físicos, sem levar em conta a ancestralidade,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

a capoeira perde seu caráter histórico e cultural. Afinal, como conseguiu sobreviver e transmitir
seus conhecimentos e seus saberes criados e recriados nas ruas e vielas, geração após geração?
Talvez a resposta seja a reciprocidade, pois no seu processo de fazer mundo o mesmo discípulo
que aprende é o mestre que dá lição, sendo um processo de ensino e aprendizagem que promove
o encontro entre educando e educador. Parte do princípio que o novo não irrompe da negação do
velho, mas sim compreensão e superação do mesmo (CASTRO JÚNIOR, 2002).
Através da capoeira é possível trabalhar o corpo integralmente, as subjetividades e as
relações, como uma filosofia de vida. E para que ela se firme é necessário comprometimento com
a diversidade cultural.
Assim que, optei por desenvolver essa temática na Monografia de Conclusão do Curso
de Especialização em Educação e Diversidade Cultural da Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA/Campus Bagé), realizando um estudo de caso cujo campo empírico da pesquisa
foi o ambiente do evento II Oficinão: Batizado e troca de graduação realizado pelo Projeto de
Oficina Capoeira, no dia 12 de novembro de 2016 na Escola Estadual de Ensino Médio Professor
Leopoldo Maieron, na cidade de Bagé/RS. Para a coleta de dados foram feitas entrevistas com
quatro integrantes de grupos de capoeira, homens, na faixa etária de vinte e cinco a quarenta e
cinco anos de idade, três residem em Porto Alegre e um em Bagé e praticam a capoeira a mais
de 20 anos, sendo que um deles é capoeirista a 40 anos. Quanto à identidade racial sob o ponto
de vista biológico, dois são negros e dois são brancos, mas todos se declaram negros. Quanto ao
lugar onde praticam e ensinam a Capoeira, os entrevistados afirmaram desenvolver essas práticas
numa escola, numa universidade e nos bairros.
O estudo objetivou entender como a prática da Capoeira age sobre a formação identitária,
a partir da análise dos efeitos éticos e estéticos da Capoeira na vida dos sujeitos que a praticam,
nas suas relações com os outros e nos modos como se posicionam no mundo em que vivem.
Buscando compreender os modos pelos quais os discursos indicam a constituição das
identidades dos sujeitos e os regimes de verdade criados acerca da capoeira, segui a linha das
teorias foucaultianas na análise das práticas discursivas e não-discursivas dos capoeristas que
participaram da pesquisa, observando as continuidades e descontinuidades presentes nos
discursos.
[...] o discurso não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) é também, aquilo que
é objeto de desejo, e visto que ele não é simplesmente aquilo que ele traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo que, pelo que se luta, o poder pelo qual nos queremos
apoderar (FOUCAULT, 1996, p.10 ).

Portanto, as formas de falar ou de enunciar-se constitui o sujeito do discurso, produz


verdades sobre si e sobre o outro. Assim, a linguagem torna-se um dispositivo que nomeia os
sujeitos e os objetos dos quais fala. Os discursos criam modos de interpretar o que vemos e vivemos.
Mas certos discursos nos convidam a observar o que é dito e para fazer este exercício é necessário
estar ciente de que as palavras vêm carregadas de preconceitos e reentrâncias (FISCHER, 2004).
Na perspectiva da análise discursiva procurei a conexão entre o visível e o enunciável, do

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discursivo e o não-discursivo, dando conta das pequenas lutas, das lutas por imposição de sentido,
pelo poder da palavra em um certo viés das relações (FISCHER, 2004). Assim, para desenvolver
esse estudo percorri caminhos metodológicos que não são habituais, mas são de vasta riqueza e
de riqueza inexplorada, cheios de manha, poética, histórias e valores, sobretudo porque falam de
paixões humanas como a capoeira.

2 Identidades diaspóricas
A capoeira constitui-se numa marca cultural de reconhecimento da identidade negra para
aqueles que a praticam, desafiando o próprio sujeito negro a se auto-reconhecer como tal. Essa
necessidade de auto-reconhecimento da identidade negra através da capoeira esteve presente
na fala de alguns entrevistados:
Independente da cor da pele, mais importante pra nós enquanto negros, é observar que:
se diz que existe uma democracia racial, mas somos invisibilizados, pois não nos vemos
nos papeis positivos na TV, gerando uma baixa auto-estima e transformação na projeção
de ser, pois o individuo não projeta ser um adulto negro, vai projetar ser um adulto o quanto
menos negro possível mais distante da negritude, melhor (Guto).

Outro relato feito sobre uma experiência vivida por um dos entrevistados refere-se a uma
apresentação do seu grupo de capoeira dentro de um Centro de Tradições Gaúchas (CTG),
afirmando que foi muito criticado. No seu entendimento o povo negro é escravo ainda, pois
trabalha só pra comer, muitas vezes por um baixo salário. Por isso, sua intenção na apresentação
no CTG foi o resgate que a capoeira possibilita da história dos lanceiros negros no Rio Grande do
Sul, especificamente em Pinheiro Machado:
A capoeira é uma ferramenta maravilhosa, pois ela atinge a todos os públicos, mas cabe
a nós manter essa tradição. Se os capoeiristas não fossem unidos não teriam vencido a
escravidão (Mairon).

Com esses relatos, vemos que a questão da identidade negra está em pauta nos discursos
dos entrevistados, reforçando o debate dessa temática que vem sendo feito no campo das teorias
sociais e culturais. Toda essa discussão se embasa na observação de que as lutas identitárias
marcam a sociedade ocidental desde a Modernidade, colocando em xeque o padrão eurocêntrico.
Partindo dos estudos de Hall (2001; 2003), a pergunta mais latente seria se a Modernidade
é que está em metamorfose. Uma resposta pontual não caberia, mas cabe a reflexão de que a
concepção fixa de identidade não dá conta das mudanças ocorridas na contemporaneidade. O
cerne do desconcerto é que a crença em um núcleo ou essência do ser como concepção herdada
do Iluminismo1 fundamenta nossa existência como sujeitos humanos. Esse sujeito centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, consciência e de ação produzido pelo discurso

1 O Iluminismo foi um movimento histórico e filosófico ocorrido nos séculos XV e XVI que fundamentou
o discurso de valorização da natureza humana como contraponto à visão católica de imperfeição e pecado que
predominou na Europa Medieval. Desse modo, a ruptura cultural provocada pelo Humanismo fortaleceu o advento
das ciências modernas sob a lógica da razão cartesiana e passou a nortear as relações políticas, econômicas, sociais
e culturais estabelecidas entre as nações ocidentais.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

do Iluminismo fundamenta-se na existência de um núcleo identitário nato e que permanece o


mesmo do nascimento até a morte. Para esse sujeito a mobilidade identitária não é nem cogitada
e aqueles/as que não se enquadram nos padrões eurocêntricos e heteronormativos devem lutar
pelo reconhecimento das identidades excluídas. É o caso de negros/as excluídos/as dos direitos
sociais no mundo ocidental que lutam contra o preconceito racial. É nessa luta pelo reconhecimento
identitário de negros/as contra a escravidão e a discriminação que se referendam as práticas
discursivas dos entrevistados.
Contudo, cabe problematizar essas práticas discursivas quando partimos dos estudos
culturais e das teorias pós-estruturalistas, as quais colocam em xeque os discursos instituídos
na Modernidade que classificam os indivíduos por raça, gênero, sexo, idade, nacionalidade,
entre outros, uma vez que sujeitos e grupos que não se enquadram nesses padrões passaram a
reivindicar seus direitos sociais.
É desta disputa por reconhecimento social que surgem novas identidades e esse fato altera
o conceito de sujeito unificado, evidenciando identidades híbridas. Até mesmo o jargão “crise de
identidade” ganha um novo sentido, como afirma Hall (1987), essa crise não é mais vista como um
distanciamento de uma determinada conduta do sujeito, e sim como processo mais abrangente de
mudanças, de deslocamentos de estruturas, lugares e identidades que acomodavam os indivíduos
e grupos, a retirada das âncoras sociais.
Entendo ser possível problematizar as práticas discursivas dos entrevistados, pois percebo
que esses se reconhecem como negros mesmo que biologicamente não se enquadrem nessa
categoria étnico-racial. Logo, o discurso desses sujeitos praticantes da capoeira reforça ideia de
pertencimento pela ancestralidade como uma nova forma de resistência da cultura afro-brasileira,
indicando que a capoeira hoje abarca a interculturalidade.
Pode-se afirmar que há nessas práticas não-discursivas uma ruptura com o caráter biológico
da identidade negra, pois o reconhecimento dos sujeitos se dá em relação a capoeira como marca
cultural enraizada na ancestralidade dos povos africanos, sem fixar as identidades culturais pelas
características biológicas do sujeito. Já as práticas discursivas reforçam o pertencimento binário
às identidades étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e nacionais. Ou seja, a concepção binária
de identidade é marcada pela diferença, só é possível assumir uma identidade ao diferenciar-se
de outra, logo o indivíduo ou grupo que assume uma determinada posição identitária acaba por
fixar-se e excluir-se de outras possibilidades. Essa necessidade de posicionamento identitário
acontece sempre que o indivíduo ou grupo encontra-se numa situação de privação de diretos.
Já as práticas não-discursivas dos entrevistados remetem à noção de sujeito sociológico
que coloca em questão o discurso de sujeito dotado de uma essência e de uma consciência,
conforme foi produzido pelo Iluminismo (HALL, 2001).
Ou seja, o sujeito não é autônomo e nem auto-suficiente, mas sim formado pelo meio
social e pela cultura, as identidades são fabricadas pelos valores, sentidos e símbolos culturais.
Essa visão abre um leque mais interativo e complexo para o entendimento dos modos como são
produzidas as identidades e as diferenças culturais.

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A mudança de paradigma ocorre do Sujeito do Iluminismo, fundado nas identidades
binárias onde o negro possuía um lugar de excluído que exigia luta pela existência e a conquista
da mobilidade social, para o Sujeito Sociológico, cuja interculturalidade identitária abre um leque
de possibilidades e probabilidades, mas antes de tudo gera um deslocamento duplo, ou seja, o
movimento identitário acontece tanto no sentido de não fixidez quanto na perda de sentido de uma
diferenciação definida à priori. O “eu real”, ancorado numa essência identitária, sofre modificações
através de um diálogo contínuo com os diversos mundos (HALL, 2001).
Na contemporaneidade, os processos de identificação tornaram-se provisórios, variáveis
e problemáticos. O sujeito torna-se uma “celebração a mobilidade” que se forma e se transforma
continuamente de acordo com os discursos que entramos em contato nos sistemas culturais que
estamos inseridos. Os sujeitos assumem identidades diferentes em diferentes momentos e estas
não são unificadas de acordo com um “eu coerente”. Nos processos discursivos e não-discursivos
são fabricadas identidades contraditórias, nos empurrando em diferentes direções e deslocando
continuamente nossas identificações (HALL, 2001).
Portanto, os sistemas de significações e representações culturais se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e infinita de possíveis identidades e com
estas podemos nos identificar de forma duradoura ou momentânea.

3 O Jogo do Governo das Condutas

Uma das regularidades apresentadas nos discursos dos entrevistados é o entendimento


de que a capoeira se constitui numa prática que permite aos sujeitos conduzir suas ações e visões
de mundo, de modo a se inserirem na vida social de acordo com os valores éticos vigentes.
Na fala de Guto, a capoeira está associada a formação ética do sujeito que assume sua
condição humana:
A capoeira talvez seja um dos últimos espaços em que o mais velho é respeitado e até
idolatrado, por que na cultura do dia a dia a pessoa mais velha é descartável. Mesmo com
todo o advento das tecnologias nunca a máquina vai superar as relações, o calor humano
o carinho e muitas vezes é esse carinho que cura e que está faltando no mundo e estamos
trazendo esse olhar sobre a capoeira como uma proposta de humanidade, por que as
relações que estão sendo estabelecidas no momento estão consumindo com o país e
até com o planeta e as pessoas estão cada vez mais estranhas falta encontro e capoeira
promove isso, o encontro, o abraço e tudo mais e o respeito a diversidade, ao mais velho.

No discurso do entrevistado a capoeira ensina o respeito aos mais velhos, a diversidade e


valores humanos de acolhimento e encontro. Para ele, o seu trabalho como contra-mestre atua na
formação ética das gerações mais jovens, fortalecendo valores necessários à vida social:
Meu trabalho é incentivar e ajudar para que esses jovens que estão ai na roda de capoeira
construam esse pais melhor, ensinando a sonhar e correr atrás desse sonho. Ensinar a
reunir pessoas com os mesmos objetivos para que juntos, no coletivo se fortaleçam como
já foi feito no passado. Enquanto tiver um de pé não se abandona a luta.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Falando sobre si, o capoeirista Sérgio relata que a capoeira transformou sua vida que teria
tomado um rumo diferente se não tivesse ingressado nela. Disse que, quando começou o seu
contato com a capoeira estava estimulado pela vontade de aprender a brigar, mas que a capoeira
transformou esse pensamento, pois aprendeu respeito e disciplina. Afirma que se encantou com a
capoeira e se emocionou ao dizer isso.
No discurso deste entrevistado também aparece a capoeira como ferramenta de formação
ética em contraposição ao que ele entende como uma perda de valores no mundo atual:
Então você ajuda a retomar valores que no dia de hoje, principalmente em função da
internet, se esquece de dar a benção pra sua avô, beijar seu pai e isso é resgatado dentro
da capoeira porque se trabalha muito isso. Tem que valorizar o mais velho assim como o
mais novo. É uma coisa que se perdeu e que a capoeira resgata muito então no momento
que você está na roda cantando ou explicando algo” (Sérgio).

Assim percebe-se que no conjunto dos enunciados que compõe todos esses discursos
há uma regularidade presente: a capoeira como dispositivo de governo das condutas, ou seja,
governo de si e dos outros. A governamentalidade foi uma problemática analisada por Foucault
no sentido de procurar compreender os modos como estabelecemos certas formas de conduzir
nossas próprias condutas e as condutas dos outros na vida social e política: “Como governar-
se,como ser governado, como governar os outros, por quem devemos aceitar ser governados,
como fazer para ser o melhor governante possível” ( FOUCAULT In: FOUCAULT, 2006 p. 282 )
Logo, a governamentalidade compõe um conjunto de racionalidades políticas e
procedimentos tecnológicos pelos quais acontece o governo da vida. Governamos a nós mesmos
conduzindo o modo como agimos, pensamos e nos relacionamos com os outros em nome de um
código ético que regula a vida social.
Quando os entrevistados se referem a capoeira como uma prática que atua sobre a
formação ética dos sujeitos estão estabelecendo com o governo de si e dos outros, a medida que
entendem a necessidade de conduzir suas ações e visões de mundo de acordo com valores éticos
que insiram de forma adequada os sujeitos no mundo em que vivem.
Novamente as práticas discursivas dos sujeitos entrevistados em relação a capoeira
enfatizam a concepção do humano constituído pelo Iluminismo. Como também de uma moral
cristã que torna os indivíduos ajustados a vida social a ponto de “salvar as más condutas”.
Como diz Portocarrero (2011, p.73)
Nestas práticas, o conhecimento de si ocupa, sem dúvida, um lugar considerável.
Entretanto, para Foucault, sua finalidade não é a renúncia de si, como no pensamento
do cristianismo, mas a aquisição de uma virtude que permitiria a constituição de uma
soberania, de uma forma de medida e da confirmação da independência quanto a tudo
aquilo que não é indispensável nem essencial. Nestes trabalhos sobre si inclui-se aquele
do pensamento sobre si mesmo. Seu papel é operar uma filtragem permanente das
representações, seguindo o princípio daquilo que depende ou não de nós, em que se
desvaloriza o que não depende de nós, para a conversão a si e a posse de si.

O “cuidado de si” se caracteriza por um conjunto de regras de existência que norteia e

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limita desejos do sujeito, regulando sua vida de modo a torná-la mais bela aos seus próprios olhos
e aos olhos dos outros. Contudo, o cuidado de si não afasta o sujeito do mundo, mas pede sim
um olhar sobre si mesmo, uma reflexão antes de uma ação. Essa atitude só é possível se o sujeito
compreender a vida como uma obra de arte denominada por Foucault (2010) como “estética da
existência” e para isso é necessário o exercício sobre si estabelecido pelo próprio sujeito. Toda
essa reflexão vai construir um estilo de vida diferenciado e vai promover focos de resistência aos
mecanismos de poder e dominação que preconizam normalizar e padronizar a vida dos sujeitos.
Ao voltar-se para si de forma reflexiva, é possível ao sujeito alcançar momentos de
liberdade e também proporcionar a si mesmo regras de existência distintas de padrões e normas
ditadas pelas relações sociais possibilitando a cada um assumir o remo do barco de sua vida e
subjetividade.
Nas entrevistas, um dos momentos significativos foi quando Guto reporta-se a capoeira
como uma ferramenta de valorização da cultura africana e da ancestralidade negra:
Ela é uma ferramenta de muita importância, pois quando você está numa oficina, você
está em contato com valores da cultura afro, ancestralidade, misticismo. um pouco de
religiosidade e religião. Sempre digo aos meus alunos que nunca confundam religiosidade
com religião (Guto).

Então, as tecnologias de governo de si e dos outros atuam sobre a produção das


subjetividades, um sujeito que quer firmar-se, é uma queda de braço entre a “memória”, que leva
a auto-afecção do sujeito por si, e o “esquecimento” que direciona para o descuido de si. Sendo
assim, resgatar a cultura afro é também um resgate da memória da capoeira e uma forma de evitar
que está caia no esquecimento.
Logo, o cuidado de si é de suma importância, pois permite aos sujeitos colocarem em
questão padrões e normas sociais que conduzem suas vidas e assumir perante os jogos de poder
uma posição ora de adequação, ora de enfrentamento, como fizeram e fazem os negros que
assumem o compromisso com sua ancestralidade, como fazem os mestres e contra-mestres de
capoeira no trabalho pedagógico com seus educandos.

Conclusão

A capoeira foi criada pelo povo negro que se relacionava livremente com a natureza, uma
das poucas, se não a única relação livre do negro naquela época do Brasil Colônia. Embora tenha
surgido em território brasileiro tem raízes africanas. Foi de transgressão ao código penal. Saiu do
chão batido da senzala para o tablado refinado das academias. Foi de luta marginal à Patrimônio
Imaterial da Humanidade. Assim, essa prática lúdica, mantém sua ligação com o passado, mas
com o olhar no futuro e aprende com o novo sem esquecer-se do velho.
Embora esse estudo tenha se baseado em um universo restrito de um pequeno grupo de
capoeiristas, evidencia-se a capoeira como prática identitária dos sujeitos. Os discursos dos sujeitos
praticantes da capoeira indicaram que essa arte representa uma marca cultural da identidade

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

negra, independente da etnia enquanto fator biológico, ou seja, os sujeitos se reconhecem negros
através da capoeira pelo modo como ela remete à ancestralidade do povo africano. A Capoeira
ensina a seus praticantes história, política e valores éticos e estéticos, tornando-se para estes
sujeitos mais que um esporte, uma filosofia de vida e de respeito mútuo.
Para o sujeito negro a Capoeira traz reflexões de auto-conhecimento e reconhecimento
da negritude, desfazendo o conceito de sujeito unificado e eurocêntrico. Observei que as práticas
não-discursivas não fixam as identidades baseadas em características biológicas. Mas as
discursivas estão presas a identidades binárias, marcadas pela diferença. O corpo também faz
parte dessa produção, permitindo ser educado e utilizado como ferramenta de aprendizagem,
autoconhecimento e interação social.
Uma regularidade discursiva presente nas falas dos capoeristas entrevistados se refere aos
efeitos éticos da capoeira na formação identitária, à medida que sua prática estabelece o governo
de si e dos outros na condução de ações e visão de mundo, prática justificada pela necessidade
de inserção na vida social de acordo com os valores éticos vigentes. Contudo, os sujeitos não
visam simplesmente ajustarem-se à sociedade. Eles conduzem suas condutas em nome de uma
arte da existência, pela aprendem respeito aos mais velhos, a diversidade cultural, valores como
acolhimento e encontro.
As práticas discursivas e não-discursivas dos capoeristas indicam também que a capoeria
produz valores estéticos na sua relação com o próprio corpo, preconizando a manutenção da vida.
Uma conexão equilibrada entre intelecto e físico, vislumbrando o conhecimento de si e do outro.
Ficou evidente na fala dos sujeitos que esse autoconhecimento da corporeidade proporcionado
pela capoeira produz um entendimento das características corporais do sujeito e assim um melhor
relacionamento consigo mesmo e com o outro. Todo o movimento dos elementos de que é feita
a capoeira como canto, ginga ou roda, vem embebidos da ancestralidade, fazendo com que os
antepassados e seus ensinamentos ecoem pela eternidade.
Nesse sentido, entendo que a capoeira possibilita trabalhar a Historia e a Cultura Africana
e Afro Brasileira sob um ponto de vista que não se fixa no passado, mas que traz à tona a história
recheada de reis e rainhas, príncipes e princesas, intelectuais e inventores negros. Cabe resgatar
o povo negro além da condição histórica de escravo, conhecer e desfrutar das diferentes culturas,
viabilizando uma formação integral dos sujeitos enquanto atores que produzem suas existências
de modo plural.

Referências

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CASTRO JÚNIOR, Luiz Vitor. A pedagogia da capoeira: olhares (ou toques?) cruzados de velhos
mestres e de professores de educação física. Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado da
Bahia, Salvador. 2002. Disponível em: http://constellation.uqac.ca/795/1/17608358.pdf Acesso
em: 08 de dezembro de 2016.

FISHER, Rosa Maria Bueno. Na companhia de Foucault; multiplicar acontecimentos. Educação


e Realidade, v. 29 (01), n. 01, jan./jun. 2004, p. 215-227. Disponível em: file:///C:/Users/user/
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France (02/12,1970). 2º


Ed., SP: Loyola, 1996, p. 5-70.

_________________. A governamentalidade. In: Foucault, M. Estratégia, poder-saber. Ditos e Escritos


IV. 2º ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, p. 281 a 305, 2006.

_________________. A Hermenêutica do Sujeito. 3º Ed. São Paulo, Martins Fontes, 2010.


HALL, Stuar. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2001.

__________. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

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ALVEAL, C.; LIMA, T.; NASCIMENTO, I. (orgs). Colóquio internacional de Culturas Africanas:
GRIOTS: culturas africanas: literatura, cultura, violência, preconceito, racismo, mídias. Cadernos
de Resumos. Natal, 2012, p. 347-361. Disponível em: file:///C:/Users/user/Downloads/griots_
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PORTOCARRERO, Vera. Governo de si. Cuidado de si. Currículo sem Fronteiras, v. 11, n. 01, jan./
jun. 2011, p. 72-85. Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org/vol11iss1articles/
portocarrero.pdf Acesso em: 05 de março de 2015.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

EU CANTO SAMBA PORQUE SÓ ASSIM EU ME SINTO CONTENTE: O


SAMBA COMO PRODUÇÃO DE CUIDADO DA POPULAÇÃO NEGRA

PAIXÃO, Tulane Oliveira da (UFF)1


tulane.oliveira@gmail.com
Orientador: SANTOS, Abrahão de Oliveira (UFF)
abrahaosantos@hotmail.com

Resumo

Para não individualizar e invisibilizar determinadas questões com as quais nos deparamos, torna-se
fundamental atermo-nos à construção da problemática racial e do racismo. Além disso, nos permitir
aprender sobre como a população negra estabeleceu práticas de cuidado que divergem essencialmente
de muitos entendimentos que pautam a intervenção psicológica, frequentemente em uma perspectiva
individualizada dos problemas, não considerando a construção subjetiva que a colonização engendrou
e tampouco outras formas de conhecimento e modos de se relacionar com o mundo. Entendendo o
racismo como uma produção que atinge cotidianamente a população negra, gerando efeitos em sua
subjetividade e saúde mental como conflitos identitários, experiências de sofrimento, sentimentos de
solidão e não pertencimento, o presente trabalho pretende pensar o samba e a roda de samba como
um campo de produção de cuidado da comunidade negra. Tendo como disparador experiências da
autora em rodas de samba em conjunção com revisão histórica bibliográfica, documentos audiovisuais
e dispondo das músicas como condutoras dessa viagem, o trabalho objetivou pensar como o samba
por meio de suas composições e a roda como espaço de encontro constituem forças positivas de
recomposição e ressignificação da experiência de ser negro e, além disso, pensar o que a psicologia
pode aprender com essa história.

Palavras-chave: Subjetividade. População negra; Psicologia; Roda de samba.

1 Estudante de licenciatura em Psicologia da Universidade Federal Fluminense e membra do Kitembo -


Laboratório de. Estudos da Subjetividade e Cultura Afrobrasileira.

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Introdução

Pensando a história da grande população negra que formou esse país, desde sua retirada
forçada do continente africano até sua chegada e permanência em solo brasileiro, como foi
essa trajetória? Diante de tantas práticas repressivas, de criminalização e silenciamentos que os
regimes escravocrata e pós abolicionista engendraram, quais práticas de resistência e de vida
foram criadas, ou recriadas? Certamente muitas - como a experiência quilombola, a capoeira, o
candomblé, entre os mais famosos -, ainda que na escola a história que hegemonicamente nos é
contada diga algo a respeito apenas nas duas páginas finais dos livros didáticos.
Acreditando que o racismo produz cotidianamente efeitos na saúde mental da população
negra, gera feridas, conflitos identitários, experiências de sofrimento que se acumulam - e muitas
vezes não são ouvidas nem reconhecidas -, sentimentos de solidão e não-pertencimento, como
lidar com um sofrimento oriundo dessa problemática? Considerando as condições históricas da
inserção da população negra nesse país, ela criou modos muito bonitos de cuidar dessas feridas.
O objetivo desse trabalho então é poder pensar a musicalidade nesse cenário e, mais
especificamente, o samba e as rodas de samba. Quais os sentidos dessa expressão cultural e
política? O samba poderia ser uma forma de oração? Uma tristeza que balança? Investigar como
o conhecido gênero musical se constitui como força e vetor de subjetivação que pode produzir
relações de pertencimento, saber como, por meio de suas composições rompe com o sufocamento
da história negra do país e do mundo e reproduzem e recriam o conhecimento histórico africano
e afro-brasileiro e suas tradições, onde o negro ocupa lugar de prestígio reconhecimento, onde o
som do batuque resiste. Entender como o samba tem sido uma prática de cuidado da comunidade
negra.
Seguramente ao final desse trabalho não iremos definir o que é o samba, mas existe
a expectativa de que possamos passear um pouco pelas histórias, sentir as forças, embates e
batuques que permeiam o samba e o povo negro e, além disso, pensar o que a psicologia tem a
ver com isso. O que podemos aprender com essa história? O que o samba pode ensinar a nós
psicólogos? Há suspeitas, questões, desconfianças, apostas, uma psicologia que ensaia seus
primeiros passos, uma psicologia que quer chegar na roda.
Iremos contra o paradigma moderno de pesquisa que prima pela busca da razão, das
origens e do sentido único e trabalharemos fazendo uma espécie de cartografia, concebendo que
não existe separação entre o sujeito que aqui escreve e o objeto de pesquisa. Este é um trabalho
de composição, de tramar relações entre a vida, a escolha profissional e a pesquisa. A experiência
de confecção desse trabalho sobretudo partiu do corpo, dos afetos, da intuição e a articulação
necessitou de calma e corpo atento à pesquisa e aos fluxos de conhecimento. As histórias se
misturam a todo instante, os afetos transbordam em música, lágrimas e o exercício de pensar o
lugar que a psicologia ocupa nessas histórias. Nesse sentido, o escrito de Alvarez e Passos (2015)
sobre o método da cartografia tornou-se um ponto de apoio e acolhimento. Para essa composição
usarei como recurso além de pesquisa bibliográfica sobre o tema, discografias, trechos de músicas

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

e registros audiovisuais.
As músicas das quais foram extraídas as citações deste trabalho estão todas referenciadas
e, uma vez que as músicas são parte importantíssima do trabalho contamos com a disponibilidade
dos recursos tecnológicos das redes de mídia audiovisuais. Há uma expectativa de que todos
possam acompanhar e experimentar musicalmente essa história e que essa musicalidade – com
toda sua riqueza intrínseca de elementos - transmita algo que só ela pode contar. Dessa maneira,
as músicas não são meras citações e tampouco estão aqui para confirmar teses, mas sim porque
são em si mesmas as ideias e o veículo condutor delas, são a magia negra2.

O semba do mundo

Que noite mais funda calunga


No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Kawo Kabiecile Kawo
Okê arô oke
(Roberto Mendes e Capinam) 3

De acordo com Albuquerque e Fraga Filho (2006), para os europeus, o tráfico se justificava
como um instrumento da missão evangelizadora dos infiéis africanos. O padre Antônio Vieira
considerava o tráfico um milagre de Nossa Senhora do Rosário, uma vez que os negros retirados
da África pagã, teriam chances de terem suas almas salvas no projeto de uma colônia católica.
Munanga (2003) vê as descobertas do século XV como desestabilizadoras do conceito de
humanidade conhecida até então pelo Ocidente, colocando em dúvida se os povos recém-
descobertos (negros, ameríndios, etc.) seriam bestas ou humanos como eles, os europeus.
Segundo o autor, até o fim do século XVII a explicação dessa questão passava pelo crivo da
teologia e das escrituras, o que conferiu aos negros o status de “descendentes de Adão”. Fato
que, se por um lado os humanizara, paradoxalmente justificara a exploração e a civilização desses
seres entendidos como bárbaros e pagãos.
Atraca, atraca
Que vem Nanã ê ê

2 O presente texto é um dos frutos do Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de Graduação


em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Psicólogo (a).
3 CAPINAM; MENDES, Roberto. Yáyá massemba. In: BETHÂNIA, Maria. Brasileirinho.
Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2003. 1 CD. Faixa 2 Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=j3MLNFPGEpw Acesso em 14 de janeiro de 2017.

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Atraca, atraca
Que vem Nanã ê á
É Nanã rainha do mar
É Nanã mamãe Iemanjá
É Nanã que eu vou saravá ê á
(Ponto de umbanda) 4

Apesar de existirem poucos e difusos dados numéricos sobre esse período estima-se que
aproximadamente de onze a quinze milhões de negros foram trazidos para as Américas entre o
século XVI e meados do XIX. Desse contingente, cerca de quatro a sete milhões desembarcou
no Brasil. Como nos diz Alencastro (2006), os negros africanos são coparticipantes junto aos
portugueses na colonização da América portuguesa, porém, acrescento um pequeno detalhe:
eram eles ao mesmo tempo os colonizados. Foram estes e seus descendentes junto aos nativos
indígenas, que desbravaram lugares, construíram estradas e cidades e abriram os caminhos para
que nós pudéssemos estar aqui hoje.
Importante ressaltar que não eram meramente corpos “brutalizados” para o trabalho que
os africanos representavam. Eram sobretudo pessoas dotadas de conhecimentos técnicos como
os referentes a pecuária, mineração e agricultura que estrategicamente eram importantíssimos aos
colonizadores. Quando os portugueses chegaram à costa africana já haviam reinos consolidados,
altamente desenvolvidos e estruturados - como o Reino do Kongo - com tradições e patrimônios
culturais estabelecidos e diversos, de acordo com cada região. Nessa perspectiva, contrário ao que
se propagava, os negros que aqui chegaram não eram desprovidos de cultura, conhecimento ou
inteligência, muito pelo o contrário, inclusive. Essas afirmações têm raiz no paradigma eurocêntrico
onde as diferenças encontradas foram consideradas inferiores, em um jogo sujo de dominação e
enfraquecimento necessários à legitimação da exploração da mão de obra escrava e da missão
civilizadora.
A esse respeito, entendemos também como fundamental o papel que a ciência e todos os
seus trabalhadores cumpriu em ter forjado uma ligação entre a pigmentação da pele (concentração
de melanina) e outras características fenotípicas com aspectos culturais, morais e psicológicos.
Munanga (2003) confere aos naturalistas do século XVIII ao XIX o estabelecimento de uma escala
de valores entre as raças, de uma hierarquização. Nesse sentido, os indivíduos de raça “branca”
foram considerados superiores aos de raça “negra” e “amarela” em função de suas características
físicas hereditárias como a cor da pele, o formato do crânio, o formato dos lábios, nariz, enfim,
características que acreditavam que os tornavam mais bonitos, inteligentes, honestos, criativos e
consequentemente mais capacitados para dominar outras raças, principalmente a mais escura,
considerada como a mais estúpida, emocional, menos honesta, inteligente e então, sujeito à
escravidão e às formas de dominação.

4 Ponto de Umbanda. Atraca, atraca. In: Clementina de Jesus. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=uC50MN1QBH8. Acesso em 14 de janeiro de 2017

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Os conceitos classificatórios serviram para operacionalizar um pensamento e forjar um


caminho que marcaria a história dessa população. Ainda que biologicamente essa tese já tenha
sido refutada há muito tempo, o racismo em seus vários campos de produção institucional e
epistemológico, por exemplo, faz com que essa inferioridade permaneça se atualizando no
imaginário e nas práticas coletivas. Entretanto, curiosamente, foram essas pessoas de menor valor
que, junto aos conhecimentos indígenas e portugueses forjaram grande parte da cultura do país
em quase todos os sentidos, seja no âmbito linguístico, gastronômico, técnico, musical e modos
de viver.
Os europeus os trouxeram para trabalhar e servir nas grandes plantações e nas cidades,
mas eles e seus descendentes fizeram muito mais do que plantar, explorar as minas e
produzir riquezas materiais. Os africanos para aqui trazidos como escravos tiveram um
papel civilizador, foram um elemento ativo, criador, visto que transmitiram à sociedade
em formação elementos valiosos da sua cultura. Muitas das práticas da criação de gado
eram de origem africana. A mineração do ferro no Brasil foi aprendida dos africanos. Com
eles a língua portuguesa não apenas incorporou novas palavras, como ganhou maior
espontaneidade e leveza. Enfim, podemos afirmar que o tráfico fora feito para escravizar
africanos, mas terminou também africanizando o Brasil. (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO,
2006, p. 43)

Edison Carneiro, etnólogo que se debruçou principalmente aos estudos do folclore


brasileiro, se ateve aos conhecidos “batuques”, danças de herança congo-angolesa, agrupando-
os como “sambas de umbigada”. Parece que o termo “samba” aparece pela primeira vez em 1838
designando todas as danças de matriz afro-brasileira com as umbigadas, como o lundu, jongo,
caxambu, os cocos e estilos de samba. Essa herança vem do povo bantu, os que mais vieram para
o Brasil, conhecidos como extremamente musicais e é de lá que se sabe que veio instrumentos
como a cuíca, tam tam, berimbau, agogô e caxixi. A tradição de danças em roda que tem como
características a umbigada, provém deles certamente, sendo observada por viajantes de Angola
no século XIX (LOPES, 2006).
Umbigo em seu sentido anatômico no dicionário significa “depressão cutânea localizada
no centro do abdome, formada a partir da cicatriz do corte do cordão umbilical” Pensando nisso,
parto da ideia de um umbigo que guarda marcas de uma grande cisão, mas que se reconecta a
cada toque, um a um. Umbigo como marca de uma ligação de nutrição existencial entre a mãe e
seus filhos: o cordão umbilical. O umbigo do mundo, ponto de conexão nos ventres que gestaram
saberes, tradições, formas de cantar, dançar, celebrar e viver. Umbigo abrigo da dor que acolheu
tanto sofrimento nos colos das grandes Yabás. Amado (1945) já dizia sabiamente: “Nosso umbigo
é a África”
Entre Jones (1963) e Sodré (2007) é unânime o entendimento de alguns aspectos da
cultura africana. A primeira delas e a mais importante nesse momento é de que a música não se
separa da vida, a musicalidade é intrínseca. Digo, levando à última instância, que a música é vida
e a vida é - também - música.
Na cultura africana mostrava-se inconcebível, e continua sendo, que se fizesse qualquer
separação entre a música, a dança, a canção, o artefato e a vida do homem ou sua adoração

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aos deuses. A expressão advinha da vida, e era a beleza (JONES, 1963, p. 38).

Não existiria então, como no ocidente, uma separação entre uma música considerada como
artística e algo que cantarolamos enquanto fazemos nossas atividades diárias. Não há distinção
entre vida e arte. Sodré (2007), a respeito da música na cultura tradicional africana fala da sua não
existência enquanto função autônoma, separada da vida social. Diz que, ao contrário, é uma forma
ao lado de outras - danças, lendas, objetos, entre outros - com o papel de acionar o processo
de interação entre os homens e entre o mundo visível (aiê) e invisível (orum). Além disso, traz a
interdependência da música com a dança e a vinculação das formas expressivas com o sistema
religioso. Concede à forma musical um modo de significação integrador, que seria uma espécie de
processo comunicacional onde
o sentido é produzido em interação dinâmica com outros sentidos semióticos – gestos,
cores, passos, palavras, objetos, crenças, mitos. Na técnica dessa forma musical, o ritmo
ganha primeiro plano (daí a importância dos instrumentos de percussão), tanto por
motivos religiosos quanto possivelmente por atestar uma espécie de posse do homem
sobre o tempo: o tempo capturado é duração, meio de afirmação da vida e de elaboração
simbólica da morte, que não se define apenas a partir da passagem irrecorrível do tempo.
Cantar/dançar, entrar no ritmo, é como ouvir os batimentos do próprio coração – é sentir a
vida sem deixar de nela reinscrever simbolicamente a morte (SODRÉ, 2007, p.23).

Pensando a partir dessa inseparabilidade entre a música e a vida, imaginamos que a


trajetória africana e de seus descendentes nesta terra não foi silenciosa, não é?!

Pequenas Áfricas
Meu irmão, axé!

Olha o sol de frente

Levante a cabeça, meu irmão.

Axé!

(Candeia) 5

Desde a independência do Brasil em 1822, assistimos a um projeto - idealizado pela


recente burguesia - de uma transformação nacional progressista que, apesar de sua pretensa
“modernidade” alçada sob o paradigma liberal em busca de uma sociedade mais civilizada, nada
mais fez do que contribuir para a manutenção das relações de poder e desigualdade que já vinham
sendo tecidas. Isso não foi ocasional, obviamente, tanto é que o Brasil se manteve escravocrata
por mais de meio século, sendo o último país das Américas a abolir a escravidão.

5 CANDEIA, Antônio. Día de Graça. In: CANDEIA, Antônio. Axé!.Gente Amiga


do Samba. Atlantic, Brasil 1978. LP. Faixa B1 Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=0qsMvJ52Xcs Acesso em 14 de janeiro de 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A manutenção destas relações desiguais viria também através de mecanismos de controle


e de disciplina incutidos no ideal da formação de uma nova civilização. Nessa conjuntura, é
incentivada a vinda de imigrantes europeus para o país sob a desculpa de serem a mão de obra
qualificada que o país estaria necessitando devido a industrialização. Entretanto, não era somente
isso que estava em jogo, havia também
ideologias raciais que suportavam os grandes investimentos do Estado, idealizando o
imigrante como agente culturalmente civilizador e racialmente regenerador de um Brasil
idealizado por suas “modernas” classes superiores. Assim, as extensas massas de
trabalhadores nacionais que chegam às cidades — centros antiescravagistas do período
anterior, logo, símbolos e promessas de liberdade — passam a transitar sem condições de
penetrar em seu mercado de trabalho regular e sustentar suas regras, sejam eles negros
ou nordestinos expulsos pela seca, funcionando com um exército proletário de reserva
entregue aos serviços mais brutos e sem garantias, exercendo efeitos depressivos sobre
as condições de remuneração.(MOURA,1995, p.19)

Consoante ao projeto civilizador estaria também o projeto de embranquecimento da


população. Na verdade, não há distinção entre os dois, não é?! É o retorno da missão civilizatória.
Embranquecer não significara somente clarear a cor de pele por meio do elogio à miscigenação,
mas também a não legitimação e consequente marginalização e extermínio de determinadas
culturas, modos de viver, de costumes e tradições. A pretensão era europeizar o Brasil ou
desafricanizá-lo, em todos os aspectos. Com o higienismo, por exemplo, vem a valorização do
conhecimento médico e o menosprezo e invalidação das práticas de cuidado das religiões afro-
brasileiras, entendidas pejorativamente como magia e feitiçaria. Além disso, a reafirmação da ideia
de que europeus e os “traços mais finos” de rosto são esteticamente mais bonitos são exemplos
de construções completamente avessas ao negro, que se vê como inadequado, fora do padrão
estabelecido socialmente, com dificuldades de se aceitar e de ser aceito na sociedade.
Assim, podemos dar-nos conta de que o fim da escravidão não pôs fim às
relações de desigualdade e hierarquia, nem no seu sentido jurídico, nem no financeiro,
muito menos no simbólico e psicológico. A territorialidade colonial ultrapassou o tempo histórico-
cronológico de sua duração e vai além da dimensão regional, abarcando outras dimensões da
vida, dimensões existenciais. Não era só via economia que o aparato colonizador operava – e ainda
opera – mas também pela homogeneização de padrões ideológicos, da marcação e hierarquização
das diferenças.
A escravidão foi muito mais do que um sistema econômico. Ela moldou condutas, definiu
desigualdades sociais e raciais, forjou sentimentos, valores e etiquetas de mando e
obediência. A partir dela instituíram-se os lugares que os indivíduos deveriam ocupar na
sociedade, quem mandava e quem devia obedecer (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO,
2006, p. 66).

Nunca se tratou somente de uma espécie de desigualdade econômica, de uma questão


que comumente identificamos como sendo de “classe” ou “social”. Pensando a partir do conceito
de subjetividade
produção proposto
econômica por Guattari
das relações e Rolnik subjetiva.
de produção (2005), não existiria
O negro separaçãoosdas
escravizado, relações
libertos de
e seus

Página 94
descendentes não foram formados somente pelo viés do trabalho, como se fosse algo isolado.
Houve uma formação subjetiva tecida por todo o campo social, material e semiótico ao mesmo
tempo, propiciada pelo o que chamarei aqui trazendo a ideia desses autores, como um ambiente
maquínico. Essa ideia, ao contrário da perspectiva de entendimento da subjetividade como algo
individual e, pensa essa categoria junto à componentes heterogêneos presentes no mundo, como
a família, a educação, os meios de comunicação, a religião, etc.
Não existe uma subjetividade do tipo “recipiente” onde se colocariam coisas
essencialmente exteriores, que seriam “interiorizadas”. (...) O indivíduo, a meu ver, está na
encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p.
43)

Nos anos que sucederam à abolição da escravatura,a repressão e o controle se intensificaram.


A ocupação das praças e ruas no Rio de Janeiro por determinados setores da população – negros
e pobres - eram constantemente reprimidas, ainda mais se houvesse “batucada”. O higienismo
de feições eugenistas como política de Estado brasileira dificultara muito a existência de reuniões
públicas desse cunho nas ruas, uma vez que além de ter que “limpar” a cidade o mesmo temor
que assombrava a elite brasileira de que os negros se rebelassem ainda mais, somava-se à recusa
de uma cultura negra.
A prevenção eugênica destinava-se a formar um indivíduo brasileiro mentalmente sadio.
Mas esse brasileiro deveria ser branco, racista, xenófobo, puritano, chauvinista e antiliberal.
Os psiquiatras acreditavam que o Brasil se degradava moral e socialmente por causa dos
vícios, da ociosidade e da miscigenação racial do povo brasileiro. (COSTA, 1979, 1989
apud MANSANERA e SILVA, 2000, p. 123)

No Rio de Janeiro as principais referências negras eram as mulheres baianas (e


cariocas) que moravam na região conhecida como “Pequena África”, que se situava nos
arredores da Praça Onze, Catumbi, Estácio, Saúde, Cidade Nova, Morro da Providência,
Gamboa e Santo Cristo (bairros próximos à zona portuária). As casas das “tias”, como eram
conhecidas, são um marco na história do samba pois essas casas tornaram-se ponto de
apoio dos negros recém-chegados e da comunidade negra que estava se construindo na
cidade.
Tomando a conhecida Pequena África, gostaria de ir contra algum tipo de
essencialidade ou homogeneidade em relação a essa localidade pois o que instiga é pensar
as condições de possibilidade e as articulações que se formaram ali. Como as “redes de
sociabilidade, construção de elos de afetividades, resistências, códigos culturais, alianças,
saberes e produção de estratégias de sobrevivência e mediação cultural no cenário pós
abolição” (NOGUEIRA; SILVA, p. 21, 2015) que a meu ver não diz respeito somente a algo
passado, mas também do presente. É atual. As rodas de samba que aconteciam naquela
época nos arredores da Praça Onze hoje se ramificaram. O legado africano se multiplicou
em infinitos lugares do país, que se atualiza nos quintais das casas, nos bares, na rua e nos

Página 95
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

clubes, pequenas áfricas.


Sodré (1998) fala de uma espécie de continuidade africana no brasil e um
modo brasileiro de resistir culturalmente, onde em seu próprio sistema encontra
recursos de afirmação da identidade negra. Uma continuidade inventiva, porque está em
constante transformação e criação.

Antes de se preocupar com a grana, com a parte mercantilista,


tem preocupação de preservar uma herança que vem do nosso
povo de além mar. Os africanos legítimos, nós somos a herança.
E com eles tbm nos deixam a herança da musicalidade, (...)
da religiosidade de matriz africana, tudo foi perseguido, tudo
que é nosso foi perseguido. E dentro das músicas que eu componho eu
me preocupo permanente em dizer, em citar e explicitar algo que tenha
a ligação como meu povo, de onde eu venho e onde estou e o que vou deixar para os meus
futuros. (Edinho de Oliveira, 10”43, Operários do samba)

A roda de samba do Buraco do Galo, assim como muitas outras, é conhecida por
valorizar e dar espaço a novos compositores que têm a oportunidade de cantar suas
músicas ali ao vivo. “A cultura que se tem é a que se troca. Não adianta você saber tudo e
preservar. O movimento cultural samba do buraco do galo é um fator multiplicador”. Nesse
sentido, o samba está longe de estar preso ao passado e a roda de samba é a oportunidade
de fazer circular tanto o antigo como o novo, sendo um espaço de produção de outras e
novas memórias.
Bezerra da Silva (0”48), um dos maiores intérpretes da voz do morro, traz a função
da música que grava: “Como o morro não tem direito à defesa, só tem direito de ouvir
‘marginal, safado, ladrão’, como ele vai falar? Então o que é que faz os autores do morro?
Ele diz cantando aquilo que ele queria dizer falando, e eu sou o porta-voz.”
O documentário de onde a fala acima foi extraída, “Onde a coruja dorme” (2001)6,
trata justamente desse universo que está por trás das músicas de Bezerra: o território,
os compositores trabalhadores, pedreiros, bombeiros, compositores do morro. Universo
rodeado de contos e histórias do dia a dia do povo que por meio da música ganha visibilidade.
São as narrativas de um cotidiano que é majoritariamente escamoteado e invisibilizado.
Pra tomar um banho de felicidade,
É só chegar nos pagodes da cidade, 
Ponto de encontro Com os pagodeiros,
E com alegria ver o reencontro,
do partido alto ao samba de terreiro, 
Venha conhecer o samba verdadeiro
tudo isso nos pagodes da cidade.
Só assim,
é que consigo esquecer o dissabor,
só assim esqueço as marcas desse amor 

6 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FELXV6dRASk. Acesso em 15


de janeiro de 2017

Página 96
São raros momentos de grande prazer
que até dá tempo da gente esquecer
e ver que ainda É fácil ser feliz, 
pra tomar um banho de felicidade
e renovar as amizades só nos pagodes da cidade.
(Adalto Magalha / Wilson Moreira)7

Devagar miudinho, devagarinho: A psicologia chega na roda



A psicologia ocidental de tradição euro-americana constitui a base da psicologia brasileira.
As epistemologias, os autores, os modos de pensar são majoritariamente estrangeiros e desde
seu estabelecimento como ciência até os dias de hoje ela permaneceu lá, mas tentando dar conta
daqui. Nos resultados parciais da pesquisa de iniciação científica da autora – em conjunção com
a equipe de pesquisa – “As Publicações das Revistas de Psicologia: Uma Análise da Abordagem
da Questão Negra e do Pensamento Social Brasileiro” verificamos que em uma amostra de 750
artigos de quinze publicações de Psicologia de Qualis A1 e A2 apenas 11 tratam da questão negra.
Esses resultados evidenciam o silenciamento do campo psi a respeito das experiências de mais da
metade da população brasileira segundo o último senso do IBGE.
Quantas vezes ouviu-se dizer em uma das aulas das diversas faculdades de psicologia
sobre os efeitos da política de embranquecimento do estado para a população negra? Quantas
vezes ouviu-se uma discussão a respeito do racismo e seus efeitos na saúde mental? As vivências
singulares da população negra têm sido permanentemente ignoradas! Nesse sentido, é
fundamental que os psicólogos possam ouvir – e precisam - a quem eles se propõem a trabalhar
nos mais diversos campos de atuação e, mais que isso, entender o contexto histórico e social
dessa população ao longo da constituição do país para então poder se situar diante dos efeitos
disso em todos nós, brancos e negros.
Chegar na roda é aprender a ouvir as demandas específicas de quem está nela, é aprender
outros modos de lidar com a vida e porque eles são importantes para aquela população. Conhecer
um campo de produção de cuidado que envolve pertencimento, protagonismo negro, política,
identidade, construção de memórias positivas de si e música é um caminho para entender porque
o samba é “terapia popular8”.
A psicologia precisa aprender a história, ouvir as grandes Yabás e nutrir seu corpo científico,
enegrecer.
Considerações finais

7 MOREIRA, Wilson e MAGALHA, Adalto. Banho de felicidade. In: Jovelina Pérola


Negra. Luz do repente, RGE, Brasil, 1987. Faixa Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=NgWBqx5RHMM. Acesso de 16 de janeiro de 2017.
8 SERRÃO, Roberto e NASCIMENTO, Guilherme. Nos pagodes da vida. In: Reinaldo e seus
convidados. Pagode Pra Valer, Warner Music, Brasil. CD. Faixa 20. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=-K_OrZ_rsJw. Acesso em 28 de junho de 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Nós psicólogos quando não nos atemos à problemática racial deixamos de enfrentar e
entender os efeitos dela, ora ignorando ora não sabendo como lidar ou como intervir. Conhecer a
história do samba e compreender o contexto histórico no qual ela está inserida pode fazer com que
percebamos modos de cuidado que não estão nos manuais, não estão nos livros e não estão na
academia. Estão nas pessoas, estão no coletivo, estão nas ruas e trazem consigo outros referenciais
e fundamentos. A Psicologia precisa abrir caminhos para conhecer esse universo e fazer uma
análise de implicação de como esteve inserida na formação de uma sociedade racista como é
a brasileira. Um campo de estudos que interessante para pensarmos outras perspectivas é o da
Psicologia negra ou Black Psychology que tem como prerrogativa a pluralidade epistemológica
do mundo, porém afirmando a importância e necessidade de uma visão de mundo africana para
pesquisar e trabalhar com povos afrodescendentes (NOGUEIRA, 2013).

Referências

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no


Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro Orientais, 2006. 320 p. Disponível em:
<https://escrevivencia.files.wordpress.com/2014/03/wlamyra-ribeiro-de-albuquerque-ewalter-
fraga-filho-uma-histc3b3ria-do-negro-no-brasil.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2016.

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capítulo relativo às “Populações Africanas no Brasil que integrou o “Plano Nacional de
Cultura”, apresentado ao Congresso em 15/12/2006 pelo ministro da Cultura, Gilberto
Gil. Disponível em http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/
AsPopulacoes-Africanas-no-Brasil.pdf. Consultado em 30 de julho de 2016.

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In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (Org.). Pistas do
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AMADO, Jorge (2012). Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios de


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Página 98
NOGUEIRA, Renato; SILVA, Wallace Lopes (Org.). Praças Negras: Terrritórios, rizomas e
multiplicidades nas margens da Pequena África de Tia Ciata. In: SILVA, Wallace Lopes (Org.).
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da capoeira Angola.  2013. 236 f. Tese (Doutorado) - Curso de Psicologia Social, Pontifícia
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2016. (23 min.), son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/
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ROLNIK, Suely; GUATTARI, Félix. Micropolítica: Cartografias do desejo. 12. ed.


Petrópolis: Vozes, 2013.

Página 99
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

NARRATIVAS E PERFORMANCES URBANAS: PENSANDO “ESPAÇO”


A PARTIR DAS PRÁTICAS DE CANTORES E CANTORAS DE RAP EM
BLUMENAU.

SCOZ, Tatiane Melissa. (IFSC)


tatiane.melissa@ifsc.edu.br

Resumo

Este trabalho é resultado de uma etnografia das práticas de rappers de Blumenau e sua relação com a
cidade, centrada na noção “nativa” de “espaço”. As análises se referem aos sentidos atribuídos ao termo
“espaço”, a quais “espaços” os rappers estão falando, e o que significa ter ou não ter “espaço” para o rap
numa cidade cuja representação no imaginário social remete ao mito da fundação alemã. Compreender
os sentidos de “espaço” implica levar em consideração os contextos de significação dessa categoria
“nativa”, que parecem estar relacionados às produções musicais dos rappers; aos grupos de rap; aos
usos que os rappers fazem da Internet e dos espaços físicos da cidade; aos modos de ser rapper;
e ao sentimento de pertença à “periferia”. Assim, a partir do diálogo entre saberes “nativos” e a teoria
acadêmica, a noção de “espaço” parece remeter a um complexo conjunto de ideias: espaço enquanto
um ambiente físico; como oportunidade para os rappers divulgarem e comercializarem suas músicas;
como “territórios de subjetivação”, ou seja, como um lugar construído pelas diferentes formas de inserção
e exclusão social, pelas distintas demandas de pertencimento. Estas questões permitem conhecer os
“espaços” que os rappers constroem e percebem, de certa forma, como sendo seus, e os diferentes
usos, reapropriações e formas de identificações e diferenciações que os rappers elaboram nos lugares
que ocupam e/ou habitam, criando uma cartografia do rap em Blumenau e afetando os próprios olhares
sobre a cidade. Os rappers elaboram outra versão da história de Blumenau, a qual inclui o processo de
favelização da cidade, e que contrasta com a história “oficial” sobre a fundação e colonização alemã.
Essa outra versão da história pode ter reflexos sobre a argumentada falta de “espaço” para o rap em
Blumenau.

Palavras-chave: Rappers. Espaço. Narrativas. Periferia. Pertencimento.

Página 100
Introdução
As reflexões aqui apresentadas resultam de minha pesquisa de mestrado1, na qual estudei o
rap em Blumenau. O que significa ter ou não ter “espaço”2 para o rap? Quais sentidos são atribuídos
a esse termo? Estas são questões que guiaram o foco da pesquisa sobre o que os rappers3 querem
dizer com “espaço”, em relação a quem ou ao quê lhe é atribuído ou não o caráter de falta e como
“espaço” adquire sentidos. Veremos que a noção de “espaço” parece ganhar sentidos diversos
através do sentimento de pertencimento4 à “periferia”; de um modo de “ser” rapper; dos espaços
físicos na cidade de Blumenau e dos usos da Internet. Estas diferentes questões constituem
“espaço” como um termo “nativo” multissemântico, cujos sentidos estão ligados aos usos que os
rappers fazem dos espaços da cidade e à maneira que refletem sobre eles. Dito de outro modo,
seus significados estão ligados aos contextos de uso da própria expressão e vão além de uma
referência apenas à dimensão física do espaço.
Desse modo, para seguir essas questões foi necessário atentar para os diferentes
contextos dos atos de fala em que a ideia de “espaço” emerge, embora a palavra nem sempre seja
explicitamente pronunciada. Segundo Caldeira (1984), considerar o contexto em que as palavras
emergem na fala, como são articuladas, é importante para que o pesquisador, ao analisá-las, possa
compreender seus sentidos. Para Bauman (2009), além do contexto de fala, é relevante atentar
para a forma e o modo como as mensagens são construídas, pois a forma como as palavras são
ditas é ela mesma imbuída de significados, e o modo como as palavras são pronunciadas, como
elas rimam entre si, lhes dão determinados sentidos que vão além do conteúdo semântico. Perceber
as falas em seu contexto e o modo como as palavras são articuladas permite uma análise mais
aprofundada e uma reflexão mais densa sobre os sentidos que constituem a noção de “espaço”.
Conforme argumenta Viveiros de Castro (2002), o antropólogo tem a tarefa de perseguir os
problemas postos por cada cultura, de buscar apreender quais são as questões que o campo de
problemática “nativo” traz para efetivarmos um diálogo com a teoria antropológica. É nessa direção
que proponho pensar o que os rappers estão dizendo quando dizem que, em Blumenau, “pro rap
não tem espaço”. Tendo em vista essas considerações, este trabalho propõe, então, problematizar
a noção de “espaço”, buscando estudar quais os sentidos que os rappers em Blumenau elaboram
para o termo e o que implica ter ou não ter “espaço”.

1 Mestrado em Antropologia Social realizado na Universidade Federal de Santa Catarina durante o período de
2008 a 2011, cuja pesquisa de campo se deu junto aos rappers, em Blumenau, com a defesa da dissertação intitulada:
“Blumenau também é a cidade do rap: Pensando “espaço” a partir dos rappers em Blumenau”. Após o término do
mestrado, continuei mantendo contato com os rappers, o que permitiu constatar que, apesar das mudanças em suas
vidas e em relação ao rap no decorrer dos anos, as análises sobre os sentidos do termo “espaço” continuam atuais.
2 A palavra “espaço” é aplicada com aspas duplas por ser um termo utilizado pelos rappers, em Blumenau.
Dessa forma, as aspas contribuem para especificar no texto quando se trata da noção “nativa” de “espaço” e quando
se trata do termo espaço, que é discutido reflexivamente tendo por base alguns teóricos.
3 Nesse trabalho houve o cuidado metodológico de se referir aos rappers através de seus nomes próprios e de
seus apelidos, tal como eram conhecidos por seus colegas e amigos. Essa opção tem o consentimento dos rappers e
minha responsabilidade sobre o conteúdo aqui trabalhado
4 O termo “pertencimento” não é recorrente na fala dos rappers, mas parte de minhas interpretações de suas
falas, que, em determinados contextos, parece remeter à identificação com a periferia.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A pesquisa realizada, a partir da qual são apresentados aqui alguns dados e análises, é
resultado de uma etnografia das práticas de rappers de Blumenau e de sua relação com a cidade.
Para essa etnografia, além da pesquisa bibliográfica, foi feita uma extensa pesquisa de campo o
que, na prática, significou frequentar muitos shows de rap promovidos pelos rappers, e outros
espaços e ocasiões em que se reuniam, como os ensaios de seus grupos de rap em suas casas.
As informações que obtive através dos rappers provinham de conversas com eles, sem seguir a
ordem de um roteiro de perguntas. Esse contato e essa vivência faz parte do exercício da etnografia,
como já afirmava Malinowski (1978), o pesquisador precisa “viver dentro” do contexto pesquisado
para estudá-lo, conviver com o ‘outro’, cujas experiências são materializadas na escrita, no diário
de campo.
Esse trabalho não tem o intuito de apresentar todas as análises tecidas em minha dissertação
de mestrado, mas sim de trazer algumas reflexões, ao longo de três seções, que possam contribuir
para um diálogo ou troca de ideias sobre o assunto.
A primeira seção é dedicada a pensar sobre a construção de um ideário germânico
presente no imaginário social sobre Blumenau para, então, refletir sobre a ideia de ter ou não ter
“espaço” para os rappers em relação à cultura alemã e às ações do poder público. Também fala
sobre as implicações do sentimento de pertença à periferia, através da afirmação dos rappers de
que Blumenau tem favela, tem periferia, o que se reflete na ideia de ter ou não ter “espaço” para o
rap em Blumenau.
Na segunda seção reflito sobre a articulação da noção de “espaço” com a construção de
um sujeito rapper através da noção de atitude e do sentimento de pertencimento à periferia.
A última seção trata sobre a utilização de sites da Internet pelos rappers em Blumenau, ou
seja, sobre como os rappers encontram formas alternativas para produzir, comercializar e divulgar
suas produções musicais. Também aborda a construção de laços de pertencimento à periferia
através dos sites da Internet, que parecem rearticular, ou transportar, de certa forma, o bairro para
esse ambiente, recriando e atualizando olhares sobre Blumenau, olhares esses que questionam a
ideia de uma cidade alemã e culturalmente homogênea.

1 Outra versão da história de Blumenau a partir dos rappers e a noção de “espaço”


Antes de iniciar a proposta de discussão dessa seção, é importante que o leitor conheça,
mesmo que brevemente, algumas características dos rappers, sujeitos da pesquisa. Estes, além
das suas atividades como rappers, possuíam algum emprego ou trabalho autônomo como
fonte de renda, tais como: estampador, pintor, pedreiro, operador de telemarketing, embalador,
empacotador, por exemplo.
A maioria dos rappers que conheci possuía idade entre 20 e 30 anos e estavam casados
ou namorando, alguns tinham filhos. Muitos rappers moravam com a mãe, com os pais ou na casa
dos sogros. A maioria morava em casa alugada, apenas um possuíam casa própria, onde morava
com esposa e filho. Muitos rappers já moraram em regiões que definiam como sendo periferia ou

Página 102
ainda moravam nesses locais. Alguns vieram de outras cidades de Santa Catarina e do Paraná, mas
a maioria era natural de Blumenau, porém nenhum deles se considerava “alemão de Blumenau”,
tal como se referiam às pessoas com melhores condições financeiras e que não moravam nos
lugares que consideravam periferia.
O alemão, nesse sentido, não é necessariamente aquele que pertence à etnia alemã ou
que dela descende. Alemão é também o de “fora”!. Os rappers constroem a figura do “alemão de
Blumenau” como aquele que faz parte da elite da cidade, que mora em regiões definidas como
centrais.
Mesmo que alguns traços da germanidade, como o estereótipo referente ao fenótipo
(sujeito branco e loiro) e o sobrenome de descendência alemã, pudessem ser percebidos em
muitos rappers, como Mano Kruger, os rappers não se reconheciam como “alemão de Blumenau”.
Eles pareciam se identificar com a cultura negra, com a história de luta dos negros por seus direitos,
por reconhecimento, contra o preconceito.
A representação de Blumenau no imaginário social remete ao mito da fundação e
colonização “alemã” dessa cidade. Esse imaginário sobre a cidade é objeto de críticas recorrentes
nos discursos dos rappers. Para muitos rappers em Blumenau, a administração municipal, ou o que
eles chamam de sistema, prioriza investimentos demasiados para o que eles identificam como
germânico ou “alemão”, tal como as áreas da cidade que eles consideram como “centrais”, e a
própria Oktoberfest5, enquanto as regiões que os rappers qualificam como periferia e o que vem
dela seriam negligenciados e não seriam valorizados. Esse é um dos contextos de fala no qual a
noção de “espaço” emerge.
Blumenau vivenciou um processo de construção de um ideário germânico
específico e sua história “oficial” não reconhece a presença de outros grupos étnicos
na constituição da cidade6. Seyferth (2004, p. 155) observa que “Blumenau tornou-se o
principal núcleo urbano dessa extensa região7 , e centro irradiador do ideário de uma germanidade
(Deutschtum) ‘brasileira’” 8. Tal como argumenta Seyferth (1999), a construção de um discurso
étnico está ligada ao processo histórico da colonização, idealizado através da elaboração da ideia

5 A Oktoberfest é uma festa que acontece anualmente no Parque Vila Germânica, nas proximidades das ruas
principais de acesso ao bairro Centro. O parque Vila Germânica possui área total de 39.000 m² e é composto por
duas áreas: uma delas chamada Vila Germânica, que compreende um conjunto de lojas de souvenirs, restaurantes,
choperias, café colonial, entre outros serviços, que ficam abertos à visitação durante todo o ano; a outra área
corresponde ao Centro de Eventos, que conta com 26.000 m² de área construída, subdivido em três setores para
abrigar os eventos (RISCHBIETER, 2007). Interessante notar a própria denominação “Parque Vila Germânica” dada
a um lugar destinado a abrigar eventos para o lazer e para a promoção do turismo, o nome pode ser uma forma de
projetar, ou de reavivar, a imagem da cidade como alemã.
6 A colonização da região conhecida por Blumenau começou em 1850, num período em que o governo
brasileiro ainda incentivava a imigração europeia para o Brasil (SEYFERTH, 1999).
7 A centralidade atribuída à cidade de Blumenau se devia ao seu crescimento industrial e também à relevância
política do município que, na década de 1920, era considerado o maior colégio eleitoral do estado (SEYFERTH, 2004).
8 A discussão sobre a construção de uma identidade teuto-brasileira na região de Blumenau é densamente
desenvolvida em muitas obras de Giralda Seyferth, sendo uma das referências no assunto

Página 103
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de uma nova pátria (Heimat) no Brasil9.


Rischbieter (2007) destaca que na década de 1970, com a política de expansão do turismo
em Blumenau, o poder público e a propaganda turística estavam empenhados em um discurso
que visava a realçar as características germânicas da cidade que lhe conferisse uma identidade no
intuito de atrair mais turistas. Esse discurso trouxe a ideia do pioneirismo dos imigrantes alemães
e da eficácia de seu trabalho na construção da colônia.
Essa ideia emergiu como lema da reconstrução da cidade após as enchentes de 1983 e
1984, que ressaltaram o caráter de “cidade do trabalhador”. Nesse contexto, em 1984, foi criada a
Oktoberfest, que se consolidou como uma das mais importantes atrações turísticas da região e que
parece ter projetado Blumenau no imaginário social como cidade alemã, através da gastronomia,
da música, da dança e do folclore característicos da festa. A Oktoberfest passa a ser identificada,
então, como um dos símbolos da cultura alemã recriada na cidade10 (RISCHBIETER, 2007).
Muitos rappers, como Pepsi, diz ser “contra o sistema, contra o governo que só dá valor
para aquilo lá [a Oktoberfest]”, argumenta ainda que o governo não valorizaria o rap “porque vem
da favela, das periferias [...] Infelizmente é desse jeito, pro rap não tem espaço”. Isso parece implicar
que a Oktoberfest (e a cultura alemã?) não faz parte do que é considerado periferia. Desse modo,
no contexto de fala de Pepsi, além de o rap ser uma manifestação artística geralmente associada à
cultura negra, sendo assim diferente daquela que é tematizada na Oktoberfest e que faz parte do
imaginário social sobre Blumenau, aparece um elemento a mais: o pertencimento à periferia como
motivo da “falta” de “espaço”. Ser ou vir da periferia, então, parece caracterizar o caráter de “falta”
atribuído ao sentido de “espaço” que, nesse contexto de fala, parece estar associado à ideia de
não valorização, de “falta” de apoio.
O caráter germânico e a noção de periferia parecem ganhar certa localização geográfica
através da fala dos rappers: o primeiro parece ser remetido à ideia de centro, e a segunda aos
lugares da cidade em que a germanidade não é identificada como estando presente. Nesse
sentido, a localização do que pode ser percebido como centro não necessariamente o situa nas
áreas vistas como geograficamente centrais da cidade, apesar de muitos rappers se referirem
ao centro dessa forma. A localização da germanidade atribuída aos lugares considerados como
centro é construída pela relação com a periferia, através das falas dos rappers.

9 Esse assunto foi aprofundado em minha dissertação de mestrado (SCOZ, 2011) e também em material
publicado mais recentemente (SCOZ, 2016).
10 Além da Oktoberfest, todos os anos acontece na Vila Germânica a Sommerfest (festa de verão), durante
os meses de janeiro e fevereiro. Essa festa é conhecida como “mini Oktoberfest” e promove apresentações de
grupos folclóricos e de bandas “típicas alemãs”, é marcada também pela gastronomia “típica”. Acontece também
anualmente a Festitália, uma festa que incorpora os costumes considerados italianos, mas que não tem expressão
significativa no imaginário social projetado sobre Blumenau. Há outras formas de atrair o turismo na região, como a
concessão de isenção predial, estabelecida em lei municipal reformulada em 1977, para a construção e reforma de
estabelecimentos com arquitetura considerada germânica; a inauguração do Mausoléu, em 1974, para abrigar os
restos mortais de Hermann Blumenau e de seus familiares, no intuito de “preservar sua memória” e de afirmar uma
“identidade blumenauense”; o Stammtisch, uma festa de rua que ocorre desde 2000 em Blumenau, onde se reúnem
grupos de pessoas antecipadamente inscritos para participar, e bandas que devem dar maior ênfase à música alemã;
dentre outras atividades (RISCHBIETER, 2007).

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Muitos rappers argumentam que as periferias, em Blumenau, não são mostradas pelas
grandes emissoras de TV, que controlam outros meios de comunicação na cidade. Segundo esses
rappers, é passada uma imagem de que não existe periferia, não existe favela em Blumenau. Os
rappers do grupo Palavra de Honra, por exemplo, explicaram que o grupo existe para mostrar para
todos que “Blumenau não é só a cidade da Oktoberfest [...] também é a cidade do rap [...] também
tem periferia, também tem favela, tem mano entrando no crime, tem mano vendendo droga”
Assim, a partir das lentes do rap, em suas falas, nas letras de música, os rappers desenham
uma configuração espacial da cidade em que dão destaque às periferias. Dessa forma, os rappers
elaboram uma contranarrativa sobre a cidade, constroem uma versão da história de Blumenau que
escapa à história “oficial”.
A referência à periferia e a insistência de que Blumenau tem favelas parece afirmar o
sentimento de pertencimento dos rappers a esses lugares. Nesse sentido, negar que a favela
existe parece, em certo aspecto, negar a existência das pessoas que dizem morar nesse lugar e
que demonstram sua identificação com a periferia, como muitos rappers o fazem. Diante dessa
negação, os rappers parecem se afirmar ainda mais, no sentido de mostrar, através de suas
músicas e de suas falas, nos shows e em outros momentos do cotidiano, que a favela está lá com
seus problemas sociais, e que eles, os rappers, também lá estão, enquanto moradores, enquanto
representantes desse lugar, e é nessa condição que parecem querer ser conhecidos e reconhecidos
tanto por seus pares quanto por aqueles que personificam o que os rappers chamam de sistema.
Ter “espaço”, nesse sentido, poderia implicar a possibilidade de reconhecimento e de
valorização por esse sistema, e pelos moradores da cidade, daqueles que vêm da periferia, ou que
se consideram da periferia, como o rap e seus músicos. Nesse contexto de uso do termo “espaço”,
os sentidos dessa expressão parecem estar relacionados à referência à periferia e ao sentimento
de pertença que os rappers expressam por esse lugar.
O termo “espaço” ganha sentidos em meio a negociações conflituosas a respeito dos
lugares, como periferia e centro, construídos em contraste pelos rappers. Essa contraposição
opera através de questões de classe e de posição social; de políticas públicas diferenciadas e
diferenciadoras; de políticas voltadas ao turismo; de relações de poder.
A negociação de lugares passa pela expressão de um sentimento de pertença mobilizado
pelos rappers, em que ter “espaço” vai além da ocupação simbólica ou literal do lugar físico,
implicando um “espaço” como reconhecimento de pertencimento, como “território de subjetivação”
(LEITE, 2004), e colocando em questão o próprio imaginário sobre como Blumenau é percebida, o
que ou quem a ela pertence, ou a quem ela pertence.
As contranarrativas dos rappers sobre a crítica ao centro germânico e europeu de Blumenau,
sobre a insistência de que na cidade existem favelas, denotam o sentimento de pertencimento a
tais lugares e uma forma de inserção social, elas constroem um “território de subjetivação”, que
mostra como e onde os rappers se colocam na cidade e a quais lugares sentem pertencer: aqueles
onde a germanidade não é vista como estando presente.
Os rappers, em certa medida, através de suas músicas, de suas narrativas, de uma

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

história não oficial sobre Blumenau, manifestam-se contra a ideia de uma cidade hegemônica e
supostamente germânica, apontando para a diversidade, para as diferenças, para uma Blumenau
do rap na qual eles se veem presentes, construindo lugares, “espaços”, desenhando uma
cartografia do rap na cidade.
As práticas de reapropriação dos lugares em Blumenau, como daqueles que visam ao
mercado de consumo e à propaganda da germanidade, podem segmentar áreas da cidade e
as transformar em cenários de disputas práticas ou simbólicas dos rappers por inserção social,
reconhecimento cultural, pertencimento, enfim, “espaço”.

2 Modos de ser rapper e construção de “espaços”

A constituição do sujeito enquanto rapper parece passar pela identificação com a periferia,
visto que a ideia do rapper como um sujeito que reside nas periferias urbanas está muito presente
no imaginário social. Essa imagem é também construída pelos próprios rappers, em Blumenau,
que afirmam o pertencimento à periferia.
A periferia, as quebradas, os locais onde os rappers moram, as áreas que dizem representar,
são referências bastante presentes em suas letras de música e clipes, em suas falas quando se
dirigem ao público nos shows de rap e nas conversas que tivemos. Nas letras das músicas, muitos
rappers mencionam os nomes de grupos de rap e de rappers de quem são amigos, aludindo às
quebradas de Blumenau (citando o nome dos bairros que consideram como periferia) que afirmam
representar. Essa alusão também é bastante frequente nas falas dos rappers durantes os shows.
Desse modo, os rappers parecem estabelecer uma ligação entre o rap e a periferia.
Entre os rappers, a periferia é que aparece mais explicitamente como manifestação do
sentimento de pertença, de modo que ser rapper parece, sobretudo, implicar ser da periferia.
A periferia aqui não está condicionada por uma localização geográfica, mas sim ligada a uma
localização de pertencimento, que é expresso por meio de diferentes formas.
Ao narrar estas questões acerca do cotidiano das periferias, muitas vezes os rappers se
posicionam como a “voz do subúrbio”, o “guerreiro da periferia”, aquele que tem um compromisso
com a sua quebrada, de mostrar a realidade e de falar a verdade. Esse compromisso com a
periferia parece remeter a certo comportamento ou “atitude” que muitos rappers consideram que
um rapper tem que ter para representar sua quebrada e para “dar o exemplo”. Tal comportamento
e atitude compõem certa maneira de ser rapper.
Grippa, que era rapper do grupo Fatalidade Verídica, argumentou que há pessoas que
usam o rap como forma de “pegar as menininhas”, essas pessoas, em sua opinião, são “os pára-
quedistas do movimento”: aquele “cara que entra por que é moda da parada”, mas para Grippa
essa “não é a intenção do rap”. Segundo ele, o rap é um meio de transmitir mensagens contra a
utilização de drogas, o tráfico, a prática de roubo e do assassinato, enfim, tudo aquilo que possa

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estar relacionado ao que geralmente é referido nas letras de rap como “a vida do crime”, como o
“caminho do mal”. Nesse sentido, Grippa argumenta que o sujeito que trabalha, que não bebe, que
não usa drogas, “é um cara que tem que tá no rap”, pois “não é só vestir uma roupa, cantar rap pra
ser rapper, é na atitude que tu é rapper”, tem que “ter valores, princípios”.
Assim, a compreensão do que vem a ser atitude implica considerar os papéis que os
rappers atribuem ao rap, bem como apreender certos valores morais que os rappers percebem
como adequados a alguém que canta rap.
Parece haver um conjunto de ideias, valores ou normas, que compõem o significado de
atitude e constroem uma forma de ser rapper vista como adequada. A atitude de um rapper é
avaliada por outros rappers, seja através da sua música, das palavras que dirige ao público em um
show de rap, ou através das suas ações quando não está cantando.
A própria letra das músicas pode transmitir os valores e ideias que estabelecem quais as
atitudes aceitáveis e quais não são admitidas ao rapper. A música e o próprio rap participam do
processo que constrói o sujeito enquanto rapper. Essa construção, conforme dito acima, baseia-
se em princípios morais considerados corretos ou ideais que, por sua vez, também são construídos
socialmente, nas relações que os rappers estabelecem entre si, e negociados na medida em que
são avaliados como certos ou errados.
A construção do sujeito enquanto rapper também se processa em diferentes momentos do
cotidiano, nas interações com outras pessoas, como nas conversas com a antropóloga, quando os
rappers explicam o que é ser rapper, como é ser rapper e o que compreendem por atitude.
As distintas maneiras de ser rapper operam como mecanismos de diferenciação,
constituindo um campo simbólico, ou um sistema simbólico, nos termos de Bourdieu (1990),
no qual os rappers negociam “espaços”. Segundo Bourdieu (1990), as pessoas cotidianamente
assumem papéis e posições sociais, constituindo um sistema simbólico organizado pela lógica
da diferença. Nesse sistema, também estão presentes as relações de poder que perpassam as
interações entre as pessoas. Nesse campo simbólico, através dessas diferenciações, os rappers
parecem negociar “espaços”, no sentido de lugares ou posições sociais que constroem para si em
relação a seus pares. Assim, a identificação com certos valores e normas que constituem um jeito
de ser rapper parecem ser elementos que constroem tipos de “espaços” ou de lugares sociais
elaborados pelos rappers.

3. Outros “espaços”: usando a internet


Em Blumenau, alguns rappers, seja na própria casa onde moram, na casa de um amigo
ou numa lan house, promovem o fluxo de informações sobre o rap utilizando a Internet. Além de
promover o fluxo de informações, a Internet oferece um meio pelo qual os rappers podem divulgar,
distribuir e comercializar suas produções musicais, tornando-se uma forma alternativa e mais
barata de fazê-lo, se comparada a outros meios de comunicação, ou seja, a Internet parece abrir
um novo “espaço” através de diversos sites para a circulação dessas músicas, escapando das

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

restrições do mercado em geral, e da cidade de Blumenau em particular.


A Internet, aqui, é entendida como um espaço ou um meio alternativo de comunicação, mas
não é sinônimo do termo “nativo” “espaço”. Antes disso, a utilização da Internet e de sites propicia
um ambiente através do qual a noção de “espaço” ganha outros sentidos. Estes sentidos parecem
estar vinculados à ideia de oportunidade para divulgação e comercialização das produções
musicais dos rappers, e ao sentimento de pertencimento que os rappers expressam nas músicas,
nos vídeos, nas imagens e nas narrativas orais e escritas.
As relações entre pessoas e as conexões que realizam constroem lugares na Internet de
maneira muito semelhante ao que acontece nos lugares nas cidades, como nos estabelecimentos
onde são realizados os shows de rap em Blumenau. Os lugares são construídos socialmente pelos
usos e práticas dos sujeitos que lhe imprimem sentidos (LEITE, 2004). Os movimentos concretos
das pessoas, o que na Internet se dá por meio dos “cliques” do mouse ou toques na tela do
computador, constroem os lugares.
Muitos rappers consideram a Internet uma forma importante para conseguir “espaço”
para divulgar, distribuir e comercializar suas produções musicais, apesar de não ser para eles a
mais eficiente. Nesse contexto de fala, a noção de “espaço” parece estar associada à ideia de
oportunidade.
O sentimento de pertencimento a um grupo, quebrada, área, bairro ou periferia pode ser
evocado pelos rappers em Blumenau através de suas músicas e relatos orais ou no formato de texto,
tal como usualmente acontece nos lugares da Internet. Os vídeos são uma forma de manifestação
do modo como as músicas, os relatos e as performances dos rappers são “publicados” nesses
lugares.
Através das músicas e clipes, os rappers também parecem manifestar o sentimento
de pertença a sua quebrada ou à periferia quando fazem referência a esse lugar mostrando os
problemas sociais que acreditam afetar a população que o habita; quando mencionam os nomes
dos bairros que consideram estar localizados em regiões de periferia; ou quando citam os grupos
de rap e as quebradas que dizem representar. Essas formas de identificação e de referência à
periferia, por meio das distintas quebradas, são transportadas para os lugares da Internet pelas
músicas e clipes dos rappers de Blumenau, e mostram os olhares dos rappers sobre a cidade,
rearticulando o “local” através da Internet.
Essas narrativas expressam-se nas músicas, e as performances, expressas pelas imagens,
constroem e recriam representações sobre Blumenau e suas periferias. Nesse sentido, a Internet
parece se revelar um meio através do qual os rappers, em Blumenau, insistem na localização através
da referência à periferia, no sentido de pertencer à determinada quebrada ou de representar a sua
área ou bairro da cidade.
A localidade do bairro é transportada para a Internet junto com os vídeos, com as músicas,
com as narrativas dos rappers, e parece construir, nesse ambiente, um “espaço”, um lugar, para o
rap associado ao pertencimento à periferia.
Nos lugares da Internet, então, através dos sites, os rappers também parecem construir

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um lugar como sendo seu, que remete ao pertencimento à periferia, à quebrada, à identificação
com determinado estilo de rap. Além da oportunidade de divulgar, distribuir e comercializar suas
produções musicais, talvez, o “espaço” dos rappers pode implicar uma maneira de se colocar na
cidade através das páginas da Internet, de assumir uma posição social ligada à periferia.

Conclusão

O diálogo estabelecido com os saberes “nativos” e com o recorte da teoria acadêmica


sobre espaço enquanto categoria analítica permitiu refletir sobre como os rappers podem atribuir
sentidos diversos à noção de “espaço”.
Os usos dos sites e dos recursos da Internet pelos rappers parecem dar sentidos para a
noção de “espaço” que implicam a) a ideia de oportunidade para comercializar e divulgar suas
produções musicais b) a ideia da Internet enquanto ambiente através do qual os rappers podem
ter “espaço” no sentido de lugar para o rap e para si, pois os múltiplos usos dos sites da Internet os
transformam em lugares e lhes atribuem sentidos.
A noção de “espaço” é ainda elaborada através dos distintos modos de ser rapper. Aqui a
noção de “espaço” está atrelada a lugares sociais que os rappers constroem para si em relação a
seus pares, e ao sentimento de pertença à periferia.
As representações dos rappers sobre Blumenau nos mostram a diversidade cultural que
a preenche ou a fragmenta. Suas expressões sobre como eles se colocam na cidade nos dizem
sobre como esses mesmo rappers atribuem significados à noção de “espaço”.
Assim, refletir e problematizar o “espaço”, em suas construções sociais, pode possibilitar
um novo olhar sobre a cidade, aquela narrada e desenhada pelos rappers, para assim compreender
como o rap, frequentemente associado à cultura negra e à periferia, ganha sentido numa cidade
geralmente associada à cultura alemã.


Referências

BAUMAN, Richard. A poética do Mercado Público: Gritos de Vendedores no México e em Cuba.


(2009), Antropologia em Primeira Mão, v. 103, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo : Brasiliense, 1990.

CALDEIRA, Teresa P. do Rio. Imagens do poder e da sociedade. In A política dos outros. O


cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo:
Brasiliense, 1984

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

LEITE, R. P. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana


contemporânea. Campinas: Ed. da Unicamp; Aracaju: Ed. da UFS, 2004.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacifico Ocidental: um relato do empreendimento e


da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guine melanésia. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural,
1978.

RISCHBIETER, Iara, L. K. A trajetória do turismo em Blumenau: uma análise. Blumenau em


Cadernos, Blumenau, v. 48, nº 11/12, p. 187-208, nov./dez. 2007.

SCOZ, Tatiane M. Germanidade, periferia e noção de “espaço” para os rappers em Blumenau.


Blumenau em Cadernos, Blumenau, v. 57, p. 23-54, 2016.

_____________. Blumenau também é a cidade do rap: pensando “espaço” a partir dos rappers em
Blumenau. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia
e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2011.

SEYFERTH, Giralda. Etnicidade, política e ascensão social: um exemplo teuto-brasileiro. Mana, Rio
de Janeiro, v. 5, nº 2, out. 1999.

_____________. A ideia de cultura teuto-brasileira: literatura, identidade e os significados da


etnicidade. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, nº 22, jul./dez. 2004.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana. Rio de Janeiro, v. 8, nº 1, 2002.

Página 110
POR ENTRE LINHAS E FOTOGRAFIAS: RETRATOS DO MUNDO/
MODERNO/COLONIAL/DE GÊNERO

OSTETTO, Lucy Cristina (UNESC)


lco@unesc.net

Resumo

Esta comunicação é parte do projeto de doutorado que desenvolvo no programa de Pós-graduação em


História na UFSC, na linha arte, memória e patrimônio. Meu objeto de estudo é a produção artística da
artista negra Rosana Paulino. Neste artigo procuro me debruçar sobre a obra Bastidores (1997) na qual,
utilizando-se de seis fotografias de mulheres, retiradas de seu arquivo familiar, Rosana Paulino constrói
uma poética que expõe “as feridas coloniais” presentes ainda na sociedade brasileira. Entrelaçando
sua obra numa  abordagem  que  expõe a  colonialidade e se coloca como uma estética decolonial
enxergamos sua poética como retratos do mundo/ moderno/ colonial/de gênero, nos permitindo
também pensarmos sua arte como “instantes de verdades” reatualizadas no presente.

Palavras-chave: Arte. Rosana Paulina. Colonialidade de poder. Estéticas decoloniais.


1 Uma Penélope contemporânea que se reinventa pela arte

Pacientemente, como uma Penélope contemporânea ou quem sabe, como uma enorme
aranha, vou cruzando os fios de uma existência que se torna visível a partir das obras
produzidas. Este tecer, que mais do que simbolicamente representa uma maneira real de
me colocar no mundo [...]. (PAULINO, 2011, p. 26).

Ser pela arte. Estar pela arte. Dizer pela arte. É assumindo sua autoria de mulher/artista
negra politicamente empoderada que Rosana Paulino, uma artista visual, educadora e doutora em
artes visuais pela ECA/USP (2011) de São Paulo/Brasil, tece sua subjetividade por meio de sua
arte, rompendo com o lugar de subalterna que a ela (e tantas outras) lhe coube no projeto de
mundo/colonial/ moderno de gênero (LUGONES, 2014), que se traduz numa forma de se colocar
no mundo.
Para além da espera, Rosana se lança ao desfio de criar textualidades-modos de dizer-ser-
e-estar com e pela arte que se traduz num estar agora Penélope contemporânea ou uma enorme
aranha, tecendo imagens-pensamentos-poéticas imagéticas sobre as quais vai imprimindo sua
subjetividade frente a um mundo que não acolhe suas histórias, seu corpo, sua cor.
Didi-Huberman (2004) nos diz que precisamos saber ler e escutar as imagens. E que, elas
se configuram como uma impressão, um rastro ou ainda um traço visual do tempo que quis tocar
outros tempos suplementares, anacrônicos e heterogêneos. Como “instantes de verdade”, as
fotografias se transformam em testemunhas sobre as quais se fixam silêncios e apagamentos.
E que pede de nós um posicionamento para que possamos tentar ver, mesmo em tempos difíceis.
Questões envolvendo o uso das fotografias como indícios que contam histórias foram

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

levantadas por Didi-huberman em seu livro “Imagens a pesar de tudo.”1 A referida obra é
centrada na análise de quatro fotografias que datam de 1944, tiradas no campo de concentração
de Auschwitz por um judeu anônimo que fazia parte de um grupo chamado sonderkommando.
As quatro fotografias “arrancadas do inferno” realizam um ato de romper com um silêncio
quando a ordem imposta pela SS era silenciar e deixar-se matar ou morrer. Ou ainda se traduziram
em um testemunho daquilo que não poderia ter testemunhos, ter registro documentado. A partir
deste estudo, Didi-Huberman defende o valor das imagens na reconstituição das histórias. É
preciso as fazer falar e elas têm muito a nos dizer. Assim, aquelas quatro fotografias apareceram
quando as palavras falharam, “[...] He aqui exactamente lo que son las cuatro imagines tomadas
por los miembros del SoderKommando: unos “ instantes de verdad”. Poca cosa, pues: solamente
cuatro instantes del mes de agosto de1944.” ( DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 57). São nesse sentido,
quatro pedaços de sobrevivência buscando um dizer, mesmo quando o silêncio parecia imperativo.
Há que furar a imagem para ver através dela e enxergar o seu opaco. As imagens são tomadas
como o “olho da história”, nas palavras de Didi-Huberman (2004) que contém instantes de vida
que se liga a um contexto maior. E que se pode por meio delas, contar histórias.
E, do outro lado do Atlântico, em São Paulo, no Brasil, no ano de 1997 Rosana Paulino
também nos convida a pensar com ela, por meio de seis fotografias de mulheres garimpadas
de seu arquivo familiar2. Hoje as fotografias são até banalizadas de tanto que pululam numa
sociedade visual como a nossa. Mas será que ainda podem nos ajudar a contar outras histórias?
Os fotógrafos dessas imagens são também anônimos, pois se trata de algumas fotografias três
por quatro que tanto quanto no contexto anterior, servem para identificar os sujeitos, no caso
aqui, mulheres negras. Que as portam em suas carteiras de identidade e que, na obra de Rosana
Paulino se transformam em “instantes de verdades”, também cruéis, assustadores e reatualizados
na contemporaneidade nos ajudam a conhecer as histórias que pairam sobre corpos racializados
e generificados. É uma arte que enfrenta e que também se coloca como um rastro resíduo, uma
possibilidade de dizer e gritar por entre um mundo no qual as feridas coloniais ainda não foram
cicatrizadas.

2. Nos bastidores para além das suturas, feridas não cicatrizadas

1 DIDI-HUBERMAN, Georges. Imágens pese a todo: memoria visual del Holocausto. Barcelona: Paidós,
2004.
2 Ainda pretendo entrevistá-la para saber sobre este arquivo.

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Série Bastidores, imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de costura / 30 cm / 19973

Bastidores (1997) são imagens-pensamentos de Rosana Paulino compostas de seis


fotografias de mulheres de sua família impressas em tecido, remexidas de suas lembranças e
afetividades familiares,
A maior parte dessas imagens parece ser antiga, o que se nota pelas roupas e penteados.
Outras possuem uma numeração típica de fotografias 3X4, que traziam a data acima
do ombro. Bastidores são releituras de imagens preexistentes, de fotografias pessoais
da artista, retratos de circunstâncias da vida cotidiana, mas que recebem uma leitura
dramática e carregada de sentido, por meio do suporte onde estão expostas e do bordado
realizado por Paulino.4

Cabelos, rostos, expressões e silenciamentos que se multiplicam Brasil afora. Um Brasil


que se construiu a partir do trabalho de tantas outras mulheres anônimas por estes bastidores
representadas e por que não dizer de vidas que não passaram incólume por discursos e práticas
imersas num projeto colonial racista e patriarcal que as classificou como inferiores em termos de
raça e de gênero. De acordo com Tvardovskas, “O título da obra também sugere o tom do anonimato,
daquilo que acontece em segredo, no universo doméstico e é agressivo às mulheres: bastidores
são coisas íntimas e particulares, afastadas do espaço público.”  5 Mas, para além do doméstico
e do anonimato é possível situá-la numa contexto maior que ultrapassa a intimidade quando
expõe práticas que se ligam a um projeto colonial e evidenciam uma sobreposição simultânea de
múltiplas formas de opressão, racial, de classe e de gênero. Neste sentido, “A violência do gesto
contra o suporte, o bordado sobre a imagem fotográfica impressa no tecido, nos remete a uma
violência [...] sofrida por muitas gerações de mulheres negras no Brasil [...] emerge das memórias
(conscientes e inconscientes) nas potentes imagens de Paulino”. (MACÊDO, 2009, p.185).
Como lugar de “produção de sentido” sua arte nos remete às estéticas decoloniais, que
trazem em “[...] sus margens e interstícios, en las marcas no cicatrizadas de la herida causada
por la acción colonial,[..] en los corpos de las personas [...] y seguien siendo inscritos”. (GOMES,
MIGNOLO, 2012, p.16). Assim, pelas linhas-bordadas-suturada Rosana Paulino explicita os
estancamentos e impedimentos impostos às mulheres africanas e afro-brasileiras no projeto
colonial que, por entre amarrações impunham sobre seus corpos, traços de colonialidade.
O uso do bastidor nos reporta à demarcação do espaço ocupado pelas mulheres negras
na sociedade brasileira, no sentido de restringir e invisibilizá-las quanto ao fato de ainda hoje,
permanecerem nos bastidores, cujo palco branco, ocidental, eurocentrado e patriarcal ainda as

3 Cf.: PIMENTEL, Joel. Rosana Paulino: a mulher negra na arte. Disponível em: Rosana Paulino: a mulher negra
na arte - Geledés http://www.geledes.org.br/rosana-paulino-mulher-negra-na-arte/#ixzz4FuI7oEhI Acessado em 10 jun.
2016.
4 TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Tramas feministas na arte contemporânea brasileira e argentina : Rosana
Paulino e Claudia Contreras. 2013. Arteologie Disponível em: http://cral.in2p3.fr/artelogie2/spip.php?article246.
Acessado em 10 jun. 2016.
5 TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Tramas feministas na arte contemporânea brasileira e argentina : Rosana
Paulino e Claudia Contreras. 2013. Arteologie. Disponível em: http://cral.in2p3.fr/artelogie2/spip.php?article246.
Acessado em 10 jun. 2016.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

excluem (MACÊDO, 2009). E que ganham agenciamento por sua obra/visualidade/materialidade.


Pois,

A forma violenta com que as linhas incidem sobre os corpos negros suscitam a incômoda
memória da experiência, um passado não resolvido da escravidão no Brasil. O corpo
subjugado possui ainda uma outra identidade, a de gênero: são mulheres negras
estampadas, amordaçadas, cegas, impedidas de ver, pensar, falar ou de gritar, que a
artista expõe. (SIMIONI, 2010, p. 13).

Há que se dizer que sua obra é, sobretudo, um lugar de enunciado. Para além da denúncia
sobre as diferentes violências que o corpo negro feminino tem aguentado, estão vivas e se refazem
a cada dia, com a mesma firmeza e contraviolência que as suturas disformes contidas em suas
gargantas, testas, olhos e bocas. E ao perfilarem as paredes das exposições transforma-se
em quadros de memórias ou ainda retratos vivos, pulsantes, fraturados, marcados por tempos
distópicos e (re)atualizados porque ainda se fazem presentes na sociedade brasileira e porque não
dizer em Abya Aiala..
Assumindo um lugar de fala, Rosana Paulino rompe com a produção de um conhecimento
geocentrado que desqualificou sistemas simbólicos e de produção de saberes. (PELÚCIO, 2012).
Contrariando a lógica ocidental, segundo a qual nos informa Grosfoguel (2008, p. 48 apud
PELÚCIO, 2012, p. 399):

[...] aquele que fala está sempre escondido, oculto, apagado da análise. A ‘egopolítica do
conhecimento’ da filosofia ocidental sempre privilegiou a mito de um “Ego” não situado.
O lugar epistêmico éticorracial/sexual/de gênero, a filosofia e as ciências ocidentais
conseguem gerar um mito sobre um conhecimento universal verdadeiro que encobre, isto
é, que oculta não só aquele que fala como também o lugar epistêmico geopolítico das
estruturas de poder/conhecimento colonial, a partir do qual o sujeito se pronuncia.

Pelas suas poéticas, há vozes, contradiscursos e histórias que foram silenciadas e matizadas
por relações de poder e que testemunham no presente, a continuidade de um projeto sórdido a
expor feridas coloniais ainda não cicatrizadas.
Pensar nas feridas coloniais que ainda continuam abertas, latentes ou viscerais em Abya Yala
incluindo o Brasil, pela obra de Rosana Paulino, é se debruçar sobre lugares e sujeitos matizados
pela colonialidade. Compreendida como um fenômeno que se estende até nosso presente, a
colonialidade se refere a um padrão de poder que opera a naturalização de hierarquias raciais,
culturais e epistêmicas que possibilitaram a reprodução de relações de dominação e a exploração
pelo capital de uns seres humanos sobre os outros em escala mundial. E mais que isso, nos remete
a subalternização de conhecimentos, experiências e formas de vida dos que foram e ainda são
assim dominados e explorados (RESTREPO; ROJAS, 2010).
A colonialidade é a matriz de poder que estrutura o mundo moderno no qual os trabalhos, as
subjetividades, os conhecimentos, os lugares e os seres humanos do planeta são hierarquizados
e governados a partir de sua racialização que marca de certo modo a produção e distribuição de

Página 114
riquezas (RESTREPO; ROJAS, 2010) .
É pela colonialidade como esquema de pensamento e marco de ações que se legitimam as
diferenças entre as sociedades, sujeitos, saberes e dizeres. É, portanto constitutiva do projeto de
modernidade e parte de um projeto civilizatório. O que implica dizer que,
[..[si se entiende la modernidad como un proyecto civilizatorio, lo que está en juego con
ella es la configuración de un nosotros-moderno en nombre delcual se interviene sobre
territorios, grupos humanos, conocimientos,corporalidades, subjetividades y prácticas,
que en su diferencia son producidas como no-modernas [...]. (RESTREPO; ROJAS, 2010,
p. 18).

E foi neste projeto civilizatório ocidental como não/modernas que as mulheres negras
ficaram à margem, e continuaram amarradas por uma linha/ bordado que ainda continua a ser
tecido pela colonialidade de poder, impressa literalmente nas mulheres dos bastidores. E que
saltam das paredes, porque de forma visceral este projeto moderno/colonial/de gênero foi imposto
com violência e se fazem presentes em fotografias três por quatro que representam corpos
atravessados pela colonialidade de poder e pela colonialidade de gênero (LUGONES, 2014).

3. Quando as imagens atravessam as paredes

Em seu artigo colonialidade y gênero, Lugones (2014) investiga a intersecção entre raça,
classe, gênero e sexualidade nos lembrando que ao entrelaçar a interseccionalidade e colonialidade
de poder lhe permite chegar ao que ela chama provisoriamente de sistema/moderno/colonial de
gênero. E nos diz que no desenvolvimento do feminismo no século XX não se fizeram explícitas as
conexões entre gênero, classe e heterossexualidade como corpos racializados.
O debate destes feminismos se focou epistemologicamente na luta contra as
caracterizações das mulheres como frágeis, débeis tanto corporais como mentalmente e reclusas
no espaço doméstico. Ou seja, “[...] se ocuparan de teorizar el sentido blanco de ser mujer como
si todas las mujeres fueran blanca.” (LUGONES, 2014, p. 68). Ao conceber a mulher como um ser
corpóreo e evidentemente branco, não compreenderam a interseccionalidade entre raça, gênero e
outras marcas/traços de sujeição e dominação (LUGONES, 2014).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Detalhe bastidores6

Contrapondo-se a este silenciamento, a afro-americana Collins (apud BAIRROS, 2014, p.


186) aponta uma longa tradição feminista que expressa uma consciência sobre a intersecção de
raça e classe na estruturação de gênero, apoiando-se em cinco temas que sintetizam o ponto de
vista feminista negro: “[...] 1) o legado de uma história de luta, 2) a natureza interligada de raça,
gênero e classe, 3) o combate aos estereótipos ou imagens de controle, 4) a atuação como mães,
professoras e líderes comunitárias, 5) e a política sexual”. (COLLINS, 1991 apud BAIRROS, 2014,
p.186).
Também Rosana Paulino parte de suas experiências como mulher negra para compor sua
estética decolonial e atribuir-lhe um sentido político:

Sempre pensei em arte como um sistema que devesse ser sincero. Para mim, a arte deve
servir às necessidades profundas de quem a produz, senão corre o risco de tornar-se
superficial. O artista deve sempre trabalhar com as coisas que o tocam profundamente.
Se lhe toca o azul, trabalhe, pois, com o azul. Se lhe tocam os problemas relacionados com
a sua condição no mundo, trabalhe então com esses problemas. No meu caso, tocaram-
me sempre as questões referentes à minha condição de mulher e negra. Olhar no espelho
e me localizar em um mundo que muitas vezes se mostra preconceituoso e hostil é um
desafio diário. Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou de comportamento
que traz muito de preconceito, velado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão.7

Ela faz de sua arte um campo de batalha, de luta, uma forma de ser e estar no mundo
com seu corpo, sua pele, sua racialidade, com seus “cortes profundos” impresso num corpo que
reverbera no presente traços de colonialidade. Poéticas traduzidas em “[...] práticas libertárias e
radicais, tomando o corpo como um campo político, de incisão subversão de forças e geram uma
explosão de sentidos que arruína os universais simbólicos. » 8 E o faz gritando,

Pensar em minha condição no mundo por intermédio de meu trabalho. Pensar sobre as
questões de ser mulher, sobre as questões da minha origem, gravadas na cor da minha
pele, na forma dos meus cabelos. Gritar, mesmo que por outras bocas estampadas
no tecido ou outros nomes na parede. Este tem sido meu fazer, meu desafio, minha
busca.9 (grifo nosso)

6 Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/312437292880580703/ Acessado em 10 jun. 2016.

7 Cf.: Este texto na íntegra do blog da artista Rosana Paulino.


http://rosanapaulino.blogspot.com.br/search?updated-min=2009-01-01T00:00:00-08:00&updated-max=2010-01-
01T00:00:00-08:00&max-results=10 Acessado em 10 jun. 2016.
8 TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Tramas feministas na arte contemporânea
brasileira e argentina : Rosana Paulino e Claudia Contreras. Disponível em: http://cral.in2p3.fr/
artelogie2/spip.php?article246. Acessado em 10 jun. 2016.
9 Cf.: Este texto na íntegra do blog da artista Rosana Paulino.
http://rosanapaulino.blogspot.com.br/search?updated-min=2009-01-01T00:00:00-08:00&updated-max=2010-01-
01T00:00:00-08:00&max-results=10 Acessado em Acessado em 10 jun. 2016.

Página 116
Uma busca que se junta à luta pela superação do que Mohanty (2008) chama de
uma “colonização discursiva” e a necessidade de que para “[...] passar de la crítica para a la
reconstruccion el feminismo occidental debe poder identificar lós problemas acuciantes de las
mujeres mas marginalizadas em el contexto neoliberal.” (MOHANTY, 2008, p. 421)
Entre elas as mulheres negras brasileiras representadas pela arte de Rosana Paulino.
Retratos femininos, corporeidade, saberes, subjetividades por entre nós na garganta, falta de
ar, sufocamento, cegamento, subalternidade e colonialidade do ser que presentificam suas
experiências vividas no sistema mundo/moderno/colonial/de gênero que precisa ser enfrentado,
exposto e transposto. Por isso é preciso compreender que,

[...] La experiência colonial sufrida y acumulada, así como el develamento del carácter
perverso del proyecto civilizador moderno pueden ser o punto de inflexión e impulso
necessário para que prácticas estéticas decoloniales insurjan com la fuerza y amplitud
suficientes para llegar a ser partes constitutivas em la construcción de uma alternativa a la
modernidad [...]. (GÓMEZ; MIGNOLO, 2012, p. 18)

Detalhe da obra Bastidores10

Há que se desvelar uma modernidade que segundo Dussel (apud BALESTRIN, 2013),
é um “mito” que oculta/cega a colonialidade e se desenvolve tendo como premissas a crença
de que a civilização moderna é mais desenvolvida e superior; cuja superioridade obriga a
desenvolver os mais primitivos; que o caminho a ser seguido é o ditado pela Europa; que deve
utilizar-se da violência para destruir os obstáculos dessa modernização; que dominação produz
vítimas múltiplas e variadas como o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, etc; que parte
da premissa que o bárbaro tem uma “culpa” por opor-se ao projeto civilizador e por último pelo
caráter civilizatório da modernidade é inevitável os sofrimentos impostos aos povos atrasados.
Como que contestando esta modernidade, Rosana Paulino lança mão de sua arte que

10 Disponível em: http://www.rosanapaulino.com.br/the-three-graces/ Acessado em 10 jun. 2016.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

arranha, dilacera e deixa marcas profundas numa existência atravessada pela consciência de saber-
se colonizada, mas que se traduz num modo de ser, sentir, pensar e fazer arte como enfrentamento
de algumas facetas da matriz colonial de poder (GÓMEZ; MIGNOLO, 2012). Também como espaço
de subversão, sua arte libera sua subjetividade por entre imagens, cores, linhas, corpos, vistos que
“[...] La decolonialidad comienza por la liberación de lós sujetos reprimidos y marginalizados por el
racismo y el patriarcado [...]. (GÓMEZ; MIGNOLO, 2012, p. 9)

Detalhe da obra Bastidores11

Falar, transpor o nó sobre sua garganta, se desfazer das amarras que subjulgam o corpo
feminino racializado, generificado e subalternizado é também evidenciar seu compromisso político
de enfrentamento. Sua estética decolonial assume uma importância fundamental nos processos de
formação de subjetividades de sujeitos decoloniais. E, neste sentido, “[...] descolonizar la estética
para liberar a aesthesis no es ya un hacer que busca na catarsi ni el refinamento del gusto, sino
la liberación de lós seres humanos de lós disenos imperiales em sus variados rostos”. (GÓMEZ;
MIGNOLO, 2012, p.15) Entre eles, os rostos trazidos por Rosana Paulino em seus bastidores que
falam das histórias e memórias da colonialidade, que expõe as feridas e as histórias de humilhação,
que se transformam em pontos de referência para os projetos políticos e epistêmicos decoloniais e
para a estética decolonial. (MIGNOLO, 2010).
É preciso pensar com as imagens. E percebê-las como artefatos que falam! Que se ligam a
um contexto, que possibiltam enxergar realidades opacas que na obra de Rosana Paulino saltam
de seis singelas fotografias de mulheres negras. Falam. Gritam. E ainda não são ouvidas. Mas
estão aí a testemunhar práticas sociais de exclusão, de apagamentos. Evidenciando o quanto
ainda é preciso lutar para que as marcas da colonialidade não continue sendo impressas em
corpos racializados, classificados e generificados. A arte de Rosana Paulino cumpre o papel de
problematizar esta realidade quando costura sua experiência de vida, apoiada no arquivo de sua
família que se torna público, compartilhado e passível de identificações quando “[...] explora a
história do país e a atualidade de algumas práticas construindo imagens fortes que criticam a

11 Disponível em: http://www.rosanapaulino.com.br/the-three-graces/ Acessado em 10 jun. 2016.

Página 118
manutenção do sistema de desigualdades mantido em muitos gestos [...]”. 12

Referências

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12 AMARAL JUNIOR, José Nabor do. Mulher, negra e artista: a estética crítica de Rosana
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PROJETO SANKOFA - UM CURTO CIRCUITO NOS DISCURSOS VISUAIS
SOBRE A ÁFRICA.

RODRIGUES, João Alberto (E.E.E.F. Dr. Gustavo Armbrust)


ja.rodrigues@hotmail.com.br
EVANGELISTA, Lázaro de Oliveira (E.E.E.F. Dr. Gustavo Armbrust)
lazarusevangelista@gmail.com

Resumo

O presente artigo apresenta parte de um projeto de caráter multidisciplinar entre artes, inglês e religião,
chamado Projeto Sankofa, o recorte mostrado aqui foi a parte de arte-educação, área em que atuo.
Ele foi desenvolvido na Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. Gustavo Armbrust, localizada na
zona norte de Porto Alegre, com duas turmas de 8º ano ao longo de dois meses e meio. Dentre os
objetivos estavam, principalmente, abordar e desconstruir visões e discursos estereotipados sobre
a África, colaborar para uma valorização da cultura afro-brasileira e da representatividade negra, na
apresentação e contextualização da produção de artistas visuais negras e negros da atualidade, por
vídeos e textos, do Brasil e África. São apresentadas as reflexões e questionamentos que permearam
o projeto antes, durante e depois de sua elaboração e execução, assim como atividades e alguns
trabalhos desenvolvidos com as turmas. Trata-se também de pensar uma experiência do que o ensino
de artes visuais pode tentar fazer num meio urbano repleto de imagens como o nosso. Que veicula
discursos visuais nos mais diversos suportes e meios de comunicação, dos quais uma grande parte da
população não se identifica, sendo marginalizada visualmente ou inferiorizada, não colaborando para
o fortalecimento das subjetividades/identidades de pessoas negras, com seus padrões gerados pela
mídia.

Palavras-chave: Cultura afro-brasileira. Ensino de artes visuais. Representação.


Subjetividade.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Começo esse texto por apresentar um pouco do que me levou até o curso de extensão da
Faculdade de Educação/UFRGS Uniafro - Curso de Aperfeiçoamento em Política de Promoção
da Igualdade Racial na Escola – 3ª.ed. Ao logo da minha graduação (2010-2014) em Artes
Visuais no Instituto de Artes (IA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não tive
praticamente nada de arte e cultura africana e afro-brasileira. Assim, logo que saí, senti-me com
crateras em minha formação, e que eu tinha que colocar algumas pás de terra para amenizá-las,
que teria que estudar por fora e buscar cursos e seminários, foi o que fiz e faço...
Esse trabalho desenvolvido dentro do curso consistiu de um projeto multidisciplinar com
o professor de inglês e religião, Lázaro Evangelista, que durou cerca de dois meses e meio. As
intenções do projeto foram colaborar para uma visão mais positiva da África, desconstruindo visões
estereotipadas e as imagens negativas que circulam rotineiramente de miséria e conflitos. Assim,
como promover reflexões e diálogos com base em promover a representatividade de pessoas
negras (no meu caso, no campo da arte contemporânea) e valorizar os aspectos de matrizes
africanas que colaboram para a cultura do Brasil.
O capitulo seguinte apresenta um pouco da identidade da escola e do público estudantil
que percebi e percebo nos dois anos em que trabalho lá.
Em seguida é apresentado o Projeto Sankofa, ele subdividiu-se em quatro partes, na área
de artes, Re(a)presentações e aproximações, onde o foco foi abordar a presença da cultura afro-
brasileira e a diversidade cultural, assim como ancestralidade e sincretismo e a desvalorização
dessa cultura ainda. São apresentadas algumas das produções visuais feitas pelas turmas cuja
ênfase foi a ancestralidade e a mistura de culturas. Na segunda parte, (Des)construindo imagens,
conversamos sobre estereótipos e pré-conceitos que existem em relação à África e como isso é
perigoso, para pessoas, culturas e países. A terceira, A cidade como um discurso visual consistiu
numa visita-caminhada pelo Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, o objetivo era mostrar
como em uma cidade tão grande, não havia representações da cultura afro-brasileira e como
a cidade opera como um grande discurso, escolhendo o que quer e o que não quer mostrar e
a importância do Museu frente a isso. Na etapa final, Sankofa: um conceito, 120 mãos, foi
apresentado o conceito e símbolo Adinkra de Sankofa, originário do povo Akan de Gana e Costa
do Marfim, que significa valorizar e aprender com o passado. Como finalização foi construída uma
escultura coletiva de 2 x 1,7 m de arame e papelagem e estampada com outros símbolos Adinkra.
No Terceiro capitulo são apresentadas algumas mudanças que percebemos ao longo do
projeto quanto aos/as estudantes, e por fim as conclusões onde apresento algumas reflexões
minhas sobre o projeto, a lei 10.639/03 e sua presença ou não nos espaços escolares.
1 Alguns traços do lugar

A E.E.E.F. Dr. Gustav Armbrust fica localizada no bairro Jardim Itú, na Zona Norte de Porto

Página 122
Alegre, a parte em que se localiza é segura comparada a outros bairros, não há problemas de
violência dentro da escola. Ela também recebe estudantes dos bairros Passo das Pedras, Planalto
e Sarandi. Quanto ao publico estudantil, em aspectos sócio-econômicos, é de classe media-baixa
em sua maioria.
A escola, pelo que percebi nesses dois anos que estou lá, assim como muitas outras, tinha/
tem pouco habito de trabalhar elementos das culturas de matrizes africanas e afro-brasileiras.
Quando digo trabalhar, quero dizer de forma orgânica, viva, assim como outros assuntos, ao
longo do ano, que não dependa de um dia ou uma semana, gerando uma “obrigação” ou quase,
ganhando ares de artificialidade, acho que esse é o grande desafio de qualquer escola.
No Projeto Politico-Pedagógico (PPP) de e no Regimento Escolar ainda não constam
a presença da lei 10.639/03 nem da 11.645/08 (sobre cultura indígena), apesar de ambos os
documentos falarem em formar um “aluno crítico, criativo e participativo”. Em meio a isso, as
intenções do projeto consistiram em discutir com as/os estudantes os problemas relacionados
com a cultura afro e tentar romper com o silenciamento e invisibilidade das paredes.


2 Projeto Sankofa

2.1 Re(a)presentações e aproximações

Devido à ainda constante falta (ou um número muito baixo) de representações positivas
de pessoas negras na mídia, assim como das culturas afro-brasileiras ou questões que remetam
ao continente africano, além dos conhecidos estereótipos reproduzidos, com seus efeitos
essencializantes, reducionistas e naturalizantes (HALL, 1994) sobre as subjetividades das
pessoas, esse projeto foi pensado para ser uma tentativa de desconstruir alguns estereótipos que
ainda permeiam os imaginários quando fala-se em África e mostrar um pouco da presença afro,
dando visibilidade a ela, reforçando uma representação positiva.
Um dos motivos foi a ausência de elementos afro-brasileiros no espaço escolar, seu
silenciamento e invisibilidade e como isso é gerador de uma visão negativa da África e o que
vem dela. Na sala, com as turmas, ao iniciar falando sobre o projeto que abordaria questões afro-
brasileiras e africanas, seguiram-se algumas reclamações, como se algo muito maçante fosse ser
trabalhado... Mesmo sendo essa a reação das turmas, não é estranha, estranho seria se houvesse
empolgação da parte delas.
Porque ao ouvir África ou o que provem dela, logo seguem-se uma infinidade de
associações com os seus velhos estereótipos, sobre dor, miséria e que não há nada lá que mereça
ser visto. Bom, isso é resultado das imagens negativas cristalizadas produzidas pelos discursos
eurocêntricos no passado e (re)produzidos pela industria cultural ocidental posteriormente, até
a atualidade. Ainda não permeia no senso comum uma imagem da África como uma região com
culturas ricas e complexas, com uma multiplicidade de histórias e línguas (GOMES, 2008).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Iniciei com a leitura de textos sobre cultura e cultura afro-brasileira, do capítulo “Sementes”
(UTUARI, PASCOAL [ET AL]; Por Toda Parte, 6º ano; 2015, p.168-185). Esse texto aborda as
ideias de cultura(s), sincretismo cultural, patrimônio cultural material e imaterial e ancestralidade.
Também apresenta poesias, letras de músicas e trabalhos de artes visuais que abordam esses
assuntos. Após a leitura, conversamos sobre o que foi visto e lido, abordando principalmente o
sincretismo cultural, a diversidade em nossa sociedade e a ancestralidade, enfatizando a ideia de
que somos (enquanto país e pessoas) constituídos de diversas culturas/grupos. E que mesmo
vivendo em um país com a maioria da população sendo negra, isso não é visto, que a cultura de
origem africana é desvalorizada em favor da europeia e como isso cria preconceitos.
Nas conversas das aulas seguintes, expliquei que esse assunto, nossas ascendências (o
que sabemos delas), seria o início, para abordarmos “um pouco do que nos constitui”, um pretexto
para tentar descobrir o que não sabemos, ou não valorizamos (tanto). Apresentei alguns trabalhos
de artistas visuais que tratam de questões afro-brasileiras, como Deoscóredes Maximiliano dos
Santos, o Mestre-Didi (Bahia – 1917-2013), Rubem Valentim (Bahia – 1922-1991) e Rosana
Paulino (São Paulo – 1967).
Os trabalhos desses artistas se relacionavam com a primeira proposta de trabalho a ser
desenvolvida pelas turmas, porque esses artistas abordavam questões relacionadas a identidades,
matriz cultural ou a história das/os negras/os. O vídeo sobre Rosana Paulino foi o que mais chamou
a atenção, não apenas pelas questões formais de suas gravuras e instalações, mas por sua fala,
seu posicionamento enquanto mulher negra sobre os problemas em nossa sociedade e como isso
se refletia em sua poética.
As aulas seguintes foram para o desenvolvimento dos trabalhos plástico-visuais deles
e delas (figuras 1 a 7), nas linguagens de suas escolhas (escultura/objeto, fotografia, desenho,
estêncil, etc.). Alguns resultados dessa proposta foram interessantes, houve quem conversou com
membros da família, sobre suas origens, de onde vieram as famílias, alguns tentaram ir apenas
pelos sobrenomes, usando a internet, mesmo que com essa segunda via o trabalho ganhasse um
ar ficcional, não era um problema, faz parte da arte, o que importava era o exercício da busca.
Alguns abordaram aspectos/elementos da cultura ou país em questão, houve trabalhos
que abordavam a relação de violência (por exemplo, entre Europa e América ou África ou racismo),
enfim, realizaram trabalhos de crítica ou valorização de algum aspecto cultural.

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Imagem 1 Desenho do mapa do Paraguai com escritos de como os escravizados eram tratados.

Imagem 2 Objeto de papel com silhuetas de dançarinas desenhadas.

Imagem 3 Estêncil sobre tecido com bandeira sul-africana e alemã.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Imagem 4 Estêncil no chão sobre a violência da Europa sobre a América e África.

Imagem 5 Escultura misturando elementos indígena e português.

Imagem 6 Uma igreja engolindo uma aldeia indígena.

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Imagem 7 Mosaico abordando o nazismo, fascismo e apartheid.

2.2 (Des/)construindo imagens


Após essa etapa, busquei provocar algumas ligações com a África, o motivo que expliquei
as/aos estudantes, era o mesmo do inicio, nós descendemos de lá, mas não sabemos quase
nada, ou temos um pensamento repleto de preconceitos. Para isso, iniciei com o conceito de
estereótipo, e conversamos sobre alguns que existem em relação à África, como só ter savanas,
não ter novas tecnologias, as guerras, doenças, etc... sobre como a televisão e filmes colaboram
para a perpetuação desses pensamentos, porque raramente mostram o outro lado.
Sobre esse poder que diversos discursos possuem de construir uma identidade fixa e
inferior, Bhabha (2007) segundo Pires (2014; 39, 40)
“comenta que as imagens enquadram a situação, emolduram a historicidade e, assim,
corpo e identidade passam a ser encaixados estrategicamente numa narrativa cultural,
onde esse outro perde seu poder de significar, de negar, de demonstrar seu desejo
histórico, ou seja, de estabelecer seu próprio discurso.”

Nesse sentido busquei trabalhar com imagens e discursos que desestabilizam visões
sedimentadas ao longo do tempo pelas diferentes mídias. Quanto a isso, quando abordamos o
campo do visual, podemos trabalhar com a ideia de dois tipos de narrativas de acordo com Acaso
(2007): uma macronarrativa visual e uma micronarrativa visual. A grande narrativa visual, lançada
principalmente pela grande mídia, que está atrelada ao macro poder e à ideologia dominante, cria e
tenta impor discursos visuais para as pessoas, estando na maioria das vezes relacionadas a pessoas
brancas, magras, heteras e outros padrões e estreitamente ligado ao consumo. Colaborando assim
para a produção de tipos de subjetividades em detrimento de ou desvalorizando outras de grupos
com menos poder, como as subjetividades que constituem as pessoas negras por exemplo. Já
as micronarrativas visuais, são as que se opõe aos discursos da anterior, geralmente de caráter
informal, feitas por grupos de formas mais independentes, e que não aceitam ser enquadrados
nas narrativas estereotipadas, buscando contrapontos ou realizando criticas. Podem dar-se de

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

múltiplas formas, seja com textos e vídeos na internet, ou por meio de grafites, pichações, estêncils,
adesivos, cartazes e outras manifestações visuais no espaço urbano, assim como outras formas
de trabalhos de artes visuais que não se encontram nas ruas.
Considerando o poder das imagens e do mercado na construção de nossas subjetividades,
comportamentos e nossas escalas de valorações numa sociedade de imagens, onde os
comportamentos de sempre (ou quase) de expor as coisas “boas” e “bonitas” nas redes torna-se
quase uma norma social, não é estranho que imagens e discursos atrelados à cultura afro sejam
vistos como inferiores, pois nesse sofisticado jogo elaborado entre as mídias (ainda) dominantes,
ela raramente aparece, colaborando para um aspecto da lógica de mercado, onde o que é bom
aparece, e o que aparece é bom, como fala Sibilia (2016). Logo, se a cultura afro não aparece, não
deve ser boa, se fosse, apareceria.
Na questão das artes visuais tentei desconstruir um pouco o imaginário sobre as artes visuais
africanas como resumindo-se apenas as máscaras. Sim, as máscaras foram e são importantes
ainda em varias regiões da África, assim como no resto do mundo... Mas enfatizei que as artes
visuais africanas, são tão múltiplas, em pensamentos e formas quanto a brasileira, a européia ou
a asiática. Apresentei imagens de trabalhos de artistas visuais africanos/as contemporâneos/
as enquanto tínhamos essa conversa. E também trabalhos e um vídeo sobre a exposição Africa
Africans realizada no Museu Afro Brasil (São Paulo) em 2015.
O vídeo foi bom para dar conta de uma série de questões, tanto da multiplicidade da
produção poética visual africana quanto de questões da arte em si. O vídeo também ajuda a
desmi(s)tificar a figura do artista romântico como um ser diferenciado, mostrando-os/as como
“gente comum”, pessoas trabalhando com a ajuda de outras, montando a exposição. Ao mesmo
tempo em que apresenta esses/as artistas, negros e negras, algo ainda difícil de ver no cenário
das artes no Brasil, principalmente na região sul. Há um aspecto importante nessa visibilidade, a
figura do artista visual geralmente, ou pelo menos historicamente, fica atrás de sua obra, porque
é ela que aparece, e isso faz com que a figura do artista branco (geralmente homem) continue a
permear o imaginário.
Numa aula posterior vimos um vídeo da escritora nigeriana Chimamanda Adichie “O perigo
de uma única história” falando sobre isso também. Ela comenta os diversos absurdos que já ouviu
por ser escritora e africana ou sobre a África. E fala o quanto é importante ouvir os outros lados das
histórias, ver suas outras faces, sobre o perigo de não se fazer esse exercício crítico.

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2.3 A cidade como um discurso visual – O Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre

Imagem 8 Bará do Mercado; Leonardo Posenato, Pelópidas Thebano, Vilmar Santos e Vinicius Vieira; bron-
ze e pedra; 2013; Mercado Público.

A outra etapa do projeto consistiu numa visita ao Museu de Percurso do Negro em Porto
Alegre. Essa visita foi muito importante para pensarmos o que nossa cidade tem que remete à
cultura afro-brasileira e africana, conversamos sobre o fato da cidade, seus prédios históricos,
arquitetura e monumentos mais antigos serem “europeus” e o fato dessas construções terem sido
construídas por escravos não ser (muito) comentada.

Imagem 9 Pegada Africana; Vinicius Vieira; aço-inox e pedra; 2 x 3 m; 2011; Praça da Alfândega.

Outro ponto importante para pensar a cidade é concebendo-a como um grande discurso
visual construído ao longo do espaço e do tempo. Grande parte da cultura visual de uma sociedade
está impressa na superfície desse tecido urbano. E a visualidade possui uma dimensão estratégica
no espaço urbano, fazendo com que, de acordo com o jogo, que algumas expressões e grupos
ganhem visibilidade e outros não.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Imagem 10 Igreja Nossa Senhora das Dores, Rua dos Andradas.

E quais discursos são construídos de maneira “oficial”, pelo governo, mídia e mercado? Na
nossa cidade, o que aparece? Vemos monumentos tradicionais, feitos de acordo com os cânones
europeus da época, assim como os prédios históricos, e na maioria das vitrines de lojas e outdoors
vemos pessoas brancas. Logo, torna-se muito difícil identificar-se com as culturas de matrizes
africanas se não as vemos representada na cidade, e consequentemente acaba considerando-se
normal não vê-la.

Imagem 11 Tambor; Gutê, Leandro Machado, Elaine, Mattos, Pelópidas Thebano e Xaplin; concreto arma-
do; 1,2 x 2,75 m; 2010; Praça Brigadeiro Sampaio.

O Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, localizado no Centro Histórico, rompe com
esse discurso elaborado na visualidade urbana, como fragmentos visuais contra-hegemônicos,
com os quatro trabalhos valorizando aspectos da cultura afro-brasileira. Ter essa aula-caminhada
a céu aberto foi muito bom, para ter a experiência de olhar para cima, para os lados, coisas que
geralmente não fazemos, falar sobre os trabalhos ao vivo e não apenas pelas imagens do projetor
e poder tocá-los como é o caso do Tambor (Imagem 11) e do Painel Afro-brasileiro. E no Mercado
Público, ver algumas pessoas que passavam jogando uma moeda no Bará do Mercado (Imagem
8) e relacionando-se de forma religiosa com aquele trabalho de arte. A experiência com a Pegada
Africana (Imagem 9) foi interessante, porque a turma demorou para dar-se conta dela no chão, por
ser quase invisível, mas essa sua sutileza acaba sendo seu ponto forte, pois permite perceber algo
que está ali, mas não é visto, pois visualmente perde para a poluição visual urbana.

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Assim como é o caso da cultura afro, ela constitui a cidade também, mas muitas vezes
sendo ignorada, como quando conversamos sobre que muitos prédios históricos foram levantados
com trabalho escravo, como o Mercado Público da cidade e a Igreja Nossa Senhora das Dores
(Imagem 10), por onde também passamos, mas isso não aparece, é invisibilizado e silenciado, não
é problematizado. E essa saída de campo foi um momento para falar sobre essas questões. Ao
final, demos um presente simbólico para cada um/a, uma pulseira com um búzio.

2.4 Sankofa: um conceito, 120 mãos

Na última parte do projeto, que durou alguma semanas, trabalhamos com um conceito
africano, Sankofa, originário do povo Akan de regiões de Gana e Costa do Marfim, que significa
aproximadamente “voltar ao passado para ressignificar o presente”, não esquecer as origens,
o conhecimento construído pelo passado, e como isso são ferramentas para viver o presente e
imaginar o futuro.
Representado as vezes como um pássaro com a cabeça para trás pegando um ovo e outras
como um “coração estilizado”. A simbologia Adinkra da cultura Akan, representam provérbios,
ideias religiosas, comportamentos e valores (SILVA, 2017; VIANA, FERREIRA, SIQUEIRA, 2015).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Com base no conceito Sankofa e em suas representações, foi iniciada uma grande
escultura coletiva de arame e revestida de papel (papelagem) de aproximadamente 2 x 1,7 x
0,4 m, de um Sankofa como conclusão do projeto. A construção desse trabalho coletivo deu-se
entre as duas turmas, uma trabalhava e passava para a outra, o trabalho ia de uma turma para
outra, e foi uma experiência muito boa, trabalhamos no chão em círculos com cada grupo sendo
responsável por uma atividade. A sala foi o saguão e o pátio, de forma que pudessem ficar mais
livres para movimentarem-se para trabalhar.
Com isso quebrou-se um pouco a questão da individualidade e vaidade, tão forte nas
artes visuais ocidentais, enfatizando a colaboração e o coletivo, “o MEU trabalho”, passou a ser
o NOSSO. Também foi uma tentativa de unir um pouco mais as turmas, desenvolvendo mais
o sentimento de grupo, opondo-se um pouco à uma geralmente comum lógica escolar, já que
o cotidiano na escola leva, muitas vezes, a acostumarem-se com a ideia do cada um por si, e
outros pensamentos de nossa mentalidade competitiva e individualista.

Após finalizada a construção da escultura, as turmas realizaram a parte da estampagem na


superfície da peça, fizeram estêncils com outros símbolos/conceitos da mesma região. O trabalho
acabado foi suspendido no saguão, funcionando como uma intervenção temporária, com a qual
outras/os estudantes da escola relacionaram-se em diferentes níveis, do olhar curioso e silencioso
à perguntas sobre o que era e seu significado. O conceito Sankofa, de forma simbólica foi uma boa

Página 132
ideia para concluir porque representava as ideias e intenções que sustentavam o desenvolvimento
do projeto, de olhar para o nosso passado, e consequentemente a África, embaixo de tantas
imagens e discursos superficiais e estereotipados, tentando desconstruir esse imaginário, na
busca por (re)construir outras imagens.



Conclusão
Ao final do projeto e que ficou foi uma interferência no espaço escolar. Da parte da direção
houve apoio e ideia de repeti-lo e tentar expandi-lo. Pelo fato de ter acontecido de forma silenciosa
e por questões de tempo (a falta dele e a burocracia escolar), não houve grandes trocas com os/as
demais colegas com quem conversamos.
Ter realizado o projeto foi uma grande experiência para mim, como jovem professor, ainda
em formação, foi um desafio, pela carência de minha formação nessas questões, também fui
aprendendo a medida que ia fazendo. Trabalhar em parceria, de forma multidisciplinar, que faz
com que a coisa (dar aula) não fique monótona e estagnada apenas nos meus pensamentos. E
satisfeito também pelas turmas terem sido parceiras até o fim.
Mas nesse meio tempo, após estar formado e trabalhando, o que percebi nesses dois
anos, fazendo cursos e sendo ouvinte em seminários, é que a cultura afro-brasileira ainda está
escanteada. E isso repete-se como um eco.
Não devemos trabalhar a cultura afro-brasileira, apenas porque tem um papel dizendo isso
em algum lugar (PPP, Regimento Escolar, LDB), porque parece que na maioria das escolas pelo
que já ouvi em relatos, cai no artificialismo, apenas na semana da consciência negra. Defendo que
devemos tentar trabalhar com ela ao longo do ano, de forma orgânica, permeando e relacionando-

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

se em diferentes períodos do ano com os demais conteúdos, sempre que possível. E acho que
essa organicidade é o grande desafio para as escolas em meio a essa questão, além de superar os
pré-conceitos...

Referências

ACASO, María. Esto no son las Torres Gemelas – cómo aprender a leer la television y otras
imágenes. 2ª Ed. Madrid: Catarata, 2007. 99 p.

ADICHIE,Chimamanda.O perigo de uma única história.Conferência TED,2009.Disponível:https://


www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br Acesso
em: 08 de junho de 2017.

ANTONACCI, Celia. Rosana Paulino. 2014. Disponível em: https://vimeo.com/111885499


Acesso em 08 de junho de 2017.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra.
2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 376 p.

HALL, Stuart. The spectacle of the “other”. In: HALL, Stuart. Representation. Cultural
representations and signifying practices. London: Sage/Open University,1997. 223-
290 p. Museu Afro Brasil. Africa africans. Diponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=dVJv4hUWhmk Acesso em: 08 de junho de 2017.

PIRES, Cláudia Luíza Z., Território, significações etnoculturais e educação. In: KAERCHER, Gladis
Silva, FURTADO, Tanara Forte (orgs). Curso de aperfeiçoamento UNIAFRO: política de
promoção de igualdade racial na escola. Porto Alegre: Evangraf, 2014. 83 p.

SIBILIA, Paula. O show do eu – intimidade como espetáculo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Contraponto,
2016. 360 p.

SILVA, Flora P. Adinkra: um dicionário de valores na arte dos carimbos. Disponível em: http://
www.afreaka.com.br/notas/adinkra-um-dicionario-de-valores-na-arte-dos-carimbos/ Acesso
em: 08 de junho de 2017.

VIANA, Edlaine G. B., FERREIRA, Gessé P., SIQUEIRA, Angelo S. A simetria matemática na
simbologia Adinkra. Disponível em: http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/amp/article/
view/2936/1422 Acesso em: 08 de junho de 2017.

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CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS NEGROS NA ESCOLA DO
TEATRO BOLSHOI NO BRASIL DE JOINVILLE/SC: PRESENÇAS VISÍVEIS,
PROJETOS E PERSPECTIVAS DE VIDA ATRAVÉS DA DANÇA.

Jesse da Cruz 1(FURB*/UNIFEBE**/AZ ARTE/CENSUPEG/BOLSHOI***)


Jeruse Romão2(NEAB/UDESC-FEDERER)

RESUMO

O Teatro Bolshoi é uma das mais importantes referenciais de balé do mundo e foi considerado pela
UNESCO patrimônio da humanidade. Desde o ano de 2000, Joinville, município de Santa Catarina, é a
único lugar do mundo, fora a Rússia, que acolheu uma unidade/escola do Balé Bolshoi, da Rússia. Desde
então, há 17 anos, ocorrem processos seletivos em que, largamente, crianças, adolescentes e jovens
negros concorrem nos processos seletivos para uma vaga na escola de Joinville. O presente trabalho
busca conhecer quais motivações levaram as crianças, adolescentes e jovens negros a concorrerem a
uma vaga nessa escola e quais suas perspectivas a partir dessa experiência de educação através da
dança. Esse estudo em andamento pretende tornar visível esse contexto extremamente importante e
que mereço abordagem por ser inovador no âmbito da dança brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Balé Bolshoi, Corpo Negro, Dança, Adolescentes e Jovens


Negros

1 Formado em Arte plena e especialista em Dança e Conscientização Corporal, Jessecruz.cruz@bol.com.br


*Faculdade de Blumenau – Professor Substituto do Departamento de Arte, núcleo Teatro
**Universidade de Brusque – Professor de Educação Física com a disciplina Dança e Saúde
***Escola do Teatro Bolshoi no Brasil – Professor e Coreógrafo convidado
2 Pedagoga. Mestre em Educação, jeruse13@gmail.com

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

INTRODUÇÃO

Este trabalho é uma pesquisa original no que diz respeito a formação técnica em dança
com o olhar focal para crianças, adolescentes e jovens negras,com característicasétnicas/
fenotípicas negro-africana como cor da pele, cabelos, estruturas fisiológicas, dentro da renomada
3
e internacional Escola do Teatro Bolshoi no Brasil (ETBB) , com objetivo de compreender quais
são, nas presenças visíveis, os projetos e perspectivas de vida através da dança para os bailarinos
negros emformação.
Com proposta de responder ou articular mais curiosidades para futuras pesquisas a respeito
do negro na formação técnica em dança entorno do artista/atleta de auto performance ou auto
4
rendimento , o trabalho vem abordando questões que nos deparamos no mundo da arte como o
embranquecimento de algumas danças negras ou que tiveram origem em senzalas afro indígena
pela américa latina como o Tango (Argentina), Lundu (Norte do Brasil), Cumbia (Colômbia), entre
outras. Assim como o pertencimento dessas crianças, adolescentes e jovens negras no Ballet
Clássica e Dança Contemporânea num universo majoritariamente branca, com características
estéticas padronizadas e perfis históricos claro, europeu e excludente.

ESCOLA DO TEATRO BOLSHOI NO BRASIL

A Escola do Teatro Bolshoi no Brasil situa-se na cidade de Joinville, estado de Santa


Catarina, é a única filial do famoso Teatro Bolshoi da Rússia, conhecido pela minuciosa metodologia
Vaganova no ensino do Ballet Clássico
Desde 2000 a ETBB vêm proporcionando o conhecimento técnico da metodologia
Vaganova para o ensino do ballet clássico, dança contemporânea e disciplinas complementares,
para a formação de artistas da dança.
Tem como aprendizes crianças, adolescentes e jovens vindos de diferentes estados
brasileiros e do exterior, ressaltando seu compromisso social, técnico e cultural para a comunidade
latino-americana na formação de artistas de grande nível técnico e artístico.
A ETBB é uma instituição com personalidade jurídica, de direito privado, sem fins lucrativos,
que tem apoio da Prefeitura Municipal de Joinville e é mantida pelo Governo do Estado de Santa
Catarina e pelos chamados “Amigos do Bolshoi”, empresas e pessoas físicas socialmente
responsáveis que apoiam
o projeto através de serviços prestados, concedendo dessa forma bolsa de 100% para
todos os alunos atualmente matriculados e outros diferentes benefícios como alimentação,
uniforme, transporte (van ou passe de ônibus), recuperação, assistência social, assistência médica,

3 ETBB, sigla utilizada para definição do nome completo da ESCOLA DO TEATRO BOLSHOI NO BRASIL, o
mesmo será utilizado durante o trabalho como forma de identificação do espaço.
4 Definição utilizada para sujeitos que praticam no mínimo 4 horas da mesma atividade, por exemplo a dança,
por dia, com o intuito de aprimoramento técnico buscando um melhor desempenha e índices atléticos.

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entre outros. É apoiada também através de patrocínios por leis de incentivo à cultura, municipais,
estaduais e federais.
A Escola do Teatro Bolshoi tem suas atividades educacionais credenciadas junto ao
Ministério da Educação – MEC, estando os cursos, aprovados pelo Conselho Estadual de Educação
e a Secretaria Municipal de Educação.
A instituição tem aprovado os seguintes cursos:
Curso Básico em Dança Clássica – autorizado pelo COMED (Conselho Municipal de
Educação), resolução nº021/07, neste curso nenhuma criança necessita saber alguma coisa, o
mesmo serve como forma de incentivo e educação cultural, com duração de cinco anos.
Curso Técnico de Nível Médio em Dança Clássica (parecer CEDP nº 188 aprovado em
14/09/2009), curso este concomitante com o ensino médio regular, dessa forma qualificando
tecnicamente os alunos para o mercado de trabalho, com duração de trêsanos.
Curso Técnico de Nível Médio em Dança Contemporânea (parecer CEDP nº 349 aprovado
em 29/09/2009), se tornou outra possibilidade para ingressos de desenvolver outros tipos de
trabalho na área artística, com duração de três anos.

SELEÇÃO

A ETBB desenvolve a seleção de bolsas de estudo todos os anos no Brasil e em países


da América Latina realizando as seleções com diferentes métodos e iniciativas inovadoras e
acessíveis à comunidade brasileira.
O anuncio de todas as informações para seleção é feita em formato de edital lançado pela
5
instituição no site e em suas páginas sociais oficiais, onde contem a ficha de inscrição e todas as
informações necessárias para oprocesso seletivo. A equipe de imprensa elabora arte de divulgação
de mídia informando local, data, horário e ano.
A Escola do Teatro Bolshoi no Brasil realiza o Processo Seletivo, todo ano no mês de outubro,
na cidade de Joinville (SC), onde fica sua sede física, para ingresso de novos alunos para os cursos
básico (a partir de nove anos) e técnico (concomitante ao ensino médio) em dança clássica.
O Processo Seletivo para ingressas na ETBB compreende três etapas: Motivacional, Pré-
seleção e Seleção.
A 1ª etapa é Motivacional: Tem como alternativa o primeiro contato de crianças e
adolescentes no conhecimento do que é a ETBB e também do universo da dança. A participação
dos professores da rede pública e de arte- educadores é fundamental para estimular os futuros
candidatos, nesta etapa o foco é voltado para alunos da rede pública e particular do município de
Joinville.
A 2ª etapa é a Pré-seleção, etapa que antecede a Seleção Oficial Nacional da Escola
Bolshoi que acontece no mês de outubro, na sede da instituição, esse processo é um meio inovador

5 www.escolabolshoi.com.br

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

para acessibilidade de crianças e adolescentes de todo o país e de países da América Latina. A


pré-seleção é quando a equipe formada pelo núcleo artístico como professor de dança, professor
de música ou equipe do núcleo de saúde como a fisioterapeuta, preparador físico, vão até alguma
cidade do nosso país, abrangendo Norte, Nordeste, Sul, Centro-Oeste eSudeste.
Nesta etapa (Pré-seleção ou Indicação – estaduais), profissionais da Escola Bolshoi vão
até o local definido para realizar a pré-seleção. Na ocasião, são oferecidas vagas para ambos os
sexos (masculino e feminino), para candidatos nascidos nos anos pré-estabelecidos (conforme
especificado no edital). Os concorrentes passam por uma bateria de exercícios que analisam
6 7 8 9 10
as habilidades físicas e artísticas , como flexibilidade , projeção cênica , postura e
11
biótipo , nessa pré-seleção já é diagnosticado quem tem possibilidade de ingressar na instituição,
sempre levando em consideração as questões anatômicas já que a metodologia Vaganova e o
processo do artista / atleta, auto rendimento requer um biótipo diferenciado e pré-preparado para
a compreensão metodológica. Nesta fase da pré-seleção ou indicação o candidato aprovado vai
para a Seleção Nacional, realizando dessa forma uma culminância cultural na cidade de Joinville,
onde todos os pré-selecionados e indicados de todas as regiões brasileiras se encontram.
A seleção anual para novos alunos compreende etapas que vão do despertar de
jovens e crianças para o mundo das artes, até avaliações médicas e artísticas específicas. São
disponibilizadas vagas para o curso técnico (candidatos com conhecimento em dança) e básico
de dança clássica (crianças sem conhecimento especifico em dança).
A seleção é aberta para qualquer pessoa do Brasil ou do exterior, chegando a um índice
médio de 50 candidatos por vaga. O processo seletivo tem procedimento técnico definido e
fundamentado, com condições de encontrar futuros talentos e indicá-los a estudar na ETBB.
3ª etapa é a Seleção, etapa presencial que se divide em:
12
Médico-fisioterápico . Os candidatos passam por avaliação com médicos e fisioterapeutas
para atestarem as condições para a prática da dança. São analisadas musculatura, articulações,
desvios posturais, habilidades físicas, motoras, sinais vitais (frequência cardíaca respiratória),
13
percentual de massa corpórea e somatotipo . Além de habilidades específicas para o balé clássico,
como abertura de quadril (rotação externa) e flexibilidade.
Após as medições, os jovens candidatos fazem exercícios que testam sua capacidade

6 Condicionamento corporal como boa formação óssea, não ter nenhuma lesão que poderá impossibilitar a
conclusão da formação técnica, entre outros;
7 Identificar se o candidato tem alguma habilidade além da dança para sua complementação como um artista,
portanto o candidato pode cantar, interpretar, jogar capoeira, outros esportes e até mesmo outra modalidade de dança.
8 Hiper alongamento muscular de partes do corpo importante para a formação do bailarino, como pés, coluna,
rotação do quadril, entre outros.

9 Termo utilizado para a disposição do corpo na cena, no palco em frente ao público, sendo trabalhado o carisma,
presença, desinibição, entre outros, utilizando de técnicas de teatro para o mesmo.
10 Posição correta anatômica do corpo.
11 Características necessárias para ser um artista de auto rendimento
12 Etapa que verifica as questões anatômicas e de saúde.
13 Técnica de estudo que consegue diagnosticar a probabilidade de crescimento do ser humano

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motora, força, musculatura e articulações, como pular o mais alto que conseguem com os dois pés
juntos, encostar o corpo no chão com as pernas dobradas na posição “sapinho” e alongar a perna
para cima. É dessa forma que será possível avaliar se os aspirantes a bailarinos terão capacidade
14
física não só para aprender o Método Vaganova , programa de estudos russo utilizado pela ETBB,
mas para alcançar os padrões da instituição, que se assemelham aos de atletas de auto rendimento.
15 16
Como procedimento os candidatos participam da parte artístico-musical e cognitiva .
Profissionais da Escola avaliam quesitos de musicalidade, força, projeção cênica e desempenho
intelectual dos candidatos através de exercícios que se utilizam do ritmo, instrumentos musicais
como flauta doce.
Se o candidato apresenta conhecimento prévio em dança, o mesmo realizará uma aula de
balé clássico e uma avaliação física. São observados o nível técnico, equilíbrio, musicalidade, giros,
saltos e elasticidade do candidato, além do uso das sapatilhas de ponta para as meninas.
A cada dia da seleção nacional sai a lista de aprovados para a próxima etapa, lista está que
é fixada na porta de vidro da escola, onde candidatos e familiares ficam do lado de fora torcendo
e chorando com enormes emoções. Após todas as baterias de exames e testes a lista final é
disponibilizada novamente, ressaltando que todas as informações são disponibilizadas no site da
escola, mostrando a veracidade da seleção.
Os aprovados têm uma data especifica dentro do edital de cada ano para fazer suas
matriculas e trazer os seus documentos para oficializarem e confirmarem suainscrição.
Outra forma de ingressar como aluno na ETBB, é no mês de julho, durante o Festival de
Dança de Joinville, que é realizado uma Audição na própria sede, aproveitando o número grandioso
de bailarinos que a cidade recebe durante este período, podendo esses bailarinos ingressar de
forma imediata ou ser indicado para a seleção nacional, cujo com os indicados e pré- selecionados
durante o ano letivo.
Após a aprovação inicia-se outra luta e angustia para os novos alunos da ETBB, que é em
torno de sua permanência na cidade. Onde essas crianças, adolescentes e jovens irão ficar durante
o estudo na ETBB? Com quem morarão? Quem custeará suas despesas? Como se manter? Enfim,
muitas dúvidas em relação ao mesmo.
A ETBB oferece toda a parte técnica de forma gratuita, como alimentação balanceada,
fisioterapia, nutricionista, psicóloga, professores de dança método vaganova, pianista, professores
de música, orientação pedagógica, porém a moradia externa é individual, onde cada família
desenvolve formas distintas de custear a permanência do estudante.

14 Metodologia criado pela bailarina russa Agrippina Vaganova para o ensino da técnica do Ballet Clássico.
15 Analise o desempenho em relação a ritmo, harmonia, musicalização de ouvido e corporal;
16 Reflexo importante para o bailarino, conseguindo relacionar a teoria e a prática.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

MÃE/FAMÍLIA SOCIAL

É neste momento que se inicia o papel de grande importância para completar o início da
vida de bailarino em formação, os dos chamados de “Mãe Social ou Família Social”.
17

Que são mulheres ou famílias que oferecem as crianças, adolescente e jovens que estão
sob seus cuidados, condições próprias de uma família. Administram a casa, realizam e organizam
as tarefas a eles pertinentes; atendem, assistem e orientam aqueles que estão sob seus cuidados.
A ideia é que a atuação da mãe/família social se aproxime ao máximo do tratamento biológico,
oferecendo um ambiente familiar e acolhedor, atendendo todas as necessidades aquele que está
sob seu cuidado
Um dos maiores desafios para os novos alunos da ETBB é a mudança, literalmente, de
vida. A maioria deles largam tudo em busca de um sonho. E para aqueles que não moram em
Joinville, o desafio se torna ainda mais difícil, pois eles precisam trocar de cidade, de casa, de
amigos, ficar longe da família e achar um lar onde se sintam acolhidos. Alguns pais conseguem
adaptar suas vidas e se mudar com os filhos para a cidade de Joinville em Santa Catarina sede da
instituição. E para tantas outras famílias, esta preocupação vem se tornando cada vez menor. Há
cerca de doze anos existem as casas sociais, que oferecem não só um quarto, mas o abraço de
uma família social, que em grande maioria são compostas por mulheres, representando o papel
de mãe, e o aconchego de um lar. Atualmente, 15 casas estão cadastradas na instituição, sendo
apresentadas aos pais durante o período de matrícula. São residências particulares, e cabe a cada
família conhecer as opções e decidir qual é o local mais adequado para seu filho morar.
O projeto teve início com casas administradas por prefeituras e governos, como a Casa do
Piauí, mantida pelo governo do Estado do Piauí, oferecendo serviços básicos como a hospedagem,
roupas, alimentação, e uma cuidadora do próprio estado, que por meio de um convênio com o
ETBB, dão todo o suporte para que crianças, adolescentes e jovens de projetos sociais de seus
estados morem em Joinville durante a permanência no estudo de dança, que tem duração de 16
semestres, totalizando oito anos de estudo.
Após o início deste projeto, que teve como referência outros esportes de auto rendimento,
onde crianças, adolescentes e jovens também iniciam suas vidas profissionais ou semiprofissionais
precocemente, se estendeu a outras famílias, principalmente para mulheres que já haviam criados
seus filhos, sobrando um tempo maior para a nova tarefa, que decidiram fazer deste processo
de abrigo um trabalho. A dedicação exige tempo integral: no cuidado da casa, na alimentação e
na educação dos “filhos”. Assim como no balé, a disciplina e o respeito fazem parte da vida das
pessoas, e é desta forma que estas mulheres tentam transformar a difícil missão de educar em
amor.

17 Realizam o papel da mãe genitora para que o bailarino possa dar continuidade aos estudos.

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METODOLOGIA DA PESQUISA

Para relacionar, compreender o universo dos bailarinos negros em formação técnica de


auto rendimento em dança, e abordar as questões como gênero na dança, o negro no ambiente
da dança clássica e contemporânea, os preconceitos na trajetória de formação e pós formação, as
mudanças fenótipos para o enquadramento nos parâmetros do ballet de auto rendimento, enfim,
pertinentes na escrita deste trabalho.
Com objetivo de identificar as relações das crianças, adolescentes e jovens negros, diretas
e indiretas, na formação técnica em dança na ETBB, foi elaborado neste primeiro momento do
estudo um questionário semiestruturado, contendo onze questões, sendo cinquenta por cento
fechada e os outros cinquentas por cento semiaberta, pois o sujeito além de assinalar uma ou mais
alternativa, tinha um espaço para espanar suas reflexões se assim desejar.
O questionário para essa pesquisa foi dividido em alguns critérios para que pudéssemos
identificar o sujeito em sua maior totalidade, sendo crianças, adolescentes e jovens negros da
ETBB, o que o leva a praticar a dança e realizar todas as mudanças sujeitas, como mudar-se para
outro estado, distanciar-se de seus familiares, habitar-se com mãe social, desbravar e descolonizar
ambiente embranquecido como a cidade de Joinville em Santa Catarina.
A pesquisa tem caráter qualitativo utilizando-se como forma de analise a metodologia
estatística ao cruzar os dados pesquisado levando em consideração as percepções e motivações
em suas relações e interações socioculturais, de acordo com uma abordagem fenomenológica,
que se torna o encontro do sujeito com o mundo segundo (Abramovay e Castro, 2006). O trabalho
tem o cuidado de preservar seu grupo focal, crianças, adolescentes e jovens negros em formação
técnica em dança na ETBB, portanto serão utilizados letras distintas e idades para validar
algumas argumentações ou declarações dispostas na entrevista por questionário, preservando a
integridade do entrevistado.
Trabalhar e tratar de eixos temáticos como o corpo negro, preconceito na dança, tratamento
do corpo negro para a padronização do corpo técnico no Ballet, identidade, relações sócias
afetivas e desempenho escolar, dentre outras, demanda a adoção de perspectivas que assegurem
e proporcionem uma veracidade numa leitura próxima à realidade pesquisada, filtrando através da
pesquisa qualitativa as informações obtidas pela aplicabilidade dos instrumentos – questionário
testado e reformulado – possibilitando uma escrita mais eficaz no que diz respeito a importância e
qualidade das respostas e suas correlações com o sistema da formação técnica emdança.
Para a pesquisa foi solicitado junto a secretaria da ETBB a relação dos alunos divididos em
etnia/raça para uma abordagem focal das crianças, adolescentes e jovens negros da instituição. No
sistema de cadastramento da instituição os indivíduos são divididos somente em Brancos, Negros
e Pardos, onde os mesmos não se declaram, sendo classificados a partir do olhar da secretária
vigente atualmente assim temos 110 alunos brancos, 90 alunos pardos e 27 negros totalizando
um número de 227 bailarinos em formação até o mês de junho/2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A partir deste dado disponibilizado pela equipe pedagógica foi abordado 30 bailarinos
em formação, sendo crianças, adolescente e jovens negros de 9 a 18 anos, sendo os 27 negros
classificados pela instituição e mais 3 indivíduos que foram classificados como pardo, mas que
apresentam caraterísticas étnicas da cultura negra, assim completando o quadro depesquisa.
O resultado da pesquisa foi obtido a partir das entrevistas e desenhada em gráficos assim
estruturadas: gráfico 1 – sexo/gênero, gráfico 2 – faixa etária, gráfico 3 – região, gráfico 4 – etnia/
raça, gráfico 5 – residência em Joinville, gráfico 6 – escolaridade e gráfico 7 – subdivisão regional.
Para outro momento as respostas dadas durante a aplicação e registro no questionário que serão
utilizados durante as reflexões traga na escrita do trabalho.

SUJEITOS ENTREVISTADOS – ANALISE DA ENTREVISTA


O grupo entrevistado foi composto como mencionado anteriormente por 30 bailarinos em
formação técnica, sendo que são crianças, adolescentes e jovens negros entre 9 a 18 anos de idade.
Para melhor analise iremos abordar gráfico por gráfico, levando sempre em consideração que os
alunos entrevistados foram selecionados baseado em suas classificações étnicas raciais perante
a escola, sendo 27 alunos e 3 que apresentavam características do povo negro ao posicionamento
do olhar do pesquisador que lhes escreve.
Gráfico 1 – Gênero: os alunos preencheram o questionário que ofereci duas possibilidades
para essa questão, masculino e feminino. Dos 30 entrevistos nesta pesquisa 40% eram do gênero
feminino totalizando 12 crianças, adolescentes e jovens negras e o restante era composto de 60%
declarados do gênero masculino somando 18 crianças, adolescentes e jovens negros.
A partir deste ponto já podemos verificar um grande percentual na quantidade de gênero
masculino na ETBB e verificaremos ao longo da pesquisa o quanto esses ainda sofrem com o
preconceito por questão de gênero na dança, sendo o mesmo uma das consequências para a
desistência de masculino na dança no mercado ocidental de cultura earte.

Página 142
Gráfico 1 – Gênero (masculino e feminino)

Gráfico 2 – Faixa Etária: a pesquisa nos mostra ao verificarmos o gráfico 2 as diferentes faixas
etárias, significando a fomentação da cultura e arte da formação técnica em dança. Na pesquisa
as diferenças de idade por ano de nascimento ficaram tabelados da seguinte forma: 1 bailarino
nascido em 2007, 1 bailarino nascido em 2006, 6 bailarinos nascido em 2005, 5 bailarinos nascido
em 2004, 2 bailarinos nascido em 2003, 1 bailarino nascido em 2002, 4 bailarinos nascido em
2001, 5 bailarinos nascido em 2000, 2 bailarinos nascido em 1999, 1 bailarino nascido em 1998
e 2 bailarinos nascido em 1997, totalizando trinta entrevistas e confirmando o grupo de pesquisa
entre 9 a 20 anos de idade completos ou incompletos.

Gráfico 2 – Faixa Etária (1997 a 2007 – 9 a 20 anos completos e incompletos)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Gráfico 3 – Região: para que fosse possível dentro dos parâmetros de pesquisa no artigo
cientifico, os entrevistados ao se identificarem escreviam em qual estado do Brasil ou país
nasceram, sendo, portanto, divididos por estado brasileiro, pois não houve nenhum entrevisto não
brasileiro, ficando assim, representado: 0% Centro-Oeste, 7% Sul, 10% Norte, 37% Nordeste e
46% Sudeste.

Gráfico 3 – Região (Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste)

Associado ao último gráfico desenhado, gráfico 7 - Estado, eles foram readequados


conforme seus estados de nascimento, assim ficando classificados:
•Centro Oeste: Não houve entrevistados;
•Sul: 2 entrevistados do estado de Santa Catarina;
•Norte: 2 entrevistados do estado do Pará e 1 do estado do Amapá;
•Nordeste: 6 entrevistados do estado da Bahia, 1 entrevistado de cada estado seguinte -
Ceará, Sergipe, Piauí, Paraíba e Pernambuco;
•Sudeste: 6 entrevistados do estado de São Paulo, 4 entrevistados do estado do Rio de
Janeiro, 3 entrevistados do estado de Minas Gerais e 1 entrevistado do estado do Espirito Santo.
A partir dessa explanação gráfica dos bailarinos em formação entrevistas, surge outras
questões e inquietações, mostram que a Região Sudeste é o estado com maior poder aquisitivo
com relação a permanência dos alunos no município de Joinville.

Página 144
Gráfico 7 – Estados

Gráfico 4 – Etnia/Raça: Neste gráfico, verificou-se a questão da autoafirmação nas questões


étnicas, assim como o reconhecimento como negro. Para os entrevistados foi oferecido no
questionário as opções classificadas pelo IBGE para definição de cor e raça, Branco, Preto, Pardo,
Indígena, Asiático e Outros.
A classificação entre os 30 entrevistados ficou assim declarado: 0% Branco, 67% Preto,
20% Pardo, 10% Indígenas, 0% Asiático e 3% Outros. Durante a aplicação do questionário alguns
entrevistados perguntavam para o pesquisador qual era a sua própria cor. Para não influenciar
por questões éticas o processo, o pesquisador levou um espelho e toda vez que havia um
questionamento parecido o mesmo apresentava o espelho e questionava “o que você vê no
espelho? qual a cor predominante? Como você se enxerga?” dessa forma se torna evidente a falta
de reconhecimento e entendimento étnico para asclassificações.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Gráfico 4 – Etnia/Raça (Branco, Preto, Pardo, Indígena, Asiático e Outros)


*Classificação baseado no estudo do IBGE

Gráfico 6 – Escolaridade: Conforme gráfico identificou-se que entre os bailarinos


entrevistados 1 já concluiu o ensino regular completo, 5 estão cursando o 3º ano do ensino médio
e 5 estão cursando o 2º ano do ensino médio, 2 estão cursando o 1º ano do ensino médio, 3
cursando o 9º ano do ensino fundamental, 4 cursam o 8º ano do ensino fundamental e 4 cursam o
7º ano do ensino fundamental, 5 estão cursando o 6º ano do ensino fundamental e apenas 1 esta
cursando o 5º ano do ensino fundamental.
Ao apresentar a escolaridade foi diagnosticado que há repetência ou atraso em relação a
faixa etária com o ensino regular, lembrando que para que todos possam receber certificado de
conclusão em técnico em dança emitido pela ETBB e reconhecida pelo MEC, todos os bailarinos
em formação devem concluir o ensino regular.

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Gráfico 6 – Escolaridade (Escola Regular)

Gráfico 5 - Residência em Joinville: Nesta questão foi perguntado com quem esses
estudantes de dança residiam em Joinville/SC, sendo três alternativas, mãe sociais, pai ou mãe ou
responsável legal, se os mesmos morassem com outros membros da família ou sozinhos.
50% dos entrevistados moram com seus pais legítimos, que mudaram para Joinville e
consequentemente de vida para acompanhar seus filhos, alguns relataram que moram somente
com a mãe, outros somente com o pai e alguns com a família, mãe, pai eirmãos.
Já 13% dos entrevistos declararão moram com seus responsáveis legais, se justificando
serem maiores de idade e/ou emancipados, residindo sozinho ou acompanhados por outros
estudantes da ETBB.
37% moram com a “Mãe/Família Social” que surgiu da necessidade de pais de alunos
selecionados de outras cidades/estados, e que não tinham como mudar-se para Joinville
junto com o filho, por questões profissionais e de manutenção. Os mesmos optam por delegar,
parcialmente e temporariamente uma mãe/família social para representa-los junto a ETBB e em
outras necessidades que a criança, adolescente ou jovem vier a precisar durante o período em que
estiver em Joinville.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Gráfico 5 – Residência em Joinville

PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO

Através da pergunta de número dez que está relacionada a discriminação, abordaremos o


preconceito na dança utilizando-se dos comentários dos entrevistados, mesmo entendendo que a
dança na visão educacional do ser, pode se configurar em espaço-tempo de compartilhamento de
experiências, possibilitando a (trans)formação de subjetividades segundo (KLEINUBING, Neusa
Dendena; DO CARMO SARAIVA, Maria; FRANCISCHI, Vanessa Gertrudes- 2013).
A questão 10 do questionário possibilita vários pontos de escolha, questionando se
o entrevistado sofreu algum tipo de discriminação por ser negro(a), pobre, gordo/a, de alguma
religião, por ser de outra região, outro tipo de discriminação não apresentada no questionário e/ou
se nunca sofreu nenhum tipo de discriminação.
Durante a aplicação do questionário várias perguntas e reflexões eram feitas pelos
entrevistados para eles mesmos a partir das questões apresentadas pelo questionário como
por exemplo, “aqui na questão 10 não tem discriminação por ser menino?”, “posso colocar na
discriminação por causa do meu cabelo?”.
Utilizaremos as frases escrita e para preservação do entrevistado daremos números e ano
de nascimento, dessa forma protegeremos o mesmo.

“Sofri discriminação por ser Umbandista” (Bailarino 15, 2000)

Quando o assunto foi religião um dos entrevistos diz claramente que foi violentado
verbalmente fora da ETBB por sua escolha religiosa e dentro da ETBB foi alvo de questionamento

Página 148
dos amigos de sala para entendimento sobre a religião, ponderando um diálogo de conhecer o
invisível, desmistificando e descolonizando.
Neste diálogo percebemos a necessidade e o desafio da descolonização do currículo
educacional brasileiro que segundo Nilma (2012) muito já foi denunciado sobre a rigidez das
grades curriculares, o empobrecimento do caráter conteudista dos currículos, a necessidade de
diálogo entre escola, currículo e realidade social, a necessidade de formar professores e professoras
reflexivos e sobre as culturas negadas e silenciadas nos currículos.

“Pessoas me confundem com homem, pois escolhi ter cabelo curto.” (Bailarina 21, 1999)

Na epígrafe acima nos deparamos em um desabafo de uma bailarina negra cuja estética
não padronizada atrai comentários maldosos que interfere nas questões de estética, beleza e
identidade, neste sentido, segundo SILVA (2014) ao conceber o cabelo como sendo este uma
das partes que compõe o corpo e considerando dentre suas diferentes funções aquela que dá
moldura ao rosto e a que, em muitos casos, define a expressão das pessoas, além de estar em
questão a fragmentação, a construção do quesito identidade do negro e da negra na sociedade.
Cerca de noventa por cento dos entrevistados do sexo masculino comentou que sofreu
discriminação de gênero, a partir dessa abordagem foi indagado lembranças e falas que ouviram
durante assuntos ou comentários que os atingiram de forma pejorativa.

“Por ser menino dançando, falavam que eu era “Gay””. (Bailarino 2, 2005)

“Por machismo e dizem que homem não dança” (Bailarino 28, 2005)

“Por ser homem e fazer ballet”. (Bailarino 4, 2000)

Baseado no estudo de KLEINUBING, DO CARMO SARAIVA, FRANCISCHI, (2013) as


epígrafes citadas acima conforme escrita dos entrevistos, reproduz o imaginário construído sobre
os movimentos de dança que podem/devem ser realizados por meninos e meninas a fim de não
“perderem” suas identidades sexuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trabalhar com a temática referente as presenças visíveis, projetos e perspectivas de vida


através da dança pelo olhar de crianças, adolescentes e jovens negro da renomada Escola do
Teatro Bolshoi no Brasil, possibilitou uma maior compreensão direta no que diz respeito a tradição
do Ballet Clássico e sua interface com o mundo do negro sem a perca de suas características,
mas em busca da valorização da identidade como significado da negritude e suas características

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

étnicas-raciais.
As reflexões aqui apresentadas nos remetem conforme PASSOS (2011) para a necessidade
de se desenvolver pesquisas que tenham a juventude negra e sua relação com o meio e ação social,
como esporte, escola, dança como problemática. Afim de excluir a invisibilidade e a naturalização
do ambiente clássico aonde não tem sido historicamente destinado à população negra, o que se
manifesta também na construção de políticas públicas que contemplem os jovens negros.
Finalizando com a discriminação, verificamos a importância de abordar este assunto em
diferentes esferas sejam elas culturais, gênero, estética, classe. Percebemos neste trabalho que
mesmo os bailarinos estudem em uma escola renomada a discriminação de cor e gênero ainda
são abusivos, percebendo dessa forma a necessidade urgente da descolonização do currículo
escolar, para que possamos ampliar nossas visõesculturais.

REFERÊNCIAS

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desigualdades em nome da igualdade — Brasília : UNESCO, INEP, Observatório de Violências
nas Escolas,2006.

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Revista Repertório: Teatro e Dança, UFBA, ano 12, n. 12, 2009.1.

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GLASS, Ronald D. Entendendo raça e racismo: por uma educação racialmente crítica e antirracista.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 93, n. 235, p. 883-913, set./dez. 2012.
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GOMES, Nilma Lino. Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça. Educação
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GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo
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KLEINUBING, Neusa Dendena; DO CARMO SARAIVA, Maria; FRANCISCHI,


Vanessa Gertrudes. A dança no ensino médio: reflexões sobre estereótipos de gênero e movimento
doi: 10.4025/reveducfis. v24i1. 15459. Journal of Physical Education, v. 24, n. 1, p. 71-82, 2013.
http://ojs.uem.br/ojs/index.php/RevEducFis/article/view/15459a

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GILBORN, David; LADSON-BILLINGS, Gloria. Educação e Teoria Racial Crítica. In: APPLE, Michael
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PAIXÃO, Maria de Lurdes Barros da et al. Re-elaborações esteticas da dança negra brasileira
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PEREIRA, Dayana Gomes. “Dança negra: Corpo, memórias e performances”. Projeto de


Pesquisa para o Programa de Mestrado Interdisciplinar em Performances Culturais – EMAC/UFG,
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ROMAO, Jeruse. Africanidades Catarinenses. João Pessoa: Editora Grafset, 2009.

SILVA, Aline Layse Silva da. CORPOREIDADE E EXPRESSÃO DA ESTÉTICA NEGRA: O CORPO
NEGRO E O CABELO CRESPO NO COTIDIANO DA ESCOLA. 34º ENEPE– Recife.
Eixo V – Educação, diversidade e formação humana: gênero, sexualidade, étnico-racial, justiça
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DA%20EST%C3%89TICA.pdf

Página 151
EIXO 3: Intelectualidade Negras

Analisar a trajetória dos intelectuais negros(as) no pós-abolição.


Problematização das fontes e arquivos de pesquisa sobre os intelectuais
negros(as) no Brasil. Análise da produção literária dos intelectuais negros nos
jornais, revistas, livros e discursos no pós-abolição.
O TERREIRO DE CANDOMBLÉ COMO TERRITÓRIO DE MEMÓRIA,
RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE AFROCENTRADA

REIS, B. G. P. (UFPR)
brunagpreis@gmail.com
MARIOTO, D. J. F. (UFPR)
djiovannimarioto@gmail.com

Resumo

O presente trabalho pretende identificar aspectos do paradigma da afrocentricidade, que surgiu no


início da década de 1980 com a publicação do livro Afrocentricidade, de Molefi K. Asante, relacionado
ao Terreiro de Candomblé. Como referência teórica, a Afrocentricidade vem sendo elaborada
principalmente por estudiosos da diáspora de fala inglesa. Mas como linha de pesquisa e reflexão,
se enquadra na abordagem afrocentrada, desenvolvida desde o século XIX por autores que não lhe
atribuíam esse nome. Se iniciou como uma forma de pensamento e orientação para investigação dessa
história marginalizada, antes mesmo de ser cunhada por Asante como paradigma acadêmico. Os
autores afirmam que o pensamento afrocentrico inclui tratados e depoimentos elaborados desde o
século XVIII por africanos escravizados e cita exemplos, inclusive do Brasil, de agência dos africanos na
própria narrativa relacionada com o pan-africanismo. A afrocentricidade se constitui nas ligações entre
continente e diáspora. Asante ressalta que a ideia afrocentrica se refere à proposta epistemológica do
lugar, uma vez que os africanos foram deslocados de forma cultural, psicológica, econômica e histórica,
sendo importante que se avalie suas condições em qualquer país, com base em uma localização
centrada na África e sua diáspora. Desse modo tentando entender o que move o sujeito afrocentrado
a procurar o terreiro de Candomblé, historicamente um território de resistência negra e local de forte
preservação de tradições africanas, onde os africanos se tornam agentes. Portanto, para identificar essa
relação, será feita uma análise acerca da bibliografia sobre o terreiro de Candomblé, bem como trabalho
de campo, com o intuito de analisar se é possível essa relação.

Palavras-chave: Afrocentricidade – Candomblé - Identidade Negra

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O presente trabalho aborda pretende abordar o conceito da Afrocentricidade, instituída


por Molefi Kete Asante em seu livro “Afrocentricidade: a teoria da mudança social” publicado em
1980, procurando identifica-lo dentro dos terreiros de Candomblé. A Afrocentricidade é uma
proposta teórica do professor Molefi Kete Asante1.
Como referência teórica, a Afrocentricidade vem sendo elaborada principalmente por
estudiosos da diáspora de fala inglesa. Mas como linha de pesquisa e reflexão, se enquadra na
abordagem afrocentrada, desenvolvida desde o século XIX por autores que não lhe atribuíam
esse nome. A principal obra2 com essa abordagem é a de Cheikh Anta Diop3. Mesmo Diop não
nomeando esse conceito como tal, ele já trazia os princípios dessa abordagem dentro de suas obras.
A principal indagação da afrocentricidade é se os padrões construídos pelo Ocidente constituem
crenças ou conhecimento a respeito de povos e culturas africanas e diaspóricas, sua filosofia e
experiência de vida. A crítica afrocentrada verifica que o Ocidente postula como conhecimento,
crenças oriundas do etnocentrismo ocidental. Uma característica da afrocentricidade ao contrário
do eurocentrismo, é a pluralidade, sem uma única forma de pensamento, impositiva sobre todas
as experiências. Sendo assim, a teoria afrocentrica dialoga com outras formas de conhecimentos
sem pretensão à hegemonia4.
O ponto central foi tentar entender o que leva o sujeito afrocentrado ao terreiro de Candomblé
e se os sujeitos que frequentam o mesmo se entendem enquanto afrocentrados, tentando saber e
entender suas motivações. As principais hipóteses seriam que a partir do momento que o sujeito
se torna afrocentrado ele tomaria os caminhos que o remetam a sua ancestralidade e um desses
caminhos seria o da religião, um segundo sentido nessa busca, se daria pelo fato dos terreiros
serem locais de resistência. Para produzir essa análise foi utilizado o paradigma Afrocentrado de
Molefi Kete Asante que se constitui nas ligações entre continente e diáspora. Asante5 ressalta que
a ideia afrocentrada se refere à proposta epistemológica do lugar, uma vez que os africanos foram
deslocados de forma cultural, psicológica, econômica e histórica, sendo importante que se avalie
suas condições em qualquer país, com base em uma localização centrada na África e sua diáspora.
Desse modo, o artigo6 está separado em duas partes, sendo a primeira denominada “O
Terreiro de Candomblé” onde será abordada todas as características do terreiro, e como se dá a

1 Dr. Molefi Kete Asante é professor e presidente do Departamento de Estudos Afro-Americanos da


Universidade de Temple.
2 DIOP, Cheikh Anta. Civilisation ou barbarie. 1981. & DIOP, Cheikh Anta. Nations nègres et culture. Éditions
africaines, 1955.
3 Historiador, antropólogo, egiptólogo e físico senegalês que estudou as origens da raça humana e a cultura
africana pré-colonial.
4 NASCIMENTO, Elisa L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro,
2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4). p. 30.
5 ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricity. Trenton. 1988.
6 Esse trabalho está em fase inicial, todas as análises feitas surgem a partir desses primeiros passos dentro da
pesquisa em questão.

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construção desse espaço como um local de resistência, e segundo denominado “Afrocentricidade”
traz a definição desse paradigma, e toda a sua constituição enquanto olhar analítico, depois de
construir essa base na conclusão traz a analise parcial do que foi proposto anteriormente.

1 - O Terreiro de Candomblé

O regime escravocrata, ao longo de mais de 300 anos, trouxe ao Brasil diversos grupos
étnicos, oriundos, principalmente, da costa ocidental da África. Os primeiros africanos vieram do
Senegal e de Serra Leoa, para Pernambuco e Bahia7. Inicialmente fulas e mandigas, passaram
posteriormente a vir os negros bantos, que chegaram ao Nordeste do Brasil para a exploração da
cana de açúcar e da criação de gado na colônia. No século XVII, Congo e Angola se constituíram
nas principais regiões fornecedoras de africanos escravizados para o Brasil8.
Segundo Márcia Sant’anna, a palavra banto significa ‘’os homens’’ e designa todo um
grupo linguístico que ocupa vários territórios na África Central, Oriental e Meridional, composto
por várias línguas e etnias que atualmente se concentram em Angola, Namíbia, Repúblicas Popular
e Democrática do Congo, Zâmbia, Uganda, Quênia, Moçambique e África do Sul. Vieram também,
africanos das regiões de Cabinda, do antigo reino do Congo, do norte de Luanda, da costa Sul, do
interior de Angola e do atual Moçambique9. Sendo os bantos a maioria dos africanos trazidos ao
Brasil, exerceram grande influência nos costumes e na língua portuguesa.
Atualmente, as principais fontes de informação sobre as línguas africanas que eram faladas
no Brasil até o século XIX, são os terreiros de Candomblé e outros lugares de cultos afro-brasileiros
espalhados por todo o Brasil. Nesses lugares, sob forma de língua ritual, sobrevive as línguas que
deixaram de ser usadas no cotidiano do povo negro em diáspora, sendo substituídas pela língua
dominante do branco10. A linguagem, inclusive, constitui o principal traço distintivo das chamadas
‘’nações’’ dos Candomblés. Nações que vão além das etnias, mas que, pela língua e tradições
religiosas, remontam as origens dos que as formaram11. Em função de sua vinda mais recente, os
negros jejês e nagôs formaram uma certa hegemonia cultural em relação a outros grupos. Trouxeram
para o Brasil todo um complexo cultural, desenvolvido principalmente no campo religioso que
os envolvia desde a África12. Devido as circunstâncias da escravidão, as trocas culturais desses
grupos se intensificou, o que explica uma certa ‘’unidade’’ espacial e lógica existente entre os
terreiros de Candomblé, especialmente nos terreiros da Bahia. Possuem uma mesma estrutura
geral, com diferenças vinculadas à língua usada no ritual, divindades cultuadas e alguns aspectos
ritualísticos. Desta forma, os Candomblés das nações jêje, angola, congo ou nagô são mantidas

7 SANT’ANNA, Márcia. Escravidão no Brasil: os terreiros de Candomblé e a resistência cultural dos povos
negros. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=419>. Acesso em: 05/06/17
8 Idem,p. 1.
9 Idem, Ibdem.
10 Idem, p. 2.
11 Idem, Ibdem
12 Idem, Ibdem.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

tais diferenças, originários de uma mesma formula de culto, deslocado da África e reorganizada de
outra forma no Brasil13.
Alvo constante de ação policial, os terreiros de Candomblé foram perseguidos e proibidos
até a década de 30. Sobreviveram devido a alianças que firmaram com personalidades influentes
da sociedade que apoiavam e protegiam os terreiros e com a Igreja Católica, adotando o sincretismo
religioso14. A aliança com a religião católica foi estratégica, pois, favoreceu a união dos negros
em irmandades e aproximou o culto africano do culto oficial. Dessa forma, os Candomblés se
protegeram de perseguições e houve mais aceitação pela sociedade15. Ainda assim, se mantinha
as memórias e espiritualidade africanas. Isso fica evidente na referência obrigatória aos ancestrais
e na preservação dos rituais e da língua de cada ‘’nação’’, bem como a relação dos frequentadores
com o espaço do terreiro, local profundamente sagrado. Segundo Sant’Anna, o culto só pode
ocorrer no terreiro, no seu centro simbólico, onde está enterrado o axé da casa, que consiste em
objetos e material orgânico que fixa a força divina sem a qual não ocorre a comunicação com
o mundo dos Orixás, Voduns e Inquices16. Por isso a preservação do terreiro é primordial para a
continuidade da manifestação religiosa.
A criação e manutenção dos Terreiros de Candomblé no Brasil faz parte de uma estratégia
de sobrevivência cultural e de um espaço de sociedade civil para os negros em plena escravidão.
A assistência e o apoio comunitário, a resistência e preservação de tradições culturais, constituem
as origens dos Terreiros de Candomblés.

2 - Afrocentricidade

De acordo com Molefi Kete Asante17, afrocentricidade é um paradigma baseado na


ideia de que os povos africanos devem reafirmar o sentido de agência de sua própria história.
Durante a década de 60, intelectuais afro-americanos inseriram os chamados Estudos Negros
nos departamentos das universidades, começando a formular maneiras originais de análise do
conhecimento com uma perspectiva do sujeito negro como oposição ao que tem sido considerado
“perspectiva branca” da maior parte do conhecimento na academia ocidental. No fim da década de
70, Asante começou a falar sobre a necessidade de uma orientação Afrocêntrica do pensamento
e em 1980 ele publicou o livro: Afrocentricidade: a teoria da mudança social, o qual promoveu pela
primeira vez um debate detalhado do conceito. Embora o termo seja anterior ao livro de Asante
tendo sido usado por Kwame Nkrumah já na década de 60, a ideia intelectual não tinha base
enquanto conceito filosófico antes de 1980.
O paradigma da afrocentricidade é uma mudança revolucionária no pensamento proposto

13 Idem, p.3.
14 Idem, p. 8.
15 Idem, Ibdem.
16 Idem, p. 9.
17 Molefi Kete Asante é poeta, dramaturgo, conferencista, pintor, fundador e dirigente de uma associação
humanitária, a Afrocentricity International.

Página 156
como uma correção construtural da desorientação negra, descentramento e falta de agência negra.
O pensamento afrocentrado indaga sobre o que as pessoas africanas fariam se não existisse a
perspectiva ocidental sobre suas histórias. É o resgate da forma de se relacionar, da forma de
conceber a natureza, das relações familiares, da religiosidade e espiritualidade, e as referências
históricas dos povos africanos, sem a influência do colonialismo e da escravização. Dessa
forma, a Afrocentricidade tem como papel central o sujeito africano no continente e na Diáspora,
removendo a Europa do centro da realidade africana, promovendo uma perspectiva revolucionária
porque estuda ideias, conceitos, eventos, personalidades e processos políticos e econômicos de
um ponto de vista do povo negro como sujeito e não como objeto, baseando todo conhecimento
na autêntica interrogação sobre a localização.
Segundo Pedro Mucale, dentro perspectiva afrocentrada o povo africano se compõe tanto
dos africanos no continente quanto dos descendentes de africanos na diáspora18. O autor cita
Asante, destacando que existe certa hibridez nas culturas africanas e que também existe muita
África fora da África, sendo perceptível na questão da linguagem e na arte. Como já apontado por
San’tana, na língua portuguesa existem muitas influências de palavras e expressões de línguas
africanas, estando boa parte dessas línguas preservadas no Terreiro de Candomblé. Prova disso,
foi o material encontrado em 2015 por um professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano
(UFRB) com 17 horas de gravações feitas pelo linguista norte-americano Lorenzo Turner, em sua
passagem por terreiros de Candomblé da Bahia, nos quais registrou filhos de santo e sacerdotes
como a Mãe Menininha do Gantois, falando e cantando em línguas africanas19.
Turner já realizava pesquisas de línguas crioulas faladas no Sul dos Estados Unidos por
descendentes de africanos que foram ali escravizados, quando foi atraído pela Bahia depois de
saber que nos terreiros daqui as pessoas falavam fluentemente iorubá, kibungo e fon, entre outras
línguas. As gravações feitas por Turner durante sete meses, são as maiores evidencias de que
ainda na década de1940 as línguas africanas eram faladas dentro dos terreiros de Candomblé
e reforçam a importância dos terreiros de Candomblé na preservação da cultura afro- brasileira.
Segundo a Iyalorixá do terreiro Ilê Asé Ojogbo Ogum, localizado em Curitiba, Iyagunã Dalzira,
existem rituais que só podem ser conduzidos em língua africana e por isso ainda hoje, na maior
parte dos terreiros de Candomblé, se preservam as línguas africanas.
Mucale alega que os africanos em diáspora possuem características semelhantes aos
africanos do continente, o que os torna mais ou menos homogêneos20. Tanto os africanos do
continente como os africanos na diáspora respondem às mesmas sensibilidades cosmológicas
e à mesma realidade histórica geral, existindo uma ligação emocional, cultural, psicológica e
histórica que os constitui com a africanidade21. A Africanidade não implica necessariamente na

18 MUCALE, Ergimino Pedro. Afrocentricidade: complexidade e liberdade. São Paulo: Editora Paulinas. 2013. p.
42.
19 https://www.geledes.org.br/gravacoes-com-linguas-africanas-faladas-em-terreiros-baianos-nos-anos-
1940-vao-virar-cd-livro-e-exposicao-fotografica/#gs.g1WubTA. Acessado em 17/06/17.
20 p. 43.
21 p. 43.

Página 157
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Afrocentricidade. A afrocentricidade está ligada à ação da autoconsciência, isto é, centrar em


África e no seu povo todas as formas de existência, teoria e ação. Nascer no continente africano
não significa que você automaticamente pense desta maneira. A Afrocentricidade, portanto, não
é uma questão geocêntrica ou etnocêntrica, mas de forma de pensamento e a forma como se age
no mundo. Mas é possível fazer uma boa ligação entre africanidade e afrocentricidade, pois, existe
nexo entre ambas e isso pode gerar uma cultura africana autêntica e orgulhosa de si mesma22.
Os afrocentristas descobrem que o eurocentrismo não é a única perspectiva e busca viver a
vida seguindo outros preceitos e resgatando essas outras visões de mundo. Sendo contestadores
do eurocentrismo e contrários aos postulados do Ocidente, é natural que o sujeito afrocentrado
busque espaços em que o que impera sejam costumes e práticas afrocentradas. O afrocentrista é
aquele que apresenta um pensamento crítico e reflexivo acerca de temáticas pró-africanas, tendo
como pano de fundo a mundivisão africana23.

Conclusão

Resumidamente, a Afrocentricidade pode ser definida enquanto uma perspectiva filosófica


e de ação, pautada pela descoberta, localização e agência do africano no contexto de sua própria
história e cultura. O sujeito afrocentrado, ou seja, aquele que segue tal visão de mundo, busca
seguir e entender uma atitude na direção da ação, a partir das experiências africanas. Para o
afrocentrismo, o dos africanos pode ser apenas ditado de acordo com o que é efetivamente do
interesse da consciência africana, histórica e culturalmente, formada.
A Afrocentricidade é a mais completa totalização filosófica, que luta para o africano estar
no centro da sua existência. Está acima de todos os usos totais de métodos para efetivar uma
mudança psicológica, política, social, cultural e econômica. Neste sentido, de acordo com Asante,
o Afrocentrismo vai além da descolonização da mente dos africanos e dos oprimidos em geral e
representa a luta pela libertação e emancipação do negro em relação a tudo o que o oprime24. Se
trata de um projeto histórico que recoloca a africano negro no centro de toda a realidade referente a
si. Quando o sujeito africano passa a romper com as estruturas de dominação que o cercam, seja na
língua, na escrita, na religião, ele está no caminho para a afrocentricidade. Colocar os africanos no
centro significa adotar uma cosmovisão ou perspectiva africana sempre que se abordar assuntos
africanos, devolvendo aos africanos sua tarefa de agentes. Não significa que a África passa a ser
o centro do mundo, mas que eles se tornam o centro de seu mundo, o que permite que cada povo
tome a si mesmo como centro e sem se impor aos outros povos.
A teoria afrocentrica também reconhece o valor insubstituível da oralidade. Eis a razão por
que Asante, por exemplo, valoriza muito a noção de nommo, a palavra viva, criadora. E para o povo
africano, a palavra é sagrada devido à sua origem divina e ao compromisso que gere falantes e

22 P. 28.
23 p.85.
24 P. 48.

Página 158
ouvintes. Mais uma vez, esse exemplo também se relaciona com o Candomblé, pois, nos terreiros
o conhecimento é passado através da oralidade. De um para o outro. Segundo a Iyalorixá Iyagunã
Dalzira, é uma religião de segredos, onde todo o conhecimento, todas as práticas e ritos são
transmitidos oralmente para cada indivíduo, de cada função no terreiro.
Dessa forma, acreditamos que para um sujeito afrocentrado, é natural um processo de
descoberta de liberdade e autodeterminação, por razões próprias de cada um, que os leve a
buscar suas raízes e centralidade africanas em um terreiro de Candomblé, expressão máxima de
manutenção da memória dos antepassados africanos. O sujeito afrocentrado valoriza e enxerga
em seus antepassados africanos, exemplos culturais, de inspiração psicológica, e construção do
caráter. É natural que o sujeito afrocentrado procure por seus referenciais africanos, nas palavras
de Iyalorixás e Babalorixás, palavras que possam explicar e os conduzir ainda mais no pensamento
e na cosmologia africana.

Referências

SANT’ANNA, Márcia. Escravidão no Brasil: os terreiros de Candomblé e a resistência cultural dos


povos negros. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=419. Acesso
em: 05/06/17.

MUCALE, Ergimino Pedro. Afrocentricidade: complexidade e liberdade. São Paulo: Editora Paulinas.
2013, 285 páginas.

DIOP, Cheikh Anta. Civilisation ou barbarie. 1981. & DIOP, Cheikh Anta. Nations nègres et culture.
Éditions africaines, 1955.

NASCIMENTO, Elisa L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo:


Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 4).

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricity. Trenton

Página 159
EIXO 4: Questões urbanas e população
negra

Esse GT se propõe a receber pesquisas e ensaios que desenvolvam estudos


sobre a população negra no espaço urbano no sul do Brasil, em suas
distintas perspectivas. Nesse sentido, podem ser discutidas análises sobre
construção desigual do espaço urbano, exclusão espacial, segregação racial,
discriminação socioespacial, racismo ambiental e temas similares analisados
a partir de diferentes áreas de conhecimento.
INTEGRAÇÃO DE IMIGRANTES HAITIANOS NO OESTE CATARINENSE:
RAÇA E RELAÇÕES DE PODER NO BRASIL NÃO MESTIÇO

SOARES, Gomes Claudete1


ANDREOLA, Neuri José2

Resumo

Esta artigo tem como objetivo apresentar os princípios e ideias norteadoras de uma pesquisa em
andamento sobre a integração haitiana no Oeste Catarinense financiada pela FAPESC e desenvolvida
por integrantes do NEABI-UFFS de Chapecó (SC) Como forma de organizar os caminhos da pesquisa,
revisitamos as categorias preconceito de marca e preconceito de origem cunhadas por Oracy Nogueira
e acionamos as categorias de estabelecidos e outsiders presentes na obra de Elias e Scotson “Os
Estabelecidos e os Outsiders” (2000), unificadas na noção de Interdependência grupal. Nessa
comunicação apresentaremos uma análise da relevância das categorias de estabelecidos e outsiders
para caracterizar as formas de sociabilidades derivadas de processos migratórios recentes no oeste
catarinense, marcada pela presença de estrangeiros oriundos da diáspora negra. Identificou-se
a partir da análise das relações de sociabilidades entre moradores locais e moradores. Estrangeiros
(haitianos) em um bairro de trabalhadores da cidade de Chapecó-SC, relações de poder orientadas por
interpretações e significações raciais, que garantem aos locais o lugar de estabelecidos e transformam
os recém-chegados em outsiders. Com base nos dados coletados nesse estudo de caso em um
bairro de trabalhadores, procura-se também problematizar se a distinção entre preconceito de marca
e preconceito de origem elaborada por Oracy Nogueira ao problematizar as peculiaridades das
relações raciais brasileiras quando comparadas aos EUA, se aplica nas relações entre moradores locais,
majoritariamente brancos, e imigrantes haitianos, majoritariamente pretos na configuração racial do
oeste catarinense, marcada pela reduzida intensidade da mestiçagem.

Palavras-chave: relações raciais, imigração, Haiti, Santa Catarina

1 Doutora em Sociologia, coordenadora do NEABI- UFFS, Campus Chapecó, é professora adjunta do Curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Chapecó. email: claudete.soares@uffs.edu.
br
2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Chapecó. email:
neandreola@yahoo.com.br

Página 161
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Esse artigo é resultado de um esforço coletivo de compreensão dos significados


atribuídos à presença haitiana no oeste catarinense.3 A presença de imigrantes haitianos em uma
região do Brasil hegemonicamente branca trouxe como desafio a compreensão da relação de
interdependência entre o grupo de imigrantes estrangeiros, negros, com o grupo de brasileiros de
maioria branca, a partir da ideia de interdependência entre grupos, explorada por Norbert Elias e
John Scotson no livro “Estabelecidos e Outsiders” (2000).
Nesse artigo pretendemos apresentar e discutir alguns elementos que têm norteando a
pesquisa em andamento sobre a integração haitiana no oeste catarinense, que tem como objetivo
desvendar as relações de poder, status e prestígio, presentes nos processos de interdependência
entre os grupos locais e estrangeiros. A integração desses imigrantes no mercado de trabalho
(frigoríficos, construção civil, comércio local), na educação por meio do Programa Pro-Haiti- UFFS,
que criou uma política de vagas suplementares para haitiano na Universidade Federal da Fronteira
Sul (UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL, 2013) e nas formas de sociabilidade
cotidianas tem sido analisada tendo em consideração as relações de interdependência entre
brancos e não-brancos.
A região oeste catarinense é caracterizada por ser uma região formada pela presença de
imigrantes. Contudo, os imigrantes do presente têm a negritude de seus corpos como marcadores
visíveis e é forçoso indagar de que forma essa negritude é significada em um contexto formado
majoritariamente por brancos e constituído por meio da hegemonia da braquitude, caracterizada
pela atribuição de maior valor social e prestígio ao grupo branco e pela associação desse grupo
ao progresso, trabalho, desenvolvimento e civilização. É possível encontrar na figuração específica
das relações entre os moradores locais e estrangeiros haitianos em Chapecó e região, atualizações
das relações de poder entre brancos e não-brancos construídas no marco histórico da colonização
e da escravidão moderna e do racismo estrutural que organiza lugares de brancos e não brancos
na sociedade brasileira, com toques de particularidades regionais.
A política racial brasileira está acondicionada ao modelo colonial português, explorador e
hegemonicamente masculino, que promoveu o intercurso sexual dos colonizadores portugueses
com a população originária (mulheres indígenas), em um primeiro momento, e com as africanas
escravizadas, durante todo o processo da escravidão.
A formação social do Estado de Santa Catarina, por sua vez, caracteriza-se por outra
combinação de fatores (Radin, 1997) o que faz com que esse estado da federação não se encaixe
na narrativa dominante de encontro entre povos, que é sistematicamente reproduzida como mito
fundador do Brasil (Ortiz,1985) e associado à cultura ibérica. A história catarinense é produtora
de significados e classificações nativas que evidenciam outra narrativa sobre as relações entre

3 Os dados e as discussões apresentadas nesse artigo têm sido desenvolvidos no interior do projeto “Negritude
e Branquidade: uma análise da integração haitiana no Oeste Catarinense” com apoio financeiro da FAPESC e com a
participação das bolsistas Taíse Staudt e Vivian Stefany Ribeiro.

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brancos e não-brancos. O que nos propomos a fazer nesse artigo é apresentar alguns elementos
que julgamos importante para captar essas relações no seu movimento, no curso de sua
transformação, considerando a novidade da presença dos imigrantes haitianos na configuração
particular do oeste catarinense.
As entrevistas utilizadas nesse artigo foram realizadas pelo graduado em Ciências Sociais
(UFFS) Neuri José Andreola, no segundo semestre de 2015, durante a realização de seu Trabalho
de Conclusão de Curso intitulado Brasileiros e estrangeiros: as relações de sociabilidade entre
o grupo de brancos e o grupo de negros em um bairro em Chapecó. Os nomes utilizados para
identificar os entrevistados são fictícios.

Imigração haitiana no oeste catarinense: como forjar outsiders

A cidade de Chapecó, principal cidade da região oeste catarinense, é considerada um


polo agroindustrial no seguimento de abate de aves e suínos, contava em 2010 com 183.530
habitantes, segundo dados do último censo do IBGE. A população estimada para 2015, pelo mesmo
órgão, era de 205.795. O que mostra um provável crescimento populacional de mais de 20.000
habitantes nos últimos cinco anos. Esse crescimento populacional relaciona-se às potencialidades
de desenvolvimento econômico associadas à cidade. Por ocasião do 97º aniversário de Chapecó,
em 2014, o portal de notícias da Globo, o G1- Santa Catarina, ressalta: “Aos 97 anos, Chapecó se
destaca por ofertas de emprego e crescimento”. O enfoque da matéria é o crescimento econômico
promissor e a abundante oferta de trabalho:
O mercado em Chapecó tem dificuldades para encontrar profissionais que
trabalhem fora do horário convencional e nos fins de semana. Só o setor de
construção civil tem 450 vagas de emprego para serem preenchidas. Conseguir mão de
obra para os frigoríficos tem sido um desafio. Uma das empresas do ramo, por exemplo,
tem 5,3 mil funcionários. Desses, 1,4 vieram de outros lugares, até mesmo fora do país.
Há trabalhadores de Senegal e Haiti na agroindústria. Eles vêm em grupos em busca de
uma vida melhor e geralmente ganham oportunidade na indústria. (Grifos meus)

É em razão desse contexto que os imigrantes haitianos foram sendo atraídos para o oeste
catarinense e absorvidos como força de trabalho, principalmente pela agroindústria de Chapecó,
Xaxim e Nova Erechim, para atuar em áreas de trabalhos, muitas vezes, indesejadas pelos
trabalhadores locais.
É preciso considerar que a primeira leva de imigrantes haitianos não chegou ao oeste
catarinense de forma espontânea, mas houve um movimento empreendido por empresários locais
de ir buscá-los no Acre, em razão da falta de braços. Os empresários arcaram, inclusive, com os
custos da viagem do Acre a Chapecó e com subsídios para alojamento desses trabalhadores,
como forma de estímulo à permanência na cidade. Embora a maior concentração de trabalhadores
estrangeiros esteja nas agroindústrias locais e na construção civil, uma volta pelos estabelecimentos
comerciais do centro da cidade de Chapecó revela trabalhadores haitianos trabalhando em
supermercados e padarias.

Página 163
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Sandra Bordignon (2016) em sua dissertação de mestrado sobre a inserção dos imigrantes
haitianos nos contextos educativos escolares e não-escolares, caracterizou a presença haitiana no
oeste catarinense por meio de três movimentos. O primeiro deles, o momento inaugural da presença
haitiana na região oeste, é resultado da demanda das empresas frigoríficas e agroindústrias que
patrocinaram a vinda dos primeiros trabalhadores haitianos para a região. Essa presença seria
hegemonicamente masculina. O segundo movimento identificado é caracterizado pela vinda de
mulheres haitianas e um terceiro movimento caracterizado pela vinda dos filhos dos imigrantes
haitianos.
O fato de que a vinda dos imigrantes haitianos para a região oeste catarinense seja
consequência da falta de braços para determinados tipos de trabalho, não faz com que a sua
presença seja vista como desejada nas representações locais. Em matéria divulgada no dia
02 de abril de 2015, um portal de notícias da cidade de Xaxim, vizinha à cidade de Chapecó, o
Click Xaxim, destacou a preocupação da Câmara de Vereadores da cidade com a presença dos
imigrantes haitianos, apontada quase em termos de uma invasão haitiana. A cidade de Xaxim
tem aproximadamente vinte e sete mil habitantes. Um dos vereadores mencionados na matéria
requereu um levantamento do número de haitianos na cidade, pois “teria ouvido falar” que um
número de quatro ou cinco mil haitianos chegaria à cidade:
[...] o vereador questiona como serão prestados serviços de saúde, assistência médica,
educação, alimentação, moradia, como o município irá se comprometer com essa gente
[...] Agenor Junior Maier, vereador do (PP), disse que é preciso saber que parceria foi
efetuada entre as empresas que trouxeram essas pessoas para trabalhar na região
(Aurora e Rafitec), se eles chegaram com boas condições de saúde e as empresas se
comprometeram em dar saúde, educação, moradia, alimentação aos haitianos [...] Já, o
futuro dessas crianças preocupa o vereador Amarildo Maroco (PSD). Segundo ele, muitas
grávidas haitianas estão circulando pela cidade, em outros casos, famílias inteiras estão
vindo ao Brasil. Contudo, o que preocupa o vereador é como será dada assistência a essas
pessoas, como será a adaptação desse povo  e como será a aceitação dos brasileiros”
(grifos meus).

Apesar da vinda dos haitianos para o Brasil está respaldada na presença brasileira no
Haiti por meio da Missão das Nações Unidas para Estabilizar o Haiti (MINUSTAH) que, após o
terremoto de 2010, fez com que o Brasil fosse inserido na rota migratória haitiana (Metzer, 2014), e
em acordos para facilitar a entrada dos imigrantes haitianos no Brasil, os vereadores mencionados
na matéria comportam-se como se o local, no caso a cidade de Xaxim, não tivesse referência ao
nacional e que eles tivessem que ser consultados sobre a vinda dos imigrantes haitianos.
As falas reproduzidas pelo informativo Click Xaxim são feitas de forma a transformar os
haitianos em outros, estranhos, ameaçadores e indesejáveis. A resistência presente nas falas de
vereadores também é reproduzida por pessoas comuns, que convivem com os trabalhadores
haitianos no trabalho ou nos bairros, nas formas de sociabilidade cotidiana, de uma forma ainda
mais explícita, como demostram os dados coletados em um bairro de trabalhadores na cidade de
Chapecó:
Eu acho que as vagas de trabalhos deveriam ser para os brasileiros, eles, estão deixando
pessoas sem trabalho, não é racismo nada, as empresas estão mandando embora os

Página 164
brasileiros para segurar eles, estão em todos os setores. (Entrevistada Chica)

Acho que esse pessoal tem direito de ter trabalho, de uma condição de vida melhor, mas
acho que o governo tem que se preocupar para não deixar trazer muita gente de fora, e
deixando faltar às coisas para a nossa gente, eu penso assim, a gente precisa de saúde,
de educação, de emprego. (Entrevistado Nico)

[...] Se pensar para nós (brasileiros) influencia a presença deles (estrangeiros), pois faltará
para nós, o emprego, no posto de saúde. (Entrevistado Adão)

[...] chega, nós temos bastante problemas de desemprego, de saúde, e eles estão em
todas as partes por aqui. (Entrevistada Chica).

Do ponto de vista dos estudos de imigração, o número de haitianos no Brasil e na região


oeste é estatisticamente insignificante (Peraza-Breedy, 2014). Estima-se que a cidade de
Chapecó abrigue em torno de 2.500 haitianos e que esse número seja de 55.000 para todo o
Brasil, quando comparado à população japonesa no Brasil, que é de 1,5 milhões, considerando
japoneses e descendentes, fica claro que o número de haitianos é bastante reduzido. Contudo, do
ponto de vista das relações sociais e intergrupais esse número é suficiente para revelar a qualidade
dessas relações e os significados que as permeiam. Em uma região que conta predominante como
presença de descendentes europeus: italianos, alemães e poloneses, esse número de imigrantes
haitianos tem como efeito alterar as paisagens demográficas e inserir de forma radical, pelo
contraste com os corpos brancos, a presença negra no espaço urbano, gerando nos moradores a
sensação de que “eles estão em toda parte.”
Embora os brasileiros que ocupam o oeste catarinense não sejam homogêneos em
sua origem, em seus discursos sobre a presença haitiana eles se constituem em “um nós” e
transformam o haitiano, negro e estrangeiro em um outro, em outsiders. Na estratégia de se atribuir
um maior valor “ao nós”, recorrente nos grupos estabelecidos (Elias & Scotson, 2000), a referência
ao outro é sempre permeada por indicativos de desprezo: “essa gente” “essas pessoas” “esse
povo”, “eles”. Na matéria em questão, os haitianos em nenhum momento são nominados por
meio de sua origem e nacionalidade: o povo haitiano, os trabalhadores haitianos, os imigrantes
haitianos, as pessoas oriundas do Haiti, mas sim por termos que os distanciam da comunidade
local, em termos que estabelecem fronteiras.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O lugar da branquidade na ocupação do oeste catarinense

A dinamicidade econômica do Estado de Santa Catarina é bastante tardia. Segundo Goulart


Filho (2002), começa a ocorrer com a chegada dos novos imigrantes, a partir de 1880, primeiro
os italianos, depois poloneses e, por fim, os alemães. O incentivo para ocupação da região oeste
catarinense está relacionado ao conflito diplomático entre Brasil e Argentina, conhecido com a
Questão do Palmas, por meio do qual o governo argentino reivindicava os territórios situados no
oeste dos estados do Paraná e Santa Catarina. Conflito que teve lugar entre 1890-1895. Alcides
Goulart Filho (2002) destaca entre as mudanças sócio demográficas no estado de Santa Catarina
no período de 1880 a 1945: “o movimento migratório de imigrantes e descendentes provenientes
do Rio Grande do Sul, a partir de 1917, em direção ao oeste catarinense, estendendo-se até os
anos 50, e que fazia parte das frentes pioneiras de colonização capitalista”. (GOULART FILHO,
2002, p.981)
O autor sinaliza que o estado de Santa Catarina e nele a região oeste catarinense apresentam
processos econômicos muito particulares quando comparados à formação social e econômica do
Brasil, inaugurada como a colonização portuguesa, marcada pela grande plantação, pelo trabalho
escravo e por uma economia voltado ao mercado externo. No oeste catarinense predominou a
pequena propriedade, uma colonização baseada no sistema colônia-venda, com o predomínio
da economia de subsistência e a venda do excedente o que possibilitou a formação do mercado
interno. A inserção da região na economia nacional é bastante recente.
Esses diferentes movimentos implicam também em diferentes narrativas sobre as
identidades e impactam nas relações de poder entre os diferentes grupos. A ocupação territorial
que ocorreu no oeste catarinense não tem a sua centralidade na figura do português como grupo
hegemônico e não se funda na experiência da escravidão. A narrativa hegemônica de construção
do Brasil é firmada em uma ideia de encontro entre os povos, grandemente justificada por uma
suposta excepcionalidade do povo português, no contato e mistura com outros povos: “A
miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se
teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala
(...)” (FREYRE, 1995, p.1)
A categorização feita por Oracy Nogueira sobre as relações raciais no Brasil pode nos dar
algumas pistas para a compreensão das relações de poder entre brancos e não-brancos no oeste
catarinense. Nogueira batizou de preconceito de marca a política racial brasileira em contraposição
à forma como essas relações se estruturariam na configuração norte-americana, denominada
pelo autor como preconceito de origem: “o preconceito de marca determina uma preterição, o de
origem, uma exclusão incondicional dos membros do grupo atingido, em relação a situações ou
recursos pelos quais venham a competir com os membros do grupo discriminador. ” (NOGUEIRA,
2006, p.293)
Nessa acepção, o preconceito de marca se manifestaria por meio dos significados atribuídos

Página 166
ao fenótipo dos indivíduos, enquanto o preconceito de origem se processaria por meio da leitura
da ascendência. Onde predomina o preconceito de marca, alguns indivíduos de ascendência
africana podem furar o bloqueio racial e se inserir no meio do grupo racial hegemônico, branco,
sem que as relações de poder intergrupais sejam alteradas. Como o Brasil tem como fundamento
ideológico de sua política racial a mestiçagem, os limites e as restrições à população negra estão
condicionados às classificações fenotípicas, que quando associadas a outros elementos podem
alterar o status do indivíduo negro (preto e pardo), mas não o do seu grupo.
As particularidades do processo de ocupação da região oeste de Santa Catarina marcada
pela presença europeia, não identificada com a matriz ibérica, faz com que uma outra narrativa
ganhe lugar. Na região oeste de Santa Catarina os grupos demográficos que compõem o cenário
local são identificados por suas diferentes origens e há uma hierarquização entre eles que repõe
o lugar da raça na forma de classificação de grupos. Nesse aspecto é possível dizer que mais
do que o preconceito de marca, na região oeste predomina o preconceito de origem. O contato
com os não brancos é sentido como uma ameaça, o desejo de distanciamento evidencia que os
brancos, que sustentam sua branquidade na origem europeia, estão investidos de recursos para
proteger os seus privilégios enquanto grupo hegemônico. Braquidade aqui é assumida como um
“constructo ideológico extremamente bem sucedido do projeto modernista de colonização, é por
definição, um constructo de poder: os brancos como grupo privilegiado, tomam sua identidade
como norma e o padrão pelos quais os outros grupos são medidos” (STEYN, 2004, p.115)
O fato de a região oeste catarinense ter ficado distante do eixo econômico colonial e a
sua ocupação ser resultado da política imigracionista brasileira do final do século XIX, que adotou
como colono ideal o europeu, especialmente o alemão, por suas supostas habilidades como bom
agricultor, no contexto do projeto de branqueamento da nação, faz com que a presença africana
em termos culturais ou a presença negra em termos físicos não seja algo constitutivo da paisagem
cultural ou espacial do oeste catarinense.
Os dados do perfil de cor do censo do IBGE de 2010 revelam a hegemonia branca na
cidade de Chapecó: 76,6% da população é branca; 19,2% parda, 2,6% preta; 0,7%, indígena e
0,5% amarela. A hegemonia branca se expressa nos números e simbolicamente em um imaginário
construído a partir da exaltação das virtudes associados ao grupo branco.
O oeste catarinense é um contraponto exemplar ao mito da brasilidade hegemônica,
construída a partir da década de 1930 no Brasil, quando, por meio, o negro tornou-se nacional, por
intermédio da ideologia do Brasil mestiço.
As representações sobre os haitianos no imaginário local são repletas de estigmas grupais
sustentados na atribuição de menor valor humano a esses indivíduos. O que os transforma em
outsiders na relação como os moradores locais (Elias & Scotson, 2000). Embora na análise de
Norbert Elias e John Scotson o elemento de poder que transformou um grupo em estabelecidos
e o outro em outsiders na pequena comunidade de Winston Parva estivesse associada ao
tempo de residência na comunidade, o que de fato transforma um grupo em outsiders e outro
em estabelecidos, deixam claros os autores, são os diferenciais de poder grupais. O poder do

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

grupo dos estabelecidos, na configuração pesquisada por Elias e Scotson, era resultado de sua
maior coesão interna, produzida por laços profundos de sociabilidade constituídos ao longo de
duas ou três gerações. Era esse elemento que fazia deles “um nós” em oposição ao grupo de
recém-chegados, sem laços entre si e sem poder de se contrapor a pressão grupal e aos estigmas
produzidos pelo grupo dos estabelecidos. No entanto, a análise dos autores sugere que esse é um
padrão que pode ser encontrada em outras figurações:
Assim, nessa pequena comunidade, deparava-se com o que parece ser uma constante
universal em qualquer figuração de estabelecidos e outsiders: o grupo estabelecido
atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros
do outro grupo do contato social não profissional com os seus membros; e o tabu em torno
desse contato era mantido através dos meios de controle social como a fofoca elogiosa
[praise gossip], no caso dos que o observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas
[blame gossip] contra os suspeitos de transgressão (ELIAS & SCOTSON, p.20, 2000).

Em pesquisa sobre as formas de sociabilidade entre haitianos e a população local


de Chapecó em um bairro próximo a uma agroindústria da cidade, era bastante comum o
entrevistador se deparar com falas e discursos dos trabalhadores locais que os colocavam em
uma posição de maior valor humano, justificada pela origem. É assim que o entrevistado abaixo
explica o desenvolvimento do estado de Santa Catarina: “Os fatores sociais de índices bons do
estado [Estado de Santa Catarina] tem relação com a imigração europeia, os traços o jeito do
povo europeu, povo guerreiro, batalhador, isso vem ficando, uma herança genética que fica, e
a gente carrega isso. (Entrevistado Nico). Fica evidente nessa fala a associação entre virtudes
e pertencimento grupal, as características positivas como pertencentes ao grupo branco. Outro
aspecto importante dessa percepção é o elemento de fixidez associado às características grupais:
“uma herança genética”. Essa é uma fala que mostra como a noção de raça, orienta as percepções
do eu e do grupo em sociedades multirraciais, justificando diferenciais de poder entre os grupos
étnico-raciais por meio de atributos ora biológicos ora culturais. Como afirmam Elias e Scotson
“ As ‘chamadas relações raciais’, em outras palavras, simplesmente, constituem relações de
estabelecidos-outsiders de um tipo particular.” (p.32, 2000)
O atual fluxo migratório para a região oeste de Santa Catarina diferencia-se dos fluxos
passados, pois não se trata de uma imigração incentivada pelo Estado com fins de ocupação do
território. Outra diferença é o caráter urbano das atividades laborais desenvolvidas pelos imigrantes
haitianos em contraposição ao destino em atividades agrícolas dos imigrantes europeus no fim
do século XIX e começo XX. Contudo, há ainda um aspecto mais significativo nesses diferentes
processos, o fato de ser um fluxo migratório caracterizado não só pela diferença de nacionalidade
e de língua, mas também pela negritude. Não podemos esquecer que quando da Proclamação
da República, a Constituição de 1891 proibiu a imigração africana e asiática, abrindo as portas
do Brasil para presença europeia, primeiramente alemã e depois italiana, no esforço de promover
o branqueamento do país. Episódio que marca a tradição da relação dos brasileiros com os
estrangeiros: estrangeiro bom é estrangeiro branco.
A investigação das relações entre os moradores locais e imigrantes haitianos tem revelado

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aspectos da dinâmica sociocultural regional e nacional, muitas vezes romantizada pela ideia de
cordialidade, hospitalidade e democracia racial que convencionou-se associar ao caráter brasileiro.
No contexto geral, não têm sido raros casos de conflitos envolvendo brasileiros e haitianos,
com características xenofóbicas. Além do mais, estamos em um momento de intensificação das
tensões raciais no Brasil, em razão da implementação de políticas públicas específicas para a
população negra e de um processo de identificação estética associado à negritude. Elementos
que indicam o início de desequilíbrio no monopólio de poder branco.
As tensões e conflitos, outrora latentes, em razão dos diferenciais de poder, começam
a aparecer abertamente, em razão de uma retomada de valorização da identidade negra e de
uma ocupação mínima de espaços de poder. Trabalhamos com a hipótese de que a negritude
não negociável presente nos corpos haitianos contrasta tanto com a ideologia da mestiçagem
brasileira, desestabilizando as nossas representações dos encontros harmônicos entre diferentes
raças, como provoca reações racistas explícitas a partir da leitura e das associações de maior valor
atribuídas à branquidade, predominante na região oeste catarinense.
Dessa forma, nem a narrativa nacional da brasilidade mestiça nem a narrativa das origens,
presente no oeste catarinense, favorecem a integração haitiana no Brasil. Realidade que acaba
por gerar um choque de representações, pois há uma expectativa dos haitianos que chegam ao
Brasil de que este seria um país de acolhimento em razão de uma história compartilhada a partir da
experiência da colonização e da escravidão e de identificarem o Brasil como um país de população
negra. Contudo, algo que foge a essa percepção inicial é que o processo de colonização no
Haiti e no Brasil tiveram desdobramentos bastantes diferentes. A cultura africana no Brasil foi
assimilada por meio de uma relação de poder com a matriz hegemônica europeia, mais fortemente
portuguesa. Foram os brancos que definiram qual o lugar da cultura africana no Brasil, inclusive
descaracterizando-a enquanto cultura africana. No Haiti, embora também haja uma disputa entre
os elementos de origem africana e a presença europeia, marcadamente francesa, a ruptura com
o sistema colonial por meio de uma luta revolucionária possibilitou uma ligação mais direta entre
a cultura haitiana e a cultura africana, expressa seja na prática religiosa do vodu, seja no uso do
creole como língua (Handerson, 2010).
É como brancos que os moradores locais constroem os seus discursos sobre os imigrantes
haitianos, ao se conceberem como um “nós” traçam uma fronteira entre locais e estrangeiros que
não é apenas delimitada pela nacionalidade, mas também pela forma como os corpos haitianos
são significados. Os estrangeiros haitianos, o “eles” do discurso dominante, são acima de
tudo concebidos pelo prisma da ameaça: ameaça aos empregos, às filhas, à saúde, e por fim,
à branquidade. Todo o discurso dos moradores locais implica no desejo de manter os outsiders
distantes, uma vez que o encontro dos corpos, dos corpos negros com os corpos brancos, poderia
desfigurar aquilo que é tão caro a essas pessoas, a convicção da pureza de suas origens. O “povo
do bairro tem medo de perder status, e principalmente, de haver atrito de cor e raça, tem medo
com uma nova convivência, mistura, o povo do Sul não é de mistura” (Entevistada Maria).
Pelos dados e observações levantados até o momento da pesquisa temos um quadro no

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

qual as contradições que cortam a política racial brasileira são evidenciadas no oeste catarinense
em razão de ideologicamente e demograficamente a região estar descolada da concepção de
brasilidade hegemônica. Esse fato parece moldar o tipo de relação que os moradores locais e
mesmo o poder público, estabelecem com os imigrantes haitianos, vistos e percebidos por meio de
polaridades tais como branquidade e negritude, europeus e “africanos”, brancos e não-brancos,
nós e eles.

Referências bibliográficas

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Catarina, 25, ago.2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2014/08/
aos-97-anos-chapeco-se-destaca-por-ofertas-de-emprego-e-crescimento.html>. Acesso em:
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(vol. 1)

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religiosos como concepções de mundo Afro-Latino-Americano. 2010. Dissertação (Mestrado
em Ciências Sociais) – Instituto de Sociologia e Política. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas,
2010.
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quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo
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ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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Sul multicultural e democrática. In: WARE, Vron (org.). Branquidade: identidade branca e
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Página 170
UNIVERSIDADE FEDERARAL DA FRONTEIRA SUL. Institui o Programa de Acesso à Educação
Superior da UFFS para estudantes haitianos - PROHAITI e dispõe sobre os procedimentos para
operacionalização das atividades do programa. Resolução n.32/2013. Chapeco, 12 de dezembro
de 2013.

Vereadores de Xaxim se preocupam com a grande quantidade de Haitianos no município.


Portal Portal Click Xaxim, Xaxim, 02 abr. 2015. Disponível em < http://www.clickxaxim.com.br/
noticias/1384-vereadores-de-xaxim-se-preocupam-com-a-grande-quantidade-de-haitianos-
no-municipio> Acesso em: 05 mai. 2016.

Página 171
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

CENTRO CULTURAL MARRABENTA / PELOTAS-MAPUTO

MEDEIROS, Marielda Barcellos


(Núcleo de Educadoras e Educadores Negros de Pelotas)

Centro Cultural Marrabenta1 / Pelotas-Maputo, fundado no dia oito de maio de 2016, o


centro de cultura Afro brasileira (conexão Brasil-Moçambique) é um espaço representativo das
culturas e tradições africanas radicadas no Brasil (em especial no tocante às do sul do Brasil) em
intersecção com a ontologia africana oriunda do berço da humanidade, o continente africano.
A estrutura deste Centro Cultural foi construída coletivamente com as lideranças do
movimento negro na cidade, Frente Negra Pelotense, Movimento Rastasul, Coletivo Horto do
Capiroto, entre outros coletivos, organizações e pessoas desvinculadas de entidades. Com o
apoio e estreitamento de cooperação com representantes de Moçambique, o este Centro Cultural
não se restringe apenas a este país, estendendo o diálogo para diversos países que tem seus
concidadãos aqui: seja com os intercambistas da África portuguesa (angola, cabo verde, Guiné-
Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe), seja com irmãos Senegaleses, Nigerianos, Haitianos
e da Costa do Marfim que chegam com propósitos diferentes, mas que enriquecem a comunidade
negra pelotense que mesmo tendo uma das maiores populações negras do estado, parece tão
embranquecida devido aos poucos espaços de resistência e representação que possui.
Embora tenha como eixo as questões relacionadas a Educação, Cultura e fortalecimento
da comunidade negra pelotense a partir dos diferentes projetos desenvolvidos, enfrenta hoje os
crivos do racismo que, neste momento nos fizeram interromper nossas atividades em um espaço
físico (sala comercial) e darmos continuidade aos projetos de modo itinerante, pois a presença
coletiva de negros em determinados espaços na cidade de Pelotas ainda é negada.
É esta experiência que hoje suscita o desafio de pensar a materialização da exclusão no
espaço urbano da cidade de Pelotas, tendo este trabalho origem na experiência junto ao Centro
Cultural Marrabenta e nas observações empíricas desta vivência.
Neste sentido, observo que esta experiência possibilitou perceber e descobrir as dificuldades
e as adversidades impostas para quem deseja apenas poder exercer seus direitos, também, me
ensinou a conviver com outras pessoas, refletindo no coletivo e respeitando as diferenças.
A cidade de Pelotas, onde se situa o Centro Cultural, está localizada no extremo sul do
estado do Rio Grande do Sul a 250 quilômetros de Porto Alegre, capital do estado. Possui uma
população estimada de 342.053 habitantes (IBGE, 2014) e é a terceira cidade mais populosa do
estado, com contingente entre os que se declaram pardos e pretos de 59.567 habitantes.2
O município de Pelotas está localizado às margens do Canal São Gonçalo, canal que liga
as Lagoas dos Patos e Mirim. Com limite ao Norte com Turuçu e São Lourenço do Sul, e, ao Sul
com Rio Grande e Capão do Leão. À Leste com a Lagoa dos Patos e a Oeste com Canguçu e

1 MARRABENTA, gênero folclórico do sul de Moçambique, nome escolhido para este Centro Cultural.
2 Dados da Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Pelotas (SDE).

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Morro Redondo. A história econômica do município se destaca pela produção do charque, que era
enviado para todo o Brasil e que fez a riqueza de Pelotas em tempos passados. O nome da cidade
originou-se das embarcações de varas de corticeira forradas de couro, usadas para a travessia
dos rios na época.3
Nesta complexidade cultural, regional e no campo de atuação aqui observado, encontro
motivação onde ao vivenciar as relações internas e externas ao espaço já observado fui percebendo
como se constrói esta temática, visto que os participantes deste centro cultural, são pessoas que
se jogam na luta contra qualquer tipo de preconceito e/ou discriminação.
Este texto se constitui em ensaio/proposta para elaboração de projeto que possa se
transformar em proposta que possa justificar a existência de espaços negros de educação e
cultura possíveis para todos, se enfrentarmos o racismo e os efeitos que ele provoca.
Sendo assim, comungando do pensamento de que não separamos o trabalho da nossa
história de vida e, como professora e ativista do movimento social negro, tenho vivenciado
experiências que me motivam a produzir conhecimento, pois acredito que “A experiência é o que
nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2002, p.21).
Justifico esta proposta considerando este como desafio e preocupação. Desafio porque
neste momento estou como coordenadora geral do centro cultural e por estarmos buscando um
novo espaço físico que nos possibilite reorganizar nossas agendas de atividades. Preocupação
por perceber que, no Brasil, as questões relacionadas aos negros vêm sendo palco de discussões
e debates intensos, mas ainda não superamos os estereótipos sociais e continuamos a tratar os
negros de forma pontual e preconceituosa, o que se evidência pela exclusão da população negra
de seus espaços de direito na realidade urbana das cidades, pois estes espaços também possuem
uma marca, a da negritude que é negligenciada.
Por compreender que nossa finalidade é o fortalecimento dos interesses e exercício da
cidadania da população negra deste município, também, por este tema se relacionar com toda a
sociedade pelotense, sendo a participação de todas e todos importante.
Como disse Marcel Cláudio Sant’Ana, Mestre em Planejamento Urbano (UnB) e assessor
técnico do Ministério das Cidades, “...E neste jogo oficioso, de constante solidificação da
apropriação das vantagens sociais pelo grupamento social de cor branca, em detrimento da
população negra, mais uma vez nordestinos e negros seriam colocados à margem do maravilhoso
projeto de desenvolvimento da nação.”
Por este tema me levar a enfrentar e suscitar o profundo interesse em dar continuidade
a meus estudos, percebendo hoje os espaços públicos urbanos como espaços privilegiados de
análise e produção de conhecimento, pois estes espaços ainda se constituem baseados no modelo
eurocêntrico, não possibilitando subsídio a população negra de enriquecimento, sistematização e
socialização dos seus saberes.
Compartilho da ideia de que a Educação e Cultura é parte determinante na (re)construção

3 Segundo dados disponíveis no site da Prefeitura de Pelotas: <http://www.pelotas.rs.gov.br/cidade/historia.


php>

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de valores fundamentais na luta contra o racismo. Que a defesa da preservação dos espaços
urbanos como lugares de memória coletiva, de construção de processos identitários, implicam
em resistência política, educacional e cultural diante de projetos autoritários e utopias urbanas
retrógradas.
Deste modo, o objetivo geral deste é identificar as questões que em Pelotas erguem
fronteiras entre “ordem” e “desordem”, ganhando concretude no imaginário social e disciplinam
o deslocamento e a sociabilidade urbana demarcando sutilmente o território de cada grupo,
apontando um padrão de atitudes e comportamentos. Sendo assim, trago como objetivos
específicos: analisar as ações de policiamento (BM e GM)4 aos locais de manifestações culturais
negros com papel inibidor, de controle e disciplina; organizar diálogos que contribuam com
a discussão do conceito de espaço urbano; subsidiar o centro cultural com experiências que
fortaleçam e enriqueçam nossas ações possibilitando o diálogo junto a comunidade negra e não
negra da cidade através de nossos projetos.
Penso ser fundamental e importante o comprometimento e a transparência deste
momento para agregar a todos e todas ao enfrentamento a exclusão dos espaços urbanos e
consequentemente, na luta contra o racismo. Para tanto, começo aqui a dar os primeiros passos,
buscando a troca de conhecimento com outros de diferentes lugares, que de certo modo, podem
estar vivendo nos seus lugares de origem, nas suas cidades, o mesmo dilema.
Pensar nas questões voltadas a exclusão urbana em uma cidade que se constituiu a partir
da mão de obra negra escravizada em espaços charqueadores é, minimamente, pensar em todo
um processo de exclusão e marginalidade em que os negros foram colocados.
Durante o ciclo do charque, que em Pelotas durou de 1780 a 1888, os negros viviam em
condições desumanas, em fétidas e úmidas senzalas, único espaço onde circulavam “livremente”,
mas na mira dos olhares vigilantes dos feitores que a qualquer desconfiança pontuavam sua
autoridade através do uso do chicote. “Segundo o historiador Mario Osório Magalhães (1981) a
cidade chegou a comportar cerca de trinta e oito charqueadas numa mesma época, instaladas
nas margens dos Arroios Pelotas, Fragata, Santa Bárbara e Canal São Gonçalo. Quando não
empregados na atividade do charque, de novembro a maio, os negros trabalhavam na construção
civil, nas olarias e em atividades técnicas (pedreiros, padeiros, alfaiates, carpinteiros, doceiras,
vendedores de frutas e legumes, etc.). Em Pelotas, no século XVIII, existiam aproximadamente
cinco mil escravos, utilizados tanto no meio rural como no urbano, inclusive em tarefas domésticas
(MAGALHÃES, 1981)”.
Período da história de nosso município que muito ainda temos que revelar, pois neste
período muitos negros se suicidavam, outros tentavam sistematicamente a fuga e aqueles que
conseguiam fugir se aquilombavam, o que permite hoje em Pelotas, verificarmos a presença negra
quilombola através de três comunidades no interior do município: o Quilombo do Algodão, na
Colônia Triunfo, 4º Distrito; Quilombo Vó Elvira, no Monte Bonito, 9º Distrito, e Quilombo do Caixão,

4 BM/Brigada Militar e GM/Guarda Municipal.

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no 7º Distrito, denominado Quilombo.
Passado o ciclo do charque, com a abolição efetivada, a liberdade anunciada não libertou
o cativo, que agora, como homem livre, não tinha posses para adquirir terras, pois a Lei de Terras
de 1850 (LONER, 2001) impossibilitava a estes a ocupação de terras. Também, na cidade, a
perseguição policial se efetivava muito forte, pois coibiam a “vagabundagem” que atingia do
mesmo modo aqueles que trabalhavam. Segundo a autora, o curso noturno que mais atendeu às
camadas pobres e aceitou alunos negros localizava-se no prédio da biblioteca Pública de Pelotas.
Cidade reconhecida como sendo a mais negra do interior do Rio Grande do Sul, mesmo com
um contingente expressivo de negros, a vida continua não sendo fácil, as coisas sempre se tornam
mais difíceis para os negros, embora esta cidade tenha tentado alguns passos de avanço com
relação a questão negra, como por exemplo, a criação do projeto de Lei nº 3515/1992 da Câmara
de vereadores de Pelotas, que já incluía na disciplina de história das escolas de 1º e 2º graus do
município de Pelotas o “[...] ensino relativo ao estudo da raça negra [...]”, que não foi valorizada na
época, bem como, aprovou e depois foi rejeitado o feriado de 20 de Novembro, instituído por lei
municipal em 2001, dedicado a Zumbi dos Palmares, comprovando todo o preconceito existente
na cidade.
Importante saber que:
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas
aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências
étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos
preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa
memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a
cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos
que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada
um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional.
(MUNANGA, 2005, p.16)

O que nos dias atuais, reforça esta situação quando percebo que espaços como o centro
cultural aqui apresentado, onde há uma concentração muito grande da população negra, são
sempre alvos de retalhação, não só por parte da minoria branca que se reconhece como elite
pelotense, mas também por parte do poder público.
Conforme Paulo Freire (1992, p.33):
Carregamos conosco a memória de muitas tramas, o corpo molhado de nossa história, de
marcas culturais, de lembranças, sentimentos, de dúvidas de sonhos rasgados, mas não
desfeitos.

Todo este panorama aqui sintetizado, me instiga e anima para além deste que pontuo como
ensaio reflexivo a dar continuidade a este trabalho, de modo, a valorizar e preservar estes espaços.
Cabe aqui observar que as leis existem para corrigir distorções, garantir direitos aos
cidadãos, muito já se avançou, mas há muito a ser feito. Ainda enfrentam-se diversas facetas e
manifestações do racismo e vive-se sob o mito da democracia racial.
Segundo Souza (1983, p.25),
[...] escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história e transformá-la em ‘natureza’.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Instrumento formal da ideologia um mito é um efeito social que pode entender-se


como resultante da convergência de determinações econômico-político-ideológicas
e psíquicas. Enquanto produto econômico-político-ideológico, o mito é um conjunto de
representações que expressa e oculta uma ordem de produção de bens de dominação e
doutrinação.

Concluindo, a exclusão dos espaços de maior concentração de pessoas negras se refletem


em diferentes locais da nossa cidade, isto penso, devido ao olhar de negação preconceituosa e
discriminatória que ainda existem e são presentes em Pelotas. Aqui, aos negros são destinados
espaços na sua maioria desestruturados, com infra-estrutura precária, com menor possibilidade
de acesso a trabalho e renda, educação e lazer, podemos pensar em uma segregação muito bem
articulada por uma camada branca que não concebe determinados espaços como articuladores
de Educação e Cultura.
Percebo que já conseguimos superar algumas barreiras de desigualdades, mas alguns
processos de exclusão estão arraigados na nossa sociedade e irão permanecer entre gerações
até serem transformados.
E nesta fotografia urbana, onde um grupamento branco solidifica seus espaços em
detrimento da população negra, vou me aventurar continuar meus estudos percorrendo os espaços
negros na cidade de Pelotas, buscando suas origens, proposições (projetos e outras atividades
que desenvolvam) e enfrentamentos que lhes afetem.
A intenção, é demonstrar que existem espaços negros em nossa cidade, com uma história,
uma identidade. Este breve ensaio, observa mesmo de modo empírico a continuação de um
panorama excludente, onde a população negra ainda é a mais preterida. Neste sentido se fazem
necessárias políticas sociais, educacionais e culturais reparadoras que incluam, que possibilitem
a mudança necessária para que tenhamos equidade nas relações com nossos espaços urbanos,
isto, se faz necessário e urgente.
Não podemos mais admitir e deixar que se perpetue um modelo de crescimento e expansão
urbana que não consegue sair do paradigma da senzala ou ainda, se mantem inerte a condição
dos espaços de concentração da população negra, aqui em específico, da população negra desta
cidade.
Não nos adianta olharmos o passado cruel da população negra deste país se não tentarmos
conter a segregação explícita que se perpetua e está enraizada no presente. Só assim vamos
construir um futuro possível para todas e todos que aqui residem e projetam viver e solidificar suas
identidades.
Espero que este texto se torne o primeiro de muitos que venham a discutir o tema aqui
proposto e produza reflexão efetiva sobre a exclusão nos espaços urbanos. Temos poucas
referências que tratem deste tema, raros espaços que se possa discutir sobre e, por isto, analisar
este tema torna-se fundamental para que consigamos pensar uma cidade com equidade, justa e
democrática.
Pensando em tudo que foi posto até aqui, observo que, se possível for a continuidade de
meus estudos, o título poderá ser ampliado para “Centro Cultural Marrabenta / Pelotas-Maputo:

Página 176
espaços educativos e culturais marcados pela exclusão”.

REFERÊNCIAS

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formação da sociedade brasileira. Petrópolis, Rj: Vozes, 2009.

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Pelotas: EdUFPel, 2001.

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Educação; Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

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SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negra. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

SURITA, Rita; BUCHWEITZ, Susane. Descobri que tem raça negra aqui. 2. ed. Pelotas: [s. n.],
2007.

Página 177
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

SER NEGRO E GAY EM REDE LGBT: ABRINDO AS PORTAS PARA UM


ESTUDO ENSAÍSTICO SOBRE SI1

NASCIMENTO, Darlam do. (UFRGS)


darlamnascimento@gmail.com

Resumo

O trabalho tem como objetivo apresentar um método etnográfico pelas vias do Estudo de Si por meio
da narrativa ficcional e dos estudos da memória coletiva, balizado pela epistemologia da diferença
e filosofia afroperspectivada se transforma em um Estudo de Nós em estudos de uma rede negra
LGBT em contexto urbano. Este trabalho contém enquanto justificativa no plano global a violência contra
pessoas negras LGBT; e no plano micropolítico as sensações de não-pertença.

Palavras-chave: Antropologia Urbana e da Memória. Interseccionalidade. Método. Negros


LGBT.

1 Título alterado após levar em consideração comentário de uma das ouvintes do eixo.

Página 178
1 DO QUE FALAMOS?

Gasolina, gasolina neles / Quando eu voltei [...] / Não sei se antes ou depois / Quando eu
vi a paisagem mutável, a natureza / A mesma gente perdida em sua infinita grandeza / Eu
trazia uma forte amargura dos encontros perdidos / E outra vez me perdia no fundo dos
meus sentidos / Eu não acreditava em sonhos, em mais nada / Eu andarei por aí / Pela vida
a fundo / E quem come da minha carne e bebe do meu sangue / permanece em mim e eu
nele / [...] Eu sou uma metralhadora em estado de graça. Teto Preto (Gasolina)

Este trabalho é dividido em dois/duas momentos/seções – sem contar esta introdução e


as conclusões – em que se tem o objetivo de defender o uso da narrativa de si como estratégia
metodológica para o mapeamento de uma rede LGBT negra ao qual faço parte. Para que assim,
possa dar seguimento na pesquisa e consiga responder a seguinte pergunta: qual ou quais é/são o/s
lugar/es possível/is de pessoas LGBTs negras? Que se desdobra nas seguintes: Partindo da ideia
que (r)existimos (ou reexistimos), quais são as nossas estratégias e como elas se operacionalizam?
Como a minha formação em Políticas Públicas (em andamento) pode potencializar essa r/e/
existência?
Em outras palavras, este texto tem como foco uma defesa de método que considero
etnográfico por preencher os requisitos de estudo das relações concretas nas praticas cotidianas,
visando interpretar as relações sociais que se dão dentro de um determinado grupo, que neste
caso são marcados por ser LGBTs negros.
Assim, na primeira seção eu apresento alguns dados produzidos pelo Mapa da Violência
e pelos relatórios produzidos pelo GGB (Grupo Gay da Bahia) como forma de evidenciar a
urgência do debate. Na seção seguinte o meu foco é o debate teórico-metodológico envolvendo
os pressupostos, entendimentos conceituais e epistemológicos que constroem o método, bem
como os entendimentos sobre o campo. Na conclusão, insiro os próximos passos a serem dados.
Cabe ressaltar que todas as seções há citações de musicas de intelectuais negros orgânicos por
acreditar que na força da oralidade existe uma potencialidade que não pode ser desprezada e
que mais do que disputar pelos regimes de verdade, potencializa e muitas vezes refina o saber
cientifico.

2 ASPECTOS GLOBAIS: As Vidas Desqualificadas2

A placa de censura no meu rosto diz: / Não recomendado a sociedade / A tarja de conforto
no meu corpo diz: / Não recomendado a sociedade / Pervertido, mal amado, menino
malvado, muito cuidado! / Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado! [...]
/ Não olhe nos seus olhos / Não creia no seu coração / Não beba do seu copo / Não tenha
compaixão / Diga não à aberração. Caio Prado (Não Recomendado)

2.1 Relatórios dos Não Recomendados

2 Aqui faço a alusão a dois célebres pensadores: Michel Foucault que vai defender em seus trabalhos os
dispositivos de poder que operam em escala global e em escala particular em espécies de engrenagens que se
engendram produzindo as relações de poder. Já o termo de vida desqualificada eu vou adotar o debate do Agambem
por (LEITE, 2014) que coloca a “vida nua” enquanto aquela vida que não merece ser vivida e que, portanto, é
desqualificada perante a sociedade e os aparelhos normatizadores/reguladores.

Página 179
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A relevância desse trabalho se mostra ao vislumbrarmos os assustadores dados coletados


tanto do Mapa da Violência3, quanto dos relatórios do GGB4 (Grupo Gay da Bahia). Vale ressaltar
que em ambos os casos não há uma preocupação interseccional na sua coleta (no caso do
Mapa da Violência) e problemas na captação (no caso do GGB), dificultando as possibilidades
de interpretação da organização social da violência e os seus efeitos nas diferentes formas de
ordenação social que atravessa os diferentes marcadores sociais dos sujeitos. Logo, para este
trabalho os dados de mortis serão abordados de maneira separada, de acordo com as capacidades
e limitações dos mesmos.
No que tange o relatório do Mapa da Violência (2012) foi disponibilizado os dados referentes
ao período de 2002 a 2010. O autor destaca o fato de que isso só foi possível com a inserção
da categoria raça/cor no CID/10 (Classificação Internacional de Doenças 10) de 1996, porém os
dados só se tornam significativos em 20025. O autor ainda destaca que existe um ruído em sua
coleta, já que para os dados de população são usados os Censos do IBGE e que o mesmo tem
como método a autodeclaração étnico-racial. Enquanto que no SIM a declaração é realizada por
um agente externo ou por documentação preexistente. No relatório consta que “[...] considerando
o país como um todo, o número de homicídios brancos caiu de 18.867 em 2002 para 14.047 em
2010, o que representa uma queda de 25,5% nesses oito anos. Já os homicídios negros tiveram
um forte incremento: passam de 26.952 para 34.983: aumento de 29,8%” (p.14). Vale ressaltar
que se pegarmos a média por ano do período analisado (30.269 assassinatos), ou seja, nós temos
uma média de 83 mortes de pessoas negras por dia. Não cabe neste trabalho fazer uma analise
aprofundada do relatório, mas a conclusão do mesmo é importante:
[...]dado significativo é que o motor dessavitimização não se encontra no crescimento dos
homicídios negros – que aumentaram de forma moderada no período – mas sim nas fortes
quedas dos homicídios brancos, o que nos remete não a contextos globais da sociedade,
mas sim a estratégias e políticas de segurança e proteção da cidadania que incidem
diferencialmente nos segmentos da população, como veremos mais adiante.

Neste relatório não temos cruzamentos de gênero e sexualidade. Para tal, se fez necessário
buscar no GGB os dados referentes à morte de LGBTs. Ressalto que estes dados são coletados
por meio de notícias de veículos midiáticos como afirma o próprio GGB no seu site6 ao apresentar
o Relatório de 2005 em diante. Este fator fragiliza a confiabilidade dos dados. Mesmo assim, o
Brasil lidera o Ranking Mundial sobre morte de LGBTs. Tais relatórios, realizados pelo GGB, são
usados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh) que faz

3 Destes relatórios irei abordar as questões étnico-raciais, mais especificamente das pessoas declaradas
pretas ou pardas, que por sua vez são classificadas enquanto pessoas negras.
4 Estes relatórios representam os dados coletados sobre a morte de pessoas LGBTs.
5 Em 2002 é que os registros de raça/cor ultrapassam 90%. Ganhando significância
6 “Segundo o responsável por este Relatório, o Prof. Luiz Mott, antropólogo da Universidade Federal da Bahia e
fundador do GGB, “a subnotificação destes crimes é notória, indicando que tais números representam apenas a ponta
de um iceberg de crueldade e sangue. Como o Governo Federal se recusa construir um banco de dados sobre crimes
de ódio contra homossexuais, baseamos tal relatório em notícias de jornal e internet, que com certeza está longe
de cobrir  a totalidade desses sinistros””. Disponível em < https://grupogaydabahia.com.br/assassinatos/relatorios/
relatorio-2011/>.

Página 180
parte da ONU (Organização das Nações Unidas) pelo fato de o Governo Federal não produzir
dados oficiais sobre o assunto. Dada a forma como os dados são coletados é difícil inferir como a
vitimação7 letal afeta LGBTs negros8, já que não é uma preocupação da mídia. Outro elemento que
devemos atentar é que muitas dessas pessoas que foram categorizadas enquanto gays podem
ser pessoas trans/travestis que sofreram mais uma violência simbólica de ter seu gênero negado
novamente. De qualquer forma, é necessário uma analise mais refinada sobre os dados produzidos,
bem como uma melhora significativa nos instrumentos de coleta e publicação. Mas mesmo com
tais problemas, já é possível perceber a urgência de um debate aprofundado e sistemático sobre
o tema. É importante salientar que o causas mortis é o topo de uma escalada da violência. Aqui
não temos como inferir sobre as violências físicas não letais, sobre as violências psicológicas,
patrimoniais, sexuais (algo que pode acontecer – e acontece – como punição e/ou tendo como
justificativa uma ação corretiva) e afins que acontecem tanto pela via da sociedade como um todo,
quanto do próprio Estado e seus aparelhos de governo.

2.2 aspectos particulares: trabalhando na Microfisica9


Tendo como aspectos particulares, basta falar das motivações que tenho ao escrever este
trabalho. Este é oriundo das minhas próprias inquietações do meu lugar no mundo – enquanto negro
de pele clara, viado urbano10 e homem de performance flutuante11 - e que ao me encontrar com
as pessoas LGBTs negras um discurso de não-lugar emana e que, inclusive, já geraram debates
pelas vias da academia (Os ‘não-lugares’ da negritude LGBTT, 2016) em que tive oportunidade
de compor a mesa. Nestes espaços – e os não institucionalizados – é recorrente o conflito de
pertencimentos ou da negação de aspectos que integram as identidades que carregam mais de
um marcador que carregam os estigmas do desvio normativo. É com esta inquietação que se

7 Uso esse termo, já que nem todas as mortes são de homicídio propriamente dito (aquele cometido por uma
pessoa contra a outra), mas sempre levando em consideração como um processo social de violência, como é o caso
dos suicídios, por exemplo.
8 No relatório de 2012, temos logo na pagina três a seguinte informação: “Teve um caso de morte de
heterossexual. Quanto à composição racial, chama a atenção o desinteresse dos jornalistas e policiais em registrar
a cor dos LGBT assassinados, apenas 42% das vítimas são identificadas e dentre estas, há pequena superioridade
de pardos e pretos, 53% para 47% de brancos. Os/as pretos são o menor grupo vítima da homofobia letal, 7,5%,
estando ausentes no segmento das lésbicas”. Assim como no relatório de 2013: “Quanto à composição racial, chama
a atenção o desinteresse dos jornalistas e policiais em registrar a cor dos LGBT assassinados, apenas 56% das vítimas
são identificadas e dentre estas, há pequena superioridade de pardos e pretos, 53% para 47% de brancos. Os/as
pretos são o menor grupo vítima da homofobia letal, 3%, estando ausentes no segmento das lésbicas” (p. 03).
9 Novamente faço uma analogia com Foucault ao pensar a microfísica como as relações de poder que são
exercidos pelos e através de atores sociais nas suas praticas cotidianas que ora reforçam, ora desestabilizam os
poderes em relação.
10 Uso esse termo levando a sua conotação de choque e ressignificação de algo que foi usado por muito tempo
enquanto insulto contra a minha pessoa e o urbano eu coloco enquanto característica afirmativa da minha preferencia
por grandes cidades e centros urbanos.
11 Coloco este termo por entender que brinco com as significações de gênero ao me colocar e me entender
enquanto homem, mas que desestabiliza a linguagem de pronomes ao me autorretratar e retratar meus pares, assim
como a fluidez das roupas que uso que podem mudar (e muitas vezes o fazem) a percepção de pessoas terceiras em
relação a minha identidade.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

formula a minha pergunta central para um primeiro momento que é: qual ou quais é/são o/s lugar/
es possível/is de pessoas LGBTs negras? Que vai se desdobrar nas seguintes: Partindo da ideia
que (r)existimos (ou reexistimos), quais são as nossas estratégias e como elas se operacionalizam?
Como a minha formação em Políticas Públicas (em andamento) pode potencializar essa r/e/
existência?
Um passo de cada vez, nós vamos caminhando e nossos passos vêm de longe. Neste
trabalho não pretendo responder nenhuma destas questões. Pelo menos não de forma
sistematizada. Como já colocado na introdução, aqui eu defendo o método utilizado para se pensar
a primeira das perguntas lançadas ao vento e no texto. Para tal, cabe seguirmos, na próxima seção,
para a retomada de um debate que já tive a oportunidade de fazer (NASCIMENTO, 2016a) sobre a
teoria que permeia o meu fazer etnográfico.

3 UM BREVE DEBATE EPISTEMOLÓGICO E OS PREAMBULOS DO MÉTODO

Hoje chegam pelas avenidas, mas já vieram pelo mar / Oya, todos temos a bússola de um
bom lugar / Uns apontam pra Lisboa, eu busco Omonguá / Se a mente daqui pra frente é
inimiga / O coração diz que não está errado, então siga!

Raphão Alaafin (Mandume)

Chegou o momento de definir os conceitos e suas operacionalizações neste trabalho e


pesquisa, tanto no que concerne a epistemologia, quanto ao estar e viver o campo.

3.1 Plano de Fundo

Para fins deste trabalho eu faço uso da Filosofia da Ancestralidade afro-brasileira; da


Epistemologia da Diferença; e das reflexões acerca da(s) interseccionalidade(s) referente(s)
ao(s) atravessamento(s) de gênero, raça e sexualidade. Como defendi em outro momento
(NASCIMENTO, 2016a; 2016b), onde uso da Filosofia da Acestralidade na conceituação de
Eduardo David de Oliveira (2011) que coloca como fonte ordenador do mundo para o povo negro
que vive em diáspora no Brasil, já que nossa cultura se significa e se rearticula neste solo e que,
portanto ao assumir a identidade negra se apropria de elementos identitários e de pertenças
que fazem parte deste universo simbólico vibrante. Seguindo com ideia afroperspectivada
em combinação com epistemologia da diferença eu situo o diálogo de Renato Noguera com
Deleuze (2011) ao colocar em operação estes três paços: [1] apresentar e dar brecha para se [2]
criar personagens conceituais, bem como [3] criar conceitos. Assim criando mitos (ou ficções)
sobre a realidade que apreendo ao viver a cidade e(m) suas dinâmicas complexas. Afinal, é nas
cidades que podemos observar as diversas possibilidades de interações sociais que produzem
diversas formas de hierarquização social de acordo com os espaços em que essas interações

Página 182
sociais acontecem (SANTOS, 2012). Sendo assim, abro espaço para tratar especificamente sobre
isso – interseccionalidade e espaço -, entendendo que todo corpo é racializados, generificado
e sexualizado e que estes marcadores circunscrevem formas de identidades distintas e operam
performances e/ou interações sociais de acordo de onde e como se situam.
Para pensar a interseccionalidade eu posso tanto usar do que Audre Lorde nos apresenta
em sua poderosa carta “Não existe hierarquia de opressão” (1983), ou ainda pensar nos termos
de Lélia Gonzales (1980) que pensou a interseccionalidade entre raça e gênero na produção da
identidade da mulher negra e a sua posição na sociedade brasileira. Podemos, também, colocar
nos termos da Kimberlé Crenshaw (2004) que coloca a interseccionalidade enquanto um campo
de convergência onde os marcadores se cruzam produzindo as identidades e experiências
dentro da estrutura social. Logo, não posso e não pretendo dissociar os marcadores sociais que
atravessam as identidades dos sujeitos. Mas para pensar a identidade atravessada pro tantos
marcadores é interessante também pensar sobre a diferença. Para tal, usarei das reflexões de
Avtar Brah (2006) sobre quatro maneiras de usar o conceito de diferença: [1] diferença como
experiência que consiste em uma forma de prática de atribuir sentido (simbólico e narrativo) de
forma a evidenciar as contingencias políticas e culturais ao qual o sujeito se inscreve, evidenciando
lugares e formas múltiplas do sujeito na trama social; [2] diferença como relação social que é
definida como “as trajetórias históricas e contemporâneas das circunstâncias materiais e práticas
culturais que produzem as condições para a construção das identidades de grupo” (BRAH,
2006, p. 363) em que podem acontecer de forma micro (nas relações cotidianas) ou macro (ao
se referir as estruturas sociais); [3] diferença como subjetividade que a autora apresenta como a
experiência interior e exterior que constituem a mente e que não é fixa e uno, mas fragmentada e
em constante processo; e [4] diferença como identidade que é a interconexão das outras formas
de diferença que produzem formas múltiplas de ser e estar no mundo aos quais envolvem poder.
3.2 O Campo

Através de minha narrativa de si (ficção ou mito), guiado pelos estudos da memoria e da


etnografia da duração mapear as relações sociais nas minhas mais diversas instancias e áreas
da vida, formulando, assim, a minha rede egocêntrica que estão sempre balizando e construindo
comigo o meu conhecimento e as possibilidades de entendimento e compreensão do mundo,
assim como elaborando estratégias de nos mantermos vivos.
E assim chegamos ao ponto em que podemos evocar a Antropologia Urbana e Antropologia
da Memória para relacionar a Etnografia de Rua – que consiste na investigação nos espaços
urbanos com ou sem indivíduos ou grupos com o objetivo de ‘experienciar’ a ambiência e deixar-
se afetar – de forma atenta – pelas formas de interações, tensões que ocorrem nos territórios
vividos (ROCHA e ECKERT, 2013) e pela qual e Estudos da memória­12 – os dramas e intrigas

12 As autoras se baseiam em Gastón Bachelard e seus estudos sobre os fenômenos da memória. Para ver mais,
ler “Etnografia da Duração: antropologias das memórias coletivas nas coleções etnográficas”, 2013.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

sociais que acontece nas encruzilhadas de tempos e espaços sociais. Seguirei mais um pouco
com elas (ROCHA e ECKERT, 2013) para tratar da defesa do Reconhecimento de Si-mesmo de
Paul Ricouer como elemento importante para se pensar a alteridade no campo de narrativa da
memória. Para sintetizar e que possamos seguir nos argumentos deste trabalho eu faço uso do
trabalho de Élsio José Corá e Cláudio Reichert do Nascimento (2011)13 em que vão sintetizar em
três elementos importantes a se considerar: “a) a ideia de uma marca moral originária a partir da
qual se pode possuir, fazer e agir (Grotius); b) a ideia de autonomia, onde o si e a norma apresentam
um vínculo originário, porém haveria aí o problema de como fazer derivar uma filosofia política do
princípio de autonomia (Kant); c) a ideia de reflexão sobre si vinculada a ideia de reflexão sobre
o outro (Fichte)”14 em que mais adiante vai atrelar a pesquisa de Marcel Mauss e “seus estudos
com sociedades arcaicas” – mais especificamente os Maori – para arguir que a “[...] reconhecer
não pelas categorias que “eu” estabeleço, mas pelo que o outro se apresenta”. Para tal, faço de
mais umas das viradas reflexivas – agora das categorias metodológicas – para pensar esses três
argumentos sobre o reconhecimento para o de Ubuntu15 – reconhecimento da necessidade de
(com)partilhar os diversos aspectos de nossa existência com outras pessoas.
Se o vivido – é o que pretendo interpretar e ordenar – na cidade – campo por excelência
das minhas experiências e relações. É impossível não explorar o conceito de narrativa de si. De
acordo com Liliane Leroux (2010) a narrativa de si é uma autoficção16 marcada por sua polissemia
e conflituosidade e que junta o mascaramento das dificuldades (aqui uma semelhança com o
mito), a experiência intima, a exposição pública, a ânsia de extravio e o rigor com o compromisso
com a busca da verdade17. “[...] Uma só expressão e vários sentidos que colocam em jogo sua
função como prática filosófica, pedagógica, espiritual, psicológica, social, ou como gênero literário”
(LEROUX, 2010, p. 261).
[...] Assim, é na escrita de si definida como autoficção que buscaremos as relações
entre autocriação do um sujeito autônomo e a exigência de expressão. Sujeito autônomo
entendido aqui, não idealizadamente, como um ser inteiramente livre e emancipado, mas
como o ser comum que descobre a vontade e com ela o poder de questionamento, de
reflexão, de decisão e de expressão, como forma de instituição, para si e para os outros,
dos sentidos que constrói - ele próprio -, a cada vez, para o mundo e para si. Um ser que,
sem estar certo do que irá encontrar, não deixa de descobrir a vontade de buscar. (Idem).

A autora segue dizendo que “se a autoficção nos interessa, é porque nela reside uma intensa
produção de si pela informação e, ao mesmo tempo, um exercício de ficcionalização” (p. 162) que
– apoiada em Lemasson – se desvia da realidade para recriá-la. Sendo assim, a autoficção é uma

13 Os autores vão trabalhar com as ideias de reconhecimento construídas e defendidas por Paul Recouer.
14 (ÉLSIO e NASCIMENTO, 2011, p. 419).
15 Categoria pensada na seguinte referencia: “YLÊ AYÊ ORUM UBUNTU: BEBENDO DAS FONTES DA
AFRICANIDADE”
16 Não é o que fazemos com os nossos trabalhos sobre outros? (ROCHA e ECKERT, 2013); e (URIARTE, 2012).
Apenas a titulo de provocação
17 Aqui cabe um paralelo bem colocado pelo José Renato Sant’Anna Porto (2014) ao falar da construção do
discurso enquanto disputa para se tornar verdade em detrimento da exclusão dos contrários. A fabricação da história
como fato para praticar/exercer o poder.

Página 184
decisão sempre precária e provisória. “A ficção que decido, enquanto autor, fabricar como sentido
eleito para minha própria vida” (p. 164). Cabe colocar ainda a aproximação que a autora faz de
Deleuze e Castariadis de que a autoficção é um “[...] movimento – intenção e gesto – de sair de
si mesmo e tornar-se, pela exteriorização, alteridade que, refluindo de volta sobre nós mesmos,
constitui a singularidade como devir, como diferença: a repetição sempre de outra coisa e nunca
do mesmo” (p. 269).
Aqui já entro em consonância novamente com Eduardo David de Oliveira que defende – no
plano do método filosófico – a ideia de Odú18. Sendo o conceito que me interessa para este trabalho
o de mito, que para o autor, é aquilo que ao mesmo tempo revela e esconde. É o processo pelo qual
o conhecimento se transmite sem separar os aspectos da vida, interligando e reordenando sentido
de acordo com os processos e passagens de quem passa e apreende o mito. De qualquer forma,
está feita a defesa do uso da narrativa de si para este trabalho e seguimento da pesquisa. Mas não
posso deixar de fora outro conceito caro para o que pretendo que é o de rede egocêntrica.
Para ser sucinto, vou apenas definir o conceito. Pra isso usarei do trabalho de Ana Lúcia
Enne (2004) que vai fazer um debate sobre o conceito de rede e seus diferentes usos na literatura
acadêmica. Neste trabalho usarei especificamente o de rede egocêntrica que é “[...] uma
construção social de relações de grandezas distintas, mas que possibilitariam o contato entre
diversos elementos que iriam gerar sua composição”19 (p. 265) que partindo de Alfas (tornando-
se egos) em que estrelas são as pessoas de relação direta e Betas as pessoas de relação indireta.
Possibilitando um mapeamento da rede em formato de constelação ou constelações de relações.
Nosso último conceito desta seção é o de estranhamento do familiar que se desdobra
na necessidade de tornar conhecido. Gilberto Velho (1978) vai situar o debate na sua própria
realidade ao [1] relatar a paisagem de Copacabana e [2] nos seus estudos sobre as camadas
médias da Zona Sul do Rio de Janeiro. Esse aspecto é importante para não cairmos em jogos
de estereótipos ou na armadilha do etnocentrismo. Para tal é necessário confrontar as diferentes
interpretações de sobre os fatos/realidades/situações através da intelectualidade ou das emoções.
O seu distanciamento acontece ao confrontar com a literatura acadêmica existente e que permite
desestabilizar e relativizar conceitos e categorias.
Usarei de três estratégias imprescindíveis para esta fase da pesquisa e que são a sua
base: [1] o ato de narrar em um diário/caderno de campo as minhas memórias para materializar a
minha narrativa de si; [2] diálogos abertos com as pessoas (estrelas) que se encontram nessas
memórias e que ajudarão na elaboração desse sistema isomórfico de memorias e praticas de vida
em diálogos abertos e sinceros sobre o que ando pensando e de como experienciamos o mundo;
e [3] um diálogo com a literatura existente sobre esses conjuntos para se pensar o estranhamento
do familiar que é necessário ser conhecido que é tão caro para Gilberto Velho.

18 Que significa caminhando. Esse conceito é operacionalizado para defender o movimento necessário no
pensar e agir. Para saber mais ler: (Epistemologia da Ancestralidade, 2011).
19 Conceito de rede de J. A. Barnes.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

4 CAMINHANDO SEMPRE

Aguarde cenas no próximo episódio / Cês diz que nosso pau é grande / Espera até ver
nosso ódio. Emicida (Boa Esperança)

Neste trabalho discorri sobre a realidade concreta de uma violência absurda que lidera os
Rankings do globo para mostrar a situação lastimável de uma realidade que aponta que vidas
de pessoas negras e LGBTs são descartáveis e desqualificadas. Também coloquei em debate as
questões da interseccionalidade e a sua relação com o meio urbano em um debate epistemológico
e metodológico para se pensar a pratica antropológica. Cabe em próximos trabalhos elaborar
um debate sistemático sobre as formas de experiênciar e do viver a cidade de maneira concreta,
levando em consideração uma rede já formada que conta com oito homens negros cisgêneros e
transgêneros de sexualidades variadas. Buscando sempre pensar as formas como a resistência/
existência/reexistência acontecem.

REFERÊNCIAS

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CRENSHAW, K. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. VV. AA. Cruzamento:
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reconhecimento ao reconhecimento mútuo. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 45,
n. 2, p. 407-423, outubro 2011.

ENNE, A. L. S. Conceito de rede e as sociedades contemporâneas. Comunicação & Informação,


v. 7, n. 2, p. 264-273, 2004.

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Graal, 1979. 159 p.

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Hoje, Rio de Janeiro, p. 223-244, outubro 1980.

LEROUX, L. Informação e autoafirmação nas narrativas de si: o compromisso com a verdade e o


desvio ficcional. Liinc em Revista, v. 6, n. 2, p. 260-272, 2010.

LORDE, A. Não existe hierarquia de opressão. N/I, Nova York, 1983.

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NASCIMENTO, D. CARA DA NOITE: O Mito da Masculinidade Negra e Periférica como uma Forma
de (R)Existência. XIV ENUDSG, Rio Grande, p. 14, 2016a.

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afroperspectivistas. Griot, Amargosa, v. 4, n. 2, p. 19, dezembro 2011.

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ROCHA, A. L. C. D.; ECKERT, C. Etnografia da Duração: antropologias das memórias coletivas


nas coleções etnográficas. 1ª. ed. Porto Alegre: Marcavisual, 2013. 256 p.

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espaço urbano. In: SANTOS, R. E. D. QUESTÕES URBANAS E RACISMO. Petrópolis: De Petrus
et Alii Editora Ltda., v. I, 2012. Cap. 11, p. 400.

VELHO, G. Observando o familiar. In: ______ A Aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Página 187
EIXO 5: Corpo, gênero, sexualidades
e interseccionalidades

Os debates em torno dos temas gênero, corpo, sexualidade, raça e classe


vêm sendo crescentes nas trajetórias de pesquisas feministas, sobre
mulheres/homens ou partir da teoria de gênero. A fim de evitar perspectivas
reducionistas, tais estudos têm tomado gênero, sexualidade, raça e classe
como marcadores sociais de diferença que atuam de modo articulado na
produção contínua de desigualdades e enfrentamentos sociais. Este Eixo
Temático se propõe a reunir trabalhos que consideram a interseccionalidade
entre os marcadores sociais de gênero, sexualidade, classe e raça na produção
de sujeitos, corpos e identidades individuais e coletivas.
CONCURSOS DE BELEZA NEGRA: AS MULHERES EM ESPAÇOS DE
CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NEGRAS NA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960

OLIVEIRA, Maybel. (UNIRIO)


maybelsulamita@yahoo.com.br

Resumo

O presente texto tem como objetivo discutir e abordar dois concursos de beleza negra realizados entre
as décadas de 1950 e 1960 no Rio de Janeiro, o concurso “Boneca de Pixe” realizado pelo Teatro
Experimental do Negro em 1950 e o “Miss Renascença” de 1962, a intenção do trabalho pretende
aproximar dois espaços diferentes como representantes da cultura negra nesse período. A partir dos
dois locais citados, percebe-se distanciamentos e aproximações nas estratégias contra a segregação
e o racismo vivenciado pelo negro no Brasil e na luta pela afirmação da cultura e identidades negras. Na
fronteira entre essas diferenças de discurso presentes nos dois ambientes, os concursos de beleza negra
ganham grande importância e destaque nas duas instituições, apresentando lugares e características
que se esperavam e eram buscados na mulher negra dentro de espaços de militância contra o racismo.

Palavras-chave: Mulher negra. Concursos. Beleza

Página 189
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O presente artigo pretende discutir e abordar dois concursos específicos de beleza negra
realizados entre a década de 1950 e 1960 na cidade do Rio de Janeiro. Ao elencar os dois
diferentes ambientes como representantes da cultura negra nesse período: o Teatro Experimental
do Negro e o Clube Renascença. A partir dos dois locaiss citados, percebe-se distanciamentos
e aproximações nas estratégias contra a segregação e na luta pela afirmação da cultura negra,
na fronteira entre essas diferenças de discurso dos dois espaços, os concursos de beleza
negra ganham importância e destaque nas duas instituições, apresentando que lugares e que
características se esperavam da mulher negra dentro desses eventos.
De forma estrutural trabalharemos em dois eixos principais, primeiramente abordaremos
uma breve trajetória do Teatro Experimental do Negro e do Clube Renascença destacando suas
intenções de criação e eventos realizados durante as décadas de 1950 e 1960, na segunda parte
destacaremos como o concurso “Boneca de Pixe” realizado pelo Teatro Experimental do Negro
em 1950 e o “Miss Renascença” de 1962 retratavam a mulher negra e valorizavam determinadas
características.
No campo teórico utilizaremos os escritos de Sonia Maria Giacomini, Antônio Sérgio
Alfredo Guimarães e Robert Park, juntamente a outras leituras realizadas na pesquisa de mestrado
do programa de pós-graduação em História Social na Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro/UNIRIO, acerca do conceito de raça nos eventos programáticos do Teatro Experimental do
Negro e a representatividade de Abdias Nascimento no Movimento Negro contemporâneo.
Para falarmos tanto do Teatro Experimental do Negro quanto do Clube Renascença e
suas trajetórias, se faz necessário pensar como nesse período a cidade do Rio Janeiro pode ser
considerada como um grande polo de cultura negra, devido a diversas questões históricas ligadas
tanto ao período escravagista como também a sua visibilidade política no território brasileiro, dessa
forma a presença de distintos grupos ligados a essa temática perpassam a história da cidade,
mesclando cultura, política, estética, patrimônio, religião e a luta contra a segregação dos negros.
A cidade, portanto, se torna um campo de disputa de grupos que reivindicam identidades
e direitos dentro da sociedade, logo a cidade não pode ser entendida apenas a partir de seus
aspectos físicos ou construídos, ela se orienta por um conjunto de costumes e tradições que se
integram a cada momento através de espaços de mobilidade, costumes entre seus entornos, nas
palavras de Robert Park “a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e
dos sentimentos e atitudes organizados [...] a cidade não é meramente um mecanismo físico e
uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem” 1.

1 Teatro Experimental do Negro

1 PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In:
VELHO, O. G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p.26

Página 190
Dentro desse corpo de costumes que integra a cidade e as tradições, em 1944 o Teatro
Experimental do Negro (TEN) é fundado por Abdias Nascimento, o grupo artístico viria a ultrapassar
a área do teatro, se envolvendo em projetos políticos, educacionais, jornalísticos, intelectuais e
também estéticos. Abdias Nascimento percebeu a necessidade de um grupo que representasse
o negro nas artes após assistir uma peça de Eugene O´Neill em Lima, que retratava a história de
um personagem negro, mas na montagem a interpretação era feita por um ator branco pintado de
negro, prática conhecida pelo termo “black face”.
Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um intérprete dessa raça?
Entretanto, lembrava que, em meu país, onde mais de vinte milhões de negros somavam
a quase metade de sua população de sessenta milhões de habitantes, na época, jamais
assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da
minha cor. Não seria, então, o Brasil, uma verdadeira democracia racial?2

Desde sua criação o TEN, como já dito, não se limitou apenas aos palcos de teatro, suas
áreas de atuação se expandiram em diversas frentes para fortalecer e exaltar a cultura negra, o
objetivo do grupo partia da necessidade de denunciar o racismo e também de integrar o negro
na sociedade brasileira de forma real, uma vez que nesse período, a ideia de democracia racial
permitia a falsa percepção da inexistência do racismo no Brasil.
Seja pelo teatro ou através de outros meios, o TEN buscou elevar o negro brasileiro tanto
culturalmente quanto socialmente, através de cursos de alfabetização para domésticas, eventos
que permitissem debates intelectuais, acesso as notícias que interessassem os negros através
do Jornal Quilombo. No campo teatral especificamente se buscou ao máximo se distanciar de
um teatro de revista ou do cômico, esse afastamento representava para Abdias Nascimento a
superação da “fase do negro sinônimo de palhaçada na cena brasileira” 3.
Dentro dessa pluralidade de eventos produzidos pelo TEN, estão também a realização de
concursos de beleza negra, essa vertente desenvolvida pelo grupo buscava discutir a imposição
da brancura como padrão de beleza, ao mesmo que rechaçaria os estereótipos da mulher negra
4
, que sempre esteve associada a sensualidade e a seus aspectos físicos. Os critérios que seriam
usados pelo TEN estariam voltados não apenas para características físicas, seriam levados em
consideração qualidades de personalidade e caráter.
Foram apresentadas as candidatas ao título de “Boneca de Pixe” de 1950 lindas, jovens
e dignas representantes da beleza negra de nossa terra. O certame, tendo a finalidade de
promover a valorização social da mulher de cor, não poderia se ater apenas à beleza física
das candidatas, tendo sido exigido também qualidades morais, predicados de inteligência,
requisitos de graça e elegância5.

2 NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: Trajetórias e reflexões. Estudos Avançados 18 (50),
2004, p. 209.
3 Ibidem, p.214.
4 NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus,
2003, p. 297.
5 Jornal O Quilombo Edição n.09, p.08 e 09.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Não nos ateremos propriamente nesse momento ao nome do concurso intitulado


“Boneca de Pixe”, que pode ser interpretado como uma forma de reforçar estereótipos racistas
ou de gradação a partir de fenótipos. Porém, é importante destacar que nesse período o termo
era amplamente conhecido pela fábula do folclore brasileiro, onde a boneca de piche seria uma
espécie de armadilha, como também através da canção escrita por Ary Barroso em 1939 intitulada
“boneca de piche”, a canção também deu origem a interpretações posteriores, feitas por Grande
Otelo e Virginia Lane em 19736 e em 2008 por Romeu Evaristo e Desirée Oliveira7, ambas as
atrizes de pele branca se utilizaram de caracterizações estereotipadas e com o rosto pintando
de tinta preta. Abdias Nascimento posteriormente alegou que a polêmica envolvendo o nome do
concurso foi gerada por pessoas que não entendiam e que não queriam compreender o concurso
e a intenção de valorizar a mulher negra.
O que nos interessa propriamente, é que aspectos reais estavam sendo elencados por
esses concursos, que atributos a mulher negra deveria preencher para ser eleita como vencedora.
Na edição de maio de 1950 o jornal O Quilombo traz uma matéria acerca da ganhadora do
concurso, com grande destaque para Catty Silva e suas qualidades, a notícia vem acompanhada
de pequeno texto de J. Barbosa acerca da beleza racial, no texto o autor destaca a importância
de se enxergar a beleza além de padrões voltados para os brancos e a valorização da beleza para
além desses parâmetros, ao fim do texto ele narra a história de um amigo, acerca da beleza das
mulheres negras:
Bastante razão tinha um amigo meu quando, ao aproximar-se de um outro, louvando
a beleza da nossa raça, trazia em uma das mãos o número 5, de janeiro deste ano, de
QUILOMBO, cuja capa ostentava a fotografia de uma bela e graciosa jovem americana
cujo sorriso irradiava a meiguice característica das mulatas.

- Que coisinha ein! Exclamou mostrando o jornal.

-Que coisinha nada meu amigo. Eu diria melhor, e com mais propriedade, se me permite,
qui...lombinho!8

Além do texto de J. Barbosa sobre beleza racial, ao longo de toda matéria as participantes
recebem elogios sobre de sua dignidade, valorização social, qualidades morais, inteligência, graça
e elegância (física e também por suas indumentárias distintas), todos elementos que buscava,
substituir o caráter apenas físico de outros concursos de beleza.

2 CLUBE RENACENÇA

Voltando-nos agora para o Clube Renascença, criado em 1951 na zona norte do Rio de

6 https://www.youtube.com/watch?v=3wnu8OEYwGY acesso em 20 de novembro de 2016.


7 https://www.youtube.com/watch?v=eeVu3GZ9Gnk acesso em 20 e novembro de 2016.
8 Jornal O Quilombo Edição n.09, p.08.

Página 192
Janeiro, percebemos primeiramente a distância de um caráter político, como observamos no TEN
propriamente dito, o Renascença em seu princípio buscava criar um local onde famílias negras
pudessem ter um espaço de recreação e sociabilidade, já que de maneira geral em outros clubes
a presença de negros não era vista com bons olhos. Sonia Maria Giacomini em seu livro A alma
da festa destaca que as famílias negras que compunham o Renascença tinham características
bem marcadas de distinção, o clube, portanto, não tinha como discurso a integração do negro na
sociedade em si, o local serviria para o lazer de uma elite negra, destacada por possuir títulos e
valores considerados corretos. Nesse caso, a segregação racial foi um dos motes da criação do
clube, mas tal fato não evitou que a posição social, ou em outras palavras, a questão de classe
impedisse outros negros de compor os associados, uma vez que o Renascença se destacava pela
educação, bom gosto e a presença de famílias cultas e distintas.
Ao longo de sua trajetória o Renascença sofreu mudanças de diversos tipos, principalmente
acerca de seu público alvo e os eventos realizados. Giacomini aponta uma dessas mudanças a
partir do final dos anos 50, principalmente no que diz respeito aos concursos de beleza ou de miss.
No início, de acordo com um depoimento recolhido pela autora os concursos viriam atender uma
carência decorrente do preconceito contra mulheres negras9.

As moças que participavam dos concursos eram irmãs, filhas, afilhadas, primas dos
associados que, da plateia aplaudiam as candidatas cuja realeza incluía também, além de
beleza plástica, certa postura elegante e um charme discreto, considerados condizentes
com a afirmação da dignidade negra que como já salientado no Capítulo 1, encontrava-
se no centro do projeto original do Renascença Clube, e que tinha a família e nos valores
familiares seu núcleo mais expressivo10.

Já em um segundo momento, os concursos ganhariam outro aspecto, baseado


principalmente em uma nova maneira de luta contra o racismo, a questão não se restringiria apenas
na ocupação de espaços ou na afirmação da beleza, mas sim de buscar um caráter extremamente
competitivo entre as candidatas através de seu recrutamento e preparação. Giacomini observa
nesse sentido há grandes diferenças entre a rainha e a miss, pois, a miss reuniria tanto do modelo
fundador do renascença, quanto à beleza corpórea que se sobressai aos valores morais e apresenta
o novo11.
Para este ensaio elegemos o concurso de beleza realizado pelo Renascença em 1964, a
vencedora foi Vera Lúcia Couto, cremos que a partir desse exemplo podemos elencar as visões
acerca da mulher negra e os critérios de avaliação do concurso. Vera já tinha um histórico em
concursos de beleza, ela foi vencedora do Miss Guanabara e foi segundo lugar no Miss Brasil,
dessa forma ela inauguraria esse novo momento do Renascença, o período das misses.
Vera era diferente em vários aspectos, quando comparada às outras vencedoras do

9 GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa. Família, etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte do
Rio de Janeiro – o Renascença Clube. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006, p. 98.
10 Ibidem, p. 99.
11 Ibidem, p. 106

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

concurso, primeiro devido a sua fama, como também pelo novo aspecto competitivo do concurso,
mas ainda assim havia elementos que não eram deixados de lado, esse ponto é perceptível através
de outro depoimento que diz que: “Vera era charmosa e linda, isso reafirmou a beleza da mulher
negra, ela não era vulgar, era uma pessoa que tinha uma estrutura familiar super rigorosa”12.
Novamente observamos que não apenas o aspecto físico estava em jogo, Vera era
admirada por outros atributos, de acordo com Giacomini ela era considerada uma mulher de
classe, que detinha carisma, charme, sobriedade, bom gosto e finesse13, sua vitória no Renascença
será devida, sobretudo, a essas características que se oporiam a candidata que ficou em segundo
lugar, pois, ela detinha aspectos considerados excessivos e não contidos como os de Vera.

Conclusão

A partir dos dois exemplos de concurso de beleza negra aqui citados, podemos perceber
afastamentos e aproximações entre os dois grupos realizadores que exaltam e defendem a cultura
negra no Rio de Janeiro nos anos de 1950 e 1964. O afastamento entre os grupos é perceptível
quando nos voltamos para suas estratégias de luta contra o racismo, nesse sentido os escritos de
Antônio Sergio Guimarães nos apontam pistas para discutir a formação de diferentes identidades
afro-brasileiras que perpassam diferenças culturais e sociais dentro de um mesmo espaço
geográfico. Dessa maneira, podemos ver que tanto o Renascença, quanto o TEN se aproximam
na luta contra o racismo, mas distanciam em sua forma de realização em diversos momentos,
principalmente se colocarmos o conceito de raça e classe caminhando lado a lado.
Por esse ângulo, trazendo a luz os discursos acerca dos concursos de beleza, observamos
que os dois grupos tinham como preocupação se afastar da imagem de uma mulher negra
extremamente sexualizada, imagem essa tão cristalizada ao longo da história. Apesar do TEN
não compor um discurso acerca da família explicito, é possível observar através dos atributos
elogiados nas candidatas à “Boneca de Pixe” aspectos morais estavam também presentes. Em
ambos concursos percebemos a tentativa de equilíbrio entre aspectos físicos e valores morais,
nas palavras de Giacomini acerca do Renascença havia a tentativa de harmonização entre dois
extremos:

Certamente que os dirigentes do Clube não pretendiam construir ou divulgar uma imagem
em que a mulher negra e mulata figurasse como pouco interessante, estética, social,
profissional e moral. Pretendiam de fato, faze-la conhecida e reconhecida em um formato
que reunisse, harmoniosamente qualidades estéticas, morais e intelectuais. Nada mais
afastado e oposto a esse ideal de equilíbrio que a representação do senso comum, em que
a mulher negra, em especial a mulata aparece extremamente sexualizada, descontrolada
e disponível14.

12 Ibidem, p. 109.
13 Ibidem, p. 112.
14 Ibidem, p. 131.

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Por mais que os dois grupos buscassem valorizar a beleza negra, essa valorização se
centrava por um lado em aspectos físicos ideais, e que inevitavelmente ganhavam uma forma
erotizada, como vimos no texto de J. Barbosa na edição do jornal O Quilombo. E por outro lado
se dava através da construção de outro tipo ideal de mulher negra, a que demonstrasse além de
beleza aspectos intelectual e morais, principalmente na contenção de sua sensualidade.
Os ideais da mulher negra, portanto, ganham diferentes formas em diferentes grupos no
Rio de Janeiro, mas apresentam características bem marcadas e próximas mesmo com diferenças
temporais em sua essência, percebemos que a elevação cultural e a integração social dos negros,
defendida pelos dois grupos também atravessa a questão de gênero e também de comportamento
da mulher negra, elegendo em determinados momentos tipos ideais e aceitáveis dentro dos
valores da sociedade patriarcal.
É importante observamos que as questões de identidade, e da cultura negra estão sempre
em processos de disputas e de lutas antirracistas dentro da sociedade, e nesse aspecto outros
debates permeiam a luta contra a segregação. Assim como observamos que o conceito de classe
está presente na construção dessas identidades e culturas negras e suas estratégias, os debates
acerca do corpo feminino e do comportamento da mulher negra permeiam o campo de discussão
e podem ser utilizados em construções de identidades e de combate ao racismo, por mais que tais
estratégias sejam carregadas de ambiguidades e contradições dentro de grupos como o Teatro
Experimental do Negro e o Clube Renascença.

Referências

GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa. Família, etnicidade e projetos num clube social da Zona
Norte do Rio de Janeiro – o Renascença Clube. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2006.

NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: Trajetórias e reflexões. Estudos Avançados


18 (50), 2004.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo:
Summus, 2003.

PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio
urbano. In: VELHO, O. G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 26-67

Página 195
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O EMPODERAMENTO DA MULHER NEGRA: UMA PRÁTICA DE


MEDIAÇÃO CULTURAL ATRAVÉS DA ARTE.

SOUZA, Izabela Fernandes. (UNILA)


Izabela.fermandesouza@gmail.com

Resumo

Este artigo buscará refletir o papel da mulher negra enquanto mediadora cultural, que toma a arte
como veículo e meio para contestar e tensionar as estruturas sociais racistas, classistas e patriarcais
que nos cercam. Para tanto, utilizaremos como objeto de análise a montagem cênica “Terra Vermelha”,
resultado de um trabalho de conclusão de curso em Letras - Artes e Mediação Cultural, desenvolvido
na Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), defendido em 2015. Esta montagem
contou com a colaboração e constituição artística das performances Anabel Vintimilla, Gabriela
Fernandes, Izabela Fernandes, Juliana Zacarias e Laís Cabral. O espetáculo Terra vermelha simboliza o
sofrimento dos povos latino-americanos enraizados e em rebelião nas entranhas que configuram seu
corpo e, especialmente, o sofrimento e o empoderamento da mulher negra. Terra vermelha também
vem a simbolizar a luta, a rebeldia, a coragem e a vontade de mudança. Essa terra resiste e fortalece seu
povo posto em minoria, exposto a margem dos trânsitos oficiais e legitimantes. Nesse sentido, enquanto
mulheres, especialmente negras, essa relação é mais estreita, uma vez que vivemos em um sistema
patriarcal, machista e racista, que delimita políticas e ações que intervém diretamente na autonomia
de nossos corpos. Compreendemos essas mulheres como sujeitos históricos, e para tanto, também
consideramos as noções epistemológicas de gênero, raça e classe, através de uma abordagem
feminista interseccional e decolonial.

Palavras-chave: Terra Vermelha. Feminismo. Mediação Cultural. Empoderamento.

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Introdução

Esse artigo se projeta através do anseio de evidenciar e compartilhar o processo da


construção da peça “Terra Vermelha”, montada através da pesquisa desenvolvida como trabalho
de conclusão de curso durante minha graduação em Letras - Artes e Mediação Cultural da UNILA
(Universidade Federal da Integração Latino-americana), defendido no ano de 2015 na mesma
universidade. A criação e direção ficaram sob a responsabilidade de quem hoje escreve este relato,
no entanto, as práticas criativas foram impulsionadas pelos saberes e experimentações coletiva. A
montagem contou com a atuação, colaboração e constituição artística das performances Anabel
Vintimilla, Gabriela Fernandes, Juliana Zacarias e Laís Cabral.   
Partimos por uma abordagem que busca entender o processo da montagem cênica
enquanto uma prática de mediação cultural. Aqui, partimos da concepção de mediação cultural
como uma necessidade e estratégia social, que entende que suas estruturas e relações sociais
se dão a partir de pressupostos assimétricos, requerendo assim, estratégias de circulação e
enfrentamento social em diferentes frentes e meios. Nesse caso, a arte passa a ser a ferramenta e o
meio por via do qual partimos para produzir dizeres, provocar e embriagar olhares com inquietação
e rebeldia. Sendo assim, a mediação cultural transita por uma proposta transgressora, que enfrenta
e ocupa espaços e saberes, em busca de mudanças e práticas libertárias.
O ambiente acadêmico resultante e pertencente a uma sociedade historicamente construída
a partir de uma estrutura racista, patriarcal, militar, assassina, xenofóbica, heteronormativa e cristã,
baseada na exploração, no silenciamento, na apropriação e no embranquecimento de saberes,
através de suas abordagens metodológicas e imposições epistemológicas, segue reproduzindo, a
partir de relações assimétricas entre saberes, as suas raízes coloniais. Cabe-nos aqui recordar um
trecho do relatório do II Encontro Nacional de Mulheres Negras, realizado em Salvador, em 1991,
que sublinha que “nossa sociedade é plural, racista e machista. Todos nós somos frutos desta
estrutura social e educacional que nos conduz a práticas e ações às vezes determinadas pela
nossa formação’’ (apud MOREIRA, 2007, p.69)
“Terra vermelha” nasce dentro de uma pesquisa de conclusão de curso, mas sua dimensão
e significantes ultrapassam os limites e barreiras acadêmicas. Ressalto esta consideração, pois se
trata de uma construção coletiva, de um espaço de experimentação e de troca que encontrou na
prática artística a abertura para a elaboração de caminhos e saberes que foram construídos via
uma rede tecida por afetos, inquietações e processos de empoderamento.
Cabe aqui recordar que, apesar do restrito acesso a biografias e perspectivas feministas
enegrecidas, essa montagem conseguiu a partir da experimentação corporal abrir e transgredir
essas barreiras e ausências. Bem como nos recorda a filósofa e pesquisadora Djamila Ribeiro, em
uma entrevista realizada pela Websérie CharLA- Epistemologias das mulheres negras, da UNILA
(2017), quando analisa o âmbito acadêmico, que esse espaço se encontra muito fechado para
saberes enegrecidos e consequentemente para nossas produções intelectuais, pois esse lugar de
privilégio segue muito pautado no olhar masculino eurocêntrico. (RIBEIRO, 2017).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Os esforços acadêmicos em silenciar perspectivas negras e outros olhares marginalizados


se dão por via de diferentes vetores e estruturas. Uma delas se dá a partir da base bibliográfica
de cursos de graduação, majoritariamente construída a partir de pessoas e perspectivas
brancas, obviamente não justificadas pela ausência de outras reflexões e produções acadêmicas
enegrecidas e decolonias, mas sim, justificada a partir de um discurso científico construído através
do mito da neutralidade e, sendo assim, elaborado a partir da imposição do homem branco, racista,
machista e capitalista, que exerce práticas ditatóriais sobre o saber, que buscam naturalizar, negar
e apagar as marcas de seu espaço de privilégio.
Problema este, também marcado, não contrariando razões históricas, pela ausência
de representação e presença de professorxs negrxs em salas de aula ou na elaboração de
planos pedagógicos, ou mesmo na relativa ausência de disciplinas obrigatórias, optativas e/ou
incentivos institucionais extra-acadêmicos, insurgentes, que venham a suprir essa grande sede
e dívida histórica. Nesse cenário, cabe a organizações e espaços de resistência e re-significação
acadêmica, acolher e propor perspectivas contra-hegemônicas, que naveguem por outros ethos
e saberes. Aqui vale recordar as reflexões que nos propõe a intelectual Juliana Zacarias,
“Quando não são apresentadas tais opções de livros, teorias, artigos e resenhas,
protagonizados por negras e negros latinos americanos e caribenhos, como produção
acadêmico-científica, tratar com superficialidade as produções de povos “minoritários” é
reproduzir os mesmos discursos que configuram o não ensino escolar, sobre as histórias
dos povos de afro-latinos e afro-caribenhos como autores de suas trajetórias e resistência,
na cultura, história e arte que comporta a diversidade Latino-americana.” (ZACARIAS,
2017, p.31)

Essa montagem cênica surge a partir da necessidade de projetar em uma construção


artística, questões relacionadas à memória coletiva, assumindo o compromisso com o espaço em
que vivemos e o desejo de contribuir positivamente na construção de novas perspectivas históricas
e na desconstrução de paradigmas sociais. A partir de um processo de empoderamento, de uma
consciência enegrecida, tomando o elemento cênico como meio para denunciar as marcas desse
sistema racista, patriarcal e capitalista e, por consequência, expor e criticar a relação desigual que
existente entre as mulheres.
A peça utiliza como pulsão poética a obra do pintor e escultor equatoriano Oswaldo
Guayasamín (1919-1999), considerado um dos artistas latino-americanos mais consagrados no
mundo das artes. Fruto de uma luta histórica; é o descendente indígena, o mestiço andino, que
ultrapassou as margens do preconceito e o espaço simbólico concernido ao subalterno, mas não
abandona as raízes que compõe sua história. Seu traço está abastecido de ternura, de respeito à
existência humana, mas também de contradições e dores, de gritos e horrores. Ternura e respeito
porque, não satisfeito com o mundo que lhe coube viver, assume o papel do artista indagador,
do rebelde que não se cala frente às injustiças que o cercam, mas as denuncia, escancarando as
contradições da face (branca) do capitalismo.
A produção cênica aproximou-se da criação pictórica de Guayasamín, acentuando o seu
caráter rebelde e transgressor e possibilitando estabelecer um diálogo intercultural e interartes.

Página 198
Transitamos pela poética do artista adaptando seus anseios e inquietações, através de um
processo de tradução cultural inter-semiótico. (SOUZA, 2015)
A série Edad de la Ira, coleção que utilizamos como referencia e pulsão poética durante a
criação, como toda sua produção pictórica em geral, ratifica o esforço de Guayasamín em convergir
a dor que aflige sua memória social e o imaginário da época. Nesse sentido, o pintor demonstra
a importância dessa memória atávica quando diz: “há mais ou menos uns três ou cinco mil anos
venho pintando” (NAVAS, 2006, p. 20). A série “Edad de la Ira” constitui-se por 260 quadros, com
reforçado valor político, marcado por uma estética indigenista que questiona o discurso oficial e
sua invenção histórica, intervindo na posição das veias abertas do continente americano.

Serie a Edad de la Ira, El grito II, Guayasamín, 1983

1- Corpos que ressoam resistência e empoderamento

A tradução como um ato crítico, criativo e ativo, analisado no decorrer da pesquisa teórica
do trabalho, que acompanhou a criação cênica, nos colocou diante de pontes inter-artes, uma
ponte de trânsitos e tensões. Ponte esta que, onde da pintura perpassada pelo modelar e canais
de mapas corporais, que caminham de encontro com uma ânsia de provocação e conexão com
saberes ancestrais, que navegam sobre sua pele, que transmigram através de saberes coletivos
(recordando o conceito da historiadora e grandiosa intelectual brasileira Beatriz Nascimento),
toca a intimidade de corpos que na necessidade de se re-ligar com um sentir-pensar ancestral,
experimenta o poética da Ira, seus medos, traumas e angustias. Corpos políticos e sociais, corpos
íntimos e mutilados, corpos com medo e coragem, corpos revestidos de contradição.
A pesquisa cênica partiu de improvisações que foram separadas por eixos e temas, tomando
como referência alguns quadros que foram selecionados. Experimentamos, a partir do corpo, os
elementos que dialogavam com as questões de opressão social, injustiça, crise-medo, ira e, por
fim, retorno mitológico. A última cena teve como propósito expressar esse re-encontro com a terra,
com nossa história e suas raízes. “Um processo de conexão, metamorfose e encontros simbólicos,
catalisados junto à presença da terra molhada e em contato com o corpo feminino”. (SOUZA, 2015,
p.27)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A montagem cênica “Terra vermelha”, em um primeiro momento, buscou transcorrer por


um campo simbólico a partir da analogia da terra vermelha como um solo manchado de sangue,
torturado, oprimido e explorado. Esta terra marcada por uma história sangrenta e sofrida, que
provocou marcas e deixou manchados aqueles que tocaram as camadas que configuram esse solo.
Terra vermelha, nesse sentido simboliza o sofrimento dos povos latino-americanos enraizados e
em rebelião dentro das entranhas que configuram seu corpo. Sofrimento causado pela imposição,
pelo silenciamento, exploração e massacres de outridades não brancas-ocidentais.
Para a cineasta, colaboradora e atriz Anabel Vintimilla, o papel que ela desenvolveu,
simbolicamente estava associado na peça a ditadores e opressores, figuras de poder, soldados,
a classe social beneficiada, “así que las sensaciones en su mayoría son de cinismo, de ganância,
de ódio al outro por su postura, por su pensamiento, por su color de piel, por sus acciones, por su
lucha por escapar”. (VINTIMILLA, Anabel, apud SOUZA, 2015, P.83)
Terra vermelha também vem a simbolizar a luta, a rebeldia, a coragem e a vontade de
mudança. Para a pesquisadora e antropóloga Laís Neckel, colaboradora e atriz dessa peça, Terra
Vermelha, “fala sobre contradições dentro de uma sociedade que foi constituída por marcas que
deixaram cicatrizes, a qual estamos condenados diariamente a senti-las, com menor ou maior
intensidade.” (NECKEL, Laís Cabral apud SOUZA, 2015, P.84) Essa terra grita justiça pelo sangue
aqui já derramado, cobra memória, e se compadece com o dia-a-dia suado e de sua gente. Essa
terra resiste e fortalece mulheres em suas distintas multiplicidades, indígenas, negros, seu povo
posto em minoria, exposto a margem dos trânsitos oficiais e legitimantes.

Página 200
“Na resistência é que encontramos nossas raízes, é que encontramos um principio de
mudança. É através dessas contradições que construo meu entendimento sobre a
peça. Contradições essas que não se constituem por acaso nem por descuido. Regidas
por hierarquias e binarismos, essas obedecem a uma estrutura, tão complexa quanto
perversa.” (NECKEL, Laís Cabral apud SOUZA, 2015, P.84)

Esse artigo estabelece um dialogo teórico não utilizado durante a época da defesa dessa
pesquisa, entendendo que a necessidade de partir por uma abordagem epistemológica enegrecida,
tomou força no decorrer da construção cênica, que culminou com processos de empoderamentos
individuais e coletivos, junto com o fortalecimento de uma consciência enegrecida, que conseguiu
via o corporal expor essas inquietações, o que não aconteceu com a mesma força através da escrita
naquela época. Sendo assim, também entendemos a terra a partir de sua relação do re-ligare,
partindo pela perspectiva de Beatriz Nascimento (1989), em que a terra será nosso quilombo.
Onde estivermos será nosso quilombo. Onde estamos, o eu está. Quando estamos, nós somos.
(NASCIMENTO, Beatriz , 1989, apud RATTS, 2006, p.59).
Simbolicamente, o ancestral redefiniu as relações sociais, transgrediu a imagem perdida
da diáspora. Por meio dele, através de processos de aquilombamentos, tal como nos ensina
Nascimento, nosso Ori (cabeça) conectado com a terra, transgrediu e enxergou o poder que
possui. Conseguimos projetar um olhar cênico construído a partir da necessidade e do olhar da
mulher negra. Para Alexs Ratts (2006), professor, geógrafo e antropólogo brasileiro, como ressalta
no decorrer do livro “Eu sou atlântica, sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento”, Beatriz
burila o termo Ori, “como relação entre intelecto e memória, entre cabeça e corpo, entre pessoa e
terra, correlação adequada para interpretar numa única visada restauradora a desumanização do
individuo negro” (RATTS, 2006, p.63), permitindo e possibilitando a reconstrução de si, inserido e
participe de uma coletividade.
A mulher negra desenvolveu o papel que lhe cabe como protagonista, revolucionária,
rebelde e transgressora, sem deixar de evidenciar que ela, se tratando de mulher e negra, na
combinação de opressões de raça, classe e gênero, recordando Djamila Ribeiro (2017), ocupa um
espaço de maior vulnerabilidade e, sendo assim, por via de uma abordagem interseccional, que
não separe e hierarquize vidas, mas entenda que essas opressões se entrecruzam, que leve em
conta que raça indica classe, poderemos de fato pensar com seriedade a questão racial brasileira
e permitir que a mulher negra em sua multiplicidade coexista com dignidade.
A composição feminina acabou por configurar novos canais de simbologias, em diálogo
com a terra, a mulher gera e atinge as profundidades de sua ancestralidade. Há uma necessidade
de encontrar-se com o seu estar em terra, de possuir e alterar ciclos, de lutar por libertação das
amarras patriarcais e racistas que anulam e oprimem seus corpos. A presença feminina esta
interligada ao movimento cíclico e mitológico da terra. Ambas (mulher e terra) relacionam-se e
estão marcadas pela necessidade de transformação de ciclos e luta por mudança do sistema
patriarcal, classista e racista vigente. (SOUZA, 2015, p.27).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Para a pesquisadora, mediadora cultural, colaboradora e atriz da peça, Juliana Zacarias


(2017), que sublinha no seu trabalho de conclusão de curso em Letras - Artes e Mediação
Cultural, intitulado “Mediação cultural, arte e danças afro/africanas: através de um olhar periférico
contemporâneo”,
“Neste período mais uma obra se faz refletir sobre meu corpo negro, sentir as energias
em representar, apresentar e simultaneamente se fazer entender como corpo participante
dos elementos apresentados. Aqui vem à memória às escravas e campesinas, através
do contato com a terra, presente em cena por estar presente em nossas vivências,
particularmente em minha realidade prática atual.” (ZACARIAS, 2017, p. 37-38)

Nesse sentido, essa aproximação epistemológica acerca do corpo da mulher negra


e do feminismo entende, assim como Sueli Carneiro (2013), que ao politizar as desigualdades
de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. “Essa condição faz
com que esses sujeitos assumam a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que
desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular”. (CARNEIRO,
2013, p. 119)
Tomando a perspectiva de Carneiro, sobre a necessidade de denunciar e pensar a dimensão
do problema da mulher na sociedade brasileira, entende-se que a dimensão que emerge do
movimento de mulheres negras sobre a prática e política feminista no Brasil, exige uma reelaboração
de formulações clássicas que enegrece um feminismo e evidencia os silêncios e outras formas de
opressão que não perpassam somente pelo sexismo. Essa concepção emerge de uma condição
especifica do ser mulher negra e em grande suma, não por acaso, pobre. (CARNEIRO, p. 118, 2013)
Entende-se o sexismo como um sistema de dominação, que é institucionalizado, mas
como sublinha Bell Hooks, “nunca determinou de forma absoluta o destino de todas as mulheres
nesta sociedade”. Ênfases feministas que partam por uma análise de “opressão comum”, estarão

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silenciando uma medida de experiência fixa e universal. É importante e essencial entender, tal como
nos ensina Bell Hooks, que para a continuação e formação de uma teoria e uma práxis feminista
libertadora, é necessário reconhecer o ponto de vista especial e o lugar de marginalidade em que
se encontra a mulher negra, fazendo uso de uma perspectiva que critique a hegemonia racista,
classista e sexista dominante, sendo essa uma responsabilidade coletiva, uma responsabilidade
que deve ser compartilhada. (HOOKS, 2015, p.208)

Conclusão

Pensando a mediação cultural através de uma perspectiva empírica, enquanto ferramenta


e possibilidade de empoderamento de mulheres negras, especialmente periféricas, tomamos as
ferramentas artísticas para fomentar um ato político e indagador, lidando com a realidade através
do simbólico e do poético. A mediação cultural e artística aqui estabelece pontes entre as camadas
simbólicas que compõe o imaginário coletivo e as estruturas sociais que silenciam nossas raízes
e feitos ancestrais.
O ancestral, a resistência e a luta pela liberdade, aparecem simbolicamente como “um outro”
que te compõe, a partir da tomada de consciência, te coloca em conflito, quando está presente ou
quando está ausente; são constelações em diálogo, em consonância, que tecem círculos e ruídos
na paisagem do encontro, marcado por camadas temporais e movimentos corporais. Essa ação
de mediar nos coloca em contato com percepções marginalizadas, apagadas, violentadas, de
maneira vertiginosa coloca em evidencia os silêncios, os encontros e os desencontros históricos
e corporais.
Entendendo a mediação cultural como uma prática que se estabelece a partir da estratégia
e da necessidade de quebrar silêncios, de habitar e projetar (re) existências, de uma mulher negra
que se reencontra a partir de sua práxis, da consciência corporal, entendendo seu corpo como
canal, potente, carregado e gerador de conhecimento. A concepção de intelectualidade enegrecida,
como explica Djamila Ribeiro (2017), que utiliza a militância para construção de seu pensamento,
e o pensamento para potencializar sua prática militante, permite estabelecer relações dialéticas
entre essas perspectivas, e sendo assim, atravessa as esferas dicotômicas fundamentadas dentro
do ambiente acadêmico masculino e eurocêntrico.
A mediação cultural passa a ser o meio pelo qual projetamos nossos anseios e saberes a
partir de um olhar decolonial e libertário. Desta forma, enquanto mulheres a partir de nosso lugar
de fala e representação social, lembrando as palavras de Sueli Carneiro, nos colocamos a serviço
da luta pela igualdade de direitos e oportunidades para todas (CANEIRO, 1995, p.548).

Referências

CARNEIRO, Sueli. Gênero, raça e ascensão social. In: Estudos Feministas 544. Florianópolis,
UFSC, 1995.

Página 203
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

___________, Mulheres em movimento. In: Estudos avançados, V.17, n.49 2003.

hooks, bell. Intelectuais Negras. In: Estudos Feministas V.3, nº 2, p. 454-478. 1995.

___________, Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Black women: shaping feminist


theory. Revista Brasileira de Ciência Política, nº16, 2015.

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negras no Rio de Janeiro e São Paulo. Dissertação de mestrado, Campinas, UNICAMP, 2007.

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2006.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yc45co1PLNI, acessado em 29 de jun de
2017.

SOUZA, Izabela Fernandes. A poética da Ira: uma montagem cênica a partir da obra de Oswaldo
Guayasamín. Foz do Iguaçu, UNILA, 2015.

ZACARIAS, Juliana. Mediação cultural, arte e danças afro/africanas: através de um olhar periférico
contemporâneo. Foz do Iguaçu, UNILA, 2017.

Imagens de Áurea Cunha

Página 204
REPRESENTACIÓN DE LA MUJER NEGRA EN PERÚ Y BRASIL

CAMPOS, Angie Edell (UNICENTRO)


angieedell@gmail.comSANTOS, Rodrigues Thais (UNICENTRO)rodriguesdossantosthais@gmail.
com

La presente investigación tiene el objetivo de analizar el contexto actual e histórico en el cual se


desarrollaron las mujeres afrodescendientes en los países latinoamericanos de Perú y Brasil, busca
evidenciar la historia no contada y su relación con la representación actual de la mujer negra. Se utilizará
un análisis comparativo basado en estudios sobre el proceso histórico de las mujeres negras, así como de
documentales que guardan los testimonios de sus experiencias de vida. La población afrodescendiente
de Perú está denominada como una minoría étnica y/o cultural (8% de la población), así mismo en base a
distintas organizaciones de la sociedad civil, es una de las poblaciones que se encuentran en situación de
mayor vulnerabilidad, partiendo de que no son reconocidas en la Constitución del Perú. Según el Censo
del 2010 en Brasil, las mujeres negras eran un cuarto de la población brasileña- 50 millones de mujeres-
de un total de 191,7 millones de brasileños(as). Así cada una de esas mujeres tenga su propia experiencia
de vida, las experiencias como mujeres negras brasileñas se repiten. Las mujeres afrodescendientes se
encuentran envueltas en una triple exclusión, la de género, clase y etnia, a ello, se le suma un cuarto
factor en el caso de la Juventud, exclusión generacional. Conforme a la lógica colonial se depositan en
esos cuerpos femeninos reglas sexistas y racistas que las violentan de diferentes formas y durante toda
su vida. Tal como aparecen en los índices de violencia contra la mujer, así como en los relatos diarios
de las experiencias de las mujeres negras. El estudio evidenció la constante representación de la mujer
negra de forma hipersexualizada, cosificada, violentada y animalizada, la cual se fue reproduciendo a
través del tiempo, estableciéndose como un hecho natural propio de determinados grupos raciales y
presente en los paíseslatinoamericanos.

Palabras clave: Mujer Negra; Representación social; Países latinoamericanos

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introducción
Las condiciones coloniales que reconfiguraron las relaciones sociales en los países
latinoamericanos reservan para las mujeres afrodescendientes el más duro “engendramiento” del
1

racismo y sexismo. Ellas ocupan la última posición en la escala social, en contraste con la máxima
posición representada por el hombre blanco (GONZÁLES, HASEMBALG, 1982) en referencia a los
parámetros socioeconómicos y derechos a laciudadanía.
Sueli Carneiro (2003) afirma que en Brasil como en otros países de América Latina, el
origen de la construcción de la identidad nacional sentó sus bases en las violaciones coloniales
perpetradas por los señores blancos contra las mujeres esclavizadas e indígenas, así como en el
mestizaje. Es en este momento que se estructura el mito de la democracia racial latinoamericana,
que en el caso del Brasil llegó a afectar irrevocablemente a la población afrodescendiente. Para
la autora citada, esa violencia sexual colonial se consolida también como el “cimiento” de todas
las jerarquías de género y raza presentes en nuestras sociedades, configurándose, como lo que
define Angela Gilliam que: “Se niega el papel de la mujer afrodescendiente en la formación de la
cultura nacional; la desigualdad entre hombres y mujeres es erotizada; y se convirtió a la violencia
sexual contra las mujeres afrodescendientes en un romance”.
En ese sentido, se construye y legitima un lugar de subordinación para la mujer
afrodescendiente, históricamente marcada por los estigmas de los siglos de expropiación social,
económica y cultural, amparada por la etapa de la esclavitud. El panorama de los días actuales
atraviesa por diversos niveles de violencia física y simbólica experimentados por el cuerpo
subjetivado de la mujer afrodescendiente. Sobre ello, se utilizarán producciones teóricas y prácticas
que contemplen discusiones sobre esas intersecciones en las condiciones de vida de la población
mencionada.
Para el presente artículo, se entiende que es necesaria la lectura desde un enfoque
interseccional de las diferentes opresiones que subalternalizan a las mujeres, principalmente
en los ejes de raza y género. Para Crenshaw (2002) con esta perspectiva metodológica se
entienden a las categorías como articuladas y operacionalizadas para oprimir a las mujeres en
diferentes espacios y condiciones. Se destaca, sobre todo, que el acceso universal de las mujeres
a sus derechos humanos basados en las relaciones de género demanda la atención de identificar
cómo el género se intersecta con una serie de otras identidades y cómo la sociedad vulnerabiliza
estas intersecciones impactando en las expectativas de vida y desarrollo de las mujeres
afrodescendientes (CRENSHAW, 2002, p. 174).
En ese sentido, se problematizan las configuraciones atravesadas porel racismo y sexismo
en la cotidianeidad de las mujeres afrodescendientes de dos países latinoamericanos: Brasil y

1 El término mujer negra es utilizado de forma política en Brasil para la generación de discusiones y
posicionamiento del movimiento. El término mujer afrodescendiente/afroperuana es un término colocado en las
discusiones del país peruano. En vista de estas dos particularidades, para fines de la investigación se utilizará el término
mujer afrodescendiente y sus variantes en cada país, debido a que ese término es aceptado social y políticamente en
ambos países por igual.

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Perú.
A modo de contextualizar brevemente los países envueltos en la investigación, se resalta
que Brasil, en el años 2013 tenía una población de 59.4 millones de mujeres afrodescendientes,
correspondiente al 51,8% de la población femenina y a un 27.7% de la población brasileña total
(IPEA, 2013). Este grupo está presente en todas las regiones del país, siendo que las Regiones del
Norte y Nordeste presentan la mayor población de mujeres afrodescendientes, proporcionales al
75.2% y 70.7% respectivamente; la Región Centro-Oeste presenta un 57%, la Región Sudeste un
43.9% y la Región Sur presenta la menor proporción, con 21.3% de mujeres afrodescendientes en
la población femenina. En todas las regiones las mujeres afrodescendientes viven principalmente
en las áreas urbanas, específicamente en las periferias y regiones más precarias de las ciudades.
En el contexto peruano, un país que tiene como referencia a la población indígena, así
como de pertenecer a la Comunidad de los Andes, no muestra como una población parte de, y/o
simbólica a la población afroperuana. Desde el año 1940 no se incluye en los censos nacionales
la pregunta de autoidentificación étnica, por tal motivo no se cuentan con datos nacionales sobre
la situación de la población afrodescendiente en el mencionado país. La población afroperuana
constituye un 8% de la población general (RAMIREZ, 2006) a quienes el racismo y discriminación
afecta drásticamente en su calidad de vida, así como en su desarrollo social, económico y en su
ciudadanía. Recientemente se desarrolló un Estudio Especializado para la Población Afroperuana
(EPPA, 2014), en el cual se resalta la importante participación de las mujeres como jefas de hogares
en esta población, el 52,3% de los hogares cuentan con mujeres como jefas de hogar, denotando
la relevancia del papel de la mujer afroperuana en la comunidad.

El imaginario de la mujer afrodescendiente a través de la historia de Perú y Brasil

En Perú las investigaciones sobre la mujer africana esclavizada surgen desde el año 1980
con Christine Hünefeldt. Aproximadamente en el año 1528 llegó la población africana a Perú bajo
esclavitud, de toda esa población la tercera parte fue compuesta por mujeres. Para Del Busto
(2002), luego de establecer el virreinato y a consecuencia de la caída demográfica de la población
indígena en el año 1550 la mitad de las y los esclavizados vivían en la ciudad de Lima y las labores
se dirigían en su mayoría al trabajo doméstico. Fue el mestizaje cultural y racial entre la población
indígena, española colonizadora y la africana esclavizada el que estableció las castas y con ello la
posición social en la sociedad peruana. Siendo la población africana esclavizada la que se ubicaba
en el nivel más bajo de la sociedad.
Un proceso similar sucedió en Brasil, la sociedad esclavista brasileña del siglo XIX, fue el
escenario de luchas, resistencias e intereses sociales a costa de acciones deshumanas, un espacio
en el cual la sumisión y obediencia de quienes ocuparon el rol de esclavizados y esclavizadas,
enmascaraban estrategias de resistencias que garantizarían la supervivencia de esos hombres
ymujeres.
Para Giacomini (1988), ser mujer y estar esclavizada en una sociedad extremadamente

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

prejuiciosa, opresora y sexista significaba reunir todos los elementos que favorecen a la explotación
de esa mujer, una explotación económica, social y sexual, así como también ser la depositaria de
humillaciones de la sociedad en sus diferentes clases sociales. Y esta situación se evidencia en
ambos países.
Hunefeldt (1988), retrata la vida cotidiana de la mujer esclavizada en la colonia peruana, la
cual se desenvolvía en tres esferas: en el servicio doméstico de tiempo completo, trabajando en
las calles, pagando un jornal a los dueños de la casa y viviendo con ellos; y como mujer asalariada
que vivía fuera de la casa de los dueños. El trabajo fuera de las labores domésticas de la mujer
esclavizada era frecuentemente de fuerte intensidad como la del hombre esclavizado, sin embargo
la retribución económica no era la misma, por ese motivo muchas de ellas preferían trabajar en las
casas dedueños.
Una situación similar ocurrió en el país brasileño, las mujeres africanas esclavizadas eran
principalmente distribuidas en trabajos domésticos, a la cocina, limpieza de los hogares e incluso
como “amas de leche”. El servicio doméstico fue muy común en la vida de las mujeres esclavizadas
en las principales ciudades, ellas asimilaron que esas labores, en algunos casos, eran la puerta
para el mercado de trabajo e incluso que era su única forma posible de ocupación laboral dentro
del sistema esclavista (PERREIRA, 2011).
2
En el caso de Perú, el trabajo doméstico llevó a que las mulatas, negras, zambas , entre
otras, libres o esclavas, tengan mayor contacto con las familias “blancas”, lo cual también resultaba
en constantes violaciones de parte de los señores de la casa, así como violencia constante. Esta
relación sumada al discurso colonial que perpetuaba el imaginario de una mujer esclavizada/
afrodescendiente con una sexualidad sin restricciones asociada a la inmoralidad sexual, generaba
una posición e imaginario negativo hacia la mujer afroperuana, colocándola en situaciones de
extrema violencia.
Una particularidad del país brasileño, es que con el objetivo de mantener algunas de sus
tradiciones y rasgos culturales, las mujeres esclavizadas resistieron a través de la religión y la
magia (PEREIRA, 1987). Este acceso a un mundo espiritual que desarrollaban las mujeres, era a
través de las plantas, hojas y raíces, tratadas según las costumbres oriundas de sus comunidades
africanas. Estas mujeres también tenían la responsabilidad de unir a las tribus y de ser activas en
la vida comunitaria. Además, existía un pequeño grupo que eran denominadas las curanderas y
hechiceras, eran quienes a través de la naturaleza invocaban a sus dioses y diosas, esta función
era realmente importante ya que las mujeres utilizaban este medio de comunicación divina para
complacer a sus dioses a cambio de que intercedan en sus amos y no las sigan maltratando ni

2 Los términos mulatas, negras, zambas, son clasificaciones del Perú colonial que dividían a la población en
base a sus orígenes/color de piel. El término “mulata” es extremadamente violento. Su origen viene de la mula, que
es el cruce de un burro con la yegua, es decir, un animal híbrido y estéril. En el tiempo de la esclavitud, alrededor del
siglo XVI, el término fue utilizado para llamar a los hijos de hombres blancos portugueses con las mujeres africanas
esclavizadas. A pesar que hoy en día muchas personas no se sientan incómodas con el uso de ese término, y teniendo
en cuenta la condición de la población afrodescendiente, en especial la de las mujeres afrodescendientes, términos
peyorativos como ése no colaboran en nada a mejorar la condición de vida de esas personas.

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violando, para brindar alimentación para sus hijos e hijas, así como para preservar su salud. Sin
embargo, estas actividades ponían en alerta a los amos, quienes reconocían alas
curanderas/hechiceras y temían que los envenenen, frente a ello se impartían severos castigos
a las sospechosas de hechicería. En ese sentido, la curandería y hechizos son un imaginario que
también se acuña en la actualidad a las mujeres afrobrasileñas, sobre todo a quienes son parte de
religiones de matriz africana.
Por otro lado Schumaher y Brazil (2000) aseguran la importancia de no dejar pasar por
alto una nueva interpretación de la historia de Brasil, brindando el lugar que le corresponde a las
mujeres afrobrasileñas, para los mencionados autores no se tiene que olvidar a Brandina, una
abolicionista afrobrasileña que participó del Movimiento Abolicionista de Santos (SP) a mediados
3
del siglo XIX. Brandina fue la líder de uno de los más grandes quilombos de esa región. Ella tenía
una pensión y la usaba para brindar ayuda a esclavizados y esclavizadas fugitivas, les facilitaba
comida, medicamentos y un espacio para descansar. Brandina se resistió a prostituirse con un señor
del Ingenio que le ofrecía ascender socialmente si lo hacía, por su negación ella fue perseguida,
4
torturada y obligada a usar una máscara de flandes , murió como una mártir.
La abolición de la esclavitud en Perú fue en el año 1854 con el decreto de Ramón Castilla.
En el caso de Brasil fue en el año 1888 y la proclamación del estado como República en 1889.
Sin embargo en ambos países no se contó con un proceso de reinserción de la población
afrodescendiente de un estado de esclavitud a uno de aparente libertad legal. No se generaron
a nivel de políticas públicas y/o legislativas acciones que generen un desarrollo integral de las
mujeres afrodescendientes, y nivelación en sus condiciones de vida, ellas tuvieron que abrirse
camino y apoderarse de espacios para garantizar susupervivencia.
Finalizada la etapa “oficial” de la esclavitud en el Perú, se tiene un vacío histórico de la
población afrodescendiente, en las investigaciones, en los libros educativos escolares, en reportes
académicos, la propia historia oficial del país les dedicó un limitado espacio y relevancia masificando
la idea de que la población esclavizada desapareció después de la abolición de la esclavitud.
En el caso de Brasil, las mujeres afrodescendientes tuvieron que desenvolverse en un
ambiente hostil que las señalaba por un pasado esclavista marcado en el color de sus pieles, de
forma resiliente ellas crearon sus propias formas de generar ingresos económicos, esto a través de
venta de alimentos y utensilios en las calles. Sin embargo para esa sobria sociedad brasileña que
iba construyéndose, la mujer idealizada de la época era quien se dedicaba exclusivamente a las
funciones del hogar, por ello la mujer afrobrasileña que marcaba su presencia en el espacio público
incomodaba, además de ser el objetivo de las autoridades del estado, quienes las aprisionaban y
violentaban (DIAS, 2012).

3 El quilombo o mocambo, fue un movimiento típico de fuga y resistencia a la esclavitud de las y los esclavizados,
podía ser pequeño o grande, temporal o permanente. Se encuentra mayor información en Quilombos e revoltas
escravas no Brasil, Joao José Reis,1995.
4 La máscara de flandes, era una máscara de hierro colocada en la boda de las y los cautivos para impedir que
coman o beban, dejándolos así morir de inapetencia. Mayor información en O passeio dos quilombolas e a formação
do quilombo urbano de Silva Djalma Antonio da, 2005.

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Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Así mismo, continuando en Brasil, el racismo aún se encuentra muy presente en el cotidiano
de la población y en las fuerzas represivas del Estado, es frecuente que el movimiento afrobrasileño
relate situaciones en las que son agraviadas a causa de su tonalidad de piel y de los prejuicios
vertidos contra ella (CUELLAR; SANT’ANA; PENA. 2017).
En el siguiente apartado desarrollaremos el impacto del racismo, sexismo y clasismo en la
mujer afrodescendiente.

Interseccionalización del racismo y sexismo en las mujeres afrodescendientes de Perú y


Brasil
En el escenario de las intersecciones discriminatorias que marcan los diferentes modos
de vivir, no basta sólo una lectura sobrepuesta de las opresiones presentes en las diferentes
experiencias de vida para comprender la complejidad de su impacto en las relaciones sociales
desiguales. Para Kimberlé Crenshaw (2002) la percepción de la dinámica como de la articulación
de las variadas categorías no es únicamente estancarse en una reflexión de cada eje opresor, es
principalmente analizar la intersección, es la expresión de las intersecciones en cada una de las
identidades.
Esta percepción metodológica operativiza los estudios con enfoque en las mujeres
afrodescendientes, entendiendo la interacción de las dinámicas de los múltiples atravesamientos
de raza, género y clase social en sus condiciones humanas. Para Crenshaw (2002) la
interseccionalidad problematiza las consecuencias estructurales y dinámicas de la interacción entre
dos o más ejes de subordinación. Trata específicamente la forma en la que el racismo, el patriarcado,
laopresióndeclaseyotrossistemasdiscriminatorioscreandesigualdadesbásicas que estructuran
las posiciones relativas de mujeres, razas, etnias, clases y otras. Además, la interseccionalidad
evidencia la forma en la que acciones y políticas específicas generan opresiones que fluyen
alrededor de aquellos ejes, constituyendo aspectos dinámicos o activos deldes-empoderamiento.
En ese sentido, pensar en las relaciones interseccionales, permite identificar las relaciones
de dominación que estructuran el contexto socio-histórico, además del análisis descriptivo de
similitudes y diferencias entre esos sistemas de opresión, se busca, evidenciar formas en las que
se relacionan (HILL COLLINS, 2000). En ese sentido, se investiga la “matriz de dominación”, pues
permite entender, además de la coexistencia de una pluralidad de opresiones, la forma en que se
organizan y reaparecen en los dominios del poder bajo diferentes formas (idem,p.18).
La noción de intersecciones refleja la acumulación, en una persona, de varias marcas
de subordinación, que descalifica su posición social. Pensemos aquí en el caso de las mujeres
afrodescendientes, su inserción social pasa por dos condicionantes que subordinan su posición en
el espectro social: ser mujer y ser afrodescendiente. En este artículo, se muestran las intersecciones
como referencias constantes sobre las cuestiones de raza y de género, así como la producción de
desigualdades en los contextos brasileños y peruanos.
Para ejemplificar estas intersecciones como marcadores sociales en la vida de las mujeres
afrodescendientes, citamos a Sueli Carneiro (2003) quien afirma que:

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Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção
paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estão falando? Nós, mulheres
negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que
nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como
frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos
como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas...
Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres
deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com
identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho
tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas
tipo exportação. (CARNEIRO, 2003, p. 49)

Las producciones de exclusión y opresión interseccionadas a la raza-género- clase


remontan a las dinámicas y procesos de interacción entre los ejes de subordinación. Esto también
significa que las situaciones se experimentan de forma diferenciada al considerarse mujeres
afrodescendientes y mujeres blancas, o hombres afrodescendientes y blancos. Se diferencia aún
más si se agregan al análisis las categorías generacionales, de región u orientación sexual, por
ejemplo.
De acuerdo con Hill Collins (2007, p. 29), es importante reconocer que en el ámbito privado
se mantienen prácticas de dominación y de explotación de las mujeres, pues “la familia opera
como herramienta ideológica que construye y enmascara las relaciones de poder”. En el espacio
doméstico, se destaca la desigualdad intra-género, principalmente, entre las relaciones de las
mujeres blancas y sus empleadas domésticas afrodescendientes, afirma la autora. Así también,
se acepta la violación del cuerpo femenino afrodescendiente, pues las llamadas mulatas, son
tomadas por naturaleza como disponibles sexualmente en sus diferentes interacciones sociales,
especialmente con respecto al ámbito afectivo, por ello merecen ser violentadas (PEREIRA,2013).
En lo correspondiente a las discriminaciones raciales, se destaca un estudio realizado por
el Centro de Desarrollo de la Mujer Negra Peruana CEDEMUNEP (2011) indicando que de 709
mujeres afroperuanas participantes de la investigación, el 98% confirman la existencia del racismo
en el Perú, 81,6% apuntaron que la población afrodescendiente experimenta en mayor intensidad el
racismo. El racismo se torna un problema para la población afroperuana, pues se siente y manifiesta
desde que es parte de la sociedad e interactúa en los espacios sociales, escuelas, trabajo, etc. La
naturalización de la desigualdad racial dificulta la identificación de actitudes racistas cotidianas
entre las relaciones sociales peruanas.
La intolerancia racial, manifestada en acciones de desprecio, burla, prohibición y exclusión
en la escuela, trabajo, espacios públicos o medios de transporte no solo dificulta el acceso a niveles
de vida humanizados, sino también alimenta la situación de pobreza. Ambos países no consiguen
superar muchas de las brechas sociales que impiden, sobre todo a las mujeres, mejorar su calidad
de vida, actualmente en el Perú como en Brasil, ser mujer, afrodescendiente y pobre es encontrarse
en el último nivel de valorizaciónsocial.
En Brasil, Lilia Schwarcz (2001) enfatiza las críticas de la construcción del mito de la
democracia racial presente en el país. En su investigación sobre la percepción que los/las
brasileños/ñas se concluye que “parece que todo brasileño se siente en una “isla de democracia

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

racial”, cercado de racistas por todos los lados” (Schwarcz, 2001, p. 76). Conforme la autora,
en Brasil se tiene un racismo particular, “un racismo sin cara, que se esconde detrás de una
supuesta garantía de universalidad de las leyes y que lanza al terreno de lo privado el juego dela
discriminación” (SCHWARCZ, 2001, p.78).
Para una mayor visibilidad de los asuntos levantados, describiremos algunas estadísticas
que evidencian de forma operativa e interseccional las desigualdades sobre las mujeres
afrodescendientes en la actualidad.

Impacto de la invisibilidad en la situación de la mujer afrodescendiente en Perú y Brasil

É verdade que esse ideal de democracia impede manifestações demasiado brutais, disfarça
a raça sob a classe e limita os perigos de um conflito aberto. (BASTIDE, 1955/2008, p.155)

Para los desdoblamientos del “mito de la democracia racial” las mujeres afrodescendientes
no existen desde el punto de vista político, histórico y social. Las mujeres afrodescendientes son
el resultado de articulacionesheterogéneas, múltiples y diversas – mujeres afrodescendientes
urbanas, rurales, quilombolas, trabajadoras, feministas, lesbianas, jóvenes, religiosas, transexuales,
entre otras identidades – que muestran una multiplicidad de pertenencias en contextos y tiempos
históricos diversos, así como de experiencias compartidas. En ese sentido los procesos socio-
históricos racistas, sexistas y clasistas, evidencian en las estadísticas, las carentes situaciones de
las mujeres afrodescendientes en los ámbitos de salud, trabajo, educación, vivienda entre otros,
ejemplificando justamente la interseccionalidad de las cuestiones raciales y de género en la que
se colocan a estasmujeres.
En Brasil, según datos de la campaña “SUS sem racismo” del Ministério da Saúde e
Secretaria de Direitos Humanos, usualmente se le brinda menor tiempo de atención médica a las
mujeres afrodescendientes en comparación con la mujer blanca; en la misma medida los relatos
comprueban que las mujeres afrobrasileñas no son debidamente anestesiadas en el momento
del parto, así como que son estas mujeres quienes esperan demasiado tiempo en las filas,
independiente del orden de llegada. En estos testimonios, existen una presencia constante de
afirmaciones
racistas, asociadas y fortaleciendo el estereotipo de que las mujeres afrodescendientes son
más resistentes al dolor que las mujeres blancas. Las mujeres afrobrasileñas comprenden
el 60% de las víctimas de mortalidad materna en Brasil. Además, en la investigación
solo el 27% de las mujeres afrobrasileñas tuvieron acompañamiento durante el parto,
al contrario del 46,2% de las mujeres blancas; por otro lado, el 62,5% de las mujeres
afrobrasileñasrecibieron orientaciones sobre la importancia del amamantamiento materno,
a diferencia del 77% de las mujeresblancas.
En la realidad peruana, Guevara (2008) afirma que la población afroperuana
desarrolla la medicina tradicional manteniendo su propia cosmovisión. El autor citado resalta

Página 212
que la visión afroperuana tradicional sobre la salud y la enfermedad, la cual es transmitida
inter-generacionalmente, se asocia a lo mágico-religioso, entendiendo la curación como
una práctica que conduce al bien, “entendido como conducta correcta y como resultado
de haber actuado sobre el mal (enfermedad)” (Guevara, 2008, p. 40). En este sentido, la
medicina tradicional tendría la función de llenar el vacío que deja la calidad insuficiente de
los servicios de salud pública, cuya ineficacia tiene que ver también con la brecha cultural
que existe entre quienes atienden en los establecimientos y la poblaciónafroperuana.
Así mismo, el rol de la partera en el nacimiento de las y los niños afroperuanos se ha
visto con anterioridad en algunos estudios, como el de Benavides et al. (2013), en donde
se observó que, en Yapatera (comunidad afroperuana al norte del país), alrededor del 90%
de las mujeres eran asistidas por una partera. Estas prácticas muestran la carencia del
Estado peruano en las comunidades afroperuanas, así como la resiliencia de las mujeres
y hombres afrodescendientes por buscar opciones alternativas y de fácil alcance para
socorrer sus necesidades médicas.
La violación de los cuerpos de las mujeres afrodescendientes hipersexualizados,
animalizados y cosificados bajo la óptica del racismo y sexismo, también aparecen en los
porcentajes del Mapa de Violencia del 2015 realizado en Brasil, en el que apunta que el número
de feminicidios de mujeres afrobrasileñas aumentó en 54% en diez años, pasando de 1.864, en
el 2003, a 2.875, en el 2013. A diferencia de la tasa de feminicidios de mujeres blancas que cayó
un 9,8%, pasando de 1.747 para 1.576 en el mismo periodo. Según los datos de la Secretaría de
Políticas para las Mujeres de la Presidencia de la República (SPM-PR),a partir del balance de los
relatos recibidos por el Ligue 180, casi la mitad (31.432 o 49,82%) corresponden a denuncias de
violencia física y 58,55% fueron relatos de violencia contra mujeres afrobrasileñas.
En el Perú los datos reafirman la violencia hacia la mujer afroperuana (SENAJU, 2015), al
hablar sobre las agresiones por la raza, se manifiesta que en el caso de los hombres se resaltan las
agresiones físicas y amenazas de muerte, sin embargo, en el caso de las mujeres se resalta mucho
más la violencia sexual, el 92,1% de las y los participantes de la muestra manifestaron ese tipo de
violencia con mayor incidencia en las mujeres. Al igual que en Brasil, se relaciona esa realidad con
la persistente hiper-sexualización, cosificación y animalización del cuerpo de la mujer afroperuana,
la carga racista y sexista que reciben las mujeres afroperuanas durante su vida se encuentra
enfatizada en los estereotipos sexuales, los que interfieren profundamente en la negación de la
identidad de las mujeres en determinados espacios sociales, laborales y políticos, espacios en los
cuales son aceptadas por sus atributos físicos y/o funciones estereotipadas y no por su desarrollo
en otros conocimientos y/ofortalezas.
Para Muñoz (apud LUNDU, 2010, p. 20) esa violencia dirigida a las mujeres afroperuanas
siempre se encuentra asociada a dos elementos: su cuerpo y su color de piel. “Una de las
participantes de la investigación menciona que cuando miran a una mujer afroperuana
inmediatamente se piensa que está predispuesta al aspecto sexual – es evidentemente sobre-
dimensionada a su sexualidad - además de mencionar que en lugares públicos las personas hacen

Página 213
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

bromas peyorativas por su color de piel y rasgos físicos”.


En el aspecto educativo se destacan los datos sobre analfabetismo del año 2009, apuntando
que mientras el 6,42% de las mujeres blancas de 15 años o más no saben leer ni escribir, ese
porcentaje llega a 13,97% para las mujeres afrobrasileñas (HERINGER Y SILVA, 2011,p.273).
En el caso peruano, según el Estudio Especializado para la Población Afroperuana (2015),
se pudo observar que el porcentaje de jefas de hogar mujeres que logran culminar la educación
superior es de 10.8%, en contraste con el porcentaje de hombres en 13.8%. Así mismo si se
observan las características de las y los jóvenes que no se encuentran estudiando ni trabajando, se
nota que se concentran en los grupos más jóvenes y que son en su mayoría mujeres. Frente a esta
realidad es necesario explorar desde una perspectiva interseccional y de género, qué es lo que
estaría generando que las mujeres jóvenes afroperuanas no estudien ni trabajen; y su impacto en
las posibilidades de desarrollo (EEPA, 2015).
Las mujeres que comienzan a ascender a ocupaciones de nivel superior son
predominantemente blancas, manteniéndose aún una fuerte concentración de mujeres
afrodescendientes en el servicio doméstico. Las mujeres de clases más pobres (mayoritariamente
afrodescendientes) se dirigen a empleos domésticos, de prestación de servicios y también a los
referentes a la producción industrial; mientras las mujeres de clase media, a consecuencia de
tener mayores oportunidades educacionales, se dirigen a la prestación de servicios, en las áreas
administrativas, de educación o salud (BRUSCHINI Y LOMBARDI, 2000, p.85).

Conclusiones
Debido al proceso histórico de marginalización social, de desvalorización de su ancestralidad,
identidad, cultura y negación de derechos (AQUINO, 2011), las mujeres afrodescendientes
presentan mayores tasas de mortalidad materna, de inadecuada asistencia en los servicios de
salud, menor acceso a la educación, mayor probabilidad de sufrir violencia sexual, como también
menor índice de búsqueda de servicios de atención debido a la dificultad de acceso a ellos
(RUFINO, 2004; SILVA 2008; MOTA; BANDEIRA,2010).
El impacto de las intersecciones de racismo, sexismo y clasismo en el desarrollo integral de
la mujer afrodescendiente de Brasil y Perú es un punto fundamental y relevante para su situación
de vulnerabilidad e invisibilidad. Se evidenció el limitado acceso a los servicios básicos de salud en
ambos países, así como la poca importancia que brinda cada uno de los estados correspondientes
por contrarrestar las brechas y con ello proporcionar una mejor proyección de vida para las mujeres.
Es importante, que en cada uno de los países se desarrollen mayores investigaciones
cualitativas que busquen explicar las percepciones de las mujeres afrodescendientes sobre su
situación real y con ello evidenciar el importante impacto de los datos estadísticos en la identidad
y desarrollo cultural de esta población.

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ccsnobrega@hotmail.com

Resumo

Esse tema entende a Educação Física escolar como espaço de desenvolvimento e responsabilidade
social para a valorização, reconhecimento, resistência e apropriação das identidades plurais em práticas
socioculturais e políticas. O objetivo desse estudo foi verificar como a Educação Física, pode (por meio,
da cultura corporal) promover o ensino das relações étnico-raciais e de gênero, igualmente, contribui e
mobiliza o processo de legitimidade da Lei 10.639/2003 no âmbito escolar. Desse modo, a estratégia
de ensino foi delineada pelo mapeamento inicial, o Planejamento e a escolha dos educandos na
inserção do assunto Super – Herói, assim, contraria -se a concepção norte - americana nos desenhos
animados, favorecendo a criatividade dos educandos no contexto multicultural e percebendo o corpo
como texto nas diversas formas de expressão e comunicação entre as diferentes culturas na produção
do conhecimento. A metodologia utilizada foi de natureza qualitativa, com base na pesquisa-ação e
envolveu a participação de crianças do Ensino Fundamental I do ciclo de alfabetização (1º, 2º e 3º anos),
de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) localizada na cidade de São Paulo. Assim, essa
proposta foi efetivada conforme o Projeto Político Pedagógico da instituição, com base na Avaliação
Diagnóstica e concretizada no Projeto “Brincado de Super – Herói”, a partir do qual foram organizados
os conteúdos para a aprendizagem na perspectiva da Educação para as Relações Étnicas – Raciais e
de gênero num plano de ação interdisciplinar. Os resultados foram essenciais para compartilhar saberes
e vivências, aproximando meninos e meninas através da aprendizagem cooperativa na compreensão
da diversidade e no respeito às diferenças como sinônimo de igualdade. Portanto, desnaturalizando,
desconstruindo a imagem negativa ocidental a respeito da cultura negra e da representação social da
mulher.

Palavras-chave: Educação Física. gênero. identidades plurais. relações étnico - raciais.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O presente tema entende a Educação Física escolar como espaço de desenvolvimento


e responsabilidade social para a valorização, reconhecimento, resistência e apropriação das
identidades plurais em práticas socioculturais e políticas. Essa perspectiva visualiza a cultura
numa prática emancipatória do indivíduo, por meio, da criação de novas possibilidades inseridas
no contexto da linguagem corporal. Então, a interpretação da cultura na prática emancipatória
perpassa pela análise histórica da área, enaltecendo a necessidade de abordar e apropriar
os saberes inclusivos para considerar a leitura de mundo, pois, compete a mesma propostas
pedagógicas inovadoras diante do desafio da diversidade de culturas.
É importante compreender que a educação física passa por um processo de transformação
que apresenta ambivalência, isto é, o esgotamento do discurso legítimo do exercício físico como
um fim em si mesmo e o desafio de construir e realizar de um novo modo o processo de legitimação
no âmbito escolar. Sendo assim, a presença legítima do exercício físico como um fim em si mesmo
expõe a função da educação física na educação corporal dos séculos XVIII e XIX. Visto que as
concepções pedagógicas atenderam a instituição médica e militar.
O papel da corporeidade foi subestimado e negligenciado. O corpo sofreu intervenções para
atender as exigências das formas sociais orgânicas, por exemplo, as necessidades: produtivas,
sanitárias, morais e de controle social. Por esse motivo, o corpo precisa ser entendido na educação,
pois, a educação corporal, não é corporal, é humana, assim, “educar o comportamento corporal
é educar o comportamento humano” (BRACHT, p. 71, 1999). Do mesmo modo, é necessária a
persistência de evidenciar o corpo no processo de aprendizagem.
A construção histórica da educação física deixou marcas culturais no modo de viver a
corporeidade numa trajetória que coloca a disciplina na condição de atividade complementar,
isolada nos currículos escolares com objetivos externos da escola. Dessa forma, reafirma o caráter
utilitário no treinamento pré – militar, na eugenia, no nacionalismo e na preparação de atletas
(BETTI e ZULANI, 2002).
Atualmente, a educação física carece de ações incorporadas num projeto educacional
pautado pelo conceito leitura de mundo. Por essa razão, esse estudo contribui com as práticas
culturais emancipatórias no contexto da cultura corporal de movimento, evidenciando a ação
dos autores e seus discursos sociais no ponto de vista da interação, igualmente, inseridos num
processo de resistência e questionamentos, desse modo, compreendem-se as identidades plurais
no âmbito escolar.
A não implementação da Lei 10.639/2003, confirma a necessidade da contribuição das
práticas culturais emancipatórias exigindo a perspectiva crítica para debater e combater o racismo
no processo de ensino - aprendizagem. Por isso, a prática docente da educação física precisa
produzir e comunicar os seguintes aspectos: a construção de uma imagem positiva da população
negra; a inserção da história e da memória negra nas aulas e no currículo tradicional; a oposição ao
modelo eurocêntrico (BERNARDO e MACIEL, 2015).

Página 218
Sendo assim, o Ciclo de Alfabetização; os Desenhos animados e as Relações étnico -
raciais e de gênero são as categorias de abordagem construídas na produção e comunicação
desse relato de experiência. Assim, as categorias de abordagem dialogam com a problematização
referente ao tema na seguinte questão: de que maneira a Educação Física escolar pode contribuir
para legitimar a Educação antirracista, bem como, atender a Política de equidade de gênero nas
aulas?
Portanto, o objetivo desse estudo foi verificar como a Educação Física, pode (por meio, da
cultura corporal) promover o ensino das relações étnico-raciais e de gênero, assim, contribui e
mobiliza o processo de legitimidade da Lei 10.639/2003 no âmbito escolar.
A metodologia utilizada foi de natureza qualitativa, com base na pesquisa-ação e envolveu
a participação de crianças do Ensino Fundamental I do ciclo de alfabetização (1º, 2º e 3º anos), de
uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) localizada na cidade de São Paulo.
Para a realização da pesquisa foi elaborado um Projeto nas aulas de educação física com
a duração de oito meses, sendo assim, dois encontros semanais com as respectivas turmas: 1ºA;
1º B, 1ºC, 2ºA, 2ºB e 3º A. Conforme, o Projeto Politico Pedagógico da instituição e a Proposta
Pedagógica dos professores regentes que teve como tema central as “Brincadeiras” para o
processo de mobilização das práticas culturais emancipatórias.
O primeiro passo foi identificar as representações socioculturais das crianças através
do mapeamento inicial que reconhece o repertório e a bagagem cultural dos educandos e
posteriormente apresentar as possibilidades de intervenção, em concordância com o conceito
leitura de mundo.
De acordo com a perspectiva da educação antirracista, bem como, a política de equidade
de gênero, os conteúdos propostos foram: os jogos, brinquedos, brincadeiras e a dança, em
diferentes fases (apresentação, desenvolvimento e aprofundamento). As estratégias usadas
para dialogar com os conteúdos são: as aulas com música, historiadas e as rodas de conversa.
Os princípios metodológicos que dialogam com os conteúdos e as estratégias são: inclusão,
diversidade, complexidade, adequação do educando (BETTI e ZULANI, 2002).
É importante ressaltar que os Estudos Culturais colaboram para esta perspectiva ampliada
de cultura na educação física, pois, se direcionam para diversas práticas culturais que produzem
ideias, representações e identidades culturais constituindo, assim, os sujeitos históricos. (Kindel,
2003). Dessa maneira, o objetivo, os conteúdos, as estratégias, a metodologia dialogam com os
Estudos Culturais no contexto da educação física, assim como, a avaliação que orientou o processo
de ensino – aprendizagem, o Planejamento, o replanejamento para responder as necessidades e
os domínios cognitivo, afetivo, social e motor dos educandos (BETTI e ZULANI, 2002).
É necessário destacar que a Avaliação diagnóstica no ciclo de alfabetização interpretou
os avanços e as dificuldades apresentadas pelos educandos, de acordo com as intervenções
pedagógicas. Sendo assim, autoavaliação (discente e docente) e os instrumentos de avaliação
direcionaram as práticas corporais e discursivas (gêneros textuais, orais e escritos) nas diferentes
experiências de apreciação, execução, criação e reflexão a respeito das relações étnico-raciais e

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de gênero.

1 Ciclo de alfabetização
Para apresentar essa categoria é necessário informar que estudo foi auxiliado pelos Direitos,
Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento para o Ciclo de Alfabetização (1º, 2º e 3º anos)
na área de Linguagem1. Dessa maneira, um dos grandes objetivos da área de linguagem (Arte e
Educação Física) é a Educação estética através dos conhecimentos e da realização de diversas
atividades com foco na inclusão e formação integral da criança.
As vivências anteriores dos educandos (descritas no mapeamento inicial) são o ponto de
partida do processo de ensino – aprendizagem. Diante disso, é necessário lembrar que para os
educandos do 1ºano a educação física é um universo novo, assim, integrado com a Educação
Infantil. Por isso, esse estudo engloba as contribuições do Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil (RCN – EI) (BRASIL, 1998), considerando a inter – relação entre as modalidades
de ensino.
O conhecimento da educação física se concretiza na experiência, desse modo, as diversas
atividades realizadas são oportunidades de movimento, de interação, de referências a respeito do
corpo na construção das identidades plurais. Igualmente, a ação de se movimentar de maneira
cooperativa reconhece na experiência do próprio movimento o lugar de pertencimento dos grupos
étnicos, valorizando a convivência social inclusiva nas três dimensões: “às possibilidades do
se movimentar dos seres humanos; às práticas corporais sistematizadas vinculadas ao campo
do lazer e à promoção da saúde; às estruturas e representações sociais que atravessam esse
universo” (GONZÁLEZ, FENSTERSEIFER, p. 13, 2010).
As dimensões mencionadas são conhecimentos que foram integrados com a história do
corpo na construção da identidade negra, por exemplo, “a partir do século XVI, o cabelo carapinha,
o nariz achatado, a boca grande e carnuda, a pele negra, foram características biológicas
associadas a seres primitivos e monstruosos” (RODRIGUES, p.61, 2012). Assim, com enfoque na
Educação estética valorizamos a cultura negra para a construção da identidade étnico – racial, a
partir do tema “Super – Heróis” que foi escolhido pelos educandos e educandas, evidenciando as
dinâmicas do movimento e as desigualdades sociais na narrativa dos personagens.

2 Desenho animado e o gênero


O desenho animado está presente na realidade vivida de meninos e meninas, aproximando
os mesmos e proporcionando o protagonismo no processo de problematização, assim sendo,
entende-se que “ser super - herói é ser atuante no meio em que vive”. Desse modo, o desenho

1 Direitos, Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento para o Ciclo de Alfabetização (1º, 2º e 3º anos)


encontra –se em: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Elementos Conceituais e
Metodológicos para definição dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimentos do Ciclo de Alfabetização (1º, 2º
e 3º anos) do Ensino Fundamental. Brasília/DF:MEC/ SEB, 2012.

Página 220
animado selecionado pelos educandos e educandas foi a “Liga da Justiça”, por meio, das
histórias em quadrinho e da televisão (com narrativas parecidas e personagens permanentes), é
considerada uma fonte importantíssima para a formação cultural.
De acordo, com Kellner (1995), afirma que é necessário desenvolver o alfabetismo crítico
em relação à mídia. Por isso, a educação torna-se um espaço importante para a leitura das imagens,
pois, são formas culturais encantadoras que tem um impacto significativo nas nossas vidas. Assim,
precisamos aprender a interpretar, decifrar e apreciar as imagens, analisando, tanto o modo de
construção e a repercussão nas nossas vidas, quanto o conteúdo que comunica.
Para desenvolver o alfabetismo crítico em relação à mídia foi necessário identificar as
representações construídas sobre os super – heróis e o potencial dos mesmos na formação da
opinião (linguagem verbal). Por exemplo, para a maioria dos meninos o desenho super – herói
é “coisa de menino”, no entanto, as meninas também escolheram o tema e discordaram dos
meninos, justificando na presença da personagem “Mulher Maravilha” que o desenho super –
herói é “coisa de menina”. “A ausência de mulheres na parte de pré-produção desta animação é
algo que nos leva a ver o pequeno número de super-heroínas (Mulher Maravilha e Mulher Gavião)
e em muitos episódios elas nem aparecem” (NETO, p. 29, 2013).
Nas primeiras práticas corporais, os educandos e educandas sentavam separados (mais
evidente nos 1º anos), então, para aproximar meninos e meninas às atividades eram realizadas por
equipes mistas (nos 2º, 3º anos também).
A Liga da Justiça começa a ser produzida e anunciada em 2001, aliás, com os super -
heróis (personagens) ressaltados pelos educandos (as): “Batman, Mulher Maravilha, Flash, Super-
Homem, Mulher Gavião, Lanterna Verde”. “Todos responsáveis por assegurar a paz e estabelecer
a ordem ao planeta Terra [...]. O cuidado que os produtores tiveram para incluir a diversidade étnica
na narrativa animada, incluindo figurantes de diversas etnias e gêneros” (NETOa, p. 25, 2013).
A relação entre os desenhos animados e os conteúdos resultou em atividades cooperativas,
por exemplo: Centopeia, Pega- pega do gato, rato e a xícara; Pique – Bandeira, Circuitos, Queimada
e suas variações (jogos e brincadeiras). Igualmente, da construção individual para o uso coletivo
do Brinquedo, por exemplo: Paraquedas; Super – herói e Super – heroína de massinha, Raquete
de bexiga e o Painel - Arremesso. Desse modo, desnaturaliza a ideia coisa de menino e coisa de
menina, tal como, cor de menino e cor de menina.
3 Desenho animado e as relações étni

co - raciais
Segundo Silva (2000), o outro é outro gênero, outra cor, outra sexualidade, outra
nacionalidade, o outro são eles não nós, logo, o outro é o diferente. Dessa forma, na concepção do
desenho animado Liga da Justiça, o (a) negro (a) é o diferente e o homem branco é o padrão, de
acordo com o modelo norte – americano e eurocêntrico. Do mesmo modo, a diversidade pauta-se
na tolerância distante da aceitação, isto é, o outro é o diverso.
A presença da diversidade no currículo da Educação Física evidencia a seguinte questão:

Página 221
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

como são tratadas as relações étnico- raciais e de gênero nos desenhos animados e na escola?
Nesse estudo, o conhecimento e a realização das atividades tiveram como foco a construção
da imagem positiva da população negra; a inserção da história e da memória negra nas aulas,
no currículo tradicional e a oposição ao modelo eurocêntrico, por meio, da leitura das práticas
corporais e discursivas dos personagens negros e negras.
Assim, nós estudamos os (as) personagens negros (as), por exemplo, “John é um
personagem negro, [...] que na animação perdeu seu cabelo de estilo Black Power passando para
um corte militar. É importante destacar [...], pois, pela primeira vez um super-herói negro atingiu
sucesso mundial”. (NETOb, p.28, 2013). A discussão a respeito do cabelo foi realizada na História
da África, assim, apresentada na perspectiva da educação estética, estudada na prática corporal
das aulas historiadas, na vivência da dança – afro e no conhecimento dos orixás, na qualidade, de
super- heróis.
As crianças realizaram uma pesquisa para encontrar super – heroínas negras na televisão
e o único resultado apresentado por elas foi a “Tempestade” (X-men). A partir disso, nós criamos
outras personagens negras (afro – brasileiras) e analisamos as diferenças socioculturais das
personagens criadas por nós e a personagem citada (Tempestade).
No processo de criação das personagens negras, nós anunciamos os aspectos positivos na
história das personagens, isto é, a ausência do sinônimo negro (a) e escravo (a), a estética (cabelo,
vestimenta, brincos, turbantes) e as formas de luta (por exemplo, o Movimento Negro), pois, os
familiares negros e negras dos educandos foram identificados como super –heróis no combate
ao racismo, valorizando a trajetória desses personagens da vida real na luta por reconhecimento
e melhores condições de vida.

Conclusão
Esse estudo contribuiu com a promoção do ensino das relações étnico – raciais e de gênero,
utilizando como estratégia para aproximação e apropriação (dos educandos), o mapeamento
inicial, o Planejamento e o assunto super – herói.
No Brasil, poucas pesquisas enfocam os desenhos animados, assim como, a representação
cultural dos mesmos. Em vista disso, que devemos considerar a eficácia na instituição dos
significados, ou seja, o que é ser homem, mulher, bonito, bonita, vencedor, vencedora, herói e
heroína (KINDEL, 2003). Essa representação cultural atua no comportamento e na compreensão
de mundo para as crianças.
O projeto educacional na educação física para as relações étnico – raciais e de gênero,
foi realizado no plano de ação interdisciplinar, uma vez que dialoga com as diferentes áreas:
Arte, História e Comunicação para a educação estética no ciclo de alfabetização, respeitando os
diferentes níveis de ensino (1º, 2º e 3º anos), delineado pelo processo histórico de afirmação da
cultura e da identidade.
O resultado evidenciou que o tema super – herói permitiu na leitura da sua ludicidade
descontruir a imagem negativa ocidental a respeito da cultura negra e da representação social

Página 222
da mulher, também demonstrou a contribuição no processo de alfabetização crítica em relação à
mídia, aproximando meninos e meninas, por meio, da aprendizagem cooperativa na compreensão
da diversidade e no respeito às diferenças como sinônimo de igualdade.
Algumas pesquisas da área demonstram nos seus estudos o processo de mobilização
no contexto da educação física escolar para legitimar as relações raciais e de gênero. Assim, é
importante destacar as contribuições de: Corsino (2015); Gonçalves (1991); Silva e Filho, (2013);
Rangel (2006), reafirmando a importância e a necessidade de inclusão e diálogo desse tema nas
escolas.

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Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O ENSINO DA HISTORIA DA LUTA DAS MULHERES NA EDUCAÇÃO


INFANTIL: ABORDAGENS POSSÍVEIS

BARBOSA, Raquel
(Prefeitura Municipal de Florianópolis)
Resumo

O presente pôster tem como objetivo relatar uma experiência pedagógica desenvolvida em um Núcleo
de Educação Infantil na cidade de Florianópolis em março de 2017 referente ao Dia Internacional Da
mulher. As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (2010) indicam que as propostas
pedagógicas desenvolvidas nesta primeira etapa da educação básica devem estar comprometidas
com a garantia plena da sua função sociopolítica. Logo, o documento citado define que as propostas
educativas construam sociabilidades diversas daquelas que se pautam em relações de dominação
econômica, racial, etária, de gênero e religiosa. Estes apontamentos das Diretrizes Nacionais produziram
inquietações no nosso “fazer cotidiano em sala”: Como trabalhar junto com as crianças pequenas de
modo comprometido com o rompimento das relações de dominação? Como trabalhar com os temas
que constituem as relações de dominação sem sermos excessivamente lúdico ou excessivamente
“militante”? Somado a tantas perguntas, tivemos a necessidade de reafirmarmos que não consideramos
as crianças pequenas incapazes de compreender as relações sociais, ou seja, apenas como um “mímico”
que imita o que vê, e um “papagaio” que só repete o que escuta. Posicionamento ainda necessário, pois
este “olhar” ainda permeia muitos discursos dos/das profissionais que atuam com crianças quando
estão diante de assuntos como racismo, preconceito de classe, ou de gênero. Imersas nesse contexto,
amparadas legalmente pelas Diretrizes, e ao mesmo tempo inquietadas por essas indagações, com
mais incertezas do que certezas, construímos uma intervenção Pedagógica com as crianças entre 3
e 5 anos. Apresentamos aspectos da história que culminaram na construção do “Dia Internacional da
Mulher” utilizando como recursos didáticos imagens reais da história, envolvendo a presença da criança
pequena nas fábricas, bem como as precariedades das condições de trabalho da mulher. Alcançamos
o objetivo de promover uma educação infantil que oferta o contato das crianças pequenas com temas
da história mundial das mulheres trabalhadoras de sua luta pelos seus direitos e também pelos direitos
das crianças.

Palavras-chave: Infância. Currículo na educação Infantil. Sociedade.

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O Projeto Politico Pedagógico da escola:

horizonte para a nossa experiência educativa

A experiência relatada aqui aconteceu na Rede Municipal de Florianópolis, em um Núcleo


de Educação Infantil situado no norte da ilha de Santa Catarina. Até o ano de 2015 a estrutura em
que funciona o Núcleo era um anexo de uma Creche. A partir de 2016 se tornou uma instituição
independente, logo estamos em funcionamento há apenas um ano. Esse contexto de recente
fundação, ainda que perpassado por desafios, também é espaço de possibilidade pedagógica
ímpar, uma vez que enunciamos coletivamente as primeiras palavras pedagógicas inscritas no
primeiro Projeto Politico Pedagógico (P.P.P.) da instituição. Lá está dito que o
O P.P.P. (...) traz novas reflexões que visam questionar profundamente o trabalho
pedagógico, mostrar as necessidades, movimento de grupos o amadurecimento
de novas ideias, e a apropriação das concepções de educação da rede municipal de
Florianópolis. (2016, p.1)

Nesse sentido, instigadas, pelo principal documento norteador do cotidiano pedagógico,


a indagar nosso trabalho junto às crianças e o desenvolvimento de intervenções inovadoras,
nos sentimos amparadas para tratar com conteúdos e conhecimentos pouco desenvolvidos na
educação infantil, ainda que os mesmos estejam contemplados nos documentos mandatários
dessa etapa da educação básica.
Já ao tratar das concepções de docência o P.P.P. defini que a
conduta profissional deve preservar o cuidado com a atenção e a escuta da criança, função
primordial do educador, mas ao mesmo tempo, este profissional precisa ser orientado
a ter um olhar que contemple as crianças como sujeitos múltiplo e diverso (...)
é preciso enfrentar o desafio de pensar a creche como instância de formação
cultural, ajudando os sujeitos nele envolvidos, como sujeitos dessa história, como
sujeitos sociais .(...) o professor deve selecionar os suportes que dispõe ás crianças,
sejam esses suportes matérias (como objetos e brinquedos) ou imateriais (historias,
musicas ou filmes). (2016, p. 27)

Ao indicar uma conduta profissional política em relação a luta por tornar a creche uma
instância de formação cultural e considerar as pessoas que a compõe sujeitos sociais e sujeitos da
história, em especial as crianças, o P.P.P. do NEI tem como horizonte a transformação social. No
dizer de Abramowicz,
“a educação de crianças pequenas as coloca no espaço público, que deveria ser um
espaço não fraternal, não doméstico e nem familiar. (...) o espaço público é aquele que
permite múltiplas experimentações. É o espaço por excelência, da criação, em que
exercitam formas diferentes de sociabilidade, subjetividade e ação, o que não é possível
em espaços familiares, que priorizam segurança material e imaterial. O espaço público
expõe e possibilita as crianças outro agenciamento, afetos e amizades.” (2013, p.11)

Portanto, as instituições de educação infantil, espaços públicos de educação, são os lugares


em que as infâncias e as crianças que a constituem tem a oportunidade de ter a experiência com
a vida em sociedade em suas múltiplas facetas e com outras referências de mundo mediadas

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Negras e negros no Sul do Brasil
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pelos conhecimentos produzidos historicamente. No entanto, estes conhecimentos passam por


algumas etapas de seleção a primeira delas é a seleção realizada pelo estado e transmitida pelos
documentos mandatários que orientam a formação dos sistemas educacionais desde sua estrutura
física, profissional até as práticas pedagógicas e os conteúdos, propriamente ditos; e a segunda
seleção ocorre dentro das instituições de ensino, em especial pelo projeto político pedagógico, a
terceira dentro da sala de aula, já nas mãos da professora no seu planejamento e em toda a seleção
que realiza ao efetivá-lo na prática pedagógica.

A Legislação Educacional e o ensino das relações sociais na educação infantil

Em relação aos documentos mandatários é a Lei de Diretrizes Nacionais da educação


de 1996 que inaugura uma nova etapa da educação infantil, ao inscrevê-la como primeira etapa
da educação básica. Inicia-se a partir disso um processo de transição fundamental nas práticas
educacionais da primeira infância brasileira. E ao longo desses últimos 21 anos, diversas políticas
curriculares foram desenvolvidas com a intenção de sedimentar as práticas pedagógicas voltadas
para a formação integral das crianças pequenas. Mesmo que a construção do currículo, como
em qualquer projeto curricular, tenha acontecido em meio a constantes disputas de concepções
político pedagógico, observamos que há uma busca ininterrupta pela elaboração de um currículo
que vise a formação da infância em aspectos que considerem as relações sociais e a sociedade
como tema relevante.
A última documentação produzida, as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2010, indica
os princípios da educação infantil, os quais são: princípios éticos, estéticos e políticos. Destes
vamos destacar os princípios políticos, em que se enuncia como “dos direitos de cidadania, do
exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática”. Ao apresentar estes princípios para
fundamentação da sua ação pedagógica a educação infantil consolida seu compromisso com a
construção de relações socais transformadoras, entendido como um exercício de base política. A
importância disso se justifica, uma vez que a história das práticas educativas destinadas a primeira
infância foi fortemente marcada ora pelo assistencialismo, ora pelo higienismo social, ora pelo
espontaneísmo e naturalismo pedagógico.
Outra aspecto importante que as Diretrizes destacam é em relação às proposições
pedagógicas institucionais:
a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve garantir que elas
cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica (...) Construindo novas
formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a
democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação
etária, socioeconômica, étnicoracial, de gênero, regional, linguística e religiosa. (2010, p.
12)

O dia 8 de março na escola


Este contexto brevemente exposto, sobre as transformações curriculares que pautaram os

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últimos anos na Educação Infantil nos desafiaram a questionar nosso exercício docente, em especial
na seleção dos conhecimentos apresentados para as crianças. Algumas questões como: Qual
sociedade e qual sociabilidade desejamos promover com as crianças? Como queremos que elas
convivam em sociedade? Quais conhecimentos contribuem para esta sociedade e sociabilidade
que desejamos promover na formação humana das crianças? Responder a estas questões não é o
objetivo, mas sim encontrar percursos para trilhar práticas educativas que considerem o horizonte
aberto pela legislação educacional, e
“pensar uma educação com a criança, no espaço público, em que todos possam ser
afetados de maneira que criem novas redes de solidariedade e pensamento.(...) a
educação infantil deveria se constituir com um espaço de diáspora, que não é a pátria
idealizada e homogênea, mas uma inflexão territorial e temporal (em uma concepção de
tempo que junta a historia dos que vieram com aqueles que já estão e com os que virão)
operada pelos coletivos sociais a partir da racialização, do gênero, da sexualidade e da
etnia; pois a cultura tem significado pluralidade mesmo.” (Abramowicz, 2013, p. 12)

Sendo assim, partimos para a construção de um planejamento que considerasse essas


“novas redes de pensamento e solidariedade”. Escolhemos Atuando como docente no Grupo IV,
que se constitui de crianças entre 3 e 4 anos, e tendo como convidados o Grupo V constituído
com crianças com idade entre 4 e 5 anos. Estes dois grupos são formado por meninos e meninas
de diversas regiões do país, com múltiplas composições familiares e origens raciais múltiplas. No
dia 8 de março as crianças chegaram, em sua maioria parabenizando as professoras pelo dia da
mulher: algumas trouxeram flores e a outras até presentes. No espaço externo da escola tínhamos
as televisões anunciando em seus jornais e propagandas, como de costume o “Dia internacional
da Mulher”, e também tínhamos a “convocação” para uma “Marcha Internacional das Mulheres”.
Nesse contexto, recebemos as crianças já mobilizadas para o que havíamos planejado: Contar
para as crianças a historia da luta das mulheres pelo direito a melhores condições de trabalho.
Construímos no nosso grupo uma boneca, com a qual trabalhamos desde o ano passado.
Esta boneca tem uma altura média de uma criança de 4 anos. Foi confeccionada pelas crianças
usando galhos de árvores, representando os ossos, envoltos em tecidos que formaram a sua
estrutura, tendo como enchimento fibras extraídas de bonecos de pelúcia. Este objeto lúdico foi
nomeado de Juliana e acompanha algumas das interações e intervenções pedagógicas realizadas
no ambiente dos grupos. Para a realização da proposta pedagógica sobre o Dia da Mulher utilizamos
a boneca Juliana como uma ferramenta para iniciarmos a nossa roda.
A boneca foi trazida por nossa supervisora, junto com uma mala, acompanhada de uma
fala que indicava que ela estava chegando de uma viagem ao passado. Ao abrimos a mala da
boneca encontramos diversas fotografias impressas em folha A4, coladas em papel cartão lilás,
cor símbolo do Dia Internacional da Mulher. Apresentamos às crianças as imagens e começamos a
conversar sobre cada delas. Imagens que apresentavam mulheres e crianças no inicio do século XX
trabalhando em fábricas, imagens de mulheres em palanques discursando para outras mulheres,
imagens das greves de operárias no inicio do século XX, imagens de mulheres sendo presas por
policiais em meio a manifestações no inicio do século passado. Todas as imagens estavam em

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Negras e negros no Sul do Brasil
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preto e branco.
Explicamos para as crianças os significados de cada uma daquelas imagens, inclusive
destacamos as crianças que trabalhavam e não tinham escola. E que as mulheres resolveram lutar
para que as crianças tivessem escolas e que não precisassem mais trabalhar nas fábricas.
Por fim demos ênfase a imagem da Russia de 1917, nas manifestações em que o clamor
popular das mulheres operarias era por “Pão e Paz”. Então junto com as crianças confeccionamos
pompom lilás e demos uma volta ao redor da escola cantando e acenado com nossos pompons
por “Pão e Paz”. Junto a isso confeccionamos um painel explicativo para as famílias sobre a Marcha
de 1917.
Depois disto disponibilizamos as imagens por alguns dias junto com os livros da escola
para o manuseio das crianças. Assim poderíamos observar as ressonâncias dessa pequena
intervenção a respeito da “mulher que habita o 8 de maio”, a mulher que lutou por seus direitos,
e que nesta luta agregou a luta pelo direito da infância ao longo de toda a historia do século XX.
(Finco, 2015) Além do interesse constante das crianças em manipularem as imagens, contar para
as professoras o que eles significavam, observamos uma ressonância de extrema importância
no contexto da educação infantil: brincadeiras com o tema apresentado. Algumas crianças ao
construírem suas narrativas com as bonecas em sala contavam que as “crianças não tinham pão
para comer”, outras começavam a cantar pela sala usando os pompons o lema “pão e paz”. Nesse
sentido, observamos que subsidiamos as crianças com outros conteúdos para a elaboração de
suas brincadeiras, conteúdos inscritos na pratica social, encharcados de sentidos transformadores.
Entendemos que

“A brincadeira de papéis socais não se desenvolve espontaneamente, ela requer ações


educativas que promovam o surgimento, o desenvolvimento e o direcionamento desses
tipo de atividade. Se a brincadeira de papéis sociais for deixada ao sabor da espontaneidade
infantil, o mais provável será que essa atividade reproduzirá espontaneamente a alienação
própria aos papeis sociais com uma presença mais marcante no cotidiano da sociedade
contemporânea. (...) É preciso romper com tudo isso e assumir uma atitude crítica perante
a alienação dos papeis sociais para que a brincadeira de papéis possa ser conduzida de
maneira a que nessa atividade as crianças comecem a tomar consciência da existência
dos papeis sociais e da alienação que eles podem carregar consigo. É claro que não se
trata de que uma criança de 5 anos de idade adquira uma clara consciência do conceito
de papel social ou que desenvolva uma analise crítica das origens e dos conteúdos dos
papeis sociais alienados. Mas esse processo pode ter início nessa idade e desenvolver-se
da subsequente formação do indivíduo. (Duarte, 2006, p.96)

Para nós, docentes restou a satisfação de percorrer o caminho aberto pela legislação
resultante das lutas sociais pelo direito a educação, a dignidade no trabalho da mulher e o direito
da criança. Muitas questões e lacunas resultaram desta primeira intervenção pedagógica sobre a
historia das mulheres, no entanto prevalece a alegria em poder partilhar e desfrutar com nossas
crianças a memória da mulher que “habita o 8 de março”.

Referências

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ABRAMOWICZ, Anete. & Vandenbroecck M.(orgs), 2013. Educação Infantil e Diferença. Campinas:
Papirus.

BRASIL, MEC, 2010. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil.

DUARTE, Newton, 2006. “Vamos brincar de alienação?” A brincadeira de papéis sociais na


sociedade alienada. In ARCE A. & Duarte N. (orgs)Brincadeiras de papeis sociais na educação
infantil: as contribuições de Vigotski, Leontiev e Elkonin. São Paulo: Xamã.

GOBBI, Maria Aparecida; FARIA, Ana Lúcia G.; Finco Daniela (orgs), 2015. Creche e
Feminismo:desafios atuais para uma educação descolonizadora. Campinas: Leitura Crítica.

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EIXO 6: Feminismos negros

Este Eixo tem como finalidade reunir pesquisadoras para discutir e refletir
sobre as experiências (acadêmicas, literárias, artísticas, ativistas, entre tantas
outras) de mulheres negras na diáspora, em especial no Brasil. Historicamente,
as mulheres negras têm explorado diferentes formas de resistência contra as
estruturas engessadas pelo racismo, sexismo, colonialismo, patriarcado e pela
heteronormatividade, contrariando os poderes até então estabelecidos. Os
espaços sociais ocupados por essas mulheres desde as margens têm sido
ressignificados e transformados em espaços políticos para elaboração de
práticas emancipatórias e em cenários para reflexões teóricas e produção de
conhecimento. Neste sentido, pretendemos compreender as condições que
configuram estes discursos feministas negros, suas pautas e diferentes modos
de resistência, apontando para deslocamentos epistêmicos, na tentativa de
firmar um espaço de interlocução que articule
aspectos interdisciplinares ou multidisciplinares
sobre o legado produzido pelas feministas negras,
dentro e fora dos espaços acadêmicos. Tendo em
vista esse quadro, convidamos as pesquisadoras,
estudantes e ativistas a apresentarem seus
trabalhos nas múltiplas direções abertas pelas
feministas negras em diferentes áreas do
conhecimento, refletindo sobre discursos,
performances, variadas linguagens por meio das
quais mulheres negras vêm afrontando
o mundo que as cercam, em vias
de traduções. Negritar as potências
e desafios das lutas e narrativas de
nossas mulheres é crucial, pois amplia
e fortalece as construções de mulheres
negras como sujeitas da história.
EXPERIÊNCIAS DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO -
1960-2003.

SILVA, Cristiane Mare da (PUC-SP)


cristiane.mare.silva@gmail.com

Resumo

O presente projeto de pesquisa pretende analisar as experiências de mulheres negras no Brasil


contemporâneo, especialmente entre a primeira edição do livro, Quarto de Despejo da escritora
Maria Carolina de Jesus. Nele pretendemos compreender as condições que configuraram discursos
feministas negros, no ponto de encontro entre as lutas antirracistas e de emancipação feminina, suas
pautas e diferentes modos de resistências, que parecem indicar fissuras de um mundo colonial, racista,
sexista e patriarcal. Para tanto, as vozes de escritoras como a Carolina de Jesus, Conceição Evaristo,
Maria Carolina, estarão em cena, no sentido de pontuar o que suas narrativas são capazes de traduzir..
Em quase cinco décadas de ativismo político que se confundem pelas lutas de democratização do
Brasil, gostaríamos de levar em consideração os discursos, às performances, múltiplas linguagens por
meio das quais mulheres contrapondo-se às formas tradicionais de organização de movimentos sociais,
se reinventam, são trabalhadoras, mães, estudantes, faxineiras, entre outras, para afirmar sua presença
e existência. Portanto, se faz necessário, evidenciar e negritar tais contribuições, representar nossas
mulheres, pois na medida que as evidenciamos também nos espaços de produção de conhecimento,
refutamos a memória coletiva do não lugar das mulheres negras, de um imaginário que nos coloca
universalmente dentro do inenarrável. De acordo Conceição Evaristo, “a literatura feita pelas pessoas
do povo, ela rompe com um lugar pré-determinado”, aqui acrescentaríamos as artes feitas por essas
mulheres, pois as mesmas permitem que a reescrita de suas vidas e de sociabilidades se insiram nas
histórias deste país, bem como, nas construções de mulheres negras como sujeitos.

Palavras-chave: Abordagens poéticas; Experiências de Mulheres Negras; Feminismos


Negros

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Negras e negros no Sul do Brasil
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Introdução

Nossa escrevicência não pode ser lida, como historias para ninar
a casa grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.
Conceição Evaristo

A presente pesquisa a ser desenvolvida no programa de História da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo tem por objeto, as experiências de mulheres negras de 1960/2003, datas
que marcam a primeira edição do Quarto de Despejo, de Maria Carolina de Jesus e a publicação
de Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo , segundo o historiador e pesquisador da escritora
Jose Carlos Sebe Bom Meihy, “Mesmo com julgamentos ambíguos, Carolina não deixou de
expressar o que pensava sob o denominador de um tema comum: a pobreza em sua luta diuturna
pela subsistência” (MEIHY, p.528), o autor considerado uma referência aos estudos sobre a obra
de Maria Carolina, faz críticas ao cânone literário e sua dificuldade em lidar com outras vozes,
ao mesmo tempo que aponta “ Seria injusto dizer que nada mudou no agitado movimento de
celebração dos Cem anos da Cinderela Negra. Pelo número de congressos e eventos em torno
do nome de Carolina, diria que o processo de recepção da sua obra já começou. E tomara que
progrida” (MEIHY.2014, p.5)
No conjunto de suas experiências e táticas contra-hegemônicas, a literatura afro-feminina,
a música e as artes plásticas construíram e fortaleceram novos arranjos políticos com potencial
para mudar as nuances e perspectivas do movimento negro, de resistências e principalmente
dos feminismos, nos permitindo apreender dilemas, desafios e filosofias que longe de estarem
desconectadas se socializam através das artes, da tecnologia e de encontros presenciais. Não
será a biologia, tampouco a geografia que dará a norma nas relações apresentadas a partir das
fontes literárias, contudo as relações sociais e a perspectiva histórica, formando descoincidências
culturais.
As mulheres negras, que não se encontraram em narrativas /histórias de mulheres brancas,
puderam perceber-se dentro de experiências, memórias de literaturas que dão corpo, voz às
experiências de si e sua comunidade, Paulina_ uma contadora de histórias e Conceição Evaristo_
a escritora de escrevicências, no centro Maria Carolina de Jesus, uma mulher que afirmava a si
mesmo ao escrever seu diário que seu ofício era ser escritora.
Desse modo, a oralidade e o deslocamento de narrativas são centrais no desenvolvimento
dessas produções literárias. Deslocamentos, pois se a literatura constituiu-se como um espaço
da manutenção da memória dominante, elas rompem com a prerrogativa literatura/identidade
nacional, ao trazer para o espaço da escrita uma ética/estéticas possibilitando novos modos de
interpretação. Portanto, Stuart Hall ao pontuar o local/global, ao mesmo tempo em que evidencia
a importância da estética para populações que não compartilham dos privilégios da hegemonia,
mas que hoje estão na cena cultural, é uma ação presente da qual venho ruminando densamente,
meditar sobre esse lugar da literatura negra, como controle da narrativa para essas populações.
Hall, ao dispor a cultura/estética no centro de seu debate, provoca deslocamentos do lugar

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sagrado da escrita e de categorias universalizantes, essa narrativa pode dar-se em um rap, como
vir em versos dos poemas de Conceição Evaristo, ou em prosa/contação de histórias com Paulina
Chiziane e Maria Carolina.
Neste limiar de exclusões, o corpo das mulheres afros condensa um significado que as
diferenciam/ potencializam, pois vivemos o conflito de uma luta antirracista, sem pretensões
em discutir as questões de gênero e com inúmeros conflitos machistas no interior de nossas
organizações e de um feminismo onde jamais encontramos a história de nossas vidas ou de
nossas grandes mulheres inscritas em sua literatura. No Brasil, figuras como Luiza Mahin, Chica
da Silva, Chiquinha Gonzaga, Antonieta de Barros, Lélia Gonzaléz, Alzira Rufino, Carolina de Jesus,
Irmandade da Boa Morte e tantas outras trajetórias de vida que iluminam o caminho das afro-
brasileiras, não estão entre os clássicos ditos feministas.
Desde Bell Hooks, destacada feminista afro-americana e os ensinamentos que ela nos
deixa sobre os condicionantes que atuam na construção e na opressão das mulheres negras,
poucas foram as mulheres brancas e homens negros que aprenderam sobre o seu significado
e importância. Portanto, é relevante registrarmos e construirmos epistemologias a partir do
conhecimento dessas mulheres, conferindo-lhes visibilidade, reconhecimento e empoderamento.
Segundo a escritora Conceição Evaristo,

A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dançar, ela pode cozinhar, ela pode se prostituir,
mas escrever, não, escrever é uma coisa… é um exercício que a elite julga que só ela tem
esse direito. (…) Então eu gosto de dizer isso: escrever, o exercício da escrita, é um direito
que todo mundo tem. Como o exercício da leitura, como o exercício do prazer, como ter
uma casa, como ter a comida (…). A literatura feita pelas pessoas do povo, ela rompe com
o lugar pré-determinado. (EVARISTO, 2010)

O ato de refletir sobre si e sua comunidade, é também um ato de empoderar-se, e


oportunidade da construção de momentos de insurgências. No poema de Conceição Evaristo,
Vozes Mulheres a voz do eu lírico desenvolverá uma trajetória de vida matrilinear, em que a família
se revela na voz de cada uma de suas ancestrais, o eu lírico constrói laços parentais que inicia com
sua bisavó e termina com a sua filha, a única que recolherá em si a fala e o ato,
A voz de minha bisavó ecoou

criança

nos porões do navio

Ecoou lamentos

de uma infância perdia.

A voz de minha avó ecoou obediência

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aos brancos donos-de-tudo.

A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta

Conceição Evaristo, 2011.

A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes (Conceição Evaristo, 2011). É um ponto
muito importante a se pensar neste poema em contraste com a literatura brasileira, pois quando
há a aparição de personagens femininas negras, elas quase sempre aparecem sozinhas como
se fossem seres solitários no mundo, sem referências familiares, isto também ocorre com muita
frequência na telenovela.
Portanto, embora a família seja um elo tão importante para as mulheres negras por
constituírem-se dentro e pelas famílias um elo de resistência e da própria condição de poder dentro
da realidade doméstica e de terreiros de candomblé, na possibilidade de vivenciar outros modos
de ser e estar no mundo. O tempo cronológico do poema, se dá pela passagem das gerações que
marcam então o ritmo temporal no poema.
Conceição Evaristo, em seus versos igualmente aponta como a família foi um ato não
apenas de resistência, porém o espaço em que a memória e a tradição oral são ressignificadas
por essas populações de origem africana, e nestes espaços que antes se viam como vazios, hoje
sabemos ser preenchido por uma cultura que preserva a memória e corpos que se reinscrevem e
perpetuam-se na ancestralidade.
É necessário refletir sobre a representação destas mulheres em que sua construção
narrativa se dá apartada de núcleos familiares, pois se a personagem da literatura brasileira
contemporânea é branca além de reduzida, a presença negra e mestiça entre as personagens é
menor ainda quando procura-se evidenciar as protagonistas.
Segundo Luiza Bairros em Nossos Feminismos Revisitados (1995), a afro-americana
Patricia Hill Collins desvenda uma longa tradição frente mulheres negras com base no pensamento
daquelas que desafiaram ideias hegemônicas. A principal contribuição de Collins seria a retirada
do feminismo do campo estritamente acadêmico, pensando- sua capacidade de exprimir as
experiências plurais das afrodescendentes, importante enfatizar como essa noção dialoga através
de percepções, do que Stuart Hall aponta, “algo sempre está escapando da hegemonia cultural”,
este algo que ficou durante séculos de fora, e do qual a literatura dessas mulheres parece ter
alcançado_ o controle da narrativa, o que significaram às experiências de mulheres negras em
Moçambique e no Brasil através das escritoras, e como compuseram fissuras á narrativas coloniais.
Sendo assim, aprendemos que ao postularmos a palavra Feminismo, é costumeiro que
está venha em singular como um substantivo que fosse capaz de dar uniformidade a todas as
agendas dos diversos grupos feministas, ou sobre as desigualdades de gênero compartilhado por
mulheres. A palavra que quase sempre nos chega como célula unívoca se mostra multifacetada,
ao colocarmos essas categorias em análise com a nossa sociedade. Pois, ao trabalharmos com

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categorias que buscam em sua essência a construção de uma identidade comum a todas as
mulheres iremos encontrar inúmeras incoerências. Das quais são constantemente questionadas
pelo chamado Feminismos Negros, já que ao dialogar a partir da interseccsionalidade rompe-se
com essa identidade que se quer capaz de representar a todas as mulheres.
Quanto mulheres falamos de lugares raciais, de gênero, classe e orientação sexual
específicos, lembrando que a raça no Ocidente é estruturante para a construção da classe social,
assim como o gênero e de uma representação que nunca nos tocou as mesmas condições das
mulheres brancas, já que a identidade de gênero também é composta de poder e hierarquia.
Logo, são necessárias mudanças nas leituras e ferramentas interpretativas para
compreender as brechas no campo das lutas sociais protagonizadas por elas, como reflexo dessas
abordagens o encontro de mais de 50 mil mulheres na capital do país intitulada: Marcha das
Mulheres Negras 2015, contra o Racismo o Sexismo e pelo Bem Viver, a análise aqui apresentada
tem o interesse de evidenciar, que a Marcha também é fruto do reconhecimento e potencial das
construções, entre estas redes de mulheres negras, em que a estética é um dos fios condutores
de suas experiências e ressignificações, ao mesmo tempo que atuam como uma contra-narrativa
à hegemonia cultural. Hoje, também o femismo decolonial vem apontando críticas a esse sistema
de pensamento, baseado na cultura eurocêntrica. Para Ochy Curiel Pichardo (2014)

Este reconocimiento no puede ser solo un insumo para limpiar culpas epistemológicas,
no se trata de citar feministas negras, indígenas, empobrecidas, para dar el toque crítico
a las investigaciones y a los conocimientos y pensamientos que se construyen. Se
trata de identificar conceptos, categorias, teorias que surgen desde las experiências
subalternizadas, que son generalmente producidas colectivamente, que tienen la
posibilidad de generalizar sin universalizar, de explicar distintas realidades para romper
el imaginário de que estos conocimientos son locales, individuales, sin posibilidad de ser
comunicado (PICHARDO, 2014, p. 57).

Logo, na contramão destas tendências, e em sintonia com os novos ventos trazidos, entre
outros, por feministas negras e pelo pensamento negro, a presente pesquisa, por meio dos fazeres
e experiências poéticas dessas mulheres, pretende esboçar possibilidades sensíveis sobre si,
como bem o disse Miriam Alves, uma reflexão que revele a face de um feminino, diferente do que se
padronizou, humanizando estas mulheres negras, imprimindo rostos, corpos, capazes de traduzir
suas experiências.
Através de diversas abordagens poéticas como o rap, a literatura, a marcha das mulheres
negras, artes plásticas, tecem fios capazes de enfrentar e criar fissuras, ao ideal de uma mulher que
se quer anulada socialmente. Se essa mulher é destinada ao silenciamento, e a ser objeto de fala,
desesquilibra a hegemonia cultural e as heranças coloniais e raciais ao produzir em seu cotidiano,
mas do que respostas a esse mundo, a própria reinvenção de mundos, ao dizer que a poesia ainda
é possível , ao propor novos caminhos para um fazer político que precisa irremediavelmente de
transformações, estas mulheres parecem reinventar as matrizes desse fazer político. Representam
vozes comunitárias e reatualizam as tradições das quais fazem parte.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Os documentos analisados, remetem a uma reescrita das memórias dessa parcela da


população brasileira, assim como à denúncia de suas condições, incorporando um fazer cientifico
e poético para reconduzir essas mulheres como protagonistas de suas vidas. Em 1960 Maria
Carolina de Jesus, moradora da favela de Canindé, zona norte de São Paulo, lançava seu primeiro
e mais conhecido livro, Quarto de Despejo, um diário da vida e cotidiano de uma catadora de papel.
(...) “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças” (DE JESUS, p.26)
Se Carolina de Jesus acreditava que a experiência da pobreza poderia tornar nossos
dirigentes mais sensíveis e organizar pautas que mudem substancialmente aquela realidade,
Luiza Bairros, em artigo Lembrando Lélia Gonzalez 1935-1994, nos aponta uma questão
fundamental para a reflexão da ação do racismo no país, a cultura, Para ela “a chave para entender
a questão racial no Brasil está na compreensão das matrizes da cultura brasileira, onde a vertente
negra exerce influência quase que total” (BAIRROS. p.4)

a entusiástica adesão, em 1976, ao Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba


Quilombo exemplifica sua busca constante para eliminar a equivocada oposição entre
cultura e fazer político que tanto marcou, e ainda marca, as discussões no movimento
negro (BAIRROS.p.5)

Compreender em suas abordagens poéticas o que as culturas e as experimentações destas


mulheres de origem africana nos dizem, e se há nestas poéticas compartilhamento de significados
e sociabilidades.
Essas abordagens poéticas, diferente do que a hegemonia cultural propõe, não estão em
busca de uma identidade fixa, de uma moldura simplista e reducionista sobre o que seja essa
mulher.
Ao longo das últimas décadas as escritoras afro-latinas trazem a estética positiva e a
ressignificação de seu corpo como um dos principais temas de sua literatura, em que o eu lírico
reverbera versos de libertação e de coragem, nos poemas de Shirley Campbell Bar “Me niego
rotundamente a dejar de ser yo” ou nos versos Pixaim elétrico da Cristiane Sobral
“Naquele dia

meu pixaim elétrico gritava alto

provocava sem alisar ninguém

meu cabelo estava cheio de si’’.

Segundo Luiza Bairros em Nossos Feminismos Revisitados (1995), a afro-americana


Patricia Hill Collins desvenda uma longa tradição frente mulheres negras com base no pensamento
daquelas que desafiaram ideias hegemônicas. A principal contribuição de Collins seria a retirarada

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do feminismo do campo estritamente acadêmico, pensando- sua capacidade de exprimir as
experiências plurais das afrodescendentes,
A autora considera como contribuição intelectual ao feminismo não apenas o conhecimento
externado por mulheres reconhecidas no mundo acadêmico, mas principalmente aquele produzido
por mulheres que pensaram suas experiências, como mães professoras lideres comunitárias
escritoras empregadas domésticas, militantes pela abolição da escravidão e pelos direitos civis
cantoras e compositoras de musica popular (BAIRROS, 463)
Este tópico, embora potencializado na obra de Patricia Hill Collins, será o grande diferencial
do chamado feminismo negro, desde 1851 com a ex escravizada e empregada doméstica Sojourne
Truth e será um ponto nevrálgico para o desenvolvimento desta pesquisa, pois é a possibilidade do
reconhecimento da contribuição de mulheres que trabalham com outras linguagens, traduzindo
suas vivências e atualizando-as através da criação poética que se deterá a grosso modo o presente
projeto de tese.
Outra importante contribuição será a produção de Sueli Carneiro, em textos como Mulheres
em Movimento (2003),
A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente em
solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio
movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial
produzem entre as mulheres, particularmente
entre negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em relação à solidariedade de
gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimensão de gênero
se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais na agenda dos Movimentos
Negros Brasileiros (CARNEIRO, p.120)
Abordando os avanços das pautas feministas no Brasil, Sueli Carneiro percorreu um
itinerário pontuando como estes ganhos universalistas, não foram capazes de mudar efetivamente
o cotidiano das mulheres negras e indígenas, posto que para além da denúncia ao sexismo e
patriarcado, essas mulheres recebem toda a herança de corpos estigmatizados por sua condição
racial, pois se de um lado faz a denúncia da desigualdade, igualmente problematiza os privilégios
da branquitude em um país, no qual as relações raciais parecem deixar em segundo plano, o lugar
do branco em nossa sociedade.
Para a autora Claudia Pons Cardoso,“mulheres negras ativistas elaboraram/desenvolveram
um pensamento feminista próprio, à luz de saberes, práticas e experiências históricas de
resistência” (2012, p.15). Sua produção intitulada Outras Falas: Feminismos nas perspectivas de
mulheres negras brasileiras permite-nos afirmar a diversidade das culturas das quais as mulheres
afro-brasileiras fazem parte.
Como historiadora tenho a possibilidade de recontar histórias, reescrever e evidenciar
cotidianos, a partir de outras testemunhas, outras falas.
E o grito poético, quase como um sistema mundo pertence as minhas leituras à Introdução
a uma Poética da Diversidade, de Édouard Glissant. Sua projeção referente a esse momento da

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

produção criativa, Ela não é produzida em suspensão, não se trata de algo em suspensão no ar
(GLISSANT, 2013, p.38) Deste modo, serão estes rastros de poéticas comunitárias, que embora
criativos, não podem estar suspensos do mundo do qual fazemos parte, a estética produz e
denúncia ao mesmo tempo, visões de mundo.
Se as escritoras discutem dilemas locais, logo estes terão dimensões que rompem aspectos
geográficos, ao protagonizar subjetividades coloniais/ sexistas/racistas por vezes soterradas, que
não ocorreram especificamente em Brasil e Moçambique, mas em todo lugar onde a narrativa
colonial se solidificou e quem pôde fugir de lógicas racistas/sexistas/coloniais?
Paulina Chiziane_ ao não identificar-se como romancista e sim contadora de histórias,
problematiza seu lugar de encontro/percepção de literatura, há um potencial de análise e novamente
a oralidade como protagonista, mesmo na produção de textos escritos, reinscrevendo memórias
e a própria escrita como técnica e artificio_ a oralidade e sistemas culturais pertencentes a outras
matrizes, presentificam-se, ademais de produzir uma crítica ao que a literatura oficial produziu
como representação.
Esse conjunto de fazeres de Paulina Chiziane, possibilitam sua alteridade cultural
e epistemológica na produção de suas narrativas, através da sua escrita, seu corpo, reconta suas
memórias e nos convida a fazer parte de niketche, palavra que dá nome ao livro Niketche Uma
história de poligamia. A palavra nos remete, à dança, ritual de amor, desempenhada por meninas
durante cerimônias de iniciação_ Rami, descobre que o marido é polígamo, tem vários filhos,
mesmo sendo cristão e resolve conhece-las, e a busca por cada uma delas, caminha por espaços
geograficamente distintos e plurais de Moçambique.
Recordando a personagem Rami, do romance Niketche, Uma história de Poligamia, da
moçambicana Paulina Chiziane,

Encostei o meu rosto no espelho e chorei perdidamente. Ganhei o controlo de mim mesma
e olhei de novo. A imagem do espelho sorri. Dança e voa com leveza de espuma. Levita
como um jaguar correndo felino nas florestas do mundo. Era a minha alma fora das grades
sociais. Era o meu de infância, de mulher. Era eu, no meu mundo interior, correndo em
liberdade nos caminhos do mundo (CHIZIANE, 2004, p. 247)

Tanto na ficção ou ainda em seu cotidiano, mulheres negras se reinventam através das
experiências dessa diáspora africana, a partir de seus lugares ressignificam suas culturas e
problematizaram suas existências nesta nova comunidade. Sendo assim, são capazes de nos
brindar com outras possibilidades interpretativas.
As escritoras têm como um dos eixos em sua poesia a figura de mulheres negras e nos
apontam como esse elemento se estabelece ora com suas memórias como reivindicação, ora em
busca de suas identificações culturais. Nos versos do rap cantado pela rapper Yzalú e viralizado
durante as mobilizações da Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, Sexismo e pelo Bem
viver “Pode até me tratar como empregada mas não pode me fazer raciocinar como criada”.
Ao longo das últimas décadas, escritoras afro-latinas trazem a estética positiva e a
ressignificação de seus corpos como um dos principais temas de sua literatura. Suas histórias

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trazem à tona, experiências de mulheres para além do Ocidente, evidenciando dimensões
simbólicas de suas escolhas, este potencial da Diferença Cultural, apreendida por Homi Bhabha,
e essas diferenças apresentadas, ecoando silenciamentos e, cartografando lugares que as artes
conseguem fazer transbordar mais do que a própria história em sua missão de verdade.
Reinvindicação de humanização são cirandas, nas quais os limiares de um e de outro
cruzam-se constantemente, produzindo interações de sentidos, e culturas construídas e
compartilhadas entre esses grupos sociais. Como afirma Stuart Hall “Basicamente a cultura, diz
respeito à produção e ao intercambio de sentidos _ o compartilhamento de significados _ entre os
membros de um grupo ou sociedade (HALL, 2016, p.20)”
Estas mulheres perspectivam viabilizar, por meio de seus textos, a pluralidade das culturas
negras através da literatura, buscando um diálogo com a sociedade e deixando o espaço aberto
para debates e interações com trocas de informações. Acreditam que a escrita é a forma de construir
narrativas negras de ascendência africana, dando visibilidade às lutas e vidas, desinventando as
mentiras coloniais sobre suas experiências e memórias.
Desta forma, narrativas protagonizadas através dos corpos de mulheres negras, em que
ideias e transformação radical, caminham na mesma direção são elementos fundamentais para
mudanças na esfera pública e na mentalidade social, considerando que a transformação do capital
cultural é um passo fundamental na capacidade de mudanças em nossa sociedade, a produção
do pensamento feminista negro não é separado da política cotidiana, e sim elaborado a partir dela
e de suas necessidades na viabilização de um novo projeto político/civilizatório, na esperança de
um mundo que possamos viver em equidade, nas palavras de Sojourner “Allí, pequeños, todos
descansaremos de todos nuestros esfuerzos; allí descansaremos en ese hermoso mundo del que
ya no saldremos más. Ahora hagamos lo que podamos hacer; ahora trabajemos todos por ese
hermoso lugar” (TRUTH, Apud JABARDO, 2012, p.62).

Referências
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Negras e negros no Sul do Brasil
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“MINHA MÃE TRABALHOU DE DOMÉSTICA, EU TRABALHEI EM CASA
DE PATROA BRANCA E MINHAS FILHAS TAMBÉM”: NARRATIVAS DE
MULHERES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA TOCA/SANTA CRUZ

DOTHLING, Nathália. (PPGAS/UFSC)


nathaliadothling@hotmail.com

Resumo

Sabemos que o feminismo e as intelectuais feministas foram importantes na crítica à suposta objetividade
da ciência. Em trabalhos como os de Donna Haraway percebemos que por trás da neutralidade científica
esconde-se o Homem. Mas se nos atentamos para as experiências e críticas de mulheres e intelectuais
negras e descoloniais, vamos ainda mais longe e podemos perceber que o próprio campo feminista
precisa ser revisitado. A intelectual e feminista negra, Sueli Carneiro, considera que o movimento feminista
brasileiro, apesar de ter tido importantes avanços, compartilhou da visão eurocêntrica e universalizante
sobre as mulheres. Para ela a principal consequência disto foi a incapacidade de perceber as diferenças
existentes no universo feminino e que as mulheres negras tiveram uma experiência histórica distinta à
que predomina no discurso clássico sobre opressão contra mulher. Com isso, ela acredita que mulheres
vítimas de outras opressões, além do sexismo, têm suas vozes silenciadas e, portanto, são invisibilizadas
no feminismo. Através do trabalho de campo que tenho feito na Comunidade Quilombola Toca/Santa
Cruz, no município de Paulo Lopes, em Santa Catarina, percebo, pelas narrativas das mulheres da
comunidade, que a relação entre elas e as mulheres brancas da cidade vem se perpetuando desde
a escravidão, quando as primeiras faziam todo o trabalho nas casas das segundas, cuidavam de
seus filhos e ainda sofriam castigos. Desde os anos 70, as mulheres da Toca sempre trabalharam de
empregadas domésticas nas casas das mulheres brancas de Paulo Lopes e isso continua de geração
em geração. Através de intelectuais negras e descoloniais - como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Maria
Lugones – pretendo mostrar como o próprio feminismo, os estudos feministas, e a categoria de gênero
têm apagado as experiências de mulheres “outras”; das mulheres negras e não brancas e, no caso
específico, de mulheres de comunidades quilombolas.

Palavras-chave: Mulheres negras, interseccionalidade, feminismo negro, comunidade


quilombola, trabalho doméstico.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Desde o começo de março de 2017, tenho feito trabalho de campo para a minha pesquisa
do mestrado em Antropologia Social sobre a liderança de mulheres em comunidades quilombolas
de Santa Catarina. Para tanto, tenho ficado nas Comunidades Quilombolas Toca/Santa Cruz, em
Paulo Lopes e Aldeia, em Garopaba/Imbituba. Para este artigo, decidi abordar as narrativas das
mulheres da Toca, por estar convivendo com elas a mais tempo e ter mais material. De qualquer
forma, ainda estou em trabalho de campo e o presente artigo é a apresentação de resultados
parciais da pesquisa. Através do convívio diário com as mulheres da comunidade, conversas em
suas casas e participação em atividades do cotidiano, percebo que algumas questões comuns
perpassam suas narrativas. A maioria delas tem baixa escolaridade, trabalhou como doméstica,
babá, lavadeira ou faxineira em casas de mulheres brancas – assim como suas mães e avós o
fizeram – e sofrem de doenças relacionadas aos trabalhos pesados que sempre tiveram que fazer.
Diante de tais experiências, penso que as críticas de autoras do feminismo negro e descolonial –
como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Maria Lugones - ao feminismo branco e à forma como ele vem
apagando essas realidades “outras”, faz-se muito pertinente. O objetivo desse artigo é perceber
e mostrar a importância de partir das experiências, narrativas e saberes das mulheres negras da
Toca para as práticas e estudos feministas e étnico-raciais.

A ciência não é neutra

Em Saberes Localizados, Donna Haraway (1995) traz importantes reflexões sobre a


questão da objetividade na ciência e o que isso realmente quer dizer. De acordo com ela, essa
tentativa de objetividade separa a ciência em nós e eles.
O “eles” imaginado constitui uma espécie de conspiração invisível de cientistas e filósofos
masculinistas, dotados de bolsas de pesquisa e de laboratórios; o “nós” imaginado são os
outros corporificados, a quem não se permite não ter um corpo, um ponto de vista finito
e, portanto, um viés desqualificador e poluidor em qualquer discussão relevante, fora de
nossos pequenos círculos, nos quais uma revista de circulação de “massa” pode alcançar
alguns milhares de leitores, em sua maioria com ódio da ciência (HARAWAY, 1995, p.7).

Dessa forma, Haraway aponta para que todo conhecimento existe dentro de um campo
de poder e que a própria ciência é um campo de poder. O que ela pretende é desconstruir essa
pretensão de verdade de uma ciência que ela considera hostil e enviesada. Contra a objetividade
ela propõe a subjetividade, ou seja, versões “corporificadas” da verdade, o que Haraway chama de
versão feminista da objetividade. Ela propõe uma epistemologia feminista, um modo diferente de
fazer ciência, que não encare o mundo como algo “natural” e “real” a ser descrito, denunciando,
assim, a pretensão da visão neutra científica sobre um mundo pronto, já que, para a autora, “este
olhar significa as posições não marcadas de Homem e Branco [...]” (HARAWAY, 1995, p.18). Tais
reflexões são extremamente importantes para rever o modo como a ciência vem sendo feita e

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quem ela acaba favorecendo ou excluindo. Mas quando fala-se em epistemologia feminista e
participação de mulheres na ciência, de que mulheres estamos falando?

Feminismo negro e a descolonização do gênero

Donna Haraway (2013) - a partir das reflexões de intelectuais negras e chicanas, como
Patrícia Hill Collins, Gloria Anzaldúa, Cherry Moraga - propõe que devemos repensar a questão
das identidades das lutas sociais, pois as consciências fixas de classe, raça, gênero são herdadas
das realidades contraditórias do capitalismo, colonialismo e patriarcado. De acordo com ela “não
existe nada no fato de ser ‘mulher’ que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mesmo
uma tal situação – ‘ser’ mulher” (HARAWAY, 2013, p.47). É por isso que várias fragmentações têm
ocorrido entre as feministas, já que assumir uma categoria universal mulher camufla as dominações
que algumas mulheres exercem sobre outras. É nesse contexto que surge a categoria mulheres
de cor - como se auto reconhecem as feministas negras e chicanas nos Estados Unidos- para
dar conta da complexidade de mulheres que não se encaixam nas categorias de raça, classe ou
gênero, já que a categoria mulher nega todas as mulheres que não sejam brancas e a categoria
negro nega as mulheres negras.
Trazendo essas questões para o Brasil, Sueli Carneiro (2004) considera que o movimento
feminista brasileiro, apesar de ter tido importantes avanços, compartilhou da visão eurocêntrica e
universalizante sobre as mulheres. Para ela a principal consequência disto foi a incapacidade de
perceber as diferenças existentes no universo feminino e que as mulheres negras tiveram uma
experiência histórica distinta à que predomina no discurso clássico sobre opressão contra mulher.
Com isso, ela acredita que mulheres vítimas de outras opressões, além do sexismo, têm suas vozes
silenciadas e, portanto, são invisibilizadas no feminismo. De acordo com ela:
Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção
paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós,
mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário,
que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como
frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos
como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas...
Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres
deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com
identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho
tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas
tipo exportação (CARNEIRO, 2011).

É nesse sentido que Lélia Gonzalez (1988d, cit por CARDOSO, 2014) retoma Simone de
Beauvoir e afirma que se “não se nasce mulher, torna-se”, esse processo de construção social
e cultural não será o mesmo para todas as mulheres. Na mesma linha de Sueli Carneiro, Lélia
Gonzalez reconhece o papel importante das lutas e conquistas do feminismo e sua busca por
uma nova forma de ser mulher, mas ressalta que o feminismo branco não dá conta de explicar as
construções de gênero de mulheres negras, indígenas, daquelas que estão nas margens, pois não

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

inclui outros tipos de discriminação sofridos por essas mulheres, como o racismo. E então, sugere
que devemos pensar sempre na intersecção entre gênero e raça/etnia (CARDOSO, 2014). Pensar
só o racismo separado também não daria conta da realidade das mulheres não brancas, já que o
racismo atinge de forma distina homens e mulheres.
Maria Lugones (2008) enfatiza a importância de trabalhar a interseccionalidade de gênero,
raça, classe, sexualidade para entender as realidades de mulheres não brancas. Tratar a estas
categorias de forma separada é um erro epistemológico que não permite entender as violências
que sofrem essas mulheres que, além de serem vítimas da colonialidade de poder1, são vítimas da
colonialidade de gênero. Insistir neste erro é continuar excluindo as mulheres não brancas das lutas
por liberdade em nome da categoria mulher, que ao homogeneizar acaba selecionando aquilo que
é dominante, como por exemplo, as fêmeas brancas, burguesas e heterossexuais. Da mesma forma,
a categoria negro seleciona machos negros heteressexuais. Portanto, separar categoricamente
seres e fenômenos sociais invisibiliza as experiências de interseção, como as vividas por mulheres
não brancas. A interseção mostra o que se perde e, então, só podemos ver as mulheres negras se
pensarmos gênero e raça entranhados (LUGONES, 2008). O que isso quer dizer é que a categoria
mulher em si, sem estar entrelaçada a outras categorias, tem um caráter racista, pois seleciona
mulheres brancas, burguesas e heterossexuais e esconde o abuso e desumanização envolvidos
na colonialidade de gênero.
Toda a produção violenta do sistema de gênero moderno/colonial transformou as pessoas
não brancas em animais e as mulheres brancas em reprodutoras da raça branca e da classe
burguesa. Considerar o gênero como imposição colonial provoca uma mudança na forma de
estudar as sociedades pré-coloniais, na medida em que questiona o uso do conceito de gênero
como parte da organização social. Portanto, é importante analisar até que ponto o sistema de
gênero constituiu a colonialidade do poder e como a colonialidade do poder constituiu o sistema
de gênero. Um não pode existir sem o outro, já que classificar a população em termos de raça é
uma condição para sua possibilidade. É nesse âmbito que percebemos que tanto a raça como o
gênero são ficções poderosas e intimamente ligadas. Ao não perceber isto, o feminismo branco
hegemônico apagou as mulheres negras e não brancas. De acordo com Lugones (2008):
En el desarrollo de los feminismos del siglo XX, no se hicieron explícitas las conexiones
entre el género, la clase, y la heterosexualidad como racializados. Ese feminismo enfocó su
lucha, y sus formas de conocer y teorizar, en contra de una caracterización de las mujeres
como frágiles, débiles tanto corporal como mentalmente, recluidas al espacio privado, y
como sexualmente pasivas. Pero no explicitó la relación entre estas características y la raza,
ya que solamente construyen a la mujer blanca y burguesa. Dado el carácter hegemónico
que alcanzó el análisis, no solamente no explicitó sino que ocultó la relación. Empezando
el movimiento de «liberación de la mujer» con esa caracterización de la mujer como el
blanco de la lucha, las feministas burguesas blancas se ocuparon de teorizar el sentido
blanco de ser mujer como si todas las mujeres fueran blancas (LUGONES, 2008, p.94).

Contar só as mulheres brancas como mulheres faz parte da história do Ocidente. As


fêmeas excluídas e subordinadas por esta descrição eram vistas e tratadas como animais, no

1 Termo cunhado por Aníbal Quijano (1991; 2000a; 2000b; 2001-2002).

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sentido mais profundo de serem seres “sem gênero”, marcadas sexualmente como fêmeas,
mas sem características de feminilidade. Mesmo quando foram engenerizadas, pelos interesses
das/os colonizadoras/es, as mulheres não brancas receberam o status inferior que acompanha
o ser mulher, mas sem nenhum dos privilégios das mulheres brancas burguesas. O feminismo
hegemônico branco apagou a história das relações entre mulheres brancas e não brancas e
equiparou mulheres brancas à categoria de mulher e, assim, não se preocuparam com a opressão
de gênero de ninguém mais. Como não perceberam as diferenças, não viram necessidade de criar
coalizões; apenas assumiram uma sororidade entre as mulheres pelo fato da sujeição de gênero
(LUGONES, 2008).

Quilombos contemporâneos: afinal, o que são?

Antes de apresentar a Comunidade Quilombola Toca e as mulheres de lá, penso que é


necessário discorrer um pouco sobre a noção de quilombo. Segundo João José Reis (1995, 1996),
a formação de quilombos foi um movimento de resistência típico dos escravos e escravas, embora
não tenha sido o único.2 A formação de grupos de escravos fugitivos se deu em todas as partes
das Américas onde houve escravidão. No Brasil, esses grupos foram nomeados quilombos ou
mocambos e reuniram centenas e até milhares de pessoas. Nesses espaços, africanas e africanos
de diferentes etnias conviviam com suas diferenças e criavam novos laços de solidariedade,
recriando culturas. O próprio termo quilombo deriva de kilombo, “uma sociedade iniciática de
jovens guerreiros mbundu adotada pelos invasores jaga (ou imbangala), estes formados por
gente de vários grupos étnicos desenraizada de suas comunidades” (REIS, 1995, 1996, p.16).
Assim, o Quilombo de Palmares, um dos mais famosos na história do Brasil, teria reinventado
essa instituição para enfrentar o problema da perda de raízes do lado de cá do Atlântico, sendo
responsável por que o termo quilombo se consagrasse no lugar de mocambo. Depois de Palmares,
os escravos e escravas não conseguiram reproduzir no Brasil nada que representasse o grande
quilombo, já que a colônia estabeleceu várias medidas repressivas para controlar o número de
escravos fugidos e de formação de quilombos. É nesse sentido que Hebe Mattos (2005, 2006)
afirma que o movimento de formação dos quilombos, em estreita ligação com o mundo das
senzalas, provocou um importante deslocamento na imagem sobre a escravidão e Abolição no
Brasil. A figura do escravo emergiu como protagonista no processo abolicionista, seja através de
atos cotidianos de rebeldia nas senzalas, das fugas coletivas na década de 1880 ou de processos
judiciais de ação por liberdade, mas não podemos descartar que escravos/as e quilombolas
foram forçados/as pela pressão escravocrata e colonial a mudar costumes, mas nesse processo,
resistiram a se transformar naquilo que o senhor desejava. É aí que reside a dificuldade de se falar,
sem maiores explicações, de “comunidades quilombolas”, pois isso pressuporia uma sucessão

2 Ilka Boaventura Leite (2000), também coloca que o quilombo configurou-se em importante foco de resistência
dos africanos e africanas ao escravismo colonial brasileiro.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de gerações, uma memória grupal e transmissível de costumes, rituais e valores qualificados de


próprios, característicos. Assim, os e as quilombolas, se pertenciam à alguma comunidade, essa
seria a comunidade escrava mais ampla (REIS, 1995, 1996).
De acordo com Arruti (2006), o Estado Nacional brasileiro tratou de produzir expedientes
de controle social e cultural sobre as populações indígenas e negras. No caso da população negra
tratava-se de integrá-la, mas sem deixar-se contaminar ou deixar que esse outro tão numeroso
alterasse a imagem de uma nação ocidental branca. Mais recentemente, esse lugar mestiço se
encontra ameaçado, na medida em que várias comunidades indígenas passam por processos
de retomada de suas tradições e comunidades negras emergem de sua invisibilidade histórica
e ganham estatuto de unidades culturais. Segundo Arruti (2006), desde a década de 90 a
quantidade de comunidades que se reconhecem enquanto quilombolas vem crescendo muito
e em 1995 foi criada a Articulação Nacional Provisória das Comunidades Remanescentes de
Quilombos. Podemos considerar a Constituição de 1988 e o ‘artigo 68’ como sendo impactantes
para a questão quilombola no Brasil. É nesse contexto que
A produção de novos sujeitos políticos etnicamente diferenciados pelo termo “quilombola”
tem início depois de ampla tomada de conhecimento dos novos direitos instituídos pelo
“artigo 68” (Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios/ Constituição de 1988)
que, reconhece, aos “remanescentes das comunidades de quilombo”, a “propriedade
definitiva” das “terras que estejam ocupando”, assim como a obrigação do Estado em
“emitir-lhes os títulos respectivos” (ARRUTI, 2006, p.66).

Dessa forma, o autor mostra como o quilombo histórico foi metaforizado para ganhar funções
políticas contemporâneas. O “artigo 68” não só reconheceu o direito a terras às “comunidades
remanescentes de quilombos”, mas também criou tal categoria política e sociológica.
É nesse âmbito que Arruti (1997) afirma que devemos ter cuidado para não buscar
pequenas Áfricas nas comunidades quilombolas contemporâneas, pois tratam-se de criações
sociais, “feitas simultaneamente de imaginação sociológica, criações jurídicas, vontade política
e desejos” (ARRUTI, 1997, p.7). Mattos (2005, 2006), também aponta para que a maioria das
comunidades negras, em conflito pelo reconhecimento tradicional de terras coletivas no Brasil, não
se vêem associadas à ideia clássica de quilombo. Assim, juristas, historiadoras/es, antropólogas/
os e, em especial, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), tiveram papel importante nessa
discussão. Com o crescimento do movimento quilombola, predominaram as interpretações que
buscavam ressemantizar o termo “quilombo”. Segundo o Decreto 4.887 - de 20 de novembro
de 2003, que regulamenta o artigo constitucional -, “a caracterização dos remanescentes das
comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”,
entendo-as como “grupos étnicos-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade
negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (MATTOS, 2005, 2006). É nesse
sentido que o “artigo 68” escolhe o termo comunidades remanescentes de quilombos, para tratar
de tais comunidades na contemporaneidade. O termo remanescente aponta para laços com o
passado, mas não no sentido de buscar uma continuidade e, sim, de resgatar para esses grupos

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alguma positividade ligada à resistência histórica, à recusa à ordem escravocrata, oligárquica e,
mesmo, capitalista. Ao serem identificadas assim, as comunidades passam a ser reconhecidas
como modelo de luta e resistência negra (ARRUTI, 1997, 2006).

Narrativas de mulheres negras da Comunidade Quilombola Toca/Santa Cruz


Após o exposto, passemos à comunidade remanescente de quilombo em questão. A
comunidade de Santa Cruz, ou como é mais conhecida, Toca, localiza-se no município de Paulo
Lopes, região litorânea de Santa Catarina, sul do Brasil. A pequena cidade dista cerca de uma hora
da capital, Florianópolis. A comunidade está no bairro chamado Santa Cruz, perto da região central
da cidade. Andamos pelo centro e vemos grandes e boas casas, comércios, rua pavimentada.
Quando ele termina, avistamos o cemitério da cidade. A rua sem asfalto que começa à sua
esquerda indica que chegamos à Toca. Neste bairro, vivem aproxidamente 150 pessoas negras
pertencentes às famílias ‘de Jesus’, ‘Marcelino’ e ‘Felipe’. O regime de casamentos da comunidade
é endogâmico, ou seja, a maior parte dos matrimônios dá-se entre primas e primos de primeiro
grau ou “primos, bem primos” como diria Dona Verônica, uma das moradoras da comunidade.
Dona Verônica nasceu na Encantada, Garopaba, mas vive na Toca há mais de 30 anos,
pois casou-se com Jorge que é dali. Desde novinha, Verônica ajudava seus pais na lavoura, nos
afazeres da casa e na pesca. Depois de casada, trabalhou lavando e passando roupa para fora, de
faxineira em casas de Paulo Lopes e cuidou, por vários anos, de uma senhora da cidade. Disse que
trabalhou assim por muito tempo; saía cedo de casa, mas antes deixava tudo arrumadinho – casa,
comida, roupa - e ia cuidar da mulher.
Ah, minha filha. Essa mulher tinha depressão. Perdeu os filho tudo de acidente de carro.
E essa mulher chorava, ai meu Deus, como essa mulher chorava. Gritava a noite toda e o
vizinho ligava pra mim, preu cuidar dela, fazer ela parar de chorar. Mas eu dizia que não ía,
porque meu horário era pelo dia e à noite eu queria dormir e ficar com minha família (Dona
Verônica, trecho de diário de campo pessoal).

Verônica só deixou de trabalhar quando a senhora faleceu. Durante minha convivência


com ela, Verônica me contou muitas vezes histórias sobre a patroa: casos dos filhos, gostos de
alimentação, etc. e nunca me contou nada sobre sua própria mãe. Até Beatriz, sua neta, que é
criada por ela e pelo marido, acha que a patroa, na verdade era a mãe da vó. Nem com a morte da
patroa, Verônica ficou livre da relação de dependência da mulher branca; essa, antes de morrer,
fez com que Verônica prometesse que cuidaria de seu túmulo enquanto vivesse, pois sabia que
os filhos que restaram não o fariam. E isso é o que ela faz; antes ia limpar e colocar flores todos os
meses, mas agora vai apenas em datas especiais como dias das mães, finados e aniversário da
patroa falecida. Verônica nunca teve a carteira assinada trabalhando para essa mulher e lavando
ou faxinando casas. Apenas quando trabalhou numa fábrica como costureira. Hoje, ela tem 61
anos, problemas na coluna, hérnia, dores nos joelhos e ainda não está aposentada. Não trabalha
mais fora, mas faz tudo em casa. De acordo com ela: “Eu até poderia aposentar por validez, mas
não vale a pena, porque ganha pior. Tô pagando minha aposentadoria por mês no INSS, já falei com

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

o adevogado e torcendo pra sair logo. Acho que esse ano sai”. A filha mais velha de Verônica vive
em Itajaí e trabalha como empregada doméstica em casa de mulher branca da cidade. As outras
duas filhas já trabalharam como empregadas domésticas, mas conseguiram terminar o ensino
médio com bastante dificuldade e, com isso, puderam trabalhar em empresas de telemarketing ou
no pedágio próximo à cidade. Atualmente, as duas estão desempregadas.
Dona Lúcia é outra moradora da Toca. Com 81 anos, é uma das mulheres mais velhas da
comunidade, ao lado de sua comadre Maria, que tem também 81 anos. Por toda a cidade de Paulo
Lopes, Lúcia é conhecida como mãe Lúcia. Certa vez, eu a acompanhava ao curso oferecido pelo
CRAS para as mulheres da Toca e perguntei porque as pessoas da cidade toda a chamam de mãe
Lúcia. Ela contou que já trabalhou em quase todas as casas de Paulo Lopes, como empregada
doméstica e cuidando das crianças. Numa das casas, a patroa ensinou os filhos a chamarem-na
de mãe Lúcia e o apelido pegou pela cidade toda. Ela diz que gostava de trabalhar assim, pois
ganhava seu dinheirinho, mas que nunca teve carteira assinada. Segundo ela: “Isso é coisa de
agora, né. Antes num tinha disso de carteira assinada, minha fia”. Enquanto mãe Lúcia cuidava das
casas e filhos dos brancos, a filha mais velha é que cuidava de sua casa e das irmãs e irmãos. Essa
filha, já falecida, morou em Itajaí, onde trabalhava como empregada doméstica. Dona Lúcia já está
aposentada; contou que mesmo sem ter carteira assinada nos trabalhos domésticos, ela conseguiu,
porque veio gente e soube na comunidade que ela trabalhou desde pequena na roça com os pais.
Mas ela diz: “Agora tá mais difícil pra aposentar, né. Agora homem vai ser com 65 e mulher com
62”, mostrando ter conhecimento das desvantagens da reforma previdenciária proposta no atual
governo de Temer. A mãe de Lúcia trabalhava na roça e lavando roupas para casas de Paulo Lopes.
Quase todas as filhas de Lúcia - com as quais tive oportunidade de conversar, pois são também
moradoras da Toca - trabalharam em algum momento de suas vidas ou ainda trabalham como
empregadas domésticas em casas de mulheres brancas do município.
Glorinha, mulher de 66 anos, nascida e crescida na comunidade da Toca, tem sido uma de
minhas principais interlocutoras. Ela conta que desde nova ajudava os pais no trabalho da roça,
pescava com a mãe e a irmã Tina e também já trabalhou como faxineira em casas de famílias
brancas de Paulo Lopes. Depois que casou parou de trabalhar fora e passou a cuidar de sua casa
e de suas/seus filhas/os. Um dia, numa de nossas conversas, perguntei a Glorinha sobre sua vida
laboral e sobre o que faziam as mulheres mais velhas no passado e ela respondeu:
ah, aquela minina, as mulheres pescavam, cuidavam da casa, cozinhavam e eram
empregadas domésticas. Não era fácil a vida das pretas naquela época. Minha mãe
trabalhou de doméstica, eu trabalhei em casa de patroa branca e minhas filhas também
(Glorinha, moradora da Toca, trecho de diário de campo pessoal).

Muitas foram as mulheres da Toca com as quais tive a oportunidade de conversar, mas
devido à extensão do artigo não tenho como trazer todas as narrativas. Diante das diferentes
estórias de vida, percebi que fatores como a baixa escolaridade, os trabalhos como empregada
doméstica, lavadeira, faxineira, cuidadora de crianças e idosos e as doenças relacionadas aos
trabalhos pesados, perpassavam praticamente todas elas.

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Considerações finais

Em 2002, Gisely Botega (2002), fazia sua pesquisa de TCC conversando com 7 mulheres
da Toca. O que vemos em seu trabalho é que a maioria delas tinha baixa escolaridade e havia
trabalhado na roça, como lavadeira e empregada doméstica e mostravam, em suas narrativas,
que as mães e avós também tinham trabalhado na lavoura e lavando roupas (BOTEGA, 2002).
Passados 15 anos, vejo em meu trabalho de campo, através das narrativas das mulheres da
comunidade Toca/Santa Cruz, que a realidade laboral não mudou praticamente em nada.
Dessa forma, como tratei de mostrar desde o princípio desse artigo, percebo que as críticas
de feministas negras e descoloniais se fazem totalmente pertinentes quando nos atentamos às
realidades das mulheres negras da comunidade remanescente de quilombo Toca/Santa Cruz.
Universalizar as diferentes experiências diante da categoria mulher ou sob as relações da categoria
gênero, é apagar as especificidades das vivências de mulheres negras e, no caso específico, de
comunidades quilombolas. O famoso slogan do feminismo branco e burguês da luta pelo direito às
mulheres de trabalharem fora, não faz nenhum sentido se partimos das narrativas das mulheres da
Toca. Essas mulheres tiveram que trabalhar fora - seja na roça, lavando roupas, faxinando casas,
etc. – desde muito novinhas. Suas antepassadas, escravizadas, tiveram que trabalhar nas lavouras
e nas casas das sinhás brancas. Depois de tantos anos, elas continuam, de geração em geração,
trabalhando para as mulheres brancas da cidade, enquanto essas podem seguir suas carreiras
profissionais.
Durante o período do trabalho de campo, tive a oportunidade de participar de um curso de
confecção de geleias, no qual haviam mulheres brancas da cidade de Paulo Lopes e três mulheres
negras da comunidade da Toca. Usávamos Q-boa para higienizar os alimentos para o curso e
caiu na mão de uma das mulheres brancas. Ela reclamou e eu brinquei: “Vai desbotar a mão”.
Ela respondeu: “O problema é o cheiro que vai ficar...de faxineira”. Durante os dois dias de curso,
pude perceber que tratavam-se de mulheres brancas, católicas, donas de casa ou aposentadas
que têm gente para limpar suas casas e fazem ‘piadas’ do tipo: “Tá me achando com cara de
faxineira?”, “Tá achando que eu sou lavadeira?”, “Eu não faço isso, eu tenho empregada pra fazer
pra mim”, etc. Não se davam conta que ali estavam as mulheres da Toca que são as que fazem e
sempre fizeram esses trabalhos para elas.
O trabalho de campo me mostra que as relações entre as mulheres brancas da cidade de
Paulo Lopes e as mulheres negras da comunidade quilombola Toca só mudaram de nome desde
o período da escravidão; em sua essência continuam sendo as mesmas, de exploração e racismo.
Dessa forma, fica claro que as experiências dessas mulheres são muito distintas e não cabem nas
mesmas pautas de um único feminismo. Querer agrupá-las é silenciar as mulheres negras e de
comunidades quilombolas, como colocam Sueli Carneiro, Maria Lugones, Lélia Gonzalez e tantas
outras intelectuais negras e descoloniais. Assim, espero haver dado conta de mostrar a importância

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de partir das narrativas e experiências locais de mulheres negras para pensar as teorias e práticas
feministas de uma forma geral.

Referências

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Indígenas e Quilombolas. Mana, 1997.

_________________. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola.


Bauru, SP: EDUSC, 2006.

BOTEGA, Gisely P. Desigualdades étnicas e de gênero no mercado de trabalho na perspectiva


das mulheres negras da Comunidade de Santa Cruz do município de Paulo Lopes. Palhoça:
UNISUL, 2002.

CARDOSO, Cláudia P. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez.


Florianópolis: Revista Estudos Feministas, 2014.

CARNEIRO, Sueli. O papel do movimento feminista na luta antirracista. In: MUNANGA, Kabengele
(Org.). O negro na sociedade brasileira: resistência, participação, contribuição. Fundação
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_______________. Enegrecer o feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a


partir de uma perspectiva de gênero. 2011 Disponível em http://arquivo.geledes.org.br/em-debate/
sueli-carneiro/17473-sueli-carneiro-enegrecer o-feminismo-a-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-
partir-de-uma-perspectiva-de-genero Acesso em 29/08/2015 às 14:00 hs.

HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio


da perspectiva parcial. Campinas: Cadernos Pagu, 1995.

HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue – As


vertigens do pós-humano. 2ª. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

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Etnográfica, Vol. IV (2), 2000.

LUGONES, Maria. Colonialidad y género. Bogotá: Tabula rasa, 2008.

MATTOS, Hebe. “Remanescentes das comunidades dos quilombos”: memória do cativeiro


e políticas de reparação no Brasil. São Paulo: Revista USP, 2005, 2006.

REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. São Paulo: Revista USP, 1995, 1996.

Página 250
PROTO-FEMINISMO NEGRO EM SANTA CATARINA: UM ESTUDO DO
ATIVISMO DE MULHERES NEGRAS NA LUTA ANTIRRACISTA, SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XX

CARVALHO, Carol Lima de. (PUC/SP)


carolimac18@gmail.com

Resumo

O presente trabalho visa apreender aspectos do projeto de pesquisa intitulado “Proto-Feminismo


Negro em Santa Catarina: Um Estudo do Ativismo de Mulheres Negras na Luta Antirracista, segunda
metade do Século XX”, este propõe traçar aspectos de um diálogo em torno do papel das mulheres
negras brasileiras na luta antirracista e feminismos no estado de Santa Catarina, mais precisamente
Florianópolis. No ano de 1980, um cenário de críticas a aspectos da sociedade e anseio por mudanças,
o movimento de mulheres negras emergiu possibilitando debates sobre combate as violências raciais
e de gênero. Nesse sentido, uma das organizações formadas por mulheres negras em Florianópolis
intitulada Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros (AMAB) foi construída neste contexto,
e as protagonistas deste projeto são suas integrantes. Por meio da leitura dos documentos de acervos
pessoais e entrevistas a serem realizadas, o objetivo é identificar o que as fundadoras da AMAB
compreendem sobre feminismo e de que forma elas se configuram, enquanto mulheres negras, na
luta antirracista com pautas e ações destinadas às mulheres negras e educação. O respaldo teórico
consiste nas produções que modificam as epistemologias dos estudos sobre mulheres negras, como
por exemplo, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Antonieta
de Barros, entre outras. O intuito do projeto, portanto é analisar o papel dos movimentos de mulheres
organizados em Florianópolis, pensando nas ressonâncias dos feminismos e a organização de mulheres
negras diante do contexto da luta feminista e antirracista na cidade de Florianópolis na segunda metade
do século XX buscando ser um indicativo para dar visibilidade a AMAB e Professora Antonieta de Barros.

Palavras-chave: AMAB, Mulheres Negras, Luta Antirracista, Feminismo Negro.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Nas últimas décadas muito se tem discutido sobre a pluralidade das formas de mobilizações
sociais em defesa de direitos, em especial, lutas protagonizadas por negras e negros no Brasil pelo
combate ao racismo e discriminações raciais e de gênero. A filósofa e ativista negra Sueli Carneiro
(2003) afirma que:

“É sobejamente conhecido a distância que separa negros e brancos no país no que diz
respeito à posição ocupacional. O movimento de mulheres negras vem pondo em relevo
essa distância, que assume proporções ainda maiores quando o tópico de gênero e raça é
levado em consideração.” (CARNEIRO, 2003, Pg. 120).

Diante disso, vale destacar que estas lutas não são recentes, este artigo visa destacar as
organizações conduzidas por mulheres negras do estado de Santa Catarina, buscando traçar um
diálogo em torno do papel das mulheres negras brasileiras na luta antirracista e feminismos neste
estado, mais precisamente Florianópolis.
A organização em destaque intitula-se Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros
–AMAB, entidade da sociedade civil sem fins lucrativos, cuja finalidade é organizar e realizar ações
voltadas para a promoção da igualdade e, a valorização da mulher negra, inspiradas nas ações da
Professora e primeira Deputada do estado de Santa Catarina, Antonieta de Barros1.
Este artigo é a apresentação do projeto de pesquisa em andamento do curso de mestrado
em História Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP iniciado no
primeiro semestre do ano de 2017. Os caminhos desta pesquisa estão vinculados ao curso de
graduação na Universidade do Estado de Santa Catarina –UDESC, em que ingressei no ano de
2013 passando a me vincular ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros –NEAB, o qual me acolheu
em todo meu percurso dentro da Universidade. O NEAB/UDESC possibilitou a minha aproximação
na organização da Marcha das Mulheres Negras de 20152, com isso iniciei, efetivamente, meus
estudos referentes ao Movimento de Mulheres Negras e Feminismo Negro.
Além disso, a minha inserção, envolvimento e compromisso com a história das mulheres
negras gerou meu Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado “Negras em movimento: Associação
de Mulheres Negras Antonieta de Barros - AMAB (1985-2015)”, estudo sobre o modo como as
mulheres, fundadoras da AMAB, construíram epistemologias para a sua vivência e reconhecimento,
experiências comunitárias, e o reconhecimento da memória de Antonieta de Barros, num processo

1 Nasceu em 11 de julho de 1901, em Florianópolis, órfã de pai, foi criada somente pela mãe, que a incentivou
a seguir a vida com muita dedicação e humildade. Aos cinco anos se alfabetizou e na medida em que foi crescendo
tinha o sonho de ser professora, mas suas condições financeiras não seriam possíveis se dedicar, teve que esperar
alguns anos. Em 1918 com 17 anos graças aos amigos e família conseguiu seguir seu sonho. Tornou-se professora,
jornalista, escritora, oradora e política (primeira deputada mulher negra de SC). E em 1952 a Antonieta de Barros
faleceu (JORNAL ANTONIETA DE BARROS, 2001). AMAB, Jornal Antonieta de Barros, Florianópolis, 2001.
2 A Marcha das Mulheres Negras 2015 foi um momento em que 50 mil mulheres foram às ruas de Brasília no
dia 18 de novembro de 2015 para lutarem contra racismo, violência e pelo bem viver.

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de empoderamento. Durante o processo deste trabalho, emergiram algumas inquietações a
respeito do feminismo em vigência naquele momento, os seus impactos, influências, e o fato delas
não se identificarem com este movimento nos seus processos na luta antirracista, tais inquietações
fundamentaram inicialmente este projeto.
Ademais meu envolvimento com a AMAB, vale destacar que sou natural da cidade de
Florianópolis, bisneta, neta e filha de mulheres negras matriarcas de suas famílias, educadoras e
protagonistas de grandes histórias na cidade de Florianópolis, e estas mulheres me inspiraram e
me fortaleceram a dar visibilidade a história das mulheres negras catarinenses.
Portanto, as inquietações que configuraram o projeto de pesquisa são frutos da minha
trajetória de vida, enquanto mulher negra buscando destacar o movimento de mulheres negras e
feminismos, e a importância de dar visibilidade a este estudo pauta-se então, no contexto histórico
vivenciado pelas mulheres negras, em que a sua condição de mulher, negra e majoritariamente
vindas de situações sociais excludentes as impedem de disfrutar o bem viver. (CARVALHO, 2016,
p. 12).
Desse modo, o projeto delimita-se pelo fato das mulheres negras da AMAB serem
protagonistas da luta pelos direitos das mulheres, assim como a visibilidade para história e
memória de Antonieta de Barros. Além disso, pelo meu contexto familiar o respaldo da discussão
será conduzido pelas mulheres negras da minha família.
O intuito é identificar quais os aspectos são possíveis identificar a respeito dos universos
culturais negros em que estas mulheres negras estão inseridas, e a partir disso, buscar quais
suas concepções sobre feminismos. Por meio da leitura dos documentos de acervos pessoais e
entrevistas a serem realizadas, o objetivo é identificar o que as fundadoras da AMAB compreendem
sobre feminismo e de que forma elas se configuram, enquanto mulheres negras, na luta antirracista
com pautas e ações destinadas às mulheres negras e educação.
Dessa forma, o aspecto que serve de respaldo para este projeto é o fato de que estas
mulheres protagonizam todos estes processos da luta antirracista enquanto mulheres e negras,
configurando demandas que pautavam a questão de raça e gênero na cidade de Florianópolis.
Ancorada em tais considerações, este artigo está organizado em dois momentos. No primeiro,
destaco as informações que fundamentaram a escrita do projeto de pesquisa, e no segundo aponto
algumas considerações da reformulação do projeto desde sua escrita até o presente momento.

1. Proposta inicial: luta antirracista, movimento de mulheres negras e feminismos.

Neste momento apresento os aspectos que fundamentaram o projeto inicial, vale


evidenciar que ele foi elaborado em conjunto, afirmo que nada seria possível se não tivesse o apoio
e inspirações que tive durante a escrita do mesmo. Conforme relatado anteriormente, a articulação
das organizações pelo combate ao racismo não são recentes, o movimento social negro se

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

destaca, no entanto, este “desconsiderava o machismo como peça na engrenagem da dominação


capitalista” (SILVA, 2008, p. 166) e então as mulheres se organizavam ainda mais para reivindicar
seus direitos enquanto mulher e negra, lutando contra violência racial e também de gênero, uma
das pioneiras desta reinvindicação é Lélia Gonzalez, mulher negra e militante do Movimento Negro
Unificado Brasileiro.
“Com grande apoio de outras mulheres importantes como Maria Beatriz Nascimento, Lélia
Gonzalez ainda protagonizou a luta contra o racismo e o sexismo, inserindo a problemática
da classe social. Um olhar feminista e antirracista apontou as nuances da diversidade das
mulheres negras como sexualidade, tons de pele, práticas culturais, nível de instrução,
entre outros. Foi justamente através destas particularidades que a complexidade do
ser mulher e negra, transformadas em pauta de luta e ação conjuntas, puderam ser
observadas.” (SANTOS, 2013, p. 1).

Diante disso, na década de 1980 diversas organizações de mulheres negras se espalharam


em algumas regiões do Brasil, como por exemplo, Aqualtune (RJ), Luiza Mahin (RJ), Grupo de
Mulheres Negras Rio de Janeiro (RJ), Nzinga (RJ), Centro de Mulheres Negras de Favelas e Periferia
(RJ), Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista (SP), Grupo de Mulheres Negras mãe
Andreza (Maranhão) e Grupo de Mulheres Negras do Calabar (Bahia), tais formações buscavam
especificar as particularidades das mulheres negras brasileiras.
Logo, houve a criação também de um movimento de mulheres negras na capital do estado
de Santa Catarina, neste contexto “deve-se ressaltar, sobremaneira, o papel protagonista das
mulheres negras, que, na maioria das vezes, estão à frente do processo organizativo do movimento
negro catarinense, em diferentes tempos e lugares” (LIMA, 2011, p. 219). Considerando assim,
que a configuração do movimento negro de Santa Catarina tem seu diferencial por ser conduzido,
em sua maioria, por mulheres negras. No entanto, é possível refletir que embora elas estejam à
frente do processo de organização destes espaços, ainda assim, se fez necessário a construção
de um movimento de mulheres negras.
“Segundo Sueli Carneiro (2003), a participação das mulheres negras nos movimentos
populares, movimentos negros e movimentos de mulheres, aumentou graças as avaliações
sobre gênero e discriminação racial desde a década de 1980. Os principais pontos críticos
sobre a agenda feminista foram com relação a sua participação no mercado de trabalho, a
violência, saúde, meios de comunicação e a promoção de novas agendas que pudessem
alavancar seu reconhecimento social e recobrir as muitas perdas já traçadas pela relação
de dominação.” (SANTOS, 2013, p. 1).

Portanto, uma das organizações formadas neste contexto em Florianópolis é a Associação


de Mulheres Negras Antonieta de Barros – AMAB, entidade da sociedade civil sem fins lucrativos,
cuja finalidade é organizar e realizar ações voltadas para a promoção da igualdade e, a valorização
da mulher negra, inspiradas nas ações da Professora e primeira Deputada do estado de Santa

Página 254
Catarina, Antonieta de Barros3.
Ao traçar a trajetória da AMAB foi possível identificar, através dos acervos pessoais cedidos
pelas fundadoras do grupo, que desde 1985 foram muitos encontros e debates que possibilitaram
a consolidação do ideal de luta para estas mulheres. No ano de 1988 são reconhecidas como
Mulheres Negras Nós atuando no centenário da abolição, tendo como envolvimento as concepções
sobre a condição da mulher negra desde o início da escravidão, bem como as mudanças ocorridas
durante o período de pós-abolição. E assim elas também buscavam visibilidade à luta das mulheres
negras no estado.
Na década de 1990 o grupo passou a se reconhecer como Grupo de Mulheres Negras Cor
de Nação que tinha como “consequência problematizar a especificidade da mulher negra, a partir
de uma trajetória política em que a ideia de organização se fazia necessária no estado” (LIMA,
2011, p. 220). Já no ano de 1999 assumiram a identidade de Antonieta de Barros e a organização
passou a ser chamada de Grupo de Mulheres Negras Antonieta de Barros. O grupo ainda tinha
como principal objetivo a valorização e reconhecimento da história da população negra, sobretudo
das mulheres negras em Santa Catarina.
Ao decorrer dos anos e a necessidade de um caráter jurídico, o grupo no dia 8 de março
de 2001 realizou uma Assembleia Geral que possibilitou a constituição da Associação Mulheres
Negras Antonieta de Barros- AMAB. Tendo como princípios até hoje defendidos, como por exemplo,
organizar ações voltadas para valorização da mulher e combate ao racismo e discriminações
raciais, dando visibilidade à história e memória de Antonieta de Barros.
Na medida em que focamos na AMAB, a prioridade na pesquisa do Trabalho de Conclusão
de Curso foi a busca pelo histórico da instituição, bem como a trajetória das fundadoras, a fim
de identificar qual importância de se fundamentarem “na luta travada pelas suas ancestrais que
através de seus cantos, danças, rezas, benzeduras e bandeiras de folias, resistiram ensinando a
arte de fazer e refazer a história e trajetória dos africanos trazidos para o Brasil” (AMAB, 2015, p.
1). Neste sentido, a Associação, para direcionar o caminho de onde provem suas forças, tem como
principal referência à figura de Antonieta de Barros.
Assim, ao ponto que o trabalho versou sobre os anseios de luta de mulheres negras na
cidade de Florianópolis e a importância do papel da Antonieta de Barros neste processo, surgiu
conforme relatado anteriormente, a questão do movimento negro, e a necessidade, a partir dele
da formação do movimento de mulheres negras em Santa Catarina, e também, o ponto principal
que fundamenta este projeto, o feminismo em vigência naquele momento, os seus impactos,
influências, e suas percepções sobre estas questões.
Diante disso, traz Silva e Canto (2013) ao destacar aspectos sobre a construção do

3 Nasceu em 11 de julho de 1901, em Florianópolis, órfã de pai, foi criada somente pela mãe, que a incentivou
a seguir a vida com muita dedicação e humildade. Aos cinco anos se alfabetizou e na medida em que foi crescendo
tinha o sonho de ser professora, mas suas condições financeiras não seriam possíveis se dedicar, teve que esperar
alguns anos. Em 1918 com 17 anos graças aos amigos e família conseguiu seguir seu sonho. Tornou-se professora,
jornalista, escritora, oradora e política (primeira deputada mulher negra de SC). E em 1952 a Antonieta de Barros
faleceu (JORNAL ANTONIETA DE BARROS, 2001). AMAB, Jornal Antonieta de Barros, Florianópolis, 2001.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

feminismo aponta que o mesmo se constituiu através de uma longa trajetória de lutas e resistências
das mulheres contra a condição de subalternidade que marca sua presença na sociedade ocidental.
Afirmam que “as três grandes ondas do feminismo foram importantes para a consolidação de uma
pauta abrangente e profundamente marcada pelas diversas correntes teóricas que influenciaram
e influenciam o movimento até os dias atuais.” (SILVA; CANTO, 2013, p. 2).
No entanto, segundo Krauss (2012, p. 14) no que se refere às mulheres, “é importante lembrar
que as historiadoras feministas pressionaram a revisão da escrita de uma História centrada na visão
de um sujeito universal, reelegendo as experiências de outros sujeitos- incluindo as mulheres- à
invisibilidade.”. Assim, as primeiras pesquisas desenvolvidas pelas feministas sintetizavam toda a
experiência feminina ao longo da História, “negando-se a incorporar a dimensão de raça, dessa
forma também contribuindo para a invisibilidade das mulheres negras” (BERRETO, 2005 apud
KRAUSS, 2012, p. 14).
Neste sentido, a luta para que fosse contemplada a História das mulheres, ainda seria a
respeito das mulheres brancas, invisibilizando as mulheres negras, posto que o feminismo tivesse
pautas que não articulavam com racismo e discriminações raciais, atribuições que eram –e ainda
são- consideradas obstáculos para as mulheres negras.

“Em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da sociedade brasileira,


o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica e
universalizante das mulheres. A consequência disso foi a incapacidade de reconhecer
as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito da identidade
biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres
vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no silêncio e na
invisibilidade.” (CARNEIRO, 2003, p. 118).

Ou seja, o movimento feminista e o movimento de mulheres negras aproximam-se no que


se refere às lutas pela emancipação das mulheres, mas se afastam no que se refere às prioridades
das agendas destes movimentos sociais. Neste sentido, o racismo é um componente importante
para a manutenção das desigualdades entre as relações intragênero. (SILVA; CANTO, 2013, p. 8).

As denúncias sobre essa dimensão da problemática da mulher na sociedade brasileira, que


é o silêncio sobre outras formas de opressão que não somente o sexismo, vêm exigindo
a reelaboração do discurso e práticas políticas do feminismo. E o elemento determinante
nessa alteração de perspectiva é o emergente movimento de mulheres negras sobre o
ideário e a prática política feminista no Brasil” (CARNEIRO, 2003, p. 118).

Desse modo, o reconhecimento da invisibilidade das particularidades das mulheres


negras, e assim, segundo Carneiro (2003), o enegrecimento do feminismo, possibilita assinalar a
identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, bem como “revelar a insuficiência

Página 256
teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em
sociedades multirraciais e pluriculturais.” (CARNEIRO, 2003, p. 118). Desse modo, a formação do
feminismo negro permitiu perseguir uma visão mais plural do debate de gênero e das perspectivas
de subordinação a que estavam submetidas mulheres negras. (SILVA; CANTO, 2013, p. 109). As
mulheres negras se articulavam, e ainda se articulam, de diferentes formas para apreender suas
pautas e protagonismo dentro dos movimentos.
Em Florianópolis, através de pesquisas realizadas, ao pensarmos na AMAB, as suas
fundadoras vivenciaram a construção de um movimento negro, tendo espaços e posições
fundamentais para que este movimento existisse na cidade, além de possibilitarem um
desdobramento no movimento de mulheres negras. Para esta pesquisa, vale identificar a
configuração enquanto mulheres negras na luta antirracista.
Portanto, aspecto que serve de respaldo para este projeto é o fato de que elas conduziram
todos estes processos da luta antirracista enquanto mulheres e negras, configurando demandas
que pautavam a questão de raça e gênero, surgindo uma possibilidade de um Proto-Feminismo
negro em Santa Catarina na segunda metade do século XX.

2. Proposta atual: universo cultural negro, trajetória pessoal e feminismo negro.

Neste momento destaco aspectos da pesquisa já em andamento. Após um semestre de


curso e orientações, ocorreram algumas reformulações no projeto, concluímos que a discussão
iniciará pelas mulheres negras de minha família. Pois sou mulher e negra, natural da cidade de
Florianópolis, bisneta, neta e filha de mulheres negras matriarcas de suas famílias, educadoras
e protagonistas de grandes histórias na cidade de Florianópolis. Estas protagonistas que
me inspiraram a fortalecer e dar visibilidade a história das mulheres negras catarinenses, me
antecederam e projetaram um mundo que hoje eu usufruo.
Diante disso, a pesquisa versará na busca pelos universos culturais negros em que estas
e as mulheres da AMAB estão inseridas na cidade de Florianópolis, sendo o contexto histórico do
negro e da negra no Brasil, em especial, as estratégias de lutas das mulheres negras. Além disso,
as fundadoras da AMAB se articulam enquanto movimento de mulheres desde a segunda metade
do século XX, suas pautas refletem a necessidade de dar visibilidade às particularidades e direitos
das mulheres negras. Ou seja,

“O Engajamento das mulheres negras nas lutas gerais dos movimentos populares e nas
empreendidas pelos Movimentos Negros e Movimentos de Mulheres nos planos nacional
e internacional, buscando assegurar neles a agenda específica das mulheres negras”
(CARNEIRO, 2003, p. 120).

Neste caso a discussão perpassa na identificação de que forma mulheres negras se


articulam na luta antirracista. Desse modo, através da leitura dos documentos de acervos

Página 257
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

pessoais e entrevistas a serem realizadas o foco permanece na identificação da compreensão das


fundadoras da Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros -AMAB sobre feminismo e de
que forma se configuram, enquanto mulheres negras, com pautas e ações destinadas às mulheres
negras, saúde e educação. Além deste viés, a discussão também será respaldada pela busca de
universos culturais das integrantes da AMAB e das mulheres negras da minha família, pois elas
cumpriram, e ainda cumprem, papeis fundamentais na cidade de Florianópolis.
O respaldo teórico consistirá nas produções que modificam as epistemologias dos estudos
sobre mulheres negras, como por exemplo, Joselina da Silva, Sueli Carneiro, Leila González,
Antonieta de Barros, Carolina Maria de Jesus, Luiza Bairros, Beatriz do Nascimento, Djamila Ribeiro,
Jurema Werneck, Cristiane Mare da Silva, Jarid Arraes, Cristiane Sobral, Stefanie Ribeiro, Angela
Davis, Chimamanda Adiche, Bell Hocks Alice Walker, Neli Góes, Altair Alves Lucio, Valdeonira dos
Anjos, Dona Uda Gonzaga, entre outras.
Portanto, levando em consideração sobre a necessidade das mulheres negras dentro dos
movimentos e principalmente a relação com o movimento feminista e feminismo negro, bem como
o papel das fundadoras da AMAB na luta antirracista ao tratarem da educação e da luta pelos
direitos das mulheres, sem se afirmarem feministas negras, surgiu as inquietações deste projeto
de pesquisa. Por fim, vale ressaltar que a pesquisa está em andamento e alguns aspectos serão
densamente trabalhados ao longo do processo, desse modo, os resultados estão em construção.
E seu título está: Feminismo Negro em Santa Catarina: Estudo do Ativismo de Mulheres Negras
na Luta Antirracista no Século XX. Eis o convite para reflexões e contribuições para esta pesquisa.

Conclusão
Na medida em que a pesquisa tem como perspectiva apreender os contextos históricos
de mulheres negras protagonistas deste estudo, pensando seus universos culturais e percepções
sobre os feminismos negro considero este artigo um indicativo para visibilidade da Associação de
Mulheres Negras Antonieta de Barros – AMAB e também das mulheres negras de minha família na
cidade de Florianópolis.
O contexto histórico vivenciado pelas mulheres negras em Florianópolis, em que a
sua condição de mulher, negra e majoritariamente vindas de situações sociais excludentes
as impedem de disfrutar formas de bem viver. As inquietações que configuram este projeto de
pesquisa são frutos da minha trajetória de vida, enquanto mulher negra buscando destacar o
movimento de mulheres negras e seu feminismo. Embora minha trajetória seja composta por uma
formação antirracista, inserida em um contexto familiar baseado nas culturas afro-brasileiras,
num determinado momento algumas lacunas surgiram, principalmente no que se refere às
especificidades das mulheres negras, tornando ainda mais forte o anseio de buscar suas histórias
em Florianópolis.
Dito isso, ao me aproximar dos estudos sobre as mulheres negras me vinculei a Associação
de Mulheres Negras Antonieta de Barros – AMAB umas das primeiras organizações que se intitulam

Página 258
ser formadas por mulheres negras, além das quatro principais fundadoras serem reconhecidas na
cidade de Florianópolis por seus trabalhos envolvendo educação, cultura e saúde da população
afro-brasileira, em prol de uma sociedade catarinense livre de racismo e discriminações.
Durante a pesquisa surgiu a questão do movimento negro, a necessidade, a partir dele
da formação do movimento de mulheres negras em Santa Catarina, e também, o ponto que
fundamentou este projeto é o feminismo em vigência naquele momento, os seus impactos,
influências, e o fato de se identificarem com o movimento feminista a partir de suas singularidades
históricas. Alguns aspectos defendidos pelas feministas brancas advêm da desconstrução e
estereótipos de fragilidade feminina, domesticadas e subalternidades. Defendiam também a
entrada ao mercado de trabalho e direito ao voto. Mulheres negras nem sempre compartilhavam
destas demandas, mesmo porque, seus contextos históricos são diferenciados.
E por fim, para respaldo da discussão, será necessário perceber os universos culturais
negros em que as mulheres da AMAB e da minha família estão inseridas na cidade. Muitos estudos
realizados em nosso estado, desconsideram, por exemplo, as experiências de Antonieta de Barros
como a primeira Deputada estadual do Brasil negra. Além da invisibilidade da história das próprias
integrantes da Associação ou outras mulheres negras do estado.
A historiografia catarinense, portanto, não discute as memórias, histórias, experiências e
universos das mulheres negras de Florianópolis. Neste sentido, temos desafios na luta antirracista
de modo a visibilizar estes aspectos, em especial, contribuindo para novas abordagens sobre a
presença Africana no sul do país, dialogando com um olhar mais atento às estratégias das mulheres
negras da diáspora. Desse modo, enquanto mulher negra e historiadora pretendo realizar uma
escrita sensível desta dissertação e que ela possa contribuir para as epistemologias dos estudos
sobre mulheres negras brasileiras.

Referências
SILVA, Michele Lopes da. Mulheres negras em movimento fazendo a diferença entre
diferentes. In: VI Congresso Português de Sociologia - Mundos Sociais: Saberes e Práticas, 2008,
Lisboa - Portugal. Mundos sociais: Saberes e Práticas. Lisboa - Portugal, 2008. v. 01. p. 160-183.

CARVALHO, Carol Lima de. Negras em movimento: Associação de Mulheres Negras Antonieta
de Barros Santa Catarina- AMAB (1985-2015). 2016. 70 f.

LIMA, Ivan Costa. Identidades negras em terras catarinas: mulheres negras, organização social e
educação. Cadernos do CEOM, Chapecó, v. 35, p.213-234, 2011.

SANTOS, Fabiana Gonçalves. Manifestos de Coletivos de Mulheres Negras Brasileiras: Uma


Discussão sobre Etnicidade e Gênero. Florianópolis: Anais do Evento Seminário Internacional
Fazendo Gênero 10, 2013. 12 p.

KRAUSS, Juliana de Souza. Clotildes Lalau: a trajetória da educadora e militante antirracista na


cidade de Criciúma (1957- 1987) 2012. 110 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade

Página 259
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.

SILVA, Caroline Fernanda Santos da; CANTO, Vanessa Santos do. Mulheres negras brasileiras e
a construção de identidades negras positivas: trajetórias e rupturas de um debate político. In: VI
Jornada Internacional de Políticas Públicas: o desenvolvimento da crise capitalista e a atualização
das lutas contra a exploração, a dominação e a humilhação, 2013, Maranhão. Anais... Maranhão:
Universidade Federal do Maranhão, 2013, p. 1 – 10

Página 260
EIXO 7: Religiosidades e identidades
negras

O objetivo deste eixo temático é discutir a temática das religiões de matriz


africana e afro-brasileira, no contexto nacional e internacional. Pretende-se
ampliar a multidisciplinaridade da temática a fim de priorizar os contextos
sociais, históricos e culturais, destacando as memórias das religiões, os direitos
humanos e a intolerância religiosa. Também serão acolhidos os trabalhos que
abordem a relação das religiões afro-brasileiras com o gênero, a tecnologia
africana, as políticas públicas, a saúde, o meio ambiente, a urbanização,
territorialidade e os terreiros de Candomblé.
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A RELIGIÃO DE MATRIZ AFRICANA NA FRONTEIRA-OESTE DO RIO


GRANDE DO SUL: IDENTIDADE E DIVERSIDADE

PAULO, Rafael Coutinho. (UNIPAMPA)


rafaelcpaulo@gmail.com
SILVEIRA, Paulo Roberto Cardoso da. (UNIPAMPA)
prcs1064@yahoo.com.br
FLORES, Norma Soares. (UNIPAMPA)
normaposgraduacao@gmail.com

Resumo

Este artigo busca apresentar a identidade e a diversidade da religião de matriz africana na região da
fronteira-oeste do estado do Rio Grande do Sul. Procura através de uma pesquisa exploratória encontrar
os elementos que constituem a identidade e a diversidade do Batuque, expressão mais africana das
religiões afro-brasileiras no sul do Brasil. Como instrumentos de coleta de dados usamos entrevistas
semi-estruturadas com zeladores de santo e revisão bibliográfica. Verificamos que o Batuque como
religião da qual emana uma cosmovisão africana pautada na mitologia dos orixás e na ancestralidade,
com suas diferentes nações, representa a identidade cultural de negros, negras, brancos e brancas da
periferia uruguaianense. Ao mesmo tempo, percebe-se uma diversidade nas formas de culto entre os
terreiros visitados, segundo as diferentes trajetórias percorridas por cada casa de religião.

Palavras-chave: Batuque. Identidade. Religião de Matriz Africana. Cultura Afro-brasileira

Página 262
Introdução

Este artigo tem como objeto de estudo o Batuque, religião de matriz africana cultuada
no Rio Grande do Sul, assentando-se em uma investigação que surge a partir de questões que
instigaram os autores em relação às características observadas na região da fronteira-oeste deste
estado: a quantidade expressiva de terreiros existentes na cidade de Uruguaiana (a mais populosa
da região), a história, a diversidade e a identidade do Batuque nesta região.
Trata-se de uma pesquisa exploratória que buscou através de entrevistas semi-estruturadas
com zeladores de santo, resgatar a história da constituição da religião de matriz africana em
Uruguaiana, enfocando a formação religiosa, o histórico das casas de religião e sua compreensão
do Batuque como manifestação religiosa e cultural. Para a escolha dos entrevistados considerou-
se a localização do terreiro, optando-se pela periferia1 e sua antiguidade. Complementa-se o
processo de análise de dados com a confrontação com a literatura existente.
Num primeiro momento, impressiona o número expressivo de terreiros em Uruguaiana,
cidade com população estimada em 129.720 (cento e vinte e nove mil e setecentos e vinte)
habitantes, no ano de 2016: constam registrados mais de 700 (setecentos) terreiros na Sociedade
Espiritualista de Umbanda de Uruguaiana – Aruanda2.
Percebe-se uma diferenciação entre as “casas de religião”, fato comum no Rio Grande do
Sul, conforme Correa (1992; 2005), pois existem casas que trabalham somente com a “Umbanda
branca”, onde se cultuam “caboclos” e “pretos-velhos” (espíritos de indígenas e ancestrais
africanos) e certos tipos de orixás; outras trabalham com a chamada Linha Cruzada, as quais
cultuam estes espíritos ancestrais, os Orixás do Batuque, além de Exu e Pomba-gira (entidades
cultuadas na Quimbanda); e o Batuque, a expressão mais africana, que cultua os orixás e cujos
rituais fazem referência à África e costumes africanos.
No caso de Uruguaiana, a maior parte dos terreiros se dedica somente a Umbanda, sendo
menor a presença do Batuque. No Rio Grande do Sul estimava-se em 2005 que haviam de 80 a
100 mil casas dedicadas ao culto, pelo menos, de uma destas três expressões: Batuque, Umbanda
e Quimbanda (CORREA, 2005).
Para este artigo, tomamos como objeto de estudo o Batuque, pois consideramos que por
sua raiz africana representa uma potencialidade de referência cultural para os afro-brasileiros.
Trata-se de um tema relevante, pois são poucos os estudos sobre o Batuque, se comparamos com
os estudos já realizados sobre religiões de matriz africana de outras regiões do Brasil.
No que se refere ao estudo do Batuque na região da fronteira-oeste do estado do Rio

1 Tenta-se desta forma inserir a investigação no contexto da periferia de Uruguaiana, permitindo considerarem-
se as relações vivenciadas nos terreiros entre seus participantes e as casas de religião, evitando a influência do
processo de elitização que ocorre nas casas de religião localizadas no centro da cidade, as quais tem maior aceitação
social.
2 Apesar de ter sido criada como forma de organização dos Umbandistas, esta sociedade tem buscado
congregar todos os terreiros, considerando que é comum a prática de cultuar-se a umbanda, ao mesmo tempo, que o
Batuque e a quimbanda.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Grande do Sul, até o presente momento não encontramos nenhum trabalho a respeito. Desta
forma, estamos iniciando um trabalho pioneiro que pode servir de instrumento para batuqueiros
e batuqueiras, negros e negras, brancos e brancas no combate ao preconceito e a intolerância
religiosa; e também possibilita contribuir com o conhecimento da história da religião de matriz
africana, sua diversidade e identidade nesta região sul-rio-grandense, o que permitirá a produção
de materiais para implantação da Lei Federal 10.639/03 nas escolas da rede pública de educação
básica de Uruguaiana3.

1. A constituição das religiões de matriz africana no Brasil

Ao adentrarmos no universo das religiões de matriz africana, percebe-se a grande


diversidade das formas de culto presentes, onde cada casa de religião assume uma tradição que
tem origem na formação obtida pelo(a) seu(sua) zelador(a) de santo4. Além do mais, além das
diversidades que se referem às nações de origem nas quais os zeladores de santo foram iniciados,
pequenas inovações vão sendo adotados pelos participantes de cada terreiro, podendo-se
gerar uma nação composta, por exemplo, Cabinda-Jeje ou Jeje-Ijexá, etc... Face a leitura de
obras a respeito das religiões de matriz africana em outros contextos geográficos, surgem novos
conhecimentos ou interpretações ritualísticas, tais como, a adoção de palavras em ioruba5 para
denominar atos ou símbolos pertinentes aos rituais.
Esta diversidade é explicada nos estudos sobre as religiões de matriz africana no Brasil
devido ao seu aprendizado ser baseado na oralidade, não havendo textos sagrados como em
outras religiões monoteístas, acrescido do fato que no Brasil as formas de culto foram remontadas
a partir de fragmentos de memória dos africanos escravizados, as quais ao decorrer do tempo
vão se diferenciando nos diversos lugares nos quais se praticam as religiões de matriz africana
(PRANDI, 2010).
No caso do Rio Grande do Sul, o Batuque é a forma de culto aos Orixás, diferenciando-se
do Candomblé cultuado na Bahia, do Tambor de Mina cultuado no Maranhão, do Xangô cultuado
em Pernambuco e outras formas de culto com referência na matriz africana existentes em outras
regiões do país.
Conforme relata ORO (2002, p. 349)

3 Este trabalho dialoga com duas monografias a serem desenvolvidas no curso de especialização em História
e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena da UNIPAMPA – Campus de Uruguaiana; e faz parte do esforço
conjunto dos NEABIs sediados nos campi de Itaqui e Uruguaiana no apoio a Coordenadoria Regional de Educação na
implantação da lei federal 10.639/03.
4 Utilizaremos neste artigo o termo zeladores de santo como substituto dos popularmente conhecidos Mães
de Santo e Pais de Santo, considerando a maior adequação diante do sentido de seu papel na estrutura religiosa do
Batuque, o qual pode ser definido com “zelar pelos santos” dos membros da comunidade do terreiro.
5 Língua africana utilizada para comunicação entre os negros trazidos para o Brasil oriundos de diferentes
regiões, a qual é utilizada nas religiões de matriz africana que cultuam os orixás.

Página 264
A estruturação do batuque no Rio Grande do Sul constitui outro tema que aguarda um
aprofundamento investigativo. Tudo indica que os primeiros terreiros foram fundados
justamente na região de Rio Grande e Pelotas. Para o historiador Marco Antônio Lirio de
Mello – que fez uma ampla pesquisa nos jornais de Pelotas e Rio Grande do século XIX – a
presença do batuque é atestada nesta região desde o início do século XIX (Mello, 1995).
Também Correa situa o período inicial do batuque nesta região entre os anos de 1833 e
1859.

A sua difusão pelo território gaúcho é acompanhada de um processo de diferenciação, onde


papel de destaque assumem as referências às diferentes nações africanas de onde provinham os
negros aqui aportados e que representavam determinadas características ritualísticas6.
A reconstrução da prática religiosa no tempo e no espaço, no caso do Batuque, conforme
aponta CORREA (2005), garantindo-lhe uma identidade própria, é percebida pela incorporação
nos alimentos oferecidos aos Orixás de pratos típicos da culinária gaúcha, portanto, criação local e
não derivada da origem africana.
Segundo CORREA (2005, p.73)
Da contribuição indígena, Ogum apropriou-se do churrasco (e com farinha de mandioca,
tal como é servido na mesa rio-grandense), sendo que a erva-mate é oferecida aos eguns.
A ‘batata-inglesa’, popularizada pela colônia alemã, é uma das comidas preferidas do
Bará, enquanto Oxum gosta da italiana polenta.

Quanto à contribuição portuguesa, os mesmos eguns gostam de arroz (cozido com


galinha). A Bará e Ossanhe se oferece também linguiça; e certos templos acrescentam
feijões pretos crus ao opete – um bolinho de batata cozida apreciado por Xangô.

Enfatiza CORREA (2005) que foi incorporado ao “universo da cozinha ritual batuqueira”
contribuições das principais etnias formadoras da sociedade sul-rio-grandense, conforme acima
exposto, demonstrando-se o caráter regional do Batuque em relação a outras religiões de matriz
africana.

2. Identidade e Diversidade

Ao mesmo tempo em que é marcada por uma grande diversidade nas formas de culto,
não se pode deixar de observar o papel da referência identitária que a religião de matriz africana
representa para o povo negro.
Assume-se, neste estudo, a hipótese levantada por PRANDI (2010) de que da cultura
africana o que se conservou no decorrer dos séculos foi a religião de matriz africana como referência
que mantém a ligação Brasil-África. Nos demais aspectos da cultura afro-brasileira observam-se
construções típicas do universo brasileiro, como os exemplos muito conhecidos da capoeira e do
samba, além da influência sobre estilos de dança ou percussão. No entanto, apesar de um apelo
a raiz africana, nestes exemplos percebe-se uma construção brasileira sem correspondência nas

6 No Rio Grande do Sul há referências às seguintes nações: Oió, Nagô, Cabinda, Jêje, Moçambique e Ijexá.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

manifestações existentes em África.


No caso da religião, a cosmovisão africana7, ligada à mitologia dos Orixás8, mesmo que
reconstruída historicamente e dentro de um processo cultural dinâmico associado às especificidades
regionais, consiste em aspecto fundamental de uma identidade afro-brasileira. Esta identidade
assume formas de expressão quando se busca a referência coletiva na denominação “povos de
terreiro”, a qual tem possibilitado muitas lutas no cenário político-social gaúcho.
Mas, se observa no universo pesquisado que nos cultos de religião de matriz africana
existe uma presença marcante de pessoas brancas ou pardas (ou seja, não-negros) e de variadas
classes sociais, mesmo que a predominância seja de moradores de periferia com menor condição
econômica (característica que parece ser compartilhada por outras regiões gaúchas).
Esta diversidade com a presença de não-negros, no entanto, não pode ocultar a referência
da cosmovisão africana que faz a prática religiosa significar um “lugar” no mundo capitalista e
cristão, dos quais se sentem excluídos. E para os negros representa uma referência cultural e
simbólica, uma possibilidade de uma identidade agregadora em torno de uma visão de mundo
diferenciada daquela professada pelos colonizadores do mundo ocidental. Possibilidade esta,
muitas vezes, fraudada pelos conflitos entre a comunidade religiosa, permeada por relações de
poder e interesses político-institucionais, calcados na referência da cultura dominante branca,
cristã e capitalista (ocidental).
As religiões de matriz africana em Uruguaiana são uma expressão da identidade de negros,
negras, brancos e brancas da periferia uruguaianense. Nestes espaços, eles e elas encontram uma
proteção espiritual (dos Orixás) e material (da família-de-santo) nos momentos de dificuldade. Os
terreiros são espaços de solidariedade. Como relatou um zelador de santo que trabalha com a
tradição da nação Oió: “Eu acho que religião é uma comunidade. É um por todos e todos por um”.
O Batuque começa a ser cultuado abertamente em Uruguaiana na década de 60 do século
XX. Relatam os batuqueiros que um pai-de-santo de outra cidade foi quem “abriu o peito”, ou
seja, quem tornou pública esta prática religiosa batuqueira, pois poderia ter outras pessoas que já
cultuassem os Orixás, mas que “não era divulgado”, que “se tinha era muito fechado, não se sabia”.
A partir de então, zeladores de santo iniciados em outras cidades começam a abrir suas
casas de Batuque nesta cidade. Os pioneiros foram iniciados em Porto Alegre, Santa Maria ou
Cacequi. Como relata uma zeladora de santo: “A religião vem descendo”, ou seja, vem vindo da
capital ou região central para a fronteira-oeste.
Quanto à diversidade batuqueira, encontramos em Uruguaiana representação das nações

7 Cosmovisão Africana: é uma forma de interpretação do mundo a partir de valores herdados de África, tais como,
culto aos orixás, respeito e valorização dos mais velhos, comunitarismo que é praticado por meio de compartilhamento
de riquezas ao invés de acúmulo de riquezas, valorização da oralidade que é a forma de transmissão do conhecimento
através das gerações.
8 Mitologia dos Orixás: conjunto de mitos, oriundos da região sudanesa de África Ocidental, mais
especificamente da cultura ioruba (que compreende vários povos de regiões das atuais Nigéria e Benin), que contam
histórias de aventuras e feitos dos diversos Orixás, pessoas que foram divinizadas e cultuadas em razão destes
grandes feitos realizados durante as suas vidas na Terra, que auxiliaram e foram muito benéficos para a vida dos
africanos.

Página 266
Oió, Jeje, Cabinda e Ijexá. A referência à nação Ijexá se encontra enquanto nação composta, tais
como, Jeje-Ijexá ou Cabinda-Jeje-Ijexá. Os entrevistados entendem que esta nação foi “absorvida”
pelas demais ou “que veio na raiz”.
Observa-se que em Uruguaiana a Identidade Batuqueira está marcada na cosmovisão
africana, na mitologia dos orixás e na ancestralidade9.
Como afirma CORREA (2006, p. 65), batuqueiros são “aqueles que, ou cumpriram pelo
menos iniciações rituais menores, ou frequentam mais regularmente os templos, sendo portadores
do ethos batuqueiro”. Este “ethos batuqueiro” é composto pelos orixás, pelos mitos, pelos ritos que
confirmam a identidade dos batuqueiros e das batuqueiras. Esta identidade que orienta o modo de
viver dos batuqueiros e das batuqueiras está fundamentada na herança tradicional africana.
Um filho-de-santo nos diz: “O todo é igual, a cultura ao Orixá, o corte, a galinha, o quatro pé,
o cabrito, o carneiro é igual. Isso não diferencia”. Também percebemos que os cânticos e as danças
são iguais e que pertencem a tradição iorubá.
Segundo MUNANGA (2009, p. 12),
“a consciência histórica é mais forte nas comunidades de base religiosa, por exemplo,
nos terreiros de candomblé, graças justamente aos mitos de origem ou de fundação
conservados pela oralidade e atualizados através de ritos e outras práticas religiosas”.

Além disso, a ancestralidade é presente na formação do batuqueiro, pois quando


entrevistados, sempre fazem referência ao seu “pai ou mãe-de-santo”, “avô ou avó-de-santo” e,
inclusive, “bisavó-de-santo”. Isto confere características ao Batuque no tocante a estabelecer-
se uma linhagem, uma referência a uma tradição que conforma um conjunto de fundamentos e
procedimentos, específicos a cada casa de religião. As seguintes falas expressam um respeito
e zelo com o que aprenderam e como aprenderam: “Eu tenho uma sequencia que a Baba10 me
deixou, que é o fundamento”; ou “Eu faço o que eu aprendi, não faço nada diferente”.
A diversidade representada nas diversas nações, além da referência à nação da qual
deriva a tradição referenciada pelos zeladores de santo, se verifica em procedimentos ritualísticos,
palavras de reza, orixás cultuados.
Um filho-de-santo explica:
O que diferencia são alguns detalhes, por exemplo, para nós, que somos de Oió, nós temos
algumas diferenças em termos de Batuque, da festa: é o toque do tambor, algumas rezas
que nós cultuamos e outras nações cultuam, a parte da ordem, o culto aos orixás, comidas.
Por exemplo: nós não damos pipoca pra Xapanã, mas o Jeje e o Cabinda dão pipoca.

Interessante também um diálogo observado numa entrevista na qual estavam presentes


um(a) zelador(a) de santo da nação Oió e um(a) zelador(a) de santo da nação Cabinda. Neste
diálogo o (a) zelador(a) de santo da nação Cabinda perguntou ao (a) da nação Oió se eles cultuavam

9 Ancestralidade: respeito e valorização das pessoas mais velhas e referência à sabedoria antiga herdada de
África que veio para o Brasil juntamente com os africanos e africanas escravizados e transmitidos de geração em
geração de forma oral.
10 Zelador-de-santo, pai-de-santo.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Kamuká, na qual ele (ela) respondeu que não, que aquele era de outro lado e que não fazia parte
da nação Oió. Neste exemplo, percebemos um pouco da diversidade existente dentro do batuque
gaúcho, pois Kamuká, ou melhor Xangô Kamuká, é um orixá próprio da nação Cabinda.
Numa entrevista um zelador de santo da nação Oió nos fala da ordem de culto dos orixás
nas festas de batuque, relatando que primeiro é cantado para os orixás masculinos e depois para
os orixás femininos, terminando com Obatalá. Característica não compartilhada por outras nações
ou “lados” como os batuqueiros e batuqueiras chamam as diferentes tradições referenciadas. Na
tradição Oió, praticada nesta casa, são chamados os Orixás nesta ordem: Bará, Ogum, Xapanã,
Ossanha, Odé, Oromilá, Ibocum e Xangô, depois Iá Iemojá, Obá, Otim, Ewá, Oxum, Oiá e Oxalá.
A identidade de cada nação possui uma referência a um precursor ou precursora da tradição.
CORREA (2005) relata, por exemplo, que para a nação Jexá (Ijexá) o primeiro zelador-de-santo
teria sido Cudjobá; que Mãe Emília de Oiá Dirã, africana, teria levado a tradição Oió para a capital
gaúcha; que Gululu, também africano, teria levado a nação Cambíni (Cabinda) para Porto Alegre;
além do conhecido Princípe Custódio na tradição jeje, influente na política gaúcha de seu tempo.

3. O Batuque como Referência Cultural

A cultura dominante no Brasil, fortemente influenciada por valores cristãos e com influência
européia, tem sido prenhe de preconceito e discriminação diante das religiões de matriz africana, o
que tem gerado historicamente comportamentos intolerantes, fazendo que este universo religioso
continue no “subterrâneo” da sociedade gaúcha, conforme afirma Correa (2005) em relação ao
Batuque. Deve-se também perceber que a procura cada vez maior de brancos, muitas vezes com
maior formação escolar e melhor condição de renda, relaciona-se com a busca do poder dos
Orixás em favor da superação de problemas de saúde, emocionais e/ou na busca de sucesso
profissional (CORREA, 1992).
Esta busca não significa que o universo das religiões de matriz africana afasta-se da
cosmovisão africana, mas ao contrário, representa a aproximação de não-negros desta cosmovisão.
No entanto, o nível de implicação desta referência na cosmovisão africana no agir de cada grupo
social pode variar intensamente, sendo para uns apenas um socorro em momentos difíceis e para
outros a referência para seu posicionamento social e cultural.

Conclusão

Neste estudo, tomamos como objeto o Batuque, pois consideramos que por sua raiz
africana representa uma possibilidade de referência cultural para os afro-brasileiros, enquanto a
Umbanda e a Quimbanda incorporam outras referências culturais.

Página 268
Buscou-se apresentar aqui uma reflexão a partir de pesquisa exploratória realizada junto
às casas de religião de matriz africana em Uruguaiana, onde se buscou através de entrevistas
semiestruturadas resgatar a história de sua constituição, enfocando a formação religiosa do(a)
“chefe de terreiro”, sua compreensão do batuque como manifestação religiosa e cultural.
Buscou-se explorar a diversidade de culto, através de um quadro de representações sobre
elementos da religião de matriz africana. Apresenta-se de forma inicial uma reflexão sobre a
identidade na diversidade como fundamento de ligação entre os(as) praticantes do batuque.
A identidade batuqueira ficou muito bem marcada nas entrevistas realizadas, pois o
conjunto de valores, símbolos e rituais (ainda que tenha a presença de leves diferenças) faz com
que as batuqueiras e batuqueiros da fronteira-oeste se reconhecem como tal, comungando de
uma ancestralidade cuja origem remonta a África e cujo conhecimento transmite valores, modos
de ser e de viver orientados por costumes africanos.
Ainda há muito que se investigar, nossa pesquisa está no seu início, mas consideramos que
se trata de um trabalho de muita relevância, considerando que irá se somar aos poucos trabalhos
existentes sobre o Batuque do Rio Grande do Sul, além de ser pioneiro no que se refere a esta
religião de matriz africana na região da fronteira-oeste deste estado brasileiro.
Considerando que as religiões de matriz africana sofrem ações preconceituosas e de
intolerância religiosa em todas as regiões do nosso país no qual são cultuadas, esperamos que
este trabalho contribua como material para instrumentalizar as pessoas para o combate desta
situação. Estudar e dar visibilidade às religiões de matriz africana contribui para que se conheça a
sua história e quais elementos marcam a sua diversidade e sua identidade, valorizando a riqueza e
beleza desta herança cultural e religiosa trazida, na diáspora, na memória de africanos e africanas
escravizados.

Referências

CORREA, Norton. Olhares antropológicos sobre a alimentação : A cozinha é a base da religião:


a culinária ritual no batuque do rio grande do sul; Em: CANESQUI, AM.; GARCIA, R.W.D.; (orgs.)
Antropologia e nutrição: um diálogo possível; Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. 306.

CORRÊA, Norton. O Batuque do Rio Grande do Sul. São Luís, Cultura & Arte, 2006.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentido. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
ORO, Ari. Religiões Afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente. In Estudos Afro-
Asiáticos, Ano 24, nº 2, 2002, pp. 345-384.

PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiros:etnia,identidade,religião. Em: PEREIRA, E.A. de;


DALBERT JR, R. Depois, o Atlântico, Juiz de Fora-MG, Ed. UFJF, 2010.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A VIDA COMUNITÁRIA DA BENZEDEIRA NEGRA DONA SANTA: REDES DE


SOLIDARIEDADE NA REGIÃO DA CAMPANHA DO RS

JACINTO, Luis César Rodrigues. (SEDUC)


jacintokilombobage@yahoo.com.br
VOSS, Dulce Mari da Silva. (UNIPAMPA)
dulce.voss@unipampa.edu.br

Resumo

Este artigo foi elaborado a partir da Monografia de Conclusão do Curso de Especialização em


Educação e Diversidade Cultural da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), a qual aborda
a vida comunitária de uma mulher negra benzedeira na região da Campanha Gaúcha (RS), Dona
Santa. O interesse em analisar esta temática surgiu da minha própria trajetória como militante
do Movimento Social Negro e do desejo de poder colaborar para a compreensão da diversidade
cultural neste contexto em que ainda predomina valores culturais heteronormativos e excludentes,
especialmente, em relação às questões étnico-raciais. Através da metodologia da História
Oral, pesquisou-se a vida comunitária de Dona Santa a partir de materiais escritos e de relatos
de três mulheres que com ela conviveram. Com base nos estudos culturais e nas teorias pós-
estruturalistas, analisou-se a complexidade das relações sociais e os modos como identidades
e diferenças culturais são produzidas em âmbito local. Concluiu-se que a vida comunitária de
Dona Santa representa uma experiência rica de hibridização cultural manifestada através das
suas práticas religiosas de rezas e benzeduras e da realização da Festa Popular de São Cosme e
São Damião que contribuem para a constituição de uma cultura afro-brasileira local. Entendeu-
se que o maior legado de Dona Santa está na rede de relações comunitárias solidárias que
constituiu durante toda sua trajetória de vida e nas práticas religiosas que desenvolveu, as quais
revelam um misto de elementos culturais diversos e ao mesmo tempo conservam marcas da
tradição popular, cuja potencialidade está na resistência ao padrão normativo da ordem biopolítica
moderna.

Palavras-chave: Cultura Afro-brasileira. Mulher Negra. Religiosidade. Vida Comunitária.

Página 270
Introdução

O Curso de Especialização em Educação e Diversidade Cultural da Universidade Federal do


Pampa (Campus Bagé) permitiram aprofundar meus estudos sobre o tema cultura africana e afro-
brasileira. Ao conhecer as vertentes teóricas dos Estudos Culturais e Pós-estruturalistas1, muitas
inquietações surgiram nas formas de entender e construir minhas práticas como pesquisador,
educador e militante negro.
Com as leituras e análises de teóricos como Foucault (1996; 2008), Hall (1997; 2003),
Silva (2007; 2014), entendi que a modernidade sustenta-se na concepção iluminista de existência
de um sujeito centrado, autônomo, revolucionário, e que essa fundamenta a atuação da militância
social numa perspectiva marxista. Entendi que esta concepção universalista da existência da
humanidade da modernidade é problematizada pelos Estudos culturais e Pós-estruturalistas,
percebendo-se que cada sujeito é complexo, contraditório e múltiplo, pois, as identidades culturais
são produzidas historicamente nas relações sociais, ou seja, são contingentes e provisórias.
Com base nestas teorias, realizei um estudo de caso sobre a vida comunitária de Dona
Santa, Alexandrina Penha da Conceição, nascida em 25 de junho de 1910 e falecida em 09 de junho
de 1994, que residiu em dois bairros da cidade Bagé (RS), primeiramente na Vila Gaúcha e depois
no Passo do Príncipe. Casou-se com treze anos e teve 10 filhos, 41 netos, mais de 112 bisnetos
e dezenas de tataranetos. Era chamada de Dona Santa pelas pessoas dessas comunidades por
suas práticas de benzedura que, segundo testemunhas vivas, era capaz de curar muitos enfermos.
Ficou viúva jovem e com a ajuda dos filhos mais velhos criou ainda quatro netos de uma das suas
filhas que faleceu ainda muito jovem. Era devota de São Cosme e São Damião que, segundo o
catolicismo, são santos protetores das crianças. Daí o envolvimento de Dona Santa por cerca de
60 anos na realização da Festa Popular que homenageia essas divindades, as quais são realizadas
anualmente no dia 27 de setembro.
Portanto, nesse artigo trago as análises feitas sobre a vida comunitária de Dona Santa com

1 Para o Pós-estruturalismo, ao contrário do Estruturalismo, não há fixidez na linguagem, os significados são


incertos, inconstantes, fluídos. Foucault contribui sobremaneira nos estudos pós-estruturalistas com sua análise de
poder que, em oposição ao marxismo, passa a ser não algo que pertence á alguém ou a alguma entidade universal
como o estado burguês,mas como aquilo que transita entre os sujeitos e as instituições, como móvel e fluído, produzido
nas relações sociais e que produz também certos discursos, saberes legítimos, que passam a funcionar como regimes
de verdade. As relações de poder e saber definem quem é o sujeito (o louco, o prisioneiro, o homossexual, etc). As
identidades são, portanto, produzidas, a partir dos aparatos discursivos e dos dispositivos de poder postos em
funcionamento nas relações sociais (SILVA, 2007).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

base numa Pesquisa Oral2 e Documental3, cujos instrumentos de coleta de dados foram entrevistas
com três mulheres que conviveram com Dona Santa e registros escritos da sua atuação comunitária
como benzedeira. O objetivo central da pesquisa foi analisar a vida comunitária de uma mulher
negra e suas práticas cotidianas de rezas e benzeduras e analisar como estes saberes e fazeres
produziram a hibridização de elementos culturais diversos na constituição de uma cultura afro-
brasileira local.
Conclui que os saberes e fazeres de Dona Santa produzem uma cultura afro-brasileira
híbrida que marca a vida comunitária local. As rezas e benzeduras de Dona Santa são reconhecidas
4

e preservadas nas comunidades locais até os nossos dias e evidenciam a produção de uma cultura
afro-brasileira local híbrida.
Considero que o estudo feito contribui para conhecer a atuação de mulheres negras na
vida comunitária da região da campanha gaúcha, ampliando as possibilidades de promover
relações e práticas de convivência social sem preconceitos ou discriminações numa perspectiva
de reconhecimento dos processos multiculturais pelos quais se produzem relações sociais e
humanas.

Rezas e Benzeduras de Dona Santa: medicina popular e religiosidade afro-brasileira

Lançando mão da História Oral, realizei entrevistas com três mulheres que conviveram com
Dona Santa: a professora Tânia Maria Gonçalves Silva, que morou com a pesquisada e, depois
de adulta, continuou levando seus filhos e netos para serem benzidos por ela, Heloísa Conceição
Freitas, filha de Dona Santa e que viveu com ela até a sua morte e a neta Estela Mara Machado
Pereira, que seguiu o legado da avó nas benzeduras e na organização da Festa de São Cosme e
Damião.
Entendo que as rezas e benzeduras feitas por Dona Santa fortalecem a religiosidade afro-
brasileira como práticas culturais de origem africana. Estela, neta de Dona Santa, relatou como
iniciaram as práticas de benzedura da avó:
A Dona Santa, minha avó, ela trabalhava desde a idade dos 11 anos. Ela tava sentada numa
mesa e de repente se manifestou esse líder espiritual dela que foi João de Oliveira. Desde

2 A História Oral estabelece a compreensão de fatos referentes a vidas comuns e que propiciaram um
aprendizado, mas não estão presentes nem na formalidade e nem na escrita. É feita a partir de narrativas, num
entrelaçamento entre sujeito entrevistador e sujeito entrevistado onde a aproximação entre estes dois pode gerar
um material de excelente qualidade, com depoimentos que podem trazer a tona preciosas informações acerca de
trajetórias de vidas individuais ou comunitárias. O testemunho oral é tão original que a mesma fonte não consegue
repetir a mesma entrevista em outras ocasiões, cada momento contará fatos de forma diferenciada ou lembrará novas
situações não informadas em outras oportunidades (PORTELLI, 1997)
3 Na pesquisa foram analisados os documentos: certificado e anais de sessão solene realizada pela Câmara
Municipal em 24 de junho de 2010, textos de encartes e a sinopse do enredo do bloco carnavalesco Unidos da
Stangucha que apresentou o título “Uma Saga de Fé e Devoção, a história de Alexandrina Penha da Conceição, Dona
Santa” no carnaval de 2007, na cidade de Bagé (RS).
4 Segundo Canclini (1998), na América Latina, há uma longa história de construção de uma cultura híbrida na
qual a modernidade é sinônimo de pluralidade, mesclando relações entre hegemônicos e subalternos, tradicional e
moderno, culto, popular e massivo.

Página 272
os 11 anos ela já começou a fazer cura, ela começou a benzer de sapo, quebranto, e aí
começou todas essas benzeduras.

Segundo a professora Tânia, Dona Santa acolhia a todos que necessitavam de sua ajuda,
atendendo os enfermos com suas rezas e benzeduras:
Ela benzia para qualquer dor que sentíamos. Ela quebrava empate. Ela dizia tá empachado,
já saia com chá na mão, eram três dias de benzedura e a gente ficava bem. Benzia do
empate, do quebrante, cobreiro, sapinho, todas essas doenças eram benzidas. Ela tinha
vários dons, ela dizia que eles surgiram quando era muito nova próximo dos 15 anos. Ela
casou com 12 anos. Ela benzia passando os braços na gente no corpo da gente, mandando
virar as costas. Utilizava bastante a tesoura. Não tinha o que ela não benzia, ela nunca
cobrou um centavo, ela benzia de ramo verde e o quebrante com brasa, copo com água e
tesoura. Ela também benzia rendidura, chegando lá pedia um paninho novo ás vezes ela
tinha, mas pedia um terço de linha e uma agulha. Várias vezes eu fui lá benzer rendidura, a
citação era esta: “o que costura ela perguntava e a gente respondia: nervo rendido; o que
costuro? Carne quebrada, era benzida durante três dias, mas se fossem mais graves eram
9 dias.

A professora Tânia destacou ainda que o reconhecimento do trabalho de rezas e benzeduras


de Dona Santa alcançou pessoas de outras localidades:
As pessoas vinham de outros lugares, de Montevideo, por exemplo, em excursões.
As pessoas tinham fé, nada ela cobrava. Se quisessem fazer uma doação. Ela aceitava
pessoas de vários lugares, cedo já estavam na frente esperando e ela não tinha dia, nem
hora; cedo ela já estava atendendo as pessoas. Ela tinha uma casinha ao lado da dela, uma
entrada para sala, tipo sala de espera, e depois outra sala onde ficava o altar dela, esta
parte era fechadinho somente ela entrava ali. As pessoas eram chamadas por ordem de
chegada, nós que éramos vizinhos era indiferente, sempre que chegávamos ela atendia.
Ela foi e continua sendo um exemplo pra todos nós,foi uma mulher de fibra, não fazia
distinção com ninguém e o que ela tinha dividia com a gente

A filha de Dona Santa, Heloísa, afirmou que sua mãe não frequentou e não possuía terreiro,
apenas o dom de receber este guia espiritual, que se apresentava como João de Oliveira, uma
entidade da falange dos Pretos Velhos, que confortava as pessoas com o Passe:
A minha mãe não tinha terreira e também nunca foi a uma, ela simplesmente começou a
trabalhar, aquilo veio para fazer a cura, tudo ela benzia e dava passe também. Foi assim e
aquilo veio para ela para fazer a cura, aquele milagre. O protetor que ela trabalhava era o
Preto Velho João de Oliveira, incorporava, sabe.

Embora os relatos das entrevistadas não tenham indicado uma presença de Dona Santa nos
terreiros, suas práticas de rezas e benzeduras com a incorporação da entidade espiritual do Preto
Velho João de Oliveira, constitui uma atuação religiosa híbrida que mescla elementos culturais
provenientes do catolicismo, dos rituais indígenas, africanos e do espiritismo. Essa religiosidade
se manifesta de forma hibrida também em razão de Dona Santa realizar as práticas de benzedura
e rezas concomitantemente com o culto aos santos católicos São Cosme e Damião.
Segundo Oro (2002) a religiosidade afro-brasileira constitui-se da hibridização de

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

diferentes culturas étnico-raciais e, na contemporaneidade, tem sido praticada tanto por negros e
brancos favorecendo inúmeras trocas culturais entre sujeitos de camadas sociais distintas. Essas
interações aumentaram a partir das primeiras décadas do século XX e se consolidaram a partir
da segunda metade do mesmo século, quando há notícias de brancos que ocupam a condição
de Pais e Mães de Santo. Contudo, essas relações interculturais nem sempre são harmônicas,
havendo disputas identitárias e discordâncias quanto à presença de diferentes etnias, raças
e classes sociais nos terreiros e nas práticas religiosas afro-brasileiras, o que, para algumas
lideranças religiosas e membros de terreiros, é um fator de sustentação financeira necessário, já
que os brancos de classe média e alta, geralmente, recompensam monetariamente os serviços
espirituais prestados.
Considero que as rezas e benzeduras populares, assim como outros rituais religiosos de
origem africana, criam formas de resistência ao discurso instituído pela medicina moderna Com
isso, as disputas interculturais também refletem as relações de poder e a resistência entre discursos
e práticas que disputam legitimidade nas sociedades contemporâneas.
As práticas de benzeduras de Dona Santa eram “aceitas” no contexto das práticas
medicinais científicas, já que, conforme Heloísa, sua mãe tinha acesso livre aos hospitais para
benzer os pacientes. Heloísa contou ainda sobre a cura que ocorreu com uma prima, o que
demonstra a confiança depositada pelas pessoas nas rezas e benzeduras de Dona Santa:
A Terezinha era uma prima dela e estava desenganada pelos médicos e ela foi para Porto
Alegre no hospital e lá os médicos ninguém achava a doença dela. o que menina tinha era
nos intestinos, mas ela não aparecia, sabe com que ela curou? o Senhor não imagina, como
ela curou! Com uma cebola picada colocada no sereno e este caldo que saía dali, ela dava
para pessoa tomar, o suco, com aquilo era curou uma pessoa que estava desenganada,
Taí elas estão vivas e estão aí para contar, a Terezinha pode até o senhor falar com ela, que
vai lhe contar a história.

Portanto, as práticas de rezas e benzeduras de Dona Santa recorriam a uma medicina de


cunho popular. Conforme Camargo (2012) a medicina popular fundamenta seus conhecimentos
no saber empírico, articulando idéias contidas no consciente coletivo e no contexto sociocultural
e produzindo significados que mantêm vínculo com doutrinas e manifestações de cunho religioso
de distintas origens. Assim, a medicina popular articula o sagrado e o conhecimento científico,
especialmente o farmacobotânico, à medida que envolve o uso de ervas medicinais num universo
mágico religioso, o qual é transmitido, preferencialmente, pela oralidade. A medicina sacralizada
toma o sujeito na sua totalidade, não dissociando corpo, mente e espírito para a cura dos seus
males, e vem sendo praticada no contexto brasileiro, desde o século XVI, graças às tradições
herdadas das culturas portuguesa, indígena e africana, mantendo-se presentes nas culturas
populares contemporâneas que preservam certos traços tradicionais.
É a espiritualidade, todavia, que confere à medicina popular, seu caráter sacral, condição
que faz alimentar no homem e no grupo social ao qual pertence, a crença nos poderes
sobrenaturais dos curadores de diagnosticar doenças, determinar etiologias e de indicar
terapias, às quais se admite de eficácia garantida (CAMARGO, 2012, p.02)

Página 274
A autora explica que, toda prática terapêutica é geralmente sintomática e constituí-se de
elementos imateriais como: passes, bênçãos, rezas, transe, música, canto, etc. e materiais como:
terços, cabaças, plantas medicinais, bebidas rituais, instrumentos musicais entre outros objetos
de culto para a solução de problemas que envolvem a totalidade do sujeito: mente, corpo e espírito
(CAMARGO, 2012).

Redes de Solidariedade: espaços/tempos públicos e privados que entrelaçam o sagrado


e o profano
A vida comunitária de Dona Santa é reconhecida por distintos segmentos da comunidade
bageense. Já na primeira entrevista realizada com a professora Tânia ficou evidente os fortes laços
afetivos com Dona Santa, quando relatou:
Sempre ouvia falar da Dona Santa, a Vó Santa. Meu pai ficou órfão muito cedo, ele e seus
doze irmãos. Ela cuidava deles. Ele tinha muito respeito e dizia que era ela era uma mãe
para ele e os irmãos, trocava até as nossas fraldas e a gente se sentia como se fosse nossa
vó.

Outro dado da vida comunitária de Dona Santa surgiu na pesquisa quando a professora
Tânia relatou o seu envolvimento com os torneios de futebol amador do seu bairro:
Lá no Passo do Príncipe, quando a gente era criança existiam dois times de futebol que
eram o Gaúcho e o Brasília jogavam no campo do tiro. A dona Santa ia os domingos c/ toda
a família dela para o jogo e mais a vizinhança. Ela levava balaios de quitutes, era tipo uma
malinha fechada de vime, ali tinha tudo que era coisa boa. Pastel, linguiça com farinha,
galinha enfarofada, aquela merenda. Ela era a madrinha do time. Naquela época o refresco
era um luxo. A gente passava todo o dia no jogo. Quando terminava aquele lanche ela
mandava buscar mais em casa. Pastel. A gente passava o dia todo comendo e bebendo
na volta da dona santa. O dia 1º de maio era o aniversário do Brasília e o meu pai jogava no
Brasília e a dona santa tinha os filhos que jogavam no Gaúcho e outros no Brasília. Esse dia
costumava se repetir, já não era mais próximo da escola Tupy Silveira. A festa começava de
manhã , tinha churrasco e era regada a refresco todo dia, comendo carne assada, salada, a
gente não levava nada. Ela que levava tudo e faziam aquele churrasco no chão. Tudo que
era coisa boa até terminar o jogo, arrumavam umas barracas por causa do sol e ficávamos
embaixo”

A filha Heloísa confirmou os relatos da Professora Tânia quanto à vida comunitária de Dona
Santa, na qual se entrelaçam o público e o privado a ponto de se confundirem esses espaços/
tempos que mesclam práticas cotidianas, sociais e culturais:
Sempre acompanhei a minha mãe, a pessoa que sempre morou junto com ela, até ela
falecer. Só separamos quando ela faleceu. A gente ia pra campanha naqueles carretões de
boi essas partes todas a gente andava, que tinha antigamente, abatíamos bois, ovelhas,
peru, se fazia lingüiça, muito pão feito em casa, bolos, essas coisas todas, quando tinha
festa de aniversário dela durava dois, três dias, ela gostava muito de festa. E a minha mãe,
não por ser minha mãe, era uma pessoa assim , que todo mundo queria muito bem ela,
porque ela servia todo mundo bem”.

Todas as entrevistadas afirmam que Dona Santa era cordial e solidária com todos que a

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

procuravam, transformando sua casa num espaço aberto e acolhedor. Conforme texto produzido
pelos familiares no centenário de vida de Dona Santa, no ano de 2008, foi criado um espaço
cultural batizado com seu nome localizado na Rua do Acampamento e mantido pela neta Estela
Mara Machado Pereira. Esse espaço oferece acesso à leitura e a rede mundial de computadores, o
que mostra o desejo de manter viva sua memória e continuar suas ações comunitárias.
A vida comunitária de Dona Santa foi também reconhecida pela Câmara Municipal mediante
uma sessão solene em 2010, quando foi entregue aos familiares um certificado que descreve
Dona Santa como: “[...] uma mulher que se tornou ao longo de sua existência uma referência de
esperança, consolo e solução para problemas que a força da sua fé e do seu espírito conseguiam
resolver” (Câmara Municipal de Bagé, 2010).
Também no discurso proferido pela vereadora proponente da homenagem, Dona Santa
é identificada como: “[...] Uma mulher que fez muita caridade, centenas de curas através de
benzeduras e medicina caseira”. Em outro fragmento desse discurso afirma-se: “[...] Dona Santa,
embora sendo de outra religião, respeitava muito a religião católica” (Câmara Municipal de Bagé,
2010).
Desse modo, percebo que no espaço público do Poder Legislativo Municipal, onde se
estabelece o discurso político institucionalizado, Dona Santa é reconhecida enquanto mulher,
líder comunitária e praticante de benzeduras de cunho popular. No entanto, nestes discursos a
relação étnico-racial é negada/ocultada, revelando um certo branqueamento nesta prática de
reconhecimento social. Essa interdição do discurso revela o não-dito como elemento que confirma
a influência que o discurso sofre dependendo do lugar onde é proferido, pois:
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O
mais evidente o mais familiar é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de
dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um
enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito
privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala (FOUCAULT, 1996, p.9).

No discurso do Bloco Carnavalesco Unidos da Stangucha, também se constitui uma


identidade de Dona Santa enquanto mulher, líder comunitária e benzendeira, mas, na sinopse de
organização do desfile, acrescenta-se: “Tributo aos Orixás através das suas cores” (caracterização
atribuída à Comissão-de-Frente) e a “Ala dos Pretos Velhos”. No Samba-de-Enredo aparece
trechos da benzedura: “É sapo sapão, é sapo carvão que morra esse bichinho de toda geração”,
associado a outro verso que referencia uma reza de terreiro de Umbanda: “ São Cosme e Damião
a tua casa cheira, cheira cravo e rosa, cheira a flor de laranjeira” ( Bloco Carnavalesco Unidos da
Stangucha, 2007).
O carnaval teve origem no sagrado (religião católica), mas tornou-se profano ao ser
popularizado e, embora tenha sido transformado em atração turística que movimenta capital
econômico, ainda hoje muitos blocos carnavalescos de pequenas cidades preservam marcas de
uma festa popular.
No discurso do Bloco Carnavalesco Unidos da Stangucha se reconhece o pertencimento

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de Dona Santa à cultura afro-brasileira e sua negritude. Com isso, confirma-se que na produção
discursiva o sujeito é atravessado pelo lugar que ocupa e as identidades e diferenças constituem-
se a partir de quem narra o outro (SILVA, 2014).
Quanto à Festa Popular de São Cosme e Damião, conforme o encarte produzido pela família
sobre Dona Santa, em 2010, a devoção aos santos gêmeos católicos começou com a promessa
de homenagear essas divindades como reconhecimento pela ajuda em criar os filhos e os netos.
Nas palavras da professora Tânia ficou evidente a importância social e comunitária da
Festa Popular de São Cosme e Damião realizada por Dona Santa naquela localidade de moradores
pobres, sendo que, muitas vezes, era a única festa para as crianças que lá viviam:
Na época a maioria das crianças eram pobres e não tinham bolo no seu aniversário, pois
as famílias eram muito numerosas, então aquela era a festa de todos, com bolo á vontade,
tomavam sucos, salgados e depois vinha o que mais gostávamos, que era a distribuição
de balas, então a gente corria para pegá-las e voltava para casa com as mãos cheias de
balas. Isso era para todo mundo, sempre foi assim. [...] a Festa de São Cosme e Damião,
neste dia eu não ia para escola dar aula, porque os meus filhos não admitiam que eu não
estivesse na festa, eu continuava sentindo prazer. No tempo da Dona Santa a festa durava
bastante tempo, tinha sábado e domingo. Era muita fartura e o que sobrava era dividido
com as pessoas presentes na festa, que levavam para a casa.

A filha de Dona Santa também fala sobre a Festa de São Cosme e Damião que continua
sendo realizada anualmente:
Até agora nós continuamos fazendo as festa de São Cosme e Damião, que sempre foi uma
festa maravilhosa, pois ela gostava de tudo. Nunca deixamos de fazer, já fazem 20 anos
que ela faleceu e continuamos fazer a mesma coisa, aquelas pessoas antigas, que estão
vivas, sempre estão trazendo uma coisa ou outra para a festa, muito difícil quem não a
conheça.

Assim, a realização da Festa de São Cosme e Damião surge como uma ação cultural
solidária nessas comunidades locais e produz um sentido híbrido do conceito popular. Nele, o
popular constitui-se tanto pela tradição religiosa cristã como pela complexidade da vida social
contemporânea, tornando-se um elemento híbrido que dá vida ao novo. Nesse processo de
produção de uma cultura popular hibridizada, a convivência comunitária e solidária representa uma
força de oposição à homogeneização cultural da modernidade que busca capturar identidades
e diferenças para ajustá-las a um padrão de conduta social homogeneizador e excludente que
isola os sujeitos e busca posicioná-los individualmente como consumidores de uma cultura
contemporânea marcada pela força individualista e de performances midiáticas.
Todas essas ações permitem perceber que, através de Dona Santa há um entrelaçamento
entre espaços públicos e privados na vida comunitária que produzem identidades diferentes e
contraditórias de Dona Santa. Contudo, o reconhecimento e a preservação da história da vida
desta mulher negra permitem a manutenção de uma rede de solidariedade e convivência social
fundamentais para o fortalecimento e a preservação da vida comunitária como uma importante via
de resistência às relações de exclusão presentes na sociedade contemporânea.
Os estudos acerca da formação de redes, de acordo com Latour (1994; 2000), vêm
crescendo nos estudos sociais e culturais, atualmente. A noção de rede é relacionada à imagem de

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

fios, malhas, teias que compõem um tecido comum. O termo rede indica também fluxo, movimento,
dinâmica, por isso ele é aplicado, em termos teóricos ou metodológicos, em vários campos do
conhecimento, entre eles: a educação, comunicação, geografia, economia, administração e nas
ciências sociais.
A rede de solidariedade e convivência comunitária, protagonizada por Dona Santa, também
está presente na realização anual da Festa de São Cosme e Damião que, em seu tempo de vida
ocorreu por mais de 60 anos, reunindo crianças de diversas localidades e que se mantêm na
atualidade pela atuação da neta Estela Mara.
Portanto, finalizo minhas análises apontando o argumento que defendi na Monografia, qual
seja, a compreensão de que a vida comunitária de Dona Santa constitui uma rede de laços de
fraternidade, solidariedade e fé. Nesta rede criam-se práticas híbridas, as rezas e benzeduras e a
Festa de São Cosme e Damião, à medida que articulam traços tradicionais de culturas diversas na
constituição de uma cultura popular e cotidiana marcada pela ajuda mútua e pela fé na cura não
só das dores do corpo, mas também da alma humana e das desigualdades sociais, o que constitui
uma estética da existência (FOUCAULT, 2014).
Segundo Rago (in: RAGO; NETO, 2009) a perda da tradição e o apagamento da história
favorecem a quebra dos vínculos espontâneos entre indivíduos e grupos sociais, assim como o
esvaziamento da experiência coletiva tão necessária a preservação da vida comunitária. Na ordem
biopolitica5 contemporânea que preza pelo individualismo, o consumismo e a homogeneização
cultural, as redes de solidariedade e ações políticas empreendidas por sindicatos, associações e
comunidades tornam-se foco de violência repressiva e de silenciamento das vozes ameaçadoras
e indesejáveis. São práticas de governo e autogoverno que destroem a vida coletiva, são os
chamados fascismos contemporâneos.
Por sua vez, a estética da existência permite ao sujeito atingir uma verdade de si e uma
firmeza de orientação que constitui de forma livre um padrão de valores e o move a um trabalho
paciente no mundo em que vive em direção a um código ético e estético da vida.
A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito. A
espiritualidade postula que o sujeito enquanto tal não tem direito, não possui capacidade
de ter acesso a verdade. Postula que a verdade jamais é dada ao sujeito por simples ato
de conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele o sujeito e por
ter tal e qual estrutura de sujeito. Postula a necessidade de que o sujeito se modifique,
se transforme, se desloque, torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não
ele mesmo para ter direito a [...] o acesso à verdade...essa conversão pode ser feita sob
a forma de um movimento que arranca o sujeito de seu status e da sua condição atual
(movimento de ascensão do próprio sujeito; movimento pelo qual, ao contrário, a verdade
vem até ele o ilumina). Chamemos esse movimento, também muito convencionalmente,
em qualquer que seja o seu sentido, de movimento do eros (amor). ( FOUCAULT, 2014,
P.16).

Assim, entendo que Dona Santa, através de sua trajetória de vida, de suas rezas e

5 Segundo Foucault (2008) na ordem biopolítica se estabelecem dispositivos de governamento das condutas
dos sujeitos e grupos que visam manter um certo equilíbrio nas disputas pelos bens culturais.

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benzeduras e da sua atuação na Festa Popular de São Cosme e Damião, constituiu-se nesse
sujeito dotado de espiritualidade, que não se apartou da vida social e comunitária, mas intensificou
suas práticas e relações sociais, posicionando-se no mundo e na relação com os outros, primando
pela fraternidade, solidariedade e amor ao próximo.

Conclusão

A vida comunitária de Dona Santa há muito tempo me encanta pelas histórias que as
pessoas que conviveram com ela contam quando falam da sua profunda bondade e respeito pelo
próximo. Sempre escutei com atenção estas manifestações de amor, carinho e gratidão.

O estudo que fiz apontou que, a vida comunitária de Dona Santa, marcada pelas
suas práticas de rezas e benzeduras e sua atuação na Festa Popular de São Cosme e Damião,
constituiu essa mulher negra e benzedeira como um sujeito dotado de uma grande espiritualidade
e dedicação ao próximo. Dona Santa atuou intensamente em suas comunidades, protagonizando
redes de fraternidade, solidariedade e fé.
Nesta rede, as práticas das rezas e benzeduras e a Festa de São Cosme e Damião,
constituem uma cultura popular hibridizada na qual se mesclam traços tradicionais de culturas
diversas com elementos de resistência da vida cotidiana e comunitária, pautadas na ajuda mútua
e na crença da cura das dores do corpo, da alma e das desigualdades sociais, o que subverte
a ordem biopolítica contemporânea. Dona Santa constitui-se num sujeito cuja história de vida
comunitária sinaliza para uma estética da existência pautada no bem comum.

Referências

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O LUGAR SOCIAL DAS MULHERES NAS MANIFESTAÇÕES DO CACUMBI

AVIZ, Roselete Fagundes de. (UDESC)


roseaviz@yahoo.com

Foi lindo o encontro, as almas

ficaram alegres.1

Resumo

Tendo como ponto de partida as negras vozes dos quintais no contexto moçambicano e afro-
brasileiro, esta comunicação faz parte do desdobramento e aprofundamento de uma investigação
sobre a voz e a escuta, explorada em minha tese de doutorado sob o título, “Khilá: (Des)encontros
da Voz na Travessia Brasil-Moçambique” (2012). Busco aqui explorar as manifestações do
Cacumbi/Catumbi em Santa Catarina. Para tentar compreender tais manifestações é preciso
também associá-las ao modo como foram abordadas nos estudos sobre as populações negras
em Santa Catarina: sob a mais absoluta invisibilidade dos negros do Sul do Brasil. Leite (1986),
chama a atenção para a invisibilidade histórica a que foram submetidas as comunidades negras
no estado de Santa Catarina (SC), inclusive no que se refere às suas manifestações socioculturais.
É neste contexto que, o presente estudo tem como objetivo desvelar que o Cacumbi/Catumbi
em SC apresenta-se marcado por relações de gêneros: papel de mulheres e papel de homens
a desempenhar fora e dentro da prática religiosa. Como resultado constatamos que as mulheres
negras tiveram uma grande contribuição na estruturação e organização dessas práticas. A
tradição e a memória sobre as atividades realizadas por avós e mães, em outros tempos, marcam
uma forte identidade feminina, principalmente, para as mulheres mais velhas, como responsáveis
pela valorização e relevância dos rituais ao desempenhar seu papel de protetora, conselheira,
mediadora entre a família, a comunidade e a ancestralidade.

Palavras-chave: Cacumbi/Catumbi. Religiosidade. Invisibilidade. Gênero.

1 NGWENYA, Malangatana (2010).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

As reflexões a que este texto convida têm origem no desdobramento e aprofundamento


de uma investigação sobre a voz/escuta como devir: movimento que no processo de pesquisa
se mostra em presença, som, silêncio, música, testemunho, transmissão e memória. O resultado
constitui uma reflexão sobre a viagem como um significativo elemento de formação. O trabalho
teve como corpus os fragmentos de um diário de campo o qual denominei Cadernos de Viagem
que se concretizam pela escrita tornada voz no rastro traçado durante todo o trajeto da pesquisa.
O recorte selecionado para este trabalho tem como foco a relação entre gênero e religião, a
partir do viver e da vivência com Malangatana Ngwenya, Obelino Magaia, José Ntila, Ezra Chambal,
Nilza Maesso e tantos outros homens e mulheres rongas ou changanas2 em alguns quintais de
Moçambique. Foi vivendo com eles, partilhando seu cotidiano, ouvindo e aprendendo a sentir
o seu modo de estar no mundo que construí uma trilha possível para melhor refletir, neste texto,
sobre as relações entre gêneros: papel de mulheres e papel de homens a desempenhar fora e
dentro da prática religiosa afro-brasileira Cacumbi/Catumbi em Santa Catarina.
Fazer esta reflexão a partir da sabedoria coletiva, fora do estar que a todos é comum já que
parte do contexto moçambicano, é observar a realidade sob outra ótica, deslocada dos limites dos
modelos e conceitos próprios da cultura europeia.
Assim, tomo como ponto de partida as negras vozes dos quintais no contexto moçambicano.
Especialmente, no desenrolar de uma cerimônia em homenagem aos mortos e o kenguelequezê3 –,
reproduzindo em alguns fragmentos a complexidade do contexto em que acontecem para compor
uma imagem da maneira de estar e do modo como os rongas e changanas integram o mundo dos
vivos com o mundo dos mortos. E ainda, para poder fazer outras perguntas sobre práticas afro-
brasileiras como o Cacumbi/Catumbi, e, assim pensá-las para além do embate entre o catolicismo
e as religiões afro-brasileiras ou ainda registro folclórico, conforme aparece em alguns documentos
que temos sobre essa prática no referido estado.
À medida que um caminho se traça percebo que, apesar de pouco perceptível, o papel da
mulher vem para primeiro plano neste trabalho, uma vez que nas “práticas dos quintais”: família,

2 A língua changana pertence ao grupo tshwa-ronga. Esse grupo é designado pelo termo tsonga. As três
línguas são mutuamente inteligíveis. O changana é falado em Moçambique nas províncias de Maputo, Gaza e parte de
Inhambane, Manica e Sofala. É ainda falado na África do Sul e no Zimbábue. Cf. BENTO SITOE, Dicionário changana-
português, Maputo: Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação, 1996.
3 Kenguelekezê é uma expressão proferida (na verdade, gritada) nesse tipo de cerimônia enquanto alguém que
segura o bebê o balança e lhe mostra a Lua. Na realidade, é uma dupla apresentação: apresenta-se o bebê à Lua e, ao
mesmo tempo, a Lua ao bebê. Nas tradições bantu acredita-se que muitas doenças que atacam os recém-nascidos
têm a ver com esse astro, inclusive uma conhecida como doença da lua, que se manifesta como uma epilepsia.
Durante a cerimônia de dar nome ou de “tirar o bebê” (que geralmente coincidem), tirar bebê significa: apresentação
do bebê, geralmente um mês após o nascimento – kenguelequezê. Nesta ocasião, deve-se mostrar o bebê à Lua para
que ela seja mais piedosa e generosa, e assim ele cresça com saúde. Esses hábitos tendem a desaparecer sobretudo
nas cidades, onde os jovens já dão nome aos filhos sem nenhuma cerimônia – em geral, são escolhidos antes mesmo
do nascimento. Mas no campo, ainda se faz todo o ritual; mesmo quando o bebê sai da maternidade, caso tenha
nascido na cidade, fica sem nome e aguarda essa cerimônia para recebê-lo.

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proteção, tradição, memória e ancestralidade são elementos significativos na estruturação de sua
permanência. Neste contexto, sendo as mulheres as principais responsáveis pela transmissão
dos valores e práticas socioculturais às novas gerações, mesmo não ficando evidente, é por meio
delas que todo o ritual acontece.
O convite, então, é para alargar a percepção a partir de algumas cenas dos quintais
Moçambique-Brasil a partir de alguns pontos que serviram para a análise, dentre eles: religiosidade,
pertencimento, conduta, existência, memória, identidade e gênero. Neste sentido, peço licença
para trazer essas cenas construídas a partir de alguns fragmentos dos meus Cadernos de Viagem,
na expectativa de que a narrativa desenhe uma imagem que sirva de abertura para discussão sobre
o tema aqui proposto, e, a partir dessas problematizações, abrir o debate para outras pesquisas
que possam pensar sobre o lugar social da mulher nessa manifestação.

Cena 1
O quintal foi organizado para receber parentes e amigos íntimos da falecida. Os homens
acomodam-se em um dos lados, sentados nas cadeiras. As mulheres nas esteiras. Enquanto
que as panelas espalham-se pelo quintal, com a melhor comida. Depois, todos juntos, em círculo
são servidos. Nesse dia, no quintal imenso, os velhos recordam a falecida. As mulheres velhas,
ora em seu silêncio, ora em seu canto, ora em sua dança, também falam dela. Quase parecem
mundos distantes; homens e mulheres caminham separadamente após ultrapassarem o marco
da diferenciação de gênero. Sentados no mesmo quintal, a demarcação é visível, mesmo que
em alguns casos todos os presentes estejam em um único círculo. São nesses momentos que
os homens e as mulheres exercem tarefas definidas e específicas, e cada qual obedece a uma
socialização que cumpre estritamente os conhecimentos que as histórias de vida, contadas e
recontadas nas grandes conversas do dia a dia, lhes ensinaram. Malangatana Ngwenya4, o mais
velho e respeitado na família, fala pausadamente, cumprindo o ritmo do tempo, sem angústia. Na
roda, mesmo estando entre os homens, mulheres chegam e, sentadas aos pés do artista, ouvem e
contam as notícias dos últimos tempos. Os panos com que se vestem são as capulanas5, vestimenta
obrigatória às mulheres nessas ocasiões. De resto, muita comida: o amendoim pilado misturado
ao caril de frango, a matapa feita do milho branco produzido e debulhado na própria comunidade
fazem parte daquela presente manifestação. A comida fora cuidadosamente preparada, atentando,
principalmente às preferências alimentares da falecida, uma vez que, pela tradição este momento
é caracterizado por uma refeição coletiva. Em dia de homenagem aos mortos é no cardápio que se
vivencia o “lembrar-te”. Referências pessoais, musicais reverberam em sensações, ora em gesto
de cor, através das capulanas ou sons e movimentos e, especialmente no cheiro de grãos, ou

4 Considerado o maior artista plástico do continente africano. Sua projeção na África e fora dela se fez notável:
África do Sul, Nigéria, Portugal, Brasil, Londres, dentre outros. Além de pintor foi poeta, músico, ator, escultor, enfim, um
homem de várias qualidades e virtudes. Malangatana faleceu em 5 de janeiro de 2011, em Portugal, para onde viajara
a trabalho. Nos murais da vida, sua voz ecoará sempre.
5 Vestuário tradicional das mulheres moçambicanas. Em geral, são confeccionados com tecidos coloridos e
estampados. Foram trazidos ao continente africano no século xix por mercadores que vinham do Oriente.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

sabores de molho que regam o que sai do som do pilão [...]

Cena 2
Agora, o cenário é outro quintal. É dia de domingo. Dia de celebração. Dia de kenguelekezê
– cerimônia para dar nome ao bebê, dia de dar nome a uma linda menina, filha de Safi, que nasceu
há um mês e meio. Dessa vez, a canção está presente:
Hitlangela xin’wanana xingapsaliwa namuntlha (repetem três vezes)

[Agraciamos/felicitamos o bebê que hoje nasceu]

Ambuwetela ambuwetela, ambuwetela

[Anina, anina, anina o bebê]

Mamani wa kona ambuwetela ambuwetela, ambuwetela

[A mãe do bebê anina, anina, anina o bebê]

Papayi wa kona ambuwetela ambuwetela, ambuwetela

[O pai do bebê anina, anina, anina o bebê]

Titiya wa kona ambuwetela ambuwetela, ambuwetela

[A tia do bebê anina, anina, anina o bebê]

Vovote wa kona ambuwetela ambuwetela, xingapsaliwa namuntlha

[A avó do bebê anina, anina, anina o bebê]6

Homens e mulheres cantam acompanhados de palmas, pés e jogos com o corpo, além dos
sonoros uncunlunguanu7 das mulheres. Depois volta o silêncio. Mulheres nas esteiras e homens
nas cadeiras confidenciam histórias. As mulheres em volta de Safi ouvem-na contar que o parto
da filha não foi difícil. Dessa vez, não foi pelas mãos de sua tia, a maior especialista em partos e
doenças de crianças, que a filha veio ao mundo. Além de a tia já ser falecida, Safi mora na cidade,
por isso o parto não foi em casa. E, não fosse essa tia, muitos dos presentes certamente não teriam
o privilégio de crescer. A avó de Safi, ao tomar a palavra, fala ainda com maior segurança sobre
a filha parteira. Ela conta dos vários amuletos que preveniam contra os males, em especial os
próprios para recém-nascidos, os mais indefesos. A avó conta que ninguém se arriscava a deixar
seu bebê sem determinada imunidade, feita muitas vezes de planta ou do animal que tinha a força

6 Esta canção, “Xin’wanani”, é específica para a ocasião de partos tradicionais, ou seja, que não são realizados
na maternidade, mas pelas anciãs da comunidade, com experiência no assunto. A canção é bastante cantada também
nas cerimônias de “tirar o bebê” e nas de kenguelequezê.
7 Uma espécie de som vocal emitido pelas mulheres, especialmente com a língua.

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que se pretende transmitir, como forma de vaciná-lo. E é assim que, nesse dia, as mulheres velhas,
no seu canto, também falam dela. É assim que o segundo nome da bebê a unirá para sempre à
falecida representada. Desse modo, mais do que uma homenagem, isso representa a encarnação
desse parente falecido.
Ao encerrar a fala, a avó vai devagarinho pondo-se em movimento e começa a entoar outra
canção. Não demora muito e todas as mulheres a acompanham:
Vanavela va kuchava kuveleka vanavela!

[Os que têm medo de ter filhos cobiçam!]

Va kuchava kuveleka! (repete-se o verso várias vezes)

Ampfilwa lowu hi lowu wopsala sviyukuku

[Esta mpfilwa8 é aquela que dá bons frutos]

Aloko anini male anitophindha kambe!

[Se tivesse dinheiro repetia de novo!]

Phindha kambe!

[Repetia de novo!]9

No contexto dos quintais o canto não é instrumento musical simples. Cantar é também
comunicar-se, é religar-se à ancestralidade.

Cena 3

Lá pelos anos 1940, na localidade de Cachoeira, Biguaçu (SC)10, onde meu pai nasceu, a
família se reunia sempre no quintal para celebrar. Meu tio Francisco assim me contou:
Eram treze homens: nosso avô, o papai, nossos primos e nós. Seis de um lado e seis do

8 Árvore frutífera cujos frutos são mapfilwa. Em português poderia corresponder à figueira
9 “Vanavela va kuchava kuveleka”, canção tradicional “cantada geralmente nas cerimônias de kuhumesa
n’wana = tirar a criança: tirar bebê recém-nascido (apresentação do bebê, geralmente um mês após o nascimento),
kenguelequezê, lobolo, casamento ou em qualquer cerimônia em que os pais sentem-se felizes e orgulhosos por
algo de positivo que os filhos tenham feito. A minha avó entoa essa canção sempre que eu lhe dou alguma coisa,
seja capulana, roupa, dinheiro etc., é como se dissesse: ‘eu tenho isto porque tive filhos, e os que não têm cobiçam’”
(depoimento de Ezra Chambal, caderno de viagem, 2 out. 2010).
10 Há referência a um grupo de cacumbi registrado pelo pesquisador Walter Piazza, no interior de Biguaçu,
na localidade de Cachoeira, onde havia um reduto de negros. Segundo o pesquisador, a discriminação racial se
manifestava pela existência de bailes de negros e bailes de brancos, o que incentivaria o “quicumbi” nessa localidade.
Na época, só havia um grupo de 13 elementos no quicumbi, e já faria mais de cinquenta anos que não havia reis,
rainhas nem juízes. Cf. Jucélia M. Alves, Rose M. Lima e Cleidi Albuquerque (orgs.), Cacumbi: um aspecto da cultura
negra em Santa Catarina, Florianópolis: Ed. UFSC/Secretaria da Cultura e do Esporte, 1990, pp. 33-4.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

outro, e o vovô Domingos11, que era o capitão. O papai, eu e o teu pai tocávamos tambor,
mas era pra ter mais, só que quase não tinha mais família. A minha avó sempre dizia que
era pra coroar, pra coroar alguém, agora eu já não me lembro mais, mas lembro que ela
falava isso12.

O Cacumbi, para a família, além de fazer parte da sua crença, era uma luta. Luta ao som dos
instrumentos musicais. Sons que dominavam o jogo. E o jogo era ter a posse do próprio corpo. Luta
porque só uma pessoa em estado de adoração podia brincar durante dias e dias com os pés, as
mãos e todo o corpo em completa harmonia com as vozes das pessoas, dos tempos, de outros, e
de tudo o que estava à volta: “O vovô Domingos era muito bom no Cacumbi, ele desafiava os mais
novo, sabe? Ele era tão rápido! Ficava com a espada, e a pessoa tinha que se defender tocando o
pandeiro”13. A brincadeira exigia atenção aos gestos, a notação dos passos a serem reexecutados.
“E a espada era grande e toda de prata mesmo, menina! Até hoje não sei onde ela foi parar”14.
Meu pai, quando me contou, soltou faísca dos olhos. Tio Francisco chorou quando disse: “Muitas
pessoas recebiam os espíritos dos antepassados no meio da brincadeira, sabe? Um dia, veio meu
avô, vovô Domingos, eu sabia que era ele, já havia morrido, mas eu reconheci a sua voz no meio
da roda”.

Catumbi
Na língua tupi, caá + tumbi significa folha (ou mato) azul. No dicionário Houaiss, temos
ainda outras interpretações para esse termo indígena: “ao pé do monte” ou “ à beira da mata”. Nei
Lopes, estudioso e militante da causa negra no Brasil, traz significativas contribuições no sentido
de tornar visível a herança africana na sociedade brasileira. É ele quem fica atento à semelhança
do termo com o vocábulo bantu “cucumbi”. Na etimologia da palavra “cucumbi”, está kikumbi:
“puberdade”, “festa da puberdade”, além de ligar-se a um rito propiciatório de bom parto, todas
práticas muito comuns na maioria dos países africanos, até mesmo em Moçambique. O mesmo
autor, ao citar a obra de Mello Morais Filho, Festas e tradições populares do Brasil, da atenção
aos cucumbis realizados no Rio de Janeiro imperial e afirma que essa era a denominação dada na
Bahia às “hordas dos negros de várias tribos”, que se organizavam em “ranchos” ou “quintais” de
canto e dança na ocasião do Carnaval e do Natal. Nas demais províncias, eles recebiam o nome
de “congos”. Lopes ainda argumenta que o historiador Morais Filho é quem apresenta o folguedo
como representação do cortejo dos negros congos para a apresentação do mameto (criança)
recém-circuncidado à sua rainha. O mameto é um “personagem dos antigos cucumbis do Rio de

11 Domingos Generosa foi um dos importantes mestres de Cacumbi na região de Cachoeira – Biguaçu no final
do século XIX e início do XX. Sobre este aspecto consultar: SILVA, Jaime José dos Santos. Memórias do Cacumbi:
Cultura afro-brasileira em Santa Catarina, século XIX e XX. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2015.
12 Caderno de viagem 3. Depoimento de Francisco Agostinho de Aviz, o “tio Chico”, 13 jan. 2011.
13 Ibidem.
14 Ibidem.

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Janeiro que representava uma criança, o filho do rei15. Esse vocábulo origina-se do quimbundo
mam’etu, interjeição, “ai mamãe!”. A apresentação dos mametos à rainha acontecia sempre “após
a refeição lauta do cucumbe”, comida de que se serviam congos e munhambanas no dia da
circuncisão de seus filhos.

Breve apresentação do Quicumbi/ Cacumbi/ Catumbi16 em Santa Catarina

O Cacumbi é uma manifestação que esteve presente nas festas em homenagem a Nossa
Senhora do Rosário em muitas regiões do Brasil, desde o século XVIII. Tal manifestação está
estritamente relacionada à história da escravidão no Brasil. Segundo Silva (2015), estas celebrações
não existiam ao acaso, elas remetem ao fenômeno mais complexo ao qual necessitamos prestar
atenção: à devoção e coroações de reis negros, do contexto da diáspora africana para as Américas.
Em Santa Catarina, a prática era realizada desde a época da escravidão por africanos e
afrodescendentes e aconteciam junto à festa de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Embora
já tivéssemos registros sobre essa prática por alguns folcloristas e estudiosos da cultura popular
em Santa Catarina, alguns trabalhos recentes se constituem como fundamentais referências para
compreender tal prática para além dessas caracterizações e colocá-la como uma manifestação
desenvolvida em determinado contexto histórico, cultural e social. Os trabalhos dos historiadores
Jaime José Santos da Silva (2015) e de José Bento Rosa da Silva (1994) são dois dos quais
considero muito importantes para os estudos e conhecimento sobre o Cacumbi/Catumbi e
devoção a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
No Cacumbi/Catumbi de Santa Catarina, uma das representações sacras mais importantes
é a figura de Nossa Senhora do Rosário. Segundo Marina de Mello e Souza (2012), a consagração
à santa teve origem na Europa, mas entre os negros escravizados no Brasil, ela teria recebido novas
significações. Segundo o mestre Maia (2011) – Catumbi – Itapocu - entre os negros e praticantes
do Catumbi, reconta-se a história da imagem da santa que teria surgido no meio das águas do mar.
Dois escravos fugitivos lhe teriam pedido proteção: “eles tinham fugido porque queriam chegar
até um refúgio de negros e foi assim que ela apareceu e ajudou eles.”17
A performance do Cacumbi/Catumbi18 procura, de certa forma, reproduzir um ritual mítico,
por meio de cânticos e diferentes instrumentos musicais, com celebração à santa na igreja católica,
além da coroação do rei e da rainha. No cortejo, os praticantes, normalmente, estão relacionados a

15 Mello Morais Filho (2002) considera que, até a década de 1830, no Rio de Janeiro, os cucumbis incorporavam
os cortejos fúnebres dos filhos de reis africanos falecidos. Segundo este autor: “e precedendo a rede funerária coberta
com um pano preto, acercada e seguida de centenas de escravos, os cucumbis marchavam chocalhando e cantando,
como seus memêtos (crianças), de cocares de plumas, pulando e levantando os braços, ao compasso acertado”
(2002, p.142).
16 Essas são as diferentes denominações encontradas para a prática em Santa Catarina.
17 Caderno de Viagem 4: Depoimento de Sr. Maia, mestre do Catumbi – Itapocu. Joinville, janeiro de 2012.
18 Em Santa Catarina a única prática de Cacumbi/Catumbi que ainda atua é a de Itapocu bastante diferente
de algumas práticas como a de Cachoeira, por exemplo, cujos registros escritos e orais apontam diferenças bem
específicas.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

famílias inteiras, ligadas ao catolicismo.19

Cacumbi: vontade de saber20 em torno da história da mulher

A epígrafe que abre este texto sintetiza a questão em pauta, remetendo-nos à problemática
da compreensão da religiosidade implícita em práticas afro-brasileiras como o Cacumbi. Os
versos de Malangatana Ngwenya nos remetem a algumas especificidades implícitas nas práticas
dos quintais moçambicanos, que anuncia, em alguns aspectos, semelhanças com práticas dos
quintais afro-brasileiros como o Catumbi.
Malangatana Ngwenya sempre dizia “somos comandados a distância. E essas vozes que
se manifestam, se apresentam na intimidade do contexto de cada família”21. Tal aspecto pode ser
melhor observado naquele contexto quando percebemos que se inicia com uma representação
significativa da celebração do nascimento de uma criança, momento sagrado naqueles quintais.
Esta, a meu ver, é uma questão fundamental quando falamos sobre as práticas afro-brasileiras, em
especial à prática do Cacumbi em Santa Catarina. Antes de qualquer folclorização ou embate com
a devoção católica, é importante observar a relação que essa prática tinha com especificidades
do continente africano, especialmente: o significado do nascimento de uma criança, bem como
a veneração aos antepassados. Relembremos o que subjaz à palavra Cacumbi/kikumbi: “rito
propiciatório de bom parto”. A batida do tambor se constitui como instrumento essencial para este
momento por promover a (re)ligação entre o mundo dos vivos e o dos ancestrais.
Considerando que, nas últimas décadas, no Brasil, tem-se despertado para os estudos
de práticas tornadas invisíveis pela construção da história oficial do pais, pode ser relevante
pensar em aproximações entre quintais de lá e de cá para podermos ver melhor a constituição
de nossa história e cultura. Tais estudos não podem ser analisados ao acaso. Verificar práticas
como o Cacumbi é como espiar por gretas para o estudo de uma sociedade, de modo que se
descubram múltiplos significados para aqueles que participavam dela e também para aqueles que
a observavam.
Práticas afro-brasileiras como o Cacumbi e as demais congadas são exemplos necessários
para pensarmos em termos de embate entre o catolicismo e as religiões de matriz africana, mas
também para além desse aspecto específico. Neste sentido, faz-se necessário reconhecer os
homens e mulheres que realizavam essas celebrações como indivíduos conscientes, portadores
de histórias e identidades próprias, que deixaram seu legado à formação de uma consciência afro-

19 Pelos registros históricos e história oral, há diferentes versões do Quicumbi/Cacumbi/Catumbi em Santa


Catarina. O único que ainda está ativo é o Catumbi de Itapocu, este, por sua vez, pode-se dizer que está integrado ao
catolicismo.
20 “Vontade de saber”, Categoria referência de Michel Foucault filósofo e historiador francês (1922-1984). Seu
nome exerceu grande influência sobre as gerações pós-68. É autor de obras como A História da Loucura, As Palavras
e as Coisas, História da Sexualidade, Vigiar e Punir. Suas reflexões de maior importância são sobre o saber, o poder e
o sujeito.
21 Cadernos de Viagem 3. Relatos de Malangatana Ngwenya. Maputo, Moçambique, 2010.

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brasileira, sem rejeitar as tradições africanas em favor das europeias. Assim sendo, neste texto,
defendo o Cacumbi como religião e, em assim sendo, peço um silêncio para analisar, para além do
que é praticado em público, percebendo as intimidades dos quintais.
É neste contexto que a mulher aparece como protagonista, embora muitas vezes não
compreendida como tal,porque quase sempre a olhamos sob a perspectiva ocidental,especialmente
por ser uma manifestação predominantemente masculina. Por essa razão, este texto não somente
fala por si só como também respalda as aproximações entre Brasil e Moçambique no que tange
a algumas especificidades das relações de gênero que as colocam em determinados papéis na
família e comunidade e os significados religiosos que não foram possíveis apagar, mesmo no
contexto da não aceitação do outro como protagonista, procedimento próprio das colonizações22.
É necessário ressaltar aqui que, embora compreenda que há uma forte relação entre quintais
africanos e os quintais afro-brasileiros, considero também que existem diferenças produzidas pela
trajetória histórica desses dois espaços culturais. Nos quintais brasileiros, a diferença fundamental
se relaciona à presença da escravidão, que impõe a tensão entre a cultura dos colonizadores e as
culturas africanas quando afetados pela diáspora imposta pelos senhores brancos na partilha de
escravos chegados ao Brasil, ao espalhar famílias e grupos étnicos com o intuito de evitar qualquer
fortalecimento entre aquelas culturas. São essas características presentes nos quintais afro-
brasileiros que produziram diferenças que não podem ser ignoradas. No entanto, para uma reflexão
de práticas como o Cacumbi/Catumbi no contexto catarinense que vá além do embate entre o
catolicismo e as religiões afro-brasileiras, ou ainda do reducionismo à folclorização, neste texto,
tento aproximar características que considero semelhantes entre esses “quintais” para ressaltar
seu aspecto de religiosidade preservado pela representação feminina em especial, na prática do
Cacumbi/Catumbi em Santa Catarina, aspecto que muitas vezes se escondem nas falas de quem
a vivenciou em seu próprio corpo e que são fundamentais para os debates da história social e da
cultura.

Generosa da Assunção: Quicumbi/Cacumbi de Cachoeira

Este é um relato quase que imaginado. Isto porque em poucos registros sobre o Cacumbi em
Santa Catarina aparece o nome de Generosa Assunção. Tal aspecto não é novidade se pensarmos
no déficit documental que marca a história do negro e das mulheres negras neste país. Mesmo as
que tiveram certa visibilidade intelectual quase não figuram em registros, sendo assim, era de se
imaginar que mulheres como Generosa não aparecessem. Reconheço que meu esforço de trazer
à superfície o nome dessa mulher é também entrar em certa disputa discursiva para mostrar que

22 O intelectual português Boaventura de Sousa Santos tem produzido uma rigorosa reflexão sobre as relações
sociais, culturais e econômicas que se estabeleceram em torno dos mecanismos de colonização que se constituíram
com o advento das globalizações levadas a efeito pelo o que ele alcunha como “Projeto da Modernidade”. Toda a
sua obra projeta uma extensa análise deste assunto, inclusive com a produção de intelectuais oriundos do “Sul”.
Aqui, neste texto, nos interessa em particular os conceitos de “Pensamento Abissal”,“Ecologia de Saberes” e a
proposta de ampliação do cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

nomes como esse merecem lugar especial. Principalmente, quando falamos do Cacumbi em Santa
Catarina, particularmente, naquilo que Borges (2009) enuncia ao falar que, no que concerne às
mulheres negras, quatro categorias: a negação, o recalcamento, a estigmatização e a indiferença
foram as que marcaram os modos de relatar e silenciar.
Generosa da Assunção era mãe de um dos mais famosos mestres de Quicumbi/Cacumbi
da localidade de Cachoeira (Biguaçu) Santa Catarina: Domingos Generosa. Foi a última rainha
coroada e morreu com mais de 110 anos.23
Ao colocar o depoimento de Francisco (CENA 3 deste texto) ao lado dos relatos acima
é importante considerar que, embora na época em que Francisco fazia parte do Cacumbi não
houvesse mais a coroação e o cortejo fosse predominantemente masculino, há, em seus relatos,
em alguns momentos, referência à avó: “A minha avó sempre dizia”. Em um dos depoimentos,
explica que, era de Generosa da Assunção, mãe de seu avô, que ele escutara tais conselhos e que
embora a seu avô tenha sido designada tal tarefa, eram as mulheres que, na intimidade, cuidavam
para que manifestações como o Cacumbi não morressem. Exerciam o papel de conselheira,
guardiã e protetora. Generosa se referia ao Cacumbi como ação de brincar: “é brincar de Quicumbi/
Cacumbi24” ao contrário da maioria dos registros que se referem à prática como dançar Quicumbi/
Cacumbi. Em seu depoimento, Francisco, cada vez que nos referimos ao Cacumbi como dança,
nos corrige: “dançar não, brincar de Cacumbi”, relembrando dos ensinamentos dos avós.
Lupi (2011)25 ao saber de tal referência ao Cacumbi explica:
Há uma diferença que quem não conhece não entende. Na religião, o africano é capaz
de brincar a sério porque encara a brincadeira como uma coisa séria. Enquanto que os
Ocidentais encaram a brincadeira como uma coisa de criança, não é sério, não é de adulto.
Agora o africano não, para o africano o brincar é uma coisa séria. Tanto que o famoso
Exu que os missionários identificaram como Demônio, Diabo, não é de jeito nenhum, é um
Deus que brinca, só que na mente ocidental cristã, um Deus que brinca é inconcebível!

Capitão Amaro, em muitos momentos em seus relatos, também faz referência ao Cacumbi
como brincadeira. Talvez seja importante lembrar que este brincante também iniciou sua vida no
Cacumbi em Biguaçu – SC26.
A importância de escutar os silêncios sobre mulheres significativas na história do Catumbi
como Generosa, nos provocam pensar sobre a simbologia e a memória africana e afro-brasileira.
Os quintais funcionam como espaço de memória porque remetem a brincantes de outros tempos.
Outro aspecto silencioso, mas que se faz necessário escutar diz respeito aos indícios
nos relatos de família de práticas religiosas afro-brasileiras remanescentes da Umbanda e/
ou Candomblé integradas ao Cacumbi. Além de que, há, no Cacumbi, forte hierarquia, sendo o

23 Conforme SILVA, Jaime José dos Santos. Memórias do Cacumbi: Cultura afro-brasileira em Santa Catarina,
século XIX e XX. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2015. Nesta obra, o autor descreve também, com
detalhes, o número de participantes no folguedo, os trajes dos personagens, as cores, as figuras que carregavam nos
estandartes e os instrumentos musicais (tambores e pandeiros) que utilizavam na localidade de Cachoeira(SC).
24 Caderno de Viagem 3. Relato de Francisco Agostinho de Aviz:, tio Chico, em 13 de janeiro de 2011, Joinville.
25 Caderno de Viagem 3. Entrevista com o professor e pesquisador João Lupi, em 15/06/2011, Florianópolis.
26 Para ler depoimentos completos consultar: SILVA, Jaime José dos Santos. Memórias do Cacumbi: Cultura
afro-brasileira em Santa Catarina, século XIX e XX. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2015.

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capitão o responsável por entoar os cânticos e guardar conhecimentos, toadas e os procedimentos
ritualísticos. Tais considerações mostram que dentro do ritual do Cacumbi: canto e batuque
são elementos fundamentais aos aspectos primordiais das religiões africanas: a reverência e
invocação aos ancestrais: “Muitas pessoas recebiam os espíritos dos antepassados no meio da
brincadeira, sabe? Um dia, veio meu avô, vovô Domingos, eu sabia que era ele, já havia morrido,
mas eu reconheci sua voz no meio da roda”.27 Quantas perguntas depoimentos como este pode
nos provocar? Em que momento tais manifestações aconteciam, seriam nas noites de pagamento
de promessa?28
Embora os registros sobre o Cacumbi em Santa Catarina façam referências a mulheres
que participaram como rainhas, juízas, bandeireiras, ou ainda como responsáveis pelos enfeites
e pela comida servida nas festas, relegando esses papéis como de menor visibilidade pública, há
que se pensar o que representam alguns tais papeis na intimidade das famílias, quando se pensa
em um contexto mais amplo. No que se refere ao preparo da refeição coletiva, prática habitual em
manifestações como essas, há que se olhar por outra perspectiva, não aquela afetada pelas lentes
ocidentais. No contexto moçambicano, país do continente no qual participei por certo período,
por exemplo, a cozinha é um lugar de orgulho, é lugar “sagrado”, espaço de destaque no contexto
familiar, por essa razão, não é lugar de “todo mundo”. Cozinhar para as mulheres daquele contexto
é uma forma de empoderamento, principalmente por estar nas mãos dela a responsabilidade pela
vida das pessoas. Por mais liderança que tenha um homem em uma casa, o espaço da cozinha é
aquele que ele sequer entra para mexer em qualquer utensílio se a “dona da cozinha” não permitir.
Há, inclusive, certas proibições relacionadas aos empréstimos desses quando a responsável não
está em casa.
Se observarmos as práticas dos quintais, conforme já descrevemos acima, a tarefa de
cozinhar não é designada a qualquer pessoa. Tais atividades envolvem segredos fundamentalmente
culturais que não são publicizados por fazerem parte de cosmogonias as quais não conhecemos
nem nos serão dadas a conhecer. Tais considerações são significativas na conversa sobre
as práticas afro-brasileiras, especialmente pelo deslocamento de visões perpetuadas pela
perspectiva ocidental. Nesse sentido, as palavras de Silva (2015, p.125) nos provoca muitos
sentimentos: “A folia era religião, não significava folclore”. Assim sendo, chamo a atenção para
o que Malangatana Ngwenya dizia ao se preocupar com a tendência à folclorização de algumas
práticas em Moçambique: “O que os festivais estão a fazer, retalham, sem cerimônias, sem tabus,
sem segredo, sem proibição aquilo que era a vida das pessoas numa vida tradicional”29 e coloco sua
fala ao lado do que disse capitão Amaro: “Cacumbi? Cacumbi é cheio mistérios.”30

27 Caderno de Viagem 3. Relato de Francisco Agostinho de Aviz: tio Chico, em 13 de janeiro de 2011, Joinville.
28 O pagamento de promessa também está ligado à prática do Cacumbi em Santa Catarina. Sobre esse aspecto
Luciana Prass apresenta um importante estudo, em sua obra “Maçambiques, Quicumbis e Ensaios de Promessa...”
(2013). Embora seus estudos não sejam referentes à Santa Catarina, suas pesquisas também foram realizadas no sul
do Brasil.
29 Fragmento retirado da minha tese de doutorado, op. cit.
30 Depoimento de Capitão amaro. In: SILVA, Jaime José dos Santos.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Considerações: imaginando outras conversas

Neste texto lanço mão de depoimentos orais, que me permitiram escutar as vozes de pessoas
que vivenciaram em seus corpos à prática do Cacumbi em Santa Catarina, para, a partir dessas
vozes, problematizar a (in)visibilidade feminina que, dentro dessa prática, ainda parecem quase
imperceptíveis. A oportunidade de conversar com pessoas que fazem referências às mulheres,
para além de permitir observar o Cacumbi apenas como manifestações de rua, contribuiu para
entender melhor os significados diferenciados que podem ser atribuídos ao Cacumbi por seus ex-
participantes: como religiosidade, pertencimento, conduta, existência, memória, identidade.
Ao ressignificar papeis das mulheres, não os compreendendo como secundários, podemos
observar um conjunto de condutas que permeiam as relações de gênero, a partir de preceitos
religiosos (designação, privilégio, bênçãos e chamados), mas também de visibilidade do feminino
sobre espaços e práticas entendidas até então como exclusividades masculinas. Tal (des)
velamento problematiza o papel social da mulher no Catumbi.
Aconselhamento, cuidado, proteção, alimentação dos agrupamentos de pessoas não
se tratava, para mulheres como Generosa da Assunção, de mera tarefa complementar, mas de
uma função importante, para a qual, certamente se preparava. Certas narrativas nos relatos dos
depoentes lembram a valorização que os próprios homens davam às palavras de suas mães e
avós. A tradição e a memória sobre as atividades realizadas por suas avós e mães, em outros
tempos, marcam uma forte identidade feminina, principalmente para as mulheres mais velhas
como Generosa. São muitos os atributos que as qualificam, e, certamente, eram esses que a
chamavam para o Cacumbi.

REFERÊNCIAS

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da cultura negra em Santa Catarina. Florianópolis: ufsc/Secretaria da Cultura e do Esporte de
Santa Catarina, 1990.

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Brasil. In: MEDEIROS, Fábio Henrique Nunes; MORAES, Taíza Mara Ruen de. Contação de
Histórias: tradição, poéticas e interfaces. São Paulo: SESC, 2016.

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HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: Ki-Zerbo, Josef (ed.). História geral da África:
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(Coleção Biblioteca Básica brasileira), 2002, 385 p.
PRASS, Luciana. Maçambiques, Quicumbis e Ensaios de Promessa: musicalidade quilombolas
do sul do Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2013.

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na visibilidade da comunidade congadeira no sul de Minas Gerais. Anais do XIII Encontro Nacional
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Acesso: 28/05/2017 .

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Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2012.

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Cosmopolitismo Multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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Portugal: Edições Almedina, 2009.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

PRETOS-VELHOS: REPRESENTAÇÃO DE AFRICANIDADE.

CAMPOS, Angie Edell. (UNICENTRO)


angieedell@gmail.comSANTOS,
Thais Rodrigues (UNICENTRO)
rodriguesdossantosthais@gmail.com

Resumo

O Estado do Paraná apresenta algumas especificidades que auxiliam a reflexão dos atravessamentos
étnico-raciais na sua construção e que de alguma forma esbarraram na constituição dos terreiros
nas diferentes regiões paranaenses. O processo de formação, principalmente, urbano do Estado, foi
acelerado no século XIX pelo investimento na imigração europeia, assim como em projetos urbanos
que acompanhassem a ideia da Europa industrializada moderna. Em consonância a esse ideário
em Curitiba, capital do Paraná, destacou-se a participação, na formação do Estado, de importantes
intelectuais ligados às oligarquias locais, que contribuíram para a exclusão da parcela não-branca,
negros e índios, da população paranaense. Esse contexto influenciou a construção dos Terreiros de
Umbanda no Paraná, apesar das singularidades das Umbandas praticadas, percebemos que a maior
referência aos municípios interioranos do Centro-Sul paranaense no que compete a formação na
Umbanda está ligada a Curitiba. Pensando nisso, a presente pesquisa chama a atenção e se propõe a
reflexão da relação atribuída por alguns filhos-de-santo a figura dos Pretos Velhos, enquanto referência
única da matriz africana dentro do universo umbandista, problematizando algumas influências sociais,
históricas e econômicas nas diferentes Umbandas e possíveis atravessamentos da relação única e
linear do Preto-Velho com a matriz africana dentro do universo umbandista. A concepção do Preto-
Velho é representada pelo estereótipo do negro escravizado, mas, que dentro dos rituais umbandistas
essa imagem se defronta com a entidade evoluída ou em evolução, cuja vivência lhe fornece subsídios
de força, resistência e luta, ao passo que se interpelam as imagens multifacetadas e altamente plásticas,
que não correspondem, somente abnegação, simplicidade e humildade ligada à servidão. Sendo assim,
entendemos que a leitura da cultura dos Pretos Velhos precisa ser vista, como “algo constantemente
reinventado, recomposto, investido de novos significados e é preciso perceber a dinâmica dessa
produção cultural.

Palavras-chave: Pretos-Velhos; umbanda; religião de matriz-africana

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Introdução

O Estado do Paraná apresenta algumas especificidades que auxiliam a reflexão a respeito


dos atravessamentos étnico-raciais na sua construção e que de alguma forma esbarraram
na constituição dos terreiros nas diferentes regiões paranaenses. O processo de formação,
principalmente, urbano do Estado, foi acelerada no século XIX pelo investimento na imigração
europeia, assim como em projetos urbanos que acompanhassem a ideia da Europa industrializada
moderna. Nesse período, aponta Soares (2015) a Europa foi o berço das teorias racistas, com
destaque ao chamado racismo científico.
Dentre as teorias racistas destaca-se o ápice, em fins do século XIX, do Darwinismo Social
cunhado por Herbert Spencer influenciado por Charles Darwin e o positivista Auguste Comte,
tal doutrina considerava o mundo como um sistema de relações entre meios e fins, cujo início se
daria com a formação do homem e a sociedade e o fim com o progresso final. De modo que, após
o processo da adaptação favorável do homem e sociedade, seria possível vislumbrar a “perfeição”,
a “civilização, a “plena felicidade” (FRANCHETTI, 2012). Essas concepções corroboraram para o
sucesso da empreitada imperialista e a decorrente dominação europeia. “ A partir desse dogma,
produziram-se hierarquias raciais que invariavelmente localizavam os europeus civilizados, no
topo; os negros “bárbaros” e os índios ”selvagens” se revezavam na base” (SEYFERTH, 1996.
p.43 citado por FELIX,2006)
Em consonância a esse ideário em Curitiba, capital do Paraná, Albuquerque (2002)
destaca a participação, na formação do Estado, de importantes intelectuais ligados às oligarquias
locais, que contribuíram para a exclusão da parcela não- branca- negros e índios- da população
paranaense. A capital se tornou a “vitrine das produções da Província”, sustentando o mito do - “
território colonizado por europeus e formado pela população branca”-, embora os índices do IBGE
(2010) apontem que os negros, constituem 23% da população da capital paranaense. Portanto, vale
problematizarmos algumas influências sociais, históricas e econômicas nas diferentes Umbandas
e possíveis atravessamentos da relação única e linear do Preto-Velho com a matriz africana dentro
do universo umbandista, segundo alguns discursos do povo-de-santo do município do interior
doParaná.

Umbanda

Tendo em vista a dificuldade em estabelecer historicamente os momentos da religião


de matriz africana Umbanda, destacamos aqui registros da literatura que dão o contorno para
compreender sua pluralidade e sua dinamicidade. Para Bastide (1971) se trata de um processo
sociológico, cuja explicação é fruto de causas sociais e contato entre as civilizações, o autor
relaciona à vontade, na época, da população negra em romper com a estrutura social colocada,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

contrapondo-se com seus elementos de origem africana, mediante as possíveis aberturas nas
amarras do contexto brasileiro eurocêntrico (grifomeu).
Nessa mesma lógica, Ortiz (1988) associa a Umbanda com as transformações sociais do
século XIX- abolição da escravatura, miscigenação, imigração, industrialização, urbanização e
estratificação social. Dessa forma, o autor considera que a herança cultural negra da colonização
foi substituída pela marginalidade da população negra com o aumento das cidades. Esse processo
se dá em dois níveis, para o autor: “desagregação social” e “desagregação da memória
coletiva negra”, decorrente dos vestígios escravocratas e transformações simbólicas pelos negros
frente as novas conjunturas.
Nesse cenário, Ortiz (1987) categoriza a macumba em correspondência a marginalização
do negro. O sincretismo negro-católico-espírita umbandista adaptou-se, para o autor, as
exigências sociais. A religião brasileira “carrega em suas veias o sangue negro do escravo que se
tornou proletário”. No que tange ao surgimento da religião umbandista, Ortiz (1987) percebe dois
movimentos: o ”embranquecimento” das religiões afro-brasileiras, depois o “empretecimento” de
certas práticas espíritas e kardecistas (ORTIZ,1987, p.33-34)
Em contrapartida, Prandi (1991) em “Os Candomblés de São Paulo” afirma que a
macumba (Umbanda) carioca pode ter se constituído como culto religioso organizado no final do
século XIX, assim como ocorreu com o Candomblé na Bahia. Para o autor não se trata do processo
degradativo desse candomblé no fim do século XIX. Visto que tal macumba foi sempre tida como
feitiçaria, realizado individualmente sem um culto organizado. Sendo assim, macumba pode ter
sido o termo local atribuído ao culto aos orixás, que na Bahia ficou conhecida como candomblé;
entre Pernambuco e Sergipe, como tambor no Maranhão e de batuque no Rio Grande doSul.
Face a isso, Negrão (1986) aponta a existência de cultos organizados de macumba e
umbanda já nas primeiras décadas do século XX. O autor afirma que nas primeiras décadas do
século até 1950 era impossível a distinção entre macumba e umbanda tanto em São Paulo quanto
no Rio. Apesar, de a confirmação da existência de cultos organizados, centrados na figura de
caboclos, pretos-velhos, e exus desde a década de 30, a umbanda teve uma influência maior do
catolicismo e kardecismo, comparado amacumba.
A influência dessas correntes na constituição da Umbanda, pode ser vista pela adoção da
língua vernácula, a simplificação da iniciação, com a eliminação quase total do sacrifício de sangue.
Agora com caráter kardecista a iniciação acompanha o desenvolvimento mediúnico através do
aprendizado público escolar, ao invés da tradição oral. Mantém-se o rito cantado e dançado dos
Candomblés, bem como um panteão simplificado de orixás, ao passo que o sincretismo com os
santos católicos favorece o compartilhamento do calendário litúrgico da Igreja Católica (PRANDI,
1995, p.49)
Esse sincretismo, é tomado como palavra maldita, aponta Ferreti (1998), que provoca
mal-estar em muitos ambientes e em muitos autores. Diversos pesquisadores evitam mencioná-
la, considerando seu sentido negativo, como sinônimo, de mistura confusa de elementos
dessemelhantes, ou imposição de evolucionismo e do colonialismo.

Página 296
Ainda Ferreti (2008) afirma que este sincretismo no contexto das religiões de matriz
africana, tensiona o chamado “mito da pureza africana”, defendido principalmente por estudiosos
e praticantes do candomblé ketu difundido no Brasil a partir da Bahia. Para Peter Fry (1984, p.
40) a polêmica demostra que o “conceito de pureza” e seu oposto a “mistura” ou o “sincretismo”,
são sempre construções essencialmente sociais e tendem a aparecer em ocasião de disputa de
poder e hegemonia”. Assim o autor afirma que essa discussão é mais ampla, refere-se ao cenário
brasileiro face aos pensamentos em relação ao negro e cultura.
Diante disso, reiteramos que cada Casa compõe um universo específico da Umbanda,
Victoriano (2005) afirma que cada terreiro se constitui em uma unidade autônoma quanto aos
seus procedimentos administrativos e religiosos e é sob o papel do pai de santo ou mãe de santo
e as funções dos membros efetivos que lhe dão efetividade. Não detalharemos a organização e
características dos Terreiros, visto que o foco está na figura do Preto-Velho na Umbanda, segundo
alguns povos-de-santo de dois terreiros no interior sudeste do Paraná. De modo, que buscaremos
problematizar possíveis atravessamento sociais, históricos e culturais que contornam o discurso
linear de alguns povos-de-santo a respeito dos Pretos Velhos e a matriz africana.

Pretos-Velhos e a linearidade da relação única da matriz africana dentro daumbanda

Historicamente a imagem do Preto-Velho circundante entre os discursos e retratos sociais


corresponde ao idoso negro, geralmente com um cachimbo, roupagem branca, olhos profundos,
postura curva e apoiado a uma bengala, a Preta-Velha aparece menos que o primeiro, quando
retratada refere-se à uma negra idosa, curvada, apoiada à uma bengala, postura dócil, com vestido
e lenço na cabeça branco. Esse conjunto simbólico está relacionada à representação religiosa do
negro escravizado, elaborada por uma sociedade que esteve sob regime escravocrata por três
séculos e chega ao final do século XX sem muita dimensão dos problemas raciais brasileiros.
Essa concepção religiosa da escravidão, calcada pelos preceitos católicos, era tido como
natural, desde que o tratamento fosse justo, mesmo que desumano. Essa condição do período
colonial, influenciou, em parte, pelo escravismo greco- romano da Idade Média e parte da Idade
Moderna, que autoriza a justificativa ideológica e cristã para tal prática nefasta. Tal ideologia
racista- escravocrata e colonial- passa por constante metabolismo em consonância aos contextos
vigentes (PEREIRA,2013)
No contexto brasileiro, para Nogueira (1985) a presença de traços negroides é decisiva na
carga de preconceito que recai sobre o indivíduo. O processo de miscigenação, seguido pelo ideal
do “branqueamento”, pulverizou a concepção do ser negro, abrindo margem para o surgimento de
várias categorias, usadas para designar variações de aparência física (moreno claro, mulato, pardo,
moreno escuro) todas com teoresracistas.
Essa construção ideológica do racismo marcada pelo fenótipo do negro, cm destaque a
cor da pele, está presente em vários discursos sociais, encontrado, inclusive, nos pontos cantados

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

dentro dos Terreiros para os Pretos Velhos:


Sou Preto, sou Preto,

Sou Preto só na cor

Na alma, na alma

Sou filho de Nosso Senhor.

A letra do ponto cantado retrata o imaginário social em torno da marginalização do negro


e atribuição da sua cor aos aspetos ligado ao mal, visto que sua alma teria outra cor em referência
a cor “branca do Nosso Senhor”. Ainda, nessa mesma lógica, em contraposição a tendência de
desumanizar os negros perpetuando o ciclo de discriminação racial, Makota Valdina afirma “Não
sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados.”
Pensando a descendência, a figura do Preto Velho com face a ancestralidade nessa
construção de natureza religiosa também passou por transformações histórias-culturais. A
princípio o conhecimento dessa condição foi exclusiva deste domínio; remete a preservação do
culto á ancestralidade enquanto instituição religiosa de origem africana em decorrência da maneira
que se deu o tráfico, comercialização e consequente inserção dos negros na nova estrutura
social, implicando assim, em redefinições da figura ancestral. Nas sessões de “giro” não se busca
referência aos antepassados da família africana, mas sim aos escravizados da raça negra, tomada
como a nova linhagem das crianças negras no Brasil.
Na umbanda a noção de ancestralidade perdeu seu valor e sentido original dado pelas
estruturas sociais africanas, aproximando-se mais da ideia de familiaridade, no sentido daquilo
que é habitual, conhecido, intimo. Os Pretos Velhos e Caboclos e todas as demais entidades do
panteão umbandista são representações religiosas dos espíritos das “matas brasileiras”, dos
personagens da nossa história, cultura. O ancestral é substituído pela figura do espirito familiar, tal
qual acredita-se no kardecismo (SANTOS, 1999)
Desse modo, a ancestralidade na Umbanda está ligada aos Orixás, visto que a Umbanda
não considera os Orixás que descem ao terreiro energias ou forças supremas desprovidas de
inteligência e individualidade. Na verdade (e os africanos assim já o consideravam), Orixás são
ancestrais divinizados, que incorporam conforme a ancestralidade, as afinidades e a coroa de
cada médium (JÚNIOR, 2011)
O Preto Velho aparece, muitas vezes, na figura do Pai João descrito por Ramos (1954):
Pai João é um símbolo onde se condensam vários personagens: o griot das selvas
africanas, guardador e transmissor de tradiçõ es, o velho escravo conhecedor das
crônicas de família; o bardo, o músico cantador de melopeias nostálgicas, o mestre de
cerimônias dos Jogos e autos populares negros, o rei negro ou príncipe destronado de
monarquias históricas ou lendárias. (RAMOS, 1954, p.167)

Nesse sentido, Arthur Ramos aponta a transmutabilidade deste personagem, que pode se

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transformar, por exemplo, nas cantigas de desafio, num Inácio da Catingueira famoso, valente, que
não teme os desafios com o branco. Temos aí uma nova imagem de Pai João produzida pelo negro,
oposta à imagem de passividade que lhe foi imputada pelo branco. Nas quadras de amigos, nas
cantigas de desafio nos ditos, nas parlendas, Pai João adota uma nova postura: de agredido torna-
se agressor e parte para o embate contra as sátiras que lhes são dirigidas “os ataques continuam,
mas agora são de igual paraigual”.
Os relatos de Petronilha (2011) nos auxiliam a pensar essa dinamicidade que a vida negra
toma nas diferentes demandas por resistência e que de alguma forma o Preto Velho assume. A
autora afirma que o sacrifício “entre nós negros, não significa gesto de passividade, muito menos
de abrir mão da própria vida, mas sim uma escolha que acarreta renúncias e recolhimento, a fim
de se fortalecer, de planejar e atingir objetivos”. Esse sacrifício é sempre apoiado e vivido pela
família próxima, pelos amigos, pela comunidade negra. De forma que os êxitos alcançados não são
somente do indivíduo que se sacrificou, mas de todos que acompanharam. Ela sempre vivenciou
essa dinâmica, o êxito de um negro, pelo menos na sua família próxima e estendida, era festejado,
anunciado, recebido com um com um valor para todos que tinham acompanhado, apoiado, rezado.
A concepção do Preto-Velho como escravizado, agora enquanto entidade evoluída ou em
evolução frente a compreensão do seu passado escravocrata, cuja vivência lhe fornece subsídios
de força, resistência e luta, se interpela com imagens multifacetadas e altamente plásticas, que
não correspondem, somente abnegação, simplicidade e humildade ligada a servidão. Nessa
dinamicidade, ganham lugar conhecimentos e noção de coletividade.
Os pretos-velhos tal como incorporados (em duplo sentido) pelos umbandistas parecem
ser produto de um processo abrangente de sacralização e mitificação de personagens e fatos
históricos, calcado na necessidade de reatualização e expressão de memórias profundamente
arraigadas no âmago das comunidades afro-brasileiras desde os primeiros tempos de suas
afirmações culturais e identitárias. Memórias que guardam os momentos mais significativos e
coerentes das vidas humanas; vozes que ecoam na história e em vívidas experiências pessoais
onde singular e coletivo emergem e se encontram (Casal, 1997), e a experiência de cada um
pode mover-se através das lembranças e vidas dos outros, ganhando alcance comunitário e
expressando situações comuns ao grupo (BAIRRÃO & LEME, 2003)
Entendemos assim, que a leitura da cultura dos Pretos Velhos precisa ser vista, como “algo
constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados e é preciso perceber a
dinâmica, a produção cultural (CUNHA, 1986 p.99,101).
(Des)conhecimento dos elementos africanos presentes do universo das religiões de
matrizafricana
O processo de embranquecimento das religiões de matriz africana, em destaque a
umbanda, altamente sincretizada aos preceitos do kardecismo, catolicismo, elementos indígenas,
e em alguns casos, ao esoterismo, dá lugar ao imaginário de “eliminação total da matriz africana nas
práticas dessas religiões, agora consideradas brasileiras. No que tange ao surgimento da religião
umbandista, Ortiz (1987) considera dois movimentos: o ”embranquecimento” das religiões afro-

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

brasileiras, depois o “empretecimento” de certas práticas espíritas e kardecistas (ORTIZ,1987,


p.33-34)
Entretanto, desde o início do século XX, no mesmo movimento que Ortiz, Bastide fortalece
a crítica, principalmente em relação à macumba e à umbanda frente as perdas dos referenciais
africanos, Bastide busca superar as considerações do botânico Hoehne (1920) que, no início do
século investiga as ervas e os objetos vendidos pelos ervanários e curandeiros da capital brasileira.
Nesse estudo buscou identificar botanicamente essas ervas e avaliar seu valor terapêutico, bem
como descrever outros produtos minerais e objetos utilizados pelos curandeiros e que eram
comercializados nas feiras públicas do Mercado velho, no Largo do Arouche e nas meias-águas
de Telha da Rua General Carneiro (HOEHNE, 1920 citado por SILVA, 1993).
O levantamento desses objetos na obra de Hoehne, dentre eles plantas secas, raízes,
sementes, signo de Salomão, pedra de Santa Bárbara, figas, cruzes de arruda, guiné, azeviche
africano contra mau-olhado, unhas de onça contra os perigos da vida, dentes de jacaré e chifre de
cabra loura e muito mais. Só demonstra para Bastide o meio supersticioso no qual “a macumba se
encontra perfeitamente adaptada ”e por intermédio da qual poderíamos “ver se desenhar a pintura
fiel do meio pobre, simples, que lhe fornece clientela”. (BASTIDE, 1983, p.211 citado por SILVA,
1993))
Apesar de, Bastide considerar a persistência de elementos africanos na mistura de ervas,
como dente de jacaré, couro de sapo, a arruda, a ferradura envolta em pano de Ogum e Exu, os
punhais usados na dança de Iansã, que se interpelam ao lado da magia de procedência europeia.
O autor, desconsiderou em sua crítica o valor religioso de muitos produtos comercializados pelos
ervanários, como o obi e o orobô (sementes ofertadas como alimentos para os orixás), banha de ori
(amálgama vegetal utilizado para untar a cabeça raspada durante a iniciação, pimenta (alimento
por excelência da divindade Exu), sabão da costa (utilizados nos banhos de limpeza ritual), búzios
(para as atividade oraculares do candomblé e também utilizado na Umbanda) e pemba africana
(pó de cor branca utilizado nas limpezas do ambiente. Artigos, cuja comercialização, aliás até hoje,
continua sendo fundamental para a realização dos rituais das religiões de matriz africana (SILVA,
1993, p.58),
A pemba é o objeto permanente aos ritos africanos, mais antigos que se conhecem,
fabricada com o pó extraído dos montes brancos kabanda, é empregada em todos os ritos e
cerimônias, festas, reuniões ou solenidades africanas e umbandistas” nas tribos de umbanda,
bacongo e congos. A pemba é utilizada quando é declarada guerra, os chefes esfregam o corpo
todo com a pemba para vencer os inimigos; por ocasião dos casamentos, os noivos são pelos
padrinhos esfregados com a pemba para que sejam felizes; o negociante que quer conseguir
um bom negócio esfrega um pouco de pemba nas mãos; em questões de amor a pemba exerce
grande influência, as jovens usam como se fosse um pó de arroz, pois traz felicidade no amor e atrai
aquele ou aquela que deseja. Na antiguidade a fabricação da pemba ficava sob responsabilidade
do sacerdote mais velho da tribo, este acompanhava a produção da pemba pelas mãos de moças
virgens em jejum- durante o processo não podiam comer ou beber nada- sendo permitido, apenas,

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fumar um cachimbo, que era considerado sagrado, durante três dias e três noites e às vezes mais.
O ritual era acompanhado por música de Congo cantadas pelas virgens, afim de transmitir todas
as suas virtudes.
Pensando nisso, reiteramos seria mesmo só o Preto-Velho a única referência da matriz
africana nos rituais umbandistas ou o imaginário dos interlocutores está arraigado pelo racismo que
associa linearmente a África com a escravização? Lembrando que essa relação que desumaniza
os negros, ignora a contribuição africana representada pelos conhecimentos dos 3,5 a 4 milhões
de negros de diferentes regiões africanas escravizados no Brasil, no Período Colonial.
Para Prandi (1995) as religiões afro-brasileiras, de ritual bastante complexo, desenvolveram
pouco ou nada uma orientação para o comportamento baseada num código de ética, em que a
medida de justiça, de bem e de mal esteja em conformidade com critérios universalistas e de bem-
estar geral da coletividade. Ao contrário, as noções de certo e errado pautam-se pelas relações
entre cada fiel e a divindade que o protege, e o mundo é entendido como um campo de conflitos e
enfrentamentos no qual o fiel deve procurar sua realização pessoal conforme a lógicacristã.
Enquanto o kardecismo toma como ideal de sabedoria escolar, alcançando posto
elevado na escala das profissões liberais, artes e ciências, as religiões afro- brasileiras valorizam
sobremaneira a sabedoria que decorre da própria vivência, glorificando a senioridade dos que
vencem por esforço próprio a partir da experiência concreta da vida e que se destacam na luta
pela realização dos sonhos inerentes a todos os que partilham a existência terrena. As religiões
afro- brasileiras valorizam o bravo, o experiente, o realizador, o vencedor, embora ainda sofram o
peso de sua herança da sociedade escravista-patriarcal, fazendo com que a valorização da dádiva
e o apego ao clientelismo mostrem-se ainda presentes e fortes (PRANDI, 1995,p.124)
Na história do Ocidente, o cuidado de si alcançou espaços de expressão através da
espiritualidade, no entanto, cabe perguntar que espiritualidade é esta que dá acesso ao cuidado de
si? Não se trata aqui de uma espiritualidade cristã que dilui o sujeito num horizonte de abnegação,
sacrifício e renúncia de si. Trata-se muito mais de uma espiritualidade elaborada pela filosofia
antiga, na qual se inscreve um conjunto de práticas, sem as quais não se conquistam as condições
necessárias à elaboração dos modos de vida (ALVES, 2011).
Pensando a matriz africana, tem-se um investimento no que é espiritual e divino, sucedendo
então, a união do sagrado com o profano. Os povos ou tribos africanas, de onde é procedente a
grande maioria dos orixás e possivelmente outras entidades como pretos velhos e caboclos, não
dominavam a escrita, e por consequência disto, inserem na dança um meio de preservação das
tradições religiosas e culturais. A dança ritualística da umbanda não é só expressão corporal, sua
função também é transmitir informações míticas sobre a entidade. Desta forma, ela integra aspectos
sociais, espirituais e cósmicos. Desta forma, utiliza-se de movimentos que expressam suas
tradições, o contato como mundo espiritual e a alteração da consciência (MELANI; SADI,2007).
Outra reverencia a espiritualidade, esteve presente na prática dos ex- escravizados em tirar
os sapatos ao entrarem em seus espaços sagrados, seus templos, pequenas Áfricas, deixavam
aquele símbolo (os sapatos) na entrada. Afinal, estavam em solo africano (pequena África), ali

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

os valores da sociedade branca nada significavam. Embora, se saiba que durante, que os negros
quando libertos, assim que podiam compravam um par de sapatos, uma demonstração (dentro
dos valores da sociedade branca) de sua nova condição. E assim se perpetua a prática em tirar os
sapatos quando as pessoas entram para a consulta em qualquer trabalho de Umbanda.
Encerramos essa discussão, que na realidade não finda aqui, pois o universo umbandista,
bem como dos Pretos e Pretas Velhas são plurais e dinâmicos, Pai José de Guiné psicografado por
Fernando Sepe afirma que a Aruanda não é um lugar! Aruanda é um estado de espírito.... Você a
carrega para onde for. Isso é trabalho. Isso é sacerdócio. Isso é viver buscando espiritualização.
“Por isso, meu fio, faz de cada trabalho espiritual que você participar um passo em direção a esse
caminho. Um passo em direção a unidade com o Orixá. Cada reunião, um passo...Sempre! Aruanda
é conhecida como o lugar de onde vieram os Pretos-Velhos, mas que nas palavras de Pai José de
Guiné deve ser vivenciada por cada um, de uma forma singular e em constante transformação,
bem como os próprios Pretos-Velhos vivenciam

FINALIZANDO

Reiteramos que a concepção do Preto-Velho como escravizado, agora enquanto entidade


evoluída ou em evolução frente a compreensão do seu passado escravocrata, cuja vivência lhe
fornece subsídios de força, resistência e luta, se interpela com imagens multifacetadas e altamente
plásticas, que não correspondem, somente abnegação, simplicidade e humildade ligada a servidão.
Também conhecimentos e noção de coletividade que na idealização do sucesso ocidental, não
ganham lugar.
Diante disso, percebemos que precisamos avançar em investigações das concepções,
filosofias africanas e demais elementos que constituem o universo religioso brasileiro, invisibilizado
por práticas racistas que desconhecem a resistência via manutenção de elementos africanos
ou mesmo via sincretismo a favor da sua permanência em diferentes contextos, principalmente
paranaense.

Referências.

ALBUQUERQUE, J.A. Nos bastidores de Curitiba: as arquiteturas do discurso da contradição.


Mesa redonda nº 35 - Eixo Temático 6: Educação, Cidadania e Intercultura(2002)

ALVES, Flavio Soares. “O corpo em movimento na Capoeira”. Doutorado (Tese). USP/SP, 2011.

CUNHA M. C da, Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac e Naify, 2009

FELIX, J. B.de J; Hip Hop: cultura e política no contexto paulistano;. Doutorado ( Te s e ) .


USP/SP, 2006.

Página 302
MELANI, R. Di L.; SADE, S. (org.); Umbanda para a Vida: Primeira leitura dos Fundamentos
Umbandistas, 2007

NEGRÃO, Lísias Nogueira. “A umbanda como expressão de religiosidade popular”. ln: Religião
e Sociedade. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira (4): 171- 80. 1979

ORTIZ, R. A morte branca do feiticeiro negro. Rio de Janeiro. Vozes, 1978

PETRONILHA, Beatriz Gonçalves Silva. Ente Brasil e África. Construindo Conhecimento e


Militância. Belo Horizonte: Editora Mazza, 2011.

PRANDI, R. Raça e religião. Novos Estudos. 1995

SANTOS, E.C.M. Preto Velho: as várias faces de um personagem religioso. Mestrado


(Dissertação) UNICAMP/CAMPINAS-SP.1999

VICTORIANO, Benedicto Anselmo Domingos. O prestígio religioso na umbanda


– dramatização e poder. São Paulo: Annablume, 2005.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

PROJETO “SANKOFA” IDENTIDADE E REPRESENTATIVIDADE AFRO NA


ESCOLA

Autor: EVANGELISTA Lázaro (UNIAFRO - UFRGS)


lazarusevangelista@gmail.com
Coautor – João Alberto Rodrigues
ja.rodrigues@hotmail.com.br
Resumo

O presente artigo traz de forma breve alguns processos, desenvolvimentos e resultados obtidos no
“Projeto Sankofa” - Identidade e Representatividade Afro na Escola. O projeto foi realizado na Escola
Estadual de Ensino Fundamenta Doutor Gustavo Armbrust, em Porto Alegre - Rio Grande do Sul no ano
de 2016 e com a participação dos estudantes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. O objetivo do
projeto, foi promover ações e fomentar o debate, a reflexão, valorizar e dar visibilidade a história da cultura
afro-brasileira e africana, bem como entender os processos de formação da identidade brasileira. Com
base nas leis 10.639/03, 11.645/08 e através do desenvolvimento de ações pedagógicas, o projeto
vislumbrou auxiliar na desconstrução de estereótipos negativos sobre o negro no Brasil e no mundo e
tornar evidente a sua importantíssima participação, influencia social e cultural na história da humanidade.

Palavras-chave: identidade negra; marcadores sociais; representatividade; influencia


social; cultural.

Abstract

The present article briefly presents some processes, development and results obtained in the “Sankofa
Project” - Afro Identity and Representativity in the School. This project took place at the Dr. Gustavo
Armbrust School, in Porto Alegre - Rio Grande do Sul state in 2016 and with the participation of
students from the 6th to the 9th grades of elementary school. The objective of the project was to promote
actions, debate and reflection, to give visibility to the history of Afro-Brazilian and African culture, as well
as to understand the processes of formation of the Brazilian identity. Based on Laws 10.639 / 03, 11.645 /
08 and through the development of pedagogical actions, the project has seen help in the deconstruction
of negative stereotypes about the black people in Brazil and around the world and become evident their
very important participation, their social and cultural influence in the human history.

Key words: black identity; Social markers; Representativeness; Social and cultural influence.

 “A arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente do oprimido” (Steve Biko).

Introdução

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O presente artigo está dividido em cinco partes. A parte introdutória, primeira parte, versa
sobre as influencias que tive em seguir a carreira de professor até a chegada no UNIAFRO.
O primeiro capítulo, trata sobre a identidade escolar, características da comunidade escolar,
da sua localização, das relações da equipe diretiva e de todo o corpo docente com o projeto, bem
como, o projeto político pedagógico da escola.
O segundo capítulo, mostra o desenvolvimento do projeto, seus objetivos e abrangência no
ambiente escolar.
Os terceiros e quartos capítulos, são direcionados aos resultados alcançados, impactos
nas vidas dos estudantes, da comunidade escolar e as considerações finais respectivamente.

Influência para seguir a carreira docente.

Inúmeros fatores podem definir ou influenciar na carreira de um indivíduo, a partir do


momento de escolha da profissão. Em meu caso, um dos fatores mais significativos para a escolha
está relacionado a possibilidade de auxiliar pessoas, sobre tudo, os mais jovens para alcançar e
entender cifras não reveladas e saberes não socializados e/ou negados ao longo do tempo.
Minha formação inicial, foi através dos movimentos sociais e de um curso livre de recreação
infantil e teatro.
Nos anos 2000, uma ONG denominada Instituto Cultural Steve Biko, realizou um projeto
de capacitação profissional e formação cidadã que beneficiara diretamente cerca de 30 jovens do
município de Salvador na Bahia.
A referida ONG, já realizava inúmeros trabalhos voltados para as temáticas e demandas
sociais do negro no Brasil, entretanto, o projeto de maior dedicação desta instituição era um curso
de pré-vestibular para negros (as) e pessoas de baixa renda que não tinham condições de arcar
com os custos da mensalidade.
Steve Biko, é o nome mais conhecido do líder estudantil e grande ativista negro sul-
africano Stephen Bantu Biko, fundador do  (Black Consciousness Movement) - Movimento da
Consciência Negra que na sua essência, fortalecia a luta antiapartheid na África do Sul, além de
mobilizar e ajudar a capacitar grande parte da população negra urbana nas décadas de 60 e 70.
Neste momento, Steve Biko, surge para mim como um referencial de identidade e de luta.
Inúmeras disciplinas eram ministradas nos cursos da instituição. Uma em especial me
fascinou. A disciplina de CCN, (Cidadania e Consciência Negra), abriu leque de possibilidades,
questionamentos, angustias, indignações, saberes e outras sensações de descobertas boas e
não tão boas, envolvendo a mim e aos demais participantes do projeto e trazendo informações
relevantes às nossas vidas como jamais havia sido discutido no ambiente escolar.
Ao final do processo de formação e qualificação naquele curso, e consciente da participação
histórica do povo negro no Brasil na construção da identidade nacional, diferentemente do que

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

outrora fora ensinado nos bancos escolares e nos livros didáticos, iniciei a militância no combate
ao racismo e a discriminação através de um grupo de hip-hop e uma companhia de teatro que
abordavam em seus textos teatrais e em suas letras, as lutas e anseios do povo negro, bem como,
exaltação às conquistas, vitórias e aos referenciais afrodescendentes e africanos.
Paralelo a estas atividades, a necessidade de se estabelecer no mercado de trabalho era
necessária, quando fui convidado a ser um dos educadores da edição do ano de 2001 do curso de
capacitação que participei no ano anterior.
Em 2002, fui convidado a integrar a delegação da Pastoral Afro-brasileira da Bahia que
participaria do Fórum Social Mundial na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com o objetivo
de socializar experiências a respeito dos trabalhos desenvolvidos nas comunidades de base.
Ingressei na Faculdade de Turismo da Bahia em 2004, e sentindo a necessidade de
abranger mais a discursões e realizar ações mais efetivas frente aos avanços pouco expressivos
do povo negro, e com o advento da lei 10.639/03, fiz uma especialização em língua inglesa e
cursos de extensões acadêmica que se relacionavam com a lei recém promulgada. Comecei a
lecionar a disciplina de língua inglesa na rede privada do ensino fundamental em Salvador - Bahia,
sempre relacionando com o idioma Inglês a história afro-brasileira e africana.
O não entendimento por parte dos professores, coordenadores e diretores de escolas,
geravam críticas e racismo no ambiente escolar, e por estar em um ambiente de ensino de educação
particular, sofria retaliações que variavam de reuniões com a coordenação até a demissão sumária
por abordar temas que “incomodavam” e não “faziam parte da aula”.
Decidido a continuar o trabalho, após a alteração e inclusão das temáticas indígenas
pela lei 11.645/08, no ano de 2009 ingressei na Universidade do Estado da Bahia para cursar
a Licenciatura em Letras Português/Inglês na perspectiva de prestar um concurso público para
lecionar em escolas das redes públicas.
Devido a mudanças na conjuntura que vivia, viajei para o Rio Grande do Sul no ano de 2013,
fixando residência na cidade de Porto Alegre. Conclui o curso de Letras pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul e comecei a atuar como professor de língua inglesa e cidadania na
rede estadual de educação.
No ano de 2016, tomei conhecimento da 3ª edição do curso de aperfeiçoamento UNIAFRO
que discutiria sobre políticas de promoção da igualdade racial na escola e era destinado a
professores da rede pública no Rio Grande do Sul. A partir daí, pude agregar e fortalecer ainda
mais minhas ações pedagógicas na escola e trocar experiências com colegas e professoras
especialistas que fizeram a mediação dos debates ao longo do processo.

A escola

Localizada na área urbana da cidade de Porto Alegre/RS, a Escola Estadual de Ensino


Fundamental Doutor Gustavo Armbrust é uma dependência administrativa do governo do estado

Página 306
do Rio Grande do Sul, subordinada à secretaria estadual da educação.
O logradouro da escola fica atualmente rua professor Emílio Kemp, 65, cep: 91380-380 no
bairro Jardim Itu Sabará – Zona norte de Porto Alegre/RS
A escola atualmente está autorizada a oferecer o ensino regular de educação, a pré-escola
de meio período, o ensino regular fundamental anos iniciais e anos finais de meio período.
A escola não é acessível a portadores de deficiência física, mas, possui sala de atendimento
educacional especializado – AEE e conta com uma profissional que auxilia os estudantes com algum
nível de inclusão ou quaisquer outras questões relacionadas a dificuldades de aprendizagem.
Quanto a infraestrutura, a escola conta com uma biblioteca, sala de informática com
computadores ligados a internet banda larga e duas quadras poliesportivas.
O corpo docente da escola tem aproximadamente 35 professores (as) entre o ensino
fundamental inicial e final, atuando em dois turnos.
A equipe diretiva é composta por três membros, uma diretora e duas vice-diretoras, uma
que atua no turno da manhã e outra que atua no turno da tarde.
A equipe intitulada de equipe de coordenação, conta com quatro membros: duas
supervisoras que se revezam entre os turnos da manhã e da tarde, uma orientadora e uma
professora da sala de recursos.
A equipe de funcionários da escola conta com um casal de merendeiros, duas pessoas nos
serviços gerais e mais duas pessoas que se revezam nas funções administrativas e secretaria.
Quanto ao envolvimento de toda a equipe no projeto, vale destacar o apoio que a direção
dá para as ações realizadas na escola. Também, pude contar com o apoio e a parceria direta do
professor de artes visuais da escola, professor João Alberto Rodrigues, que contribuiu e participou
de todas as etapas do projeto.
Os demais professores não se envolveram em nenhum dos processos. Alegaram falta de
tempo e de conhecimento a respeito do assunto.
Quanto ao PPP, Projeto Político Pedagógico da escola, é uma dúvida profunda. Sempre
tentei ter acesso ao mesmo, mas as coordenadoras e a direção alegam falta de tempo de encontra-
lo e diz que tem consciência que é necessário fazer alterações, bem como, revisões necessárias.
A comunidade em torno da escola, por mais que esteja localizada numa região da cidade com
altos índices de criminalidade, especificamente esta rua fica numa zona cercada por condomínios
residenciais e a circunvizinhança possui uma condição econômico-financeira aparentemente
confortável, com base no padrão de vestuário dos alunos, nos aparelhos eletrônicos e celulares de
última geração que eles levam para a escola, bem como, os carros e serviços de vans que levam
os estudantes de casa para a escola e vice-versa.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O projeto SANKOFA

Figura 1 imagem principal do projeto

Ao pensar o projeto, tomei por base o processo de formação da identidade do Brasil e


considerei necessário relacionar as influencias dos povos que constituem a nação, do ponto de
vista de que é dever da sociedade, assegurar aos seus cidadãos o direito a praticar sua fé, e ter sua
ancestralidade e cultura respeitada de forma equivalente. Desta forma, a pluralidade étnica desta
sociedade transcenderá e as relações sociais serão mais saudáveis.
Com base neste pensamento, o projeto foi intitulado de SANKOFA, pois o significado e o
simbolismo, refletem a necessidade de conhecer-se para dar as coisas um sentido novo.
Sankofa é uma palavra na língua Twi de Gana, que em tradução livre para o Português
significa “Retorne e Pegue” (san - retornar; ko - ir; fa - buscar, procurar e pegar).
Sua representação iconica é ilustrada através de um pássaro com a cabeça voltada para
trás, pegando um ovo de suas costas.

Figura 2 Representação da ave SANKOFA - Extraída da internet

Sankofa é frequentemente associada com o provérbio, “Se wo foram fi nd wosankofa um


yenkyi”, que em tradução livre significa: “Não é errado voltar para o que você esqueceu”.
O símbolo sankofa aparece com frequência na arte Akan tradicional, e também tem sido
adotada como um símbolo importante no contexto das diásporas para representar a necessidade
de refletir sobre o passado para construir um futuro de sucesso.
Deste modo, trabalhar com o imaginário das crianças e adolescentes, através de imagens
e representações fisicas, podem efetivamente contribuir para o processo de ensino aprendizado
significativo.

Página 308
Esta ideia, pode ser reforçada através dos estudos de Duran, onde o autor sugere que:
O imaginário define-se como re-presentação incontornável, a faculdade da simbolização
de todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente
desde cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na terra.
(DURAND, 2001, p. 117).

Com base na lei 10.639/03 e 11645/08, as ações pedagógicas do Projeto SANKOFA foram
sendo desenhadas e aplicadas no ensino fundamental II desde o 6º ao 9º ano.
As turmas do 6º ano, criaram personagens de heroínas e heróis negras e negros, pois
perceberam que a não representação do povo negro deste ponto de vista, não retrata a realidade
brasileira, onde, segundo o IBGE, os negros (pretos e pardos) são desde 2014 a maioria da
população brasileira, representando 53,6% da população. Os brasileiros que se declaram brancos
somam em torno de 45,5%.

Figura 3 Produção de personagens em quadrinho negros

Durante as aulas de língua inglesa, leituras de revistinhas em quadrinhos em Inglês,


como, exemplares da turma da Mônica “Monica’s Gang” do cartunista Maurício de Souza, foram
propostas e mais uma vez, os estudantes constataram a ausência de protagonistas negros nas
histórias.
Deste modo, considerar as culturas existente em uma sociedade para conceituar a
identidade nacional, está diretamente associada a inclusão de todos os indivíduos e etnias
existente naquele contexto, pois segundo Munanga (1994), a identidade...

“... é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas.    Qualquer


grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos
pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. ” 

(MUNANGA, 1994:177-178).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

No grupo dos estudantes de 7º ano, as ações pedagógicas, foram pautadas no


reconhecimento de povos africanos nos seus espaços geográficos, nos referenciais de guerreiras
e guerreiros e na realeza africana. Os estudantes realizaram pesquisas a respeito do Egito antigo,
suas riquezas e palácios reais das famílias nobres e suas dinastias.

Figura 4 Imagem da Intenet – Máscara mortuária Rei Tutankamon

Desmistificaram a figura do faraó, que através dos seus relatos espontâneos, teria sido uma
pessoa má que enfrentou o povo da terra “prometida”.
Os estudantes dos 8º anos, fizeram trabalhos sobre intolerância religiosa, respeito aos
negros no Brasil, diálogo inter-religioso, visitas técnicas ao museu do percurso do negro em Porto
Alegre.

Figura 5 Visita ao museu do percurso do negro. Centro de POA.

Estas ações vêm ancoradas as diversas narrativas e estudos acerca do conceito de território
como um lugar físico de ocupação social de um determinado grupo que constituem laços e raízes
de sua identidade.
As dimensões territoriais podem limitar-se do ponto de vista físico, mas a identidade

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territorial está presente há muito tempo, não podendo separar o espaço físico da identidade de um
grupo social, segundo a firmação do professor Milton Santos, sugerindo que:

...o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas
superpostas. O território tem que ser entendido como território usado, não o território em
si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer
aquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das
trocas materiais e espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 2002: 10).

A turma de 9º ano, realizou trabalhos com base nas ações afirmativas para o povo negro,
representatividade do negro na mídia e nas artes cênicas e nos espaços sociais de destaque.

Os estudantes concluíram que sem a devida oportunidade, o cidadão não terá a possibilidade
de prosperar e nem de transformar o seu meio social.

Constataram também que a maioria das personagens interpretadas por atrizes e atores
negros em sua maioria está ligado a papel menores, de subserviência, violência ou ao humor
deliberado. Assim, vale destacar as palavras do jornalista e escritor de teledramaturgia Nelson
Rodrigues, que ajuda a ratificar esta constatação dizendo que:
“É preciso uma ingenuidade perfeitamente obtusa ou uma má fé cínica para se negar
a existência do preconceito racial nos palcos brasileiros. Os artistas de cor, ou fazem
moleques gaiatos, ou carregam bandejas ou, por último, ficam de fora.” (Nelson Rodrigues,
1948, p.1).

Figura 6 - Trabalho sobre representatividade - Folder

Resultados

O Projeto SANKOFA iniciou em julho de 2016 com seis turmas do ensino fundamental final
da escola. Aproximadamente, 200 estudantes foram inseridos no projeto.
Por se tratar de um projeto com uma temática nunca estudada por eles antes, avalio que

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

o sucesso das ações se deu por causa do ineditismo e forma de abordagem dos temas e das
atividades lúdicas e participativas.
Dos quase 200 estudantes envolvidos diretamente com o projeto, cerca de 90% deles
trouxeram relatos de suas famílias, gerando um alcance e o impacto dentro das expectativas
em contagiar e dar visibilidade as demandas do povo negro brasileiro, tornando os estudantes
multiplicadores dos saberes e conhecimentos adquiridos.
Na perspectiva de obter um resultado mais abrangente, no mês de novembro de 2016
foi realizada a semana da consciência negra ne escola, que nunca antes havia acontecido. Os
estudantes que participaram do projeto, tiveram um dia dentro da semana da consciência negra na
escola para contar suas experiências no projeto e o que de efetivo eles tinham aprendido.
Para o ano de 2017, A Escola Estadual de Ensino Fundamental Doutor Gustavo Armbrust,
inseriu no calendário oficial da escola, no mês de novembro de 2017, um evento de culminância
das ações pedagógicas do projeto SANKOFA que vem a ser desenvolvidos durante todo o ano
letivo.
Avalio como um avanço significativo para uma instituição que não tinha nenhum histórico
relacionado ao ensino da cultura afro-brasileira, africana e indígena no currículo escolar, apesar da
lei da inserção da educação para as relações étnico-raciais ter sido promulgada desde o ano de
2003.

Considerações finais

Políticas de promoção da igualdade racial, relacionam-se diretamente com a ação pública


e com a luta dos movimentos populares. Entretanto, iniciativas nas escolas e em outros meios de
produção de educação e cultura, também podem desempenhar um papel muito importante na
promoção da igualdade racial.
A identidade é construída e formada a partir dos referenciais que temos de nós mesmos, do
meio em que vivemos e também pela forma que o outro nos vê. Em outras palavras, a identidade
será atribuída a um cidadão a partir da interação entre seus grupos sociais, portanto, relacionar a
cultura, a diversidade e o respeito as diferenças com as práticas pedagógicas no ambiente escolar,
possibilitará a convergência entre os indivíduos, entrelaçando os universos profundamente.

Referências

DELGADO, Heloísa. O Ensino da Cultura como Propulsor da Abertura de Possibilidades na


Aprendizagem de Língua Estrangeira. In: SARMENTO, Simone; MÜLLER, Vera. (Orgs.) O ensino
de inglês como língua estrangeira: estudos e reflexões. Porto Alegre: APIRS, 2004.

DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro: Difel, 2001.
MUNANGA, Kabengele. Um branco pode ser negro. Não é uma questão biológica, mas política In:

Página 312
Desconfiando: Porque o mundo é maior do que imaginamos. 2009. Cadernos Imbondeiro. João
Pessoa, v.2, n.1, 2012. 12 Disponível em:< http://desconfiando.wordpress.com/2009/10/15/um-
branco-pode-sernegro-nao-e-uma-questao-biologica-mas-politica/>. Acesso em: 07 nov. 2011.

SANTOS, M. et al (orgs.). Território, globalização e fragmentação. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp.
169-181.

Revista: Ciência e Cultura - Print  version  ISSN  0009-6725 - (Cienc. Cult.  vol.63  no.1  São
Paulo Jan. 2011)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO CIENTÍFICA ACERCA DA INFÂNCIA


NAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

RUSSI, Ana Paula Evaristo (UFSC)


anapaula_er@yahoo.com.br

LIMA, Patrícia de Moraes (UFSC)


patricia.demoraeslima@gmail.com

Resumo

O presente trabalho apresenta reflexões sobre a infância nas religiões de matriz africana a partir de uma
pesquisa de estado de conhecimento, a qual foi realizada como etapa inicial de pesquisa de Mestrado
no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC, na linha Educação e Infância. A investigação
de descritores relacionados aos temas infância e religiões de matriz africana foi efetuada em seis
bases de dados diferentes, e os resultados foram examinados de forma a oferecer uma conjuntura
da produção científica atual. Este desenho contextual foi confrontado com resultados de produções
anteriores que também trazem um panorama da pesquisa científica envolvendo infância e religiões
de matriz africana. Para além de uma análise científica das produções, o trabalho almeja a escolha de
um repertório bibliográfico que circule pelas mais diversas áreas do conhecimento, operando como
um princípio de movimento atualizador para estas pesquisadoras. Embora seja possível constatar um
crescimento do interesse científico pela infância nas religiões de matriz africana, há que se considerar
que a atenção dedicada ao tema ainda é reduzida e vem sendo movimentada principalmente pelos
campos da Educação, Antropologia e Psicologia. Embora uma parte considerável dessas abordagens
se compõe de abordagens etnográficas, ainda há uma primazia da abordagem do tema partindo
de problematizações compostas no contexto escolar. Diante da importância em considerarmos, na
concepção do foco de pesquisa, de onde estamos partindo e que direção pretendemos tomar, o ato
de pesquisar nas bases de dados corrobora com tal concepção, uma vez que situa nossa pesquisa no
panorama da produção científica, ao mesmo tempo em que sinaliza para onde podemos ir, ao indicar
as demandas mais atuais.

Palavras-chave: Educação. Infância. Religiões de Matriz Africana. Estado de Conhecimento.

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Introdução

O presente trabalho relata um das etapas iniciais de uma pesquisa que abarca as infâncias
nos terreiros, a qual integra o Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC, na linha de
Educação e Infância, com orientação da Prof. Patrícia de Moraes Lima. Motivada pela sua experiência
como educadora brincante e também como umbandista e candomblecista, a pesquisadora foca
sua investigação nos processos que emergem da relação entre a ela e as crianças, os lugares
ocupados e as dimensões de infâncias que emergem desta relação.
Neste sentido, a cartografia é o método de escolha para representar esse plano das relações
vividas de onde partem as perguntas de pesquisa, que atualmente já está sendo desenvolvida
em um terreiro de Batuque Jeje-Ijexá de Florianópolis. O Batuque é uma religião afro-brasileira
cuja história, de acordo com Corrêa (1992), ainda carece de elementos elucidatórios, mas cuja
investigação aponta seu surgimento no Rio Grande do Sul, no século XIX, a partir das práticas
religiosas de sudaneses trazidos às regiões de Pelotas e Rio Grande como escravos. Posteriormente,
esta cosmovisão fortaleceu-se em Porto Alegre, em função das migrações de negros livres em
busca de trabalho na capital gaúcha.
A etapa a que se refere este trabalho é o levantamento da produção acadêmica sobre
infância nos terreiros. Durante este processo, a pesquisadora voltou sua atenção a elementos que
dão pistas para entender porque e de que modos o cruzamento desses dois temas tem atraído a
atenção dos programas de pós-graduação. Assim, seis bases de dados foram selecionadas para a
realização da investigação: Scielo, ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação, Repositório de Teses e Dissertações da UFSC, DOAJ – Directory of Academic Journals,
Banco de Teses e Dissertações da CAPES e BDTD – Biblioteca Digital de Teses e Dissertações.
A seleção dos descritores gerou os primeiros questionamentos , pois o vocabulário
agregado pelas religiões de matriz africana é extenso e tem origem em diversos dialetos africanos,
permeado pela língua portuguesa, de forma que lidar com essa multiplicidade de categorias
significa mergulhar na imensidão da cultura afro-brasileira, nos muitos modos como é representada
linguisticamente. Ao mesmo tempo, essa diversidade sugere a impossibilidade de se abarcar sua
totalidade, de tal modo que a escolha de determinados descritores implica a exclusão de outros.
Assim, a estratégia adotada para a busca nas bases de dados consistiu em reunir os
descritores em dois grupos, utilizando termos na medida do possível mais abrangentes. O primeiro
grupo traz palavras relacionados às religiões afro-brasileiras e o segundo abarca os termos ligados
à infância. A busca pelas produções fora efetuada a partir da união de cada descritor do grupo 1
com cada descritor do grupo 2, gerando 10 combinações diferentes.

Tabela 1 – descritores selecionados para a busca


Grupo 1 Grupo 2
terreiro infância
religião criança

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

candomblé
umbanda
batuque

Ressalta-se que este modo de emprego dos descritores amplifica os possíveis resultados,
o que exige mais tempo à leitura dos trabalhos selecionados, como no caso do descritor
“religião” que, ao ser utilizado no lugar de “religião afro-brasileira” ou “religião de matriz africana”,
necessariamente apontará todos os trabalhos sobre infância e religiões, incluindo as crenças que
escapam ao tema de pesquisa. Assim, optou-se por selecionar os trabalhos publicados a partir de
2012, totalizando um intervalo de 5 anos e meio, uma vez que a apuração fora feita em junho.
A tabela a seguir traz os resultados encontrados nas bases de dados já referidas. Os
trabalhos que foram encontrados em mais de uma base de dados foram considerados apenas
uma vez, sendo enumerados na primeira base em que apareceram.

Tabela 2– produções encontradas


Banco de dados Teses Dissertações Outros Trabalhos1 TOTAL
SCIELO 0 0 0 0
ANPEd 0 0 3 3
Repositório UFSC 0 0 0 0
DOAJ 0 0 0 0
CAPES 2 9 0 11
BDTD 1 3 0 4
TOTAL 3 12 3 18

As 18 pesquisas indicadas resultaram da seleção feita de um total de 972 trabalhos


encontrados, dos quais 477 foram publicados a partir de 2012. O processo de seleção consistiu
na leitura dos resumos e exlusão daqueles que não tinham como foco a pesquisa as infâncias e as
religiões de matriz africana.

1 Textos curtos, apresentações orais e cartazes

No quadro a seguir constam os três trabalhos selecionados que não se caracterizam como
teses ou dissertações, a saber:

Quadro 1 – textos curtos, apresentações orais e cartazes


Autoria Título Ano Repositório Descritores
Arelação escola-terreiro na perspectiva
QUINTANA, Eduardo 2013 Biblioteca ANPEd religião
de famílias candomblecistas
RIBEIRO, Jaqueline de O lugar da infância na religião de
2015 Biblioteca ANPEd religião
Fátima matriz africana
As metodologias de pesquisa com
SPINELLI, Carolina
criança na escola: o “ouvir” como uma 2012 Biblioteca ANPEd religião
Shimomura
tendência...

2 Teses e dissertações

Página 316
Os outros 15 trabalhos são pesquisas feitas por estudantes de pós-graduação, sendo 12
dissertações de mestrado (M) e 3 teses de dutorado (D):

Quadro 2 – teses e dissertações

Descritores
Autor Título Ano Instituição M/D Programa2 Plataf3.
utilizados

Infância e terreiro: um estudo


RIBEIRO,
de vivências de crianças que
Jaqueline de 2016 UFF M Educação CAPES terreiro; infância
frequentam o espaço de uma
Fatima
religião de matriz africana

ALMIRANTE, A infância religiosa do candomblé:


Educação
Kleverton Arthur os olhares dos pesquisandos, 2015 UFAL M CAPES terreiro; infância
Brasileira
de etnografia e educação

Sobre olhar e aprender: um


SALES
estudo sobre o processo de Ciências
JUNIOR, Dario 2013 UFBA M CAPES terreiro; infância
aprendizado religioso das crianças Sociais
Ribeiro de
candomblecistas
Intolerância religiosa na escola:
OLIVEIRA, uma reflexão sobre estratégias
Rachel De de resistência à discriminação Serviço
2014 PUC-RJ M CAPES terreiro; infância
Souza Da religiosa a partir de relatos Social
Costa e de memórias de adeptos da
Umbanda
Narrativas de uma professora de
ROIF, Patricia Ensino Religioso Afro em uma
2016 UERJ M Educação CAPES terreiro; criança
de Oliveira escola do município do Rio de
Janeiro

Convivendo com os orixás: a


QUEIROZ,
trajetória religiosa de crianças
Karla Geyb da 2015 UFBA M Psicologia CAPES religião; infância
adeptas ao candomblé e o
Silva
contexto escolar

SANTOS, As crianças (in)visíveis nos


Solange discursos políticos da educação 2014 Unicamp D Educação CAPES religião; infância
Estanislau infantil: entre imagens e palavras

Famílias de santo: as histórias


PAGLIUSO,
dos ancestrais e os enredos 2012 USP D Psicologia CAPES religião; criança
Ligia
contemporâneos

HAUER, Karla Religião, criança e pobreza:


Antropologia
Teixeira Dias etnografia no Aterro Sanitário de 2014 UFGO M CAPES religião; criança
Social
Von Aparecida de Goiânia-GO

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

FERREIRA A religiosidade popular da pedra


Ciências das
NETO, Manoel do menino em Cuité: fé e devoção 2014 UFPB M CAPES religião; criança
Religiões
Pedro na região do Curimataú Paraibano

FREITAS, De doces e crianças: a festa


Antropologia
Morena Barroso de Cosme e Damião no Rio de 2015 UFRJ M CAPES candomblé;criança
Social
Martins de Janeiro

Ìtàn - oralidades e escritas: um


FERREIRA, estudo de caso sobre cadernos de
2015 UERJ M Educação BDTD terreiro; criança
Marta hunkó e outras escritas no Ìlè Aṣé
Omi Larè Ìyá Sagbá

A construção da memória afro-


FERREIRA, Ciências das
brasileira na manifestação dos 2013 UNICAP M BDTD religião; criança
Eliene Martins Religiões
tambores mirins

Experiências de infâncias com


SOUZA, Ellen candomblé;
produções de culturas no Ilê Axé 2016 UFSCar D Educação BDTD
de Lima infância
Omo Oxé Ibá Latam

ANJOS, Juliana As joias de Oxum: as crianças na candomblé;


2016 USP M Educação BDTD
Olivia dos herança ancestral afro-brasileira infância

Importante salientar que o trabalho de Ferreira Neto (2014) foi escolhido por estudar a
mitificação de uma criança falecida aos 7 anos de idade, a qual é investigada a partir da Geografia
da Religião, que estuda as relações entre as motivações religiosas e de atuar nos espaços. Hauer
(2014), por sua vez, abarca o sistema simbólico vivido pelos habitantes de um aterro sanitário
povoado por diferentes crenças, incluindo as religiões de matriz africana. Assim, embora o primeiro
trabalho não se envolva diretamente com as religiões afro-brasileiras e o segundo abarque todas
as categorias etárias, ambos foram considerados importantes por dialogarem com a cartografia,
bem como pelo interesse nas relações comunitárias permeadas pela ideia de religião.
O quadro demonstra que as produções sobre infâncias de terreiro permanecem sendo
protagonizadas pela Educação (7 trabalhos publicados), seguido pela Antropologia (2) e a
Psicologia (2). Porém, na comparação com pesquisas constantes nesses trabalhos de pós-
graduação, observa-se que esta atenção vem sendo, ainda que timidamente, compartilhada com
as áreas de Ciências Sociais (1) e Serviço Social (1).
Feita a seleção de trabalhos, a pesquisadora prosseguiu com a leitura integral dos mesmos,
etapa na qual percebeu que a escola é abordada de diferentes maneiras. Quatro trabalhos
colocam a instituição escolar no foco de sua pesquisa, como o de Roif (2016), que escreveu um
trabalho sobre sua vida, desde a infância, quando fora iniciada no candomblé, até a idade adulta,
ao ingressar na rede municipal de educação do Rio de Janeiro para trabalhar como professora de

Página 318
Ensino Religioso Afro, provocando reflexões sobre suas relações com a sociedade e o sistema
educativo a partir de diferentes lugares (criança/adulto, professora, adepta das religiões de matriz
africana etc.). Outros oito trabalhos fazem menções à instituição educacional ao transcrever as
falas dos sujeitos da pesquisa e nas referências a autores que pensam a infância a partir do espaço
escolar. Um deles é o de Freitas (2015) sobre as interações entre infância e adultez nas festas de
Cosme e Damião na capital carioca. Outros dois trabalhos ainda deram uma dimensão um pouco
maior à escola, dedicando pelo menos um capítulo à relação dos sujeitos pesquisados com ela,
enquanto somente um trabalho não fez menção.
Outro dado obtido a partir da leitura integral diz respeito aos percursos metodológicos
escolhidos. A análise dos discursos que emergiram em entrevistas, encontros informais e rodas
de conversa foi a escolha de 6 trabalhos, enquanto outros 8 optaram pelo cunho etnográfico.
Somente o trabalho de Santos (2014), sobre crianças (in)visíveis que emergem dos discursos
políticos sobre educação infantil, tem por método de escolha a cartografia. No entanto, salienta-se
que esta classificação não deve ser considerada de forma universalizante, uma vez que as teses e
dissertações em questão preocupam-se em advogar a partir de um encontro de métodos; isto é, a
escolha de um caminho investigativo não proibiu aos autores o uso de recursos de outros métodos.
O encontros de epistemologias e metodologias emergem em trabalhos como o de Pagliuso (2012),
que propõe uma Etnopsicologia para investigar os encontros entre o subjetivo e o social.
Um último critério que merece destaque é o fato de que nem todas as teses e dissertações
escolhidas são construídas com crianças. Seis trabalhos não trabalham a partir de diálogos feitos
diretamente com elas, como a pesquisa de Ferreira, Eliene (2013), que trabalha com narrativas
adultas, necessárias para pensar a construção da memória de um grupo de maracatu composto
por crianças e adolescentes. Queiroz (2015) aponta que teve dificuldades em acessar crianças
para sua pesquisa sobre as vivências de crianças de terreiro na escola, o que a levou a trabalhar
com depoimentos de adultos. Esse dado chama atenção para as limitações que o campo concede
à realização da tão almejada “pesquisa com crianças” e as condições de possibilidades que
podem emergir das pesquisas feitas com adultos, inclusive trazendo à luz outras infâncias. É o que
acontece com dois trabalhos que abarcam depoimentos de erês1 que se manifestam em médiuns
adultos, como na pesquisa de Souza (2016), que traz essas vozes somadas às das crianças
terrenas, para pensar as culturas infantis nos terreiros de Candomblé. A forma como as vozes dos
sujeitos pesquisados são trazidas também se diferencia entre as pesquisas. Ferreira, Marta (2015)
abarca todas as etariedades por meio de registros escritos – os cadernos preenchidos no hunkó2
durante as obrigações de uma casa de Candomblé.

1 Os erês são efinidos por Sales Júnior (2013) como uma manifestação do orixá como criança, a voz espiritual
infantil
2 “Lugar sagrado onde o iniciado se recolhe para os rituais” (FERREIRA, Marta, 2015).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Conclusão

O uso de descritores mais amplos possibilitou a análise mais ampla do que vem sendo
pesquisado sobre infâncias e as cosmovisões afro-brasileiras. Neste sentido, determinadas
escolhas provocaram reflexões que usualmente não emergem nos levantamentos de estado de
conhecimento, quando estes seguem na direção de fortalecer as referências de pesquisa, sem
intenção em refletir sobre o panorama de produção. Uma das revelações desta pesquisa é o
apontamento de um total de 430 trabalhos envolvendo religiosidades e infâncias publicados no
intervalo definido pela pesquisadora, dos quais as pesquisas sobre religiões de matriz africana
representam 4,19%, sendo os outros 95,81% voltados predominantemente às religiões cristãs.
Este percentual acrescenta uma outra leitura para o que já vem sendo dito sobre a existência
de uma produção ainda rarefeita sobre o tema. Almirante (2015), autor de uma das pesquisas
selecionadas – a qual trata das relações das crianças que frequentam terreiros de candomblé
com este espaço e também com a instituição escolar – anuncia que sua pesquisa de estado de
conhecimento apontou um total de 17 teses e dissertações produzidas de 2002 a 2013 – o dobro do
tempo delimitado pela pesquisa de que trata o presente trabalho – a maior parte das investigações
promovidas em programas de pós-graduação nas áreas de educação e antropologia. Já Ribeiro
(2016), que desenvolveu uma pesquisa sobre as crianças de terreiro com base na teoria histórico-
cultural de Vigotskyi, apontou 4 trabalhos entre 2010 e 2015. Ressalvando que cada pesquisa
em bases de dados tem circunstâncias específicas de realização, uma comparação quantitativa
poderia levar à conclusão de que há um crescimento do interesse em investigar as infâncias nas
religiões de matriz africana. No entanto, em relação à totalidade das pesquisas envolvendo infâncias
e religião, pode-se concluir que a atenção dada à matriz africana ainda é extremamente reduzida,
correspondendo à manutenção da subalternidade imposta às religiões de matriz africana desde a
sua gênese (OLIVEIRA, 2014).
Há que se pensar, ainda, que para além das circunstâncias que particularizam cada
pesquisa, existem as diferentes maneiras de se interpretar os dados. Neste sentido, Anjos (2016)
propõe uma distinção entre o que está sendo dito sobre cultura afro-brasileira nas pesquisas
envolvendo infâncias e o que é dito sobre estas nas investigações que se interessam pela matriz
africana na cultura brasileira.
São intermináveis os questionamentos e possibilidades sobre os rumos que têm tomado
as pesquisas envolvendo infância e religiosidades afro-brasileiras. Diante da importância em
considerarmos, na concepção do foco de pesquisa, de onde estamos partindo e que direção
pretendemos tomar, o ato de pesquisar nas bases de dados situa nossa pesquisa no panorama
da produção científica, ao mesmo tempo em que sinaliza para onde podemos ir, ao indicar as
demandas mais atuais.

Página 320
Referências

ALMIRANTE, Kleverton Arthur de. Infância religiosa do candomblé: os olhares dos pesquisandos,
etnografia e educação. 2015. 170 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Educação Brasileira, Centro de Educação, Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2015.

ANJOS, Juliane Olivia dos. As joias de Oxum: as crianças na herança ancestral afro-brasileira.
2016. 130 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.

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grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1992.

FERREIRA, Eliene Martins. A construção da memória afro-brasileira na manifestação dos


Tambores Mirins. 2013. 153 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, Pró-Reitoria Acadêmica, Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2013.

FERREIRA NETO, Manoel Pedro. A religiosidade popular da pedra do menino em Cuité: fé e


devoção na região do Curimataú paraibano. 2014. 198 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de
Pós-Graduação em Ciências das Religiões, Centro de Educação, Universidade Federal Paraíba.
João Pessoa, 2014.

FREITAS, Morena Barroso Martins de. De doces e crianças: a festa de Cosme e Damião no Rio
de Janeiro. 2015. 135 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015.

VON HAUER, Karla Dias Teixeira. Religião, criança e pobreza: etnografia no aterro sanitário de
Aparecida de Goiânia-GO. 2014. 157 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, Faculdade de Ciências Sociais-FCS, Universidade Federal de Goiás.
Goiânia, 2014.

OLIVEIRA, Rachel de Souza da Costa e. Intolerância religiosa na escola: uma reflexão sobre
estratégias de resistência à discriminação religiosa a partir de relatos de memória de adeptos
de Umbanda. 2014. 114 p. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014.

PAGLIUSO, Ligia. Famílias de santo: as histórias dos ancestrais e os enredos contemporâneos.


2012. 194 p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, 2012.

QUEIROZ, Karla Geyb da Silva. Convivendo com os orixás: a trajetória religiosa de crianças
adeptas ao candomblé e o contexto escolar. 2015. 167 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2015.

RIBEIRO, Jaqueline de Fátima. Infância e terreiro: um estudo de vivências de crianças que


freqüentam o espaço de uma religião de matriz africana. 2016. 166 p. Dissertação (Mestrado)
- Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2016.

Página 321
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

ROIF, Patricia de Oliveira. Narrativas de uma professora de Ensino Religioso Afro em uma
escola do município do Rio de Janeiro. 2016. 112 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

SALES JÚNIOR, Dário Ribeiro de. Sobre olhar e aprender: um estudo sobre o processo de
aprendizado religioso das crianças candomblecistas. 2013. 84 p. Dissertação (Mestrado) -
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013.

SANTOS, Solange Estanislau dos. As crianças (in) visíveis nos discursos políticos da educação
infantil: entre imagens e palavras. 2014. 162 p. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação
em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2014.

FERREIRA, Marta. Ìtàn - oralidades e escritas: um estudo de caso sobre cadernos de hunkó e
outras escritas no Ìlè Aṣé Omi Larè Ìyá Sagbá. 2015. 101 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de
Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação e Humanidades, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015.

SOUZA, Ellen de Lima. Experiências de infâncias com produções de culturas


no Ilê Axé Omo Oxé Ibá Latam. 2016. 179 p. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação
em Educação, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos. São
Carlos, 2016.

(Footnotes)
1 Nesta coluna, encontram-se textos curtos, apresentações orais e cartazes.
2 Refere-se ao programa de pós-graduação pelo qual a pesquisa foi realizada.
3 Plataforma onde a pesquisa foi indicada pela primeira vez.

Página 322
SEGREDO DE QUARTO DE SANTO: O SAGRADO DOS SÍMBOLOS EM UMA
CASA DE CANDOMBLÉ SERGIPANA

TORRES, Díjna Andrade. (UFSC)


dijnatorres@gmail.com

Resumo

Esse ensaio não pretende dar conta de classificar todos os símbolos que poderiam justificar-se como
sagrados ou secretos dentro de uma religião cuja infinidade de significados já denota a impossibilidade
dessa categorização totalizante. O que pretendo aqui é tentar problematizar através de leituras sobre
simbolismo e performance, como os símbolos que constituem uma categoria de segredo e sagrado
operam dentro de um contexto específico, e de que forma, se há uma forma, eles transformam e
constroem realidades através dos meios pelos quais são operados. Inicialmente, podemos tomar como
ponto de partida uma discussão sobre como os diferentes símbolos são constituídos e qual é o caminho
percorrido para chegar a uma interpretação ou significado do que esse símbolo é formado ou o que ele
se propõe a fazer. Retomando o contexto inicial, que é o de rituais em que operam a noção de segredo
e sagrado no Candomblé, é importante destacar que esta é uma religião cujos ritos, símbolos e rituais
variam a cada casa, região, inclusive lideranças. O Candomblé é uma religião afro-brasileira oriunda de
diversos elementos vindos de diferentes povos de países africanos como Nigéria, Angola, Togo, Benin
etc. Essa congregação de ideias, ritos, rituais, foram convergidas em grupos que se uniram com ideais
religiosos em comum, com o intuito de continuar as suas práticas e cultos às deidades africanas, e a
esses cultos, denominamos de religiões afro-brasileiras, que, dentre elas, estão as casas e adeptos que
os identificam como Candomblé. Neste sentido, a escolha que fiz foi por uma casa que se identifica
como uma casa de culto de Candomblé, localizada em Riachuelo-SE, cuja zeladora ou mãe de santo
tem 45 anos de prática religiosa no Candomblé, e 63 anos de idade.

Palavras-chave: Candomblé. Símbolos. Segredo. Sagrado.

Página 323
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O estudo dos símbolos e das ações rituais faz parte de discussões das Ciências Sociais
desde a escola sociológica francesa, no final do século XIX- início do século XX, com a definição
das regras do método sociológico e o estudo das representações coletivas, em que uma das
preocupações da época era como definir fenômenos sociais – fatos sociais, pensando através das
formas de classificação, em que os ritos e símbolos estavam ligados a essa definição classificatória
e valorativa, que a partir dos estudos sobre a religião de Durkheim, o autor apresenta o símbolo como
tradução de alguma necessidade humana dentro dos ritos e mitos das sociedades primitivas, ou
seja, para ele, é o grupo quem irá legitimar os símbolos, logo é o papel do coletivo quem determina
a importância dos símbolos e sustenta a repetição dos ritos para que haja coesão entre essas
relações e o coletivo. A partir de então, autores como Van Gennep, introduziram o rito como um dos
elementos críticos da vida social, afirmando que sem os ritos, a sociedade não existiria. Ou seja,
todos passamos por ritos ao longo da vida, e esses possuem uma estrutura que liga-se a essas
etapas, agindo direta ou indiretamente no indivíduo.
Em seguida, a contribuição veio da escola britânica, com Max Gluckman, Edmund Leach
e Victor Turner, em que o foco está no estudo de como as instituições funcionam dentro de uma
totalidade. Turner (1974), ao analisar a sociedade como um processo ritual, acredita que os rituais
servem para preencher necessidades não preenchidas no cotidiano, através do equilíbrio entre
estrutura e communitas1. Para o autor, o ritual significa uma conduta formal prescrita em ocasiões
não dominadas por uma rotina tecnológica e relacionadas à crença em seres ou forças místicas.
Ele acrescenta ainda, que as celebrações rituais se apresentam como fases específicas dos
processos sociais, em que o símbolo constituirá a menor unidade do ritual.
Segundo Turner (1967:30), os símbolos rituais podem condensar muitos significados em
uma só forma, porém ele deve ser compreendido pela sociedade, ou não terá espaço dentro desta
esfera. O símbolo dentro de um processo ritual tem a finalidade de indicar e se não indica nada aos
atores sociais são irrelevantes. Turner (1967:35) ainda afirma que os símbolos rituais se referem ao
que é normativo, aos valores compartilhados de que depende a vida comunitária, ou seja, também
dentro da esfera religiosa, o símbolo é uma força e influencia as ações dentro deste campo.
Fazendo um paralelo com Firth, que segue uma linha relativista em seu texto ‘A question
of terms’, pensando numa definição relacional do símbolo ao sujeito, e entre o símbolo e o que ele
representa, propondo uma conexão entre elementos para o estudo simbólico. Ou seja, quando
pensamos em símbolos, que conceitos estamos delineando para afirmar o que é um símbolo ou
não? É necessário destacar, que para Firth, quando pensamos nessas relações entre os elementos,
que seriam as estruturas, pensamos também nas relações entre os símbolos, mas deixando claro
que essas relações são abstrações e não conteúdos. Já para Leach, por exemplo, há uma crítica
aos antropologxs, em que o autor afirma que essxs tendem a querer explicar ou decodificar os

1 Segundo Turner (1974), communitas é o nível atingido por uma comunidade em que esta passa a compartilhar
de uma experiência comum, geralmente através de um rito de passagem.

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símbolos, em vez de pensar na explicação dos fatos, e quais seriam esses fatos que necessitam
de uma explicação, voltados também para a questão contextual, ou seja, de que maneira o sentido
e a imagem,por exemplo, estão ligadas a objetos e fatos do mundo externo sem que tendamos
a definir ou opor os sentidos metafóricos. Portanto, o nosso conceito de símbolo dependerá de
nosso ponto de vista sobre a realidade.
Pensando a partir disso, e em como Firth critica a arbitrariedade dos estudos simbólicos,
como podemos elaborar um conceito de um símbolo, por exemplo, sabendo que temos o nosso
próprio ponto vista a partir de nossa experiência, dentro do contexto do Candomblé, em que cada
casa/terreiro possui especificidades e predefinições singulares do que seriam esses símbolos ou
signos? Como pensarmos nesse estudo sem que se tenda a enveredar a oposição de termos ou
comparação, visto que mesmo num contexto geral, se tomarmos o Candomblé, por exemplo, os
rituais, vestes e objetos que se relacionam ao sagrado variam de significado em cada contexto?
É importante também não dar dimensões descontextualizadas aos símbolos, para explicar
alguns conceitos, deve-se lembrar da ambigüidade e complexidade deles, do tempo e local em
que foram analisados e desenvolvidos. Se olharmos para os variados pontos de vista e variados
ritos e cosmologias como um produto da história tira a nossa atenção de construir padrões e
modelos de ordem em manifestações culturais. E é a partir dessa discussão, que proponho trazer
elementos sobre o que constitui o segredo e sagrado nesta casa de axé especificamente e quais
as suas relações.

1 Interpretar sem definir

Diante de exemplos de campos diversos, de países outrora considerados como países cujas
religiões são primitivas, Geertz tem nos mostrado que essas regiões são sistemas/sociedades
complexas, cuja multivocalidade, multiplicidade de significados, deslocamento dos mesmos, e
modos de fazer o, ou os rituais, carrega uma subjetividade determinada pelo indivíduo, e portanto,
como a realidade daquele indivíduo pode ser interpretada através do sistema de símbolos que ela
traz.
Ao que parece, Geertz está mais preocupado com o modo como eles pensam e interpretam
a religião do que com uma definição e classificação que é baseada em métodos científicos
ocidentais, e em como a religião influencia no curso da vida. Ou seja, ele pensa na questão da
interação, o que as pessoas estão comunicando, quais são as relações e significados que estão
sendo compartilhados entre as diferentes culturas. O interessante da escolha desses artigos e dos
textos que estão em A interpretação das culturas, é que há sempre uma revisão desses conceitos
a luz de outras formas de interpretação, e um deslocamento diante de uma contextualização em
que os conceitos formulados eram engendrados e fixos, no sentido em que ele parece ampliar
essa discussão em relação a definição, não abandonado tudo que foi anteriormente pensado a
respeito do tema.
E pensando nesse interacionismo simbólico e nas formas de comunicação, passamos a

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

questionar e a perceber aspectos performativos que acontecem entre essas relações, enfocando
em elementos não discursivos dos rituais, ou seja, analisando elementos que assumem um
papel multivocal e buscando entender como esses elementos produzem a eficácia, e quais são
os efeitos que esses elementos combinados vão produzir ou provocar nos rituais analisados por
esses autores, como o ritual de cura nas sessões espíritas, ou no ritual de circuncisão, por exemplo.
Pensando nisso, vimos que Tambiah afirma que a linguagem da magia não é qualitativamente
diferente da linguagem usual, mas que ela atua como uma forma intensificada e dramatizada. Ele
afirma que as mesmas leis de associação que se aplicam à linguagem em geral estão presentes na
magia e que a eficácia deriva do caráter performativo do rito. Para ele, os rituais partilham alguns
traços formais e padronizados, mas estes são variáveis, portanto, o ritual não pode ser considerado
falso ou errado em um sentido causal, mas, sim, impróprio, inválido ou imperfeito. Da mesma
maneira, a semântica do ritual não pode ser julgada em termos da dicotomia falso/verdadeiro,
mas pelos objetivos de expansão do significado, como uma continuidade ou conceitualizacão do
mesmo.
Para Schieffelin, esses elementos performativos, e a performance em si, não visa construir
uma realidade simbólica a fim de apresentar um argumento, explicação ou descrição, para ele, o
intuito da performance é fazer com que os participantes experimentem os significados simbólicos
como parte do processo ao qual eles já estão submetidos e atuando, ou seja, a performance
funciona através de uma dupla transferência vivenciada pelos atores e pelo processo de interação
entre os participantes e os símbolos discursivos e principalmente os não discursivos. O autor
aponta que o mundo não é algo concreto, e sim em constante expansão, e que a nossa questão
deve ser como esse mundo é produzido, uma vez que há essa construção de novas realidades.
Então, retomando trabalhos como o de Ortner, em que a questão do poder e controle irá
situar debates com um viés político, a cultura agora terá um papel central como o de construir
ideologias, que vão justificar certas desigualdades sociais. Ou seja, mais uma vez, é importante
pensarmos no contexto em que essas discussões emergiram e suas limitações dentro da
Antropologia Simbólica, justamente pelo fato de que naqueles contextos, tais problemas não
haviam emergido ou não haviam sido pensados de diferentes formas ou relevância, para que
se constituísse de fato uma questão a ser problematizada pelo estudo dos símbolos, e por
isso, algumas pessoas apontam a Antropologia Simbólica como teorias que não dão conta de
determinadas questões contemporâneas, mas porque estão fixadas num contexto atual como se
esses contextos e conceitos fossem fixos e não pudessem ser revisitados. Eis que surge então a
teoria da prática, que de acordo com Ortner, é “a teoria geral da produção de sujeitos sociais por
meio da prática no mundo e da produção do próprio mundo por intermédio da prática”. Ou seja, a
autora pensa na história como algo que é feita de duração, e não algo preso somente ao passado,
mas a períodos de tempo e uma análise de um momento em particular. Partindo disso, a autora
evidencia a prática como o estudo de todas as formas de ação humana, porém de um ponto de
vista político, pensando na ação como uma escolha pragmática, e que neste sentido, o ritual, para
ela, é uma forma de prática.

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2 Estrutura ritual no Candomblé

Fazendo um paralelo com Barth (2000), o foco nas particularidades que compõem a
estrutura de um ritual passa a ter uma importância central em trabalhos sobre cosmologias
religiosas, especialmente em pesquisas sobre o Candomblé. O que Barth aparentemente
pretende, não é demonstrar que um padrão pode ser arbitrariamente transformado em outro, e sim
,aplicar o modelo da subjetivação e reobjetivação através das oscilações cosmológicas. Exemplos
de variações de significados de acordo com os diferentes contextos, ou o mesmo contexto em
diferentes épocas. Para o autor, conceituar é simples, o exercício de conceituar o símbolo deve ser
o de construir uma harmonização de suas diversas conotações.
Porém, o discurso de Barth e outros teóricos não dão conta de pensar, que esse modelo
de subjetivação é uma tendência uma interpretação de um antropólogo, e que , portanto, há
limitações. De acordo com Keesing, os significados são ambíguos, os conceitos não são verdades,
e os antropólogos precisam reconhecer as suas limitações do que estão produzindo, pensando
também na importância do contexto neste sentido, pois o contexto e a interação também evocam
esses múltiplos significados.
Um dos elementos cuja importância para esses adeptos e a casa em questão, é a
preservação do segredo que, de acordo com a mãe de santo, constitui a sacralidade de diversos
símbolos, como as ervas utilizadas e a forma como elas são utilizadas nos rituais, frases e cânticos
em Yoruba para manifestar algo em determinado momento do ritual, a manipulação de facas e
navalhas, do sangue e dos bichos, também considerados sagrados, e todas as danças, vestes, e
atos performativos em que estão imbricadas o processo do transe, por exemplo.
A questão do sagrado nos rituais para os Orixás praticados por essa casa em questão, muito
se assemelha a uma relação de puro e impuro, como as relações de contágio citadas por Douglas
(1976). A autora trata dos rituais de pureza e impureza como atos religiosos que apresentam
noções extremamente funcionais no cotidiano das pessoas, especificamente no cotidiano dos
religiosos, buscando compreender esses fenômenos através da comparação entre eles e não
somente a análise e caracterização.

Em primeiro lugar, não esperaremos compreender o fenômeno religioso limitando-nos a


estudar as crenças em seres espirituais, mesmo que refinemos esta fórmula. Em certos
momentos da nossa pesquisa, necessitaremos talvez de examinar todas as crenças
conhecidas noutros seres: fantasmas, antepassados, demônios e fadas. Mas seguindo
Robert Smith, não suporemos que, tendo catalogado toda a população espiritual do
universo, captamos a quarta essência da religião. Em vez de construir definições exclusivas,
tentaremos comparar as diferentes concepções que os povos têm acerca do destino e
do seu lugar no universo. Em segundo lugar, enfim, não podemos esperar entender as
ideias dos outros sobre o contágio, sagrado ou secular, antes de nos confrontarmos com
as nossas. (DOUGLAS, 1976, p. 41)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Porém, como podemos comparar nossas ideias de contágio, pureza e impureza, se o


contexto é completamente diferente? Como podemos fazer uma comparação entre as nossas
formas, e as formas dos outros, se ao fazer isso, já estamos supondo que há um denominador
comum entre esses conceitos, e que há também mesmos conceitos nesses contextos, somente
com significados e interpretações diferentes. Portanto, pensar o símbolo como passível de
comparação ou como representação, deixa passar o processo de interação e subjetividades que
produzem esses significados, e não meramente uma representação de algo como já dado, pré-
estabelecido ou conceito fechado.
Por ser uma religião que está em constante transformação, a importância em especificar
não só o contexto, como também o elemento a ser pesquisado, figura fundamental. Exemplo disso
são os atos performativos relacionados aos rituais. O discurso no Candomblé, por exemplo, é visto
como algo materializado, não importa o que é dito, mas o que é feito. De acordo com Johnson
(2008), na prática, a performance tem mais importância e força que o discurso. Ou seja, o que o
autor quer dizer é que a ação no terreiro não é apenas comunicativa, indexicalizada a partir dos
objetos materiais, mas é performativa, o espaço no candomblé não é apenas o geográfico, onde
os corpos realizam o ritual, mas também relacionados à experiência da percepção.
E para entender essa dinâmica, julguei necessário recorrer aos estudos da performance,
que trazem uma conotação que surgiu justamente a partir de análises de dinâmicas. De acordo
com Langdon (1999), as teorias do rito e performance foram marcadas pela interdisciplinaridade
ou transdisciplinaridade como a autora denomina, e que o conceito de performance “surgiu de
dois paradigmas na antropologia atual: a vida social como dramaturgia, ou como drama social
(Geertz, 1983), e a “performance como evento”, que tem seu enfoque nas características e na
produção dos eventos performáticos”.
O enfoque que tem sido dado a partir desses eventos performáticos, é a reformulação
do conceito de cultura, no sentido de que ela não está sendo mais pensada como normativa,
homogênea e essencialista, ela tem sido pensada com enfoque no ator social como agente. E
ainda de acordo com a autora, esta visão de cultura não nega que as pessoas dentro do mesmo
grupo compartilham certos valores, mas que o ponto central e foco está na interação dos atores
sociais que estão produzindo essa cultura a todo momento.

Experiências passadas e tradição fornecem possíveis recursos para os indivíduos


interpretarem, entenderem e agirem no presente, mas é através da interação social que
a cultura emerge.” “os gêneros performativos não são limitados ao teatro, concertos,
palestras, como reconhecido no mundo ocidental, mas também incluem ritos, rezas,
cerimônias, festivais, casamentos, etc. (Bauman, 1992). São expressões artísticas
e culturais marcadas por um limite temporal, seqüência de atividades, programa de
atividades organizado, conjunto de atores, platéia, um lugar e ocasião para a performance.
Podem ser observadas numa experiência direta e única e, ainda mais importante, são
compostas de “mídia cultural”, ou o que Singer descreve como meios de comunicação que
incluem não só a linguagem falada, mas meios não- lingüísticos tais como cantos, dança,
interpretações performativas, artes gráfi cas e plásticas (Singer, 1972, p. 71). Performances
são uma orquestração de meios simbólicos comunicativos, e não expressões num único
meio. Elas resultam num conjunto de mensagens sutilmente variadas sendo comunicadas

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numa performance.” a “perspectiva performática” surge da preocupação de como as
culturas constroem e produzem seus gêneros particulares de performance.” (LANGDON,
1999, pg 23)

A questão que a autora problematiza e aponta como algo a enfocar é que nem todos os atos
de comunicação e narração são performáticos, então, Langdon afirma que “a experiência invocada
pela performance é importante e é uma conseqüência dos mecanismos poéticos e estéticos,
uma consequência dos vários meios comunicativos sendo expressados simultaneamente.” Seria
então a imagem fotográfica no Candomblé um ato performativo? Podemos então pensar a questão
do transe em frente às câmeras como performance? E essa performance atuaria como ruptura
do segredo e do sagrado, uma vez que o sagrado também se resguarda em segredo no quarto
de santo? Se tomarmos o ato performativo como vários meios expressados simultaneamente, eu
diria que sim. Pois ao pensarmos numa imagem fotográfica de um elemento ritual do Candomblé,
ou de uma pessoa em movimento no momento do transe, esses elementos que compõem essa
imagem não estão representando no sentido de reproduzir um personagem fixo e fechado, mas
estão em constante transformação, mesmo que a estrutura do ritual seja a mesma.
Apesar de haver uma padronização e sequência cronológica dos eventos e da utilização
material dos símbolos, nenhum ritual é igual ao outro. A imprevisibilidade é também um marcador
importante para esta e outras casas de culto afro-brasileiro. Não há como prever determinados
acontecimentos, os transes de algumas pessoas que não façam parte da família de santo e muitas
vezes, xs filhxs de santo que nunca passaram pelo processo de incorporação e que passam pela
primeira vez nestes rituais. Além disso, há também um território de disputa e relações de poder que
não fica evidente para “os de fora”, mas que é reconhecido pelos “de dentro”, como situações de
pais ou mães de santo de outras casas participar das festas não somente como forma de prestigiar,
mas para observar o que tem sido feito, se há “falhas”, se xs Yawós estão mesmo incorporadxs
com os orixás, entre outras situações que foram relatadas a mim depois que todo esse período
passou, e outras que vivenciei em outros processos rituais da casa.
Essas relações de poder e essa disputa também operam como símbolo dentro da dinâmica
social que é vivenciada por esses grupos, ao menos na cidade de Riachuelo-SE, em que a casa de
axé de que faço parte está. Toda essa simbologia material e imaterial não é visível nas fotos, nem
mesmo aos olhos de quem fotografa, ou de quem opera como interlocutor através das imagens
feitas. Há uma disputa nas vestimentas (que parecem as vestimentas da antiga corte, feitas com
tecidos caros e suntuosos), há uma disputa nas danças (os orixás que dançam bem, os orixás
que não dançam bem), disputa por público (festas mais cheias, menos cheias), decoração (salão
com muitas flores, tecidos etc.), cânticos, força do Rum, Rumpi e Lé (três atabaques que são
considerados como entidades por conta dos sons que emitem para chamar os orixás), enfim, toda
essa gama de símbolos que apareça através das relações e experiência de quem vê e vivencia
algo relacionado à religião ou próximo a isso.
A imagem fotográfica apresentaria então uma força performativa, constituída através

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

das formas de ação, do movimento, do não dito, das pessoas e objetos que compõem aquele
cenário naquele exato momento, e que não se repetirá, mesmo que o fotógrafo tente reproduzir
a mesma cena, no mesmo local, com mesmos objetos e personagens. Além disso, o transe, no
Candomblé, implica em uma forma de autoridade, ou seja, essa performance na religião implica
essa autoridade pela ambiguidade que todos esses símbolos e movimentos vão apresentar a
medida em que forem evocados. E dentro deste contexto, especificamente, retomando Tambiah,
são os símbolos que vão apontar para ele, e a cada revisitação ou reprodução de um mesmo ritual,
ou de fotografias, as maneiras de interpretação também irão mudar, e por isso os elementos no
Candomblé apresentam um certo tipo de poder, uma força ilocucionária, que irão engajar esses
atores, e irão produzir essa autoridade religiosa que está imbricada em todo esse processo de
interação desses atos simultâneos.

Conclusão
Por fim, pensando em dialogar a partir de Ortner com a teoria da prática, em que os símbolos
e rituais atuam com um viés político, sendo eles sagrados ou profanos, a exemplo do movimento
feminista, podemos tomar a questão do poder e conflito como algo central que norteia essas
discussões na Antropologia Simbólica, e utilizo esse termo pensando que essa teoria da prática
revisita as teorias do simbolismo, e portanto, tornar a Antropologia Simbólica como algo obsoleto
não faria sentido, diante de todas essas discussões em que vimos a transformação e avanços a
partir dessa Antropologia.
Para tanto, ao finalizar essas discussões com textos como o de Briggs e Lazar, por exemplo,
tomo que a cultura, assim como Briggs traz, é performada em pequenos atos (que para mim, seriam
os ritos), e que esses atos são dinâmicos, ou seja, são reiterados cotidianamente, transformados
através de contextos, momentos, situações, em que através do conflito e das relações irão ser
pensados. E neste sentido, através de Lazar, Briggs e outros autores, que demonstram que o
símbolo cria processos de comunicação, e relações que darão o seu significado ao contexto ao
qual ele está inserido e que também está transformando através da experiência, da prática, e
pensado como um ritual. Não podemos pensar mais a cultura como pensávamos antes, porque os
contextos e as apropriações dos símbolos e significados são diferentes, e para entender ou buscar
o significado de cada símbolo, precisamos primeiro entender em que contexto ele está inserido
e qual é a emergência do seu significado em cada um desses contextos. E é nesse sentido, que
devemos buscar entender essas reconstruções do cotidiano através desses estudos e conceitos
revisitados e constantemente reconfigurados.
Então tomar esse tipo de fotografia (a fotografia do sagrado ou segredo) como um “produto”,
podemos perceber que esse produto é formado por um conjunto de práticas, que vão além de
uma bricolagem de símbolos que se encaixam, mas que incluem uma série de fatores que atuam
simultaneamente, como o som, a ação, o movimento, que pode ser “lido” e interpretado como algo
que se expande para além do que é “visível” e montado num pedaço de papel ou num quadro na
parede.

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O que me parece é que essa revisitação e esses processos rituais, com enfoque na religião,
são processos comunicativos contínuos, que nunca cessam e que acontecem via símbolos,
apontados muitas vezes como secretos e sagrados, que variam de conceitos através da dinâmica
de seus contextos e atos performativos, portanto, penso que a forma mais coerente para tratar
com o uso dessas imagens e a sua circulação é pensar os processos pelos quais eu cheguei a essa
interpretação e como poderei passar isso para quem estiver lendo essas pesquisas. Afinal, não
podemos mais pensar numa vertente que dê conta de tudo, pois seria utópico, visto que o contexto
muda a todo momento, e essa reflexão sobre como podemos falar ou passar esse conhecimento
e em que contexto podemos fazê-lo é o que me parece ser o caminho mais pertinente e próximo
ao que pretende a Antropologia.

Referências

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

UM ENCONTRO DE FÉ E ADORAÇÃO ÀS SANTAS ALMAS: PERCEPÇÃO


ANTROPOLÓGICA EM TORNO DA REPRESENTAÇÃO DOS PRETOS
VELHOS NO GRUPO UNIÃO ESPÍRITA SANTA BÁRBARA- MACEIÓ/
ALAGOAS.

SILVA, Igor Luiz Rodrigues da (UFSC)


igorluizcso@gmail.com
PUENTES, Cláudia Cristina Rezende (UNINASSAU)
claudiacult@gmail.com

Resumo

Este trabalho parte de reflexões da representatividade e do misticismo que gira em torno dos Pretos
Velhos no terreiro de Umbanda “Grupo União Espirita Santa Bárbara”, na cidade de Maceió, Alagoas,
de como as figuras de Vovó Maria Conga e Pai Joaquim, são construídas pelas narrativas históricas
dos mais velhos, em torno dos africanos escravizados e incorporadas no presente. Fazendo ecoar
o senso de pertencimento e ancestralidade negra, como fatores que organizam e sistematizam a
realidade dos filhos e filhas de santo dentro do espaço-ritual a partir das festas e feijoadas preparadas
para louvar as Santas Almas. E quais os elementos simbólicos e temporais, que permitem a construção
do respeito, da identificação, da perpetuação das tradições dentro do espaço sagrado e fora deles,
pelos mais jovens, como forma subjetiva e objetiva de sistematizar as suas próprias vidas? Assim, esse
trabalho é construído a partir da própria realidade dos pesquisadores enquanto adeptos da religião,
dialogando com o saber-fazer antropológico e os métodos de investigação próprios da disciplina,
observação participante, pesquisa de campo, uso de recuso imagético e audiovisual, o que permite ter
uma compreensão significativa e perceptiva dos sistemas culturais que são criados e recriados para
buscar ir de encontro as representações de um passado distante e sagrado.

Palavras-Chave: Religião. Representação. Pretos Velhos. Umbanda.

Página 334
Introdução

O ano? 2016, o dia? 18 de agosto, cidade? Maceió, o Estado? Alagoas. O leitor deve
estar se perguntando o porquê do início deste texto, situando e determinando uma data e local
específico. Adianto que se trata do dia que me surgiu a ideia de produzir este trabalho. Foi no
dia 19 de agosto de 2016, na cidade de Maceió, capital do estado de Alagoas, durante três dias
eu estava1 em obrigação no Grupo União Espirita Santa Bárbara, centro de Umbanda que está
localizado na cidade universitária, no bairro do Village Campestre II2. Foram três dias de intenso
processo de autoconhecimento, de reclusão, da busca incessante pelo silêncio e entrega espiritual
aos preceitos que regem a Umbanda3, junto com minha irmã de barco, Larissa Fontes4, entre um
momento de silêncio e outro, quebrados para relatar sobre os acontecimentos que se emolduram de
forma bastante particular com cada um, eis que destaco, um dos vários “sonhos” que tive durante
uma das noites5 (AUGÉ, 2014), em resguardo espiritual. Este “sonho” foi conduzido pelos Pretos
Velhos que, naquele momento, me incumbiam a missão de trabalhar para o “nosso povo”, através
da elaboração de ensaios ou escritos que pudessem propagar a religião e a nossa fé, logo Larissa
(a irmã de barco), já pesquisando sobre as religiões em seu projeto de doutorado, me questiona
se não é esse também o caminho a seguir, poderia estar pensando também em fazer um projeto
de doutorado voltado para esse campo. Passados algum tempo, o projeto se estabelece com
outros diálogos científicos, e a missão que naquele dia recebi, culmina na pesquisa e elaboração
deste trabalho, que hora apresento sobre a representação dos Pretos Velhos na organização e
manutenção das tradições ancestrais no Grupo União Espirita Santa Bárbara, devidamente
autorizado pela Vovó Maria Conga e Pai Joaquim, que são os mentores espirituais do GUESB e
sob a benção dos Pretos Velhos que nos acompanham6.

1 Nesse momento, eu Igor, falo da minha experiência de iniciação como forma de trazer à tona os aspectos
simbólicos que norteiam a pesquisa e de como se dá a segunda iniciação, deste modo, me situando como um
pesquisador ao mesmo tempo em que desenvolvo e começo de forma mais significante a me posicionar como um
filho de santo.
2 Falaremos mais sobre a estrutura do GUESB mais adiante.
3 Como a abordagem central do trabalho, não é entender mais profundamente a Umbanda, limitamos a
dizer de forma bastante simplificada, que a Umbanda de acordo com PINTO (2014): “[...] é um fenômeno religioso
genuinamente brasileiro. Ela traduz pelo culto à ancestralidade dos povos originários indígenas, como os verdadeiros
donos da terra do Brasil, e dos povos africanos, como pertencentes à formação da cultura brasileira. [...] A Umbanda
não é uma religião de dogmas. O estudo do livre-arbítrio está presente o tempo todo em sua prática. [...] Essa crença
baseia-se no princípio da caridade gratuita e na compreensão reencarnacionista, sem a qual não seria possível
compreendermos os nossos conflitos e nem mesmo o porquê da existência das Entidades da Umbanda.” (PINTO,
2014: 33).
4 Larissa Fontes, é também antropóloga, faz seu doutorando em antropologia em Lion-França, e também
realiza pesquisas em torno da temática sobre religiões de matriz africana em Alagoas.
5 “Em muitas culturas mundo afora, a noite não é somente esta porção do tempo que sucede o dia ou precede,
mas igualmente outra modalidade de vida diurna, que por intermédio do sonho lhe dá continuidade, a interroga, a
explica ou a modifica. ” (AUGÉ, 2014: 50).
6 Tenho a honra de ser protegido e amparado por um Preto Velho que até este momento se apresenta como
sendo um pescador das águas do Rio São Francisco e cuja sua presença fora sentida durante a Festa, Louvação e
feijoada dos Pretos Velhos do corrente ano. Já a Vovó que acompanha e é mentora espiritual da pesquisadora e Mãe
Pequena do GUESB, Cláudia Puentes, se apresenta com o nome de Maria do Cruzeiro.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Foi através de um dos conselhos da Vovó Maria Conga, que Mãe Neide Oyá D’Oxum,
deu início as atividades do terreiro, que hoje leva o nome de Grupo União Espirita Santa Bárbara,
estruturando em torno da fé, da caridade e do respeito, um dos mais reconhecidos terreiros de
umbanda de Alagoas. O GUESB, para além de desenvolver as atividades que cabem a um terreiro
em termos de produzir a acolhida dos seus membros, desenvolvimento da mediunidade e da
espiritualidade, também tem desenvolvido trabalhos sociais, educacionais com crianças, jovens
e adultos que estão situados no entorno do terreiro e vivem na vulnerabilidade social, através de
Centro de Inclusão Social Inaê, da Creche Curumim, e parceria com o Instituto Feminista Jarede
Viana e Instituto Coca-Cola, além de se posicionar fortemente na luta contra as intolerâncias
religiosas, discriminações e preconceitos que violam os direitos do povo de santo, através de
atuação nos movimentos sociais e nos espaços de tomada de decisões.
Assim, o trabalho foi desenvolvido a partir de uma primeira experiência e contato com a
Festa, Louvação e feijoada dos Pretos Velhos no ano de 2016, e finalizando agora em 2017, como
pesquisadores, e como dito anteriormente, filhos da casa, procurando dialogar com pressupostos
teóricos que pudessem contribuir para a percepção, no sentido de que tal realização mental, já é em
si mesma, uma ação, INGOLD (2002), atentando para o fato de que a produção de conhecimento
está em constante processo de elaboração, com narrativas contínuas através do registro e
emissão de sinais próprios de cada interação em um ambiente que se organiza. Neste sentido,
ao possibilitar adentrar no mundo sagrado dos Pretos Velhos, é preciso produzir mecanismos de
se sentir parte, de ser também um instrumento preceptor que se molda a partir dos contatos, dos
gestos, dos diálogos e se transforma, transformando o repertório de possibilidades do lugar e de
ver o que acontece nas múltiplas e conexas realidades que se moldam, como uma teia de aranha,
que serve de base para sua concretude.
Retomando à questão que dá corpo a essa pesquisa, quais os elementos simbólicos e
temporais, que permitem a construção do respeito, da identificação, da perpetuação das tradições
dentro do espaço sagrado e fora deles pelos mais jovens, como forma subjetiva e objetiva de
sistematizar as suas próprias vidas? Para responder a provocação lançada, utilizamos da pesquisa
de campo como meio seguro para compreender os processos constituintes da representação
social e espiritual que existe nas figuras dos pretos velhos, pois como bem coloca AGIER (2015), a
imersão no campo, possibilita ao antropólogo múltiplos olhares e reflexões.
Os grandes acontecimentos assim como os pequenos momentos da vida ele acredita
ser possível transformá-los em uma riqueza: uma cultura em formação, uma política dos
lugares, uma inovação social. Ele passa o tempo imerso a observar a vida cotidiana, para
lhe reconstituir a forma e o sentido na escrita de um texto, às vezes de um filme, agora
também em um produto multimídia.

As dores, as alegrias, as interrogações das pessoas que ele encontra e sobretudo, suas
respostas aos problemas, às vezes, às desgraças, que se apresentam a elas, constituem a
base e a “matéria” de sua reflexão. (AGIER, 2015: 10).

O trabalho também contou com o uso de aportes imagéticos, que fornecem uma ampliação

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dos contextos que estão sendo reproduzidos, modificados e transformados, permitindo que
o campo de visão possa estabelecer contínuos processos de percepções e modos de captar
momentos e usá-los como importantes instrumentos de fazer lembrar e narrar, conduzindo os atores
envolvidos no trabalho, construírem seus próprios caminhos de representação e sustentação dos
seus aportes simbólicos, bem como, utilizamos entrevistas estruturadas como forma de pontuar
o que cada um tem de especifico. Com a história de vida e a história oral, esperamos que nos
forneça uma estrutura consistente a fim de construirmos um quadro conceitual e explicativo que
dialogue com a realidade observada. A memória será outro mecanismo analítico utilizado de forma
recorrente na pesquisa, pois se configura como uma rica fonte de conhecimento, “Contudo, se a
memória coletiva tira sua força e sua direção por ter como base um conjunto de pessoas, são os
indivíduos que se lembram enquanto integrantes do grupo” (HALBAWCHS, 2006: 69). A memória
mais do que uma construção produzida na (e pela) história é construída no contexto social, de
acordo com seu grau de importância, (BACHERLARD, 1994: 48).

1 Os Pretos Velhos

Os Pretos Velhos, são entidades que possuíram vida na terra, que andaram a desbravaram
o mundo, aportaram no Brasil através dos processos escravocratas que perturbou todo o mundo
nos idos do período da colonização. Para Flávia Pinto (2014), os pretos velhos foram pessoas
sábias que vivendo nas senzalas, aconselhavam e, ainda assim, se revoltavam com a escravidão.

Eram as velhas parteiras, os cozinheiros, as amas de leite, curandeiros, rezadeiros,


mandingueiros detentores de força, resistência e sabedoria, que faziam os serviços mais
próximos aos senhores da casa-grande. Eram também os que guardavam os segredos da
cultura africana e, com isso, curavam as enfermidades e cultuavam seus ancestrais Orixás,
mantendo viva a religiosidade que hoje no Brasil tem os nomes de Umbanda e Candomblé.
Existem também Entidades que se manifestam como Pretos Velhos que foram, em vida
anteriores, sacerdotes, feiticeiros, magos, curandeiros, médicos tradicionais, parteiras
e tantas outras vivências em que acumularam domínio sobre os diferentes campos de
magia. Agora retornam à condição de sábios ancestrais na forma de Entidades, para
doarem seu conhecimento, sabedoria e poder de cura, auxiliando na evolução planetária.
(PINTO, 2014: 107).

Os Pretos Velhos se constituem como as figuras centrais da Umbanda, justamente por


recolocar a figura do negro no centro da religião, estabelecendo ligações históricas e entendendo
a importância da resistência, dos processos de sofrimentos e castigos, vivenciados por aqueles
que foram escravizados, que se tornaram parte fundamental deste país através de sua força
transformadora. São os mestres que orientam, incorporados, sobre as adversidades da vida
de cada um que busca os conselhos.
Os pretos-velhos tal como incorporados (em duplo sentido) pelos umbandistas parecem

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

ser produto de um processo abrangente de sacralização e mitificação de personagens


e fatos históricos, calcado na necessidade de reatualização e expressão de memórias
profundamente arraigadas no âmago das comunidades afro-brasileiras desde os primeiros
tempos de suas afirmações culturais e identitárias. Memórias que guardam os momentos
mais significativos e coerentes das vidas humanas; vozes que ecoam na história e em
vívidas experiências pessoais onde singular e coletivo emergem e se encontram (Casal,
1997), e a experiência de cada um pode mover-se através das lembranças e vidas dos
outros, ganhando alcance comunitário e expressando situações comuns ao grupo (Bairrão
& Leme, 2003).

Para além da representação dentro dos terreiros, espalhados Brasil afora, os Pretos Velhos,
juntamente com os Exus e Caboclos, são as entidades mais evidenciadas, mais populares,
incorporadas ao cotidiano e a vida da população brasileira, evidenciando a existência histórica
e as ligações do presente com o passado, são portanto, os pilares fundamentais que podem
vir a ser usados como referências para a estruturação das casas de umbanda, seus rituais e
manifestações levam para esses espaços sagrados, uma grande quantidade de seguidores, como
acontece por exemplo no GUESB, durante a tradicional feijoada, que ocorre sempre no dia 13 de
maio. Segundo Tia Christina7:

Os Pretos Velhos, eles representam os meus mestres, como eu disse antes, eles nos
ensinam através das suas bênçãos, das suas palavras, quando nós conversamos com os
Pretos Velhos ou nos consultamos, eles passam isso, são pessoas que mostram toda as
questões que passaram enquanto escravizados nesse plano, e é todo uma, são como se
fossem monges né? Nos passam toda uma confiança, toda uma força, são muito
importantes pra gente. E a Umbanda pra mim, é toda representada na figura do Preto
Velho. (Entrevista em Maio de 2017).

Para Erika, que entrou no terreiro em 2008, através do Projeto Inaê, mas ainda não possui
obrigação feita na casa mas que, exerce um papel muito significativo no cuidado com os Pretos
Velhos, pois é ela quem troca o café deles todas as terças-feiras, é muito importante esse ritual
e o contato com as entidades. Ela faz isso porque é muito devota, e ao mesmo tempo eles são
fontes de sabedoria, de muita paz e calma. Para Yaçannã, que está há 15 anos no terreiro e tem 10
anos de iniciação, os Pretos Velhos são entidades muito importantes na organização da casa. Para
Roseane, que já é bastante antiga na vida de santo, mas no GUESB só está há um ano, os Pretos
Velhos transmitem ensinamentos e sabedoria. O Ogã da casa, Milton Júnior, que nasceu e cresceu
dentro da casa de santo, ou seja, no GUESB: “Os Pretos velhos são seres de luz, que nos ajudam,
acalmam, acalentam e nos orientam na prática do bem, do amor e da caridade, nos caminhos da
verdade. ” (Entrevista em maio de 2017). Segundo Rayanne, que tem pouco tempo na casa e que
ainda não foi iniciada, mais ou menos um ano, mas participa ativamente dos rituais, relata que os
Pretos Velhos ajudam na compreensão das diferenças, a respeitá-las.

7 Christina Maria Queiroz de Jesus Morais, é feita na Umbanda há 23 anos, filha de Oxalá, Iemanjá, Xangô
e Ogum, reside na cidade do Rio de Janeiro, e todos os anos, vai para Maceió, para participar dos rituais da Festa e
Feijoada dos Pretos Velhos.

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Apesar do pouco tempo na Umbanda, arrisco dizer que os maiores aprendizados que
podemos ter dentro do terreiro são com os Pretos Velhos, os aconselhamentos, a forma
como nos confortam e ensinam, a paciência, o cuidado. Enxergo hoje nos pretos velhos,
as entidades com que mais tenho afinidade (não sei bem se a palavra é afinidade), sinto
a presença na minha vida, muito me emociona poder sentar e conversar com eles, poder
auxiliá-los. Sempre que tenho contato com algum preto velho, me sinto renovada e pronta
para retornar a minha jornada. (Entrevista em maio de 2017).

Para além desses sentimentos que envolvem a adoração aos Pretos Velhos, existe também
a personificação física, presente em todas as narrativas, capazes de fixar no imaginário dos filhos
e filhas, bem como das pessoas que visitam o terreiro, uma vida para além do elemento humano,
impondo regras de convivência, elaborando rituais internos que ligação direta com o respeito às
figuras da Vovó Maria Conga e Pai Joaquim. Neste contexto, são eles os responsáveis por abençoar,
e dar sentido espiritual a feijoada, para que ela possa cumprir a sua função, de levar a cada um
daqueles que a comem, a paz, a sabedoria, a cura dos dores da alma e do corpo, produzindo
nesse sentido, uma comunicação que extrapola os limites da verbalização entre os humanos e as
entidades, como aponta Bateson (1986):
A comunicação cruzada de espécies é sempre uma sequência de contextos de
aprendizagem nos quais cada espécie está sendo continuamente corrigida de acordo
com a natureza de cada contexto anterior. (BATESON, 1986: 127).

2 Festa, Feijoada e Louvação aos Pretos Velhos:

É dia 10 de maio de 2017, às 10:20 minutos embarco no aeroporto Hercílio Luz, em


Florianópolis. Destino? Maceió, aqui começa mais uma peregrinação8, nos temos apontado por
Ingold (2015: 219), a peregrinação é o ato corporificado de perambular pelo mundo, como forma de
crescimento, autocorreção e conhecimento, assim sigo para participar de mais um ano da Festa,
feijoada e Louvação aos Pretos Velhos, depois de quase 12 horas, entre conexões, embarques e
desembarque, chego ao GUESB, pois esse ano, as preparações começaram um pouco mais cedo,
tendo em vista que duas irmãs de santo, estavam, naquela noite, começando os seus processos
de iniciação e obrigação no terreiro, com um novo ambiente que se molda.
Aqui escolhemos utilizar a noção de ambiente reelaborado por Tim Ingold (2002), que
segundo este, o ambiente não é o mesmo que natureza, pois essa é uma abstração construída pelo
mundo ocidental e não tem os mesmos efeitos para os povos e comunidades tradicionais. Antes, é
possível pensar que essas realizações se dão através das práticas relacionais e de envolvimentos
que interagem e produzem os eventos necessários para a apreensão do sentir, seguindo dentro
do ambiente, neste caso específico o terreiro, suas regras próprias. Assim, participar de cada
rito, é também se autotransformar e se situar em níveis hierárquicos, de aprendizagem, não nos
moldes de replicar, mas de construir dentro dos sistemas coletivos, seus próprios caminhos de
peregrinação, fé e responsabilidades.

8 Grifo nosso.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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Ao mesmo tempo que a não participação, também posiciona cada filho dentro de um
sistema lógico e ritual que é próprio, colocando nos modos práticos, um dos princípios da
Umbanda, o livre-arbítrio. Ao resolver participar do Bori9 dos filhos casa, os outros filhos, devem
se comprometer para o bom funcionamento do ritual, para que a eficácia seja sentida, permitida,
através de ritos individuais, que no coletivo constroem o tecido sustentador da limpeza espiritual,
através da liberação dos seus corpos, suas mentes, seus estímulos e suas energias, entoando
cantos, oferecendo preces e em conjunto, para que a entidades, os não-humanos (Eduardo Kohn
2013), possam receber as mensagens e estabelecer seus modos de se situar em contatos com os
humanos, percorrendo seu caminho de interação e contato. Assim, Ingold (2015) afirma:

Em um mundo assim, pessoas e coisa não tanto existem quanto acontecem, e são
identificadas não por algum atributo essencial fixo e estabelecido previamente ou
transmitido pronto do passado, mas pelos próprios caminhos (ou trajetórias, ou historias)
pelos quais anteriormente vieram e atualmente estão indo. (INGOLD, 2015: 11)

Mas, voltando ao nosso interesse inicial da pesquisa, a partir da quarta-feira, 10 de maio até
o sábado, 13 de maio, o GUESB estava em um processo de imersão e preparação para o grande
dia de louvação aos Pretos Velhos. Da mesma forma que os filhos e filhas de Santo começam a
chegar de outras cidades para juntos, formamos uma rede de compartilhamento de experiências e
produção de realidades que se sobrepõem as realizações mentais e se conectam com as Entidades.
O envolvimento de cada filho e filha de Santo, vai depender em primeiro plano, do entendimento
que cada um tem sobre a importância em participar de cada rito, e dos bens espirituais que podem
se estabelecer a partir dos fenômenos, que façam cada um renunciar às realizações e felicidades
pré-fabricadas (AUGÉ, 2014), no mundo contemporâneo.
O GUESB, enquanto um lugar, é a realização que por excelência, podemos compreender
e ler as relações sociais que são produzidas, a partir das regras que se estabelecem no plano
coletivo a partir do mundo espiritual, ou como estabelece BATSON (1986:15), as regras dentro de
um terreiro ou casa de santo, tem a ver com os princípios que se vinculam a partir de uma relação
entre criatura (o vivente) e pleroma (o não-vivente)10, ou seja, o que vai determinar o envolvimento
que cada um vai ter na ajuda, na participação e no comprometimento com a festa dos Pretos
Velhos e, em outras festas que ocorrem ao longo do ano, é a sua íntima relação, seu envolvimento
emocional, de dependência e afetividade com o Orixá e o com as Entidades. No caso especifico
dos Pretos Velhos, o grau afetivo é enorme, fazendo com que, como já dito anteriormente, filhos
e filhas se desloquem de várias partes do país, afim de buscar seu contanto mais íntimo com os

9 Bori é o processo de iniciação na religião, que ocorre despois da limpeza espiritual denominada ebó que é
uma forma de descarregar todas as energias negativas e tudo de pesado, de ruim que possa ter acompanhado a vida
dessas pessoas antes desse seu processo de nascer novamente, de nascer para a religião.
10 Claro que Batson não se refere especificamente a esses processos relacionais entre entidades de religiões de
origem africanas e brasileiras com os seus atores sociais, mas achamos que essas definições que se se estabelecem
entre o que é vivo e não é, se encaixam nos sentidos e nos níveis de interação entre os filhos e filhas de santo com seus
Orixás e Entidades.

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Pretos Velhos e deles retirarem o maior número de conselhos, de palavras sábias, boas vibrações
e bênçãos.
Durante toda a quinta-feira, 11 de maio, a preparação para a feitura da feijoada se dá fora do
terreiro, com a compra de materiais, com as transições que se estabelecem em um ritmo acelerado
na busca de feijão, das proteínas, verduras e vegetais que irão compor e dar sabor ao preparo.
Ao mesmo tempo, das escolhas dos produtos, que são partes de um todo, se unem para formar
o ritual magico e único que se transforma na feijoada e que, na noite do dia 13 de maio, serve de
base e sustento para aqueles que a recebe. “No local de atividades mágicas utilizam-se materiais
e instrumentos, mas nunca quaisquer materiais e instrumentos. Sua preparação e escolha são
objeto de ritos e estão submetidas, elas próprias, a condições de tempo e lugar. ” (MAUSS, 2003:
83-84).
É sexta-feira, 12 de maio de 2017, o dia já consagrado a Oxalá, exige de cada filho, filha
de santo, um resguardo particular, posicionando os compromissos individuais face a busca da
purificação do espirito, do corpo e alma, bem como de maneira a contribuir no bom andamento
das atividades que existem dentro do terreiro sagrado. A limpeza no terreiro, na sexta-feira, requer
que os atores envolvidos tenham se preparado, e aqueles que já na quarta-feira, dia 10 de maio,
estavam presentes no Bori das irmãs11, tenham se mantido em resguardo espiritual, pois as energias
canalizadas constroem uma cadeia que não pode ser quebrada, como bem relembra o tempo
todo a Mãe Neide. Filhos e filhas começam a chegar de vários lugares da cidade, imbuídos do
sentimento de gratidão e fé para com os Pretos Velhos. Aí já surge o desenvolvimento do primeiro
ritual (MAUSS, 2003), que nesse dia, será composto por três, a limpeza e organização do terreiro,
pois entendemos que não só a celebração religiosa é o ato em si, mas existem uma sucessão de
ritos que contribuem para ato solene. O ritual (idem, 2003), tem por importância, tradições que
se estabelecem pela repetição, porém, um adendo que fazemos, condicionados pelas múltiplas
experiências, pelos jogos situacionais provocados pelos atores nessa rede de solidariedade e
comunhão da fé, acompanhados de técnicas, e saberes formados através da continuidade.
É nesse ritmo, entre o saber tradicional e as mutações ocasionadas pelos contextos, que
todo o terreiro vai sendo limpo durante o dia, as casas dos santos vão sendo limpas, e aí há mais
uma ligação e identificação com os orixás, pois as escolhas das pessoas para limpar as casas,
têm relação com a afinidade e devoção ao santo, bem como o pertencimento daquele orixá ou
entidade na sua corrente espiritual.12 Porém, a organização do terreiro, não se restringe apenas
às casas dos santos, tem o salão, a disposição das cadeiras da hierarquia da casa, tem também
a casa dos Pretos Velhos, quintal para varrer, plantas para molhar, todos os lugares precisam de

11 Já narrado anteriormente.
12 No meu caso, Igor, eu sempre me direciono para as casas dos orixás que têm ligação com o meu santo de
cabeça, Oxumaré, assim, procuro limpar e organizar as casas de Obaluaê, Nanã, Iansã, que é meu segundo santo
na linha espiritual e por último deixo para limpar e organizar a casa de Oxumaré, porque logo em seguida, posso
fazer minhas orações, agradecimentos e acender velas em sinal de adoração e respeito. Já no caso da Mãe Pequena
Cláudia, por ter outras atribuições no terreiro, ela serve como um parâmetro de sistematizar as atividades rituais,
servindo também como guia de referência para a execução dos processos que se situam ao longo da organização do
terreiro.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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preparo, para que o grande ritual litúrgico e sagrado aconteça. Nas palavras de Mauss (2003: 88):
“Em consequência, essas práticas nos aparecem, não como gestos mecanicamente eficazes, mas
como atos solenes e verdadeiros ritos”. O segundo ritual do dia, se desenvolve a partir das 18:00
horas, que em conformidade com o sincretismo católico, um dos fundamentos não só dos Pretos
Velhos, mas também da Umbanda, o Rosário dos Pretos Velhos. Neste ritual, os homens e as
mulheres estão separados, fisicamente, e também pelos cânticos que entoam, e ao mesmo tempo
se complementam. Todo o ritual obedece aos comandos ritualísticos da sacerdotisa da Casa, Mãe
Neide, juntamente com as filhas mais velhas do terreiro, que se encontram no interior da casa dos
Pretos Velhos, enquanto os homens e mulheres encontram-se no pátio. Tanto os homens, quantos
as mulheres, seguram velas que logo após o termino do ritual do rosário, serão depositadas no
jardim ao lado da casa de taipa, contendo a cruz dos Pretos Velhos, nesse sentido, os elementos
simbólicos se complementam com a linguagem, dando forma e modificando o estado dados das
coisas.
Ao término de mais esse ritual, os filhos e filhas seguem para a “Cozinha da Vó”, pois é lá
que se dá o último ritual da noite, e que se estenderá até o meio-dia do sábado, dia 13 de junho.
O preparo da feijoada, segue também uma sequência tradicional e moldada através do tempo,
que se junta às práticas reelaboradas e incorporadas pelos percursos linguísticos, simbólicos e
cotidianos, a cozinha serve como um elemento central nesse ritual. Fazendo uma correlação com
as especificidades da importância da cozinha nos rituais mágicos analisados por Mauss (2003), a
Cozinha da Vovó Maria Conga, serve para dar forma ritual a feijoada, com seus atos de reverências,
de rememoração ao passado, que também são ritos, acoplando os sentimentos de pertencimento,
de busca constante do reconhecimento, dos ritos de origem e ancestralidade. Seja através dos
gestos ao acender o fogo a lenha, da madeira utilizada, pelos homens, da forma como se escolhe
e cata o feijão, e o corte dos vegetais, das carnes, verduras e legumes é feito pelas mãos das
mulheres.
Assim a preparação da feijoada entra pela madrugada, sempre cercada de cânticos, de
ensinamentos, de projeções para o futuro, lembranças que são evocadas na medida em que a
feijoada vai tomando corpo, compartilhando os enigmas e os ritos orais a cada novo elemento que
é colocado nas panelas de barro. Tudo é bem fixado e determinado, seguindo uma lógica capaz de
nos fazer perguntar sempre, o porquê do próximo passo, envolvendo vários compostos e tempos
que nos antecederam no caminho e consolidação deste dia.

Conclusão

Para responder de forma bastante direta a nossa indagação inicial, e nos parece também,
que ficou bastante claro no corpo do texto, que o que permite essa identificação e essa construção
social dos mais jovens e dos mais velhos com a figura dos Pretos Velhos, é em primeiro lugar, o
de se posicionar no presente frente aos processos excludentes, através da força e das narrativas

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que enaltecem as lutas dos Pretos Velhos. Em segundo lugar, pelas características emocionais
humanas que se externalizam através das incorporações e que ecoam através de conselhos,
palavras sábias e de conforto para aqueles que procuram ouvir e, em terceiro, porque está
amplamente vinculado com a fé e a propagação de bênçãos, das mudanças que são produzidas
através do acreditar nas tradições sob as quais suas vidas estão sendo executadas, percebidas e
de forma racional experimentadas.

Referências

AGIER, Michel. Encontros Etnográficos: interação, contexto, comparação; tradução Bruno Cesar
Cavalcante, Maria Stela Torres B. Lameiras, Yann Hamonic. – 1. ed.- São Paulo: Editora Unesp;
Alagoas: Edufal, 2015.

AUGÉ, Marc. O Antropólogo e o Mundo global; tradução de Francisco Morás.- Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014.
BACHELARD, Gaston. A Dialética da Duração; 2 º Ed. São Paulo: editora Atica,1994.

BATESON, Gregory. Mente e Natureza; tradução de Claudia Guerpe.- Rio de Janeiro: Francisco
Alves Livraria S.A., 1986.

DIAS, R. N. & BAIRRÃO, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas
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HALBAWACHS, Maurice. Memória Coletiva; tradução Beatriz Sidou. – São Paulo: Centauro, 2006.

INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: essays on livelihood, dwelling and skill.- London
end New York: This edition published in the Taylor & Francis e-Library, 2002.

INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaio sobre movimento, conhecimento e descrição; tradução de Fabio
Creder. Petropolis, RJ: Vozes, 2015.

KOHN. Eduardo. How Forests Think: toward an anthropology beyond the human.- Carlifornia:
University of California Press, Ltd, 2013.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia; introdução: Claude Lévi-Strauss; tradução de Paulo


Neves. – São Paulo: Cosac Naify, 2003.

PINTO, Flávia. Umbanda religião brasileira: guia para leigos e iniciantes. 1. ed. – Rio de Janeiro:
Pallas, 2014.

Página 343
EIXO 8: Ações afirmativas no ensino
superior e protagonismo

O eixo temático tem como objetivo acolher pesquisas que discutam as


políticas de ações afirmativas no ensino superior, seu processo histórico
de organização e mobilização social, o protagonismo do movimento social
negro, a análise do impacto institucional, as trajetórias de estudantes negros
cotistas, indicadores de avaliação das ações afirmativas, as estratégias de
permanência na universidade. A análise das propostas de ações afirmativas
em programas de pós-graduação também serão bem vindas.
AÇÕES AFIRMATIVAS NO SUL DO BRASIL: UM ESTUDO SOBRE AS
POLÍTICAS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. (Orientador)


Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros - NEAB (UDESC).
E-mail: paulino.cardoso@gmail.com

RIEG, Daniela.
Graduanda de História - Bacharelado (UDESC).
Bolsista de Extensão do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB.
E-mail: dani.rieg@gmail.com

PENHA, Mariana Vitória da Silva.


Graduanda em Moda - Bacharelado (UDESC).
Bolsista de Extensão do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB.
E-mail: mariaanabalica@gmail.com

RESUMO

O presente trabalho é fruto do projeto de pesquisa: Ações Afirmativas no Acesso ao Ensino Superior
Público: A Experiência da UDESC (2011-2016), desenvolvida pelo grupo de pesquisa “Multiculturalismo:
Estudos Africanos e da Diáspora” vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade
do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC), sob coordenação do Professor Paulino Cardoso.
Pretendemos discutir a implementação das Ações Afirmativas nas referentes universidades do sul do
país: Universidade do Estado de Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade
Estadual de Londrina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Paraná e
a Universidade Federal de Pelotas. As Políticas de Ações Afirmativas foram criadas no bojo das lutas
por igualdade por parte dos movimentos sociais negros, e no compromisso do governo brasileiro,
apresentado na Conferência em Durban, África do Sul, de democratizar o acesso ao ensino superior
através da adoção de cotas raciais. Buscamos, com foco nas resoluções, realizar uma análise dos
atuais programas de ações afirmativas, enquanto política de promoção de igualdade racial. Estamos
interessados em mapear, analisar e diagnosticar se as alterações realizadas nas resoluções pelas
instituições encontram-se promovendo a equidade.

PALAVRAS-CHAVE: Ações Afirmativas. Ensino Superior. Resoluções.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

INTRODUÇÃO

O estudo é parte da pesquisa Ações Afirmativas no Acesso ao Ensino Superior Público: A


Experiência da UDESC (2011-2016). Se concentra em um estudo comparativo da politica de ações
afirmativas em diferentes instituições para entender o sentido das mudanças entre a aprovação e
sua implementação em cada instituição.
Anteriormente a 2011 não havia nenhuma lei nacional que obrigasse a existência de ações
afirmativas nas universidades. Segundo o programa político, apenas 43 universidades públicas
possuíam algum tipo de seletiva por ações afirmativas, entre elas, a Universidade do Estado do
Amazonas - UEA, Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Universidade Estadual do
Norte do Paraná - UENP, Universidade Federal Fluminense - UFF, Universidade Federal do Espírito
Santo- UFES, Universidade Federal do Paraná - UFPR e a Universidade de Brasília - UNB.
As ações afirmativas, segundo Cardoso e Rascke (2014, p. 19) “constituem um conjunto
de medidas voltadas a determinados grupos discriminados ou que sofrem com a exclusão social
ocorridos no passado ou no presente.” Tais medidas, têm como objetivo, a promoção de equidade
e a ampliação de oportunidades para população socialmente prejudicadas.
Foi em 2001, na III Conferência Internacional contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias
Correlatas, que se realizou em Durban, na África do Sul, que o Brasil admitiu a desigualdade
existente no país e se dispôs a reverter esta situação adotando as políticas de ações afirmativas,
abandonando assim a ideia de democracia racial que pairava sobre o Brasil.
Embora a luta pelas políticas de ações afirmativas (PAA) seja antiga e os movimentos
sociais negros desde longa data defendam sua implantação, foi a partir de Durban que o
Brasil passou a experimentá-las de forma mais sistemática. Na sua origem, estas políticas
vieram como cotas ou reservas de vagas em Instituições de Ensino Superior (IES). Isto se
deu de maneira voluntária em algumas IES e de forma compulsória noutras. Acreditamos
que a posição do Brasil na Conferência da África do Sul foi determinante, pois passou
a respaldar a reivindicação antiga e, também, a exigir de maneira mais contundente a
adoção de tais políticas. (SANTOS, 2012, p. 290).

A Política de Ações Afirmativas foram então sendo adotadas por muitas instituições de
ensino superior, seja por meio espontâneo ou devido a leis estaduais. Foi a Lei Federal 12.711,
sancionada em 2012, que passou a ser obrigatória a reserva de vagas para pretos, pardos,
indígenas, alunos de escola pública e de baixa renda. De acordo com Feres Júnior e Daflon (2014)
O Projeto de Lei Federal 73/99 tramitou por mais de dez anos até sua sanção efetiva e
encontrou um cenário em que 40 das 58 universidades federais já praticavam alguma
modalidade de ação afirmativa. Em seu conjunto, as políticas em funcionamento antes da
aprovação da lei contemplavam uma diversidade de tipos de beneficiários. A Lei, contudo,
fixou quatro subcotas: (1) candidatos egressos de escolas públicas, (2) candidatos
de escola pública e baixa renda, (3) candidatos pretos, pardos e indígenas de escolas
públicas e de baixa renda. (FERES JÚNIOR; DAFLON, 2014, p. 37).

Sendo assim, esperava-se que as instituições aderissem à política e passassem a gerar

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mais oportunidades para aqueles que a lei determinava que devessem ser beneficiados. As
referentes universidades selecionadas para este estudo possuem sistema de reservas de vagas,
cada uma com suas normas estabelecidas a sua escolha, ou seja, podem não seguir as mesmas
determinações.

1 AS AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

Toda a documentação, composta das resoluções, foi retirada do site da instituição, da


página do Conselho Universitário – CONSUNI, todas muito bem dispostas e de livre acesso ao
público.
Tendo as resoluções, visando uma compreensão e avaliação mais aprofundada - nesta
universidade especificamente - a análise se conduziu de forma diferenciada.   O período de
recorte para análise das resoluções deste trabalho é de 2011 a 2016, porém, as alterações mais
significativas acontecem desde sua implantação, por este motivo, o estudo realizado abrange
desde o ano de implantação da política na instituição. Apesar de a resolução ter sido lançada no
mês de setembro de 2009, foi apenas em 2011 que passou a ser colocada em prática.
O Programa descrito na resolução 043/2009 beneficiava estudantes que teriam cursando
o ensino fundamental e médio em instituições públicas, que pertencessem ao grupo racial negro,
povos indígenas e pessoas com deficiência.
A resolução 033/2010, lançada em julho do referente ano, é a que instaura as primeiras
modificações naquela que iniciou a promoção da equidade na Universidade do Estado de Santa
Catarina - UDESC. Alterando o Art. 4º da resolução 043/2009, a instituição passa a não mais
realizar acompanhamento da inserção e deixa de ampliar vagas na graduação e cursos noturnos,
se tornando inexistente também - a partir de então - a garantia de acessibilidade a deficientes.
Além destas modificações que enfraquecem assim o programa de cotas, as vagas suplementares
destinadas a indígenas e deficientes são excluídas do mesmo, fazendo com que aqueles que
seriam beneficiados por elas, sejam prejudicados.
O Art. 5º, § 1º da resolução 043/2009, que determina que os candidatos optantes pelo
Programa de Ações Afirmativas também estariam concorrendo a vagas pela classificação geral,
deixa de existir a partir da resolução 017/2011, lançada em março do referente ano.
A Resolução 044/2014, modifica o inciso I do Art. 2º da Resolução 043/2009, fazendo com
que não seja mais necessário que o candidato tenha estudado ensino fundamental e médio em
uma instituição pública, passando a determinar que o candidato tenha que ter estudado apenas o
ensino médio em uma instituição pública e gratuita.
O Art. 9º da Resolução 017/2011 determinava que os candidatos classificados no vestibular
para as vagas de cotistas raciais seriam entrevistados por uma comissão avaliadora para evitar
fraudes, porém, na Resolução 067/2013, essa determinação é modificada, passando a determinar
que somente em casos de denúncias, será montada uma comissão para averiguar se houve fraude.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Dentre estas, outras modificações ocorreram, mas não tão significativas, porém, já pode-se
notar que a referente instituição restringe muitos direitos dos estudantes que seriam beneficiados
pela política. Com isso, a Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC possui um sistema
de cotas que deixa a desejar e que não promove o tanto de equidade que se espera.
De acordo com Santos (2012, p. 403) “se observado que as ações afirmativas são
medidas, políticas e programas dirigidos a grupos e populações que estão vulneráveis a processos
de discriminação [...]”, espera-se que no mínimo, tais populações encontrem na instituição uma
política que colabore na produção de oportunidades. A revogação da determinação de reserva de
vagas complementares a estudantes indígenas e com deficiência e o fim da comissão avaliadora,
que só vem a reunir-se em casos de denuncia, só fortalece o pensamento de que a instituição
precisa rever sua política de cotas.

2 A POLÍTICA DE AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS – UFPel

No caso da Universidade Federal de Pelotas - UFPel, o acesso a documentação se


realizou de maneira diferenciada. Elaborou-se um mapeamento no site da instituição, porém, a
documentação não foi encontrada na página.
A partir disso, entrou-se em contato através de e-mail com a instituição, solicitando a
documentação para o referente estudo. Após um diálogo sobre o que seria necessário para a
pesquisa, foi recebido da instituição alguns documentos. Foram recebidas duas resoluções e
uma portaria, que segundo informações, são as que estão disponíveis no site da Secretaria dos
Conselhos Superiores – COCEPE, e do Conselho Universitário - CONSUN.
Com base nestes documentos, pode-se analisar que a Universidade Federal de Pelotas
- UFPel, lançou sua primeira resolução implantando o sistema de cotas na instituição no ano de
2012, para quem ingressasse no ano de 2013, com alteração para 50% para o ingresso no ano de
2014.
A Portaria nº 316, de 03 de Fevereiro de 2017, determina a criação da Comissão de Controle
na Identificação do Componente Étnico-Racial (CCICE), para passar a avaliar os candidatos
autodeclarados negros ou indígenas nos processos seletivos da universidade, e juntamente na
documentação seguia os nomes de todos que compunham a comissão, dentre eles servidores,
membros externos e representantes temporários.
A Resolução Nº 05, de 02 de março de 2017, dispõe sobre a abertura de vagas específicas
em cursos de graduação para as comunidades quilombolas, determinando o acréscimo de 1 vaga
para o curso de Medicina, 1 para o curso de Pedagogia Noturno, 1 para o curso de Nutrição e 1 para
o curso de Psicologia.
Apesar de pouca documentação, pode-se ter uma noção de como a Política de Ações
Afirmativas foi implantada na referente instituição. Chega-se à conclusão que a distribuição de
vagas para estudantes de comunidades quilombolas é mínima, é uma vaga para cada curso, sendo

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estes muito concorridos. No demais, por falta de mais documentação que explicitasse melhor o
desempenho da política na universidade, vê-se que há um interesse, já que se deu a criação de
uma comissão para avaliação, evitando assim fraudes, ou seja, há uma preocupação em evitar que
as poucas vagas reservadas aos estudantes que delas necessitam, sejam utilizadas por quem não
tem direito a elas.

3 O PROGRAMA DE AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE


DO SUL – UFRGS

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS aderiu à política de ações afirmativas
em 2012, tendo sua primeira resolução no dia 17/04/2012, modificando na decisão nº 429/2012,
nº 406/2013, nº 245/2014, nº 312/2016, um pouco antes da sanção da Lei Federal 12.771/2012,
que tornou obrigatória a reserva das vagas nas instituições federais.
Na primeira resolução, a maior modificação foi à retirada dos egressos de candidatos
que fizeram o Ensino Fundamental em instituições públicas, sendo apenas para candidatos que
fizeram o Ensino Médio em instituições públicas. O Art. 2º II – ocorreram duas modificações, sendo
a última em 2016. Sendo a primeira modificação tirando o Ensino Fundamental e tendo somente
para os candidatos autodeclarados negros, na segunda modificação para autodeclarados pretos,
pardos e indígenas e a última modificação adiciona o Sistema de Seleção Unificada - SISU.
A respeito do período das reservas de vagas, ocorreram duas mudanças, a segunda
modificação ficou para ser revisada pelo Conselho Universitário, sendo decidido que a partir da
aplicação da Lei 12.711 no dia 29/08/2012 ficará em vigor por 10 anos, mas ainda podendo ser
revisados e prorrogados por decisão do Conselho Universitário. Sucederam duas modificações no
Art. 5º, decisão nº 245/2014 e nº 312/2016, a primeira decidindo que 30% seriam garantidos para
Programa de Ações afirmativas, na segunda modificação seriam 40% garantidos para o concurso
vestibular e Sistema de Seleção Unificada - SISU em 2015, e 50% em 2016 para o programa
de ações afirmativas, sendo trocado depois para no mínimo 50% para o programa de ações
afirmativas.
No Art.8º houve uma mudança de que além do candidato receber penalização por crimes
previstos em lei e ter sua matrícula recusada no curso, na decisão nº 321/2016 o candidato terá
desclassificação nos processos seletivos para ingresso nos cursos de graduação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
No ano de 2016, estudantes de direito da referente instituição questionaram o ingresso de
um colega de classe que tem pele clara e se autodeclarou cotista racial. A universidade passou
um ano investigando e não chegou a definir se houve fraude, o pró-reitor de Gestão de Pessoas,
Maurício Viegas da Silva, reiniciou o caso novamente e sem prazo de conclusão, ouvindo as partes
e realizando um relatório, a decisão não saiu por conta do teor do exame de regularidade realizado
pela Procuradoria Geral da República e enviado ao UFRGS, porém a universidade não divulgou o

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

resultado, procedendo em sigilo.


A universidade exige apenas que os estudantes entreguem uma declaração justificando
por que se enquadram nas cotas, em depoimento o estudante afirmou que seu pai é negro e sua
mãe branca, e que teria usado as cotas por afrodescendência.
O professor de antropologia José Jorge Carvalho sendo um dos responsáveis pela
elaboração do sistema de cotas na Universidade de Brasília - UNB, primeira instituição federal
a dotar o sistema de cotas, em uma entrevista afirmou que: “O racismo é fenotípico, ele se dá
pela cor da pele, do cabelo. Não tem nada a ver com a genética, mas vamos ter de voltar a uma
discussão jurídica sobre esse assunto.” (CARVALHO, 2015).
A classificação dos candidatos seria de no mínimo 50% e na Decisão nº 312/2016 a
classificação dos candidatos é o número total das vagas oferecidas pelo curso de acordo com o
sistema de reserva de vagas segundo o Artigo 6º, como consta no Art. 10 §1º segundo a Decisão nº
245/2014. No Art. 10, §2º a Decisão nº 245/2014 alterou o percentual de vagas restantes de 50%
destinadas ao Programa de Ações Afirmativas, seria destinado aos candidatos que estudaram
o Ensino Médio em instituições públicas, na Decisão nº 312/2016 em caso de não entregar a
documentação necessária ou não realizar a matrícula no prazo de acordo com o Art. 15, as vagas
não preenchidas serem destinadas ao estudantes de escola pública.
Na Decisão n° 312/2016, Art. 12 a Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de
Ações Afirmativas não está mais ligada a Pró Reitoria de Coordenação Acadêmica, por possuir
uma estrutura própria, sendo destinadas as principais atribuições de acompanhamento dos
estudantes ingressos pelo programa e atendendo as necessidades acadêmicas, junto com a Pró
Reitoria da Graduação - PROGRAD e as Comissões de Graduação - COMGRADs de cada curso.
Atualmente a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS tem reservada cerca
de 50% das vagas aos candidatos que estudaram o ensino médio completo nas escolas públicas,
auto declaração étnico racial e faixa de renda, sendo mais de duas mil vagas destinadas às cotas,
partilhadas em quatro formas como consta no edital, candidato egresso do Sistema Público de
Ensino Médio com renda familiar bruta mensal igual ou inferior a 1,5 salários-mínimos nacional
per capita; candidato egresso Sistema Público de Ensino Médio com renda familiar bruta mensal
igual ou inferior a 1,5 salários-mínimos nacional per capita autodeclarado preto, pardo ou indígena;
candidato egresso do Sistema Público de Ensino Médio independentemente da renda familiar;
candidato egresso do Sistema Público de Ensino Médio independentemente da renda familiar
autodeclarado preto, pardo ou indígena.

4 A POLÍTICA DE COTAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC

A Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC adotou às políticas de ações afirmativas


em 2013, um pouco depois da Lei Federal 12.711/12 destinando-se aos estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino fundamental e médio em instituições públicas, com recorte de

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renda, autodeclarados negros e indígenas residentes no território nacional e transfronteiriços. As
resoluções normativas utilizadas foram N.º 22/CUn/2012, de 29 de junho de 2012 e a N° 52/
CUn/2015, de 16 de junho de 2015, separadas por quatro títulos e capítulos com os nomes dê: Da
natureza, finalidade e vinculação; Disposições gerais; Da divulgação e apoio á politica de ações
afirmativas; Das ações afirmativas de acesso aos cursos de graduação; Das ações afirmativas
de acompanhamento e permanência na universidade; Do acompanhamento de egressos
beneficiários de ações afirmativas; Disposições transitórias e Disposições finais.
A primeira mudança notória ocorreu no Art. 3°, não poderiam mais aderir ao Programa de
Ações Afirmativas os estudantes do ensino fundamental, sendo apenas para estudantes que
cursaram o ensino médio nas instituições públicas, com recorte de renda, pertencente ao grupo
etnicorracial negro ou indígena residente no território nacional e transfronteiriços e foi adicionado
também os habitantes de comunidades quilombolas. O Programa de Ações afirmativas é vinculado
a Pró Reitoria de Graduação – PROGRAD e a partir de 2015 atou em conjunto com a Pró Reitoria
de Assuntos Estudantis, como consta no Art. 4°. O Art. 7 ° expõe a importância da divulgação da
Política de Ações Afirmativas nas escolas e nos meios de comunicação, e o apoio ás atividade
de extensão da Universidade na área de ações afirmativas, criando o Programa Institucional de
Divulgação e Apoio as Ações Afirmativas da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
sob coordenação da Pró-reitoria de Graduação, sendo o uso de recursos financeiros anuais da
instituição para a implementação, desenvolvimento e continuidade do programa.
Na resolução de 2012 eram destinadas apenas 30% das vagas, das quais 20% aos
estudantes de instituições públicas e 10% para autodeclarados negros. Para a implementação das
ações afirmativas no Art. 8 N° 52/CUn/2015, foram reservadas 50% de vagas, sendo 25% para
os candidatos de renda familiar bruta mensal superior a um salário mínimo e meio per capita e os
outros 25% aos candidatos com renda familiar mensal bruta igual ou inferior a um salário e meio
per capita, uma fração de 32% dentro dos 50% é reservados para autodeclarados pretos, pardos
e indígenas.
O grupo racial negro, os povos indígenas e os candidatos pertencentes às comunidades
quilombolas deverá se inscrever com a nota obtida pelo Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM,
apresentação do candidato á comissão institucional nomeada pela Pró Reitoria de Graduação e a
comissão decidirá se o candidato atende aos requisitos. São oferecidas vagas preferencialmente
aos povos indígenas que possuem território reconhecido ou em regularização na região Sul do
País e as comunidades quilombolas do Estado de Santa Catarina.
Para fins de acompanhamento das ações afirmativas o programa será avaliado
continuamente pelo Comitê Institucional, que deverá apresentar relatórios anuais ao Conselho
Universitário. Na resolução N° 52/CUn/2015, com a finalidade de acompanhamento da Política
de Ações Afirmativas e da Implantação da Lei n° 12.711./2012 e de sua regulamentação foi
implantado um comitê institucional, não confrontando e nem substituindo a criação das comissões
de acompanhamento, as funções são vinculadas pelos processos de controle social sobre as
politicas públicas.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

5 PROGRAMA DE AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA –


UEL

Após uma busca pelas resoluções no site da instituição, onde tal documentação não foi
encontrada, entrou-se em contato através do e-mail para solicitação das resoluções, após algum
tempo, tal documentação foi obtida para o estudo e a análise pode ser feita.
A Universidade Estadual de Londrina – UEL debate sobre a política de cotas desde muito
antes de 2011, porém, é a resolução 108/2011 que estabelece a reserva de vagas. O sistema de
cotas desta instituição determina no Art. 1º, a reserva de 40% de suas vagas à política, sendo 20%
para candidatos oriundos do ensino público e 20% a candidatos autodeclarados negros.
O §4º do Art. 1º, estabelece que candidatos com curso superior concluído, não poderão
ser beneficiados pelo sistema de cotas. As vagas reservadas deveriam vigorar por um período de
cinco anos, contando a partir do ano de 2013, assim determina o Art. 4º da resolução 108/2011,
que em 2012 passa a referir-se não mais a esta questão. Na resolução 015/2012, sobre a política
de ações afirmativas na Universidade Estadual de Londrina, o Art. 4º muda, como explicado
anteriormente, passando então a determinar que o total de vagas do vestibular seja disputado por
todos os inscritos.
Além disso, são acrescentados ao Art. 4º, os parágrafos §1º e §2º, que tratam de estabelecer
que os candidatos que optarem tanto pelas cotas sociais, quanto pelas cotas raciais, concorrerão
também às vagas de disputa universal do vestibular da instituição, passando a obedecer a uma
ordem de classificação, assim determinada pelo Art. 5º da resolução 015/2012. Candidatos das
cotas sociais e raciais devem comprovar na hora da matricula que estudaram em Instituições
Públicas de Ensino, da 5ª a 8ª série, e os três anos do Ensino Médio, como estabelecido no Art. 7º
da resolução 015/2012.
O Art. 6º, da resolução 108/2011 determina que os candidatos que se autodeclararem
negros passarão por uma comissão indicada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, para
homologarem suas matrículas. Tal determinação passa a ser o Art. 8º na resolução 015/2012.
Sendo assim, o Art. 6º da resolução 015/2012, passa a estabelecer que deixando de haver
candidatos para completar as vagas destinadas a cotas raciais e sociais, estas serão preenchidas
por outros candidatos, determinando que alunos oriundos do ensino público preencham as
vagas não ocupadas por alunos cotistas raciais, e as vagas que restarem das cotas sociais, serão
preenchidas por alunos da disputa universal.
Com base na análise, percebe-se que a instituição em questão preocupa-se com a política
de cotas, já que há uma comissão avaliadora e que os alunos cotistas também podem concorrer
às vagas da disputa universal, porém, melhorias sempre devem ser feitas, para que os alunos
beneficiados pelo sistema de cotas permaneçam na instituição. Ter um acompanhamento desses
alunos é de suma importância, pois não basta apenas facilitar o acesso e deixar os alunos cotistas

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sem assistência durante seu período de estudo.

6 AS AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ - UFPR

A pesquisa referente à política de ações afirmativas na não ocorreu da mesma forma das
outras instituições de ensino superior. O mapeamento no site não teve êxito, afinal, nela nada foi
encontrado referente às resoluções. Devido a isso, foi encaminhado um e-mail a ouvidoria da
universidade, solicitando a documentação necessária para a pesquisa. A resposta obtida pedia
que fosse entrado em contato com outro setor.
Entrou-se em contato através de vários meios, porém, nada se obteve. Foi então no III
COPENE SUL, que se realizou na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, em Julho de
2017, no encontro de NEAB´s da região sul, que se soube que tal documentação está em processo
de organização para futura divulgação.
Devido aos empecilhos no processo de pesquisa, alguns dados foram buscados em outras
fontes. Na página online do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação afirmativa (GEMAA),
foram obtidos dados que fornecem um breve panorama sobre a política na referente instituição.
Com os dados obtidos no site do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação afirmativa,
apesar de não serem muito explicativos, pode-se ter uma noção do funcionamento da política na
instituição.
A Universidade Federal do Paraná - UFPR aderiu à política através da Lei Federal 12.711/12.
A lei determina a reserva de vagas, mas cada instituição elabora seu programa de cotas de uma
forma, no caso da Universidade Federal do Paraná - UFPR, o percentual de vagas reservadas
para estudantes oriundos de Escola Pública, Baixa Renda, Pretos e Pardos, Indígenas é de 40,3%,
porém, o site não especifica o percentual reservado a cada uma.
Com estes dados não se pode ter um estudo muito aprofundado, apenas uma breve
informação acerca da política na referente universidade. Espera-se que em breve, tal documentação
esteja disponível para que um estudo mais aprofundado possa ser realizado, por hora, o que tem são
apenas estas informações, infelizmente. Espera-se também, que a instituição esteja trabalhando
em sua política para melhorar as oportunidades aos candidatos e que disponibilize as resoluções
para acesso, mantendo a mesma transparência que algumas instituições mantem.

CONCLUSÃO

A partir deste estudo, entende-se que as alterações realizadas pelas instituições, apesar
de algumas serem positivas, acabam por não contemplar por completo o objetivo das Ações
Afirmativas, cujo qual, é a promoção de equidade e oportunidades para os grupos que sofrem
com a discriminação e a exclusão social e/ou racial. O objetivo deveria ser igualar oportunidades,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

acolher os alunos cotistas e evitar evasão, porém, o que se encontra é a retirada de benefícios e
direitos dos mesmos, dificultando sua permanência na instituição e prejudicando seu crescimento
acadêmico e profissional;
Espera-se também transparência por parte das universidades, que disponibilizem com fácil
acesso as documentações referentes ao assunto, seja para estudos futuros ou para a população
que é ou possa vir a ser beneficiada pela Política de Ações Afirmativas. Estes precisam e devem
ser informados sobre seus direitos e quais estão perdendo.
A luta por equidade, pelo fim do racismo e do preconceito é constante, mas que vale muito a
pena, pois é em busca de um futuro melhor e com muito mais oportunidades para aqueles que são
constantemente prejudicados e excluídos em nossa sociedade, seja socialmente ou racialmente.
A cada dia se torna mais importante que haja estudos acerca do assunto, precisa-se manter uma
vigilância constante para que sempre haja melhorias e mais benefícios, e para que ninguém saia
prejudicado.

REFERÊNCIAS

SANTOS, Adilson Pereira dos. Itinerário das ações afirmativas no ensino superior público brasileiro:
dos ecos de Durban à Lei de Cotas. Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 2, p. 289-317, jul./
dez. 2012. Disponível em: <http://flacso.redelivre.org.br/files/2014/05/1132.pdf>. Acesso em: 20
jul. 2017.

FERES JUNIOR, João; DAFLON, Verônica Toste. Políticas da Igualdade Racial no Ensino Superior.
Cadernos do Desenvolvimento Fluminense. n. 5, p. 31-43. 2014. Disponível em: <http://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/cdf/article/view/14229/10769>. Acesso em: 20 jul. 2017.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro (Org.). Formação de professores:
Promoção e difusão de conteúdo sobre história e cultura afro-brasileira e africana. Florianópolis:
DIOESC, 2014.

CARVALHO, José Jorge. UFRGS investiga se estudante de Direito fraudou cotas raciais.
ZH Educação. Entrevista concedida à Angela Chagas. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/
rs/vida-e-estilo/educacao/noticia/2015/07/ufrgs-investiga-se-estudante-de-direito-fraudou-
cotas-raciais-4806779.html>. Acesso em: 20 jul. 2017.

GRUPO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES DA AÇÃO AFIRMATIVA (GEMAA).


Disponível em: <http://public.tableau.com/vizql/w/MapaBrasilAA/v/MapaVisual/
viewData/sessions/DF8F97029A3D46FFB0F38E6E793DD8EC-0:0/
views/4081787563425964599_9169874368319292365?maxrows=200>. Acesso em: 20 jul.
2017.

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A AUSÊNCIA DA LEI FEDERAL 10.639/2003 NO CURSO DE
LICENCIATURA EM GEOGRAFIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA
ALUNA COTISTA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
(2013 - 2016)

SILVA, Mariah Amanda da (UDESC)


mariahsc88@gmail.com

Resumo

Dentre as mais antigas pautas do movimento negro brasileiro, constam a escolarização de jovens e
adultos e a inclusão de conteúdos que versem sobre a história e cultura africana e afro-brasileira nos
currículos escolares e de instituições de ensino superior. No ano de 2003, para sanar algumas dessas
demandas, foi sancionada a lei federal nº 10.639 que torna obrigatório o ensino de história e cultura
africana e afro-brasileira nos espaços escolares; no ano de 2004, através do parecer 001 do Ministério
da Educação, a obrigatoriedade passa a existir, também, para o ensino superior. No ano de 2012 é
sancionada a lei federal nº 12.711/12 conhecida popularmente por lei de cotas, torna obrigatório que
as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservem, em
cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50%
(cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino
médio em escolas públicas, negros e indígenas. Tendo em vista as antigas e persistentes demandas
dos movimentos sociais, considera-se esses, marcos importantes na luta antirracista. Pautando-se
nessa legislação, o presente trabalho tem como objetivo apresentar um panorama do currículo do curso
de graduação em Geografia (Licenciatura/Bacharelado) da Universidade do Estado de Santa Catarina,
bem como estabelecer uma análise acerca da implementação (ou não) da lei federal nº 10.639/03
no currículo. Busca-se apontar em que medida os currículos mantém-se reafirmando a branquitude
e em que medida há uma ausência de representatividade para os alunos e alunas negros que estão
ingressão nesses espaços de construção de conhecimento, oriundos do programa de ações afirmativas
da instituição.

Palavras-chave: Udesc; Ações Afirmativas; lei federal nº 10,639; Geografia

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A AUSÊNCIA DA LEI FEDERAL 10.639/2003 NO CURSO DE LICENCIATURA EM


GEOGRAFIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA ALUNA COTISTA DA UNIVERSIDADE
DO ESTADO DE SANTA CATARINA (2013 - 2016)

Leis federais nº 12.711/12 e nº 10.639/03


Após inúmeras lutas do movimento negro brasileiro, em nove de janeiro de 2003 foi
aprovada a Lei Federal nº 10.6391 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana
e afro-brasileira nos espaços escolares públicos e privados de ensino fundamental e médio.
Sua aprovação, de extrema importância histórica e política na luta antirracista, revelou lacunas
em torno da formação de professores e professoras sobre temáticas afro-brasileiras e africanas.
Com a finalidade de indicar os caminhos para suprir tais demandas, no ano de 2004 foi aprovado
o parecer 003/2004 do Conselho Nacional de Educação, que se indica favorável a criação de
diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino
de história e cultura afro-brasileira e africana. Esse documento, que culmina na aprovação das
referidas diretrizes (através da Resolução CNE/CP 001/2004), é de extrema importância no que
se refere a formação de professores, pois amplia o foco da lei federal nº 10639/03, que era apenas
no ensino fundamental e médio, e propõe que as instituições de ensino superior formem docentes
aptos a ministrar tais conteúdos e práticas.
Nesse sentido, muito além da inclusão de conteúdo, é necessária a ênfase nas políticas
públicas nominalmente provenientes dos governos petistas de Luís Inácio Lula da Silva (2003-
2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), que pautaram-se em demandas dos movimentos sociais e
envolveram a educação, especialmente o ensino superior. Essas foram responsáveis, dentre outras
questões, pela criação de universidades e institutos federais, bem como na criação de vagas nos
já existentes, que possibilitou a estudantes do interior e de fronteira a ter acesso a instituições
públicas de ensino, a exemplo da criação da Universidade Federal da Fronteira Sul, criada no ano
de 2009, trata-se de uma instituição de fronteira que possui seis campi divididos entre o Sudoeste
do Paraná, o Oeste de Santa Catarina e o Noroeste do Rio Grande do Sul.
Nesse contexto, de ampliação e qualificação de universidades, há ainda a proposta de
expandir os muros dessas instituições. Sendo assim, no dia 29 de agosto de 2012 foi sancionada
a Lei Federal nº 12.711 que torna obrigatório as instituições federais de educação superior
vinculadas ao Ministério da Educação reservar, em cada concurso seletivo para ingresso nos
cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Dessas vagas, o artigo 3º delimita que
Art. 3o  Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o
art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos,

1 No dia 10 de março de 2008, a lei federal nº 10.639 foi modificada pela lei nº 11.645, que institui a
obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena. Ao longo do texto, no entanto, opta-se por
citar a 10.639 por sua importância histórica e política relacionada aos movimentos negros.

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pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas
na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo
o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ou seja, a partir da referida legislação, passa a haver uma delimitação das vagas para
alunos pretos, pardos e indígenas nas salas de aula das instituições públicas federais. Tal questão
torna-se extremamente pertinente quando observa-se a grande diferença que existe no acesso
a níveis de ensino pela população negra em comparação com a branca. O Censo Demográfico
de 2010, por exemplo, quantificou que no grupo de pessoas de 15 a 24 anos que frequentava o
nível superior, 31,1% dos estudantes eram brancos, enquanto apenas 12,8% eram pretos e 13,4%
pardos. Ou seja, no Brasil, as vagas no ensino superior (ainda) tem cor definidas. Retomando a lei
federal nº 12711/12, destaca-se ainda o artigo 7º
Art. 7º  O Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da
publicação desta Lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes
pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente
o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior.

Portanto, apesar da aprovação da legislação no ano de 2012, as instituições têm até o ano de
2022 para adequarem-se a nova realidade. Faz-se necessário, no entanto, enfatizar a importância
histórica e política de tal determinação legal. Ela é fruto das demandas de movimentos sociais,
notadamente do movimento negro, que foram ouvidas e tornadas realidade pelos governos de
Luiz Inácio Lula da Silva (2003) e, posteriormente, de Dilma Rousseff (2012). A implementação
dessas políticas públicas nas universidades demonstra significativos avanços no que se refere a
inserção de sujeitos de cores e classes diversas daquelas que sempre ocuparam tais espaços. São
passos pequenos, mas importantes e significativos.

A legislação e a Universidade do Estado de Santa Catarina

Como referido anteriormente, a Lei Federal nº 12.711, que dentre outras questões delimita a
reserva de vagas em concursos e instituições de ensino superior públicos federais, foi sancionada
no dia 29 de agosto de 2012, tendo dez anos para completa implementação. Um ano e dois meses
antes, no dia 08 de abril de 2011, a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) lança uma
retificação do edital do vestibular de inverno reservando 30% das vagas para alunos optantes pelo
Programa de Ações Afirmativas da instituição.
O referido programa, regido pela Resolução n° 033/2010 do Conselho Universitário
(CONSUNI-Udesc), de 22 de julho de 2010, tem como finalidade, como consta em seu artigo 1º,
constituir-se como
Instrumento de promoção da inclusão social e étnica respeitando a diversidade cultural e
contribuindo para a busca da erradicação das desigualdades sociais. Propõe uma política
de ampliação de acesso aos seus cursos de graduação e de estímulo a permanência na
universidade.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Percebe-se através da finalidade apresentada em seu texto, que muito além de uma junção
de conteúdo, a instituição tem a educação como uma forma de mudança social. Propõe, nesse
sentido, erradicar desigualdades na medida em que permite acesso e permanência no ensino
superior, o que possibilita o ingresso em ambientes acadêmicos, sociais e de trabalho. O referido
Programa tem como foco, segundo o artigo 2º, os candidatos ao vestibular que
I – tenham cursado integralmente o ensino fundamental e médio em instituição de ensino
pública, isto é, mantida pelo governo federal, estadual ou municipal;
II – pertençam ao grupo racial negro, na forma prevista por esta resolução;
III – pertençam aos povos indígenas;
IV – sejam pessoas com deficiência.
Ou seja, alunos provenientes de escolas públicas, negros, indígenas ou pessoas com
deficiência. No entanto, desde 2011, quando há a primeira citação do Programa de Ações
Afirmativas no edital do vestibular, ocorre a reserva de 30% das vagas oferecidas nos cursos de
graduação para os optantes pelo mesmo, sendo-as divididas entre: 20% para estudantes oriundos
de escolas públicas e 10% destinada a estudantes negros. Não constam, ainda, reservas de vagas
específicas para alunos com deficiência ou alunos indígenas. No artigo 4º da referida resolução, o
Programa definiu quatro ações orientadoras a serem implementadas, são elas:
I – preparação para o acesso aos Cursos de Graduação da Universidade;
II – acesso aos Cursos de Graduação da Universidade;
III – acompanhamento e permanência do aluno na Universidade;
IV – acompanhamento da inserção sócio profissional dos egressos da Universidade;
Dentre essas quatro ações é possível perceber que a instituição deu os primeiros passos
para a totalidade da implementação do Programa de Ações Afirmativas, mas que ainda há um
significativo caminho a percorrer. Como referido anteriormente, há o ingresso de alunos negros e
provenientes de escolas públicas; há ainda auxílios permanência para alunos que de alguma forma
apresentam vulnerabilidade social, nominalmente o programa de auxílio à permanência estudantil
(PRAPE) e o programa de subsídio de refeições oferecidas nos restaurantes universitários
(PROSUR) e, ainda, possibilidades de participar de laboratórios e receber bolsa de extensão,
pesquisa ou de apoio discente. Deve ser pontuado, ainda, que por ora não há um sistemático
acompanhamento aos alunos que ingressam na instituição por meio do Programa de Ações
Afirmativas e, portanto, esses discentes não contam com informações acerca desses auxílios já
no seu ingresso e, ainda, concorrem com demais alunos não-cotistas a esses auxílios e, por vezes,
acabam não os recebendo. Tais questões são extremamente pertinente no que diz respeito ao
ingresso e a permanência dos estudantes, aja vista que várias das ações previstas no Programa
ainda estão em fase de implementação e consolidação.
A implementação de cotas para alunos negros e provenientes de escolas públicas ter sido
implementada na Universidade do Estado de Santa Catarina é um marco importante para a cidade
de Florianópolis no que diz respeito a inserção de sujeitos em espaços de poder. Tal questão ter
ocorrido ainda antes da legislação específica ter sido criada a nível nacional trata-se do resultado

Página 358
de anos de luta política antirracista dentro da Udesc encabeçada pelo Prof. Dr. Paulino de Jesus
Francisco Cardoso.
Em meados do ano de 2010 o Conselho Universitário da UDESC (CONSUNI) já debatia
sobre tais políticas públicas entre os membros do colegiado. Liderando as discussões, há a figura
central do então Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade, Paulino Cardoso. Após muita luta
dentro da instituição, com o apoio de pessoas que compartilhavam da luta antirracista e contra
as desigualdades sociais do Brasil, no dia vinte dois de julho de dois mil e onze é aprovada na
resolução nº 017/2011, criando o Programa de Ações Afirmativas da Fundação Universidade do
Estado de Santa Catarina – UDESC.
Sendo assim, ressalto a importância do Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso, que
é militante do movimento negro, professor do Departamento de História, responsável inclusive
pela implementação de disciplinas obrigatórias de História da África no ano de 1995 para o curso
de História, e coordenador do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros da Universidade do Estado de
Santa Catarina (NEAB), que tem uma longa trajetória pautada na luta antirracista e resistência. Os
bolsistas do referido núcleo são em sua maioria oriundos de ações afirmativas, mas também conta
com acadêmicos que compartilham da luta antirracista, encontram naquele espaço, um local para
compartilhar suas lutas, angustias e vivencias.
Portanto, é de extrema importância o reconhecimento deste militante negro que fez/faz
muitos pela luta antirracista no Brasil e, especialmente na Udesc, por esses alunos oriundos dessas
políticas públicas.

O currículo de Geografia da Universidade do Estado de Santa Catarina e a Lei Federal nº


10.639/03

Após a aprovação da lei federal nº 10.639, no ano de 2003, o currículo do curso de


Geografia do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa
Catarina passa por três modificações curriculares.
A primeira delas, formulada para a Graduação em Licenciatura e Bacharelado em Geografia,
fora no mês de março do ano de 2009. Tendo, no ano de 2011, sido extinta a dupla habilitação
(licenciatura e bacharelado), a segunda reformulação curricular, que ocorre no mês de agosto
do ano de 2013, cria um currículo específico para a Licenciatura em Geografia; e a terceira, em
outubro do ano de 2013, cria um currículo voltado ao Bacharelado em Geografia.
Apesar de eu ter realizado o processo seletivo sem dupla habilitação, sendo específico
para o curso de Licenciatura em Geografia, o fiz no vestibular do segundo semestre de 2013,
com ingresso no mês de agosto, portanto antes da implementação do currículo específico para
a Licenciatura, aprovado no mês de meu ingresso. Ou seja, estou cursando o currículo da dupla
habilitação aprovado no ano de 2009.
O referido currículo, criado seis anos após a aprovação da Lei 10.639/03 no ano de 2009,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

fora aprovado pelos membros do conselho universitário da Universidade do Estado de Santa


Catarina (CONSUNI-Udesc), no dia 05 de março de 2009, através da resolução nº 002/2009,
que “aprova reformulação curricular do Projeto Político Pedagógico do Curso de Graduação em
Geografia”.
Em relação a organização curricular, de acordo com artigo 3º da referida resolução, o
currículo do curso de graduação em Geografia dupla habilitação fora assim organizado
Art. 3º O Curso de Graduação em Geografia, do Centro de Ciências Humanas e
da Educação – FAED, da Fundação Universidade do Estado de Santa Catarina
– UDESC, tem carga horária total de 3.924 (três mil, novecentos e vinte e
quatro) horas-aula, correspondentes a 218 (duzentos e dezoito) créditos, que
contemplam 2.898 (duas mil, oitocentas e noventa e oito) horas-aula destinadas
a Disciplinas Obrigatórias, 216 (duzentas e dezesseis) horas-aula destinadas a
Disciplinas Optativas, 108 (cento e oito) horas-aula destinadas ao Trabalho de
Conclusão de Curso, 414 (quatrocentas e quatorze) horas-aula destinadas ao
Estágio Curricular Supervisionado e 288 (duzentas e oitenta e oito) horas-aula
destinadas a Atividades Complementares.

Observa-se que a carga horaria do curso de graduação em Geografia possuía um total de


3.924 horas-aulas, sendo essas divididas para disciplinas e práticas voltadas às duas habilitações
(Licenciatura/Bacharelado) para as quais fora criada. Faz-se necessário apontar que a primeira
vez em que o vestibular de Geografia Plena em Licenciatura fora ofertado com currículo específico
fora no primeiro semestre do ano de dois e mil e catorze.
A matriz curricular que foi aprovada no dia cinco de março de dois e mil e nove era
composta por quarenta disciplinas, sendo essas divididas entre: quinze disciplinas da área física
da geografia; quatorze da área de geografia humana; cinco de áreas aplicadas, como cartografia
ou sistema de informações geográfica, voltadas ao Bacharelado; e seis disciplinas de didática,
voltadas a Licenciatura. Os campos de estágios que ocupavam uma carga horária expressiva no
currículo eram subdivididos em um semestre de observação no ensino fundamental e outro de
pratica da docência, comumente ocorria no ensino médio.
Tendo sido analisadas as ementas das disciplinas, observa-se a completa ausência da
implementação da lei federal nº 10.639/03 no currículo do curso, mesmo considerando que
a reformulação da grade curricular ocorre no ano de dois mil e nove, ou seja, seis anos após a
aprovação da referida legislação. Segundo Cardoso (2014: 25),
História e cultura afro brasileira e africana devem ser pensadas em suas dinâmicas, disputas,
vivência, em todas as dimensões da vida, muito mais do que restringir a participação na
música, na dança, na culinária, etc. Não que estas dimensões devem ser desconsideradas,
mas necessitamos ir além, discutir arranjos políticos, conhecer os diferentes povos, suas
tecnologias, suas artes, de forma a não homogeneíza-los.

Tendo tal questão em vista, considera-se que em diversas disciplinas, especialmente


àquelas voltadas a geografia humana, geografia física e da licenciatura, poderiam ser abarcados
diversos temas, conceitos, categorias e histórias de África e do Brasil afro-brasileiro, conforme
sugere a legislação. Nesse sentido seria possível dar ouvidos as diversas vozes que por muito
foram ignoradas pela ciência, pela academia e pelas políticas públicas. Desse modo, abandonar-

Página 360
se-ia o olhar branco e eurocentrado presente no currículo, passando-se a perceber os homens
e mulheres africanos e afro-brasileiros enquanto sujeitos responsáveis por modificar espaços e
construir suas histórias.
Nesse currículo, as ementas das disciplinas, nada se preocupavam com a história e
diversidade do continente africano ou da educação das relações étnicos raciais. Sendo assim,
o eurocentrismo era o foco e a concepção norteadora das ementas das disciplinas, os textos
debatidos em sala e o olhar colonial dos docentes era evidente. A ausência de uma disciplina
especifica sobre a geografia africana, ou mesmo a ausência de relações do conteúdo estudado
com o continente africano, que é de grande semelhança de clima, relevo, vegetação, geologia ou
história se fazia presente. Silêncios importantes gritavam aos ouvidos dos discentes, ou ao menos,
ao meu.
No ano de dois e mil e treze o departamento de Geografia da instituição em questão
reformula o currículo novamente. Através da resolução nº 043/2013, aprovada no conselho
Universitário (CONSUNI), cria-se um currículo voltado para a licenciatura, visando formar
discentes cada vez mais capacitados para lecionar. Nesse currículo, a disciplina de Educação das
Relações Étnicos raciais é inserida como disciplina obrigatória, o que considero um avanço para as
pessoas que compartilham da luta antirracista dentro e fora da academia, e principalmente para os
alunos oriundos do programa de Ações afirmativas da Universidade do Estado de Santa Catarina.
É necessário apontar, no entanto, que a disciplina possui 3 créditos, número inferior as demais
disciplinas de educação da matriz curricular, que possuem 4 créditos.
A disciplina de educação das relações étnicos raciais está inserida na matriz curricular,
sendo alocada na quinta fase do curso de graduação de Licenciatura em Geografia. No segundo
semestre de dois mil e quinze a mesma é lecionada pela primeira vez no curso de Geografia Plena
em Licenciatura na UDESC, o que trata-se de um marco importante.
No mesmo ano, o conselho universitário (CONSUNI-Udesc) aprova a resolução nº
060/2013, a qual reformula o currículo de geografia para a habilitação em bacharelado.
Diferentemente do currículo com foco na licenciatura, o currículo em questão não contempla a
lei federal nº 10.639/03. Mais uma vez há a ausência de uma disciplina de geografia africana, a
qual se faz cabível ao currículo de geografia, ou mesmo uma disciplina de Educação das Relações
Étnico Raciais, afinal não se espera apenas que professores saibam lidar com o tema em sala de
aula, mas que sujeitos saiba vivenciá-la.
Em relação aos currículos vigentes do curso de Geografia, ficam, então os questionamentos:
como os alunos oriundos de um programa de ações afirmativas raciais, que visa de uma forma
sistêmica diminuir as desigualdades sociais são representados dentro de um currículo eurocêntrico?
Como suas histórias serão narradas? Como são representados?
Tais apontamentos são guiados como uma reflexão acerca do currículo de geografia em
licenciatura e bacharelado, tendo em vista a ausência de uma representação positiva e efetiva
para esses alunos. A disciplina de educação das relações étnicos raciais atualmente faz parte do
currículo do curso de Geografia em Licenciatura, mas por que tem menos créditos que outras

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

disciplinas do currículo? A branquitude no currículo e o não comprometimento do curso com os


alunos negros e, especialmente, oriundos do Programa de Ações Afirmativas, reflete no ensino
desses discentes, pois possibilita o acesso, mas retira deles (de nós) a possibilidade de conhecer e
valorizar suas histórias e consequentemente dificulta a permanência naquele espaço, que (ainda)
não é múltiplo, diverso, plural.

Referências

BRASIL. Lei nº 10639, de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 jan. 2003. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 10 ago. 2015.

BRASIL. Lei nº 11645, de 10 de março de 2008, que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.  Diário Oficial da União, Brasília, DF,
10 mar. 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/
l11645.htm. Acesso em: 10 ago. 2015.

BRASIL. Lei nº 12711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades
federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 29 ago. 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 10 ago. 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP 001/2004.


Institui diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jun.
2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf. Acesso em: 10
ago. 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP 003/2004.


Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana.  Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 mar. 2004.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf. Acesso em: 10 ago. 2015.

CARDOSO, Paulino. RASCKE, Karla. Formação de professores: promoção e difusão de conteúdo


sobre historia e cultura afro-brasileira e africana. Florianópolis: Casa Aberta, 2014.

UDESC. CONSUNI. Resolução 002/2009 aprovada dia 05 de março de 2009.

UDESC. CONSUNI. Resolução 033/2010 aprovada dia 22 de julho de 2010.

UDESC. CONSUNI. Resolução 017/2011 aprovada dia 21 de março de 2011.

Página 362
UDESC. CONSUNI. Resolução 043/2013 aprovada dia 27 de agosto de 2013

UDESC. CONSUNI. Resolução 060/2013 aprovada dia 17 de outubro de 2013

Página 363
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

AÇÕES AFIRMATIVAS: ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL E PERMANÊNCIA NA


UFSC EM RELAÇÃO ÀS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS

SANTOS, Dandara Manoela dos. (UFSC)


dandaramanoelasantos@gmail.com

Resumo

A intenção desse trabalho é discutir se as políticas de ações afirmativas têm sido acompanhadas por
mudanças que assegurem a permanência de estudantes negros na universidade. Para isso, analisou-se
documentos referente à assistência estudantil da Universidade Federal de Santa Catarina. A metodologia
utilizada seguiu orientações da análise de conteúdo. Uma das primeiras constatações é que houve uma
incorporação na retórica dos documentos de termos como: permanência, vulnerabilidade, acesso, o
que pode significar uma intencionalidade em contribuir para melhorar as condições acadêmicas dos
estudantes. Por outro lado, percebe-se que conceitos como: cotas, ações afirmativas e relações étnico-
raciais, são pouco citados, o que sugere que a política de permanência assume características mais
universalizantes do que focalizadas, já que o principal critério da assistência tem sido o econômico.
Neste caso, os estudantes negros e negras, podem encontrar mais obstáculos na sua vida acadêmica,
já que o racismo ultrapassa as questões de ordem financeira.

Palavras-chave: Ações Afirmativas. Permanência. Relações étnico-raciais.

Página 364
Introdução e fundamentação teórica

As ações afirmativas visam minimizar as desigualdades sociais, e uma das formas utilizadas
é focando naquilo que para muitos constitui sua principal causa, que é o sistema educacional
brasileiro, que sempre direcionou para negros, índios e pobres uma educação de baixa qualidade,
reservando os melhores recursos para a elite branca (GOMES, 2003).
A luta pelas ações afirmativas é uma demanda antiga, mas, foi após a participação da
delegação brasileira na III Conferência Internacional sobre Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas, ocorrida em 2001, na cidade de Durban, na África do Sul,
que o debate no Brasil se fortaleceu. A partir disso, diversas universidades públicas adotaram
as ações afirmativas pelo sistema de cotas. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) inauguraram o sistema de cotas por
exigência da Lei Estadual 3.708. Seguiram-se a essas a Universidade Estadual da Bahia (UNEB)
e a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UFMS), em 2002, e a Universidade de Brasília
(UnB), em 2003. As experiências iniciais dessas universidades foram fundamentais, não só
porque ousaram e comprovaram a viabilidade das cotas, mas, porque pautaram e assumiram o
debate público sobre as desigualdades raciais, o racismo e a importância das ações afirmativas
na sociedade brasileira (PASSOS, 2015). Na UFSC as cotas foram implantadas no ano de 2008,
através do Programa de Ações Afirmativas.
No entanto, o acesso às instituições de ensino superior nem sempre é acompanhado de
auxílios financeiros, estruturais e psicológicas que garantam aos(às) estudantes condições de
realizar suas atividades acadêmicas efetivamente e permanecer no âmbito universitário. Questões
relativas a moradia, manutenção, alimentação, transporte e saúde física e psicológica se tornam
demandas essenciais a serem contempladas para garantir a permanência dos( alunos(as) nas
IFES (ANDIFES, 2007). Considerando ainda o racismo presente na sociedade, essas questões
se tornam ainda mais latentes, quando falamos de cotistas negras e negros. A não definição de
recursos para a manutenção de políticas de assistência estudantil que busquem criar condições
objetivas de permanência que acompanhem a política de reserva na universidade, faz com que
esses(as) estudantes, muitas vezes, retardem a conclusão do curso e até desistam dele.
A partir de reflexões levantadas no seminário: “Graduação em debate - Ações afirmativas
na Universidade” (UFSC, 2016) foi possível avaliar o desempenho dos estudantes ingressos
através das cotas raciais na universidade constataram que por mais que o número de evasão
entre estudantes cotistas seja menor do que os ingressos pela classificação geral, ainda existe um
número considerável daqueles que desistem dos seus cursos, assim, seria pertinente pesquisar
se a questão da permanência se relaciona a essa problemática. Portanto, não é suficiente abrir
apenas as portas dos cursos superiores, é preciso também garantir as condições adequadas de
continuidade dos estudos e de formação acadêmica e científica (GOMES, 2005; SANTOS, 2009).
Embora o uso do termo “evasão”, didaticamente corresponda à realidade de muitos(as)
estudantes negros(as), é possível pensar que essa categoria se apresenta muitas vezes como

Página 365
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

um eufemismo para uma situação que na realidade é de expulsão simbólica. Junqueira (2012) faz
essa problematização dos termos porque acredita que a disputa linguística, nesse caso, produz
um deslocamento entre a culpabilização indireta que se infere no “estudante que evade” para
a responsabilização da “estrutura que expulsa”. Ainda nesse sentido, o autor versa sobre o que
chama de “currículo em ação”, no qual estariam não apenas o conteúdo do currículo formal da
instituição, mas também os conteúdos implícitos, como por exemplo, na falta de uma implicação
mais profunda com a permanência efetiva dos(as) negros(as), bem como de outros grupos
vulnerabilizados por questões de gênero, foco de Junqueira (2012).
As universidades públicas, geralmente, procuram adotar programas de assistência
estudantil para seu corpo discente. Tais programas visam auxiliar com a disponibilização de
recursos a superação dos obstáculos citados acima, em geral impedimentos de ordem financeira
e material (MAYORGA & SOUZA, 2012). Mas não consideram as desigualdades provocadas pelo
racismo presente na sociedade, devido ao histórico segregacionista baseado no legado racista
escravocrata. Dessa forma a universidade ainda se torna reprodutora de tal sistema, onde as
exclusões perante negras e negros se manifestam em casos de racismo e violência psicológica,
que vão além das dificuldades socioeconômicas.
Tendo a UFSC como referência e ponto de partida, nosso intuito aqui é discutir se as políticas
de ações afirmativas nessa universidade têm sido acompanhadas por mudanças que assegurem
a permanência de estudantes negros na universidade, buscando verificar, dessa forma, se a
instituição tem cumprido com um dos objetivos declarados pelo Programa de Ações Afirmativas.
Para isso, foram analisados os seguintes documentos: Relatório de Gestão da Pró-Reitoria
de Assuntos Estudantis (PRAE), que relata o que foi planejado e executado pelo órgão entre os
anos de 2010 e 2014, como também o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) que relata as
projeções e planejamentos da instituição, no mesmo período.
A metodologia utilizada seguiu orientações da análise de conteúdo (BARDIN, 2011), a análise
de conteúdo trata-se de uma metodologia que conta com um conjunto de técnicas que auxiliam
nas análises de pesquisas diversas. A técnica utilizada para realização desse trabalho busca
analisar a frequência com que determinados termos aparecem nos documentos selecionados.
Inicialmente o texto apresenta uma fundamentação teórica, trazendo as referências
principais a serem utilizadas para embasar a temática trabalhada, seguida por uma apresentação
metodológica dos procedimentos adotados. A seguir, apresentaremos os resultados da pesquisa
juntamente à discussão.

2 Metodologia

2.1 Área de estudo

O estudo tem como ponto de partida a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
com sede em Florianópolis. A UFSC foi fundada nos anos de 1960. Sua comunidade é constituída

Página 366
por cerca de 50 mil pessoas, entre docentes, técnico-administrativos em educação e estudantes.
São aproximadamente 5.500 servidores (as) entre professores(as) e técnicos(as) que atuam na
universidade.
A UFSC tem cerca de 30 mil estudantes matriculados(as) em 103 cursos de graduação
presenciais e 14 cursos de educação a distância. Na pós-graduação, a UFSC disponibiliza cerca
de 7 mil vagas para cursos stricto sensu: 63 mestrados acadêmicos, 15 mestrados profissionais
e, 55 cursos de doutorado. Nos 32 cursos de especialização, contabilizam-se 6 mil alunos(as) em
cursos à distância e 500 em cursos lato sensu presenciais (UFSC, 2016).

2.2 Procedimentos metodológicos

Como citado anteriormente, os documentos Relatório de Gestão da Pró-Reitoria de


Assuntos Estudantis (PRAE) e o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) dos anos 2010
a 2014 foram selecionados com a intenção de compreender como tem sido acompanhada a
questão da permanência estudantil em relação aos estudantes negras e negros ingressos pela
política de reserva de vagas. O primeiro documento relata a gestão da PRAE/UFSC, após o ano
vigente, ou seja, a cada ano, um relatório. Por isso, nesse trabalho foram analisados cinco relatórios
de gestão, sendo estes referentes a 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014. Os relatórios são organizados
da seguinte forma: Apresentação dos dados de identificação (nome da entidade e a equipe
técnica que coordenou esta atividade), considerações iniciais, descrição da estrutura regimental
da PRAE, relação nominal de todos os seus servidores e de todos os seus servidores terceirizados
do RU, relato das atividades desenvolvidas pela Diretoria de Assuntos Estudantis, Coordenadoria
de Apoio a Política Estudantil, Coordenadoria de Serviço Social, Departamento de Integração
Estudantil, Coordenadoria de Apoio a Integração Estudantil, Restaurante Universitário, metas para
2011 e finalmente, as considerações finais.
O segundo documento analisado (PDI), tem como função principal sistematizar o
planejamento na Instituição com um horizonte temporal de pelo menos cinco anos. O Ministério
da Educação (MEC) define o PDI como:
o documento que identifica a Instituição de Ensino Superior (IES), no que diz respeito à sua
filosofia de trabalho, à missão a que se propõe, às diretrizes pedagógicas que orientam
suas ações, à sua estrutura organizacional e às atividades acadêmicas que desenvolve e/
ou que pretende desenvolver. (MEC, 2006, s/p)

A partir dessa definição já se torna possível justificar a importância da análise desse


documento para a pesquisa proposta. Para a pesquisa foi utilizado o Planejamento que compreende
os anos de 2010 a 2014. O documento foi organizado da seguinte forma: Dividido em quatro
capítulos. No primeiro capítulo, apresenta uma caracterização da instituição e de sua missão,
visão, valores e objetivos. No segundo, desenvolve-se o PPI (Projeto Pedagógico Institucional),
como parte principal do PDI, em que se definem as políticas da UFSC para o quinquênio. No

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

terceiro capítulo, há uma descrição dos atores envolvidos na atividade universitária, que são o
corpo discente e o corpo de servidores(as) docentes e técnico-administrativos(as) em educação.
São também descritos a infraestrutura, a gestão e o orçamento. No capítulo final, destacam-se o
papel da instituição na geração de inovações e como ela opera suas relações interinstitucionais.
A metodologia utilizada seguiu orientações da análise de conteúdo de Bardin (2011), com
a análise temática de texto, para isso foram selecionadas as seguintes palavras (temas): Ação
afirmativa, acessibilidade, acesso, cor, cotas, desigualdade, diferença, discriminação, diversidade,
equidade, escola pública, étnico – racial, igualdade, inclusão, indígena, lei 10.639, lei 11.645, lei
12.711, negro, pardo, permanência, política social, preconceito, preto, quilombola, raça, racismo,
renda, reserva de vagas, responsabilidade social, vulnerabilidade. Segundo Bardin (2011) se
nos servirmos da contagem de um ou vários temas ou itens de significação, numa unidade de
codificação previamente determinada, perceberemos que se torna fácil escolhermos, neste
discurso, a frase como unidade de codificação. (p.77) Dessa forma, fizemos uma busca nos
documentos em questão das palavras selecionadas, que foram citadas anteriormente, assim, foi
possível identificar a frequência em que elas aparecem, quando aparecem, como também analisar
a diferença desses resultados e seus significados conforme o documento de cada ano analisado.
As mesmas palavras foram utilizadas para todos os documentos.

Discussão dos resultados e algumas considerações

Com subsídio da análise de conteúdo, foi possível verificar parcialmente através das
palavras selecionadas, como a Universidade Federal de Santa Catarina, tem se colocado em
relação à questão das políticas de permanência, se os critérios para extensão dessas políticas vão
além das questões econômicas, ou se existe alguma política específica ou ampliação das políticas
pensando em estudantes negras e negros ingressos pelas cotas e em consideração ao racismo
existente dentro do ambiente universitário e em toda a sociedade.
Iniciando pelos relatórios de gestão da PRAE, no documento de 2010, as palavras que
mais apareceram foram: “Permanência” (14 vezes) e “vulnerabilidade” (8 vezes). Ao analisar os
contextos em que as duas palavras aparecem, fica explícito que as mesmas estão diretamente
associadas com a questão econômica. A palavra ‘permanência’, nem sempre está associada
diretamente, mas, o que chama atenção é que a palavra ‘vulnerabilidade’, vem acompanhada
de ‘socioeconômico’ em todas as citações nesse documento. Termos como: Cotas, igualdade,
étnico-racial, preto, negro, pardo, racismo, preconceito e reserva de vagas aparecem ‘zero’ vezes
no referido documento, já o termo ações afirmativas, aparece uma única vez numa simples citação:
‘Apoiar os discentes vinculados ao programa de ações afirmativas’. No relatório referente a 2011,
as duas palavras mais citadas se repetem com o mesmo número de vezes que no documento
anterior, e dessa vez aparece uma citação de “cotas” sociais, os termos antes referidos como
‘zero’, seguem dessa forma, ações afirmativas, permanece. Em 2012 pela primeira vez surge o

Página 368
termo ‘étnico-racial’ seguido de ‘igualdade’, ‘inclusão’ aparece 4 vezes num contexto econômico,
‘permanência’ 15, vulnerabilidade 11, sempre seguido de ‘socioeconômico’. “Cotas’ permanece
com a mesma referência única, vinculada a palavra ‘social’; preto, negro, pardo, racismo e
preconceito seguem sem nenhuma citação; ‘ações afirmativas’, não aparece. Houve a inclusão do
termo ‘reserva de vagas’, apontando que as cotas sociais seriam de 30% em relação ao número
total de vagas disponibilizadas. No relatório de 2013, as citações permanecem da mesma forma
que o relatório anterior, exceto pelo termo ‘reserva de vagas’ que não aparece mais. Em 2014,
período do último relatório analisado, o termo ‘ações afirmativas’ volta a aparecer, agora em
duas citações, num contexto mais interessante, uma vez relatando a importância do combate ao
preconceito e conscientização das Ações Afirmativas e outra referindo especificamente ao apoio
aos estudantes indígenas participantes do PAA e também a manutenção desses estudantes. Os
demais termos seguem sem grandes alterações.
Referente ao Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), que é um único documento que
compreende os anos de 2010 a 2014, obteve-se os seguintes resultados: a palavra ‘permanência’
aparece 5 vezes no plano, vinculada a questões econômicas. “Vulnerabilidade”, segue com 8
citações, todas também seguidas de ‘socioeconômico’, que é o termo mais citado. Já todos
os outros termos pesquisados, (cotas, igualdade, étnico-racial, preto, negro, pardo, racismo,
preconceito, reserva de vagas), não aparecem nenhuma vez.
Com esses resultados, foi possível verificar que a Universidade Federal de Santa Catarina,
tem sim se preocupado em impulsionar ações que viabilizem a permanência do(a) estudante
que se encontra em condições de vulnerabilidade sócio econômica. É visível a incorporação de
alguns termos nos documentos, principalmente nos relatórios de gestão da PRAE conforme o
avanço dos anos, o que pode significar uma real intenção de auxiliar esses(as) estudantes. Mas,
em contrapartida, notamos que termos como ‘relações étnico raciais’ e ‘ações afirmativas’ são
pouco citados, e ‘preto, negro, pardo e racismo’, por exemplo, não são citados em momento algum.
Isso nos mostra que as políticas de ações afirmativas no que se refere à permanência, não fazem
recorte racial na UFSC. Compreendendo que o racismo ultrapassa questões de ordem financeira,
é possível constatar que os(as) estudantes negros e negras na Universidade em questão,
certamente encontram mais obstáculos para permanecer na mesma. Segundo Gomes (2003), as
ações afirmativas não visam somente combater a discriminação racial e de gênero, mas também
corrigir ou aplacar os efeitos presentes dessa discriminação praticada no passado.
Com a realização dessa pesquisa, foi possível compreender que o acesso deve estar atrelado
diretamente à permanência, promovendo aos(às) estudantes negros e negras um acolhimento
que resulte na garantia de uma formação qualificada e também para estar coerente com o que
é proposto por ‘Ações Afirmativas’, fazendo com que a política se efetive de fato. Para isso, a
universidade precisa rever seu programa de ações afirmativas a fim de que sejam incorporadas
questões direcionadas a esses estudantes.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Referências

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Disponível em: <http://prae.ufsc.br/files/2013/06/Relat%C3%B3rio-de-Gest%C3%A3o-PRAE-2013-final.pdf>.
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_________________. A UFSC Disponível em: <www.ufsc.br/>. Acesso em 18 de jun. de 2016.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

COTISTAS RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR: TRAJETÓRIAS, PERCEPÇÕES


SOBRE PRECONCEITOS E PROJETOS FUTUROS

MINELLA, Luzinete Simões (UFSC)


simoesluzinete@gmail.com
Resumo

O artigo analisa as trajetórias universitárias de estudantes negros e negras que ingressaram no curso de
graduação em medicina da UFBA através das cotas raciais. A metodologia da pesquisa incluiu a revisão
bibliográfica sobre o tema, o levantamento de dados secundários sobre o perfil geral dos/as cotistas e
a realização de entrevistas com seis cotistas – três alunas e três alunos – provenientes de diferentes
fases do curso. Após um breve histórico das Políticas de Ações Afirmativas (PAAS) e algumas reflexões
sobre a sua implantação e seus impactos, numa abordagem qualitativa, o artigo focaliza os resultados
das entrevistas, analisando dados sobre origem, ocupação e nível de escolaridade dos familiares mais
próximos, trajetória no ensino superior, incluindo as razões da escolha da carreira, as opiniões sobre o
PAA, as percepções sobre preconceito e sobre os aspectos positivos da experiência, a participação
na militância em grupos dentro e fora da Universidade,os projetos futuros, e, finalmente, sua avaliação
sobre as diferenças entre as trajetórias dos seus pais e mães e as suas próprias. Através da análise das
trajetórias, tornou-se possível perceber algumas interferências de gênero nas escolhas, motivações e
também nas percepções sobre preconceitos e sobre os projetos acadêmicos futuros.

Palavras-chave: Cotistas raciais; medicina; trajetórias; preconceitos; gênero; projetos


futuros.

Página 372
Introdução

O artigo analisa as trajetórias universitárias de estudantes negros e negras que ingressaram


no curso de graduação em medicina da UFBA através das cotas raciais. A metodologia da pesquisa
incluiu a revisão bibliográfica sobre o tema, o levantamento de dados secundários sobre o perfil
geral dos/as cotistas e entrevistas, realizadas entre janeiro e março de 2016, com seis cotistas
– três alunas e três alunos– de diferentes fases do curso. Inicialmente são analisados os dados
gerais sobre o perfil: local de nascimento, local de moradia, ocupação e nível de escolaridade dos
familiares mais próximos; origem escolar, renda familiar, média mensal, modalidade de bolsa de
estudos. Quanto à trajetória no ensino superior, foram explorados aspectos tais como as razões
da escolha da carreira, opiniões sobre o PAA, percepções sobre preconceito e participação na
militância em grupos dentro e fora da Universidade. A análise dos projetos futuros também foi
contemplada e centrou-se nas informações sobre as áreas de especialização pretendidas, as razões
das suas escolhas, as metas acadêmicas, averiguando-se em que medida pretendem realizar a
pós-graduação ou estudar no exterior. A pesquisa buscou ainda contemplar as percepções sobre
os aspectos positivos da experiência e sobre o como avaliam as diferenças entre as trajetórias
escolares dos seus pais e mães e as suas próprias.
O estudo se identifica com uma das vertentes do campo de Gênero e Ciências, que inclui –
além de outros aspectos - investigações sobre a participação das mulheres nas carreiras científicas,
acesso, permanência e as implicações de gênero nas escolhas profissionais e na construção das
suas carreiras (Tabak, 2002; Blay e Lang, 2004; Lombardi, 2006 e 2017; Ferreira et alii, 2008;
Santos, 2010; Yannoulas, 2007; Lima, Lopes e Costa, 2016; Minella, 2013b, entre outros). A
pesquisa também interroga em que medida as interações do gênero com a dimensão étnico/
racial, em sua articulação com outros marcadores da diferença – classe social e gerações – estão
sendo levadas em conta pelos/as cotistas. Teóricas feministas como Patricia Hill Collins (1990;
2005), Sandra Azerêdo (1994); KimberléCreenshaw (2002), AvtarBrah (2006), VerenaStolcke
(2006) e Adriana Piscitelli (2008) inspiram a análise, pois contribuem para uma compreensão
das intersecções enquanto sobreposições entre os sistemas discriminatórios, suas relações e os
distintos tipos de opressão que representam e que potencializam uns aos outros, multiplicando
desvantagens sociais, econômicas, políticas e geracionais1.

1 Sua realização dá continuidade ao projeto que venho realizando nos últimos anos, intitulado “Graduação em
Medicina: perfil dos/as estudantes, impacto das cotas e interferências de gênero”. Financiamento: CNPq. No projeto
anterior analisei o perfil socioeconômico, geracional e étnico dos/as estudantes e aspirantes dos cursos de graduação
em Medicina em universidades públicas e privadas em dois estados brasileiros: Bahia e Santa Catarina, entre 2005
e 2015. Os resultados parciais constam em várias fontes e podem ser encontrados de modo mais completo em
MINELLA (2016).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1 Políticas de Ação Afirmativa: breve histórico


As Políticas de Ação Afirmativa (PAA) vêm adquirindo relevância nos países ocidentais,
especialmente entre a metade do século XX e o início do século XXI. Mas, segundo Weisskopf,
essas ações se iniciaram no começo do século XX, na Índia, com as políticas conhecidas como
“de reserva”, enquanto reação às desigualdades impostas pelo sistema de castas (2008)2. Além
da Índia, os estudos de Silva (2008), Sarmento (2008) e Kabengele Munanga (2001), assinalam
que essas ações foram incorporadas também nas constituições de vários países, em diferentes
continentes, por exemplo, África do Sul, Austrália, Alemanha, Bulgária, Canadá, China, Estados
Unidos, Finlândia, Inglaterra, Malásia, Israel, Polônia, Nigéria, Nova Zelândia, Rússia, Sri Lanka e
Ilhas Fiji.
Segundo Munanga, as PAAs visam oferecer aos grupos discriminados e excluídos
um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas
do racismo e de outras formas de discriminação. Daí as terminologias de “equal opportunity
policies”, ação afirmativa, ação positiva, discriminação positiva ou políticas compensatórias”. O
autor também refere a influência dos Estados Unidos, sintetiza e discute argumentos contra e a
favor das cotas (2001, p. 31/32).
Arabela Campos Oliven, ressalta que a expressão ações afirmativas foi empregada
inicialmente em 1961 no governo Kennedy, que, diante do incremento das tensões e conflitos
raciais no país e das demandas do movimento negro, criou um comitê para definir os critérios para
o estabelecimento de oportunidades iguais no mercado de trabalho (2007: p. 34)3.
Reconhecendo também essa influência, Antonio Sérgio Guimarães assim sintetiza as
diferentes etapas das PAAs no Brasil (2016, p. 95): inicialmente, durante o governo Fernando
Henrique Cardoso, constituiu-se “o Grupo Interministerial e Trabalho da População Negra (1995)
até a promulgação da lei n. 10.558, de 2002 (Diversidade na Universidade), que recomenda a
adoção de ações afirmativas pelas autarquias e fundações de ensino universitário”. Por sua vez, a
“segunda fase tem início com a aprovação e a implantação de cotas nas universidades públicas a
partir de 2003 e 2004”. Segundo o autor, “essas ações se basearam juridicamente na autonomia
universitária e na recomendação legal de 2002”, enquanto “a terceira e atual fase tem início em
2012 com a decisão do STF julgando constitucional o uso das cotas raciais pela UnB” (2016, p.

2 Segundo o autor, após a independência, em 1947, uma nova constituição estabeleceu as bases das políticas
de ações afirmativas que se desenvolvem na Índia até o momento atual (2008).
3 Oliven afirma que “em 1965, o presidente Lyndon Johnson passou a exigir das empresas que recebiam
contratos do governo federal um tratamento não discriminatório no emprego e um programa de ações afirmativas
que visassem combater os efeitos da discriminação passada. Dois anos depois a categoria sexo passou a ser usada
como critério para ações afirmativas e, em 1972, as mesmas exigências passaram a vigorar também nas instituições
educacionais” (2007: p. 34).

Página 374
95)4.
Referindo-se à primeira etapa e ao papel do governo FHC, André Brandão afirma que
(2007a, p. 09), “as ações afirmativas entraram de forma definitiva na agenda pública brasileira
somente nos primeiros momentos deste século XXI”, sob a influência do contexto da III Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas, realizada em
Durban, África Sul em 2001. O governo Fernando Henrique nomeou uma comissão para definir o
posicionamento do país na Conferência. Com base no relatório final produzido por esta comissão,
o país não apenas reconheceu a existência do racismo, como assumiu o compromisso de criar e
implantar ações afirmativas voltadas para a defesa da inclusão étnico-racial. A partir daí, propostas
de cotas em instituições públicas federais começaram a surgir e se expandiram de modo expressivo
inclusive nas universidades públicas (2007).
Em abril de 2012, foi aprovada pelo Supremo Tribunal Federal a Lei nº 12.711, sancionada
pela Presidência da República em 29 de agosto de 2012. Essa lei garante 50% das vagas dos
processos seletivos para candidatos/as cotistas levando em conta a renda e a cor, adotando pois
um percentual que ultrapassou aquele estabelecido pelas Resoluções de várias instituições de
ensino superior e que deveria ser atingido, gradativamente, até 2016, devendo ser avaliado pelo
governo em 20225.
Além dos/as autores/as citados/as, a defesa da inclusão étnico-racial tem estado também
presente nos estudos de José Jorge de Carvalho, um dos pioneiros do debate sobre cotas no
Brasil, que a partir da análise de inúmeros dados sobre exclusão dos negros e dos indígenas no
país e no ensino superior, elaborou várias propostas para seu maior acesso aos diferentes níveis
do ensino superior, liderando o processo de implantação do sistema de cotas na Universidade
de Brasília (2005). Mais recentemente, o autor elaborou um balanço geral do Mapa das Ações
Afirmativas no país, ressaltando os seus avanços e limites (2016).
Os itens a seguir se fundamentam nas definições das ações afirmativas e na compreensão
que os/as autoras/es citados/as desenvolveram sobre o seu histórico no país. Também se
respaldam no entendimento de que, no Ocidente, estas surgem nas sociedades pós-coloniais, no
âmbito dos Estados do Bem-Estar Social (SARMENTO, 2008).

4 Num artigo anterior, o autor afirma que propostas sobre cotas entraram em cena no governo Vargas, no
âmbito do trabalho, tentando assegurar 2/3 dos postos para trabalhadores nacionais. Em 1968, novas propostas
surgiram, a partir do reconhecimento da discriminação racial por parte do governo de transição formado pela aliança
entre militares e políticos liberais em 1964. Posteriormente, tendo-se instalado a ditadura militar, forças contrárias a
essas políticas silenciaram essas propostas, apesar do fortalecimento das lutas contra a discriminação alavancadas
pelo movimento negro, influenciadas, em parte pelos avanços do Black Power norte-americano (GUIMARÃES, 2015).
5 Entre outras medidas, a Lei determina que metade das vagas seja destinada aos/às estudantes com renda
familiar mensal, por pessoa, igual ou inferior a 1,5 salários mínimos e a outra metade com renda superior a este limite.
Há, ainda, vagas reservadas para pretos, pardos e índios, entre aquelas ofertadas pelo critério de renda. Ver maiores
detalhes sobre essas vagas, seus critérios de distribuição e seleção em: http://portal.mec.gov.br/cotas/sobre-sistema.
html. Acesso em: 22 maio 2017.

Página 375
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

2 Implantação e impactos das cotas no ensino superior brasileiro

Os amplos e acalorados debates, as ações dos movimentos sociais - especialmente o


movimento negro (CONTINS e SANT’ANNA, 1996; SCHERER-WARREN e SANTO, 2014) - e a
disposição dos governos petistas para garantir o diálogo com as demandas apresentadas pelo
movimento e por setores expressivos da academia resultaram nos avanços na legislação, de modo
que, em 2005, quinze universidades públicas (federais e estaduais) já tinham adotado sistemas de
cotas raciais e/ou socioeconômicas. Entre elas, as quatro pioneiras dessas ações: Universidade do
Estado da Bahia em 2002, e, em 2003, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade
Estadual do Norte Fluminense e a Universidade de Brasília (CÉSAR, 2007).
O debate sobre as PAAs, entre as quais se encontra o sistema de cotas no ensino superior,
tem incluído vários atores, dentro e fora da academia. Um exemplo de mapeamento das diferentes
posições – favoráveis e contrárias - pode ser encontrado na síntese produzida por Karine Goss
(2014) e no estudo de Carlos Brandão que elabora um balanço das definições das ações afirmativas
e das cotas numa obra fundamental para se compreender o contexto do debate no Brasil (2005).
Inúmeros artigos, dissertações, teses, relatórios etc. sobre o tema podem ser encontrados, por
exemplo, na ampla bibliografia organizada por Lúcia Gaspar e Virgínia Barbosa (2013)6 reunindo
464 referências bibliográficas sobre ações afirmativas e políticas de cotas no Brasil entre 1999-
2012. Outro acervo importante está disponível no Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na
Pesquisa, coordenado por José Jorge de Carvalho, cuja sede está instalada na Universidade de
Brasília, contendo mais de 400 publicações, incluindo teses e dissertações, além de bancos de
imagens e de som, entre outros.7
Os processos de decisão e de implantação das políticas de cotas no ensino superior
brasileiro a partir do início do milênio estão registrados em várias outras publicações. Entre elas
referimos as seguintes coletâneas que foram organizadas por integrantes de núcleos e equipes de
pesquisa envolvid@s com o debate e com as decisões condensadas nas Resoluções universitárias:
BRANDÃO, 2007b; ZONINSEIN e FERES JÚNIOR, 2008; SANTOS, 2012 e 2013; SCHERER-
WARREN e SANTOS, 2014 e 2016.
Os artigos nelas publicados contribuem para uma compreensão dos impactos do sistema
de cotas sobre o perfil socioeconômico e étnico dos/as estudantes, espelhando as tendências
do debate e evidenciando os vínculos desse sistema com a democratização do ensino superior.
Em algumas delas, as análises são predominantemente quantitativas (BRANDÃO, 2007; SANTOS,
2012 e 2013) e sobretudo qualitativas em outras (ZONINSEIN e FERES JÚNIOR, 2008; SCHERER-
WARREN e PASSOS, 2014). Em ambos os casos as questões étnico-raciais, socioeconômicas
e o sexo do/as estudantes são consideradas, constituindo um dos seus grandes avanços, pois

6 As organizadoras são bibliotecárias da Fundação Joaquim Nabuco.


7 Informação obtida no sítio do governo brasileiro na internet. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/ciencia-
e-tecnologia/2014/06/instituto-consolida-dados-sobre-politica-de-inclusao-no-ensino-e-pesquisa>. Acesso em:
20 maio 2017.

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preparam o terreno para abordagens que recuperem as percepções dos/as cotistas raciais sobre
suas trajetórias. Inspirado numa perspectiva de gênero em sua articulação com outros marcadores
de diferenciação social, o presente estudo compreende o gênero em sua dimensão histórico-social,
simbólica, como estruturante das desigualdades sociais, das representações que transparecem
nas estereotipias, nas imagens, num ideário que, de um modo ou de outro, persiste em relegar as
mulheres a um papel social secundário. E se inspira em abordagens sobre a condição específica
das mulheres que optam pela carreira médica, de acordo com as obras de RAGO, 2000 e 2007;
MOTT et alii, 2008; VANIN, 2008; MELO e CASEMIRO, 2004; SANTOS, 2010; MINELLA, 2013a
e 2016; entre outras.

3 Cotistas raciais no ensino superior: trajetórias, percepções sobre preconceitos e projetos


futuros

As entrevistas foram realizadas com três alunos negros e três alunas negras de diferentes
fases da graduação em Medicina da UFBA, entre novembro de 2015 a fevereiro de 2016, no
campus da Universidade8. O roteiro incluiu questões iniciais sobre o perfil socioeconômico, cujos
resultados serão sintetizados a seguir: origem (idade, sexo, local de nascimento, local de moradia,
número de pessoas na família, ocupação do pai, ocupação da mãe); escolaridade e renda familiar
(origem escolar, nível de escolaridade do pai, da mãe, dos irmãos e irmãs, renda familiar; fase que
estava cursando e bolsas de estudos (cotas raciais e outras). Em seguida foram incluídas questões
sobre trajetória acadêmica, preconceito e discriminação e projetos futuros. Os relatos sobre estes
tópicos serão sintetizados na segunda parte desse item. Num trabalho posterior, as informações
sobre o perfil dos entrevistados serão confrontadas com os dados gerais sobre cotistas na UFBA,
obtidos nas bases da instituição. Além disso, as falas dos/as entrevistados/as serão recuperadas e
analisadas em diálogo com a literatura sobre cotistas raciais, com ênfase na situação de estudantes
negros e negras, que vem sendo produzida no país. Para preservar o anonimato, os nomes dos/as
estudantes serão omitidos, utilizando-se uma linguagem impessoal (aluno ou aluna; entrevistado
ou entrevistada), evitando-se tanto quanto possível, referências detalhadas a aspectos pessoais,
e até mesmo às fases do curso.
Os/as estudantes tinham no mínimo 21 e no máximo 33 anos; cursavam entre a 5ª a 8ª fase
do curso; todos/as nasceram no Estado da Bahia, sendo quatro na capital; solteiros/as, todos/as
residiam em bairros da capital, junto com famílias com no mínimo quatro e máximo de seis pessoas;

8 Joselita da Silva Santana, na época estudante do curso de graduação em Gênero e Diversidade da UFBA,
atuou como entrevistadora e também se dedicou ao levantamento dos dados secundários. Os contatos iniciais para
as entrevistas foram feitos em julho de 2015. Após muitas tentativas, apenas se iniciaram em novembro do mesmo
ano em razão das negativas e de um período de greve na UFBA durante o segundo semestre. Tendo-se prolongado
as aulas, as entrevistas foram agendadas durante o verão de 2016. Todos/as estudantes tomaram conhecimento
dos objetivos da pesquisa, concordaram em responder ao roteiro e assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

os pais exerciam ocupações mais ligadas ao setor de serviços: administração de condomínio,


polícia militar, serviços gerais, técnico em manutenção e um dos entrevistados afirmou que o pai
era estudante. As mães se ocupavam também prioritariamente no setor de serviços, exercendo as
funções de encarregada de supermercado, pedagoga, comerciante, dona de casa e autônoma,
além de duas assistentes sociais, sendo que uma delas exerce também as funções de cozinheira.
A renda familiar oscilou entre dois e seis salários mínimos, ou seja, entre mil setecentos e sessenta
e cerca de cinco mil reais no ano da pesquisa9. Apenas uma aluna declarou que desconhecia a
renda da mãe, a chefe da família.
Quanto à origem escolar, quatro são oriundos das escolas públicas, onde cursaram os
níveis fundamental e médio; apenas dois estudaram em escola particular durante um desses
níveis, com bolsas de estudos, e em escola pública no outro, sendo que um deles realizou curso
técnico. O nível de escolaridade dos pais variou de médio completo (em quatro casos), ao curso
técnico de nível médio e ao ensino superior (estudante de educação física). No caso das mães,
três concluíram o curso superior (uma, pedagogia e duas serviço social), sendo que uma fez o
curso à distância. Entre as outras três, duas concluíram e uma não concluiu o curso médio.
Conforme visto anteriormente, o número de pessoas nas famílias oscilou entre um mínimo
de quatro (em quatro casos) e um máximo de seis, incluindo em um dos casos, a avó e no outro, um
cunhado. Trata-se portanto, de famílias com baixa natalidade, seguindo uma tendência nacional. O
nível de escolaridade das/os irmãos/irmãs, variou entre cursos de nível médio e o ensino superior
incompleto. Os três entrevistados destacaram que foram as primeiras pessoas das suas famílias a
ingressarem em um curso de nível superior. Num desses casos, a família do aluno é composta por
quatro pessoas, a irmã foi aprovada e logo começaria a formação universitária, aos 21 anos. Outro
entrevistado, com 26 anos e também oriundo de uma família com quatro pessoas, graduou-se em
Farmácia, trabalha como farmacêutico e estuda medicina, enquanto sua irmã estuda Engenharia
Civil. O terceiro entrevistado, com 24 anos e uma família formada por cinco pessoas, compartilha
do pioneirismo dos demais, afirmando que nenhuma delas atingiu o nível superior de ensino.
Quanto às alunas, uma delas tinha 22 anos e é filha única; outra tinha 25 e apenas uma
irmã, estudante do curso de Letras também na UFBA. A terceira entrevistada completou 33 e tinha
um irmão cursando o nível técnico e uma irmã formada no ensino superior. Este quadro mostra a
importância atribuída à educação superior por parte dessas famílias de baixa renda, sinalizando,
tal como se pode observar nas informações a seguir, para a democratização do ensino superior no
país.
Todos/as entrevistados/as fizeram outros vestibulares, em outras universidades,
principalmente na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), tentando outras carreiras, por
exemplo, Ciências da Computação, Farmácia (2), Administração, Nutrição (2) antes de ingressar na
Medicina. Duas pessoas são graduadas: um aluno em Farmácia e uma aluna em Nutrição. Na maior
parte das vezes, recebiam benefícios através dos Editais da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e

9 O salário mínimo em 2016 equivalia a R$840,00 conforme o Decreto 8.618 de 2015.

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Assistência Estudantil (PROAE), prevalecendo a bolsa permanência (4), às vezes articulada com
bolsa moradia e bolsa alimentação.Dois entrevistados também afirmaram ter recebido bolsas nos
cursos que realizaram anteriormente, inclusive bolsa PIBIC e Jovens Talentos.
Na sequência, abordaremos algumas das informações sobre as trajetórias universitárias,
percepções a respeito dos preconceitos e projetos futuros, de modo bastante resumido dados
os limites desse artigo10. A respeito das trajetórias no ensino superior, as razões da escolha da
medicina constituiu a primeira pergunta. De modo geral, prevaleceu como motivação principal a
ideia de ajudar os outros, cuidar, aliviar o sofrimento, tanto no caso das moças, quanto dos rapazes.
Uma das alunas admitiu que sempre sonhou em ser médica, e que se considera realizando um
sonho. No entanto, dois rapazes afirmaram que encararam a entrada no curso de medicina como
um desafio para jovens negros de baixa renda, como uma oportunidade de ingresso num espaço
de poder, dominado pelas elites conservadoras. Um deles relatou que é originário de uma família
cujo pai exerceu militância no movimento negro e se declarou muito identificado com as bandeiras
desse movimento.
Sobre as PAAs, todos/as coincidem em considerar que elas possibilitam o ingresso
de estudantes negros/as, oriundos/as das camadas de baixa renda e/ou oriundos das escolas
públicas, entendendo que o sistema de cotas raciais estabelece condições mais igualitárias
de ingresso de jovens nas universidades. No entanto, três – dois rapazes e uma das moças –
ressaltaram que alguns estudantes estudam nas escolas públicas de qualidade (por exemplo,
Colégio Militar ou CEFET) como uma forma de acessar o sistema de cotas, razão que justificaria o
baixo percentual de negros no curso. Um dos entrevistados afirma, por exemplo, que numa turma
com 80 estudantes, apenas três eram negros. Uma das entrevistadas lembra que sem a bolsa
permanência seria impossível para os/as cotistas dar conta das exigências do curso, pois teriam
que trabalhar e estudar, ampliando as chances de aumentar as taxas de evasão.
A respeito dos preconceitos em função de ser cotista, as opiniões se dividiram. Duas das
alunas afirmaram que nunca perceberam qualquer preconceito, enquanto a terceira admitiu que
se deu conta de que havia quando foi aluna do Bacharelado Interdisciplinar. Contrastando com
essas opiniões, os rapazes relataram que observam preconceitos, muitas vezes não declarados
diretamente, tanto entre os próprios estudantes (por exemplo, entre os que vêm das escolas públicas
de bom nível e os oriundos das escolas públicas “periféricas”) como da parte dos professores/a,
alguns dos/as quais manifestam um certo “estranhamento” em relação aos cotistas, pois acham
que entraram “por uma via fácil”. Quatro dos/as entrevistados/as ressaltaram que cabe aos cotistas
garantir um bom desempenho como uma forma de responder às resistências que enfrentam.
A participação na militância foi um dos itens explorados, na tentativa de sondar em que
medida os/as estudantes estão organizados/as, dentro e fora da universidade. Dois rapazes
afirmaram que participam de diferentes grupos, por exemplo, do Fórum Acadêmico de Saúde, do

10 Na publicação final, as falas dos/as entrevistas serão citadas com maior frequência e comparadas com as
dos cotistas da UFSC.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Diretório Acadêmico, e Coletivos Estudantis, por exemplo, o NegreX11. Consideram que o ativismo
contribui para transformar a universidade e a sociedade. Um dos alunos, além das três alunas,
declarou que não participa de qualquer grupo ou organização militante.
No caso específico das mulheres, perguntamos se já tinham percebido algum preconceito
ou discriminação por serem mulheres e negras na universidade. Uma delas respondeu que
percebe a existência de um preconceito maior contra os que vêm de escolas públicas. Este se
sobreporia, na sua visão, ao preconceito racial e às cotas. Admitiu ter enfrentado preconceito de
gênero por parte de um professor, pois ao falar sobre seu interesse em se especializar em cirurgia,
ele teria advertido que cirurgia “não é para mulher”, porque mulheres têm filhos e maridos para
cuidar, se adaptariam melhor em outros campos da carreira. As outras duas consideraram que
nunca sofreram preconceito ou discriminação, sendo que uma delas constatou que “a presença
da mulher é quase hegemônica na universidade, que o curso é misto” e que nunca percebeu um
tratamento diferenciado em virtude de sua condição de mulher, cotista, parda.
Partimos de considerar que as opiniões sobre os projetos futuros também constituem um
aspecto relevante, pois permitem refletir a respeito dos impactos da formação na graduação sobre
a imagem profissional que se almeja, sobre as oportunidades que se abrem. Ainda mais quando
se contrasta essa imagem com a realidade dos pais e das mães, como veremos mais adiante.
As preferências pelas áreas de especialização, definidas durante o período de residência médica,
revelaram, no caso dos alunos, que um deles ainda não se decidiu, pois muitas áreas chamam
sua atenção: cirurgia, oncologia, dermatologia, endocrinologia, saúde pública. Outro, assumiu
sua indecisão entre cirurgia e clínica médica e finalmente, um aluno nascido no interior, declarou-
se estar bastante inclinado a retornar para sua cidade natal, a fim de atuar na área de medicina
da família. Quanto às alunas, uma pensou em fazer obstetrícia, mas no momento da pesquisa se
inclinava mais para anestesiologia; uma pretende ser pediatra e a terceira tem a intenção de se
dedicar inicialmente à clínica médica, para em seguida decidir sobre alguma especialização.
No caso de dois dos rapazes, os planos após a graduação incluem a continuidade da carreira
acadêmica. Gostariam de cursar o mestrado e o doutorado e também de estudar no exterior.
Um deles admitiu que preferiria exercer a docência, em virtude da importância da presença de
docentes negros num curso elitizado. Apenas o terceiro afirmou que não tem intenção de realizar
pós-graduação, nem de estudar fora do país, pretendendo se dedicar à assistência médica na
cidade onde nasceu. As intenções das alunas também se diversificaram. Tal como um dos rapazes,
uma delas manifestou sua vontade de se dedicar à docência como uma forma de interferir de
modo mais direto no contexto da formação. E, ainda, como uma maneira de conciliar a carreira
com as intenções de constituir família e de ter filhos. Embora não tenha muita certeza se cursará
ou não a pós-graduação, disse que gostaria de participar do Programa Ciências sem Fronteiras. A
segunda afirmou que sua vocação maior é para o exercício da clínica, “é hospitalar mesmo”. Sem

11 Coletivo de Estudantes Negros de Medicina, criado em 2015, durante o Congresso Brasileiro dos Estudantes
de Medicina, realizado em Belo Horizonte. https://pt-br.facebook.com/coletivonegrex/ Acesso em 02 de junho de
2017.

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especificar se tentaria ou não o mestrado ou o doutorado, admitiu que gostaria de estudar fora
do país. Finalmente a terceira observou que não tinha uma ideia clara, mas gostaria de cursar o
mestrado e depois, o doutorado.
Todos/as coincidiram ao avaliar que a vivência universitária, não obstante as dificuldades que
enfrentaram, tem vários aspectos positivos. Entre eles, destacaram a importância da informação,
da educação como uma experiência libertadora, que tem permitido ultrapassagens significativas
em relação aos seus contextos de origem, através de uma formação crítica. De modo geral,
manifestaram uma consciência da importância do seu papel como pioneiros/as, os/as primeiros/
as de suas famílias a ingressar no ensino superior e a desenvolver potencialidades que têm um
impacto sobre elas, uma vez que amadureceram intelectualmente, ampliando seu “potencial
reflexivo”12. Uma das alunas reconheceu que mesmo sem pertencer a uma “linhagem médica”,
sem dispor portanto, de uma “bagagem de família”, sem ser herdeira por exemplo, de consultório,
a realização do curso tem representado a realização de um sonho que atribui a uma graça de Deus.
A realização financeira também foi apontada por três entrevistados/as: dois rapazes e uma moça.
Comparando suas trajetórias com as dos seus pais e mães e demais familiares, embora as
respostas tenham variado em alguns aspectos, todos/as apontaram para diferenças consideráveis.
Para um dos alunos, o pai e mãe “não tinham perspectiva de futuro” e se dedicaram a garantir a
sobrevivência da família; outro, constatou que “os pais não tiveram conforto”, “não tiveram acesso
à universidade”. Frente a eles, se considera um privilegiado, pois tem feito estágios, já tem um
título de graduação e pretende ajudá-los, já que começaram a trabalhar muito cedo e apenas
conseguiram sobreviver “numa condição meio extrema”. Na mesma linha, o terceiro ponderou
que sua vida é “completamente diferente”, mas “desde pequeno foi bem orientado” no sentido
de avançar nos estudos. O pai dele exerceu um papel importante ao advertir para a possibilidade
de retorno, de ajuda, por exemplo, aos irmãos. Reconhece que os amigos “ficaram pelo meio do
caminho”, por serem jovens negros “morando em um bairro periférico de Salvador”.
Quanto às alunas, as percepções não são diferentes. Tal como os rapazes, elas consideram
que o ensino superior numa área prestigiada abre novas perspectivas para si mesmas e para suas
famílias: “eles começaram a trabalhar muito cedo...sempre incentivaram que eu e minha irmã
estudássemos, nunca acharam que deveríamos trabalhar”; “minha trajetória é totalmente diferente
da dos meus pais, porque sou de uma geração que conta com as cotas, com o FIES e o Prouni, são
outras bolsas. E tem também o ENEM que abriu muitas portas, são opções que não existiam anos
atrás”; “tive muito mais oportunidades porque já morávamos em Salvador, não precisei me mudar
para estudar, tive um ensino melhor do que a geração dos meus pais e hoje temos uma quantidade
maior de universidades, então da época deles para a minha melhorou bastante”.

12 Lembrando, como mencionamos anteriormente, que apenas um dos pais dos/as estudantes ingressou no
ensino superior, sendo um deles, estudante de Educação Física. Entre as mães, três concluíram a graduação: duas
em Serviço Social e uma em Pedagogia. Todas ingressaram depois que as filhas iniciaram o curso de Medicina ou a
formação em nível superior em outro curso.

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Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Conclusão

Cabe inicialmente lembrar que nos próximos artigos os dados sobre o perfil dos/as
entrevistados/as serão analisados a partir do perfil geral dos/as cotistas da UFBA, possibilitando
assim uma compreensão sobre suas especificidades. Segundo, as falas sobre os aspectos de
caráter mais subjetivo, por exemplo, as motivações, percepções sobre preconceitos, os aspectos
positivos da formação universitária e as metas profissionais futuras, serão interpretadas em diálogo
com as pesquisas sobre estudantes cotistas numa perspectiva de gênero, que vem sendo feitas
após a implantação do sistema de cotas. Por exemplo, nos estudos de TEIXEIRA, 1998; PINTO,
2007; GÓIS, 2008; PASSOS, 2015; SILVA e MINELLA, 2015; SILVA e AUAD, 2015; SOTERO,
2013; WELLER e SILVEIRA, 2008; ARTES e RICOLDI, 2015.
Apesar dos limites desse texto, quanto à dimensão do gênero tornou-se possível perceber
semelhanças e diferenças entre alunos e alunas. As semelhanças são mais visíveis nas informações
sobre origem e situação familiar em termos de escolaridade e níveis de renda. Também foram
constatadas semelhanças na forma como avaliam as vantagens que usufruem na construção
das suas próprias trajetórias em comparação com as desvantagens enfrentadas pelos seus pais e
mães, em virtude de um contexto de carências.
Quanto às percepções a respeito do preconceito racial e dos projetos acadêmicos futuros,
porém, algumas diferenças se manifestaram. Por exemplo, no plano das motivações, embora, tal
como as moças, os rapazes tenham mencionado a vocação para o cuidado, dois deles ressaltaram
a importância da entrada em um curso que representa um espaço de poder. Foram mais enfáticos
ao falar sobre a existência de preconceitos no meio acadêmico, revelando uma atitude crítica
explicada tanto pelas influências de familiares, quanto pela participação na militância. Contrastando
com o ponto de vista deles, as alunas declararam não terem sido alvo de comentários e/ou de
atitudes enviesadas por conta da cor da sua pele. Mas, uma delas admitiu ter sofrido preconceito
por ser mulher por parte de um professor, ao expor sua vontade de se especializar em cirurgia,
conforme consta na página 12.
Sobre os projetos profissionais e acadêmicos futuros, dois dos alunos enfatizaram a
necessidade de continuar suas carreiras no nível da pós-graduação e manifestaram interesse em
estudar fora do país. As alunas não descartaram essas possibilidades, no entanto, admitiram não
estarem ainda seguras sobre o que farão no futuro.
De um modo geral, pode-se dizer que as respostas dos/as entrevistados/as revelam uma
certa compreensão das interações do gênero com a dimensão étnico/racial, em sua articulação
com outros marcadores da diferença – classe social e gerações -, embora nem sempre tenham
sido explícitos/as a esse respeito.

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Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

Página 387
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

DISCURSO E PODER: UM OLHAR ACERCA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA


UEPG EM 2013

QUADROS, Daiane Franciele Morais de. (UEPG)


daiane.framciele@gmail.com

Resumo

Pretende-se apresentar um dos resultados de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa


de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),
cujo objetivo principal consiste em analisar os discursos e encaminhamentos presentes nos embates
que resultaram na Resolução UNIV. Nº 17 de 9 de dezembro de 2013, da UEPG. Pois, a atual resolução,
inicialmente, foi precedida de um intenso debate, que culminou na retirada das cotas para negros da
instituição. Após manifestações públicas, o processo volta à pauta, foi promovida uma nova votação
e elaboraram a atual resolução, que mantém a política de cotas para estudantes negros oriundos de
escolas públicas. Afim de compreender os embates e as contradições, que culminaram nas alterações
aplicadas ao sistema de cotas implementado pela universidade, foi seguido o eixo teórico-metodológico
da Análise Crítica do Discurso, para analisar alguns documentos como: áudios das reuniões, notícias,
fotografias, panfleto, vídeo e uma cartilha sobre cotas, que a UEPG publicou em 2016. O foco principal
deste trabalho será a apresentação da contextualização desta pesquisa e seu objeto de estudo,
utilizando como base teórica as pesquisas de Santos (2007), Iensue (2009), Carvalho (2005), Andrade
(2010), Guimarães (1995), Silva (2009) e Nunes (2011) foi construído um panorama histórico, sobre
o processo de implementação das políticas de ações afirmativas no Brasil e no estado do Paraná.
Com base nos dados expostos pelas pesquisas de Plá (2009), Souza (2012), Glap et al. (2011) e nos
documentos oficiais da UEPG, como a Ata n°6/2013 da reunião do Conselho Universitário e duas
resoluções da universidade, será abordado o processo de implementação do sistema de cotas, para
negros e estudantes oriundos de instituições públicas de ensino no contexto da instituição.

Palavras-chave: Ações Afirmativas. Política de cotas. Resolução UNIV N°17/13 2013.

Página 388
Introdução

O foco principal deste artigo resume- se em apresentar um dos resultados da pesquisa de


mestrado intitulada: “Discurso e Poder: um olhar acerca das cotas na UEPG em 2013”, iniciada
no ano de 2015 e concluída em 2017, no programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos da
Linguagem, da UEPG, cujo objetivo principal consiste em analisar os discursos que resultaram no
atual sistema de reservas de vagas, tendo como foco principal as falas sobre o sistema de cotas
raciais dentro da Universidade Estadual de Ponta Grossa, para assim, compreender os embates
e as contradições, que culminaram nas alterações aplicadas na política de cotas implementada
pela universidade. Porque, a Resolução UNIV. Nº 17/2013 foi precedida de um intenso debate,
mas culminou na retirada das cotas raciais. Após manifestações públicas, o processo volta à pauta
e depois de nova votação, a referida resolução manteve as cotas para alunos negros oriundos de
escolas públicas.
Este trabalho de mestrado foi parcialmente apresentado e publicado em eventos como:
IV Pensando Áfricas e suas diásporas, Seminário: Discursos, Linguagens, Relações Raciais,
EUDUSOPARANA (XXIV Semana da Educação II Encontro de Educação Social-do Paraná e IV
Encontro de Comunicação e Educação de Ponta Grossa) e I Simpósio de Ações Afirmativas da
UDESC Experiências de Alunos/as Afrodescendentes e Indígenas na Graduação.
O foco deste artigo, é a apresentação de um dos resultados deste projeto de mestrado, a
exposição da contextualização desta pesquisa e seu objeto de estudo, na qual utilizamos como
base teórica alguns trabalhos de Carvalho (2005 e 2016), Tratenberg (2006 e 2010), Santos
(2007), Guimarães (1995) e outros autores que se tornaram base de nossa revisão de literatura,
tais como: Iensue (2009), Souza (2012), Andrade (2010), Nunes (2011), Prolo (2011), Norões
(2011), Plá (2009), Silva (2009) e Maciel (2009). Deste modo, realizaremos a contextualização
deste trabalho e seu objeto de estudo, através da construção do panorama histórico do processo
de implementação das ações afirmativas no Brasil.
Em seguida, respaldando-nos em Nunes (2011), Cervi (2013 e 2014), Andrade (2010),
Andrade e Silva (2008) e Silva (2014), abordaremos brevemente sobre as primeiras universidades
públicas paranaenses, que aderiram tanto ao sistema de cota social, como a reserva de vagas no
formato de cotas para negros, entre os anos de 2004 a 2005.
No último item deste artigo, como parte de um dos objetivos específicos desta pesquisa
como um todo, contextualizaremos a atual resolução da lei de cotas na UEPG, a partir da construção
de uma síntese sobre o processo de implementação das discussões iniciais, da aprovação da lei
de cotas na universidade, até chegar no recorte histórico das políticas de cotas na UEPG, que se
tornou objeto de estudo deste trabalho, no qual utilizaremos como respaldo teórico, os trabalhos
de Plá (2009), Souza (2012), Glap et al. (2011) e os documentos oficiais da universidade, como: a
Resolução UNIV N° 9/2006, a Ata n°6/2013 das reuniões do Conselho Universitário e a Resolução
UNIV N° 17/2013.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1. O processo de implementação das ações afirmativas no Brasil

De acordo com Iensue (2009) e Santos (2007), a semântica da terminologia ações


afirmativas advém da tradução affirmative action, em língua inglesa, terminologia que foi criada nos
Estados Unidos da América, durante o mandato do ex-presidente estadunidense John Kennedy,
cujo fundamento filosófico significa compensação ou reparação. Ou seja, são medidas de políticas
públicas, que objetivam reparar efeitos da discriminação racial, que os negros e os descendentes
de outros grupos étnico-raciais historicamente marginalizados sofreram na sociedade norte
americana.

a expressão ação afirmativa foi utilizada pela primeira vez nos Estados Unidos da América
em 1961 por um oficial afroamericano do governo Kennedy, no momento em que esse
presidente buscava atacar discriminações raciais sofridas pelos negros no emprego.
Posteriormente esse conceito ampliou-se, passando a incluir o ataque às discriminações
na área educacional, entre outras, bem como incluir as mulheres e outras minorias entre
seus beneficiários (SANTOS, 2007, p.426, grifo do autor)

Por esta razão, em concordância com Santos (2007), Andrade (2010) considera os Estados
Unidos da América, como o berço das ações afirmativas e dos estudos das relações raciais. Pois,
de acordo com autor, os Estados Unidos foi o primeiro país a discutir e a implementar tais políticas
públicas, desde a década de 1960.
Segundo Andrade (2010), no contexto brasileiro, a existência das políticas de ações
afirmativas é resultado de um longo processo histórico de luta. A conquista da implementação
de tais políticas públicas foi aplicada, com o objetivo de combater diferentes formas de exclusão,
que estão presentes no panorama nacional. O autor ainda ressalta, através de uma perspectiva
histórica, que muito antes de as ações afirmativas serem implementadas no país, existiam
ações de resistências de movimentos negros (grifo meu), tais como: insurreições de negros
muçulmanos, nas formações de quilombos e confrarias.
Dialogando com Andrade (2010), Nunes (2011) também explica, que posteriormente,
as primeiras iniciativas de políticas de ações afirmativas se remontaram no país, a partir dos
movimentos abolicionistas, que foram entidades constituídas na última metade do século XIX
(a partir do ano de 1870), por estudantes e intelectuais. Pois, segundo Nunes (2011, p.46), tais
entidades eram a favor dos negros e “denunciavam os maus tratos dos escravos negros, assim
como defendiam suas inclusões como cidadãos brasileiros”.
Complementando a exposição deste fato histórico, Guimarães (1995) ressalta que após
a proclamação da Lei Áurea em 1888, posteriormente, a proclamação da República em 1889,
a situação social dos negros que se tornaram “livres”, tornou-se ainda mais complexa no Brasil,
pois, a chamada promessa de que os negros se transformariam em cidadãos brasileiros como
os não-negros, não foi cumprida, sob a alegação do novo discurso que proclamava, que para a
nova ordem social da política brasileira, os que antes foram escravizados, como os negros e não-

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brancos (mulatos), eram considerados inaptos para a nova fase de relações assalariadas, que o
Brasil começou a aderir.
A partir deste contexto histórico, Nunes (2011) afirma, que afim de resistir e enfrentar tal
problemática, várias organizações sociais negras começaram a surgir, com o objetivo de:

propiciar mecanismos de superação e/ou atenuar as práticas matérias e imateriais do


racismo das relações sociais no Brasil. Neste sentido, as organizações assumem uma
perspectiva de fomentadoras de ações afirmativas para o segmento negro nacional.
(NUNES, 2011, p.51)

Norões (2011) ressalta, que na análise do processo histórico de implantação das ações
afirmativas para a população negra no Brasil, apesar das reinvindicações dos movimentos negros,
a implementação das políticas de ações afirmativas, sempre foi ignorada pelo governo brasileiro.
Apesar destas dificuldades, a luta dos Movimentos Negros no Brasil nunca parou, como resultado,
em 1980 houve a conquista da criminalização do racismo, após a ditadura militar.
De acordo com Tragtenberg (2006), em 1983 o deputado Abdias do Nascimento propôs
o projeto de lei n° 1.332/83, que estabelecia cotas para negros nas universidades. “Em 1987, o
deputado Florestan Fernandes fazia proposta de ação afirmativa para negros e outras populações
marginalizadas a ser incluída em um capítulo da Constituição de 1988” (TRAGTENBERG, 2006,
p.479). Como consequência desta ação política, segundo Maciel (2009), a partir da década de
1990, notadamente, as ações afirmativas na modalidade de cotas em concursos públicos e reservas
de vagas nas universidades, começaram a se destacar, após reinvindicações do movimento negro
organizado, que aspirava especificamente à maior inclusão dos negros, no acesso ao ensino
superior, no mercado de trabalho, na mídia e etc.

A segunda metade da década de 1990 abriga um importante marco para a população


negra, principalmente, para os muitos segmentos organizados do Movimento Negro
Nacional. É, sobretudo, pela força e empenho de tais segmentos que, importantes
momentos da história do Brasil, levanta-se a necessidade de discussão e superação das
desigualdades que atingem uma parcela significativa da população nacional. (MACIEL,
2009, p.44)

Desta forma, de acordo com Maciel (2009) e Carvalho (2005), tal época foi bastante
demarcada pela proposição aos órgãos governamentais de políticas públicas, que dessem
visibilidade de superação das desigualdades raciais no Brasil. Por esta razão, os autores destacam
como o principal marco década de 1990, que sensibilizou a proposição da instauração das políticas
de ações afirmativas para a população negra brasileira, a Marcha Zumbi dos Palmares, contra o
racismo, pela cidadania e pela vida, que ocorreu em Brasília no dia 20 de novembro de 1995. De
acordo com Silva (2009), esta data correspondia aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares.
Pois, a autora afirma que o ato da Marcha Zumbi dos Palmares, também mobilizou o
Ministério da Justiça a promover em julho de 1996, o seminário denominado Multiculturalismo

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

e Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos (grifo


meu). Neste evento, houve a participação de pesquisadores brasileiros, norte americanos e
lideranças negras do país.
Segundo Silva (2009), esta foi a primeira vez, que o governo brasileiro discutiu e admitiu
políticas públicas específicas, para a população negra no país, pois, no “discurso de abertura o
presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu haver discriminação e preconceito no país e pediu
criatividade aos participantes na busca de soluções” (SILVA, 2009, p.80). Como desdobramento
destas ações, Tragtenberg (2010) enfatiza, que a partir do ano de 1999 “começam a ser
discutidas em algumas assembleias legislativas de estados brasileiros a adoção de políticas que
compensassem” (TRAGTENBERG, 2010, p.3) as disparidades socioeconômicas e étnico-raciais.
De acordo com o autor, no mesmo ano, o antropólogo José Jorge de Carvalho1 propunha cotas
para negros na Universidade de Brasília (Unb).
Norões (2011) e Tratenberg (2006 e 2010), também destacam como a principal influência
para a efetivação das ações afirmativas no Brasil, a Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na cidade de Durban, África
do Sul, em 31 de agosto a 07 de setembro de 2001. Tragtenberg (2006 e 2010) e Silva (2009)
ressaltam que após a Conferência de Durban, no Brasil os debates sobre a temática das ações
afirmativas para os negros foram mais intensificados e alcançaram maiores resultados, pois a
partir do ano de 2002,

Universidades Federais, Estaduais e Centros Universitários Municipais vêm adotando


políticas de ação afirmativa para oriundos de ensino público, negros, indígenas, deficientes,
entre outros segmentos sociais (TRAGTENBERG, 2010, p.3)

Este aspecto se manifesta no fato histórico que Silva (2009) destaca, que no mesmo ano
da Conferência de Durban, o então governador do estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho
sancionou uma lei oriunda da Assembleia Legislativa, na qual instituía uma cota de 40% para
negros e pardos nas universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro, mais 50% das vagas
seriam reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas.
De acordo com Prolo (2011), em 2003, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), junto
com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), também aderiu o sistema de cotas,
seguidos pela UnB, a Universidade do Estado do Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, que
posteriormente também instituíram as políticas de cotas para negros e estudantes oriundos de
escolas públicas.
Como expansão das discussões que envolvem as ações afirmativas na educação

1 Atualmente, no ano de 2016, o pesquisador, José Jorge e Carvalho publica o livro em que ele aborda as
políticas de cotas no ensino superior, no qual de forma descritiva e minuciosa, o autor elabora e analisa o mapa das
ações afirmativas no Brasil, Carvalho (2016).

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brasileira, Tragtenberg (2010) complementa, que no plano nacional foi discutido sobre o Projeto
de Lei Complementar 180/08 e o Projeto de Lei no Senado 344/08, que promulgam a reserva de
50% das vagas nas IES públicas federais, institutos federais de educação, ciência e tecnologia e
centros federais de educação tecnológica, para egressos no ensino médio ou fundamental público.
Essas reservas as vagas seriam destinadas para estudantes autodeclarados negros e indígenas,
conforme o percentual da soma destas populações em cada estado brasileiro.
Além destes projetos de leis, o autor ressalta que em 2010 estava em tramitação o projeto
de lei 3.198/2000, que é o Estatuto da Igualdade Racial, que trouxe a discussão sobre o quesito
cor/raça em formulários de estado e autorizou as ações afirmativas em diversos âmbitos, inclusive
nas universidades federais.

2. As primeiras universidades paranaenses que aderiram ao sistema de cotas

De acordo com Nunes (2011) e Andrade (2010), as duas primeiras universidades públicas
do estado do Paraná, que implementaram as políticas de cotas, como modalidades de ações
afirmativas, foram a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade Estadual de Londrina
(UEL).
Segundo Nunes (2011), a UFPR foi a terceira universidade do Brasil, que junto com a UEL,
foi uma das primeiras da região do Paraná, que estabeleceu o sistema de cotas para negros. Cervi
(2013) narra que a discussão sobre as políticas de ações afirmativas na UFPR se inseriu num
contexto amplo, caracterizado pelo surgimento de políticas públicas de âmbito federal na área da
educação, que foram criadas para cumprir dois objetivos: “ampliação do sistema federal no ensino
superior e, ao mesmo tempo, diversificação racial e inclusão social no público atendido por essas
instituições” (CERVI, 2013, p. 67).
O autor descreve, que as discussões iniciais sobre a implementação do sistema de cotas
na UFPR foram iniciadas no mês de abril de 2002, quando a reitoria da instituição nomeou uma
comissão, constituída por integrantes do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da
UFPR, para discutir sobre uma política de inclusão racial na universidade. Segundo Cervi (2013
e 2014) e Nunes (211), após debates em todos os setores da UFPR, em 2004, é aprovada a
Resolução n°37/2004 pelo Conselho Universitário. Cuja resolução a partir do primeiro vestibular
de 2005, passou a reservar 20% de vagas para os candidatos negros, na qual a autodeclaração
era o único requisito avaliativo no processo seletivo de vestibular, pois na ficha de inscrição:

Uma vez optado por concorrer pela cota racial, o deveria declarar-se de pele preta ou
parda no questionário socioeconômico e o mesmo passaria por uma banca de avaliação,
que seria responsável pela constatação de que os fenótipos do candidato permitem o
enquadramento na categoria definida. (CERVI, 2014, p. 17-18)

Conforme o autor menciona, os outros 20% das vagas seriam destinadas aos candidatos

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

oriundos de instituições públicas de ensino (que cursaram integralmente a educação básica em


escolas da rede pública de ensino). Ainda, segundo Cervi (2013 e 2014), após o período de 10
anos de vigência da lei de cotas na UFPR, em 2013 foi promovido um conjunto de avaliações das
políticas de cotas, para redefinir o futuro e as alterações, que seriam aplicadas em tais políticas
públicas na instituição. A partir desta nova avaliação, segundo o autor, atualmente após a revogação
de uma lei federal n° 12.711/122 em 2012, a UFPR não deixando de seguir o próprio conjunto de
políticas da instituição, pela nova legislação, se adaptou às novas regras válidas para o processo
seletivo de vestibular.
De acordo com Silva (2014) e Andrade e Silva (2008), na UEL as políticas de cotas foram
aprovadas no ano de 2004, através da Resolução n°78/2004 do Conselho Universitário, que
passou a vigorar a partir do ano de 2005. Na versão dos autores, assim como ocorreu na UFPR,
antes da regulamentação das políticas de cotas para negros na UEL, a partir do ano de 2002 e
2003, houve discussões específicas abordando este tema. Silva (2014) narra que o debate sobre
as ações afirmativas na UEL foi motivado pela demanda do Movimento Negro de Londrina, que
solicitou à administração da UEL, o processo de implementação do sistema de cotas na instituição.
Segundo Andrade e Silva (2008) e Silva (2014), tal iniciativa partiu de Dona Vilma3 em uma reunião
domiciliar, pois na época ela era uma importante líder do Movimento Negro, da cidade de Londrina.
Segundo os autores, de 2002 a 2004 foram promovidos vários seminários na UEL, debates e
palestras acerca da temática das ações afirmativas. Dentre estes eventos, houve destaque para o
seminário “O Negro na Universidade: O Direito à Inclusão”, que ocorreu em 2004.
Nunes (2011) e Andrade e Silva (2008) afirmam que este seminário desempenhou papel
decisivo para a aprovação da lei de cotas na UEL, pois na versão dos autores, em 2004 foi aprovada
a Resolução CU N° 78/2004, a qual outorgava que das vagas seriam destinadas: “40% (quarenta
por cento) para oriundos de Instituições Públicas de Ensino e de 20% (vinte por cento) para negros
oriundos de Instituições Públicas de Ensino” (UEL, 2004, p.2).
De acordo com Silva (2014), esta resolução seria avaliada após o período de sete anos, a
qual previu a condição de proporcionalidade, para a determinação do número de vagas reservadas
à cota racial e à cota social, pois, como a autora explica, cada curso poderia destinar até 20% de
suas vagas aos candidatos negros oriundos de instituições públicas de ensino, desde que estes
representassem uma média de 20% no número de inscritos no vestibular.
Conforme a autora expõe, o processo de consolidação e adoção das ações afirmativas na
UEL apresentou duas fases: a primeira fase foi de 2005 a 2012 e a segunda fase começou a partir
do ano de 2013. Pois, de acordo com a autora, em 2011 ocorreu uma avaliação e alguns aspectos
no sistema de cotas na UEL, que passaram a ser válidos a partir do ano de 2013, pela Resolução
n° 15/2012, que passou a substituir a antiga resolução, a de número 78/2004 do Conselho

2 “lei 12.711 de 29 de agosto de 2012 que estabeleceu a reserva de 50% das vagas das universidades federais
aos estudantes de escolas públicas.” (SILVA, 2014, p.219)
3 “Liderança do Movimento Negro, também conhecida como Yá Mukumby, que foi assassinada em 3 de agosto
de 2013, juntamente com a sua mãe de 89 anos e a sua neta de 10 anos de idade. ” (SILVA, 2014, p.219)

Página 394
Universitário, a partir do ano de 2013. De acordo com Silva (2014), a partir da nova resolução de
cotas da UEL, foi banida do sistema a condição da proporcionalidade do número de inscritos. A
partir disto, em todos os cursos, 40% das vagas passaram a ser destinadas às cotas, nas quais a
metade, a taxa de 20% seria reservada para os candidatos negros advindos de escolas públicas,
nos processos seletivos de vestibular da instituição.
Desta forma, seguindo os exemplos da UFPR e da UEL, a UEPG também foi uma das três
primeiras universidades públicas do Paraná, e a segunda universidade da estadual da região, que
implementou as políticas de cotas para negros e estudantes oriundos da rede pública ensino, em
seu contexto acadêmico. Conforme enfatizamos na introdução deste trabalho, após o período de
oito anos, a instituição também precisou rever e reformular tais políticas públicas em seu espaço
acadêmico, este processo de implementação e reformulação descreveremos brevemente no
próximo tópico deste artigo.

3. O sistema de cotas na UEPG

Segundo Plá (2009), Souza (2012) e Glap et al. (2011), no ano de 2005 na UEPG também
iniciaram as discussões sobre a implantação das políticas de cota social e da reserva de vagas
destinadas aos estudantes negros. Souza (2012) relata que a proposta inicial apresentada pela
PROGRAD consistia em reservar até 40% das vagas, em cada curso de graduação, para estudantes
oriundos de escolas públicas e 10% seriam destinadas aos candidatos, que se autodeclarassem
negros nos processos seletivos da UEPG.
A autora destaca, que após o período de dois meses da apresentação das discussões
iniciais sobre a implementação do sistema de cotas na UEPG, no dia 17 de abril de 2006, o
Conselho de Administração “aprovou”, por unanimidade a proposta de “reserva de vagas nos
Processos Seletivos da Universidade Estadual de Ponta Grossa para candidatos oriundos de
Instituições Públicas e para aqueles que se autodeclarem negros” UEPG (2006), que se tornou
a Resolução UNIV N° 9 de 26 de abril de 2006. Cujo primeiro parágrafo determinou que no início
da implementação do sistema de cotas na UEPG, 10% das vagas de cada curso, nos processos
seletivos, seriam destinadas aos candidatos oriundos das escolas públicas, 5% seriam reservadas
aos candidatos negros, também oriundos de instituições públicas de ensino.
O Art. 6° da resolução determina que o prazo de vigência desta lei institucional, seria válido
por 8 anos letivos, contados a partir do ano de 2007. Os limites nas taxas de vagas definidas para
os estudantes negros e não negros oriundos das escolas públicas, ano a ano, ganhariam uma
porcentagem de acréscimo. Segundo a Resolução UNIV N° 9/2006, os candidatos que nunca
cursaram, ou que cursaram até dois anos do ensino fundamental da educação básica, em uma
instituição de ensino privada, poderiam tentar ingressar na instituição através do sistema de cota
social. De acordo com o Art. 3° da Resolução UNIV N°09/2006, a questão da autodeclaração na

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

cota para negros4, é somente válida, se o candidato apresentar traços fenotípicos da raça negra
(grifo meu).
Após o período de oito anos da lei de cotas na UEPG, chegou o momento em que a UEPG
precisava avaliar o andamento, os resultados, rever e decidir sobre como seria o futuro de tais
políticas públicas implementadas na instituição.
De acordo com a ata das reuniões do Conselho Universitário, que ocorreram nos dias
25/11/2013, 02/12/2013 e 09/12/2013. No dia 5 e 6 de junho de 2013, a Pró- Reitoria de Avaliação e
a Comissão de Acompanhamento e Avaliação da Implantação das Políticas de Cotas promoveram
dois seminários na universidade, com objetivo de apresentar alguns dados gerados relativos à
política de cotas na instituição, UEPG (2013).
Ainda, segundo este documento, após a realização destes dois seminários, setores, os
representes dos setores e a Comissão de Acompanhamento e Avaliação da Implantação das
Políticas de Cotas decidiram criar outro grupo de trabalho para analisar a questão das cotas na
instituição. De acordo com o documento UEPG (2013), durante os dois seminários, houve várias
reuniões com o presidente do grupo de trabalho. Como resultados, houve duas proposições para
as leis de cotas na UEPG, uma proposição elaborada pelo CEPE e a proposição do grupo de
trabalho, a qual correspondia ao “Processo n° 19.163/2013” UEPG (2013, p.1 grifo do autor), que
foi apresentada junto com a proposição do CEPE por um dos Conselheiro na reunião do Conselho
Universitário, que ocorreu no dia 25 de novembro de 2013, UEPG (2013).
De acordo com a ata das reuniões do COU de 2013, a proposta do Grupo de Trabalho
baseava-se em manter as políticas de cotas na instituição, tanto a cota social como as cotas
destinadas aos candidatos negros. Nesta proposta, diferentemente da resolução anterior, o
candidato deveria ter cursado integralmente a educação básica somente em instituições públicas
de ensino, UEPG (2013). No quesito cotas para negros, a proposta do grupo de trabalho era
favorável e sugeria a eliminação da banca de constatação, que não consta na 1° resolução da lei
de cotas na UEPG.
Pois, vale salientar que a Resolução UNIV N° 9/2006, passou por alguns ajustes e se tornou
a Resolução UNIV N° 36 de 11 de outubro de 2011, que é uma consolidação da resolução anterior,
na qual era estipulado a banca de constatação nos processos seletivos da UEPG. A proposta do
Grupo de Trabalho, também sugeria a eliminação da banca de constatação e a implementação
do sistema de autodeclaração, através de preenchimento de formulários. Tal proposta também
visava distribuir 57% das vagas entre a cota social e a cota para negros, e a outra taxa no número
de vagas, o piso de 43% seria destinado para a cota universal, UEPG (2013).
A proposta elaborada pelo CEP consistia em distribuir as vagas em 50% para o sistema de
cota social e os outros 50% seriam destinados para o sistema de cota universal, em um processo

4 A banca de constatação foi eliminada do atual sistema de cotas da Universidade Estadual de Ponta Grossa
por influência do modelo de outras universidades públicas, tanto federais como estaduais. Porém, em concursos
públicos, em âmbito nacional, a partir do ano de 2016, é obrigatório que hajam bancas de constatação nos testes
seletivos.

Página 396
decrescente, até chegar a um piso de 35%. Em tal proposição não havia a opção de manter o
sistema de cota para estudantes negros oriundos das escolas públicas.
Segundo o documento oficial da instituição, na reunião do Conselho Universitário de 2013,
após a exposição das proposições e manifestações dos conselheiros, durante reunião do dia 25
de novembro de 2013, no momento da votação do processo n° 19.163/2013, entre a proposição
do grupo de trabalho para as políticas de cotas na UEPG, e a proposição do CEPE, a proposta do
CEPE foi a vencedora, pois por unanimidade, os Conselheiros aprovaram a manutenção da cota
social, a maioria dos votos também era favorável à opinião de que a instituição deveria considerar
como estudante oriundo de instituições públicas de ensino, somente estudantes que cursaram
integralmente a educação básica em escolas públicas, ou seja, o ensino fundamental e o ensino
médio.
Ainda de acordo com a ata, UEPG (2013), houve 13 votos favoráveis e 17 votos contra
à manutenção do sistema de cota para estudantes negros advindos de instituições públicas de
ensino. Portanto, este fato representou uma eventual extinção das políticas de cotas raciais na
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Esta decisão dos conselheiros gerou oposição e inúmeras
manifestações por parte da comunidade acadêmica como: corpo discente, movimento estudantil,
professores, funcionários, SINDIUEPG, principalmente, o NUREGS e os movimentos sociais, como
movimento negro da região de Ponta Grossa.
Após tais reivindicações, o processo volta à pauta, de acordo com a ata das reuniões do
COU de 2013, no dia 02 de dezembro houve uma nova assembleia do Conselho Universitário,
que contou com a participação de manifestantes, como integrantes da comunidade acadêmica
no geral, UEPG (2013). Durante esta reunião, um conselheiro realizou a proposição de manter
a mesma política de cotas no período de um ano, período no qual este tema seria amplamente
discutido pela comunidade acadêmica. A relatora do grupo de trabalho sugeriu uma proposta de
dividir 50% das vagas entre a cota social e a cota para negros. Dentre estas vagas, 10% seria
reservado para os candidatos negros oriundos das instituições públicas de ensino. Ou seja, 40%
das reservas de vagas seriam destinadas para a cota social e 10% para a cota de negros. Os outros
50% das vagas seriam destinadas para o sistema de cota universal, UEPG (2013).
Houve também a proposição de um outro conselheiro, que sugeria 50% da reserva de vagas
para estudantes negros e não negros oriundos de instituições públicas de ensino, com redução de
até 35%. Segundo UEPG (2013), tal proposição também era favorável à manutenção da banca de
constatação na cota para negros, com prazo de validade de até 8 anos, podendo ser revista no
quarto ano de vigência.
Depois de longas horas e intensos debates, houve uma nova votação e na reunião do dia 09
de dezembro de 2013, por ampla maioria, a proposta da relatora do grupo de trabalho foi aprovada e
se tornou a Resolução UNIV N°17/2013, UEPG (2013), na qual consta que nos processos seletivos
de vestibular e PSS, 40% das vagas serão destinadas aos candidatos oriundos de escolas públicas
e 10% aos estudantes negros, também provenientes da rede pública de ensino, com eliminação
da banca de constatação. Os outros 50% das vagas seriam destinadas à cota universal. Esta nova

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

lei de cotas é a mesma proposição que foi negada na votação, que ocorreu durante as primeiras
reuniões do ano de 2005, quando a instituição se mobilizou para instaurar as políticas de cotas.
De acordo com a atual resolução, no 2° parágrafo do Art. 1°, a instituição passou a aderir ao
sistema documental de autodeclaração na cota para negros. Segundo o Art. 5° da atual resolução,
só poderão concorrer as vagas nos processos seletivos da UEPG, através das modalidades
de cotas para negros e pela cota social, somente os candidatos que cursaram integralmente a
educação básica em escolas públicas.
Após o período de um ano, a atual resolução de cotas teve consequências e novos
desdobramentos. Pois, a partir das alterações no sistema de cotas na UEPG, começaram a
surgir polêmicas, que demandou no investimento em informações e orientações aos candidatos
que aspiravam ingressar em cursos de graduação presenciais, através do sistema de cotas
para estudantes oriundos de escolas públicas ou pela cota para negros, também advindos de
instituições da rede pública de ensino.
Foi então que a universidade decidiu elaborar uma cartilha informativa sobre as regras
para o ingresso através do sistema de cotas na UEPG. Tal cartilha informativa, a princípio, gerou
polêmica por conta da maneira como os conteúdos eram apresentados. Até que esta foi retirada
de circulação, afim de ser reelaborada, após ser completamente corrigida e reeditada, no início do
ano de 2016, este manual novamente foi publicado.

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Página 400
EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL: A COR DO VESTIBULAR NO PARANÁ

CARVALHO, Lílian Amorim. (NEIAB-UEM)


lilianamorimcarvalho@gmail.com

Resumo

O conjunto de dispositivos legais com a lei federal 10.639/2003 que alterou a LDB/1996, o Parecer do
CNE/CP 03/2004 e a Resolução CNE/CP 01/2004 institui e orienta o ensino obrigatório de história e
cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar. Com enfoque na implementação das diretrizes
curriculares para educação das relações étnico-raciais, apontamos o vestibular como um indutor da
inclusão dos conteúdos no currículo escolar e investigamos se os concursos das universidades públicas
do Paraná no período de 2009 a 2015 apresentam esses conteúdos nas provas. De acordo com a
Resolução CNE/CP 01/2004, o objetivo é reconhecer e valorizar as raízes africanas e indígenas de
forma equiparada às demais raízes, europeia e asiática, que compõem a nação brasileira. Desta forma,
a pesquisa foi realizada com procedimentos metodológicos quantitativos para análise de conteúdo a
partir de categorias comparativas que permitiram demonstrar as assimetrias das diferentes matrizes
curriculares que aparecem nas provas, bem como a predominância da matriz europeia ao longo de
todo o período.

Palavras-chave: Currículo escolar; educação étnico-racial; vestibular.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

A partir de 2003, a Lei Federal 10.639 instituiu a obrigatoriedade do ensino de história


da África e cultura afro-brasileira no currículo escolar. Para sua implementação foi publicada a
Resolução CNE/CP 01/2004 com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana -
doravante identificada ela sigla DCN-ERER, com base no Parecer CNE/CP 03/2004, conhecido
como Parecer Petronilha1, que apresenta os argumentos que justificam e orientam a ação dos
diferentes agentes e instituições envolvidos nesse processo. Um dos pontos mais importantes
deste documento é o enfoque dado em todas as orientações ao objetivo maior dessas normativas:
o de reeducar as relações étnico-raciais, para superar o racismo e construir uma sociedade
verdadeiramente democrática.
Toda essa discussão perpassa a constituição do currículo escolar e o impacto dos seus
conteúdos sobre o tipo de formação que se pretende, ao mesmo tempo que se configura como
resultado de relações sociais. Nesse contexto, a primeira sessão deste artigo apresenta a discussão
sobre a composição de um currículo multicultural, com a perspectiva da transformação social
possível a partir da mudança do enfoque do currículo tradicional para outro que caracterize uma
sociedade multicultural e pluriétnica, como a brasileira, demonstrando que a base da proposta
das DCN-ERER está no multiculturalismo e que sua implementação deve contemplar o processo
seletivo para acesso ao ensino superior, visto que o vestibular assume um importante papel na
condução do currículo escolar.
Assim, a segunda sessão lança luz para o papel do vestibular e apresenta o resultado de
uma investigação sobre a implementação das DCN-ERER, norteada pelo seguinte problema: os
vestibulares das universidades públicas do Paraná estão contribuindo para a implementação das
DCN-ERER? Para responder tal o problema, a metodologia utilizada foi a análise de documentos
com procedimentos quantitativos com o objetivo de identificar se os conteúdos de história e
cultura afro-brasileira e africana aparecem nas provas de vestibulares e de que forma isso ocorre
de 2009 a 2015.
Com base nos resultados de pesquisas sobre a implementação da lei, demonstrando que
a inserção do ensino de história da África e cultura afro-brasileira ainda é muito incipiente e difusa,
a hipótese levantada é a de que esses conteúdos aparecem de forma irregular e ainda que baixa,
a incidência iria aumentando nos concursos mais recentes, na medida que a discussão sobre a Lei
Federal 10.639/03 ganha mais repercussão na sociedade. É importante destacar, que o Art 26-A
da LDB/96, incluído pela lei federal 10.639/03, foi alterado em 2008, pela lei federal 11.645, que
incluiu no currículo a obrigatoriedade também do ensino de história e cultura indígena.

1 Em homenagem à Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, primeira mulher negra indicada pelo movimento negro
ao conselho da Câmara de Educação Superior, mandato 2002-2006. Em 2011, recebeu homenagem pela Ministra
Luiza Helena Bairros da SEPPIR, o prêmio Educação para a Igualdade, por ser a primeira mulher negra a ter assento no
CNE, por relevantes serviços prestados ao País e pela valiosa contribuição para a educação brasileira no combate ao
racismo.

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E, por fim, na terceira sessão, a análise dos dados reflete sobre o que a cor do vestibular
encontrada no Paraná representa nesse processo de enfrentamento ao racismo, numa sociedade
tão marcada pelo mito da democracia racial. Essa “cor” é tomada aqui no contexto da constituição
do racismo à brasileira, cuja peculiaridade invisibilizando o problema dificulta a implementação
de ações afirmativas. Assim, a educação para as relações étnico-raciais é abordada a partir das
orientações previstas no Parecer Petronilha, como referência a um projeto de sociedade que
tem sido impedido na medida em que os resultados, na cor do vestibular encontrada, suscitam,
em última instância, a manutenção de relações sociais racialmente hierarquizadas que vem
perpetuando a preterição de brancos e a marginalização da população negra.

1 Multiculturalismo, currículo e educação étnico-racial

Em linhas gerais o multiculturalismo diz respeito à convivência de diferentes grupos


culturais num mesmo espaço. Em termos teóricos, está diretamente relacionado à emergência dos
conceitos de diversidade e diferença e atrelado à política de reconhecimento em que a identidade
é ponto chave. O multiculturalismo, assim corresponde à pluralidade étnica de sociedades cuja
colonização gerou a convivência de diversos grupos étnico-raciais e cujo modelo assimilacionista
de integração social perdeu força com as reivindicações dos grupos subalternizados, as minorias.
(SEMPRINI, 1999)

Diversas vertentes multiculturais vão surgindo conforme os estudos identificam as


conformações sociais a partir da emergência dos discursos sobre diferença e diversidade. Solange
Martins Couceiro Lima (1998, pp.15-16), estudando a emergência do multiculturalismo nos Estados
unidos, afirma que os EUA se empenharam em modificar currículos, efetivar ações afirmativas para
minorias e outras medidas legais, inclusive em relação a mídias, de tal modo que surgiram críticas
considerando exagerados os rumos a que isso estava levando, como por exemplo, o tratamento
exclusivo do currículo étnico em detrimento das ciências e literaturas ocidentais. Disso teria surgido
a noção de multiculturalismo pluralista, em que os grupos decidem entre manter suas diferenças
ou integrar-se à sociedade em que se inserem e a visão do multiculturalismo particularista cuja
postura seria mais extremada e na visão dos críticos geraria pensamentos etnocêntricos.
Se de um lado houve a crítica pela exacerbação do enfoque étnico, por outro se apontou
como a apropriação do discurso pode gerar esvaziamento das lutas reivindicatórias dos grupos
minoritários. Isso ocorreu à medida que as diferenças foram sendo incorporadas como legítimas
de serem afirmadas e até mesmo incentivadas, porém não impactaram na estrutura social. O uso
dos termos “diversidade” e “diferença” de forma indiscriminada por diversas correntes, mostra de
um lado, que a “ascensão da diversidade é um dos efeitos das lutas sociais realizadas no âmbito
dos movimentos sociais” (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011, p. 86), de outro, que esse uso indiscriminado
da noção de diversidade e diferença acaba por manter as hierarquias sociais, sem implicar na
alteração das relações de poder. Quando o reconhecimento da diversidade surge no discurso com
o apelo à tolerância de fato o que ocorre é o escamoteamento das desigualdades e das diferenças

Página 403
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

mantendo intactas as hierarquias sociais e propiciando nichos de mercado.


Dessa maneira, o multiculturalismo de que trata este artigo se configura pela perspectiva
que busca romper com o “silenciamento das diferenças no campo da educação” que tem levado à
“construção da heteronormatividade como norma e normalidade e a estética branca como modelo
do belo” (Ibidem, 2011, pp.93-94).
Essa construção perpassa, obviamente, a composição curricular. O modelo tradicional
curricular é marcado pela brancura, ou seja, um tipo de currículo imposto pela dominação europeia
no processo histórico de colonização. Trata-se de um modo de produzir e transmitir conhecimento
pautado pela objetividade e exterioridade, ou seja, destituído do caráter da relação interpretativa
entre o conhecedor e o conhecido.
Uma composição curricular que rompe com o currículo tradicional é colocada por Henry
Giroux (1997, p. 51) como um novo currículo que “deve abandonar sua pretensão de ser livre de
valores” e que é preciso reconhecer que toda escolha que compõe a construção curricular - ou
seja, o que está presente e o que ficou ausente no currículo - não está destituída de valores. Sendo
assim parte-se da noção que a realidade não está dada, é preciso, pois, questionar e analisar. O
conhecimento deve ser, portanto, problematizado e situado numa relação em que seja possível o
debate e a comunicação.
Essa crítica ao modelo tradicional sinaliza a potência do currículo como ferramenta de
disputas que estão em jogo no campo político-social. Para Ileizi Fiorelli Silva (2007, p. 408), o
currículo pode ser entendido como um discurso pedagógico fruto das interações sociais de uma
sociedade de classe, configurando-se como “a materialização das lutas em torno de que tipo de
educação os grupos sociais desejam implementar na sociedade” (SILVA, 2007, p.408).
É esse o sentido da temática das DCN-ERER ao propor a inclusão de conteúdos no
currículo escolar, como uma política de reparações e de reconhecimento, ou seja, dirigida “à
correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferenciado
com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social
excludente e discriminatória” (MEC, 2013, p. 85). Segundo Kabengele Munanga (2004, p.347),
através da educação seria possível efetuar um processo de recuperação da memória do negro,
condição fundamental para se pensar em igualdade racial, em que “a educação ofereceria uma
possibilidade aos indivíduos para questionar os mitos de superioridade branca e inferioridade
negra neles introjeitados (sic) pela cultura racista na qual foram socializados”.
O Parecer Petronilha chama atenção para os aspectos da educação que extrapolam
a definição curricular e orienta sistemas de ensino, mantenedoras, coordenação pedagógica e,
sobretudo, os professores para a busca de “informações e subsídios que lhes permitam formular
concepções não baseadas em preconceitos e construir ações respeitosas”, bem como desenvolver
o “diálogo, via fundamental para entendimento entre diferentes, com a finalidade de negociações,
tendo em vista objetivos comuns; visando a uma sociedade justa” (MEC, 2013, p.92).
Deste modo, o currículo se apresenta como uma relação social, em que as representações
aparecem por meio de narrativas, a partir das quais é possível fortalecer diferentes identidades

Página 404
sociais, e assim desconstruir preconceitos e alterar relações de poder (SILVA, 1995). Com isso, a
implementação das DCN-ERER aponta para um caminho de mudanças, na medida em que coloca
em questão a base curricular vigente e reivindica a ampliação do currículo para outros enfoques.
Dado a sua complexidade, uma vez que diz respeito a todo o sistema de ensino nas suas diferentes
instâncias governamentais, de ensino e diversas instituições e agentes sociais, é necessário um
grande esforço conjunto para instituir a construção de novas pedagogias. Um dos elos desse
sistema está no limiar do ensino médio e superior: o processo seletivo para o acesso à graduação.

2 O branco papel do vestibular no Paraná

Desde a lei 5.540/1968, quando se configurou no mecanismo de acesso ao ensino


superior, o vestibular tem exercido papel fundamental na condução da educação básica,
interferindo nos currículos, métodos didáticos e até posturas dos professores. Especialmente após
o grande aumento de cursinhos preparatórios para o vestibular, na década de 80, os colégios,
principalmente da rede privada, passaram a se voltar para o ensino destinado à aprovação de seus
alunos, a fim de conseguir os melhores desempenhos e deste modo, os resultados se revestir em
publicidade para o próprio colégio. As famílias, por sua vez, querendo que seus filhos tenham a
melhor formação para o acesso ao ensino superior, buscam matriculá-los nos colégios com maior
índice de aprovação.
Dessa forma, o vestibular pode ser entendido como força propulsora para a implementação
dos conteúdos de história e cultura afro-brasileira e africana na medida em que quanto mais esses
conteúdos forem incluídos nas provas dos vestibulares, maiores serão as chances deles serem
abordados no ensino básico, contribuindo para a implementação das DCN-ERER nas escolas.
Além disso, ao considerar que esses conteúdos são obrigatórios nos currículos escolares desde
2003, e o conhecimento necessário para o vestibular é aquele referente ao ensino médio, tais
conteúdos devem ser abordados nesses exames.
Com base nos vestibulares das universidades públicas do Paraná que foram encontrados
cujas provas estavam disponíveis para consulta, foi possível efetuar um levantamento longitudinal
de 2009 a 2015 das incidências dos conteúdos das DCN-ERER em vestibulares de sete
universidades: UFPR, UEM, UEL, UEPG, UNIOESTE, UNICENTRO, UENP. A quantificação dos
dados foi baseada na definição de categorias para três variáveis: a) temática relativa a História/
Geografia/Cultura/Filosofia/Arte afro-brasileira/africana, asiática, europeia, indígena (brasileira)
ou da América Latina/Oceania; b) personagens históricos ou personalidades de acordo com
a classificação negra, indígena (Brasil), branca ou outros povos (latina-asiática-aborígene);
e c) citações com menção a texto ou lugar que remete a um continente ou a um povo, com a
classificação África, Europa/EUA/Canadá, Ásia, América Latina/Oceania, ou Povos Originários
Brasileiros (indígenas ou afro-brasileiro). Com esse levantamento de dados, foi possível verificar
o comportamento das categorias ano a ano após a Lei Federal 11.645/2008. O conjunto dos
resultados das setes universidades paranaenses investigadas representam o vestibular do Paraná,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

cujas variáveis tiveram o comportamento longitudinal demonstrado nos gráficos 1,2 e 3.

Gráfico 1 – Questões Temáticas

Gráfico 2 – Questões com Personagens

Página 406
Gráfico 3 – Questões com Citações

O percentual apresentado representa a quantidade de questões de cada variável em relação


ao total de questões do vestibular no ano. Os percentuais das temáticas (Gráfico 1) diferentes da
europeia não chegam a 1%, enquanto a categoria “Euro” tem o menor percentual em 5,99% e
chega a atingir 10% em 2013. Já questões com citações de personagens, é ínfimo o índice de
indígenas, chegando no máximo a 1,69% em 2012. A categoria “Negra” apresenta melhor índice
em relação a “Outros Povos”, atingindo 5,96% com 31 questões em 2015, mas também é bem
inferior à “Branca” cuja média é de 28,60% no período e chega a 31,46% em 2012. E as questões
com citações apresentam relativa ascensão do percentual de questões com citações da categoria
“EuroEUACan”, cujo índice vai de 15,54% em 2009 a 20,38% em 2015, oscilando no intermédio
desse período. Já as categorias “África” e ‘Povos BR” oscilam abaixo dos 4%, ficando abaixo das
demais categorias ao longo de todo o período analisado.
Cabe ressaltar que as questões fora desses percentuais são aquelas que nada têm a ver
com os conteúdos relativos às variáveis e suas categorias, tal como especificados para essa
investigação, entretanto, não significa que sejam desprovidos de uma matriz de conhecimento. A
própria “neutralidade” que se poderia supor a partir da objetividade com que tais conteúdos são
tratados nas questões (e nas formas como são ensinados) indica o modus operandi do modelo
curricular tradicional, representando “um forte comprometimento com uma visão de racionalidade
que é a-histórica, orientada por consenso e politicamente conservadora” (GIROUX, 1999, p. 46-
47).
Portanto, as DCN-ERER não estão sendo consideradas na elaboração das provas, porque,
além da incidência das categorias “afro” se apresentarem muito baixa e irregular, há ainda a grande
predominância das categorias europeia e branca sobre as demais, o que contraria as orientações
do Parecer Petronilha sobre “ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural,
racial, social e econômica brasileira”, incluindo nas atividades de ensino as contribuições históricas
e culturais dos diversos povos que compõem a sociedade brasileira. (MEC, 2013, p. 91). Com
isso, é possível afirmar que a cor do vestibular no Paraná é branca, as pinceladas coloridas são

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

praticamente imperceptíveis.

3 Educação étnico-racial para uma nova ordem social

A busca por uma sociedade menos desigual passa necessariamente por ações no campo
educacional. O Parecer Petronilha, regulamenta a alteração da LDB/1996 com a lei federal
10.639/03, instituindo as diretrizes para implementação da educação para as relações étnico-
raciais. Este documento expõe os fundamentos das determinações normativas dos dispositivos
legais, justificando sua relevância e orientando as ações dos diversos segmentos e agentes do
sistema de ensino brasileiro. Tal fundamentação está amparada nos princípios da reparação,
reconhecimento e valorização e é direcionada para duas vertentes: a educação das relações
étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. A primeira vertente diz
respeito a reeducar as relações étnico-raciais, fazendo “emergir as dores e medos” para “entender
que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade imposta a outros” e a
partir daí, combater o racismo e as discriminações e “construir relações raciais e sociais sadias, em
que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos e cidadãos” (MEC, 2013, pp. 87-88).
Dessa maneira, reconhecer e valorizar o povo negro e sua contribuição para a constituição
da nação brasileira requer, antes de tudo, reparar as discrepâncias sociais entre os diversos grupos
étnico-raciais, assim como reparar é agir no sentido do reconhecimento e valorização.
Com esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos
bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e a cultura de seu
povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade
e aos seus direitos. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e
cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário,
dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto
cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes
de construir uma nação democrática. (MEC, 2013, p. 91)

Assim, a efetivação da política de educação étnico-racial faz parte de um conjunto de


ações afirmativas que buscam a correção de desigualdades raciais e sociais, respondendo a uma
demanda da população negra.
É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros
se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias,
manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. É
necessário sublinhar que tais políticas têm, também, como meta o direito dos
negros, assim como de todos os cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos
níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados por
professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos;
com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e
discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre
diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de
europeus, de asiáticos, e povos indígenas. (BRASIL, 2004,, p. 2)

Nesse sentido, incluir conteúdos relativos à história da África e cultura afro-brasileira no

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currículo escolar apresenta-se como um mecanismo que visa um processo de mudança das
percepções sobre a população negra e sua história. No entanto, embora instituída desde 2004,
as DCN-ERER não estão sendo consideradas na elaboração das provas de vestibulares das
universidades públicas do Paraná. Ao contrário, o enfoque eurocêntrico ainda está muito presente
nos conteúdos cobrados nos vestibulares das universidades e período analisados.
O resultado apresentado, de ausência dos conteúdos relativos à educação étnico-racial
nas provas dos exames seletivos, reflete o quanto a sociedade brasileira está estruturada sobre
uma hierarquia étnico-racial, uma vez que as dificuldades para implementação dessa política diz
respeito ao processo histórico de silenciamento e invisibilidade da produção histórico-cultural de
outros povos que constituem as outras matrizes curriculares que não a europeia, principalmente
da população negra e indígena.
Outro ponto importante refere-se à natureza do vestibular, que sendo um processo de
seleção e exclusão, reivindicado pelo ideal meritocrático, tem servido à reprodução da mesma
hierarquia racial da sociedade no ensino superior. Esse caráter excludente se reforça no conteúdo
das provas na medida em que, aparentando isenção e neutralidade própria do currículo tradicional,
mantém a perspectiva de matriz eurocêntrica e assim, contraditoriamente assume uma posição em
favor de um público bem definido que tem historicamente se beneficiado dos privilégios de classe
e cor, em detrimento de outros sistematicamente alijados do ensino superior e, consequentemente,
da possibilidade de melhorar sua qualificação e assim poder quebrar o círculo vicioso de pobreza e
marginalização que se perpetua de geração em geração para a população negra.

Conclusão

As DCN-ERER configuram um importante marco histórico, instituído por dispositivos de lei


que abrem caminhos para questionar os currículos tradicionais.Ao fazer isso,possibilita a emergência
de novos atores e novas demandas no campo educacional no Brasil e dessa maneira, induz a
sociedade a debater a temática, encarar o racismo, enfrentar preconceitos e discriminações. Com
base no multiculturalismo, as DCN-ERER reivindicam a reparação, reconhecimento e valorização
da população negra, por meio da inclusão de outros enfoques nas matrizes de conhecimento e
conteúdos específicos de história e cultura afro-brasileira e africana, além das outras matrizes
indígena e asiática, tal como a configuração plural da sociedade brasileira.
Entretanto, os resultados desta investigação indicam que a educação paranaense tem
seguido a trilha do currículo tradicional. Mesmo após mais de 14 anos da lei federal 10.639/2003,
o branco é a cor dos vestibulares das universidades públicas do Paraná, cujos conteúdos das
provas continuam marcados pela matriz eurocêntrica e o pensamento do colonizador. Com isso,
tem-se uma geração que nasce no século XXI, mas ainda tem sido sistematicamente escolarizada
com a mentalidade do século XIX.
Se o que se pretende é superar o racismo, é prioritário seguir as DCN-ERER. Aprender
sobre África, história e cultura afro-brasileira, assim como a indígena, é aprender sobre parte

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

constitutiva do ser brasileiro, justamente pela mestiçagem tão reivindicada, é, portanto, promover
autoconhecimento. Talvez assim seja possível desconstruir estereótipos, repensar as relações e
construir uma nova sociedade mais equânime e mais justa.

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Vozes, 1995. p.190-207.

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ENCONTRO DE SABERES NA UNB1

Oliveira, Tautê Frederico (UFPR)2


Floriani, Dimas( UFPR)3

Resumo

O projeto gestado na UnB, denominado Encontro de Saberes (ES), foi construído em uma conjuntura
político-acadêmica ligada a um processo de fomento científico aos Institutos Nacionais de Ciência e
Tecnologia (INCTs), particularmente o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão (INCTI).
Neste sentido, o Encontro de Saberes se propõe a estabelecer um diálogo entre as denominadas
ciências ou epistemologias ocidentais e as epistemologias do Sul, ou saberes populares e tradicionais,
por intermédio de uma disciplina acadêmica em que os mestres atuam ministrando aulas como
professores visitantes em parceria com os professores orgânicos das instituições de ensino superior.
O presente trabalha analisa o enraizamento institucional da proposta na Universidade de Brasília (UnB),
sua gênese étnico-racial e cultural; a articulação supra-acadêmica facultada pelo INCTI. Para interpretar
este processo nos valemos do pensamento de sociólogos como Boaventura de Souza Santos, Antony
Giddens e o próprio propositor do projeto, o antropólogo José Jorge de Carvalho, bem como da análise
de editais, portarias e documentos de aporte financeiro, concernentes ao Encontro de Saberes e ao
INCTI. O projeto Encontro de Saberes apresenta um caráter inovador e de protagonismo no cenário
universitário e figura como um desafio interpretativo e de alteridade para as ciências humanas e sociais.

Palavras-chave: UnB, Encontro de Saberes, Ações Afirmativas, Diálogo de Epistemologias, Mestres


Tradicionais,

1 OLIVEIRA. FLORIANI. 2017, 15 p.


2 Doutorando em Sociologia, tauteoliveira@gmail.com
3 Professor de Sociologia UFPR, dimas@casla.com.br

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O projeto Encontro de Saberes nas universidades se inscreve como um caminho de práticas


de ensino e pesquisa acadêmica não tradicional, tampouco hegemonizada pelas estruturas
seculares do saber universitário. Sua origem é fruto de um conjunto de lutas que visaram a inserção
das Ações Afirmativas de caráter étnico-racial e social no ensino superior e na pesquisa.
Nesta esteira, figura o projeto Encontro de Saberes, que propõem um diálogo interepistêmico
no interior das universidades, pois objetiva estabelecer conexão e interação dos saberes trazidos
pelos mestres tradicionais, seja de matriz quilombola, indígena, raizeiros, mateiros, caiçaras entre
outros saberes com o universo acadêmico formal. Esta perspectiva também é compartilhada
pelo sociólogo Boaventura quando aborda as Epistemologias do Sul e do Norte, a sobreposição
de epistemologias e a necessidade de elaborar uma sociologia das ausências para substituir a
monocultura do saber científico, inclusive substituindo a noção de saber alternativo, que pode não
raro vir imbricado com uma noção de subalternidade de determinado conjunto de conhecimentos.
Parece ser justamente este processo e dinâmica que o Encontro de Saberes procura compreender,
as dimensões contraditórias, mas também congruentes dos paradigmas epistemológicos
eurocêntricos e dos povos tradicionais, avançando para a possibilidade e necessidade de se
estabelecer sistemáticos diálogos interepistêmicos.
Na senda de refletir como estes dois mundos, a priori segregados podem se conectar e mais
do que isso, se complementarem no ensino superior e também na pesquisa. Portanto, facultando
um processo de experimentação em nível pedagógico e epistêmico, resgatando os saberes e
inovações, articulando estudantes, mestres e professores na complexa e diversa realidade da
cultura, saberes e tecnologias, não raro olvidados do ensino superior formal.
Nesta perspectiva, intentaremos refletir como o projeto Encontro de Saberes, em suas
características fundacionais, metas e objetivos pode dialogar com a reflexividade sociológica
proposta por Anthony Giddens quando aborda o aspecto da confiança e os mecanismos de
desencaixe, tais como os sistemas peritos, que esta inserido em sua análise a respeito da
modernidade.

O INCTI, UM NÓ OU ENCRUZILHADA NO ENCONTRO DE SABERES.

O Programa Instituto Nacionais de Ciência e Tecnologia é uma política de fomento ao


avanço científico no Brasil que foi instaurado em 17 de julho de 2008, pelo Ministério da Ciência
e Tecnologia por intermédio da portaria de Nº429. Este projeto substituiu o antigo programa

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denominado Institutos do Milênio4, que tinha como objetiva conectar no território nacional os
melhores grupos de pesquisa, em campos estratégicos para o país em uma lógica interdisciplinar,
abrangendo várias áreas das ciências, com vista a aprofundar e garantir o desenvolvimento
sustentável para nação.
Neste sentido, além de fomentar a competência nacional em múltiplas áreas de pesquisa,
estimula alunos dos mais variados níveis, ensino médio, graduação ou pós-graduação a se
envolverem com os projetos em pauta. Além da instalação e manutenção de laboratórios em
universidades e empresas envolvidas com as pesquisas inerentes a cada INCT, desta forma a
proposta caminha na formação de jovens pesquisadores. A perspectiva é possibilitar um salto
científico-tecnológico que eleve o patamar de desenvolvimento em áreas de pesquisa consideradas
vitais e prioritárias em termos regionais e no âmbito nacional. O Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) foi gestado na Universidade de
Brasília (UnB), a partir de uma configuração de parcerias entre a referida instituição e os seguintes
órgãos e ministérios: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ),
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério da Educação (MEC) e o Ministério
da Cultura (MinC).
Conforme também ressalta a portaria que regulamentou inicialmente os INCTs. Os Eixos
Temáticos e Linhas de pesquisa pretendiam inicialmente abranger as seguintes temáticas: Modelo
de Implantação e Impacto das Cotas Étnico-Raciais nas Universidades, Educação Superior
Indígena e Interculturalidade, Direitos Humanos, Legislação e Disputa Jurídica e Relações Étnico-
Raciais e Configuração Nacional. O Minc garantiu a exequibilidade do Encontro de Saberes em
termos financeiros e também político-institucional, já que há mais de uma década não apenas
mapeava mestres dos saberes tradicionais ligados às artes, saberes indígenas e populares, como
articulava projetos culturais integrando estes mestres, como por exemplo, o Plano Setorial das
Culturas Populares.
Desde 2005 o Plano Setorial das Culturas Populares articulava a sociedade civil e o
Ministério da Cultura na elaboração de seminários e conferências movimentando culturas de matriz
popular. Nesta perspectiva já se percebia a valorização e fortalecimento das culturas populares e
o reconhecimento de sua contribuição para diversidade cultural. O CNPQ também cumpriu um
papel de destaque neste processo, pois configurou e deu a dimensão acadêmica e científica para
proposta, suplantando o projeto em termos institucionais. O INCTI, portanto, integra o conjunto dos
126 projetos que foram aprovados, e por consequência financiados por intermédio do Programa
dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs). Este centro de pesquisa foi inaugurando

4 Foram pré-selecionados 57 projetos de pesquisa entre 206 inscritos no primeiro edital do Programa Institutos
do Milênio. O programa foi criado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) para estimular a formação de redes de
pesquisa entre laboratórios de todo o país de modo a produzir conhecimento de ponta juntos, sem a necessidade de
se construir infra-estrutura física. Ou seja, serão utilizados os recursos de informática e comunicação já instalados. A
seleção final dos 20 projetos (escolhidos entre os 57), que receberão R$ 60 milhões, ocorrerá em outubro. Outros R$
30 milhões abrangerão estudos voltados apenas para o Norte e Nordeste. (revistapesquisa.fapesp.br/2001/07/01/
programa-institutos-do-milenio-avanca/)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

em sua Sede Nacional no dia 28 de abril de 2012, na UnB, no Campus Universitário Darcy Ribeiro,
não obstante o projeto estivesse em funcionamento desde 2009. Inicialmente o Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), se caracterizou
por estruturar uma Rede Nacional de Pesquisadores a qual objetivava acompanhar e analisar as
múltiplas modalidades de Políticas Inclusivas, tanto no ensino superior, como nas instituições de
pesquisa no Brasil, já que o próprio instituto foi gestado e nasceu como produto do avanço na luta
pela inclusão étnico-racial nas universidades brasileiras.

O INCTI corresponde ao resultado do amadurecimento de questões latentes da estrutura


de desigualdade da sociedade brasileira na área educacional, buscando firmar um campo
de pesquisa inovador e não inteiramente estabelecido nas grades acadêmicas. (www.
inctinclusao.com.br)

Conforme aponta os coordenadores do instituto, a grande singularidade ou uma das


principais marcas distintivas do INCTI é o caráter institucional que atrela o Estado à sociedade, e o
saber de cunho científico aos conhecimentos tradicionais.

O PROJETO ENCONRO DE SABERES.

Em um segundo momento o INCTI desenhou outro projeto com um escopo extremamente


ambicioso de caráter acadêmico e social, quando assumiu a faina de complementar o processo
de inclusão étnico-racial e por consequência social, facultado pelas políticas afirmativas, por
intermédio da construção de um diálogo mais profundo e profuso entre os saberes acadêmicos
consolidados no interior de nossas academias e os saberes de matriz indígena, afro-brasileiro,
popular entre outros complexos conhecimentos de comunidades tradicionais.

La primera parte de la lucha descolonizadora y anti-racista fue abrir lãs puertas para lós
jóvenes e indígenas para que también tengan El derecho de entrar como Estudiantes em
nuestras universidades. Ahora nos proponemos completar esa tarea invitando a los sábios
afros e indígenas a que vengan a la universidad para ensenar sus ciências y saberes. [...]
(Carvalho, 2010, p. 242)

Este desafio de natureza transdisciplinar culminou na inclusão das mestras e mestres dos
saberes tradicionais, oriundos dos mais diversos rincões do Brasil, para ministrarem uma disciplina
protótipo na qualidade de docentes, em parceria com os professores institucionalizados da UnB
no ano de 2010. O curso “Encontro de Saberes: Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais” integra
a grade oficial do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, desde então a
matéria foi ofertada até ano de 2015 e inicialmente envolveu mais de 200 estudantes, 31 mestres
e assistentes, 8 professores parceiros e um número significativo de pesquisadores nacionais e

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internacionais.
Na esteira de construção das bases teóricas do projeto Encontro de Saberes se percebe
uma crítica à lógica de estrutura e funcionamento da universidade moderna ocidental, pois este
aponta um caráter monoepistêmico e monodisciplinar. Tal crítica é um dos suportes do projeto
e objetiva estabelecer um diálogo interepistêmico e intercultural, para transpor o que o projeto
denomina de paradigmas civilizatórios dos saberes. Conforme destaca Carvalho e Florez (2014),
o processo de ocidentalização instaurado forçosamente na América Latina e Caribe instituiu um
formato de academia praticamente calcado na matriz europeia do início do século XIX, baseada
nas reformas universitárias napoleônicas da França e humboldtiana na Alemanha.
É possível articular esta perspectiva teórica com o pensamento de Boaventura Santos
(2000), quando aponta que o discurso sistematizado pela ciência moderna, quando se refere ao
conhecimento pós-moderno de oposição, categoria analítica desenvolvida pelo autor, caracteriza
uma dinâmica de oposição com base no conhecimento-emancipação, perspectiva que estrutura
por intermédio das tradições marginalizadas da modernidade ocidental.
Contudo, a análise retórica da ciência moderna diz-nos muito pouco acerca do
conhecimento pós-moderno de oposição que tenho vindo a propor: um conhecimento-
emancipação construído a partir das tradições epistemológicas marginalizadas da
modernidade ocidental.” (Boaventura Santos, 2000, pg.103)

O projeto do INCTI, Encontro de Saberes, parece apontar justamente para esta lógica, pois os
saberes alocados à margem da ciência e da academia, podem ser, não raro permeados por saberes
indígenas, quilombolas ou populares. Desta forma o projeto suscita pormenorizada reflexão no
que se refere a um possível rearranjo institucional no interior da acadêmica e a necessária abertura
para um diálogo que pode adentrar mais efetivamente suas estruturas.
O projeto se inscrever na lógica de valorização de saberes considerados alternativos ou
anti-hegemônicos, pois os referenciais epistêmicos para o debate intra-acadêmico são outros,
mas não menos significativos para interpretarmos a complexidade da realidade brasileira.

INCTI, ENCONTRO DE SABERES E AS ANÁLISES DE GYDDENS

Em tempos de grande avanço e revolução tecnológica parece ainda contraditório nos


deparamos com questões de extrema premência, que estão intimamente relacionadas à garantia
da sobrevivência humana. Seja pelos múltiplos sistemas químicos e industriais que contaminam
os lençóis freáticos; o condicionamento da produção de alimentos à um desenvolvimento atrelado
a agricultura de grande escala, que se vale de um conjunto de poderosos pesticidas e outras
drogas que garantem uma agricultura exitosa em curto e médio prazo, mas compromete a saúde
da humanidade, de maneira desassombrada, em uma perspectiva de longo prazo; o mesmo
ocorre com a produção em grande escala de bovinos, suínos e frangos. Podemos adicionar a
este contexto as múltiplas enfermidades que também são produto de um acelerado desequilíbrio

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

ambiental.
Ou mesmo a realidade de violência urbana que assola as médias e grandes cidades,
dinâmica social sustentada em grande medida por uma indústria de armas, que muito pouco
ou absolutamente nada se responsabiliza pelas vidas ceifadas por conta da produção de seus
artefatos bélicos. Em um quadro mais geral, a própria política em âmbito regional ou global parece
em alguns momentos tomar contornos fundamentalistas e até facistas, invocando períodos da
história recente, onde muito pouco se podia falar e o consenso se dava a partir da mira dos canhões.
A partir deste quadro, é possível nos valermos das reflexões teóricas sobre a modernidade,
a reflexividade e seus ricos por intermédio da lente do sociólogo Antony Giddens, objetivando
compreender de que maneira a manutenção e preservação dos saberes tradicionais e de seus
mestres e mestras pode construir pontes que dialoguem no sentido de minimanete reduzir
ou minorar as mazelas sociais e globais que ora se espraiam com grande força e velocidade,
reclamando projetos e perspectivas descoladas dos pressupostos ora em voga. Pressupostos
que parecem ter fincado baliza tanto na modernidade quanto na industrialização produzida pelo
capitalismo, são estas as pistas ofertadas pelo autore. Segundo Floriani (2010), Giddens buscava
desvelar uma inovadora seara de investigação, que se por um lado atendia ao mundo desgarrado
e novo, demanda agora a elaboração de novas categorias investigativas e interpretativas.
Cabe depreender da atual conjuntura que os riscos hoje estruturados pelo avanço científico
e tecnológico, possivelmente traga consigo uma gama de aspectos compensadores, não obstante
os ricos advindos desta onda tecnológica sejam por vezes incomensuráveis. O exemplo dos
alimentos geneticamente modificados e suas consequências para os seres humanos se enquadra
neste processo, considerado prejudicial por muitos, subjaz em seu sistema produtivo inúmeras
dúvidas quanto aos múltiplos ricos para os consumidores finais. Contudo na hipótese de debater
estes ricos à luz dos saberes tradicionais, teríamos um conjunto de formulações também de
ordem técnica, que centraria tais temores em outro patamar dialético. Já que alguns mestres não
apenas desaconselham à utilização de sementes geneticamente modificadas, como apontam a
existência de outros sistemas alimentares, que podem se consubstanciar como sistemas peritos,
embora neste caso não removam as relações sociais das imediações do contexto, conforme
Giddens destaca (1991, p. 36). Estes mestres ressaltam e defendem a existência de sementes
crioulas, como é o caso do mestre Geraldo Gomes Barbosa, que participou do projeto Encontro
de Saberes na Universidade de Juiz de Fora em 2014, ele é conhecido pela Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), como guardião da agrobiodiversidade. Em sua casa
cultiva aproximadamente oitenta variedades de feijões, é um mestre que domina uma técnica de
manipulação sutil das variáveis de feijões e outras sementes. Este contexto se apresenta como
uma lógica de preservação e segurança alimentar que pode se chocar em certa medida com os
modelos simplificadores de produção de alimentar. As sementes geneticamente modificadas são
caracterizadas pela generalização de um único modelo, é uma lógica padronizada pelas grandes
corporações do agronegócio, como as multinacionais Monsanto e Bunge. A presença dos mestres
e dos saberes tradicionais pode produzir uma noção de confiança, na perspectiva dos indivíduos

Página 416
e também das instituições como aponta Giddens (1991), fazendo frente a esta natureza de risco
tecnológico, ou inserindo outra perspectiva dialógica.
A presença dos mestres e mestras dos saberes tradicionais em articulação com a formação
universitária pode ser pensado como um sistema de confiança não tradicional ou um sistema
perito capaz de inspirar uma noção de confiança construída a partir de outros pressupostos
e bases do saber, distintos da lógica do capitalismo, tanto na perspectiva dos indivíduos como
das instituições. Giddens (1991), demonstra que os mecanismos de desencaixe, sejam fichas
simbólicas ou sistemas peritos estão suplantados na confiança, as próprias instituições modernas
estão sustentadas neste ordenamento, sendo este atributo fixado em termos abstratos.
A confiança, em suma, é uma forma de “fé” na qual a segurança adquirida em resultados
prováveis expressa mais um compromisso com algo do que apenas uma compreensão
cognitiva. Na verdade, e devo elaborar isto mais adiante, as modalidades de confiança
envolvidas nas instituições modernas, dependendo do caso, permanecem como
compreensões vagas e parciais de sua “base do conhecimento”. (Giddens, 1991, p. 35)

Quando nos reportamos à noção de confiança em Giddens, somos também obrigados


a pensar sobre os sistemas peritos, que abrangem lógicas de amplitude e excelência técnica,
caracterizada por um conjunto significativo de avanços científico-tecnológicos. O pensador
norte-americano constrói esta categoria analítica, demonstrando como os sistemas sustentam
a sociedade amparados na confiança, desta maneira pouquíssimas vezes a eficácia dessas
bases tecnológicas são contestadas. Por mais que possamos temer a queda de um avião, não
adentramos este equipamento aventando esta hipótese; nos deslocamentos por elevador, pouco
conhecemos sobre o funcionamento tecnocientífico do mesmo, contudo cremos intuitivamente
em seu funcionamento de maneira exitosa; o mesmo ocorre quando buscamos profissionais da
medicina, comumente não buscamos conhecer seu currículo e o status de seu conhecimento,
este processo é colocado em detrimento, por conta da fé e da confiança.
O conjunto dos saberes tradicionais parece se apresentar como um sistema perito,
estabelecendo diálogo com a noção de confiança de Giddens (1991), ao mostrar que a confiança
se sustenta na crença e por conseguinte na credibilidade de uma pessoa ou sistema, ou seja,
considerando resultados de caráter subjetivo ou amparado em conhecimentos e experiências
tecnocientíficas. No âmbito da modernidade, a confiança se materializa a partir do espraiar
tecnológico sobre o mundo, sendo um produto social e não consequência da natureza, dando
conta ou minimamente dialogando com processos complexos de deterioração social em diversas
áreas da sociedade. Giddens (1976), corrobora que o processo de transformação da natureza
ocorre por intermédio dos seres humanos, este processo é um condicionante da existência social,
capaz de acelerar o processo de desenvolvimento cultural.

CONCLUSÃO

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Intentamos com este trabalho analisar a construção do Instituto Nacional Ciência e


Tecnologia de Inclusão e seu principal projeto atualmente, denominado Encontro de Saberes nas
Universidades. Para tanto, nos valemos da análise de dinâmicas fundacionais do projeto e como
este processo se arranjou institucionalmente na Universidade de Brasília. Também nos debruçamos
sobre o projeto Encontro de Saberes na referida universidade, seu atual funcionamento, objetivos
e limites.
Esta análise se deu visando pensar os saberes tradicionais e a entrada destas epistemologias
e de seus portadores nas universidades sob a lente da teoria de Antony Giddens, quando pensam a
modernidade, os ricos e confiança em tempos de desestruturação e desequilíbrio de várias ordens
no cenário mundial. Pensamos que há uma possibilidade de encaixar os saberes tradicionais como
um possível modelo de sistema perito e sistema de confiança, já que os mestres sabedores trazem
consigo uma gama de conhecimentos fundamentais para os jovens estudantes, para a academia
e para a sociedade como um todo. Pois a demanda por políticas de reconhecimento e valorização
dos saberes tradicionais e ancestrais, partiu também da comunidade dos mestres e mestras.
Faz-se mister compreender que as universidades que já incorporaram os mestres e
mestras e suas epistemologias, parecem configuram novas possibilidades dialógicas de conexão
e experiência, interdisciplinar e interepistêmica. Possibilitando uma troca e articulação de múltiplos
sistemas peritos, trabalhando na perspectiva de conectar saberes, experiências e alternativas para
o diálogo conjunto, na busca de alternativa para as mazelas sociais e ambientais.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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IGUALDADE NA DIVERSIDADE E A LUTA ANTIRRACISTA NO BRASIL: DAS


POLÍTICAS DE REDISTRIBUIÇÃO ÀS DE RECONHECIMENTO1

DA SILVA LIMA, Fernanda (UNESC)

Introdução

Em pleno século XXI ainda é necessário lutar para que haja, no Brasil, uma sociedade livre
do racismo, do preconceito e da discriminação racial. A temática que envolve a construção de uma
política pública de igualdade racial capaz de assegurar os direitos humanos dos grupos raciais
negros, sem dúvida, é medida emergencial, ainda que este tema seja desafiador, principalmente
por ser multifacetado e complexo.
O Brasil deu grandes passos em direção à desmistificação que circunda o tema das relações
raciais, e reconheceu pela primeira vez o problema do racismo apenas neste século, tendo sido
negligente durante mais de cem anos, desde a abolição da escravidão. As teorias raciais de cunho
biológico – que acreditavam na hierarquização das raças –, as práticas eugenistas, o discurso da
mestiçagem e por último o da democracia racial se fundem no imaginário coletivo, não como mitos
e inverdades, mas são forjados no cotidiano de tão enraizados que ainda estão.
Portanto, ao mesmo tempo em que o tema das relações raciais se descortina e sai da zona
de invisibilidade, percebe-se em algumas situações o acirramento de tensões raciais. Logo o
objetivo deste artigo é estudar a construção de políticas públicas de igualdade racial no Brasil a
partir da dupla dimensionalidade do princípio da igualdade, que se materializa por meio de políticas
públicas distributivas e políticas públicas voltadas ao fortalecimento das identidades e valorização
das diferenças.
Para isso é importante compreender a teoria das relações raciais e a luta antirracista em
afirmação histórica; analisar o princípio da igualdade a partir de uma abordagem crítica dos
direitos humanos; compreender os limites e possibilidades das políticas redistributivas e de
reconhecimento.
Nesta pesquisa será utilizado o método indutivo, envolvendo a técnica de pesquisa da
documentação indireta, uma vez que o trabalho se baseia também em pesquisa bibliográfica e
documental, e como método de procedimento, o monográfico.

1 Este breve ensaio sobre a luta antirracista no Brasil e as políticas de garantia de igualdade racial faz parte
da pesquisa desenvolvida pela autora em sua tese de doutorado intitulada “Os direitos humanos e fundamentais de
crianças e adolescentes negros à luz da proteção integral: limites e perspectivas das políticas públicas de igualdade
racial no Brasil” e apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. Parte deste material foi atualizada
e reestruturada para o evento III Copene Sul.

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1. A luta antirracista no Brasil: em perspectiva histórica

A luta pela igualdade racial na sociedade brasileira não é fenômeno recente, sendo anterior à
própria abolição da escravatura, ocorrida legalmente em 13 de maio de 1888, e passando por várias
fases, de avanços e retrocessos ao longo do século XX. De acordo com Fernandes (2007, p. 171-
172), a abolição da escravatura não significou aos grupos raciais negros melhores condições de vida,
ao contrário, os negros permaneceram à margem da sociedade, com baixos índices de participação
econômica, social e cultural, que ainda, como se verá, estão presentes na ordem social atual. Por
isso Fernandes (2007, p. 171-172) menciona a necessidade alcançar uma segunda abolição, e
Davis (2009) afirma que é necessário uma abolição da própria democracia, capaz de assegurar a
garantia de direitos humanos e fundamentais à população negra.
Assim, a aprovação da Lei Áurea em 1888 e a Proclamação da República no ano seguinte
não trouxeram mudanças significativas na vida dos grupos raciais negros, ao contrário, não houve
uma mudança na racionalidade e na cultura social para o respeito a diversidade étnico-racial. No
Brasil, por exemplo, o projeto de branqueamento foi implementado através do investimento em
políticas imigratórias, antes mesmo do fim da escravidão.
De acordo com Rizzini (1997) os ideais positivistas e republicanos de “ordem e progresso”
impulsionaram a crescente industrialização, o crescimento e desenvolvimento dos centros urbanos
de forma acentuada e desordenada, propiciada pela entrada maciça de imigrantes europeus.
Viveu-se no País, pela primeira vez, uma condição em que a moradia tornou-se um problema
nas suas principais capitais. Muitas pessoas habitavam conglomerados urbanos em periferias, e
dentre estes grupos estavam os negros, deixados à margem da sociedade (RIZZINI, 1993, p. 39).
A não inclusão dos grupos sociais negros na agenda política do país feria os ideais
abolicionistas, pois conforme esses anseios manter a escravidão no Brasil impediria o
crescimento econômico e o progresso de uma sociedade que sentia a necessidade de
ser civilizada. E essa civilidade não incluía o negro. A abertura dos mercados, a instalação
de fábricas e indústrias e a circulação de mercadorias transformaram o trabalhador
assalariado em consumidor, nesse novo modelo econômico que procurou se afirmar, o
modo de produção capitalista. Portanto, para alcançar esse desiderato, a escravidão era
modelo que precisava ser extinto. (LIMA; VERONESE, 2011, p 30-31)

A compreensão da dinâmica social no que se refere às relações raciais no Brasil perpassa


pelo estudo das teorias raciais que chegaram ao Brasil na segunda metade do século XIX, por
influência de pesquisadores europeus, principalmente aqueles vinculados à tese evolucionista
em contraposição ao criacionismo. Muitos dos mitos atribuíveis à noção de raças humanas e sua
“hierarquização”, que ainda se encontram impregnadas no imaginário social, remontam desse
período histórico.
É possível, de forma breve e resumida, destacar que o Brasil absorveu ao longo do século
XX algumas teorias raciais que justificavam a hierarquia das raças, destaca-se aqui, por exemplo,
as teses do evolucionismo, a tese da eugenia de Francis Galton, a tese do branqueamento, a tese
da mestiçagem e a tese da democracia racial. Dar-se-á destaque as duas últimas, pois elas não

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

possuem, de forma direta, justificação no campo das ciências biológicas, mas foram igualmente
construídas com base no racismo científico.
A tese da mestiçagem se desenvolve no Brasil na década de 1930, tendo como maior
fomentador desta ideia Gilberto Freyre, cujas obras percorreram o mundo, com destaque a sua
obra famosa “Casagrande & Senzala”. Freyre e seus seguidores ideológicos constaram que
como o fenômeno da mestiçagem era predominante na sociedade brasileira, as teorias raciais não
serviam mais. Era necessário repensar as relações raciais na sociedade brasileira abarcando a
mestiçagem como fenômeno predominante e formador da identidade dos brasileiros.
Freyre (2000) destacou as características da sociedade patriarcal e relacionou a
mestiçagem racial à ideia de convivência harmoniosa entre as diferentes raças que compõem
a sociedade brasileira. Para Freyre a identidade nacional era formada por três raças principais:
do negro, do índio e do europeu, fazendo um forte apelo para aceitação da mestiçagem no país.
(SCHWARCZ, 1993, p. 111-113).
Já a tese da democracia racial se desenvolve em decorrência da tese da mestiçagem.
Assim, a ideia de “democracia racial” não reconhece que no Brasil houve ou há práticas que
envolvam discriminação fundada na cor da pele, pois se todos são mestiços, é possível concluir
que corre nas veias do povo brasileiro o sangue europeu, indígena e africano. A democracia racial
aparece como um subterfúgio ideológico para dar conta de explicar no Brasil a inexistência de
preconceitos de raça, e o emprego da mestiçagem como sinônimo de harmonia social entre os
diversos grupos étnicos do país.
Por isso, em razão da tese da democracia racial e da superação dos estudos raciais
estruturados em base econômica e classe social, que foi primordial tanto aos movimentos sociais
negros como a academia remodelar ou reconceituar o termo “raça”. Para Hall (2003, p. 69) raça é
uma categoria não científica, mas sim uma construção política e social. É uma categoria discursiva
que em torno do qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, que gera exploração e
exclusão. Acrescenta-se ainda, que raça também passa a ser categoria cultural para expressar
as diferentes identidades que compõem os sujeitos e grupos que vivem em sociedade, que em
razão de sua identidade ou de sua cultura também podem sofrer processos de exclusão – não
necessariamente socioeconômica (SANTOS, 2003a).
Logo, atualmente, negar a existência de raças é negar a existência do preconceito racial,
do racismo e da discriminação racial. Contar a trajetória de luta antirracista é também conhecer
a luta impulsionada pelos três movimentos negros de grande expressão no país, foram eles:
a Frente Negra Brasileira (1931), o Teatro Experimental do Negro (1944) e o Movimento Negro
Unificado (1978). Cada um surgiu um determinado momento histórico. O último em destaque, o
Movimento Negro Unificado surge conjuntamente com o processo de redemocratização do país,
tendo algumas de suas reivindicações sido incorporadas na Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988.
A Constituição de 1988 constitui-se num marco jurídico importante para a garantia dos
direitos dos grupos negros, por assentar os direitos fundamentais das pessoas sob a perspectiva

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do princípio da igualdade (substantiva e formal no art. 5º) e do princípio da dignidade humana,
além de expressar rechaço total contra qualquer forma de discriminação, inclusive a discriminação
racial, criminalizando a injúria racial e o racismo.
Além disso, a força da sociedade civil aliada com segmentos governamentais foram
responsáveis pela criação da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial) no ano de 2003. Constata-se que a pauta da igualdade racial entrou na agenda política do
país, precisando ainda ser fortalecida.2

2. A igualdade na diversidade: abordagem em teoria crítica dos direitos humanos

Somente nos últimos anos, na transição do século XX para o XXI é que apareceram
mudanças significativas no campo das políticas públicas para a população negra. Estado e
sociedade se uniram para um objetivo comum: garantir a igualdade racial.
E é em razão disto que não mais é possível ignorar na análise do direito de igualdade o direito
à diferença, pois este envolve, nos caso dos grupos raciais negros, a necessidade de respeito e
valorização da sua identidade étnico-cultural, razão pelo qual se faz urgente transcender ao direito
de igualdade meramente formal, porque a busca de uma efetiva igualdade racial está amparada
em outros valores, que o mero legalismo ou a literalidade pura e simples da lei, não permite que se
alcancem.
É importante constar que uma primeira fase do direito de igualdade esteve assentada sob
a concepção de uma igualdade meramente formal, típica do modelo de Estado liberal, segundo
a qual o direito de igualdade se expressava a partir e tão somente da noção de que ‘as pessoas
são iguais perante a lei’ (SARLET, 2014, p. 541). E ainda, o princípio da igualdade representava a
conquista do direito de liberdade, que reconhece uma sociedade de sujeitos livres e iguais.
Em decorrência desse aspecto de formalidade pura e simples é que Sarmento (2008, p. 65)
afirma que o direito de igualdade, reconhecido como a igualdade perante a ordem jurídica, serviu
de instrumento que beneficiava apenas a elite econômica (detentora de direitos e privilégios),
numa sociedade negadora, das injustiças, opressões e desigualdades sociais profundas.
Esta igualdade formal foi muito bem descrita por Orwell (2007) na sua fábula ‘A Revolução
dos Bichos’. Na fazenda dos bichos, em analogia ao modelo de Estado liberal-burguês, “todos os
bichos eram iguais, mas alguns eram mais iguais que outros”.
Foi necessário, portanto ressignificar o direito de igualdade, uma vez que se devia alcançar
uma igualdade como contraponto daquilo que seria a desigualdade. É no reconhecimento das

2 Em meio a crise político-institucional que assola o País, acompanhados de eventos de corrupção e deposição
do cargo da Presidente eleita democraticamente no ano de 2016, sob o manto legal do processo de impeachment,
a SEPPIR, bem como a Secretaria Especial de Direitos Humanos, e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos das
Mulheres foram extintas e alocadas junto ao Ministério da Justiça e Cidadania. A história política brasileira, bem
como a luta antirracista no País é acompanhada, como já mencionado, de momentos de avanços e retrocessos.
Neste momento estamos vivendo um retrocesso social imenso e uma ameaça iminente as conquistas pelos direitos
humanos, pelos direitos dos grupos raciais negros, pelos direitos das minorias.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

desigualdades que se procura alcançar o que seria o postulado da igualdade.


As desigualdades, é importante frisar, vão passando a ser inaceitáveis no decorrer do
tempo e em cada sociedade de formas distintas. Tome-se como parâmetro a discussão sobre
a igualdade racial no Brasil, que alcança seu apogeu apenas no final do século XX, em razão
das lutas do movimento negro que negaram a ideia de democracia racial na sociedade brasileira
(LIMA; VERONESE, 2011), Assim, foi necessário repensar outra configuração de igualdade que
reconhecesse os grupos raciais negros como desiguais, socioeconomicamente, mas não tão
somente isso. Portanto, falar de igualdade implica falar de desigualdade, que apresenta como fator
determinante nesta, a diferença.
Só na fase final do século XX, a preocupação com o direito à diferença incorpora-se
definitivamente ao discurso de igualdade. Torna-se evidente, então, que o direito de cada
pessoa de ser tratada com igualdade em relação aos seus concidadãos exige uma postura
de profundo respeito e consideração à sua identidade cultural, ainda quando esta se
distancie dos padrões hegemônicos da sociedade envolvente. O respeito, a preservação
e a promoção das culturas dos grupos minoritários convertem-se assim numa das
dimensões fundamentais do princípio da igualdade. (SARMENTO, 2008, p. 68)

Barros (2004) argumenta que a desigualdade é intrínseca à natureza humana e à própria


sociedade, composta por seres multifacetários. “A afirmação do direito à diferença é necessária
quando utilizada em projetos antidiscriminatórios, sobremaneira quando pensamos em minorias
étnico-raciais descobertas de direitos mais fundamentais.” (CAMILO, 2014, p. 62).
Não é possível garantir direitos iguais sem que haja o reconhecimento das diferenças,
sendo que é nas diferenças que a exclusão e a desigualdade operam (SANTOS, 2006, p. 279).
Logo, a noção de igualdade formal perde força, também, porque o próprio reconhecimento formal
de direitos não assegura, consequentemente, a sua efetivação. Por isso, Sedek (2007, p. XV)
afirma que
O fato, porém, das relações concretas não espelharem a igualdade prevista em lei não
diminui o valor da legalidade. Ao contrário, indica a existência de um desafio assumido
pelos grupos sociais que tiveram força política suficiente para conferir para tais direitos o
estatuto legal. Em consequência, ainda que não respeitados, não dá no mesmo a presença
ou não de direitos formalizados em diplomas legais. A não coincidência entre o mundo
real e o legal adverte para a necessidade de se construir mecanismos que garantam a sua
aproximação.

O princípio da igualdade é, por assim dizer, pedra angular do direito constitucional moderno,
principalmente porque guarda referência com o modelo de Estado de Direito Democrático e Social,
possuindo conexão íntima com os valores de justiça, embora com ele não se confunda (SARLET,
2014, p. 538). Sarmento (2008, p. 66) aponta que foi apenas no século XX, com a vitória de um
constitucionalismo de base democrática, que se passa a ter uma releitura do princípio da igualdade,
numa igualdade não mais meramente formal, e sim substancial.
É possível deduzir do texto constitucional a existência de uma dupla dimensão do direito de
igualdade, uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva, compreendida sob dois aspectos,
um negativo (defensivo) e outro positivo (prestacional). Na dimensão subjetiva do direito da
igualdade, Sarlet (2014, p. 547) situa, por exemplo, a proibição de tratamentos contrários aos

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valores de igualdade, bem como compreende a necessidade de assegurar a igualdade mediante
medidas compensatórias, que poderão ser adotadas pelo próprio Estado, a fim de afastar eventuais
desigualdades, como é o caso das políticas de redistribuição na modalidade de ações afirmativas.
Assim, o direito de igualdade material ou substantiva só é alcançável a partir da percepção
para quem ou para quais grupos esta igualdade é conferida, pois, em muitas situações em que
se observa uma verdadeira desigualdade entre grupos e pessoas, conferir igualdade significa
proporcionar a esses grupos ou pessoas tratamento desigual, ou até mesmo políticas de
discriminação positiva.
Numa sociedade pluriétnica e multirracial, o Direito tem o dever de amparar as adversidades
jurídicas e contribuir para a resolução efetiva das distorções sociais existentes. Os desafios lançados
à efetivação do direito de igualdade possuem alinhamento teórico com as críticas travadas aos
direitos humanos e fundamentais, que, construídos sobre uma matriz liberal-ocidental, negaram
o reconhecimento do direito à diferença, algo que atualmente deve ser imprescindivelmente
incorporado para a garantia plena de direitos aos mais diversos indivíduos, nas suas complexas e
múltiplas diferenças.

3. Redistribuição ou reconhecimento?

Consideradas as diferenças interculturais3 que compõem a sociedade brasileira, Santos


(2006, p. 316) indica que o novo caminho, para romper com os processos de exclusão e
desigualdades, será repensar a política de igualdade articulada com as políticas de identidade,
segundo afirmou no seguinte enunciado: “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos
inferioriza; temos o do direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.
A teoria valorativa do princípio da igualdade reconhece ser imprescindível que o ideal
de igualdade corresponda à garantia de justiça social, aliada com a concepção de uma justiça
redistributiva, orientada muitas vezes pelo critério econômico, e que possibilite combater o
binômio desigualdade-exclusão. E também que a interpretação do princípio da igualdade esteja
alinhada com o constitucionalismo democrático, e no caso brasileiro impõe que o Sistema de
Justiça alcance a interpretação da cláusula da igualdade, almejando maiores possibilidades
quanto a redistribuição de direitos, em consonância com os fundamentos e objetivos da República
Federativa do Brasil (FRISCHEISEN, 2007, p. 10).
Ainda que se prefira o termo interculturalidade no lugar de multiculturalismo, pode-se
também tecer considerações acerca do que representa na teoria social o multiculturalismo de
tendência conservadora criticado tanto por Boaventura de Sousa Santos quanto por Herrera

3 Prefere-se o termo interculturalidade no lugar de multiculturalismo. Flores (2002, p. 12) argumenta a


preferência pelo termo interculturalidade no lugar de multiculturalismo por compreender que “[...] os problemas
culturais estão estritamente interconectados com os problemas políticos e econômicos. A cultura não é uma entidade
alheia ou separada das estratégias de ação social; ao contrário, é uma resposta, uma reação à forma como se
constituem e se desenvolvem as relações sociais, econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados.”

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Flores. O multiculturalismo de tendência conservadora, embora reconheça a pluralidade e a


diversidade culturais presentes na sociedade, é incapaz de possibilitar uma visão que fuja
à lógica de um universalismo abstrato, pois parte da ideia, de forma exemplificativa, de que se
existem desigualdades entre pessoas, as políticas de ação afirmativa – neste caso as políticas de
redistribuição – seriam suficientes para sanar as desigualdades e os possíveis conflitos entre os
grupos.
Assim, compreender as relações raciais no Brasil, a partir da concepção do multiculturalismo
de matriz conservadora – com investimento em ações afirmativas – pode potencializar processos
de subordinação e dominação de alguns grupos em detrimento de outros, um se sobrepõe ao outro,
mantendo-se a estrutura hierárquica na sociedade – Ex: os negros em relação de subordinação
aos brancos.
Assim descreve Flores (2002, p. 20):
[...] existem muitas culturas, mas somente uma pode considerar-se o padrão ouro do
universal. Por sua parte, a visão localista nos conduzirá a um multiculturalismo liberal
de tendência progressista: todas as culturas são iguais, não há mais que se estabelecer
um sistema de quotas ou de afirmative action, para que as “inferiores” ou “patológicas”
possam aproximar-se à hegemonia, mas, ao estilo do politicamente correto, respeitando
sempre a hierarquia dominante. Outorgar voz e presença, em razão das diferentes posições
sociais, é uma forma de ocultar a “diferença”; em muitas ocasiões, não é mais que uma
conseqüência das desigualdades que ocorrem, no início, ou bem no desenvolvimento do
processo de relações sociais.

Embora as políticas de ação afirmativa sejam ferramentas importantes no campo das


políticas públicas, para pôr em equilíbrio os diferentes grupos raciais, ou ainda, promover uma
igualdade racial, estas políticas, na visão de Flores (2002, p. 12), seriam mecanismos insuficientes
para superar a lógica de dominação e subordinação imposta aos grupos (negros) receptores de
tais políticas.
Por isso, o movimento intercultural se baseia “[...] no reconhecimento da diferença e do
direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além de diferenças de
vários tipos.” (SANTOS, 2003b, p. 33). A concepção intercultural de direitos humanos fundamenta-
se na retomada crítica do pensamento ocidental como contraponto da concepção universalista,
que permite, de fato, assegurar um mundo comum sob os anseios da pluralidade e da diversidade
entre os indivíduos (LAFER, 1997, p. 56). “O respeito, a preservação e a promoção das culturas
dos grupos minoritários convertem-se assim numa das dimensões fundamentais do princípio da
igualdade.” (SARMENTO, 2008, p. 68)
A luta pela igualdade racial no Brasil não pode ser uma fórmula vazia, ou basear-se apenas
em sistemas numéricos, como os sistemas de quotas (ações afirmativas), mas deve prevalecer o
entendimento de que é fundamental o reconhecimento das identidades e o respeito pelo diferente.
E ao mesmo tempo falar sobre igualdade não implica homogeneização forçada, pois todos devem
ter igual liberdade de ser diferente e de viver de forma plena de acordo com essas diferenças
(SARMENTO, 2008, p. 69).
Em razão disto é que surgem novas teorizações acerca do direito à diferença e a luta contra

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as desigualdades provenientes destas. Trata-se da política do reconhecimento amparada na ideia
de promoção de justiça social. Não se tenta mais compreender as diferenças culturais pela via
assimilacionista, pois esta, como se sabe, é negadora do reconhecimento e da valorização das
identidades e, em razão disto, propulsora da manutenção da dicotomia dominadores/dominados,
pois haveria sempre a prevalência de uma cultura em detrimento de outra, à qual se atribuiria o
status de superior ou dominante.
Fraser (2008, p. 167-168) aponta novos caminhos que conduzem à percepção de
justiça social. Se antes as demandas por justiça social baseavam-se tão somente em políticas
redistributivas, agora cede-se o espaço também para a construção da justiça social voltada
para as demandas por reconhecimento, reconhecimento de identidades, reconhecimento do
outro. Para a autora, em universos desiguais, lutar por políticas de redistribuição e por políticas de
reconhecimento de forma separada ou antagônica, não representa mais do que uma falsa antítese.
Para ela nenhuma das duas teses é suficiente para responder às demandas por justiça social. Por
isso, a base da teoria da autora se sustenta em construir uma orientação político-programática
capaz de integrar o melhor da política de redistribuição com o melhor da política de reconhecimento
da diferença.
As políticas de redistribuição e de reconhecimento se diferem em pelo menos três
situações pontuais. A primeira delas relaciona-se com o fato de as duas políticas abordarem
concepções diferenciadas de injustiça, uma vez que a política de redistribuição dá ênfase no
combate às injustiças de ordem socioeconômica, enquanto a política de reconhecimento centra-
se nas injustiças de ordem cultural, e estão enraizadas nos padrões sociais de representação,
geradores de dominação cultural (por aquela de status predominante), de não reconhecimento
de identidades e de desrespeito. Em segundo lugar, o que diferencia uma política da outra é a
estratégia que cada uma adota para resolver o problema da injustiça social. Enquanto a política
de redistribuição investe numa reestruturação político-econômica (programas de transferência de
renda são exemplo), a política de reconhecimento aposta que o remédio para enfrentar a injustiça
social é a transformação cultural, o respeito e a valorização das identidades consideradas até
então subalternas. Há uma aposta na diversidade cultural nas políticas de reconhecimento. E em
terceiro lugar, as duas políticas são direcionadas para grupos diferentes, a política de redistribuição
atenderia aos grupos injustiçados em razão de sua classe social, já a do reconhecimento atende
aquele grupo que, dada a sua cultura, apresenta baixo status, visto pelo padrão cultural como
diferente e, portanto, possui baixo prestígio social (FRASER, 2008, p. 169-171).
O enfrentamento da discussão étnico-racial no Brasil e a possível promoção da
igualdade racial deve perpassar pelo investimento nestas duas políticas: de redistribuição e de
reconhecimento, pois, como se viu, não são, na concepção de Fraser (2008), antagônicas. Assim,
a luta pela igualdade racial deve estar pautada pela melhoria das condições de trabalho das
pessoas negras em equivalência às condições de trabalhos ocupados por brancos e, ao mesmo
tempo, travar uma luta contra o eurocentrismo e enfatizar as especificidades da cultura negra, de
forma a valorizá-la. A dificuldade parece estar em como conciliar a igualdade e a diferença, pois

Página 429
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

a política de redistribuição busca alcançar uma isonomia substantiva entre os diferentes grupos
raciais, enquanto a política de reconhecimento ressalta o valor da ‘diferença’ (MATTOS, 2006, p.
144).

À guisa de conclusão

Abordar as diferenças e as desigualdades no mundo contemporâneo é tarefa extremamente


complexa, uma vez que as diferenças poderão ser reconhecidas ou negadas, e ao mesmo tempo
as desigualdades podem ser contestadas ou sofridas de forma passiva (BARROS, 2004, p. 14).
A valorização e o resgate das diferenças se apresentam como instrumental imprescindível na luta
contra as desigualdades que se constituem a partir da negação das diferenças. Pode-se falar em
desigualdades de gênero, raça, idade, nacionalidade e tantas outras.
A cultura de respeito e educação em direitos humanos deve, portanto, amparar-se na
construção de uma cultura dos direitos, como já ressaltou Herrera Flores. Por isso, é possível afirmar
que o problema moral do racismo no Brasil não se resolverá com a política de ações afirmativas
enquanto políticas de redistribuição, embora essas políticas venham possibilitar a criação, por
exemplo, de uma classe média negra, podendo de fato promover o equilíbrio e a igualdade racial
em termos econômicos.
No entanto, o problema das relações raciais não se esgota na dicotomia branco/negro e
na negação do racismo científico. É necessário investir na “própria autocompreensão de uma
identidade cultural que passa inevitavelmente pela construção de elementos raciais, manifestos
em práticas racistas de exclusão social, desrespeito e falta de reconhecimento” (OLIVEIRA, 2011,
p. 60)
Warat (1988, p. 11-12) afirmou que um dos grandes desafios que se impõe aos direitos
humanos é percebê-los não mais de forma autônoma e ideologicamente neutra, uma vez
que esta concepção serviu como elemento instituidor de práticas totalitárias – baseadas na
desumanização e na despolitização do social. É, portanto, urgente ressignificar a própria concepção
de universalidade dos direitos humanos. Que esta universalidade ressignificada seja capaz de
contemplar a proteção de categorias vulneráveis, tais como as mulheres, crianças e adolescentes,
negros, deficientes, homossexuais, entre outros. É imprescindível desvencilhar a teoria dos direitos
humanos dos velhos resquícios eurocêntricos, cuja simbologia sempre se apresentou como um
verdadeiro obstáculo à consolidação dos direitos humanos de fato, seja porque sempre procurou
a manutenção de um status quo insensível aos direitos de minorias – incluindo as minorias étnicas
– seja como barreira instrumental de processos de luta e processos políticos de luta por direitos.
(LIMA, 2015)

REFERÊNCIAS

Página 430
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Página 432
NEGROS E INDÍGENAS: DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS AO
MERCADO DE TRABALHO

Ivanilde de Jesus dos Santos Ferreira4 - NUVIC/ALTERITAS/UFSC


Prof.ª Drª. Joana Célia dos Passos5 - Orientadora – NUVIC/ALTERITAS/UFSC

Resumo

Entendemos que a sociedade brasileira vivencia ao longo do seu contexto histórico um quadro
perpetuação de desigualdades social, educacional e racial. Compreendemos que as políticas públicas
de ações afirmativas contribuem com a alteração do quadro de desigualdades educacionais no Brasil.
O escrito aqui apresentado trata do estado conhecimento de uma pesquisa de mestrado, – que, por sua
vez, faz parte de uma pesquisa maior e mais ampla –, e tem como objetivo compreender e analisar o
impacto das ações afirmativas na vida profissional dos estudantes de ensino superior, negros e indígenas,
egressos da UFSC-Universidade Federal de Santa Catarina (estudantes aprovados pelas ações
afirmativas) no mercado de trabalho, analisando o período após as suas formaturas. A coleta de dados
está ancorada na pesquisa qualitativa a partir da análise documental e entrevistas. Buscou-se dialogar
com os estudiosos Munanga (1999, 2003), Gomes, N. (2005), Passos (2012, 2013), Hasenbalg (1992),
Dávila (2006), Osório (2008), Santos (2015), Minayo (2012) e Gomes, J. (2005). Os resultados parciais
da pesquisa – ainda em andamento – indicam em que medida o mercado de trabalho tem absorvido
os egressos das políticas de ações afirmativas, bem como contribuem com a avaliação das políticas de
ações afirmativas que se encontram em vigor nas universidades federais e institutos federais.

Palavras-chave: Ações Afirmativas. Egresso. Mercado de trabalho. Negros. Indígenas.

4 Ivanilde Jesus dos Santo Ferreira, Mestranda no Programa de Pós Graduação em Educação, na linha de
Pesquisa: Ensino e Formação de Educadores – EFE - UFSC. E-mail: nitocaferreira@yahoo.com.br
5 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora no Departamento de
Estudos Especializados em Educação - EED/CED/UFSC. E-mail: joana.passos@ufsc.br

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O presente artigo trata do estado do conhecimento, com foco no mapeamento dos trabalhos
já publicados sobre as políticas de Ações Afirmativas. Cabe aqui relatar que o estudo está atrelado
a outra pesquisa maior, que envolve pesquisadores de várias regiões do país e no sul do Brasil a
coordenação do projeto se encontra com a pesquisadora Joana Célia dos Passos1. Temos como
objetivo geral analisar o impacto das ações afirmativas na vida profissional e acadêmica (pós-
graduação) de estudantes negros egressos das políticas afirmativas das universidades públicas
federais brasileiras, verificando o impacto no mercado de trabalho.
Assim, é a partir da pesquisa nacional que a pesquisa de mestrado2 passa a ser almejada.
Aqui cabe relatar objetivo geral do estudo: compreender e analisar o impacto das ações afirmativas
na vida profissional dos estudantes egressos das ações afirmativas após as suas formaturas;
verificar se, ao terminarem suas graduações, esses formados estão trabalhando em suas carreiras
de formação ou não; analisar como tem sido o ingresso desses formados (negros e indígenas) no
mercado de trabalho. Os estudos preliminares apontam para uma série de trabalhos científicos
que não contemplam por completo o panorama da formação dos estudantes (negros e indígenas)
que ingressam na universidade pelas políticas de ações afirmativas. É preciso reunir e cruzar várias
pesquisa a fim de traçar alguns apontamentos, quanto ao mercado de trabalho que é o foco da
pesquisa.
Buscando compreender e analisar os estudos que tratam do mercado de trabalho para
a população de negros e indígenas, procuramos o que tem sido publicado sobre o assunto.
Entendemos que o mapeamento de pesquisa secundária pode apontar caminhos novos a ser
percorrido pelo pesquisador, como também dizer que se trata de uma pesquisa inédita com a
temática (no caso de Santa Catarina: Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC). Esta fase é
muito importante para a pesquisa e é denominada de “estado do conhecimento, estado da arte e
revisão de literatura”, conforme explicita Ferreira:
(...) de caráter bibliográfico, elas parecem trazer em comum o desafio de mapear e de
discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento,
tentando responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e privilegiados
em diferentes épocas e lugares, de que formas e em que condições têm sido produzidas
certas dissertações de mestrado, teses de doutorado, publicações em periódicos e
comunicações em anais de congressos e de seminários. (FERREIRA, 2002, p. 2)

O estado do conhecimento tem o caráter de buscar, analisar, sistematizar, explicar e verificar


os trabalhos encontrados que acrescentem algo à área pesquisada. Nesse caso, o pesquisador
deve estar atento a uma revisão precisa, além disso, deve ser demarcado um tempo de busca
nos bancos de dados. O estado do conhecimento tem um objetivo, nas palavras (Romanowski;

1 Titulo do projeto da coordenadora/orientadora: As políticas de ações afirmativas no ensino superior:


continuidade acadêmica e mercado de trabalho
2 Negros e indígenas: das políticas de ações afirmativas ao mercado de trabalho

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Teodora, 2006, p. 39):
Os objetivos favorecem compreender como se dá a produção do conhecimento em uma
determinada área de conhecimento em teses de doutorado, dissertações de mestrado,
artigos de periódicos e publicações. Essas análises possibilitam examinar as ênfases e
temas abordados nas pesquisas; os referenciais teóricos que subsidiaram as investigações;
a relação entre o pesquisador e a prática pedagógica; as sugestões e proposições
apresentadas pelos pesquisadores; as contribuições da pesquisa para mudança e
inovações da prática pedagógica; a contribuição dos professores/pesquisadores na
definição das tendências do campo de formação de professores.

Visitando os bancos de dados: o tecer da ciência

O objetivo do estado de conhecimento é organizar e dispor produções e referenciais teóricos


em que esses pesquisadores se ampararam, como também a área de publicada a pesquisada.
Com a seleção do assunto e o objeto da pesquisa a ser definido pelo pesquisador é necessário
delimitar descritores, marcadores e palavras chaves que devem ser lançadas nos bancos de
dados selecionados. Assim, entendemos que, por se tratar de uma pesquisa de mestrado,
foi deliberado um recorte temporal, sendo este, de 2008 a 2016. Os bancos de dados foram:
Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPED) Grupo de Trabalho (GT) 21, Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (IBTE), Scientific Eletronic Library Online (SCIELO). Os
descritores/marcadores utilizados nas buscas foram: ações afirmativas, mercado de trabalho,
ensino superior, negros, indígenas e egressos.
O primeiro levantamento foi desenvolvido no GT/21, que trata das relações étnicas racial na
ANPED. Ficou evidente que há uma ausência de pesquisa sobre a temática “egressos, mercado
de trabalho, negros e indígenas”. Quanto à temática “políticas de ações afirmativas”, encontra-se
uma quantidade relativa de pesquisa. Cabe aqui salientar que ANPED inicia com a temática das
relações racial em 2002. A partir desse ano o banco de dados passa a ter um GT/21 (grupo de
trabalho) que busca fomentar estudo sobre a temática. Em seguida apresento um quadro com a
quantidade de trabalhos encontrados.

Quadro I - Quantidade de trabalhos publicados na GT/21 da ANPED (2008-2017)


Anos das publicações Quantidades de Quantidades de pôster
Trabalhos encontrados encontrado
2009 9 Não houve publicação
2010 13 7 pôster
2011 30 3 pôster
2012 22 3 pôster
2013 13 4 pôster
2014 Não houve evento
2015 29 6 Pôster
Fonte: Elaborado pela autora

O segundo passo: apresento os trabalhos selecionados que, de alguma forma, vão contribuir

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

para o desenvolvimento do artigo e da dissertação de mestrado. No GT/21 há uma variedade de


trabalhos sobre as relações étnicos raciais – e buscamos no que se refere à temática específica
sobre os negros e indígenas no mercado de trabalho. Cabe aqui salientar que a busca tem o foco
do enlace entre ações afirmativas e mercado de trabalho, assim, quando foram utilizados os
descritores “Ações afirmativa, egressos, ensino superior, mercado de trabalho, negros e indígenas”
há uma escassez de pesquisa, sendo que essa falta se manifesta quando a temática pesquisada é
“egresso, mercado de trabalho, negros e indígenas”.
Nesse quadro apresento as pesquisas selecionadas, com ano, GT, título do trabalho, autor/
instituição e região. O número de pesquisas elencada foram três (3) trabalhos, os descritores foram
“ações afirmativas, ensino superior, egressos e mercado de trabalho”.

Quadro II - Quantidade de trabalhos selecionados na GT/21 da ANPED (2008-2017)


ANO G T / 2 1 TITULO DO TRABALHO A U T O R / REGIÃO
Descritores INSTITUIÇÃO
2010 G T / 2 1 PROCESSOS DE Michele Barcelos Rio grande
e g r e s s o s IN/EXCLUSÃO NA Doebber – UFRGS do sul
/ ensino UNIVERSIDADE: UM
s u p e r i o r / OLHAR SOBRE A
a ç õ e s PESQUISA ACADÊMICA
afirmativas/ E A QUESTÃO
cotas ÉTNICORRACIAL
2011 Gt/21 dos DO IDEÁRIO DO Michele Barcelos Rio grande
egressos / BRANQUEAMENTO AO Doebber – UFRGS do sul
a ç õ e s RECONHECIMENTO DA
a f i r m a t i v a s / NEGRITUDE: BIOPOLÍTICA,
e n s i n o EDUCAÇÃO E A QUESTÃO
superior/cotas RACIAL NO BRASIL
2015 GT/21 ações COMBATE À Márcio Mucedula CENTRO-
a f i r m a t i v a / DESIGUALDADE? ANÁLISE Aguiar – UFGD O E S T E /
c o t a s / SOCIOECONÔMICA E Débora Cristina SUDESTE
egressos / ÉTNICORACIAL DE UM Piotto – USP
e n s i n o PROGRAMA DE AÇÃO
superior AFIRMATIVA NO ENSINO
SUPERIOR
Fonte: Elaborado pela autora

A seleção dessas pesquisas se justifica por fornecer referências de extrema relevância


para o desenvolvimento da escrita do artigo, como também da pesquisa de mestrado que está
em andamento. Os trabalhos aqui selecionados trazem conceitos de extrema importância, sendo
aqui citados: “hibridismo” e o “pensamento ambíguo”. O mesmo trabalho nos contempla com uma
nota de rodapé do autor Homi Bhabha (1998), “defende a busca por um terceiro locus, um espaço
que daria a possibilidade de negociação entre diferentes grupos: nem tanto um, nem tanto o outro.
Um lugar de fronteira que permita o diálogo, a negociação”. Esse conceito nos permite olhar para

Página 436
as políticas de ações afirmativas e a questão racial do Brasil a fim de desvelar o que está escrito
nos discursos dos autores que são a favor e contra as políticas, mas também procurando ver os
discursos de branqueamento que está oculto nas políticas educacionais e nas pesquisas.
As pesquisas encontradas pontuam que há um discurso de “hibridismo” no que se refere
às políticas de ações afirmativas. A falta de compreensão das políticas coloca a mesma como
“cotas”, só que a política vai além das cotas. Também é visível o racismo e preconceito presente
nas instituições, mas quando essas medidas são voltadas para o social, nota-se que são facilmente
aceitas; já quando são voltadas para os negros, a sociedade não aceita3. Outro fato que favoreceu
a seleção dessas pesquisas é também pelo corpo teórico que esses autores utilizam que vem ao
encontro da dissertação de mestrado que se ancora com a mesma base teórica4.
O segundo banco de dados é a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (IBTE).
Procuro direcionar as buscas para “ações afirmativas, mercado de trabalho, ensino superior,
negros, indígenas e egressos”. Neste caso, não foi encontrado nenhum trabalho. Procurei reduzir
o filtro, colocando apenas “ações afirmativas, mercado de trabalho e egresso”, foram encontrados
sete trabalhos de diferentes áreas do conhecimento, conforme descrito abaixo.

Quadro I - Quantidade de trabalhos publicados no BDTD (2008-2017)


Ano Descritores Quantidade Quantidade
encontrada selecionada
2009 Ações afirmativas/mercado de 1 1
trabalho/egressos
2010 Ações afirmativas/mercado de 1 1
trabalho/egressos
2011 Ações afirmativas/mercado de 1 Nenhum
trabalho/egressos
2012 Ações afirmativas/mercado de 1 Nenhum
trabalho/egressos
2015 Ações afirmativas/mercado de 3 Nenhum
trabalho/egressos
Fonte: Elaborado pela autora

Com uma nova seleção, com os marcadores “ações afirmativas, ensino superior, mercado
de trabalho, egressos, negros e indígenas”, foram selecionados cinco trabalhos. Sendo que, dois
foram lidos na íntegra, pois entendo que estes fazem parte deste texto por entender que têm muito
a contribuir com a pesquisa. Conforme descrito abaixo:

Quadro II - Quantidade de trabalhos publicados no BDTD (2008-2017)


ANO DESCRITORES TITULO DO AUTOR/INSTITUIÇÃO REGIAO
TRABALHO

3 Ver textos :10 MITOS SOBRE AS COTAS


4 Ver, Munanga (1999, 2003), Gomes, N. (2005), Passos (2012, 2013), Hasenbalg (1992), Dávila (2006),
Osório (2008), Santos (2015), Minayo (2012) e Gomes, J. (2005).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

2010 Ações afirmativas/ “Os Egressos do Aparecida Das Graças Sudeste


mercado de Prouni e cotas Geraldo
trabalho/negros no mercado de U n i v e r s i d a d e
trabalho: uma Presbiteriana Mackenzie
inclusão possível?”
2009 Ações afirmativas/ Abolição das Dicenara dos Santos Sul
mercado de d e s i g u a l d a d e s : Sanger
trabalho/negros ações afirmativas Universidade Federal do
no ensino superior Rio Grande
2015 Ações afirmativas/ Acesso ao ensino Paula Macchione Saes Sudeste
mercado de superior e trajetórias
trabalho/negros dos egressos do Universidade Estadual
Prouni de Campinas
Fonte: Elaborado pela autora

Os trabalhos aqui apresentados tem uma interlocução com a pesquisa aqui apresentada,
sendo que os marcadores usados na busca foram “mercado de trabalho e egresso” – é o ponto
central da pesquisa que será desenvolvida, portanto, esses marcadores vão contemplar a
pesquisa5.
O estudo a ser analisado trata sobre “Os Egressos do Prouni e cotas no mercado de
trabalho: uma inclusão possível?” de Aparecida Das Graças Geraldo (2010), a autora faz um
levantamento do contexto histórico das universidades até a atualidade, como também apresenta
os avanços das políticas educacionais para o ensino superior. A mesma relata que, durante esse
período o ensino superior, passou por poucas mudanças, porém, significativas. O objetivo é analisar
a contribuição dos Programas de ações afirmativas, Prouni e cotas, para a inserção de egressos de
cursos de graduação no mercado de trabalho. A autora se ancora na abordagem qualitativa, com
a entrevista como instrumento de captação de dados.
Assim, foram identificados os motivos que moveram os entrevistados a procurarem cursar
uma universidade. O estudo relata que na década de 1990 houve um avanço na ampliação da
modalidade de ensino superior, buscando garantir o acesso, permanência e qualidade do ensino.
As políticas de ações afirmativas buscam promover a equidade do ensino superior.
Em 2005 é institucionalizado o Programa Universidade para Todos (PROUNI) assim, a
pesquisa vem contemplando que o programa o PROUNI, tornou se um “programa de ação
afirmativa” que fornece bolsas de estudos integrais ou parciais para alunos/as do ensino
superior em troca de renúncias ficais, a mesma coloca que o programa e considerado o
maior programa de ação afirmativa do ensino superior (GERALDO, 2010, p. 56)

Ainda complementa que o ENEM é essencial para ser contemplado com a política:
(...) participar do Exame Nacional do Ensino Médio no ano anterior e obter nota mínima
de 45 pontos, media estabelecida pelo Mec. O Enem, que desde a primeira versão do
PROUNI era facultativo, após a prolongação da Lei n 11.096/05 tornou-se obrigatória,
sendo considerado “o passaporte para a universidade”. Essa mudança fez aumentar o
interesse pelo ENEM. (GERALDO, 2010, p.58)

5 Ver: Negros e indígenas: das políticas de ações afirmativas ao mercado de trabalho

Página 438
Mas, o que pode ser observado na pesquisa é que, apesar do alargamento das políticas
educacionais, não significa que os negros e indígenas passem a ser o público alvo desse segmento
de política de ação afirmativa. Percebe-se que não há um consenso entre os teóricos sobre o
projeto Prouni, porém, fica evidente que o projeto contemplou em muito as universidades privadas.
Para dialogar a autora apresenta os seguintes autores: Munanga (2004, 2005, 2006);
Mockler (2008) Paixão (2008); Pertromilha (2003, 2000); Singer (2008). O preconceito racial
ainda é muito forte nas vozes dos entrevistados. GERALDO conclui: por mais que os entrevistados
não coloquem o fato de cursar o ensino superior como fundamental para o mercado de trabalho, e
verifique que a graduação não tenha possibilitado o acesso ao mercado de trabalho, os entrevistados
colocam que de alguma forma foi fundamental para o aumento de suas remunerações financeiras.
Neste caso, os sujeitos entrevistados da pesquisa foram do curso de pedagogia
contemplados pelo programa Prouni. Já os cotistas, todos destacaram que foi fundamental para
a carreira profissional ter cursado uma universidade, sendo que foi um fator fundamental para o
seu ingresso no mercado de trabalho, porém, todos relatam a questão do preconceito racial e o
racismo que ainda está muito impregnado na vida social e acadêmica.
Dicenara dos Santos Sanger (2009), na pesquisa esta intitulada “Abolição das
desigualdades: ações afirmativas no ensino superior”, teve o objetivo de entender, compreender,
analisar o papel das ações e/ou o sentido que tem para os egressos dessa Instituição de Ensino
Superior Privada, no Brasil, conveniada com o Centro Ecumênico de cultura Negra (CECUNE).
O foco principal são os egressos das políticas de ações afirmativas, porém, com o contexto na
permanência. Busca um diálogo com o movimento negro, relatando que este foi central na
implantação das políticas de ações afirmativas. Cabe ressaltar a escolha da autora em trabalhar
com o recorte das ações afirmativas no ensino superior privado, sendo que a mesma deixa esse
fato evidente, falando que essa foi a sua escolha.
A abordagem metodológica utilizada pela autora foi um estudo de caso na pesquisa
qualitativa. Segundo a SANGER (2009, p. 18) “o fenômeno estudado traz resultado que
possibilitam montar o caminho dos sentidos das ações afirmativas para os egressos do CECUNE/
IPA”. À medida que vou avançando na leitura do trabalho, a metodologia vai destacando a forma
como a mesma vai traçando seu próprio caminho, assim, ela descreve que realizou entrevista
com os coordenadores, ex-bolsistas, com entrevista semi estruturada, ela também entrevistou
professores de instituições de fora do país.
A questão das ações afirmativas colocou que ainda há muito que fazer quando olhamos
para a sociedade brasileira, onde a maioria da população é de negros e indígenas, há que se
perguntar: onde estão esses sujeitos invisibilizados na sociedade? Ancorada em Dircenara dos
Santos Sanger (2009), ressalta-se o binômio classe e raça e seus efeitos na sociedade de classe.
No mercado de trabalho ‘de ponta’ no país, bem como, nos casos de descriminação,
o binômio-classe e raça- é um dos fatores explicativos da abismal de desigualdade
racial entre negros e brancos e do racismo brasileiro. O racismo e a desigualdade racial,
hodiernamente recebeu novo fôlego (2009, p.145)

Página 439
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

As políticas de ações afirmativas buscam aproximar brancos e negros/indígenas quanto


a direitos sociais e também raciais. Assim, temos que entender as políticas como uma forma
reparação e redistribuição de direitos. Para compor a sua análise a pesquisadora busca dialogar
com o conceito de ação afirmativa de Gomes (2005), bem como apresenta uma lista de autores
que já vem discutido a temática (ações afirmativas), sendo eles: Vera Rosane Rodrigues de Oliveira;
Eliane Souza; Jorge Manoel Adão; Gregorio Grisa; Sales Augusto dos Santos, Ahyas Siss.
De acordo com Paula Macchione Saes (2015), em seu trabalho “Acesso ao ensino superior
e trajetórias dos egressos do Prouni”, buscou-se averiguar os efeitos das políticas de ações
afirmativas para os formados com bolsa do Prouni. A coleta de dados se deu por entrevista e
questionários, que buscam fazer um mapeamento das trajetórias dos egressos, a fim de averiguar
de que forma o ensino superior contribuiu para o processo de inserção no mercado de trabalho.
Conforme SAES (2015, p. 68) “(...) a realização do ensino superior foi motivada, entre outras
razões, pela perspectiva de obter uma melhor colocação no mercado de trabalho, e com isso
ocupar postos de trabalho com maiores remunerações.”.
Assim, as trajetórias dos egressos do Prouni demonstram que a conclusão do curso superior
lhes trouxe algumas facilidades para acessar ao mercado de trabalho. Sendo que a maioria dos
sujeitos entrevistados (as) na pesquisa já estavam inseridos no mercado de trabalho antes mesmo
do ingresso no curso superior.
Autora pondera que, apesar de o Prouni ter ampliado as oportunidades de inserção no
ensino superior, os recursos das políticas deveriam ser mais focalizados, pois ainda há desvio dos
recursos (bolsa) para sujeitos que não se encaixam ao aspecto sociais e econômico dos alunos
do programa. A permanência também é um dos entraves das políticas de ações afirmativas, pois
esses sujeitos têm que desenvolver duas atividades (trabalho e escolarização) as universidades6
ainda não garantem a esses sujeitos subsídio para contemplar os seus estudos com sucesso. As
estruturas e o acesso a bens culturais e sociais ainda são pouco acessados por essa parcela da
sociedade. Estudantes negros, indígenas e mulheres enfrentam mais dificuldade de acessar as
barreiras da estrutura da sociedade.
O terceiro banco dados é Scientific Eletronic Library Online (SCIELO), na tabela apresento
o mesmo recorte temporal e os mesmo descritores a quantidades de pesquisa encontradas, como
também selecionadas. Também apresento como se deram as primeiras pinceladas do assunto, o
cruzamento entre os dados encontrados, sendo que no caso dos marcadores negros e indígenas
foi realizada a busca mais de uma vez, com o descritor no plural e no singular.

Quadro III - Quantidade de trabalhos encontrado/selecionados no SCIELO (2008-2017)


Descritores Quantidade encontrada Quantidade selecionada
Ações afirmativas 39 11

6 Nilma limo Gomes (2009) e Jocélio Teles dos Santos (2009).

Página 440
Mercado de trabalho/ 59 6
egressos
Negro/s 935 17
Ensino superior 3.143 16
Indígena/s 3.428/2.573 7
“Negros e indígenas” 4 4
Fonte: Elaborado pela autora

No banco de dados SCIELO foi encontrada uma variedade de artigos dos mais diversos
campos do conhecimento, porém, no que tange à temática de negros e indígenas, o impacto das
políticas de ações afirmativas no mercado de trabalho com o recorte temporal de 2008 a 2017.
A busca foi desenvolvida da seguinte forma: o primeiro descritor submetido ao banco de dados
foi “ações afirmativas”. Foram encontrados 39 trabalhos sobre as políticas de ações afirmativas,
desse total foram selecionados 11 trabalhos; o passo seguinte a ser feito foi a leitura da pesquisa.
Esse procedimento foi adotado nas etapas seguintes. Já com o marcador “mercado de trabalho
e egresso” foram encontrados 59 trabalhos e desse montante restaram 6 seis. Quando adotado
o marcador “indígenas/indígena”, o banco de dados apresenta um número de artigos muito alto,
com uma variedade de trabalhos que contempla vários campos do conhecimento, sendo que para
o descritor no plural a quantidade encontrada foi de 3.428.
Quando o descritor foi colocado no singular, foram encontrados 2.573 trabalhos. Assim,
foi aplicada outra filtragem, com descritor “indígena”; aplicações da filtragem incidiram sobre os
“anos, idiomas, Brasil e área do conhecimento ciências humanas”. Há uma mudança na quantidade
de pesquisas encontradas, foram 276 para o descritor no plural, já com o descritor no singular o
número de pesquisas encontradas foi 209.
Cabe salientar que fiquei com a filtragem no plural, pois entendo que os trabalhos do singular
estão englobados no plural. O mesmo procedimento foi realizado com o descritor “negro/negros”
– foram localizados 935, sendo que neste caso há uma diferença significante quando o marcador
esta no singular, o número encontrado é de 2.182. Foi aplicado o mesmo procedimento já descrito
acima, sendo que do mesmo foram selecionados 17. Quando a busca foi “ensino superior” o banco
de dados apresenta 3.118. Foi aplicado o mesmo procedimento já citado acima; dessa filtragem
restaram apenas 691 e desse total foram selecionados 16.
Passei a efetuar a leitura dos artigos selecionados, as pesquisas selecionadas são de
grande relevância científica, mas a maioria dos dados encontrados não contribuía com a pesquisa7.
Para justificar a quantidade de trabalhos selecionados, tomo como base dois dos trabalhos
selecionados, com os descritores já citado a cima e com o mesmo recorte temporal.
Os artigos dos autores Vera-Lucia Felicetti, Alberto F. Cabrera e Marilia Costa-Morosini
(2013), intitulado “Aluno ProUni: impacto na instituição de educação superior e na sociedade”,
tem objetivo de analisar e apresentar o impacto gerado pelo novo perfil de estudantes ingressantes

7 Ver: Negros e indígenas: das políticas de ações afirmativas ao mercado de trabalho

Página 441
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

através do Prouni nas universidades privadas de ensino superior e o impacto provocado pelo
egresso Prouni na sociedade. A metodologia utilizada foi abordagem quantitativa e qualitativa,
para isso, os autores utilizam dados do IBGE, MEC, e outros programas do governo federal. Os
pesquisadores colocam que com a expansão do ensino superior as ditas minorias ponderam ter
acesso ao ensino superior e, consequentemente, uma melhor colocação no mercado de trabalho
– e, com isso, possibilita uma visibilidade de diminuição das desigualdades. Sendo que no caso da
pesquisa citada acima o amparo é social e não racial.
Já os pesquisadores Amélia Artes Arlene e Martinez Ricoldi (2015), com o trabalho intitulado
“Acesso de Negros no Ensino superior: O que mudou entre 2000 e 2010”, apresentam um
corpo teórico de extrema relevância para a pesquisa, ou seja, os pesquisa com esse aporte teórico
tem sua relevância para compor a base teórica da pesquisa que vos apresento. Os autores citados
na pesquisa tais como: Hasenbalg (1979); Silva e Hasenbalg (2000); Henriques (2001); Beltrão e
Teixeira (2004); Paixão (2010); Rosemberg e Madsen (2011), são autores que abordam a questão
das desigualdades raciais e sociais na sociedade brasileira, apontando que as políticas públicas
educacionais foram construídas para o fortalecimento das desigualdades entre negros e brancos.

Quadro III - Quantidade de trabalhos selecionados no SCIELO (2008-2017)


ANO DESCRITORES TITULO DO AUTOR/ REGIAO
TRABALHO INSTITUIÇÃO
2013 Ações afirmativas/ Aluno ProUni: impacto Vera-Lucia Felicetti, R i o
ensino superior na instituição de Alberto F. Cabrera grande
/mercado de educação superior e y Marilia Costa- Sul
trabalho/egressos na sociedade1 Morosini
2015 Ações afirmativas Acesso de Negros no Amélia Artes Arlene Sudeste
/ensino superior/ Ensino superior: O que Martinez Ricoldi
indígenas/ negros mudou entre 2000 e
2010
Fonte: Elaborado pela autora

APONTAMENTOS INICIAIS DE UMA POSSÍVEL CONCLUSÃO

Apesar do alargamento das políticas educacionais, isso não significa que os negros e
indígenas estejam plenamente contemplados no que diz respeito à justiça social almejada pelas
ações afirmativas.
O estado conhecimento – que ainda se encontra em desenvolvimento – salienta alguns
resultados apontando que ainda há muito que ser reivindicado do Estado para acesso dessas
populações, como também a permanência. O mesmo aponta que há pouca produção científica
quanto ao mercado de trabalho, no que toca as especificidades desses estudantes (negros e
indígenas: das políticas de ações afirmativas ao mercado de trabalho) ainda há poucos dados.
O primeiro banco de dados no qual foi desenvolvida a busca foi o da ANPED, mais
especificamente, o GT/21, que trata das relações raciais. O mesmo apresenta uma escassez de

Página 442
pesquisas sobre os negros e indígenas no mercado de trabalho.
No próximo banco de dados, IBTE, foram localizadas três pesquisas sobre o assunto e que
vão contribuir muito com a pesquisa aqui esboçada, mesmo assim, acreditamos que ainda há
muito pouca pesquisa sobre o assunto. Entendemos que para a maior avaliação das políticas se
faz necessária uma pesquisa sobre essa população. Sendo que as três apresentadas corroboram
com a temática negro no mercado de trabalho; quanto aos indígenas, não foram encontrados
estudos que relatam sobre sujeitos egressos no mercado de trabalho8.
Os estudos, quase que na sua totalidade, abordam o programa Prouni. O programa é
financiado pelo governo federal, é um sistema de subsídio de bolsa para estudantes de baixa renda
visando permitir cursar uma universidade na esfera privada. Quanto ao sistema de cotas para as
universidades públicas, até o momento não foi localizado nenhum estudo.
Outro fator que chama atenção foi a permanência desses estudantes: a forma que a
instituição e o Estado vem lidando com isso deixa muito a desejar, pois compreendemos que a
permanência no âmbito acadêmico vai além do amparo sócio econômico, afinal, engloba ensino
e aprendizagem e psicológico. É preciso amparar esse estudante quanto às questões de ensino,
pesquisa, extensão e viagens para apresentação de estudos, como também fornecer a eles o
recinto onde possam se fortalecer politicamente e profissionalmente.
O Prouni deve ser analisado em detalhes no que diz respeito à mudança de vida buscada
pelos estudantes com bolsa Prouni. Permanência é um ponto crítico (programa) para negros e
indígenas, podendo alterar os rumos dos futuros traçados para a vida profissional. É preciso seguir
tomando as políticas de ações afirmativas como uma forma de reparação e redistribuição de
direitos.
O último banco de dados SCIELO, ainda se encontra em desenvolvimento, pois até o
fechamento do artigo a pesquisadora ainda não tinha finalizado a leitura dos trabalhos. Foi
encontrada uma variedade de artigos, dos mais diversos campos do conhecimento, porém, sobre
negros no mercado de trabalho há apenas um trabalho; quanto aos indígenas não foi encontrado
nada até o momento. Sobre o impacto das políticas de ações afirmativas no mercado de trabalho
ainda é preciso investigar. No tocante às políticas de ações afirmativas, verifica-se que ainda há
necessidade de pesquisar, pois as políticas são recentes, como também as primeiras levas de
formandos estão se formando agora.

REFERÊNCIAS

DOEBBER–UFRGS, Michele Barcelos.  Processos de in/exclusão na universidade:  um olhar


sobre a pesquisa acadêmica e a questão étnicorracial. Disponível em: <http://33reuniao.anped.

8 Sendo que aqui estamos nos referido as indígenas que engessaram nas universidades pelas politicas de
ações afirmativas.

Página 443
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

org.br/33encontro/app/webroot/files/file/Trabalhos%20em%20PDF/GT21-6655--Int.pdf>.
Acesso em: 36 de maio de 2017.
 
DOEBBER, Michele Barcelos. Do ideário do branqueamento ao reconhecimento da negritude:
biopolítica, educação e questão racial no Brasil. Relações étnico-raciais, educação e produção
do conhecimento, v. 10, p. 133. Disponível em: <  https://andreashofbauer.files.wordpress.
com/2011/08/branqueamento-e-democracia-racial_finalc3adssima_2011.pdf >. Acesso em: 20
de maio de 2017.
 
HERINGER, Rosana; FERREIRA, Renato. Análise das principais políticas de inclusão de estudantes
negros no ensino superior no Brasil no período 2001-2008.  Observatório da Jurisdição
Constitucional, v. 1, n. 1, 2011. Disponível em: <  http://www.anped.org.br/sites/default/files/
trabalho-gt21-4194.pdf >. Acesso em: 02 de maio de 2017.

FERREIRA, N. S. A.. As Pesquisas Denominadas “Estado Da Arte”. Educação & Sociedade, ano
XXIII, n. 79, Agosto/2002.

GOMES, N. L.. Para além das bolsas acadêmicas: Ações afirmativas e o desafio da permanência
dos (as) Jovens negros (as) na universidade pública. In: SILVERIO, Valter Roberto; MOEHLECKE
Sabrina (Org). Ações Afirmativas nas políticas educacionais: o contexto pós-Durban. São Carlos:
EDUFSCar, 2009b, 197-211.

GERALDO, Aparecida das Graças et al.  Os egressos do PROUNI e cotas no mercado de


trabalho: uma inclusão possível?. 2010. Disponível em: < http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/
tede/1790>. Acesso em:
 
SANGER, Dircenara dos Santos. Abolição das desigualdades: ações afirmativas no ensino
superior. 2009. Disponível em: < http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/24195>. Acesso em:
15 de maio de 2017.
 
SAES, Paula Macchione et al. Acesso ao ensino superior e trajetórias dos egressos do Prouni.
2015. Disponível em: < http://reposip.unicamp.br/handle/REPOSIP/254124>. Acesso em: 02 de
junho de 2017.

SANTOS, J. T.. A experiência de ações afirmativas na UFBA. In: SILVERIO, Valter Roberto;
MOEHLECKE Sabrina (Org). Ações Afirmativas nas políticas educacionais: o contexto pós-
Durban. São Carlos: EDUFSCar, 2009, p. 223-227.

Página 444
NEGROS/AS E INDÍGENAS EGRESSOS/AS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA
PÓS GRADUAÇÃO: INICIANDO UM PERCURSO DE PESQUISA.

PASSOS, Joana Célia dos. (UFSC)


FERREIRA, Emiko Liz Pessoa. (UFSC)
emiko9179@gmail.com

Resumo

O presente trabalho apresenta o estado da arte sobre a presença de estudantes indígenas e negros/as
egressos/as das ações afirmativas em programas de pós-graduação. Este integra uma pesquisa mais
ampla que pretende analisar o impacto das ações afirmativas na vida acadêmica (pós-graduação) de
estudantes negros(as) e indígenas egressos das políticas de ações afirmativas. Neste sentido, busca-
se investigar os índices de inserção de estudantes negros e indígenas egressos das políticas de ações
afirmativas nos programas de pós-graduação, os programas de pós-graduação que oferecem a
entrada por cotas e a legislação existente sobre cotas na pós-graduação. Para isso, foi realizada análise
documental da legislação, editais de seleção de programas de pós-graduação e análise de pesquisas
sobre egressos/as de ações afirmativas. Como referencial teórico tem se utilizado: Nilma, Kabengele,
Passos, Santos, etc.......

Palavras-chave: Negro, indígena, egresso, ações afirmativas, pós-graduação.

Página 445
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O presente trabalho apresenta o estado de conhecimento realizado para dar início a pesquisa
de dissertação sobre egressos de ações afirmativas negros(as) e indígenas na pós graduação. A
pesquisa tem como pretensão verificar o que está sendo produzido sobre os estudantes negros e
indígenas egressos das políticas de ações afirmativas no acesso e trajetória nos programas de pós-
graduação. Ao final pretende-se utilizar os dados da pesquisa como fonte de maior conhecimento
e melhor argumentação para a dissertação do mestrado.
Apesar de não serem categorias fáceis de definir, negro e indígena possuem um conceito
em nossa visão, que passamos a discorrer, iniciando pelo conceito de negro que bem coloca
MUNANGA (2004, p.52)

num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição
de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de branqueamento e
não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo
doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etno-semântico,
político e ideológico, mas não um conteúdo biológico. (grifo meu)

Indígena consideremos aqueles que se enquadram nos critérios adotados na Convenção


169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº
5.051/2004, e no Estatuto do Índio (Lei 6.001/73).
A Convenção 169 da OIT, em seu artigo 1º afirma que:
Art. 1 -. A presente convenção aplica-se

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e


econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam
regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação
especial;

b) povos em países independentes considerados indígenas pelo fato de descenderem


de populações que viviam no país ou região geográfica na qual o país estava
inserido no momento da sua conquista ou colonização ou do estabelecimento
de suas fronteiras atuais e que, independente de sua condição jurídica, mantêm
algumas de suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas ou
todas elas. (grifo meu)

A partir do estado de conhecimento, pretendemos ter subsídios suficientes para formar o


norte para pesquisa de dissertação.

Página 446
1 Analisando dados

Para organizar as leituras e iniciar meu trabalho de dissertação de mestrado imprescindível


foi fazer o estado do conhecimento com o fim de mapear os trabalhos já realizados sobre meu
tema. O estado do conhecimento me proporcionou maior segurança sobre os autores que devo
pesquisar e ideias de como proceder metodologicamente a pesquisa, além de perceber a falta
significativa de estudos sobre o assunto.
O estado do conhecimento foi realizado junto a ANPED Nacional, BDTD-Ibict e SIELO, com
marco temporal entre os anos de 2008 até 2016.
Os descritores utilizados para todas as buscas foram: política(s) ação(ões) afirmativa(s);
egresso, étnico-racial(ais), pós graduação, negro(s) e indígena(s).
Na ANPED Nacional, optei por pesquisar os trabalhos do GT 08 (formação de professores)
e 21 (educação e relações étnico-raciais), nos anos de 2008 (reunião 31) a 2015 (reunião 37), não
sendo encontrado nenhum trabalho no GT 08 e, sendo encontrados 11(onze) trabalhos no GT 21
sobre ações afirmativas, dentre eles 09 (nove) com foco no ensino superior e, nenhum sobre pós-
graduação com a curiosidade de não haver nenhuma produção no ano de 2010. Optei em utilizar
os trabalhos encontrados para análise da bibliografia, tendo em vista a escassez de pesquisas
sobre o assunto.
Percebi que apesar de existir trabalhos que discutam as políticas de ações afirmativas e a
igualdade/desigualdades, não existem trabalhos que pesquisem os estudantes negros e indígenas
egressos das políticas de ações afirmativas na pós-graduação. Mesmo assim considerei os
trabalhos encontrados importantes pelas fontes bibliográficas neles contidas.
Com isso percebo que a pesquisa proposta tem uma proximidade no que diz respeito a
alguns dos conceitos tradados nos trabalhos mapeados, o que me proporciona colecioná-los
e aprofundá-los. Por outro lado, o mapeamento deixa claro a distância da pesquisa pretendida,
posto que o assunto principal, que é foco daqueles trabalhos, trata-se exclusivamente das ações
afirmativas sem ênfase nos egressos na pós graduação. A intersecção com os trabalhos mapeados
e a pesquisa proposta vai além da discussão sobre as políticas de ações afirmativas e ao racismo,
unindo-se pela metodologia desejada com a abordagem se for qualitativa.
O Ministério da Justiça e Cidadania, através da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial- SEPIR, definiu ação afirmativa como sendo:
Ações afirmativas são políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada
com o objetivo de corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade, acumuladas ao
longo de anos.Uma ação afirmativa busca oferecer igualdade de oportunidades a todos.
As ações afirmativas podem ser de três tipos: com o objetivo de reverter a representação
negativa dos negros; para promover igualdade de oportunidades; e para combater o
preconceito e o racismo.1

Vale aqui lembrar que apesar de já ter sido levantado a possibilidade de inconstitucionalidade

1 http://www.seppir.gov.br/assuntos/o-que-sao-acoes-afirmativas. acesso em 14/01/2017

Página 447
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

das políticas públicas de ações afirmativas, que genericamente consideradas, segundo


(ALEXANDRINO, 2015)
“traduzem-se estas em políticas públicas que implicam tratamento diferenciado em favor
de minorias, sempre com o objetivo de compensar desvantagens que os integrantes
de tais grupos enfrentam - pela sua maior vulnerabilidade, decorrente de preconceito e
discriminação de que eles são vítimas - nas relações sociais em variadas áreas.

Na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, as políticas de ações afirmativas foram


implementadas no ano de 2008, através do Conselho Universitário, sendo alterado os percentuais
e formas de oferecimento de vagas com o passar dos anos, tendo atualmente apenas as cotas
chamada de cotas sociais. Daí a opção de realizar o estado de conhecimento a partir do ano de
2008.
Fica claro que para entendimento da necessidade das políticas de ações afirmativas se faz
necessário entender o conceito de igualdade formal e material.
Para Guilherme Machado Dray o conceito de igualdade formal vem do princípio
constitucional onde,
”o princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro,
onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver. Os
privilégios, em sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de
espaços e de zonas delimitadas, susceptíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa
medida intoleráveis”.

Assim, segundo esse conceito de igualdade formal a lei deve ser igual para todos, sem
distinções de qualquer espécie, conceito que acaba por sustentar juridicamente o Estado liberal
burguês.
Já o conceito de igualdade material seria: uma igualdade real, existencial, ou seja, algo
absoluto, total, que respeite as características culturais, religiosas, emocionais, de cada indivíduo.
Assim na igualdade material busca-se por finalidade a equiparação entre as pessoas em todos os
âmbitos. O que me parece hipotético na conjuntura social em que hoje vivemos que prima pela
desigualdade material.
A Carta Magna brasileira aborda tanto a igualdade formal quanto a material. No caput do
seu artigo 5º quando menciona: “todos são iguais perante a lei”, chancela a igualdade formal
na qual a lei deve ser aplicada a todos sem qualquer distinção. No art.3º da CF, encontramos
a igualdade material quando dispõe a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como
redução das desigualdades sociais e regionais, e também o inciso IV do mesmo artigo que tem
como objetivo “promover o bem de todos sem preconceitos, de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.”
Ao iniciar a pesquisa do estado de conhecimento na Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações, percebi que, diferente da ANPED, ela proporciona a busca de diversas formas, aqui
optei em utilizar a busca por “assunto”, com exceção dos descritores “pós-graduação” e “negros”
que precisei limitar a pesquisa na forma de busca por “título” tendo em vista aparecer em uma
quantidade muito grande de trabalhos.

Página 448
O primeiro descritor “pós-graduação” aparecia em quase a totalidade dos textos por
assunto, motivo que me levou a buscar pelo título, juntamente com outros descritores “egresso”,
onde localizei 21 trabalhos dentro do marco temporal escolhido (2018 a 2016) sendo um tratando
dos “egressos”, porém não cotista e apenas dois trabalhos sobre “relações raciais” que todavia
não possuíam intersecção com minha pesquisa
Com o descritor “negro(s)” encontrei 849 trabalhos sendo apenas 31 sobre negros no
ensino superior, e nenhum sobre negros egressos na pós-graduação;
Empregando o descritor “ações afirmativas”, localizei 127 trabalhos, dentre os quais 21
relacionados com o ensino superior e nenhum com a pós-graduação.
Utilizando apenas o descritor “egresso(s)” foram localizados 114 trabalhos, sendo apenas
um tratando de egressos de ações afirmativas e nenhum sobre pós graduação, nota-se portanto
a ausência total de pesquisa para egressos cotista na pós- graduação.
Com o descritor indígena, localizei 981 trabalhos, sendo 7 relacionados com ações
afirmativas, 2 com pós graduação e 1 com egressos, entretanto nenhum sobre indígenas cotistas
egressos na pós graduação, percebe-se que há pesquisas relacionadas a educação indígena,
entretanto nos trabalhos sobre a educação superior somente dois versavam sobre pós graduação,
mas não sobre egresso de ações afirmativas.
Com o descritor “cotas”, foram encontrados 177 trabalhos, diluídos nos diversos tipos de
cotas (social, deficientes, gênero) sendo que nenhum dos trabalhos encontrados falava das cotas
para negros e indígenas na pós graduação. Apesar desse descritor não ser um dos citados como
escolhido para pesquisa nos bancos de dados, acabei por realizar a pesquisa nesse banco com
ele por entender que a ausência de trabalhos sobre ações afirmativas na pós graduação poderia
ocorrer por eu estar utilizando o descritor errado, mas mesmo assim nada encontrei.

MAPEAMENTO BDTD

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

(2008-2016)

DESCRITOR TRABALHOS ASSUNTO

PÓS-GRADUAÇÃO 27 2 - ETNICO RACIAL


1 - EGRESSO NÃO COTISTA

NEGRO (S) 849 31 – ENSINO SUPERIOR


0- PÓS GRADUAÇÃO

AÇÕES AFIRMATIVAS 127 0 – EGRESSO COTISTA

EGRESSO 114 0 – AÇÕES AFIRMATIVAS

7 – AÇÕES AFIRMATIVAS
INDÍGENAS 981 2- PÓS GRADUÇÃO
1- EGRESSO
0 – EGRESSO COTISTA

Na pesquisa realizado junto a Scielo, com a categoria “egresso”, foram localizados 79


trabalhos onde 5 (cinco) deles tratava de egressos na pós graduação mas nenhum sobre egressos
cotistas na pós graduação.
Na busca com o marcador “ações afirmativas” foram encontrados 98 trabalhos, onde são
17 sobre ensino superior, 1 sobre egresso, porém nenhum sobre egressos na pós graduação. Passei
novamente a utilizar o descritor “cotas” onde foram localizados 256 trabalhos,sendo 24 deles
sobre ensino superior, 1 sobre pós-graduação, porém nenhum sobre egressos na pós graduação.
Na utilização do descritor “pós-graduação”, optei em utilizar a busca por títulos e foram
encontrados 556 trabalhos, dos quais apenas 5 sobre egressos, um sobre cotas e nenhum sobre
egressos de ações afirmativas.
Com o descritor “negro(s)”, onde a busca foi realizada apenas pelos títulos, localizei 667
trabalhos, sendo que dois trabalhos tratavam de pós-graduação, nenhum sobre egresso e nenhum
sobre ações afirmativas.
E, finalizando o estado de conhecimento usei o marcador “indígena(s)” onde precisei
limitar a busca em título e localizei 841 trabalhos, dois na pós-graduação e nenhum sobre egresso
e ações afirmativas.

MAPEAMENTO SCIELO

Página 450
DESCRITOR TRABALHOS ASSUNTOS

PÓS-GRADUAÇÃO 556 5 – EGRESSOS


1 - COTAS
0 – AÇÕES AFIRMATIVAS

NEGRO 667 2- PÓS-GRADUAÇÃO


0 – EGRESSO
0-AÇÕES AFIRMATIVAS

INDÍGENA 841 2 – PÓS-GRADUÇÃO


0 – EGRESSO
0 – AÇÕES AFIRMATIVAS

EGRESSO 79 5 – PÓS-GRADUAÇÃO
0 - COTISTAS
17 - ENSINO SUPERIOR
AÇÕES AFIRMATIVAS 98 1 – EGRESSO
0 – PÓS-GRADUAÇÃO

Assim passamos a analisar o resultado do mapeamento.

2. Da Ausência de estudo

Diante da total ausência em pesquisas que tratem do tema da trajetória dos estudantes
cotistas na pós-graduação, passei a analisar os motivos desta ausência que apontaram para dois
fatores iniciais: o fato de ser recente as conclusões de curso (formaturas) dos alunos cotista em
cursos de graduação e o fato de não existir cotas para pós graduação em praticamente nenhum
programa de pós graduação do país, com pontuais exceções.
Percebi que apesar de existir trabalhos que discutam as políticas de ações afirmativas e
pós-graduação, não existem trabalhos que pesquisem os estudantes negros e indígenas egressos
das políticas de ações afirmativas na pós-graduação. Mesmo assim considerei os trabalhos
encontrados importantes pelas fontes bibliográficas neles contidas
Com isso percebo que a pesquisa proposta tem uma proximidade no que diz respeito
alguns dos conceitos tradados nos trabalhos mapeados, o que me proporciona colecioná-los
e aprofundá-los. Por outro lado, o mapeamento deixa claro a distância da pesquisa pretendida,
posto que o assunto principal, que é foco daqueles trabalhos, trata-se exclusivamente das ações
afirmativas sem ênfase nos egressos na pós graduação. A intersecção com os trabalhos mapeados
e a pesquisa proposta vai além da discussão sobre as políticas de ações afirmativas e o racismo,
unindo-se pela metodologia desejada com a abordagem se for qualitativa.
Assim, verifico que há necessidade de se começar a pensar formas de acesso aos
estudantes negros e indígenas na pós graduação, para que os mesmos possam continuar suas

Página 451
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

trajetórias acadêmicas dentro das universidades brasileiras.


Segundo (CARVALHO, 2011)

Estamos atualmente mergulhados no debate da ação afirmativa – que poderia ser definida
como o ato consciente e decidido de reconhecer injustiças históricas cometidas contra
os negros e apoiá-los explicitamente na direção do crescimento pessoal e profissional
através de oportunidades diferenciadas para que recuperem os séculos de exploração e
tratamento desigual a que foram submetidos no Brasil.

A existência do racismo no Brasil é estrutural e no caso das universidades passa pela


dissimulação das intenções e é marcado pelo autocontrole como explica o autor acima citado.
Em 2004 a UNB (universidade de Brasília) foi a primeira universidade brasileira a implementar
cotas para negros, sendo que o governo sancionou lei de cotas nas universidades apenas em 2012
(Lei nº12.711/2012) para reserva de vagas para alunos oriundos de escolas públicas, reservando
vagas para índios e negros. A lei dispõe que o número de vagas reservadas para índios, negros e
pardos deve ser proporcional a quantidade de pessoas de certa etnia que reside no Estado onde
está situado o campus da universidade.
Segundo dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado
em 2010, a população brasileira soma 190.755.799 milhões de pessoas, desse total 817.963 mil
são indígenas, representando 305 diferentes etnias. E 82 milhões são negros (pretos/pardos).
Ocorre que essa realidade não se reflete nas universidades sendo que a grande maioria é branca
e na pós graduação essa realidade é ainda mais evidente.
O Mapa da cor do ensino superior brasileiro demonstra que:

As taxas de participação no interior de cada grupo de cor mostram que 1 entre cada 10
dos brancos de 25 e mais anos de idade (9,9%), aparecem com o terceiro grau concluído,
enquanto que entre os pretos, pardos ou indígenas, apenas 1 de cada 50 (em torno de
2,2%), alcançam o mesmo nível, revelando uma profunda assimetria entre um grupo racial
privilegiado e os outros discriminados de forma negativa

O mesmo estudo conclui que quando falamos em pós-graduação (mestrado ou doutorado)


a discrepância aumenta e verifica-se uma concentração ainda maior de brancos: 84% das pessoas
na pós-graduação.
Diante da realidade existente entendo que a falta total de pesquisas sobre a trajetória do
aluno egresso cotista deve ter maior atenção por parte de pesquisadores com intuito de traçarmos
melhores condições de reivindicar o acesso na pós graduação e fundamentar os motivos da
necessidade de ações afirmativas na pós-graduação.

Página 452
Conclusão

O estado do conhecimento realizado sobre as pesquisas existentes sobre a presença


de estudantes indígenas e negros/as egressos/as das ações afirmativas em programas de pós-
graduação deu conta de averiguar a ausência de pesquisa sobre o tema, além de servir para nortear
parte da bibliografia e metodologia da pesquisa de mestrado proposta.
As políticas de ações afirmativas no âmbito universitário (ensino superior), apesar de
recentes são foco de diversos trabalhos pesquisados, no entanto inexiste pesquisa que alcance a
trajetória dos estudantes egressos cotistas na pós-graduação.
O Mapa da cor no ensino superior brasileiro mostra que os índices de inserção de estudantes
negros e indígenas na pós-graduação é extremamente pequeno, mas, nada fala sobre os egressos
das políticas de ações afirmativas nos programas de pós-graduação.
Por isso a importância de estudar os programas de pós-graduação que oferecem a entrada
por cotas e a legislação existente sobre cotas na pós-graduação, bem como entender o porquê
dos índices de acesso dos negros e indígenas apresentados nas pesquisas serem ainda tão baixo.
A realidade pesquisada mostra quão relevante é a produção científica nessa área para que
haja incentivo a implementação de políticas públicas de acesso e permanência dos estudantes
negros e indígenas nos programas de mestrado e doutorado das universidades brasileiras.

Referências

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de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO: 2015.

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1988. 16ª edição, São Paulo: Saraiva, 1997.

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Página 453
Negras e negros no Sul do Brasil
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Página 454
QUANDO TODO MUNDO QUER SER PARDO, O QUE FAZER? O CONTROLE
SOCIAL AO ACESSO DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NAS
UNIVERSIDADES FEDERAIS

BARCELLOS, Cátia Simone Ribeiro (SMED/UFPEL)


csrb@terra.com.br

ÁVILA, Carla Silva de (CRE/UCPEL)


sociocarla@gmail.com

Resumo

As Políticas de Ações Afirmativas e, especificamente, a Política de Cotas para ingresso de negras/


os (somatório de pretas/os e pardas/os) e indígenas dentro das Universidades Públicas do Brasil,
têm sido alvo de muitas discussões sobre quem são os sujeitos de direitos dessa política, pois um
expressivo número de candidatas/os foram consideradas/os fraudadoras/es pelos coletivos negras/
os. O presente trabalho trata do relato de experiência vivido por duas professoras que fazem parte da
Comissão de Controle na Identificação do Componente Étnico-Racial (CCICE), visando à apreciação
da autodeclaração prestada pelas/os candidatas/os que se autodeclaram negras/os ou indígenas nos
processos seletivos na Universidade Federal de Pelotas, objetivando descrever o controle ao acesso
dessas políticas que almejam a “reparação social” e a “justiça distributiva”. A metodologia utilizada está
alicerçada na composição de bancas constituídas por diferentes membros, como: representantes da
Universidade, da Ordem dos Advogados do Brasil, da Prefeitura Municipal de Pelotas e da sociedade
civil, que se utilizam de suas vivências no Movimento Negro, dos seus estudos e, ainda, da sua própria
vida para terem autonomia e legitimidade ao longo do processo, para proceder o controle social da
política, impedindo que pessoas não-negras acessem a vaga. O referencial teórico adotado baseia-se
nas leis que regem tais políticas, nos Estudos Culturais e Pós Abolicionistas, bem como em estudos sobre
a Educação e Relações Étnico-Raciais, os quais demonstram que o racismo existente na sociedade
brasileira é de característica fenotípica, e não por ascendência. Já temos resultados parciais, na medida
em que observamos que o processo tem sido pedagógico, no sentido de garantir um grande contingente
de negras/os acessando as vagas e menos brancas/os que, conscientes ou não, tentam fraudar a lei.
Pode-se observar, também, a necessidade de levar mais informações às escolas, principalmente das
periferias, para que cada vez mais pretas/os, pardas/os e indígenas ingressem na Universidade.

Palavras-chave: Políticas de Ações Afirmativas, Política de Cotas, Negras/os e Indígenas

Página 455
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O presente artigo trata sobre o processo de implementação das Políticas de Ações


Afirmativas e, mais especificamente, sobre a Política de Cotas para ingresso de estudantes
negras, negros e indígenas nas Universidades Públicas do Brasil. Enfoca-se a discussão sobre
a criação e o trabalho da Comissão de Controle na Identificação do Componente Étnico-Racial
da Universidade Federal de Pelotas (CCICE), visando à apreciação da autodeclaração prestada
pelas/os candidatas/os que se autodeclaram negras/os ou indígenas nos processos seletivos para
ingresso na universidade, bem como a problematização das categorias raça e mestiço evocadas
pelas/os candidatas/os no processo de justificativa das escolhas das modalidades referentes às
cotas raciais.
A Comissão de Controle na Identificação do Componente Étnico-Racial (CCICE) é
constituída no âmbito da Coordenação de Ações Afirmativas e Políticas Estudantis (CAPE) e do
Núcleo de Ações Afirmativas e Diversidade (NUAAD), da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
É composta por representantes da Universidade, tais como: docentes, técnicos administrativas/
os e estudantes, por representantes da Ordem dos Advogados do Brasil no município, por
representantes da Prefeitura Municipal de Pelotas com membros do Conselho do Negro da cidade
e de professoras, além de representantes da sociedade civil. Todas as pessoas estão envolvidas
de alguma forma com a temática, seja através da luta no Movimento Social, na sua formação
acadêmica ou nas suas vivências cotidianas.
Nosso objetivo com o artigo é mostrar como ocorre a metodologia de trabalho da CCICE/
UFPEL e os resultados alcançados, bem como servir de exemplo e trocar experiências com outras
Universidades do país que estejam ingressando nesse processo. Para tanto, apresentaremos um
capítulo sobre as Políticas de Ações Afirmativas e a Política de Cotas, outro em que trataremos
especificamente sobre o trabalho da comissão e o ser pardo, além de problematizar as categorias
raça e mestiçagem no cenário das questões raciais na sociedade brasileira e, então, as
considerações finais.

1- As políticas de ações afirmativas nas universidades federais – as cotas na UFPEL

Políticas educacionais oficiais vêm sendo construídas, desde as décadas finais do


século XX, em meio a processos conflituosos e de resistências a partir da sociedade civil e dos
movimentos sociais organizados. Existe uma forte pressão de grupos considerados minoritários e/
ou marginalizados pela ocupação de espaços e pelo exercício de direitos civis.
As Políticas de Ações Afirmativas nas Universidades Federais têm o intuito de minimizar as
desigualdades sociais e raciais no Brasil, para as quais a Política de Cotas é fundamental. Ela surge
como uma forma de recompensa para com o povo negro que foi, durante boa parte da história,
excluído dos processos educativos. A Política de Cotas visa oferecer um tratamento diferenciado

Página 456
para compensar as desvantagens sofridas por essa população vítima de racismo e de outras
formas de discriminação. (MUNANGA, 2004)
A Lei das Cotas ( Lei 12.711/12) foi sancionada no ano de 2012, pelo então Presidente
da República, senhor Luís Inácio Lula da Silva, e dizia que a partir daquele momento todas as
instituições federais de ensino superior deveriam reservar pelo menos 50% das suas vagas, em
todos os cursos e turnos, para estudantes oriundos de escolas públicas no Ensino Médio, sendo
dividida entre estudantes com renda superior e inferior a 1,5 salário mínimo per capta, negros/as
(somatório de pretos/as e pardos/as) e indígenas. Porém, a Universidade Federal de Pelotas, da
qual tratamos no presente artigo, institui as cotas somente a partir do ano 2013 e de forma muito
gradual.
Na UFPEL, a discussão para implementação da política de cotas se deu muito pela
pressão do movimento social local e pelo Fórum #COTASSIM, evento realizado em novembro de
2012, organizado pela união de vários segmentos da sociedade civil, de estudantes da própria
universidade e do movimento negro da cidade. Depois do fórum, foram encaminhadas propostas
ao Conselho Universitário da UFPEL (Consun/UFPEL) e, a partir de então, a imediata aplicação da
lei com reserva de vagas para o 1º semestre do ano de 2013, oficializada a partir da Resolução nº
6 do Consun/UFPEL em 13 de novembro de 2012.
Para dar conta dessa entrada de estudantes cotistas e de toda demanda que surge, o
Consun/UFPEL, no ano de 2014, criou o Núcleo de Ações Afirmativas e Diversidade (NUAAD),
que está ligado à Coordenação de Ações Afirmativas e Políticas Estudantis (CAPE), alocada
junto a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE). Todas essas repartições são responsáveis
pela elaboração, execução e acompanhamento da Política de Cotas na UFPEL e a tudo que a ela
compete.
Na CAPE e NUAAD, com vistas à apreciação da autodeclaração prestadas pelos candidatos
que se autodeclararem negras/os ou indígenas nos processos seletivos da UFPEL, foi constituída
a Comissão de Controle na Identificação do Componente Étnico-Racial (CCICE), através da
Portaria Nº 316, de 03 de fevereiro de 2017. A CCICE é composta por membros internos da UFPEL
- servidoras/es, professoras/es e estudantes-, membros externos da UFPEL- representantes
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – subsecção Pelotas-, representantes da Prefeitura
Municipal de Pelotas e representantes da sociedade civil. Essa comissão torna-se importante na
medida em que a autodeclaração precisa ser verificada, observada a veracidade do pertencimento
racial para ingresso pela reserva de cotas para pretas/os, pardas/os e indígenas. Essa verificação é
sustentada a partir do fenótipo, baseada na compreensão de que o racismo no Brasil é direcionado
às pessoas com traços negroides, como a pele escura, por exemplo. (RIBEIRO, 2006; Normativa
03 de 1º de Agosto de 2016).
A política de cotas raciais para população negra é fundamental no que se refere a duas
justificativas, sendo elas a reparação social e a justiça distributiva. A primeira, baseada em reparar
as consequências das políticas eugenistas, das quais sofremos ainda hoje e, a segunda, remete
para que negras/os ocupem espaços de poder de direito.

Página 457
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

No
trabalho da comissão, observamos muitas pessoas se autodeclarando pardas e,
portanto, considerarmos ser necessário encaminhar um entendimento sobre o ser “pardo” no
sentido de cor e de raça-sociológica (pertencimento racial), compreendendo o tipo de racismo
existente na sociedade brasileira, que vai além das relações de parentesco e consanguinidade,
nossa discriminação é de cor (MAGGIE, 1996; GUIMARÃES,1996).

2-
Problematizando a categoria raça no sentido sociológico

Cabe mais uma vez ressaltar o sentido sociológico da categoria raça para fins de critérios
do processo de averiguação das denúncias realizadas pelos estudantes organizados “Setorial
quem ri de nós tem paixão”.
Para fim dessa arguição, serão utilizadas as contribuições de Marcos Chor Maio e Ricardo
Ventura, no Livro “Raça como Questão” (2010), do antropólogo Jean-François Véran (2010) e
do sociólogo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, no seu livro “Racismo e Anti-Racismo no Brasil”
(2005). Os autores problematizam os sentidos da categoria raça na sociedade brasileira tanto no
campo científico, quanto no imaginário social.
Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura (2010) fazem uma análise de como a categoria
raça perde seu sentido estritamente biológico, através de um grande debate na Unesco no pós
2ª Guerra Mundial e a proliferação mundial do nazismo. Foi um longo debate entre antropólogos,
sociólogos e biólogos no sentido de compreender as diferenças entre os grupos sociais da
humanidade, afim de não aceitar as hierarquizações realizadas pelas teorias racialistas do século
XIX, justificadas pelo racismo científico. Nota-se que o campo acadêmico muda o, discurso com
as considerações da Unesco, em especial a antropologia, que se concentra no conceito de cultura
e/ou etnia para caracterizar os diferentes grupos sociais, tirando o sentido biológico das raças
humanas. Contudo, para fins de defesa dessa política afirmativa, o imaginário social incorporou a
noção sustentada pelo racismo científico do século XIX, por intermédio de ações discriminatórias
referentes as características fenotípicas, em especial a cor da pele. Lembrando que não é essa
noção racializada utilizada na defesa do fenotípico e, sim, a dimensão sociológica.
Ocorre, assim, uma grande discussão no campo das ciências sociais sobre a categoria raça,
bem como diferentes formas de perceber as discrepâncias históricas existentes entre os grupos
sociais distintos, nesse caso entre brancos e negros (preto e pardos). Para a Sociologia, o racismo
ainda se manifesta por intermédio dessa ideologia racializada.
Segundo Guimarães (2005)1, a compreensão do sentido sociológico da categoria raça
está na percepção de: “(1) uma desigualdade estrutural entre grupos humanos convivendo num
mesmo Estado; (2) uma ideologia ou teoria que justifica ou respalda tais desigualdades. (...) (3)
estas formas de desigualdades são justificadas em termos de pretenso caráter natural da ordem
social. ” (p.28). E é nesse sentido que algumas diferenças sociais de cunho racial foram se

1 Para problematização da categoria raça Guimarães (2005) utiliza as contribuições de John Rex (1983).

Página 458
naturalizando e se cristalizando na sociedade, em especial a sociedade brasileira2.
Cabe salientar que a noção de raça é percebida no meio científico de forma diferente do
domínio social, pois nesse campo ela aparece como elemento classificatório e discriminatório.
(VÉRAN, 2010, p.17)
Para compreender as formas de como o racismo se manifesta na sociedade brasileira,
deve-se problematizar os sentidos da categoria “cor” que fora vinculada a posição social. Esse
sentimento operou durante a primeira metade do século XX, para explicar as diferenças sociais
através das características raciais, somando também a percepção de caráter (Guimarães, 2005).
Acredita-se que esse sentimento de associar as características fisiológicas a posição social e a
percepção de caráter ainda estão vigentes em nossa sociedade.
O racismo existente no Brasil se manifesta como fruto dessas teorias racialistas que
segregavam os diferentes grupos sociais por intermédio de uma ideologia determinista que
estigmatizou grupos negros na constituição desta sociedade. E é nesse sentido que a comissão
entende a importância dos candidatos apresentarem características fenotípicas negras, pois foram
essas características causadoras de todo um processo de exclusão racial e social.

3- Da mestiçagem à ascensão do pardo nas políticas de ações afirmativas


A noção de mestiçagem está presente na gênese da construção da identidade nacional
brasileira, em que diferentes processos sociológicos e culturais marcaram o tipo de discriminação
racial existente na sociedade. O primeiro a ser observado foi quanto a influência das teorias
racialistas do século XIX, que hierarquizaram e racializaram a humanidade, colocando o
branco europeu como um tipo ideal a ser atingido (Ortiz, 2012). Essas teorias impulsionaram a
negatividade da pluralidade racial que caracterizaram a sociedade daquela época, o Brasil do
início do século XX, provocando uma política de imigração que, para além da inserção da mão de
obra especializada dos imigrantes europeus, objetivavam o branqueamento da nação através das
relações inter-raciais entre os descentes de africanos e europeus (Seyferth,1996). Essa política
imigratória incentivada pelo Estado brasileiro foi difundida no imaginário nacional, tornando-se
uma das únicas formas de inserção das/os negras/os nos espaços de sociabilidade na sociedade
brasileira.
Nasce a figura do “moreno”, ou seja, a categoria pardo, o fruto de uma mistura inter-racial
vista como negativa e que se positiva por intermédio de um dos maiores fenômenos raciais que
destaca o Brasil nesse cenário: O mito da democracia racial. O “mito da democracia racial” foi a
forma perfeita do Estado se omitir da responsabilidade das diferenças sociais e raciais da sociedade,
pois a partir das representações raciais de “Casa Grande & Senzala” e “Sobrados & Mocambos”,
de Gilberto Freyre, o país ganha destaque internacional por ser considerado um paraíso racial, em
que negros, índios e brancos viviam em grande harmonia, em especial no cenário pós-guerra, em

2 Referente a naturalização das diferenças sociais de cunho racial ainda falta problematizar “o mito da
democracia racial” que postula sobre as origens das desigualdades serem mais de classe do que de “cor”. (MAIO&
SANTOS, 2010)

Página 459
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

que vários países enfrentavam problemas raciais e sociais. (ORTIZ, 2012).


O “mito da democracia racial” fora desmascarado pela escola da USP, na década de 1950,
por intermédio de pesquisas financiadas pela UNESCO desmascarando a ideia de um país sem
preconceito. Florestan Fernandes na obra “A inserção do Negro na Sociedade de Classe” em que
o autor revela que na sociedade brasileira existe “o preconceito de ter preconceito”, denunciando
assim o mito de uma harmonia racial (Hasenbalg, 1996). Destaca-se nesse cenário o papel
crucial do Movimento Social Negro da década de 1970, o qual denuncia a existência desse mito
que impede a mobilidade socioeconômica dos negros no território brasileiro. Contudo, mesmo
havendo a denúncia tanto da academia, como dos negros organizados, o mito foi interiorizado pelo
imaginário nacional, mascarando ainda hoje os conflitos raciais existentes em nossa sociedade.
Nas entrevistas feitas aos candidatos às vagas reservadas a pretas/os e pardas/os,
percebeu-se a revitalização da categoria pardo, do moreno do Gilberto Freyre, agora positivado
devido a possiblidade de ingresso no ensino superior. Esses candidatos também reivindicavam
sua identidade negra, não pela cor de sua pele ou por suas características fenotípicas, mas, sim,
por suas relações de consanguinidades com algum parente distante, achando-se no direito de
acessar a vaga, ainda que em outros momentos, como na confecção de passaporte ou identidade,
se autodeclaravam brancas/os. Nesse cenário, o pardo torna-se uma identidade almejada e
reivindicada, pois mesmo não sofrendo as consequências do tipo de racismo existente no Brasil,
que é pelo fenotípico, características socialmente racializadas e inferiorizadas.

Considerações finais

Nosso objetivo com o artigo, é tratar sobre as questões que hoje têm sido debatidas
acerca das Políticas de Ações Afirmativas e, dentro dessas, a Política de Cotas, demonstrar
como tem se dado o trabalho da Comissão de Controle e Identificação do Componente Étnico-
Racial da Universidade Federal de Pelotas e o credenciamento dos pardos para acessar a vaga.
Reconhecemos esse trabalho como de fundamental importância para ajudar na garantia de
direitos, a fim de que realmente os sujeitos de direito ocupem as vagas reservadas para negras/os
e indígenas.
Temos consciência de que nessa década dos afrodescendentes muitos avanços têm sido
alcançados, mas sabemos do quanto ainda precisa ser feito para que a população negra possa
ocupar lugares de prestígio nessa sociedade em que impera a hegemonia do homem branco,
eurocêntrico, heterossexual e adulto. Para tal, é necessário ir ao encontro do que Munanga
(2015) diz quando fala sobre a importância de admitirmos que somos um país racista. Também é
necessário perceber o processo histórico das relações raciais de nossa sociedade, atentando-se
aos elementos que constituem o imaginário nacional sobre o que é ser negro no Brasil.
Logo, para conseguirmos viver em país mais democrático, com igualdade de oportunidades
para todas/os, admitir a existência do racismo é fundamental, bem como trabalhar para uma

Página 460
educação antirracista. Para que isso possa acontecer, a qualificação de profissionais da educação
se torna imprescindível na medida em que as Universidades, nos seus cursos de licenciatura
principalmente, discutam e aprendam a lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e
pela discriminação, atuando de forma a melhor conduzir a interação entre os diferentes grupos
étnico-raciais.

Referências

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_______. ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 3, DE 1º DE AGOSTO DE 2016. Ministério do


Planejmaneto, Desenvolvimento e Gestão, Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações do
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Página 461
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

HISTÓRICO DA IMPLANTAÇÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA UTFPR:


DA DOCUMENTAÇÃO DE IMPLANTAÇÃO ÀS EXPECTATIVAS DE SEUS
EFEITOS – UMA LEITURA PRELIMINAR

Andrea Maila Voss Kominek, UTFPR


amvkominek@gmail.com
Ana Christina Vanalli, UFPR
anacvanali@yahoo.com.br
Paulino Cardoso de Jesus, UDESC
paulino.cardoso@gmail.com

Resumo:

Após 129 anos da assinatura da Lei Áurea, que declarou extinta a escravidão no Brasil, os 350 anos do
período de escravidão ainda ecoam na sociedade brasileira. Consequência do período escravocrata,
que o usou como justificativa para a exploração, e ainda presente do Brasil contemporâneo, sobrevive
o Racismo. Com a assinatura da Lei, milhares de negros libertos foram colocados na rua sem destino,
apoio ou estrutura. O germe do racismo, plantado e regado durante os anos da escravidão, através
dos sistemas jurídicos e religiosos encontraram, então, terreno fértil para crescer e se fortalecer. Graças
à pressão dos movimentos sociais e da demanda gerada pela sociedade, são implantadas no país,
Políticas de Ações Afirmativas, dentre elas o sistema de cotas raciais, com a intenção de corrigir
desigualdades e reparar injustiças. O presente estudo tem por objetivo apresentar a implantação do
sistema de cotas raciais em uma universidade federal específica: UTFPR (Universidade Tecnológica
Federal do Paraná), através das documentações para sua implantação, das expectativas geradas por
sua implantação e uma análise de suas perspectivas futuras. Este estudo constitui a primeira etapa de
uma pesquisa mais ampla que visa identificar os impactos institucionais, possíveis obstáculos e novas
demandas para a política de igualdade na instituição, em plena vigência atualmente.

Palavras-Chave: Política Afirmativa, Cotas Raciais, Educação Superior UTFPR

Página 462
Introdução

Somente após seis décadas da declaração de independência de Portugal (1822), o Brasil


tornou a escravidão ilegal, com a assinatura, em 13 de maio de 1888, da Lei 3.353, conhecida
como Lei Áurea, que libertou todos os escravos. A assinatura de Lei, no entanto, não assegurou a
superação das desigualdades sociais e raciais.
Uma Lei que resultou da pressão de uma série de fatores internos e externos para que ela
ocorresse (fugas, resistências e revoltas dos escravizados, organização de quilombos, Revolução
Industrial na Europa e a necessidade da criação de “consumidores”, surgimento de grandes
fábricas e a necessidade de trabalhadores assalariados, dentre outros), ao contrário do que a
romântica história contada, durante muito tempo, sobre uma “bondosa princesa”.
Após 129 nos da assinatura da lei, no entanto, a principal consequência do período
escravocrata no Brasil permanece presente: o racismo. Os milhares de negros libertos foram
colocados na rua sem destino, sem nenhum apoio ou estrutura. O germe do racismo, plantado e
regado durante os anos da escravidão, encontraram, então, terreno fértil para crescer e se fortalecer.
Neste contexto de injustiças e exclusão, a educação poderia ser o principal instrumento
para desconstruir a estrutura racista permanentemente construída em nosso país. Na maioria
das vezes, porém, tem servido para fortalecer os privilégios e reforçar a desigualdade, como
comprovam alguns documentos e índices da nossa história. Em 1837, o presidente da província
do Rio de Janeiro, então capital do império, sanciona a Lei n. 1, sobre escolas públicas, cujo artigo
3 afirma:
Art. 3.- São proibidos de frequentar escolas públicas:
1-Todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas.
2-Os escravos, e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos.

Mais tarde, quando era possível o acesso à educação formal, no entanto, o sistema escolar
atendia aos diferentes grupos sociais de maneira segmentada, como aponta CUNHA em relação
à educação nas primeiras décadas do sistema republicano no Brasil:
(...) de um lado, o ensino superior destinado à formação das elites, em função do qual existia
o ensino secundário e, em função deste, um tipo especial de ensino primário; de outro
lado, o ensino profissional, ministrado nas escolas agrícolas e nas escolas de aprendizes e
artífices, destinado à formação da força de trabalho a partir de crianças órfãs, abandonas
ou miseráveis. A maior parte da população permanecia, entretanto, sem acesso a escolas
de qualquer tipo. (CUNHA, 2001, pp. 31-32)

Desta forma, estima-se que até 1920, apenas 25% da população brasileira era alfabetizada
(CUNHA, 2001). Se, para a população em geral, o acesso à educação formal era muito restrito, no
caso dos descendentes de africanos escravizados, a dificuldade tornava-se ainda maior. Apesar
de já não ser expressa a proibição de acesso ao ensino na letra da lei, é notório que o acesso e a
permanência dos afro-brasileiros ao sistema educacional brasileiro não ocorre de forma igualitária
em relação aos brancos.
Tal desigualdade torna-se ainda mais evidente a cada etapa educacional vencida, seja na

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

forma da graduação, licenciaturas ou pós-graduações. Quanto maior é o nível acadêmico, mais


branca é sua população docente e discente, como evidenciam as tradicionais fotos de formaturas.
O silêncio conveniente dos intelectuais brancos nos corredores das academias brasileiras a
respeito da enorme desigualdade entre brancos e negros no ambiente acadêmico e sua conivência
interesseira em que a situação assim se mantivesse, contribuíram para que durante muitos anos
estas questões não fossem discutidas.
Quando, no início dos anos 1930, foi criada a Faculdade Nacional de Filosofia, que mais tarde
passou a denominar-se Universidade do Brasil, a questão racial não foi discutida e confirmou-se,
pela ausência de questionamento, de que estaria destinada a educar a mesma elite branca que a
criara, contribuindo assim para sua reprodução enquanto grupo. (CARVALHO, 2006, pp. 19-20)
Desta forma, as mudanças ocorridas na academia, como a inclusão de discussões raciais,
políticas de enfrentamento ao racismo, implantação de políticas afirmativas e surgimento de
grupos de estudos raciais, como os atuais NEAB’s (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros), presentes
em diversas universidades, ocorreu não por uma iniciativa interna da academia mas por pressão
social externa, principalmente sob a forma da ação de movimentos sociais organizados, como os
Movimentos Negros. No Brasil, o movimento negro tem cumprido papel fundamental na defesa
dos direitos à educação e na criação de mecanismos de acesso dos afro-brasileiros ao ensino
superior. “Pensar o sistema de cotas sociais e raciais exige que tenhamos em mente ser esta a
grande política de inclusão das universidades nos últimos anos”. (COSTA, PINHEL, SIVEIRA, 2012:
p. 225).

1 Universidade Tecnológica: breve percurso histórico

A história da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) teve início com a criação
das Escolas de Aprendizes Artífices em várias capitais do país pelo então presidente, Nilo Peçanha,
em 23 de setembro de 1909. No Paraná, a escola foi inaugurada no dia 16 de janeiro de 1910 com
o objetivo de ensinar ofícios profissionais a crianças e jovens pobres, órfãos e abandonados que
viviam pelas ruas em situação que hoje chamaríamos de vulnerabilidade.
Os ofícios ensinados eram tipicamente urbanos, adequados às necessidades de mercado
daquele tempo, voltados ao setor de prestação de serviços e da incipiente indústria paranaense,
ligada a erva-mate, madeira e suas atividades acessórias. Ministravam-se cursos de alfaiataria,
serralheria, marcenaria, selaria, pintura ornamental e sapataria, ofícios ensinados por mestres que
eram “práticos” em suas atividades (QUELUZ, 2010).
Esse ensino destinado aos garotos de camadas menos favorecidas da sociedade, chamados
de “desprovidos da sorte”, ocorria em período integral. Pela manhã, recebiam conhecimentos
elementares (ensino primário como ler, escrever, calcular) e, à tarde, aprendiam as disciplinas
técnicas de cada ofício. Inicialmente, havia 45 alunos matriculados. Aos poucos, a escola cresceu,
passou a ofertar oficinas de pintura decorativa e escultura ornamental. O ensino tornou-se cada

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vez mais profissional até que, no ano de 1937, a escola começou a ministrar o ensino de 1º grau,
passando a ser denominada Liceu Industrial do Paraná.
Após uma longa série de transformações, tendo passado pelos períodos de Escola Técnica
e Centro Federal Tecnológico, em 1998, em virtude das legislações complementares à LDBE, a
diretoria do então CEFET-PR criou um projeto de transformação da instituição em Universidade
Tecnológica. O projeto tornou-se lei no dia 7 de outubro de 2005 quando o CEFET-PR passou a
ser a UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ (UTFPR), primeira especializada do
Brasil. Atualmente, a UTFPR conta com 13 campi no Estado do Paraná. (AMORIM, 2010)
Ao tornar-se universidade, a hoje centenária UTFPR, criada com a missão de atender
os “desvalidos da sorte e excluídos sociais”, formá-los e promover sua inclusão no mercado de
trabalho, gradativamente passou a vivenciar novos ares, objetivos e dimensões (físicas, políticas e
sociais). Sofreu transformações em seu público discente, que passa a ser, então, majoritariamente
de classe média, quase que exclusivamente de alunos do gênero masculino e brancos. Poucas
são as exceções do gênero feminino e ainda menor de negros e negras. A escola dos “desvalidos
da sorte” tornava-se cada vez mais, pela primeira vez, uma escola elitista.
Atualmente, a UTFPR possui unidades em 13 municípios do Paraná, oferecendo cursos
em diversos níveis e áreas: Técnicos, Tecnologias, Bacharelados, Licenciaturas, Especializações,
Mestrados, Doutorados, Formação de Professores (COFOP) e Extensão, além de oferecer cursos
de especialização na modalidade Ensino a Distância, por meio do Sistema Universidade Aberta do
Brasil (UAB) – programa criado pelo Ministério da Educação em 2005.

2 Mudanças nos processos de ingresso e nas legislações federais

A partir de 2010, a seleção de estudantes para os cursos de graduação passou a ser


realizada pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSU), do Ministério da Educação, que classifica
os estudantes de acordo com a nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tal
modificação contribuiu significativamente para a ampliação do horizonte geográfico de discentes
atendidos pela instituição, uma vez que tornou viável a vinda de alunos e alunas de diferentes
regiões do país. Tal situação representou um aumento considerável na diversidade cultural e
étnico-racial de seu corpo discente.
Se, por um lado tal diversidade constitui significativa riqueza cultural, por outro, pode
representar um desafio adicional para a harmonia e bom funcionamento das atividades docentes,
caso não sejam bem aproveitadas. É preciso pensar o ensino como um todo. É preciso formar um
cidadão pleno, não apenas um técnico, um tecnocrata.
Cabe lembrar a famosa provocação de Milton Santos, quando afirma que sob o pretexto
de formar estudantes competitivos para o mercado de trabalho globalizado, o saber filosófico
é preterido como desnecessário em função de saberes práticos reduzidos a processos de
treinamento. A escola, ao fazer esta opção, deixa de ser o lugar de formação de verdadeiros

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

cidadãos para tornar-se um celeiro de “deficientes cívicos”, desprovidos de noções clássicas


como democracia, república, cidadania e individualidade.
Neste sentido, torna-se fundamental, como sugere BASTOS (1998, p. 60), que a educação
seja compreendida como “a reconstrução permanente da experiência humana, pois busca imprimir
sentido ao curso da vida, afinal sua capacidade de dirigir e intervir nas caminhadas da história dos
homens é grande”. A educação tecnológica, especificamente, assume, assim, a tarefa de:
registrar, sistematizar, compreender e utilizar o conceito de tecnologia, histórica e
socialmente construído, para dele fazer elemento de ensino, pesquisa e extensão, numa dimensão
que ultrapasse os limites das simples aplicações técnicas, como instrumento de inovação e
transformação das atividades econômicas em benefício do homem, enquanto trabalhador, e do
país. BASTOS (1998, p.32)
Na empresa privada pode existir, eventualmente, interesse em fornecer formação profissional
ou treinamento técnico aos seus funcionários, porém, dificilmente ocorra uma formação geral do
indivíduo, enquanto “ser humano”, “cidadão”. Desta forma, à educação técnica cabe ofertar esta
formação, plena, humana e cidadã, para além da formação técnica. Ao cumprir esta função, a
educação tecnológica promove uma democratização do conhecimento historicamente negado
aos trabalhadores pelo sistema produtivo, permitindo a ele acesso a discussões que, de outra
forma, delas estaria excluído.

3 Ações Afirmativas na UTFPR

A UTFPR não iniciou discussões nem propostas que se antecipassem às leis federais a
respeito de Ações Afirmativas, mas cumpriu as determinações legais imediatamente após suas
aprovações.
A Constituição Federal de 1988 já assegurava a igualdade de direitos e oportunidades
perante a Lei a todos os cidadãos brasileiros, estabelecendo exigências quanto aos modelos de
políticas públicas a respeito da qualidade e do acesso a estas políticas. Muitos anos, porém foram
necessários para que estes ideais começassem a ser colocados, lentamente, em prática .
Na UTPR, em 14 de setembro de 2007, o COUNI (Conselho Universitário da UTFPR),
deliberou a reserva de 50% das vagas de seus Processos de Seleção para candidatos de escolas
públicas, em todos os cursos regulares de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado,
Subsequente e na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), assim como em
Cursos de Graduação .
Em 2012, o artigo terceiro da Lei Federal 12.711, que legisla sobre a reserva de vagas para
alunos oriundos de escolas públicas, estabeleceu critérios étnico-raciais para a distribuição dos
50% do total de vagas das universidades e institutos federais para discentes, reservadas aos
alunos que cursaram o ensino médio na rede pública. O referido artigo estabelece que 25% das

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vagas reservadas devem seguir critérios raciais, correspondente à da soma de pretos, pardos e
indígenas no Estado, de acordo com o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) (BRASIL, 2014).
A implementação da referida lei tornava, em seu Art. 8*, opcional a cada instituição aderir
de forma gradual ou imediata ao cumprimento da lei. A UTFPR aderiu de forma imediata, passando
a organizar sua seleção de ingresso em dois grupos.
Após a promulgação da Lei 12711/2012, o edital seguinte de Processo Seletivo para a
UTFPR, através do Edital 53/2012 da PROGRAD, de 15 de março de 2013, já incluiu de forma
completa e imediata os critérios étnico-raciais para distribuição das vagas reservadas na letra da
lei.
Assim, a partir da implantação da política de cotas raciais na seleção de seus alunos
nos vestibulares de 2013, a UTFPR volta a receber em seu quadro discente, alunos negros com
mais frequência. Negros e negras passam a circular como alunos e alunas pelos corredores da
instituição, apesar de ainda em número reduzido e desproporcional à estatística encontrada na
população negra brasileira fora das universidades.
Atualmente, 4 anos após o primeiro processo seletivo, em 2013, que reservava vagas
sociais a alunos que se autodeclaram negros ou pardos, é possível apontar os primeiros números
que pontuam esta trajetória, ciente, no entanto, de que muito ainda se tenha a caminhar e construir:
de 2013 a 2017, tem-se um total de 17.158 alunos e alunas ingressantes como cotistas raciais nos
processos seletivos realizados neste período. A maior parte dos cursos superiores da instituição
possuem duração de 5 anos, não tendo havido tempo suficiente desde a implantação das cotas
para que os cotistas ingressantes concluísse seus respectivos cursos. Do total de ingressantes
cotistas do período, no entanto, são atualmente 118 formados e 5.487 desistentes.

Considerações Finais: Reflexões preliminares sobre Impactos da política de Cotas na


UTFPR

A nova conjuntura política, cultural e social no ambiente acadêmico, exige o olhar atento
para que nele não se reproduzam ou se alimentem, as desigualdades da sociedade presentes sob
a forma de racismo, perseguição e injúria racial. É preciso estar atento e valorizar a diversidade que
passa a abrigar em seus corredores. Torna-se fundamental preparar os profissionais envolvidos,
discentes e técnicos administrativos, para esta nova realidade e para que o ambiente se torne,
de fato, como propunha a missão assumida desde a fundação desta instituição, um espaço de
inclusão e correção das injustiças e desigualdades sociais.
Assim, a importância de superar a injustiça histórica causada por anos de escravidão e
todas as consequências dela decorrentes, como o racismo , em todas as suas formas, torna-
se uma necessidade premente conhecer as raízes que formaram nossa sociedade, através da
reflexão sobre os conceitos de Africanidade e Ancestralidade Africana.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Criar oportunidades de tematização, explicitação e correção destes problemas estruturais,


torna-se pré-requisito para a criação de um ambiente universitário justo, igualitário e democrático.
Uma situação que contribuirá grandemente para que os alunos e alunas por ela formados tornem-
se não apenas bons profissionais, mas principalmente profissionais zelosos de si, e da sociedade
na qual vivem, constroem e participam. Profissionais que assumem suas responsabilidades, antes
de mais nada, como cidadãos e seres humanos plenos.
MEDEIROS (2015), analisou o ingresso e permanência de alunas e alunos negros na
UTFPR. Apontou que nesses dois primeiros anos de implantação da política de cotas, houve um
crescimento significativo do número de alunas e alunos negras(os) nos cursos de engenharias.
Aponta, no entanto, que poucas são as mulheres negras nas engenharias e licenciaturas. A
amostragem analisada apontou um crescimento do número de homens negros, melhorando seus
índices de forma geral.
As mulheres negras, por outro lado têm diminuído em quantidade, além de apresentarem
coeficientes de rendimento mais baixos. As mulheres não-cotistas de forma geral apresentam
os melhores desempenhos quanto ao coeficiente de rendimento, o que poderia representar os
efeitos das lutas feministas para a inclusão das mulheres nas ciências. Estudos mais amplos e
aprofundados são necessários para que se possa compreender o que levaria as mulheres negras
a continuarem encontrando dificuldade de acesso e permanência na universidades, apesar da
política de cotas.
O desafio é grande. Apesar de os números e as análises serem ainda preliminares, houve
um considerável número de negros que puderam adentrar a universidade e vêm superando as
dificuldades para a sua permanência. A maioria dos casos de evasão ocorrem já no início dos
cursos, devido ao alto índice de reprovações no primeiro período. Para que as ações afirmativas
fossem de fato efetivas, seriam necessárias adaptações na estrutura da instituição e um sistema
de apoio que auxiliasse a permanência dos alunos e alunas cotistas. Apesar de haver novas
demandas para o novo contexto político, social e cultural, não parece haver, no entanto, ações que
se encaminhem para a necessária adaptação.
É preciso construir informação e conhecimento que possam subsidiar o trabalho de
docentes e gestores na implantação de políticas de promoção à igualdade racial e enfrentamento
ao racismo, cumprindo, desta forma, com a missão originária da instituição UTFPR: atender os
excluídos sociais. Como a instituição apenas inicia sua caminhada nesta temática, não possuindo
histórico ou experiência nestas ações, faz-se necessário buscar fora dela, através de consultorias
especializadas e parcerias com outras instituições que possam subsidiar implantação das políticas
de promoção da igualdade racial, nos moldes do que se busca implementar na UTFPR.
É preciso a construção de pesquisas interdisciplinares não apenas em uma perspectiva
teórica e metodológica enquanto elemento passível do campo das Ciências Sociais, como também
na perspectiva de construção de políticas que honrem o conhecimento histórico, sociológico e
tecnológico desta instituição. Casos recentes de racismo no país, em diversas esferas, desde um
estádio de futebol na qual o jogador é chamado por milhares de torcedores de “macaco” a um

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contexto de perseguição nas salas de aula aos alunos cotistas, devido a cor de pele ou ao suposto
cabelo “ruim”, constituem provas de o quanto ainda é preciso trabalhar e lutar para construir um
mundo justo e igualitário! A universidade não apenas pode, mas com o capital humano, político e
social que possui, deve contribuir para corrigir esta realidade de desigualdade.
Superar o racismo social, combater o racismo institucional, contribuir para o empoderamento
dos alunos cotistas, instrumentalizando-os para defenderem-se desta sociedade injusta, constitui
sim, também missão de uma universidade tecnológica. Uma missão para muito além da formação
técnica e tecnológica.

Referências
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Tecnologia e Humanismo, Ano 24, N. 39, julho-dezembro, p. 169-212.

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BENTO, Maria Aparecida Silva. (2003). “Branqueamento e branquitude no Brasil”. In: Psicologia
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universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras
providências

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GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. (2001). Ação afirmativa & princípio constitucional da
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Tecnologia e Humanismo, Ano 24, N. 39, julho-dezembro, p. 39-112.

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EIXO 9: Quilombolas, direitos e
políticas públicas
As temáticas que contemplam a discussão proposta no Eixo 9, perpassam
aspectos relativos a pesquisas e investigações que contemplam a
historicidade e contemporaneidade dos quilombos no Brasil no que tange às
diversas conformações territoriais – rurais e urbanas – bem como, às políticas
de regularização fundiária que articulam a titularidade da terra a outras esferas
de direitos como educação, saúde, moradia e lutas outras como equidade de
gênero e combate à violência em todas as suas instâncias.As reflexões abordam
as identidades sociais emergentes e a confluência das especificidades
quilombolas com as questões étnico-raciais mais amplas da população
negra, tendo como acento o rol das Políticas Públicas que interseccionam
raça/classe/gênero e que, igualmente, conjugam enfoques transdisciplinares
para construção e implementação das mesmas. A educação-básica e
superior – nos procedimentos epistêmicos, pedagógicos e políticos para se
pensar o acesso e permanência da população quilombola nestes espaços. A
emergência do movimento quilombola, organização,
especificidade e metodologias de ação. Os/as
atores sociais das organizações quilombolas e as
dimensões geracionais como representativas da
multiplicidade de fazeres/saberes constitutivas de
territórios plurais. Dimensões como corporeidade,
religiosidade, artísticas e estéticas como
possibilidade de compreensão da dinâmica
territorial e patrimonial das comunidades
quilombolas. Os quilombos como patrimônios
culturais, na perspectiva dialógica que
os estados da região Sul estabelecem
internamente, entre si, e com países da
vizinhança na conjugação com regimes
opressão e os espaços (re) criados de
liberdade.
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

06 DE FEVEREIRO COMO UM DIA DE CELEBRAÇÃO À HERANÇA


PALMARINA: OS CAMINHOS DE LUTAS DO QUILOMBO DOS PALMARES
E SEUS SIGNIFICADOS PARA A PERPETUAÇÃO DAS TRADIÇÕES DE
MATRIZ AFRICANA EM ALAGOAS.

PUENTES, Cláudia Cristina Rezende (UNINASSAU)


claudiacult@gmail.com
SILVA, Igor Luiz Rodrigues da (UFSC)
igorluizcso@gmail.com

Resumo

06 de Fevereiro – Honra e Reverência aos antepassados – Vigília ao extermínio do Quilombo dos


Palmares é um evento cultural que remete aos participantes uma imersão in loco, vivenciando os
passos históricos dos antepassados que constituíram o mocambo dos Macacos. Esse ano, em sua
quarta edição consecutiva, reuniu mais de 200 pessoas incluindo religiosos, estudiosos, capoeiristas
na madrugada do dia 06 de fevereiro, na Serra da Barriga, com diversos segmentos de matriz africana.
Em um momento de reflexão e compreensão para a sociedade acerca do extermínio daquele que foi
o maior quilombo das Américas. Em forma de vigília, liderada por uma religiosa atuante no movimento
negro alagoano, Mãe Neide Oyá D’Oxum – Yalorixá Mestra do Patrimônio Vivo alagoano que, congregou
representantes dos diversos segmentos da cultura negra. A visibilidade da data está diretamente ligada
às questões de intolerância, racismo e demais perseguições aos afrodescendentes, embora estudos
comprovem que índios e brancos fugitivos também foram acolhidos nos Quilombos. Uma vez que
Domingos Jorge velho foi o dizimador do Quilombo e seus descendentes e daqueles que o seguiram,
contribuíram na formação da cidade, atual União dos Palmares. Os participantes refletiram e debateram
sobre a data, possibilitando uma profusão do conhecimento e a diminuição do preconceito.
O objetivo deste trabalho é descrever como a diáspora negra se consolidou em terras alagoanas,
através dos mais diversos guerreiros e guerreiras que para cá vieram escravizados. A história do
Quilombo dos Palmares, com suas heroínas e seus heróis repercute na história e na cultura local, a ponto
de transformar uma cidade em referência na temática afro. Provocar a abertura e a ampliação de um
campo discursivo sobre a visibilidade e a preservação da memória dos diferentes roteiros geográficos
percorridos pelos negros e negras que participaram da constituição do Quilombo. Acreditamos que
a construção de sinais provocadores de preservação da identidade cultural Palmarina, possibilitem a
ampliação do conhecimento da história do herói nacional Zumbi dos Palmares e, consequentemente,
visibilizando o Quilombo ao Brasil.

Palavras-chave: Patrimônio. Quilombo dos Palmares. Religiosidade. Diáspora.

Introdução

Página 472
Abordar o Quilombo dos Palmares requer, após tantos trabalhos publicados, dedicação
ao estudo da formação do povo nordestino, a exemplo do que nos diz Roger Bastide acerca da
cultura no nordeste, ao observar que a prevalência da cultura africana, mesmo que sincrética, pois
é fruto do encontro da religião africana com o barroco português, carrega consigo a promessa da
comunhão de opostos é a formadora e difusora de rico e diversos conhecimentos.
Mencionaremos alguns aspectos históricos que temos estudado buscando elucidar a
criação, a perpetuação e a extinção daquele que foi o maior quilombo das Américas. Iniciamos
nosso estudo a partir da pesquisa bibliográfica acerca das etnias que aportaram no nordeste, onde
encontramos vários fatos sobre o fluxo e refluxo do escravismo negro em Alagoas.
Passamos para a pesquisa de campo a fim de mostrar como os fatos passados ainda estão
presentes em nossa sociedade e como são tratadas as questões relativas à religiosidade em nosso
estado. Suas razões e possíveis soluções foram estudadas nesse trabalho, objetivando contribuir
para minimizar os conflitos existentes. Para isso participamos da Vigília pelo Extermínio do
Quilombo dos Palmares1 na madrugada do dia 06 de fevereiro de 2017. Coletando os depoimentos
que aqui vão transcritos ou citados pelos agentes culturais que fizeram parte da quarta edição na
Serra da Barriga – União dos Palmares.
Ressaltamos aqui que a pesquisa de campo realizada está intimamente ligada à herança
deixada por Durkheim, onde não há distinção entre a sociologia e a antropologia, o estudo
foi, também embasado pela descrição de Weber quando este diz que a interpretação é uma
característica das ciências sociais, independente das nomenclaturas que assumam em uma ou
outra academia.
As implicações teóricas do presente estudo buscam constituir um elo entre a derrubada do
quilombo e a questão da intolerância religiosa, resgatando fatos históricos e a contemporaneidade,
através da atuação do movimento negro organizado e suas implicações sociais e culturais dos
seres envolvidos no processo de construção.

A diáspora Negra em Alagoas

A capitania de Pernambuco, Alagoas não existia, exercia uma centralidade ligada à


monocultura da cana-de-açúcar, e se estendia desde a Ilha de Itamaracá (norte do atual Estado
de Pernambuco), até a foz do rio São Francisco (então, sul de Pernambuco), limite natural entre
a capitania de Pernambuco e da Bahia de Todos os Santos, atual fronteira entre os estados de
Alagoas e de Sergipe. A subdivisão em sesmarias, principalmente no sul da capitania, a área
litorânea (Ilha de Itamaracá, Olinda, Várzea até o Cabo de Santo Agostinho). Além da vasta
extensão de terras produtivas, até o início do século XVII a administração obedecia ao aprendizado
europeu proto-feudal, quando cabia ao mantenedor da capitania a responsabilidade de prover a
segurança, manter a ordem pública e, sobretudo, a atividade produtiva em ritmo de normalidade.

1 Grifo nosso

Página 473
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

ASSIS (2001).
E foi nessa perspectiva econômica que os portos de Recife e Salvador começaram a
receber os primeiros contingentes significativos de trabalhadores cativos da África Ocidental
ALENCASTRO (2000). A vasta extensão de terras gerou grandes latifúndios e engenhos
açucareiros SILVA (2011), que eram cultivadas na área litorânea foi contraponto ao norte da
capitania que, permaneceu mais despovoado, favorecendo, talvez, a diáspora de escravos para a
Serra da Barriga, norte de Capitania de Pernambuco.
No século XVII, o Brasil foi o país de maior concentração de escravos negros no mundo,
possivelmente 3,5 milhões e, muitos deles foram para Alagoas. Assim, até meados do século XIX,
foram traficados da África milhões de seres humanos na condição de escravos para servir de mão
de obra para os colonizadores, enriquecendo as colônias, comerciantes do tráfico de escravos
e colonos. A população negra, frente ao processo de escravidão, e o que este significou para
as pessoas negras escravizadas, em termos de sobrevivência, auto-estima, estrutura familiar,
sentido de pertencimento e continuidade étnica, viram seus filhos, pais e avós sendo totalmente
dispersados e desterritorializados, pelo comércio da escravidão e suas mazelas.
Mesmo após a Lei Eusébio de Queirós, em 04 de setembro de 1850, continuou com o tráfico
de escravos que durou mais de uma década. Segundo MORAES FILHO (2002), das etnias que
aportaram em Alagoas, as mais expressivas são Jêje, Nagô, Xambá, Banto, Malê e Ijexá pois estas
apresentavam um maior índice de negros com maior poder de força. Os principais desembarques
em lugares ou portos foram registrados em Camaragibe, Pituba, Patel, Peba, Pontal, Coruripe, Poxim,
Penedo, Jequiá, Porto de Pedras, Trapiche da Barra, dentre outros, além das matas e tabuleiros dos
engenhos que foram transformados em valhacoutos (esconderijos) dos contrabandistas.

Localização do Quilombo dos Palmares

O principal mocambo do Quilombo dos Palmares, ou Quilombo do Macaco, ou Cerca Real


dos Macacos ou ainda Cidade Real dos Macacos, capital da República de Palmares está localizado
no cume da Serra da Barriga, junto ao conjunto de matas atlânticas próximas ao litoral do nordeste
brasileiro, na conformação da Serra da Borborema, sendo uma parte da serra que se encontra no
atual município de União dos Palmares, no Estado de Alagoas.
A Serra da Barriga, localiza-se no município de União dos Palmares, Zona da Mata do Estado
de Alagoas, Brasil. Ocupa uma área de aproximadamente 27,92 km². Distanciada da Capital do
Estado de Alagoas – Maceió, por 73Km e de Recife – Capital do Estado Pernambuco por 237
Km, o complexo geográfico onde se localiza o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, sede do
Mocambo dos Macacos foi palco de lutas que marcaram a resistência do povo negro escravizado
no nordeste.
Trata-se de um platô com elevada altimetria territorial, chegando a 485 metros de altitude,
com lados íngremes e escarpados. Compreende paisagem natural e edificada, observando-
se ainda grande quantidade de palmeiras que segundo historiadores, deram origem ao nome

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“Palmares”. Além da vegetação e dos recursos naturais predominantes à paisagem da Serra,
principalmente recursos hídricos compostos de nascentes que alimentam um açude e uma lagoa.
Esta última, denominada “Lagoa dos Negros”, é um dos lugares sagrados da Serra, onde os
religiosos de matriz africana realizam rituais.
A parte edificada é composta por casas simples, ocupadas por moradores remanescentes
do período anterior a desapropriação da área pela União, quando as terras pertenciam a particulares,
além das estruturas cenográficas do “Parque Memorial Quilombo dos Palmares”, inaugurado em
2007 com o intuito de promover os valores históricos e simbólicos do lugar.
As edificações do Parque buscaram, com liberdade poética contemporânea, através de
relatos históricos ou referenciados por arquiteturas africanas, reproduzir uma tipologia construtiva
que poderia por equipamentos expográficos representar aspectos construtivos do “Quilombo dos
Palmares”, com paredes de taipa, cobertura em palha e piso de terra batida, além da implantação
de ocas indígenas, reforçando os referenciais multiculturais de Palmares, como a ancestralidade
de ocupação territorial pelos povos indígenas.

Os Quilombos - Aspectos da constituição

A palavra Quilombo é derivada do tronco linguístico africano banto, significando esconderijo,


aldeia. No Brasil, local onde os africanos escravizados e os indígenas que aqui habitavam e que,
durante mais de quatrocentos anos, ficaram subjugados ao domínio colonial, estes escravizados
por instinto de sobrevivência derivaram estratégias de resistência em negação às condições que
viviam. Buscavam, então, locais que possibilitassem uma possibilidade, mesmo que única, de
libertação das condições sub humanas nas quais eram obrigados a viver, sendo então conhecidos

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

como quilombolas.
Segundo PRATT (1992), a escravidão moderna na américa latina tem conexões em toda
a região e, os escravos, mesmo sob olhar repressor dos senhores de escravos estabelecem
laços e redes de comunicações até mesmo para a outra margem do Atlântico, espalhando-se em
diferentes zonas de contato do continente latino-americano. Sendo uma das formas mais radicais
de resistência à escravidão, a formação dos quilombos tornou-se uma alternativa coletiva de
insurgência.
Um dos aspectos formadores das comunidades quilombolas é a origem diversa dos
escravos, oriundos de várias regiões do continente africano, com usos e costumes diferenciados,
além da língua especifica, todos tinham o mesmo objetivo, o de livrar-se dos maus tratos a
que eram submetidos. Mas considerando as condições em que se encontraram, conseguiram
sobrepor os obstáculos linguísticos e, até mesmo culturais, em prol da formação de uma sociedade
de resistência. Essa diáspora possibilitou à população africana escravizada e trazida à força ao
continente americano, uma interação desses homens e mulheres oriundos de diferentes lugares
do continente africano. Mesmo aqueles que, em sua terra mãe eram inimigos, foram submetidos
ao mesmo processo de exploração, e estes em função da tensão social que viviam, mesmo com
religião, origens e costumes diferentes estiveram unidos a partir de então na formação desses
núcleos sociais organizados.
Nos quilombos, a base de construção era formada por escravos fugidos tanto da zona rural
quanto da urbana e constituíram formações sociais complexas, como em teias que acabaram se
interseccionando, até com a mesma sociedade escravista da qual os escravos haviam fugido.
Segundo MOURA (2014), mesmo tendo suprimido parcialmente as diferenças étnicas ante
à antinomia do senhorio de escravos, as identidades étnicas formaram a base da hierarquia e as
relações de força dentro dos quilombos.
Palmares enquanto república, mantinha nos séculos XVI e XVII, suas fronteiras em relações
diretas com os núcleos urbanos no comércio agrícola, engenhos de açúcar, artefatos de uso
cotidiano e vários conhecimentos em técnicas agrícolas, olarias, manejos das ervas medicinais,
assim como relações entre escravos, sesmeiros e autoridades coloniais.
Eram núcleos que acabavam formando um estado paralelo, pois a República Palmarina
compreendia terras entre o sul, norte e interiores da Capitania de Pernambuco como Itamaracá,
Igaraçú, Olinda, Porto Calvo, Santa Maria Madalena do Sul (atual Marechal Deodoro), Penedo,
Laranjeiras e São Cristóvão. Estes quilombos obtiveram destaque e mesmo com as invasão
holandesa em 1630, a população palmarina transformou-se em, “um verdadeiro estado negro
no Brasil” em pleno século XVII LARA (2010). O crescimento da República de Palmares cresceu
de tal modo a se tornar um centro de desejo a todos os negros e negras que não se submetiam
a escravidão, tornando-se importante referencial de liberdade e autonomia para os africanos
escravizados, em contraponto crescia o incômodo para a administração colonial.
Deixando a capitania de Pernambuco e trazendo o recorte histórico para o atual Estado de
Alagoas, a Cerca Real dos Macacos foi reduto para negros e negras formarem os quilombos, sendo

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o de Palmares o de maior simbolismo para a luta dos oprimidos. Tendo a maior parte deles vindos
de Angola e do Congo, trouxeram seus costumes e organização que possibilitou aos fugitivos
resistirem por mais de 64 anos. Os negros fugitivos tinham organização econômica, dominavam a
agricultura, o gado e tinham domínio da metalurgia.
As lideranças palmarinas constituíam-se em larga escala e cada negro fugido das fazendas,
a exemplo de Aqualtune, princesa congolesa que, em 1665 liderou mais de 10 mil homens na
Batalha de Mbwila, na qual saiu derrotada e tece seu pai morto e decapitado, sendo presa e
vendida como escreva para Gana e, na sequencia enviada para Recife como escrava reprodutora.
Foi torturada e, rebelou-se, aproximadamente em meados de 1666 destruiu a casa grande e fugiu
para Palmares2.
Os registros contam que, mais de 200 homens e mulheres foram para Palmares sob o
comando de Aqualtune, instalando-se na área hoje compreendida como Porto Calvo, a princesa
congolese constituiu o Quilombo Aqualtune, no complexo da Cerca Real dos Macacos ainda
existiam os Quilombos de Amaro, Quilombo de Dambaranga e de Tabocas.

Das lutas e queda do Quilombo

A República dos Palmares teve ao longo de sua existência algumas lideranças mas, a mais
longa e emblemática foi a de Zumbi dos Palmares que sucedeu a Ganga Zumba, que por motivos
de interesse político queria aceitar as condições impostas pela colônia e foi derrubado por todos
os que não queriam ceder aos desmandos da coroa portuguesa.
Desgastados com as diversas investidas em forma de entradas que, estavam diretamente
ligadas à economia, pois como já foi dito anteriormente, as terras ocupadas pela República dos
Palmares era a mais rica e produtiva da capitania.
Como relata CARNEIRO (1947), o motivo das entradas parece estar mais na conquista de
novas terras do que mesmo na recaptura de escravos e na redução dos quilombos.
Era voz corrente que as terras dos Palmares eram as melhores de toda a capitania de
Pernambuco – e a guerra de palavras pela sua posse só não foi menor, nem mais suave do
que a guerra contra o Zumbi. O quilombo do rio das Mortes ficava exatamente no caminho
dos abastecimentos para as lavras de Minas Gerais, o que pode dar uma ideia do valor
das suas terras e da riqueza econômica que representavam, e é nessa circunstância que
se encontra a razão da crueldade de Bartolomeu Bueno do Prado, que de volta a Vila Rica
trouxe 3900 pares de orelhas de quilombolas.” (Edison Carneiro, 1947)

A população total chegou a 30.000 pessoas, agrupadas em povoados, em torno de cada


um deles existia uma área de agricultura e pecuária onde todos trabalhavam com suor e amor mas,
muitas lutas foram travadas para a manutenção dessa República Palmarina.
A primeira investida feita pelos holandeses ocorreu em 1644, comandada por Rodolfo
Baro, mas a chamada “Expedição Baro” foi logo percebida por sentinelas palmarinos que, soaram

2 Principais árvores palmeiras do agreste.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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o alarme e bloquearam a passagem dos holandeses com árvores cortadas, atirando flechas em
direção à expedição que partiu em retirada ante à iminente derrota.
A segunda ocorreu em 1645, novamente comandada por um holandês, João Blaer, ficou
conhecida como a “Guerra do Mato”, pois a tática utilizada pelos palmarinos foi a de recuar quando
eles atacavam e quando os holandeses paravam para descansar, os palmarinos atacavam com
saques relâmpagos. Esta tática de guerrilha durou aproximadamente três meses e, apesar de ter
apenas um pequeno grupo destruído, os holandeses estavam muito desgastados e Blaer resolveu
desistir.
Mais tarde, em 1667 foi organizada uma grande expedição para exterminar Palmares, sob
o comando de Zenóbio Accioly de Vasconcelos, financiada pelo governo de Pernambuco que
começava a sentir os reflexos da crise açucareira em decorrência das trocas comerciais entre
Palmares e as vilas em seus arredores. A República teve sua primeira derrota, com a destruição
do Mocambo de Aqualtune, a princesa congolesa foi dada como morta mas, reapareceu em
Palmares. A liderança do quilombo, Ganga Zumba foi até Recife para entar um acordo com o
então governador Aires de Sousa e Castro, a proposta do governo foi a de que os negros teriam
direito a uma área para viver livremente e continuariam a plantar e comercializar com os brancos
mas, deveriam desfazer-se de todo o equipamento militar que possuíam. Mas esse acordo não
agradava a maioria dos negros. Enquanto isso, Zumbi dos Palmares investia em libertar mais
negros escravos e foi aclamado o novo líder da República.
Em 1692 os pernambucanos contrataram o paulista Domingos Jorge Velho, que tinha um
histórico de massacre e submissão de grupos étnicos inferiorizados pelo colonialismo, suas tropas
eram compostas majoritariamente por indígenas. Ele fazia o “sertanismo de contrato”, juntava seus
capangas para lutar pela causa de outros sob preço determinado previamente. Com cerca de 800
indios e 200 brancos, dentre estes moradores alagoanos, Domingos Jorge Velho investiu contra o
quilombo em dezembro do mesmo ano mas, não obteve sucesso.
Com o reforço recebido em janeiro de 1694, Jorge Velho e seus homens avançaram contra
Palmares, 22 dias consecutivos os palmarinos lutaram até o dia 06 de fevereiro, quando o forte
armamento das tropas matou mais de 400 homens e aprisionou muitos, selando a derrubada do
Mocambo do Macaco, dizimando o Quilombo dos Palmares.
O que aconteceu em Palmares foi um banho de sangue e o aprisionamento de mulheres
e crianças. “Foram tantos os feridos que o sangue que iam derramando serviu de guia
às tropas que os seguiram”, escreveu o governador Caetano de Melo e Castro.  Ficara
acertado que as presas menores de 12 anos seriam vendidas aos paulistas. Os meninos
menores de 12 anos ficariam em Pernambuco. Às negras com crias também foi permitido
permanecer na capitania até que os rebentos chegassem à idade de três anos, quando
“poderão viver sem o leite de suas mães”. (Edison Carneiro, 1947)

No dia 06 de fevereiro de 1694 podia ser avistado de longe o céu avermelhado do fogo
que queimava o Mocambo do Macaco, enquanto o sangue escorria pela terra, como forma de
simbolizar, por porte do governo a extinção da confederação dos rebelados. Mas eles não foram

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extintos apesar de muitos terem morrido e sido capturados de forma violenta, a resistência estava
dissolvida mas não extinta pois, o líder Zumbi e outros negros conseguiram fugir pela região das
serras. Zumbi, o último líder de Palmares, sobreviveu à queda de Macaco, mas foi emboscado e
assassinado em 20 de novembro de 1695. 

A vigília

Há quatro anos consecutivos, o movimento negro, liderado pela Yalorixá Mãe Neide Oyá
D’Oxum vem reverenciando, em forma de peregrinação, a luta e a morte dos muitos que sucumbiram
no Mocambo do Macaco.
Com uma programação que tem início ao cair da noite do dia 05 de fevereiro e, que se
estende até o raiar do dia 06, com orações, roda de capoeira, ao som de atabaques, berimbaus
e outros instrumentos percussivos, jovens, mulheres e homens das mais diversas idades sobem
a Serra da Barriga até o Parque Memorial Quilombo dos Palmares para lá reverenciarem os
antepassados que tanto lutaram pela liberdade do povo negro em terras alagoanas.
Na edição de 2017, na qual tivemos oportunidade de participar, estudantes declamaram
poesias, evangélicos professaram suas orações, candomblecistas e umbandistas entoaram cantos,
oferendas foram feitas, tudo em homenagem aos mortos no maior massacre dos quilombos das
américas, como mostra o registro fotográfico abaixo.
A Serra da Barriga é patrimônio registrado no livro do IPHAN com dois tombos como
Patrimônio Histórico e também, como Patrimônio Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Sendo
a homologação no dia 20/11/1985, dia nacional da Consciência Negra, e publicada no Diário
Oficial da União em, 31/01/1986. Além do tombamento, o bem ainda foi declarado Monumento
Nacional através do Decreto nº 95.855, de 21 de março de 1988, ano do centenário da abolição
da escravatura no Brasil.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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Fotos do Prof. Dr. Julio Cesar de Tavares

Conclusão

Entre os séculos XVII e XVIII, negros, brancos e índios organizaram a República dos
Palmares, em 1630, durante o período de lutas contra os holandeses e da economia canavieira. No
século XVIII, estabeleceu-se na Serra da Barriga o Quilombo dos Macacos, sede do Quilombo dos
Palmares. Zumbi dos Palmares foi o governador eleito e vitalício, e seu comando superior residia na
capital, a Cidade Real dos Macacos, atual União dos Palmares.
No Brasil do século XXI, muito se tem discutido e problematizado sobre o papel das
Políticas Culturais como instrumento de promoção, incentivo e salvaguarda de manifestações
culturais existentes no país, sobre a distribuição de recursos, eixos de atuação e alcance dessas

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políticas. Consideramos que além da preservação da Serra da Barriga, como bem material, os
saberes e fazeres que a compõem vêm ganhando uma dimensão de respeitabilidade às custas da
movimentação e articulação da sociedade.
O dia 06 de fevereiro não é só a data da derrubada do Quilombo, para a Yalorixá Mãe Neide
Oyá D’Oxum, o dia representa a resistência de anos dos irmãos e irmãs que sofreram e, ainda
assim resistiram, criaram uma república, constituíram uma economia sustentável e atravessaram
muitas dificuldades.
Acreditamos, após nossa participação em 2017 que, a representação da vigília está enraizada
na contemporaneidade exemplificando aos negros e negras que, apesar das dificuldades, lutar
é necessário e possível. Eles que vieram escravizados conseguiram lutar e nós reclamamos do
governo e abaixamos nossas cabeças ante às mazelas sociais que assolam o nosso povo negro.
O lugar de onde escrevemos este trabalho está situado em relações complexas, de jogos
de poderes em que ainda perpetuam velhas práticas políticas, de ideologias de dominação e
segregação, de escolhas baseadas nos padrões patriarcais e de elites brancas, que promovem
“um resgate” da cultura afro-alagoana, “resgate” das manifestações da cultura afro-brasileira,
situando muita das vezes, esses “resgates” nos interesses políticos.
Precisamos elevar a nossa cultura, mesmo com momentos que não são festivos, como esse
que fizemos parte pois a complexidade da nossa existência está em mantermos acesa a chama
do conhecimento sem, perder a raiz que nos mantem de pé e na eterna observância e militância.

Referências

ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.

ASSIS, Virgínia Maria Almôedo de. Palavra de Rei: Autonomia e Subordinação da Capitania
Hereditária de Pernambuco. Tese de Doutorado em História (Universidade Federal de Pernambuco),
2001.

CARNEIRO, Edison, O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1947.

LARA, Silvia Hunold, “Com fé, lei e rei: um sobado africano em Pernambuco no século XVII”, in:
GOMES, Flávio (org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séc. XVI – XIX). Rio de Janeiro.

MORAES FILHO, Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014.

SILVA, Maria Angélica da (Org.). O olhar holandês e o novo mundo. Maceió: Edufal, 2011.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: FOTOGRAFIA NO ENSINO DE


GEOGRAFIA
SOARES, Edimara (SEED/PR)
edimarasoares@yahoo.com.br
NETO, Clemilda Santiago (SEED/PR)
Clemilda.santiago@gmail.com

Resumo

O artigo resulta de uma pesquisa no âmbito do Estado do Paraná sobre identificação, mapeamento
das Comunidades Remanescentes de Quilombos/CRQs e Comunidades Tradicionais Negras/CTNs,
e posterior elaboração de políticas públicas, portanto, apresenta-se um recorte dessa pesquisa, cujas
fotografias compõem o acervo das autoras. A Educação Escolar Quilombola é uma modalidade de
ensino, recente no âmbito da educação nacional, considerando a aprovação da Resolução Nº 08/2012
que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola na Educação Básica,
e os séculos de invisibilidade e exclusão escolar dos/as quilombolas. A Educação Escolar Quilombola
se estrutura e se desenvolve na perspectiva de conexão entre saberes tradicionais quilombolas e o
currículo escolar, portanto, trata- se de pensar o currículo escolar sintonizado as dimensões históricas,
culturais e sociais pulsantes nas CRQs e CTNs. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo principal
contribuir com a implementação da Educação Escolar Quilombola na disciplina de Geografia, através
do uso de fotografias. Trata-se de fornecer subsídios para prática pedagógica, na perspectiva de
desvelar e interpretar espaços históricos/culturais até então ocultos no ensino da Geografia escolar.
Entende-se que a Geografia ancora-se em conceitos fundantes para análise e compreensão dos
fenômenos geográficos, tais como: lugar, paisagem, região, território, sociedade e natureza, diante disso,
optou-se pelos conceitos de lugar e paisagem, visando uma consciência espacial dos fenômenos
naturais, históricos e sociais que compõem o lugar e a paisagem quilombola. O uso das fotografias
na perspectiva da Educação Escolar Quilombola no ensino da Geografia escolar constitui-se em
instrumentos pedagógicos úteis à medida que contribuem para leitura do mundo a partir do seu mundo,
para enfrentamento das condições ideológicas de dominação e subordinação cultural e econômica.

Palavras-chave: Educação Escolar Quilombola. Ensino de Geografia. Fotografia.

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Abrindo o Tema

Historicamente, os lugares e suas paisagens têm suas origens e transformações registradas


em documentos e também pela fotografia, que revela pequenos e distintos cenários da realidade
com suas concretudes e significados, com seus valores estéticos e culturais. A fotografia constitui-
se num recurso pedagógico profícuo para o ensino da Geografia escolar, pois, nos permite
interpretar e compreender universos culturais com especificidades espaciais e históricas próximas
e distantes.
As pesquisas e estudos sobre o uso da fotografia no ensino da Geografia escolar não são
novidades, entretanto, é novo o desafio de olhar com lentes geográficas para realidades espaciais
ocultas e no ensino-aprendizagem da Geografia escolar. O desafio de reconhecer e visibilizar
lugares e paisagens que não compõem o espaço geográfico hegemônico da Geografia do Brasil. É
recente o desafio de pensar e elaborar práticas pedagógicas, didáticas e metodologias de ensino
que contemplem as especificidades históricas/sociais/culturais de um grupo étnico historicamente
ausente, silenciado, quando não estereotipado e desqualificadas pelo currículo escolar.
Não olvidemos que o Brasil manteve o “escravismo criminoso” por mais de 300 anos, e um
século após a Abolição reconhece através do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988- ADCT/CF-88 o direito dos povos quilombolas a
titulação definitiva de suas terras. Ainda, não podemos ignorar os efeitos da educação eurocêntrica,
do currículo escolar que naturalizou e veiculou a presença majoritária de apenas um grupo étnico
com características positivas e desejáveis.
Outrossim, no currículo escolar sempre houve uma seleção do que é legitimo e merece
ser ensinado, enaltecido e aprendido, portanto, nessa lógica o Estado brasileiro não necessitou
criar mecanismos oficiais de segregação para ocultar/desqualificar/excluir a população negra,
pois dentre as estruturas sociais que contribuíram para manutenção da exclusão e do preconceito
racial, a Escola teve um papel preponderante na consolidação de uma política curricular que não
reconheceu o conjunto de conhecimentos trazidos pelos africanos, por exemplo, as técnicas de
mineração, o domínio no campo da metalurgia, a confecção de cerâmicas pelas mulheres negras.
Também ocultou a presença da população negra na formação e organização sócio/territorial da
nação brasileira, entretanto, sua presença se fez e faz presente pelas diversas tradições culturais
ressignificadas em nossa sociedade.
Nesse contexto, é fundamental destacar, que a Escola embora reproduzindo e reforçando
desigualdades sócio/raciais, diferentes dimensões do racismo e distintos preconceitos
que permeiam nossa sociedade, é dialeticamente um espaço prenhe de capacidades para
transformação da realidade na qual esta inserida. Compartilhamos com Paulo Freire (2000,
p.59) quando diz que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a
sociedade muda”. Assim, não se trata de rotular a Escola como uma instituição responsável pelas
mazelas sociais, e sim, compreender como um espaço a um só tempo com muitos desafios, porém,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

com múltiplas possibilidades para desestabilizar/contestar concepções curriculares hegemônicas


e excludentes, afirmando um compromisso com povos ausentes nas políticas curriculares e nos
materiais didáticos, nesse caso, os quilombolas.
É nessa perspectiva, que pretendemos evidenciar possibilidades pedagógicas no ensino
da Geografia escolar, visibilizando lugares e paisagens, saberes tradicionais, culturais/históricos/
sociais pulsantes nas Comunidades Remanescentes de Quilombos/CRQs e Comunidades
Tradicionais Negras/CTNs1. Dessa maneira, o objetivo precípuo desse artigo é contribuir com a
implementação da Educação Escolar Quilombola na disciplina de Geografia, através do uso de
fotografias. Trata-se de fornecer subsídios para prática pedagógica, que suscitem reflexão e
construção de outras maneiras de ver e dizer sobre lugares e paisagens até então inexistentes
para os olhos dos estudantes negros/as quilombolas nos materiais didáticos.
É consenso nos escritos de pesquisadores/as, como Callai (2000); Castrogiovanni (2000);
Cavalcanti (2002); Kaercher que ensino da Geografia escolar deve ter sentido para/na vida dos
estudantes, instrumentalizando-os para interagir e compreender a dinâmica e complexidade dos
fenômenos históricos/sociais/humanos, portanto, eis a razão para reconhecer o Quilombo, a
Comunidade Tradicional Negra como lugar de vivência dos estudantes, e como esse lugar vivido,
percebido e sentido se vincula na trajetória do ensino-aprendizagem.

Educação Escolar Quilombola: necessidade e desafios

Nosso esforço nessa seção é apresentar de maneira sucinta algumas de nossas reflexões
sobre os desafios, as necessidades e as possibilidades para assegurar que a Educação Escolar
Quilombola seja um instrumento de luta, emancipação e empoderamento para milhares de
estudantes quilombolas.
Assim, é crucial destacar que há um conjunto de leis que balizam as lutas históricas das
CRQs, pelo acesso à terra, educação, saúde, entretanto, isso não significa batalhar menos, e sim,
intensificar as lutas com respaldo no aparato legal/jurídico. Dessa forma, podemos citar os marcos
legais a partir da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do artigo 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988-ADCT/88-CF,
o Decreto 4883 de 20 de novembro de 2003 e o Decreto 6040 de 07 de fevereiro 2007.
No cenário nacional a discussão sobre a necessidade de uma modalidade de ensino
que atendesse a reinvindicação dos quilombolas e povos das comunidades tradicionais negras

1 Conforme a professora Clemilda Santiago Neto, reconhecida pelo Movimento Quilombola, entidades dos
Movimento Social Negro e órgãos oficiais como “arquivo vivo” da histografia quilombola no Paraná, as Comunidades
Tradicionais Negras na época do diagnóstico, identificação e mapeamento das famílias negras não se auto-declararam
como quilombolas, pois, naquele momento essa foi uma estratégia de defesa, mediante os conflitos territoriais e várias
formas de violências, desencadeados a partir da identificação e certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Assim,
as Comunidades Tradicionais Negras são quilombolas, porém, não possuem a certificação da Fundação Cultural
Palmares. Nesse trabalho, quando nos referirmos as Comunidades Remanescentes de Quilombos e aos quilombolas,
estamos nos referindo também as Comunidades Tradicionais Negras e aos povos tradicionais negros.

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teve início a partir das deliberações da Conferência Nacional de Educação (CONAE, 2010),
considerando o Parecer do Conselho Nacional de Educação e Câmara de Educação Básica -
CNE/CEB nº 7/2010 e à Resolução CNE/CEB nº 4/2010, que instituem as Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica, e preconcebendo a Indicação do CNE/CEB nº 2/2010,
a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação instituiu, por meio da Portaria
CNE/CEB nº 5/2010, uma comissão responsável pela elaboração das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.
No Paraná, a identificação, mapeamento e visibilidade das CRQs e CTNs encontra-se
intrinsecamente vinculado a necessidade de cumprimento da Lei 10.639/003 que trata da
obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. portanto, a educação
escolar nessas comunidades permeou pautas e projetos curriculares, visando a inclusão da
população negra na historiografia paranaense.
Segundo Clemilda Santigo Neto (2012), professora/técnica pedagógica da Secretaria de
Estado de Educação, em 2002 atuando no Departamento de Ensino Médio, ela, juntamente com
colegas Maria Aparecida Bremer e Edson Liohiti, começaram pensar na necessidade de inclusão
da História e Cultura Afro-brasileira nas salas de aula, visto que, os materiais pedagógicos sobre
história da população negra paranaense eram quase inexistentes.
A modalidade de Educação Escolar Quilombola é absolutamente contemporânea no
campo da política pública educacional, considerando os marcos legais, como o Parecer do
CNE/CEB nº 16/2012 e a Resolução nº 08 de 20 de novembro de 2012 que define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Assim, trata-se
de uma política pública afirmativa em construção, de uma política educacional que acolhe e valida
saberes ausentes e vozes silenciadas. A legislação alude prioritariamente à parcela da população
negra/quilombola, mas também a todos os brasileiros/as dos diversos pertencimentos étnico-
raciais, pois, trata-se de reparar desigualdades estruturais e cumulativas.
Nesse sentido, entendemos que a Educação Escolar Quilombola se constitui numa política
de ação afirmativa, no sentido atribuído por Santos (1999), de
eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de
oportunidade e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela
discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, [...] e outros.
Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos acumulados em virtude das
discriminações ocorridas no passado (SANTOS, 1999, p. 147-157).

Assim, a construção de uma política específica de educação voltada às CRQs é uma maneira
de reconhecer e compensar no âmbito educacional o absoluto ocultamento e a invisibilidade
histórica de um grupo étnico excluído da pauta dos projetos educacionais nacionais. Mas, uma
ação afirmativa terá efeitos práticos na vida dos sujeitos se tiver como objetivo central propiciar
as condições efetivas para que as situações de desvantagem sejam superadas e eliminadas.
(SOARES, 2012, p. 07).
Importante destacar que a Educação Escolar Quilombola compreende escolas quilombolas

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

localizadas nas CRQs e escolas que atendem estudantes quilombolas. Ainda as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar, definem a Educação Escolar Quilombola conforme
orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, sendo:

A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em


suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-
cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados
os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a
Educação Básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas,
deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade cultural. (BRASIL, 2010, p.42)

Nessa perspectiva, efetivar uma política de Educação Escolar Quilombola requer


necessariamente o acionamento de categorias teóricas/conceituais que nos possibilitem aliar
saberes tradicionais, experiências, práticas culturais, relações com natureza e relações cotidianas
quilombolas com os conteúdos escolares. Outrossim, é imprescindível a escuta e o diálogo
permanente, pois conforme Freire (2006, p.113) “[...] quão importante e necessário é saber
escutar. [...] é escutando que aprendemos a falar com eles” [quilombolas].
O desafio que parece ser banal consiste na premissa de compreender o lugar do
Quilombo como um componente pedagógico, proporcionando aos estudantes quilombolas o
desenvolvimento de suas “[...] habilidades, atitudes e conhecimentos necessários para atuar no
contexto de sua própria cultura étnica, no da cultura dominante, assim como para interagir com
outras culturas e situar-se em contextos diferentes dos de sua origem”. (CANDAU, 2002, p.133).
Assim, é necessário que os conteúdos escolares estejam sintonizados com a realidade sócio/
histórica na qual os estudantes quilombolas se inserem.
A Educação Escolar Quilombola para se efetivar nas salas de aulas, precisa ter como ponto
de partida a maneira como as pessoas quilombolas se sentem, se percebem, se indagam e isso
exige o exercício de uma escuta sensível, pois, possibilita que a comunidade narre sua própria
história, reconstrua discursos arbitrários sobre o grupo e desestabilize significados que normatizam
e aprisionam seu modo de ser e agir. Dessa forma, a oralidade constitui-se num importante
mecanismo pedagógico, e, portanto, é mister entender que a tradição oral afro-brasileira, não se
traduz na ausência de domínio do mundo das letras.
A educação escolar, entendida como parte constituinte da trajetória de humanização,
formação e socialização precisa estar diretamente relacionada as práticas culturais, no que tange
a Educação Escolar Quilombola necessita estar associada com a inventividade do cotidiano
quilombola, com as lutas pela titulação de seus territórios, com a defesa pela manutenção de
seus lugares ancestrais, pela defesa de práticas agrícolas sustentáveis, pela manutenção de seus
costumes corporificados na fala, no cuidado, no trabalho, na cozinha, nos enfeites para alegrar e
energizar o ambiente, em síntese, é necessário tonificar a Educação Escolar Quilombola a partir da
ancestralidade.
Assim, é fundamental proporcionar situações de aprendizagem que valorizem as vivências

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no Quilombo, as relações cotidianas, valores simbólicos, as tradições festivas e religiosas, esse
conjunto de aspectos singulares estão costurados à ancestralidade, porque ela é um “tecido
produzido no tear africano. Na trama do tear está o horizonte do espaço; na urdidura do tecido está
a verticalidade do tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do mundo
que articula a trama e a urdidura da existência” (OLIVEIRA, 2007, p.245).
O desafio para efetivar a Educação Escolar Quilombola está intimanmente ligado ao
respeito às diferenças, que conforme McLaren (1997, p. 123) “deve ser afirmada dentro de uma
política de crítica e compromisso com a justiça social”. Ainda nessa perspectiva, é necessário o
reconhecimento da diversidade étnica/cultural de maneira contextualizada, pois, no conjunto da
diversidade brasileira existem vozes historicamente silenciadas, ausentes, marginalizadas, quando
não deformadas quando na intenção de anestesiar suas possibilidades de reação.
Nesse sentido, é um desafio e uma necessidade criar condições de ensino-aprendizagem
para se contrapor, desarticular e superar o mito da democracia racial, que mascara as práticas
racistas e discriminatórias, pasteuriza as diferenças e as desigualdades, e funciona como muralha
para efetivar politicas afirmativas (SOARES, 2012, p.121). Concordamos com Florestan Fernandes
et al. (2006, p. 179), de que,

a democracia racial faz parte de um jogo ideológico, que as desigualdades existentes entre
os segmentos étnico/raciais brancos negros, afirmando todos são iguais, e esta ideia que
se disseminou no imaginário social, favorecendo o não reconhecimento de uma sociedade
que discrimina, exclui e obedece a uma organização socioeconômica hierárquica.

Ainda destacamos como desafio e necessidade para efetivar a Educação Escolar


Quilombola, a formação docente, cuja preocupação deve ser das instituições formadoras de
professores/as, igualmente a formação continuada das secretarias de educação. A formação
docente deverá inserir a temática quilombola, negra, historicamente relegadas nas pautas
curriculares, ou posicionadas num plano secundário. Compartilhamos com Nóvoa (1992, p. 28),
de que “[...] formação não se faz antes da mudança, faz durante, traduz-se nesse espaço de
inovação e de procura dos melhores percursos para transformação da Escola”.
Assim, os desafios e necessidade acerca da Educação Escolar Quilombola, enunciados
nessa seção, são desdobramentos de reflexões, discussões e construções teóricas/metodológicas
em contínuo movimento de construção e reconstrução, portanto, não se enceram aqui.

Ensino de Geografia: retratos de lugares e paisagens quilombolas

É unânime no âmbito acadêmico a concepção de que o Ensino da Geografia escolar deve


considerar as referencias espaciais dos estudantes, as experiências trazidas do seu espaço
percebido, vivido e sentido, portanto, para além da compreensão da dimensão espacial da
sociedade é preciso encontrar mecanismos pedagógicos para contextualizar esse ensino. Nesse
sentido, Cavalcanti (2005) os estudantes constroem conhecimentos geográficos no seu dia-a-

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

dia, e que é necessário considera-los, “para serem confrontados, discutidos e ampliados com o
saber geográfico mais sistematizado [...]”.
As vivências e experiências dos estudantes quilombolas permitem várias interpretações
geográficas, entretanto, para essa reflexão e discussão elegemos as categorias geográficas
de lugar e paisagem, por entender que as marcas inscritas ali estão intimamente vinculada a
construção identitária e ao pertencimento. Assim, é possível fazer um contraponto com a lógica
globalizante, cuja tendência é homogeneizar lugares. Na concepção de Straforini (2004),

[...] Faltam-nos muito esses valores de identidade e pertencimento num mundo


que se pretende homogêneo, mas que é contraditório e diverso tanto nas relações
entre os homens, e destes com a natureza, assim como no espaço que estamos
construindo no cotidiano de nossas vidas. (2004, p.18).

As imagens a seguir evidenciam construção de cercas vivas numa CRQs, e sinalizam os


vínculos mantidos entre passado e presente, pois, outrora essas cercas vivas foram vitais para
sobrevivência.

Fonte: Neto, Clemilda Santiago (2012) Org.: Soares, Edimara

As paisagens quilombolas evidenciam a relação das pessoas com natureza, cujas marcas
expressam a dimensão da sustentabilidade. As imagens a seguir indicam possibilidades para
trabalhar conceitos relacionados a hidrografia, clima, erosão, assoreamento, relação humana com
a natureza.

Fonte: Neto, Clemilda Santiago (2012) Org.: Soares, Edimara

As paisagens fazem parte do cotidiano quilombola, compõem sua existência, com valores
e significados. Assim, é possível um “olhar espacial” para essa realidade, oculta nos materiais
didáticos. Para Santos (2002, p.103) “a paisagem é um conjunto de forma que, num dado momento,
exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza

Página 488
[...]”.
Os lugares e paisagens quilombolas mostram os ritos cotidianos da sustentabilidade, dos
hábitos alimentares, enfim, das invenções úteis ao ritmo da vida. As imagens a seguir sinalizam
vivências de um grupo étnico que precisam ser geografizadas, textualizadas, articuladas aos
conteúdos escolares, pois a partir daí a Geografia escolar terá sentido na vida dos estudantes
quilombolas.

Fonte: Neto, Clemilda Santiago (2012) Org.: Soares, Edimara

No que tange aos hábitos alimentares Certeau (1988) diz que,

[...] cada hábito alimentar compõe um minúsculo cruzamento de histórias. No invisível


cotidiano, [...], empilha-se de fato uma montagem sutil de gestos, de ritos, de códigos,
de ritmos, de opções, de hábitos herdados [...] comer serve não só para concretizar um
dos modos de relação entre as pessoas e o mundo, desenhando assim uma de suas
referências no espaço tempo (CERTEAU, 1998, p. 235-250).

Assim, lugares e paisagem quilombolas são para além do que nossa visão alcança,
expressões simbólicas de um grupo étnico, heranças não necessariamente fixas, inscritas na
relação humana com a natureza.
As imagens a seguir mostram a arquitetura quilombola expressa na construção das casas.
Os materiais utilizados permitem uma regulação térmica da temperatura, evidenciam, portanto,
saberes tradicionais. Assim, é possível relacionar as experiências dos estudantes quilombolas em
seu cotidiano com os conceitos/conteúdos da Geografia escolar, uma vez, que estão vinculados
com as “coisas concretas da vida, [...] e tem sua efetivação num espaço concreto aparente e
visível, permite e encaminha o aluno a um aprendizado que faz parte da própria vida e como tal
pode ser considerado em seu significado [...]” (CALLAI, 2001, p. 143).

Fonte: Neto, Clemilda Santiago (2012) Org.: Soares, Edimara

Compartilhamos com Mia Couto (2003, p.53), que “o importante não é a casa onde

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

moramos. Mas onde, em nós, a casa mora”. Isso implica reconhecer nos sentidos, os significados,
as histórias que habitam cada casa, nas diferentes comunidades.
Os lugares e paisagens quilombolas expressam distintas formas de resistências e
enfretamento as várias violências sociais. É importante visibilizar e reconhecer nesses lugares
e paisagens a luta das mulheres negras quilombolas. Nesse contexto destacamos as mulheres
mais velhas, em alusão as tradições de matriz africana, onde velhice é sinônimo de sabedoria. As
imagens a seguir mostram essas mulheres em suas atividades cotidianas.

Fonte: Neto, Clemilda Santiago (2012) Org.: Soares, Edimara

Nesse sentido, a escritora Walker (2001, p.30), destaca a positividade das mulheres velhas
e seu orgulho em ser. A autora traz a seguinte proposição reflexiva:

Talvez um estudo sobre a Velha ajude a tirar nossas velhas do armário onde foram
escondidas, da invisibilidade social e dos rótulos pejorativos. Ao mesmo tempo, pode
revelar aos homens alguns de seus próprios segredos mais escondidos. [...] precisamos
compreender o que nossas imagens significam em termos humanos para podermos
usá-las como mapa para o autoconhecimento essencial para a construção de um mundo
melhor no futuro. (WALKER, 2001, p.30).

Assim, a visibilidade e sabedoria das mulheres negras quilombolas também compõem


os lugares e paisagens quilombolas, seus protagonismos e resiliências se sobressaem mediante
várias estratégias de sobrevivência.

Saindo do Tema

Neste artigo buscamos provocar uma reflexão sobre o ensino da Geografia escolar, e os
desafios, necessidades e possibilidades para implementar a modalidade de Educação Escolar
Quilombola. Nosso foco para discussão foram as categorias geográficas de lugar e paisagem
articuladas as imagens das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Paraná.
Entendemos que a Educação Escolar Quilombola não é uma “tábua de salvação” para
estudantes quilombolas, e, sim, uma proposta de tratamento pedagógico e estrutural específica,
visando precipuamente corrigir desigualdades histórico-sociais no âmbito educacional. Assim, é
urgente visibilizar, geografizar os as CRQs, para que os estudantes quilombolas compreendam
suas realidades, e tenham instrumentos para subverter discursos e práticas de dominação e

Página 490
subalternização.
É um desafio e uma necessidade para o ensino da geografia escolar considerar os lugares
e paisagens quilombolas, com suas histórias, que mostram o resultado das relações que se
estabelecem entre as pessoas, os grupos e também das relações entre eles e a natureza.
A Educação Escolar Quilombola é uma luta no contexto de uma política curricular que visa
superar os efeitos de uma exclusão educacional histórica e perversa. É um desafio e uma tarefa
que envolve a todos nós educadores/as no que Williams chamou de ‘jornada da esperança’ em
direção a ‘longa revolução’. Fazer menos, não nos envolvermos nesta tarefa, é ignorar a vida de
milhões de estudantes [negros quilombolas] (...) Não agir é permitir aos poderosos que vençam
(...) (APPLE, 1997, p.254).

Referências

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ENTRE O QUILOMBO E O TERREIRO: PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO DE
MULHERES E CRIANÇAS DA TOCA DE SANTA CRUZ, PAULO LOPES (SC)

BOTEGA, Gisely Pereira (UFSC)


gibotega@gmail.com

Resumo

Este trabalho apresenta um recorte de uma pesquisa de doutorado em Educação e tem por objetivo
conhecer e apresentar processos de socialização entre mulheres e crianças moradoras da comunidade
quilombola Toca de Santa Cruz do município de Paulo Lopes/SC. Os dados foram coletados a partir de
uma abordagem etnográfica e inspirada em Geertz (1989), compreendo que a pesquisa percorreu
os meandros de uma abordagem etnográfica que exigiu o estranhamento e a familiarização com a
realidade pesquisada, uma vez que estranhar o familiar é condição essencial para apreender aquilo que
é diferente de mim e que pode ensinar algo novo, e tornar familiar o que é diferente para compreendê-
lo. Abraçar a etnografia como um território para o conhecimento do observado implica estabelecer
relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um
diário, e assim por diante. Neste texto, apresentarei registros do diário de campo produzidos através
de observação participante em cerimonias religiosas de um terreiro de umbanda localizado fora do
quilombo frequentado pelo núcleo familiar de uma Yalorixá quilombola. O que percebi é que nesse
espaço do terreiro as práticas de socialização atuam sob relações intrageracionais de modo que os
processos simbolizados pela cerimonia, bem como as vestes e os adereços ali partilhados, incidem
como um complexo processo social que inscreve os(as) sujeitos(as) que ali estão. Mulheres e crianças
em relações de mútua interdependência atualizam a ancestralidade, memória, tradição através de
rituais onde o sagrado reúne a esfera conectiva da vida cotidiana com o tempo (passado, presente e
futuro/além). Essa cosmogonia complexa incide sobre a cotidianeidade das crianças e das mulheres,
pois é compreendida como uma construção simbólica que atua sobre os modos de existência na Toca
de Santa Cruz.

Palavras-chave: Quilombo. Processos de socialização. Terreiro de Umbanda.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1.0 Introdução

Este trabalhou traz um recorte de minha pesquisa de doutorado em Educação1 a qual
discute os processos de socialização entre mulheres e crianças no quilombo Toca de Santa Cruz
localizado no município de Paulo Lopes (SC). Aqui, o objetivo principal, é dar visibilidade para
uma das mulheres participantes de minha pesquisa a partir de suas relações de parentesco que
extrapolam os vínculos consanguíneos para apresentar sua ligação com terreiros de umbandas na
região da grande Florianópolis. Natalina2, como é conhecida, é yalorixá e frequenta terreiros desde
sua pequena infância com familiares. Tal prática de ancestralidade vem sendo perpetuada com
seus(uas) filhas(os), netos(as) e bisnetos(os) os quais são considerados(as), na sua genealogia,
como sendo de sangue e/ou de criação. Neste exercício de preservar sua religião de matriz africana,
Natalina se desloca do quilombo junto de seus(uas) familiares, entre eles(as) as crianças, para
frequentar os terreiros. Neste movimento, expandem os processos de socialização quilombola
junto ao povo de santo.
As práticas de socialização são aqui compreendidas como movimentos pedagógicos
inseridos na formação humana desses sujeitos, mediados por uma afetividade sinuosa para compor
suas relações uns(umas) com os(as) outros(as), ensinar valores e possibilidades de pertencimento
sociocultural. São práticas transversalizadas pela oralidade, pela tradição, pela ancestralidade, por
relações de poder, de gênero, de feminilidade, raça, pertencimento, movimentos da diáspora, da
inventividade e dos modos de resistências. Práticas que dizem como essas mulheres tornam-se,
a todo tempo, como negras e quilombolas, na potência política, afetiva e estética dos encontros
com a infância quilombola.
Escolhi, para essa problematização, uma abordagem etnográfica, ciente de que outra
metodologia poderia inviabilizar a opção por interpretar o observado. A partir da inserção etnográfica
no terreno de pesquisa construí análises provisórias e indagações possíveis a partir de algumas
leituras. Arrisco-me a dizer que uma das provocações principais da etnografia é a oportunidade
de deslocamento do(a) pesquisador(a), que ao estranhar aquilo que lhe é familiar, tem a chance
de estranhar a si mesmo, a sua linguagem, a sua escrita, as suas convicções, suas perguntas e
respostas, o seu olhar. A abordagem etnográfica permite a proximidade física e social diária com
as pessoas participantes. Portanto, podemos acessar alguns modos de como se relacionam os
sujeitos. Nesse permanecer próximo há outro componente relevante:

[...] o etnógrafo busca uma profunda imersão no mundo de outros, de modo a captar o que
estes experimentam como algo dotado de importância e significado. Através da imersão, o
pesquisador de campo vê, de dentro, como as pessoas conduzem suas vidas, como elas

1 A referida pesquisa se inscreveu na linha ensino e formação de professores do programa de pós-graduação


da UFSC. Foi orientada pela professora Drª Ana Maria Borges de Sousa e coorientada pela professora Drª Patrícia de
Moraes Lima. Contou com financiamento através da bolsa UNIEDU/FUMDES.
2 Neste trabalho é feito a nomeação real, pois recebi autorização dos sujeitos da pesquisa. Fonseca (2010, p.
207) sugere que a maneira como “nomeamos os(as) nativos(as) define, entre suas múltiplas variantes, qual etnografia
estamos propondo.”

Página 494
desempenham seus afazeres cotidianos, o que consideram significativos e como o fazem.
A imersão na pesquisa etnográfica, consequentemente, confere ao pesquisador o acesso
à fluidez da vida de terceiros e melhora sua sensibilidade para processos e interações
(EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013, p. 356).

Inspirada em Geertz (1989), a pesquisa percorreu os meandros de uma abordagem


etnográfica que exigiu o estranhamento e a familiarização com a realidade pesquisada, pois
estranhar o familiar é condição essencial para apreender o diferente de mim e o que pode ensinar
algo novo; e assim, tornar familiar o que é diferente para compreendê-lo. Abraçar a etnografia
como um território para o conhecimento do observado implica estabelecer relações, selecionar
informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim
por diante. Praticar a etnografia sugere, portanto, construir descrições densas, em busca das
significações produzidas pelos sujeitos. O trabalho de quem escolhe uma abordagem etnográfica
é como ler um manuscrito estranho, assim, é necessário realizar entrevistas com as informantes,
conviver e conversar com elas, observar seus rituais, compreender os termos de parentescos e
escrever em um diário.
Tendo como horizonte o que Lima (2015) traz acerca da importância de observar as
realidades de uma maneira interessada, com um olhar etnográfico permitindo captar que a
existência acontece a partir do outro, compreendo que as informações desta pesquisa reuniram
observações participantes, entrevistas, conversas informais, rodas de conversa, participações em
cerimônias religiosas, registros em meu Diário de Campo, em composição de um mosaico vivo e
intenso. Fonseca (1998) anuncia que o registro no diário de campo exige disciplina e organização,
pois requer um tempo maior do que aquele que estivemos no campo. O diário, portanto, é
uma ferramenta metodológica que permite nossa (re)visita, além de ser um espaço em que o
pesquisador(a) registra suas angústias, medos, dúvidas, questionamentos.
Neste texto busquei focalizar minha participação em cerimônias religiosas de dois terreiros
de Umbanda: “Tenda espírita Ogum Megê” e “Centro Espírita Choupana de Obaluauê” localizados
em Florianópolis e região. A minha participação nas cerimônias religiosas se deu a partir do convite
da yalorixá Natalina. Assim, pude participar de saídas de camarinha, gira de Ogum, gira de Iemanjá,
festa de pretos(as) velhos(as) e de Exu/pomba-gira.

1.1 Natalina: yalorixá quilombola guardiã da ancestralidade

Natalina possui 64 anos de idade e está casada há 50 anos com seu Nilzo, hoje com 80
anos. Juntos criaram oito filhos biológicos, quatro mulheres e quatro homens. Também assumiram
a criação de outros oito filhos (três mulheres e cinco homens), que lhes contemplaram com vinte e
nove netos(as)e três bisnetos(as). Natalina não é natural de Paulo Lopes/SC. Seu pai cresceu em
uma região que ainda vem sendo reconhecida como quilombo, no município de Santo Amaro da
Imperatriz/SC, segundo ela, numa rua que leva o nome de seu avô: escravo Francisco Tolentino
Lemos. Já sua mãe, era natural de Florianópolis/SC, numa área quilombola conhecida como Vidal

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Martins. Natalina foi criada na região central da capital catarinense conhecida como Morro da
Caixa3 e ali criou os(as) filhos(as), trabalhou e viveu processos relacionados com a vida urbana.
Faz 20 anos que possui residência na comunidade e lá se estabeleceu definitivamente, há 13 anos.
Natalina foi eleita a primeira líder da Associação Quilombola e permanece a ocupar esse
lugar de liderança até hoje, por isso passei a frequentar a sua casa com certa regularidade para
saber mais sobre as questões relativas ao processo de reconhecimento. Sua casa fica em um
ponto central da comunidade, e, ao redor, há outras casas de famílias quilombolas. Na frente, é
comum os(as) moradores(as) quilombolas reunirem-se para jogar, brincar, ouvir música, organizar
festas e conversar. Como não há ambientes de lazer na comunidade (praças e clubes), os(as)
moradores(as) criam espaços de encontro na rua, o que garante, minimamente, o lazer e a
interação. Natalina relatou, em entrevistas e momentos informais de conversa, que ela e o marido
são aposentados, ela como auxiliar de serviços gerais em uma empresa prestadora de serviços,
trabalhava no setor de limpeza.
Na sua residência, Natalina acolhe seu cunhado, diagnosticado com problemas de saúde
mental e que se encontrava em situação de abandono dos filhos e ex-companheira. Recentemente
acolheu uma sobrinha e seu marido que vieram da capital catarinense em precárias condições
econômicas. Ela dizia: onde cabe 10, cabe 20. A minha casa é assim, se precisar pode vim. Sua
casa foi construída pelo marido, que mesmo tendo 80 anos e com problemas para se deslocar,
devido a uma doença crônica na coluna, conseguiu construir a moradia e ir reformando-a quando
necessário. Muitas vezes, quando de minhas visitas em sua casa, via-o trabalhando com as
ferramentas na cintura.
Percebia também seu apreço por plantas e animais. Na frente e nos fundos de casa,
cultivava plantas e ervas, e em alguns momentos que saímos juntas, era comum ela ficar atenta
e sempre que podia trazia mudas para plantar e, após algum tempo, mostrava-me seu cultivo.
Demonstrava muito carinho e vínculo também com os animais, entre os bichos há cachorros,
gatos e coelhos. Outro aspecto que sempre chamava atenção em Natalina era sua capacidade de
interação e comunicação. Nos diversos contextos em que circulei com ela, percebia o quanto era
observadora. Nunca a vi intimidar-se em nenhuma situação e frente a ninguém. Por vezes via o
grupo de quilombolas chamá-la de “porta-voz”. Ela mesma reconhecia que sempre falava demais,
eu queria que outras pessoas da comunidade também falassem. Ela também fazia planos de
voltar a estudar na Educação de Jovens e Adultos para conseguir acessar ao Ensino Superior. Fazia
planos de cursar Assistência Social. Ela sempre conseguia colocar suas opiniões, e em presença
de outras pessoas diz o que pensa: eu não mando recados. Diante de falas, situações, cenários
que não gostava, ou não concordava, Natalina posicionava seus argumentos consistentes.
1.2 O Quilombo Toca de Santa Cruz

3 O Morro da Caixa (ou Mont Serrat) é uma das comunidades que compõem o Maciço do Morro da Cruz em
Florianópolis/SC. O nome é uma referência por ali estar o reservatório de água que abastece o centro da cidade. O
reservatório (3.000 m³), inaugurado em 1910, permanece até hoje e ainda abastece parte da cidade de Florianópolis/
SC. A captação da água, a partir de 1945, passa a ser do reservatório de Pilões, em Santo Amaro da Imperatriz/SC.
Informações em: http://www1.an.com.br/ancapital/2000/set/17/1ult.htm. Acesso em 01 maio 2017.

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O município de Paulo Lopes/SC foi colonizado por açorianos(as). Segundo consta no site
da Prefeitura Municipal e nos registros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)4
O processo de ocupação do município ocorreu a partir do século XVII, quando algumas famílias
açorianas, sob o comando do coronel da força militar portuguesa, Paulo Lopes Falcão, construíram
suas casas, desbravaram e cultivaram a região com o apoio de índios carijós, que, em pequeno
número, viviam no local, e de escravos africanos. Os que ali viviam dedicavam-se, principalmente,
à fabricação de farinha e ao cultivo do milho.
A comunidade de Santa Cruz, conhecida popularmente como Toca, passa por um processo
de reconhecimento quilombola que se intensifica desde o ano de 2007. Vale salientar que foi
sancionada uma lei municipal de reconhecimento da Associação Comunitária Quilombolas da
Toca de Santa Cruz, a Lei nº 1.319, de 3 de março de 2009 (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2009,
p 1). É possível verificar no endereço eletrônico da Fundação Palmares o registro da comunidade5.
A Toca de Santa Cruz fica localizada bem próxima ao centro da cidade de Paulo Lopes/SC.
Há também o apoio significativo do Movimento Negro Unificado (MNU), que atua no debate
permanente com os(as) moradores(as), especialmente em ações perpetradas pela Associação
Quilombola. Destaco que, desde março de 2015, vem sendo produzido o relatório antropológico,
através do trabalho realizado por uma antropóloga, um historiador e uma ambientalista, todos
contratados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). No início do ano
de 2017, o relatório antropológico foi enviado para a superintendência estadual do INCRA e após o
período previsto foi aprovado e agora (tempo da escrita deste texto) iniciou a produção do Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do reconhecimento territorial. A comunidade é
constituída por um número de aproximadamente cento e vinte6 moradores(as) quilombolas, de
diferentes gerações, sendo a maioria de baixa renda. Além das famílias quilombolas, vê-se, cada
vez mais, um número expressivo de famílias brancas habitarem tal território, processo que ocorre
desde a década de 19707.

2.0 Entre o Quilombo e o Terreiro: processos de socialização das mulheres com as crianças

Na cerimônia gira8 de Ogum, Natalina revela-me que é filha deste orixá, por isso, todo
o esforço para vir à cerimônia numa noite chuvosa; a capa vermelha, usada para dançar, e o
penteado nos cabelos, são símbolos reveladores de seu pertencimento étnico-racial e religioso.

4 As informações estão disponíveis em: https://goo.gl/lxI8OX. Acesso em 20 abril 2016.


5 Informações sobre o processo podem ser verificadas em:http://www.palmares.gov.br/?page_id=88#>. Acesso
em: 10 junho 2016.
6 Dado obtido em 20 de março de 2016 através da apresentação do relatório antropológico na comunidade,
documento ainda não disponibilizado pelo INCRA para consulta.
7 Para mais informações sobre o quilombo sugiro ver outras pesquisas produzidas por mim: Botega (2002,
2006) e de Botega e Tramonte (2015
8 “Gira = Orda ritual, com cânticos e danças, para cultuar aos santos e as entidades espirituais, formadas pelos
filhos de santo (médiuns). O mesmo que canjira e enjira” (CACCIATORE, 1988, p. 131).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Dois símbolos que compõem uma estética da feminilidade e a devoção negra. A capa vermelha
usada como um adereço pela mãe de santo Natalina aguçou a minha curiosidade de compreender,
um pouco mais, o universo do sagrado. Ela disse:

Eu usei a capa porque sou filha de Ogum e também de Oxum. No caso, como eu sou
Ogum de frente, quando faz uma obrigação assim de deitada, aí o meu cabelo é raspado,
porque eu sou filha de Ogum, de homem9.

Aproveitei mais esse encontro para lhe perguntar: como você descobriu que era filha deste
orixá? Ela disse: no desenvolvimento, o primeiro santo que vem é o chefe de cabeça. No meu
caso foi Ogum, então eu sou filha de Ogum. Pergunto como ela soube que era Ogum? O que
aconteceu no desenvolvimento? Ela relata:

Oh Gisely, meu pai já trazia já de berço como diz o ditado; meu pai era de Umbanda, era
curandeiro, aliás, a família toda era, as minhas tias, as minha primas, todas eram, então já
tinha que ser mesmo. A Nataniela é filha de Iemanjá e obaluauê. A Andreia, de Oxum e
Ogum e a Luciana é Oxum e Ogum10.

Na festa de Exu/Pombagira11, Natalina tinha permissão para vir acompanhada de mais


familiares, como os(as) netos(as), Ana Francisca, Andriano, Iara e Ana Luiza e das filhas: Andreia,
Nataniela e Luciana. Além do genro Alcedino (marido de Andreia). Luciana e Nataniela queixaram-
se dizendo que gostariam de ir com mais frequência ao terreiro, mas a distância entre Paulo Lopes/
SC e Florianópolis/SC era um impedidor. Luciana disse com alegria e empolgação: Gisely, eu cresci
no terreiro! Vou ao terreiro desde pequena e quando eu posso levo as minhas filhas12. Ana Luiza
é sua filha e ali a acompanhava. Nataniela é a mãe de Ana Francisca e, como pude observar, sua
filha está sempre acompanhada da avó Natalina. Ana Francisca é cambone13. Nataniela também
me relatou que frequentava terreiro desde criança: “a gente no terreiro já ia desde novinha, já se
criou lá dentro”. Na época em que eram crianças, elas moravam na região central de Florianópolis/
SC, o que possivelmente facilitava a incursão em diversos terreiros da cidade.
Ao final da cerimônia Nataniela compartilhou comigo onde tem exu e pombagira, a coisa
é assim: muita dança, bebida, risada e gente de fora. É uma festa só.14 A festa entre o povo
de santo integra o plano espiritual e o concreto, referindo-se às dinâmicas internas dos grupos.
As motivações para as comemorações festivas “vão desde o nascimento de um filho carnal,

9 Informações contidas no Diário de Campo de 22 de abril de 2016.


10 Informações contidas no Diário de Campo de 22 de abril de 2016.
11 Informações contidas no Diário de Campo de 27 de novembro de 2016. Vale ressaltar que as mulheres as
quais se refere são suas filhas biológicas.
12 Informações contidas no Diário de Campo de 27 de novembro de 2016.
13 “Cambone: auxiliar assistente de sacerdote ou dos médiuns incorporados, na Umbanda, na Cabula e em
outros cultos de influência bântu. Entre as suas funções estão as de auxiliar os médiuns incorporados, acender
charutos, cigarros e entrega-los às entidades incorporadas, servi-lhes bebidas, acender velas, anotar receitas dos
guias, traduzir para os consulentes a linguagem especial dos pretos-velhos, etc” (CACCIATORE, 1988, p. 77).
14 Informações contidas no Diário de Campo de 27 de novembro de 2016.

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aniversário de um médium ou chefe de terreiro, até datas religiosas fixas de determinados orixás,
ou ainda, oferendas e obrigações devidas a estes” (TRAMONTE, 2010, p. 244). A dimensão do
riso, aliado à dança e oferendas, faz dele também uma forma de resistir e um modo de referendar
o universo sagrado.
De todas as sessões que participei, com Natalina e seus familiares, observar o lugar
da criança na cerimônia religiosa merece destaque, especialmente para pensar o convívio da
criança com o terreiro. Os estudos de Caputo (2012) inspiraram outros saberes em torno da
participação das crianças nos terreiro de Candomblé, na cidade do Rio de Janeiro/RJ. A presença
das crianças nas cerimônias de batismo, denominada também como iniciação, parece aguçar o
toque dos atabaques e animar a circulação dos(as) cambones. São inúmeras crianças presentes,
acompanhadas de seus familiares. O aspecto da educação nos terreiros mostra numerosos
símbolos e linguagens que as crianças negras quilombolas encontram no terreiro, e ampliam as
referências de sua matriz religiosa africana.
Pude explorar o tema em uma visita que fiz ao núcleo familiar de Natalina. Era um domingo
pela manhã, decidi ir até sua casa. Ao chegar, Natalina logo me convidou para o almoço em família.
Ela estava na cozinha preparando a comida para os(as) filhos(as) e netos(as) e, segundo ela, todos
desceriam para ali almoçarem. Ressaltou que após o período da quaresma, eu seria chamada para
ir a outro terreiro frequentado por elas, na cidade de Palhoça/SC. O terreiro pertence ao seu irmão
de santo Davison e é frequentado por elas há algum tempo. Aos poucos, suas filhas e netas(os)
chegavam para participar do almoço coletivo. Nesse momento, Nataniela mostrava vídeos e
fotografias do terreiro o qual queriam que eu conhecesse. Aproveito para perguntar, inspirada nas
pesquisas de Caputo (2012), o que as crianças aprendiam no terreiro? Nataniela é a primeira falar:
elas aprendem a servir. Pergunto: servir a quem? Ela responde: aos orixás da mãe. A criança ainda
não tem o seu orixá para servir? Ela diz: “não, mas vai desenvolvendo”. Como você descobriu seus
orixás? Ela narra: os meus são Iemanjá e Obaluauê. A mãe, como mãe de Santo, falou para mim,
ela descobriu. E o que você aprendeu na Umbanda? Aprendi muitas coisas, a servir, a botar a
toalha para bater cabeça15 para os santos, ajudar a servir, ajudar na comida de santo quando tem
obrigação, quando tem descarrego, tudo isso.16
Na continuidade do diálogo perguntei a Nataniela como se sentia acompanhando sua
filha, Ana Francisca, começando a atuar no terreiro desde cedo? Então me disse: É bom. Se ela
quiser seguir este caminho a vontade é dela. Andreia acrescenta que Ana Francisca sempre está
pronta para ir às sessões, seja onde for. Perguntei a Andreia o que as crianças aprendiam indo ao
terreiro? Disse: elas aprendem a servir aos orixás. A colocarem as toalhas para os orixás bater

15 “Bater cabeça: fazer o cumprimento ritual ao chefe do terreiro, aos atabaques, a um visitante ilustre ou a ogã
de alta hierarquia, em sinal de respeito. Na Umbanda, o médium deita-se no chão, frente ao altar, bate de leve a testa à
direita, à esquerda e de frente. Levanta-se e novamente bate a cabeça por três vezes, à borda do altar. Deita-se, então,
ante o pai de santo e repete as batidas de cabeça. Às vezes, ajoelha-se depois e beija-lhe a mão. Os cumprimentos
são feitos no princípio e no fim de sessões públicas” (CACCIATORE, 1988, p. 64).
16 Informações contidas no Diário de Campo de 26 de fevereiro de 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

cabeça. Prestam atenção para um dia, quando quiserem, trabalhar com o santo.17 Indaguei como
ela queria que seus filhos (Andriano, Andressa e Iara) participassem do terreiro? Ele eu quero que
participem tocando atabaque e comecem a servir para mais tarde trabalharem com os orixás.
Em seguida, mostrei curiosidade em saber como tinha sido a sua iniciação no terreiro.

Eu tinha uns dez anos. No começo eu ficava meio tímida, aí as gurias (irmãs) faziam sinal
que era para eu servir aos orixás. Eu comecei no terreiro da mãe, lá na Costeira (bairro de
Florianópolis). Quando ela corria a gira, às vezes eu botava a roupa para servir aos orixás
dela.18

E o que você aprendeu? Ela continuou narrando: eu aprendi a servir, a ver eles (povo de
santo), a trabalhar com os orixás; mais tarde vou trabalhar com meus orixás de cabeça. Sou
filha de Ogum e Oxum. Como você descobriu que era filha destes orixás? Assim, quando no
desenvolvimento19, às vezes a mãe botava para eu desenvolver, aí tocava para o santo, aquilo
mexia comigo. Foi assim que foi descoberto20. Natalina preparava o almoço e ouvia nossas
conversas e disse: olha Gisely, as crianças aprendem muitas coisas no terreiro, principalmente a
respeitarem as religiões.21
Theodoro (1996) anuncia que a fé na religião é um dos apoios da mulher negra, seu axé. Sua
atuação na comunidade complementa a força espiritual trabalhada nas comunidades-terreiros.22
Na cultura negra, o som, as palavras, são elementos mobilizadores que conduzem à ação, que
propiciam o axé, o qual se desenvolve na comunidade-terreiro e atua como um centro irradiador
de todo um sistema cultural. E, pela oralidade, estão presentes no ritual: as cantigas, os textos
místicos, as histórias de “seres animais”, lendas, acontecimentos, as músicas, danças, aspectos
que explicitam o universo cultural negro, alimentam seu sistema de conhecimento e as relações
de grupos. No ritual, o orixá é invocado a responder por intermédio do transe individual do(a)
participante. Assim, o sujeito que fala é sempre imediato, concreto, pois só dessa forma transmite
o axé, indispensável à dinamização das trocas e da existência. Cada ato de comunicação é único,
renascendo apenas no ritual. E por intermédio “do segredo do ritual, se ligam e se constituem os
vínculos comunitários, evidenciando-se a potência do sagrado [...]” (THEODORO, 1996, p. 63).

17 Informações contidas no Diário de Campo de 26 de fevereiro de 2017.


18 Informações contidas no Diário de Campo de 26 de fevereiro de 2017.
19 “Aprendizado dos iniciados para melhoria de sua capacidade mediúnica, com a finalidade de ‘receber’
as entidades. Em sessões especiais eles aprendem a controlar o transe, a não cair no chão, a ter um determinado
comportamento, conforme os santos que recebem” (CACCIATORE, 1988, p. 103).
20 Informações contidas no Diário de Campo de 26 de fevereiro de 2017.
21 Informações contidas no Diário de Campo de 26 de fevereiro de 2017.
22 De maneira geral podem ser apontadas como religiões negras: Culto Nagô; Culto Jeje; Culto Banto.

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3.0 Algumas Considerações

Na pesquisa de Russo e Almeida (2016, p. 470) as Yalorixás, conhecidas como mães de


santo, são “consideradas eruditas senhoras guardiãs dos saberes tradicionais de matrizes africanas,
baseados nos valores civilizatórios da cultura afro-brasileira.” Através de práticas de socialização,
essas mulheres, por meio de seus gestos, das palavras, visões de mundo, da memória, por exemplo,
atuam fortemente na luta antirracista no Brasil. Ocupam um lugar de centralidade, pois fortalecem
o culto aos orixás nos terreiros. No caso, da Yalorixá quilombola Natalina, vê-se o quanto contribui a
ampliação e o fortalecimento da tradição e da ancestralidade. No espaço do terreiro e do quilombo,
as práticas de socialização acontecem nas danças das relações intrageracionais. Mulheres e
crianças, em relações de mútua interdependência, atualizam a ancestralidade através de rituais,
nos quais o sagrado reúne a esfera conectiva da vida cotidiana com o tempo passado, presente
e futuro. Essa é uma cosmologia complexa, que incide sobre a cotidianidade das crianças e das
mulheres, pois é virtualmente compreendida como uma construção simbólica que atua sobre os
modos de existência na Toca.

Referências

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perspectiva das mulheres negras da comunidade de Santa cruz do município de Paulo Lopes/
SC. 2002. 75 folhas. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Psicologia)–Universidade do
Sul de Santa Catarina, Palhoça, 2002.

______. As Relações Raciais nos Contextos Educativos: suas implicações na constituição do


autoconceito de crianças negras moradoras da comunidade de Santa Cruz do município de Paulo
Lopes/SC. 2006. 132 f. Dissertação (Mestrado em Educação)–Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2006.

______; TRAMONTE, Cristiane. Memórias de Mulheres Quilombolas: a reconstrução histórica de Santa


cruz (SC). Revista Memórias Rurais e Urbanas, Chapecó, v. 28, n. 42, p. 77-86, jun. 2015.

CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de cultos afro-brasileiros. RJ: Forense Universitária,


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CAPUTO. Stela Guedes. Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com as crianças
do candomblé. RJ: Pallas, 2012. 

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ESTADO DE SANTA CATARINA. Prefeitura municipal de Paulo Lopes. Lei nº 1319, de 03 de março
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Cruz. Disponível em: http://www.paulolopes.sc.gov.br/cms/pagina/ver/codMapaItem/58298. Acesso em: 20

Página 501
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

janeiro 2016.

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Revista Brasileira de Educação, São Paulo, Anped, n. 10, p. 58-78, jan./abr. 1999.

______. O Anonimato e o Texto Antropológico: dilemas éticos e políticos da etnografia ‘em casa’.
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A FESTA E A MÚSICA: COMO ELEMENTOS DE RESISTÊNCIA E
PERTENCIMENTO PARA OS MEMBROS DO QUILOMBO DE SÃO ROQUE/
SC

CHRISTÓVÃO, Sílvia Regina Teixeira (UFPel)


silviachristovao@gmail.com

Resumo

Este trabalho é parte da dissertação de mestrado que será apresentada, em setembro de 2017, ao
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pelotas. Tem como objetivo evidenciar
e reconstruir a história de luta dos remanescentes do quilombo São Roque/ Pedra Branca, pelo
reconhecimento do seu território, bem como a consolidação da sua identidade étnica. O Quilombo São
Roque localiza-se entre o Extremo Sul de Santa Cataria (município de Praia Grande) e o Norte do Rio
Grande do Sul (município de Mampituba). A música e a festa de São Roque são destacadas como
elementos singulares, um fio condutor para narrar à história dessa comunidade. Destacamos alguns
autores que nos embasamos para nortear nossa pesquisa. Chaui(1996), Le Goff (2000), Halbwachs
(2006), Pollak (1992).Dialogamos Meihy (2005) com Hall (1990,1993). Guarenello (2001) Burke
(1995), Abreu(1996), Brusantin(2011). Merriam (1964), Freire (1992; 1999), Gilroy (2001), entre outros.
Os resultados parciais dessa pesquisa apresentam a música e a festa, como espaço de ligação que
aproximam a comunidade nos festejos aos santos de devoção, recriando também a identidade da
comunidade. Instrumentalizando e oportunizando, a estabilidade de determinada cultura quilombola,
enquanto um espaço-tempo intrinsecamente relacionado à rotina diária e enquanto um lugar de
produção identitária, ligada a festa, a música, a terra e ao trabalho.

Palavras-chave: Quilombo. Festa. Música. Identidade

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

A Comunidade quilombola de São Roque, localizada entre os municípios de Praia


Grande, Extremo Sul catarinense, e Mampituba, litoral norte sul-rio-grandense. É um espaço
marcado por acidentes naturais de grande amplitude, nos limites da Serra Geral. A comunidade
reivindica o direito étnico baseado na história de seus ancestrais, marcada principalmente pela
condição de escravos das fazendas pecuárias dos campos de Cima da Serra São Francisco de
Paula, atual estado do Rio Grande do Sul.
A música e a festa de São Roque são destacadas como elementos singulares, um
fio condutor para narrar à história dessa comunidade. A problemática que norteia essa pesquisa
menciona a festa e a música, como um componente que os diferencia, que contribui de forma
positiva para o fomento da sua identidade étnica e de pertencimento ao território da Pedra Branca,
em um contexto tensionado de manutenção de direitos. Enfatizamos neste trabalho a década
de 1970-1980 devido aos acontecimentos que marcaram os espaços (geográficos, sociais e
econômicos) da comunidade. Metodologicamente, baseia-se na História Oral, pesquisa qualitativa,
revisão bibliográfica, trabalho de campo na comunidade com entrevistas abertas e pesquisas em
locais relevantes, ao ICMBio, (Instituto Chico Mendes da Bio Diversidade), ao (APERS – Arquivo
Público do Rio Grande Do Sul, ao AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande de Sul.
O elemento novo nessa pesquisa está nas entrevistas.Por meio dessas,evidenciamos
a festa e a música como elementos que fomentam a reivindicação de sua identidade quilombola,
enquanto um espaço-tempo intrinsecamente relacionado à rotina diária e enquanto um lugar de
produção identitária, ligada à terra e ao trabalho. A música reverbera-se no corpo. O fenômeno
de cantar determinada canção desencadeia efeitos emocionais em alguns dos moradores da
comunidade.

1 O quilombo de São Roque: música e festas como elementos de pertença

Gostaríamos de pontuar (festa e música) como elementos que contribuem para resistência
e pertencimento de um grupo étnico. Realizada anualmente no mês de agosto, a festa de São
Roque, é aceita e partilhada pelos poderes locais, conta com a participação dos mesmos no dia da
festa, assim como a constante mobilização dos membros da comunidade em função do elemento
festa.
Destacamos a festa e a música no presente trabalho, para analisar os fios que ligam a festa à
insubmissão, pensados, em primeiro lugar, a partir da história de pertença e não de rebeldia da festa
na comunidade. Festividade que é representada enquanto um espaço-tempo intrinsecamente
relacionado à rotina diária e enquanto um lugar de produção identitária, ligada à terra. Segundo
o autor Norberto Guarenello (2000), a consolidação realmente de fato de uma identidade é dada
pelo compartilhar do símbolo que é comemorado.
No caso a festa de São Roque, embora seja um evento anual, não é estanque; é uma

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produção social do cotidiano, está em constante movimento. As narrativas de nossos entrevistados
corroboram com o que estamos mencionando. “Hoje ela modificou, foi modificando muito, [...] foi
mudando, porque antes nos fazia bem grossera com o nosso ‘tiro’ do lugar”1.
O mesmo autor argumenta que festa pode ser:
(...) Parte de um jogo, é um espaço aberto no viver social para reiteração, produção e
negociação das identidades sociais. Traçam fronteiras espontâneas ou impostas, entre os
aptos a dela participar e os que são estranhos a ela. Coincide com a linha de identidade que
produz em seu interior. Identidade não homogênea. Identidade criada que é uma unidade
diferenciada e conflituosa; de cooperação e competição; uma estrutura de produção e
consumo e, portanto, uma estrutura de poder. (GUARENELLO, 2000, p.973).

O questionamento do autor é pertinente com relação às festas na comunidade São Roque,


pois a mesma se transforma nos dias que antecede a festa. Transforma-se num local de encontro
entre sujeitos dispersos no espaço, mas cuja noção de pertencimento não se esvaiu com o tempo.
O louvor ao santo São Roque é uma forma de realimentar os laços de parentesco, de amizade e
pertencimento, dirigindo os sujeitos de forma a garantir, no campo simbólico, a existência de uma
comunidade muito mais abrangente do que a que existe concretamente na área.
Os trabalhos de Martha Abreu (1999)2 nos ajudam a elucidar nossa pesquisa, a autora
esclarece que, no início do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro abrigava grandes encontros
festivos das populações negras. A partir da década de 1820, porém, tais manifestações tornaram-se
matéria de regulamentação das autoridades municipais, iniciando um processo de criminalização
das mesmas. A autora aponta com o estudo do jongo a herança de seus antepassados, as
memórias do cativeiro, as histórias da abolição e das lutas do pós-abolição por meio de versos,
desafios, danças, músicas e orações para os santos reis.
Diante das narrativas dos moradores, a festa de São Roque não teve impasse com as
autoridades municipais. O que eles alegam é que em ano de eleições municipais ocorre um
fenômeno distinto, por ser em agosto, praticamente no final do mês, visto que antecede um mês
e meio antes das eleições eles recebem uma quantidade significativa de pessoas na festa, que
não costumam estar presente nos anos “ditos normais”. Esses visitantes utilizam a festa como
forma, como meio de fomentar e promover suas campanhas. Estabelecendo uma relação de força
e poder no ambiente festivo da comunidade.
Entretanto, os remanescentes de São Roque sabem que no passar das eleições, eles
permanecerão por mais quatro anos invisíveis perante aqueles que tão próximos estiveram
naqueles dias festivos. A festa tornou-se o efetivo exercício de um direito e a bandeira de luta
dos remanescentes do quilombo de São Roque. Leva-nos a pensar em Roberto Da Mata (1990)
quando menciona as ambiguidades do mundo cotidiano e salienta que a festa é um deles. “A festa
que reconstrói o mundo”, quando nós podemos dizer diferentes, mas juntos”. (DA MATA, 1990, p.
16).

1 Pedro Oliveira morador do quilombo São Roque, entrevista no dia 29/10/2016.


2 ABREU, Martha. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830 1900.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Na abordagem de Peter Burke (1995) que discute sobre o significado da festa


delegando outro fator diferente dos que acabamos de listar. Com consequência, o autor dá a
entender ser a festa um elemento de “equilíbrio social”, aceitando que nelas existe purificação dos
ressentimentos e compensação das frustrações dos grupos dependente:
(...) a festa como um fenômeno cultural bem demarcado, um tempo coletivo em que
explosões vêem à tona como uma catarse, com estatuto de categoria histórica, bastante
bem circunscrita. (...) As festas são partes constitutivas da sociedade colonial. Teriam
elas conotação de “controle social” ou “protesto social”? Suas funções se limitariam à
diversão, pausa das tarefas cotidianas, tempo de compartilhamento entre pessoas dos
diversos estratos sociais, “ocasião de êxtase e liberação”, “válvula de escape”? (BURKE,
1995, p. 223).

As trocas culturais que nas festas ocorrem, sob suas inúmeras peculiaridades, sucedem em
sentidos distintos. Por surgir em diversos campos culturais como na arte, na estética, na música, na
religião, facilitará as afinidades pelo contato na festa, em que os aspectos mais fortes das culturas
parecem surgir de modo mais denso.
Abreu (2013)3 argumenta que, sem dúvida, as festas, sejam religiosas, sociais ou
carnavalescas, ocupam um lugar especial na nossa sociedade e nas diversas formulações sobre
a identidade dos brasileiros. Desde o século XIX é comum ouvirmos afirmações sobre o caráter
festivo do povo brasileiro. O povo do quilombo São Roque não foge a regra. Nas narrativas da
professora Diná da Silva, podemos identificar que o elemento festivo da comunidade está além da
festa de São Roque. Em 1953 foi a primeira vez que essa professora esteve na comunidade. Ela
nos relata que ao chegar à mesma a cavalo, encontrou uma recepção calorosa. “A recepção para
nós, aquelas pessoas com gaita, por que eles gostam muito de música, o povo da pedra branca, até
hoje! Gaita, sanfona, violão foi uma festa”!4 Muitos são os motivos para a festa, nessa comunidade,
seja a chegada de uma professora, seja o início de plantação ou o final de uma colheita, ou mesmo
nos pixurus5.
A festa desempenhou e desempenha um papel fundamental na conservação do sentido
identitário e a ligação com a terra das famílias deste quilombo. Como podemos ver, a festa de
São Roque, principalmente, é um evento que auxilia no cultivo da identidade no território da
Pedra Branca e apresenta um papel fundamental no processo de retorno ao quilombo, não só nos
períodos festivos, mas, segundo o senhor Pedro, morador do quilombo, “[...] No tempo das festas
os que saíram retornam para a festa, e muita gente quer volta para cá, só não volta porque não tem
mais onde morar [...]. Porque sente que este é seu lugar de pertencimento.
Segundo Carla Ladeira Pimentel Águas (2012) “o conceito de comunidade afetiva é útil
para a discussão deste fenômeno, na medida em que exige um processo de negociação entre as
memórias coletivas e individuais” (ÁGUAS, 2014, p.82). A autora apóia-se em Maurice Halbwachs,

3 ABREU. Martha. CULTURA POPULAR, UM CONCEITO E VÁRIAS HISTÓRIAS. In: Abreu, Martha e Soihet,
Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
4 Entrevista com a professora Diná da Silva dia 16/05/2016.
5 O “pixuru” é uma espécie de mutirão. Trata-se de uma prática em que se troca força de trabalho e sociabilidade.
Para saber mais Ver BARCELLOS et al., 2004, p. 338-339).

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o qual advoga que:
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam
seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com
suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que
a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum
(HALBWACHS, 1990, p. 34).

Nesse ínterim, o quilombo São Roque realiza a festa desde 1945, o período que
enfatizamos neste trabalho segue o recorte da década de 1970 e 1980 por haver uma série de
acontecimentos que marcam os espaços dessa comunidade. É coerente mencionar que a festa
de São Roque oportuniza o retorno, mesmo que simbólico ou por alguns dias, a uma terra, que
outrora foi sua ou dos seus antepassados, agora perdida. “Porque tu sabes, estamos sem terra
hoje”.6 Independentemente do cenário em que eram situadas, sentem-se acolhidos pelos que
permaneceram. A festa movimenta a comunidade, é o momento em que parte da comunidade
tem o ensejo de reunir-se, rememorando experiências passadas e emoções presentes.
A festa de São Roque é mais que lazer, é associativismo7, é solidariedade, é memória viva, é a
forma específica de mostrar e apropriar-se deste espaço. A importância de manter o sentimento de
pertencimento leva os que saem a voltar na época da festa. É assim, a necessidade de valorização
da sua própria cultura. E, portanto, da afirmação da sua visão de mundo, de entrada na busca do
sobrenatural e do tempo mítico da festa, que os impulsiona.
Ainda, é oportuno salientar que a festa de São Roque, envolve dimensões entre o sagrado e
o profano, como a presença simultânea de rezas coletivas que mobilizam um repertório específico
de hinos e orações e a realização de bailes, com muita música, danças, alimentação com churrasco
de carne de porco, pão de filho o café e bebidas de álcool.
De acordo com Mircea Eliade (1999) existem dois tempos para o homem religioso: o profano
que se inscreve na duração temporal ordinária; o sagrado que é representado por intervalos que
são, em sua maioria, festas periódicas. Quando se cumprem as celebrações, configura-se um
momento em que os sujeitos tomam consciência da manifestação do sagrado.8
Mariana Balen (2004)9 que trabalhou com a comunidade Negra de Morro Alto, RS, menciona
que as festas divulgam preceitos de entendimento, não só representações sobre o mundo a partir
das relações internas e externas aos diversos grupos observados.
Nas entrevistas que realizamos, até o momento, não encontramos vestígios de rebeldia
no contexto da festa, como os abordados por Água (2014). Martha Abreu (1999) argumenta

6 Pedro Oliveira, morador do quilombo em entrevista no dia 30/10/2016. Esta fala do senhor Pedro refere-se ao
impasse vivenciado pela comunidade, devido a sobreposição aos Parques Nacionais do Aparados da Serra e da Serra
Geral.
7 A expressão “associativismo’’ designa, por um lado a prática social da criação e gestão das associações
(organizações providas de autonomia e de órgãos de gestão democrática: assembléia geral, direção, conselho
fiscal) e, por outro lado, a apologia ou defesa dessa prática de associação, enquanto processo não lucrativo de livre
organização de pessoas (os sócios) para a obtenção de finalidades comuns.  
8 ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1999.                   
9 FERNARDEZ, Mariana Balen. Ritual do Moçambique: religiosidade e atualidade da identidade étnica
na comunidade negra de Morro Alto/RS. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, 2004.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

que o poder público empenhou-se por direcionar a população para determinado padrão de
entretenimento. Ou seja, tinha o intuito de padronizar estas festividades, também era uma forma
de estabelecer e manter determinados grupos ou comunidades sob o julgo de um poder maior.
É latente o desejo dos quilombolas de reconstituir e preservar sua identidade. Os festejos,
as formas que as pessoas fazem para manter-se no espaço geram uma territorialidade. E essa
territorialidade é constituída também pelo aspecto simbólico que a festa representa.
Assim sendo, a festa se caracteriza muito mais pela busca de reconhecimento, como um
elemento de legitimidade e de pertencimento do grupo enquanto remanescentes de quilombo.
Nesse ponto de vista, a organização da comunidade quilombola, com suas músicas e sua festa,
bem como, seu auto-reconhecimento são fatores que contribuem para a provocação da demanda
por direitos. Ainda, a festa de São Roque, se configura mais que uma atração religiosa, ela reorganiza
sua representatividade coletiva, busca a manutenção de seus valores, de suas crenças e seus
costumes e por sua identidade humana e territorial.
Além da festa de São Roque que elencamos aqui para pontuar e narrar a história dessa
comunidade, destacamos a música, que exerce um papel expressivo na reprodução de cultura,
assim como, dos remanescentes de quilombos, igualmente no atrelamento entre as diferentes
comunidades tradicionais.

2 A música no quilombo São Roque

Na pluralidade atual, a música e a festa são consideradas referências de identidade e


pertencimento de um determinado grupo. A música tem desempenhado um papel significativo
na reprodução da cultura dos remanescentes de quilombos, assim como na vinculação entre as
diferentes comunidades tradicionais.
Eu fiz uma música, tinha um fazendeiro da serra um a professora conhece? Tal de Ércio
Bora, pediu pra mim fazer uma música que falasse da Pedra Branca daí eu fiz uma música
por nome Bugio da Pedra Branca né, só que eu me esqueci faz muito tempo daí parei né de
fazer música... (silêncio). Me lembro alguma parte eu... daí, uma parte diz assim10:

O bugio da Pedra Branca

O bugio veio do mato

passando pelas barranca

a precura de um fandango

pra arrastar as tamanca

ele diz que é gaúcho

10 Paulo de Oliveira em entrevista, 30/10/2016.

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e toma canha na guampa

sempre dizendo pro povo que é o bugio da Pedra Branca

Bugio é um bicho pequeno

que apavora quando ronca

sempre sai bem no bofete

quando acha quem lhe afronta

bugio gosta de bagunça

pouca coisa não lhe espanta

ele faz de tudo um pouco porque ele é da Pedra Branca.”

Paulo Oliveira11.

1 - Imagem – 9 acervo pessoal.


Esta música, composta e cantada com o acompanhamento do acordeom é um marco, para
o senhor Paulo, o qual menciona que havia feito a pedido de um fazendeiro, senhor Élcio Boher,
estancieiro de São Francisco de Paula, que na década de 1970, comprou mais de 500 hectares de
terra na Pedra Branca, inclusive a própria “Pedra Branca” faz parte das suas terras, que estão entre
os rios Mampituba e o Josafaz. A extensão de suas terras está entre os dois Estados Rio Grande
do Sul e Santa Catarina. Não considera os moradores de São Roque como remanescentes de
quilombos. Na verdade, argumenta que foi uma criação dos mesmos, “gavo a professora acreditar
nessa história de quilombo”12.
Desse modo, precisamos, ainda não foi possível entender a relação que existe entre alguns
membros da comunidade e o senhor Élcio, pois ao ser questionado sobre a música o senhor Paulo
não soube nos dizer, estava querendo agradá-lo ou ainda reverbera os resquícios do período
escravista pelos quais vivenciaram seus antepassados, ou seja, de fazer porque o senhor branco

11 Senhor Paulo Oliveira, compôs essa música para atender um pedido do Senhor
Elcio Boher, fazendeiro de São Francisco de Paula, que adquiriu uma grande extensão de
terras no pós enchente de 1974.
Este relato também pode ser encontrado no trabalho de STEUERNAGEL, M. S. ENTRE
MARGENS E MORROS a geografia narrativa dos filhos da Pedra Branca. Dissertação de
mestrado. Curitiba. 2010.
Esta música faz parte do repertório dos irmãos cantores Paulo, Gabriel e Pedro.
12 Seu Élcio Boher em entrevista dia 14/07/2015. Hoje já não está mais morando na comunidade, devido a sua
saúde debilitada, e por não ter família com ele. Mas em tempos idos, a comunidade era movimentada com as grandes
festas promovida e patrocinada por este fazendeiro, segundo nos relata a professora Zaida Carvalho. “Seu Élcio fazia
festa de três dias”. A professora Zaida trabalhou e morou na comunidade de 1974 a 1997. Tem contribuído muito com
a pesquisa.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

determinou, porém, que sentimentos alimentam pelo rico fazendeiro, respeito, consideração?
Para Alan Parkhurst Merriam (1964), a música é um produto do comportamento
humano, possui estrutura, contudo sua estrutura não pode ter existência própria se separada
do comportamento de quem a produz. Partindo desse pressuposto, entender o significado das
músicas, que os remanescestes do quilombo São Roque criam, cantam e tocam é, compreender
por que se faz o que se faz musicalmente. Esses são pontos essenciais nesta pesquisa.
Segundo o autor Merriam (1964 apud Freire, 2010) podemos analisar, ainda, que a música
constitui um ponto de união em torno do qual os membros da sociedade se reúnem para se
dedicarem a atividades que requerem cooperação e coordenação do grupo e que, embora nem
toda música seja executada assim, há, em toda sociedade, ocasiões marcadas pela reunião das
pessoas, lembrando-lhes de seu sentimento de pertença. Maria Julia Hummes(2004) argumenta
que “A música está presente no cotidiano das sociedades e exerce várias funções, dependendo
da situação em que estiver inserida” (HUMMES, 2004, p.8).
Em seu trabalho Paul Gilroy (2001) aborda inovações “geografias” culturais e sugere que
a música da “diáspora negra” deve ser vista como um “elemento central e fundamental” para a
compreensão dos conflitos históricos da cultura ocidental pós-escravidão. Para esse autor:
O ‘contexto’ música adquire uma relevância ainda maior quando se pensa nas experiências
vividas pelos escravos africanos e seus descendentes no Novo Mundo. Como meio de
expressão (e ação), a música assumiu, para essas pessoas, um lugar ainda mais importante
já que constituía um dos poucos espaços que elas tinham para esse fim. Nesse sentido,
concordamos com o afirmado por (Gilroy,1993, p.74).

Embora as novas tecnologias tenham influenciado a música e muitas mídias optem


pela monopolização do mercado fonográfico, a música étnica tem sido determinante para a
constituição das culturas afro-descendentes. Entretanto, não podemos esquecer, é preciso
entender que não existe música longe do corpo, até porque o corpo é o veículo de sua execução
e recepção. A música reverbera no corpo. O fenômeno de cantar ou escutar determinada canção
pode desencadear efeitos emocionais em uma pessoa. Alegria, tristeza, lembranças de alguém,
melancolia, até mesmo raiva, muitos são os sentimentos que vêm aos ouvintes da música. Estes
sentimentos, quando contidos em uma comunidade onde vários sujeitos encontram-se para tocar
e cantar podem suscitar sentimentos de pertença.
Como exemplo, os cantadores e tocadores do quilombo São Roque, através da música,
movimentam-se, reivindicam sua identidade quilombola, expressam situações de conflitos
vivenciados dentro da sua comunidade. Como na música composta pelo senhor Gabriel de
Oliveira, “Direito dos Colonos” que reivindicavam o direito de permanecer na terra. Esta canção é
analisada no capítulo um da dissertação.
Para Merriam, “a música é, em um sentido, uma atividade de expressão de valores, um
caminho por onde o coração de uma cultura é exposto sem muitos daqueles mecanismos
protetores que cercam outras atividades culturais que dividem suas funções com a música”

Página 510
(MERRIAM, 1964, p. 225). Como condutor da história, mito e lenda, ela indica a continuidade da
cultura.
A música e a festa são pensadas, aqui, como espaço de ligação que aproxima a comunidade
nos festejos ao santo de devoção, reivindicando também a identidade étnica de remanescentes
de quilombo na comunidade. Não está somente associada à diversão, está ligada a uma dimensão
maior. Nas palavras de Cambria (2006) trata-se da dimensão repetidamente associada às idéias
de prazer, de festa, enfim, do lúdico. “Ao mesmo tempo, porém, graças à ambiguidade criada por
essas associações, a música sempre foi um poderoso instrumento de contestação e resistência”
(CAMBRIA. 2006 p.90). Partindo desse pressuposto, entender o significado das músicas, que os
remanescestes do quilombo São Roque criam, cantam e tocam é, compreender porque se faz o
que se faz musicalmente, são pontos essenciais.
Determinados autores13 pontuam a questão da música como instrumento de oportunidade,
de continuidade e estabilidade de determinada cultura. Nas palavras Merriam a música:
Refere-se à função da música como uma expressão da liberação dos sentimentos,
liberação das ideias reveladas ou não reveladas na fala das pessoas. É como se fosse uma
forma de desabafo de emoções através da música. Uma importante função da música,
então, é a oportunidade que ela dá para uma variedade de expressões emocionais – o
descargo de pensamentos e ideias, a oportunidade de alívio e, talvez, a resolução de
conflitos, bem como a manifestação da criatividade e a expressão das hostilidades.
(MERRIAM, 1964, p. 219).

Enquanto que para Theodor Adorno (1970), a música já não parece desempenhar um papel
predeterminado em situações sociais específicas:
[...] a música existe com função de divertimento. [...] ela presta-se particularmente a
isso, em virtude de a sua não conceptualização permitir em larga medida aos auditores
sentirem-se seres sensíveis na sua companhia, fazer associações de ideias, imaginar o
que no momento desejam. Ela assegura funções de realização de desejo e satisfação.
(ADORNO, 1970, p. 7, 8).

O assunto não é, pois, tranquilo. Ainda que se reconheça que a música possui elevado
potencial de expressividade, que age sobre nós e que é possível verbalizar os efeitos que produz e
o que evoca, está longe de ser consensual.
Focalizam-se nesta pesquisa elementos culturais, a música e a festa, mas para desenvolvê-
la precisamos contextualizá-la na comunidade quilombola, São Roque. De acordo com a
historiografia, a construção dos Quilombos foi fundamental para que houvesse a determinação
política pela abolição e, por conta das fugas, da resistência, os escravos puderam tornar-se sujeitos
de sua história, haja vista que, nas “fugas, estava presente a luta por territórios autônomos, por
liberdade digna e com acessibilidade a terra” Gomes, (2006 apud SILVA, 2008, p. 24). A música e
a festa são pensadas, aqui, como espaço de ligação que aproxima a comunidade nos festejos aos
santos de devoção, recriando também a identidade da comunidade.

13 Merriam (1964), Freire (1992; 1999), Souza (1992; 2000), Gilroy (2001), Bastos (2006) e Blacking (1973).

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Conclusão

A festa de São Roque pensada, aqui, como espaço de ligação que aproxima a comunidade
nos festejos ao santo de devoção, (São Roque) reivindicando também a identidade étnica de
remanescentes de quilombo na comunidade. Não está somente associada à diversão, esta ligada
a uma dimensão maior. Acredita-se que o elemento novo nessa pesquisa ou as inovações estão
nas entrevistas que destacam a festa e a música como elementos que fomentam a reivindicação
de sua identidade quilombola, enquanto um espaço-tempo intrinsecamente relacionado à rotina
diária e enquanto um lugar de produção identitária, ligada à terra e ao trabalho. São sujeitos
produtores e receptores de cultura, elencando os próprios traços culturais que são significativos
na construção da identidade do grupo.
Nesse sentido, talvez, ela contribua nem mais nem menos do que qualquer outro aspecto
cultural. Nem sempre outros elementos da cultura proporcionam a oportunidade de expressão
emocional, diversão e comunicação, na extensão encontrada na música.
Desse modo, a música e a festa fomentam a luta dos remanescentes do quilombo São
Roque, ressaltam um sentimento de pertença àquela terra, terra que eles habitam é deles por
direito. Mas não é só deles por conta de um documento de posse de propriedade, é deles enquanto
espaço de vida, de cultura, de identidade. Ou seja, o sentimento de pertencimento em relação ao
território é algo mais profundo.

Referências

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Página 514
QUILOMBO RINCÃO DOS FERNANDES ESPAÇO DE RESISTÊNCIA E
CONHECIMENTO

GOULART, Marcia Barragan. (UNIPAMPA)


Marciabarragan73@gmail.com
SILVEIRA, Marta Iris Camargo Messias da Silveira
Jamaicatreze@yahoo.com.br

Resumo

O presente trabalho parte de um relato de experiência vivenciado pela autora a partir de um conjunto
de atividades realizadas posteriores a palestra assistida na Biblioteca Pública de Uruguaiana RS. Esta
vivência desencadeou um processo de busca as obras e conhecimentos sobre os quilombos desta
região, nossa cidade conta com um o trabalho do e estudos realizados pelo historiador Dagoberto Alvim
Clos, mais especificamente em sua obra “Escravidão em Uruguaiana”. Tomei conhecimento da existência
de três Quilombos nesta região sendo, Quilombo Rincão dos Fernandes, local que iremos realizar nossa
proposta de intervenção e pesquisa no Programa de Pós Graduação em História e Cultura Africana, Afro
brasileira e Indígena/Unipampa, campus Uruguaiana; o quilombo Rincão da Palma e o quilombo Rincão
Capela do Ipané, estas três localidades possuem descendentes diretos de escravizados vivendo nas
comunidades, por mais precárias e desassistidas pelas políticas de estado que sejam algumas delas.
Movida pela curiosidade que despertou esta palestra, fui visitar o Quilombo Rincão dos Fernandes, ao
qual segui retornando várias vezes observando a forma de vida dessa comunidade quilombola, suas
dificuldades, lutas e resistência frente às demandas que surgem na busca de seus direitos. Somadas
as estas questões surge a necessidade dos quilombolas resinificarem-se, refletindo sobre sua história
e ancestralidade para valorizá-la e reproduzi-la em outros espaços. O momento político que se anuncia
com a retirada dos direitos dos “remanescentes de quilombos”, tem nos inquietado bastante e nos
colocado em cheque com nossos objetivos, pois dos três quilombos citados apenas um é reconhecido
como tal os demais estão em processo de registro nacional para que seus direitos sejam garantidos e
preservados, porém a existência de um movimento conservador nacional de retirada de diretos poderá
significar um retrocesso nacional na luta do povo quilombola.

Palavras-chave: Quilombo, resistência, história, direitos das comunidades remanescentes

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Desde o início de nossa compreensão sobre a história e seus desdobramentos, entendemos


que a ancestralidade quilombola significa um legado que construiu a história destas comunidades,
pois ajudaram a construir este Brasil, mais especificamente no estado do Rio Grande do Sul, cidade
de Uruguaiana, entre nossos ancestrais encontram-se os remanescentes do Quilombo Rincão
dos Fernandes.
Sendo assim, inquietada na minha função como contadora de história fui instigada pelo fato
de receber alunos de escolas e instituições para Semana da Consciência Negra na biblioteca onde
trabalho, verificar que essas crianças, adultos e os próprios professores não tinham conhecimento
de que haviam quilombos em Uruguaiana.
Essas inquietações transformaram-se em atitude quando elaborei o pré- projeto para
concorrer ao pós graduação nesta área. Neste ano de 2017, como especializanda da segunda turma
do Curso de Especialização em História e Cultura Africana, Afro brasileira e Indígena/UNIPAMPA,
campus Uruguaiana. Após a seleção e orientação, passamos a desenvolver um conjunto de
atividades junto ao quilombo, objetivando conhecer a localidade, através de uma metodologia
orientada para levá-los/as a conhecer sua própria história, valorizando-a e re-significando-a
(história oral, grupos focais, rodas de conversas); foi efetivada uma revisão bibliográfica para
complementação do resgate histórico da constituição do quilombo.
Embora tenhamos dados do IBGE comprovando que 54% da população brasileira é de
origem negra, pretos e pardos, muitos não se reconhecem como tal, porque ao longo da história
tiveram plantadas as idéias de que a cultura branca é superior e que os quilombolas por pressuposto

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são invasores de terras e preguiçosos. Esse desconhecimento de que existem regiões quilombolas
em Uruguaiana e da falta de conhecimento dos/as próprios remanescentes nos levou a pensar
uma proposta para que estes espaços fossem conhecidos e reconhecidos na sociedade.
Assim, foram propostas visitas de alunos/as da escola estadual CAIC, possibilitando o
diálogo entre visitantes e visitados resgatando a história desta comunidade, compreendendo
como surge este espaço de resistência, como se deu o reconhecimento como “quilombo”. Reflete-
se sobre o processo de organização em busca de políticas públicas, os conflitos e relações de
cooperação com as diferentes instituições, enfatizando a relação dialética emancipação e
empoderamento.

2 - Criação da Associação Quilombola Rincão dos Fernandes foi criada com o objetivo de
lutar pelos seus direitos

Conforme citado anteriormente o históriador Dagoberto Alvim Clos, sempre esteve


umbilicamente envolvido com estas questões e lutas quilombolas. Segundo ele a comunidade
foi reconhecida pela Fundação Palmares em 2010, em Agosto de 2011 formou-se a associação
quilombola, resgatando esse importante espaço de resistência histórica negra.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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Nossa ilustrações no decorrer do trabalho serão no sentido de aproximar a leitura da


realidade vivida na comunidade, onde algumas das atividades desenvolvidas em seu cotidiano, a
maioria dos/as jovens quilombolas continuam trabalhando em granjas ou estâncias dos arredores
e outros/as se deslocam para trabalhar na cidade, devido a falta de oportunidades dentro da
própria comunidade.

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A imagem, acima é da matriarca da comunidade quilombola, Dona Maria de Castro Moraes,
criou-se trabalhando na estância de Antonio Martins de Oliveira de quem herdaram as terras,
porém, era uma doação verbal, quando ele faleceu, seu filho Lindolfo Martins de Oliveira ficou
administrando as grandes extensões de terra e gado do pai. Lindolfo era um médico muito querido,
conforme conta dona Maria ele não cobrava as consultas e era um bom homem, relata ainda que
ele não tinha sorte nos negócios e isso fez que se enchesse de dívidas, vendeu até parte das terras
do atual Quilombo Rincão dos Fernandes ,as quais ele tinha a posse das terras e por um pedido
seu essas famílias ali permaneceram.
Mesmo tendo pequena parte das terras dos antigos patrões, a vida dos quilombolas
nunca foi fácil para os quilombolas, além de muito trabalho árduo aos patrões dos arredores,
parte dessas terras “vendidas” pelo estancieiro, foram habitadas por posseiros e algumas vezes
fizeram Dona Maria sentir na carne novamente o peso das injustiças, um exemlo a ser citado: foi
quando posseiros que haviam pego a parte da frente, que dá acesso à estrada federal, resolviam
fechar a porteira, cortar água de um poço artesiano que foi construído para abastecer também o
quilombo que ficava lá longe, mais abaixo, ou, ainda quando desligavam a chave que levava luz
para todos. Mas essa mulher forte, na altivez dos seus quase oitenta e quatro anos, naquela época,
não saiu, desistir da luta? “Jamais saio daqui, isto foi conquistado com muito suor e trabalho e é o
que tenho para deixar para meus filhos e netos” E assim, conseguiu assegurar a herança de seus
descendentes.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1 - A busca por políticas públicas e chegada de programas a comunidade quilombola.

O Programa Brasil Alfabetizado1 foi um programa de grande relevância na comunidade,


estimulando a busca pela alfabetização dos/as que ainda não eram e e instigando aos/as que
haviam abandonado a escola, conseguimos que uma quilombola, que tinha esquecido muitas
coisas referentes aos estudos do ensino fundamental, relembrasse, voltasse a escola concluindo
o ensino fundamental e posteriormente fez a carteira de Habiltação – CNH, lamentamos que o
programa não tenha tido continuidade na comunidade.

1 O MEC realiza, desde 2003, o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), voltado para a
alfabetização de jovens, adultos e idosos. O programa é uma porta de acesso à cidadania e o
despertar do interesse pela elevação da escolaridade. O Brasil Alfabetizado é desenvolvido
em todo o território nacional, com o atendimento prioritário a municípios que apresentam
alta taxa de analfabetismo, sendo que 90% destes localizam-se na região Nordeste. Esses
municípios recebem apoio técnico na implementação das ações do programa, visando
garantir a continuidade dos estudos aos alfabetizados. Portal MEC, pesquisado em 29 de
julho de 2017.

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Reunião com a EMATER Assinatura dos contratos com a Caixa

As imagens acima são referentes às aulas do programa, reuniões com a EMATER 2,


nesta oportunidade definiu-se quais quilombolas ganhariam construção de casas no quilombo
num primeiro momento, depois de todos os protocolos e muita espera, eles fizeram assinatura
do contrato com a Caixa Federal, vinculados ao programa da Minha casa minha vida3, alguns/
as ainda, esperam ansiosamente por outra remessa de distribuição de verbas para realizarem o
sonho da casa própria. Também foi captado recurso federal para construção do poço artesiano,
abaixo fotos do início da obra.

2 Empresa Rio-grandense de Assistência técnica e Extensão Rural.


3 O Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) foi lançado em março de 2009
pelo Governo Federal. O PMCMV subsidia a aquisição da casa ou apartamento próprio
para famílias com renda até 1,6 mil reais e facilita as condições de acesso ao imóvel para
famílias com renda até de 5 mil.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Construída a Sede da Associação Quilombola, e as casas fruto da resiliência desta


comunidade, incansável na busca de seus direitos

Foto que ilustra a construção da mangueira, buscasse possibilidades financeiras

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para aquisição de gado e ovelha para aumentar a produção, a estrada como vista acima
necessita reparos, principalmente no que se refere a conexão direto com a via federal.

Conclusão

As questões que pontuamos no início do trabalho estão longe de serem resolvidas, embora
algumas escolas já tenham conhecido e percebido a importância de levarem seus/as alunos/as
para reconhecimento “in loco”, deste espaço de resistência histórica negra, aprofundando os
estudos e diminuindo as do estranhamento.
Referente ao reconhecimento dos próprios quilombolas quanto à sua ancestralidade,
sabemos que muito daquele conhecimento se perdeu ao longo do tempo, que a negritude precisa
ser reinterpretada, considerando o atual contexto em que vivem.
Encerramos este relato de experiências e auxilio a comunidade quilombola Rincão do
Fernandes, com o sentimento de que muitos avanços serão necessários para que esta localidade
atinja o patamar de independência e direitos garantidos, entendemos também como relevante que
a Unipampa como instituição Federal tenha efetiva participação, a partir de projetos de pesquisa,
ensino e extensão no crescimento das possibilidades desta comunidade, bem como, auxilie na
emancipação e empoderamento de seus moradores.
Na situação de pesquisadora, estaremos nos apropriando de referenciais que subsidiem
nossa intenção de pesquisa e intervenções no sentido de aprendermos com estes sujeitos
e entendermos melhor seu contexto histórico, suas necessidade, e principalmente suas
potencialidades

Referências

CLOS, Dagoberto Alvim. Áreas Remanescentes de Quilombos no Município de


Uruguaiana. Palestra Proferida na Biblioteca Pública Municipal. Uruguaiana, Nov/2010.

CLOS, Dagoberto Alvim. Áreas Remanescentes de Quilombos no Município de


Uruguaiana. Palestra Proferida na Biblioteca Pública Municipal. Uruguaiana, Nov/2010.
http://portal.mec.gov.br/programa-brasil-alfabetizado

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

TERRA E CIDADANIA NA COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA


DA INVERNADA DOS NEGROS, CAMPOS NOVOS/ABDON BATISTA - SC1

ANDERSON, Maria Luísa Pereira (UFFS)


marialuisapanderson@gmail.com
SOCHA, Mateus Felipe (UFFS)
mateus_socha@hotmail.com
Resumo

Ao estudarmos o pós-abolição, adentramos em espaços habitados por descendentes de homens de


mulheres que foram escravizados, onde há uma interação sociocultural estabelecida por indivíduos
cuja ancestralidade remonta à sociedade escravista brasileira, chamados quilombos. O caso da
Invernada dos Negros, comunidade quilombola rural localizada nos municípios de Campos Novos
e Abdon Batista -SC, tem início num testamento deixado pelo fazendeiro Matheus José de Souza a
seus escravos e libertos, cujo acesso à terra é transmitido via testamento e articulada, posteriormente,
por laços de parentesco, sociabilidade e religiosidade. Os aproximadamente oito mil hectares de terra
deixados pelo senhor a seus legatários acabaram sendo expropriados, ao longo do século XX, por
fazendeiros, empresas de celulose e profissionais liberais, sendo assim obrigados à comercializa-
las. Cerca de cem anos depois da escrita do testamento, os descendentes que resistiram e ainda
permaneciam nas terras, iniciaram a luta pelo direito a propriedade de terra, que contou com auxílio do
NUER/UFSC que mapeou a comunidade como um território negro, e verificou o início da busca por
políticas públicas (moradia, saúde, educação, saneamento, luz, água, entre outros). No ano de 2003
houve a organização da Associação Remanescente de Quilombo Invernada dos Negros (ARQIN), cujo
objetivo fora o cadastramento, a união e a luta por cidadania e o direito às terras, culminando em 2004
no reconhecimento pela Fundação Cultural de Palmares como remanescentes quilombolas. A pesquisa
desenvolvida ocorreu com a investigação nos registros das 168 atas da ARQIN de 2003 à 2015. Nesta
fonte elaborada pela comunidade conhecemos a forma como a comunidade debateu terra e cidadania,
além da busca como grupo identitário a recuperação do que havia sido perdido ou tomado.

Palavras-chave: Quilombolas. ARQIN. Cidadania. Terra.

1 A pesquisa compõe o projeto do mesmo nome aprovado pelo Edital Nº 385/UFFS/2016 - BOLSAS DE
INICIAÇÃO CIENTÍFICA 2016/2017 - PIBIC/CNPq - PIBIC-Af/CNPq e PRO-ICT/UFFS, coordenado pela Profª Drª
Renilda Vicenzi.

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Introdução

A trajetória de resistência quilombola não finda no século XIX com a Abolição, mas perdura
até os dias de hoje onde a luta pela liberdade fora trocada pela luta pelo reconhecimento e pela
cidadania. Somente após mais de um século de assinatura da Lei Áurea, os quilombolas começaram
a adquirir com maior intensidade direitos e visibilidade na sociedade brasileira. Os quilombos são
muito mais que apenas um espaço geográfico mas, acima disso, um território coletivo de grande
aporte histórico-cultural, que constitui a identidade das comunidades.
Conforme estabelece o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de
1988, é dever do Estado emitir a titulação das terras ocupadas por comunidades remanescentes
de quilombos, reconhecendo-as como propriedades definitivas dos mesmos remanescentes.
Entretanto a conquista desse direito já prescrito, é uma desafio que abrange muitos territórios
quilombolas do Brasil, devido às ações de grandes fazendeiros ou empresas que, sob moldes
capitalistas, almejam a utilização das terras para obtenção de lucro.
Neste trabalho buscamos, através da leitura e reflexão das atas das reuniões da ARQIN
(Associação de Remanescentes Quilombolas Invernada dos Negros), analisar as falas dos
membros da comunidade, dos representantes públicos e de instituições que auxiliaram nesse
processo de luta pelos direitos do coletivo, entre os anos de 2003 à 2015, para compreender a luta
política da comunidade remanescente quilombola Invernada dos Negros pelo seu direto à terra e
usufruto da mesma, além da luta por direitos básicos que garantissem sua cidadania.
Após a análise das fontes, construiremos um breve capítulo abordando a identificação da
criação e formação da ARQIN, do movimento quilombola dentro da comunidade e das conquistas
nas questões da terra e na luta por direitos sociais e políticos da comunidade, contextualizando o
conteúdo com o devido aporte teórico cujas produções são referências do pós-abolição no Brasil,
possibilitando assim um novo olhar sobre a história de Santa Catarina.

1 “Nossa terra é nossa luta”

Os direitos dos quilombolas estão interligados diretamente à sua história, seus costumes e,
claro, ao seu território. Em Santa Catarina, entre os municípios de Campos Novos e Abdon Batista,
encontra-se a comunidade Invernada dos Negros (conjunto das pequenas comunidades de
Manuel Cândido, Espigão Branco, Arroio Bonito e Corredeira), fruto da doação da terça parte das
terras do fazendeiro Matheus José de Souza e Oliveira, que corresponde a cerca de 8 mil hectares,
à seus ex-escravos e libertos por meio de seu testamento lavrado em 1877.
Porém, as terras herdadas pelos legatários foram, ao longo do século XX, sendo
expropriadas por pessoas que enganavam os descendentes dos legatários com falsas procurações
e documentos. Do total previsto em testamento, “somente 4% permaneceram em domínio das
famílias dos herdeiros. A maior parte dessas áreas de terras transformou-se em regiões de cultivo

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de pinus”2 utilizado principalmente pela Empresa de Papel e Celulose Iguaçu, ou “Firma”, detentora
de grande parte do território, originalmente da comunidade Invernada dos Negros e causadora de
grandes impactos ambientais, devido à extração e replantio de celulose dos pinus existentes na
região para produção de papel.
Durante o período de Redemocratização brasileira há a retomada e a efervescência de
movimentos sociais em prol dos direitos quilombolas que, como apresenta Souza, buscavam
“propostas mais especificas do povo negro, seja na saúde, educação, segurança pública,
acesso à terra, mercado de trabalho e na promoção da cultura”3. Nesse contexto os habitantes
da comunidade Invernada dos Negros, com auxílio do NUER/UFSC (Núcleo de Identidades e
Relações Inter Étnicas), inicia sua jornada em busca de visibilidade, cidadania e o acesso às terras.
Em fins de novembro de 2003, a segunda reunião realizada na comunidade contou com
apoio de herdeiros que ainda residiam ou não na comunidade, do Ministério Público, do NUER/
UFSC e do Movimento Negro Unificado. Na ata desta reunião podemos ver o relato de vários
membros denunciando os abusos sofridos, devido a sua desigualdade na educação, como relata a
quilombola Angela Garipuna “Os letrados enganaram nosso povo” e segue “[...] o povo da cidade
não enxergava nós, só quando era pra lograr, nunca pra ajudar”4, e as heranças culturais dos
antepassados, como na fala de M.P.5 (não mais moradora da comunidade, mas sim de Fraiburgo)
diz “nosso pai falava de herança mas a gente não acreditava”6. Em vários momentos as palavras
“luta” e “união” aparecem nos relatos, pois somente com estas duas forças os quilombolas
poderiam conseguir seus direitos.
Nesta mesma reunião é criada a ARQIN (Associação de Remanescentes Quilombolas
Invernada dos Negros), buscando demonstrar a força da luta pelas terras e pela cidadania dos
integrantes da comunidade e pela garantia dos direitos básicos como saúde, educação, moradia e
qualidade de vida através de projetos implantados.
Em 2004 a Fundação Palmares reconhece a comunidade como sendo quilombola,
auxiliando no fortalecimento da luta em prol dos seus direitos, e na sequência, é realizada a
primeira reunião oficial da ARQIN envolvendo, além dos grupos citados anteriormente, o INCRA,
responsável pelo processo de cadastramento da população, metragem e demarcação das terras.
A demarcação das terras ocorre por duas frentes: a primeira realizada pelos membros do NUER/
UFSC, Raquel Mombelli7 e José Bento através de seu estudo antropológico, que aponta marcos
histórico-culturais da comunidade, e pelo próprio INCRA, na determinação física de limites.
Contudo, a demarcação de terras não foi um trabalho fácil, pois diversas contestações
foram realizadas perante a legitimidade do território quilombola, desde a própria Iguaçu quanto do

2 MOMBELLI, 2010, p.82.


3 SOUZA, 2010, p.28.
4 Arquivo ARQIN. Ata número 01, Livro 01, 30 de novembro de 2003.
5 Para preservar os associados da ARQIN utilizaremos neste trabalho apenas as iniciais dos nomes que
constam nas atas. Somente utilizaremos nomes completos quando se tratarem de lideranças.
6 Arquivo ARQIN. Ata número 01, Livro 01, 30 de novembro de 2003.
7 A antropóloga escreveu o capítulo endereçado à Invernada dos Negros, publicado no periódico “Quilombos
no Sul do Brasil: Perícias Antropológicas”, organizado por Ilka Boaventura Leite no ano de 2006.

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poder Público Municipal de Campos Novos. De acordo com Lidiane Taffarel, isso se explica porque
É a empresa Iguaçu que traz o desenvolvimento, o emprego, o retorno econômico ao
município. Pode-se entender que para a administração municipal a terra ficando nas
mãos dos negros seria um atraso para o município, [...] Se a empresa tem influência na
movimentação econômica no município, pode também ter influência política. Tudo indica
que tenha mais forças junto ao governo do que os negros da Invernada8.

Estes atritos geram certo desânimo nos quilombolas já que grande parte deles eram
funcionários/empregados na Firma e, desta forma, sujeitavam-se às condições expressas por tal.
Esse regime, de acordo com Mombelli e Bento9 se assemelham muito ao da “patronagem”, onde
o patrão impõe, controla e explora os empregados nas relações de trabalho, com baixos salários
e sob condições precárias, já que esta é a única forma de se obter uma renda sem se distanciar
muito do quilombo.
O desânimo é substituído pelos constantes apelos e reinvindicações dos membros da
diretoria da ARQIN e pelas visíveis melhorias (casa, luz) expressas na comunidade. Todavia, estes
atritos são apresentados em quase todos os anos nas atas da ARQIN, principalmente advindos
da Firma que bloqueia estradas10 além das ameaças e repressões11 em contraposição à decisão
da comunidade, entre outros, isso faz com que o processo pela demarcação do território ainda se
desenrola até os dias de hoje na Justiça Federal.
Apesar, dos entraves dos externos a comunidade, a cada encontro realizado os direitos
dos quilombolas e a luta vão ganhando força. A partir de 2005 a comunidade é envolvida em
diversos projetos, como “Casa Aberta”, “Luz para Todos”, “Fome Zero”, garantindo necessidades
básicas para os mesmos. A melhoria das casas foi, ora o primeiro caminho trilhado, porém, devido
às condições lastimáveis das residências, houve atrasos dos investimentos da Caixa Econômica
Federal e do INCRA. Em um primeiro momento 50 casas foram garantidas à comunidade, mas
no decorrer dos anos mais membros foram contemplados com suas novas residências, com
saneamento e iluminação.
No mesmo período foram garantidas cestas básicas, pelo Programa Fome Zero, aos
membros da Invernada dos Negros até que estes “pudessem andar com as próprias pernas”12,
ou seja, produzir o sustento e a renda necessários para a sobrevivência. Tal ajuda foi de suma
importância já que a área de terra destinada ao plantio e criação de gado era mínima, pois o solo
fora gasto pelo plantio de pinus. O Estado não apenas dava o amparo às necessidades mais
urgentes da comunidade, como também auxiliava no desenvolvimento de projetos de geração de
emprego e renda para as mulheres quilombolas.
No ano de 2005 foi criado o Grupo de Produção de Mulheres Quilombolas Damasia e
Margarida, nomes escolhidos especialmente por remeterem as duas filhas do casal Josepha e

8 TAFFAREL, 2016, p.35


9 MOMBELLI; BENTO. 2006, p.82.
10 Arquivo ARQIN. Ata número 05, Livro 01, 24 de julho de 2004.
11 Arquivo ARQIN. Ata número 18, Livro 01, 19 de junho de 2005.
12 Arquivo ARQIN. Ata número 42, Livro 01, 04 de março de 2006.

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Domingos, e todos legatários das terras do fazendeiro Matheus José de Souza e Oliveira, dando
vida à história da comunidade13. O grupo de mulheres trabalha com o gado leiteiro e a horta, pois
estes possibilitam um cuidado integral da casa. A justificativa da escolha destes produtos se dá
porque o leite é parte integrante da história da comunidade, já que com o leite era feito o “Camargo”
(um pouco de café forte com leite espumado), primeira refeição do dia e a horta possibilitaria uma
alimentação saudável e sustentável para a comunidade.
A identidade da comunidade se firmava cada vez mais, principalmente quanto ao trabalho
coletivo em prol da comunidade e baseado na ancestralidade, fugindo dos moldes capitalistas
e eurocêntricos. Para a quilombola Lurdinha, “Ser coletivo é construir juntos o sucesso de todos
e que quando pensamos, sentimos e produzimos coletivamente estamos resgatando a forma
de produzir das sociedades africanas”14. O trabalho coletivo de mulheres ressignifica sua vida,
trazendo reconhecimento e autoestima às mesmas, além de propiciar renda familiar. Este trabalho
proporciona às mulheres a opção de não trabalhar e ser explorada pela Firma e cuidar dos filhos
que acompanham o trabalho. Os produtos produzidos são comercializados em dias de festa
na comunidade, como por exemplo, as celebrações do 20 de novembro, entre familiares, nas
comunidade próximas.
A apropriação cultural e o resgate da ancestralidade permeiam a definição de ser quilombola
na Invernada dos Negros, visto que este quilombo tem seu sentido nas pessoas que participam
deste e devemos compreendê-lo como uma forma de organização política, social e econômica,
que luta pelo seu espaço conquistado e é mantido através das gerações15.
Não obstante, a luta pelo reconhecimento, visibilidade, cidadania e o combate ao racismo
ainda são desafios a serem batalhados no ambiente fora dos limites da comunidade. Por vezes
notam-se casos de discriminação, principalmente na escola onde as crianças estudam16, e de
descaso do Poder Público Municipal de Campos Novos, nas áreas da saúde e transporte quando
relacionados à comunidade.

13 Arquivo ARQIN. Ata número 24, Livro 01, 01 de outubro de 2005.


14 Arquivo ARQIN. Ata número 24, Livro 01, 24 de outubro de 2005.
15 LEITE, 2000. p. 336.
16 Arquivo ARQIN. Ata número 48, Livro 02, 07 de maio de 2006.

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Considerações Finais

A partir da criação da ARQIN e do reconhecimento dos quilombolas por parte do poder


público e da comunidade externa, os avanços nas conquistas dos direitos dos negros da comunidade
foram expressivos, porém representam pouco diante do que ainda pode ser garantido. A luta pela
terra é talvez o maior desafio da ARQIN, porque as diversas barreiras criadas pela Empresa e pelo
próprio Poder Público constituem processos longos e demorados que demandam esforços cada
vez maiores.
Outrora, a identidade do grupo se reafirma através dos grupos de trabalhos coletivos,
das festas comunitárias anuais e por meio da melhoria da qualidade de vida através de projetos
governamentais, além de possibilitar condições para o avanço na conquista da cidadania dos
quilombolas da Invernada dos Negros. Ressaltamos que as batalhas que são travadas em prol do
bem de todos não se findam e quilombolas tem presente o conceito de resistência à construção
de sua história.
Segundo Teco Lima, uma das lideranças da ARQIN, um quilombo significa ter história,
resistir à opressão de uma maioria branca na sociedade, porém todos estes anos de luta, por sua
terra e direitos se resume a uma simples frase: “é um botão que se abriu que nunca imaginamos
que ia se abrir e se tornar uma rosa tão bonita”17. A roseira de que Teco Lima fala é a que representa
o espírito da esperança baseada na história da comunidade e que move os membros da Invernada
dos Negros nessa árdua luta que, constantemente, abre novos botões, cada vez mais vistosos.

Fonte:
Arquivo da ARQIN: Atas da Associação Remanescentes de Quilombo Invernada dos Negros
(ARQIN). Livro de Atas 2003-2015.

Referências
MOMBELLI, Raquel. O Quilombo Invernada dos Negros (SC). In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno
de (orgs)...[et al]. Territórios Quilombolas e Conflitos. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social
da Amazônia/UEA Edições, 2010.

MOMBELLI, Raquel; BENTO, José. Relatórios Antropológicos: Invernada dos Negros. In: LEITE, Ilka
Boaventura et al (Org.). Quilombos no Sul do Brasil: Perícias Antropológicas. 3. ed. Florianópolis,
2006. p. 17-130

SOUZA, Amarildo Carvalho de. A luta pela garantia dos direitos quilombolas e as políticas
públicas de ação afirmativa: Limites e Desafios. 2010. 55 f. Monografia (Especialização) - Curso
de Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais, Universidade Federal de Minas
Gerais, Brasília, 2010.

TAFFAREL, Lidiane. Quilombolas: História e luta pela titulação de seu território, 2003 – tempo

17 Arquivo ARQIN. Ata número 57, Livro 02, 29 de julho de 2006.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

presente, Campos Novos/SC. 2016. 60 f. TCC (Graduação) - Curso de Licenciatura em História,


Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, 2016.

TAFFAREL, Lidiane; VICENZI, Renilda. Quilombolas: história e luta pela titulação de seu território,
2003 - tempo presente, Campos Novos/SC. In: Anais do XVI Encontro Estadual de História da
ANPUH-SC. XVI Encontro estadual de História, Chapecó - SC., 2016.

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EIXO 10: Educação, relações étnico-
raciais e infâncias negras
A construção de novos sentidos para infâncias negras constitui-se num
eixo de análise científica e de ações estruturais fundamentais para o país
na contemporaneidade. Assim, o simpósio proposto visa criar um espaço
de debates e articulações entre pesquisas acadêmicas e ações práticas
realizadas em diferentes âmbitos – Universidades, Organizações não-
governamentais e Secretarias de Educação – que contemplam e pesquisam
acerca do universo das infância(s) negra(s) em múltiplas perspectivas. Temos
como horizonte potencializar as reflexões sobre os problemas vividos por
meninas negras, e, meninos negros brasileiros, e, os desafios na elaboração de
políticas promotoras da igualdade racial no Brasil que pesquisadores, gestores
de políticas públicas e ativistas preocupados com as questões dos direitos
sociais para a infância vem enfrentando para constituírem a luta antirracista.
Aproximação das múltiplas dinâmicas de vida experienciada por meninas e
meninos negros não é uma tarefa fácil. Antes, se reveste de desafios sócio-
políticos e teórico-metodológicos, que demanda a
revisão da lógica que tem presidido a produção e
veiculação de conhecimentos e de práticas sociais
elaborados sobre os significados do ser criança
negra no Brasil. Neste sentido, propomos por meio
de uma perspectiva interseccional, a construção
de novas miradas de culturas e conhecimentos,
com foco privilegiado na Educação, como
caminhos possíveis para frente às construções
racistas que incidem sobre as infâncias negras.
Por tudo isso, faz-se necessário um
espaço de encontro e construção
coletiva de conhecimento por atores e
atrizes que, em suas ações, objetivam
a construção da igualdade racial – nos
diversos âmbitos dos direitos sociais – para que as crianças
negras brasileiras tenham infâncias dignas e equânimes.
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A IMPLEMENTAÇÃO


DA LEI 10.639/03 NOS COLÉGIOS DE APLICAÇÃO DO BRASIL: O ESTADO
DO CONHECIMENTO A PARTIR DAS ATIVIDADES DE ENSINO, PESQUISA
E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

GEBARA,Tânia Aretuza Ambrizi (Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional


da UFMG)
tgebara@ufmg.br
RIBEIRO, Marina Gonçalves (UFMG)
marinaribeiroufmg@gmail.com
Resumo

A pesquisa, em andamento, consiste na elaboração de um “estado da arte” ou “estado do conhecimento”,


referente às ações de ensino, pesquisa e extensão universitária que tematizam a educação para as
relações étnico-raciais a partir da perspectiva da Lei nº 10.639/03. O campo da pesquisa são os
Colégios de Aplicação (CAps) vinculados às Universidades Federais do Brasil, atualmente estes totalizam
dezessete instituições, que têm como finalidade desenvolver, de forma indissociável, atividades de
ensino, pesquisa e extensão com foco nas inovações pedagógicas e na formação docente. Trata-se
de uma pesquisa de caráter bibliográfico, com o desafio de conhecer, mapear e analisar a produção
acadêmica desenvolvida e registrada formalmente por meio de projetos de pesquisa, extensão e ensino,
no período compreendido entre os anos 2003 e 2017, em setores que fazem parte da organização
administrativa e pedagógica dos CAps, tais como: Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAPq), Centro de
Extensão (CENEX) e setores pedagógicos de cada instituição escolar. Especificamente nos setores
pedagógicos de cada CAp estão sendo analisados os projetos político pedagógicos institucionais a fim
de conhecer as formas de atendimento à lei 10.639/03. A investigação pretende aprofundar a reflexão
sobre as relações étnico-raciais no sistema de ensino federal, buscando sistematizar e compreender
os processo de implementação da Lei n.º 10.639/03 e suas Diretrizes Curriculares. Ainda é uma lacuna
conhecer o que está sendo produzido sobre a temática da educação para as relações étnico-raciais nos
colégios federais, espera-se que os resultados possam contribuir para a construção de um panorama
sobre as práticas de ensino, pesquisa e extensão que ocorrem em âmbito nacional.

Palavras-chave: Estado da arte. Produção acadêmica dos Colégios de Aplicação Federais.


Educação para as Relações Étnico-raciais.

Página 532
Introdução

Esta pesquisa consiste na elaboração de um “estado da arte” ou “estado do conhecimento”


(FERREIRA, 2002), referente às ações de ensino, pesquisa e extensão universitária que tematizam
a educação para as relações étnico-raciais a partir da perspectiva da Lei nº10.639/03. O campo
da pesquisa compreende os Colégios de Aplicação (CAps) vinculados às Instituições Federais de
Ensino Superior, que atualmente totalizam 17 (dezessete) escolas de Educação Básica, que têm
como finalidade “desenvolver, de forma indissociável, atividades de ensino, pesquisa e extensão
com foco nas inovações pedagógicas e na formação docente”, conforme o artigo 2º, da Portaria n.
959, de 27 de setembro de 2013, emitida pelo Ministério da Educação (MEC).
Trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico, com o desafio de conhecer, mapear
e analisar a produção acadêmica desenvolvida e registrada, por meio de projetos de pesquisa,
extensão e ensino, no período compreendido entre 2003 e 2017, em setores que fazem parte da
organização administrativa e pedagógica dos CAps, tais como: núcleo de apoio à pesquisa, centro
de extensão e setores pedagógicos de cada instituição escolar. Especificamente nos setores
pedagógicos de cada CAp estão sendo analisados os projetos político pedagógicos institucionais
a fim de conhecer as formas de atendimento à lei 10.639/03.
A lei 10.639/03, sancionada em 09 de janeiro de 2003, altera dispositivos da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional – LDB (lei 9.394/96), e torna obrigatório nos estabelecimentos de
ensinos fundamental e médio, oficiais e particulares, o ensino da História e Cultura Afro-Brasileiras,
incluindo o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a Cultura Negra
Brasileira e o Negro na formação da sociedade nacional. Seu objetivo é resgatar a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.
A promulgação da Lei 10.639/03 foi um grande passo em direção à busca da promoção
de uma educação antirracista nas escolas brasileiras, à medida que procura romper com a visão
hegemônica eurocêntrica presente no currículo escolar, promovendo o ensino de história e cultura
negra ampliando a compreensão do processo de construção do país.
Em 2008 houve novamente um avanço no tocante à inclusão de minorias no debate sobre
os currículos escolares, sendo sancionada a Lei nº 11.645/08 que alterou o artigo 26-A da Lei nº
9.394/96, modificado pela Lei nº 10.639/03, para incluir no currículo oficial das redes de ensino
fundamental e médio, públicos e privadas obrigatoriedade do estudo da história e cultura Afro-
Brasileira e Indígena.   
A Lei n.º 10.639/03, o Parecer do CNE/CP 03/2004, que aprovou as Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (BRASIL, 2009), e a Resolução CNE/CP 01/2004, que detalha os direitos
e as obrigações dos entes federados na implementação da Lei, juntos compõe um conjunto
de dispositivos legais considerados como indutores de uma política educacional voltada para
a afirmação da diversidade cultural e da concretização de uma educação das relações étnico-
raciais nas escolas do país. Com a realização desta investigação, pretende-se aprofundar a

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

reflexão sobre o ensino das relações étnico-raciais nas Escolas de Educação Básica das IFES,
buscando sistematizar e compreender os processos de implementação da Lei nº 10.639/03 e
suas Diretrizes Curriculares.

Apontamentos sobre as relações étnico-raciais no campo da educação: contexto escolar


e infância

A realidade do negro no Brasil há muito tempo instiga a intelectualidade em áreas como


antropologia e a sociologia. Segundo Lilia Schwarcz (1999), desde o final do século XIX com os
primeiros “estudos dos negros”, entender a questão racial significou enfrentar o tema da identidade;
pensar as particularidades locais. Na trajetória histórica na configuração do campo das ciências
sociais no Brasil, as pesquisas de Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Arthur Ramos influenciaram o
debate dobre a conformação e convivência racial em nosso país. Nos anos de 1930, os estudos
de Gilberto Freyre, baseados em uma concepção culturalista e numa interpretação quase
“romântica” das relações raciais entre negros e brancos no Brasil influenciaram não só o olhar da
intelectualidade brasileira da época, como também de autores de outros países.
Também os trabalhos de Florestan Fernandes em finais de 1950, com sua perspectiva
sociológica, trouxeram contribuições relevantes para o campo de estudos sobre relações raciais,
desmascarando o mito da democracia racial e trazendo para o cerne da discussão a inter-relação
entre raças e classe. Não podemos esquecer dos estudos sociológicos de Carlos Hasembalg e
Nelson do Valle e Silva que, a partir dos anos de 1980, retomaram a temática racial analisando-a
juntamente com os dados quantitativos de base demográfica. Estes autores demonstraram que o
preconceito racial não estava exclusivamente atrelado a uma questão socioeconômica, ao contrário,
fazia parte da nossa estrutura social e formação histórica, interferindo de forma contundente nos
destinos e na mobilidade social dos negros brasileiros.
É importante destacar também os estudos de Guerreiro Ramos, no final dos anos de 1940,
os trabalhos de Clóvis Moura, a partir dos anos de 1970 numa abordagem histórica, e a produção de
Abdias do Nascimento, destacando sempre a articulação entre o compromisso político e o trabalho
intelectual. Nesse conjunto de trabalhos é importante lembrar as pesquisas antropológicas e a
participação política de Lélia Gonzáles que, a partir dos anos de 1970, nos brindou com trabalhos
e discussões que articulavam raça e gênero.
O elenco de autores acima citados, os diferentes contextos históricos e políticos por eles
vividos e suas diversas áreas de atuação atestam o quanto a questão racial é importante para o
entendimento da formação histórica, social e cultural brasileira. Atestam também o quanto o estudo
da questão do negro pode ser considerado um marco na produção sociológica, antropológica e
histórica brasileira. Nesse contexto vale a pena refletir sobre o lugar ocupado pela educação no
interior de tais estudos.
Nos momentos históricos acima citados, houve uma produção paralela de estudos teóricos

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sobre o negro oriundo do campo da educação? Ou a questão do negro não estava colocada para
aqueles que refletiam e implementavam a educação, mas, sim para organizações e lideranças
negras que se configuraram após a escravidão? Ainda indagamos: Será que a produção teórica
sobre o negro na educação nasce profundamente iniciada pelos estudos advindos das outras
áreas do conhecimento?
Buscando refletir sobre as questões raciais no contexto educacional, há fortes evidências
sobre as dificuldades que o negro historicamente tem enfrentado no processo de inserção no sistema
escolar. Como escravizado, seu acesso à escolarização foi proibido por lei. Contemporaneamente é
lhe permitido o acesso, mas nem sempre são oferecidas condições de permanência. Na verdade, o
negro foi ter acesso à educação escolarizada com o final da escravidão e a instalação da República.
Mesmo assim, nas escolas profissionalizantes, o que demonstra claramente os interesses das
elites em manter a população negra como mão de obra barata. Posteriormente, tiveram acesso
ao ingresso nas escolas primárias públicas, que como sabemos, sempre com muitos obstáculos
relativos à permanência. Nesse momento a criança negra encontra-se diluída na categoria massa
popular, sem nenhuma política ou iniciativa que pensasse a sua condição específica.
Foi na década de 20 que a educação como direito de todos e dever do Estado emerge,
motivada pela expansão do ensino. Contudo, nesta mesma época, os princípios teóricos
que balizavam o pensamento intelectual e político do Brasil, eram as teorias racistas, que se
desenvolveram na Europa do século XIX1. No Brasil essas teorias foram difundidas pelo médico
baiano Nina Rodrigues (2004), que se identificava como positivista, e pelo sociólogo Oliveira
Vianna, que se declarava como darwinista. Embora com algumas discordâncias, ambos postulavam
a inferioridade biológica, cultural, intelectual e moral dos negros e índios com relação aos brancos
descendentes de europeus.
Nesse momento a educação escolar, por meio do pensamento curricular brasileiro, bebem
dessas teorias. Por isso não questiona a presença, a difícil inserção, bem como a permanência do
negro no sistema escolar.
Segundo Castilho (2008), foi a partir dos anos 30, que o currículo brasileiro passou a
ter claro compromisso com a formação de quadros profissionais para atender ao processo de
industrialização e desenvolvimento do país. No período pós-30 o ensino primário se expandiu,
mas grande parte da população das camadas populares, engrossada pelos negros, não conseguiu
ingressar nela. Os que ingressavam não conseguiam permanecer. A repetência e a evasão já eram
problemas estruturais da educação nesse período.
Partindo do princípio de que o negro era naturalmente inferior, culturalmente como
intelectualmente, a escola não era pensada para levar em consideração os alunos negros. Ao
contrário disso, formar mentalidades cristãs, brancas, burguesas, preferencialmente masculinas,
era a tônica para os processos educativos.

1 Dentre essas teorias pode-se destacar o positivismo de Comte e o darwinismo social. Baseado nos princípios
da evolução e seleção natural, o darwinismo acreditava numa raça pura, mais forte e sábia – a europeia – que eliminava
as raças mais fracas e menos sábias – a negra e outras não europeias.- desenvolvendo portanto a eugenia.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

No contexto escolar brasileiro, somente a partir da década de 80 é que começam a surgir


preocupações com o aluno negro. Castilho (2008) sistematiza muito bem essa reflexão. A autora
nos alerta que tais preocupações surgem motivadas por denúncias de movimentos culturais e
políticos de grupos negros e por pesquisas que começam a ser desenvolvidas. Segundo a autora
essas pesquisas trouxeram à tona as desigualdades sociais e educacionais existentes entre
negros em relação aos brancos, demonstrando que o racismo existe e de forma não tão tácita
como se pensava, abalando assim as antigas e persistentes crenças de que no Brasil existiria uma
democracia racial.
Pesquisas como a de Cavalleiro (2000), enfatizam, que as crianças negras desde a
Educação Infantil estariam sendo socializadas para o silêncio e para a submissão. Gonçalves
(1985), também denuncia que esse processo tem sérias consequências para o processo educativo,
dificultando assim, às crianças negras a formação de um ideal de ego negro (1985:324). Fazzi
(2004), estudando crianças de 8 e 9 anos e os processos de socialização entre pares no espaço
escolar, destaca os estereótipos, preconceitos e processos de silenciamento.
Estes estudos revelam as inúmeras situações nas quais as crianças negras desde pequenas
são alvo de atitudes preconceituosas e racistas por parte tanto dos profissionais da educação
quanto dos próprios colegas e seus familiares. No entanto, cabe destacar que a discriminação
vivenciada cotidianamente compromete a socialização e interação tanto das crianças negras
quanto das brancas, mas pode produzir impactos mais negativos para as crianças negras, pois
estas vivem os efeitos diretos do racismo. Tal situação interfere nos seus processos de constituição
de identidade, de socialização e de aprendizagem.
Essas pesquisas associadas à luta do movimento negro têm fomentado políticas
públicas e um número considerável de iniciativas governamentais, na esfera federal e estadual.
Especificamente, na área educacional, fomentaram discussões e reformas curriculares, na busca
de uma educação inclusiva.
Estudos como a pesquisa de Gomes (2012), que aborda as práticas pedagógicas de
trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da lei 10.639/03, problematizam o
papel e a importância da escola formal no processo de desfazer a imagem negativa forjada contra
os sujeitos negros.
Gomes (2007), também registra que existe uma necessidade de superação da orientação
monoculturalista das instituições escolares que negam a diversidade racial e/ou étnica brasileira.
A autora nos lembra que a família e a escola são a matriz de constituição da identidade2 racial e
que os processos educativos vividos pela criança, adolescentes e jovens merecem maior atenção
como constitutivos das personalidades, valores, saberes e identidades (GOMES,1995).

2 Por identidade, entende-se “o conjunto de elementos dinâmicos e múltiplos da realidade subjetiva e da


realidade social, que são construídos na interação”. (KLEIMAN, 1998, p. 280, In: OLIVEIRA, 2008). É preciso ter em
conta, no entanto, que são processos permeados por conflitos, tensões, uma vez que no centro de tudo isso está
um “eu” que busca se afirmar diante de um “outro”, e os modos de construção do “eu” estão entrelaçados ao modo
como o “outro” o vê, e nem sempre essa imagem social corresponde à minha auto-imagem e vice-versa, resultando o
processo identitário em um conflito que é coletivo, ainda que muitas vezes pareça individual (GOMES, 2006, p.21).

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A realidade educacional brasileira hoje tem apresentado com mais vigor a demanda por
proposições que promovam a inclusão de grupos historicamente alijados dos benefícios sociais
conquistados pelo país como uma nação em desenvolvimento. Essas propostas se caracterizam
como Ações Afirmativas e atingem diversos grupos, não só a população negra.
Nesse contexto, tem se acalorado o debate sobre a inclusão social da população negra,
mas também dos grupos indígenas, das mulheres, dentre outros, com histórico comprovado de
discriminação e exclusão. No bojo desse debate, encontra-se o direito à educação de qualidade e
o respeito às diferenças.
A temática das relações raciais no campo da educação vem sendo alvo de estudos e
pesquisas nacionais e internacionais. Longe de esgotar o tema, entendemos como avanço
algumas pesquisas já demonstrarem o caráter discriminatório do sistema escolar brasileiro.

Achados de pesquisa: o perfil dos Colégios de Aplicação

Os Colégios de Aplicação ou Escolas de Aplicação são escolas de Educação Básica


vinculadas a Instituições Federais de Ensino Superior. Os Colégios de Aplicação Federais foram
criados a partir do Decreto/Lei n°9.053/46 de 12 de março de 1946 sobre a presidência de Eurico
Gaspar Dutra, cujo texto em seu artigo primeiro estabelece a obrigatoriedade das Faculdades de
Filosofia federais “[...] a manter um ginásio de aplicação destinado à prática docente dos alunos
matriculados nos cursos de Didática [...]”.
A princípio os CAps foram criados com o objetivo de formar professores. Era um ambiente
de experimentação de metodologias de ensino das Faculdades que ofertavam em sua grade
cursos de licenciatura, um lugar onde os estudantes de graduação pudessem assumir as salas de
aula sob a supervisão docente.
Atualmente a ideia de experimentação ainda permanece como missão central dos colégios,
ou seja, seu objetivo maior é constituir-se como campo de experimentação e de pesquisa na
Educação Básica e na formação de professores e de profissionais que têm o ambiente escolar
como campo de atuação.
Os CAps estão presentes nas cinco regiões brasileiras, e se concentram em sua maioria
na região Sudeste do país, com 6 CAps instalados, seguido pela região Nordeste com 4 colégios,
as regiões Norte e Sul com 3, e a região Centro-Oeste com 1. Os Colégios de Aplicação Federais
são os seguintes: Colégio de Aplicação da UFPA; Núcleo de Educação da Infância (NEI) da UFRN;
Colégio de Aplicação da UFPE; Colégio de Aplicação (CODAP) da UFS; Colégio de Aplicação
João XXIII da UFJF; Colégio Universitário (COLUNI) da UFV; Escola de Educação Básica ESEBA da
UFU; Colégio de Aplicação da UFRJ; Colégio de Aplicação da UFRGS; Núcleo de Desenvolvimento
Infantil – NDI da UFSC; Colégio de Aplicação da UFSC; Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à
Educação (CEPAE) da UFG; Centro Pedagógico (CP) da UFMG; Colégio Universitário (COLUN)
da UFMA; Colégio de Aplicação da UFAC; Colégio Universitário da UFF e Colégio de Aplicação da
UFRR.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Apenas 12 estados brasileiros possuem CAps instalados em seu território. O estado


de Minas Gerais (MG) é o que detém a maior concentração nacional de Colégios de Aplicação,
totalizando 4, seguido pelos estados do Rio de Janeiro (RJ) e Santa Catarina (SC) com 2. Os
estados Roraima (RR); Pará (PA); Acre (AC); Sergipe (SE); Maranhão (MA); Pernambuco (PE), Rio
Grande do Norte (RN); Goiás (GO) e Rio Grande do Sul (RS) concentram 1 CAp cada.

Caminhos percorridos

Esta pesquisa possui natureza qualitativa, e adota como método de investigação a análise
documental. Segundo Bravo (1991), documentos são todas as realizações produzidas pelo homem
que se mostram como indícios de sua ação e que podem revelar suas ideias, opiniões e formas de
atuar e viver.
Portanto, neste estudo são considerados como fontes documentais: os projetos de ensino,
pesquisa e extensão cadastrados nos setores pedagógicos e administrativos do CAps e o projeto
político pedagógico de cada instituição.
O período de abrangência estabelecido compreende desde 2003, ano em que foi
sancionada a Lei 10.639, até 2017 - ano de início da pesquisa. A escolha deste intervalo de tempo,
se dá em função da tentativa de acompanhar longitudinalmente as ações relativas ao ensino das
relações étnico-raciais e o cumprimento da legislação em vigor nos CAps participantes do estudo.
Embora estejam considerados neste estudo apenas os anos de vigor da Lei 10.639/03,
existe a consciência de que esta não foi sancionada de um dia para o outro. E que a referida legislação
é uma reposta à luta e aos esforços do Movimento Negro nos anos 1970, aos simpatizantes da
causa negra nos anos 1980 e aos intensos movimentos realizados por todo o Brasil na década de
1990 a favor da identidade negra, em especial a Marcha Zumbi dos Palmares.
Segundo Pereira e Silva (2013), as décadas de 80 e 90 foram um período de intensificação
dos movimentos em prol da causa negra. A própria Constituição Federal de 1988 reconhece a
pluralidade cultural do país, e em seu texto busca combater a discriminação racial e promover
a valorização das identidades étnicas. Pereira e Silva (2013), da mesma maneira colocam que
nos anos 90 a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a criação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997) que estabelecem referência no ensino para a
Educação Básica no país, também foram grandes avanços que culminaram na promulgação da Lei
10.639/03, e que possuem como objetivos, entre outros, garantir a todos os estudantes brasileiros
o direito aos conhecimentos necessários para o exercício da cidadania.
Atualmente a pesquisa se encontra na etapa de coleta de dados, a finalização está
prevista para o primeiro semestre de 2018. O estudo foi previsto para ser desenvolvido em duas
etapas, a saber: a coleta dos dados e análise do conteúdo. A primeira etapa iniciou-se com uma
investigação online realizada por meio de páginas web oficiais dos CAps, com o propósito de
levantar informações sobre todos os colégios participantes. Tais dados foram transformados em

Página 538
planilhas, a fim de montar um perfil para cada instituição e facilitar assim um primeiro contato com
a equipe gestora.
Posteriormente, foram realizados contatos via telefone e e-mail para a direção de cada
colégio, com o objetivo de apresentar a pesquisa e convidá-los a participar. Além dessa estratégia,
com o propósito de sensibilizar as equipes dos colégios de aplicação sobre a importância da
temática e da adesão à pesquisa, foi articulada a participação de uma das pesquisadoras na reunião
do Conselho Nacional do Dirigentes das Escolas de Educação Básica das Instituições Federais de
Ensino Superior – CONDICAp, Conselho criado para agregar parcerias e troca de experiências
entre as várias Escolas de Educação Básica federais.
Assim, a coleta dos dados vem acontecendo por meio da internet, via contato telefônico
e por visitas in loco. Esta primeira etapa consiste no momento em que a pesquisadora interage
com a produção acadêmica através da quantificação e da identificação dos dados, com o objetivo
de mapear a produção no período delineado, em anos, locais e áreas de produção ou eixos de
trabalho.
Quanto aos instrumentos de pesquisa, foram criados dois instrumentos específicos de
coleta de dados e informações. O primeiro instrumento trata-se de uma ficha a ser preenchida pela
equipe gestora, via online para coletar informações que não constavam nas páginas web oficiais
de cada colégio, além de ter o objetivo de aproximar as pesquisadoras dos setores específicos
para a coleta dos documentos oficiais (projetos de ensino, pesquisa e extensão).
O segundo instrumento, refere-se a um formulário preenchido via online pela equipe
administrativa. O uso desse instrumento teve como objetivo sondar o conhecimento das equipes
referente ao panorama legal e documentos oficiais e/ou experiências com a lei 10639/03;
conhecer o projeto político pedagógico de cada instituição, mapear as ações de formação de
professores no que tange à temática pesquisada; mapear os materiais de suporte e apoio aos
docentes; informações sobre o envolvimento do corpo docente em ações de ensino, pesquisa e
extensão com a temática da educação das relações étnico-raciais ou temáticas afins, conhecer os
grupos de ensino, pesquisa e extensão que atuam com a temática pesquisada de maneira direta
ou indireta; conhecer os documentos e registros internos. A adesão da totalidade dos Colégios de
Aplicação tem sido uma meta perseguida desde o início da pesquisa, que se deu em fevereiro de
2017.
A segunda etapa se destinará a um esforço para a ordenação dos dados coletados, buscando
inventariar a produção. Está previsto um processo de organização do material que pressupõe uma
leitura completa das fontes para que as mesmas possam ser categorizadas. Posteriormente serão
realizadas escolhas metodológicas e teóricas aproximando ou diferenciando os trabalhos entre si.

Considerações indicativas
Várias ações já foram desenvolvidas pelo MEC em prol da implementação da Lei 10.639/03,
conforme sistematizado na pesquisa organizada por Gomes (2012) presentes também em
documentos como relatórios e relatos de experiências desenvolvidos por secretarias de educação

Página 539
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

municipais e estaduais do país. Contudo, Gomes (2012) registra que muitas iniciativas têm um
caráter de empenho individual, tais práticas geralmente não têm continuidade nem conseguem ser
socializadas e divulgadas para além do local onde se realizam. Além disso, o campo de pesquisa
de Gomes (2012) não alcança os CAps.
Portanto, após mais de uma década de sanção da Lei n.º 10.639/03, resta saber se
ações como as financiadas pelo MEC/SECADI, a discussão e a aprovação do Plano Nacional das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, as formações continuadas ofertadas pelos Núcleos de
Estudos Afro- Brasileiros (NEABs), a premiação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades (CEERT) têm induzido e possibilitado ações, projetos e práticas no interior da gestão
dos sistemas federais. Interessando-nos saber mais sobre a inclusão da temática da educação
para as relações étnico-raciais nos projetos político pedagógicos dos colégios de aplicação e
ainda sistematizar as ações desenvolvidas por estes colégios, uma vez que eles exercem o papel
de agências formadoras de docentes. Ainda é uma lacuna conhecer o que está sendo produzido
sobre a temática da educação para as relações étnico-raciais nos colégios federais, espera-se
que os resultados desta investigação possam contribuir para a construção de um panorama sobre
as práticas de ensino, pesquisa e extensão que ocorrem no âmbito dos colégios de aplicação
vinculados às universidades federais do Brasil.

Referências

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ensino da História afro-brasileira e africana. Brasília/DF: SECAD/MEC, 2004.

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Câmara Plena (CNE/CP) nº 3, de 10 de março de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais
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e Africana.

Página 540
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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIAS NEGRAS INFANTIS NO CIBERESPAÇO1.

Lucimar Rosa Dias2


Universidade Federal do Paraná
lucimardias1966@gmail.com

Cíntia Cardoso3
Universidade Federal do Paraná
cintiaafloripa@gmail.com
RESUMO

Este artigo problematiza um fenômeno que estamos identificando no Brasil e intitulamos de resistências
negras infantis. Acreditamos que a tecnologia tem sido utilizada pelos ativistas negros e negras
possibilitando ações de empoderamento que se espalham rapidamente por diferentes pontos do país.
Para coleta do material privilegiamos informações sobre crianças negras que circularam em diferentes
meios de comunicação a partir dos princípios da etnografia virtual conforme nos apresentam Gebera
(2008). Foram encontradas crianças com idades entre 05 e 13 anos cuja atitude de empoderamento
teve repercussão em âmbito nacional e internacional. Destas, quatro serão apresentadas neste artigo.
Nossas análises para compreender as vozes dessas crianças tomou o conceito de Resistência
desenvolvido por Giroux (1986) e as ideias de Hall (1997,2016) sobre Representações, consoante
com a perspectiva da Sociologia da Infância, bem como, nos amparamos em autores do campo dos
estudos das relações étnico-raciais e infância no Brasil para melhor entendermos seus significados. O
que encontramos nos aponta que a expressão das lutas empreendidas pelos Movimentos Negros tem
também ocupado o espaço alternativo da comunicação virtual com isso entra em cena ativistas cada
vez mais jovens dentre estes também crianças pequenas.

Palavras-chave: Criança Negra, Resistência, Ciberespaço, Movimento Negro.

1 O presente artigo é uma versão ampliada e revisitada do trabalho apresentado no SERNEGRA V


Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça do Instituto Federal de Brasília. (Nov. 2016).
2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Coordenadora do NEAB/UFPR.
3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Linha: Diversidade, Diferença e
Desigualdades e professora da educação infantil da rede municipal de Florianópolis- SC

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1 Introdução
Este artigo problematiza um fenômeno que estamos identificando no Brasil e intitulamos de
resistências negras infantis. Foram encontradas crianças com idade entre 05 e 13 anos cuja atitude
de empoderamento teve repercussão em âmbito nacional. Destas, quatro serão apresentadas
neste artigo. Nossa análise para compreender as vozes dessas crianças tomou a perspectiva da
Sociologia da Infância que concebe a criança como um ator social, bem como, nos amparamos
em autores do campo dos estudos das relações étnico-raciais e infância no Brasil para melhor
entendermos seus significados.
Dias (2007), e Santiago (2014), trazem importantes contribuições para a discussão da
educação das relações étnico-raciais na infância, embora sob o olhar do espaço institucional da
educação estes trabalhos nos ajudam a pensar sobre o racismo vivido por crianças negras no
espaço escolar e como lastro chegam também às mídias.
A pesquisadora Lucimar R.Dias (2007), nos aponta que as crianças negras interrogam
as professoras da primeira infância com suas atitudes levando-as a buscar informações sobre
como trabalhar as relações étnico-raciais e a partir disso transformam suas práticas pedagógicas.
Santiago (2014), em sua pesquisa captura em creche situações de violência do processo de
racialização que permeia as culturas infantis e a influência macro desse processo nas construções
dos estereótipos referentes às crianças pequenininhas negras, mas também identifica formas pelas
quais as crianças da creche resistem e enfrentam esses enquadramentos. Ambas as pesquisas
constatam que as crianças negras empreendem processos de resistência a esta subalternização
da identidade negra.
Partindo desta premissa de que mesmo vivendo sob os impactos do racismo estrutural da
sociedade brasileira há crianças negras que tem produzido discursos e vem traçando estratégias
de resistência desenvolvendo a capacidade de fugir dos mecanismos racistas e da ideologia do
branqueamento é que nos propusemos a investigar este universo ainda pouco trabalhado nas
pesquisas sobre relações étnico-raciais, a criança negra considerando também o seu protagonista
na luta por igualdade racial. Para Gaitan, o protagonismo infantil é
[...] o processo social pelo qual pretende-se que meninos e meninas desempenhem o
papel principal no seu próprio desenvolvimento e no da sua comunidade, para alcançar
a plena realização dos seus direitos de acordo com suas necessidades. É concretizar a
visão de CRIANÇA como sujeito social de direitos e, portanto, deve-se redefinir os papéis
dos vários componentes da sociedade: autoridades, familiares, setores não organizados,
sociedade civil, organizações, etc. (1998,p.85 tradução livre das autoras)4

Liebel (2000) reitera que o protagonismo infantil é um processo e teve seu início entre as
crianças trabalhadoras da América Latina, portanto, ao tratarmos do protagonismo da criança

4 Texto original:“Protagonismo Infantil es el proceso social mediante el cual se pretende que Niñas, Niños y
Adolescentes desempeñen el papel principal en su propio desarrollo y el de su comunidad, para alcanzar la realización
plena de sus derechos atendiendo a su interés superior. Es hacer práctica la visión de NIÑEZ como sujeto social de
Derechos y por lo tanto se debe dar una redefinición de roles en los distintos componentes de la sociedad: autoridades,
familia, sectores no organizados, sociedad civil, entidades, etc.” (GIATAN, 1998, p.86)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

negra na luta antirracista, estamos considerando que estas são capazes de perceber o racismo
e criam mecanismos de resistir a ele e quando se juntam aos adultos em distintas manifestações
não estão simplesmente sendo levadas, mas sabem e atuam na constituição de uma sociedade
igualitária racialmente. Sendo assim, nos colocamos a tarefa de identificar algumas vozes infantis
desta luta.
Nosso foco é buscar essas vozes na mídia, com isso nossa hipótese é que elas estão
protagonizando caminhos de valorização de sua pertença étnico-racial e é a partir deste espaço
de ação que podem interrogar as práticas racistas fora do espaço virtual como a escola. Para nós
elas são tanto quanto os adultos com suas vozes infantis, valentes ativistas da luta antirracista.
Dividimos este artigo em três partes, na primeira apresentaremos legado excludente que
atravessa a infância de crianças negras e as lutas dos movimentos negros no enfrentamento à
exclusão social da população negra, na segunda parte apresentamos a metodologia utilizada e na
ultima parte as quatro narrativas das crianças negras que elegemos como representantes deste
protagonismo infantil negro.

2 Entre avanços e possibilidades, as crianças negras como sujeitos da história.

As crianças negras ainda são atingidas pela invisibilidade de sua ancestralidade e


desvalorização de sua pertença étnico-racial, expostas a ações cotidianas de discriminação e
racismo. Tais processos vêm apontando para uma estratificação social que ressoam em diferentes
setores da sociedade seja na educação a partir de pedagogias racistas presentes nas instituições
de educação infantil denunciadas pelos movimentos negros na década de 1980 e pelas pesquisas
das últimas décadas, seja na marginalização dos fenótipos negros tais como: cor da pele, cabelos
crespos, seus modos de ser e agir, são tomadas como formas de inferiorizarão e expropriação de
sua pertença étnico-racial.
De acordo com dados divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)
“Vinte e seis milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias pobres. Representam
45,6% do total de crianças e adolescentes do País. Desses, 17 milhões são negros. Entre as
crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; entre as crianças negras, 56%. A iniquidade racial na
pobreza entre crianças continua mantendo-se nos mesmos patamares: uma criança negra tem
70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca”.
Mesmo as conquistas das últimas décadas não têm sido suficientes para romper com esse
legado excludente que atravessa a infância de crianças negras. Para Silva Jr. (2002), o racismo é
uma rede complexa de ações pautadas na violência física ou simbólica ancorada na representação
da população branca como a portadora de beleza, coragem, bondade, enfim de humanidade.
A forma de tratamento destinado às crianças em especial às crianças negras brasileiras
sempre foi marcada pelo abandono, sem proteção e cuidados que lhes garantissem uma vida
digna. Nem a Lei do Ventre Livre e tão pouco a Roda dos Expostos assistiram de forma efetiva
a criança negra. A realidade da infância negra escravizada ainda é pouco discutida, embora seja

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muito significativa.
Para Del Priori
Dos escravos desembarcados no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro do início do
século XIX, 4% eram crianças. Destas, apenas 1/3 sobrevivia até os 10 anos. A partir dos
quatro anos, muitas delas já trabalhavam com os pais ou sozinhas, pois perder-se de
seus genitores era coisa comum. Aos 12 anos, o valor de mercado das crianças já tinha
dobrado. E por quê? Considerava-se que seu adestramento já estava concluído e nas
listas dos inventários já aparecem com sua designação estabelecida: Chico “roça”, João
“pastor”, Ana “mucama”, transformados em pequenas e precoces máquinas de trabalho.
(2012, p.245)

Após o período escravagista entram em vigor concepções do “cuidado” das crianças


fundamentadas em perspectivas médicas, higienistas, jurídicas e religiosas. Segundo Marcílio
(1998, p. 194),
As crianças desamparadas e maltratadas tornaram-se um problema recorrente em
diversas cidades do Brasil, exigindo do governo a reestruturação de políticas públicas para
atender tal questão. Nesse momento, médicos higienistas tiveram importante influência
na discussão sobre os cuidados das crianças, buscando tratar de diversos aspectos
considerados necessários: mortalidade infantil, cuidados com o corpo, doenças infantis,
ensino, educação das mães, além de introduzirem o debate sobre Pediatria e Puericultura
no campo da higiene e da saúde pública.

De menor abandonado as crianças negras passam a serem vistas como menores infratores
(re) criando situações de exclusão e marginalização da infância, atingindo diretamente as crianças
negras. Foi um longo caminho de transformações sociopolíticas e econômicas do país, até que
eclodiu uma legislação social que regulamentasse, oficialmente, uma nova concepção na qual a
infância passa a ser vista como categoria social e a criança como um sujeito de direitos.
Por isso, a legislação que se tem na atualidade são importantes, pois a mudança legal coloca
na ordem do dia discussões sobre o protagonismo infantil, as diversas infâncias e, sobretudo da
criança como um sujeito de direitos. Neste contexto instaura-se no país um ativismo sobre os
direitos destinado a infância sedimentada em novos paradigmas.
Com isso torna-se possível questionar as diferentes infâncias existentes na sociedade
brasileira e por consequência cresce a discussão sobre o racismo que atinge as crianças pequenas,
especialmente, no campo da pesquisa acadêmica que passa a investigar a educação infantil e as
relações étnico-raciais.
A alteração da LDB em seu artigo 26-A pela Lei nº 10.639/03 (que depois foi novamente
alterado em 2008 pela Lei 11.645) e 79-B (mantido pela Lei 10.639/03) que instituiu a
obrigatoriedade o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares
e em 2004 se estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana que se aplica da
Educação Infantil à Educação Superior.
Ainda assim, o suporte legal não garante uma mudança efetiva no tratamento da (re)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

educação das relações étnico-raciais no espaço interno das instituições de ensino e nem na
sociedade de modo geral.
É neste movimento que as representações já consolidadas precisam ser questionadas
e novos sujeitos vêm impondo novas representações vêm reivindicando seu lugar, para novas
possibilidades no trato com as diferenças e assim as crianças negras (assim como as outras) vão
(re) construindo novas maneiras de representar à diversidade étnico-racial e cultural que possibilite
o reconhecimento da diferença, o diálogo, a troca, a (re) educação dos sentidos. Para Hall (1997)
as representações são passíveis de mudanças, pois são
O resultado de um conjunto de convenções sociais. Ela é definida socialmente, fixadas na
cultura. Os falantes de castelhano ou Inglês ou hindus deveriam, ao longo do tempo, sem
decisões ou escolhas conscientes, chegar a um acordo não escrito, uma forma de acordo
cultural [não escrito], segundo a qual, nas suas diversas línguas, certos sinais estão, ou
representam certos conceitos. Isto é o que as crianças aprendem, e como eles se tornam, e
não são simplesmente indivíduos biológicos, e sim sujeitos culturais. Aprendem o sistema
e as convenções da representação, os códigos de sua língua e cultura, que os prepara
com um “saber fazer” cultural que lhes permitem funcionar como sujeitos culturalmente
competentes. Não que esse conhecimento esteja impresso em seus genes, mas porque
eles aprendem as suas convenções e assim tornam-se gradualmente “pessoas da
cultura”, isto é, membros de sua cultura. Eles internalizam inconscientemente códigos que
lhes permitem expressar certos conceitos e ideias através do sistemas de representação
– a escrita, a fala, os gestos, visualização e outros – e interpretam as ideias que lhes sao
comunicadas usando os mesmos sistemas. (1997, p. 08 tradução livre das autoras)

Entre avanços e possibilidades, as crianças negras como sujeitos da história vêm rompendo
com esse enquadramento racista, produzindo um discurso infantil de resistência e de orgulho do
seu pertencimento, ou seja, em meio ao discurso hegemônico do racismo brasileiro, há fissuras
que geram contradições nesta hegemonia e nesse sentido é para nós Resistência. Del Priori
aponta que
Trabalho ao longo da infância, sem tempo para a ideia que comumente associamos à
infância, a da brincadeira e do riso, era o lema perverso da escravidão. Contudo, a mesma
resistência que se lhe opunham os adultos foi transmitida à criança. Não foram poucas as
que contrariaram a obrigação do eito e a exploração, pela fuga. (DEL PRIORI 2012, p.246)

O que as crianças negras fizeram no passado e estão fazendo no tempo presente é luta
política e ato de resistência seguramente, pois de acordo com Giroux (1986) define comportamentos
de resistência, elas com suas atitudes provocam reflexões críticas e ação reflexiva e estão inseridas
em lutas políticas coletivas que almejam redirecionar o poder e a determinação social.
Hall a partir do conceito de representações nos instiga a buscar neste um componente
importante para compreender as possibilidades de mudança da condição desfavorável da criança
negra em uma sociedade racista, considerando as redes sociais como transmissoras de novas
representações sobre ser negro. Conforme Hall (1997), a cultura se dá a partir do compartilhamento
de significados e a linguagem é o meio pelo qual “damos sentido” às coisas, e produzimos
significados.

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[...] a questão do significado surge em relação a todos os diferentes momentos ou
práticas de nosso “circuito da cultura” — na construção da identidade e na delimitação da
diferença, na produção e consumo, bem como na regulação das condutas sociais. Todavia,
em todas estas instâncias e em todas estas localizações institucionais, a linguagem é um
dos “meios” privilegiados através dos quais é produzido e circula o significado. (HALL
1997. p. 03).

Todavia esse conjunto de conceitos precisa ser compartilhado pelos membros da mesma
cultura para que o pensar e o sentir sejam em si “sistemas de representação”. Sendo assim,
não seria precipitado afirmar que as representações publicitárias quando apresentam imagens
positivas de crianças o faz majoritariamente com crianças brancas intencionalmente. Compartilha-
se a construção de um imaginário em que brancos são a regra para o que é bom. Embora sem o
conceito de branquitude constituído e para além da brancura da pele como um dos traços da
identidade branca soma-se a isso a inescapável associação da branquitude ao prestígio social
e político, aliado à vantagem racial dos sujeitos, o que GIROUX (1997), denominou de poder
“representativo da branquitude”.
Podemos afirmar que a questão da supremacia branca na sociedade nunca esteve
silenciada, o movimento negro sempre pautou as vantagens simbólicas e materiais do branco,
incluem-se aí os espaços das mídias, como um marco nas lutas dos movimentos negros, por
exemplo, foi a criação da Imprensa Negra surgida na cidade de São Paulo, 1915, movimento de
enfrentamento as barreiras de uma imprensa branca.
O surgimento de uma imprensa negra demarca um fator de importância crucial na luta
ideológica antirracista, não somente como veículo de denúncia, mas que serviram de veiculação
organizacional dos negros. Embora estejamos falando de um marco do século passado, o racismo
alojado de forma estrutural segue latente na sociedade, o espaço da mídia continua a refletir e
também reproduzir a lógica racista, quando a exaltação de um corpo branco e magro é tido como
modelo universal de humanidade, significado de beleza, inteligência, reforçando práticas presentes
no imaginário social brasileiro.
No entanto, o espaço das mídias pode também servir para promover a visibilidade das
lutas empreendidas pelas ativitas negras e negros na produção de representações positivas da
identidade, cultura afro-brasileira e africana, nossa hipótese é de que as crianças negras tem sido
um foco específico e talvez prioritário, considerando os aspectos positivos e as mudanças que
neste sentido tem contribuído para que estas crianças negras atingidas diretamente pelo racismo
construam além de mecanismo de defesa e resistência, referenciais positivos de negritude.

3 As novas mídias como um veículo de construção às representações positivas para a


população negra.

A partir da estética, poesia, música e da resistência cultural negra, construiremos uma


narrativa que aponta tais aportes como ferramentas política materializando novas expressões para
a luta antirracista.

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Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Ademais, com o advento da tecnologia TIC’s (Tecnologia de Informação e Comunicação)


e a cibercultura originaram o conceito de ciberativismo: um formato de ativismo realizado através
das tecnologias, principalmente através da internet.
A tecnologia como meio de conexão para comunicação em massa tem possibilitado
um movimento de resistência contra as exclusões e valorização da ancestralidade. Atividades
de mobilizações através das redes sociais, como marchas, passeatas, vêm avivando uma
susceptibilidade na consciência de indivíduos participantes ou não de movimentos organizados.
Nossa percepção é que as novas mídias têm sido férteis para a constituição destas
resistências e a construção de novas representações para toda a população negra. Para coleta do
material nos inspiramos em parte dos princípios da netnografia conforme nos apresentam Gebera
(2008, p.09).

A netnografia é um método novo de pesquisa dos espaços virtuais que está em processo
de expansão e formulação teórica e metodológica. A netnografia é uma instância da
aplicação de estudos de etnografia em estudos de vivências na Internet. Como técnica
de investigação, a netnografia incorpora uma possibilidade real para abordar o que está
acontecendo em comunidades virtuais. A netnografia como um método de investigação,
poderia incidir, além do marketing, também a aplicação em processos formativos ou em
outros campos onde se busque as necessidades e interesses de internautas. (GEBERA,
2008, p.09 tradução livre das autoras).

Seguindo alguns dos princípios da netnografia a primeira parte da pesquisa5 buscou


identificar em blogs, sites, revistas digitais e páginas em redes sociais como a identidade da
criança negra estava sendo positivada. Para o levantamento desses os descritores escolhidos para
busca foram: “negros”, “o negro”, “negritude”, “afrodescentes”, “africanismos” e “afro-brasileiros”.
Inicialmente a busca foi realizada no Facebook, rede social escolhida pelo amplo e diversificado
perfil de seus usuários, e posteriormente através de busca do Google, selecionamos com essa
segunda ferramenta as páginas com maior popularidade, através do critério de número de acessos
à página. Nessa pesquisa foram levantados mais de uma centena de páginas no Facebook e
milhares no Google.
Desse montante foram selecionadas as páginas com maior visibilidade (likes e acessos),
preferencialmente páginas brasileiras (apenas 4 páginas estrangeiras foram inclusas na pesquisa
por possuírem grande popularidade no Brasil). Sendo que destas foram selecionados: 6 blogs, 4
sites e 28 páginas do Facebook6 para análise de imagens, conceitos e conteúdos nelas divulgados.
Neste artigo trataremos apenas das narrativas infantis, que se constituiu numa segunda etapa da
pesquisa e não de toda a pesquisa realizada.
O que encontramos nos aponta que a expressão das lutas empreendidas pelo MN7 tem
também ocupado o espaço alternativo da comunicação virtual, por meio do ciberativismo, isto é,

5 Esta parte da pesquisa contou com a colaboração de Andrea Barbosa, acadêmica do curso de Pedagogia da
UFMS
6 No decorrer do texto trataremos os diferentes meios blogs, sites e etc como “páginas”.
7 Movimento Negro.

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um novo ativismo que tem levado a constituição de uma Cibercultura, definido por LEVY (1999),
o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de
pensamento e valores que se desenvolvem juntamente com o ciberespaço” (1999,
p.17) e para melhor compreensão também consideramos profícuo trazer o conceito de
Ciberespaço. Para o autor o ciberespaço [é um novo meio de comunicação que surge da
interconexão mundial de computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura
material de comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que
ele abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. (1999,
p.17).

A partir do ciberativismo esses movimentos se materializam fora do espaço virtual, um bom


exemplo disso são os chamados “encontros das crespas e cacheadas” que já ocorrem nas mais
diferentes regiões brasileiras, marchas, passeatas, dentre outras formas de manifestação político-
estéticas e artísticas são convocadas por estes meios e vem avivando outra forma de organização
de movimentos de resistência negra.
As páginas identificadas em nossa pesquisa operavam, sobretudo no sentido de desvincular
a imagem do negro/a dos estereótipos de inferiorizado, quase a totalidade das publicações
exaltavam a beleza negra, valorizando a estrutura corporal, a cor da pele e principalmente os
cabelos crespos. As imagens escolhidas para essas publicações retratam o “negro lindo”, o “negro
forte” e o “negro sensual”. Numa evidente alusão ao movimento cultural “Black is Beautiful” que
começou nos Estados Unidos da América na década de 1960 conduzida pelos afro-americanos e
influenciados pela produção teórica de Steve Biko, um dos ícones do Movimento de Consciência
Negra da África do Sul. O espaço virtual tem permitido criar novas linguagens sobre uma velha
questão: o combate ao racismo. O meio tem sido, sobretudo, um discurso de valorização do corpo
e da cultura negra. Também foi perceptível que a criança negra tem sido um dos públicos centrais
desse discurso.
Várias páginas distribuem imagens de crianças negras empoderadas, com seus cabelos
crespos, turbantes e outras formas estéticas demonstrando o orgulho do pertencimento étnico-
racial. Muitas páginas já colocam no título a centralidade da criança. Como exemplo temos:
Crianças Negras são Lindas8 com 60.756 curtidas, Crianças Negras com 117 mil curtidas,dentre
várias outras.
Ao nos darmos conta desses fenômenos e sabedoras de que as páginas não podiam ser
criadas por crianças nos perguntamos se haveria desse modo uma voz protagonista das crianças
negras nesses processos e então passamos a buscar publicações em que as próprias crianças
atuassem.
Nessa procura foram identificadas crianças entre 05 e 13 anos9. Este artigo traz com mais
detalhes sobre Gustavo Gomes Silva dos Santos, na época com 10 anos, Elis Catanhede com 5
anos e uma narrativa internacional recente que viralizou na mídia mundial junho/2016, Marley Dias
12 anos, garota americana. Além destas foram idenficadas outras crianças. A seguir nos deteremos

8 Informações de curtidas e números de membros obtidas em acesso às páginas no dia 05/09/2016


9 A idade das crianças corresponde ao momento em que aparecerem nas mídias.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

sobre o que dizem estas crianças, como dizem e como suas vozes repercutem e são parte da luta
antirracista no Brasil.

4 CRIANÇAS NEGRAS: VOZES DE RESISTÊNCIA EM AÇÃO

4.1 PRIMEIRA NARRATIVA: GUSTAVO - A LITERATURA QUE EXPLODE O RACISMO


O menino Gustavo Gomes Silva dos Santos, em 2014 tinha 10 anos e era aluno do Centro
de Educação Unificado Vila Curuçá, na zona leste de São Paulo. Ele ficou conhecido após uma
reportagem da TVT (TV dos Trabalhadores do ABC Paulista) que foi divulgada em novembro de
2014 no you tube e atualmente tem 445.404 visualizações. A matéria buscou ouvir a opinião
das crianças que participaram da atividade “Seminário Leituraço”. Esta ação é desenvolvida pela
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. O seminário tem o objetivo de contribuir para o
processo de implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornam obrigatório o ensino da
história e cultura afro-brasileira, africana e indígena. O mesmo teve início em 2014 e já está na sua
terceira versão.
Sua entrevista circulou na rede social facebook e tornou-se um ícone de militância contra o
preconceito racial. Ele conseguiu ocupar um espaço que muitos adultos ativistas não conseguem.
Sua fala articulada, propositiva e ao mesmo tempo amável e segura. Para Gustavo
[...] o racismo tem de ser combatido sempre, é uma atitude estúpida do ser humano. É
como tivesse decidido para de evoluir, porque foi descobrindo várias coisas. Descobriu
tecnologias, descobriu como se faz um avião, como se faz uma televisão, como se faz
praticamente tudo. Como se cura doenças e ainda não consegue entender que as
pessoas são iguais por dentro, então, não tem porque discriminar. (ENTREVISTA TVT, 03
NOV. 2015)

A consciência que Gustavo apresenta sobre seu pertencimento étnico-racial corrobora as


muitas defesas que ativistas e pesquisadores/as adultos/as tem feito de uma escola que possa
rediscutir as relações considerando a dimensão étnico-racial. Pois, Gustavo na escola deveria ter
sido protegido pela Instituição. As meninas que o discriminavam deveriam ser confrontadas com
novas lógicas para repensarem suas atitudes, porém pelo que ele relata e ao nada disso aconteceu.
Para Araújo e Silva (2012, p. 195, 196), o que se espera dos sistemas educacionais é que
Do ponto de vista de políticas educacionais, a pretensão é a mudança de foco da ótica
eurocêntrica para a ótica plural, das mil e uma histórias do oriente, das fábulas incontáveis
do país dos sábios (Etiópia), das maravilhosas fábulas!Khun, das artes bantos de contar
e embalar mentes e corações, dos instigantes mitos iorubas! Descolonizar os currículos,
descolonizando os escritos e a nós mesmos. Nas palavras da nossa sábia, Toni Morrisson,
a busca é por quando a literatura ‘explode ou prejudica o racismo’. Essa também se tornou
nossa busca: quando olhamos para a produção recente de livros de literatura infantil que
quer dizer sobre nós, negras/os da diáspora para as crianças, em prol da igualdade étnico-
racial, buscamos as explosões e os prejuízos, ao mesmo tempo em que recolhemos e
reconhecemos a fabricação e as permanências.

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Gustavo implode o discurso racista e de receptor torna-se autor e para além das vozes das
quais se apropria nos coloca a sua própria voz para ser ouvida/lida. Também na trilha de autoria, a
pequena Elis Catanhede

4.2 TERCEIRA NARRATIVA: ELIS - DANÇA NEGRA É POWER-

Elis Catanhede é uma menina negra de 5 anos que teve sua imagem divulgada porque
responde por meio de uma gravação postada no you tube, por sua mãe, sobre o seu cabelo black
power. Ela diz:
Oi, gente, tudo bem? Isso não é peruca, é meu cabelo. E eu sei que não é peluca. É meu
cabelo. Tá é assim. Meu cabelo já nasceu assim. E minha mãe já botou pro alto. Não uso
cleme, só uso cleme pra ficar pro alto. Uso cleme e não tenho cabelo liso. Então eu nasci
assim. Não é peluca e tanto que falei. Não é peluca. Meu cabelo não pé liso e eu sou preta.

Desde os dois anos a pequena notável participa de um projeto social da periferia do Rio
de Janeiro, no qual crianças e jovens praticam dança. Antes do vídeo sobre seu cabelo, há outros
acessíveis no you tube na qual ela aparece dançando. Evidentemente que depois que o vídeo
viralizou, a pequena foi chamada a vários programas. Sua família produz roupas e acessórios com
referências da cultura afro-brasileira e também são produtores do baile “os crespinhos”, atuam na
periferia do Rio de Janeiro. Estão cientes do lugar do negro no Brasil .
O que marca a narrativa de Elis é a relação que ela estabelece com sua estética. Ela
está confortável com suas roupas, com seu cabelo e com a sua dança, marcadamente negra. A
eloquência está exatamente nisso. O fato de ser tão pequena encanta e ganha espaço para um
novo jeito de ser criança, ser negra, ter cabelos crespos.
E por fim, vamos apresentar a última narrativa ocorrida em um contexto internacional que
ganhou visibilidade em varias partes do mundo.

4.4 QUARTA NARRATIVA: Marley Dias 12 anos, garota americana.

“Cansei de livros sobre meninos brancos e seus cães”.

Marley Dias.

Marley,utiliza da literatura negra infantil para o enfrentamento da invisibilidade e ausência


do protagonismo negro na literatura. Marley Dias, uma menina negra que se auto intitula como
uma menina apaixonada por livros e ávida leitora, cansada de nunca ver nas histórias negros como
protagonistas sobretudo meninas negras, em 2015 tomou a iniciativa e então resolveu mudar isso
e lançou a campanha #1000BlackGirlBooks (mil livros de garotas negras).
Com objetivo de coletar e doar 1.000 livros em que garotas negras fossem personagem
principal, a campanha ganhou visibilidade e em uma das inúmeras entrevistas á revistas e jornais,
Marley faz reflexões sobre a representatividade e de como foi capaz, de forma positiva, lidar com a

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

não representatividade nos livros de literatura. Ao ser questionada Marley responde,“a frustração
é combustível que pode levar ao desenvolvimento de uma ideia inovadora e útil.”(entrevista
concedida a revista Forbes Women).10
No discurso de Marley e sob a luz do aporte teórico Hall, é possível compreender
como a representação é eficaz, no sentido de promover significados. Ao lançar a campanha
#1000BlackGirlBooks, a garota tem pleno entendimento do porque a faz, embora ainda não
tenhamos informações mais consistente sobre a família e das origens dos repertórios de militância
da menina, de certo modo sua fala é consoante com as lutas empreendidas por ativistas negras e
negros pelo mundo,a representatividade, embora com realidade diferente do contexto brasileiro o
legado do pós-abolição corre mundo.
Estamos falando de um contexto estadunidense, terra de referências mundiais na luta
dos direitos civis dos negros e no enfrentamento antirracista, como a filósofa, ativista, referência
no mundo Angela Davis, Rosa Park, Martin Luther King e Malcon X e tantos outros. Sobre
as possibilidades e percepções da prática representativa Hall, (2016),nos traz importantes
considerações,
Nesse momento a representação surge como “representação política” que em seu ato
de representar constitui não somente a identidade, mas a própria qualidade existencial ou
“realidade” (ontológica), da comunidade política, sendo representada em seus valores,
interesses, posicionamentos, prioridades, com seus membros (e não membros), suas
regras e instituições. Nesse contexto, da “representação política” não ter voz ou não ser
ver representado pode significar nada menos que opressão existencial. (Hall, 2016, p.13).

Logo o discurso de Marley nos leva a afirmar que crianças negras em diferentes contextos
vem reivindicando o seu direito a (re)xistir, vozes infantis negras potentes estão desde a infância
trazendo novas representações da população negra que se contrapõe aquelas consolidadas pelo
colonizador na nossa cultura e outros acordos de significados estão sendo gestados. Atualmente,
Marley tem mais de 9 mil livros,seu próximo passo é escrever seu próprio livro.

Considerações finais
Nossa conclusão ao nos debruçarmos no que dizem essas crianças é que a luta do
Movimento Negro ao ocupar também o espaço da mídia vem demarcando uma nova fase de
fazer política com a entrada em cena de crianças pequenas. As crianças estão construindo seus
ativismos a partir de diferentes lugares sociais e todos têm sua importância, constituindo novos
discursos do lugar social da criança negra.
Essa luta com a voz poderosa da infância que ecoa a partir das novas mídias e na visibilidade
que se tem dado as múltiplas infâncias, a partir de diferentes linguagens e estratégias: a leitura, a

10 Fonte: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades - CEERT. Para maiores informações,
consultar: http://www.ceert.org.br/

Página 552
dança, a música, o orgulho de ser onde se é e como se é se as crianças constituem-se como
atores sociais ativos na luta antirracista no Brasil.
Na interpretação dos diálogos vamos percebendo o quanto as representações a partir da
cultura são eficazes na construção positiva da identidade. Da literatura a estética o orgulho da
pertença étnico-racial vai fortalecendo a identidade de crianças negras, que constrõem narrativas
de resistência e enfrentamento ao racismo. As crianças negras são atuantes na luta antirracista
fazendo circular novos modos e significação de ser criança negra.

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racial e a produção literária infantil: análise de resultados. IN: BENTO, Maria Aparecida Silva
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DIAS, Lucimar Rosa. No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o combate ao


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UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA COM A HISTÓRIA, A CULTURA AFRO-
BRASILEIRA E AFRICANA NO CURRÍCULO DA ESCOLA DE CAMPO

ALVES, Maria de Fátima Monteiro. (SEDUC)


fatimaalves2009@yahoo.com.br
JACINTO, Luis César Rodrigues Jacinto (SEDUC)
jacintokilombobage@yahoo.com.br
CORRAL, Cláudia Moscarelli (UERGS)
claudiacorrals@yahoo.com.br

RESUMO

Este artigo consiste em uma reflexão sobre as experiências e os saberes construídos por um integrante
do Movimento Negro, no Brasil, tendo como foco a luta pela construção de uma educação para a
diversidade étnico-racial e ações afirmativas no período de 1.998 até o presente momento. Apresenta
aspectos da história do Movimento Social Negro, que nos permitam observar temas relacionados à
importância da educação e da luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil e como
foi importante o processo de constituição deste movimento social para a criação da Lei 10.639/03,
que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira nas instituições de ensino básico.
Trata o campo de formação do sujeito-professor, como ele introduz as questões étnico-raciais e suas
implementações curriculares. Ao analisar a prática do sujeito-professor de uma escola do campo,
apresenta como ele associa sua vivência da militância à prática docente, caracterizando esta pesquisa
como qualitativa do tipo estudo de caso. Os resultados foram obtidos através da Análise de Conteúdo
de Bardin, sugerindo quatro categorias de análise oriundas da entrevista e observação da sua prática
pedagógica. Conclui-se que quando um currículo é elaborado e potencializado no cotidiano escolar,
torna-se um relevante articulador das questões sociais, econômicas, culturais e históricas que permeiam
tal problemática.

Palavras-Chave: Lei 10.639/03, Prática Docente, Currículo, Cultura Afro-brasileira.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Na educação brasileira a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento
escolar abriu uma discussão maior que foi a implementação da Lei 10639/03 que altera a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB/ Lei 9.394/96 e torna obrigatório o estudo sobre
a história e a cultura afro-brasileira e africana nas instituições públicas e privadas de ensino. A
escolha em abordar esta temática surgiu a partir da minha observação nas relações estabelecidas
na sociedade brasileira, onde a presença negra é sempre minimizada e restrita a determinados
lugares, assim como as suas representações, geralmente descaracterizadas.
Também contribuiu decisivamente na convergência da temática o fato tornar-me colega de
escola do referido professor em estudo, um líder, militante do Movimento Social Negro na Região
da Campanha/RS. Ao passo que ia conhecendo a sua história de vida, me identificava com a
sua trajetória, que possui semelhanças com a minha e de tantos outros negros que sabemos por
estatísticas e pesquisas acadêmicas, o quanto enfrentam obstáculos por falta de acesso ao ensino
e a qualificação profissional, por conta da discriminação racial ainda presente em nossa sociedade.
É importante ressaltar que a prática docente é um instrumento fundamental entre a
instituição e a comunidade escolar no âmbito de implementar em sua prática a filosofia educacional
para os direitos humanos, fundamentados no respeito às diversidades culturais. Observei várias
movimentações a esse respeito na escola onde trabalho há mais de três anos, e elas se deram
a partir da chegada do meu colega, o educador que se tornou objeto de estudo desta pesquisa.
Através de conversas me interessei muito pela dedicação que o professor em questão possui pela
cultura afro-brasileira, ele que é pedagogo formado pela Universidade Estadual do Rio Grande
do Sul e especialista em Educação e Diversidade Cultural pela Universidade Federal do Pampa.
A partir desse contato consegui me posicionar de uma forma mais efetiva em relação às relações
raciais no país e reafirmar minha postura favorável a temas polêmicos, como as cotas raciais para
acesso à universidade. Portanto, tornou-se um grande desafio estudar a prática docente de um
professor negro, em que sua trajetória de vida é transversalizada pelo engajamento no Movimento
Social Negro.
Esta iniciativa de pesquisa pretendeu problematizar o tema do racismo e descrever os tipos

de atividades aplicadas à inserção da Lei 10.639/03 na educação básica, analisando o dilema da


abordagem da história e cultura afro-brasileira, apontando seus entraves dentre eles a ausência
da temática nos currículos dos cursos de formação de professores. Ensinar história e cultura afro-
brasileiras e africanas não é mais uma questão de vontade pessoal e de interesse particular, mas
é sim, uma questão curricular de caráter obrigatório que envolve toda a comunidade escolar.
O referido artigo trata das experiências e vivências de um pedagogo militante e suas práticas
educativas.

1. O Movimento Negro e a luta por uma educação anti-racista

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A educação como mecanismo de transmissão e reprodução do conhecimento tem o papel
fundamental na socialização de práticas e informação sobre as questões tratadas pelos temas da
diversidade cujo eixo fundador baseia-se na garantia dos direitos fundamentais e na dignidade
humana, condições essenciais para o enfrentamento das desigualdades, tais como o racismo
(SANTOS, 2005). O silêncio escolar sobre o racismo não só impede o florescimento do potencial
intelectual de milhares de mentes brilhantes nas escolas brasileiras, como também nos embrutece
ao longo de nossas vidas, impedindo-nos de sermos realmente livres, principalmente livres de
qualquer tipo de preconceito (CAVALLEIRO, 2005).
A constatação de uma realidade brasileira, onde o negro é minimizado e a sua história
descaracterizada, permite compreender que as desigualdades raciais foram plenamente
construídas por diversos fatores que determinaram o lugar da população negra durante estes
cinco séculos, ou seja, ocupando os estratos sociais mais baixos e os locais menos privilegiados
da sociedade. A partir deste enfoque, é possível entender o quanto, a falta de políticas públicas
combinadas com o racismo produziram este quadro sombrio, que estigmatiza as pessoas pelo
simples fato de possuírem uma pele mais escura. Segundo Santos (2005, p. 22) A abolição da
escravatura no Brasil não livrou os ex-escravos e/ou afro-brasileiros (que já livres antes mesmo
da abolição em 13 de maio de 1888) da discriminação racial e das consequências nefastas
desta, como a exclusão social e a miséria. O fim da escravidão representou na realidade apenas
a troca de papéis de negros escravizados para livres, porém reféns dos processos de exclusão
determinantes das posições desse segmento populacional com os piores indicadores econômicos,
sociais, ocupando os espaços menos privilegiados da sociedade brasileira.
Na contemporaneidade surge de forma organizada o Movimento Social Negro reunindo
organizações da sociedade civil preocupadas com a situação do negro no Brasil. Com suas
demandas para diversas áreas, como saúde, educação, cultura e outros, que passam a fazer parte
de uma agenda organizada na busca por políticas públicas (GOMES, 2005). A Lei 10.639/03 é
resultado da luta do Movimento Negro organizado, que propôs desde meados do século passado
que a inclusão da história e cultura afro-brasileira pudesse estar presente nos currículos escolares
da educação básica. Ao contrário, o que se constatou foi esta ausência de planos e atitudes das
redes de ensino e consequentemente das escolas que sempre negaram esta reflexão sobre a
inclusão da história dos negros no Brasil, nos seus currículos. Ao silenciar e não procurar debater e
abrir espaço para a discussão, a escola torna-se uma reprodutora do preconceito, da discriminação
e do racismo. O Movimento Negro é elencado como sujeito político, buscando vencer os desafios
que ainda cercam as ações dessa organização social, em prol da igualdade racial.

2. O espaço escolar formal e a docência

A escola brasileira, tradicionalmente, sempre homogeneizou e tentou padronizar os


processos das relações escolares, não considerando aspectos específicos de sua clientela,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

compreendendo que cada sujeito tem suas especificidades. A escola tem dificuldades em lidar
com as diferenças, preferindo a padronização (MOREIRA E CANDAU, 2003).
A prática docente do professor é essencial para o estabelecimento de atitudes plurais
e multiculturais que contemplem a diversidade presente na sala de aula, não é mais admissível nos
tempos atuais que a escola e seus profissionais continuem sendo reprodutores de injustiças, maus
tratos e outros tipos de desconsideração referentes às crianças negras afetando a autoestima e
prejudicando o seu autorreconhecimento.
Não há como negar que o preconceito e a discriminação raciais constituem um problema
de grande monta para a criança negra, visto que essa sofre direta e cotidianamente maus tratos,
agressões e injustiças, os quais, afeta a sua infância e comprometem todo o seu desenvolvimento
intelectual.

Qual é a contribuição do espaço escolar na aplicabilidade da lei 10.639?


A escola pode significar abertura à curiosidade pelo mundo exterior, abertura à imaginação
e à criatividade, mas também pode limitar-se a um processo físico onde aprisiona o aluno
obrigando-o a acumular conhecimentos, pode ser fonte de alegria ou caminho para pesadelos,
pode ser um paraíso de felicidade ou um inferno de sofrimentos. Segundo Siqueira (s.d), “o educador
definitivamente tem de instruir como viver, tem de preparar para a vida”. Para a organização de um
bom ambiente de aprendizagem e de trabalho de forma harmoniosa, buscando o desenvolvimento
da aprendizagem, considera-se como ponto chave a interação, o respeito e principalmente o
estabelecimento de valores humanos.
Os valores humanos têm uma extensão intersubjetiva, ou, seja comunitária. Definitivamente,
não são como os gostos ou emoções pessoais que variam de pessoa para pessoa, mas possuem
uma habilidade de coerência de unir perspicácias e vontades de ser, portanto, manancial de visão
do comportamento (FILHO, 1994). O educador e o educando estão sujeitos basicamente, ao
ambiente formado pelo educador, da afinidade empática com seus educandos, de sua competência
de ouvir, pensar e debater no nível de entendimento dos alunos e da criação das pontes entre a
sua experiência e a deles. Recomenda, também, que o professor, educador, busque educar para
as mudanças, para a autonomia, para a liberdade possível numa abordagem global, trabalhando o
lado positivo das crianças, para a formação de um sujeito consciente de seus deveres e consciente
de seus encargos sociais (SIQUEIRA, s.d.).

3. Metodologia e prática pedagógica de um educador crítico-reflexivo


O presente trabalho constitui-se de estudo de caso, através de pesquisa qualitativa sendo
ela aplicada, com caráter descritivo-exploratório por dados obtidos através de entrevistas com
questionário semi-estruturado e análise da prática docente de um educador militante político.
O estudo de caso trata-se de uma abordagem metodológica de investigação especialmente
adequada quando procuramos compreender, explorar ou descrever acontecimentos e contextos

Página 558
complexos, nos quais estão simultaneamente envolvidos diversos fatores. Yin (1994) afirma que
esta abordagem se adapta à investigação em educação, quando o investigador é confrontado
com situações complexas, de tal forma que dificulta a identificação das variáveis consideradas
importantes, quando o investigador procura respostas para o “como?” e o “porquê?”, quando
o investigador procura encontrar interações entre fatores relevantes próprios dessa entidade,
quando o objetivo é descrever ou analisar o fenômeno, a que se acede diretamente, de uma forma
profunda e global, e quando o investigador pretende apreender a dinâmica do fenômeno, do
programa ou do processo.  
O estudo realizou-se em uma Escola Estadual do Município de Candiota, Rio Grande do Sul
com alunos do 5º ano do ensino fundamental. Inicialmente foi elaborado um questionário com o
professor pesquisado onde ele relatou como iria desenvolver atividades relativas a lei 10639/03 no
cotidiano escolar. A coleta de dados foi realizada com diferentes procedimentos e em momentos
distintos, primeiro foi feita observações da prática pedagógica do professor pesquisado, onde
foi avaliada a relação dos conteúdos com a referida lei. Como segundo procedimento após as
observações, foi realizado a parte prática do projeto, com ensaios de danças africanas, receitas
de bolo de fubá, confecções de máscaras africanas, ensaios do teatro “A saga do Quilombo dos
Palmares”, dentre outras.
Por último foi realizado diversas apresentações de trabalhos referente ao Dia da Consciência
Negra, promovendo reflexões a cerca das relações étnico-raciais a fim de superar visões pautadas
no senso comum construídas historicamente a partir de conceitos eugênicos, valorizando a
contribuição negra e indígena no processo de formação da sociedade brasileira. A escola em
questão é a Escola Estadual de Ensino Fundamental Seival, é uma escola de campo localizada
em Seival, no município de Candiota, palco da Proclamação da República Riograndense durante a
Revolução Farroupilha.
Consta em seu Projeto Político Pedagógico, página 12, que:

A educação escolar, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade


humana têm por finalidade proporcionar o pleno desenvolvimento do educando,
contribuindo para a compreensão do mundo, a sua integração e participação na sociedade,
melhoria na qualidade de vida e o pleno exercício da cidadania.

A escola adota como filosofia a concepção de que é um espaço aberto e acolhedor


para a comunidade local, oferecendo uma alternativa de educação que favorece o crescimento
pessoal, comunitário e a transformação estrutural da sociedade, através de um contínuo processo
de planejamento. Sobre o currículo destaca que ele expressa uma ampla rede de significados,
tornando a escola um lugar de construções coletivas. No Projeto Político Pedagógico da escola,
encontramos descrito:

O currículo interdisciplinar resgata a inteireza do ser, do saber e do trabalho em parceria;


e expressa à sociedade que queremos, com uma cultura de paz e de desenvolvimento

Página 559
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

humano, ou seja, a sociedade que se quer construir (p.16).

Observando a prática docente do professor J. identifiquei-a como educativa que contempla


a democratização, a interdisciplinaridade, e o processo de formação social, cultural, educacional
de seus discentes, pois foi capaz de inovar, variar suas técnicas de ensinar, buscar qualidade e não
se deter em quantidades de conteúdos, teve bom relacionamento com as crianças, respeitando a
realidade de cada um. O professor busca incessantemente ensinar seus alunos para conviverem em
sociedade, valorizar sempre as questões sociais como dignidade, caráter, bondade e honestidade,
dentre todos esses ensinamentos, observei também em suas atividades curriculares as questões
que tratam sobre a cultura africana e suas reais influências para a formação da identidade do
nosso país, durante o desenvolvimento do projeto “Valorizando a Cultura Negra”, elaborado pelo
professor em questão, onde houve o envolvimento de todos os professores e gestores da escola.
A partir daí surgiu o interesse na pesquisa, objetivando associar suas lutas e conquistas
baseado no Movimento Social Negro, a aplicabilidade da Lei 10639/03 em sua prática docente.

3.1 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS:

Apresento algumas atividades desenvolvidas no projeto: Formação pedagógica ministrada


pelo professor militante para os demais docentes e gestores da escola, roda de conversa
explicando a importância do negro na formação do povo brasileiro, curta metragem “Vista minha
pele”, trabalhando com a mitologia africana (apresentando candomblé, umbanda, quimbanda, o
batuque no RS), confecções de máscaras, hora do conto (livro Betina), apresentações de dança
africana, entre outras.
O tratamento dos dados foi realizado a partir da Análise de Conteúdo de Bardin (2010)
e sugeriu as seguintes Categorias de Análise, conforme as respostas do entrevistado: 1. A
Militância no Movimento Negro; 2. A importância da Lei para o resgate da história e cultura do povo
afrodescendente; 3. Resistência por parte dos profissionais da educação na aplicabilidade da Lei ;
4. Trabalhando com a Lei para a educação das relações étnico-raciais na escola.

3.1.1 A Militância no Movimento Negro

A Lei 10639/03 alterou a Lei 9394, de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Construir uma identidade negra positiva em
uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é
preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros(as) brasileiros(as). Será que,
na escola, estamos atentos a essa questão?

Página 560
Segundo J.:
“Não é possível, pelo menos antes do levantamento de dados e as respectivas análises
deste trabalho separar o militante do professor, uma identidade permeia a outra, já que
minha formação docente foi inspirada pela militância no Movimento Social Negro, onde
senti a necessidade de intervir pedagogicamente no processo educativo, e cumprir
minha função ao propor atividades, tanto aos meus alunos, quanto ao conjunto da escola
para efetivação da Lei 10.639/03”.

3.1.2 A importância da Lei para o resgate da história e cultura do povo afro-brasileiro

Na fala de J. observa-se a importância da Lei para o estabelecimento de novas práticas


curriculares:

A lei 10.639/03 é fruto da luta organizada das organizações do Movimento Social


Negro e de outras instituições parceiras na perspectiva de uma abordagem significativa
e positiva da cultura afro-brasileira e africana aí a importância da participação do negro
nesse processo (J.)

A não valorização da história africana não é somente uma questão cultural, mas também
social, já que ela traz inúmeros significados, contribuindo para invisibilidade dos valores
africanos e o não autorreconhecimento dos negros da sua relevância para a construção
da sociedade brasileira e o desconhecimento dos não negros dessa contribuição (J.).

A Cultura estabelece para cada pessoa um contexto de comportamento cognitivo e


afetivo que permite interpretar a realidade. Conceituar cultura não é tarefa fácil, cada indivíduo
apresenta uma forma de definição de cultura. Geertz (2003), acredita que a Cultura é formada por
construções simbólicas, os significados contidos num conjunto de símbolos compartilhados. Para
ele, “a análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos
completa”. Seu conceito é essencialmente semiótico. Fundamenta-se no compartilhamento das
ideias, a “teia de significados”, amarradas coletivamente.
O entendimento do significado de cultura subsidiará a compreensão das raízes culturais.
Quando me refiro às raízes culturais, refiro-me à sua origem, ou seja, a forma como foi construída
a cultura de um povo. Dessa maneira configura-se uma necessidade de recuperação e resgate
dos fragmentos de informações e referências que possam permitir a construção de um perfil das
culturas africanas e afro-brasileiras na estruturação territorial e no desenvolvimento do Brasil.
Para Bourdieu (2004, p.20-29) “a sociedade é constituída de campos sociais dotados de regras
próprias, espaços nos quais os agentes e as instituições que produzem ou definem a arte, a
literatura, a ciência, encontram-se, inserem-se e se relacionam”.
A lei 10.639/03 está fundamentalmente baseada na reflexão que tem como base o princípio
de igualdade, tendo a ideia de que somos todos sujeitos históricos e sociais. De acordo com
documentos do MEC (Ministério da Educação e Cultura), a lei deixa nítida a obrigatoriedade do
ensino de conteúdos sobre a matriz negra africana na constituição da nossa sociedade no âmbito

Página 561
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de todo o currículo escolar, e sugere as áreas de História, Literatura e Educação Artística como
áreas especiais para o tratamento desse conteúdo, tanto no Ensino Fundamental como no Ensino
Médio (BRASIL, 1996). Nesse sentido, torna-se importante entendermos a urgência de resgatar
estes conteúdos para pleno entendimento da história da sociedade brasileira e da contribuição do
povo negro na construção social, econômica e cultural do nosso país.

3.1.3- Resistência por parte dos profissionais da educação na aplicabilidade da Lei.

Dentro da nossa realidade buscamos efetivar um Brasil com condição de um estado


democrático de direito com ênfase na cidadania e na dignidade da pessoa humana, contudo,
ainda possui uma realidade marcada por posturas subjetivas e objetivas de preconceito, racismo
e discriminação em relação aos negros, que, historicamente enfrentam dificuldades para o acesso
e a permanência nas escolas. É papel da escola de forma democrática e comprometida estimular
a formação de valores humanos, hábitos e comportamentos que respeitem as diferenças e as
características próprias de grupos e minorias. Assim, a educação é essencial no processo de
formação de qualquer sociedade e abre caminhos para a ampliação da cidadania de um povo.
É necessária a inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da matriz
curricular tanto dos cursos da licenciatura para a educação infantil, aos anos iniciais e
finais da educação fundamental, educação média, educação de jovens e adultos, como
processos de formação continuada de professores, inclusive de docentes no ensino
superior (BRASIL, 2004, p. 23).

Segundo J. as dificuldades para a implantação da Lei se expressam na cultura brasileira de


forma velada, ou seja:
É plena comprovação da existência do racismo cordial brasileiro que se manifesta de forma
velada, dificultando a efetivação da implementação da história e cultura afro-brasileira no
currículo, bem como prejudicando o processo educativo das relações étnico-raciais na
escola (J).

Apesar de muitos materiais didáticos sobre o assunto terem sido produzidos e, revisões nos
conteúdos serem realizadas a fim de desenvolver a prática nessse sentido, ainda são inúmeras as
dificuldades encontradas pelos profissionais da educação na implementação da lei.
São inúmeros os fatores que devem ser avaliados nesse fazer pedagógico, como as demais
instituições a escola passa por modificações que redefinem sua estrutura. A escola de hoje não
é mais apenas um ambiente onde são “transmitidos conteúdos”, mas é também um panorama
responsável pela concepção política, moral, ética de quem utiliza seus serviços. Portanto um
currículo bem elaborado, exaltando a importância da aplicabilidade da Lei 10.639/03 é uma
importante ferramenta que pode auxiliar o professor na sua prática em sala de aula, porém é
necessário que o professor seja consciente que ser professor é um processo de transformação
constante, e que tudo que a gente já fez pode ser repensado, se estivermos em constante processo
de reflexão.

Página 562
Esta legislação reorienta a forma de abordar os conteúdos na sala de aula,destacando
de forma positiva o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos
escolares (J).

3.1.4- Trabalhando com a Lei para a educação das relações étnico-raciais na escola.

A escola é um espaço que reflete o pensamento da sociedade na qual está inserida, mas
também pode se comportar como uma agente transformadora e proponente de novas ideias e a
construção de um espaço democrático, que pode servir de exemplo para a comunidade e possui
função de preparar o aluno para o exercício de cidadania, do trabalho e continuar aprendendo
ao longo da vida. Ensino é algo tão abrangente quanto às relações humanas, por esse motivo
devemos estar a todo o momento realizando atos de aprendizagem e de ensino; pela educação
desenvolvemos nossa capacidade e potencialidades para saber e para fazê-lo. Educação não
é um ponto de chegada, mas um processo. Nesse processo está presente a dinamicidade das
ações e relações entre as pessoas e grupos, o que faz desse processo um mecanismo que pode
produzir transformações sociais, mas que, em geral, esforça e mantém a sociedade estratificada.
“Pode-se dizer que em todas as dimensões da vida existem processos educacionais” (LUCKESI,
2001, p.83). A instituição escolar pode ser compreendida como um espaço social privilegiado
onde, concomitantemente, são socializados saberes sistematizados e transmitidos valores por ela
legitimados.

Conclusão

A questão racial é assunto de todos e deve ser conduzida para a reeducação das
relações entre descendentes de africanos, de europeus e de outros povos. Só assim haverá
o reconhecimento da existência, da necessidade de vaorização e do respeito ao negro e a sua
cultura dentro da escola. Promover a reflexão a cerca das relações étnico-raciais a fim de superar
visões pautadas no senso comum construídas historicamente a partir de conceitos eugênicos,
valorizando a contribuição negra e indígena no processo de formação da sociedade brasileira, foi
o principal objetivo desta investigação.
Minha visão acerca das questões étnico-raciais começou há bastante tempo, onde vivenciei
várias questões que envolviam práticas racistas, muitas vezes involuntárias, demonstrando a falta
de conhecimento de uma cultura tão rica que é a cultura negra. O objetivo principal da inserção da
lei é o de divulgar e produzir conhecimentos, atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
quanto à pluralidade étnico-racial, com o intuito de garantir respeito aos direitos e a valorização
de identidade cultural brasileira, como outras leis que direta ou indiretamente contribuem para a
formação cultural do nosso país.
A lei 10.639/03 teve um papel fundamental, pois permitiu a garantia do estabelecimento

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de uma política educacional atenta á uma prática pedagógica voltada a educação em direitos
humanos. A escolha da temática é também uma aposta de que as práticas racistas podem ser
questionadas, e quem sabe, reduzidas com a contribuição da educação formal, se houver um
trabalho que contemple a discussão com e sobre a diversidade desde os primeiros anos de
escolaridade. Observar a prática pedagógica de um professor engajado nessa luta para erradicar
o racismo, usando o espaço escolar para tal, demonstrou que a escola tem papel importante a
cumprir e é nesse contexto que se insere eessa pesquisa.
Com a pesquisa pude ampliar meus conhecimentos e ter um olhar mais atento em relação
às questões raciais e toda a luta do Movimento Social Negro acerca das ações afirmativas,
compreendendo os caminhos enfrentados por aqueles que se dedicam a este trabalho associado
à militância. Encontrar práticas pedagógicas com educadores comprometidos, com uma escola
mais democrática demonstrando a compreensão de que o direito à diversidade étnico-racial faz
parte do direito à educação, na constituição de um país mais justo e uma sociedade mais igualitária.

Referências

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história e cultura afro-brasileira e africana e a formação de professores em Sergipe.
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cientifico. São Paulo: Editora UNESP, 2004

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BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais
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Disponível em: < http://www.uel.br>. Acesso em: 11de junho de 2016.

CAVALLEIRO. E. S. Discriminação racial e pluralismo em escolas públicas da cidade de São


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CANDAU, Maria.V. MOREIRA, Antônio.F.B. Educação escolar e cultura(s): construindo


caminhos. Revista Brasileira de Educação: Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa
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FILHO, Falcão. Coletânea vida na escola: os caminhos e o saber coletivo. Belo Horizonte,
P.42,49 (1994).

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas.Op.Cit.pág.39,2003

GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre algumas estratégias
de atuação. In: Superando o racismo na escola, 2ª Edição Revisada/Kabengele Munanga,
org. [Brasília]: Ministério da Educação, Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e
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LUCKESI, C.C. Educação e luta de classes.18 Ed. São Paulo. Cortez,2001.

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SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei no 10.639/03 como fruto da luta antirracista do Movimento
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SIQUEIRA, L. O. P. ( s.d.) . Sociedade, escola e família. Disponível em : HTTP://br.monografias.com.


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YIN, Robert (1994).  Case Study Research: Design and Methods  (2ª Ed) Thousand Oaks, CA:
SAGE Publications.Disponível em http://grupo4te.com.sapo.pt/referencias.html. Acesso em 30/04/2016.

Página 565
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

VER NÃO BASTA, TEMOS QUE OLHAR – PRÁTICAS DE RESISTÊNCIAS


NEGRAS NA ESCOLA

PAULA, Josiane Beloni de. (UFSC)


belonijbc@hotmail.com
PAIM, Elison Antonio. (UFSC)
elison0406@gmail.com

Resumo

Este trabalho é parte da tessitura da pesquisa de uma tese de doutorado intitulada: Andarilhagens das
práticas de resistências negras na escola, no evento “Poder Escolar” em Pelotas-RS. O qual tem o intuito
de trazer à tona práticas desenvolvidas nas escolas, as quais já estão sendo divulgadas por este evento,
na forma de apresentações e anais, não mais só visualizando o racismo em nossa sociedade, mas com
a perspectiva de criar caminhos, brechas, como uma saída para a reversão de uma ordem opressora
(BENJAMIN, 2012) para erradicar o preconceito impregnado no imaginário social ao longo de nossa
história colonial. A pesquisa será constituída de análises de entrevistas realizadas com as professoras/
educadores, os quais realizam estas ações em suas salas de aulas, após rastreados dos anais do evento.
Também com a discussão da interculturalidade (WALSH, 2007) na valorização de múltiplos saberes,
outras formas de ser e estar no mundo, visando decolonizar os pensares e saberes. Neste sentindo
a estudiosa Walsh fomenta um processo em construção, de uma pedagogia decolonial, baseada na
práxis propositiva, não só denunciativa e para inspirá-la dialoga com os referenciais de Paulo Freire e
Frantz Fanon, referentes à consciência do oprimido e a necessidade de retomada da humanização dos
povos subalternizados. Dessa forma, saindo de um único modo de vida global, definido por alguns, para
todos, o qual define as práticas sociais, visualizando e experienciando maneiras não reconhecidas pelo
sistema vigente, mas que possibilitam viver de forma autêntica e plena de suas oportunidades. Sendo
assim, vai se delineando os pensares, dialogando com autores, criando saberes para a constituição da
pesquisa, que por aqui vem se construindo.

Palavras-chave: Práticas de resistências, negro, decolonizar.

Página 566
1 Iniciando a conversa

Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para
transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo
usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar
de práticas com ela coerentes.

Paulo Freire

Este estudo começa a pegar forma, na década de 2000, com a caminhada de educadora
e pesquisadora, a qual sempre foi permeada de duas inquietações, a educação vista como
um processo de construção do ser, em sua forma integral, ou seja, do ser e estar no mundo e a
problemática do grupo de pertencimento dos indivíduos envolvidos nesse processo, principalmente
do grupo étnico negro.
Sendo assim, no início a análise foi empírica, uma mistura de angústias, indignações e
sentimentos de possibilidades de ações para transformação, passando a problema de pesquisa,
com a denominação de práticas de resistência negra na sala de aula, que permeou observações
em escolas e trabalhos realizados pelas e nas mesmas, visualizando ações inovadoras e
transformadoras, construídas dentro da escola, por professoras(es) e estudantes preocupados
com os rumos da consciência humana, as(os) sujeitas(os) deixarem de ser expectadores da própria
vida, se apoderando de seus direitos, para tornarem-se atores e autores de suas histórias como voz
ecoante e não mais como segunda voz, pouco ou nada ouvida, também serão realizadas entrevistas
com professoras, referentes a seus saberes e constituições como sujeitos e profissionais.
Além de diversos estudos na área, leituras e aprendizados levaram a trabalhos realizados
como: artigo de especialização e dissertação de mestrado, os quais instigam novos saberes e lutas,
como atualmente no doutorado. E é a partir deste lugar atual, de doutoranda que será analisada a
trajetória de trabalhos realizados em escolas sobre a temática da etnia negra, na primeira década do
evento “Poder Escolar”, criado em 2001, que é um projeto de formação permanente de professores
os “Encontros sobre o Poder Escolar”, o qual tem como objetivo investir no desenvolvimento da
autonomia e capacidade da comunidade escolar, contribuindo para a qualificação da oferta da
educação básica através da divulgação e discussão de experiências, diálogos e o contato com
pesquisadoras(es) da área. O qual ocorre em Pelotas-RS. Será analisada como foi tratado ao longo
de uma década este grupo de pertencimento, nos estudos de professores, neste evento.
Este evento começou com um grupo de educadoras(es) preocupadas(os) com a formação
permanente, participaram de eventos em porto Alegre (1994 a 1999) com participação de
pesquisadoras(es) e autoras(es) de todos os continentes, estes tiveram o desejo de dividir, de
alcançar mais profissionais, na região sul, para debater novas experiências.
Então reuniram-se e organizaram em 2001 o 1º ENCONTRO SOBRE O PODER ESCOLAR,
como um encontro estadual de educação, para abranger professoras(es), da educação básica, na
segunda edição, conjuntamente com o 3º Seminário Interinstitucional de educação, agregando na

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

sétima edição em 2007 o 1º Encontro Internacional Sobre o Poder Escolar.

2 Caminhos que vem sendo trilhados

Em pleno século XXI ainda estamos imersos em uma sociedade que conserva muitos
preconceitos oriundos da brutalidade da escravidão dos negros no Brasil; tais preconceitos
construídos historicamente deixaram marcas nas relações sociais e no imaginário coletivo.
Neste trabalho visamos discutir o mito da democracia racial1, o qual nivela os sujeitos como
iguais, verificando, por meio de diversos exemplos, a existência do preconceito com a etnia negra
na sociedade brasileira. Objetivamos, ao mesmo tempo, estudar práticas de educadoras(es)
preocupadas(os) com a erradicação do racismo, os quais trabalham arduamente, realizando
práticas inovadoras, a qual chamaremos aqui de práticas de resistência2, numa visão de educação
antirracista. Nesta perspectiva trazemos a discussão da decolonialidade, refletindo
acerca da transformação da sociedade, não mais querendo trocar o sistema, como
viemos fazendo ao longo da história, onde sempre temos o colonizador e o colonizado, o
que possui as formas de produção e o que vende sua força de trabalho, para formas de governo
na tentativa de inverter esta lógica, o oprimido passando a opressor. Mas uma visão mais ampla
de mundo, respeitando saberes e formas diferentes de viver, lutar para retirar sim a colonialidade
do ser, do saber, do sentir, mas não para colocar novos dominantes, é um viver de rupturas com
a hierarquização e a padronização do mundo, olhar o mundo nas suas diferentes formas de estar
nele, trabalhar com as diferenças.
Fugindo de um único modo de vida global, definido por alguns, para todos, o qual define as
práticas sociais, visualizando e experienciando maneiras não reconhecidas pelo sistema vigente,
mas que possibilitam viver de forma autêntica e plena de suas oportunidades.
Sendo assim, a discussão da decolonialidade com os negros no Brasil hoje se torna
indispensável para construirmos uma sociedade pautada na diferença, na interculturalidade e nas
múltiplas formas de vivenciá-la. Pois a interculturalidade é uma experiência existencial. Como nos
ressalta Walsh,

A interculturalidade crítica (...) é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram
uma experiência histórica de submissão e subalternização.

Uma proposta e um projeto político que também poderia expandir-se e abarcar uma

1 Na nossa ideologia nacional, temos um mito de três raças formadoras. Não se pode negar o mito. Mas o
que se pode indicar é que o mito é precisamente isso: uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda não
se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação. Assim, o “racismo à brasileira”,
paradoxalmente, torna a injustiça algo tolerável, e a diferença, uma questão de tempo e amor. Eis, numa cápsula, o
segredo da fábula das três raças (DAMATTA, 1984, p. 28).
2 Resistência é conceituada por Paulo Freire como o oposto de desistência. Resistência pressupõe briga entre
desiguais, onde “a boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar”
(FREIRE, 2000, p.67). A resistência freiriana tem a ver com possibilidade de mudar o mundo, de não acomodar-se, não
fraquejar, intervir. A resistência é a prática de rever conceitos da visão dominante.

Página 568
aliança com pessoas que também buscam construir alternativas à globalização neoliberal
e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como pela
criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada desta maneira, a
interculturalidade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem um projeto da diferença
em si. (...), é um projeto de existência, de vida. (2007, p. 8)

Dessa forma, encontramos nas palavras de Walsh a legitimidade para seguir na construção
deste estudo, no que tange aos sujeitos que são colonizados ao longo da história,
... a decolonialidade implica partir da desumanização e considerar as lutas dos povos
historicamente subalternizados pela existência, para a construção de outros modos de
viver, de poder e de saber. Portanto, decolonialidade visibilizar as lutas contra a colonialidade
a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistêmicas e políticas. (2007, p. 7)

A estudiosa Walsh nos coloca um processo em construção de uma pedagogia decolonial,


baseada na práxis propositiva, não só denunciativa e para inspirá-la traz os referenciais de Paulo
Freire e Frantz Fanon, referentes à consciência do oprimido e a necessidade de retomada da
humanização dos povos subalternizados.
Sendo assim, vai se delineando os pensares, dialogando com autores, construindo saberes
para a constituição da pesquisa, que aqui se desdobra.

3 Horizontes

Este projeto visa não mais somente pontuar o problema/desafio do racismo, mas sim
apontar práticas de resistência negra na sala de aula, trabalhos realizados por educadores, os quais
visam à erradicação do preconceito na escola e consequentemente na sociedade. Pois como nos
mostra Munanga (2005, p. 16),

[...] memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos
de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas,
principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos,
eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não
pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual
nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das
condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na
formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional.

As africanidades, como coloca Munanga, são histórias que interessam a todos,


acontecimentos que têm o direito de estar nas nossas memórias e estudos na mesma condição
daqueles atualmente aceitos e legitimados; são conhecimentos de todo o nosso povo e devem ser
procurados e rememorados.
Todo sujeito, seja de qual etnia for, deve ter acesso e direito garantido de conhecer as várias
histórias contadas pelos mais diversos olhares. Principalmente a etnia negra que sempre teve

Página 569
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

negada sua expressão ou sendo permitida apenas como segunda voz, pouco ou nada ouvida. No
entanto, as africanidades brasileiras são oriundas das raízes africanas, são os modos de ser, de
viver, de estar, dos negros brasileiros, são as marcas que trazemos como brasileiros, independente
da ascendência étnica, hábitos e costumes cotidianos, como nos afirma Silva (2005, p. 156):

As Africanidades Brasileiras vêm sendo elaboradas há quase cinco séculos, na medida em


que os africanos escravizados e seus descendentes, ao participar da construção da nação
brasileira, vão deixando nos outros grupos étnicos com que convivem suas influências e,
ao mesmo tempo, recebem e incorporam as destes. Portanto, estudar as Africanidades
Brasileiras significa tomar conhecimento, observar, analisar um jeito peculiar de ver a
vida, o mundo, o trabalho, de conviver e de lutar pela dignidade própria, bem como pela
de todos descendentes de africanos, mais ainda de todos que a sociedade marginaliza.
Significa também conhecer e compreender os trabalhos e criatividade dos africanos e de
seus descendentes no Brasil, e de situar tais produções na construção da nação brasileira.

A resistência em realizar práticas que trabalham com a história do negro como autor na
escola é um estímulo para contagiar outros sujeitos ao estudo desta temática, além de ser só o
primeiro passo para a divulgação e debate sobre a etnia negra na sociedade brasileira. Na trajetória
de estudo deste tema tanto educadores como pesquisadores e demais envolvidos afetam,
afetando-se, envolvem-se e são envolvidos pelas vivências e experiências que ocorrem ao longo
da caminhada. Pois é um viver contra a opressão, contra o racismo e a favor da equidade.

4 Andarilhagens

A pesquisa vem se delineando, iniciando pelo rastreamento dos anais do evento na sua
primeira década (2001 a 2010), das práticas apresentadas como experiência na escola, as quais
trabalharam com a temática da presença negra na sociedade brasileira. Referente a incidência do
tema, nos dez eventos foram apresentadas 1.123 experiências realizadas nas escolas, sendo 47
sobre a temática, envolvendo 55 professoras(es), alguns repetidas vezes.
Neste momento a pesquisa se encontra na construção do Estado do conhecimento
referente a práticas de erradicação do preconceito na escola, inicialmente pelos programas de
pós-graduação do estado do Rio Grande do Sul, onde ocorre o evento e as construções relevantes
para este trabalho.
Posteriormente, serão realizadas entrevistas com dez professores, dos 55 que apresentaram
práticas no evento, referentes a temática, sendo cada um representante de um ano. Foram
selecionados através de contato pelas redes sociais e não repetindo os professores. Também com
a idealizadora e incentivadora do evento.
Sendo assim, vai se construindo a tessitura da tese de doutorado aqui pretendida.

Conclusão

Página 570
Os sujeitos ao narrarem suas memórias, deixam seus rastros, criam e recriam, destroem e
constroem ao mesmo tempo suas percepções do mundo que o cercam. Ao rememorar o sujeito
resignifica o vivido, lembrando do passado, no presente, construindo o futuro, instrumentaliza sua
ação, sendo assim vai construindo resistência visualizando o não visto, criando deslocamentos na
sua vida.
Quem narra cria a possibilidade de contar sua experiência,dar conselhos,revisitar o seu
passado,resignificando o seu presente,para construir seu futuro,possibilitando o sujeito ver caminhos
entre as brechas,analisar os rastros,para se posicionar contra a opressão,uma educação a contrapelo.
(BENJAMIN, 2014, p. 240)
Sendo assim,
No cotidiano escolar, a educação anti-racista visa à erradicação do preconceito, das
discriminações e de tratamentos diferenciados. Nela, estereótipos e ideias preconcebidas,
estejam onde estiverem (meios de comunicação, material didático e de apoio, corpo
discente, docente etc.), precisam ser duramente criticados e banidos. É um caminho que
conduz à valorização da igualdade nas relações. E, para isso, o olhar crítico é a ferramenta
mestra. Almeja, nesse sentido, possibilitar aos indivíduos pertencentes a grupo de
atingidos pelos preconceitos a reconquista de uma identidade positiva, dotada de amor
e orgulho próprios. Nela é permanente o combate aos sentimentos de inferioridade e
superioridade, visto que a palavra máxima da educação anti-racista é a igualdade entre os
humanos. (CAVALLEIRO, 2001, p.150).

Dessa forma, este trabalho vislumbra ser também uma fonte possível de dados, para
pesquisadoras(es) e educadoras(es), além de estimulo e incentivo acerca da presença negra em
nossa sociedade e sua valoração na escola como integrante da construção histórica, no passado
e atualmente.

Referências

BENJAMIN, Walter. O Narrador. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história
da cultura. Obras Escolhidas I, Brasiliense. 8ª Ed. 2ª reimpressão, 2014.

CAVALLEIRO, Eliane. (org), Racismo e Anti-Racismo na Educação: repensando nossa escola.


São Paulo: Summus, 2001.

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social Petrópolis: Vozes, 1981.

Encontro Estadual sobre o Poder Escolar. A escola também é poder escolhe, rompe, decide e
estimula. 1º, 2001, Pelotas. Anais do evento, Pelotas/RS. Ed. e Gráfica Universitária da UFPel,
40 páginas.

Encontro Estadual sobre o Poder Escolar. A escola como possibilidade de ousadia, rompimento,
coragem, reinvenção. 3º seminário interinstitucional de educação. 2º, 2002, Pelotas. Anais dos
eventos, Pelotas/RS. Ed. e Gráfica Universitária da UFPel, 43 páginas.

Página 571
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Encontro Estadual sobre o Poder Escolar. Profissão professor as maneiras de ser nas maneiras
de ensinar. 7º, e 3º seminário interinstitucional de educação. E 1º Encontro Internacional sobre o
Poder escolar. 2007, Pelotas. Anais dos eventos, Pelotas/RS. Ed. e Gráfica Universitária da UFPel,
253 páginas

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 15.ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000.

MUNANGA, Kabenguele. Superando o racismo na escola. 2.ed. MEC/Secad, 2005.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Africanidades. Como valorizar as raízes afro nas propostas
pedagógicas. Revista do Professor, n. 44, out./dez. 1995. In: Superando o racismo na escola.
Org Kabengele Munanga, 2005.

Página 572
TERRITORIALIDADE E ANCESTRALIDADE: A PRESENÇA DOS GRIOTS EM
SALA DE AULA

Autora: Patrícia da Silva Pereira


Professora de Anos Iniciais/SMED/PMPA
Graduanda em Direito/UFRGS
Mestra em Educação/FACED/UFRGS
patriciasp@smed.prefpoa.com.br

Resumo

Este trabalho apresenta as análises iniciais dos dados referentes ao Curso de Aperfeiçoamento
UNIAFRO/UFRGS – Promoção da Igualdade Racial na Escola – 1ª e 2ª Edições (2013/14) no Módulo
II, da Professora Drª Cláudia Pires/Geografia/UFRGS, intitulado “Território, significações etnoculturais e
educação”. Este curso foi direcionado para Professores de Escolas Públicas do RS, de forma gratuita. Fiz
parte da equipe, acompanhando os alunos e Tutores na realização das atividades, avaliações e debates
na plataforma Moodle. O curso teve como proposta o compartilhamento de materiais, que propunham
a reflexão do cotidiano na escola e comunidade escolar, ampliando o olhar pedagógico e relações com
personagens e artefatos do contexto cultural afrobrasileiro, no intuito do cumprimento da Lei 10.639/03,
a partir da educação dos Educadores, de forma emancipadora estruturante. A escolha por este Módulo
deu-se pela temática dos Griot’s, Mestres dos Saberes, tema de minha Dissertação, preconizados aqui
como guardiões da memória de seus territórios, de suas comunidades religiosas, de suas famílias. A
proposta foi de que, após a leitura e debate do texto-base do módulo, os Professores identificassem
pessoas negras na comunidade escolar, com mais de 50 anos, que se dispusessem a vir conversar
com seus alunos, contar suas experiências escolares, convivência com outros alunos negros e brancos,
suas relações sociais e conflitos raciais, que constituíram sua formação como cidadão. A ideia central era
mapear a vida desta personagem, mostrando iconograficamente aos alunos os cenários vivenciados,
e as relações marcantes e conflituosas, centrando nos meios de superação. Com esta experiência,
os Professores puderam adquirir subsídios, com a colaboração de pessoas próximas à rotina escolar,
sendo mediadores de ações emancipatórias reestruturantes e reparadoras para o povo Negro. Assim,
os relatos dos Griot/Griotes, além de marcantes socialmente, foram desencadeadores de mudanças
pedagógicas significativas com as crianças destas turmas.

Palavras-chave: Griots-Educadores, UNIAFRO/UFRGS, territorialidade afrocentrada.

Introdução

Página 573
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Os territórios onde vivemos são nossos espaços de aprendizagem, disputa política e de


socialização. São nestes territórios que encontramos nossa história, nossas raízes e construímos
nossa identidade como cidadãos. Mas qual será o nosso real conhecimento sobre estes territórios
e as histórias das pessoas que lá também constituíram-se coletivamente?
A partir desta ideia de noção de territorialidade e identidade local, que a atividade do
Módulo II do Curso UNIAFRO – Política de Igualdade Racial na Escola traz a proposta de buscar
nas comunidades do entorno, para dentro das salas de aula dos Professores-cursistas, na 1ª e
2ª edição, nos anos de 2013 e 2014, respectivamente, aqueles mais velhos, os mais experientes
moradores do lugar, para a partir de seus relatos, construir suas histórias e dos processos de
educação institucionalizadas.
A ideia central deste trabalho é mostrar as análises iniciais dos dados referentes ao Curso
de Aperfeiçoamento UNIAFRO/UFRGS, no Módulo II, da Professora Drª Cláudia Pires/Geografia/
UFRGS, intitulado “Território, significações etnoculturais e educação”, não apenas quantificando
quais cursistas conseguiram identificar, mas o perfil destes “mais velhos”, destes Mestres dos
Saberes locais. A partir das apresentações, em .ppt, de cada cursistas neste módulo, armazenadas
no Moodle UFRGS, selecionamos por faixa-etária, gênero e ocupação, e analisamos as dificuldades
relatadas e algumas curiosidades apresentadas, mais significativas. Assim, pudemos entender a
logística empregada e como foi a própria aceitação da atividade pela escola e pelos pares, no
cotidiano escolar.

O curso UNIAFRO

O Curso de Aperfeiçoamento UNIAFRO – Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola


-, nasce de uma proposta do MEC-SECADI, a partir de opções de seus catálogos de cursos para
atender as demandas das Universidades brasileiras em relação à formação inicial de Professores,
em especial os que atuam nas Redes Púbicas de Ensino, nos cursos de Licenciaturas, atendendo
ao preconizado na LDB-art. 26-A, além das Diretrizes Curriculares para a implementação das
Relações Étnico-Raciais nas escolas, do CNE/MEC. Ofertado à UFRGS, a partir do FORPROF –
Unidade de Formação de Professores, em 2012, tem como sua Coordenadora a Professora Dra.
Gládis Elise Kaercher/FACED/UFRGS. Foi organizado, as suas três primeiras edições (2013, 2014
e 2016) em quatro módulos básicos:
Módulo I: História da escolarização do negro no Brasil - Professora Responsável: Dra.
Isabel Silveira dos Santos. Temática: Escolarização do negro no Brasil. Educação contemporânea
do negro no Rio Grande do Sul;
Módulo II: Território, educação e significações etnoculturais - Professora Responsável:
Dra. Cláudia Luisa Zeferino Pires (IGEO/UFRGS). Temática: Conceito de território, identidade e
diferença. Formação de território. Diferença cultural. Cotidiano escolar;
Módulo III: Africanidades na sala de aula: a construção de uma ambiência para a igualdade
racial na escola - Professora Responsável: Dra. Tanise Muller Ramos (CAP/UFRGS). Temática: Lei

Página 574
10.639/2003. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de História e Cultura Africana e
Afrobrasileira. Africanidades. Geração de ambiências. Igualdade racial na escola;
Módulo IV: Corpo e diferença racial na educação escolar -Professora Responsável: Dra.
Leni Vieira Dornelles (/FACED/UFRGS). Temática: Corpo. Diferença racial. Educação Escolar.
Ementa: O módulo pretende discutir, desconstruir, questionar e mostrar alguns encaminhamentos
sobre os modos de se encarar o que versa sobre corpo e diferença racial na educação escolar.
O curso organiza-se, metodologicamente, como teórico-prático, com vídeos e textos que
sensibilizam e dão início aos debates na plataforma Moodle; uma aula ao vivo no Polo UAB/Campus
Vale/UFRGS transmitido para os demais Polos do interior, com debate ao vivo; e a proposta de uma
atividade a ser realizada com seus alunos, nas escolas de origem, depois devidamente analisadas
e postadas no Moodle para avaliação. Assim, os Professores-cursistas tem a possibilidade de
conhecer novos conceitos, aprofundar outros tantos, aliar teoria à prática através das propostas, e
poder refletir sobre novas possibilidades pedagógicas.
A atividade1 consiste em encontrar uma pessoa da comunidade onde as escolas se situam,
preferencialmente acima de 50 anos e Negros. Estas pessoas vão contar sua história de vida,
na comunidade, a história de sua escolarização, os desafios enfrentados, até onde conseguiram
estudar e porque, e os espaços que ocuparam nestes Territórios – casa inicial, casa atual, escolas
que estudou, onde trabalhou, etc. Os Territórios devem ser demarcados no mapa, junto com as
crianças-alunos, para que entendam visualmente tal mobilidade e noção de pertencimento e
identidade territorial. E, também, demonstrarem, em textos ou desenhos, fotos, imagens, os
contextos da visita e as histórias orais de cada um dos Griot’s.

Os dados analisados
Analisei os dados da 1ª Edição – 2013, do Polo de Porto Alegre/RS, onde era a Tutora EAD
desta turma. Além de Porto Alegre, tínhamos ainda os Polos de Rosário do Sul, Vila Flores e São
Lourenço do Sul. Nesta turma de POA, foram 31 alunos, e destes foram levados 16 (dezesseis)

1 Etapa 1 - Prepare a sala de aula de forma que os (as) educandos (as) se organizem em um círculo junto com
o convidado(a). No centro da roda, a professora ou professor disponibiliza um mapa da cidade ou uma imagem do
Google earth e junto com alguns educandos(as) marcar e localizar os pontos citados pelo Griôt. É importante iniciar a
marcação territorial localizando primeiramente a escola, ou seja, situando onde eles estão realizando esta atividade.
Etapa 2 - Solicite ao convidado ou convidada para contar sua história, quando chegou na cidade, onde foi morar, onde
mora atualmente. Se ele ou ela estiver relacionado (a) a uma das atividades citadas acima, localize-as na imagem
e pergunte: como funcionam os aspectos culturais e/ou religiosos; quem frequenta, onde elas acontecem, quando
acontecem;
Etapa 3 - Após a roda de conversa, dispor os(as) educandos(as) em grupos e solicitar a preparação de uma exposição,
em cartaz ou papel pardo, sobre o que foi contado e os aspectos que mais chamaram sua atenção. Utilizar nesta
atividade tintas, lápis colorido, retalhos de tecido. Preparar a exposição dispondo do mapa ou imagem do Google earth
com as marcações juntamente com as atividades organizadas pelos educandos(as) e professor(a). (https://moodle.
ufrgs.br/mod/assign/view.php?id=670335 – Tarefa do Moodle UFRGS).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Griot’s2 às escolas, ou seja, em torno de 52% conseguiram cumprir sua tarefa. Podemos classificar
os Griot’s (Mestres de Saberes), da seguinte forma:
Gênero: 11 mulheres e 05 homens;
Idades: 04 com menos de 50 anos;
12 com mais de 50 anos
Atividades: 08 líderes religiosos;
04 Professores;
01 Militar reformado;
01 dona-de-casa;
02 servidores públicos.

Na 2ª Edição, em 2014, como Coordenadora de Tutoria, tivemos 11 (onze) turmas, em 10


(dez) municípios do RS, totalizando 259 (duzentos e cinquenta e nove) alunos. Destes, foram
levados 157 (cento e cinquenta e nove) Griot’s nas Escolas dos Professores-cursistas, ou seja, em
torno de 61% deles conseguiram cumprir sua tarefa, sendo:
Sapiranga – 20 alunos – 13 Griot’s;
Santo Antônio da Patrulha 1 – 24 alunos – 16 Griot’s;
Santo Antônio da Patrulha 2 – 27 alunos – 18 Griot’s;
Mista 1 – Jaguarão/Mostardas – 27 alunos – 18 Griot’s;
Mista 2 – POA e Pinhal – 15 alunos – 07 Griot’s;
Agudo – 29 alunos – 14 Griot’s;
Balneário Pinhal – 21 alunos – 07 Griot’s;
Caxias do Sul – 19 alunos – 12 Griot’s;
Novo Hamburgo – 31 alunos – 20 Griot’s;
POA 1 – 24 alunos – 17 Griot’s;
POA 2 – 27 alunos – 15 Griot’s.

2 Os Griot’s guardam os conhecimentos que são aplicados no dia a dia de sua comunidade, das ligações
cósmicas entre vivos e mortos, guardam os segredos da Gênese cósmica e das ciências da vida. Entre suas habilidades,
para se tornarem tradicionalistas, precisam ter uma excelente memória, pois são considerados arquivistas dos fatos
que lhes são transmitidos, baseados nos testemunhos insubstituíveis de outros africanos qualificados. Nem todos os
Griot’s são necessariamente um tradicionalista “conhecedor”, mas pode se tornar um se tiver sua vocação, pois estes
“continuam a transmitir a herança sagrada àqueles que aceitam aprender e ouvir e que se mostram dignos de receber
os ensinamentos por sua paciência e discrição, regras básicas exigidas pelos deuses” (BÂ, 2011, p. 176). (..) Dentro da
cultura malinesa, existem três categorias de Griot’s:
* os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Normalmente são
excelentes cantores, preservadores, transmissores da música antiga e, além disso, compositores.
* os griots “embaixadores” e cortesãos, responsáveis pela mediação entre grandes famílias em caso de desavenças.
Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única pessoa.
* os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo), que em geral são igualmente
contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a uma família. (BÂ, 2011, p. 193).
Os Griot’s, mesmo sendo considerados como parte da categoria de “tradicionalistas”, que deveriam manter a
sacralidade da palavra e a verdade dos fatos, tinham certo direito de ser cínicos e gozavam de liberdade de falar,
sempre que julgassem necessário. Por causa desta liberdade, de poder até mentir descaradamente, há um ditado
que diz “Isso é o que o dieli diz! Não é a verdade verdadeira, mas a aceitamos assim” (ibidem). In: PEREIRA, 2015, p.
39-40.

Página 576
Destes Griot’s levados às Escolas pelos Professores-cursistas, podem ser classificados da
seguinte forma:
Gênero: 106 mulheres e 51 homens;
Idades: 64 com menos de 50 anos;
93 com mais de 50 anos
Atividades: 55 líderes religiosos (Batuque, Umbanda, Pastor)
38 Professores;
04 Militares reformados – patente básica (Soldados à Sargentos);
31donas-de-casa (líderes comunitárias);
29 servidores públicos (limpeza, cozinha, outros)

Conclusões
Podemos inferir que, a partir dos dados e dos relatos de cada Professor-Cursista, há
potencialidades e fragilidades encontradas ao terem que realizar estas atividades que, inclusive,
dificultou muito para os que não conseguiram levar seus Griot’s nas escolas, para conversar com
os alunos, e podemos relacionar em:
Potencialidades:
Reconhecer pessoas simples e com muita história pra contar, dentro das comunidades;
Dar visibilidade aos expoentes da comunidade, que atuam com capoeira, religiosidade,
dança, contação de história, CTG’s, como memória viva destes grupos;
Dar visibilidade ao papel dos Griot’s;
Mapear as comunidades Negras e seus descendentes nos Territórios;
Compreensão de que há uma história vivida e não relatada nos livros didáticos, a ser
contada dentro da escola, também.

Dificuldades:
Conseguir pessoas com o perfil e disponíveis;
Compreensão geral da tarefa;
Lidar com os preconceitos e religiosidade afro – pais, colegas, Direções, Gestores;
Dificuldade de algumas Equipes Diretivas em compreender as tarefas.

Tais Griot’s demonstraram uma noção de pertencimento sobre seus territórios, relatando o
quanto o desenvolvimento daquelas comunidades tem haver com a história de suas famílias. Aqui
entendemos território

“em sua concepção mais clássica, compreende a relação com o surgimento do Estado-
Nação. Seus domínios estão compreendidos por uma base geográfica sob uma relação

Página 577
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

jurídica na qual se dá o exercício de sua soberana. Esta concepção estava associada,


principalmente, às teorias de Friedrich Ratzel no século XIX. Para Raffestin (1993), o
território se forma a partir do espaço, é uma apropriação concreta e abstrata realizada por
atores. É resultado de uma ação conduzida por atores e se inscreve num campo de poder.”
(PIRES, 2014, p. 37)

São nestes territórios que os Griot’s relatam suas experiências mais marcantes, tanto de
preconceito, de racismo, de exclusão social, como de pequenas e grandes conquistas em sua vida.
A grande maioria dos Griot’s seguem vivendo nas mesmas comunidades onde nasceram ou vivem
sua maior parte da vida. Tem suas raízes ali naquele lugar, e reconhecem-se como integrantes
e pertencentes ao espaço de vivência, alguns mais aceitos nas suas comunidades, outros
nem tanto. Em especial, os relatos dos líderes religiosos de Matriz Africana, que nos trouxeram
fatos de preconceitos severos, incluindo afroteofobia (fobia de religiões de origem africana e
afrobrasileira) de alguns grupos de cristãos. Algumas das Griotes3 relataram dificuldades grandes
em terem reconhecidos suas competências e habilidades, ao conseguirem acessar uma formação
institucionalizada mais elevada (Curso Superior e/ou Serviço Público), e em certos aspectos,
sentiram-se menosprezadas até por colegas de trabalho, por virem de comunidades vulneráveis,
principalmente se trabalham no mesmo local onde sempre viveram, ou seja, são nativos.
Além dos relatos dos próprios Griot’s, também foram trazidas questões de vários dos
Professores-Cursistas, em especial à aceitação da atividade por Equipes Diretivas, Pedagógicas
e colegas de escola (outros Professores). Alguns casos relatados incluíram Griot’s que não foram
permitidos estar na escola, pois a Direção alegou que não autorizou a realização da atividade.
Ou, Professores que tiveram as salas que haviam reservado para a atividade ocupada por outra
atividade sem aviso prévio. Ou, também, escolas que, aproveitando a vinda do Griot para conversar
com alunos de duas ou mais turmas da mesma escola, “incluíram” outras turmas no evento,
deixando os alunos sozinhos, sem seus Professores responsáveis, para ajudar na disciplina, ou
até na execução da atividade. E, acima de tudo, o fato mais relatado durante a explanação final
do Curso, quando muitos dos Professores escolheram esta atividade para relatar como a mais
significativa, foi o sentimento de solidão, de sentir que foram abandonados por seus pares, não
obtiveram apoio ou colaboração, e até mesmo foram “escanteados”, deixados de lado em outras
atividades da escola, por estarem abordando uma temática tão sensível para alguns espaços,
como é a questão da Educação Antirracista e os preconceitos que subjazem de suas ações.
Assim, acreditamos que o trabalho com a Educação Antirracista, a partir de expoentes da
própria comunidade – os Griot’s -, de seus relatos de vida, de sua noção de pertença, de identidade,
de territorialidade, e das relações de poder e exclusão social, são as principais aprendizagens que
se efetivam em propostas pedagógicas como esta. Dar a oportunidade para alunos e Professores
de ouvir e compreender a importância das aprendizagens que não estão nos livros didáticos,
mas que tem um significado muito forte para aquela comunidade, e constituem seu caráter de

3 Feminino de Griot’s, segundo Hampaté Bâ.

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cidadania. Preparar estes alunos para compreender a importância dos saberes mais tradicionais é
dar-lhes a oportunidade de valorizar suas próprias comunidades e suas famílias, e relacionar com
os conhecimentos tradicionais da escola onde estudam. Valorização que é conhecimento e base
para novas experiências que daí possam advir.

Referências

BÂ, Amadou Hampâtè. Amkoullel, o menino fula. Tradução de Xina Smith de Vasconcelos. 3ª
Edição. São Paulo: Palas Athena Editora. Acervo África, 2013.

PEREIRA, Patrícia da Silva. GRIOT-EDUCADOR: a Pedagogia ancestral negro-africana e as


infâncias, em um espaço de cultura Afro-gaúcha. Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação - PPGEdu, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação. Porto Alegre/
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PIRES, Cláudia Luisa Zeferino. Território, significações etnoculturais e educação. Curso de


aperfeiçoamento UNIAFRO: política de promoção de igualdade racial na escola. Organizadoras:
Gládis Silva Kaercher, Tanara Forte Furtado. 1ª edição, Porto Alegre: Evangraf, 2014. p. 33-48.

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EIXO 11: Educação, relações étnico-
raciais e juventudes negras

Este Eixo considera a heterogeneidade da condição e situação juvenil negra


em face das relações-étnico-raciais, com as repercussões e demandas nas
políticas sociais em diferentes dimensões (trabalho, educação, saúde, cultura,
entre outros). Considerando a diversidade de expressões das práticas culturais
juvenis, a multiplicidade dos campos de ação coletiva dos jovens negros,
e as tensões e complexas perspectivas da construção de sua identidade
coletiva e subjetiva, se intenciona aproximar interlocuções entre repertórios
teóricos e recortes temáticos voltados para estudos sobre juventudes negras,
com ênfase em: culturas, identidades, participação política, sexualidades,
tecnologias, sociabilidades, processo educativos escolares e não escolares.
Além de compartilhar pesquisas e perspectivas temáticas sobre a realidade
da experiência juvenil negra no contexto do sul do Brasil.
A DECOLONIALIDADE E A INTERCULTURALIDADE COMO
PROCESSO ESTRUTURANTE PARA A APLICAÇÃO DA LEI
10.639/2003 EM SALA DE AULA

SOUZA, Odair de (UFSC)


PAIM, Elison Antonio (UFSC)
RESUMO

Esta comunicação pauta-se numa pesquisa em desenvolvimento no programa de mestrado


Profissional em Ensino de História na Universidade Federal de Santa Catarina (Profhistória-UFSC). A
pesquisa pretende investigar por meio de entrevista como os docentes de História de duas turmas do
Ensino Médio Inovador da Escola Luiz Carlos Luiz, no município de Garopaba, 19ª GERED – Laguna –
SC trabalham as temáticas História e cultura africana e afro-brasileiras vinculadas a Educação para as
Relações Étnico-raciais bem como sua adesão as propostas da decolonialidade e interculturalidade.
Para isso, nos pautamos na decolonialidade como uma possibilidade epistemológica radical para o
rompimento com os saberes eurocêntricos e na interculturalidade como proposta pedagógica. A partir
destes estudos focalizarmos saberes “Outros” como o dos quilombolas e afro-brasileiros. Neste sentido,
dialogaremos com pensadores como Walter Mignolo, Anibal Quijano, Katherine Walsh, Maldonado
Torres, Ramon Grosfoguel, entre outros.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução
A obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em sala de aula já
tem mais de 14 anos. A lei 10.639/2003, modificada pela lei 11.645/2008, menciona textualmente
que
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados,
torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1o  O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da
história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses
dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos
negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e
o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o  Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas


brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de educação artística e de literatura e história brasileira. (Grifo nosso)

No entanto, essa obrigatoriedade legal parece passar despercebida por boa parte dos
professores/as, gestores públicos e estabelecimentos de ensino privados e públicos desse país
afora.
Diversos trabalhos publicados em seminários, congressos e revistas como os de Denise
Maria de Souza Bispo e Luis Gustavo Santos da Silva (2008), da arte- educadora Maria Eugênia
Brêttas Veiga (2011) e do historiador Franciel Coelho Luz de Amorim (2013) nos fazem refletir
sobre essas possibilidades e desafios e apontam as dificuldades para a implementação da lei nos
estabelecimentos de ensino. Importante lembrar que os estudos de história e culturas africanas
e afro-brasileiras não são exclusividade do componente curricular de História, mas como cita a
lei deve ser ministrado no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e história brasileira. Desde a promulgação da lei, os educadores deste país
já percebiam as dificuldades que teriam para implementá-la nas unidades de ensino.
Algumas teses de doutorado como as de Oliveira (2010), Santos (2010), Xavier (2013),
Borges (2014) ao investigar as possibilidades de implementação da lei 10.639/2003, bem como
as recomendações indicadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira tem demonstrado as
principais dificuldades para se implementar os estudos de histórias e culturas africanas e afro-
brasileiras em sala de aula e entre tantos outros fatores podemos citar: um currículo escolar de
história marcadamente eurocêntrico, livros didáticos com a maioria dos temas privilegiando o
estudo da Europa e outros temas oriundos dela – como iluminismo, revolução francesa, revolução
gloriosa, sistema feudal, igreja na idade média e outros mais, dedicando poucas páginas e/ ou
capítulos à história e culturas africanas e afro-brasileiras ou simplesmente inserindo boxes de
complementação; falta de tempo dos professores devido a: carga horária excessiva, sem formação
em história e cultura africana e afro-brasileira na graduação, não oferecimentos de formação

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continuada por parte dos órgãos públicos, entre outras problemáticas enfrentadas pelo professor
em seu cotidiano.
A possibilidade de implementação da lei 10.639/2003 e as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e afro-
brasileira deve ser contemplado no ambiente escolar com muita seriedade e permanentemente
em dialogo com o currículo escolar. Não deve ser trabalhada em datas especificas como Semana
da Consciência Negra, Dia de Combate ao Racismo, etc, mas deve permear todo o currículo em
todos os bimestres letivos.
Até porque os documentos oficiais encaminham as responsabilidades de todos os órgãos
públicos. As Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais, doravante
DCNERER, menciona que
os sistemas de ensino e os Estabelecimentos de Educação Básica, nos níveis de Educação
Infantil, Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos,
Educação Superior procurarão providenciar apoio sistemático aos professores para
a elaboração de planos, projetos, seleção de conteúdos e métodos de ensino cujo
foco seja a Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Educação das Relações Étnico-
raciais (grifo nosso) [...], inclusão em documentos normativos e de planejamento dos
estabelecimentos de ensino de todos os níveis – estatutos, regimentos, planos pedagógicos,
planos de estudos – de objetivos explícitos, assim como de procedimentos para sua
execução, visando ao combate do racismo, das discriminações, e ao reconhecimento,
valorização e respeito das histórias e culturas afro-brasileiras e africanas. (BRASIL, 2005,
p. 23),

Outros documentos de orientações do MEC (Ministério da Educação e da Cultura) como


o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, menciona
no item 3.4, “ações do governo municipal” que as principais atividades do sistema municipal de
ensino são, entre outros,

Instituir nas Secretarias Municipais de Educação equipes técnicas para os assuntos


relacionados à diversidade, incluindo as relações étnicorraciais, dotadas de condições
institucionais e recursos orçamentários para o atendimento das recomendações propostas
neste plano. (BRASIL, 2013, p. 32)

No capítulo, atribuições das instituições de Ensino, no item 5.1 – da Rede Pública e Particular
de Ensino, recomenda às instituições entre outras coisas

garantir no planejamento do curso dos professores a existência da temática das relações


étnico-raciais de acordo com sua área de conhecimento e o parecer CNE/CP nº 03/2004
[...] Reformular ou formular junto a comunidade escolar o projeto político pedagógico
adequando seu currículo ao ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, [..]
estimular estudos sobre educação das relações étnico-raciais e história e cultura africana
e afro-brasileira, proporcionando condições para que professores/as, gestores/as,
funcionários/as de apoio participem de atividades de formação continuada e/ou formem
grupos de estudos sobre a temática. (BRASIL, 2013, p. 38)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira


A temática da história e cultura afro-brasileira e africana não pode e não deve ser trabalhada
esporadicamente ou em data especificas, mas sim durante todo o ano e permeando todo o
currículo escolar. Porém, como vimos parece que tudo isto está sendo menosprezado por boa
parte das secretarias de educação, escolas e professores. Além disso, cursos de formação, grupos
de estudos, projetos coletivos para discutir esses temas do currículo, presume-se terem sido
ignorados pelos órgãos públicos governamentais ou pelos/as gestores/as das escolas, gerando
assim o que chamamos de racismo institucional. Podemos entender que
o conceito de Racismo Institucional foi definido pelos ativistas integrantes do grupo
Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967, para especificar como
se manifesta o racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições. Para
os autores, trata-se da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado
e profissional as pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. (QUERINO, p.11,
s/d).

Pelos documentos acima estudados percebe-se o quanto é importante os estudos de


história e cultura africana e afro-brasileira, bem como a educação para as relações étnico-raciais
na educação básica.
O Estado de Santa Catarina no intuito de incentivar e fortalecer – pelo menos na teoria – a
inserção e a implementação da Lei 10.639/2003 nas salas de aula e a educação para as relações
étnico-raciais, reformulou em 2014 a Proposta Curricular, passando a chamar-se “Proposta
Curricular de Santa Catarina – Formação Integral na Educação Básica”. Em um dos capítulos
intitulado “Educação Básica e formação integral, no item 1.2.2, questiona: de que diversidades
estamos falando? E dá como respostas uma série de diversidades a serem contemplados
nas escolas e nas salas de aula como educação para as relações de gênero, educação para a
diversidade sexual, educação escolar indígena, educação do campo, educação escolar quilombola
e educação para as relações étnico-raciais (PC/SC, 2014, p. 66).
Ao citar a relevância da educação para as relações étnico-raciais na sala de aula menciona
que “marcadamente, as políticas de educação das relações étnico-raciais resultam da educação
dos movimentos negros e indígenas e assinalam a educação como espaço efetivo para combater
através de novos conteúdos, desigualdades raciais referentes a racismo” (PC/SC, 2014, p. 66)
Assim, a versão 2014 da Proposta Curricular de Santa Catarina reitera a necessidade
de trabalharmos a educação para as relações étnico-raciais nas salas de aula, desfocados dos
conteúdos eurocêntricos e etnocêntricos, privilegiando uma educação plural, aberta, heterogênea,
desconstruindo com isso os modelos de aulas, de escola e de educação assumidos como únicos.
A mesma proposta ainda menciona que “a abertura da proposta para a educação das
relações étnico-raciais para os currículos encaminha novos saberes, novas formas de ensinar e
novos comportamentos para aqueles a quem se darão essa nova forma de aprender” (PC/SC,
2014, p. 69). Portanto, “propõe ela três princípios para a educação das relações étnico-raciais:
a busca de uma consciência política e histórica da diversidade; o fortalecimento da identidade e
de direitos; ações educativas de combate ao racismo e as discriminações”. (PC/SC, 2014, p. 67)

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Convida, portanto, professores e professoras a reorientar seus currículos e planos de ensino
para adequar-se as novas matrizes curriculares e a valorizar os conteúdos de base africana, ou
seja, histórias e culturas afro-brasileiras em seus planejamentos.
Porém, mesmo com documentos oficiais tanto a nível federal, estadual e municipal, ainda
reconhecemos que a educação para as relações étnico-raciais e a introdução do ensino de história
e cultura africana e afro-brasileira em sala de aula não é nada fácil. E este é um desafio proposto a
todos os professores/as que têm um compromisso com uma educação pautado pela diversidade
e pela alteridade. Mas o que será uma educação para a diversidade. Gomes (2008, p.17) nos ajuda
a pensar sobre isso ao afirmar que
Do ponto de vista cultural, a diversidade pode ser entendida como construção histórica,
cultural e social das diferenças. A construção das diferenças ultrapassa as características
biológicas, observáveis a olho nu. As diferenças são também construídas pelos sujeitos
sociais ao longo do processo histórico e cultural, nos processos de adaptação do homem
e da mulher ao meio social e no contexto das relações de poder. Sendo assim, mesmo nos
aspectos tipicamente observáveis, que aprendemos a ver como diferentes desde o nosso
nascimento, só passaram a ser percebidos dessa forma, porque nós, seres humanos e
sujeitos sociais, no contexto da cultura assim o nomeamos e identificamos.

Assim, pensar a diversidade é aspirar a alteridade, ou seja, se colocar no lugar do Outro. Essa
diversidade quando percebida, analisada, entendida, praticada e estudada por educadores/as em
cada escola, em cada sala de aula desse país, poderá conduzir todos e todas a uma educação
mais humana, solidária e justa. Porém, só podemos entender as diversidades quando nos dermos
conta das diferenças. É ela que nos permite olhar o Outro de maneira diferente de nós, de nossos
padrões e nossa visão de mundo. A diferença segundo Gomes (2003, p.71)
São construídas culturalmente, tornando-se então empiricamente observáveis e; as
diferenças também são construídas ao longo de processos históricos, nas relações sociais
e nas relações de poder. Muitas vezes, os grupos humanos tornam o outro diferente para
fazê-lo inimigo, para dominá-lo.


A partir do olhar às diferenças é que a diversidade aparece e junto com ela o reconhecimento,
o combate as injustiças sociais, raciais, de gênero e de sexo, o respeito e a valorização do outro em
todos os aspectos: culturais, políticos, sociais, religiosos, etc.
Educar e ensinar na perspectiva da diversidade é orientar-se por um currículo não
eurocentrado. Mas como tem sido as nossas aulas de história? Será que tem privilegiado a
diversidade enquanto um componente essencial das sociedades humanas em todos os aspectos.
As dificuldades para se estudar história e cultura africana e afro-brasileira são muitas e
maiores ainda quando não se têm essas temáticas nos cursos de graduação das faculdades ou
quando não se tem cursos de formação continuada, imputando ao professor a necessidade de
auto-formação nas suas parcas horas de descanso. Vê-se assim, mais um exemplo de omissão
dos órgãos governamentais nas diferentes esferas para com a formação de professores nestes
temas – educação para as relações étnico-raciais, história e cultura africana e afro-brasileira.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira


Todas essas dificuldades de se implementar amplamente as diretrizes curriculares
nacionais para a educação das relações étnico-raciais na educação básica – além das questões
estruturais das escolas – falta de recursos materiais e humanos – também está atrelado a um
projeto de poder. Projeto este iniciado no século XVI na Europa e que persiste até os dias de hoje.
Este projeto de poder denominado por alguns pesquisadores de colonialidade do poder atravessa
séculos e chega até nós e traduz-se em supervalorizar a cultura europeia branca, heterossexual,
cristã e masculina e inferiorizar e subalternizar outros povos, em especial os indígenas e africanos.

A decolonialidade como princípio epistemológico


É possível pensar o ensino para a educação para as relações étnico-raciais para além da
matriz colonial europeia e subverter essa epistemologia por outra, que considere todos os povos e
populações subalternizadas por esse pensamento hegemônico ao longo dos séculos?
Segundo o grupo de pesquisadores latino-americanos denominados Modernidade/
Colonialidade: sim. É possível. Segundo esse grupo a sociedade mundial e latino-americana, em
especial, se estruturaram sob o domínio da matriz colonial militar, econômico, político, cultural
e, sobretudo, epistemológica européia e isso já dura mais de 500 anos. Essa matriz colonial
epistemológica inviabiliza culturas, inferioriza seres humanos, e subalterniza as populações do sul
do hemisfério. Paim, (2016, p. 142) corrobora essa tese, pois segundo ele
Nosso país, como muitos outros, dos continentes americanos, asiático, africano e
Oceania, foi colonizado por povos de origem européia. Colonizadores que alem das ações
de exploração econômica, exploraram e destruíram os saberes e fazeres de milhares de
povos em todas as terras fora da Europa. Todos os sistemas de pensamento e de ação
dos povos colonizados foram destruídos, em nome do que os colonizadores oriundos
do velho continente denominaram civilização. Constituíram sistemas políticos, jurídicos,
ideológicos, religiosos e culturais que justificaram todas as atrocidades cometidas e
impregnaram de inúmeros desqualificativos tudo o que era próprio dos povos originários,
muitos deles milenares que passaram a ser nominados como bárbaros, incivilizados,
pagãos, incultos, ou outros tantos adjetivos de cunho depreciativo.

Um dos pensadores desse grupo que tem elaborado sobre a colonialidade do poder é
Anibal Quijano. Para ele, os europeus ao conquistarem a América, fazem-na não somente do ponto
de vista militar, mas também conquistam e introjetam subjetividades nas populações dominadas.
Quijano afirma que “a colonialidade é um dos elementos constitutivos e especifico do padrão
mundial do poder capitalista. Funda-se numa imposição de uma classificação racial/étnica da
população mundial como pedra angular desse padrão de poder. (QUIJANO, 2007, p.93).
Esta colonialidade do poder mundial ao se impor, subalterniza, invisibiliza povos e culturas,
saberes e epistemes. Oliveira (2013, p. 50) considera que
O colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e subalternizando-o
enquanto reafirma o próprio imaginário. Assim, a colonialidade do poder reprime os modos
de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado
e impõe novos. Opera-se então a naturalização do imaginário do invasor europeu, a
subalternização epistêmica do outro não europeu e a própria negação e esquecimento
de processos históricos não europeus. Essa operação pode-se realizar sob várias formas
como pela sedução pela cultura colonialista e o fetichismo cultural que o europeu cria

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em torno de sua cultura realizando uma verdadeira aspiração pela cultura européia
por parte dos sujeitos subalternizados. Portanto, o eurocentrismo não é a perspectiva
cognitiva somente do europeu, mas também daqueles do conjunto dos educados sob sua
hegemonia.


Esta citação, um pouco prolongada, é para refletirmos como essa colonialidade nos invade,
nos atinge de maneira brutal, pois nos força a acreditar que o único modelo de pensamento válido
é o europeu. Portanto, desta perspectiva esta descartada os conhecimentos e saberes dos povos
indígenas, dos povos afro-brasileiros, dos quilombolas, ciganos, povos do campo, ribeirinhos,
entre outros. Isto nos atinge em cheio: educadores e educadoras, gestores, estudantes que
emergimos nesta colonialidade e entendemos que não podemos ter pensamentos outros, para
além das epistemes eurocêntricas. Dessa maneira, a colonialidade do poder traz em seu bojo
a colonialidade do saber. Ou seja, esta colonialidade do saber fundada pela cultura e o mundo
acadêmico europeu perpassa todas as instituições do mundo acadêmico latino-americano, chega
às escolas e sistemas educativos de todos os países. Sobre esta colonialidade do saber, temos
que subverter, pois segundo Oliveira
A colonialidade do saber operou a inferioridade de grupos humanos não europeus do
ponto de vista da divisão da divisão racial do trabalho. Do salário, da produção cultural
e dos conhecimentos. Por isso, Quijano fala da colonialidade do saber entendida como
a repressão de outras formas de produção de conhecimento não europeu que nega o
legado intelectual e histórico dos povos indígenas e africanos, por exemplo, reduzindo-
os por sua vez a categoria de primitivos e irracionais, pois pertencem a uma outra raça.
(OLIVEIRA, 2012, p. 54)

Para além, da colonialidade do poder, do saber, a colonialidade também impôs a colonialidade


do ser, onde os povos subalternizados impregnaram de tal forma a episteme europeu que parece
difícil radicalizar e romper com essas formas de conhecimento. Os autores que trabalham essa
categoria conceitual como Mignolo (2003b) e Nelson Maldonado-Torres (2007a) dizem que estas
relações entre poder e conhecimento leva-os a colonialidade do ser.
Oliveira (2012, p. 59) exemplifica dizendo que em outros termos a colonialidade do ser para
esses autores se refere a experiência vivida da colonização e seus impactos na linguagem, que
responde sobre a necessidade de se explicitar sobre os efeitos da colonialidade na experiência
de vida e não somente na vida dos colonizados.
Estas colonialidades (do poder, do ser, da natureza e do saber) estudadas por esse
grupo de pesquisadores latino-americanos impactou e impacta todos nós, pois fomos, somos e
continuamos violentados por essas colonialidades em todos os espaços: educativos, midiáticos,
redes sociais, livros, revistas, igreja, etc.
Na educação, sobretudo, que é o enfoque desse texto a na educação das relações étnico-
raciais, apesar de vislumbramos alguns avanços no trato com as diferenças, com as diversidades
e com princípios epistemológicos diferentes do europeizado, ainda mesmo assim precisamos
avançar muito. Nossos currículos, nossos planos de ensino, nossas aulas compartimentadas ainda

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

privilegiam um tipo de estudantes, um tipo de enquadramento curricular que embora tentamos


fugir, muitas vezes, nos sentimos pressionados por essa matriz colonial eurocêntrica autoritária.
Quanto conhecimentos ainda faltam nas nossas universidades, nos cursos de formação, na mídia
impressa e falada, nos livros didáticos sobre as epistemes dos indígenas, dos quilombolas, dos
afro-brasileiros? Quantos conhecimentos ainda precisamos adquirir para nos descolonizarmos
efetivamente dessa matriz européia? Nossos currículos, nossos planejamentos e planos de ensino
têm que passar por uma revisão geral que incorpore elementos outros, de outros povos, de outros
saberes, de outros pensamentos.
Neste sentido, as leis 10.639/2003 e a 11.645/2008, bem como as diretrizes curriculares
nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e culturas africanas
e afro-brasileira tem que obrigatoriamente ser incorporadas as nossas práticas pedagógicas, não
como mais um documento curricular oficial a ser vinculados a nosso currículos, mas como um
documento político que nos faz refletir sobre novos saberes, histórias e culturas do nosso povo,
da nossa gente, das nossas Américas e das nossas Áfricas para além da européia. Essas leis e
diretrizes precisam ser urgentemente visibilizadas/implementadas de fato e não silenciadas.
Na tentativa de aplicar os pressupostos oriundos das diretrizes alguns docentes se
enveredam por um caminho completamente isolado e compartimentado, focando a história e
cultura africana e afro-brasileira em capítulos de livros didáticos. Outros professores tentam se
contrapor ao que os livros apresentam.
Muitos professores/professoras estudam a história e cultura africana afirmando que muitas
coisas que se estudam de “lá”, ou seja, parece que pouco se vislumbra que a história da África está
umbilicalmente ligada à história brasileira. Que somos o que somos devido às interações culturais
entre africanos, afro-brasileiros e indígenas. Mas, muitas vezes, damos nossas aulas de História
da África como se tudo acontecesse “lá” e que nada se relaciona com o aqui. Assim, ficamos
deslumbrados com o que veio e/ ou vem da Europa, sobretudo os conhecimentos inclusos nos
livros didáticos, ao currículo oficial, às nossas aulas e as nossas práticas. Porém, parece que pouco
refletimos sobre nossa própria existência histórica. Existência histórica essa invisibilizada pela
colonialidade do nosso ser.

A interculturalidade como princípio pedagógico


Ainda que soframos os resquícios da colonialidade do poder, do saber e do ser, podemos
introduzir muitas possibilidades dos estudos de histórias e culturas africanas e afro-brasileiras, bem
como a educação para as relações étnico-raciais em sala de aula rompendo com paradigmas e
modelos eurocentrados de conhecimento bem como as metodologias e práticas tradicionalmente
aceitas nos meios educacionais. Temos que romper com práticas disciplinares, livros didáticos
como texto central de nossas aulas, padronização das salas de aula e dos horários e “inventar”
junto com /e para os estudantes aulas mais dinâmicas e criativas como: projetos interdisciplinares,
envolvendo no ensino fundamental final os componentes curriculares de história, geografia, língua
portuguesa, entre outras e no ensino médio, história, sociologia e filosofia, entre outras; debates

Página 588
em sala de aula sobre temas como racismo – na mídia falada e escrita; seminários de apresentação
com alguns temas contemporâneos como racismo em campos de futebol, cotas nas universidades,
racismo na televisão; produção de textos dissertativos sobre o tema para exposição no mural da
escola; produção de vídeos com entrevistas com as pessoas da comunidade ou da escola para
depoimentos sobre racismo na sua vida ou na vida de outros, confecção de blogs ou facebook
para postar as produções dos estudantes entre outros.
Tais procedimentos didático-metodológicos poderão vir acompanhados de um rompimento
com as epistemologias eurocentradas se adotarmos os referenciais teóricos da interculturalidade
critica, que “opõe-se ao sistema político e econômico neoliberal e considera a educação
intercultural como direito e meio para contribuir com a transformação da condição subalterna
das minorias”. (SILVA; FERREIRA; DA SILVA, 2013, p.258). Essa proposta intercultural se vincula
necessariamente a uma educação intercultural na qual
O cerne da educação intercultural crítica parte do diálogo crítico entre grupos socioculturais,
no qual as culturas se articulam, mas não se subordinam. Essa educação nasce na luta dos
grupos considerados minorias que reivindicam novas formas de cidadania, de democracia
e de valorização de suas epistemologias. A educação intercultural crítica não se restringe
a incluir novos temas ao currículo ou mudar as formas de ensinar. Essa educação coloca
em xeque as clássicas pedagogias escolares eurocentradas e abre um intenso diálogo
com as pedagogias dos movimentos sociais. (SILVA; FERREIRA; DA SILVA, 2013, p.258)

Com isso, acreditamos dar um passo a mais no ensino de História e cultura africana e afro-
brasileira vinculados à educação para as relações étnico-raciais numa proposta de educação que
se encaminhe para a promoção de uma sociedade mais justa, menos desigual, solidificando assim
os encaminhamentos propostos nos documentos oficiais.
As impossibilidades da implementação das diretrizes curriculares em sala de aula já foram
demonstradas em várias pesquisas abordadas no inicio do capitulo, porém, alguns passos estão
sendo dados neste caminho e outros continuarão a ser percorridos independentes dos obstáculos
que venhamos a ter. Por isso, algumas pistas se oferecem ao leitor para fundamentar suas aulas e
pensar metodologias e práticas para além do livro didático.

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Página 591
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

JUVENTUDES NEGRAS NO RIBEIRÃO DA ILHA - FLORIANÓPOLIS/SC:


MARCAS E IDENTIDADES

SANTANA, Camila da Silva (UFSC)1


camilla.santaana@gmail.com

Resumo

Este trabalho, inserido na área da educação e formação docente, aborda a categoria “juventudes”
(DAYRELL, ABRAMOWAY), partindo do princípio de que não definimos apenas uma juventude –
considerada pelo Estatuto da Juventude entre 15 e 29 anos –, mas que há uma pluralidade. A pesquisa
foca nas juventudes negras e suas identidades e sociabilidades. O mapeamento da produção
acadêmica selecionou pesquisas que buscam refletir acerca das juventudes negras e seus percursos
de vida, visando compreender o que estes jovens estão produzindo nos espaços de sociabilidade
e entender as suas linguagens. Para isso, consultou-se o banco de dados da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Educação (ANPED), os Observatórios da Juventude sediados na UFMG e na
UFF. A partir desse levantamento construiu-se um quadro de conhecimentos como base da análise
sobre as teses, dissertações e artigos com a temática “juventudes negras” no Brasil. O levantamento
organizou as pesquisas com as seguintes abordagens: juventude negra e cultura; Juventude
Negra e sociabilidade, juventude negra e linguagens, juventude negra em Santa Catarina.
Foram priorizados como procedimentos de pesquisa a revisão bibliográfica e a análise de documentos.
Dialogou-se prioritariamente com os seguintes autores: Nilma Lino Gomes (2005), Juarez Dayrell (2003)
e Helena Abramoway (2005). Os resultados da análise dos trabalhos (em andamento) contribuem para
o olhar acerca da temática, ainda é pouco debatida em nossa sociedade e certamente as pesquisas
realizadas contribuem com a construção de uma sociedade mais igualitária, principalmente para as
juventudes. Percebemos a necessidade de trabalhar e debater essa temática nas instituições escolares,
nas universidades e na sociedade como um todo.

Palavras-chave: Juventudes Negras. Identidade negra. Educação.

Página 592
INTRODUÇÃO
A proposta de mapeamento da produção acadêmica consistiu em selecionar pesquisas
que buscam refletir acerca das juventudes negras e seus percursos de vida em uma comunidade
açoriana de Florianópolis, Santa Catarina. Para compreender o que estes jovens estão produzindo
nos espaços de sociabilidade e entender as suas linguagens. Consultou-se o banco de dados da
Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPED), Observatório da juventude de
Minas Gerais e Fluminense, por entender a importância desses bancos de dados no que se refere
às pesquisas das juventudes negras no cenário Brasileiro. A partir desse levantamento construiu-
se um quadro de conhecimento como base da análise sobre as teses, dissertações e artigos com
a temática.
Foi realizado um recorte temporal nos anos de 2003- 2015. Considerou-se essa
temporalidade para a pesquisa devido à consolidação do Artigo 26ª da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional que foi alterada pela Lei 10.639/03, a qual institui a obrigatoriedade do
ensino de história e cultura afro-brasileira, sendo uma grande conquista dos Movimentos Negros
em nossa sociedade. Deste modo, foi realizada uma busca a partir dos grupos de trabalho (GT´s)
na ANPED, a partir deste foi definido o grupo: Educação das Relações Étnico-Raciais (n°21), e
por fim a combinação com quatro descritores: 1) juventude negra e cultura 2) Juventude Negra
e sociabilidade 3) juventude negra e linguagens 4) juventude negra em Santa Catarina, para
posteriormente fazer a pesquisa com os descritores selecionados.
Após o mapeamento dos trabalhos encontrados, foi realizada uma breve seleção das
pesquisas através do recorte temporal que abordavam o tema da pesquisa, conforme descrito
abaixo:

Quadro 1: Levantamento das pesquisas


Pesquisas encontradas: Ano Pesquisas selecionadas
2003- 09 02
2004-09 01
2005-24 03
2006-11 02
2007-06 01
2008- 11 02
2009- 09 01
2010- 13 01
2011- 30 01
2012- 22 Nenhum selecionado
2013- 13 02
2014- Nenhum trabalho publicado Nenhum trabalho publicado
2015- 29 01
Fonte: Sistematização da autora

Em um total de 17 produções, todas foram lidas na íntegra e problematizadas posteriormente


a partir da nucleação dos dados. Essa escolha se deu a partir de relações estabelecidas com os
sujeitos da pesquisa, com a metodologia escolhida e com os dados coletados, conforme o quadro

Página 593
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

descrito abaixo:

Quadro 2: Pesquisas selecionadas


Ano Grupo de trabalho Titulo do trabalho Autor/ Instituição
Jovens Negros na
Sormani da Silva
Gt21- Educação e década de 70 no Rio
(Universidade Federal
relações étnico- raciais de Janeiro: Um olhar
de Fluminense)
2003 sobre a “Black Rio” e a
possibilidade de novos
sujeitos sociais

Trajetórias escolares,
corpo negro e cabelo Nilma Lino Gomes
crespo: reprodução (Universidade Federal
Gt21- Educação e de estereótipos e/ de Minas Gerais)
relações étnico- raciais ou ressignificação
cultural?

Juventude, Práticas
Culturais e Negritude: Nilma Lino Gomes
GT21- Educação e
2004 o desafio de viver (Universidade Federal
relações étnico- raciais
múltiplas identidades de Minas Gerais)

Construção da
Maria Helena Viana
identidade dos
GT21- Educação e Souza
2005 alunos negros e afro-
relações étnico- raciais (Unirio)
descendentes: alguns
aspectos
Jovens negros: Joana Célia dos
trajetórias escolares, Passos
desigualdades e (Universidade Federal
racismo de Santa Catarina)

O campo de
Lori Hacnk de Jesus
possibilidades na
( Universidade Federal
trajetória de alunos
de Mato Grosso)
negros no ensino medio
Jovens negros:
trajetórias escolares, Joana Célia dos
GT21- Educação e desigualdades e Passos
20062
relações étnico- raciais racismo. (Universidade Federal
de Santa Catarina)

Página 594
O campo de
possibilidades na Lori Hanck de Jesus
trajetória de alunos (Universidade Federal
negros do ensino médio do Mato Grosso)

Desafiando o
preconceito racial:
Michele dos Santos
Gt21­- Educação e a escola como
2007 (Universidade Federal
relações étnico- raciais o r g a n i z a ç ã o
do Rio de Janeiro)
multicultural

Socialização e
Luiz Carlos Felizardo
educação: um estudo
Junior
com jovens negros
2008 Gt21­- Educação e (Universidade Federal
num espaço público de
relações étnico- raciais de Minas Gerais)
lazer de uma grande
metrópole

Hiphopologia: o que
dizem pesquisadores
brasileiros sobre o hip
hop na escola? William de Goés
Ribeiro
(Universidade do Rio
de Janeiro)

Juventude e educação: Roseli esquerdo Lopes


2009 Gt21 a violência na e da Carla Regina da Silva
escola ( UFSCar)
Desconstruindo o ideal
William do Goés
do branqueamento:
Gt21­-Educação e Ribeiro
2010 reflexões e
relações étnico- raciais ( Universidade Federal
desafios a partir do
do Rio de Janeiro)
multiculturalismo

Jovens negros
Vilma Aparecida de
em processo de
Gt21- Educação e Pinho
2011 “ressocialização”:
relações étnico- raciais (Universidade Federal
trajetórias de vida e
do Pará)
escolarização
2012 Gt21

Página 595
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A invisibilidade da
Juventude Negra na Natalino Neves da
EJA percepções do Silva
Gt21-Educação e sentimento fora do (Universidade do
2013
relações étnico- raciais lugar Estado de Minas
Gerais)

J u v e n t u d e s
contemporâneas
Sandra dos Santos
e alguns de seus
Andrade
marcadores identitários:
( Universidade Federal
histórias narradas
do Rio Grande do Sul)

2014 Gt21
A(in)visibilidade e
Leiva de Figueiredo
a(des)construção da
Viana Leal
Gt21-Educação e identidade negra na
2015 Marilza de Oliveira dos
relações étnico- raciais sala de aula do ensino
Santos
médio

Fonte: Elaborado pela pesquisadora com base na Anped.

2. OBSERVATÓRIO DA JUVENTUDE- UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


No observatório de juventude da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi
fundamental para realizar esse levantamento de pesquisas acerca da temática. É um programa de
ensino e pesquisa, com o apoio da Pro reitoria de Extensão da UFMG, desde do ano de 2002 vem
fazendo levantamento e investigando acerca dos problemas juvenis e promovendo o debate em
torno desta temática. Partindo do pressuposto da escolha temporal foi realizada uma leitura prévia
dos resumos para identificar os textos que abordavam a temática de interesse para esta pesquisa.
Após o mapeamento dos trabalhos encontrados, foi realizada uma breve seleção das pesquisas,
conforme descrito abaixo:
Quadro 3: Levantamento das pesquisas por temática:

Pesquisas encontradas: Selecionadas:


Artigos:10 06
Teses:10 02
Fonte:Sistematização da autora

Resultou um total de 08 produções, todas foram lidas na íntegra e problematizadas


posteriormente a partir da nucleação dos dados. Essa escolha se deu a partir de relações
estabelecidas com os sujeitos da pesquisa, com a metodologia escolhida e com os dados
coletados, conforme o quadro descrito abaixo:

Página 596
Quadro 4: Pesquisas selecionadas
Ano Título de Trabalho Autor Instituição
O jovem como sujeito Universidade Federal
2003 Juarez Dayrell
social de Minas gerais
A musica entra em
cena: O rap o funk
e a socialização da Universidade Federal
2001 Juarez Dayrell
juventude em Belo de Minas gerais
Horizonte
Juventude e
Francisco André Silva
Participação: disputas Universidade Federal
Martins
2010 e relações no cotidiano de Minas gerais
Juarez Dayrell
escolar
Juventude,ensino Juarez Dayrell
Universidade Federal
2016 médio e os processos Rodrigo Ednilson
de Minas gerais
de exclusão escolar Jesus
Geraldo Magela
Ser jovem e ser aluno
Pereira Leão Universidade Federal
2016 entre a escola e o
Cirlene Cristina de de Minas gerais
Facebook
Souza
Experiências da
desigualdade:
os sentidos da Geraldo Magela Universidade Federal
2006 e s c o l a r i z a ç ã o Pereira Leão de Minas gerais
elaborados por jovens
pobres
Juventude(s),
mídia e escola: ser
jovem e ser aluno
2014 face à midiatização Cirlene Cristina de Universidade Federal
das sociedades Souza de Minas gerais
contemporâneas

Transversalidade nos
modos de socialização
e individuação: Juliana Batista dos Universidade Federal
2015 experiências juvenis Reis de Minas gerais
em rede

Fonte: Elaborado pela pesquisadora com base no Observatório da Juventude


Universidade Federal de Minas Gerais.

3. OBSERVATÓRIO DA JUVENTUDE- UNIVERSIDADE FEDERAL DE FLUMINENSE


O observatório de juventude da Universidade Federal de Fluminense foi fundamental para
a busca de pesquisas que abordavam a tematica abordada, desde do ano de 2001 começou
a desenvolver pesquisas de extensão e no ano de 2002 iniciou a sua página na internet com o
objetivo de socializar estudos da pesquisas com a temática da Juventude. Após a leitura prévia
dos resumos, foram identificados os textos que abordavam a temática de interesse para esta

Página 597
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

pesquisa. Foi realizada uma breve seleção das pesquisas, conforme descrito abaixo:

Quadro 5: Levantamento das pesquisas por temática e autores:


Pesquisas encontradas por autores: Selecionadas
Maria Sposito:08 05
José Machado de Pais:5 01
Rosana Arguillo:03 01

Resultou um total de 07 produções, lidas na íntegra e problematizadas a partir da nucleação


dos dados. Essa escolha se deu a partir de relações estabelecidas com os sujeitos da pesquisa,
com a metodologia e com os dados coletados, como no quadro abaixo:

Quadro 6:Pesquisas Selecionadas


Ano Título de Trabalho Autor Instituição
Lazeres e
sociabilidades
1990 juvenis — um ensaio José Machado Pais Universidade de Lisboa
de análise etnográfica*
Emergência de culturas Universidade de Buenos
2000 juveniles estratégias Rosane arguillo
del desencanto Aires
Juventudes e
Educação: Interação
entre educação
2006 Marilia Spositto Universidade de São Paulo
escolar e a educação
não formal

Juventude e poder Marília Spositto


local: um balanço de Hamilton Harley de
iniciativas públicas Carvalho e Silva
2006 Universidade de São Paulo
voltadas para jovens Nilson Alves da Silva
em municípios de
regiões metropolitanas

Estudos sobre
1997 Marilia Spositto Universidade de São Paulo
juventude e educação

Transversalidades no
estudo sobre jovens no Marilia Spositto
2010 Universidade de São Paulo
Brasil: educação, ação
coletiva e cultural*
Indagações sobre
as relações entre
2005 juventude e a escola Marilia Spositto Universidade de São Paulo
no Brasil

Fonte: Elaborado pela pesquisadora com base no Observatório da Juventude Universidade Federal de
Fluminense

Página 598
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos analisados demonstram que a discriminação racial está presente em diferentes
formas, comportamentos e atitudes negativas em relação à cultura negra. Foi apontada a relação
da escola como barreira para o enfrentamento a fim de romper com os estereótipos, bem como
a relação desigual para o jovem negro comparado ao jovem branco. Ademais, o jovem negro
tem sido exposto à baixa autoestima, sendo que as instituições não acolhem as diferenças e
nem as discutem dentro da sala de aula, atitude que pode ser considerada como reafirmação do
preconceito racial.
As pesquisas encontradas apareciam o tema do hip-hop como linguagem das juventudes
negras, por isso, estou relacionando esses temas na pesquisa. Nas pesquisas aparecem temas
que poderão ser utilizados nas rodas de conversas com os jovens, por exemplo, a música: Funk,
Rap, Hip-Hop (SILVA, 2003; RIBEIRO, 2008; SANTOS, 2007). Colocaremos algumas ideias como
possibilidade de tema, destacando a importância da expressão musical na juventude e sua cultura.
Deste modo, a pesquisa da autora Sormani Silva (2003) salienta a importância de trabalhar
com as culturas juvenis e com o fenômeno do funk na década de 1970, como forma de relação
social para compreender o processo de construção identitária dos jovens negros no Rio de
Janeiro. A autora se refere ao contexto estadunidense para explicitar como era o processo de
desindustrialização no contexto musical e sinaliza a dimensão da representatividade musical para
brancos e negros. Conforme a autora Silva, (2003, p. 2):
A população que se concentrava nos centros urbanos e priorizava as estações de rádio que
tocavam soul music. Os Djs negros falavam do soul como uma experiência eminentemente
negra. Nesse sentido que a musica se transformou num conceito, vindo a simbolizar para
o mundo o orgulho negro. No final dos anos sessenta inúmeras canções tiveram como
referência a construção de uma auto-imagem do negro marcadamente positiva.

Nesse contexto, a música foi lançando moda para os negros e, com isso, os movimentos
civis se fortaleceram. No entanto, a música “soul” era gravada por brancos, mas a estética negra
permanecia. A economia não favorecia o Brasil e nem as demandas sociais, sobrando para os
negros os piores empregos e as condições mais desfavoráveis.

A esse respeito, Hasenbalg e Silva averiguando as mudanças na estrutura social e do


crescimento econômico da época, confirmam que para os negros e mestiços ficaram
reservados os empregos de menor qualificação e remuneração, ratificando assim, a
exclusão e a discriminação racial dos afrodescendentes e preservando para os brancos as
profissões de maior prestígio social. Assim, os bailes black simbolizaram uma das poucas
diversões que restaram aos jovens pertencentes às famílias atingidas pelo processo de
empobrecimento. Que se tornavam baratos e acessíveis às camadas populares: “Preto
que vai a esses bailes não é preto rico”. ( SILVA, 2003, p.4)

Desta maneira, a escola é um dos locais onde os jovens encontram mais essa violência
hierarquizada: pela relação de poder que ela estabelece no indivíduo, controlando seus corpos e
os disciplinando como forma de controle social, ou pela estética aceitável na instituição e a postura
que a pessoa deva ter para estar naquele espaço – precisa estar no “padrão” para não ser excluída

Página 599
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

socialmente. No entanto, é neste processo que o jovem constrói a sua identidade, enquanto a
instituição reforça os estereótipos para as juventudes:

A experiência da relação identidade/alteridade se coloca com maior intensidade nesse


contato família/escola. Para muitos negros essa é uma das primeiras situações de contato
inter-étnico. É de onde emergem as diferenças e se torna possível pensar um “nós”
- criança e família negra - em oposição aos “outros” – colegas e professoras brancas.
Embora o discurso que condiciona a discriminação do negro à sua localização na classe
social ainda seja predominante na escola, as práticas cotidianas mostram para a criança e
para o adolescente negro que o status social não é determinado somente pelo emprego,
renda e grau de escolaridade, mas também pela posição da pessoa na classificação racial.
(GOMES, 2003, p.7)

Estas juventudes apresentam uma nova postura diante dos obstáculos em nossa
sociedade. O não reconhecimento destas juventudes na escola me faz querer entender melhor
as experiências e o pertencimento destas juventudes negras das quais faço parte. Há postura
de enfrentamento, ou como alguns jovens estão se reconhecendo, “geração tombamento”3. É o
desejo de romper os padrões e os estereótipos postos em nossa sociedade, ou seja, um movimento
político de mudança. Perceber as formatações vigentes que estão arraigadas nestas juventudes
é fundamental para romper com os estereótipos, é preciso mostrar a juventude de outra ótica.
Vivemos em uma sociedade racista, homofóbica, sexista e que rotula as pessoas que não seguem
um padrão e ainda questiono: de que forma que podemos construir uma sociedade mais justa e
igualitária sem reforçar os estereótipos?
Sobre a experiência da identidade destes jovens negros acerca de sua experiência:
Para estar dentro da escola é preciso se apresentar fisicamente dentro de um padrão,
uniformizar-se. A exigência de cuidar da aparência é reiterada e os argumentos para tal
nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito. Muitas vezes esse conteúdo é
mascarado pelo apelo às normas e preceitos higienistas. Existe, no interior do espaço
escolar, uma determinada representação do que é ser negro, presente nos livros didáticos,
nos discursos, nas relações pedagógicas, nos cartazes afixados nos murais da escola, nas
relações professor/a e aluno/a e dos alunos/as entre si. (GOMES, 2003, p. 06)

Conforme Gomes (2004, p. 8): “a construção de uma identidade negra não se limita ao fato
de nascer e pertencer ao um grupo cultural, não desconsiderando essa possibilidade, mas para ela
é preciso que criem oportunidades iguais para as diferentes juventudes no Brasil”. A escola precisa
reconhecer fatores como: raça, etnia, gênero no processo de construção identitária destes jovens
negros, dialogar com a juventude sobre a política, história e cultura para compreender e entender
o que estes jovens estão produzindo de linguagens e estas como possibilidade de transformação.
Enquanto a escola resistir a esse reconhecimento, esta lacuna continuará em nosso sistema.
Conforme Souza (2005), o objetivo é trazer a tona o debate e as relações com o conceito
de identidade da população negra e afro-descendente brasileira no contexto escolar e cita os
estudos de Cuche (1999); Ferreira (2000), Gomes (2002), Jurandir Freire Costa (1993), os quais
consideram a identidade em constante transformação e entendem que há o reforço da auto-
identidade negativa e de uma hetero-identidade superior. Os jovens negros, por não saberem

Página 600
lidar com a sua auto-identidade, por terem insatisfação com a sua autoimagem, vão se sentindo
inferiores, negando a sua identidade, o que resulta na baixa autoestima experienciada e refletida
através do corpo.
De acordo com Passos (2005) a trajetória escolar de desigualdades ainda são maiores no
grupo negro, para isso sua pesquisa analisa as trajetórias escolares de jovens negros na Educação
de Jovens e adultos (EJA) para compreender que papéis estes atribuem à escolarização em suas
vidas. E aponta para as diferenças no acesso e na permanência:
As diferenças no acesso e na permanência na escola têm contribuído para que negros
e negras se mantenham em desvantagem nos diferentes aspectos de suas vidas, quer
seja no mercado de trabalho ou nos demais direitos básicos, como, saúde, habitação,
saneamento, segurança, alimentação, lazer, etc. Desta maneira, não é mais possível negar
que o sistema educacional brasileiro é excludente. (PASSOS, 2005, p.1)

Passos (2005) ressalta as realidades diferentes de um jovem branco e preto e ainda de


uma jovem mulher negra sem escolarização, por isso esses termos precisam ser tratados de
forma heterogênea. Ela explicita que: a categoria raça é o quesito fundamental para entender
estas juventudes negras e para rompermos com um sistema tão excludente e a questão de classe
não pode explicar as desigualdades que acontecem com estes jovens negros e a escolarização
sempre excludente para um determinado grupo, para os negros.
Para a autora Santos (2007) a educação multicultural é fundamental para o respeito,
diversidade e tolerância motivadas pela análise da construção e reconstrução da identidade negra,
emblemática nessa perspectiva. Ribeiro (2008) mostra a importância da relação do hip hop como
linguagem política e de resistência para os jovens. O autor destaca:
Hip Hop é um movimento sócio-cultural-político, associado às identidades negro-juvenis,
abrangente de uma série de manifestações artísticas em um sentido transformador e crítico.
Transformador das difíceis realidades vividas em diferentes contextos, nas denúncias e
nas soluções; e crítico das relações sociais, desafiando preconceitos e discriminações, e
de apreensão de direitos coletivos. Entretanto e contraditoriamente, pode ser apropriado
de diferentes maneiras, o que lhe confere diversos sentidos, desde o simples consumo a
sua gênese contestatória; envolto e parte de, não obstante, à diversidade, ao hibridismo,
às múltiplas identidades e a complexidade dos dias de hoje. (RIBEIRO, 2008, p.7)

Lopes e Silva (2009), na pesquisa intitulada: Juventude e educação: a violência na e da


escola realizam uma pesquisa com jovens, criando uma oficina com alguns questionários situadas
em regiões centrais e periféricas numa cidade no interior de São Paulo, durante 2005-2007, acerca
da violência. Elas entendem que o papel da escola é fundamental para uma sociedade mais justa e
para uma escola democrática e fundamental para organizacidade da sociedade e para os jovens.
Goés (2010) propõe tratar a ideia do multiculturalismo e do Hip-Hop para se discutir, contrapondo
com a ideia de branqueamento. O autor define o conceito de multiculturalismo deste modo:

O multiculturalismo pode ser entendido como um corpo teórico, prático e político revestido
de sentidos que desafia discriminações ancoradas em preconceitos. Dialogando com
seres humanos que por um motivo, ou vários, sentem as dores de uma história dinâmica

Página 601
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

e socialmente construída, rompe com pensamentos movidos pelo desejo destrutivo e


paranóico em que partem olhares estanques para a cútis, gênero, sexualidade e demais
marcadores identitários. Nessa perspectiva, deseja desafiar a hierarquização da diferença,
compreendendo a vida humana em um projeto social mais amplo do que a universalização
de particularismos enlaçados pelos seus próprios grupos de pertença. (GOES, 2010, p. 2)

Nos trabalhos utilizados como fonte para a presente pesquisa encontramos uma pluralidade
de juventudes, inclusive trabalhando com essa questão de juventudes, é preciso destacar as
diferentes realidades, e nas pesquisas consultadas uma das coisas que chamou a atenção e pode
parecer no meu trabalho no Ribeirão da Ilha foi a questão da juventude com problemas com a lei.
Destacaremos a seguir alguns fragmentos que reportam a este tema:
A construção social do jovem negro em conflito com a lei advém da pobreza enfrentada
pelas suas famílias, as quais foram destacadas na pesquisa pelos locais onde viveram,
propícios à vulnerabilidade infracional. As trajetórias de escolarização foram afetadas,
especialmente, pelos processos de violência racista, vivenciados a partir de agressões
físicas e simbólicas de colegas e professores; e, podemos afirmar que as experiências
nesse contexto foram pautadas por relações onde se conformam as ideologias e
explicações de 5 ordem racial e da carência cultural. (PINHO, 2011, p.15)

A escola não reconhece nem rompe com estereótipos arraigados aos jovens negros. Para
Andrade (SILVA, 2013, p.6), os principais fatores desta moratória são: transformações no mundo
do trabalho, o que retarda o ingresso do/a jovem no mundo profissional e exigem dele/a cada vez
mais qualificação e escolarização; consequentemente, maior tempo de permanência na casa da
família, casamentos e filhos mais tardiamente; o conjunto de fatos que colaboram para constituir
as experiências de cada um/a. Leal e Santos (2015, p. 3) apontam que a identidade étnico-racial
não pode ser dissociada do processo histórico: “O resgate da cultura, a defesa da igualdade social,
econômica e da educação, o respeito às diferenças, só podem ser realizados se acompanhados
da devida contextualização histórica desse grupo étnico-racial”.
O pesquisador Juarez Dayrell, sociólogo, mineiro e ativista nas questões das juventudes
e nas sociabilidades para os jovens, membro fundador do Observatório da Juventude na
Universidade Federal de Minas Gerais, aponta que não podemos discutir juventude, mas sim, as
juventudes na pluralidade e na diversidade, pois o jovem é um Sujeito social e sócio cultural, ou
seja, um sujeito de direitos que experienciam e que vivem todas as condições juvenis, construindo
um novo modo de ser jovem.
Desta maneira, não dá para pensar em todas estas condições sociais sem pensar no
trabalho e suas implicações para essas juventudes, entendendo que muitos jovens precisam
trabalhar para ter mais uma renda familiar para o sustento de suas famílias. E quando se pensa em
trabalho não temos como não pensar nas condições e nas desigualdades sociais para a juventude
negra. Conforme os pesquisadores Dayrell e Jesus (2016, p. 408):

O mercado de trabalho se dá para os mais pobres, pelos negros que desde sempre estão
condicionadas as desigualdades. Entretanto, apesar da homogeneidade histórica nos
protocolos do “ser aluno” a condição de aluno é vivida de forma desigual e diversa em
virtude da classe social, do gênero, da raça, dentre outros aspectos.

Página 602
As condições juvenis de socialização com o trabalho e a escola não se dão de forma
homogênea, é necessário refletir sobre as condições sociais destes jovens e pensar nas suas
socializações e nas suas vivências de mundo. As juventudes negras são as mais excluídas no
sistema escolar, manifesta na dificuldade de acesso e na continuidade na vida escolar, para a
população negra é muito mais complexo conforme os pesquisadores apontam:
Do total de excluídos da escola, a maioria é negra e parda. E a discriminação não se
manifesta apenas na dificuldade de acesso, mas também na continuidade da vida escolar.
A média de anos de estudo da população negra é de 6,7 anos ante 8,4 da média da
população branca. Essa diferença indica que as taxas de repetência e abandono escolar
entre adolescentes negros são maiores que entre os brancos. É uma evidência de que a
discriminação racial interfere de forma significativa no rendimento escolar dos alunos do
Ensino Fundamental e Médio. ( DAYREL; JESUS; 2016, p.410)

Aponta Dayrell (2001, p.51):

O mundo da cultura se apresenta mais democrático, possibilitando espaços, tempos e


experiências que permitem que esses jovens se construam como sujeitos. Mas não
podemos esquecer que, no Brasil, a modernização cultural que influencia tanto a vida
desses jovens não é acompanhada de uma modernização social. Assim, se a cultura
se apresenta como um espaço mais aberto é porque os outros espaços sociais estão
fechados para eles.

A autora Cirlene de Souza, em sua tese Juventude(s), mídia e escola: ser jovem e ser aluno
face à midiatização das sociedades contemporâneas (2014) aborda as questões de sociablidade
na contemporaniedade e embasa-se no estudioso Setton (2005), que entende que o conjunto
das experiências dos sujeitos contemporâneos não é sistematicamente coerente, homogêneo ou
compatível; há diferentes tempos e ritmos, fragmentos e composições (SOUZA, 2014, p.94) Ela
aponta para a relação de poder:

Portanto, a socialização dos indivíduos está entremeada de relações de poder expressas


em práticas e discursos que, embora influentes, dão-se dialeticamente, acompanhadas
de interpretação, representação e negociação por parte dos indivíduos. Podemos
inclusive dizer que, além da socialização objetivamente dada, evidencia-se a sociabilidade
subjetivamente manifesta nas interações online e off-line dos jovens pesquisados: eles
compartilham impressões e gostos, expressam opiniões diversificadas, estabelecem
vínculos, pontuam afinidades ou divergências, auxiliam-se nas tarefas escolares, divulgam
eventos, combinam encontros presenciais – acessando as mídias como quem ingressa
num ambiente em que o virtual é real, por força das interações. ( SOUZA, 2014, p.98)

A pesquisa da autora Juliana Reis (2014) investigou os processos de socialização dos


jovens moradores de uma periferia urbana na cidade de Belo Horizonte, a internet foi o ponto de
partida para a pesquisa. Neste sentido:

Há, entre as variadas instâncias socializadoras, relações interdependentes. Tal perspectiva


relacional se evidencia, a partir do entrelaçamento de experiências socializadoras nos

Página 603
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

territórios digitais e de moradia de diferentes jovens. O uso conjugado de postagens digitais


– imagens, fotos, mapas, montagens, textos, músicas – junto às entrevistas, contribuiu
para a apreensão multifacetada de experiências juvenis de socialização e individuação,
entre a web e a favela. (REIS, 2014, p.190)

Geraldo Leão e da autora Cirlene de Souza (2016) aponta para a perspectiva sociológica
de Melucci (2004) influenciou de forma singular a pesquisa, ao considerar os jovens atores-chave
para se compreender as transformações sociais recentes, com seus desdobramentos na relação
com a educação e a cultura e outros veículos de normas sociais. José Machado Pais, sociólogo
português estudioso das culturas juvenis, aponta para duas categorias: a geracional e a classista,
demarcadas pela idade e pela classe, não esquecendo da condição juvenis. O autor salienta:

Para a corrente «geracional», as culturas juvenis definem-se por relativa oposição à cultura
dominante das gerações mais velhas; para a corrente «classista», as culturas juvenis são
uma forma de «resistência» à cultura da «classe dominante», quando não mesmo a
sua linear expressão. Daqui resulta que, de um ou de outro modo, as culturas aparecem
subordinadas a uma rede de «determinismos» que, estruturalmente, se veiculariam entre
«cultura dominante» e «subculturas». Para a corrente «geracional», nos aspectos em
que as «subculturas» se conseguissem libertar desses «determinismos», haveria lugar ao
estabelecimento de relações de natureza «desviante» e não raras vezes as «subculturas
juvenis» são funcionalmente entendidas como culturas «desviantes» relativamente à
cultura dominante das gerações mais velhas. (PAIS, 1993, p.34)

A autora Marilia Sposito, em seu artigo Transversalidades no estudo sobre jovens no


Brasil (2010), analisa os desafios do campo da sociologia da Juventude para a legitimação deste
tema e cita os estudos de BASTOS (2002) a juventude como categoria social, inspirado no autor
Karl Mannheim (1968; 1973), Marialice Foracchi (1965;1972). Os universitários brasileiros são
apontados como atores emergentes de uma sociedade dependente que se tornaram protagonistas
do radicalismo político (SPOSITO, 2010, p.44), além de analisar as condições juvenis no discurso
de uma educação formal e não formal:

A educação não-formal, muitas vezes, é concebida como educação permanente, pois


ocorre em vários momentos do ciclo de vida – juventude, idade adulta, terceira idade – e a
defesa dessa continuidade decorre das características atuais da vida social. Mesmo sendo
reconhecida como importante, sempre pressupõe uma busca do sujeito que considera
relevante construir outros caminhos para a sua formação. ( SPOSITO, 2006, p.94)

Sposito (2006) aponta para a formação não formal, não considerada nem legitimada, mas
nos sinaliza para algo fundamental em nossa sociedade a ideia do tempo livre juvenil, e insiste que
este tempo é apenas para jovens previlegiados: “Aos outros, a maioria dos jovens brasileiros, a
possibilidade da fruição e o acesso aos bens simbólicos, às suas formas de produção cultural, de
expressão, de mobilidade e lazer, típicas do tempo do livre, estariam interditados” (2006, p. 94).
A não utilização dos demais trabalhos encontrados se deu principalmente por terem outros
sujeitos de pesquisa como foco: estudantes negros universitários, práticas de professores para
trabalhar o racismo como barreira antirracista, tratando da comunidade indígena, histórias de vidas

Página 604
de mulheres negras e a conquista das mulheres no âmbito educacional, personagens negros em
livros didáticos. Partindo desta ótica, os trabalhos que dialogaram com o meu tema de pesquisa
tocam os seguintes pontos: 1) Identidade negra; 2) Não reconhecimento da identidade negra nos
espaços escolares; 3) A juventude como barreira de enfrentamento anti-racista; 4) Juventude
vinculada a grupos culturais como forma de resistência política; e 5) O não reconhecimento das
possibilidades das juventudes negras vinculadas a outras formas de sociabilidade.
O estado do conhecimento aqui apresentado salientou que de fato a juventude é um
plural, portanto, estaremos sim falando das juventudes, trazendo materiais consultados e também
abrindo para a experiência que vai se apresentar nos encontros no Ribeirão da Ilha, portanto não
temos de ante-mao definições de juventude, pois estas definições serão construídas com os
jovens participantes da pesquisa. A análise dos trabalhos contribuiu ainda para ampliarmos o olhar
acerca da temática, pois este assunto ainda é pouco debatido em nossa sociedade e certamente a
pesquisa realizada contribui com a reflexão sobre uma sociedade mais igualitária, principalmente
para as juventudes. Portanto, percebemos a necessidade de trabalhar e debater essa temática nas
instituições escolares, nas universidades e na sociedade como um todo.

REFERÊNCIAS

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horizonte: Editora UFMG, 2005.

_______A escola como espaço sócio cultural. Multiplos Olhares sobre a Educaçao e cultura.
Belorizonte, UFMG, 1996.

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p.40-52,2003

_________Juventude e Participação: disputas e relações no cotidiano escolar. In: I Seminário Violar:


problematizando as juventudes na contemporaneidade, 2010, Campinas SP. I Seminário Violar:
problematizando as juventudes na contemporaneidade. Campinas: Faculdade de Educação
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Negras e negros no Sul do Brasil
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Sociologia. São Paulo: USP, 1997. v. 1. p. 97-97.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E AMBIENTE ESCOLAR: IMPLICAÇÕES


DA LEI 11.645/08 NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES/A DE CIÊNCIAS
BIOLÓGICAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

PINHEIRO, Patrícia Magalhães (UFSC)


patti_magalhaes@hotmail.com
PAIM, Elison Antonio (UFSC)
elison0406@gmail.com

Resumo

Este resumo se relaciona a fase inicial da minha pesquisa de doutorado onde realizo o exercício de
compreender o complexo processo de implementação do dispositivo legal 11.645/08. Esta lei torna
obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, sejam eles privados ou públicos. A escola reflete o modelo social no qual está
inserida, isso significa que nela estão presentes e sendo reproduzidas e reinventadas práticas de
desigualdades social, racial, cultural e econômica. A vivência da diversidade étnico-racial no espaço
escolar exige que professores/a e gestores/a concebam a escola como um campo de lutas e a pedagogia
uma forma de política cultural voltada para um projeto de cidadania, democracia e emancipação. Isso
significa movimentar valores, crenças e culturas consideradas como verdades, significa tensionar com
práticas pedagógicas na tentativa de desconstruir concepções colonialistas, racista, conservadoras e
excludentes que banalizam e tornam insignificantes práticas sociais, culturais e históricas seculares.
Desta forma, minha hipótese se relaciona a crença de que através do processo de (re)conhecer a história
e a cultura afro-brasileira e indígena, e portanto, a efetiva participação desses povos na construção da
sociedade brasileira, haja o melhor entendimento das relações étnico-raciais presentes em nossa vida
cotidiana, tomada de consciência, compreensão de perspectiva histórica, análise crítica da realidade,
incentivo à luta antirracista e antidiscriminatória. Partindo dessa conjectura, pretendo investigar como
se dá o processo de efetivação da lei 11.645/08 no âmbito da formação superior de professores/a
de Ciências Biológicas da UFSC, buscando compreender quais esforços estão sendo tomados para
que esse dispositivo legal saia, em definitivo, do papel e alcance a práxis política e emancipadora que
existe em seu bojo. Para tal pretendo me apoiar na pesquisa bibliográfica e documental, bem como em
entrevista como formas de construir os registros que serão analisados a posteriori.

Palavras-chave: Preconceito e discriminação étnico-racial. Interculturalidade. Políticas


públicas.

Página 608
A discriminação racial funciona para os brancos como calçados que usam para correr
contra negros descalços. Torna a corrida tranquila para os primeiros e extenuante para
os últimos. Para que a equalização racial ocorra no Brasil, em um horizonte de tempo
aceitável, é preciso, primeiro, tirar os calçados dos brancos. Depois, deixá-los correrem
descalços por algum tempo e calçar os negros para que os alcancem.

(Osório, 2008).

Tema
A temática de minha pesquisa de doutorado se relaciona ao exercício de compreender o
complexo processo de implementação da lei 11.645/08 no contexto da formação de professores/
as de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina.

Delimitação do problema

Os esforços desprendidos na tentativa de compreender as questões étnico-raciais no


Brasil são, também, empenhos para entender dilemas do mundo moderno. Entendendo que a
modernidade esta sempre aliada a colonialidade.
Caminhamos historicamente, no Brasil, pela negação total do racismo, principalmente,
através da propagação de dois mitos fundantes da sociedade brasileira: o mito da não violência e o
mito da democracia racial. Mas se fizermos o teste do pescoço, se ligarmos a TV, se investigarmos
os ocupantes tanto de cargos de poder quanto de trabalhos subalternizados veremos lá as
consequências do racismo, racismo este que é estrutural em nossa sociedade.
É de suma relevância compreender que os processos de negação do outro estão ligados às
representações do imaginário social, na construção de hierarquias e conceitos do que é ser belo,
branco, negro, indígena, homem, mulher, hetero ou homossexual, enfim do que é ser brasileiro.
Destaco ainda que, sendo essas hierarquias e representações simbólicas elementos das relações
sociais que nos circundam, estão também presentes e sendo reproduzidas no ambiente escolar.
Esses processos de negação do outro e a construção da ideia de superioridade/inferioridade
é bem datada e marcada pela nossa história, afinal, tem seu início no processo de colonização,
ou seja, nas grandes navegações. Porém, toda essa herança colonial ainda reverbera em nossa
sociedade através da colonialidade.
A colonialidade se manifesta como continuidade de formas coloniais de dominação,
pretende obter o controle da economia, da autonomia, da natureza, do gênero e da sexualidade e,
até mesmo, da subjetividade do conhecimento. É através de práticas perversas que estende seus
domínios. E uma dessas práticas está na construção e manutenção da ideia de raça; de inferioridade
de um povo em relação ao outro; no aparato ideológico criado para a livre exploração de negros/as
e indígenas por pessoas brancas, lê-se dotadas de superioridade e pureza do sangue, ao longo da
história e consequente manutenção de privilégios elitistas. Sendo assim, características biológicas

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

foram superadas por categorias puramente ideológicas embebidas em jogos perversos de poder.

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de


poder capitalista. Se funda na imposição de uma classificação racial/étnica da população
do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um dos planos,
âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala
social. Origina-se e mundializa-se a partir da América (QUIJANO, 2000, p. 342).

É importante destacar que a desigualdade pautada na oposição superioridade/


inferioridade que vem sendo criada e reforçada pelo colonialismo não se restringem apenas as
questões étnico-raciais, estão presentes, também, nas questões de gênero, sexistas, classistas,
linguísticas, regionais, religiosas, na produção/valorização do conhecimento. Desta forma, temos
hierarquias sociais que atuam de maneira relacional e interseccional, de acordo com a advogada,
ativista e professora estadunidense Kimberlé Crenshaw (2002) a discriminação opera em diversas
identidades sociais, tais como: “classe, casta, raça, cor, etnia, religião, origem nacional e orientação
sexual, são ‘diferenças que fazem diferenças’ na forma como vários grupos de mulheres vivenciam
a discriminação”.
Séculos de discriminação e preconceito geraram, reproduziram e fortificaram movimentos
sociais em prol das causas indígenas e afro-brasileiras, e a luta constante desses movimentos
culminou na aprovação de inúmeros dispositivos legais que vieram para garantir direitos específicos
a esses povos ou mesmo para promover sua igualdade de direito. Porém, ainda existe um grande
descompasso entre os dispositivos legais e sua efetivação na prática política brasileira.
O não cumprimento dos documentos oficiais, criados e implementados através de muita
luta política dos movimentos sociais estão relacionados, na maioria das vezes, a opções políticas
não declaradas dos governantes e de demais segmentos da sociedade que se esforçam em
manter o status quo brasileiro. Sendo assim, acreditamos que os atuais modelos de gestão política
fazem questão de reproduzir mecanismos de segregação racial concebidos desde a época do
Brasil colônia.
Para além das políticas públicas devemos promover o diálogo com o outro, o reconhecendo
e nos reconhecendo nele, praticando a interculturalidade crítica (Wash, 2007) despida de
preconceitos e jogos de poder que marginalizam e excluem. O locus da interculturalidade, através
do estudo de variadas culturas, suas histórias e contribuições para a construção da sociedade
brasileira, visando o convívio pacífico e enaltecedor entre os diferentes e a gradual e utópica
eliminação dos preconceitos é, sem dúvidas, a escola. A riqueza do ambiente escolar nos permite
discutir e refletir acerca dos processos geradores dos preconceitos e como tentar superar essa
problemática, que vêm sendo recriada e reproduzida ao longo da história do Brasil.
Neste aspecto, temos através da modificação do artigo 26-A na LDB de 1996, a
implementação da lei 11.645/08, objeto do presente estudo, que torna obrigatório o estudo da
história e cultura afro-brasileira e indígena em todo o ensino básico, tanto privado quanto público,
devendo estar presente em todo o currículo escolar.

Página 610
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos
e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e
indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da


história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir
desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena
brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas


brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de educação artística e de literatura e história brasileira (BRASIL, 2008, grifo nosso).

Hipótese

Acreditamos que através do processo de efetivação da lei 11.645/08 no âmbito da formação


superior de professores/as de Ciências Biológicas da UFSC, ou seja, ao (re)conhecer a história e
a cultura afro-brasileira e indígena, e portanto, a efetiva participação desses povos na construção
da sociedade brasileira, construção essa que não se restringe ao passado, mas que está viva no
presente e continuará com sua pungência no futuro, haja o melhor entendimento das relações
étnico-raciais presentes em nossa sociedade.
Desta forma, será possível potencializar a prática pedagógica para formação conceitual,
procedimental e principalmente atitudinal mediada pelo respeito à diversidade, portanto
constituinte de equidade étnico-racial. Essa perspectiva possibilita a articulação das práticas
escolares com valores ancestrais das populações que participam ativamente da formação da nação
e que pelo processo de colonização/colonialidade expropriadora e racista, foram inferiorizadas,
marginalizadas, subalternizadas, desumanizadas e invisibilizadas.
A professora Joana Célia dos Passos (2006) afirma que se a escola reflete o modelo social
no qual está inserida, isso significa que nela também estão presentes e sendo reproduzidas e
reinventadas práticas de desigualdades social, racial, cultural e econômica. A vivência da diversidade
étnico-racial no espaço escolar exige que professores e gestores da educação concebam a
escola como um campo de lutas e a pedagogia uma forma de política cultural voltada para um
projeto de cidadania, democracia e emancipação. Isso significa movimentar valores, crenças e
culturas consideradas como verdades, significa tensionar com práticas pedagógicas na tentativa
de desconstruir concepções colonialistas, racista, conservadoras e excludentes que banalizam
e tornam insignificantes as práticas sociais, culturais e históricas seculares. Questionar a norma
e inquirir de onde vem à compreensão de que o correto, o normal é ser homem/heterossexual/
branco/cisgênero/patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Objetivo

Investigar, analisar e compreender como se dá o processo de efetivação da lei 11.645/08,


no âmbito da formação superior de professores/as de Ciências Biológicas da UFSC.

Metodologia

A metodologia escolhida para esta investigação é qualitativa em contraposição àquelas que


defendem a quantificação. Aqui o conhecimento não é tratado como único e objetivo, tampouco
se busca controlar as variáveis da pesquisa. Pretendo dialogar francamente com os diversos
conhecimentos que surjam ao longo da investigação, preocupando-me, sempre, em considerar
as múltiplas variáveis históricas e sociais dos sujeitos envolvidos nessa pesquisa.
O caminho percorrido não seguirá modelos pré-estabelecidos, porém o diálogo, a
interculturalidade e a valorização do outro são premissas que sempre estarão presentes. Nesse
sentido, Fraser e Gondim (2004) defendem que a abordagem qualitativa ou idiográfica parte da
premissa de que a ação humana tem sempre um significado (subjetivo ou intersubjetivo) que não
pode ser apreendido somente do ponto de vista quantitativo e objetivo.
A abordagem da investigação qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideia
de que nada é trivial, que tudo tem potencial para construir uma pista que nos permita
estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudo (BOGDAN
E BIKLEN 1994, p.49).

Portanto, abordagens qualitativas possibilitam ao pesquisador uma maior liberdade de


pensamento e ação na constituição de sua investigação. Não há amarras epistemológicas que
valorizem a neutralidade, afastamento e a objetivação dos sujeitos. A pesquisa ganha forma
conforme o amadurecimento dos pesquisadores, na medida em que se reflete acerca das
partes envolvidas e dos acontecimentos vivenciados. Numa abordagem qualitativa o que ganha
destaque é o processo da investigação e não os resultados de uma produção e, nesse sentido,
os pesquisadores utiliza-se de meios que possibilitem a eles compreender os significados das
experiências e vivências dos sujeitos envolvidos.
A pesquisa proposta utilizará de registros bibliográficos como passo inicial de sua
construção, onde realizaremos por meio do estado da arte a busca de produções científicas –
artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses – que debatam a implementação
da lei 11.645/08 em seus mais variados aspectos, sejam eles: a formação de professores/as, a
construção do currículo escolar, análises de livros didáticos, práticas pedagógicas e didáticas ou
discussão de políticas públicas e ações afirmativas.
Esta investigação utilizará também da pesquisa documental através da análise crítica do
Projeto Pedagógico de Curso (PPC) das Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa
Catarina.

Página 612
Juntamente com a análise crítica do Projeto Pedagógico de Curso pretendemos realizar
entrevistas com: os professores/as formadores/as, tanto da área comum quanto da área didática;
professores/as em formação inicial e professores/as egressos, que tenham se formados após
aprovação da lei 11.645, ou seja, após o ano de 2008.
Nesse sentido, Haguette (2003) define que a entrevista é um “processo de interação social
entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações
por parte do outro, o entrevistado”. Nesta investigação, utilizo-me da entrevista semi-estruturada.
Boni e Quaresma (2005) afirmam que este tipo de entrevista combina “perguntas abertas
e fechadas, onde o informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto”. Dessa
forma, apesar de o pesquisador preparar um conjunto de questões previamente definidas, dentro
de um contexto semelhante ao que está sendo investigado, ele possibilita que o entrevistado
tenha maior liberdade para falar, minimizando constrangimentos. Além disso, deve ser destacado
que as entrevistas semi-estruturadas permitem maior interação entre entrevistador e entrevistado,
favorecendo respostas espontâneas e abrindo mais espaço para o aprofundamento da discussão.
Os registros construídos ao longo da investigação serão interpretados à luz das teorias
que tratem da colonização/colonialidade como processos fundantes na construção do racismo
(Fanon, Césaire, Quijano, Grosfoguel), que debatam o racismo no Brasil (Munanga, Hasenbalg,
Ianni) e as relações étnico-raciais no âmbito da formação de professores/as. Por ser uma pesquisa
em fase inicial não há conclusões.

Referências

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‘SERVIÇO SOCIAL E QUESTÃO RACIAL NO BRASIL: A PERCEPÇÃO DOS
JOVENS DO CENTRO CULTURAL ESCRAVA ANASTACIA A PARTIR DO
SEU PERTENCIMENTO ÉTNICO- RACIAL

COSTA, Sandra Santos. (UFSC)


sandra_santoscosta@hotmail.com
BRESSAN, Carla Rosane (UFSC)
bressan.carla@ufsc.br
Resumo

O presente trabalho foi realizado com jovens participantes do Programa Jovem Aprendiz do Centro
Cultural Escrava Anastácia, SC - Brasil a partir da experiência de estágio obrigatório do curso de Serviço
Social por meio do projeto de intervenção. A pesquisa objetivou discutir e refletir a percepção dos
jovens a partir do pertencimento étnico-racial e seus desdobramentos no cotidiano. Abordamos alguns
conceitos para melhor entender a temática, e a contribuição de autoras e autores do Serviço sobre
questão racial no Brasil. A metodologia utilizada foi abordagem qualitativa, de natureza exploratória e
procedimentos da pesquisa participante com à análise das categorias de: pertencimento étnico-racial;
experiências cotidianas e perspectiva profissional. A pesquisa nos permiti afirmar que as percepções
dos jovens negros e seu cotidiano acerca de seu pertencimento são em grande parte afirmativas,
permeadas de práticas e ações racistas diretas ou de formas subjetivas e indiretas. Para o jovem
pertencente ao grupo étnico racial branco, ações negativas pelo pertencimento não foram evidenciadas.
Alguns relataram situações de discriminação, porém sem ligação à raça e etnia. No entanto, os diferentes
grupos étnico-raciais percebem em proporções diferentes o que lhe causa o pertencimento, mas esses
reconhecimentos não propiciam unidade para reivindicações coletivas.

Palavras-chave: Racismo; Serviço Social; Juventudes; Relações raciais.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

A opção em trabalhar a temática raça e etnia teve início no campo de estágio obrigatório
l, no segundo semestre de 2015, junto aos jovens do núcleo de aprendizagem do centro Cultural
Escrava Anastácia. O projeto de intervenção consistia em realizar oficinas com os jovens do projeto
Jovem Aprendiz. Estas, foram desenvolvidas nos dias 24 e 25 de maio de 2016 abordando as
questões raciais vivenciada no cotidiano dos jovens.
Durante o desenvolvimento do estágio observou-se que algumas atitudes impulsionaram
pesquisar o tema raça e etnia. Além do espaço institucional e do perfil dos usuários, a participação
em alguns espaços de debate e trocas de experiências sobre a questão racial possibilitou a
elaboração de uma visão e um posicionamento crítico que foram impulsionadores da participação
e da busca por mais conhecimento nos diferentes espaços acerca da temática.
Observa-se que a mesma envolve todos os aspectos da vida em sociedade, sendo
importante ressaltar os seus aspectos macro por meio da estrutura social, até as ações pessoais
individuais e locais. Evidencia-se a participação frequente e permanente da grande mídia, das
instituições públicas e privadas, das ações locais e individuais nesse processo permanente de
práticas racistas e discriminatórias contra grupo étnico racial não branco. No entanto, tratar do tema
raça e etnia e seus desdobramentos caminha na direção de abordar temas complexos presentes e
prejudiciais a toda a sociedade, independente do pertencimento étnico racial.
No campo de estágio, a instituição conta com parcela considerável de jovens da raça e
etnia negra. Soma-se aí o contexto institucional, uma vez que a mesma foi fundada em 1988 por
um grupo de mulheres (em sua maioria negras), moradoras da comunidade de origem quilombola
do Maciço do Morro da Cruz. Estas estavam preocupadas com a situação de vulnerabilidade
socioeconômica em que seus filhos se encontravam. Naquela época e a partir de dados atuais,
percebe-se que esta preocupação ainda se faz presente com a juventude negra e periférica.
A finalidade do estudo foi em saber de que forma esses jovens percebem no seu cotidiano
o que lhe causa pertencer a determinado grupo étnico racial. A hipótese trabalhada é de que os
jovens não tenham a real dimensão de que algumas situações vivenciadas no cotidiano estão
relacionadas ao seu pertencimento étnico racial; e que, a partir da perspectiva desse pertencimento
ou não, possa estabelecer reflexões mais amplas, como a estrutura da sociedade capitalista
contemporânea. E essa reflexão, os levaria também a ter bases para questionar algumas situações
dadas como “normais” no nosso cotidiano.
Dessa forma, a relevância deste estudo está na socialização da experiência empírica sobre o
pertencimento étnico racial desses jovens, que pode ser uma mola propulsora de descobrimentos,
autoafirmação, contestação ou também uma forma de apagamento e conformação. Já, para o
Serviço Social, traz conhecimentos e peculiaridades acerca dos (as) usuários (as) negros (as).
E que este trabalho possa contribuir por meio das reflexões teóricas e práticas sobre o exercício
da profissão nas diversas áreas de atuação. Para tanto, foi utilizada como metodologia de análise
das informações a abordagem qualitativa, de natureza exploratória, através do procedimento de

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pesquisa participante a luz das teorias de algumas autores/as: Bento e Carone (2002), Munanga
(2005), Piza (2005), Moore (2007), Schucman (2012), Elisabete Aparecida Pinto (2003) entre
outros/as.
Assim, o presente texto se organiza em aproximações conceituais para melhor entender as
relações étnico-raciais, abordando os conceitos como branquitude, negritude e democracia racial.
Em seguida apresentamos contribuições de autoras/e do Serviço Social para as relações étnico-
raciais brasileira e a pesquisa empírica sobre a percepção dos jovens a partir do seu pertencimento
étnico -racial.

1 Aproximações conceituais

Existe no Brasil um abismo entre a história contada e perpetuada e a história real. Essa
dicotomia traz perdas irreparáveis para a sociedade, ao transformar a riqueza da diversidade
em desigualdades, exclusão e invisibilidade. Condena uma sociedade formada por influências
indígenas africanas e portuguesas, apontando apenas uma, como preponderante, reduzindo a
diversidade étnica, de tribos, cultura e dialetos a uma única denominação: “os índios e os escravos”.
(FREITAS; ENGLER, 2015)
Para Moore (2007, p.30) no século XX a aceitação e difusão de teses racistas estão
presentes e inseridas na estrutura do Estado Democrático de Direitos, orientado por estereótipo
vinculado pela grande mídia, que por sua vez alimenta o imaginário e linguagem popular.
Na atualidade o conceito raça para os seres humanos é biologicamente e cientificamente
inoperante, trata-se de um conceito ideológico e, como toda ideologia, esconde algo não declarado,
nesse caso, a relação de poder e dominação (MUNANGA 2005,p.3)
De outro modo, o campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura
global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Os conceitos de negro,
branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na África
do Sul, na Inglaterra. Por isso que o conteúdo dessas palavras é etno-semântico, político-
ideológico e não biológico. (MUNANGA, 2005, p.3-4)

O conceito de etnia refere-se ao conteúdo sociocultural, histórico e psicológico, e sua


explicação compõe:

Uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral


comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma
cultura e moram geograficamente num mesmo território. Algumas etnias constituíram
sozinhas nações. Assim o caso de várias sociedades indígenas brasileiras, africanas,
asiáticas, australianas, que são ou foram etnias nações. (MUNANGA, 2005, p.9)

Outro conceito importante para compreender as relações étnico-raciais no Brasil se refere


ao mito da democracia racial. Segundo Bernardino (2002, p.250), é um conceito vigente, que
teve sua maior visibilidade acadêmica em 1933, a partir da produção de Gilberto Freire, em

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Negras e negros no Sul do Brasil
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“Casa grande e senzala”. Esse conceito se refere a um sentimento nacional capaz de operar uma
concordância entre diferentes setores e camadas sociais acerca da “convivência harmônica das
tradições diversas”, aqui referenciadas pelos negros, índios e o português.
Já o conceito branquitude, é uma categoria socialmente construída e indissociável ao tratar
do tema raça/etnia. Esse conceito começou ser utilizado em metade do século XVII e significa
superioridade e privilégio, em contrapartida aos não brancos, considerados “os outros”. Schucman
(2012, p.23 -24).
A indissociabilidade de tratar o conceito raça e etnia fora da ideologia da brancura envolve
necessariamente disputa de poder, espaço e território.

No conceito de branquitude são os sujeitos que ocupam lugares sociais e


subjetivos da branquitude, e o nó conceitual que está no bojo dos estudos
contemporâneos sobre a identidade branca, isso porque, nesta definição, as
categorias sociológicas de etnia, cor, cultura e raça se entrecruzam, se colam e
se deslocam umas das outras, dependendo do país, região, história, interesses
políticos da época em que estamos investigando [...]. (SCHUCMAN 2012, p.24)

Segundo Eurico (2013, p.296-297) ser branco no Brasil é uma função social, permite a
eliminação de barreiras, certa autoridade e respeito automático. Cabe ressaltar que usufruir da
braquitude tem interpretações diferenciadas, “nos Estados Unidos está estritamente ligado
à origem étnica e genética; no Brasil, à aparência, ao status e ao fenótipo; e na África do Sul, o
fenótipo e a brancura são importantes demarcadores.” (SCHUCMAN 2012, p.24)
Segundo Camila Moreira de Jesus (2012, p.10), a palavra “negritude” foi criada pelo poeta
martinicano Aimé Césáire em 1938, com uma definição ainda imprecisa, e na poesia do referido
autor ganhou três significados, “povo negro”, à “vivência íntima do negro” e à “revolta”.
Para Munanga (1990, p.33) o conceito negritude não é racismo às avessas conforme
muitos pensam. É na verdade uma forma de estar e de se assumir no mundo, é carregar consigo a
sua história, onde ao longo dos séculos pessoas portadoras dessa pele foram vítimas na história
da humanidade, tiveram sua humanidade negada e explorada, sendo o único caminho de saída
se assumirem coletivamente, e isso passa por assumir a “negritude”.

2 Serviço Social e as relações étnico - raciais

O livro “O Serviço Social e a questão Étnico Racial (um estudo de sua relação com usuários
negros 2003)” de autoria de Elisabete Aparecida Pinto. A autora demonstra preocupação com as
questões étnico-raciais, em relação os aspectos teóricos metodológicos, éticos políticos e técnicos
operativos dos profissionais com os usuários negros e buscou identificar qual a relação existente
entre assistente social e usuários negros, e o tipo de consciência étnico-racial que norteavam a

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ação profissional e o comportamento de ambos1.
Segundo Pinto (2003, p.118), “ao analisar as respostas percebe-se que atitudes dos
assistentes sociais em relação ao usuário negro estão norteadas por uma tradição moral cristã”.
Dessa forma, no nível do discurso, todos defendem a igualdade dos seres humanos, sem distinção,
conforme os ensinamentos cristãos. Entretanto, nos contatos face a face do cotidiano, fazem uso
de discurso ambíguo e sutil, colocando o negro em uma categoria diferenciada de ser humano
predestinada à submissão e subserviência.
Em relação à visão do assistente social quanto à questão racial no Brasil foi possível
verificar que 93,3% dos assistentes sociais admitiam a existência de situação discriminatória e
os 6,7% acreditavam não existir preconceito étnico racial. No caso dos usuários negros, em seu
relacionamento com o assistente social, tinham comportamento submisso e de introjeção do
preconceito. (Pinto 2003, p.122-123).
O trabalho de José Barbosa da Silva Filho (2004), deu origem ao livro “O Serviço Social e
a questão do negro na sociedade brasileira”, A pesquisa abordou a perspectiva dos estudantes
e professores do curso Serviço Social UFF, sobre o conhecimento da temática do negro no Brasil.
Verificou também as produções teóricas através dos trabalhos de conclusão de cursos e as
publicações de revistas e livros disponíveis no sistema da biblioteca UFF. Quanto às monografias
foi localizado:
[...] 1237 monografias de final de curso, elaboradas pelas alunas/os da ESS-UFF,
arquivadas na Biblioteca Central da UFF, [...] entre 1948 a 2002. Em relação à
questão racial ou do negro na sociedade brasileira, o resultado foi muito aquém
do esperado. Neste período que corresponde 54 anos e três momentos políticos
distintos (Democrático: 1948-1963; Autoritário; 1964-1985; Democrático
19862002), apenas 6 TCCs entre os 1237 examinados ou 0,48% do total tratam
desde tema. (FILHO 2004, p.59)

Filho (2004) observa que, apesar de enfocarem temas onde a presença do negro e
pardo é uma realidade de exclusão social, como, por exemplo, no sistema carcerário, população
de rua, trabalho doméstico, etc., a questão do negro não é identificada como importante vetor
causal para se constiturem em objeto de pesquisa. Em relação aos alunos, também confirma essa
ausência significativa na produção acadêmica e monstra que a maioria dos alunos não apreende
conhecimentos que dizem respeito à questão do negro na sociedade brasileira.
Ainda nesta pesquisa, as autoras optaram por verificar as produções no periódico - revista
Serviço Social e Sociedade no período de 2010 a 2016 que abordasse a temática racial brasileira.
Realizada a coleta, foram localizados três artigos:

1 As entrevistas, em relação aos usuários, foram com 24 pessoas do sexo feminino e seis do sexo masculino,
todos (as) os(as) 30 usuários(as) pertencentes à raça e etnia negra. Em relação aos 30 profissionais assistentes sociais
entrevistados, foram 29 do sexo feminino e um do sexo masculino. O pertencimento étnico racial dos profissionais se
dividia em 23 brancos e sete profissionais da raça e etnia negra.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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2012 Autora: Tereza Cristina Santos Martins


Titulo: “O negro no contexto das novas estratégias do
capital: desemprego, precarização e informalidade”.
Palavras-chave: Desigualdade racial. Desemprego. Trabalho precário e
informal.
2013 Autora: Márcia Campos Eurico
Titulo: “A percepção do assistente social acerca do racismo institucional”
Palavras-chave: Racismo institucional. Ética profissional. Questão racial.
Serviço Social
2015 Autoras: Taís Pereira de Freitas e Helen Barbosa Raiz Engler
Titulo: “Desigualdade racial nos espaços escolares e o trabalho do assistente
Social”.
Palavras-chave: Desigualdade racial. Política pública de educação. Serviço
Social

O primeiro artigo encontrado, de Tereza Cristina Santos Martins (2012), traz as contribuições
acerca das condições de vida da população negra no acesso ao trabalho na lógica de precarização,
com maior impacto para essa população. O segundo artigo, de Márcia Campos Eurico (2013),
questiona a ausência de produção teórica e a percepção dos assistentes sociais acerca do racismo
institucional; e como isso se manifesta no exercício profissional e suas consequências para a
materialidade do projeto ético político da profissão. E o terceiro, de Tais Pereira de Freitas; Helen
Barbosa Raiz Engler (2015), trata da presença do Serviço Social na política de educação como um
espaço importante para o Serviço Social nas discussões acerca da questão étnico-racial.

3 A percepção dos jovens a partir do seu pertencimento étnico-racial

No reconhecimento do pertencimento étnico racial como uma das questões desta análise,
percebeu-se que alguns jovens reconhecem com muita clareza o seu pertencimento, e também
conseguem visualizar os desdobramentos em seu cotidiano do que é pertencer a determinado
grupo. Analisando algumas falas foi possível verificar esta ideia de pertencimento. O grupo 1
apresentou as seguintes falas:
“Hoje em dia, os negros não conseguem uma boa oportunidade de emprego, ou um cargo
bom na empresa.”

“A religião, hoje em dia ninguém tem coragem ainda de dizer qual a sua, por conta do
preconceito com as religiões de origem africana.”

“Eles (negros) ainda são visto como ladrões, bandidos, tratados com apelidos ofensivos.”

É evidente que pertencer a determinado grupo étnico racial é uma realidade carregada de
preconceito e estereótipos. Segundo Fernandes et al. (2016), a categorização do negro é uma
tentativa de aprisioná-lo a um lugar social que lhe impõe características de descrédito. Dessa
forma, em suas relações sociais a “marca” que lhe é atribuída faz recair sobre ele um olhar de

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descrédito, impossibilitando que pessoa desse grupo étnico racial seja percebida na sua totalidade
de seus atributos.
Nota-se que a identidade pessoal é subsumida à identidade social. O que faz com que
o sujeito negro seja compreendido de acordo com a essência de seu grupo étnico-racial. Nas
palavras de Piza (2005 apud FERNANDES et al. 2016, p.108).”[...] o lugar do negro é o lugar de
seu grupo como um todo e do branco é o de sua individualidade. Um negro representa todos os
negros. Um branco é uma unidade representativa apenas de si mesmo”.
Segundo Freitas e Engler (2015 p. 38), é necessário resgatar a riqueza e a multiplicidade
cultural existentes no continente africano e trazidas por essa população para o Brasil. As mesmas
autoras observam que, no continente africano, já havia tecnologias sendo desenvolvidas e que, a
partir da chegada do africano ao Brasil, sua multiplicidade cultural, como os dialetos, as religiões
foi reduzida a uma única denominação “escravos africanos”, e essas informações são repassadas
através das instituições e da história oficial.
A realização das oficinas contava com jovens de grupos étnicos raciais distintos, porém
esse pertencimento e seus desdobramentos foram apenas explicitados pelos jovens que se
identificaram ou se referiram ao grupo étnico negro. Segundo Piza (2005, s.n.) esse reconhecimento
se dá da seguinte forma:

[...] branquidade é vivenciada cotidianamente, se manifesta apenas em momentos


em que se torna impossível ignorar o outro, o “diferente”. Acredita que a branquidade
como expressão social e cultural hegemônica no ocidente conforma traços de
branco e negros na mesma proporção. Dessa forma, para o branco a branquitude
incorpora traços de racismo, seja ele (in)consciente ou reprimido; e para o negro,
cria-se uma barreira na construção de uma identidade positiva, já que o padrão de
modelo positivo para a humanidade são os brancos, dificultando dessa forma a
afirmação da sua negritude.

Apercepção do pertencimento étnico racial também foi identificada nos trabalhos


desenvolvidos, como, por exemplo, quando o grupo 2 trouxe em falas como as que identificam o
que até hoje são vivências comuns na vida dos negros:

“Racismo, mercado de trabalho, diferenças sociais, religiosas, a forçado negro, péssima


condições de vida, abuso sexual, cultura, humilhação.”

O grupo 4 associou o filme “Besouro” (exibido durante o projeto de intervenção) com a


realidade cotidiana, ao relacionar ao negro:

“Dança, desigualdade, preconceito, chibatadas, tortura, bullings pela cor, humilhação;


Classe social, violência – vingança, situação precária, espíritos – religião, cultura escravidão,
capoeira – esporte.”

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Negras e negros no Sul do Brasil
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É possível identificar como as vivências referenciadas ao grupo étnico negro são em sua
maioria referências negativas, e as positivas (ligadas ao ser negro) costumam estar intrinsecamente
relacionadas ao esporte e à cultura. No entanto, as suas péssimas condições de vida não são
questionadas, deixando de ser tratadas como problema social e passando a dar suporte à ideologia
da democracia racial.
Ainda em relação a esse pertencimento com viés negativo por parte dos jovens negros,
foi possível observar que para eles abordar a temática raça e etnia traz certo desconforto,
principalmente aqueles com fenótipos mais acentuados.

“E o assunto foi tabu, [...] certo receio, e um dos meninos, de um dos grupos, um menino
negro demorou a falar, e depois, ao ser instigado a falar, relatou em forma de desabafo que,
apesar de todos os preconceitos que os negros sofrem todos os dias em todos os lugares,
sendo desacreditados de seus sonhos, não devem perder a esperança e seguir em frente
para realizar seus objetivos! Foi bem emocionante, veio em forma de desabafo.” (Diário de
campo).

A percepção tida durante a realização das oficinas corrobora com o que afirmam as autoras
Carone e Bento (2002,p.158), que trabalhar a temática raça e etnia pode trazer desconfortos para
os diferentes grupos étnicos raciais.

[...] pode ser encontrada tanto em brancos quanto em negros. Estes, geralmente entram
no debate sobre racismo já com alguma consciência da questão, baseada em experiências
pessoais. Porém conclui que não tinham consciência do impacto generalizado do racismo
na sociedade. Para vítimas de racismo, a consciência do impacto do racismo nas suas
vidas é dolorosa, e frequentemente gera raiva. Para brancos, beneficiados pelo racismo,
uma consciência ampliada disto gera raiva ou sentimentos desculpa.

As indicações elencadas por Carone e Bento (2002), em relação à resistência e


demonstração de determinados sentimentos, foram vivenciadas durante o trabalho com os jovens,
como pode-se observar:

Outro ponto importante observado foi certo grupo que ficou composto com mais jovens
negros, eles/as ficaram mais apáticos na elaboração do cartaz [...], não quiseram se
expressar muito. Na hora da apresentação [...], menino negro de tom de pele mais escura
quis sair [...] e quando questionado sobre a elaboração do cartaz?.(respondeu) “ Não
participei de nada! Nem sabia o que estava acontecendo! Não vou falar porque não
contribuí com nada nesse cartaz!” (Diário de campo)

Externar reações como essas, em determinado grupo étnico racial, está relacionado a
não querer tocar em assuntos que os fazem sofrer e reviver memória e lembrança dolorosa no
cotidiano. Para Carone e Bento (2002, p. 148), para o grupo étnico negro é doloroso devido ao
espaço que a sociedade delimita para ele, um espaço associado à incapacidade e ao insucesso,

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enquanto que aos brancos se mantêm em posições de privilégios.
Outro ponto que dificulta esse reconhecimento de forma positiva é o mito da democracia
racial, onde o discurso não condiz com a realidade, porém serve de suporte para desqualificar
qualquer fala que venha questionar esse espaço delimitado para o negro na sociedade brasileira.
Entre os jovens, uma adolescente afirmou que todos “somos iguais, e que não é a cor da pele
que nos tira a possibilidade de sermos o que quisermos ser!”. Ou ainda, conforme registro das
atividades observou-se que:

“Uma das meninas com fenótipo negro, ela falava do negro como se ela não pertencesse
à raça ou etnia. A adolescente trouxe muito a questão da democracia racial, que todos têm
os mesmos direitos, e o negro se coloca no lugar de vítima, ela afirmou isso!” (Diário de
campo).

Segundo Piza (2005) crianças e jovens brancas e negras preservam valores sociais do
grupo étnico racial branco, no entanto a criança negra tem o sentimento de ser discriminada nessa
relação, onde o seu pertencimento nunca passa despercebido. Ainda sobre as manifestações
baseadas na democracia racial brasileira, Hasenbalg (1979 apud CARONE e BENTO 2002, p.148)
apresenta que:

Traz em seu cerne: a negação do preconceito e da discriminação, a isenção do branco e a


culpabilização dos negros. Essa negação, frequentemente aparece quando não queremos
enfrentar uma dada realidade, quer porque não desejamos nos ver como sujeitos de
determinados tipos de ações, quer porque temos interesses nem sempre confessáveis em
jogo, ou ainda porque aceitar a realidade do racismo significa ter que realizar mudanças.

Isso foi possível identificar em algumas falas que tentavam sustentar a democracia racial,
porém observa-se que as justificativas não as sustentam, como pode ser identificado através
das seguintes falas:
“existem negros bem-sucedidos financeiramente”

Só que o mesmo cartaz traz que:

“Sei que algumas posições e profissões específicas para um negro alcançar são realmente
difíceis, porém não impossível”

Como se pode observar, o mito da democracia racial é presente e culmina numa verdadeira
confusão de ideias referente à sociedade em que estamos inseridos. Ele afeta de forma diferente
cada indivíduo; o que acaba dificultando uma discussão profunda e centrada sobre as questões
que envolvem raça e etnia.
Observou-se nas produções das oficinas que havia alguma crítica ou um reconhecimento

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mais positivo em relação ao pertencimento étnico racial negro, e sempre estavam acompanhados
da ideia de que somos todos iguais ou todos negros, em referência à origem da humanidade.

Conclusão

Durante o desenrolar deste trabalho, buscou-se analisar a percepção que os jovens


têm acerca de pertencimento étnico racial e o que isso lhes causa em relação aos seus direitos
fundamentais. Atrelados a essa discussão, estão o racismo e a discriminação étnico-racial e a
indissociabilidade das categorias raça negra e pobreza. (Filho, 2004)
No tocante à compressão e à percepção dos jovens e à reflexão sobre o tema questão étnico-
racial, essa é afirmativa para os jovens do grupo negro trabalhado. Os/as mesmos demonstraram
ter relativa compreensão de seu pertencimento, como também quanto ao pertencimento do grupo
étnico racial branco; e parcialmente evidenciada pelo grupo étnico racial branco, em relação ao
grupo negro. Identificou-se, porém, que o que falta é o “sentido de coletivo”, para que esses jovens
possam ter bases para questionar algumas situações dadas como “normais” no seu cotidiano –
amparadas, por vezes, no mito da democracia racial.
Dessa forma, concluímos que a percepção do cotidiano dos jovens negros estão
permeadas por práticas e ações racistas. Essas percepções, por parte de jovens negros, acontecem
diariamente nos diferentes espaços e nas diferentes relações. O jovem negro também consegue
visualizar o que causa o pertencimento étnico racial branco, que foi traduzido em “vantagens” e
“privilégios”.
Para o jovem pertencente ao grupo étnico branco, a situação foi inversa. A percepção
de seu pertencimento racial não foi evidenciada em suas vivências diárias. Alguns relataram
situações de discriminações, porém não estavam conectadas ao seu pertencimento étnico racial.
No entanto, jovens brancos percebem o que causa o pertencimento étnico racial do negro, e está
relacionado à exclusão, ao racismo e discriminação.
Acrescenta-se a essas descobertas que esse “pertencimento” reconhecido pelos
diferentes grupos não propícia uma identidade de unidade positiva, e que possa ser direcionada
ao fortalecimento dos diferentes grupos. A partir do reconhecimento do que o grupo étnico negro
percebe, em relação ao seu próprio grupo, possa gerar posicionamento crítico em relação às
vivências cotidianas do grupo como um todo, e não apenas de maneira pontual ou individual. E
que, independente das ações individuais de cada membro desse grupo, pertencer a ele o coloca
em um “coletivo”.
Nesse coletivo, são sujeitos e propensos a ações e posturas racistas e discriminatórias.
Essa percepção de coletivo, na busca de se questionar sobre a realidade do grupo, não foi
evidenciada nem entre os brancos em relação aos privilégios do próprio grupo, nem em relação
às desvantagens do grupo negro, e nem entre os próprios negros em relação a si mesmos, já que

Página 624
relataram constantes situações de discriminações e ações racistas no seu cotidiano. Apenas
apontaram e reconheceram alguns desdobramentos por meio de determinado pertencimento
étnico racial, mas não fizeram essa relação de unidade.
Em relação ao Serviço Social e as questões raciais brasileira, observa-se que há
compreensão no exercício profissional (estudos, levantamentos, relatórios) para dados específicos
que afirmam a condição do negro na sociedade brasileira, porém não se sabe exatamente como
agir no exercício profissional com esses dados. Então, se identifica que no Brasil, para além da
contradição capital trabalho, está presente nessa estrutura o quesito “cor”, e no fazer profissional
faz-se uso de instrumento teórico metodológico na perspectiva de contradição de classe.
Dessa forma, conforme rege o projeto ético político da profissão, alguns autores trabalhados
nesta pesquisa apontam algumas sugestões com as quais compactuamos: Que o Serviço Social
seja de fato inter-étnico e considere os fatores históricos, culturais, sociológicos e psicológicos
que envolvem grande parte de seus usuários. (PINTO, 2008).
Segundo Pinto (2008), Eurico (2013) faz-se necessário a criação de uma nova linguagem
antirracista em todos os espaços; a articulação com organizações negras; a inclusão do quesito
cor/raça nos instrumentais utilizados, com a consequente interpretação de dados, a apropriação
urgente das produções acerca do tema produzido por outras áreas das Ciências Sociais e a
produções e inserção de pesquisadores negros/as na pós graduação.
Para Filho (2004, p.111), [...] a denúncia da falha do sistema de ensino em todos os níveis
é uma forma para contribuir com as questões étnicas raciais no Brasil. A credita que, produzir,
provocar e estimular novas redes de informação é uma forma de “transformar o não familiar em
familiar, dando concretude e significado às imagens positivas do negro na sociedade brasileira”

Referências

BENTO, Maria Aparecida Silva; BEGHIN, Nathalie, Juventude Negra e Exclusão Radical, IPEA -
Políticas Sociais, acompanhamento e analises 2005, p.194-197

BERNARDINO, J. “Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial no Brasil.”. Estudos


afro-asiáticos 24.2, P. 247-273, 2002.

BENTO, Maria Aparecida Silva. BRANQUITUDE-O LADO OCULTO DO DISCURSO SOBRE O


NEGRO. Centro, p. 147-162, 2002.

CCEA – Centro Cultural Escrava Anastácia. Disponível em: <http://www.ccea.or g.br/logo>.


Acesso em 08 jun. 2016.

CFESS (Conselho Federal de Serviço Social). Subsídios para a atuação dos assistentes sociais na
política de educação. Brasília: CFESS, 2012.
Código de Ética do Serviço Social. Publicado no Diário Oficial da União nº 60, de 30/03/1993.
Alterado pela Resolução do CRESS nº 290, publicado no Diário Oficial da União em 11/02/1994.

Página 625
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

EURICO, Márcia Campos. A percepção do assistente social acerca do racismo institucional.Serv.


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DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. Dissertação (Mestrado) — Universidade Federal
Fluminense, 2004.

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e o trabalho do assistente social. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121,p.32-47,mar.2015.

JESUS, C. M. de. BRANQUITUDE X BRANQUIDADE: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DO SER


BRANCO. III Encontro Baiano de Estudo em Cultura, Abril 2012.

CAMPOS, Marcia. A percepção do assistente social acerca do racismo institucional.Serv.Soc.


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Antropologia, São Paulo, v. 33, 1990.

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e Etnia in, CADERNOS PENESB Nº5. Niterói: EdUFF, 2004, (p.15-34).

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ADOLESCENTE, 1, 2005, São Paulo.

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na construção da branquitude paulistana. 2012. Tese (Doutora em Psicologia Social) – Instituto de
Psicologia de São Paulo, São Paulo, 2012.

Página 626
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS NO PARANÁ: A
APLICABILIDADE DA LEI 10.639/03 NAS INSTITUIÇÕES ESCOLARES
PARANAENSES

Julio CORCINO Rodrigues Mota Junior (UFPR) 2


Djiovanni JONAS França Marioto (UFPR) 3
Josafá MOREIRA da Cunha (UFPR) 4
Resumo

A discussão referente a questões étnico-raciais, dentro da educação básica, tem como objetivo
a construção da identidade histórico-social negra e africana, e no Paraná, estado com uma grande
miscigenação racial, está problematização começa após a homologação da lei 10639/2003, no qual
muitas escolas ainda não conseguiram implementar em seus respectivos currículos essa temática.
Por isso este presente trabalho visa apresentar estudo teórico em conjunto com resultados obtidos da
pesquisa realizada pelo Ministério Público do Paraná e conjunto com Universidade Federal do Paraná
referente a Educação das Relações Étnico-Raciais ERER, da forma que está sendo aplicada e se estão
cumprindo com que determina a Lei, essa pesquisa foi realizada em 3417 escolas paranaenses da
educação básica (Conveniadas, Estadual, Municipal e Particular), no qual foi enviado um questionário
para cada escola, sendo respondido pela equipe pedagógica, que era responsável por realizar a
devolutiva das ao MPPR, para que após a UFPR desse início a análise dos dados e criação do relatório,
foi utilizado o software SPSS 20 na análise das variáveis, para que assim fosse possível a construção do
relatório, referente a situação do ERER, dentro das instituições escolares no Paraná. Sendo analisado que
majoritariamente das escolas paranaenses cumprem com o que está determinado com a lei, possuem
equipes internas que realizam discussões sobre questões relacionadas à diversidade, mesmo que o
espaço para o debate apenas ocorra em datas comemorativas como é o caso do dia 20 de novembro
e nas semanas culturais, com atividades artísticas e resgate histórico, e é importante salienta que ainda
existem escolas que mesmo após quatorze anos da implementação da lei, não conseguiram implantar
em seus currículos a temática racial.

Palavras-chave: Educação, Lei 10.639/03, Paraná, étnico-raciais.

Introdução

Compreendendo a importância das questões étnico-raciais para a educação básica, é

2 Graduando de Pedagogia na Universidade Federal do Paraná. Email: juliocorcinojr@gmail.com


3 Graduando de Ciências Sociais na Universidade Federal do Paraná. Email: djiovannimarioto@gmail.com
4 Doutor em Educação pela UFPR. Professor adjunto na UFPR. Chefe do Departamento Teoria e Fundamentos
da Educação e membro do Laboratório Interagir – Educação e Desenvolvimento. Email: josafas@gmail.com

Página 627
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

preciso observar que foi necessário que o movimento negro fizesse o “protagonismo na pressão
pela modificação nos currículos escolares no sentido de incorporar a história da África, dos
africanos e seus descendentes na formação social brasileira” (PEREIRA, 2010, p.5), pois alguns
movimentos sociais negligenciam as políticas raciais em suas pautas. Sendo uma das maiores
reivindicações e preocupações do movimento, em relação à questão educacional (LIMA, 2010).
A lei trás um fomento teórico que visa garantir o ensino desta parte da história que em
algumas escolas era negligenciado, entretanto é “necessário que a grande massa tenha
conhecimento desta lei, para saber que existe um aparato legal que defende o aprendizado da
cultura negra na formação social brasileira” (GUEDES, 2013,p.426), pois não havia uma política
que construísse esta identidade no Brasil, o que levada ao esquecimento da participação negra
nas mais diversas áreas do conhecimento
Durante anos o ensino sobre a história da África e a construção da identidade negra no
Brasil, teve forte influência europeia, que descaracterizar as especificidades deste continente e
do povo negro. E esta “visão eurocêntrica instituída pela colonização portuguesa negou a cultura
afro-brasileira, fazendo com que o racismo e o preconceito permanecesse vivo até os dias de hoje.
(KUSMA, 2010, p.11)” de forma a criar diversos estereótipos referente a cultura negra e aos negros
brasileiros, trazendo os mesmos em papéis secundários na história brasileira.
Mesmo com a homologação da lei, muitas secretarias da educação tiveram dificuldades
em se adequar, por isso foram criados cursos de formação continuada e materiais pedagógicos de
todas as áreas do conhecimento abordadas na educação básica, entretanto estes “o conteúdos e
a abordagem do continente africano nestes cursos são em geral pontuais e superficiais, apoiados
em pouco material didático e com pobre articulação entre temáticas africanas e afro-brasileiras”
(PEREIRA, 2010, p.12), por trazerem uma visão superficial da temática, e que não atende as
demandas da sociedade.

Objetivos

O objetivo deste trabalho é a apresentação e contextualização dos os resultados
quantitativos, da pesquisa realizada entre o MP PR e a UFPR referente à ao ensino de ERER, dentro
das escolas paranaenses, de forma a entender como se encontra a aplicação da lei 10.639/03,
quatorze anos após a sua homologação.
Com a finalidade de ter a ciência referente à quantidade de escolas que estão cumprindo
com que é determinado e prescrito na lei, e como estas temáticas encontram-se inserida no
ambiente escolar.
Metodologia

Esta pesquisa foi realizada graças à colaboração de dois órgãos públicos de instância
federal do Estado do Paraná, o MP PR e a UFPR - NEAB, no qual o Ministério foi responsável pela

Página 628
construção dos questionários, e pela a coleta de dados, onde foi encaminhado um formulário para
cada escola do Paraná, independente da rede que a pertencia (Municipal, Estadual, Conveniada ou
Particular), que após a equipe pedagógica ou responsável pela instituição preencher as respostas,
o mesmo ela devolvido para o MPPR, todos esses processo ocorreu através de e-mails, totalizando
o número de 3417 escolas que participaram da coleta.
A UFPR após receber estes 3417 questionários, deu início ao processo de tabulação e
limpeza dos dados, que assim fosse realizado a separação e limpeza das variáveis, para que desse
início à análise dos dados, tendo como produto final um relatório, referente a aplicação da lei, e
como as escolas paranaenses estão trabalhando com está temática .
Para a análise de dados foi utilizado o software estatístico SPSS 20, onde as variáveis
quantitativas (Equipe Multidisciplinar, Projeto Político Pedagógico, Eventos e Materiais didáticos)
foram inseridas no mesmo, para assim fossem rodadas as respectivas análises, todo processo foi
possível graças participação de bolsistas de graduação vinculados ao NEAB.
Para o estudo teórico, foi realizada uma revisão de literatura com trabalho que abordassem
em seus o ERER na prática escolar, e como a mesma é trabalhada dentro dos mais diversos
ambientes de ensino, para essa revisão foi utilizado o banco de dados Google Acadêmico.

Resultados

Para a construção dos resultados foram selecionadas quatro variáveis para serem
apresentadas neste trabalho, no qual o critério empregado para escolhas foi e relevância
para a discussão do ERER nas escolas paranaense, são elas: ERER no Projeto Político
Pedagógico, Equipe Multidisciplinar, Eventos relacionados questões étnico raciais e Material
didático-pedagógico.
A primeira variável “ERER no Projeto Político Pedagógico” traz a discussão da importância
de incluir as discussões raciais nos currículos das escolas, de forma clara, objetiva e pedagógica,
e que estejam acessíveis a toda equipes pedagógicas e profissionais da educação da instituição.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Gráfico 01: ERER no Projeto Político Pedagógico, 2016.

Fonte: Ministério Público do Paraná, 2016.

Através do gráfico 01 é possível observar que 2974 (87%) das escolas contêm em seus
projetos político pedagógico (PPP), apontamentos, parecer, sobre as atividades que façam
referências a esta temática, que fará parte da formação e construção social dos discentes;
A segunda variável “Equipe multidisciplinar” vem de acordo com as políticas de inclusão
de combate a discriminação, sendo o órgão na escola, que trabalha com demanda referente à
diversidade, racial e de gênero, e como é demonstrado no gráfico 02:

Gráfico 02: Equipe Multidisciplinar nas Escolas, 2016.

Fonte: Ministério Público do Paraná, 2016.

A equipe multidisciplinar é o grupo responsável por tratar das questões de diversidade na


escola, o que nós a leva preocupação, pois apenas 1745 (51%) das escolas paranaenses possuem

Página 630
uma equipe formada, para realizar está ação, e apenas 205 (6%) escolas estão tentando reverter
essa situação, através de reuniões e selecionando profissionais para sua composição. Esta equipe
tem sua importância para a questão racial, por ser o local de debate sobre o racismo seja ele entre
o discente ou o institucional, e políticas de enfrentamento.
A terceira variável “eventos” que são atividades extracurriculares desenvolvidas
na escola, que visam desenvolver as habilidades do discente, através de palestras, oficinas, e
competições esportivas, e dentro das escolas paranaenses o resultados se demonstrou de forma
satisfatória como demonstra o gráfico 03:

Gráfico 03: Eventos relacionados a temática da ERER, 2016

Fonte: Ministério Público do Paraná, 2016.

Os eventos dentro das escolas tem a finalidade educativa, cultural e social de formar a
integração dos alunos, professores e a comunidade, para que assim todos estejam inseridos nas
discussões referentes à ERER, no qual 2358 (69%), das escolas realizam eventos, que em muitas
ocasiões são realizados nas datas comemorativas do movimento negro, com é o caso do dia 20
de novembro ou nas semanas culturais das respectivas escolas.
Já na última variável “material didático”, o objetivo é saber se a escola possui livros
didáticos, jogos, contos, que abordassem o ensino étnico-racial, de forma clara, objetiva e sem a
visão eurocêntrica, o que era bastante recorrente em materiais antes da lei.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Gráfico 04: Material didático-pedagógico referente à ERER, 2016.

Fonte: Ministério Público do Paraná, 2016.

Pelalei o material destinado para o trabalho pedagógico desta temática não deverá ser
utilizado apenas em um determinado momento e sim todo o processo educacional da criança
e adolescente, entretanto apenas 2334 (68,8%) têm em seus acervos materiais que abordem
as questões raciais, mostrando uma imensa defasagem na aquisição de livros, jogos e outros
materiais que consigam abordar estas questões.

Conclusão

Após as discussões teóricas e análises dos dados é possível concluir que as questões
étnico-raciais na educação, ainda necessitam de uma atenção maior por parte dos órgãos públicos,
pois mesmo com a lei homologadas há 14 anos, muitas escolas não conseguiram se adaptar a
esta nova realidade, seja por negligencia ou por falta de infraestrutura.
Os dados mostraram que escolas paranaenses estão caminhando ao resultado esperado,
que seriam o cumprimento em todas as escolas, independente da rede de ensino (pública,
conveniada e particular), entretanto é necessário problematizar as formas utilizadas para cumprir
a determinação, o que na pesquisa de campo, não foi possível tal analise, pois os pesquisadores
tiveram o contato apenas com os dados, sendo obrigados a confiar apenas no que este prescrito
nos formulários entregue.
A ERER como foi colocada na lei, deverá ocorrer em todo o processo de ensino do discente,
em todos os conteúdos na educação básica, mas em muitas escolas, apenas as disciplinas de
história, geografia, artes e educação física tem trabalhos mais específicos da temática, enquanto
matemáticas a abordagem é bastante defasada. E muitas escolas consideram apenas a semana
cultural, pedagógica e o dia 20 de novembro como datas para trabalhar esses assuntos.
É preciso uma maior participação do poder público, de forma direta, através das secretárias

Página 632
municipais de educação (SME) e Secretária Estadual de Educação (SEED), em acompanhar a
manutenção dessas atividades nas escolas, de modo que compreendam a real intenção da lei
10.639/03, e não a façam apenas por ser obrigatório.

Referências

BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acessado em: 19 de março de 2017.

GUEDES, E.; NUNES, P.; ANDRADE, T. O uso da lei 10.639/03 em sala de aula. Revista Latino-
Americana de História. Vol. 2, nº. 6 – Agosto de 2013 – Edição Especial

LIMA, Fabiane Andréa da Silva Barcheski.LEI 10.639/03: SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA


UMA EDUCAÇÃO IGUALITÁRIA , 2010. Monografia. Universidade Estadual de Londrina,
Londrina, 2011. Disponível em http://www.uel.br/ceca/pedagogia/pages/arquivos/FABIANE%20
ANDREA%20DA%20SILVA.pdf>. Acessado em 19 de março de 2017.

KUSMA, Patrícia da Costa. A aplicabilidade da lei 10639/03 na sala de aula : possibilidades


e mudanças. Monografia, 2010. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de
Educação. Curso de Pedagogia: Ensino a Distância: Licenciatura.Porto Alegre, 2010. Disponível
em. <http://hdl.handle.net/10183/71891>. Acessado em 19 de março de 2017

PEREIRA. L. N. N. O ensino e a pesquisa sobre África no Brasil e a lei. Revista África e


Africanidades - Ano 3, n. 11, novembro, 2010.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

PDL – PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO DE JOVENS LIDERES:


EMPREENDEDORES SOCIAIS E PROMOTORES DE DIREITOS HUMANOS

DIAS, Cristiane (UNESC)


cris.dias@unesc.net

Resumo

O Projeto PDL Jovem tem o intuito de despertar os jovens para empreendedorismo social, a fim de
melhorar o ambiente de da geração atual e futura. Este projeto aconteceu em 15, 16, 17,18 de maio de
2017 na Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, no bloco XXI A, sala 15 com a participação
do Colégio CEDUP – Abílio Paulo, que trouxe quatro turmas de 1º ano do Ensino Médio/Técnico do
Curso de Administração, o projeto aconteceu em duas etapas:
1° etapa: Tipos de Liderança, nesta primeira etapa do projeto buscou-se despertar nos jovens de
ensino médio quais os tipos de liderança, com o intuito de refletir sobre o que é de fato ser um líder. Os
participantes puderam citar pessoas próximas de si, que consideram ter características de liderança,
os jovens mencionaram lideres: religiosos, comunitário, educacional, politico, familiar, empreendedor e
esportivo.
2° etapa: Empreendedorismo Social, no segundo período os participantes tiveram uma atividade
dinâmica, onde puderam colocar em pratica suas ideias, a fim de desenvolver negócios sociais. Neste
momento as equipes foram avaliadas por uma banca que usou critérios como: apresentação/proposta
de negocio e qual o impacto social, estes foram os pontos avaliados para escolher a melhor ideia social.
Para finalizar o ciclo do projeto participaram também alunos da Escola de Educação Básica Antônio
Colonetti da cidade de Içara.

Palavras-chave: Liderança. Comunidade. Jovem. Empreendedorismo Social.

Página 634
1 INTRODUÇÃO

Em se tratando da atual sociedade brasileira onde as desigualdades sociais crescem,


as riquezas naturais são finitas, o tempo urge. Por isso é imprescindível que haja pessoas
sensibilizadas e preparadas para liderar os processos de desenvolvimento e transformação que
a sociedade exige. Sabe-se também que estas transformações dependem de investimentos em
recursos financeiros e materiais. Porém, o fator decisivo para sua efetivação é o investimento em
recursos humanos, porque são pessoas que mobilizam recursos em prol de mudanças.
Neste sentido a definição de liderança que diz: “liderança é a habilidade de influenciar
pessoas para trabalharem entusiasticamente visando atingir objetivos comuns, inspirando
liderança por meio da força do caráter” (HUNTER, 2006).
O jovem precisa entender a importância do papel de se líder na sua comunidade e que sua
personalidade, suas escolhas, suas atitudes e seu caráter é que vão transformar suas intenções
em ações concretas que possibilitem mudança significativa no cenário em que a maioria deles de
encontram, pois ao assumir o papel de líder de uma comunidade este jovem estará assumindo uma
responsabilidade onde as ações positivas os afastarão deste cenário em que a vulnerabilidade
social e a falta de perspectivas de um futuro promissor é muito grande.
Sendo assim, o Programa de Desenvolvimento de Lideranças Jovens, tem como
objetivo causar a transformação do indivíduo e do seu meio, dando oportunidade aos jovens
das comunidades de mostrarem sua realidade, seus anseios e necessidades à sociedade e, em
contrapartida, a Universidade por meio do projeto lhes proporcionará vivencias, momentos que
possibilitem ampliar o conhecimento e desenvolverem sua habilidade de liderança, para que estes
se tornem agentes de mudança no meio onde vivem. Esta troca de experiências torna factual o
propósito de aliar a teoria à prática no processo de ensino e aprendizagem, com a participação dos
acadêmicos e professores na construção e execução do projeto.

2 OBJETIVOS

2.1 Geral
Capacitar crianças e adolescentes de escolas públicas como agentes promotores dos
direitos humanos, utilizando o empreendedorismo social como ferramenta de intervenção, visando
o fortalecimento dos vínculos comunitários.

2.1.2 Específicos

a) Elaborar material de divulgação do Programa PDL Jovem;


b) Organizar reuniões com lideranças comunitárias para auxiliar no processo de inscrições
dos jovens líderes;

Página 635
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

c) Realizar o lançamento do Programa PDL Jovem;


d) Preparar uma cartilha do PDL Jovem como material de apoio nas imersões;
e) Realizar a primeira fase (8h) das imersões;
f) Realizar a segunda fase (8h) das imersões.

3 LIDERANÇAS E CARACTERISTICAS

Após a explanação sobre os Tipos de Lideranças e a importância do desenvolvimento de


jovens lideres com o propósito de que o jovem perceba a importância do papel de ser líder na
sua comunidade e que sua personalidade, suas escolhas, suas atitudes e seu caráter é que vão
transformar suas intensões em ações concretas que possibilitem uma mudança significativa no
cenário em que a maioria deles se encontra, pois ao assumir o papel de líder de uma comunidade
este jovem estará assumindo uma responsabilidade onde as ações positivas os afastarão deste
cenário onde a vulnerabilidade social e a falta de perspectivas de um futuro promissor é muito
grande.
Foi proposto aos jovens participantes do projeto que citassem pessoas que tivessem
características de liderança, podendo se espelhar em pessoas famosas ou pessoas do seu
convívio social, pontuando quais as características que as tornam lideres, e porque escolheram.
Alguns “Lideres” foram citados de forma bastante expressiva, tais como: Barack Obama,
Adolf Hitler, Diretora Maristela, Professora Elis, Getúlio Vargas, Nelson Mandela, Princesa Isabel,
Técnico Tite, Tiradentes, Malala, Mary Parker Follette, Martinho Lutero, Martin Luther King, Taís
Araújo, Gandhi, Jesus Cristo, dentre outros, sendo que destes mencionados, alguns foram citados
com uma frequência maior.

Página 636
Figura 1 – Líderes mencionados

Fonte: Projeto de extensão (2017).

4 AVALIAÇÃO

Nesta segunda etapa os alunos participaram do momento que aborda o empreendedorismo


social. A fim de provocar a visão social de cada um deles. Propôs uma atividade com o proposito
de desenvolver um negócio social.

4.1 PARTICIPAÇÃO

Com relação à participação dos alunos do colégio CEDUP, pode-se dizer que em todos
os momentos foram participativos, interativos, colaborativos em todas as atividades proposta
para eles. Todos curiosos a cerca do empreendedorismo social, partiu dos alunos fazer perguntas,
questionamentos, contribuições, sempre demonstrando interesse pelo assunto abordado.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

4.2 COMPORTAMENTO
Tratando do comportamento em sua maioria pode-se dizer que são alunos educados, e
atenciosos aos pedidos de silencio, ou nos momentos de fala, todos comportados e obedientes.

4.3 APRESENTAÇÃO
No segundo momento foi proposta uma dinâmica em grupo para os alunos desenvolverem
um negócio social, que tivessem impacto social através da ferramenta canvas lin, a fim de provocar
o lado empreendedor social que existe em cada um. Esta atividade foi ministrada por voluntários
do Projeto de Extensão da Universidade – UNESC.

4.4. CEDUP TURMAS


Para que as atividades do projeto fossem realizadas, contou-se com a participação de quatro
turmas do ensino médio do Colégio CEDUP, totalizando 146 jovens, oportunizando momentos
diferenciados que os levaram a refletir sobre suas comunidades, a importância de ser um líder e ter
conhecimento do empreendedorismo social.

Figura 2 – Momentos do projeto

Fonte: Projeto de extensão (2017).

Página 638
Figura 3 – Momentos do projeto

Fonte: Projeto de extensão (2017).

5 CONCLUSÃO

Conclui-se que todos tiveram um momento de reflexão sobre o que é ser um líder e
empreendedorismo social, que de alguma forma podemos ajudar o próximo, mesmo que seja
pequena a ação, ou o movimento, pois já serve para ajudar as pessoas que estão em nossa volta,
comunidade ou cidade.
Acredita-se que esta ideia de quando se tornar um líder, deve-se também promover atos
sociais pela comunidade que carece de projetos sociais, podendo contribuir para a vida destes
necessitados, foi passada a mensagem para os participantes do ensino médio, que podemos
tornar este mundo melhor, a partir de nós.
Sendo assim, este projeto está em andamento, uma vez que já foi realizada a primeira etapa
com o público alvo que eram os jovens do ensino médio das escolas públicas. Dando continuidade
a este projeto, em agosto de 2017, titulando o evento como Divas Black, em que o público alvo é
meninas negras, com o objetivo de empoderá-las, e fomentar o desenvolvimento destas.

Referências

HUNTER, James C. Como se tornar um líder servidor: os princípios de liderança de o monge


e o executivo. Rio de Janiero: Sextante, 2006.

Página 639
EIXO 12: Segurança pública, violência
e racismo

O Mito da Democracia Racial tem sido um dos responsáveis pela impunidade


do racismo no Brasil, a violência urbana tem crescido alarmantemente e a
sociedade segue inerte aos acontecimentos. Por isso, esse eixo temático
acolhe pesquisas que analisam indicadores sociais que articulam violência
e racismo com desvantagem econômica, política, social e cultural para a
população negra, em especial o homem jovem negro. O Abandono do
Estado e a falta de políticas públicas em áreas de riscos sociais onde boa
parte da população negra reside não pode ser ignorado, como foco das
pesquisas, bem como a ideia do “elemento suspeito” tratado por Silvia Ramos
são cruciais a este debate. São imensuráveis os desafios para o combate
ao racismo diante da realidade política-social do país, com uma segurança
pública falida e despreparada às quais merecem
atenção nas discussões e pesquisas acadêmicas.
É fundamental para haver mudanças reais nesse
contexto serem firmadas parcerias, trocas de
experiência e aprimoramento das pesquisas.Por
fim, o sonho de consumo criado pelo atual sistema
político econômico e disseminado pelos meios de
comunicação tem colaborado diretamente para
este estado de discriminação e criminalidade.
VIOLÊNCIA ESCOLAR EM BELO HORIZONTE: DA GLÓRIA AO CAOS NO
LICEU.

OLIVEIRA, Paulo Tiego Gomes de. (UFMG)


ptiego@hotmail.com

Resumo

Resultado das primeiras imersões/discussões realizadas em tese de doutorado em Educação na


Universidade Federal de Minas Gerais, esse artigo visa identificar quais grupos étnico-raciais figuram
como vítimas e autores mais recorrentes de eventos de Defesa Social (crimes e contravenções) no
espaço escolar, em Belo Horizonte, especificamente, nos anos de 2014 e 2015. Lançando mão de
metodologia quantitativa, coletamos dados da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e os tabulamos
através da ferramenta estatística do Excel, Tabela Dinâmica, que permitem problematizar o fenômeno
na Capital mineira, especificamente em escolas da rede pública de ensino municipal e estadual, para
discorrer sobre as relações com a pratica e comportamento racista ou preconceituoso no espaço escolar.
A teoria que sustenta o trabalho é pautada nos estudos sobre raça, racismo, escola e preconceito racial,
além de legislação em vigor. Por fim, os dados nos permitem identificar, parcialmente, certa persistência
e até mesmo naturalização da violência racial, mesmo no ambiente escolar.

Palavras-chave: Ambiente escolar. Cútis. Preconceito. Sexo Biológico.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução
O tema dessa pesquisa é preconceito racial no ambiente escolar, sendo a delimitação
realizada em Belo Horizonte, nas escolas públicas estaduais e municipais do ensino médio, entre os
anos de 2014 e 2015. Cujo problema é saber qual o grupo étnico-racial mais vitimizado (é sabido
que existem algumas críticas no campo dos Direitos Humanos sobre o conceito de vitimização,
porque, segundo esse campo de estudo, ele expressaria ambiguidade ou que, de alguma forma,
remeteria à ideia de passividade na dinâmica da violência. Todavia, o termo deve ser entendido
nesse estudo como a situação em que o meio submete a pessoa diferente (negro e pardo) a uma
condição de submissão, violência e hierarquia) e autor mais recorrentes de eventos de Defesa
Social (crimes e contravenções) no espaço escolar, em Belo Horizonte, em 2014 e 2015.
Partindo da hipótese de que são os estudantes negros e pardos as maiores vítimas e
tendo por base o fato das inúmeras narrativas que a mídia divulga sobre a violência que ocorre em
ambientes escolares. Tal hipótese ganha repercussão quando observamos que em 2012, 56.000
(cinquenta e seis mil) pessoas foram assassinadas no Brasil e que trinta mil delas eram jovens
entre 15 a 29 anos e que desse total, 77% eram negros. Mesmo com alarmante constatação,
demostrada na frieza dos números, a questão não tem tido a pauta necessária na agenda pública
nacional (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015).
Segundo dados da Polícia Civil de Minas Gerais, depois de registrar queda entre 2011 e
2013, os crimes de racismo voltaram a subir e somaram 326 (trezentas e vinte e seis) denúncias
em 2015. Os 147 (cento e quarenta e sete) crimes denunciados em 2013 resultavam em uma
média de um delito a cada 60 horas. Com a elevação em 2015, os registros passam para 27 (vinte
e sete) crimes por mês, quase um por dia.
Com base em tais dados e questionamentos, objetiva-se investigar quais foram às vítimas
e autores de violência mais recorrentes de crimes cometidos em escolas da rede pública de Belo
Horizonte em 2014 e 2015.
A metodologia foi construída com base na obtenção do banco de dados de registros
policiais, Reds, da PMMG nos anos em destaque na pesquisa. Feito isso, os dados foram tabulados
na ferramenta estatística Tabela Dinâmica, do software Excel do Microsoft Office 2013. Tal
ferramenta permitiu construir gráficos para visualizar o cenário em pesquisa.
Expõe-se que existe uma constante discordância em torno dos termos que melhor podem
representar grupos, pessoas ou etnias negras. Isso ocorre, por exemplo, porque entre “autores,
intelectuais e militantes com perspectivas teóricas e ideológicas diferentes não há consenso, e
isso se agrava a depender da área do conhecimento e do posicionamento político dos mesmos”,
Gomes (2012). Para os fins propostos nessa pesquisa, o termo negro será utilizado na perspectiva
de Santos (2002):
(...) a diferença entre pretos e pardos no que diz respeito à obtenção de vantagens sociais
e outros importantes bens e benefícios (ou mesmo em termos de exclusão dos seus
direitos legais e legítimos) é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los
numa única categoria, a de negros, uma vez que o racismo no Brasil não faz distinção
significativa entre pretos e pardos, como se imagina no senso comum (SANTOS, 2002,

Página 642
p.13).

Parece-nos justo agregarmos pretos e pardos para formarmos, tecnicamente, o grupo racial
negro, visto que a situação destes dois últimos grupos raciais é, de um lado, bem semelhante, e, de
outro lado, bem distante ou desigual quando comparada com a situação do grupo racial branco.

1 Categorias de estudo

Dos registros policiais foram extraídas as categorias, ‘Masculino e Feminino”, além da


classificação de cútis, que foi construída com base na metodologia do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), sendo: Albino, Amarelo, Branco, Negro e Pardo. Por fim, apresentam-
se, ainda, o período de vida dos envolvidos (grupos por faixa etária).

2 Quem são os agressores?

Aqui buscamos apontar quem são os agressores dos atos violentos. Antes, pontua-se
que atos violentos devem ser entendidos aqui como práticas que atingem outra pessoa física,
psicológica e moralmente, não estando restrita a primeira causa. Da mesma forma, agressores
devem ser entendidos como os autores dessas práticas, não se restringindo somente àquelas
pessoas da violência física.

Para responder quem são os agressores, o gráfico 1, abaixo, foi elaborado com o fito de
ilustrar estatisticamente os envolvidos em eventos de Defesa Social, retratando a representação
social dividida por sexo e cút
GRÁFICO 1:
Registros em Belo Horizonte, agrupados por autor e vítima, por cútis e sexo biológico em
2014/2015.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O gráfico nos permite apontar que os agressores (autores) somam 24.994 (vinte e quatro
mil novecentas e noventa e quatro), independente de sexo e cútis, quase que havendo uma
proporcionalidade entre autores e vítimas. Em sua maioria são do sexo masculino (17.256) com
destaque para pessoas de cor parda, mas se somados negros e pardos representam 13.004 ou
mais de 75% da autoria de todos os delitos. Tal apontamento esbarra naquilo que é tido como
especulação dentro do cenário da violência urbana, onde as pessoas acabam crendo que, uma
população determinada parece ser o grande foco das atenções:
O jovem pobre, negro, do sexo masculino constitui um “tipo ideal” de criminoso no
imaginário social da sociedade contemporânea. Nesse processo social de criminalização,
observa-se a construção de uma base legítima para o aumento de repressão e violência
com relação a esta população (ALMEIDA, 2016).

Se os dados apontam que a população de pardos e negros, são àqueles que figuram como
maiores agressores de atos repudiados socialmente, situação que não vamos nos aprofundar, mas
que encontram respaldo nos dados apresentados parece-nos que surge uma outra hipótese (que
pode ser mais bem trabalhada futuramente): a de que essa população pode não só ser a mais
vitimizada, mas é também a que mais age no cenário social como autores de eventos de Defesa
Social. Contudo, assevera-se: isso não significa que concordamos com tal argumento e surge como
uma hipótese muito incipiente nesse momento. Fato é que a juventude negra tende a ser encarada
de forma estereotipada por nossa sociedade e suas instituições, inclusive as educacionais.

3 Quem são as vítimas?

Antecipando, verifica-se, certa tendência de que as vítimas sejam pessoas do sexo


feminino (condição biológica e não de gênero, conforme já exposto acima), mas o mesmo não se
pode afirmar, sem dúvidas, quanto a serem elas pessoas de cútis pardos e negros, pois há uma
similaridade quando comparadas somente brancos (7.635) e pardos (7.541).
De acordo com o gráfico acima, o número de vítimas envolvidas em registros policiais nos
anos de 2014 e 2015, em Belo Horizonte, separados por cor de pele (cútis) e sexo (biológico),
agrupados apresentam expressivos 26.390 (vinte seis mil trezentos e noventa) pessoas como
vítimas de delitos em ambientes escolares. Sendo que desse total, (16.541) são do sexo feminino,
sendo que tantas pessoas brancas quanto negras registram números próximos. Todavia, se
somados negros e pardos representam 8.825 ou pouco mais de 50% das vítimas.

4 Análises dos dados: primeiras impressões.

Nesta seção são apontados os dados referentes a 2014 e 2015, através de um gráfico para
cada ano. É possível, uma breve comparação entre os períodos em análise e discutir os resultados

Página 644
demonstrados pelos dados em cada ano.

GRÁFICO 2:
Registros em Belo Horizonte, agrupados em autor e vítima,
por cútis e sexo biológico em 2014.

Fonte: Criação do autor, 2016.

Conforme o gráfico 2, podemos apontar que em 2014 foram 2.214 (dois mil duzentos e
quatorze) autores brancos do sexo masculino, enquanto que autores do sexo feminino somam
1.233 (um mil duzentos e trinta e três). Já os autores pardos do sexo masculino representam 5.096
(cinco mil e noventa e seis) contra apenas 2.231 (dois mil duzentos e trinta e um) do sexo feminino.
Quando agrupados pardos e negros do sexo masculino, temos a expressiva soma de 6.770 (seis
mil setecentos e setenta) pessoas e apenas 2.971 (dois mil novecentos e setenta e um) quando
considerando o sexo feminino também agrupado.
Considerando que todos os valores apontados aqui se referem apenas aos autores,
havendo mudança apenas do sexo biológico e da cútis, qualquer que seja a variável, o número de
agentes do sexo masculino é bem superior ao de agentes do sexo feminino, sendo certo que entre
pardos e pardos e negro, o valor de envolvidos do sexo masculino é mais que o dobro do feminino.
Infere-se, conforme apontam os dados, que há certa tendência de que agentes pardos e negros
do sexo masculino figurem com mais frequência como autores de eventos de Defesa Social em
situações envolvendo ambientes escolares.
Ainda, de acordo com o gráfico 2, podemos apontar que em 2014 foram 1.950 (um mil
novecentos e cinqüenta) vítimas brancas do sexo masculino, enquanto que vítimas do sexo
feminino somam 4.086 (quatro mil e oitenta e seis). Já as vítimas pardas do sexo masculino
representam 2.626 (dois mil seiscentos e vinte e seis) contra 3.890 (três mil oitocentos e noventa)
do sexo feminino. Quando agrupados pardos e negros do sexo masculino temos a soma de 3.139
(três mil cento e trinta e nove) pessoas e 4.561 (quatro mil quinhentos e sessenta e um) quando
considerando o sexo feminino.
Considerando que todos os valores apontados aqui se referem às vítimas, havendo

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Negras e negros no Sul do Brasil
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mudança apenas do sexo biológico e da cútis, em todas as variáveis, o número de vítimas do


sexo feminino é bem superior ao do sexo masculino, sendo sempre o dobro do número de vítimas
masculinas em todas as possíveis variáveis em estudo. Conforme apontam os dados, há certa
tendência de que as vítimas sejam predominantemente do sexo feminino, independente de cútis.
Todavia, pessoas de cútis branca e do sexo feminino figuram como as vítimas mais contumazes
(somam 4.086 pessoas).

GRÁFICO 3:
Registros em Belo Horizonte, agrupados em autor e vítima,
por cútis e sexo biológico em 2015.

Fonte: Criação do autor, 2016.

O gráfico 3 nos apresenta dados por sexo biológico e cútis sendo, ainda, dividido por autores
e vítimas através de um gráfico. Podemos apontar que em 2015 foram 1.973 (um mil novecentos e
setenta e três) autores brancos do sexo masculino, enquanto que autores do sexo feminino somam
1.008 (um mil e oito) pessoas. Já os autores pardos do sexo masculino representam 4.736 (quatro
mil setecentos e trinta e seis) e apenas 1.887 (um mil oitocentos e oitenta e sete) do sexo feminino.
Quando agrupados pardos e negros do sexo masculino, temos a expressiva soma de 6.234
(seis mil duzentos e trinta e quatro) pessoas e apenas 2.502 (dois mil quinhentos e dois) quando
considerando o sexo feminino.
Em todas as situações, o número de agentes do sexo masculino é bem superior ao de
agentes do sexo feminino, sendo certo que entre pardo e pardo e negro masculino o valor de
envolvidos do sexo masculino é mais que o dobro do feminino. Se observarmos brancos do sexo
masculino esse valor é quase que o dobro também. Infere-se, conforme apontam os dados, que há
certa tendência de que agentes pardos e negros do sexo masculino figurem com mais frequência
como autores de eventos de Defesa Social nas dimensões que aqui se analisa.
Segundo o mesmo gráfico, apontamos que em 2015 foram 1.842 (um mil oitocentos e
quarenta e dois) vítimas brancas do sexo masculino, enquanto que vítimas do sexo feminino somam
3.549 (três mil quinhentos e quarenta e nove). As vítimas pardas do sexo masculino representam
2.400 (dois mil seiscentos e vinte e seis) e 3.651 (três mil seiscentos e cinqüenta e um) do sexo

Página 646
feminino. Quando agrupados pardos e negros do sexo masculino, temos a soma de 2.874 (dois mil
oitocentos e setenta e quatro) pessoas e 4.264 (quatro mil duzentos e sessenta e quatro) quando
considerando o sexo feminino.
Considerando que todos os valores apontados aqui se referem às vítimas, havendo
mudança apenas do sexo biológico e da cútis, em todas as três categorias, o número de vítimas
do sexo feminino é bem superior ao do sexo masculino. Conforme apontam os dados, há certa
tendência de que as vítimas sejam predominantemente do sexo feminino, independente de cútis.
Todavia, pessoas de cútis parda, independente de sexo, quando agrupados, são as vítimas mais
contumazes (somam 6.051 pessoas).
O gráfico 4, abaixo, é a representação de distribuição das pessoas envolvidas em eventos
de Defesa Social, divididos por sexo biológico e cútis. Optou-se por agrupar os dados de 2014
e 2015 em um só, pois antes da construção gráfica verificou-se que havia certa tendência dos
registros serem similares, ainda que em anos distintos. Expõe-se que se optou, também, por não
fazer distinção entre autores e vítimas, pois entre esses, também, verificaram-se similaridades.
Ademais, o que nos interessa saber é como se distribuem a participação etária, sendo esse o foco
maior nesse momento.
FIGURA 6:
Distribuição de registros, em Belo Horizonte, agrupados por cútis,
sexo biológico e período de vida em 2014 e 2015.

Fonte: Criação do autor, 2016.

Observando-se a distribuição de envolvidos temos que a maior parte deles concentra-se

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na população de adolescentes (não se considerando sexo e cútis, mas tão somente o período de
vida), que somam juntas 28.360 (vinte oito mil trezentas e sessenta) pessoas. Se considerarmos
somente a cútis, o maior número de pessoas envolvidos reside na cor parda. Todavia, também
é muito expressiva ao se considerar a cútis parda para o sexo masculino, perfazendo-se o total
de 14.858 (quatorze mil oitocentos e cinquenta e oito) pessoas, sendo essa, também, a maior
população de envolvidos dentre as demais categorias observadas. Em segundo lugar temos a
população de adultos com 19.248 (dezenove mil duzentos e quarenta e oito) pessoas, não se
considerando sexo e cútis, mas tão somente o período de vida, mas quando essas duas categorias
(sexo e cútis) são consideradas, ainda assim, a população de cútis parda também é a maior.
Para o sexo feminino, dentro dos adultos, temos o maior número de pessoas na população
de cútis branca (9.876). Podemos inferir que o maior número de pessoas envolvidos está na
população de adolescentes, seguida da população de adultos e crianças. Se adicionarmos o
quesito cútis, pessoas pardas aparecem em primeiro lugar, seguida da população de cútis branca
e, em terceiro, a população de cútis negra, indiferente do sexo. A população de albinos e amarelos
tiverem registros pouco expressivos quando comparados com as demais categorias em análise.
Diante desses dados, segundo Munanga (1994 p.187), o debate que transpõe algumas
barreiras Brasil afora é decorrente de questões que gravitam em torno da identidade dos
sujeitos, pois “a tomada de consciência de um segmento étnico-racial excluído da participação
na sociedade, para a qual contribuiu economicamente, com trabalho gratuito como escravo, e
também culturalmente, em todos os tempos na história do Brasil”.
A discussão sobre raça e racismo no Brasil e seus muitos efeitos cotidianos em nossa
sociedade perpassa não só gerações, mas encontra desafios constantes na busca de legitimidade
e reconhecimento. Compreender a dinâmica que se constrói no ambiente escolar diante de atos
infracionais e criminais que ocorrem na escola, revela que a questão étnica- racial é impactante
nesse cenário e demarca indivíduos em razão da violência oriunda do preconceito racial.
(...) Essa violência contra a escola deve ser analisada junto com a violência da
escola: uma violência institucional, simbólica, que os próprios jovens suportam através
da maneira como a instituição e seus agentes os tratam (modos de composição das
classes, de atribuição de notas, de orientação, palavras desdenhosas dos adultos, atos
considerados pelos alunos como injustos ou racistas) (Charlot, 2002, p.434-435).

Para o autor há que se fazerem distinções entre os atos violentos que ocorrem na seara do
espaço escolar. Desta forma, seria possível discernir que ações seriam mais aptas a criar soluções.
Para cada tipo de violência (verbal, física ou simbólica) a ação que se espera é variada, não sendo
engessada, visto que é um fenômeno multifacetado da dinâmica que se impõe nesse cenário
social.
Parece-nos que “diante dessas representações e estigmas, o jovem tende a ser visto na
perspectiva da falta, da incompletude, da irresponsabilidade, da desconfiança, o que torna mais
difícil para a escola perceber quem ele é de fato, o que pensa e é capaz de fazer” (DAYRELL,
2007, p.1117). Tratando-se de uma pesquisa realizada em escolas públicas, em uma sociedade

Página 648
tão diversa como é a brasileira, lidar com a diferença tem sido cada vez mais urgente, pois o
racismo, sendo uma definição conceitual complexa, tende a ser abordado a partir da perspectiva
que consiste em por brancos de um lado e negros de outro.

Conclusão

Os dados apresentados, ainda que iniciais na discussão proposta na tese em elaboração,


nos permitem apontar que os crimes registrados oficialmente, revelam que os agressores (autores)
em sua maioria são do sexo masculino com destaque para pessoas de cor parda, mas se somados
negros e pardos representam mais de 75% da autoria de todos os delitos. Tal apontamento esbarra
naquilo que tido como especulação dentro do cenário da violência urbana, onde as pessoas acabam
crendo que, uma população determinada parece ser o grande foco das atenções: a causadora, por
assim dizer. Infere-se, conforme apontam os dados, que há certa tendência de que agentes pardos
e negros do sexo masculino figurem com mais frequência como autores de eventos de Defesa
Social em situações envolvendo ambientes escolares.
O número de vítimas envolvidas em registros policiais nos anos de 2014 e 2015, em Belo
Horizonte, separados por cor de pele (cútis) e sexo (biológico), agrupados apresentam expressivos
26.390 (vinte seis mil trezentas e noventa) pessoas como vítimas de delitos em ambientes
escolares. Sendo que desse total, (16.541) são do sexo feminino, e tanto pessoas brancas quanto
negras registram números próximos. Todavia, se somados, negros e pardos representam 8.825 ou
pouco mais de 50% das vítimas. Considerando que todos os valores apontados aqui se referem
às vítimas, havendo mudança apenas do sexo biológico e da cútis, em todas as três categorias, o
número de vítimas do sexo feminino é bem superior ao do sexo masculino.
Logo, podemos observar que temos uma maioria de agressores composta por negros e
pardos e uma maioria de vítimas formada também por esses grupos. Entretanto, é notório que há
certa tendência de que as vítimas sejam pessoas do sexo feminino (condição biológica e não de
gênero), mas não se pode afirmar o mesmo quanto a serem pessoas de cútis pardos e negros, pois
há uma similaridade quando comparadas somente brancos (7.635) e pardos (7.541).
Podemos inferir que o maior número de pessoas envolvidos está na população de
adolescentes, seguida da população de adultos e crianças. Se adicionarmos o quesito cútis,
pessoas pardas aparecem em primeiro lugar, seguida da população de cútis branca e, em terceiro, a
população de cútis negra, indiferente do sexo. A população de albinos e amarelos tiverem registros
pouco expressivos quando comparados com as demais categorias em análise.
Se os dados apontam que a população de pardos e negros, são aqueles que figuram como
maiores agressores de atos repudiados socialmente parecem-nos que surge outra hipótese (que
pode ser mais bem trabalhada futuramente): a de que essa população pode não só ser a mais
vitimizada, mas é também a que mais age no cenário social como autores de eventos de Defesa
Social. Assevera-se: isso não significa que concordamos com tal argumento e surge como uma
hipótese muito incipiente nesse momento. Fato é que a juventude de negros tende a ser encarada

Página 649
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de forma estereotipada por nossa sociedade e suas instituições, inclusive as educacionais.


Compreender a dinâmica que se constrói no ambiente escolar diante de atos infracionais e
criminais que ocorrem na escola, revela que a questão étnica- racial é impactante nesse cenário e
demarca indivíduos em razão da violência oriunda do preconceito racial.
Finalmente, estudar, conhecer e consolidar o entendimento sobre a existência de diferenças
entre as pessoas seja de gênero, de classe social, religião ou raça são aspectos que dialogam em
torno da esfera de aceitar as diferenças e ao se imergir em tal discussão, será possível enfrentar
o racismo e o preconceito alinhando ideologicamente as concepções de justiça, liberdade,
dignidade, democracia e igualdade social, resgatando valores éticos que tornam a sociedade um
espaço de manifestação do equilíbrio social, onde saber lidar com a diferença e em mundos, até
então desconhecidos, será coisa do passado.

Referências

ALMEIDA. Bruna Gisi Martins de. Medo do Crime e


Criminalização da Juventude. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/
conteudo/conteudo.php?conteudo=294>. Acesso 28 jun 2017.

ANISTIA INTERNACIONAL. Jovem negro vivo. 2015. Disponível em: https://anistia.org.br/


campanhas/jovemnegrovivo/ Acesso em: 28 dez 2015.

DAYRELL, Juarez. A escola “faz” juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil.


In: Educação e sociedade. Campinas, vol.28, n.100- Especial, p. 1.105-1.128, out.
2007.

CHARLOT, B. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão.


Sociologias, Porto Alegre, n.8, p. 432-443, 2002.

SANTOS, Sales Augusto dos. Ação Afirmativa ou a Utopia Possível: o perfil dos professores e
dos pós-graduandos e a opinião destes sobre ações afirmativas para os negros ingressarem nos
cursos de graduação da UnB. Relatório Final de Pesquisa. Brasília: ANPEd/2° Concurso Negro e
Educação, mimeo, 2002.

MUNANGA, Kabengele. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os


discursos antirracistas no Brasil. In: SPINK, Mary Jane Paris(Org.). A cidadania em construção:
uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, p. 177-187, 1994.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais
no Brasil: uma breve discussão. 2012. Disponível em:
<http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Alguns-termos-e-
conceitos-presentes-no-debate-sobre-Rela%C3%A7%C3%B5es-Raciais-no-Brasil-uma-
breve-discuss%C3%A3o.pdf. > Acesso 23 abr 2016.

Página 650
EIXO 13: Negros(as), ciências exatas e
tecnológicas

O eixo temático acolhe pesquisas que abordem a participação de negras e


negros no campo das Ciências Exatas e Tecnológicas e o legado científico e
tecnológico afro brasileiro e africano para o conhecimento universal.
Negras e negros no Sul do Brasil
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EDUCAÇÃO E RACISMO AMBIENTAL EM FOCO

NASCIMENTO, Carolina Cavalcanti do.1 (UFSC)


carolinacnpq@gmail.com

Resumo

Na presente comunicação pretendo discutir algumas implicações da ciência e da tecnologia na


reprodução de desigualdades sociais. Apresento uma proposta pedagógica que possibilita a articulação
entre a Educação Científica e Tecnológica e a Educação Ambiental, considerando as demandas das
Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Ensino de História e Cultura Afro-
Brasilera e Indígena. Parto do pressuposto da necessária articulação entre dois fenômenos sociais: a
crise ambiental. e as desigualdades raciais. Assim sendo, abordo inicialmente uma articulação teórica
entre a perspectiva da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e a problemática ambiental e, em seguida,
problematizo as diferentes maneiras que a crise ambiental vem marcando de forma desproporcional
grupos étnico-raciais historicamente desfavorecidos, em especial povos indígenas e afrodescendentes
– configurando o que se entende por Racismo Ambiental. Além dessa proposição teórica, aponto para
a necessidade de fomentar práticas pedagógicas que atinjam a interface entre a Educação Científica e
Tecnológica e a Educação Ambiental, considerando os aspectos étnicos-culturais na relação entre os
sujeitos e o meio ambiente, especificamente as diferentes relações com a água e as consequências de
sua escassez, poluição e má distribuição entre as populações. Neste sentido, apresento o projeto “Sobre
a Face das Águas”, desenvolvido em 2016 pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
e subsidiado pelo Projeto Água do Programa de Apoio à Produção de Material Didático para a
Educação Básica – uma parceria entre a Agência Nacional das Águas (ANA) e Coordenadoria de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Palavras-chave: Desigualdades Raciais, Educação Ambiental, CTS.

1 Bolsa Doutorado do CNPq – Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica.

Página 652
Introdução

Os problemas socioambientais, identificáveis nos níveis local, regional e nacional,


constituem expressões localizadas de uma crise planetária - pobreza, poluição, escassez de
recursos naturais renováveis e não renováveis, extinção de espécies, alterações climáticas, etc. Tal
cenário está intimamente atrelado ao viés que atribuiu ao homem a tarefa de dominar e explorar a
natureza – perspectiva evidenciada no processo de industrialização2. Neste processo, a ciência e
a tecnologia (C&T) foram vistas como sinônimos de progresso e salvadoras de todos os possíveis
problemas. No entanto, o tempo foi revelando outras facetas:
Está cada vez mais evidente que a exploração desenfreada da natureza e os avanços
científicos e tecnológicos obtidos não beneficiaram a todos. Enquanto poucos ampliaram
potencialmente seus domínios, camuflados no discurso sobre a neutralidade da C&T e
sobre a necessidade do progresso para beneficiar as maiorias, muitos acabaram com
os seus domínios reduzidos e outros continuam marginalizados, na miséria material e
cognitiva3.

Dessa forma, assim como a ciência e a tecnologia não trouxeram o prometido benefício a
todos, houve ainda a intensificação da degradação ambiental, trazendo enormes consequências
negativas a grupos específicos. Esta configuração de desigualdades em relação aos impactos
socioambientais gerados pela exploração desenfreada da natureza, associados aos “avanços”
enviesados da C&T, constitui o que vem sendo reconhecido como Injustiça Ambiental, entendida
como:
Mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social,
destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de
baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros
operários, às populações marginalizadas e vulneráveis4

Em contraposição, a ideia de Justiça Ambiental aparece como o conjunto de princípios que


asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma
parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, de
políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como resultantes da ausência ou omissão
de tais políticas. Além disso, é a busca do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas
as pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem ou renda, no que diz respeito à elaboração,
desenvolvimento, implementação e reforço de políticas, leis e regulamentações ambientais5.
O movimento por Justiça Ambiental nos Estados Unidos tem dois momentos de criação: em
1978, com Love Canal, quando uma comunidade de famílias de operários (brancos) da indústria
elétrica, no Niagara Falls, descobriu-se vivendo em cima de um aterro de resíduos tóxicos, e

2 NASCIMENTO, 2013.
3 ANGOTTI, AUTH, 2001, p.16.
4 O referido conceito consta no “Manifesto de Lançamento” da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível
em <http://www.mma.gov.br/destaques/item/8077>.
5 BULLARD, 1990; ACSELRAD, 2004; HERCULANO e PACHECO, 2006.

Página 653
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

passou a lutar por indenizações, por tratamento médico, e pelo direito à informação sobre seu local
de vida, constituindo-se em coalizão de moradores que, a seguir, deu forma ao Center for Health
and Environmental Justice (Centro por Saúde e Justiça Ambiental); e em 1982, com a revolta
da população negra contra um depósito de rejeitos químicos em Warren County, na Carolina do
Norte, o Movimento Negro passou a utilizar a expressão Racismo Ambiental6.
O conceito “racismo ambiental” se refere a qualquer política, prática ou diretiva que afete
ou prejudique, de formas diferentes, voluntária ou involuntariamente, a pessoas, grupos
ou comunidades por motivos de raça ou cor. Esta ideia se associa com políticas públicas
e práticas industriais encaminhadas a favorecer as empresas impondo altos custos às
pessoas de cor. As instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares
reforçam o racismo ambiental e influem na utilização local da terra, na aplicação de normas
ambientais no estabelecimento de instalações industriais e, de forma particular, os lugares
onde moram, trabalham e têm o seu lazer as pessoas de cor7.

Estas definições têm seus valores na discussão sobre as desproporcionalidades das


consequências ambientais negativas entre diferentes populações. No entanto, enquanto a
perspectiva de Justiça Ambiental possui o viés de classes - considerando seu sujeito como
minoria e tendo foco no objeto e no processo da disputa, no conflito em si (argumentação próxima
ao marxismo) – a perspectiva do Racismo Ambiental faz uma crítica à inferiorização racial e social
– referindo-se à maioria (os pobres, vistos preconceituosamente como raça inferior) e focando nos
sujeitos coletivos, nos valores e na ética8. No entanto, não cabe aqui empreender esforços para
aferir o grau de importância de um conceito em relação a outro e, muito menos, julgar os níveis de
impactos sofridos entre as populações negra e indígena e a população branca e pobre, também
excluídas socialmente.
No Brasil, o Racismo Ambiental diz respeito “às injustiças sociais e ambientais que recaem
de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas”9. Esse racismo praticado no país, inclui
os que ocorrem no campo da conservação da natureza, em que grupos étnicos em estado de
vulnerabilidade são removidos, expulsos e descartados de seus territórios de origem, pertencimento
e identidade por ações de governos, que reterritorializam nos mesmos espaços de uso tradicional
empresas capitalistas (para atender ao mercado, ao desenvolvimentismo e à modernização do
país) ou unidades de conservação da natureza (para a preservação da diversidade biológica,
recreação em contato com a natureza e pesquisa científica)10.
Outros casos ilustrativos envolvem os índios kaiowás e guaranis de Mato
Grosso do Sul, que há 200 anos sofrem com os diversos processos de ocupação
de seu território empreendidos pelo Estado brasileiro, e o caso dos povos de
santo e comunidades de terreiros envolvendo o Parque Nacional da Tijuca (PNT),
no Rio de Janeiro, compostos por comunidades religiosas de matrizes africanas
(como o candomblé e a umbanda), cuja presença é registrada na região desde
o século XVII e que têm seu acesso às áreas da unidade restrito ou mesmo

6 HERCULANO, 2006.
7 BULLARD, s.d., p.01.
8 HERCULANO, 2006.
9 HERCULANO; PACHECO, 2006, p. 25.
10 COSTA, 2011.

Página 654
impedido devido às práticas religiosas que realizam, sofrendo discriminação e
constrangimentos diversos11.

Os processos de urbanização e metropolização também foram fatores que contribuíram


para esta exclusão racial que afetaram consideravelmente ritos e práticas das religões de matriz
africana, como o Candomblé - caracterizada pela interação do indivíduo com o seu meio natural,
do ser humano com seus deuses e a energia cósmico dos quatro elementos básico: água, terra,
fogo e ar12.
Com o processo de metropolização, os terreiros perderam espaços, tanto
geográficos quanto físicos, e tiveram que se adaptar aos avanços do ponto de vista
sociopolítico e espacial, às dimensões exíguas e à fragmentação dos espaços que
dificultam a habitação e vida coletiva, comunitária, e às dificuldades no que se refere à
água potável, ao alimento puro sem transgenia ou agrotóxicos, nos moldes exigidos pela
naturalidade do espaço rural como as minas, o ar puro, a mata, os rios limpos, a terra, e
não o asfalto e a calçada. Isso sem contar que a redução e adaptação dos espaços são,
na verdade, formas de sobrevivência e de luta para reorganizar uma tradição milenar nos
moldes da urbanização13.

Neste sentido, apresento uma proposta pedagógica que possibilita a articulação entre
a Educação Científica e Tecnológica e a Educação Ambiental, considerando as demandas das
Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Ensino de História e Cultura
Afro-Brasilera e Indígena para a superação da Injustiça e do Racismo Ambiental.

1 Sobre a face das águas

O Projeto “Sobre a Face das Águas” foi desenvolvido no âmbito da articulação entre a
Educação Científica e Tecnológica e a Educação Ambiental, tendo como resultado um conjunto
de propostas pedagógicas que buscam considerar aspectos culturais nas relações com as águas.
Tais propostas constituem um material paradidático, sob a forma de um livro digital, denominado
Sobre a Face das Águas: uma fonte de inspiração pedagógica sobre o tema agua.
No segundo semestre de 2015, foi lançado o Edital ANA-CAPES/DEB Nº18/2015,
subsidiado pelo “Programa de Apoio à Produção de Material Didático para a Educação Básica -
Projeto Água”. O objetivo do edital foi fomentar a produção de material didático para a educação
básica sobre o tema “Água”, para ser utilizada no Ensino Fundamental II e no Ensino Médio,
disponibilizado em forma de mídias e adaptáveis para uso em repositórios online e/ou em rádio,
TV, internet, dispositivos móveis (tablets e celulares). Entre as exigências do edital, em relação aos
projetos aprovados estavam: ser desenvolvido, preferencialmente, por uma equipe multidisciplinar;
ter como referência os conteúdos elencados nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs do

11 COSTA, 2011, p. 114.


12 IYAGUNÃI, 2011.
13 IYAGUNÃ, 2011, p. 23

Página 655
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Meio Ambiente, onde situa a discussão sobre o tema “Água”; ter um caráter interdisciplinar; e
testar o material didático produzido14.
O Projeto “Sobre a Face das Águas”, submetido pela Universidade do Estado de Santa
Catarina, contou com a Coordenação Institucional da Profª Drª. Isabel Cristina da Cunha15 e teve
vigência entre os meses de janeiro e dezembro de 2016. O objetivo central foi produzir um material
paradidático de hipertexto no formato de e-Pub16, contendo textos informativos, formativos e
trabalhos artísticos que auxiliassem na reflexão sobre as diferentes relações do ser humano com a
água, por meio de atividades pedagógicas voltadas, tanto para a aprendizagem sobre a importância
da água e do seu uso sustentável, quanto para os conteúdos disciplinares associados ao tema.
O projeto buscava elaborar um material didático interativo, dinâmico e acessível que
possibilitasse, aos professores e às professoras do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio;
integrar a discussão sobre a importância e o uso sustentável da água aos seus conteúdos
curriculares; articular as diferentes manifestações artísticas e culturais com o tema “água” às
atividades pedagógicas de mediação de aprendizagem; e sensibilizar e problematizar as relações
do ser humano com a água, considerando o contexto temporal e territorial de diferentes grupos
étnico-culturais17.
As manifestações artísticas e culturais estão muito mais acessíveis hoje em dia e podem ser
utilizadas com viés pedagógico, se estiverem ao alcance do professor e da professora enquanto
recurso didático. Elas, por si mesmas, trazem informações e geram sentimentos que auxiliam na
formação do sujeito; porém, este potencial pode ser fomentado na medida em que se propõem
objetivos de aprendizagem associados a essas informações e emoções18. No sentido de estimular
a relação sustentável com os recursos de bem comum como, por exemplo, a água, cabe à Educação
Científica e Tecnológica e à Educação Ambiental o compromisso com a formação do sujeito, tanto
no âmbito racional, pragmático, quanto no âmbito ético e moral – estimulando a superação da
relação utilitarista que temos com os elementos e os fenômenos da natureza.
A preocupação com a relação ser humano-água vai desde a sua (in)disponibilidade e
qualidade, até a percepção dos aspectos éticos-afetivos envolvidos nesta mesma relação. A
construção de uma percepção própria, autônoma e emancipatória da relação com a água não
pode ser algo indutivo, maquineista - no sentido de determinar o que é certo e errado, ditando
comportamentos adequados que nós, enquanto adultos, também temos dificuldades em praticar.
Portanto, torna-se fundamental associar a água com as diferentes manifestações culturais, visando
sensibilizar sobre as relações do ser humano com a água, por meio de atividades pedagógicas
problematizadoras.

14 ANA-CAPES, 2015.
15 Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Centro de
Educação a Distância da Universidade do Estado de Santa Catarina.
16 Existem diversas formas para a leitura de e-books, smartphones ou softwares. No entanto, nem todo aparelho
ou aplicativo suporta todas as extensões dos e-books. Entre as vantagens da utilização do e-Pub, estão o acesso a
conteúdos em diversos dispositivos e a fácil adaptação do texto a cada tela de qualquer dispositivo (DAQUINO, 2010).
17 DA CUNHA, 2015.
18 Idem.

Página 656
Nesta perspectiva, com diferentes dimensões e aspectos, muitos autores, autoras,
educadores e educadoras têm sugerido e experimentado uma aproximação da educação com
a arte, trazendo, na maioria das vezes, elementos de linguagens artísticas às práticas educativas.

1.1 Do projeto ao livro

O desenvolvimento dos trabalhos envolvidos na produção do livro Sobre a Face das Águas:
uma fonte de inspiração pedagógica sobre o tema água foi estruturado através de um conjunto,
em parte simultâneo e em parte sucessivo, de etapas processuais:
- Pesquisa, seleção e/ou produção de obras artísticas e manifestações culturais (desenhos,
pinturas, fotografias, músicas, filmes, esculturas, instalações, contos, poemas, crônicas...),
relacionadas com o tema Água;
- Elaboração das propostas pedagógicas a partir dos materiais selecionados, considerando
os princípios e metodologias da Educação Ambiental;
- Avaliação e contribuição (teórica e metodológica) de especialistas - professores(as) e
pesquisadores(as) – considerando aspectos conceituais disciplinares (áreas envolvidas: arte,
geografia, história, sociologia, filosofia, língua
portuguesa e literatura, inglês, matemática, biologia, oceanografia, espiritualidade e
religiões);
- Inserção das contribuições dos especialistas nas propostas pedagógicas;
- Esboço preliminar das propostas em desenvolvimento;
- Videoconferência nacional de integração dos projetos contemplados (abril de 2016);
- Complementação de atividades e propostas pedagógicas;
- Supervisão e ajustes da coordenação do projeto;
- Revisão textual;
- Conversão das propostas pedagógicas editadas para os formatos e-Pub e PDF;
- Testagem de validação junto ao público usuário e beneficiário (professores e alunos);
- Revisão final e pós-produção;
- Seminário nacional presencial de integração dos projetos contemplados, junto a CAPES,
em novembro de 2016, em Brasília, DF.
Foi efetivada a produção do livro digital Sobre a Face das Águas: uma fonte de inspiração
pedagógica sobre o tema águas19, nos formatos e-Pub e PDF, contendo vinte (20) propostas
pedagógicas com perspectiva informativa e formativa, a partir de manifestações artísticas e
culturais sobre as relações ser humano-águas. Todas conectadas a determinados temas e
conteúdos específicos (Tab. 01).

Tabela 01: propostas pedagógicas do livro Sobre a Face das Águas: uma fonte de inspiração

19 NASCIMENTO, FERREIRA, DA CUNHA, 2016.

Página 657
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

pedagógica sobre o tema água20

Atividades Artes Temas Conteúdos


Abuella Grilo Vídeo-animação sobre Privatização da água Ciclo da água Estatística
o folclore de povos Conflitos socioambientais Probabilidade Sistemas
indígenas andinos. Justiça/racismo ambiental econômicos
Mitologia indígena
Movimentos sociais
Água de Poço Charge* do tailandês Privatização da água Linguagem não verbal
Tawan Chuntra. Consumismo. Sistemas econômicos
Propriedades da H2O
Grandezas e medidas
Sensacionalista Matéria “Técnicos Poluição Propriedades da H 2O
encontram água nos Saneamento Básico Esportes Patogenia
coliformes fecais da Baía Aquáticos Justiça/racismo Urbanização Ecossistemas
de Guanabara” do blog ambiental “Neutralidade” da Figuras de linguagem
Sensacionalista. ciência Sistema imunológico
Eutrofização
Bichos do Mar Música Bichos do Mar, de Poluição Ecossistemas Taxonomia
Chico Martins e Lenine, UCs Teia alimentar
para o Projeto TAMAR. Movimentos sociais
Consumismo.
Código de Trecho do Código de Cidadania História universal
Hamurabi Hamurabi (considerado Desastres ambientais Império babilônico
o primeiro conjunto de CTS Sistemas econômicos
leis da humanidade). Movimentos sociais Justiça ambiental
O Grito da Fotografia de Wa Ching Poluição hídrica Ecossistemas Patogenia
Boneca do Estuário da Lagoa dos Despejo de resíduos Políticas Urbanização Revolução
Patos, Rio Grande Sul. públicas Saneamento Básico Industrial Sistemas
econômicos

A Arca Charge* El Arca, do Mudanças climáticas Linguagem não verbal


argentino Mayer. Biodiversidade Ciclo da água Calorimetria

Escultura Escultura em mármore UCs Ecossistemas


Submersa do catarinense Pita Poluição Vida marinha
Camargo, no mar na Biodiversidade
Reserva Biológica do
Arvoredo, SC.
As Águas de Músicas Asa Branca, Mudanças climáticas Ciclo da água Migração
Tom e Gonzaga do cantor e compositor Desigualdades sociais populacional Patogenia
Luiz Gonzaga, e Águas Escassez da água Urbanização
de Março, do cantor e Variação linguística Tipos
compositor Tom Jobim. climáticos
Água Charge* do brasileiro Jack Escassez da água Fontes de energia
Kaminski Sustentabilidade Linguagem não verbal
Ecossistemas
Lenda das Samba-enredo Lenda das Mitologia africana Ecossistemas
Sereias Sereias-Rainha do Mar, Sincronismo religioso
de Vicente Mattos, Dinoel
e Arlindo Velloso para o
G.R.E.S. Império Serrano.

20 Fonte: elaboração própria a partir de: NASCIMENTO, FERREIRA, DA CUNHA, 2016.

Página 658
Meditação da Proposta transdisciplinar Budismo tibetano. Propriedades da H2O
Água para introdução ao
tema Água através da
meditação.
O Nascer do Poema, não titulado, do Impactos ambientais Embriologia Reprodução
Mar autor Raul Machado. Teoria da Evolução
Urbanização
O Velho e o Mar Vídeo-animação do russo Ser humano-natureza Ecossistemas Modernismo
Alexander Petrov (1990), Sustentabilidade
como uma adaptação da Comunidade tradicional
obra literária clássica de
Ernest Hemingway (1952)
Retirantes A obra Retirantes, pintada Desigualdades sociais Ciclo da água Urbanização
em 1944, por Cândido Movimentos sociais Êxodo rural
Portinari. Patogenia
Geografia agrária
Prioridades Charge* (não titulada) do Mudanças climáticas Sistemas econômicos
alemão, Jan Tomaschoff. Sustentabilidade Linguagem não verbal
Justiça Ambiental Revolução Industrial
Hino ao Nilo Hino em homenagem ao Cidadania Bacias hidrográficas
Rio Nilo, no Egito.
O Rio das Documentário O Rio Desigualdade de gênero Bacias hidrográficas
Mulheres das Mulheres pelo Olhar Sustentabilidade Migração
de Ivaneide, de Carlos
Eduardo Ribeiro Junior
(2004).
As Primeiras O Mapa das Primeiras Sustentabilidade História das civilizações
Civilizações Civilizações, de Tiago Conflitos socioambientais Urbanização
Gandra, é um desenho
(vetorização) em tela,
utilizando o software livre
de geoprocessamento
QGIS.
Água e Saúde A imagem representando Higiene Idade Média patogenia
a prática do banho na Saúde Grandezas
Idade Média. Saneamento Básico Estatística
*1ª Mostra Internacional de Humor sobre Educação Ambiental

O conteúdo e a linguagem do mesmo foram estruturados visando, como usuários(as)


diretos(as), professores e professoras do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. Para cada
atividade proposta, foram também apresentadas séries específicas de fontes bibliográficas, através
de comentários ao longo do texto e hiperlinks de acesso ao domínio virtual, como estímulo para o
aprofundamento dos leitores nos temas e processos discutidos em relação aos seus referenciais
científicos-tecnológicos e artístico-culturais (apresentados em conjunto, ao final da obra), além da
contextualização das obras originais.
Outro ponto a ser destacado foi o envolvimento de pesquisadores(as) e professores(as)
de diferentes áreas de conhecimento no processo de pesquisa, tornando o próprio processo de
elaboração e produção desta obra interdisciplinar. Além disso, o livro foi submetido à Fase de Teste,
atendendo à exigência do Edital ANA-CAPES, na Escola de Educação Básica Vereador Guilherme

Página 659
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Zuege (no município de Joinville, SC), vinculada à rede pública estadual de Santa Catarina, na
qual estudantes do Ensino Médio tiveram acesso às propostas pedagógicas, através da mediação
dos professores e professoras da escola. O resultado foi um novo tipo do envolvimento dos(as)
estudantes e dos(as) professores(as) em relação ao tema água – menos maniqueísmo e mais
criticidade sobre a própria realidade - e a manifestação artística gerada a partir deste envolvimento.
O livro foi publicado pela Editora da UDESC e está disponível no Portal EduCapes e no
Acervo Educacional sobre Água ConheceRH, da Agência Nacional de Águas.

Conclusão

Nesta proposta, enfatizei formas e processos de interação entre as atividades e expressões


artístico-culturais com as paisagens, ecossistemas, recursos e seres aquáticos, os quais merecem
nosso respeito e esforços para a manutenção da integridade e complexidade dos universos
hídricos. Entendo que, tanto a Educação Ambiental quanto a Educação Científica e Tecnológica,
enquanto processos contínuos de produção, educação e difusão de conhecimentos, podem e
devem estar abertas e receptivas para o contínuo intercâmbio de saberes e fazeres, não apenas
entre todos os seus campos específicos, mas também com o multiverso dos conhecimentos não
acadêmicos, gestados no cotidiano da vida laboral de todas as culturas.
No entanto, destaco um aspecto que precisa ser ressaltado na articulação entre a Educação
Científica e Tecnológica, a Educação Ambiental e a Educação para as Relações Étnico-Raciais: as
desigualdades socioambientais e a reprodução do racismo, considerando os campos da Educação
Ambiental e da Educação Científica e Tecnológica, precisam estar associadas diretamente ao
processo educativo de brancos(as), negros(as) e indígenas.
As desigualdades socioambientais e a reprodução do racismo, a partir da compreensão
do Racismo Ambiental, deixa explícito que, para além das desigualdades sociais produzidas e
reproduzidas por políticas sociais e econômicas, as vítimas da crise socioambiental têm classe
e cor. Portanto, a Educação Ambiental, ocupada em transformar realidades desiguais, precisa se
ocupar também com a superação das desigualdades raciais e de gênero, assuntos comumente
silenciados em suas discussões teórico-metodológicas devido à primazia da discussões sobre
a desigualdade de classes. Neste mesmo sentido, espera-se que a Educação Científica e
Tecnológica, principalmente a partir da perpectiva da CTS, problematize com criticidade e lucidez
quais as implicações da ciência e da tecnologia na reprodução do racismo através de sua estreita
aliança com políticas desenvolvimentista e predatórias. Afinal, assim como a ciência pode reproduzir
as desigualdades raciais através da escolha de seus objetos, problemas, métodos e análises, a
educação pode fazer o mesmo através das escolhas de seus conteúdos, abordagens, métodos
de ensino, práticas pedagógicas e avaliação – haja vista a necessidade das Leis 10.639/0321 e

21 A Lei 10.639 de 2003 alterou a LDB (lei 9.394/96) para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoridade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

Página 660
11.645/0822 visando a superação urgente dessas práticas.
Desta maneira, considero de extrema importância ampliar e aprofundar as reflexões e
discussões sobre problemas socioambientais silenciados e invisibilizados, bem como criar formas
de abordagens educacionais que articulem inter e transdisciplinarmente os campos da Educação
Ambiental, da Educação Científica e Tecnológica e da Educação para as Relações Étnico-Raciais.

Referências

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COSTA, L.M. Territorialidade e racismo ambiental: elementos para se pensar a educação ambiental
crítica em unidades de conservação. Pesquisa em Educação Ambiental, v. 6, n. 1, p. 101-122,
2011.

ANA-CAPES. Edital ANA-CAPES/DEB Nº 18/2015. Programa de Apoio à Produção de Material


Didático para a Educação Básica - Projeto Água. Brasília, DF: Agencia Nacional das Águas/CAPES
– Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 29 de Setembro de 2015 (11
p).

ANGOTTI, J.A.P; AUTH, M.A. Ciência e Tecnologia: implicações sociais e o papel da educação.
Ciência & Educação, v.7, n.1, p.15-27, 2001.

BULLARD, R.D. Dumping in Dixie: race, class and environmental quality.


Boulder, Westview Press, 1990.

BULLARD, R.D. Ética e Racismo Ambiental. In: Revista Eco-21, s.d. Edição 98. Disponível em:
<http://www.eco21.com.br/textos/textos.asp?ID=996>. Acesso em: 27 fev. 2017.

DA CUNHA, Isabel Cristina. Sobre a Face das Águas (projeto de pesquisa, submetido ao edital
18/2015, da ANA – Agencia Nacional das Águas/CAPES – Coordenadoria de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior). Florianópolis: UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina,
2015 (10 p).

DAQUINO, F. O que é o formato ePub? Portal Tecmundo, 12 FEV 2010 - 16H 50. Disponível em:
<http://www.tecmundo.com.br/amazon/3644-o-que-e-o-formato-epub-.htm> Acesso em: 24
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HERCULANO, S.; PACHECO, T. (Orgs.). Racismo Ambiental. Rio de Janeiro: FASE, 2006.

IYAGUNÃ, D.M.A Templo Religioso, Natureza e os Avanços Tecnológicos: os saberes do


Candomblé na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia), Universidade Tecnológica Federal do Paraná: Curitiba, 2013, 160f.

MATHIAS, M. Racismo Ambiental. In: Revista Poli: saúde, educação e trabalho – FIOCRUZ, ano IX,

22 A Lei 11.645 de 2008 amplia a Lei 10.639/03 tornando obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena.

Página 661
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

n. 50, mar./abr. 2017, p. 31-32. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/poliweb50.


pdf> Acesso em: 27 fev. 2017.

NASCIMENTO, C.C. A formação em educação para o ecodesenvolvimento: um estudo de


caso junto ao Núcleo Transdisciplinar de Meio Ambiente e Desenvolvimento, período 2010-2013.
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental), Universidade
Federal do Rio Grande: Rio Grande, 2013, 156f.

NASCIMENTO, C.C.; FERREIRA, W.; DA CUNHA, I.C. Sobre a Face das Águas: uma fonte de
inspiração pedagógica sobre o tema água. Florianópolis, SC: UDESC, 2016 (231 p). ISBN: 978-
85-8302-093-6.

Página 662
ANÁLISE E PERFIL DAS ALUNAS NEGRAS INGRESSADAS ENTRE OS
ANOS ENTRE 2013 E 2016 DO CURSO DE ENGENHARIA MECÂNICA NA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SANTOS, Larissa Ribas dos. (UFPR)


larissaribasdossantos@gmail.com

Resumo

Neste estudo focalizamos uma análise das condições da inserção de mulheres negras no curso de
Engenharia Mecânica, curso que tradicionalmente ocupa suas vagas por alunos homens. Considera-se
importante fazer o seguimento de quem são essas mulheres e quais as dificuldades que enfrentam de
forma de registrar de forma histórica suas vivencias e percepções como minorias nos espaços de ensino
superior. Para tanto se fez um mapeamento das alunas negras ingressadas no curso nos últimos quatro
anos (2013 – 2016), a partir de dados fornecidos pela Universidade Federal do Paraná. A metodologia
utilizada considerou a aplicação de entrevistas estruturadas para algumas das estudantes negras que
pertencem a população estudada, assumindo-se o compromisso de manter em sigilo suas identidades.
Os dados solicitados consideravam questões como renda, cotas, percepção de racismo e machismo
dentro da instituição. Foi observado neste estudo que para estas alunas não foram relevantes construtos
de preconceito racial, mas relataram em seus depoimentos que tendiam a situações de inferioridade por
seres mulheres, revelando entraves e conflitos nas relações de corte sexista ou de gênero. Considera-
se que os dados obtidos não possibilitam descartar o preconceito racial, mas apontam para o não
reconhecimento desses fatores por uma aproximação à valores do embranquecimento e no intuito de
evitar constrangimentos. Assim postula-se a necessidade de que tais dados possam ser discutidos e
refletidos na articulação com os movimentos sociais prováveis para essas pessoas, como o movimento
feminista e negro na busca de caminhos de consolidação e empoderamento de suas escolhas como
alunas negras de um curso de engenharia mecânica na Universidade Federal do Paraná.  

Palavras-chave: Negras. Racismo. Cotas.

Página 663
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

A Lei nº 12.711/2012 implementada a partir do ano 2012 veio a consolidar a política


afirmativa adotada pela Universidade Federal do Paraná em 2004, implementando entre suas
vagas cotas afirmativas para alunos negros. No entanto outra problemática visível é a constituída
na relação de gênero. Os cursos de engenharia têm um histórico de predominância masculina
dentro das instituições de ensino. Com o tempo, o número de mulheres ingressadas vem
aumentando conforme o número de vagas, deixando a porcentagem quase constante, e com ele,
a necessidade de construção de igualdade de gênero está se tornando muito importante. A união
dessas mulheres, tanto negras e brancas para conseguir seus respectivos espaços é primordial
para que sua trajetória dentro da universidade seja boa. Nesse sentido, a constituição de grupos
feministas na universidade, no setor da tecnologia, vem aumentando e fortalecendo a ideologia do
feminismo.

Análise do perfil das entrevistadas a partir dos dados coletados

Neste estudo focalizamos uma análise das condições da inserção de mulheres negras
no curso de Engenharia Mecânica, curso que tradicionalmente preenche suas vagas por alunos
homens. Considera-se importante fazer o seguimento de quem são essas mulheres e quais as
dificuldades que enfrentam nos espaços de ensino superior, de maneira de registrar de forma
histórica suas vivências e percepções como minorias.
Metodologicamente este trabalho visou analisar as respostas a um formulário que explorava
a questão das vivências de estudantes negras que estão cursando engenharia mecânica na
instituição UFPR (Universidade Federal do Paraná). Formulário que manteve os nomes das
estudantes em sigilo, para preservar a identidade, e também para que as alunas tivessem maior
conforto para responder o questionário.
Foram entrevistadas doze mulheres autodeclaradas pretas ou pardas, seguindo o roteiro
do questionário que abordava vários tópicos, como: cotas, renda familiar, machismo e racismo
institucional. Os resultados obtidos mostraram que conforme a mudança de ano, o perfil da
estudante negra de engenharia mecânica foi variando e a quantidade de mulheres também,
principalmente autodeclaradas dentro do curso. Para analisar as percepções de machismo na
engenharia mecânica, foi necessário entender o meio em que convivem.
Foi possível fazer o levantamento da quantidade de alunos com a matrícula ativa, portanto,
que ainda permanecem no curso, contabilizando e separando por gênero. Os dados fornecidos
pela Coordenação de Engenharia Mecânica da UFPR foram quantificados, considerando os novos
alunos do diurno e noturno de ambos os semestres. Em 2013, o total foi de 156 ingressados, 2014
foi de 167 alunos, em 2015 foram 191 alunos e 2016, um total 197 alunos.

Página 664
A tentativa de quantificar todos os alunos autodeclarados pretos ou pardos não obteve êxito,
a universidade restringe este tipo de informação. O núcleo de concursos que faz os vestibulares,
justifica a preservação da identidade dos alunos em possíveis casos de processos.
Durante a coleta de informações no formulário apresentado para essas mulheres, foi
questionado algumas vezes o motivo de estar com o título NEGRA, estando com essa palavra,
algumas estudantes autodeclaradas pardas perguntaram se poderiam responder mesmo assim. A
abordagem feita nas entrevistas foi alterada, com a modificação da palavra NEGRA para PRETAS E
PARDAS no título do trabalho e na própria pesquisa, com o objetivo de ocorrer maiores respostas.
Observar a identidade negra institucional se tornou importante para compreender casos
de racismo no curso da UFPR. Assim as respostas da autodeclaração foram consideradas para
observar a identidade negra dessas alunas.
Das doze mulheres, seis se autodeclararam pardas e as outras seis, como pretas. As mulheres
pretas, já convivem com a sua identidade racial em construção. A percepção dela é fundamental
para conseguir espaço num campo historicamente dominado por homens brancos. Este grupo
que está em desenvolvimento da sua auto aceitação dentro do curso de engenharia mecânica
vem aumentando, conforme os períodos passam. Percebem as lutas, como o empoderamento
negro, as lutas dentro de grupos feministas e os questionamentos dos retrocessos no cotidiano.  
Foi visível perceber da amostra coletada, que a maioria das alunas tem o perfil jovem, com
a faixa de idade entre 21 e 23 anos, também, que já participam de algum coletivo feminista, e não
participam de algum grupo de estudos afro-brasileiros:

Página 665
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

É possível observar que conforme os anos houve um aumento de alunas ingressadas


negras:

Um fator importante para a escolha entre período de anos foi a transição do regime de
cotas na Universidade Federal do Paraná. A Lei n°12.711/2012 foi implementada de forma total no
ano de 2015. Anteriormente, as cotas eram proeminentes da própria instituição, sendo reservadas
20% para cotas sociais para vestibulandos oriundos de escola pública e independente da renda
e 20% para cotistas raciais que era independente de renda e não era necessário ter estudado em
escola pública, ambas eram validadas apenas na segunda fase do vestibular.

Página 666
A utilização das cotas para o ingresso na universidade foi primordial. Das entrevistadas,
onzes mulheres responderam que utilizaram algum tipo de cota no vestibular, sendo que a maioria
foi pelo regime de cotas da lei n°12.711/2012.
O aumento das mulheres negras no curso de engenharia mecânica pode ser relacionado
à aplicação da lei n°12.711/2012. As cotas fornecidas por este regime têm o requisito de alunos
serem oriundos do ensino médio de escola pública. Já as cotas da Universidade Federal do Paraná,
mesmo que não tinham essa restrição, tinha a limitação da cota que só era válida para a segunda
fase. A nota de corte geral da primeira fase era desigual por qualidade de ensino, sendo perceptível
a comparação amostral do total de novas alunas a partir do novo regime.

Apesar das cotas na UFPR ainda não estarem com o percentual


mínimo estabelecido pela Lei determinada através do censo demográfico, pela
soma de pretos, pardos e indígenas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), o ingresso de mais alunas negras no curso foi importante para novos desafios
para a universidade, que vem construindo planejamentos de políticas internas para a permanência
estudantil.
O perfil dos alunos vem mudando decorrente da implementação destas cotas, mas alguns
fatos que implicam ao desafio de ainda ser a minoria, vem sendo mais explícito, ou mais visualizado.
Um total de sete mulheres (58,3%) afirmaram sofrer machismo dentro da Universidade. Sobre o
questionamento de viver num local com certas tradições, algumas relataram preconceitos, e de
predominância machista e misógina.
A partir da pergunta sobre relatos de casos de racismo e/ou machismo, um depoimento
das entrevistadas demonstra que ainda é necessário reconhecimento de espaço:   
No meu primeiro período na faculdade uma colega me acusou de roubo em frente a
turma toda, justificando-se pelo ato por eu ser pobre, ter estudado em escola pública,
e por ela acreditar que eu era cotista racial. Em outro momento da minha graduação fui
menosprezada dentro da minha empresa Júnior, apesar de todos meus esforços como
madrinha de uma equipe de trainees, todo o reconhecimento de ideias, e finalizações de
trabalhos iam para meu colega que também era padrinho da equipe, inclusive ao final
do período trainee houve até um agradecimento com um texto formal que citava apenas
seu nome.

Página 667
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Compreender a inserção destas estudantes negras foi além do preconceito por gênero.
Quando questionadas sobre o cotidiano na instituição e ser autodeclarada preta ou parda, a
quantidade de depoimentos foi menor, algumas se abstiveram da pergunta, pois não observaram
nenhum diferencial como negra, portanto, nenhum caso de racismo ou tratamento diferente por
ser minoria racial. Cerca de nove mulheres (75%) opinaram que não sofreram racismo institucional.
Na pergunta “Como é ser negra no curso de engenharia mecânica? ” Uma entrevistada
relatou sobre a sua identidade:
No meu caso me auto declaro parda. Nunca houve palavras ou atitudes contra a minha
cor no meu curso até agora, porém me sinto muito mais excluída e inferiorizada em
diversos momentos.

Outra aluna negra respondeu criticando a visão de inferioridade pela raça:


É ser vitimista, não ser levada tão a sério quanto outras meninas que são pelo seu dinheiro,
beleza padrão ou popularidade, é ter que se provar sempre duas vezes mais, é esforço
diário para abranger o mesmo conhecimento que outras tiveram oportunidade de ter antes
de estar na universidade, é ter depressão por não ser o padrão feminino ou ser evitada por
uma opinião que desfavorece elite branca. É ter que se provar digna para não te acharem
ladra. Infelizmente é mais dor do que vitória.

Os relatos das alunas tiveram argumentos importantes para observar que a identidade negra
dentro de um local tradicionalmente branco é construída a partir de muitos constrangimentos. O
recorte feminino de forma racial é perceptível, e incorporar um padrão como forma de aceitação não
intencional, no embranquecimento, perpetua o racismo velado na instituição, como é percebido a
partir deste relato sobre racismo:
Nunca senti nenhum tipo de diferença mas sei que minha experiência é diferente que de
outros colegas negros por já ouvir comentários deles ou sobre eles.

Conclusão

Além de apresentar a autodeclaração racial das entrevistadas, o intuito do trabalho


teve o objetivo de analisar o meio de convívio das alunas negras. Considera-se que os dados
obtidos não possibilitam descartar o preconceito racial, mas apontam para o não reconhecimento
desses fatores por uma aproximação a valores do embranquecimento e no intuito de evitar
constrangimentos. Assim postula-se a necessidade de que tais dados possam ser discutidos
e refletidos na articulação com os movimentos sociais prováveis para essas pessoas, como o
movimento feminista e negro na busca de caminhos de consolidação e empoderamento de suas
escolhas como alunas negras de um curso de engenharia mecânica na Universidade Federal do
Paraná.  
Portanto, pode-se concluir que estas alunas vivenciam experiências nas quais preconceitos
raciais e ou de gênero se coadunam fragilizando sua identificação como negra, presente nos seus
históricos familiares. Algumas das mulheres autodeclaradas pretas, declararam que a universidade

Página 668
foi fator importante para a sua identificação racial, através do contato de pessoas do movimento
negro, eventos relacionados aos coletivos feministas e/ou negro da UFPR e até mesmo, por colegas
autodeclarados negros dentro do curso de engenharia mecânica.
Com a modificação da visão do perfil de alunos ingressantes, resultante do regime de
cotas da lei n°12.711/2012 implementada, a universidade está se tornando mais diversificada,
com o favorecimento de pessoas oriundas de escola públicas e autodeclarados negros. Assim, a
necessidade de projetos com cunho negro e a participação da universidade em desenvolvimento
social se torna um caminho importante para a permanência estudantil desses alunos.

Referências

AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DA PREFEITURA DE CURITIBA.19,7% da população de Curitiba são


negros ou pardos. Disponível em: <http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/197-da-populacao-de-curitiba-
sao-negros-ou-pardos/31360>. Acesso em: 31 mai. 2017.

JORNAL GAZETA DO POVO. Vestibular da UFPR terá dois sistemas de cotas. Disponível
em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/vestibular-da-ufpr-tera-dois-sistemas-de-cotas-
0hiuwx7l7w12bkyk4f5o564we>. Acesso em: 30 mai. 2017.

PORTAL DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Ensino superior- Entenda as cotas para quem estudou
todo o ensino médio em escolas públicas: Perguntas frequentes. Disponível em: <http://portal.mec.
gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html> Acesso em: 1 jun. 2017.

PORTAL DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Ensino superior- Entenda as cotas para quem estudou
todo o ensino médio em escolas públicas: Sobre o sistema. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/
cotas/sobre-sistema.html>. Acesso em: 30 mai. 2017.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estudos sociodemográficos e


análises espaciais referentes aos municípios com a existência de comunidades remanescentes de
quilombos. Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/portal-antigo/publicacoes/relatorioIBGE_pdf>. Acesso
em: 30 mai. 2017.

O PARANÁ: JORNAL DE FATO. Cresce índice de alunos negros e de baixa renda nas faculdades
federais. Disponível em: <http://www.oparana.com.br/noticia/cresce-indice-de-alunos-negros-e-de-baixa-
renda-nas-faculdades-federais>. Acesso em: 1 jun. 2017.

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EIXO 14: Memória e patrimônio negro
no Sul do Brasil

Interessa-nos neste eixo pesquisas que abordem temas relacionados às


questões que envolvem cultura,memória,história e patrimônio das populações
negras no Brasil, a partir de uma abordagem epistemológica que assuma
o legado africano como uma precondição essencial para desenvolver o
conhecimento. Interessa-nos também promover um debate crítico, teórico e
empírico sobre as relações entre memória, patrimônio e as culturas africanas e
afro-brasileiras na organização dos espaços de sociabilidade das identidades
diaspóricas negras, a partir de um olhar afrocentrado, afroreferenciado e suas
especificidades na Região Sul. Este eixo aponta ainda para estudos que tratem
sobre a memória das populações negras nos espaços que emergem dos
movimentos LGBT e o pensamento de mulheres negras. Busca-se também
conhecer e refletir criticamente sobre pesquisas
acadêmicas relacionadas às comunidades negras
nos Pontos de Memória, Pontos de Cultura, museus
comunitários, ecomuseus, museus de cultura
negra, comunidades quilombolas, comunidades
de terreiro, comunidades tradicionais e clubes
sociais negros.
A INVISIBILIDADE AFRO-BRASILEIRA NO MUNICÍPIO GAÚCHO DE SÃO
BORJA: FORMAS DE REAÇÕES ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO

BARBOSA, Izabel Espindola. (IFFAR)


izabel.barbosa@iffarroupilha.edu.br
PORTO, Eliane Quincozes.(IFFAR)
eliane.porto@iffarroupilha.edu.br
WOICHIEWOSKI, Adilce Teresinha Flores.(CME)
dilce.flores@bol.com.br

Resumo

No segundo semestre de 2016, a pedido do Conselho Municipal de Educação do Município de São


Borja - RS , buscou-se alternativas de implementação da lei 10.639/2003 nas escolas, principalmente
nos anos inicias do Ensino fundamental. Entre muitas reuniões, encontros e atividades colaborativas,
percebeu-se a necessidade de uma capacitação dos professores. Com intuito de lançar a ideia, em
22/11/2016 foi proposto a realização do curso com início em 2017. O início do ano garante que a proposta
seja realizada, e assim avaliada e aperfeiçoada, durante todo o ano letivo, não restringindo os objetivos
apenas a uma data simbólica. O Curso de Formação Continuada:”Africanidades: desconstruindo a
invisibilidade afro-brasileira” foi organizado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI)
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFFAR) - Campus São Borja, o qual assumiram
o compromisso com o desenvolvimentos das ações: - Trabalho de desconstrução de estereótipos. -
(Re) estabelecimento dos vínculos do continente africano com a Cultura brasileira. - Desenvolvimento
da curiosidade acerca do tema, proporcionando a complementação futura desta formação. - Estímulo
para a tolerância, a memória, a oralidade tão presentes na filosofia africana. Fornecimento de subsídios
para, com acompanhamento do NEABI, os cursistas desenvolvam ações efetivas em suas escolas, visto
que trata-se de atividade multidisciplinar. A investigação visa demonstrar a necessidade de apoio e
integração de grupos e instituições, neste caso o NEABI e o IFFAR, para promover a efetivação dessas
ações no interior do Rio Grande do Sul, estado que necessita desconstruir e reparar sua própria história

Palavras-chave: São Borja, NEABI, invisibilidade, educação, memória

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1 Introdução

Não nos foi ensinado a discutir diferenças, muito menos a aceitá-las verdadeiramente.
Aprendemos que no Brasil não existe racismo, que somos todos iguais. Nós não somos todos
iguais, o DNA comprova isso. Mas até aí nem um problema, o problema é como lidamos, ou
não, com nossas diferenças. O caminho das discussões deveria vir dos espaços sociais onde o
indivíduo está inserido. Suas necessidades, indagações, erros e acertos decorrentes da forma que
vemos e da forma que fomos ensinados a ver, e aceitar, o preconceito e o racismo. Sem medo de
passarmos por ignorantes.
Conforme portaria, cada campi do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Farroupilha vai se adequando com base nas leis 10.639/2003 e 11.645 de 2008. O objetivo do
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros ou Afro-brasileiro e Indígena - NEAB/NEABI - é a ampliação
e fortalecimento de temáticas étnico-raciais para a educação brasileira que necessitam ser
trabalhados e discutidos seja por meio das disciplinas escolares ou fora em atividades que
complementam e enriquecem o currículo escolar. Projetos educacionais que alcancem alunos,
servidores e comunidade contribuem para a diminuição das desigualdades raciais e incentivam o
respeito, a igualdade de oportunidades e o combate ao racismo.
O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas - NEABI - é parte integrante das Politicas
de apoio ao discente dentro das Políticas Institucionais do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia Farroupilha, tendo o dever de trabalhar de forma pluridisciplinar na elaboração de
projetos de ensino, extensão e pesquisa para as relações étnico-raciais na busca pela igualdade
de oportunidades e valorização da herança africana e indígena.
Considerando-se que o propósito de se construir uma educação plural e inclusiva perpassa
todo o século XX, podemos perceber diversos movimentos e compromissos com esta luta , a fim
de “desconstruir a invisibilidade afro-brasileira”, trabalhando por uma educação voltada à História
da África e dos povos negros, num percurso de reversão de práticas discriminatórias em relação
às crianças na escola e em ambientes de aprendizagem escolar.
Tais ações/atividades aconteceram para (re)pensar os múltiplos contextos, tendo como
ponto de partida o espaço institucional de diálogo e encontro que caracteriza o NEABI (Núcleo
de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) do Instituto Federal Farroupilha Campus São Borja.
A justificativa da necessidade de formação continuada de professores na perspectiva da
democracia social, do cumprimento de dispositivos legais e da concepção de que não basta à
prática pedagógica envolver histórias da África, se as relações racistas ainda autoritárias se
fizerem elementos significativos nas instituições escolares, e representarem a materialidade do
preconceito frente às políticas de afirmação de direitos, tendo como prioridade a comunidade do
municipio de São Borja.

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2 A Terra dos Presidentes
Conhecida como a “Terra dos Presidentes”, São Borja tem uma história de mais de três
séculos com o povoado assentado pelos jesuítas da companhia espanhola em terras guaranis.
Com o fim das missões, São Borja, localizada a margem oriental do rio Uruguai, na fronteira entre
Brasil e Argentina, estabeleceu-se como produtora de grãos e de políticos, dois presidentes que
permanecem como atrativo turístico local. Segundo o censo de 2010, a população de pouco mais
de 61.000 habitantes conta com quase 20% de autodeclarados negros e pardos. Menos de 1% de
indígenas.

Fonte: IBGE

Porém todos concordam que há mais pessoas não brancas, desde que não sejam elas. Isso
não é reflexo apenas do município, somos ensinados na escola e na sociedade sobre a colonização
ítalo-germânica. Na fronteira, somos apresentados aos espanhóis como irmãos. Ao indígena e ao
negro resta o passado, como se tivessem evaporado na história. Essa negação por conhecer sua
história dificulta até mesmo ouvir descendentes de africanos escravizados na cidade.
Com três instituições de ensino superior públicas, Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA) Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e Instituto Federal Farroupilha
(IFFAR), duas tem espaços de aprendizagem e valorização da história e memória afro-brasileira
e indígena. O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) do IFFAR contou com a
colaboração do NIARA (Coletivo Negro Unipampa São Borja) em ações anteriores e agora
espera colaborar na formação do NEABI e do PET África daquele campus. Entende-se que como
formadores de opiniões e conhecimentos, essas instituições e seus recursos humanos amplifiquem
as políticas afirmativas.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Cursista do projeto Africanidades

3 Parcerias
Em 08 de abril de 2015, o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul divulgou
em seu sítio oficial na internet que realizaria a fiscalização do cumprimento do artigo 26-A da Lei
das Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história
e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de níveis fundamental e médio, públicas e
privadas, demonstrando a atenção dos órgãos de controle externo da Administração Pública com
o cumprimento da legislação educacional por parte das instituições de ensino.
Em abril de 2016, em uma reunião do conselho Municipal de Educação de São Borja,
representantes de diversas instituições de ensino discutiam entre diversos temas a efetivação
da lei 10.639/2003 e 11.645/2008. Objeções sobre o quê, porquê e de que forma aplicar os
conteúdos eram a maneira mais fácil de explicar as razões de não ensinar sobre a própria hist´roia
brasileira, permanecendo com a visão eurocentrica predominante.
A ideia era ainda naquele ano oferecer um curso básico. Importante ressaltar que as
autoras são autodidatas na teoria da temática étnico-racial, assim foram estabelecendo contatos
e parcerias para a efetivação da formação para professores. Devido a ajustes o curso só ocorreu
em 2017, contanto com a colaboração de servidores do campus São Borja, membros do Conselho
Municipal e professoras que do município de São Borja que estudam, trabalham e atuam na luta

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pela igualdade de oportunidades.
Contando com cinquenta vagas, o curso teve trinta e quatro inscrições onde vinte e dois
tiveram frequência para serem certificados. Criado para os anos iniciais, algumas adaptações foram
realizadas para atender professores da educação infantil e do ensino médio. A prática também foi
enfatizada, pois considera-se que a leitura teórica e palestras, que ocorreram e são importantes,
não tenham o mesmo alcance que o fazer, o construir formas de ensino-aprendizagem. Para
Silveira, Messias e Tier,

Como várias pesquisas tem demonstrado são inúmeras as dificuldades enfrentadas para
que concretamente se afirmem práticas pedagógicas capazes de confrontar o racismo
que permeiam as relações sociais e criem-se metodologias efetivas de educação para as
relações etnicorraciais, pautadas no respeito à diversidade.(SILVEIRA, MESSIAS e TIER,
2013. p. 189)

Formas de inserção na cultura Afro-brasileira evidenciam-se nas discussões atuais mais


pela simplificação do termo cota e pelo cumprimento de dispositivos legais. O projeto Africanidades
teve como objetivo trabalhar a cultura africana e afro-brasileira na Formação docente Continuada.
A proposta surgiu com os membros do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas)
do IFFAR/ Campus São Borja norteada pela Lei nº 10.639/2003 e suas formas de implementação
e incorporação de ações afirmativas dentro de instituições de ensino, como também a criação
e/ou manutenção de Projetos de Cursos para Formação Continuada pautados em tratamento
igualitários, considerando a singularidade de cada indivíduo, nas dimensões familiares e sociais.

Curso: Africanidades

Ainda falta formação adequada para ensinar e desenvolver atividades pedagógicas de


valorização das diferenças culturais e contra o preconceito, a discriminação e a intolerância no
ambiente escolar, pois
alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem
lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como
momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos
sobre a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional.
(MUNANGA, 2005, p.15)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

4 Que preconceito eu tenho?

“Preconceito é uma palavra forte, feia e ninguém gosta de dizer que tem, mas infelizmente
todo mundo tem um pouco de preconceito, inclusive eu, principalmente eu.”

Professora de Educação infantil do município e

cursista do projeto de extensão Africanidades

A frase acima é a parte final da resposta a uma pergunta nada simples, “Que preconceito eu
tenho?”, realizada no primeiro dia do Curso de Formação continuada Africanidades: desconstruindo
a invisibilidade afro-brasileira. Projeto com um título um tanto presunçoso para um primeiro curso
sobre o tema realizado por instituição local em São Borja. Presunçoso ainda para uma população
com mais de 67 mil habitantes, uma história econômica e social ligada ao latifúndio orizícola,
dentro do Rio Grande do Sul, estado que se auto declara o mais europeu do Brasil. Assim por
séculos, se analisarmos os livros didáticos distribuídos por décadas e alguns renomados autores
que destacaram a “bondade” dos senhores escravagistas dos pampas, perpetua-se o estigma da
invisibilidade dos negros no Rio Grande do Sul.
O processo de Formação Continuada para educadores e educadoras dos Anos Iniciais (1º
ao 5º ano) do Ensino Fundamental na Rede Municipal de São Borja - RS foi uma proposta de ações
desenvolvidas a partir de uma reunião em abril de 2016 com o Conselho Municipal de Educação
que, entre outras demandas locais, cobrava a implementação da Lei 10.639/2003 que, há mais de
uma década, torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Ali mesmo,
com a presença de professores, gestores, graduandos e comunidade, uma mão levantou-se e
explanou a questão levantada por muitos dos presentes: “Pra que ensinar isso, se não temos
quilombos ou índios aqui?” Curiosa a pergunta em uma cidade que está fincada sobre as ruínas
guaraníticas, onde seu povo além do fenótipo, traz tradições, falas e histórias da servidão indígena
e da escravidão africana.
Então voltando a professora que abriu esse artigo é assim ela começou a resposta. “Que
preconceito eu tenho? Eu ia começar a responder a pergunta com a seguinte frase: “Eu não tenho
preconceito!” Mas me pus a refletir e cheguei a conclusão que, sim, eu sou preconceituosa.”
Como preconceito é algo muito amplo, é importante diferenciá-lo do racismo que, aliás,
dificilmente é assumido. O racismo é algo institucionanizado na sociedade brasileira, assim sendo,
faz-se necessárias transformações institucionais na cultura e no ambiente acadêmico.

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Professor do Ensino Médio Estadual e Cursista do projeto de extensão Africanidades

A mesma pergunta do título foi feita em outros momentos, uma internamente no Grupo
de Estudos Umuntu para alunos e servidores e no I Encontro de Pluralidade Afro-Brasileiras e
Indígenas de São Borja para escolas da rede básica de ensino. Essa reflexão e a realização de
projetos concomitantes para que se deixe claro que o racismo existe. Não há o que ensinar, é
preciso desconstruir.

Foto: I Encontro de Pluralidade Afro-Brasileiras e Indígenas de São Borja

5 Racismo existe e o que se faz?

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Com certeza a pergunta mais recorrente nas atividades foi “como eu chamo?” O racismo
é presente nas falas, nas atividades cotidianas e quando a pessoa se dá conta do seu racismo
a primeira fase foi a negação. A maioria dos participantes das ações negou veementemente
ter racismo, admitindo pré conceitos. Com o desenvolvimento das atividades, leituras, vídeos e
principalmente questionamentos a cada instante possível, deixando claro que o que se propunha
não era encontrar respostas mágicas, mas se descontruir continuamente, aprimorando a visão e
autorreconhecendo sua participação no combate ao racismo.
Esse primeiro contato, estabeleceu outras necessidades dentro da comunidade, como
localizar as pessoas e os espaços de resistência negra em São Borja. Construção da identidade
afro-brasileira na cidade através da valorizar a história de grupos afro-brasileiros do município.
Alunos do IFFAR, professores e alunos da rede estadual se propuseram a encontrar territórios
negros formando três novas ações, um projeto de pesquisa Territórios Negros na fronteira oeste:
mapeamentos dos municípios de São Borja e Uruguaiana; a formação do Grupo de Trabalho Aiyê
e o projeto de extensão Quilombo Rincão dos Fernandes.
Alunos do curso de Tecnologia em Gastronomia visitaram o Centro de Umbanda Pai Oxalá,
verificando uma gama de plantas cultivadas no local e utilizadas nas cerimônias, presenciando,
inclusive, um casamento. Este centro foi fundado por um descendente de negros escravizados
e ainda no início das suas atividades criou uma escola de educação infantil hoje municipalizada
que leva o nome de Tio Calandro. Alunos do curso de Tecnologia em Gestão de Turismo estão
coletando informações sobre os saladeiros (charqueadas) e os Clubes Negros 7 e Esperança.
O reconhecimento do Estado sobre a herança do povo africano à cultura, história e
identidade do brasileiro através das leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008, na área de educação,
decreto 4887 de 2003 e os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 estabelecem
diretrizes quanto a valorização da herança da África, dando suporte legal a construção dessa
identidade. Os africanos escravizados, imigrantes forçados, que sustentaram a independência
econômica e política do Brasil, sempre ficaram além das margens da nação brasileira em seus
direitos de cidadão. Como descreve Mattos (2012, p. 167), “a escravidão, de certa forma, delimitou
os espaços possíveis de serem ocupados por esses africanos”.
Entre tantas formas de resistência dos africanos escravizados, dos libertos e de seus
descendentes, uma era a busca por espaços que, compartilhados por seus “compadres”, traziam
memórias de um passado longínquo ou a familiaridade da mesma língua oriunda do outro lado
do oceano Atlântico e talvez amenizassem, se é que essa possibilidade existisse, as agruras da
escravidão. Ainda hoje “o lugar urbano e social que o negro ocupa não é o mesmo do branco” (SILVA,
2006, p.6). Deixando claro que o mito da democracia racial, embora amplamente compartilhado
não é real e completa “a separação é evidente, embora haja um permanente controle para que
possa parecer que todos têm o mesmo tipo de acesso a algo de interesse.” (SILVA, 2006, p.6)
Essa segregação é algo que necessita não só das leis, já existentes, mas de pesquisa que
divulgue o tamanho da invisibilidade do negro na sociedade brasileira. Conforme Rolnik (2013, p.1)
Infelizmente, por ora podemos contar com muito pouco material empírico para tal pretensão.

Página 678
Na verdade, o tema empírico do negro nas cidades até agora foi pouco explorado nos
textos brasileiros da sociologia do negro ou da sociologia urbana. Os mais importantes
trabalhos na área da sociologia do negro não discutem especificamente a questão urbana,
e muito menos de um ponto de vista físico-territorial.

E, quinze anos após a primeira publicação, numa revisão do texto, Rolnik, mesmo exaltando
os avanços das políticas públicas sobre o tema através do movimento quilombola, mantém a
conclusão, pois “estes breves comentários da situação atual mostram a continuação de um
modelo de urbanização excludente, do qual pretos e pardos são ainda o grupo populacional mais
preterido.” (ROLNIK, 2013, p.17)
Daí faz-se necessário seguir o exemplo do poeta gaúcho Oliveira Silveira, que ao revisitar
locais de importância da memória afro em Porto Alegre criou o roteiro dos Territórios Negros. Como
enfatiza Arruti (2011, p.1), uma nova “luta pela terra”, não só pela demarcação geográfica, espacial,
e sim para esclarecer que “significativas parcelas de nossa população não vivem sobre simples
“propriedades fundiárias”, mas sobre territórios sociais, estreitamente ligados às suas identidades
e memórias históricas e culturais.”
“Superioridade? Inferioridade? Por que simplesmente não tentar sensibilizar o outro,
sentir o outro, revelar-me outro?”( FANON , 2008, p.191). No Rio Grande do Sul, estado que por
séculos exaltou a imigração ítalo e germânica, cobrindo tantas etnias formadoras de seu povo
principalmente a indígena e a africana, é imprescindível a busca por espaços que remontam a
resistência dos afro-brasileiros de forma a exaltar o pertencimento da cultura e história negra
como parte edificante da sociedade brasileira, enfatizando os locais nos municípios de São Borja
e Uruguaiana.

Conclusão
Mais que recursos didáticos, a experiência trouxe a ideia de se reconhecer parte da história
brasileira, da necessidade de mostrar a participação do negro na história do município. Como
resultado dessa formação, professores que realizaram o curso adotaram ações em suas salas de
aula, alguns levaram os alunos para participarem de visitas no campus. Outras atividades foram
realizadas a partir dessa ação, como o Encontro Municipal de Pluralidade Afro e Indígena com
palestrantes de outra cidade. Também a participação na Semana Acadêmica de Licenciaturas e a
colaboração no Programa de Educação Tutorial da Unipampa (PET História da África).
Essas iniciativas ainda esperam estabelecer constantes ações, já em andamento, como o
mapeamento dos territórios e uma possível rota de turismo pedagógico e histórico. O levantamento
da história dos centros de religiões afro-brasileiras e da colaboração dessas entidades na vida da
sociedade, como a escola de educação infantil Tio Calandro e o acompanhamento de mulheres
em situação de vulnerabilidade. São ações corriqueiramente presentes em São Borja e que não
são visualizadas como parte da identidade afro no município.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Acreditamos que a comunidade de São Borja possa perceber e valorizar a diversidade


cultural em nossa sociedade e reconhecer a importância do respeito e apreço à tolerância e da
construção de um sociedade mais justa e democrática.

Referências

ARRUTI, José Maurício Andion. Territórios Negros. disponível em<


http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/flg0563/1s2011/
Territorios_Negros.PDF> acesso em 02/02/2017.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1996.

MESSIAS, Marta Iris Camargo. Et. al. Núcleo de Estudos afro Brasileiro - NEAB/UNIPAMPA: espaço
de diálogos e formação docente. In: MESSIAS, Marta Iris Camargo. BIANCHI, Paula (org). Núcleo
Interdisciplinar de Educação: articulação de contexto e saberes nos (per) cursos de Licenciatura
da Unipampa. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2013.

MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério da Educação/


Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

PREFEITURA Municipal de São Borja. Turista: História. Disponível em < http://www.saoborja.


rs.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=66&Itemid=1329 > acesso em
01/02/2016.

ROLNIK, Raquel. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo
e Rio de Janeiro).Revista de Estudos Afro-Asiáticos 17 – CEAA, Universidade Cândido Mendes,
setembro de 1989. Revisado em abril de 2013. Disponível em: < https://raquelrolnik.files.wordpress.
com/2013/04/territc3b3rios-negros.pdf > Acesso em 06/05/2017.

SILVA, Maria Nilza da. Território e raça: Fronteiras urbanas numa metrópole brasileira Trabalho
apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizados em Caxambu,
MG, Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/
encontro2006/docspdf/ABEP2006_837.pdf > acesso em 03/06/2017.

BLOG NEABI: http://neabisbiff.blogspot.com.br/

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A MÃO AFRO-BRASILEIRA DE EMANOEL ARAÚJO MOLDANDO O
MUSEU AFRO BRASIL: O DESDOBRAMENTO DE NOVAS MONTAGENS
ARTÍSTICAS EM SUAS EXPOSIÇÕES.

RIBEIRO, Carla Brito Sousa. (PPGAS/UFSC)


cbsribeiro@yahoo.com.br

Resumo


O texto que aqui se apresenta é resultado de um primeiro olhar analítico para os dados obtidos após
a abordagem etnográfica do Museu Afro Brasil entre os meses de março a junho de 2017. O texto
se conforma como uma perspectiva sobre três montagens ligadas ao núcleo de religiosidades afro-
brasileiras, consideradas por mim como desdobradas em instalações artísticas. O ponto nevrálgico do
diálogo que busco estabelecer é a reflexão sobre os limites entre uma montagem artística dessacralizada
e a inserção de objetos de uso ritual e religioso no espaço expositivo do museu. Partindo da experiência
etnográfica no museu, espero trazer um olhar sobre a musealização de objetos relativos à cultura afro-
brasileira, bem como uma breve discussão sobre a teatralidade dos objetos museológicos, e sobre os
deslocamentos no interior das categorias que são criadas para dar sentido à musealização, passando
pela sacralidade e pela agência da materialidade. Ressalto que estes serão os primeiros apontamentos
de uma pesquisa que está sendo desenvolvida na forma de dissertação de mestrado, no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina,
financiada pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e orientada
pela Professora Ilka Boaventura Leite. O projeto de dissertação prevê o nome ainda provisório “Que Afro
é esse no Afro Brasil? – A concepção curatorial no Museu Afro Brasil (Parque Ibirapuera - São Paulo/SP)”,
e tem como meta discutir a partir de uma abordagem etnográfica, a concepção curatorial, a missão e as
noções de “afro”, África e Brasil do museu.

Palavras-chave: arte afro-brasileira; curadoria; Museu Afro Brasil; Emanoel Araújo,


instalação.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1 O Museu

O Afro Brasil é um museu instituído em 2004 através do Decreto Municipal de nº 44.816,


de 1º de junho do mesmo ano. É interessante pensá-lo por seu modelo tipológico híbrido, e por
que não dizer, experimental. Emanoel Araújo, curador e idealizador da proposta, evidencia a
singularidade da instituição através de negativas de tipologias clássicas. Para ele, o Museu Afro
Brasil não é um museu histórico, tampouco um museu de arte, um museu nacional ou etnográfico.
Trata-se de um híbrido construído através de imagens e conceitos narrados em primeira pessoa
por seu realizador, na condição de artista afro-brasileiro. Portanto, pensar a figura de Emanoel
é essencial para pensar o museu sobre o qual estamos falando. Museu esse que exibe mais de
6.000 objetos, dispostos ao longo de seu prédio de 11 mil m², entre exposições temporárias e a
de longa duração; e que possui uma biblioteca com cerca de 10.000 itens, incluindo obras raras.
Os números impressionantes também evidenciam o papel do museu como espaço simbólico de
investigação, estudo, de fruição da arte e preservação da memória afro-brasileira.

2 O Realizador

Quando se trata do Museu Afro Brasil, não é possível o dissociar da figura de seu diretor.
O museu é o resultado de um projeto de vida de Emanoel, que além de atualmente ser o diretor e
curador de quase a totalidade das exposições ali montadas, é ainda um consagrado artista plástico.
Mas os campos em que atua e atuou não se limitam aos museus e à produção artística. São tantas
as suas facetas que criar uma linha do tempo elencando as principais atividades que desenvolveu
se tornaria projeto para um livro. O mais importante, para fins de entendermos o Museu Afro Brasil,
é pensar Emanoel artista, colecionador e curador.
Nascido no nordeste brasileiro, na cidade de Santo Amaro da Purificação, Emanoel vem de
uma família de homens ourives. A região baiana teve seu auge econômico e populacional durante
o ciclo canavieiro, entre os séculos XVII e XVIII, que deixou o legado do barroco baiano presente
na arquitetura das belas igrejas repletas de ouro, prata e esculturas, e no requintado mobiliário dos
barões dos engenhos de cana de açúcar. Esse cenário foi construído pela “Mão Afro-Brasileira”,
conceito criado por Emanoel em 1987, e que dá nome à exposição também de sua autoria,
montada no ano seguinte por ocasião do centenário da abolição. Dedicada à contribuição histórica
e artística da população negra no Brasil, “A Mão Afro-brasileira” foi o estopim para a realização de
muitas outras exposições do gênero por Emanoel, e seu conceito busca evidenciar que o trabalho
no período colonial, essencialmente manual, era executado por africanos escravizados, libertos
ou por seus descendentes, além de indígenas, que assumiram a produção de gêneros e bens de
consumo, de ferramentas, da arte barroca, e de tudo o que era relacionado à produção manual,
desvalorizada pelos colonizadores ibéricos no período.  
Proibido pelo pai de exercer o ofício de ourives, Emanoel se dedicou primeiramente à

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marcenaria, depois ao desenho, à xilogravura e então à produção gráfica de cartazes e convites.
Foi a partir de 1965, quando expôs profissionalmente pela primeira vez em galerias de arte no
Rio de Janeiro e em São Paulo, que seu trabalho ganhou espaço e reconhecimento no Brasil e no
exterior. Atualmente o artista ainda produz esculturas, sobretudo as em ferro, que se tornaram a
sua marca, o que reforça a ação da sua “mão afro-brasileira” nas artes plásticas e na curadoria e
gestão do museu
O Museu Afro Brasil se tornou possível pelo seu afã de colecionador. Ao longo dos anos,
Emanoel foi adquirindo objetos vinculados à memória da população negra no Brasil, bem como
objetos africanos. Segundo a coordenadora de planejamento curatorial do museu, Ana Lúcia
Lopes, o trabalho de Emanoel na curadoria o levou a descobrir um acervo desvalorizado, tanto
em seu aspecto semântico quanto econômico, o que tornou possível a aquisição de milhares de
objetos, dois quais cerca de 1100 fizeram parte do acervo inicial do museu, cedidos à instituição
em regime de comodato. A prática colecionista do diretor ainda é costumeira, o que fez com que o
acervo do Afro Brasil tenha crescido vertiginosamente ao longo dos seus treze anos de existência.
Contudo, é comum que a sua relação intrínseca com a instituição leve a questionamentos internos
que dizem respeito aos limites entre o público e o privado.

3 A curadoria

A narrativa curatorial criada por Emanoel não se orienta por uma cronologia histórica fixa,
mas opera principalmente por meio do movimento. Desde a concepção de “A Mão Afro-brasileira”,
em 1987, os objetos de sua coleção, muitos atualmente parte do acervo, circulam entre exposições
de curta duração e, após criado o Museu Afro Brasil, em sua reserva técnica. O museu é ainda um
espaço de criação. Não apenas para o curador-diretor, mas também para membros da equipe,
que se vinculam ao projeto museológico por acreditarem nesse espaço de fruição da arte afro-
brasileira, que acima de tudo veicula uma narrativa diversa à hegemônica presente nos espaços
de memória atualmente, que delimita o negro à ideia do sofrimento legado pelo sequestro de seus
locais de origem e escravização de seus corpos. Nas suas mais distintas montagens, o que se busca
no museu é atuar no imaginário dos visitantes, é propor questionamentos, inclusive a respeito da
ausência desses objetos e narrativas em outros espaços. As imagens de África ali contidas também
são a forma de Emanoel trabalhar a ancestralidade africana, de uma forma por vezes personalista,
pois é possível perceber a sua vivência na narrativa de suas imagens. É especificamente essa
vivência enquanto artista que caracteriza as instalações que serão abordadas.
A primeira delas é um assentamento para Xangô (figura 1), montagem inspirada no poste
central da Casa Branca do Engenho Velho, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em Salvador (figura 2). A
segunda demanda atenção aos detalhes da exposição, e transforma o visitante em um voyeur, ao
incitar que espie através de pequenos buracos em uma parede branca para ver a representação do
que seria um peji de Candomblé (figuras 3 e 4), criado pelo também artista plástico e museógrafo

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Roberto Okinaka. A terceira e última instalação, também realizada por Roberto Okinaka em parceria
com Emanoel Araújo, é uma espécie de altar que recebe imagens de São Cosme e Damião, datadas
do século XIX e esculturas iorubás representando os gêmeos ibejis (figura 5), indicadas como
sendo do século XX.  

4 As instalações
É preciso me d
eter um pouco no que está entendido por instalação no contexto do museu. Embora
nenhuma das montagens às quais me refiro tenham indicação de autoria em suas legendas, são
criações para além de uma estratégia de cenografia, que incitam de alguma maneira a participação
do visitante, seja através de seu deslocamento através do espaço em que estão expostas para
melhor visualizar as obras, seja através do impulso de checar as fendas em uma parede branca,
seja ofertando uma moeda à Xangô. O que as instalações possuem em comum são as intersecções
e liminaridades que permeiam o imaginário sobre o sagrado e o artístico nas religiosidades afro-
brasileiras. As considero como arte instalações tendo em vista a definição de Julie Reiss (1999),
que aponta essa forma de produção artística como trabalhos criados no local da exposição que
demandam de alguma maneira a interação entre a obra, o espaço e o espectador, que participa da
instalação ainda que essa participação se limite à percepção e exploração do espaço que toma a
obra e seu conteúdo.
Há ainda um certo nível de teatralidade nas instalações, enquanto performance e encenação,
característica um tanto quanto comum à objetos musealizados. A noção de performance pensada
aqui é alargada para além das artes visuais e do contexto ritual, conforme Bruno Brulon, que
considerou em sua análise de um ecomuseu francês, “toda a forma de ação humana - ou toda
a forma de ação humana em que se imagina haver um público, real ou virtual (...)” (2013, p.158)
enquanto performance, que diz respeito a uma forma de comunicação para um público específico.
No caso do museu, o público do Afro Brasil, que no âmbito das instalações é estimulado pela
apresentação de ambientes e elementos do cenário religioso afro-brasileiro fora de seu contexto
usual. Não se trata, no entanto, de uma tentativa de enganar ao visitante do espaço, ou da tentativa
de fazê-lo crer no uso do museu como um terreiro ou uma casa de umbanda, por exemplo. Brulon
lembra que ao passar pela bilheteria da instituição, o visitante se conscientiza a respeito dos
elementos performáticos e cenográficos que encontrará, visto que o museu os pressupõe, ainda
que o senso comum pense a encenação nos museus como a encenação de um passado e de suas
memórias.
Sabemos entretanto, que as intersecções da performance em meio à complexidade
de elementos das instalações, bem como a potencialidade do espaço em se encontram, não
proporcionam leituras unívocas. A instalação “Assentamento para Xangô”, por exemplo, foi
criada no Museu Afro Brasil como uma reprodução do poste central do consagrado terreiro de
candomblé baiano Casa Branca do Engenho Velho, ou Ilê Axé Iyá Nassô Oká, tombado pelo

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Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1986. A Casa Branca do Engenho
Velho é considerado o primeiro terreiro de candomblé baiano e possivelmente o mais antigo em
funcionamento no Brasil. Funciona também como um espaço cultural, contendo um memorial, e
um núcleo de atividades realizadas para o desenvolvimento e sustentabilidade da comunidade
de adeptos. Antes de seu tombamento inclusive, o terreiro formou uma Sociedade Beneficiente e
Recreativa, como uma maneira de resistir à criminalização dos cultos afro-brasileiros na década de
1940. O fato é que o terreiro sempre se constituiu em um grupo étnico-eclesial1. As características
do Ilê evidenciam que um espaço de culto religioso não se restringe ao cenário de religiosidade,
em concordância com o Museu Afro Brasil, que não se limita a um ou a outro modelo tipológico,
que não exibe somente arte, ou somente história ou apenas objetos etnográficos ou litúrgicos.

Figura 1: Assentamento para Xangô no Museu Afro Brasil


Figura 2: Coroa de Xangô no terreiro da Casa Branca (Salvador)

O artista que criou a instalação é iniciado na religião, e foi convidado por Emanoel Araújo para
criar uma réplica do espaço de oferta e reverência ao orixá Xangô no museu. Há controvérsias quanto
aos relatos a respeito do processo ritual de montagem da instalação. Segundo a coordenadora de
planejamento curatorial da instituição, Ana Lúcia Lopes, todos os objetos de uso cerimonial ou
de envolvimento com aspectos das religiões afro-brasileiras que estão em exposição no museu
foram dessacralizados. Ou seja, estão à mostra no espaço especialmente pelo seu caráter estético
e pedagógico, pois cumprem uma funcionalidade no âmbito da narrativa curatorial. Já Roberto
Okinaka, museógrafo e artista plástico, me afirmou durante uma conversa, que durante o processo
de montagem do assentamento houve o respeito a todas as premissas religiosas do Candomblé,
e que Xangô inclusive é o orixá protetor do museu. Uma educadora da instituição também me
afirmou que Emanoel, além de ser filho de Ogum, também leva Xangô entre os orixás que regem a
sua cabeça. Nesse contexto, há que se concordar com Albena Yaneva quando a autora considera
os museus não apenas como molduras que abrigam instalações de arte, mas sim como o resultado
de suas operações, de suas controvérsias e hesitações internas (YANEVA, 2003, p.114).
Quando o Afro Brasil exibe objetos de caráter sagrado às religiões afro-brasileiras como
obras de arte, ele propõe a valorização de seu caráter estético através da artificação desses
objetos rituais. O caráter de artificação, proposto como conceito por Roberta Shapiro (SHAPIRO
apud BRULON, 2013, p.158) é dado através do processo de transformação de um objeto que não
foi criado para fins artísticos em obra de arte. Conforme a autora, por artificação entende-se um
arranjo complexo entre atores e objetos que modificam o status simbólico e discursivo do objeto
para dar-lhe caráter artístico. O processo de artificação pode ser identificado com frequência no
âmbito dos museus de arte sacra e em muitos museus etnográficos, nos quais objetos criados
para uso ritual são deslocados de seu ambiente de uso e passam duplamente pelo processo de

1 Cf. OLIVEIRA, 2005, 395 p.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

musealização2 e de artificação. No âmbito do catolicismo, a artificação é um processo comum


por conta de sua liturgia de culto às imagens. Esse processo muitas vezes ocorre ainda no interior
das igrejas e arquidioceses, que são as maiores responsáveis pela gestão dos numerosos museus
de arte sacra brasileiros. Já no que se refere aos museus etnográficos, muitos objetos como as
chamadas esculturas e máscaras expostas são frutos de coleções acumuladas no contexto do
colonialismo, através de pilhagens ou de trocas nada equivalentes, o que faz com que pouco ou
nada saibamos a respeito dos usos pretéritos desses objetos. Nesse sentido, a musealização e a
artificação operaram em paralelo para dar valor artístico - sob o ponto de vista ocidental - para esses
objetos. Muito se debate a respeito dos usos primeiros dos elementos dessas coleções, e é comum
que se afirme que a arte negro africana tradicional foi criada no âmbito do uso ritual e religioso, feita
para a circulação e para o toque. O certo é que, concordando com Kabengele Munanga (2006),
“querer afirmar que o aspecto religioso é a todo momento presente e predominante me parece
exagerado”, pois é necessário ponderar a respeito dos múltiplos contextos nas mais variadas
sociedades das quais foram extraídos os atualmente artificados objetos, além de que é preciso
ter em mente as dimensões da vida social, nas quais nem sempre a vida espiritual ou religiosa é
distinta da política, do trabalho, do cotidiano comunitário. Em muitas comunidades não é possível
a dessacralização de algo.
É possível pensar a instalação do assentamento como performance, na qual mesmo que
seja ignorada a sua função ritual por parte dos colaboradores da instituição, ainda há o fator da
interação com o visitante que define a instalação; ou seja, por mais “dessacralizado” que possa
estar o assentamento por parte da instituição, devotos das mais diversas religiões afro-brasileiras
que cultuam aos orixás poderão prestar seu respeito e fazer, possivelmente, suas ofertas e
reverências à Xangô, anulando o aspecto meramente figurativo da obra, que dá lugar ao caráter
performativo do assentamento.
A curadoria de Emanoel Araújo opera através da criação de imagens que tentam inserir
novos paradigmas a respeito da descendência africana no Brasil. Nesse sentido, a instalação
sem nome e sem legenda, montagem do que seria um peji de candomblé por Roberto Okinaka,
artista nipo-brasileiro, opera no imaginário dos visitantes, que ao espiarem o altar dedicado aos
orixás e ao “povo da esquerda”, como exus e pombas-gira, acionam as imagens de proibição que
permeiam o imaginário sobre as religiões de matriz africana no Brasil. Ao mesmo tempo em que
remete ao interdito, a instalação exige que o visitante preste reverência ao altar dos orixás, ao se
curvar para observar as imagens que fazem alusão ao espaço de culto. Roberto Okinaka me disse
durante uma conversa, que são comuns os questionamentos acerca de sua “autoridade”, enquanto
descendente de japoneses e não iniciado no candomblé, para realizar tal montagem e tratar desse

2 O processo de musealização é entendido não apenas como o ato de inserir


um bem cultural (tangível ou intangível) em um museu, mas antes passa pela sua seleção
e retirada do ambiente e contexto de uso para ser submetido a uma série de procedimentos
técnicos que possuem como objetivo a transformação dos bens em documentos/testemunhos
de uma sociedade, ou ainda, em seu patrimônio.

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assunto. Ele afirmou rebater destacando a importância de se ter respeito, pois ele acredita que
tudo o que é feito com respeito é legítimo, afinal, embora não seja praticante da religião, ele declara
que frequentou e ainda frequenta terreiros de candomblé, e que a estética desses espaços sempre
lhe encantou. Afinal, a artifcação desses objetos dispostos na instalação faz com que eles percam
o status de objetos de culto?

Figuras 3 e 4: Imagens da instalação de Roberto Okinaka

É importante ponderar a respeito da polivalência dos objetos, pois se aqui se pensam


instalações, pensamos montagens realizadas através de diversos objetos que sem deixar de
significar individualmente tornam-se também instalações, possibilitando interpretações e leituras
diversas. Ao mesmo tempo em que não deixam as suas características intrínsecas, a produção de
sentido e a elaboração de relações possíveis é estabelecida por meio da narrativa curatorial.
Ainda que a narrativa curatorial seja determinante, os objetos possuem agência. Embora na
antropologia contemporânea muito espaço se dedique à agência não humana, alguns intelectuais
foram fundamentais para se pensar essa agência no contexto das artes. Merleau-Ponty foi um dos
pioneiros a chamar a atenção para a não neutralidade das coisas, e para a relação que existe de
investidura entre os sujeitos e os objetos (ALVES, 2008). Alfred Gell traz com o seu consagrado
“Art and Agency” (1998) a noção de agência das obras de arte, bem como o estudo da arte a partir
de sua compreensão no meio social, focando-se na produção, circulação e recepção da arte ao
invés de trabalhar a partir da apreciação crítica de produções específicas. O interessante é que,
a partir dos postulados de Gell, podemos pensar nos movimentos e deslocamentos dos objetos
para além das categorias que foram criadas sob a influência do positivismo - e em sincronia com
os museus tradicionais como os conhecemos. De modo geral, sua proposta abre precedente para
que percebamos a agência dos objetos, que deixam de fazer sentido a partir de uma concepção
etnocêntrica sobre arte, e passemos a nos atentar metodologicamente para o papel da construção
social desses objetos. Assim,
Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses
contextos é em grande parte entender a própria dinâmica da vida social e cultural, seus conflitos,
ambiguidades e paradoxos, assim como seus efeitos na subjetividade individual e coletiva
(GONÇALVES, 2005, p. 15)
Os contextos os quais menciona José Reginaldo dos Santos Gonçalves são contextos
sociais, cerimoniais, institucionais e discursivos. O que o pesquisador também ressalta é que no
âmbito desses diversos contextos existiram e ainda existem movimentos, pois a vida social dos
objetos não é em nenhuma medida estática. Quando falo em vida social dos objetos não pretendo
inferir que eles possuam uma vida social separada da humanidade, mas chamar a atenção para
sua agência nos processos históricos que tem levado à sua patrimonialização. Esculturas de arte
sacra católica por exemplo, criadas para ser parte de cerimônias litúrgicas religiosas são em algum
momento pensadas como relíquias, seja por suas características extrínsecas, como o valor dos

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

materiais utilizados em sua produção, ou pelo extenso período em que foram usadas no contexto
ritual, e assim, tomam lugar em museus. A depender da instituição que lhes recebem, serão
moldadas suas possibilidades de leitura. Se são musealizadas por um museu gerido por uma
arquidiocese, não raro poderão ser inseridos em um discurso educativo e devocional, mantendo
sua função cerimonial em um contexto de revalorização. A depender do público, que nos museus
de Arte Sacra não raro se constitui majoritariamente por fiéis da Igreja Católica, as imagens
continuarão a receber preces.
Muitos aspectos podem ser diferentes caso essas esculturas venham a compor a narrativa
curatorial em um museu como o Afro Brasil.

Figura 5: Instalação por Roberto Okinaka e Emanoel Araújo

A instalação que compõe uma espécie de monumento às figuras míticas de irmãos gêmeos,
que exibe os ibejis da mitologia iorubá, e imagens de São Cosme e São Damião no catolicismo,
exemplifica um pouco a força da curadoria na produção do discurso a partir de objetos litúrgicos
artificados. Seguindo um formato de obelisco, o monumento é uma espécie de altar, protegido por
vidros, que traz elementos diversos que remetem a ofertas às imagens. A instalação traz ainda,
além de todas as possíveis leituras e das sensações que suscita, uma ilustração a respeito da
movimentação social dos objetos. Esculturas criadas em diferentes contextos, partindo de duas
possibilidades de enxergar o mundo em distintas sociedades se juntam para evocar uma narrativa
comum a respeito do culto à transcendentalidade de figuras de irmãos gêmeos. Mais além de se
constituir em uma imagem comparativa de duas cosmovisões, a instalação também é, segundo
Roberto Okinaka, uma homenagem aos ibejis, protetores do Museu Afro Brasil. O museógrafo e
co-curador trabalhou em conjunto com Emanoel Araújo na montagem da instalação-altar, e me
contou que o museu está envolto em uma série de acontecimentos que evocam a presença dos
gêmeos da mitologia iorubá.
O que pode-se concluir é que o trânsito das categorias pode também significar uma
concomitância das mesmas, uma vez que é possível perceber as esculturas como objetos de arte,
ou imagens cerimoniais artificadas, ou mesmo como instalação, enquanto conjunto unificado,
ou até mesmo como documentos, ou testemunhos das cosmovisões iorubá e católica. É certo
que a musealização de objetos não significa o congelamento desses objetos em uma instituição
patrimonialista, mas sim uma possibilidade de diálogo entre culturas,   de conhecimento e de
significação para grupos diferentes. Pois como defendeu James Clifford (1997), museus podem
ser zonas de contato, nas quais embora a força institucional e burocrática esteja presente, existe
uma tendência à aproximação entre os museus e as comunidades representadas, que cada vez
mais conseguem imprimir sua vocalidade nos objetos expostos, que lhes foram tomados pelo
colonialismo. Os objetos, para concordar novamente com Bruno Brulon (2013), são liminares,
e assim, não precisam deixar de fazer sentido em uma sociedade, enquanto objeto cerimonial,
para fazer sentido em outra enquanto arte, mas conseguem transitar simultaneamente entre um

Página 688
universo e outro.

Referências

ALVES, Caleb Faria. A Agência de Gell na Antropologia da Arte. Horizontes Antropológicos,


Porto Alegre, v. 29, n. 14, p.315-338, jan. 2008. Semestral.
 
BRULON, Bruno. Da artificação do sagrado nos museus: entre o teatro e a sacralidade.
Anais do Museu Paulista., São Paulo, v. 21, n. 2, p.155-175, jul. 2013. Semestral.
 
CLIFFORD, James. Museums as Contact Zones. In: CLIFFORD, James. Routes: travel
and translation in the late twentieth century. Cambridge: Harvard University Press, 1997.
p. 188-219.
 
GELL, Alfred. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon,
1998.
 
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Teorias Antropológicas e objetos materiais. In:
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Antropologia dos Objetos. Rio de Janeiro,
2007. p. 14-42. (Coleção Museu, Memória e Cidadania).
 
MUNANGA, Kabengele. A Dimensão estética na arte negro-africana tradicional. 2006.
Disponível em: <http://www.macvirtual.usp.br/mac/arquivo/noticia/Kabengele/Kabengele.
asp>. Acesso em: 30 jun. 2016.
 
REISS, Julie H., From Margin to Center: The Spaces of Installation Art, The MIT Press
Cambridge, Massachussets London, England, 1999.
 
OLIVEIRA, Rafael Soares de. Feitiço de Oxum: Um estudo sobre o Ilê Axé Iyá Nassô Oká
e suas relações em rede com outros terreiros. 2005. 395 f. Tese (Doutorado) - Curso de
Ciências Sociais, PPGCS, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.
 
YANEVA, Albena. When a bus met a museum: following artists, curators and workers in art
installation. Museum And Society, v. 3, n. 1, p.116-131, nov. 2003.
 
 
Referências de Imagens:
Figuras 1, 3, 4 e 5: Carla Brito Sousa Ribeiro (2017)
Figura 2: Portal Awùre (http://awure.jor.br/home/ile-axe-iya-nasso-oka-terreiro-da-casa-
branca-engenho-velho/) Acesso em 30/06/2017

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A TRADIÇÃO AFRICANA DOS GRIOT’S: DO MALI AO BRASIL, DE “BOCA-


OUVIDOS”... POSSIBILIDADES NA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA!

Autora: Patrícia da Silva Pereira


Professora de Anos Iniciais/SMED/PMPA
Graduanda em Direito/UFRGS
Mestra em Educação/FACED/UFRGS
patriciasp@smed.prefpoa.com.br

Resumo

A pesquisa, apresentada em minha Dissertação, investiga o modo de produção de novos Griot’s, a


partir de atividades realizadas com as crianças participantes das Oficinas “Semeando a História”, na
ONG AfroSul/Ọ̀dọ́mọdé, na cidade de Porto Alegre/RS. Investigo como os modos de ser Griot influi
diretamente nas atividades, nos discursos, nas relações entre as crianças, e destas com os adultos,
subjetivando-as num modo de ser criança e de viver suas infâncias afrocentrado. Discuto os diferentes
modos de ser criança a partir do contexto da criança africana, branco-europeia, indígena e afrobrasileira,
e como a formação étnico-cultural da população brasileira fundamenta tais diferenças e as caracteriza.
Constituo o modo de ser afro-gaúcho, um afrobrasileiro produzido na convivência e relações instituídas
no espaço geográfico do estado do Rio Grande do Sul, a partir das diferentes etnias historicamente aqui
residentes. Apresento a cultura Griot, a partir da concepção da cultura malinesa de Hampaté Bâ, sua
ressignificação pelo Grupo Grãos de Luz Griô/Lençóis/Ba, e como foi reorganizada e interpretada pela
ONG em questão e seus Griot’s. Evidencio as diversas atividades propostas às crianças, a partir das
conversas, de uma oralidade basilar, que entremeia as propostas e materializa as aprendizagens. Nestas
infâncias múltiplas, e suas contribuições na produção destes novos sujeitos, crianças que percebem o
mundo em sua diversidade e multiplicidade cultural e étnicorracial, encerra-se o desejo de ampliação
das ações pensadas e planejadas para a manutenção das culturas ancestrais, potencializando a
continuidade das tradições, em especial, dos Mestres dos Saberes e da Pedagogia Griot. Ao final do
trabalho, apresento as perspectivas dos Griot’s do local, e sua preocupação com a disseminação da
bagagem cultural e histórica acumulada até este momento. E enfatizo aqui, a possibilidade de expansão
desta Pedagogia, em especial na educação escolar, tendo os Professores o papel de Griot-Educadores.

PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia Griot. Infâncias. AfroSul/Ọ̀ dọ́mọdé.

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1. Introdução

A temática da Educação Antirracista encantava-me, mas não conseguia vislumbrar-me


dando prosseguimento aos meus estudos pesquisando a prática da educação escolar. E, de certa
forma, a Pedagogia Griot, o contato tão próximo com as comunidades e com estes ensinamentos
ancestrais africanos, me pareceu uma possibilidade de conhecimento fora dos muros escolares.
Numa das festividades no AfroSul/Ọ̀dọ́mọdé, durante uma conversa ouvi que eles
debatiam sobre Griot’s e aquelas palavras brilharam em mim. Percebi que poderia prosseguir
meus conhecimentos naquele espaço cultural, que não era escolar, mas possuía atividades
pedagógicas diferenciadas e interessantes. Fui buscando, conjuntamente, conhecer mais sobre as
duas práticas: a Pedagogia do Grupo Grãos de Luz e a experiência realizada no AfroSul/Ọ̀dọ́mọdé,
e, com certeza, ingressar no Mestrado na UFRGS buscando um Orientador que compreendesse
minha proposta e quisesse “ancestralizar-se” comigo.
Com todos os desafios, encruzilhadas e mudanças possíveis de acontecerem em tão pouco
tempo de curso, a Dissertação tomou seus próprios rumos, levando-me a focar num problema de
pesquisa muito específico e instigante: neste espaço cultural afrocentrado, que tem uma prática
pedagógica ancestral africana orientando suas ações com as crianças desde tenra idade, até
jovens e adultos, há a intencionalidade de produzir novos Griot’s?
A partir deste questionamento basilar da pesquisa, o objetivo central nesta investigação
foi identificar as formas de transmissão de conhecimentos e saberes transgeracionais dos Griot’s,
a partir de uma prática ancestral afro-brasileira – a Pedagogia Griot. Apesar de se tratar de uma
forma de transmissão de saberes milenar, presente em várias etnias em África1, a opção teórica foi
delimitar meus estudos na cultural malinesa, a qual deu origem à Pedagogia constituída aqui no
Brasil.
Entendendo sua constituição como Pedagogia, aplicada primeiramente pelo grupo Grãos
de Luz/BA, busquei identificar a constituição da prática dos Griot’s e como o efeito de viver um
tipo de infância foi constituidor da mesma, e pode vir a ser um modo de constituição de outros
sujeitos Griot’s. Para isto, além das observações e participações nas atividades com as crianças,
as entrevistas e interações com estes Griot’s, que fundaram e atuam nesta ONG2, tem uma grande
importância para a compreensão de como estes foram constituídos e como pensam e fazem a
constituição de uma nova geração.

1 Neste trabalho, ao me referir a contextos no/do continente africano, uso o termo “em/de África”, como utilizado por Edward Wilmont Blyden,
em seu discurso de 1884, em Freetow, sobre a recolonização da África a partir da Libéria, afirmando que “só em África a raça negra pode realizar o
seu destino”. Aqui, o conceito de África não é apenas de um continente geográfico, mas de um ente cultural, político e histórico, que tem praticamente
personalidade própria, fechado sobre si mesmo. O desconhecimento por nosso passado africano, torna-a mais do que um ente desconhecido, mas um
ente sagrado e misterioso. O movimento pan-africanista, do qual Blyden é um expoente, tem por ideologia central a união de todos os povos de África,
como forma de potencializar a voz do continente no contexto globalizado internacional, buscando seu espaço político, social, econômico, histórico e
cultural. É buscar nosso lugar como centro da humanidade!
2 ONG – Organização Não-governamental. Entidades pertencentes ao Terceiro Setor econômico, sendo que “não passam de um pequeno
segmento, mas as suas características resumem-se com nitidez na ideia do “privado com funções públicas”. São instituições propriamente privadas, mas
sem fins lucrativos.” (FERNANDES, 1994, p. 65).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Ao contextualizar esta nova infância pensada e ressignificada a partir de uma Pedagogia


Griot, faz-se necessário contextualizar a ressignificação das infâncias neste espaço social “e/a
partir de” os Griot’s pesquisados. Pensar na história humana e como entendemos as crianças e as
infâncias em seu núcleo familiar historicamente, principalmente nas crianças negras, indígenas e
mestiças, que foram tão invisibilizadas ao longo da história do Brasil. Relacionar esta constituição
de infância e criança com a ideia de outra infância especificamente formada para levar um legado
ancestral cultural e histórico a outros espaços, pessoas e tempos. Assim, procuro entender esta
“nova” criança, pensamos nesta outra sociedade (que desejamos construir) que lide de forma mais
ampla, e devidamente empoderada, com os problemas que as diferenças raciais são vislumbradas
nos dias atuais.
Ao contextualizar esta infância e estas crianças, subjetivadas por este modo de ser negra
nesta instituição, procurei descrever como, neste espaço de resistência cultural e social, os Griot’s
continuam produzindo modos de ser sujeito através de gerações. O foco foi observar as atividades,
as relações, os discursos, ou seja, os seus ditos e não ditos, e o que as crianças relatam de si e das
relações com os outros, adultos e crianças, que significativamente demonstrem como entendem a
educação antirracista e os conceitos históricos desta luta pedagógica e histórico-social.
E, por fim, analisar a relação entre os espaços educativos não-formais e a produção de
aprendizagens ancestrais que se manifestam através de gerações. Mesmo sendo um pano de
fundo nos objetivos gerais desta Dissertação, tem sua relevância por nos dar o cenário específico
destas abordagens seculares, que também não se deram originalmente em ambiente escolar.
É atentar para as Legislações, Diretrizes e Orientações para as Relações Étnico-raciais, que em
sua base pensam quase que exclusivamente no ambiente escolar, de como estas se efetivam
nestes espaços educativos, e qual a importância de pensar nestas mesmas atividades como
complementaridade pedagógica. Ou seja, o que estes espaços culturais podem e devem contribuir
na formação, reflexão e atuação de outros Educadores e o que disto as crianças levarão para suas
atividades e reflexões nos seus cotidianos de atividades escolares, e que poderão ter reflexos e
efeitos na reorganização de uma sociedade que atente para a diversidade, efetivando relações
mais respeitosas e humanas.

2. Os Griot’s

Contrário sensu, as civilizações de África, principalmente no Saara e no sul do deserto,


possuíam uma escrita, mas valorizavam muito mais a cultura falada, pois o acesso à escolarização
escrita era menor, secundarizada em relação às preocupações essenciais destas sociedades.
Apesar disto,

(...) seria um erro reduzir a civilização da palavra falada simplesmente a uma negativa,
“ausência do escrever”, e perpetuar o desdém inato dos letrados pelos iletrados, que

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encontramos em tantos ditados, como no provérbio chinês: “A tinta mais fraca é preferível a
mais forte palavra”. Isso demonstraria uma total ignorância da natureza dessas civilizações
orais. (VANSINA, 2011, p. 139).

A palavra tem um poder e um reconhecimento secular para estas civilizações, que


transparece em suas atitudes, em seus discursos, totalmente diferentes das outras civilizações.
Esta oralidade é entendida muito mais do que um meio de comunicação, mas como um meio de
preservar a memória, a sabedoria dos ancestrais, atuando como “um testemunho transmitido
verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso,
pois palavras criam coisas.” (idem, p. 140). Assim, pensam nesta oralidade como uma atitude
ancestral frente à realidade e não como uma falta de habilidade intelectual.
Contrariando as expectativas de muitos estudiosos ocidentais, as tradições orais africanas
não se limitam às histórias e lendas, ou a uma religiosidade única, ou mesmo a relatos mitológicos
ou históricos, e os Griot’s não são os únicos guardiões ou transmissores destes conhecimentos,
mas para nós aqui do outro lado do Atlântico, tem sido uma grande referência de memória viva.

Os grandes depositários da herança oral são os chamados “tradicionalistas”, Memória


viva da África, eles são suas melhores testemunhas. Quem são esses mestres?

Em bambara, chamam-nos de Doma ou Soma, os “Conhecedores”, ou Donikeba.


“fazedores de conhecimento”; em fulani3, segundo a região de Silatigui, Gando ou
Tchiorinke, palavras que possuem o mesmo sentido de “Conhecedor”. Podem ser
Mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo tradicional específico (iniciações do ferreiro,
do tecelão, do caçador, do pescador, etc.) ou possuir o conhecimento total da tradição
em todos os aspectos. Assim, existem Domas que conhecem a ciência dos ferreiros, dos
pastores, dos tecelões, assim como das grandes escolas de iniciação da savana – por
exemplo, no Mali, o Komo, o Kore, o Nama, o Do, o Diarrawara, o Nya, o Nyamorole, etc.

Mas não nos iludamos: a tradição africana não corta a vida em fatias e raramente o
“Conhecedor” é um “especialista”. Na maioria das vezes, é um “generalizador”. (BÂ, 2011,
p. 174-175. Grifos do autor).

Os Griot’s guardam os conhecimentos que são aplicados no dia a dia de sua comunidade,
das ligações cósmicas entre vivos e mortos, guardam os segredos da Gênese cósmica e das
ciências da vida. Entre suas habilidades, para se tornarem tradicionalistas, precisam ter uma
excelente memória, pois são considerados arquivistas dos fatos que lhes são transmitidos,
baseados nos testemunhos insubstituíveis de outros africanos qualificados. Nem todos os
Griot’s são necessariamente um tradicionalista “conhecedor”, mas pode se tornar um se tiver sua
vocação, pois estes “continuam a transmitir a herança sagrada àqueles que aceitam aprender e
ouvir e que se mostram dignos de receber os ensinamentos por sua paciência e discrição, regras
básicas exigidas pelos deuses” (BÂ, 2011, p. 176).
Dentro da cultura malinesa, existem três categorias de Griot’s:

3 Também conhecido como etnia e língua “Fula”, da qual o autor descende.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.).
Normalmente são excelentes cantores, preservadores, transmissores da música antiga e, além
disso, compositores.
os griots “embaixadores” e cortesãos, responsáveis pela mediação entre grandes famílias
em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única
pessoa.
os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo), que em
geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a
uma família. (BÂ, 2011, p. 193).

3. Uma ONG Afro-Gaúcha

Em batalhas diárias dentro das Senzalas e nos Terreiros, passando estas memórias de
boca-ouvido, mantendo a oralidade como seu instrumento primordial, foram surgindo espaços de
preservação cultural e religioso: Clubes, Agremiações, Grupos de Dança e Capoeira, entre outros,
com viés etnicorracial.
Seguindo este rastro de agremiações especificamente com viés etnicorracial, surge, em
1974, o Grupo Afro-Sul de Música e Dança, a partir da reunião de um grupo de jovens negros que
criou uma banda de música (entre eles o Griot Paulo Romeu), para participar de um festival musical
de uma escola da capital gaúcha, e que, para que se saíssem melhor, optaram por incluir jovens
bailarinos ao grupo, com a coreografia de Iara Deodoro. Nas palavras da Griote4 e co-Fundadora
do Grupo, depois desta apresentação, estes jovens se reuniram periodicamente, e “aí, dali em
diante que a gente começa a pesquisar, a olhar... Eu começo a me antenar mais ainda desta
coisa da dança em grupo e buscar onde isto, né? Não tinha muito aonde! Porque não tinha muito
esta coisa de divulgação das danças negras, não tinha internet, não tinha vídeo, não tinha nada.”
Segundo ela, filmes clássicos de Hollywood, que tinham cenas de tribos africanas dançando,
serviram de inspiração para as primeiras coreografias, com as observações dos movimentos
corporais daqueles bailarinos.
Em 1980, o já casal Iara e Paulo participaram da fundação da Escola de Samba Garotos da
Orgia, sendo que em 1998 assumiram sua direção. Porém em 1999, perceberam a necessidade
de troca para Sociedade de Ação Social, Recreativa, Beneficente, Cultural e Bloco Afro Ọ̀dọ́mọdé
(Raiz Afro-Gaúcha), ampliando as atividades artísticas, para agregar as questões educativas
e sociais. A criação do Bloco Afro Ọ̀dọ́mọdé5 não estabeleceu um rompimento total com a
comunidade carnavalesca, pois seguiu desfilando até 2011, em várias agremiações da capital e
região metropolitana.

4 Griote: feminino de griot. (Bâ, 2013, p. 35 – Nota)


5 O nome Ọ̀dọ́mọdé foi escolhido pelo seu significado na língua africana yorubá: “jovem, novo, garoto”, visto que o grupo está voltado
prioritariamente à participação de jovens. Neste trabalho, a ONG será denominado AfroSul/Ọ̀dọ́mọdé.

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A partir da criação do Ọ̀dọ́mọdé, a quadra que era utilizada pela Escola de Samba foi
transformada em Centro Cultural de Ação Social, com a concepção e execução de um projeto
de inclusão sociocultural, onde há oportunidade de criar e experimentar inúmeras práticas
pedagógicas, estando orientada também pela efetivação da Lei 10.639/03, que faz constar nos
currículos escolares a História e Cultura da África e do Negro no Brasil. Apesar das emendas à
LDB/96 definirem apenas as ações para as Redes Escolares efetivamente, o mesmo não se
restringem a outras normativas, como as Orientações para as Relações Étnico-Raciais, que
orientam as ações da Entidade.
Dentro de ONG’s como o AfroSul/Ọ̀dọ́mọdé, as atividades culturais e assistenciais se
desenvolvem de maneira conjunta, com uma lógica de envolver as crianças, adolescentes e jovens
em atividades lúdicas, atraindo suas famílias para que participem do cotidiano destas crianças e
de outras atividades, tanto assistenciais, culturais como comunitárias, voltadas ao público adulto.
Como forma de interagir e envolver as famílias destas crianças e jovens, e também de mostrar
o trabalho realizado com/por com estes, são organizadas apresentações culturais nos eventos
ao público (chás, jantares, almoços, etc.) em geral, como forma de motivá-las e favorecer o
desenvolvimento da autoestima.

4 A oralidade na educação e cultura afro-brasileira – Ação Griot


É com as políticas públicas do final dos anos de 1990, que o Grupo Grãos de Luz, da cidade
de Lençóis, na Bahia, tem contato com os Contadores de Histórias de tradição africana, e “passa a
desenvolver ações vinculadas à figura do Griô africano, ações que se transformam no Projeto Griô”
(PINHEIRO, 2013, p. 41), que tem como objetivo a valorização dos mestres e mestras portadores
dos saberes e fazeres da cultura oral, com a figura dos Griot’s no centro da ação pedagógica, e o
fomento da transmissão desta tradição nos espaços escolares e comunitários.
Em 2004, com o lançamento do Projeto Cultura Viva do Ministério da Cultura, há um
fomento para a ampliação dos Pontos de Cultura em todo o país, passando inclusive, por um
curto período, a fornecer Bolsa-Auxílio para os Mestres envolvidos na organização destes novos
espaços culturais ancestrais.

O Programa Cultura Viva articula a criação de uma rede de gestão cultural nacional, com
o objetivo de fortalecer o protagonismo cultural e a valorização de comunidades excluídas
em todo o país. Para isso, reconhece e apoia financeiramente os pontos de cultura, que são
organizações da sociedade civil, que têm seus projetos selecionados através de editais
públicos. (...) Na ocasião do lançamento do Programa Cultura Viva, em 2004, a ONG
Grãos de Luz e Griô teve seu projeto selecionado e passou a ser um pontos de cultura.
Além disso, firmou um convênio com o MinC e passou a compartilhar com a Secretaria de
Cidadania Cultural (SCC-MinC) a coordenação da Ação Griô Nacional, uma das ações do
Ministério, dentro do Programa Cultura Viva. (Idem, p. 41-42).

Podemos compreender que, com esta ação governamental, a figura do Griot e toda a
sua tradição ancestral negro-africana são retomados, divulgando de ponta a ponta do país esta

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

tradição, de forma ressignificada e dando voz e vez para ações de pessoas simples, espalhadas
nas mais distantes comunidades, poderem mostrar e compartilhar seus saberes. Com isto, há uma
grande ressignificação do papel deste Griot em nossa cultura. Por mais que o embasamento desta
ONG, num excelente trabalho de sistematização dos conceitos, da busca do papel histórico dos
Griot’s na vida dos africanos e na perpetuação de suas histórias, aqui, nestas ações, estes Griot’s
assumem um papel mais próximo das lideranças de nossos Terreiros e pátios de senzalas.

O novo griô é um projeto que objetiva ações de reconhecimento e valorização se saberes e


fazeres expressos através da oralidade popular. Para isso, utiliza a figura do griô da tradição
africana para estabelecer um vínculo com a cultura negra e com os valores expressos
nessa tradição; a figura do “velho” ou da “velha”, que na África ou nas senzalas do Brasil,
guardavam na memória a história de seu povo, que transmitiam através da oralidade
saberes e fazeres importantes para a manutenção da comunidade, que cantavam,
recitavam, animavam as estas, que estavam a serviço de um rei ou mesmo faziam o ato de
contar histórias, uma profissão.

Esses são os valores aos quais o novo griô busca vincular-se, como um ato de recriação
da tradição. Esse processo de recriação pode ser compreendido como processo de
resistência, pois ao se vincular a uma prática da tradição de indivíduos historicamente
espoliados e discriminados adota uma postura de resistência às tentativas de
homogeneização cultural. (idem, p. 43-44).

A partir das ações destes Mestres Griot’s, esta ONG sistematizou toda a sua pedagogia,
com os princípios e práticas, criando, assim a Pedagogia Griot:

A ligação sagrada entre o ser e sua palavra;


A responsabilidade sagrada do ser em relação à vida na Terra e à harmonia do universo;
A função e o desenvolvimento da memória (afetiva, cognitiva e corporal);

A importância do conhecimento total da vida, aquele que religa e interage a brincadeira (e


a festa), a arte, a ciência, o mito e a religiosidade;

A importância dos rituais na educação;

A vivência da rede de transmissão oral;

A valorização das artes e ofícios de tradição oral;

O lugar político, cultural, social, educativo e econômico dos griôs e mestres da tradição
oral;

A convivência intergeracional para o desenvolvimento da consciência ética;

A história de vida como fonte do conhecimento total;

O saber e a palavra como propriedade e autoria da grande cadeia ancestral de transmissão


oral (um patrimônio cultural público e coletivo). (PACHECO, 2006, p. 43)

Página 696
Além destas práticas e princípios, a Pedagogia Griô conta com estratégias simples, que
visam ampliar o alcance de suas ações. Estas estratégias giram em torno:

da promoção, pesquisa, registro e apoio à infra-estrutura dos espaços, saberes, fazeres,


artes e ofícios dos representantes e grupos de tradição oral;

pesquisa e registro das memórias e histórias de vida do povo brasileiro;

promoção de encontros, seminários e espetáculos para expressão e diálogo entre grupos


e representantes da tradição oral;

facilitação de atividades educativas de tradição oral para crianças, adolescentes e jovens


(ex.: da dinamização de espaços ritualizados de contação de histórias e mitos geradores
de reflexão e formação ética);

facilitação de atividades educativas e culturais entre representantes de todas as idades


da tradição oral;

desenvolvimento e sistematização de metodologias da educação com as linguagens de


tradição oral;

participação em políticas intersetoriais para fortalecimento de redes de tradição oral;

participação nas políticas de educação e cultura para integração da tradição oral com a
educação formal e com as linguagens artísticas. (PACHECO, 2006, p. 44).

São estratégias que buscam fomentar uma maior reflexão dos princípios e práticas da
educação oral, e fundamentar as ações pedagógicas nos diversos espaços culturais e comunitários,
que relacionam-se diretamente com as redes escolares de suas proximidades. A Pedagogia Griot

É uma pedagogia da vivência afetiva e cultural que facilita o diálogo entre as idades, entre
as escolas e a comunidade, entre grupos étnico-raciais interagindo saberes ancestrais de
tradição oral e as ciências formais para elaboração do conhecimento e de um projeto de
vida que têm como foco o fortalecimento da identidade e a celebração da vida.

A vivência afetiva e cultural é facilitada pelos rituais de vínculo e aprendizagem. Os


conceitos que estão sendo construídos na pedagogia griô se inspiram na tradição oral e
se complementam pela educação biocêntrica, a educação para as relações étnico-raciais
positivas, a arte educação e a educação dialógica6.

6 Segundo Paulo Freire (1983), a dialogicidade da educação está centrada na relação entre a palavra e os elementos que constituem
o diálogo: ação e reflexão, “de tal forma solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente,
imediatamente, a outra. Não há palavra verdadeira que não seja práxis” (p.91). A palavra do Griôt, e sua ação junto ao grupo/comunidade que atua,
é de ultrapassar as barreiras do discurso dominante, a fim de apresentar o outro lado da História, dando testemunho dos antepassados, formando e
educando os mais novos para aprenderem a se defender da opressão do discurso oficial e a lutar contra o preconceito e a exclusão. (...) Na condição
de aprendiz-Mestre, que houve e busca compreender as experiências coletivas, o Griôt prescinde da condição humildade, fé, solidariedade e amor,
fundamentos para a pronúncia do mundo da teoria freiriana. E neste diálogo com os outros homens, “que implica num pensar crítico, é capaz,
também, de gerá-lo” (ibidem, p.98). (PEREIRA, 2013, p. 3-4).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A pedagogia griô intensifica os canais de percepção da realidade, ritualizando o


diálogo e o próprio processo de ensino e aprendizagem entre as idades na escola e na
comunidade. Intensifica uma percepção afetiva e simbólica que toca no sentido da vida
de uma identidade intensamente comprometida com a ancestralidade e o projeto de vida
de sua comunidade. Góis (1998) fala que “nossa crise não é de conhecimentos, mas de
percepção”, sugerindo enfoques epistemológicos em direção ao processo, à incerteza, á
totalidade e à beleza. (idem, p. 86).

No Instituto Afro-Sul, foco de minha Dissertação, esta ação é contínua, perpassando por
todos os espaços e ações ali realizadas, pois tudo está transversalizado pela temática afro-gaúcha,
que continuamente atualiza o passado fazendo emergir suas danças, instrumentos musicais,
oficinas de arte, na discussão acerca da situação econômica e social em que se encontram, nos
direitos sociais a que buscam acessar, nas suas ações e encaminhamentos assistenciais. Para
este grupo, o diálogo e o aprender-fazendo é a essência destas ações, pois já se encontrando
na terceira geração de seus ativistas, coordenadores do espaço cultural, são pensadas em
perpetuação histórica no “fazer com”.

Conclusão
É possível inferir que os Mestres-Griot’s nos ajudem a pensar que, “Nos discursos, existe
um lugar determinado e vazio que pode ser ocupado por diferentes indivíduos” (FISCHER, 1997,
p. 17), podendo ser este o lugar a ser ocupado por um Griot. Podemos pensar que é desse lugar
de Griot, frente a sua comunidade que as crianças e adultos que com eles convivem e ouvem suas
histórias, possam pensar, agir, falar, se manifestar de um determinado modo frente a construção
de uma Educação Antirracista. São estes Griot’s que, fazendo uso de suas narratividades, são
capazes de nos mostrar que,

[...] a recordação não é apenas a presença do passado. Não é uma pista ou um rastro que
podemos olhar e ordenar como se observa e se ordena um álbum de fotos. A recordação,
implica um certo sentido do que somos, implica habilidade narrativa (LARROSA, 1994, p.
68).

Ou seja, ser Griot implica na construção de modos de recordar, retomar o passado, trazer
a tona histórias, memórias, ditos e não ditos que ficam nas expectativas, na imaginação, implica
certo sentido do que somos, do que fomos e viremos a ser.
Através das reflexões, das opções de ações, atividades e contextos utilizados dentro do
AfroSul/Ọ̀dọ́mọdé, seja com adultos e, principalmente com as crianças, os Griot’s utilizam-se de
um modo de governamento na busca de um governo de si e do outro, ou seja, disciplinam-se
exercendo poder sobre si mesmo, para pensar no tipo de sujeito que querem modelar. Obviamente,
o governo de si e do outro passa por questões de conflitos no exercício desse poder, e são estes
conflitos e questionamentos que mediam os debates das estratégias que funcionam ou não nestes
sujeitos e na prática de manutenção das tradições históricas afrocentradas. São estes conflitos e

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questionamentos, estas reflexões acerca do sujeito a ser produzido, que prescindem de um frágil e
versátil equilíbrio, levando a correções constantes de rumos, como apontados nos últimos 41 anos
de história dessa ONG.

Referências

BÂ, Amadou Hampâtè. A tradição viva. In.: História Geral da África; volume 1. Metodologia e pré-
história da África. Editor: Joseph Ki-Zerbo. 3ª edição. São Paulo: Cortez. Brasília: UNESCO, 2011.

BÂ, Amadou Hampâtè. Amkoullel, o menino fula. Tradução de Xina Smith de Vasconcelos. 3ª
Edição. São Paulo: Palas Athena Editora. Acervo África, 2013.

FISCHER, Beatriz - Foucault e as histórias de vida: aproximações e que tais. História da


Educação, ASPHE, v.1, n.1, abr. 1997.

LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). O sujeito da
educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994, p.35-86.

PACHECO, Lillian. Pedagogia Griô: A reinvenção da Roda da Vida. Sistematização de vivências,


invenções e pesquisas compartilhadas do Grãos de Luz e Griô – Ponto de Cultura. 2ª ed., Grãos de
Luz e Griô, Lençóis/BA, 2006.

PINHEIRO, Cristiano Guedes. Narrativas de educação e resistência: a prática popular griô


de Dona Sirley. Dissertação apresentada de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de
Educação, da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, RS. 2013.
PINHEIRO, Cristiano Guedes & BUSSOLETTI, Denise Marcos. Educação e resistência na prática
das narrativas populares: A tradição Griô. IX ANPED SUL 2012 – Seminário de Pesquisa em
Educação da Região Sul.

VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In.: História Geral da África, Vol. I, capítulo 7. São
Paulo: Editora Cortez; Brasília: UNESCO, 2011. p. 139-166.

(Endnotes)
1 Ọ̀dọ́mọdé > Ọ̀dọ́, s. Homens ou animais jovens. Àwọn Ọ̀dọ́mọdé ò mọ obì ambọ̀sì owó ẹ̀yọ́
– Os jovens não conhecem a noz-de-cola e muito menos os búzios; ìgbà ọ̀dọ́ – tempo de juventude;
ọ̀dọ́kúnrim – rapaz; ọ̀dọ́ àgùtàn – cordeiro. (Idem, p. 606).
BIBLIOTECA DE REFERÊNCIA NEAB/UDESC E A PRESERVAÇÃO DA
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL EM SANTA CATARINA

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco

COSTA, Amabile
Acadêmica do Curso de Biblioteconomia - Gestão da Informação da Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bolsista do Núcleo de Estudos Afro-

Página 699
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

brasileiros (NEAB/UDESC), por meio do projeto Biblioteca de ReferênciaNEAB/UDESC e do Pro-


grama Novos Horizontes: a Universidade nos espaços de
privação de liberdade.
E-mail: amabilecosta.m@gmail.com

SILVA, Franciéle Carneiro Garcês da


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) pelo convênio
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) eUniversidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Bacharela em Biblioteconomia – Habilitação Gestão da Informação pela Uni-
versidade do Estado de Santa Catarina(UDESC). Pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros daUniversidade do Estado de Santa Catarina (NEAB-UDESC).
E-mail: francigarces@yahoo.com.br

SOUZA, Gisele Karine Santos de


Graduanda em Biblioteconomia - Gestão da Informação pela Universidade doEstado de Santa
Catarina (UDESC). Bolsista de extensão do Projeto Biblioteca deReferência NEAB/UDESC, do
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade
do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC).
E-mail: giselekariness@gmail.com

Página 700
Resumo

No presente trabalho apresentaremos um breve histórico dos 14 anos da Biblioteca de Referência


NEAB/UDESC, projeto de extensão vinculado ao Programa Memorial Antonieta de Barros, do Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Como objetivo, esta Biblioteca
visa disseminar informações sobre os aspectos culturais, sociais, econômicos e educacionais das
populações de origem africana, promover o conhecimento e incentivar o ensino consciente e respeitoso
acerca da diversidade étnico-racial e cultural do país. Neste artigo, iremos descrever as ações realizadas
pela Biblioteca de Referência NEAB-UDESC no ano de 2016 para o cumprimento de seu objetivo.

Palavras-chave: Biblioteca Especializada. População Africana e Afro-brasileira.


Informação. Núcleo de Estudos Afro-brasileiros.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Segundo a perspectiva de Francilene Cardoso (2014), é importante refletirmos sobre a


representação do negro e os efeitos trazidos para a construção da identidade negra dentro de uma
unidade de informação, no caso de sua pesquisa, a Biblioteca Pública. Mas ao pensarmos sobre
as bibliotecas em geral, refletimos que toda e qualquer unidade de informação deve ter materiais
informacionais relacionados à população afro-brasileira e africana.
Neste sentido, trazemos para o enfoque deste artigo, a Biblioteca de Referência NEAB/
UDESC, criada em 2003, como um projeto de extensão vinculado ao Programa Memorial Antonieta
de Barros do Núcleo de Estudos Afro- Brasileiros (NEAB) da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC) e que, atualmente, pode ser considerada uma biblioteca especializada sobre
a temática. Seu objetivo principal é disseminar informações sobre os aspectos culturais, sociais,
econômicos, educacionais dos africanos e afro-brasileiros, promover o conhecimento, incentivar o
ensino consciente e respeitoso acerca da diversidade étnico-racial e cultural das populações que
aqui vivem. (LIMA; CARDOSO, 2012)
A importância de estudos relacionados a essa temática nos remete à compreensão e
valorização da cultura, história e memória das populações de origem africana e afro-brasileira.
Visa ainda, visibilizar a sua contribuição na construção de nosso país, desde a língua até costumes
e cultura. Além disso, corrobora com o cumprimento da Lei Federal nº 10.639, que sanciona a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira em instituições de ensino particulares
e públicas brasileiras (BRASIL, 2003).
Este artigo apresenta um histórico de atividades realizadas pela Biblioteca de Referência
NEAB, tais como: oficina de contação de histórias, atendimento e orientação ao usuário,
empréstimos e devoluções de materiais, disseminação seletiva da informação, implementação do
software Biblivre, estudo de usuário, boletins informativos, divulgação de materiais na fanpage da
Biblioteca, elaboração do tático operacional, política de aquisição, uso da tabela de temporalidade
e política de gestão de estoques, aponta também dificuldades e melhorias a partir de ações
realizadas nesses 14 anos.

BIBLIOTECA DE REFERÊNCIA NEAB UDESC

O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade do Estado de Santa Catarina -


NEAB UDESC, foi
formalmente criad[o] desde 2003, com a finalidade de auxiliar a Universidade na
produção e disseminação do conhecimento por meio do ensino, pesquisa e extensão,
no desenvolvimento de políticas de diversidade étnico-racial, promoção de igualdade e
valorização das populações e origem africana e indígena. Possui como missão produzir e
disseminar conhecimento através do ensino, pesquisa e extensão, sobre diversidade, em
particular étnicorracial, gênero e sexualidade, objetivando combater as desigualdades.
Como visão deseja constituir-se como um instituto da UDESC com autonomia de gestão
administrativa e financeira. Para realização de suas atividades conta com a participação

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de estudantes de graduação e pós-graduação, professores/as, pesquisadoras/es
associadas/os e comunidade em geral. (NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS,
2016)

Para realização de suas atividades e projetos, conta com a participação de estudantes de


pós-graduação e graduação dos cursos de Biblioteconomia Habilitação em Gestão da Informação,
Educação Física, História, Geografia, Pedagogia, Ciências Econômicas, Administração Pública e
Empresarial da UDESC, professores/as, pesquisadoras/es associadas/os e comunidade em geral.
Conforme Cardoso (2017, p. 1):
O Programa Memorial Antonieta de Barros é uma ação de extensão de abrangência
nacional, interinstitucional, intercentros, tem por objetivo o combate ao racismo e a
promoção da igualdade e da diversidade étnico- racial através de ações que auxiliem
na implementação da Lei Federal 10.639/03 e 11.645/2008 as Diretrizes Nacionais de
Educação para as Relações Etnicorraciais e História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. É
desenvolvido em parceria com agências governamentais, instituições federais, estaduais
e municipais da rede oficial de ensino. Tem como público alvo educadores/as, alunos/as,
gestores/as públicos acadêmicos/as de licenciaturas e pesquisadores da área de História,
de Educação e de Biblioteconomia.

Este programa é constituído pelas seguintes ações: 1) “Biblioteca de Referência NEAB/


UDESC: disseminando a História e a Cultura das Populações de Origem Africana”; 2) Observatório
de Educação e Relações Étnico-Raciais em Santa Catarina; 3) Observatório de Cultura Afro-
Brasileira e 4) Observatório de Políticas de Ações Afirmativas.
Para este trabalho, iremos nos ater ao primeiro projeto: A Biblioteca de Referência NEAB/
UDESC. Esta é uma biblioteca especializada na temática africana e afro-brasileira. Surgiu em
2003 a partir da ideia da acadêmica do curso de Biblioteconomia da UDESC, Andreia de Sousa,
com o objetivo de oferecer ao usuário, serviço de referência, recuperação e disseminação da
informação específica de forma rápida e eficaz, promovendo a preservação da memória, cultura,
aspectos sociais, econômicos e educacionais da população de origem africana e afro-brasileira
(CARDOSO; SILVA; COSTA; LIMA, 2015)
Dispõe de um acervo e serviços que atendam às necessidades do público- alvo composto
por alunos de escolas públicas ou privadas, ensino superior, professores e pesquisadores
interessados na temática africana e afro-brasileira.
Em 2005, foi transformado em Projeto de Extensão Biblioteca de Referência sobre
Diversidade Cultural, sugestão da acadêmica Andreia Silva Santos do curso de Biblioteconomia
da UDESC, que estruturou a Biblioteca auxiliada pela professora Elaine Rosângela de Oliveira
Lucas, com apoio de recursos financeiros do Programa de Apoio a Extensão (PAEP/ PROEX/
UDESC) para aquisição de todo material (LIMA, CARDOSO, 2012). O acervo físico da biblioteca
é composto por cerca de 600 materiais bibliográficos físicos, contabilizados em livros, revistas,
CD’s, DVD’s e 166 materiais de literatura cinzenta, tais como, trabalhos de conclusão de curso,
especializações, dissertações, teses, monografias e TCCs. Além disso, conta com um acervo
ainda não contabilizado de materiais online e em formato portátil de documento - PDF, todos

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

voltados para a temática africana e afro-brasileira. Esse levantamento foi realizado pelas bolsistas
da Biblioteca no primeiro semestre de 2017.
Nesses 14 anos, foram realizadas atividades de: a) oficina de contação de histórias, b)
atendimento e orientação ao usuário, c) empréstimos e devoluções de materiais, d) disseminação
seletiva da informação, e) implementação de softwares, f) estudo de usuário, g) boletins
informativos , h) divulgação de materiais na fanpage, i) elaboração do tático operacional, j) política
1

deaquisição,
k) tabela de temporalidade e l) política de gestão de estoques.
O papel da Biblioteca de Referência NEAB é disseminar a informação referente à temática
africana e afro-brasileira, tendo em vista que há informações a serem disseminadas através de
estratégias e técnicas de comunicação (LIMA, CARDOSO, 2012).
Uma dessas técnicas de disseminação eram as oficinas pedagógicas, que faziam a
divulgação de materiais nas escolas públicas, solicitadas pelos professores com intuito de
desconstruir estereótipos preconceituosos e negativos relacionados à história, cultura, religião das
populações de origem africana (LIMA, CARDOSO, 2012).
Uma outra ação desenvolvida, foi a implementação de software para o gerenciamento
das funções da Biblioteca de Referência, facilitando busca de materiais no acervo. Em 2007, a
acadêmica responsável à época pela Biblioteca, Miriam do Carmo Mascarenhas Mattos, com
apoio dos professores do curso de Biblioteconomia da UDESC, trouxe alguns benefícios não só
para a Biblioteca, mas sim para o Núcleo todo como: software de controle de acervo (Mini-biblio
– atualmente, já é utilizado o Software Biblivre), elaboração do planejamento estratégico, entre
outros, contando com a parceria da Biblioteca Universitária com cerca de 500 livros remetidos
para compor a Coleção do Núcleo (LIMA; CARDOSO,2012).
O controle de empréstimos de materiais até 2013 eraM realizados em fichas impressas,
com os dados do usuário e os materiais retirados, armazenados em três pastas de arquivos físicos:
1) empréstimo ativo, 2) empréstimo em atraso e 3) ficha de usuário sem empréstimo ou pendência.
Esse método não era eficiente, pois no momento do empréstimo e devolução, tinha que ser
conferido às duas caixas, a de empréstimo ativo e a de empréstimo em atraso, tomando certo
tempo da responsável pela biblioteca. Para facilitar, foi criada uma planilha eletrônica para inserir
os dados dos usuários, materiais emprestados e data de empréstimo e devolução, melhorando
assim, o gerenciamento e controle do acervo (CARDOSO; GARCÊS; SILVA,2014).
Nesses anos, foram realizados estudos de usuários. Em seis anos, o número de usuários
frequentadores, passou de 20 para 86 (entre os anos de 2004 a 2010). Com a ideia de ampliar
o número de usuários, em 2011 reuniões com gestores para apresentar o projeto de Lei Federal
10.639/03 foram realizadas. (LIMA, CARDOSO, 2012). Em 2014, nota-se um grande crescimento,
pois a Biblioteca possuía 192 interagentes reais e 1412 interagentes potenciais – seguidores na

1 Boletim Informativo é uma publicação trimestral realizada pelos integrantes do Núcleo com informações
referente aos programas e projetos do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB UDESC, bem como da participação
dos divulgado a toda comunidade acadêmica.

Página 704
fanpage. Os perfis constituem-se alunos/as da graduação, pós- graduação, docentes, técnicos
universitários, gestores de unidades escolares e demais membros da comunidade (CARDOSO,
SILVA, COSTA, LIMA, 2015).
No período de 2008 a 2013, foi realizada uma avaliação dos empréstimos, e nos resultados
obtiveram que a seguinte informação de que: 80,06% dos empréstimos foram realizados por
mulheres. (CARDOSO, GARCÊS, LIMA, 2014).
Em 2013 foi criado um perfil na página do facebook com divulgação de bibliografias
em formato portátil de documento - PDF, para download; divulgação de eventos entre outras
informações (CARDOSO, SILVA, COSTA, LIMA, 2015). A página do facebook é uma ferramenta
que auxilia na divulgação e disseminação de obras que a biblioteca disponibiliza, as publicações
feitas na fanpage da biblioteca são de aquisições, doações de materiais, divulgação de trabalhos,
pesquisas científicas, links para download e informações de serviçosprestados.
A publicação da divulgação de aquisições e doações de livros ocorre uma vez por semana.
O material é selecionado, escaneado, referenciado e programado para serem publicados todos
os dias de domingo a domingo às 9 horas da manhã (horário de Brasília) e de links de materiais
científicos em formato portátil de documento - PDF, para download às 19 horas e 30 minutos
também de acordo com horário de Brasília. Atualmente a fanpage da biblioteca conta com 3699
curtidas.
Com o crescimento do Núcleo, para melhor organização e gestão, foi implementado o
planejamento estratégico, reuniões mensais, tático operacional, políticas de gestão de estoque
e de aquisições (CARDOSO, SILVA, FERREIRA, DUARTE, LIMA, 2013). No quesito recebimento
de doação e aquisição de materiais para o acervo, também são abordados alguns critérios, tais
como: bom estado de conservação, obra de acordo com a temática do Núcleo e atualizadas para
selecionar o melhor material que atenda às demandas e contemple os/as interagentes.
A Biblioteca tem uma política para acervos e usava como base na seleção de novas obras a
Política de Desenvolvimento de Coleções, que foi atualizada para Política de Gestão de Estoques
Informacionais. A Biblioteca aderiu à Política de Gestão de Estoques de Informação e à tabela de
temporalidade dos documentos, ação em andamento, para uma melhor organização do acervo,
gerenciamento e uma visão ao frequentador e o potencial das Bibliotecas (CARDOSO, SILVA,
COSTA, LIMA, 2015). Esta Política é composta por uma comissão constituída pelo coordenador
do projeto de extensão, pesquisadores/ as, bolsistas, professores/as e especialistas na temática
africana e afro-brasileira. Nas reuniões da comissão, são definidos quais materiais serão adquiridos
de acordo com a necessidade dos cursos, plano de ensino, orçamento e, em seguida, decidido
quais materiais também serãodescartados.
Em relação aos materiais de doações são feitos uma seleção para a utilização do livro com
os seguintes critérios: análise da conservação do livro, atualização, temática entre outros pontos.
Para esse material, é elaborado um ofício com um pequeno texto de agradecimento e enviado ao
doador/a pela disponibilização do material que auxiliará aos pesquisadores/as e interessados/as
pela temática. Depois disso, o material é carimbado, registrado e guardado na estante de acordo

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

com o seu assunto.


Hoje a Biblioteca de referência possui em seu corpo de integrantes, sete bolsistas do
curso de Biblioteconomia da UDESC, uma pesquisadora associada Mestranda em Ciência da
Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia em convênio com
a Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBICT/UFRJ) e uma pesquisadora associada Mestra
em Gestão de Unidade de Informação pela UDESC, além da coordenação do Professor Paulino
de Jesus Francisco Cardoso. Essa equipe contribui na realização das atividades, na gestão da
informação, superando as dificuldades que foram encontradas antigamente, por falta de bolsistas
da área biblioteconômica, com alunos dos cursos de: geografia, história, pedagogia e educação
física. (CARDOSO, GARCÊS, LIMA, 2014)

Conclusão

Ao analisar toda a trajetória da Biblioteca da Referência NEAB/UDESC, percebe-se a


importância da existência desse projeto, pois é um grande disseminador da informação da temática
africana e afro-brasileira em Santa Catarina. A participação de graduandos/as, pesquisadores/as
associados/as e instituições, através da pesquisa, ensino e extensão, faz com que a Biblioteca
disponibilize um acervo específico, rico e diversificado, em todos os tipos de suportes e variadas
técnicas disseminadoras da informação.
Com a parceria de profissionais e bolsistas da área biblioteconômica, nota- se uma
melhora na realização das atividades e demandas, principalmente nas ações de implementação
de políticas de estoque informacionais, de aquisição e tático operacional, pois são métodos que
também contribuíram na melhor gestão da informação desta Unidade.
Assim, continuamos na luta contra não-representatividade da memória e história das
populações negras dentro dos espaços das bibliotecas brasileiras, que dificultam a reconstrução
da identidade negra pelos bibliotecários e usuários reais e potenciais de uma biblioteca e almejamos
que esta biblioteca especializada sirva de modelo para a realização de outras bibliotecas e ações
neste sentido.

Referências

CARDOSO, Francilene do Carmo. O negro na biblioteca: medicação da informação para a


construção da identidade negra. Curitiba: CRV, 2015. 114 p.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Memorial Antonieta De Barros. 2017. Disponível em:
<http://www.faed.udesc.br/arquivos/id_submenu/766/departamento_de_historia.pdf>. Acesso
em: 10 jun. 2017

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; SILVA, Franciéle Carneiro Garcês; COSTA, Amabile;
LIMA, Graziela dos Santos. Os interagentes da Biblioteca de Referência NEAB/ UDESC: avaliação

Página 706
de Biblioteca Especializada em temática africana, afro-brasileira e indígena. Revista ACB:
Biblioteconomia em Santa Catarina, Florianópolis, v. 20, n. 3, p. 452- 462, set./ dez., 2015.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; GARCÊS, Franciéle Carneiro; LIMA, Graziela dos Santos.
Biblioteca de Referência do Núcleo de Estudo Afro- Brasileiros da Universidade do Estado de
Santa Catarina: avaliação dos empréstimos entre 2008-2013. Revista ACB: Biblioteconomia
em Santa Catarina, Florianópolis, v.19, n.1, p. 102-110, jan./jun., 2014. Disponível em:
<http://basessibi.c3sl.ufpr.br/brapci/_repositorio/2015/12/pdf_4eeeaeed28_0000014571.pdf>
Acesso em: 05 de junho de 2017.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; SILVA, Franciéle Carneiro Garcês; FERREIRA, Aline;
DUARTE, Thayná; LIMA, Graziela dos Santos. Biblioteca de Referências NEAB UDESC.
Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/116941/Educa%E7%E3o
%20-%20BIBLIOTECA%20DE%20REFER%CANCIAS%20NEAB-
UDESC%20(1).pdf?sequence=1>. Acesso em: 30 de maio de 2017.

CONGRESSO NACIONAL BRASIL. Constituição (2003). Lei nº 10.639, de 09 de fevereiro de


2003. Incluir no Currículo Oficial da Rede de Ensino A ObrigatoriedadedaTemática”históriaeCult
uraAfro-brasileira”.Disponívelem:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>
acesso em: 10 jun 2017.

LIMA, Graziela dos Santos; CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Biblioteca de Referência
NEAB/ UDESC: disseminando a história e memória dos afrodescendentes em Santa
Catarina. Extensio: R. Eletr. de Extensão, ISSN 1807- 0221 Florianópolis, v. 9, n. 13, p. 8 - 20,2012.

NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS (NEAB/UDESC). Bem vindos/as!.


2016. Disponível em: <http://www.faed.udesc.br/?id=1844>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

MEMÓRIA, ASSOCIATIVISMO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: OS CLUBES


“NEGROS” DE LAGUNA-SC NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
(1930-1950)

ROSA, Júlio Cesar da. (UNISINOS)


juliusdarosa@gmail.com

Resumo

O presente trabalho anseia apresentar resultados parciais dos estudos sobre as sociedades recreativas
“União Operária” e “Cruz e Sousa”, construídas por afrodescendentes em Laguna, Santa Catarina, no
período pós-Abolição. Procuramos entender qual era o significado de ser “mulato” e de ser “preto” para
aqueles homens e mulheres naquele contexto, e o que os levou a silenciar e/ou ocultar uma identidade
étnico-racial. Compreendendo os embates e os problemas em relação à memória, acreditamos que a
mesma pode evidenciar experiências de tempo que, evocadas pela mediação do entrevistador, trazem
histórias de pessoas comuns que a historiografia tradicional invisibilizou e/ou ignorou no transcurso dos
processos históricos. Nosso objetivo, além de visibilizar a população negra de Laguna/SC, é analisar
as tensões entre sujeitos classificados e autodeclarados mulatos e pretos, pessoas com uma mesma
ascendência africana, mas que não se identificavam como uma “raça”. As tensões geradas entre esses
grupos sociais permitem pensar a desnaturalização da noção de “raça”, possibilitando, dessa forma,
perceber que “afrodescendente” e “negro” não são sinônimos tampouco “termos isentos”.

Palavras-chave: História. Sociabilidade. Identidades. Memória. Laguna.

Página 708
Introdução

A proposta desta pesquisa é analisar a trajetória de um grupo de homens e mulheres


afrodescendentes em Laguna, personagens que faziam parte das sociedades recreativas Clube
União Operária e Clube Literário Cruz e Souza na cidade de Laguna na primeira metade do século
XX. Com base nos registros produzidos em documentos das duas agremiações, nas memórias
de alguns depoentes e nos jornais elaborados no período, procuramos evidenciar a construção
destes dois espaços de sociabilidades e suas redes de relações.
Refletimos também acerca de conflitos, tensões, contradições, disputas, alianças e
afastamentos entre os diferentes atores sociais protagonistas destes espaços de atuação. A partir
do cruzamento de fontes foi possível perceber que a população afrodescendente de Laguna,
em sua maioria, não fazia parte da elite citadina, nem eram detentores de bens materiais e dos
meios de produção. Mas, isso não significa a inexistência desses afrodescendentes, que exerciam
influência na cidade e nas atividades desenvolvidas em seus clubes, locais de trabalho e relações
familiares, seja política ou econômica naquela região.


1 Cruz e Souza: a identidade dos pretos de Laguna

Em 29 de junho de 1906 foi inaugurado o clube Cruz e Souza, noticiado pelo jornal O Albor
em 5 de agosto de 1906. No dia 19 de agosto de 1906, Pedro Victorino dos Santos, “vulgo Pedro
Corvo”, comerciante e residente na cidade, se desliga da Sociedade Recreativa União Operária
(SRUO), sem pagar a mensalidade e as despesas do bazar, como foi anunciado no jornal1.
Aos 24 de agosto de 1906, o Senhor Pedro Victorino dos Santos responde à União Operária
e à sociedade lagunense, explicando os motivos que o levaram a se retirar daquela sociedade
e o porquê da fundação de outra associação recreativa. Tudo teria começado quando o antigo
associado anunciou desligamento do clube e foi quitar seu débito no valor de 13 mil réis e lhe
estavam cobrando 17 mil réis, quantia que se negou a pagar.
Deparando na 3 pagina do conceituado órgão, denominado Albor que se publica
nessa cidade, com um artiguete, que mais se assemelhava a um anúncio e ao decorrer
dessas linhas deparei que se tratava, da minha individualidade; [...] eis a razão que
venho, por estas humildes linhas, explicar, aos numerosos leitores d´este conceituado
órgão, o ocorrido; de fato sim fui sócio contribuinte (infelizmente d´esta sociedade que
desgraçadamente se denomina - União Operária – o que posso afirmar – melhor seria
que se denomina Desunião Operária; porque o público saberá bem patente, bem claro
a razão da fundação da Sociedade Cruz e Souza e com o artiguete que fui alvo das suas
paixões. Desunião ou União Operária. Logo fiz o que qualquer cidadão faria, este e aquele
que ganha honradamente [seu dinheiro], aquele que não faz parte de sociedades de
encantos como público bem deve estar ciente que estas sociedades, memdram só no
calor do entusiasmo, para fenecer, nas mãos de proprietário que ocupam; logo neguei a
pagar semelhante quantia [...] mandei que podiam colocar meu nome no quadro negro;
que equivalia dizer-lhe que gravasse meu nome nas suas consciências negras e pútridas,

1 O Albor. Laguna, 19 de agosto de 1906, nº 200.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

no farejar do álcool na esperança dos meus magros cobres. Eis meus caros leitores tudo o
quanto houve.2 (sic)

No fragmento acima, Pedro Victorino exterioriza toda sua mágoa e ressentimento, afirmando
que aqueles que não se identificavam ou sentiam-se excluídos do União Operária encontrariam
lugar no Cruz e Souza. Conjecturamos que esta briga originou uma nova sociedade recreativa, o
que acabou por refletir estas tensões na divisão e identificação do grupo como pretos.
Além de uma cobrança supostamente indevida, o sócio estava percebendo a utilização
dos recursos financeiros da agremiação para fins pessoais de alguns membros. A interpretação
hipotética de apropriação indevida pode ter gerado o descontentamento de alguns membros,
o que originou a fundação de outra sociedade recreativa em Laguna, também formada por
afrodescendentes: o Clube Literário Cruz e Souza, conhecido na cidade como o clube de pretos,
enquanto o União Operária se destinava aos mulatos.
Analisando o livro de registro de sócios e as atas de fundação das duas sociedades,
encontramos pessoas autoidentificadas como mulatas que frequentavam tanto o União Operária
quanto o Cruz e Souza, todavia o contrário não ocorria. Não encontramos sócios pretos no União
Operária. Considerando as memórias de nossos entrevistados, juntamente com as fontes das
sociedades recreativas, percebemos que o surgimento da identificação preto e mulato ocorreu a
partir da ruptura entre os membros da Sociedade Recreativa União Operária com a publicação do
artigo do senhor Pedro Victorino dos Santos, contestando a suposta dívida contraída e explicitando
a fundação do Cruz e Souza.
Se a nota de jornal não expressa a divisão por cor, na memória dos associados o Cruz e
Souza surgiu para ser clube dos pretos.

O Cruz e Souza. Ah, eles foram fundados por causa da cor, né, da raça. Entendeu? Porque
naquele, no meu tempo era assim. Tinha o Operária era de moreno, de moreno entende?!...
o Souza era de preto. Quer dizer, quem dançava lá no de preto não dançava cá, na Operária
que, que era dos moreno tá!3.

Os motivos que levaram à fundação do Cruz e Souza e as memórias dos associados


divergem, em certa medida, pois a dissidência e interdição dos pretos no espaço dos mulatos não
impediu que, mesmo membros do União Operária, compusessem a diretoria do Cruz e Souza,
como evidenciam as notas publicadas no periódico O Albor de 22 agosto de 1915, 13 de maio
de 1917 e 23 de abril de 1932. O periódico anunciava a eleição das diretorias dos dois clubes,
registrando indícios de que alguns membros dessas diretorias eleitas também figuravam no
quadro de sócios do União Operária. Neste sentido, mesmo após a ruptura da agremiação havia
a circulação de mulatos como membros da diretoria do Cruz e Souza, no entanto, o inverso não

2 O Albor. Laguna, 24 de agosto de 1906, nº 205.


3 BENTO, Antônio Paulo. Entrevista concedida a Júlio César da Rosa. Laguna, 27 de janeiro de 2010.

Página 710
ocorria. Os pretos foram impedidos de compor a diretoria e frequentar aquele espaço, a partir do
momento em que houve a ruptura.
A partir da tensão entre esses afrodescendentes, possivelmente criou-se a necessidade
de diferenciação como forma de inclusão/exclusão. Em nosso entendimento, as estratégias
adotadas, de forma consciente ou inconsciente pelo grupo que permaneceu no União Operária,
operavam por meio da distinção social e do tom da pele.
A identificação racial no Brasil sempre foi, e é, um caso mal resolvido, como assinala Ilka
Boaventura Leite: “retirados de sua categoria de conceito, os termos usados para nomear os
povos estudados foram utilizados como senão tivessem uma carga simbólica, como se fossem
‘neutros’”4. Além de não serem neutros esses termos carregam em sim uma carga subjetiva, como
afirma a autora, e pensar estas categorias como negro, preto, mulato e pardo, tomando-se por
base a “uniformização elaborada pelos sistemas racionalistas do século XIX”5, incorre no risco
de cometermos anacronismos, olhando para o passado com os olhos do presente e não com “os
olhos de quem viveu”. Não para captar “somente todo sofrimento e ruínas”, mas para compreender
como esses atores históricos se percebiam e viam o mundo de sua época.
Ao longo dos séculos tais termos tiveram determinados significados. No entendimento
de Hebe Maria Mattos6, mulato era a pessoa de origem africana de pele clara; o termo pardo
significava o escravizado descendente de homem livre (branco) ou nascido livre, mas com as
marcas da ascendência africana e ainda a condição social, como assinala Silvia Lara (2007); preto
designava a origem africana do escravizado; crioulo era o escravizado nascido no Brasil. “Já a
palavra ‘negro’ designava sempre a condição cativa do indivíduo”7. E após a escravidão, no Brasil,

“Negro”, tornou-se primeiramente sinônimo de escravo. Sobretudo após a Abolição, o


termo passou a designar: “malandro”, “marginal”, e outros sentidos desqualificadores.
Tornada “cidadã de segunda categoria a população de origem africana sempre carregou
consigo o fardo desse nome. Sua origem lhe foi negada e sua identidade quer seja social,
‘racial’ ou ‘étnica’, está vinculada até hoje a adjetivos8.

O termo mulato, em meados do século XIX, como verificou Hebe Maria Mattos de Castro
nos processos civis e criminais era interpretado da seguinte maneira: “apenas quando qualificava
forros e escravos o termo ‘pardo’ se reduzia ao sentido de mulato ou mestiço, que frequentemente
lhe era atribuído”9. Nossos depoentes, em momento algum se identificaram como “negros”, sempre
afirmando atuação no quadro social e frequentadores do clube de pretos e do clube de mulatos.

4 LEITE, 1987, p. 6.
5 MAFESOLI, 2005, p. 62.
6 MATTOS, 2013, p. 41.
7 MATTOS, 2013, p. 41-102.
8 LEITE, 1987, p. 8.
9 CASTRO, 1995, p.105.

Página 711
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A utilização do termo negro gera debates, como enfatiza Paulino Cardoso (2005), em A vida
na escola e a escola da vida: experiências educativas de afro-descendentes em Santa Catarina
no século XX, pois constitui uma noção problemática, na medida em que tende a naturalizar uma
visão racializada do mundo10. A carga simbólica que o termo negro traz no imaginário coletivo não
é tão autônoma da categoria “raça”, como destaca D´Adesky (2001). O termo negro carrega todos
os problemas ideológicos que justificaram a escravização de seres humanos e as práticas racistas
contemporâneas.
O sociólogo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães responde à pergunta que fazemos quando
pensamos em identificar os grupos sociais, deslocando da ideia de raça. O autor destaca que,
quando deixarmos de identificar os grupos sociais direta ou indiretamente com marcadores raciais,
e “quando as desigualdades, as discriminações e hierarquias sociais não corresponderem a esses
marcadores”, talvez possamos contrapor as ideias essencialistas, para pensar em identidades
diferenciadas, fugidias, contraditórias.
Retornando à história dos clubes, além de não permitirem a entrada daqueles então
identificados como pretos nesta sociedade, os mulatos passaram também a se identificar como
um grupo de maior status social. Como destaca a memória do depoente Antônio Paulo Bento11,
estes afrodescendentes de Laguna faziam parte de uma “elite negra”, julgando-se superiores
àqueles que não faziam parte do seu espaço de sociabilidade.
No jornal O Albor, de 22 de agosto de 1915, constava quatro membros do União Operária
componentes também do Cruz e Souza: o presidente José Thomaz de Oliveira; o vice-presidente
Antônio Felisberto da Rosa, negociante na cidade; Philastro C. da Cruz, profissão diarista; e,
o funcionário público Adolpho Campos. Em 13 de maio de 1917, o presidente em exercício era
Affonso Sabino, o vice-presidente José Thomaz de Oliveira, o orador oficial Levy Limas, profissão
carpinteiro, e João Domingos, profissão pintor e zelador do clube na nova diretoria do Cruz e Souza,
todos também sócios do União Operária.
As memórias dos nossos depoentes assinalam para interdição dos pretos no espaço
dos mulatos. Evidências percebidas em nossa pesquisa apontam a existência de uma diretoria
do Cruz e Souza12 composta em sua maioria por sócios do União Operária ocupando cargos de
presidente, vice-presidente, primeiro e segundo secretário, tesoureiro, orador, primeiro e segundo
fiscal. Somente o primeiro fiscal, Prudêncio Martins não aparecia presente nos registros do União
Operária.
O impedimento ao acesso não ocorria em ambos os clubes, conforme apontam as fontes,
apenas os membros do União Operária faziam parte da diretoria e frequentavam o Cruz e Souza.
Portanto, a rigidez dessas fronteiras nos espaços de sociabilidade possibilitou perceber que esses
homens e mulheres travavam constantes disputas em um campo de relações hierárquicas e
assimétricas.

10 CARDOSO, 2005, p. 172-173.


11 BENTO, 2010.
12 O Albor. Laguna, 28 de abril de 1932, n º 1143.

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2 Nem brancos, nem pretos: a União Operária e a identidade mulata de Laguna

No dia 19 de novembro de 1903, a população de Laguna amanhecia com uma novidade,


o jornal O Albor noticiava a fundação de mais uma sociedade recreativa. Mas, não era uma
sociedade qualquer. Fundada em 9 de fevereiro de 190313, a Sociedade Recreativa União Operária
possuía suas particularidades enquanto um clube social criado por pessoas que se classificavam
como mulatos e, ainda hoje, são vistos como tal. Conforme entrevista do senhor Antônio dos Reis,
ex-maestro da Banda União dos Artistas e funcionário aposentado do porto de Laguna. Antigo
sócio do clube, o senhor “Cacique”, como era conhecido no município, salientou que os sócios
e frequentadores daquele espaço trabalhavam no comércio14, eram pequenos comerciantes
varejistas. Para participar daquela sociedade, conforme relatou o senhor Antônio dos Reis, a
escolaridade daqueles que pretendiam compor o quadro da agremiação era uma condição
determinante para ser aceito no quadro social.
Ele relata que o clube era uma sociedade “fechada”, sendo permitida a entrada de não
sócios somente com convite. E para associar-se fazia-se necessária a indicação por um sócio
mais velho, além de passar por uma comissão de sindicância que aprovaria ou não a proposta da
indicação, como percebemos no Capítulo II, Artigo 4º, parágrafo primeiro do estatuto da sociedade:
“condiciona-se a admissão de sócios contribuintes ao preenchimento da respectiva proposta e
aceitação pela Diretoria bem como o pagamento de jóias e mensalidades no prazo de trinta dias
improrrogáveis”15.
No depoimento do senhor Antônio dos Reis percebemos que o status, o ofício, a escolarização
e a existência de uma comissão de sindicância evidenciam uma seleção para compor o quadro de
agremiados. Supomos que essas exigências marquem a construção de uma sociedade recreativa
pautada num ideal de quadro social composto por homens trabalhadores, pessoas consideradas
de boa índole perante a sociedade e, nesse cenário, estabeleceriam a imagem de uma sociedade
de trabalhadores, distanciando-se de estereótipos como indolência e vadiagem, representações
negativas sobre pessoas de ascendência africana naquele contexto (e ainda muito presentes na
contemporaneidade).
Uma evidência pontual para a construção dessa imagem de homens trabalhadores é
perceptível na composição do hino do clube, no qual o Trabalho era considerado “pendão” e
por meio dele seriam vencedores, a Instrução era o “pharol” brilhante que elevaria o espírito e
conduziria à luz, e o Recreio era destacado como a alma da vida. Juntos, esta tríade, como diz o
hino, parecem ser os elementos mantenedores do equilíbrio da sociedade, como salientamos no
fragmento abaixo:

13 Ata de Fundação da Sociedade Recreativa União Operária, Cartório de Registro Civil de Laguna, 1965, p. 68.
14 REIS, Antônio dos. Entrevista concedida a Júlio César da Rosa. Laguna, 22 de fevereiro de 2008.
15 Ata de Fundação da Sociedade Recreativa União Operária, Cartório de Registro Civil de Laguna, 1965, p. 69.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Trabalho, - Instrução - e - Recreio,

trilogia redimente d´um povo,

ser-no-ão sempre vivo apanágio,

dar-nos-ão um vigor sempre novo,

Sacra flama nos inspire,

e possa ser legendaria,

pelo querer de seus filhos,

a – União – Operária.16

De acordo com registros da Sociedade Recreativa União Operária (SRUO), seu Antônio
dos Reis passa a integrar o quadro17 de sócios a partir do ano de 1941, trinta e oito anos depois
da fundação da associação. Compreendendo os embates e os problemas em relação à memória,
podemos interpretar que as lembranças do senhor Antônio do Reis tenham se entrelaçado às
memórias dos fundadores, por isso afirma existirem apenas comerciantes no quadro de associados.
A memória do nosso depoente fortaleceu a ideia de que aquela agremiação, desde o início,
constituiu espaço para pessoas bem-sucedidas. Ou, talvez, a intenção fosse afirmar que embora
se tratasse de um clube para determinado grupo social, ele mesmo alcançou uma posição que
lhe permitiu participar daquele espaço, mesmo não sendo um comerciante, questão bastante
rememorada e destacada pelo entrevistado.
Corroboramos com Michael Pollak quando afirma que “a memória é seletiva. Nem tudo fica
gravado. Nem tudo fica registrado”18. Além de sua subjetividade, a memória coletiva, como salienta
Ecléa Bosi, “se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares, profissionais. Ela
entretém a memória que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo”19. Continua ainda
Bosi, “por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e
das camadas do passado a quem tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só para ele,
significativos dentro de um tesouro comum”20.
E nessa perspectiva, o entrevistado, ao relembrar o que lhe foi transmitido ao longo dos anos
sobre a fundação da SRUO, ao evocar memórias impressas na convivência familiar e nos espaços
de sociabilidade, “grava”, “recalca” ou “exclui”, de forma consciente ou inconsciente, o processo de

16 O Albor. Laguna, 09 de fevereiro de 1907, nº 225.


17 Livro Ata da Sociedade Recreativa União Operária, 1938, p. 33.
18 POLLAK, 1992, p. 4.
19 BOSI, 2004, p. 411.
20 BOSI, 2004, p. 411.

Página 714
elaboração e reelaboração da memória, seja ela coletiva ou individual. Nosso depoente registrou o
que mais significava para ele, ou seja, o lugar social dos membros da sociedade em que ingressou.
Sobre os motivos que levaram à fundação dessas sociedades recreativas, temos alguns
pontos de vista divergentes, conforme veremos nas citações abaixo.

O Cruz e Souza. Ah, eles foram fundados por causa da cor, né, da raça. Entendeu? Porque
naquele, no meu tempo era assim. Tinha o Operária era de moreno, de moreno entende?!...
o Souza era de preto.21

Na Operária, não tinha jeito que não entrava [preto]. Eles não deixavam. Era severo,
era severo, não deixavam. Porque nós também... bom, os brancos também não
entravo no nosso. E nós também, que tinha amigo branco e tudo, mas a gente não
entrava no deles. Nem eles no da gente. Tudo por causa da, da, desse preconceito.
Isso foi ó [estalar de dedos], foi vários.22 (sic)

O senhor Antônio Paulo Bento, ex-presidente do clube União Operária, esclarece que a
fundação das agremiações aconteceu por influência da cor, ou seja, o Cruz e Souza e o União
Operária nasceram da dessemelhança existente entre sujeitos de uma mesma ascendência, mas
que se percebiam diversos.
Além de os pretos não frequentarem a União Operária, àqueles que se declaravam como
brancos também não era permitida a entrada, não por ser lugar somente de “negros”, mas porque
a esses também era vedada a possibilidade de frequentar o seu ambiente, como podemos
perceber no depoimento do senhor Antônio Paulo Bento. Ter amigos “brancos”, que trabalhavam
nos mesmos espaços, não significava a redução ou interrupção do preconceito que permeava a
sociedade lagunense.
Pelo contrário, conforme exposição da professora aposentada Marli Brum, de sessenta e
nove anos, o contato com os membros da elite de Laguna se dava pela prestação de serviços
oferecidos por afrodescendentes da cidade. O distanciamento nos espaços de lazer era cada vez
mais acentuado, com o impedimento da participação dos afrodescendentes nos clubes Blondin e
Congresso Lagunense, sociedades recreativas das elites dirigentes de Laguna.
Sim, existia separação, toda a minha mocidade a separação, a minha irmã, era costureira,
então a gente se arrumava para ir pros bailes [no União Operária] e às vezes muitos dias
eu ia entregar as costuras na casa das freguesas dela né, e as freguesas dela iam pro baile
[da elite de Laguna] né a gente passava tava ali o Congresso, o Blondin, tinham festas e
nós jamais chegávamos na porta.23

A constituição desses lugares devido à exclusão torna-se importante para dimensionar


aspectos do cotidiano da cidade e das relações entre os diferentes grupos sociais, mas não
comporta motivo determinante, haja visto que as populações de origem africana foram excluídas

21 BENTO, 2010.
22 BENTO, 2010.
23 BRUM, Marli. Entrevista concedida a Júlio César da Rosa. Laguna, 29 de janeiro de 2010.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

e marginalizadas dos espaços frequentados por outros grupos sociais em diferentes períodos,
realidades e circunstâncias. Neste sentido, estes territórios simbolizam vias de resistência à
exclusão, locais de solidariedade, sociabilidade, visibilidade e onde viver da melhor maneira
possível.
Associados e convidados da agremiação exerciam as mais diversas profissões, como
Adolpho Campos que era funcionário público; Aldo Jerônimo do Nascimento, funcionário federal;
Almiro Pacheco do Reis, funcionário federal; Antônio Souza Neto em 1940, foguista, em 1946
aparece registrado no livro do clube como funcionário federal; Antônio Ramos, telegrafista; Ataliba
Pacheco, de sapateiro passa a negociante; Bento Brum, consta como carroceiro 1926 e em 1946
já era funcionário federal; Bonifacio Gil de cozinheiro a negociante; Cid Natividade, caixeiro em
1921, comerciante em 1926.
Destacamos a ascensão social desses homens afrodescendentes em contraposição à
ideia de que as populações de origem africana, no pós-Abolição, estavam desprovidas material e
moralmente, e sem condições de se “integrarem a nova ordem social competitiva”24.
As lembranças dos depoentes afirmam que, entre os afrodescendentes de Laguna, houve
sim um grupo que se destacou economicamente. As falas de dois depoentes a seguir assinalam
que a mobilidade e a ascensão social permitiram a esses sujeitos históricos melhores condições
materiais, abrindo possibilidade de frequentar aquele espaço de sociabilidade e lazer.

Que é um clube que, cá pra nóis, sempre foi um clube da elite negra da Laguna, a verdade
é essa. Esse é um detalhe que ás vezes as pessoas não gostam de falar muito, mas não
era qualquer negro que entrava no Operária. Eles tinham assim aquela pompa, e baile, e o
pessoal gostava.25 (sic)

A Operária começou a fazer uma elite de mulatos. A Operária era mais freqüentada pelos
mulatos claros, mais pardos. Não os pretos mais fechados. Evidentemente que nem todos,
além da cor, nem todos tinham as condições financeiras de freqüentar o Operária. É que
geralmente, o pobre mais, o preto mais pobre era aquele que morava na periferia. Eram
pintores, carpinteiros, não podiam freqüentar uma sociedade, financeiramente falando.26

Os dois afirmam que a SRUO, “sempre foi um clube da elite negra de Laguna, que “as
pessoas além de serem um pouco mais abastadas”, “eram mais claras e se julgavam superiores”.
“Além da cor, nem todos tinham as condições financeiras de frequentar o Operária”, o “preto
mais pobre”, àquele residente na periferia “não era permitida a entrada no clube”. Esses “eram
carpinteiros, pintores”, e não poderiam frequentar esta agremiação.
Mesmo havendo contradições nas memórias, como indicam as lembranças de João Manuel
Vicente, que pintores e carpinteiros não poderiam entrar naquela agremiação, apreendemos que
os sócios dessa sociedade se faziam presentes nas mais diversas profissões naquele município. E

24 FERNANDES, 1978, p. 43-60.


25 SILVA, Paulo Sérgio. Entrevista concedida a Júlio César da Rosa. Laguna, 27 de janeiro de 2010.
26 VICENTE, João Manoel. Entrevista concedida a Júlio Cesar da Rosa. Laguna, 28 de janeiro de 2010.

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que essa multiplicidade de profissões, entre a de maior prestígio e segurança financeira, como ser
um funcionário público, ou a de caráter temporário, como um pintor, não foram impedimentos para
que nossos protagonistas garantissem seu espaço na agremiação.
As disputas pela memória no tempo presente, a “autodefesa”, a constante afirmação de que
os mulatos do União Operária eram a “elite” afrodescendente de Laguna, fazem parte dos embates
pela memória. Estes entrevistados, sendo filhos, bisnetos e frequentadores daquela agremiação,
talvez estivessem querendo manter, “ocultando inconscientemente ou conscientemente”,
“inventando” e/ou “modificando” suas lembranças, como forma de legitimar e garantir o status
conferido a seus pais e a eles próprios. E, nesse sentido, essas memórias elevariam a existência de
um clube de mulatos abastados em Laguna, apagando a experiência de outra sociedade recreativa
frequentada por pretos, também existente naquela cidade.

Conclusão

O objetivo desta pesquisa procurou apresentar os estudos sobre as sociedades recreativas,


especificamente o “União Operária” e “Cruz e Souza”, espaços autônomos de sociabilidade, lazer e
visibilidade construídos em Laguna, Santa Catarina, no pós-Abolição. Estas sociedades recreativas
e beneficentes surgiram em alguns estados do país, com a intenção de instruir, capacitar e auxiliar
os afrodescendentes. Muitas vezes foram ações efêmeras, mas que possibilitaram a essas pessoas
acesso a bens materiais a culturais, sem deixar de festejar a vida. As sociedades recreativas Cruz
e Souza e União Operária foram espaços autônomos, onde os frequentadores homens e mulheres
procuraram viver e se relacionar de acordo com seus interesses. Os clubes não estavam isentos
de conflitos, contradições e uniões, mas também foram espações de construção de autoestima,
ascensão social, luta por cidadania, visibilidade e respeitabilidade.
A existência de conflitos, contradições, uniões e afastamento são resultados da complexa
construção identitária que culminou naqueles espaços. A existência de dois clubes na cidade,
construídos por afrodescendentes, permitiu compreender a complexidade que os termos preto e
mulato carregaram e os seus diferentes usos e significados em contextos históricos distintos. As
identidades reivindicadas por esses sujeitos históricos indicam que a classificação racial no Brasil
foi, e ainda é ambígua e complexa. Produto da construção de relações hierárquicas e assimétricas,
interpretadas e refletidas por estes homens e mulheres em seus espaços de sociabilidade.

Referências

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de Laguna, 1965.

BENTO, Antônio Paulo. Entrevista concedida a Júlio César da Rosa. Laguna, 27 de janeiro de 2010.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 12. Ed. São Paulo: Companhia das

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Negras e negros no Sul do Brasil
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Janeiro pós-escravidão. Estudos Afro-asiáticos, n. 28, 1995, p. 101-127.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3 Ed. São Paulo: Ática,
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GUIMARAES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio
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LEITE, Ilka Boaventura. Ser “negro”: os sentidos da cor e as impurezas do nome. Trabalho
apresentado para o concurso de professor adjunto a Cadeira de Antropologia no Departamento
de Ciências Sociais na UFSC, 1987.

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Recreativa União Operária, Laguna.

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O ALBOR. Laguna, 1906-1907. Acervo da Casa Candemil.

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VICENTE, João Manoel. Entrevista concedida a Júlio Cesar da Rosa. Laguna, 28 de janeiro de
2010.

Página 718
O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO DA DIÁSPORA AFRICANA NO BRASIL1

BORBA, Fernanda Mara. (LabPac, UDESC)


fernanda.soet@gmail.com

Resumo

Este artigo apresenta o patrimônio arqueológico da diáspora africana levantado pelos principais estudos
brasileiros, enfatizando suas descobertas e abordagens. Em uma pesquisa sobre sítios e coleções
arqueológicas, deparou-se na potencialidade das informações focadas no tema da escravidão ou da
diáspora africana. E ainda, com espaços de guarda dos artefatos que careciam de leituras com esta
abordagem, sem havendo necessidade, muitas vezes, de novas escavações. O estudo se fundamentou
na arqueologia da diáspora africana, derivada das investigações sobre a escravidão de africanos e
afrodescendentes no Novo Mundo, passando a contemplar a dispersão desses grupos fora da África
por meio de migrações variadas. Com isso, essa linha de pesquisa apresenta um caráter mais plural,
pois fornece inúmeras possibilidades de investigação. Sob esse enfoque, as pesquisas arqueológicas
analisaram quilombos, residências urbanas, fazendas e engenhos, assentamentos de escravizados
e negros livres, igrejas e cemitérios, levantando as configurações espaciais, a cultura material e os
hábitos desses grupos. Considerando a pouca expressividade dos estudos da materialidade africana
e afrodescendente no campo patrimonial, a arqueologia apresenta diferentes fontes e interpretações a
respeito dos vestígios da diáspora, permitindo um outro olhar para o campo patrimonial.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Arqueologia. Diáspora Africana.

1 Essa discussão integrou duas pesquisas no âmbito da arqueologia e do patrimônio cultural (BORBA, 2103;
2014), desenvolvidas na Universidade da Região de Joinville (Univille) com financiamento do Fundo de Apoio a
Pesquisa da instituição, CNPq e Capes.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Este artigo apresenta o patrimônio arqueológico da diáspora africana levantado pelos


principais estudos brasileiros, entre 1960 e os anos 2000, com ênfase nas descobertas e
abordagens desse campo. Nestes, percebeu-se que o Brasil apresentava grande potencial de
informações para pesquisas focadas no tema da escravidão ou da diáspora africana. E ainda, que
muitos espaços de guarda como museus e universidades contemplavam artefatos que careciam
de leituras com esta abordagem, sem havendo necessidade, muitas vezes, de novas escavações.
Nesse sentido, o estudo da cultura material possibilita um outro entendimento sobre a presença
de africanos e afrodescendentes, por vezes não abordado ou mal explorado pelos tradicionais
registros documentais.
Para este trabalho levou-se em conta uma abordagem fundamentada nos pressupostos
teóricos e metodológicos da arqueologia da diáspora africana, derivada dos estudos que
investigam a escravidão no Novo Mundo, incluindo a dispersão fora da África com as demais
migrações. Sob este enfoque, o artigo define brevemente a arqueologia da diáspora africana para
inserir as investigações em quilombos, residências urbanas, fazendas e engenhos, assentamentos
de cativos e negros livres, igrejas e cemitérios, discutindo as configurações espaciais, os artefatos
e os hábitos dos grupos cativos e livres.

1 A arqueologia da diáspora africana: um breve histórico e abordagens

A arqueologia estuda as sociedades humanas por meio de aspectos culturais consolidados


na materialidade e tem sua importância ao discutir os usos e significados atribuídos aos artefatos.
A partir dos vestígios e as diferentes áreas de atuação, a arqueologia ultrapassa a simples coleta
de artefatos, possibilitando interpretações e a valorização dos bens sociais e do patrimônio
cultural (ORSER, 1992). Abrangendo o período colonial (escravista) e posterior (capitalista),
a arqueologia histórica por sua vez pode ser associada ao estudo dos últimos 500 anos,
centrando-se especialmente na expansão colonial europeia e sue impacto. Com a ampliação
das suas ações, esta procura identificar estruturas e objetos pertencentes aos diversos grupos
sociais para compreender suas transformações e seus conflitos. Ao contribuir com outras leituras
possíveis dessa história, tal linha de pesquisa recorre a vozes abafadas, práticas esquecidas e
culturas reprimidas (ORSER, 1992, p. 11), indicando uma realidade um pouco diferente da que
foi passada pela oficialidade, permitindo rever algumas interpretações do passado. Iniciada nos
Estados Unidos, esta arqueologia passou a ser alvo de investigação no Brasil na década de 1960,
abarcando a materialidade, documentos escritos, informações orais e iconográficas e espaços
públicos e privados, acadêmicos e informais.
A arqueologia da diáspora africana, associada à arqueologia histórica e iniciada igualmente
no âmbito norte-americano, se dedica ao estudo dos espaços de habitação e dos vestígios

Página 720
materiais dos africanos e afrodescendentes que viveram no continente americano sob o regime
escravista ou ainda em decorrência de outras migrações. Essa perspectiva emergiu entre 1960 e
1970, impulsionada por fatores sociais, políticos e intelectuais como o ativismo negro, a criação
de uma legislação patrimonial, a participação comunitária e os estudos sobre etnicidade e história
social (SINGLETON, 1995; SYMANSKI, 2014). Assim, surgiram investigações mais sistemáticas
em sítios escravos, onde a arqueologia apresentou a possibilidade de discutir evidências tangíveis
da cultura africana e afrodescendente reivindicada por esses grupos, que não se sentiam
representados na história nacional norte-americana (SINGLETON, 1995; SINGLETON; SOUZA,
2009). A partir dos anos 1990, a participação da comunidade por intermédio da arqueologia
pública favoreceu a popularização das pesquisas em sítios escravos (ORSER, 1998; 2002).
Symanski observa que nesse momento, esta arqueologia se tornou mais auto reflexiva, passando
a “criticar as abordagens voltadas para a aculturação e o reconhecimento de padrões [...] [que
definiam] os modelos de status como estático e descritivo e [chamou] a atenção para o caráter
dinâmico das relações de poder” (HOWSON, 1995 apud SYMANSKI, 2014, p. 167-168). Também
sofreu influência das novas abordagens adotadas pelas ciências humanas e sociais desse
período, focando os grupos subordinados, marginalizados e silenciados pelas narrativas históricas
dominantes (ORSER, 1998) e interpretando os aspectos sociais, culturais e simbólicos dos grupos
africanos e afrodescendentes.
Com o passar do tempo, o aumento das pesquisas transcendeu o estudo da escravidão
apenas em fazendas, e outros sítios foram analisados como os quilombos, as residências urbanas, os
assentamentos de escravos e negros livres, as igrejas negras (ORSER, 2002). Com esta expansão,
o termo diáspora africana no lugar da escravidão passou a ser adotado, surgindo nos anos 1970
com os movimentos políticos e sociais que buscavam promover a defesa dos direitos do povo
africano, tanto na África como em diáspora, sendo empregado pela arqueologia apenas em 1990
(ORSER, 1998). De caráter multicultural, o conceito abre diversas possibilidades de investigação,
desde os naufrágios de navios negreiros, a variabilidade cultural dos escravos, os estudos nos
sepultamentos escravos e a abordagem crítica das noções de raça e racismo (FERREIRA, 2009).
Essa análise permite delinear a diversidade de identidades que os escravizados forjaram na
América e ainda, circunscrever os espaços de formação das suas comunidades e os distintos
universos que construíram. Apontando, por fim, para as identidades como elementos posicionais
e contextuais, híbridos e moventes, fazendo-se na diáspora.

1.2 Estudos arqueológicos sobre espaços e vestígios

A arqueologia e a etnoarqueologia de quilombos

Guimarães e Lanna (1980) foram os pesquisadores do primeiro estudo em quilombo no


Brasil, observando cinco assentamentos mineiros no Vale do Jequitinhonha e Serra da Canastra,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

com a reunião de vestígios de fragmentos de uso cotidiano e restos de alimentação (SYMANSKI,


2009; 2014, SINGLETON; SOUZA, 2009). Nesse trabalho ainda se discutiu a implantação dos sítios
em pontos de difícil acesso e ao mesmo tempo com proximidade às rotas comerciais, bem como
a presença de pinturas rupestres com cenas das fases vivenciadas por um africano escravizado,
desde a saída da África a chegada e os serviços no Brasil. Uma outra pesquisa igualmente feita
por Guimarães (1990), investigou outro quilombo do mesmo estado, o do Ambrósio, identificando
vestígios de uma habitação de pau a pique com artefatos cotidianos e restos alimentares.
Entre 1992 e 1993, estudos foram realizados na Serra da Barriga (Alagoas), no âmbito do
Projeto Arqueológico Palmares com a reunião de 2.488 fragmentos cerâmicos indígenas, coloniais
e europeus, mais a identificação de 14 sítios, resultando no entendimento da vida diária no quilombo
com base na cultura material (ORSER; FUNARI, 1992; FUNARI, 1999; ORSER, 1996). Mais tarde,
entre 1996 e 1997, Allen retomou a pesquisa e, ao rever os dados, apontou a descaracterização
do sítio com o estabelecimento de padrões que teriam alterado a distribuição espacial do material
arqueológico e ainda relacionou a existência de uma diversidade cerâmica indicando a presença
de um componente pré-colonial (Tradição Aratu, grupo ceramista proto-Gê), com implicações à
identidade plural (ALLEN, 2006; SYMANSKI, 2014).
Ainda no campo quilombola, Carle (2005) estudou os assentamentos sul rio-grandenses:
o abrigo Monjolo (século XVIII), em Santo Antônio da Patrulha; Ilha do Quilombo (século XIX),
em Porto Alegre; e Paredão (fim do século XIX), nos municípios de Taquara e Gravataí. Mediante
a investigação de caráter simbólico das manifestações religiosas, o pesquisador discutiu as
influências destas na formação desses espaços pelas comunidades. Já Santana (2008) investigou
o Quilombo do Mussuca, em Laranjeiras (Sergipe), e a postura da comunidade contemporânea
que passou a rejeitar a memória da escravidão, apesar da presença de uma paisagem cultural
marcada pelo passado em ruínas, caminhos e antigas habitações, bem como festejos e outras
manifestações, com a rememoração da ancestralidade escrava (SYMANSKI, 2014, p. 184-185).
No Vale do Guarapé, em Mato Grosso e Rondônia, Symanski e Zanettini (2010) discutiram
a similaridade do uso do entorno em comunidades da África Subsaariana, dos Estados Unidos e
do Caribe dos séculos XVIII e XIX. De acordo a pesquisa, os quintais das casas tinham diversas
funções como locais de atividades domésticas, de cultivo de hortas e árvores frutíferas, e de criação
de animais. Usados também para recreação e sociabilidade, as áreas eram mantidas limpas com
varreduras e embelezadas com plantas ornamentais diversas – práticas com conteúdo espiritual
e social, similares na África Central entre os bakongo (SYMANSKI; ZANETTINI, 2010). Outro
aspecto discutido pelos autores foi a presença de refugo, em uma comunidade do Alto Guarapé e
encontrado no Oeste da África, como Serra Leoa, além de sítios norte-americanos e caribenhos.
A argila retirada do local estaria ligada à construção de casas de pau a pique, deixando os buracos
para a deposição do lixo, prática apontada também na Chapada dos Guimarães (SYMANSKI;
SOUZA, 2007), mostrando as atividades de descarte de refugo de africanos na diáspora em sítios
ocupados até a contemporaneidade, como foi o caso do Alto Guaporé.
O uso de plantas nos quintais foi discutido sobretudo por Carvalho (2012), que estudou

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a comunidade quilombola Boqueirão, em Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso.
Paralelamente, a arqueóloga também analisou cinco terreiros em São Paulo e Cuiabá, concluindo
que algumas árvores e plantas têm significado simbólico correspondente ao modo de pensamento
das comunidades averiguadas (o quilombo e os terreiros). As plantas associadas, mais uma vez, à
proteção de energias negativas, eram colocadas em pontos estratégicos, como em vasos na parte
frontal das habitações ou nos quintais, nos fundos ou na frente das construções. Além das plantas,
fez-se presente ainda árvores e a manutenção de pequenas hortas. Em campo, observou o uso
desses elementos em rituais e cortejos, também troncos e folhas de palmeiras nas construções
das habitações e ainda as varreduras em situações como por exemplo, enterros, acreditando assim
que estariam dispensando maus elementos (CARVALHO, 2012).

A arqueologia de senzalas

No âmbito das senzalas, ainda na década de 1990, Lima, Bruno e Fonseca (1993)
publicaram a primeira investigação num sítio situado em Vassouras, no Rio de Janeiro. Além do
prédio da senzala, escolhido pela potencialidade de revelar a cultura material de escravos, uma
intervenção foi feita nas áreas de trabalho doméstico, onde havia maior quantidade de materiais:
cachimbos e contas de colares atribuídos à utilização de escravos (LIMA; BRUNO; FONSECA,
1993).
Envolvendo senzalas, pesquisas mais recentes incluem áreas em Martinho da Serra (Rio
Grande do Sul) (MACHADO; MILDER, 2006), a Chapada dos Guimarães (Mato Grosso) por
Symanski e Souza (2007) e o Engenho São Joaquim em Pirenópolis (Goiás) por Souza (2007;
2010). Symanski e Souza (2007) destacaram a importância da visibilidade desse registro no
país, especialmente com base na análise dos engenhos dos séculos XVIII e XIX na Chapada dos
Guimarães. Nos sítios Taperão e Buritizinho, identificaram vestígios associados aos escravos,
problematizando as formas como estes empregavam a cultura material para a reapropriação e
subversão da hierarquia dos espaços do engenho. Souza (2007) observou o engenho de São
Joaquim, hoje Fazenda Babilônia, e discutiu as relações espaciais entre a principal residência e a
senzala, além de encontrar vestígios na senzala (cerâmicas, metais, vidros e materiais faunísticos),
sugerindo o uso desse espaço para alimentação e socialização (SINGLETON; SOUZA, 2009;
SYMANSKI, 2014).
Mais recentemente, Symanski e Gomes (2012) escavou uma área de refugo no Colégio
dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (Rio de Janeiro) associada ao século XIX, revelando

uma estrutura de fogueira e uma grande quantidade de ossos de mamíferos domésticos e


silvestres, conchas de mariscos, fragmentos de cerâmicas, louças portuguesas do século
XVIII e inglesas do século XIX, ornamentos de cobre martelado, contas de colares de vidro
e cachimbos de cerâmica (SYMANSKI, 2014, p. 188).

Página 723
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Estudos bioarqueológicos

Sobre os estudos bioarqueológicos, pesquisas reuniram vestígios ósseos em cemitérios de


cativos, destacando-se duas nessa área: Silva (2011) e Bastos (2011). A primeira analisou dentes
de 55 esqueletos de africanos sepultados na antiga Catedral da Sé de Salvador, entre 1553 a
1933, concluindo ser a série proveniente da Costa da Mina, referente ao século XIX, destacando
que alguns apresentavam mutilações dentárias intencionais e baixa incidência de cáries, abcessos
e perdas em decorrência, provavelmente, do pouco consumo de açúcar e carboidratos entre esses
indivíduos. O segundo estudo coletou amostras de 30 indivíduos sepultados no Cemitério dos
Pretos Novos, entre 1769 a 1830, na zona portuária do Rio de Janeiro. A partir da análise de isótopos
de estrôncio, a pesquisa concluiu que os sepultados se tratavam de escravos recém-chegados da
África com origens bastantes diversificadas, além de verificar igualmente as mutilações e ainda
sinais de polimento do esmalte associados à prática de higiene bucal africana – abandonada no
Brasil – baseada na mastigação de folhas e gravetos (SYMANSKI, 2014, p. 188-189).

Alimentação e a zooarqueologia

As pesquisas ainda pontuaram sobre a alimentação dos africanos e afrodescendentes,


abrangendo as atividades de captação de recursos (caça, pesca ou horticultura) e a preparação
e o consumo de alimentos. Para tanto, trabalharam-se com os materiais orgânicos com análises
zooarqueológicas e botânicas, bem como com os instrumentos agrícolas e objetos usados no
processamento dos alimentos, tais quais balas de chumbo, peças de armas, pesos de redes de
pesca, anzóis feitos de pregos e outros (SINGLETON, 1995). No Brasil, Symanski e Souza (2007),
nas senzalas dos engenhos da Chapada dos Guimarães, centraram-se em vestígios faunísticos
e utensílios domésticos. Na senzala escavada no sítio Babilônia, os ossos foram descartados ao
redor do fogo, onde muitas refeições tiveram lugar, o que pode representar uma prática cultural
associada a comunidades específicas com origem africana. Ao lado de evidência de corte,
salientam que muitos desses ossos eram quebrados e perfurados para a retirada do tutano,
provavelmente durante a refeição ao redor do fogo (SYMANSKI; SOUZA, 2007).
Os utensílios domésticos encontrados, por exemplo, na senzala do sítio Buritizinho
continham nas amostras de louças uma quantidade significativa de malgas, número cerca de
quatro vezes maior que os vestígios achados na casa-grande e nas habitações de trabalhadores
livres. Isso sugere que os cativos desse sítio enfatizavam o consumo de alimentos na forma
de sopas e cozidos (SYMANSKI; SOUZA, 2007, p. 233). Essas práticas, além de outras, foram
representadas por cronistas estrangeiros, como Debret (1989) e Rugendas (1979), mostrando o
preparo e o consumo de ensopados por escravos.

Página 724
Artefatos cerâmicos, identidades e trocas culturais

Morales estudou os fragmentos cerâmicos coloniais de Jundiaí (São Paulo) e salientou


para a “diversidade do material de contextos domésticos que se caracterizavam pela diversidade
cultural, sob influências indígenas, africanas e europeias, em contraste com a produção para a
venda em aldeamentos indígenas” (2001, p. 191), destacando a coexistência dos tipos de produção
no mesmo sítio. Jacobus (1996) também observou a amplitude da produção cerâmica voltada
ao comércio com influência de grupos da África Central em material presente no sul do Brasil.
Zanettini (2005) reconheceu a existência de influências africanas no fabrico e no uso da cultura
material das Casas Bandeiristas, sedes de fazendas construídas ao redor da vila de Piratininga,
em São Paulo, durante os séculos XVII e XVIII. Mediante a cerâmica de produção local e regional, o
autor tratou da presença de homens livres no cenário escravocrata paulista. A respeito da cerâmica
de produção local e regional, Symanski salienta que os estudos que discutem

as trocas culturais entre africanos, ameríndios e europeus tem sido abordadas com base
em modelos alternativos ao paradigma da aculturação, tradicionalmente utilizado para
explicar as mudanças no comportamento material [...]. A ênfase tem recaído nos modelos
de crioulização, transculturação e etnogênese [...] [buscando] entender como as trocas
entre os grupos e sociedades distintas levam à emergência de novas configurações
culturais (SYMANSKI, 2014, p. 191-192).

Ciente da variação, Agostini (1997; 1998) analisou peças decoradas de contextos escravos
para compreender as estratégias de resistência ao sistema escravista. A arqueóloga comparou os
estilos decorativos dos cachimbos do Rio de Janeiro e São Paulo com as escarificações corporais
dos escravizados, presentes em pinturas e descrições documentais, identificando a preservação
de símbolos que reforçassem a identidade cultural africana, os quais consistiram em estratégias
de resistência. Em trabalho posterior, Agostini (2011) dedicou-se ao estudo das dinâmicas
materiais e simbólicas em uma antiga fazenda oitocentista do litoral paulista. Na pesquisa, lidou
com a hipótese da ligação entre o seu proprietário e o tráfico ilegal de africanos recém-chegados,
problematizando como a dinâmica simbólica, materializada em objetos, serviu no encontro de
pessoas com formações culturais híbridas e criativas.
Seguindo essa linha, Symanski e Souza (2007), ao examinar os sítios em Mato Grosso
(três engenhos, um quilombo e uma casa rural), discutiram a variabilidade diacrônica do material
encontrado, sugerindo que os grupos usaram as cerâmicas para expressar diferenças sociais
e culturais. Houve variações nos modos de produção e nos aspectos estilísticos da cerâmica
produzida localmente, com mudanças que dependem do local em que os artigos são localizados.
Um artifício em comum, no entanto, é visto em todos: a combinação de elementos africanos,
indígenas e europeus (SINGLETON, 1995; SYMANSKI, 2009).
Além da cerâmica produzida localmente, artefatos de contextos europeus também são
discutidos pelas pesquisas, envolvendo questões mais complexas, dada a similaridade destes

Página 725
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

com os utensílios achados nas casas-grandes. É o caso dos estudos de Symanski e Souza (2007)
que pontuaram acerca da diferenciação de status e resistência cultural com base nas amostras
de louças dos engenhos da Chapada dos Guimarães (Taperão e Buritizinho). No sítio Taperão,
as escavações apresentaram louças importadas nas amostras dos escravos com padrões
decorativos similares às amostras da casa-grande. Isso sugere que os senhores distribuíam os
objetos aos escravos quando velhos e danificados. Por outro lado, no sítio Buritizinho as louças
importadas identificadas nas senzalas eram, em grande parte, exclusivas dessa área, com padrões
decorativos abstratos e a predominância da técnica de reprodução, por meio de um carimbo,
diferenciando-se das louças da casa-grande. Essa informação direcionou para a crença de que os
escravos tiveram acesso aos materiais pela compra, pautada por padrões estéticos semelhantes
às decorações da cerâmica local e com desenhos parecidos com os tradicionais motivos africanos
(losangos concêntricos) (SYMANSKI; SOUZA, 2007). Logo, quando podiam fazer suas escolhas,
optaram por louças com uma estética africana, e não europeia.
Por último, Coelho (2012) pesquisou o Vale do Macacu, no Recôncavo da Baía de Guanabara,
ocupado por um amplo e diversificado contingente de escravizados. O estudo analisa cachimbos
cerâmicos e o hábito do fumo que, apesar de presente na vida de diferentes matrizes culturais,
associa-se ao contexto arqueológico de africanos e seus descendentes. A partir da coleção de
cachimbos, o autor inferiu existir um número significativo de formas decorativas e aponta para a
existência de uma baixa reprodução desses elementos, sugerindo que o local não se configurava
como área produtora desses artefatos, mas como um espaço que congregava indivíduos que
portavam cachimbos, associados à uma diversidade étnica de africanos introduzidos na região.

Espaços habitacionais

Ao problematizar questões referentes às habitações escravas, as pesquisas levantaram


informações sobre as características físicas (tamanho, dimensões, materiais e métodos de
construção) e o modo de vida dos escravos, assim como questionamentos acerca de status,
resistência e identidade cultural (SINGLETON, 1995). A respeito dos contextos escravos,
uma diferença essencial para a análise é diferenciar os cenários urbanos dos rurais; ambos
carregam especificidades bastante complexas. Os escravos, em contextos urbanos, tenderam
a compartilhar os mesmos ambientes que os senhores, de maneira a implicar registros
arqueológicos representando as práticas cotidianas dos dois grupos, especialmente se a área
de descarte também foi compartilhada. Symanski e Souza (2007, p. 217) pontuam que, nesses
cenários, uma alternativa possível para enfrentar esse problema baseia-se na percepção de que
o refugo encontrado em contextos urbanos é, na grande maioria dos casos, produto da interação
de agentes sociais bastante diferentes entre si, o que inclui os dois grandes grupos compostos por
livres e escravos.
Em contextos rurais, escravos e senhores também podiam dividir as mesmas habitações,
mas parte dos cativos vivia em locais separados da casa-grande, como as senzalas, que poderiam

Página 726
ser coletivas, individuais ou ainda familiares. Os relatos de viajantes descrevem que a tipologia
mais comum de senzalas em contextos rurais apresentava uma planta bastante simplificada,
de forma retangular, com um ou dois cômodos, paredes de pau a pique e cobertura de palha.
Porém os estudos afirmam que essas construções variavam muito de acordo com a região em que
estavam inseridas, a origem dos escravos, a riqueza dos proprietários e as atividades individuais
dos senhores. As senzalas também poderiam incluir edifícios geminados, compostos por três ou
quatro compartimentos; e pavilhões, que apresentavam uma forma alongada e eram divididos em
cubículos, estes últimos mais comuns no sudeste brasileiro da primeira metade do século XIX.
Há ainda menção a um tipo de senzala organizado “em quadra”, com pavilhões fechando um
pátio quadrangular interno, identificado na região do Vale do Rio Paraíba (SYMANSKI; SOUZA,
2007, p. 219). Por fim, Symanski e Souza (2007) também se referem aos materiais usados nessas
construções, como os elementos perecíveis que deixaram poucos traços nos registros, dificultando
a identificação arqueológica.

Práticas rituais, religiosidade e simbologias

No âmbito ritualístico, a pesquisa em Salvador de Tavares (2006) identificou contas de


colares e práticas religiosas de origem africana em sepultamentos localizados na antiga Igreja da
Sé. Os vestígios levaram, após a análise, à hipótese de práticas ritualísticas derivadas de sistemas
religiosos que coexistiram paralelamente (católico e de origem africana). Ainda nesse campo, Carle
(2005), estudou os assentamentos quilombolas sul rio-grandenses e levantou as manifestações
religiosas presentes nos sítios Monjolo (Santo Antônio da Patrulha), Ilha do Quilombo (Porto Alegre)
e Paredão (Taquara e Gravataí) e discutiu as influências destas na formação desses espaços pelas
comunidades.
As investigações arqueológicas têm observado também que alguns artefatos estariam
associados às questões simbólicas e ritualísticas, indicando a persistência de elementos culturais
africanos, com destaque à religião, à música, à dança, ao vocabulário e ao folclore (SAMFORD,
1996, p. 101). Os artefatos compreendem o uso de moedas perfuradas em forma de amuletos,
contas azuis em colares de proteção, anéis de chifres, ossos ou madeira, entre outros adornos.
O uso de objetos também está relacionado ao enterramento de materiais em lugares específicos
e seriam utilizados em rituais para o controle dos espíritos. Conchas, pérolas, moedas, peças de
bonecas, búzios, crânios de aves e garrafas ou ainda, como identificou Symanski (2007), um prato
com uma moeda abaixo do piso da casa-grande em um engenho em Mato Grosso. Apesar da
variabilidade dos rituais apontados, as pesquisas interligam essas práticas às crenças religiosas
africanas. Outros itens, como botões, sementes, cabaças, ossos de mandíbulas de animais,
podiam ser aplicados em instrumentos musicais, tais quais xequerés, gaitas de boca e harpas
(SAMFORD, 1996). Além disso, búzios e fragmentos de vidro, cerâmica ou louça retocados eram
utilizados em jogos de adivinhação (SINGLETON, 1995). Essas interpretações se ampliam quando
combinam os dados arqueológicos com fontes etno-históricas e etnográficas sobre o legado

Página 727
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

cultural africano (SAMFORD, 1996), permitindo inferências sobre os usos e significados da cultura
material identificada nos contextos escravos.

Conclusão
As pesquisas arqueológicas têm demonstrado uma ampla e variada forma de interpretar a
cultura material de africanos e afrodescendentes, apresentando aspectos cotidianos como hábitos
alimentares, manifestações religiosas, reapropriação de outros materiais, locais de produção
artefatual e demais espaços de sociabilidades. A investigação desses vestígios evidencia, entre
outras coisas, as condições de vida no regime escravista, os diferentes status em uma mesma
comunidade, as relações de poder entre senhores e a resistência escrava, as continuidades
e descontinuidades do legado cultural africano e, ainda, a formação de novas identidades
afrodescendentes (SINGLETON, 1995; ORSER, 1998). Isso demonstra que a cultura material
relacionada a esses grupos envolve questões muito mais complexas, e as relações ultrapassam as
essencializações desses vestígios que tendem a relacionar um determinado material a um grupo
específico. Como proposta, sugere-se que, exposta a potencialidade das pesquisas, estudos
possam dar continuidade e discutam especialmente no Sul esses elementos. E que, juntamente aos
documentos históricos, possam apresentar as experiências desses grupos, ainda invisibilizados
na história e no campo patrimonial.

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Página 731
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O VOCABULÁRIO RACIAL NAS PÁGINAS DA IMPRENSA NEGRA.

OLIVEIRA, Ângela Pereira. (UFPel)


angelapoliveira2@gmail.com

Resumo

Esse estudo tem por objetivo discorrer a respeito do emprego de palavras com sentidos racializados
em dois periódicos de imprensa negra do Rio Grande do Sul, denominados O Exemplo (1892-1930)
e A Alvorada (1907-1965). O Exemplo nasceu na cidade de Porto Alegre enquanto A Alvorada, na
cidade de Pelotas, situada na região sul do Rio Grande do Sul. No que se refere ao recorte temporal,
essa proposta foca no período de 1920 a 1935. Ao se apropriarem da imprensa e fazer uso dela em prol
de seus interesses, os redatores desses periódicos participaram do debate sobre os sentidos da cor e
da raça que estavam sendo pautados no período. O uso do vocabulário racial implicava em critérios de
seleção, escolhas e predileções, que eram acionados pela cor e pela nacionalidade, por exemplo. Refletir
sobre a historicidade de conceitos racializados possibilita compreender alguns dos problemas existentes
ainda hoje que são resultantes do impacto que as crenças raciais exerceram sobre a sociedade. Para o
campo que se dedica aos estudos de emancipações e pós-abolição é importante entender quais eram
as lógicas conferidas pelos sujeitos envolvidos nos processos. Nesse sentido, esse estudo tentar fazer
alguns apontamentos sobre a maneira na qual os integrantes da imprensa negra se manifestavam em
relação a teorias raciais e a práticas racistas.

Palavras-chave: Racialização. Imprensa negra. O Exemplo. A Alvorada.

Página 732
Introdução

Até bem pouco tempo atrás, falar em pós-abolição era entender um período cronológico
marcado pelos anos seguidos do fim do regime escravista no Brasil. Nos últimos anos o termo
adquiriu um novo significado na historiografia para além dos anos posteriores à abolição,
compreendido como imediato pós-abolição. O pós-abolição no entendimento das pesquisas passa
cronologicamente a se estender por longos anos, não sendo percebido em termos cronológicos. O
que definiria esse momento seriam as imposições e as crenças que não se romperam com 1888,
ou seja, os pesquisadores acreditam que a manutenção de condições existentes anteriormente
quando ainda vigorava o regime escravagista no país é que delimita as análises do campo.
O presente estudo de pós-abolição utiliza como fonte dois semanários negros elaborados
no Rio Grande do Sul, O Exemplo e A Alvorada. De circulação semanal, eles foram elaborados,
respectivamente, na capital, Porto Alegre, e na região sul do Estado, na cidade de Pelotas. Os
jornais analisados foram aqueles que circularam entre os anos de 1920 a 1935. O Exemplo circulou
de 1892 a 1930, com diversas interrupções. Quando o jornal era relançado apresentava algumas
diferenciações entre si, o que entre os historiadores passou a ser visto como quatro diferentes
fases ao longo de sua existência.
Já A Alvorada foi editada de 1907 a 1965. Diferente do O Exemplo que teve início no
imediato pós-abolição, A Alvorada, se iniciou somente no século XX, no entanto, sua existência
foi mais longa do que o primeiro jornal. No século XX o Brasil vive uma explosão de periódicos da
chamada imprensa negra, o que demonstra a luta dessa população contra as continuidades no
tratamento desigual que nada mais era do que resultado do caráter incompleto da efetivação da
cidadania e da igualdade para esse coletivo.
De acordo com Gomes (2005) as lógicas conferidas pelos sujeitos são de fundamental
importância para a compreensão deles, e é dessa maneira que o campo de estudo em questão
busca desenvolver suas análises, levando em consideração seus sujeitos, seus pensamentos e
suas lógicas. O problema de pesquisa que aqui busco desenvolver trata de perceber como as
categorias raciais passaram a ser acionadas e, como elas se faziam a partir do olhar da população
negra, registrada em seus periódicos. A partir desse questionamento, meu objetivo é propor
uma reflexão sobre a historicidade desses conceitos como forma de compreender alguns dos
problemas existentes ainda hoje devido ao impacto das crenças raciais. A hipótese que norteia
esse estudo é de que a imprensa negra possibilitava que os negros tivessem um espaço todo
seu dentro da comunicação para debater a respeito das ideias raciais uma vez que eles não
estavam sendo consultados e que uma vez não encontrando espaços de fala em outros meios a
imprensa negra funcionava para alertar aos seus e a população de maneira geral. Os membros da
comunidade que circundavam os jornais operacionalizaram com as categorias raciais que estavam
sendo debatidos em seu contexto, mesmo que “os de cima” não estivessem interessados no que
“os de baixo” pensavam, eles encontraram maneiras de participar do debate se inserindo nesse

Página 733
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

momento histórico (HOBSBAWM, 2013).


Após uma leitura densa das fontes e de pesquisas que fizeram uso desses mesmos
impressos que essa pesquisa, tais como: Müller (1999), Santos (2003) e Silva (2011), foi possível
observar o quanto a naturalização da noção de raça estava presente na vida cultural e social dos
integrantes dessa imprensa. E que por se tratar de um debate bastante polêmico e que gera uma
série de debates tem sido pouco explorado pelas pesquisas. Assim esse artigo foca nas discussões
sobre a cor, nas percepções sobre a raça e encerra fazendo algumas observações sobre a maneira
escolhida por esses sujeitos na promoção de sua autoidentificação.

1 Cor

Durante o século XIX, algumas teorias europeias começaram a ser importadas para o
Brasil, entre elas, o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o darwinismo social
(MAGALHÃES, 2017). Com o fim do regime escravista, no final do século XIX, essas teorias
passam a se propagar na sociedade brasileira ganhando cada vez mais força na construção dos
modelos raciais. Para o caso brasileiro (que se difere de outros locais, como por exemplo, os EUA),
o preconceito baseado na ideia de raça, chamado de racismo, toma por critério de definição racial
a tonalidade da cor da pele (NOGUEIRA, 2006). Os tons da pele podem ser diversos e são parte
de um aspecto da aparência física, ou seja, uma característica fenotípica. Nesse caso, ela passa
a demarcar o pertencimento a uma raça de acordo com a tonalidade, mais clara ou mais escura,
de cada indivíduo. Cor e raça não são a mesma coisa, mas a cor serve como uma metonímia para
explicar uma ideia racial, ela serve para expressar a raça, uma vez que se tornou um dos “principais
atributos raciais” (ROSA, 2014, p.47).
Estudar as histórias e diferentes experiências dos descendentes de africanos no Brasil
tem na cor da pele como um elemento identificador desses indivíduos. No entanto, muitos dos
documentos oficiais que se produziram no pós-abolição não destacam a cor da pele gerando
uma invisibilidade sobre essa população e dificultando os estudos em relação ao grupo (MATTOS,
2013).
Em se tratando da imprensa negra, evocar a cor também era uma maneira de aglutinar os
negros de forma política e racial. Atualmente o uso da palavra negro é influenciada por convicções
políticas e também porque “quando empregada para caracterizar organização humana, não isenta
o racismo” (CUTI, 2010). O vocábulo negro foi designado nas pessoas que vieram do continente
africano na condição de escravizado. No século XX, muitos dos termos que eram usados como
forma de ofender a esses sujeitos passou a ser empoderados por eles para assim assumir um
sentido positivado (OLIVEIRA, 2017). Negro é uma construção histórica e também uma construção
identitária. As pessoas não nascem negras, mas podem vir a se tornar (SOUZA, 1983).
Nesses impressos o grupo se define enquanto negros e empregam essa palavra em muitos
casos, inclusive ao reivindicar que as pessoas se identifiquem enquanto negras. Por exemplo, em

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uma das colunas mais conhecidas do jornal A Alvorada, dedicada a tratar das fofocas da cidade
consta: “Pesquei certos mocinhos, que lhes correm pelas veias o sangue africano ficarem zangados
quando lhes chamam de negro. Ora, mocinhos, isso não é ofensa, porque ser preto não é defeito”
(A Alvorada, 16/10/1932, p.05). Nesse caso fica explícita a reversão de sentido construída por
eles sobre a palavra negro em oposição a uma maneira pejorativa na qual era empregada pela
sociedade. Além disso, esse trecho demonstra o uso de um vocabulário racial acionado pela cor.
A tez da pele escura era um critério que os colocava enquanto diferentes dos brancos
e, que os estigmatizava logo, ela se tornou um elemento aglutinador a ser levado em conta nas
diversas esferas de suas vidas. O jornal O Exemplo escreveu em uma de suas edições que um
de seus objetivos era contribuir para o fim das distinções de cor. São palavras registradas pelos
próprios editores do semanário: “Nós, que penetramos no vasto campo das lutas pela existência,
alistamos no grupo batalhador em prol de um santo ideal – a igualdade de todos os brasileiros,
sem distinção de cor” (O Exemplo, 10/12/1928, p.01). Também deixaram registrado nas páginas
do impresso que “muita gente se esquece, de que o preto tem o mesmo direito e lhe assiste os
mesmos deveres” (O Exemplo, 10/12/1928, p.01).
A cidadania era uma reivindicação constante nesses dois jornais negros e nesse caso, ela
costumava aparecer vinculada a cor. Essa era uma forma de demonstrar que para a população
negra a noção de cidadania não era a mesma que a das pessoas de cor branca, no sentido de
que em termos de direitos os negros não eram tratados iguais aos brancos mesmo que tivessem
os mesmos deveres. Tratar a respeito da cidadania era uma forma de defesa nacionalista por eles
utilizada. “O Exemplo presta um serviço de são patriotismo, uma obra de benemerência. Combater
o preconceito de cor é trabalhar pela grandeza do Brasil” (O Exemplo, 10/12/1928, p.01).
Após receber uma carta de um leitor criticando a real necessidade da formação de uma
organização como a Frente Negra Brasileira, de 1931, na cidade de São Paulo (DOMINGUES,
2007), e sendo questionados sobre a sua opinião a respeito de tais organizações, A Alvorada
respondeu em seu jornal:
A Frente Negra Brasileira – desculpe-me o talentoso missivista – não é uma afronta à
raça branca, mas sim uma demonstração de que nem sempre deve existir no nosso país
o antigo regime das épocas coloniais. (...) Desde 1888, ano da abolição, até hoje, não se
conseguiu apagar esse borrão [a escravidão] fazendo com que todos os brasileiros se
amassem mutuamente sem distinção de cores. (A Alvorada, 28/02/1932, p.03).

Entre os argumentos contrários a essa organização, apresentado pelo leitor do jornal,


estava o de que a Frente Negra Brasileira estimularia ainda mais a divisão entre negros e brancos.
Além disso, eles manifestam através de sua resposta uma consciência em relação ao fato de que a
distinção de cor entre as pessoas existe independente da formação de espaços como esse e que
não seria ele o causador dessa discórdia. Em outro texto publicado no jornal eles colocam que as
críticas aos espaços formados pela população negra nada mais é do que preconceito em relação
as suas organizações.
A cor era uma das características que mais demonstrava no convívio o caráter racial, tanto

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

nas relações sociais quanto nas crônicas escritas pela imprensa negra analisada.


2 Raça

A raça enquanto uma categoria biológica não existe, ela é uma construção social que
circunda vários atores historicamente inscritos em contextos que garantem inteligibilidade à
categoria. Nesse sentido, a raça e os seus sentidos somente existem nos sistemas sociais em
que há uma “hierarquização das populações, baseada em características físicas e em outros
elementos sociais e culturais atribuídos a essas características” (SILVA, 2010, p.31).
Raça é uma categoria discursiva que deve ser entendida dentro do seu contexto. A categoria
possui uma história e uma historicidade, ou seja, ela não é fixa. O significado hoje atribuído ao
conceito não é o mesmo que se tinha outrora, o quer se deve em parte aos movimentos e lutas
sociais. A raça, geralmente, era empregada para justificar a inferiorização social do negro e os
empecilhos ao livre exercício de sua cidadania.
Os jornais negros estudados dialogaram com essa categoria, se apropriando dela e
ressignificando-a. Isso se deve ao fato de ela atuar como um aglutinador, capaz de fortalecer
politicamente a população de cor na busca por melhores condições de trabalho, de vida e de
cidadania (GUIMARÃES, 2002). Assim, a raça passou a ser empregada como um “fator de união
para atingir determinados objetivos” (ROSA, 2014, p.285).
Em A Alvorada e O Exemplo, o debate em torno da ideia de raça ocorre constantemente,
seja nos momentos em que eles resolvem denunciar casos de preconceito de cor ou quando
defendem o negro de sua suposta inferioridade. Ao empregarem a terminologia raça em seus
escritos, um sentido que comumente eles conferem a ela é o que hoje entendemos por etnia, ou
seja, um grupo que se diferencia culturalmente de outro. No período estudado, não havia uma
distinção clara entre as ideias expressas pelos dois conceitos, sendo que elas se relacionavam.
No processo de racialização as nacionalidades também estiveram envolvidas, no caso
dessa imprensa negra, isso fica claro quando em seus textos eles se utilizavam de expressões
como: “raça etiópica” (A Alvorada, 16/07/1933; O Exemplo, 30/06/1922) e “raça africana” (A
Alvorada, 14/05/1933).
O vocábulo raça, nos artigos dessa imprensa, muitas vezes era acompanhado de menções
à cor da pele. Nesse caso, a raça era empregada junto com “preta” (O Exemplo, 10/06/1921),
“negra” (O Exemplo, 06/03/1921) ou “branca” (A Alvorada, 20/12/1931), também “mestiça” (A
Alvorada, 23/12/1934) ou “ariana” (A Alvorada, 02/12/1934).
Em relação aos casos de racismo denunciados por essa imprensa, um dos jornais chegou
a mencionar que: “não se discute, porém, a supremacia de nenhuma raça. Comenta-se a sua
igualdade, só” (O Exemplo, 03/07/1927, p.01).
Mesmo que a raça seja capaz de unificar as pessoas de cor, as variações de suas peles
criavam e ainda criam entre elas muitas fronteiras, demonstrando que a identidade racial era e

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ainda é permeada de tensões (ROSA, 2014).
A ideia de raça se mostrou extremamente influente nas diversas áreas de pesquisa
científica desenvolvidas naquele momento. Ao mesmo tempo em que alguns trabalhos refutavam a
degeneração (genética e hereditária) do negro e do mestiço, outros reafirmaram essa perspectiva,
além de legitimar a política de branqueamento.
Tanto O Exemplo quanto A Alvorada demonstraram através de seus textos que acreditavam
na superação do racismo na sociedade brasileira, mas nunca negaram sua existência de fato.

3 Autoidentificação

Com a escravidão transatlântica, africanos, africanas e seus descendentes passaram a


ser chamados por termos que não utilizaram e que foram adquirindo novos sentidos. O vocábulo
negro (a), já mencionado no texto, por exemplo, é um desses vocábulos que fazem parte de um
contexto de escravidão, de racialização e que, adquirem um sentido diferente ao longo do tempo.
Inicialmente, quando a escravidão ainda era vigente no Brasil, eram chamados de negros
(as) os cativos fujões e desobedientes (MÜLLER, 2013; CHALHOUB, 2012). O (a) negro (a) é
uma construção histórica presente nas relações sociais que busca explicar-se através de uma raiz
comum, centrada no processo diaspórico transatlântico. A inferência ao negro enquanto uma raça
era constante nos anos estudados e através de sua imprensa eles passam a se intitular de raça
negra, se apropriando de um vocabulário estabelecido em relação a eles.
Quando utilizaram a imprensa esse coletivo de negros letrados passaram a deixar
registrados a sua participação, opinando, mesmo sem que fossem consultados, a respeito das
discussões realizadas, naquele momento, em relação aos sentidos da cor e da raça. Os significados
e usos empregados pela cor e pela raça são operados social e politicamente. O uso do vocabulário
racial implicava em critérios de seleção, escolhas e predileções acionados pela cor, nacionalidade,
origem.
A maioria dos membros de O Exemplo, era tidos por pardos, diferente dos membros da A
Alvorada, que eram negros. Várias são as possibilidades para essa diferença entre os interlocutores
dessa imprensa. Primeiro, a vinculação a um espaço social ocupado que se diferenciaria daquele
em que estavam os demais negros, uma vez que a nomenclatura pardo poderia ser um indicativo
para a concessão de certo prestígio social que uma pessoa identificada enquanto negra não
atingiria, ou seja, essa identificação dialoga diretamente com a ascensão social.
Em segundo, a adoção deste vocabulário poderia ser uma necessidade de afastamento
do poder negativo que o vocábulo “negro” poderia lhes proporcionar, ou seja, por trazer uma
proximidade com a condição de escravizado. Em terceiro, que essa classificação da cor desses
personagens pode estar vinculada a um grau de mestiçagem.
Em relação a assumir uma cor, existe duas possibilidades, a primeira de que a afirmação da
cor estava vinculada a uma identidade e, pode ter sido uma escolha, e a segunda, de que a cor de

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

alguém pode ter sido uma condição imposta, ou seja, sem a consulta do indivíduo. Por se tratar de
uma categoria que não é fixa, as pessoas ao longo de suas vidas poderiam ser registradas com
denominações de cor diferentes, já que a noção de cor também é uma construção histórica. Nesse
momento, o uso da expressão pardo (a) era muito mais usual do que mulato (a) e mestiço (a).
Os dois periódicos apresentam muitas formas nas quais eles se identificavam. Todo o
vocabulário presente nessa imprensa partiu de uma escolha feita pelos autores dos artigos e
pelos membros dos impressos. Além de palavras de sentido racializado em seus textos também é
possível observar a adoção de codinomes influenciados pelas ideias raciais. Entre os codinomes
adotados, vários remetiam à cor, por exemplo, “Creoulo Leuguim” (A Alvorada, 07/01/1934),
“Negro” (A Alvorada, 22/01/1933), “João Moreno” (A Alvorada, 20/12/1931), “Moço Negro”
(A Alvorada, 28/08/1932). Os dois últimos nomes foram de autores de poemas publicados na
A Alvorada. Já o termo “crioulo”, apesar de apontar que remetia a cor, também possuía outros
significados: “poderia definir sucessivamente condição social, lugar de nascimento, ascendência
africana e cor” (XAVIER, 2013, p.141).
Já no vocabulário utilizados nas crônicas e artigos dos jornais era muito presente o apelo
nacionalista em dois níveis: no primeiro, através da ligação com uma origem regional, por exemplo,
“expoente intelectual da raça em Pelotas” (A Alvorada, 07/02/1932) e “raça negra de Pelotas” (A
Alvorada, 02/12/1934); no segundo, o nacionalismo era acionado em termos mais gerais, tal como
“negro brasileiro” (A Alvorada, 07/02/1932).
Em seus textos, ao dialogar com o seu leitor a respeito de questões raciais, os integrantes
desses jornais tinham o cuidado de se inserir, através do vocabulário escolhido. Assim faziam
uso de termos tais como: “compatriotas de raça” (A Alvorada, 25/12/1932), “irmãos de cor” (A
Alvorada, 19/02/1933) e “nossa gente preta” (A Alvorada, 10/07/1932).
Tendo a imprensa negra operado com diversas categorias raciais, os seus textos permitem
compreender ainda mais sobre a historicidade de certos conceitos.

Conclusão

Os homens negros que se apropriaram da comunicação formando jornais específicos


para tratar de assuntos que não tinham oportunidade em outros veículos de comunicação,
deixaram registros através de sua escrita da influência das ideias raciais sobre as suas vidas. A
operacionalização com algumas das categorias raciais permitem observar as escolhas e de que
forma eles se posicionavam, mesmo sem que fossem consultados ou que suas opiniões fossem
respeitadas. Utilizar a imprensa como forma de apropriação para a divulgação de seus interesses
permitiu que o grupo deixasse registrado a sua participação nesse processo histórico bastante
complexo. Além de terem registrado muitas das suas experiências envolvendo a internalização
das ideias raciais pela sociedade.
A opinião e as ideias divulgadas nesses impressos foram proferidas por homens letrados,
isso não significa que toda a população negra partilhava dessas mesmas convicções e pensa

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igualmente a eles. Por se tratar de um assunto bastante polêmico, não há uma homogeneidade de
posicionamento e nem de pensar em relação a essas ideias. Eles atuaram sobre a maneira na qual
queriam ser vistos e reconhecidos.
Os membros de A Alvorada, por exemplo, não se limitaram apenas em denunciar os casos
de racismo. Os seus escritos tiveram um papel fundamental na conscientização e valorização do
(a) negro (a). Em seus debates, eles operacionalizaram as categorias que conheciam, ao mesmo
tempo, demonstrando que não estavam condicionados pelo determinismo racial.
O acionamento das categorias raciais se deu pela necessidade de se posicionar em relação
a elas. Na medida em que a ideia de raça estava inserida cada vez com mais força na sociedade
e, por conviverem com essas ideias, esse coletivo negro passa a interagir com elas, mas isso não
significa que eles concordavam ou mesmo que as aceitavam, o que pode ser observado através
dos escritos questionando ou mesmo reconstruindo a visão racial difundida.

Referências
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Paulo: Companhia das letras, 2012. 2ed.

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NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Sugestão de um


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Negras e negros no Sul do Brasil
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Página 740
LIBERDADE E VISIBILIDADE AOS NEGROS E PARDOS DO SUL: CAMPOS
DE PALMAS/PR 1867-1888

KREWER, Neiva (UFFS)


neiva_krewer@hotmail.com

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo analisar a relação entre escravidão e liberdade nos Campos de
Palmas/PR no período de 1860-1888, investigando as condições da alforria e as características dos
indivíduos que receberam a liberdade. Assim, as principais fontes analisadas são 56 cartas de alforria
que concederam 66 liberdades, estas se encontram disponíveis para pesquisa no Tabelionato de Notas
de Palmas. Além desses registros cartoriais, buscamos mais informações sobre os libertos nos registros
eclesiásticos disponíveis na Cúria Diocesana, para compreender a trajetória e as relações desses
indivíduos ligados à escravidão e que por muito tempo ficaram “invisíveis” e também foram negados
neste espaço geográfico. Nos Campos de Palmas a presença escrava estava diretamente associada à
manutenção da economia, a sociedade pastoril e a de subsistência, sendo importante perceber quem
eram os sujeitos que receberam e porque estavam recebendo a liberdade e quem era o sujeito que
assinava a alforria, assim como seus interesses nesta ação. A partir da análise qualitativa dos dados,
conseguimos levantar várias questões e possibilidades acerca dos alforriados.

Palavras-chave: Escravidão. Cartas de Alforria. Liberdade. Campos de Palmas.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Considerando que a região Sul do Brasil não teve um número expressivo de cativos como
as regiões do Sudeste e Nordeste do país, até aproximadamente a década de 1980, a historiografia
que abrange esse território utilizou-se do mecanismo de invisibilidade para com a população
descendente de africanos. Assim, tentava-se demonstrar que o negro teria sido uma presença
rara e inexpressiva nessa região, devido à ausência de um grande sistema escravista voltado para
a exportação como ocorreu em outros locais.
Segundo a produção historiográfica1, ainda que, em algumas áreas e atividades houvesse
a presença do escravo, as relações entre este e o senhor teriam sido mais democráticas e
igualitárias, havendo menos discriminação racial. Conforme assinala Ilka Boaventura Leite2, esta
era uma justificativa para o esquecimento e a afirmação de uma suposta democracia racial, pois, a
identidade étnica da região Sul no âmbito nacional, era sua branquitude e europeização.
Dessa forma, o tema da pesquisa, a liberdade em cartas de alforria em Palmas/PR vem ao
encontro das atuais pesquisas historiográficas realizados no Sul do país e busca enfatizar através
das cartas de alforria a presença negra e escrava nesse território. O recorte espacial e temporal
refere-se aos Campos de Palmas3 entre as décadas de 1860 e 1888, pois, a primeira carta de
liberdade localizada no tabelionato foi do ano de 1867 até a abolição, sendo também período de
constituição dessa sociedade e mudanças no contexto brasileiro, através das leis imperiais que
visavam a lenta e gradual emancipação do escravizado.
No ano de 1839, o território que mais tarde foi chamado de Campos de Palmas, foi
conquistado e ocupado definitivamente pela frente de expansão da “sociedade tradicional
paranaense”. Esses povoadores organizaram suas atividades econômicas tendo como base
principal a criação, invernagem e comércio do gado bovino e equino, e em paralelo e não menos
importante, se desenvolveu uma lavoura de subsistência para a manutenção das propriedades.
A atividade pecuarista foi estruturada na grande fazenda que funcionou com a mão de obra do
índio catequizado e aldeado, da mão de obra do negro escravizado e do sistema familiar patriarcal,
viabilizando a criação extensiva e em grande número desses animais4.
Nesse espaço brevemente apresentado, a presença escrava estava diretamente associada
à manutenção da economia, da sociedade pastoril e a de subsistência, por isso, o problema central
do estudo consiste em analisar através das cartas de alforria as relações entre escravidão e
liberdade. Investigando assim, quem eram os sujeitos que receberam e porque estavam recebendo
a liberdade, em que condições eram efetivadas as cartas, e quem era o sujeito que assinava o
documento, assim como seus interesses nesta ação. Pois, para o escravo brasileiro havia vários

1 Ver entre outros: CARDOSO, 2003.


2 LEITE, 1996.
3 No século XIX os Campos de Palmas abrangiam um território de aproximadamente 40.000 Km², situando-se
em partes dos atuais Estados de Santa Catarina e Paraná. Esse território foi se desmembrando e atualmente parte da
documentação referente ao espaço geográfico está em arquivos na cidade de Palmas/PR.
4 MENDES, 1989, p.5.

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caminhos que levavam à liberdade tão cobiçada: a fuga, a morte, dispositivos legais próprios do
século XIX e a alforria5. Sendo esta a forma legal, jurídica de tornar-se livre do sistema vigente.
Dessa forma, os objetivos não querem simplesmente enquadrar as alforrias em
incondicionais, condicionadas ou por pecúlio, visto que a carta era uma fronteira de negociação,
investigamos as circunstâncias em que o senhor transferia para o cativo o status de liberto, e com
registros eclesiásticos percebemos outros aspectos da vida de alguns dos escravizados.
As principais fontes são 56 cartas de alforria que concederam 66 liberdades e encontram-
se disponíveis para pesquisa no Tabelionato de Notas de Palmas em Palmas/PR, e na Cúria
Diocesana mapeamos registros de batismo, casamento e óbito que apontaram outros elementos
sobre alguns dos alforriados. A metodologia adotada para análise das fontes foi a qualitativa,
pois procuramos esmiuçar aspectos que muitas vezes passam despercebidos quando estes
documentos são analisados somente em banco de dados, e assim, buscamos compreender a
relação escravidão/liberdade em Palmas, além de acompanhar alguns desses indivíduos nas
fontes eclesiásticas. Outro recurso metodológico utilizado foi o quantitativo, para verificar o perfil
dos libertos com as informações referentes ao sexo, idade, cor, origem, profissão, estado civil.

1 O registro da liberdade: alguns apontamentos

A carta de alforria ou carta de liberdade era um ato jurídico onde o senhor transferia ao cativo
a posse e o título de propriedade que tinha sobre ele, conduzindo-o à liberdade. Por envolverem
transferência de propriedade, as manumissões precisavam ser registradas em cartório para
comprovar sua legitimidade, mas este não era um ato obrigatório. Desse modo, em muitos casos,
era feito somente um acordo oral entre senhor e escravo, redigido um documento sem registro e
passado a próprio punho pelo senhor, ou havia um grande intervalo entre a concessão e o registro
das cartas, muitas vezes ocasionado pela distância entre a fazenda e o cartório. Levando em
consideração esses fatores, e ainda os escravos libertados na pia batismal ou em testamentos,
percebe-se que as cartas de alforria não abarcam o número total de libertações concedidas, sendo
necessário o cruzamento de fontes para que se tenha um número aproximado.
Para a conquista desse documento havia a interação de diferentes fatores: a pressão
dos cativos, a resistência e o esforço dos senhores em permanecer no domínio da passagem do
cativeiro ao mundo dos livres e, a partir de 1871 com a Lei do Ventre Livre, a interferência do Estado.
Mas, na grande maioria das cartas, não se encontra presente essa tensão entre os desiguais, e sim
os discursos enaltecedores de atos dos senhores bondosos que reconheciam e recompensavam
seus bons trabalhadores6, não estando explícitos no texto os reais motivos das libertações.
As cartas de alforria registradas no cartório em Palmas apresentam um conjunto de
informações referentes ao senhor e ao alforriado, nas que foram mapeadas para este trabalho

5 MATTOSO, 2003, p.176.


6 MOREIRA, 2003, p.200.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

encontramos os seguintes dados: a identidade do senhor (ou senhores), com nome, estado civil
e por vezes residência; em seguida a identificação do alforriado: nome, idade, cor, naturalidade,
estado civil, profissão. Após eram expostas as condições da alforria, que poderia ser onerosa ou
gratuita, e ainda, a justificativa dos senhores para a concessão. Outra informação que trazem é
referente ao nome das testemunhas e do tabelião.
Porém, as cartas não possuem todas as informações completas, na grande maioria, os
dados dos libertos estão incompletos ou de forma resumida. Em Palmas encontramos tanto as
manumissões que trazem informações complementares como aquelas que apenas informam
sobre o ato da alforria com texto curto, não expressando a vontade dos sujeitos que a recebiam e
nem o senhor justificando seu ato ou o motivo pelo qual concedeu a liberdade, como expressa a
carta de José que apenas comprova sua passagem do cativeiro ao mundo dos libertos:

Abaixo assinada, digo arrogo assinada, declaro que sendo senhora e possuidora do
escravo José, a ele dou liberdade sem ônus algum, para que dele goze como se de ventre
livre nascesse. Palmas vinte de fevereiro de mil oitocentos e oitenta e quatro. A rogo de
minha mãe Dona Maria Ferreira de Jesus – Domingos Ferreira de Araújo. Como testemunha
Joaquim José Rodrigues Rocha – Hipólito de Carvalho Lima7.

Com as cartas de alforria verificamos quem foi o senhor/a que mais libertou nos Campos
de Palmas, levando em consideração o fato dos escravistas serem em sua maioria pequenos
proprietários de escravos8. Constatamos que foram os senhores, homens do sexo masculino que
“concederam” o maior número de alforrias, o que demonstra que essa sociedade além de utilizar a
mão de obra do negro escravizado baseava-se no sistema familiar patriarcal. As senhoras quando
alforriavam geralmente já eram viúvas, da mesma forma os herdeiros que registravam as cartas
eram, em grande parte, os filhos e a viúva do senhor que em vida possuía um grande número de
dependentes.
Em relação ao perfil dos alforriados, observamos que as mulheres foram as mais beneficiadas
no acesso à liberdade ao longo do período pesquisado, mas as alforrias para o sexo masculino
(estas com condições) cresceram as vésperas da emancipação escrava, visando à manutenção do
sistema pelos proprietários. Os adultos em idade produtiva entre 15 e 49 anos também obtiveram
mais manumissões (63%), considerando as condições que lhes eram impostas para o acesso à
alforria, apesar do número de idosos com 50 anos ou mais também ser significativo, somando
32%.
Analisamos que a maioria dos libertos foram classificados como pretos nas alforrias em
que esta informação foi verificada, sendo estes 20 indivíduos, mas sabemos que muitas vezes a
cor estava mais relacionada à posição social do que a pigmentação da pele e, apesar dos crioulos
estarem em maior percentual faz-se importante destacar a presença escrava africana nos Campos

7 Tabelionato de Notas de Palmas, livro nº 10. f.29.


8

Página 744
de Palmas. Referente à “cor” parda 16 alforriados foram assim classificados, mas, cabe destacar
que o termo pardo era também utilizado no sentido de mulato ou mestiço, referindo-se a situação
social do indivíduo. Com o cruzamento das fontes cartoriais e eclesiásticas constatamos que os
escravizados estabeleceram laços e formaram famílias neste espaço, apesar das escravarias
serem menores, porém, muitos foram descritos como solteiros nos documentos. Após a conquista
da liberdade verificamos que alguns dos alforriados permanecerem neste espaço com suas
famílias ou estabeleceram novos laços familiares.

2 Os alforriados em Palmas

Entre o total de 66 escravos localizados nos registros em Palmas por receberem sua alforria,
temos 40 manumissões gratuitas, sem ônus ou condição para o acesso à liberdade, significando
61% do total, número bastante expressivo. Ao analisarmos a linguagem empregada nesses
documentos percebemos que 45% dos senhores justificam a manumissão em reconhecimento aos
bons ou relevantes serviços prestados pelos escravos, outros ainda, complementam enaltecendo
que o ato foi de livre, espontânea ou muito boa vontade e pelo amor que tributam a liberdade. Já
outras possuem textos mais diretos e não justificam um motivo específico por terem alforriado o
cativo, isto pôde ser percebido em 32% das manumissões. E em 23% foram outros fatores que
motivaram a alforria, entre eles a felicidade pelo casamento de familiares dos senhores, importação
ilegal de escravo, vontade do “falecido” senhor.
Na carta de Antonio e de Ephigenia, os senhores de ambos afirmam que concedem a
liberdade em reconhecimento aos bons ou relevantes serviços que prestaram. Mas, para Antonio
colocam a seguinte ressalva, “gozará ele de hoje para todo o sempre sua plena liberdade, devendo
o mesmo ser obediente e fiel as leis e aos seus superiores9”. Para Ephigenia os senhores também
complementam, “devendo a mesma escrava costumar a obedecer um constrangimento a nós e
viver com honestidade e com respeito a todos que lhe forem superiores10”.
Nestes casos os proprietários concederam a liberdade enfatizando o ato pelo “amor que
tributam a liberdade” e ainda “pela nossa boa vontade”, porém, condicionaram os libertos a serem
obedientes aos seus superiores, incluindo os próprios senhores. Percebe-se que a linguagem
utilizada remete ao paternalismo, quando o senhor paternal queria garantir à sociedade que o
alforriado seria um bom cidadão e cumpriria com as leis.
De outro lado, as alforrias condicionais somam 36% do total, enquanto as pagas por pecúlio
apenas 3%, essa pequena quantidade de alforrias pagas se justifica pela dificuldade que os
cativos tinham em acumular valores nas áreas rurais como nos Campos de Palmas. Assim, apenas

9 Tabelionato de Notas de Palmas, livro nº 3, f.12.


10 Tabelionato de Notas de Palmas, livro nº 3, f.110.

Página 745
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

as escravas Margarida11 e Policena12 conseguiram acumular pecúlio para comprar sua carta de
liberdade.
As alforrias condicionais eram onerosas e exigiam uma condição para que o escravo
obtivesse sua liberdade e em Palmas as condições exigidas pelos senhores eram de prestar
serviços durante um determinado período (3,4, 6 ou 7 anos), servir até a morte do senhor ou ainda
servir na Guerra do Paraguai. No entanto, as manumissões condicionadas à prestação de serviços
aparecem em maior número, sendo estas registradas principalmente na década de 1880 quando
os senhores estavam preocupados e receosos em perder a mão de obra escrava.
Entre as liberdades condicionadas cabe destacar a carta de Magdalena13 que foi concedida
pela viúva Margarida Ferreira de Jesus em 30 de maio de 1872, prometendo liberdade à escrava
com a condição unicamente de lhe servir pelo prazo de sete anos contados deste dia. Porém,
esta carta somente foi transcrita para o livro de registros em Palmas no dia 19 de junho de 1882,
ou seja, dez anos após a sua concessão. Certamente, a escrava precisou trabalhar além do que
previa a sua cláusula inicial no momento da concessão, quando estava com a idade de 26 anos,
e a senhora continuou recebendo seus bons serviços durante o tempo que ultrapassou o exigido
na alforria.

Considerações finais

Considerando que a carta de alforria não pode simplesmente ser considerada como uma
concessão por parte dos senhores escravistas, pois, havia participação ativa do escravizado
nesse processo que culminava com o registro da manumissão em cartório, percebemos que
na maioria das cartas a relação que mantinham senhores e escravos não está explícita. Assim,
os proprietários preferiam expor seu ato como benevolente, em recompensa aos bons serviços
prestados e ao amor que tributavam a liberdade, mas, em alguns dos registros, notamos que nem
sempre o discurso do senhor bondoso estava de acordo com as reais motivações para o ato da
alforria, sendo que a liberdade era consequência da iniciativa do escravizado.
Com a análise das condições da alforria que poderia ser incondicional, condicionada ou por
pecúlio constatamos que as gratuitas, não exigindo nenhuma condição do escravizado foram as
mais numerosas em todo o período. No entanto, com o avanço das leis abolicionistas na década
de 1880, como saída para não perder o trabalho escravo, os proprietários em Palmas aumentaram
significativamente as alforrias condicionadas à prestação de serviços. Devido à economia ligada
as atividades pecuaristas e a lavoura de subsistência, nesse território rural a compra da alforria foi
de difícil acesso, acontecendo em apenas duas manumissões registradas.
Nos Campos de Palmas, como no restante do país, a passagem da escravidão ao trabalho

11 Tabelionato de Notas de Palmas, livro nº 4, f.47.


12 Tabelionato de Notas de Palmas, livro nº 5, f.40.
13 Tabelionato de Notas de Palmas, livro nº 8, f.48.

Página 746
livre aconteceu de forma lenta e gradual acompanhando as leis imperiais, sendo que foram os
senhores, homens brancos que registraram o maior número de alforrias, afirmando as características
dessa sociedade senhorial/patriarcal, que se utilizou do trabalho escravo até a abolição em 1888.
Também podemos apontar que após a alforria, quer por carta ou pela legislação, estes indivíduos
continuavam a trabalhar e conviver com seus ex-senhores.

Referências

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na


sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

LEITE, Ilka Boaventura. Descendentes de africanos em Santa Catarina: invisibilidade histórica


e segregação. UFSC, 1996.

MENDES, Adilson Miranda. Origem e composição das fortunas na sociedade tradicional


paranaense: Palmas, 1859-1903. Dissertação de Mestrado. UFPR, 1989.

MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 2003.

MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os Homens de Bem: experiências negras no


espaço urbano. Porto Alegre --- 1858-188. Porto Alegre EST: Edições, 2003.

SIQUEIRA, Ana Paula Pruner de. Cativeiro e dependência na Fronteira de Ocupação: Palmas,
PR, 1850-1888. Dissertação de Mestrado, UFSC, 2010.

Página 747
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

OS GRIOTS NA ÁFRICA OCIDENTAL: MEMÓRIA DE IMIGRANTES


AFRICANOS NA CIDADE DE CHAPECÓ – SC

COVALSKI, Ailyn Amanda Rojas. (UFFS)


ailyncovalski@gmail.com

Resumo

Nossa sociedade é fortemente marcada pela cultura da escrita. Armazenamos todo o nosso
conhecimento com palavras impressas (ou digitalizadas) e ensinamos nossos descendentes a ler e
escrever como forma de capacitá-los para acessar essas informações, bem como produzir novos
registros. Contudo, esta não é uma prática universalizada, a cultura da oralidade está presente na história
de muitas sociedades como principal forma de adquirir e transmitir conhecimento, exigindo-se, para
tal, um constante exercício da fala, da audição e da memória. Na parte ocidental do continente africano,
esta transmissão de conhecimentos se deu, historicamente (e com reminiscências nos dias atuais),
através dos griots: indivíduos conhecidos como portadores de histórias, canções e tradições. Eles são
os responsáveis por repassar, através da oratória e da musicalidade, os ensinamentos fundamentais
de sua cultura, sendo, assim, conhecidos como a tradição viva da África. Porém, com a progressiva
expansão dos valores e da cultura europeia ocidental pelo mundo, as tradições regionais foram
minguando e perdendo sua força de continuidade perante essa dominação eurocêntrica ocorrida
dentro de seu próprio território. Ou seja, em uma determinada região onde os saberes gerais, a História e
as genealogias familiares foram sempre transmitidas pela fala, os prejuízos acarretados pela imposição
da normatização da escrita são incontáveis. Este trabalho tem o intuito de analisar o papel e a história
destes griots a partir da memória de imigrantes senegaleses refugiados na cidade de Chapecó (SC). No
desenvolvimento da pesquisa verificou-se que, a partir da fala destes sujeitos, desdobram-se inúmeras
possibilidades de se (re)pensar a história da África Ocidental. Nesse sentido, com o devido enfoque
dado aos griots, é possível conhecer e analisar a importância destes tradicionalistas, abordando o tema
sob uma nova perspectiva.

Palavras-chave: Memória. Griots. Imigrantes africanos.

Página 748
Introdução

O presente trabalho foi desenvolvido com o objetivo de analisar, sob um novo ponto de vista,
a tradição oral existente na África Ocidental em uma perspectiva histórica e atual. A abordagem
do tema é realizada através de estudos bibliográficos e culturais e, principalmente, a partir de
entrevistas realizadas com senegaleses refugiados que habitam a cidade de Chapecó.
Na última década, uma onda de migrações trouxe à cidade de Chapecó (oeste de Santa
Catarina) muitos haitianos e senegaleses que trazem consigo uma gama de novas possibilidades
de desenvolvimento de estudos regionais. A partir da fala dos senegaleses em Chapecó, por
exemplo, foi possível desenvolver novos mecanismos de análise e de compreensão da oralidade
presente na parte ocidental do continente africano, onde a escrita só foi introduzida recentemente,
com a colonização.
Esta tradição manifesta-se principalmente através de alguns sujeitos responsáveis por
perpetuá-la, conhecidos como tradicionalistas e griots. Ambos são depositários da cultura e da
tradição de seu povo, verdadeiras bibliotecas vivas e possuem um papel importante na sociedade,
diferenciando-se principalmente pela forma como é feita a transmissão desses conhecimentos.
Enquanto os tradicionalistas preocupam-se com conhecimentos mais factuais, os griots possuem
“liberdade poética” para embelezar os fatos e cantar a História de sua sociedade, e é sobre eles que
recai o enfoque desta pesquisa. Nesse sentido, o objetivo principal deste trabalho é analisar a
tradição oral na África Ocidental perpetuada pelos griots a partir da memória dos senegaleses
refugiados na cidade de Chapecó (SC), bem como compreender o conceito de tradição oral presente
na parte ocidental do continente africano, estudar os problemas decorrentes da progressiva
extinção da tradição oral na África e identificar o papel dos griots atualmente nesse contexto. Ou
seja, mesmo não estando fisicamente na África Ocidental, a presença destes senegaleses no sul
do Brasil nos possibilita conhecer melhor os griots, enriquecendo o conhecimento produzido a
nível regional sobre a História da África.

1 Os griots através das memórias

A importância de se buscar compreender a História da África e suas ramificações a partir de


suas próprias categorias é citada por muitos autores preocupados com esta questão, e, visto isso,
este é o exercício que se pretendeu realizar nesta etapa da pesquisa. Da mesma forma com que
alguns autores se preocupam em legitimar os usos da História Oral enquanto fonte, Jan Vansina
ressalta no texto “A tradição oral e sua metodologia”:
As tradições têm comprovado seu valor insubstituível. Não é mais necessário convencer
os estudiosos de que as tradições podem ser fontes úteis de informação. Todo historiador
está ciente disso. O que devemos fazer agora é melhorar nossas técnicas de modo a extrair
das fontes toda a sua riqueza potencial. Essa é a tarefa que nos espera. (2010. p. 166)

Nesse sentido, as entrevistas analisadas neste capítulo foram realizadas com o intuito de

Página 749
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

compreender o legado desta tradição oral sob uma perspectiva mais distanciada da bibliografia
e, consequentemente, mais próxima dos sujeitos que dela fizeram ou ainda fazem parte. Para tal,
identificamos os entrevistados com as nomenclaturas A, B e C, que representam, como já enfatizado
neste trabalho, a um universo maior que a individualidade. Estes refugiados senegaleses chegaram
à cidade de Chapecó em diferentes períodos, que variam entre 3 e 5 anos atrás, e possuem entre
30 e 35 anos.
A respeito da presença dos griots no meio social dos entrevistados e sobre a sua história, o
senegalês A relata:
A maior parte dos griots que você vê vieram da Guiné, Mali, a maior parte do Mali, então
hoje eles praticam esses negócios de griot. No Mali eles acreditam nisso. No Senegal
depois também vieram essas coisas. Griot é que nem um funcionário teu, que não recebe.
Mas ele só canta a tua genealogia. Por exemplo, você é filho de tal, filho de tal, filho de tal,
essas coisas. Hoje, cada família que existe no Senegal tem um griot.

Existe aqui o conhecimento que os griots estão presentes além de seu território, nos
países vizinhos. Isto pode nos levar a entender que as fronteiras políticas destes países não são as
mesmas que as fronteiras culturais e que, deste modo, a tradição se manteve e ocupou espaços
cujo colonialismo europeu tentou separar.
Quando são questionados sobre a presença de um griot em suas respectivas famílias,
todos confirmam em unanimidade, reafirmando que todas as famílias senegalesas contam com
estes indivíduos responsáveis, segundo eles, por preservar a lembrança genealógica de seu grupo
familiar. O senegalês B ainda complementou: “Todos os presidentes que já foram eleitos, ou os
padres da religião, tem os próprios griots deles”, dando ideia da abrangência da presença griot no
país. Neste caso, a presença de griots perpassa diferentes esferas da sociedade ao acompanhar
indivíduos de diferentes posições políticas e ou econômicas.
A incumbência de preservar e transmitir o conhecimento a respeito dos antepassados
de cada sujeito também está muito presente na bibliografia analisada para esta pesquisa, onde,
por exemplo, o autor Jan Vansina afirma que “Os griots tomaram parte em todas as batalhas da
história, ao lado de seus mestres, cuja coragem estimulavam relembrando-lhes a genealogia e os
grandes feitos dos antepassados.” e explica a importância desse estímulo, lembrando que “Para
o africano, a invocação do nome de família é de grande poder. Ademais, é pela repetição do nome
da linhagem que se saúda e se louva um africano.” (2010, p. 196). A importância da invocação
genealógica também aparece em outras partes da entrevista, onde o senegalês C diz:
Você nasceu nessa modernização, mas o griot ele te lembrava o último avô que você tinha.
Como por exemplo, ele te via tomando a cerveja, ele dizia “Você é filho de tal, neto de tal,
ele nunca fez uma coisa dessas, e você aqui fazendo essa besteira? Não pode.” Essas
coisas que o griot fazia pra nossa vida.

Esta fala suscita algumas reflexões e, para tal, é preciso lembrar que, conforme citado
anteriormente, os entrevistados em questão são adeptos ao islamismo (religião condena o
consumo de bebidas alcoólicas). Isso explica o exemplo utilizado pelo senegalês C, onde um griot
reprimiria o seu ato de tomar cerveja e invocaria o nome de seus antepassados para desencorajá-

Página 750
lo a continuar. Ou seja, mesmo que nos dias de hoje a tradição esteja mais ligada à religião islâmica1
do que antigamente – onde as crenças originárias do continente predominavam –, ainda são os
griots os responsáveis por manter essa ordem social.
Para compreender melhor e situar o leitor dentro das transformações culturais e religiosas
que ocorreram na África, Hampâté Bâ fala sobre a influência do islã sobre as tradições africanas,
afirmando que as particularidades da memória africana e seu vínculo com a oralidade não
foram afetadas pela islamização, e ressalta que esta não violava os princípios fundamentais do
pensamento africano, pelo contrário, adaptava-se a ele: “A simbiose assim originada foi tão grande,
que por vezes torna-se difícil distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição”. (2010. p. 201).
Sobre o nomadismo destes mestres da palavra, o entrevistado A afirma que “A maior coisa
que um griot tem é um cavalo, eles costumam muito andar a cavalo. Eles são nômades, eles não
moram em um lugar só. Eles não param, porque se você para, não conhece, né?”.O que remete aos
escritos de Amadou Hampâté Bâ, que, em suas obras, revela que os griots são eternos viajantes,
pois é através deste nomadismo que eles obtém o conhecimento necessário sobre o continente e
aumentam assim, seu leque de aprendizados a serem transmitidos: “Aquele que não viajou, nada
viu”. (2010, p. 201).
Ao falar sobre o contexto atual desses mestres da palavra, os entrevistados enfatizam a
preponderância de sua função enquanto genealogistas, onde o senegalês A afirma: “Pelo griot eu
conheço minhas três bisavós. Como por exemplo, eu não conheço minha bisavó, mas o griot me
fala. O griot sabe até dez gerações”.
Também sobre esse assunto, o senegalês C articula:
Se você faz parte de uma família griot, e você é griot dessa pessoa, você tem obrigação
de saber a história dessa pessoa de 20 anos atrás. E o vô deixa a história para neto, o neto
deixa para o filho, para essa história não morrer. O antigo griot do meu vô, os filhos dele são
meus griots. Meus netos vão ter o griot neto dele.

Os entrevistados fazem constantemente uma análise da relação passado/presente,


assinalando a importância dos griots que, mesmo após a modernização (que trouxe consigo fortes
transformações industriais e tecnológicas para dentro do continente), ainda utilizam sua sabedoria
em prol da manutenção de antigas tradições. Ressaltando a importância destas figuras o senegalês
B afirma: “Quando um griot chega, todos nós temos que ir lá para agradecer e valorizar ele, porque
ele é uma pessoa que é que nem uma biblioteca, para nós”.
Sobre a incidência da modernidade colonialista sobre o continente africano e seus impactos
na manutenção da tradição griot, o entrevistado B faz uma importante comparação, dizendo que:
Hoje em dia todo mundo é griot, né? Hoje você pode ir à Europa, ver a história deles e contar
nos livros. Antigamente era só o griot mesmo que iria se sacrificar para ter aquele saber.
Hoje, com a tecnologia, eu poderia escrever um livro aqui no Brasil porque já conheço
costumes brasileiros e esses detalhes.

1 Dados estimam que 92% da população senegalesa seja islâmica.


Fonte: <http://www.portalbrasil.net/africa_senegal.htm> Acesso em 19 de jun. 2017

Página 751
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A consciência sobre o impacto da implementação tecnológica sobre a tradição oral


também é perceptível na entrevista, onde o senegalês A ressalta: “Hoje tem televisão, essas
coisas de propaganda, mas antes era o griot que fazia a propaganda. A propaganda veio, nasceu
originalmente, no griot. Porque ele é quem passava as propagandas”.
Outra importante atribuição que é dada aos griots na bibliografia especializada diz respeito
às suas contribuições enquanto historiadores. Hampâté Bâ afirma que os griots especializados
nas histórias das famílias (genealogistas) geralmente possuem uma memória prodigiosa e “[…]
tornaram-se naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente,
grandes historiadores.” (2010. p. 197) De encontro a esse assunto, há uma parte da entrevista
onde o senegalês A afirma:
O griot, antigamente, no Senegal, era como, por exemplo, sem fronteira. Eles tinham um
tambor. Quando eles iam na guerra, você leva um griot, mas um griot ninguém poderia
machucar. Porque ele é quem deveria contar depois a história, como que ficou. Como não
tinha filme, não tinha nada, ele se escondia em algum lugar e ninguém machuca, ninguém
bate, ele volta pra contar como foi a guerra.

Dentro dessas sociedades é possível ver diferentes manifestações das práticas orais,
mas, sejam griots, tradicionalistas ou anciãos com muita bagagem de vida, percebe-se que a
relação do homem com a palavra falada (ou cantada) é articulada de forma muito diferente do
que é verificado nas sociedades escritas. Mesmo que os griots e os tradicionalistas possuam
um compromisso distinto com a verdade, esta autenticidade é muito relativa. Alguns autores
interpretam o papel dos griots como mero entretenimento, como De Paula Junior, que afirma em
sua pesquisa que “a tradição lhes concede o direito de travestir ou embelezar os fatos, mesmo
que de modo grosseiro, pois o objetivo é apenas divertir os ouvintes” (DE PAULA, 2014, p. 91).
Contudo, apesar das primeiras impressões, é necessário analisar com mais cautela o papel destes
sujeitos na sociedade africana, visto que o próprio Hampâté Bâ cita exemplos da importância dos
griots:
Os griots tomaram parte em todas as batalhas da história, ao lado de seus mestres,
cuja coragem estimulavam relembrando-lhes a genealogia e os grandes feitos dos
antepassados. Para o africano, a invocação do nome de família é de grande poder.
Ademais, é pela repetição do nome da linhagem que se saúda e se louva um africano. [...]
Como se vê, os griots participam efetivamente da história dos grandes impérios do Bafur,
e o papel desempenhado por eles merece um estudo em profundidade. (HAMPÂTÉ BÂ,
2010, p. 205)

Outro importante autor que cita e reconhece a relevância destes mestres da palavra
para se pensar a história africana é o medievalista Jacques Le Goff, que em sua obra História e
Memória dedica alguns parágrafos para situar o leitor das especificidades dessas sociedades no
que tange à memória coletiva, afirmando que “Nestas sociedades sem escrita há especialistas da
memória, homens-memória: ‘genealogistas’, guardiões dos códices reais, historiadores da corte,
‘tradicionalistas’ [...]” e complementa, recordando que além de constituir uma memória social viva,

Página 752
estes sujeitos são “simultaneamente os depositários da história ‘objetiva’ e da história ‘ideológica’,
[...]” (LE GOFF, 1994, p. 430). Pensar estes guardiões como depositários e não como meros
memorialistas, indica o quão e o quanto a oralidade em sociedades ágrafas requer habilidade e
conhecimento.

Conclusão

Através desses relatos, é possível inferir que mesmo que o processo de colonização e todos
os seus desdobramentos modernizadores tenham investido na supressão dessas sociedades
orais, a tradição ainda resiste sob novas facetas, sempre ungindo-se de novos significados e
práticas.
As sociedades orais – sejam antigas ou modernas, oriundas do continente africano ou
da América – desenvolveram sua cultura e sua tradição sem esboçar necessidade de alfabetizar
sua comunicação. Especificamente no caso africano, verifica-se que a escrita não foi um fator
preponderante na história desses grupos. Se, por um lado, as sociedades ditas letradas contam
tanto com o recurso da escrita como da comunicação oral, a tradição oral praticada nas sociedades
ágrafas da África é tão complexa e bem estruturada que independe da escrita para se manter.
Compreender o contexto da inserção destas sociedades africanas tradicionais nos moldes
ocidentais impostos pelos europeus é fundamental para entender muitos outros aspectos da
História da África. Nesse sentido, esta pesquisa possibilitou conhecimentos mais abrangentes
sobre temas já conhecidos no meio acadêmico. Sobre os griots especificamente, o registro escrito
existe e é excepcional, porém, ouvir a própria fonte e praticar efetivamente aquilo que os autores
sugerem – ou seja, conhecer a história a partir da fala dos seus próprios sujeitos – foi um exercício
essencial para conhecer alguns rumos tomados pela tradição africana (no que diz respeito à
transmissão oral de conhecimento). Nas conversas realizadas com o grupo de senegaleses, a
memória e a oralidade destes entrevistados denotam que a relação entre tradições passadas não
estão desconectadas da vivência do tempo presente, indicando as permanências e as rupturas
advindas de fatores internos e externos ao continente.

Referências

DE PAULA JUNIOR, A. F. Educação e Oralidade no Oeste Africano pela Representação de Amadou


Hampaté Bâ. 2014. 158 p. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Ciências Humanas
/ Programa de Pós- Graduação em Educação - Universidade Metodista de Piracicaba. 2014.

HAMPATÉ BÂ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas / Casa das Áfricas, 2003.

____________________. A Tradição Viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.). História geral da África. Vol I:

Página 753
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Metodologia e pré-história da África. São Paulo: UNESCO/Ática, 2010. 167-213

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.

VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.). História geral da
África. Vol I: Metodologia e pré-história da África. São Paulo: UNESCO/Ática, 2010. p. 139-167

Página 754
EIXO 15: Psicologia, racismo e
branquitude

O Eixo Temático Psicologia, racismo e branquitude tem como objetivo


contribuir para a ampliação do debate entre pesquisadores das relações
raciais e psicólogos que, em suas várias frentes de trabalho, têm sido
interpelados pela problemática das relações raciais, e para aprofundar a
reflexão sobre os discursos e as práticas da Psicologia ao longo de sua história
no que diz respeito a essa questão. Neste sentido a proposta é pensar como
Psicologia Brasileira, tem se atentado à necessidade de ampliar o debate
sobre os fenômenos sociais relacionados ao racismo no que se refere não só
às estruturas sociais que afetam a população negra na dificuldade de acesso
aos recursos públicos, como educação e inserção no mercado de trabalho,
mas também aos aspectos relacionados às dimensões psicossociais e
constitutivas de subjetividades. Pretende-se
aqui acolher trabalhos que façam uma discussão
sobre as contribuições da psicologia para a
compreensão das relações raciais brasileiras;
trabalhos que tragam contribuições teóricas
para a compreensão do racismo e do sofrimento
psicossocial advindo deste, trabalhos que
apresentem diferentes práticas e atuações de
psicólogos para a promoção de igualdade racial,
e por último trabalhos que discorram sobre a
produção de subjetividades brancas e
negras em uma sociedade estruturada
pelo racismo, para isto trabalhos
que discorram sobre as produções
de identidades, portanto os temas
negritude e branquitude também serão
abordados neste eixo temático.
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A BRANQUITUDE NO PROJETO OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO DAS


RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS DO NEAB/UDESC: UMA ANÁLISE DAS
AÇÕES REALIZADAS NO MUNICÍPIO CATARINENSE DE ÁGUAS MORNAS

SCHLICKMANN, Renata (UDESC)


re.schlickmann@gmail.com
MARQUEVICZ, Ana Carolina (UDESC)
anamarquevicz@gmail.com
DUTRA, Gabrielle (UDESC)
gabrielledutras@gmail.com

Resumo

O Projeto Observatório de Educação das Relações Étnico-Raciais, sob coordenação do Prof. Paulino
de Jesus Francisco Cardoso é desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade
do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC), vinculado ao Programa Memorial Antonieta de Barros, se
caracteriza como um projeto de extensão universitária, que tem como intuito auxiliar no monitoramento
da implementação da Lei Federal 10.639/03 - a qual instituiu, em todos os níveis de ensino, a
obrigatoriedade de inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas instituições de educação
básica do país - por meio de suporte técnico e pedagógico aos/às gestores/as responsáveis pelas
redes públicas de ensino do Estado de Santa Catarina. A intencionalidade do projeto é a criação de
programas de diversidade étnico-racial na educação que contemple formação de professores/as,
aquisição e produção de material didático, estudos, pesquisa e fortalecimento institucional. Para tanto, foi
firmado acordo de cooperação com a Secretaria Municipal de Águas Mornas, resultando em diferentes
ações advindas do projeto no intuito de monitorar como está sendo realizada a implementação da Lei
Federal 10.639/03 no município. Foram aplicados e analisados questionários diagnósticos, analisado
o Projeto Político Pedagógico do município, realizado oficinas de formação, aplicados e analisados
questionários sobre as oficinas. Isto possibilitou a visualização sobre o entendimento que as/os gestoras/
es e professoras/es possuem a respeito da legislação, demonstrando qual a implicação da branquitude
para a manutenção do panorama encontrado no município.
 
Palavras-chave: Lei 10.639/03; Águas Mornas; Branquitude; Relações Étnico-Raciais.

Página 756
Introdução

Perspectivando discorrer sobre o Projeto Observatório de Educação das Relações Étnico-


Raciais, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro Brasileiros da Universidade do Estado de Santa
Catarina (NEAB-UDESC) sob a coordenação do Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso, é
necessário que, primeiramente, apresente-se a Lei Federal 10.639/03 e seu contexto de criação,
uma vez que o projeto é uma resultante da mesma.
Desde meados do século XIX, as populações africanas e afro-brasileiras se articulavam a
fim de garantir uma sociedade livre do racismo, e, para tanto, grupos distintos emergiram ao longo
do país. Segundo Domingues (2007), ao pensar a trajetória do Movimento Negro, identifica-se
que o mesmo se desdobra em quatro fases, transpassando a Primeira República até anos mais
recentes.
Durante os últimos anos da década de 1970, período que o autor afirma pertencer a terceira
fase, em meio ao despontar dos múltiplos movimentos sociais no Brasil, o grupo Movimento
Negro Unificado (MNU) é instituído, ganhando força e se estendendo rapidamente em território
nacional. Dito isso, Domingues reitera que tal grupo se articulou para unificar grupos da luta
antirracista e garantir o poder político do movimento negro, possibilitando que suas reivindicações
fossem escutadas. Segundo Gomes (2011), estudos apontam que o MNU foi responsável pelas
mudanças que ocorreram no cenário educacional brasileiro, visto que questionavam o modelo de
estudo incorporado por escolas e universidades. Ainda segundo a autora, exigiam um currículo
que contemplasse a história de África e cultura africana e afro-brasileira.
Com a criação da Lei de Diretrizes e Bases, a LDB, em 1996, percebe-se que as reivindicações
postas pelo Movimento Negro Unificado não foram acatadas, uma vez que a temática não aparece
no corpo da lei em momento algum, tornando o âmbito educacional preocupante. Assim como
afirmam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER), a educação se configura como
um dos principais instrumentos de transformação social e, portanto, trabalhar as relações étnico-
raciais em sala de aula é necessário para que possamos reconhecer a existência do racismo e,
então, tomemos medidas contra o mesmo.
Em 2003, após as demandas do Movimento Negro possuírem maior visibilidade diante da
III Conferência de Durban, o governo brasileiro sancionou a Lei Federal 10.6391, tornado obrigatório
o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira na educação brasileira, em instituições de
ensino públicas e privadas. A lei possui o seguinte texto:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos
seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,

1 Em 2008 foi sancionada a Lei 11.645 que incluiu, também, a história e cultura indígena como obrigatória dos
currículos escolares.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da


História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o
negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no


âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras.

§ 3o (VETADO)”

“Art. 79-A. (VETADO)”

“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’.” (BRASIL, 2003)

O Projeto Observatório de Educação das Relações Étnico-Raciais, vinculado ao Programa


Antonieta de Barros, realizado, também, pelo NEAB-UDESC, portanto, configura-se como um
projeto de extensão que visa promover e auxiliar na implementação da Lei Federal 10.639. Através
de suporte técnico e pedagógico à gestores/as dirigentes da rede pública de ensino do Estado
de Santa Catarina, seja atuando no âmbito regional ou estadual, o programa visa a criação de
programas de diversidade étnico-racial na educação que, por sua vez articulam formação de
professores, aquisição e produção de material didático, estudos e pesquisas e fortalecimento
institucional. Para que o projeto se desenvolva, são organizados Grupos de Trabalho, ou GTs, que
se distinguem entre GT Educação Infantil, GT Ensino Fundamental e GT Ensino Médio. Estes,
portanto, são constituídos por agentes do âmbito educacional do estado de Santa Catarina, como
coordenadores/as, professores/as, gestores/as, pesquisadores/as associados/as ao NEAB-
UDESC e estudantes de graduação e pós-graduação da UDESC.
Portanto, o presente artigo é fruto de ações realizadas e colhidas pelo Projeto ao longo dos
anos de 2016 e 2017 no município de Águas Mornas, localizado na área da Grande Florianópolis
no Estado de Santa Catarina.

1 Análise dos dados

Quando trabalhamos com a educação brasileira devemos compreender que estamos


trabalhando com relações sociais, uma vez que o ensino se trata de um reflexo das mesmas. São
relações que, construídas sobre o mito da democracia racial, transmitem a ideia de que o processo
de branqueamento da população e a ideia de um povo miscigenado não permite que os brasileiros
se enxerguem pelo viés da raça e por isso não existiria nenhum preconceito relacionado à cor no

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país.
Com a ideia de que, no Brasil, nos vemos em unidade, como povo brasileiro, o mito da
democracia racial ignora os moldes do racismo nacional que sistematicamente atribui privilégios ao
sujeito branco. Diferente de outros países onde ser branco está ligado à hereditariedade, no Brasil
nos apoiamos em traços fenotípicos como pele clara, traços europeus e cabelo liso para defini-las.
Segundo Sovik (2002, p. 06) “ser branco [no Brasil] exige pele clara, feições europeias, cabelo
liso; ser branco é uma função social, implica desempenhar um papel que carrega em si uma certa
autoridade, permitindo trânsito, baixando barreiras”. Aos sujeitos com esses traços fenotípicos
são atribuídos status, prestígio e poder, a este espaço de privilégios chamamos branquitude, que
Lia Schucman (2014) situa como a “posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram
sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos”
(p.84), tornando raça um fator no sistema de hierarquização de sujeitos.
Refletindo os ideais da branquitude na educação, encontramos um ensino baseado
somente na versão do colonizador, que valoriza o conhecimento, cultura e história branca e
europeia, deixando a margem os conhecimentos, culturas e histórias de outros povos. Conforme
afirmam Ribeiro, Amandio e Carvalho (2008, p. 60-61):

[...] o racismo [...] encontra-se presente nos currículos escolares, no qual a tradição
eurocêntrica exclui conteúdos de valorização da história dos povos africanos e de sua
trajetória de luta e resistência na diáspora. Folcloriza e subestima as expressões de sua
cultura e realidade, invisibiliza sua presença e importância na sociedade passada e atual.

Observando os conteúdos e materiais didáticos disponibilizados nas escolas, podemos


perceber a quase nula (ou ausente) presença de representações de povos não europeus, seja nos
textos, imagens ou nas falas dos docentes. Ainda quando abordados, é comum que essa abordagem
seja carregada de estereótipos que os inferiorizam. Isto impacta diretamente no desempenho das
meninas e meninos negras/os e não brancas/os que frequentam as escolas, na sua autoconfiança,
autoestima, sentimento de pertencimento, reconhecimento, gerando insegurança, insatisfação e
desgosto por si mesma/o, isso porque, na maior parte das vezes são submetidas/os a

[...] constrangimentos [...], associados somente a escravos, índios dizimados na


colonização, pessoas preguiçosas, que não contribuíram positiva e intelectualmente para
a sociedade brasileira atual. O estudo universalista eurocêntrico transforma as populações
de origem africana e indígenas em meros penduricalhos na história do Brasil. (LUCINDO,
2014, p. 73).

Essa realidade contribui para a construção da identidade racial branca como normativa,
assim os brancos são sempre pensados como sujeito e nunca como “outros”, ou como racializados.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

1.1 Águas Mornas

O município de Águas Mornas, em Santa Catarina, conta com uma rede de ensino composta
por 7 instituições escolares, sendo 5 municipais e 2 estaduais. O primeiro contato do Projeto com
o município se deu no mês de março de 2016 através de um e-mail enviado pela Secretaria de
Educação Municipal de Ensino, em nome do Sr. Mário Fernandes, Secretário de Educação, que
continha o seguinte texto:

Bom dia,

Em fevereiro realizamos um curso de formação com nossos professores sobre as Leis


10.639 e 11.645 e percebemos que ainda temos dificuldades em trabalhar o tema por
problemas de entendimento e por não percebermos muitas vezes em nossas ações
situações que indiretamente reforçam os preconceitos existentes. Gostaríamos de
agendar uma conversa para viabilizar formas de implementar as leis 10.639 e 11.645.
Acreditamos que com o auxilio do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros será possível realizar
formação dos gestores e coordenadores além de oficinas com os professores visando que
o ensino da historia e da cultura afro-brasileira e indígena sejam efetivamente colocadas
em prática. Entender a contribuição destes povos e as lutas ocorridas no decorrer da
historia é imprescindível para que o trabalho pedagógico com os alunos possa de fato
ocorrer, pois, enquanto isso não ocorre continuamos perpetuando a historia (mesmo que
inconscientemente).

ATT
Mário Fernandes

Secretário de Educação de Águas Mornas

Conforme a mensagem recebida, percebeu-se que o município demonstrava verdadeira


preocupação em como a educação local estava posicionada diante da Lei Federal 10.639/03 e,
portanto, uma primeira reunião foi agendada para o mês de maio de 2017. Nesta, contamos com a
participação de toda a equipe gestora, que se mostrou interessada nas ações do Projeto.
Ressaltamos aqui que as ações do Projeto Observatório de Educação das Relações Étnico-
Raciais se dividem em uma sequência de 5 passos que foram elaborados para um funcionamento
mais efetivo, sendo estes:
1. Visita às escolas/gerências participantes para apresentação do projeto e realização de
acordos de cooperação;
2. Levantamento de documentos da unidade, tais como Plano de Gestão, Projeto Político-
pedagógico, Plano de Metas e análise do acervo literário;
3. Aplicação de questionário (diagnóstico) com todas/os as/os funcionárias/os das escolas

Página 760
participantes;
4. Formação de gestoras/es educacionais;
5. Criação de instrução normativa para implementação da lei.
Diante deste fato, prontamente enviamos questionários que deveriam ser aplicados a
gestores, bibliotecários/as e professores/as, e obtivemos retorno poucas semanas após o envio,
e pela primeira vez recebemos resposta de toda a equipe educacional. Foram analisados um total
de 44 questionários, sendo um 1 de bibliotecário/a, 8 de gestores/as, 16 de professores/as da
Educação Infantil e 19 de professoras/es dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Em relação
ao conteúdo preenchido, percebeu-se que a grande maioria das respostas dadas pelos/as
profissionais afirmava a importância da Lei Federal 10.639 no ensino, porém eram poucos/as que
acreditavam na essencialidade da mesma.
Outro dado que vale ser ressaltado é, em relação aos/as gestores/as, apenas 4 dos/as
8 assinalaram conseguir identificar a presença das Diretrizes Curriculares para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em planos
de ensino de professores/as, sendo que 6 dos/as 8 gestores/as afirmaram participar de formações/
capacitações em torno da Educação das Relações Étnico-Raciais anualmente.
Em relação aos/as professores/as da Educação Infantil, apenas 4 relataram identificar as
DCNERER nos planos de ensino, apesar de todos/as os/as 16 professores/as afirmarem trabalhar
a temática Africana e Afro-Brasileira em sala de aula, observamos que a maioria assinalou que
a temática supracitada é abordada apenas em datas comemorativas, sendo um indicativo da
vinculação do conteúdo apenas em determinados momentos e não de forma transversal como
prevê a lei. Além do mais, nas respostas dadas pelos/as docentes do Ensino Fundamental, o
resultado foi semelhante:

[...] como análise aos questionários dos/as professores/as de Ensino Fundamental, algo
bastante preocupante é sinalizado, mesmo sendo de uma minoria, mas 3 de 19 acreditam
que o tema de Educação das Relações Étnico-Raciais é pouco importante à educação
e, a maioria, assim como os demais questionários analisados, consideram, apenas,
importante. Tal resposta se reflete na questão seguinte, quando são questionados/as “Em
que documentos podem ser identificadas as Diretrizes Curriculares para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira?”
e somente 8 afirmar encontrar nos planos de ensino dos/as professores/as. (CARDOSO;
SCHLICKMANN, 2016, p. 02)

Isto nos indica que a História e Cultura Africana e Afro-brasileira ainda não é vista como
um conteúdo essencial no ensino, acreditando que a abordagem em ocasiões específicas já é
suficiente, não incorporando o tema como um conhecimento imprescindível para se compreender
a história do Brasil e mundial. A legislação não objetiva a temática sendo apresentada como
contribuições das populações africanas e afrobrasileira à sociedade, mas sim compreendê-las
como sujeitos essenciais para a construção histórica, social e cultural brasileira. (CARDOSO;
RASCKE; 2014, p. 24).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Pode-se concluir então que, em muitos casos, a educação brasileira considera a temática
como um “apêndice histórico”, ou seja, um conteúdo que serve apenas como um apoio para se
compreender certos aspectos históricos, mas que não é essencial. Portanto, dados críticos como
estes foram abordados em uma nota técnica, esta elaborada pela equipe do Projeto Observatório
de ERER, sendo entregue a Secretária de Educação e aos/às gestores/as para um diálogo em uma
segunda reunião, realizada no mês de julho de 2017.
Diante disso, estabeleceu-se que a próxima ação a ser realizada era a análise do Projeto
Político Pedagógico. Como o município possui 7 instituições educacionais, ficou de acordo que o
Projeto iria analisar o PPP da Escola Municipal Santa Cruz da Figueira, com o propósito de utilizá-
lo como exemplo para a reelaboração dos demais PPPs, visto que o município possui dificuldades
de implementação efetiva e na prática da Lei 10.639/03. Ressaltamos aqui que esta etapa ainda
está em fase de conclusão. Até a presente data, a nota técnica se encontra finalizada, faltando a
apresentação à equipe gestora do município. Entretanto, o que pudemos identificar é o fato de
que tal documento, que deveria ser uma ferramenta norteadora para a instituição, é apenas uma
formalidade.
No primeiro tópico apresentado pelo documento, que se intitula “Um pouco de nossa
História”, traz em dois parágrafos um resumo superficial e problemático sobre o Brasil colonial:

[...]faz uma abordagem histórica da formação de nosso país, desde a chegada dos
portugueses, passando pela escravidão (p. 16) no Brasil até a vinda dos imigrantes
Europeus. Consideramos que esta fala reproduz a forma como a escravidão é abordada
nos livros e nas salas de aula, e é bastante problemática. Passa a ideia de que as pessoas
negras só podiam trabalhar escravizadas, visto que em seguida é abordada a falta de
mão-de- obra, ou seja, não se contratam pessoas negras. (CARDOSO, SCHLICKMANN,
AMANDIO, 2017, p.02).

Outro fator a ser problematizado é a visão universalista que está presente em todo o
corpo do texto, nos remetendo a uma noção de uma sociedade única, homogeneizando as
culturas, crenças, religiões e até mesmo a sexualidade. Um exemplo a ser problematizado está
no tópico 2.2.1, intitulado “Educação”, que traz o seguinte trecho: “[...] o processo de socialização
secundária, se refere a forma de educação realizada por instituições projetadas para tal, como a
escola, a igreja, entre outros” (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2015, p. 35). Ao se referir a
Igreja, o Projeto Político Pedagógico não está dialogando com a diversidade que o documento
destaca constantemente, uma vez que a Igreja está diretamente ligada a religião Cristã, além de
entrar em desacordo com a Constituição que defende um Estado Laico.
Visto que os três primeiros passos já foram realizados, o Projeto deu início a formação da
equipe gestora local. Ficou perceptível com as primeiras análises que o município necessita que
questões sejam melhor trabalhadas, e um ponto positivo é que a Secretaria Municipal de Educação
compreende a essencialidade das ações vindas do Projeto. Portanto, pensando nas dificuldades,
além de atender a uma solicitação vindo da Secretaria Municipal de Educação que pedia um dia de
formação para as/os professoras/es da Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental,

Página 762
foram realizadas duas oficinas pela manhã, atendendo às/aos professoras/es da Educação Infantil
e duas no período da tarde, para professoras/es dos anos iniciais do ensino fundamental. Para a
Educação Infantil foram ministradas as seguintes oficinas:
1. Oficina Educação das Relações Étnico-Raciais: “Essa ciranda não é minha só / É de
todos nós”. Oficineira Profª Cintia Cardoso.
2. Oficina Arte Educação Africana e Afro-Brasileira. Oficineira a Profª e arte educadora,
Giselle Marques.
Já no período da tarde, para professoras/es dos anos iniciais, as oficinas foram as seguintes:
3. Oficina Literaturas Histórias e Memórias. Oficineira Profª Msª Cristiane Mare da Silva.
4. Oficina A Religiosidade Afro-Brasileira no Brasil: História, Memória, Cultura e Patrimônio.
Oficineira Profª Msª Lisandra Barbosa.
Consideramos que as oficinas foram muito positivas e proveitosas, dado que a grande maioria
da equipe gestora bem como a equipe docente estava presente no dia. Os/as professores/as se
mostraram muito interessados, participando ativamente nas atividades, fazendo questionamentos
e comentários. Desse modo, após as atividades, aplicamos novamente um questionário. Apesar
da quantidade de retornos ter sido menor, conseguimos perceber que obtivemos melhoras nas
respostas.
Quando observamos os questionários de professores/as da Educação Infantil, num total
de 15, 10 professores/as afirmaram sentir a necessidade de modificar suas práticas pedagógicas,
afirmando: “A mudança é um movimento constante e natural no profissional de educação, o pensar
e o agir devem estar coerentes com o bem-estar comum”2; “Colocar em prática o conhecimento
adquirido no curso”3; “Inserir mais elementos da cultura afro, como brincadeiras, jogos, música no
cotidiano de minha prática”4.
Em relação aos/as professores/as de Ensino Fundamental, por exemplo, quando
questionados a importância da Lei Federal 10.639/03 nas redes oficiais de ensino, 10 afirmaram
ser importante e 3 essencial, contrapondo com o anterior, onde 3 docentes assinalaram acreditar
que a Lei não possuía importância alguma, bem como não obtivemos nenhum afirmando que ela
se caracteriza como essencial.
Com o panorama apresentado, percebemos que no município de Águas Mornas existe
uma intencionalidade de mudança vindo do corpo gestor, porém os traços da branquitude são
marcantes nos diversos momentos de trocas e de análise de documentos, questionários. Isso
porque, conforme conceito cunhado por Cardoso (2014), existe dois tipos de branquitude, a crítica
e a acrítica, sendo a primeira aquela que é consciente da existência do racismo, que o repudia em
público, mas que não modifica suas ações para que o cenário se altere. Já a segunda, acredita
que existe mesmo uma superioridade branca e pauta suas atitudes e discurso nessa crença,
perpetuando racismo por acreditar que isso seja o correto, o natural.

2 Resposta dada por um/a docente em seu questionário;


3 Resposta dada por um/a docente em seu questionário;
4 Resposta dada por um/a docente em seu questionário;

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Desta forma, acreditamos que a educação esteja pautada em uma branquitude crítica, na
qual reconhece que existe a desigualdade, mas que quando apresentada à uma solução recua
por considerar trabalhosa e, ainda, por medo de perder seus privilégios há tantos anos mantidos.
Entretanto, vimos uma brecha de esperança com as ações em Águas Mornas, pois mesmo com
um pouco de resistência, aos poucos temos conseguido conscientizar para a necessidade da
implementação da lei e sua importância para a sociedade.

Considerações finais

Até o presente momento, as ações do Projeto Observatório de Relações Étnico-Raciais


no município de Águas Mornas não foram finalizadas. A próxima ação prevista é uma oficina de
sensibilização “Vista Minha Pele” que será ministrada pela Profª Fernanda Costa e Souza e Profª
Tamna Amandio, com o intuito de tocar mais diretamente na importância social da implementação
da Lei Federal 10.639/03, acompanhada da devolução do parecer do Projeto Político Pedagógico
da Escola Municipal Santa Cruz da Figueira e sugestões para a elaboração do instrumento
normativo que servirá como guia para a implementação da lei nos PPPs de todas as instituições
de ensino, bem como dos planos de ensino de todos/as os/as docentes das diversas áreas da
educação.
Porém, podemos apontar o caso do município de Águas Mornas como o de maior sucesso.
Apesar de continuar em andamento, esta foi a primeira cidade que conseguimos avançar com o
projeto, realizando ações efetivas e que continuamos em contato e com programação para novas
mediações. Em outros municípios catarinenses em que o Projeto tentou atuar, não conseguimos
dar continuidade, não passando das reuniões de apresentação, uma vez que muitas das escolas
recuam, não atendendo as nossas tentativas de contato.
Isso, portanto, nos traz um retrato do ensino, o qual está imerso em uma essência
discriminatória, e que a tem naturalizada. Conteúdos excluem a história e cultura africana e afro-
brasileira, onde sua abordagem é quase nula, em contrapartida com a supervalorização das
populações europeias e suas culturas.
Entendemos que a educação é uma das mais poderosas ferramentas para a transformação
social, e, infelizmente, sabemos que o racismo é institucional e está enraizado na educação brasileira.
Sabemos, também, que muitas instituições de ensino não estão predispostas a implementar a Lei
10.639, apesar de já terem se passados 14 anos de sua sanção. Um fator problemático diretamente
ligado ao descaso à implementação é a falta de fiscalização e cobrança vinda do governo para
com a educação e a forte presença de uma quase exclusividade de pessoas brancas nos cargos
de poder nas instituições de educação, cargos políticos, o que fortalece a manutenção do status
quo e do exercício da branquitude, do racismo institucional neste âmbito.

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1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras
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AS PUBLICAÇÕES DAS REVISTAS DE PSICOLOGIA: UMA ANÁLISE
DA ABORDAGEM DA QUESTÃO NEGRA E DO PENSAMENTO SOCIAL
BRASILEIRO

PAIXÃO, Tulane Oliveira da. (UFF)


tulane.oliveira@gmail.com
Orientador: SANTOS, Abrahão de Oliveira (UFF)
abrahaosantos@hotmail.com

Resumo

Este trabalho mostra um panorama das publicações de artigos em revistas de Psicologia, Qualis A1 e
A2, entre 2010 e 2015, no que se refere às questões raciais e o modo como os objetos de pesquisa são
contextualizados na ordem social local. Os resultados parciais da pesquisa mostram que 1,5% aborda a
questão negra e problematiza as relações raciais; 7,1% envolve a população negra mas não problematiza
as relações raciais e 91,4% não aborda a questão negra. Isso mostra que a categoria dos psicólogos não
estuda o grave problema da exclusão da população negra na construção da República e nem como
esse fato histórico modula o sofrimento psíquico da população brasileira. Quanto à questão social, 21,2%
aborda a questão social e apresenta a singularidade social brasileira; 23,1% aborda a questão social,
mas não traz a singularidade social; e 55,8% não aborda a questão social. A leitura dos artigos mostra
que, quando o contexto social é abordado, o fazem a partir de autores e referenciais estrangeiros, não
trazem a singularidade histórica. Os resultados parciais mostram o quanto a questão negra é esquecida
nos estudos da Psicologia e quanto os autores desconsideram o contexto local no qual o objeto da
pesquisa se encontra, mesmo quando se trata das metodologias que enfatizam a importância histórica,
social e cultural para a compreensão do comportamento, da subjetividade ou do fenômeno psicológico.

Palavras-chave: Psicologia social; Relações Raciais; Pensamento Social,

Página 767
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O presente trabalho apresenta os resultados parciais da pesquisa de Iniciação Científica


“As Publicações das Revistas de Psicologia: Uma Análise da Abordagem da Questão Negra e do
Pensamento Social Brasileiro”, e conta com a participação da equipe de pesquisa do Kitembo –
Laboratório de Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-Brasileira1. Teremos a descrição dos
dados da trajetória de pesquisa, o resumo do plano inicial, as etapas desenvolvidas e o que foi
realizado até então, os resultados parciais quantitativos e qualitativos obtidos, divididos nas duas
grandes áreas de interesse da pesquisa denominadas como “Questão social” e “Questão Negra”,
as dificuldades surgidas e as considerações finais.
Temos como hipótese que algumas práticas e o saberes psicológicos têm se aproximado da
realidade social, política, econômica e cultural do país, mas ainda não compreende a importância
da questão racial e étnica da maioria da população atendida pelos psicólogos. A Psicologia então
se ocupa da população como se ela fosse homogênea do ponto de vista das suas origens e da
questão racial e, muito embora tenha se voltado para a singularização individual, o patrimônio
de diversidade cultural do país não é considerado. O racismo institucional dificulta a pesquisa, a
produção de conhecimento, a divulgação e distribuição de informação a respeito da modulação
que a racialização imprimiu aos processos de subjetivação brasileira e no sofrimento da população
em geral, e com mais intensidade na população negra.
Apesar de comemorar um avanço das discussões étnico-raciais, precisamos entender que
este ainda é incipiente frente o pouco que a Psicologia se debruça sobre questões tão importantes
que constroem a história do país e causam tanto sofrimento à população negra. Ao ler os mais
variados artigos publicados nas revistas de Psicologia a questão racial parece oculta. Entendemos,
a partir da leitura desses artigos, que a Psicologia até o presente momento, se ocupa da população
como se ela fosse homogênea do ponto de vista das suas origens e da questão racial. Devido a
isso, surgiu o desejo de realizar essa pesquisa, visando intervir e provocar um desvio na atuação
da psicologia no que tange a questão étnico-racial. Para tal intervenção, pensamos em dedicar
o trabalho na análise de dados referentes à questão negra e abordagem social visto que eles
refletem a forma com os profissionais abordam tais questões. Temos a intenção de, a partir desses
dados, sensibilizar acerca da importância do atravessamento da questão racial e étnica na maioria
da população atendida pelos psicólogos no contemporâneo e nas práticas de formação em
psicologia.

1 Nominalmente: Viviane Pereira da Silva, Davi Akintolá, Yan Fernandes da Silva e Eduardo Sousa de Castro.

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Coleta de dados e Metodologia de pesquisa

O primeiro passo realizado foi o levantamento das revistas Qualis A1 e A2, na área de
Psicologia, entre os anos de 2010 e 2015; dessa primeira amostra, foram selecionadas as
publicações do ano de 2010, totalizando quinze revistas A2 e A1, com 51 edições e 750 artigos.
Após a triagem do material que viria a ser analisado, as reuniões de pesquisa iniciaram
a elaboração de um plano de produção de dados, a partir das leituras das revistas. Com qual
recorte deveríamos ler os artigos? Quais informações precisamente deveríamos extrair? Como
organizaríamos as informações coletadas? Quais as categorias de leitura para atingir os objetivos
propostos? Quais seriam os dados quantitativos e quais os qualitativos? Esta etapa de discussões
e planejamento das categorias de organização e análise dos dados tomou muito tempo de trabalho,
até o desenvolvimento das categorias básicas e de uma planilha no Excel, que nos serviu como
instrumento de produção, armazenamento e sistematização das leituras dos artigos e dos dados
coletados, tanto no aspecto quantitativo como no qualitativo. Visando os objetivos estabelecidos,
foram construídas seis categorias de análise sob as duas grandes áreas de interesse do projeto:
1. Questão Negra:
a. Aborda a questão negra problematizando as relações raciais;
b. Envolve a população negra (adolescentes em conflito com a lei; pessoas em bairro
popular; situação de vulnerabilidade; periferia; classe populares, etc.) e não problematizam as
relações raciais; não considera a dimensão histórica e cultural da população negra;
c. Não aborda a questão negra, as relações étnico-raciais, o racismo, nem a cultura afro-
brasileira ou construção da identidade negra.
2. Questão Social:
a. Aborda a questão social e apresenta a singularidade histórica e social brasileira;
b. Aborda a questão social, mas não apresenta a singularidade histórica e social brasileira;
c. Não aborda a questão social. Artigos que não citam nem explicitam a questão social.
A partir dessas categorias e com o apoio da planilha foi realizada uma leitura de todos os
artigos verificando e extraindo os dados que definimos.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Discussão dos resultados parciais

1. Questão negra:

Dos 750 artigos analisados, 1,5% (11 artigos) abordam a questão negra problematizando
as relações raciais. 7,1% (53 artigos) dos artigos envolvem a população negra e não problematiza
as relações raciais e 91,4% (683 artigos) dos artigos não abordam a questão negra. O gráfico 1
mostra em términos percentuais essa amostra.
Das 15 revistas de Qualis A1 e A2 de Psicologia pesquisadas, seis revistas apresentam
artigos com a questão étnico-racial. No que se refere aos assuntos (campo) nos quais a questão
das relações étnico-raciais se coloca, podemos observar que:  um artigo trata de ações afirmativas,
dois artigos tratam de movimentos sociais e culturais (mulheres negras e hip hop), dois artigos
sobre preconceito racial e discriminação, um artigo sobre identidade negra,   um artigo sobre
representações sociais em indígenas, um artigo no campo da educação, um artigo no campo da
saúde, um sobre violência entre raças e um sobre autorrepresentação.
Nos artigos que envolvem a população negra mas não problematizam as relações raciais,
as denominações que ela recebe são:  usuários do SUS, população carcerária, classes populares,
umbandistas, trabalhadores de baixa escolaridade, jovens de nível socioeconômico baixo, crianças
em situação de acolhimento, presidiários, jovens em situação de trabalho, estudantes de escola
pública, adolescentes pobres, jovens aprendizes baianos, jovens de famílias pobres, crianças em
situação de rua.
Um exemplo de artigo que aborda a população negra sem se referir à questão racial é
“Orientações educacionais, crenças motivacionais, e desempenho escolar em estudantes no
ensino fundamental” de Paiva e Boruchovitch (2010). O público estudado são alunos de escolas
públicas estaduais de São Paulo.  São relacionados os aspectos de motivação escolar, crenças
pessoais e rendimento, como o cerne do problema do racismo no cotidiano escolar, que produz
repetência, baixo rendimento e evasão. Ainda assim, o artigo não traz a discussão racial do

Página 770
problema abordado.
Outro exemplo é o artigo “A escola de São Paulo de psicologia social: apontamentos
históricos” de Carvalho e Souza (2010), que trata sobre do anseio da psicologia em trabalhar com
as “classes populares”. O artigo cita os quatro cursos de psicologia social existentes na primeira
década do século XX, dentre os quais o curso ministrado por Arthur Ramos, um autor de teorias
racistas da época, mas não aborda a questão racial, como se as classes populares, no Brasil, não
tivessem cor nem história.
A significativa ausência da temática das relações raciais é evidente no conjunto das
publicações estudadas. Ainda que a população negra seja maioria no país e que o racismo
afeta e gere grande sofrimento psíquico, podemos concluir, a partir dos dados, que não há uma
preocupação, nos estudos da Psicologia, com a problemática e os efeitos da questão racial e do
racismo, ela nos mais diversos campos de atuação profissional. A questão negra, as relações
raciais e o sofrimento da população afrodescendente, parece, de acordo com os resultados que
obtivemos, confirmar o caráter de invisibilidade que os ativistas denunciam.

2. Questão social:

Dos 750 artigos analisados, 21,2% (158 artigos) aborda a questão social e apresentam
a singularidade histórica e social brasileira, 23,1% (172 artigos) aborda mas não trazem a
singularidade histórica brasileira e 55,8% (416 artigos) não aborda a questão social. O Gráfico 2
mostra em términos percentuais essa amostra.

Análise dos resultados


Os dados coletados mostram que apenas 1,5 % dos artigos pesquisados aborda a questão
das relações raciais, num país onde a população autodeclarada negra perfaz 53,6 % da população
brasileira (IBGE, 2015), com forte movimento social dos afrodescendentes e pesquisadores
das ciências sociais apresentando o racismo contra negros como um dos maiores problemas
da República brasileira (MUNANGA, 2008; FERNANDES, 1989), e ainda mais como fonte de
sofrimento mental. De fato, não há nenhuma justificativa aparente para a gritante omissão de

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

estudos das relações raciais na área da Psicologia.


A partir da leitura dos artigos das revistas consultadas pudemos perceber que sociólogos,
historiadores e antropólogos brasileiros são pouco citados. Essa característica da pesquisa em
Psicologia nas revistas pesquisadas, se refletem nos dados quantitativos:  em 55, 8% dos artigos
consultados, não há a abordagem da questão social; em 23,1% há a abordagem da questão
social, porém sem a contextualização na particularidade brasileira, ou sem nenhum debate com
a singularidade história social. Apenas 21,2% dos artigos, trazem a dimensão histórica brasileira
na discussão do objeto de pesquisa. O que significa que esses artigos não dialogam com o
pensamento social brasileiro, isto é, os pesquisadores do contexto da sociedade local não são
considerados necessários. Prevalecem os referenciais teóricos estrangeiros e, mesmo quando são
citados autores brasileiros nas referências bibliográficas, os mesmos fazem leituras subordinadas
a clássicos europeus e norte americanos, como: Lacan, Freud, Marx, Bauman, Foucault, Deleuze,
Bruno Latour, Giddens, Goffman, Vygotsky e outros. A produção intelectual singularmente
brasileira, elaborada a partir de nossa especificidade histórico-social, quase não tem lugar nos
artigos pesquisados.
Alguns artigos chegam a fazer menção à cultura ou alguma característica brasileira, sem
nenhum referenciais ou discussões de maior consistência. O artigo de Rique e Camino (2010)
intitulado “O Perdão Interpessoal em Relação a Variáveis Psicossociais e Demográficas” tem como
um de seus objetivos verificar como a cultura influencia o perdão. O estudo se propõe comparar os
resultados do experimento no Brasil e nos EUA e, ao citar uma diferença que surgiu entre os dois
a justifica somente com o seguinte trecho “Comumente, é dito que a família brasileira promove
maior aproximação e maiores vínculos entre avós, tios e primos e os resultados confirmam essa
expectativa” (RIQUE e CAMINO, 2010, p. 531). Nesse exemplo, os autores citam a cultura brasileira,
sem trazer nenhuma referência de estudo das Ciências Sociais. Outro artigo que evidencia isso
é o “Construção e Validação de um Instrumento para Avaliar Auto-Eficácia em Situações de
Treinamento, Desenvolvimento e Educação de Pessoas” de Meneses e Abbad (2010):

No Brasil, estudos desta natureza ainda precisam ser realizados mais sistematicamente,
tanto porque, diferentemente dos Estados Unidos, a cultura brasileira parece destacar a
coletividade e não a individualidade. (MENESES e ABBAD, 2010, p. 128).

Em sua esmagadora maioria, os artigos de abordagem experimental e de tratamento


estatístico não se preocupam em apresentar o contexto social dos objetos de pesquisa. Um
exemplo é o artigo que pretende “mensurar as crenças no mundo justo”, de Gouveia et al. (2010).
Outro exemplo é o artigo de Da Silva & Silva (2010).
Essa tendência do campo experimental de não trazer o contexto social dos seus objetos de
pesquisa se apresentam também nos artigos de cunho psicanalítico. Os autores brasileiros, neste
número da revista, não recorrem à singularidade histórica e social do Brasil do objeto de estudo. É o

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que ocorre no artigo de Simone Perelson (2012)2, Elucubrações sobre um sonho elucidativo: o erro
fetichista e o acerto freudiano, e de todos os outros do número. O artigo apresenta temas como
o fetichismo, objeto do desejo, conteúdo latente, interpretação dos sonhos, todavia sem nenhum
diálogo com as singularidades históricas sociais do Brasil. Nesse caso, me parece, ou o trabalho de
pesquisa se dá sobre um fundo universal da experiência humana e a consequente naturalização do
porvir da existência, ou teremos que nos voltar para o contexto europeu, de onde vem os autores
nos quais o artigo se baseia. No artigo de Perelson (2012), Freud e Zizek são os autores básicos. A
citação do filósofo brasileiro Vladmir Safatle tem o efeito de reiterar o pensamento de Freud sobre
o assunto do fetichismo, e não trazendo nenhuma contribuição significativa à argumentação.
Nesse caso, muito comum nos artigos das revistas pesquisadas, sugerimos que referências desse
tipo devem entrar na categoria do que Del Prette e Del Prette chamaram de “citação vitrine” e
“citação desnecessária”, “com pouco ou nenhum peso argumentativo no texto” (Del PRETTE & Del
PRETTE, 2010, p. 104). Estes pesquisadores categorizam alguns problemas comuns de citações,
encontrados em um conjunto restrito de dissertações, teses, artigos e livros publicados no período
de 2004 a 2007.
Nesse mesmo número da revista, algo ocorre curiosa e distintamente com dois autores
psicanalistas europeus. Em “O sujeito e seus modos de gozo”, o psicanalista francês Hoffmann
(2012) discute pulsão, gozo, estruturas sociais, spaltung do Eu, recusa da feminilidade, interdito,
seguindo para a conceituação lacaniana de significante do desejo da mãe, Outro, gozo. No artigo o
“social” se expressa pelo “interdito”, por referência ao “consumo” e ao “mercado”. Assim, o artigo
se deixa claramente colocar no debate da sociedade europeia contemporânea e é congruente
com o contexto das sociedades de consumo europeias, como a França, Alemanha, Itália. Deixa
claro que se encontra no contexto da formação social liberal da Europa. Os dois psicanalistas,
autores franceses que publicam na revista, localizam e contextualizam suas questões de pesquisa
e o assunto que desenvolvem. Trazem a singularidade histórica social aonde situam suas análises,
ainda que seus temas transitem entre aspectos mais teóricos a clínicos do campo psicanalítico. Há
assim congruência entre a sociedade dos autores, seus objetos de pesquisa, e sua metodologia
que contextualiza o problema e dialoga com historiadores, filósofos, sociólogos, e romancistas que
apresentam um pensamento social europeu.
Mas é curiosa a situação dos artigos que se filiam a uma abordagem da psicologia histórico
cultural ou à sociologia, como o artigo intitulado “A Criação de uma Cultura de Grupo na Brincadeira:
Um estudo com crianças entre 2 e 4 anos” de Delvan e Cunha (2010), onde os autores afirmam a
importância da especificidade de contextos históricos, os mesmos não se dedicam a descrever os
contextos históricos culturais e sociais, ou as singularidades históricas nas quais se situa o objeto
da pesquisa. São artigos da categoria “aborda as questões sociais mas não traz a singularidade
histórica brasileira”. Um outro artigo diz que
não há como investigar a autonomia do professor sem considerar o momento histórico e

2 Este e outros artigos de 2012 usados como exemplos no relatório fazem parte dos artigos lidos durante a fase
de preparação da pesquisa e elaboração das categorias de análise

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

social vivido por esse sujeito, sem levar em conta que é nesse contexto que ele se constitui,
em um movimento dialético. É preciso analisar, portanto, as condições de trabalho às
quais está submetido, as demandas que lhe são impostas, enfim, todos os fatores que
influenciam a sua prática. (PETRONI e SOUZA, 2010; p. 356).

Entretanto, o não artigo não circunscreve o contexto sócio-histórico que afirma ser
imprescindível.
Podemos perceber então que há um ponto de vista universal ou internacional sobre
os objetos de pesquisa, que, mesmo quando a abordagem teórico-metodológica enfatiza a
importância determinante do contexto social e cultural, o objeto da pesquisa é investigado
isoladamente, à revelia da compreensão das determinações sociais. Apenas a argumentação
conceitual é suficiente para a compreensão do objeto de pesquisa. A leitura dos artigos mostra que,
quando os autores fazem algum tipo de contextualização, usam referenciais euroamericanos de
cunho universalizante. Veja o exemplo no artigo “Perspectivas sobre papéis de gênero masculino
e feminino: um relato de experiências com mães de meninas vitimizadas” de Serpa (2010), que
analisa os papéis masculinos e femininos expressos por mães de meninas vítimas de violência
intrafamiliar:

“Na Idade Média, por exemplo, a violência sexual contra mulheres era socialmente aceita,
sendo justificada pela necessidade de afirmação da virilidade masculina e o direito de
impô-la” (SERPA, 2010, p. 16).

Os autores citados são euroamericanos que trazem um contexto que não é em nada se refere à
singularidade histórica e social brasileiras. Isso se reflete nos dados: 55,8% dos artigos consultados
não apresentam a singularidade histórica e social na qual o objeto de pesquisa se encontra. Ora,
de onde vem esse ponto de vista global, é uma questão importante para compreendermos o que
acontece no fato de que nosso próprio contexto social, a singularidade histórica e social brasileira,
não é o fundo de apoio da compreensão dos vários fenômenos estudados pela Psicologia. Este e
inúmeros outros artigos que estudam comportamento, subjetividade, processos sociais, culturais
e comunitários, à luz da Psicologia, parecem assumir um ponto de vista social intelectual exterior.
Se o artigo trata de um objeto de pesquisa do contexto estrangeiro e apresenta a
singularidade histórica daquele país estrangeiro, teremos aí uma situação que definimos como de
congruência. É o caso do artigo do psicanalista francês Christian Hoffmann (2012), O sujeito e seus
modos de gozo, cujo objeto de estudo se dá no contexto francês, e recebe uma contextualização
da dimensão social da história França. Há congruência entre o objeto, a localização social do
objeto e a apresentação da singularidade histórica do objeto de pesquisa. Quando o objeto de
pesquisa se coloca no contexto brasileiro, sem descrevê-lo, contudo, como se não houvessem
especificidades locais, ou singularidades históricas, teremos uma situação de incongruência na
pesquisa entre o contexto apresentado e o objeto estudado. Sendo assim, esses dados corroboram

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com a percepção de que as pesquisas na área da Psicologia não dialogam com o pensamento
social brasileiro ou não trazem a singularidade histórica e social.

Caracterização geral das revistas


O levantamento dos objetos e objetivos de pesquisa dos artigos das revistas de Psicologia
Qualis A1 e A2, de 2010, são demasiadamente variados: pesquisa básica com ratos e humanos,
deficiência visual, formação do psicólogo, dos processos educacionais, de epistemologia e
conceitos psicanalíticos, casos clínicos, da surdez, de crianças, da ocupação do espaço da cidade
pela população, das políticas públicas no contexto escolar, de representações sociais, família,
gênero, cidadania, consumo, publicidade e medicalização da sociedade, homossexualidade,
educação, casamento, crianças institucionalizadas, maternidade, religião, preconceito sexual,
assédio moral e bullying, organização do trabalho, relações raciais, religiões de matriz africana,
cultura popular, identidade.
No que tange às abordagens teóricas observamos também uma grande variedade:
psicanálise, fenomenologia, filosofia de diferença, neuropsicologia, perspectiva sócio-histórica,
perspectiva experimental quantitativa, cognitivo-comportamental, psicologia social, dentre outras.
Observamos, de maneira muito presente os referenciais do âmbito da psicologia cognitivo-
comportamental, com entrevistas semiestruturada e tratamento estatístico; categorização de
comportamentos e análise funcional; há também artigos de levantamento bibliográfico e estudos
de caso; há produção da Psicologia Social de viés marcadamente funcionalista orientada por
protocolos de testes e elaboração de intervenções que visam a adaptação dos sujeitos em
diferentes contextos e estudos sobre indicadores, variáveis e preditores de comportamento.
Existe uma revista que trabalha com artigos de um campo específico, no caso a psicanálise.
Esta tem como característica a priorização do debate acerca dos conceitos psicanalíticos: neurose,
psicose, transferência, recalque, inconsciente e etc., seja através do debate exclusivamente teórico,
seja a partir da discussão de casos clínicos. Em relação às referências bibliográficas são usados
quase que exclusivamente autores da psicanálise, sobretudo autores estrangeiros, europeus e
norte-americanos. Vez por outra são citados também autores da linguística, literatura, psiquiatria,
epistemologia e filosofia, mas isso é bastante raro. Há publicação de artigos de psicanálise em outras
revistas cujas características são as mesmas verificadas na revista que aborda especificamente a
psicanálise, sem diálogo com autores brasileiros e menos ainda apresentando consideração pelo
contexto social histórico no qual o objeto de pesquisa se encontra.
Há também uma vertente de estudos cuja abordagem prioriza as questões históricas, sociais
e políticas. Nos artigos dessa vertente há a afirmação explícita da importância da singularidade
histórico social para a compreensão dos objetos de estudo. Também nesse grupo, as pesquisas se
fundamentam sobretudo nos autores europeus e norte-americanos, e contextualizam seus objetos
de pesquisa a partir da singularidade histórica e social europeia e não a partir das particularidades
locais brasileiras.
Em relação aos procedimentos de pesquisa é facilmente observável uma predominância de

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

pesquisas de cunho experimental e qualitativo. É também facilmente observável a predominância


de autores europeus e norte-americanos embora não tenhamos dados quantitativos em relação a
essas duas categorias.

Conclusão
A pesquisa apresenta dois conjuntos de resultados parciais. Um se refere à questão negra,
onde os dados revelam que, em um universo de 750 artigos coletados, apenas 1,5% aborda a
questão negra e problematizando as relações raciais; 7,1% dos artigos envolve a população negra
por categorias como população pobre ou vulnerável, entre outras, e não problematiza as relações
raciais; por outro lado, 91,4% dos artigos não aborda a questão negra.
O outro conjunto é sobre as publicações que abordam a questão social. Somando as
categorias dos artigos que abordam a questão social, isto é, cita uma questão social, mas não traz
a singularidade histórica brasileira e dos artigos não abordam a questão social. Podemos dizer que
78,9 % dos artigos estudados não trazem nenhuma problematização da realidade histórico social
brasileira. Creio que, diante desse material, suas pesquisas não tiveram necessidade de trazer o
contexto social para compreender o objeto dos seus estudos.
Os dois conjuntos de dados parecem, inicialmente, separados e sem relação um com
o outro. Entretanto, ao fazer a discussão dos dados vemos uma linha de conexão entre eles.
As problemáticas das relações raciais são excluídas das pesquisas aqui consideradas e, com
esta exclusão, revela-se o esquecimento e o desconhecimento da Psicologia da questão mais
traumática da história de formação do que chamamos Brasil e do mundo ocidental moderno, que
é o regime escravista e as consequências da exclusão dos negros na constituição da República.
Devemos nos perguntar se aí não aparece a continuidade dessa marca do embranquecimento no
modo de ver a população brasileira.
Ora, no segundo conjunto de dados vemos o desaparecimento, na absoluta maioria dos
artigos pesquisados, do contexto histórico, da dimensão social que determina e condiciona os
fenômenos psicológicos, comportamentais ou de subjetivação, no qual o objeto de pesquisa
se encontra, seja lá o que pesquisa. Em vez de se apresentar a particularidade histórica e social
local brasileira, os artigos trazem o contexto euroamericano, muitas vezes apresentado na forma
de um contexto global, como mostram os exemplos tirados dos resultados. Do mesmo modo, ou
concomitantemente, os artigos tomam como referência preferencialmente, autores europeus e
norteamericanos, como já nos fazia observar o filósofo Ramón Grosfoguel (2016).
Esses dois conjuntos de dados são correlatos da produção acadêmica de pesquisadores
da Psicologia, que pensam suas questões e sua própria realidade a partir dos conceitos, da
linguagem, das prioridades colocadas pelos intelectuais dos países colonizadores. Trata-se aí de
ver que a memória dos pesquisadores da Psicologia se mantém como colonizada.
O que observamos na leitura de inúmeros artigos é que o contexto social no qual são
situados os objetos das pesquisas da Psicologia brasileira é  um contexto dado pelos autores que
norteiam tais estudos, os autores euroamericanos. Ora, o ponto de vista de leitura dos problemas

Página 776
brasileiros estão vindo do exterior, e é portanto, como Grosfogel (2016) salienta, também o ponto
de vista da intelectualidade que vem dos países colonizadores. Nesse caso, o desprezo que temos
pelo nosso próprio contexto social, pelos autores das ciências sociais que debatem a sociedade
brasileira pode ser aquele dirigido por nossa memória ainda colonizada e, portanto, marcada por
um racismo que despreza aquilo que é brasileiro como pouco interessante do ponto de vista
intelectual e social. Nos dois conjuntos de dados o interesse dos pesquisadores é conduzido por
um ideal de povo e sociedade que não é o brasileiro. O modo de pesquisar, na Psicologia, segundo
os dados nos revelam, nos torna um povo embranquecido. É a situação do racismo que conduz a
produção intelectual no campo da Psicologia.

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BRANQUITUDE E PODER NAS RELAÇÕES ENTRE LOCAIS E IMIGRANTES
HAITIANOS: FALANDO DE RAÇA NO OESTE CATARINENSE

OLIVEIRA, ELIZIANE TAMANHO DE. (UFFS)


elizianetamanho@gmail.com

Resumo

Os elementos desenvolvidos nesse artigo estão associados a recente migração de estrangeiros haitianos
para o Brasil, especificamente para o município de Chapecó, para fins de trabalho e estudo. No ano de
2013 foi implantado na UFFS o Pró Haiti (Programa de Acesso à Educação Superior da Universidade
Federal da Fronteira Sul (UFFS), destinado exclusivamente a haitianos que vivem na região. Esse artigo
abordará alguns elementos constitutivos da autorrepresentação e recognição entre os estabelecidos
(brasileiros) e outsiders (haitianos) na UFFS- Chapecó. Para tanto recorreu-se à construção da
representação do negro no Brasil e ao debate sobre os privilégios associados à branquitude. A cidade
de Chapecó foi colonizada por descendentes de europeus e a hegemonia branca, resultante desse
processo, se manifesta nos dados demográficos da cidade. Segundo dados do IBGE 76,68% da
população de Chapecó é branca. Logo a presença haitiana, marcada pela negritude, traz para a cidade
um elemento de contraste a essa hegemonia branca. Por outro lado, as relações entre os imigrantes
haitianos e moradores locais têm revelado aspectos da branquitude associada à cidade. A pesquisa,
baseada na metodologia qualitativa: entrevistas, realização de grupos focais, observação participante
identificou que a relação entre haitianos e brasileiros é marcada por distanciamento, exclusão, e
situações de racismo. O que se percebeu, com os dados levantados é que essas relações de poder
entre moradores locais e estrangeiros ganham diferentes proporcionalidades em razão do ambiente. No
contexto universitário elas parecem ser menos explícitas. Contudo, nas relações fora desse ambiente,
vividas na cidade, nas relações de vizinhança, no comércio, no trabalho, os haitianos e haitianas têm
experimentado situações de hostilidade e de racismo explícito.

Palavras-chave: Branquitude. Racismo. Universidade Federal da Fronteira Sul.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Esse artigo é fruto de uma monografia1 que abordou as relações de sociabilidade entre
haitianos e moradores locais na universidade e na cidade de Chapecó. Alguns elementos são
considerados no seu desenvolvimento: a imigração de haitianos, a colonização, marcadamente
europeia, da cidade de Chapecó, e as relações raciais no Brasil. A partir desses aspectos
procurou-se entender os elementos que permeiam a sociabilidade desses dois grupos: haitianos
e moradores locais brasileiros em Chapecó.
Investigou-se as percepções de haitianos e brasileiros acerca dos processos de
sociabilidade entre eles a partir da Universidade Federal da Fronteira Sul e da cidade de Chapecó.
Foram observadas relações de poder explicitas e sutis, que podem ser analisadas através das
categorias de “estabelecidos e outsiders” de Norbert Elias & Scotson (2003) e que revelam o
poder de exclusão de um grupo sobre o outro. Outro aspecto da pesquisa era a preocupação em
identificar manifestações de racismo contra os haitianos no contexto da UFFS campus Chapecó
e nas relações cotidianas.
Na Universidade Federal da Fronteira Sul há um programa de ingresso exclusivo para
estudantes haitianos o (PRÓ HAITI), programa de Acesso ao Ensino Superior que destina vagas
exclusivamente para haitianos. (UFFS, 2013). Esse programa foi criado através da reivindicação de
um grupo de haitianos e haitianas (Bordignon, 2016). Essa experiência possibilitou investigar as
relações entre os brasileiros e haitianos nesse contexto educacional e nessa cidade de colonização
e organização peculiar marcada pela branquitude.
A cidade de Chapecó surge em 1917 como município, foi planejada e construída por e
para brancos. Na qual, cria-se um projeto intitulado “marcha para oeste” com o intuito de atingir o
progresso e desenvolvimento da região e também da população com advento de descendentes
de alemães e italianos através das companhias colonizadoras (PETROLLI, 2008). Com esse
projeto muitos indígenas e caboclos foram assassinados, expulsos de suas terras e excluídos dos
espaços públicos, em favor do grupo branco.
E essa relação de poder desigual entre brancos e não brancos, oferecia o recurso ao branco
de nomear a si mesmo e sua cultura como correta, em oposição as culturas e práticas dos não
brancos (indígenas e caboclos). Ao mesmo tempo, em que obrigava o não branco a viver a cultura
do branco através do monopólio do recurso de poder, com as instituições como igreja, e controle
dos meios de produção, como a terra. Em Chapecó sempre houve uma separação evidente entre
brancos e não brancos, diferente de outras partes do Brasil em que houve uma miscigenação
expressiva. Com isso, não se quer dizer que as relações de exclusão ou opressão sejam menores
devido à miscigenação. Conforme os dados do IBGE de 2010, Chapecó contava com 76,68% da
população branca, enquanto no Brasil no mesmo ano a população branca é de 47,7%. Dessa forma

1 Essa monografia foi finalizada em dezembro de 2015 e foi orientada pela professora Dra Claudete Gomes
Soares, professora do Curso de Ciências Sociais da UFFS.

Página 780
os dados demonstram que a miscigenação em Chapecó não foi forte, mesmo com a presença
indígena e cabocla. O que indica a particularidade da raça na construção da cidade de Chapecó
em comparação a afirmação do Brasil mestiço.
Os estudos de Guimarães (2003) têm evidenciado que as desigualdades relacionadas com
a cor da pele, impedem que os negros disputem oportunidades em condições de igualdade com
brancos. Também Hasenbalg (2005) enfatiza essa desigualdade com a tese do ciclo cumulativo
de desvantagens para a população negra: menor renda, localização geográfica periférica, menor
qualificação profissional, menores índices de escolarização.
Na cidade de Chapecó a agroindústria é uma das principais atividades econômicas.
Emprega moradores locais e alguns trabalhadores das cidades vizinhas. Com o seu crescente
desenvolvimento foi necessário que essas empresas fossem em busca de mais mão de obra,
inclusive a mão de obra dos haitianos e haitianas que estavam no Acre, conforme matéria de
Debona (2015).
A princípio a imigração haitiana para a região de Chapecó estava relacionada com a oferta
de trabalho. Posterior a esse momento com a conquista do Ensino Superior na UFFS para os
Haitianos (as) criam-se novos elementos motivacionais para a vinda e permanência na cidade.
Assim a grande maioria dos relatos desse artigo são de estudantes brasileiros e haitianos
da universidade Federal da Fronteira Sul. Uma parcela dos estudantes participa da pesquisa por
meio de entrevistas individuais e outra por meio de grupos focais. Nesses momentos, relataram a
experiencia de convivência entre brasileiros e haitianos na universidade e nos demais espaços da
cidade, como nas ruas e no trabalho. Os nomes dos estudantes apresentados são fictícios, para
proteger a identidade dos entrevistados (as).

1 Brasileiros e haitianos na UFFS: representações e recognição

A Universidade Federal da Fronteira Sul proporciona o ingresso de estudantes haitianos


através do (Pró Haiti) com resolução Nº 32/2013 do CONSUNI, a qual tem o objetivo de […]
contribuir para integrar os imigrantes haitianos à sociedade local e nacional, por meio do
acesso aos cursos de graduação da UFFS, e qualificar profissionais que ao retornar possam
contribuir com o desenvolvimento do Haiti (UFFS, 2013, p.1). O programa proporciona uma
forma diferenciada do ingresso aos estudantes, através de um exame realizado duas vezes
ao ano. O primeiro ingresso ocorreu no primeiro semestre de 2014 (Nierotka, 2015).
A Universidade Federal da Fronteira Sul contava com 36 estudantes Haitianos (as)
matriculados até o primeiro semestre de 2016 (BORDIGNON, 2016, p.93). Alguns desses
estudantes entrevistados associam a importância do Ensino Superior à expectativa de
prestigio e status econômico e social. Acreditam que o diploma do ensino superior lhes
dará a possibilidade de trabalhar em melhores empresas ou instituições, com funções bem
remuneradas, com menor carga de trabalho e desgaste físico, tanto aqui no Brasil como no
Haiti.

Página 781
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

As experiências de convivências entre os estudantes haitianos e brasileiros sinalizam


elementos sobre as interações a partir de relações de amizades e de interesses. Os
trabalhos em grupos na universidade se apresentam como fatores de interdependência
entre estudantes brasileiros e haitianos. Atividade que pode influenciar no desempenho
acadêmico e sociável dos indivíduos. Dito isso, o estudante haitiano Assis afirma não gostar
de trabalhos em grupo, por não se sentir reconhecido pelos colegas em outros espaços,
que não aquele do grupo de trabalho:
[...] eu prefiro fazer sozinho, mas eu nunca fiz sozinho, sempre tem alguém que me convida
pra fazer junto, mas eu prefiro fazer sozinho, [...] por exemplo pra mim quando eu estava no
colégio, colega fica amigo também, mas agora eu posso diferenciar que são duas coisas
diferentes [...] Um amigo de verdade seu, seja na sala de aula ou fora da sala de aula, fica
igual contigo, então alguém que.... ou seja, que aparece não ter orgulho de mim fora da
sala de aula, não vou ter orgulho de você então. [...] as vezes você encontra uma pessoa
fora da sala de aula e parece que nem tem vontade de cumprimentar assim, tu passa, eu
passo também, então é assim. (ASSIS, 2015)

A fala do estudante indica a insatisfação com uma relação mecânica entre ele e
os colegas de sala, que não consegue se tornar significativa para ele. Ele não se sente
considerado e reconhecido pelos seus colegas, e, portanto, deseja também não os
reconhecer. A dificuldade de integração é uma questão recorrente na fala dos haitianos
(as) entrevistados. Ela se manifesta principalmente nos momentos em que são orientandos
a trabalharem em equipe. Duas percepções são mais evidentes: a dificuldade de ter um
grupo de trabalho e a inferiorização deles por parte dos colegas brasileiros quando estão
nesses grupos.
Os estudantes brasileiros complementaram essa visão dos estudantes haitianos ao
relatarem que a grande maioria deles nunca havia feito trabalhos em grupos com os colegas
estrangeiros. No que tange a sociabilidade, a entrevistada Cássia diz “existe um receio dos
brasileiros conversarem devido ao medo de não compreender ou não ser compreendido”,
Chico percebe que os haitianos são “na deles”, são reservados, já Mariza identifica que
existe um distanciamento devido ao preconceito racial.
No que se refere às questões de conflito entre haitianos e brasileiros na universidade,
alguns dos brasileiros entrevistados citaram um episódio de racismo2 que aconteceu no
Restaurante Universitário, em que alguém colocou uma banana na mochila de um estudante
haitiano do curso de Administração. No entanto, a maioria dos entrevistados brasileiros não
sabia do ocorrido, mesmo que um ato contra o racismo tenha sido organizado por algumas
pessoas da universidade.
Além disso, para os brasileiros a língua é identificada como a maior barreira na integração
dos estudantes haitianos, assim como no desempenho acadêmico “[...]meu colega [haitiano],
ele tinha bastante dificuldade em produção textual 1 e 2, era bem difícil pra ele, ele ia

2 O ato de racismo que ocorreu no Restaurante universitário não foi citado por nenhum estudante haitiano, pois
isso correu após o termino das entrevistas com os haitianos.

Página 782
bem mal, mas já em matemática ele ia super bem, ele era um dos melhores que tinha. ”
(MARIZA, 2016). Entretanto para os estudantes haitianos a dificuldade com a língua é um
fator secundário, tendo em vista que poucos mencionaram a questão da língua, percebem
a principal barreira como sendo a integração com os brasileiros.
Nessa relação, entre grupos de haitianos e brasileiros, as diferenças se enfatizam
com a convivência. Os estudantes haitianos (as) se percebem como fortes e determinados,
utilizam palavras como a resistência, capacidade e reinvindicação, ao se referirem a si
como parte de um grupo:
No modo de ser todos nós somos humanos, na verdade, mas no modo de pensar, de
ações, mas tem bastante diferenças...os brasileiros, tipo, às vezes, eles não conseguem
resistir, é que eles sempre têm vontade de desistir das coisas, quando a coisa parece um
pouco difícil e o brasileiro já está pronto pra desistir (risos) é isso mesmo, mas os haitianos
sempre se esforça mais pra conseguir chegar no ponto que é uma diferença, a mais
comum” (ALENCAR,2015)

O haitiano ele tem essa visão, mesmo sendo um negro, mesmo sabendo que o nosso
mundo, não é só o Brasil, seja o mundo veja o negro como sendo uma pessoa que tem
certas incapacidades, o haitiano ele não é assim, ele vai atrás [...]eu adoro ser assim,
porque eles (haitianos) têm perspectivas que eles (haitianos) não se sentem limitados,
mesmo com as dificuldades. (CLARICE, 2015)

[...] o haitiano tem o sentido de reivindicação se você fizer [algo a] um


haitiano, uma coisa que ele não aceita, ele vai reivindicar, mas um brasileiro ele [tem]
medo do chefe, haitiano não, porque haitiano não vai ter problema pra pedir, não
aceita, não aceita, mas um brasileiro fica preocupado. (ANDRADE, 2015).

Essas fronteiras que identificam fatores históricos e outras características positivas do


“nós” para os haitianos está vinculado diretamente à história da independência do Haiti. Na qual
os haitianos venceram o exército da França e conquistaram a liberdade e a independência. Mas
também é possível encontrar na fala de Clarice e Alencar elementos relacionados às questões
raciais. Na afirmação de que “somos todos humanos” e que “mesmo que a sociedade veja o negro
com certas incapacidades os haitianos não se percebem assim”. Nesse sentido, a raça torna-se
um fator em evidência nas falas.
Os estudantes brasileiros não perceberam diferenças, entre
brasileiros e haitianos, para além de características genéricas, “A diferença
que eu vejo neles é de pessoa pra pessoa, assim como nós, acho que o que
muda é a cultura e o idioma”. (Cássia)
Ao contrário, os haitianos percebem características especificas das diferenças entre
grupos, o estudante Barreto descreve que a maioria dos homossexuais não são tolerados no Haiti
devido as questões religiosas, assim como o cigarro “[...]se você é religioso você não pode fumar
entendeu? Eu tô falando de cigarro, nem tô falando de maconha, e também se você é religioso não
pode aceitar isso, não faz parte da vida entendeu? Você não vai pro céu.” (BARRETO,2015)
Além disso, os estudantes haitianos (as) problematizam a dificuldade de conciliar o trabalho

Página 783
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

com o estudo devido ao cansaço físico, somados a falta de tempo para a dedicação aos estudos.
Em suas avaliações, a jornada de trabalho dificulta a conclusão do curso, pois nos cursos integrais
há choque de horário, o que compromete a continuidade grade do curso.
As festas ou momentos de confraternizações entre haitianos e brasileiros, no ambiente
universitário, quase não ocorrem. Conforme os brasileiros, os haitianos (as) não comparecem
devido o horário do trabalho ou por motivos particulares. Na percepção dos haitianos essas
reuniões não acontecem porque a turma não tem essa prática ou não são convidados, ou ainda
porque não querem ir, devido a insegurança que percebem nas relações com os brasileiros.
Hum... no início me convidaram bastante, mas eu não tinha vontade de participar.

Porque eu não conhecia pessoas, no início era difícil pra mim, por exemplo, fizeram
uma proposta de fazer festa na laje, eu nem sei onde fica a laje (risos) ok! Se eu for
lá, e acontece alguma coisa, todo mundo tem que voltar sozinho, então é que eu ia
encontrar mais dificuldade do que eles [brasileiros] daí eles [brasileiros] são do país
deles, tipo a religião deles e tipo eles [brasileiros] seriam mais prontos pra acolher eles
[os brasileiros] do que eu, eu acho. (ASSIS, 2015)

As relações entre grupos de brasileiros e haitianos na universidade é assinalado pelo


distanciamento. Expressos na dificuldade em fazer trabalhos em grupos com poucas relações de
sociabilidade no ambiente da universidade.

2 As relações inter-raciais na cidade de Chapecó


O deslocamento dos haitianos para o Brasil ocorreu, por um conjunto de fatores de
ordem política, social e econômica que se intensificaram, com o terremoto na capital do Haiti
em 2010. Além disso, contaram com o apoio institucional da política migratória brasileira,
que se abriu para a imigração haitiana. Outro elemento importante nesse processo foi a
presença brasileira no Haiti desde 2004, através da MINUSTAH3 (HANDERSON, 2015).
A mobilidade dos haitianos para a cidade de Chapecó inicialmente está associada a
busca das empresas por mão de obra, começando com a Fribratec e depois os frigoríficos locais.
DEBONA, 2015). Portanto, inicialmente os imigrantes foram recrutados por empresas e depois
passaram a vir por conta própria, seja em busca de trabalhos, estudos ou ambos.
No contexto das relações entre grupos na universidade (UFFS), não há, por parte dos
estudantes haitianos, uma percepção evidente de conflitos com base na cor ou raça. No entanto,
esses mesmos estudantes têm outra percepção quando se trata, da interação na cidade de
Chapecó. Nela foram identificadas situações de racismo, relatadas de forma explícita pelos
entrevistados. Como é o caso de Barreto ao relatar que um dia caminhava no centro de Chapecó,
quando foi confrontado por um brasileiro que o chamou de “[...] “macaco’, me chamando de
“haitiano de merda”, “volta no seu país aqui ninguém gosta de preto (BARRETO, 2015). ”
Os insultos mencionados ao haitiano estão atrelados a questão da cor e do racismo

3 (MINUSTAH) Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti

Página 784
que é entendido como “[...] uma recuperação cultural de um conjunto de comportamentos
agressivos, violentos e egoístas cuja finalidade é a estruturação e a sustentação de sistemas
de gestão dos recursos em termos racialmente monopolistas. ” (MOORE, 2007, p.284-285).
O acionamento do status e poder branco é sempre percebido pelos entrevistados haitianos.
Azevedo quando compara a cidade de Chapecó com Itajaí. Percebe que em Chapecó,
no ambiente de trabalho, os colegas brasileiros evitam conversar com ele, resumindo as
interações às necessárias as necessidades do trabalho:
Em Itajaí, eu trabalhava na construção, as pessoas eram muito abertas, a gente conversa
daí a gente sente que não tem uma diferença, mas aqui existe, você vê que tem uma
diferença, quando as pessoas falam com você, mas elas estão obrigatórias com você,
porque no trabalho você tem que falar, mas é por obrigação é assim que eu entendo
reservado. (AZEVEDO, 2015)

Essa relação de poder se expressa no fato dos brasileiros em Chapecó terem o privilégio
de regular as conversas, ou seja, a sociabilidade, limitando assim o contato e a integração entre
os grupos e colocando os haitianos na posição de outsiders, em um padrão muito parecido ao
encontrado por Elias e Scotson em Wilson Parva:
[...]o aspecto saliente de sua relação é eles [estabelecidos] estarem ligados de um
modo que confere a um recurso de poder muito maiores do que os dos outros
[outsiders] e permite que esse grupo barre o acesso dos membros do outro ao centro
dos recursos de poder e ao contato mais estreito com os seus próprios membros, com isso
regulando-os a uma posição de outsiders (SCOTSON, ELIAS, 2000, p.32)

Nesse caso, o recurso de poder que estava em jogo é o da sociabilidade e da integração


entre colegas de trabalho. Mas também há narrativas em que o recurso do poder está associado à
posição de destaque ou a cargos de trabalho:
[...]Fui procurar emprego, cheguei meu curriculum bonitinho, arrumadinho, e disse que
queria entregar e a menina disse “desculpa não tem vaga para limpeza” eu disse, mas
não quero limpeza quero caixa, tenho os critérios sei ler, escrever e tenho o ensino médio
completo. E a menina disse vou ver com a gerente e voltou dizendo que não tinha mais
vagas. Tinha um papel grande que precisava de 10 vagas. Nós haitianos não aceitamos
algumas coisas é triste, bem triste isso” (CLARICE, 2015)

Assim sendo, nessas circunstâncias aparecem os elementos de poder guiados pelo racismo.
A princípio a atendente julga que ela buscava uma vaga de baixa hierarquia em comparação com
a de caixa, em segundo lugar ela com o seu poder e privilégio barra a possibilidade da Clarice
entregar, o currículo, dizendo que não havia mais vagas.
Com base, nas desigualdades que os negros sofrem no Brasil, Guimarães (2003) propõe a
retomada do conceito de raça, não na perspectiva da genética ou como indicador de capacidades
superiores ou inferiores, mas sim na perspectiva da de evidenciar os privilégios brancos nas
oportunidades e disputas por espaços. Nessas várias situações, os negros sempre acabam saindo
em desvantagens devido aos significados atribuídos às suas características fenotípicas. Situações

Página 785
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

vivenciadas tanto por Clarice como por Cunha:


Eu fico muito decepcionado quando eu vim pra cá e fui procurar serviço, emprego
que não tinha... quando eu vi uma vaga administrativa eu pedi pra me cadastrar nessa
vaga e a moça falou que eu não tenho o perfil da vaga, e falei como que não tenho o
perfil da vaga? Eu sou estudante do curso de administração, ela respondeu “na verdade
não tem vagas para estrangeiros...” (CUNHA, 2015)

Assim o racismo e a branquitude são intrínsecos, pois ao mesmo tempo em que o racismo
inferioriza os negros, ele promove os brancos e reforça uma identidade grupal de superioridade.
É uma relação de causa e efeito que deixa o negro em uma situação de vulnerabilidade, de modo
simultâneo e estratégico garante os privilégios simbólicos e materiais dos brancos.
O oeste catarinense tem a marca da branquitude associada à colonização europeia, que
faz com que a população branca seja numericamente hegemônica na cidade. Contudo, além do
predomínio demográfico existe a subjetividade e identidade da branquitude, por meio da qual os
brasileiros se auto elegem superiores e melhores. Em entrevista realizada por Andreola (2015) com
um brasileiro, morador de Chapecó, este afirma a respeito de sua história que “os traços, o jeito do
povo europeu, povo guerreiro, batalhador, isso vem ficando, uma herança genética que fica, e a
gente carrega isso”. (ANDREOLA, 2015, p.48)
Os moradores locais que tendem a preservar a ideia de superioridade branca, de
ascendência europeia, acabam se distanciando dos imigrantes haitianos (as) de todas as formas
possível, seja barrando o acesso ao trabalho, na hostilidade e até mesmo nas situações cotidianas
como nos ônibus, na qual vários estudantes haitianos (as) relataram que ninguém senta ao lado
deles, que isso é um fato muito comum.
Os estudantes brasileiros reconhecem que a população do Oeste é massivamente branca
e que embora exista uma interdependência, principalmente nas funções laborais, os moradores
locais são resistentes à presença dos haitianos (as) na região, devido a ideia da ameaça da
qualidade de vida, um povo provido de qualidades, enquanto os outros Haitianos são o oposto.
Ideias expressas nas falas das estudantes brasileiras Gadú e Ivete:
A chegada de haitianos não é só em Chapecó, também do extremo Oeste, no caso eu
sou de Itapiranga, e lá no caso, também tem a agroindústria e também tem bastante
haitianos indo pra lá e senegaleses e também é essa questão: “estão roubando nossos
empregos”, “vem aqui faz um monte de filho pra ser sustentado pelo governo”, “eles não
pagam aluguel”, “não pagam nada”, só que não é essa a realidade, tipo não sabem os
motivos do porque eles vieram pra cá ou até sabem, “tá! E daí?” “Tão aqui roubando
nossos empregos” e até pessoas próximas da gente que… não é legal ficar ouvindo essas
coisas... (GADÚ, 2016)

Escutar isso da própria família as vezes é deprimente é… é difícil mudar a visão de alguém
que já está… “porque é um bando de preto, que vieram roubar os empregos…” (IVETE,
2016)

Os insultos nas relações cotidianas expressos nas falas das estudantes brasileiras
revelam os estigmas que os moradores locais utilizam contra os moradores haitianos (as). Essas

Página 786
características negativas são opostas às qualificações que os moradores atribuem as si por serem
brancos. As relações entre haitianos e brasileiros se configurarem de forma bastante hostil, com
maior evidencia nas relações de trabalho, conforme relato do estudante haitiano Andrade. Segundo
ele, foi agredido fisicamente por um brasileiro com um tapa, ao questionar o colega brasileiro,
este apenas riu, ele, então, avisou ao supervisor do setor. O colega brasileiro inicialmente negou
a acusação e, por fim, se desculpou, alegando ser brincadeira. No outro dia o fato se repetiu. O
colega brasileiro deu outro tapa no haitiano, após o haitiano comunicar novamente ao supervisor,
o colega brasileiro acabou recebendo uma advertência.
As relações mais profundas entre brasileiros e haitianos são esporádicas, a estudante
haitiana Clarice nos indica isso em sua percepção:
[...]o preconceito é bem forte, nessa região deve ser que é uma região branca né, de
pessoas brancas, mas a gente consegue enfrentar essas coisas, mesmo com tudo isso
acontecendo agente também encontra pessoas que apoia que ajuda que acolhem com
todo o carinho e isso ficou marcado pra mim. (CLARICE, 2015)

A estudante Clarice conjectura que o fato do preconceito ser forte possa estar vinculado a
predominância de brancos na cidade. E é nessa construção histórica que Chapecó foi crescendo
e se desenvolvendo associando a cidade aos valores da branquitude. A vinda de pessoas
haitianas para a cidade tem causado impacto para esses brasileiros socializados na perspectiva
da branquitude4. A branquitude da região também causa estranhamento aos haitianos que vieram
com expectativa de melhores condições de vida em relação ao trabalho e aos estudos, acreditando
que as dificuldades relacionadas a cor teriam pouco espaço em suas experiências no Brasil, pois:
[...]não se imagina que exista tanta discriminação racial nesse país, devido à presença
maciça de negros brasileiros em certas profissões do mundo dos espetáculos, na esfera
do lazer[...], embora o tamanho e a importância divirjam consideravelmente nos dois
países. (HANDRSON, 2010, p. 94).

Contrariando as expectativas prévias dos haitianos, as relações entre haitianos e brasileiros


em Chapecó são caracterizadas pela branquitude que deriva em situações de racismo e exclusões
permeadas pela raça. Fortes barreiras para a integração haitiana na cidade.

Conclusão

Durante o andamento da pesquisa procurou-se compreender as relações entre haitianos e


brasileiros em Chapecó. E essas relações especificam a natureza das relações de poder que são
traduzidos em termos de lugares raciais, manifesto por meio de estigmas, também experimentado
pela população negra no Brasil. E que, enquanto o racismo subalterniza e deixa em uma situação

4 [...]a branquitude começa a ser construída como um constructo ideológico de poder, em que os brancos
tomam sua identidade racial como norma e padrão, e dessa forma outros grupos aparecem ora como margem, ora
como desviantes, ora como inferiores.p.17”(SCHUCMAN, 2012)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de vulnerabilidade o negro, a branquitude colabora com o racismo, na medida em que privilegia o


branco com vantagens as custas da inferiorização do negro.

Referências
ANDREOLA, Neuri. Os brasileiros e os estrangeiros: as relações de sociabilidade entre o grupo de
brancos e o grupo de negros “em um bairro de Chapecó. Monografia em licenciatura em Ciências
Sociais, Universidade Federal da Fronteira Sul, 2015

BORDIGNON, Sandra. Inserção dos imigrantes haitianos nos contextos educativos escolares e
não escolares. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Comunitária da Região
de Chapecó, Chapecó, 2016.

DEBONA, Darci. No Oeste de SC, indústrias foram atrás dos imigrantes haitianos. Disponível em:
http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2015/05/no-oeste-de-scindustrias-foram-atras-
dos-imigrantes-haitianos-4768503.html>. Acesso em: 03 jan. 2017

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das relações de


poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, Zahar 2000.

GUIMARÃES, A. S. A. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e pesquisa, São Paulo,
v.29, n.1, p.93-107, jan./jun. 2003.

HANDERSON, Joseph. Vodu No Haiti – Candomblé No Brasil: Identidades Culturais E Sistemas


Religiosos Como Concepções De Mundo Afro-Latino-Americano. 2010. 183 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Ciências Sociais, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas Rs, 2010.

HANDERSON, J. Diáspora. As Dinâmicas da Mobilidade Haitiana no Brasil, No Suriname e Na


Guiana Francesa. Tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.

HASENBALG. Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Minas Gerais. ed. UFMG.
2005. 315p

MOORE, Carlos. Racismo & sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo.
Belo Horizonte: Mazza Edições. 2007, 320p.

NIEROTKA, Roseleia Lucia. Políticas de acesso e ações afirmativas na educação superior: a


experiência da universidade Federal da Fronteira Sul. Pós-graduação em Educação da Universidade
Federal da Fronteira Sul- UFFS, com título de mestre em educação, 2015

PETROLI, Francimar I. S. Um “Desejo de Modernidade” (Chapecó, 1931-1945). 2008.


171 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de História, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2008. Disponível em:<https//repositório.ufsc.br/xmlui/bitstream/
handle/123456789/91794/249012.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 02 dez. 2016.

SCHUCAMN, Lia. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder


na construção da branquitude paulistana. Tese de doutorado no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, 2012

Página 788
UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL (UFFS). Resolução n. 32/2013 – CONSUNI.
Institui o Programa de Acesso à Educação Superior da UFFS para estudantes haitianos – PROHAITI
e dispõe sobre os procedimentos para operacionalização das atividades do programa. Sala das
Sessões do Conselho Universitário, 11a Sessão Ordinária, Chapecó, SC, 12 dez. 2013i

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

PROJETO OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-


RACIAIS DO NEABUDESC: UMA ANÁLISE ACERCA DA BRANQUITUDE E
DA POLÍTICA DE AQUISIÇÃO DE ACERVO BIBLIOGRÁFICO DA ESCOLA
DE EDUCAÇÃO BÁSICA JÚLIO DA COSTA NEVES.

LUIZ, Mariana Probst (UDESC)


probstmariana@gmail.com
AMANDIO, Tamna. (UDESC)
tamna.neab@gmail.com
FONTES, Sandra Regina. (UDESC)
sandraf.biblio@gmail.com

Resumo

Em ação desenvolvida no âmbito do Projeto de Extensão Universitária Observatório de Educação das


Relações Étnico Raciais, vinculado ao Programa Memorial Antonieta de Barros do Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina – NEAB/UDESC, sob coordenação do
Professor Paulino Cardoso, foi realizado o levantamento no acervo da biblioteca da Escola de Educação
Básica Júlio da Costa Neves, instituição pública estadual de Santa Catarina. Compreendendo a biblioteca
como um instrumento de disseminação de informações, que podem contribuir para a implementação
da Lei Federal 10.639/03. Os critérios estabelecidos para o referido levantamento bibliográfico foram:
Abordagem de temas relacionados às culturas Afro-Brasileiras, Africanas e Indígenas; Autoras/es e/
ou protagonistas negras/os na literatura infanto-juvenil. Foram selecionados livros de literatura infantil,
infanto-juvenil e clássicos, livros de apoio às/aos professoras/es e demais publicações relacionadas à
questão étnico-racial.

Palavras-Chave: Lei 10.639/03; Biblioteca Escolar; Branquitude; Relações Étnico-Raciais.

Página 790
Introdução

O Projeto Observatório de Educação das Relações Étnico-Raciais é um projeto de extensão


acadêmica vinculado ao Programa Memorial Antonieta de Barros desenvolvido no âmbito do
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina – NEAB/UDESC,
sob coordenação do Professor Doutor Paulino de Jesus Francisco Cardoso.
Tem como intuito auxiliar a fiscalização da implementação da Lei Federal 10.639/03, que
alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN, instituindo a obrigatoriedade
do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana nas instituições de educação básica do
país.
Por meio de suporte técnico e pedagógico aos/às gestores/as responsáveis pelas unidades
de ensino ou redes públicas de ensino do Estado de Santa Catarina, o projeto desenvolve uma
série de ações nas escolas com a finalidade de criar programas de diversidade étnico-racial na
educação, que contemple estudos, pesquisa, fortalecimento institucional, aquisição e produção
de material didático e formação de professores.
São ações do Projeto: aplicação de Questionário Diagnóstico com gestoras/es,
professoras/es e bibliotecários e/ou responsáveis pela biblioteca da escola na ausência destes,
a fim de observar de que forma a legislação vem sendo implementada; formação com as/os
gestoras/os; análise da documentação da instituição (Projeto Político Pedagógico, Planejamentos
Anuais e Planos de Ensino); Elaboração de documento orientador para a implementação da Lei.
A unidade de ensino apresentada neste artigo é a Escola de Educação Básica Júlio da
Costa Neves, pertencente à rede estadual de ensino de Santa Catarina, situada no bairro Costeira
em Florianópolis-SC. A escola oferece Ensino Fundamental no período diurno, Ensino Médio nos
períodos diurno e noturno e cede espaço para turmas de Educação de Jovens e Adultos - EJA1, no
período noturno, atendendo aproximadamente 850 estudantes.
Iniciamos os trabalhos de suporte técnico e pedagógico à escola após acordo de cooperação
firmado no segundo semestre de 2016. Realizamos um diagnóstico inicial através da aplicação de
questionário, para conhecer o entendimento dos/as professores/as, gestoras e bibliotecária sobre
o conteúdo da Lei e sua importância ou não na escola. Os questionários foram encaminhados via
googledocs para os/as 54 professores/as que atendem ensino fundamental e médio e obtivemos
20 questionários respondidos.
Uma das primeiras ações do referido Projeto é conhecer o acervo da biblioteca, a
quantidade de livros na temática, como são adquiridos e como funciona a circulação deste material.
Em conversa com a direção da escola, fomos informadas que a única funcionária da biblioteca
é uma professora readaptada por problemas de saúde que a impossibilitam de ter contato com
estudantes.

1 Para efeitos deste trabalho, é importante salientar que as turmas de Educação de Jovens e Adultos tem gestão
específica, não compondo o quadro analisado neste artigo.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Durante realização do diagnóstico inicial observamos que, no questionário aplicado à


responsável pela biblioteca escolar, haviam sido elencados 52 produções relacionadas à temática
da diversidade racial. Consideramos baixa a quantidade de produções relacionadas pela funcionária
da biblioteca, pois sabemos que o Programa Nacional Biblioteca na Escola- PNBE2, responsável
por encaminhar boa parte dos acervos escolares, têm em sua política de seleção a preocupação
com a Educação das Relações Étnico-Raciais e encaminha diversas obras para compor estes
acervos. Percebemos que seria necessária uma visita à unidade para que pudéssemos ter uma
real dimensão do que a biblioteca escolar dispõe para dar suporte pedagógico às/aos professoras/
es no desenvolvimento das atividades pedagógicas.
Esta visita à biblioteca escolar, suscitou-nos uma série de questionamentos e reflexões e
percebemos que a organização daquele espaço nos falava muito sobre as relações de poder que
moldaram a sociedade brasileira3 e outras sociedades que passaram pelo processo de colonização,
sobre a colonialidade4, bem como revelava concepções acerca da ciência e da produção de
conhecimentos válidos. De acordo com Schucman (2012),

[…] para se entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem


as estruturas de poder concretas em que as desigualdades raciais se ancoram. Por isso,
é necessário entender as formas de poder da branquitude, onde ela realmente produz
efeitos e materialidades. (2012, p. 23)

Nosso olhar voltou-se então a uma tentativa de compreender de que forma a branquitude
impacta na organização do espaço escolar, mais especificamente na biblioteca escolar, que é o
foco deste trabalho. Para fim de atingir nossos objetivos, utilizamos os questionários aplicados no
diagnóstico inicial, os registros realizados durante o levantamento do acervo da biblioteca, bem
como conversa com a diretora da unidade escolar.

O Contexto: A Biblioteca Escolar e Lei 10.639/03

A biblioteca escolar possui uma importante missão na sociedade, atuando como mediadora

2 O Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) é regulamentado pela Resolução nº 07, de 20 de março
de 2009 do MEC/FNDE e se compromete com a democratização do acesso às fontes de informação; com o fomento à
leitura, com a formação de alunos e professores leitores, bem como com a atualização das/os profissionais da educação.
De acordo com o Art. 2º desta resolução através do PNBE “Serão distribuídos às escolas acervos compostos por obras de
literatura, de referência, de pesquisa e de outros materiais relativos ao currículo nas áreas de conhecimento da educação
básica, com vista: I – à democratização do acesso às fontes de informação; II – ao fomento à leitura e à formação de
alunos e professores leitores; e III – ao apoio à atualização e ao desenvolvimento profissional do professor.”. Porém há
uma crescente preocupação com a possibilidade de encerramento deste Programa no contexto político atual.
3 Para aprofundar esta discussão sugerimos os trabalhos de Aníbal Quijano (2005); Boaventura Souza Santos e
Maria Paula Menezes (2009).
4 colonialismo pressupõe uma relação política e econômica na qual um grupo está no poder de outro povo. A
colonialidade, por sua vez, refere-se a um padrão de poder que emerge do colonialismo moderno e se relaciona à forma
como ―o trabalho, o conhecimento, a autoridade, as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado
capitalista mundial e da ideia de raça‖ (TORRES, 2007, p. 131 apud CANDAU e OLIVEIRA, 2010, p. 18).

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da informação e difusora de saberes. Para exercer seu papel como mediadora “[...] organiza a
utilização dos livros, orienta a leitura dos alunos, coopera com a educação e com o desenvolvimento
cultural da comunidade escolar e dá suporte ao currículo da escola” (VÁLIO 1990, p. 20).
Segundo Cardoso F. (2011), historicamente a política de constituição dos acervos
das bibliotecas no Brasil é marcada pela preservação da escravidão do afrodescendente e a
subserviência da população indígena, desta forma referenciando a identidade destes grupos e
o ocultamento de suas memórias. As bibliotecas, como a escola e os meios de comunicação de
massa por muito tempo voltaram-se apenas para as culturas europeias marginalizando as demais.
Por conta dos movimentos sociais, em especial o Movimento Negro, nos últimos trinta anos,
principalmente na última década, produziu-se uma crítica desta perspectiva racialmente orientada
e, igualmente, por meio da institucionalização do que se convencionou chamar de Educação das
Relações Étnico-Raciais, orientador das políticas educacionais brasileiras.
Mesmo com o conjunto de ações desenvolvidas historicamente, foi a sanção da Lei Federal
10.639 de 2003 que impulsionou a temática, fazendo com que as políticas previstas passassem
a fazer parte da Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (ROMÃO, 2014).
Com a Lei 10.639/03, tornou-se obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-
Brasileira nas escolas. Porém, em 2008, a lei foi alterada pela Lei Federal 11.645/08 para acrescer
a obrigatoriedade do estudo da história e cultura das populações indígenas.
Outro resultado das lutas do movimento negro por educação, e relacionado à Lei 10.639/03
estão as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004), sua questão central envolve
o currículo, orientando o sistema na construção de novos conteúdos sobre os africanos e seus
descendentes brasileiro (ROMÃO, 2014).
Sendo assim, destacamos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004),
a importância da utilização da biblioteca escolar como espaço para trabalhar efetivamente a
educação das relações étnico-raciais, onde se destaca:

O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação das relações étnico-


raciais [...] se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades
de ensino, como conteúdo de disciplinas, particularmente, Educação Artística, Literatura
e História do Brasil, sem prejuízo das demais, em atividades curriculares ou não, trabalhos
em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala
de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de esportes e outros
ambientes escolares. (BRASIL, 2005, p. 21, grifo nosso)

O sistema escolar e especificamente suas bibliotecas abrangem um público diverso, e as


pessoas nas quais irão usufruir das práticas de ensino e acervo são oriundas de diferentes povos
e culturas.
Segundo Mattos (2011) o papel da biblioteca escolar no contexto da educação das relações
étnico-raciais pode contribuir com a promoção de debates e eventos na escola, como também na

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

adoção de acervos informacionais da área. Porém sem bibliotecários presentes nestes espaços as
formação de coleções e o tratamento da informação são instituídos sem discussão e sem critérios
adequados.
No mesmo raciocínio, a pesquisadora Graziela dos Santos Lima (2012) aponta que os
serviços que podem ser oferecidos pela biblioteca escolar acabam sendo dificultados ainda mais
pela falta de estrutura e ausência de profissionais habilitados. Especialmente nas bibliotecas
escolares da Rede Estadual de Santa Catarina, uma das unidades mais ricas da federação,
não possua um único bibliotecário/a nas suas mais de mil e quinhentas escolas, por conta da
inexistência do cargo de bibliotecário escolar.
Para o pleno desenvolvimento de um trabalho na biblioteca comprometido com a educação
das relações étnico-raciais, a biblioteca escolar precisará possuir um acervo variado, que contemple
a diversidade étnica de seus usuários. Importante também a presença de bibliotecários, assim
como de outros atores educacionais dispostos a superar a barreira do preconceito, buscando
informações e formação a respeito podendo promover ações culturais sendo capaz de impulsionar
e criar mecanismos de oposição ao sistema vigente, favorecendo o resgate da memória e cidadania
para a população (MATTOS, 2011).
As Leis nº 10.639/03 e 11.645/08 , assim como, as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação das Relações Étnico-raciais e Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana
do Conselho Nacional de Educação, “sinalizam para a institucionalização de uma política de
diversidade cultural na Educação e servem de estímulo para repensar os espaços escolares,
particularmente, a biblioteca escolar.” (LIMA, 2012, p.11).
Neste sentido, reportando-nos aos dizeres de Gomes (2016) sobre o acesso a informação
em nosso país:
Historicamente a leitura tem sido um instrumento de poder e de exclusão social: primeiro
nas mãos da Igreja, que garantia para si, por meio do controle dos textos sagrados, o
controle da palavra divina; em seguida, pelos governos aristocráticos e pelos poderes
políticos e, atualmente, por interesses econômicos que dela tentam se beneficiar (
GOMES, 2016, p. 742-743)

Quando analisamos ao longo da história, os espaços educacionais e informacionais de


nosso país, temos o entendimento que grande parte da população continua sendo excluída seja da
escola ou dos espaços das bibliotecas por exemplo. Grupos historicamente marginalizados como
índios, afrodescendentes, ciganos, homossexuais, entre outros vivem numa sociedade injusta,
intolerante, impedidos em sua maioria de usufruir de bens econômicos e sociais aumentando os
índices de mortalidade e analfabetismo (AQUINO, 2010).

Biblioteca Escolar e branquitude

Conforme apontado anteriormente, uma das ações do Projeto foi o levantamento do


acervo bibliográfico da biblioteca da unidade de ensino. Buscamos com essa atividade identificar

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sua adequação às atuais normas legais, no que diz respeito a assegurar a representação da
cultura e experiência africana e indígena, bem como, avaliar se o acervo bibliográfico da Unidade
de Ensino oferece suporte aos educadores/as nas disciplinas.
Esta tarefa que ficou por conta de duas pesquisadoras vinculadas ao NEAB/UDESC,
revelou que havia muita informação para além do acervo em si e percebemos que a forma
como o material disponível estava organizado nos dava indicativos sobre como a exclusão
das temáticas afrodescendentes e indígenas são naturalizadas na escola e o quanto o branco
assume o lugar da “norma”. De acordo com Liv Sovik, “A exclusão racial no Brasil fala em duas
vozes: o valor da branquidade, vigente e silencioso, e a noção que cor e raça são de importância
relativa, em uma população não branca, pronunciada em alto e bom som” (SOVIK, 2004, p. 372).
O acervo da biblioteca analisada é composto de cerca de 5 mil exemplares das diversas
disciplinas do currículo escolar.
Durante a análise do acervo, foram encontrados:
* 59 títulos de livros paradidáticos abordando a temática afro-brasileira e africana;
*06 títulos de livros paradidáticos abordando a temática indígena;
* 52 títulos de livros de literatura infantil e infanto-juvenil contemplando a temática afro-
brasileira e africana;
* 09 títulos de livros de literatura infantil e infanto-juvenil contemplando a temática
indígena.
No total, encontramos 126 títulos e observando que algumas obras do acervo possuem
dois ou mais exemplares, chegamos ao total de 315 livros.
Analisando a quantidade total do acervo, dos 5 mil exemplares disponíveis, 4.685 livros
contemplavam questões referentes a branquitude e apenas 126 títulos abordando as temáticas
africanas, afrodescendentes e indígenas. Isso nos revela que 93% do acervo bibliográfico
desta unidade escolar é composta por representações de brancos. Deparamo-nos com uma
composição majoritariamente eurocêntrica do acervo.
Para além de quantificar, observamos que os materiais encontrados, quando tratavam
das temáticas Africanas, Afro-brasileiras ou indígenas, estavam dispersos nas prateleiras da
biblioteca de forma quase invisível ou guardados dentro dos armários. Estes materiais nunca
estavam evidenciados, em contrapartida os materiais de cunho científico e literário de autores
brancos eram facilmente encontrados. Concordamos com a autora Liv Sovik quando nos propõe
que
[...] O interesse em analisar a branquidade não é de traçar o perfil de um grupo populacional
até então ignorado, mas de entender como, há tanto tempo, não se prestou atenção aos
valores que o definem. O estudo da branquidade pode esclarecer as formas mais cordiais,
menos explícitas do racismo brasileiro, as maneiras de suavizar os contornos de categorias
raciais enquanto se mantém as portas fechadas para afrodescendentes. (SOVIK, 2004, p.
384)

Os estudos críticos de branquitude nos dão alguns indicativos sobre como a manutenção

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

de privilégios e de lugares de poder de determinados grupos, em sociedades racializadas, se


perpetuam. De acordo com Schucman (2014) a branquitude
[...] é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram
sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e
simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm
e são preservados na contemporaneidade. (SCHUCMAN, 2014, p. 84, grifo das autoras).

Ao analisarmos o questionário aplicado à responsável pela biblioteca escolar, quando


questionada sobre a utilização da biblioteca, aponta que as principais buscas se dão “em datas
comemorativas, como nascimento de Zumbi dos Palmares, Revolta da Chibata, Nascimento
de Cruz e Souza, etc.”. Em conversa com a diretora da Unidade de Ensino, foi nos repassado
que na reunião de planejamento realizada no início do ano letivo, os/as professores/as haviam
solicitado que fossem comprados livros para a biblioteca que abordassem a temática. Quando
questionamos quais foram as sugestões de livros dadas pelos/as professores/as, a mesma nos
relatou que foi solicitado o livro “Menina bonita do laço de fita” da autora Ana Maria Machado
(1986), um livro de divide opiniões em relação a seu uso no trabalho pedagógico com crianças.
Analisando a questão respondida pelos professores da unidade sobre as fontes de
informações relacionadas com a temática, percebe-se que os recursos utilizados pelos/as
professores/as tendem a ser utilizados de maneira problemática, visto que 77,3% dos/as docentes
apesar de conhecerem materiais que abordam a temática, optam pela utilização do material
didático, que muitas vezes não são neutros, e sim demarcados pelo eurocentrismo contribuindo
para a perpetuação e para a manutenção dos privilégios da branquitude, além dos estereótipos e/
ou sensos comuns acerca da história da população negra.
Na questão referente à abordagem da temática Africana e Afro-Brasileira em suas disciplinas,
35% dos/as docentes não especificam como trabalham. A porcentagem mais expressiva que
explicita em que momentos são trabalhados aparece em projetos pedagógicos, História do Brasil
Colonial e Imperial e em eventos culturais. Essa abordagem é problemática, pois se percebe que a
temática é trabalhada ou na disciplina de História onde os conteúdos provenientes dos materiais
didáticos abordam quase exclusivamente o período da escravidão, ou em eventos culturais.
Evidencia-se nas respostas dadas pelos/as docentes nesta questão que,
além de a Lei não ser cumprida de maneira transversal em todas as disciplinas,
os eventos culturais aparecem descontextualizados dos conteúdos aprendidos
pelos/as estudantes, muitas vezes folclorizando e entendendo a História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira enquanto conhecimento não intelectualizado.
A reflexão de Ruth Frankenberg trazida por Liv Sovik (2004), pode nos auxiliar a
compreender como a branquitude influencia no cotidiano escolar, estabelecendo lugares de poder,
principalmente no que diz respeito às abordagens utilizadas em sala de aula. A branquitude é para
esta autora
“[...] um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo; uma
posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um
lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo”

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(FRANKENBERG, 2002, p. 71 APUD SOVIK, 2004, P. 365)

Quando questionados se as reuniões realizadas na escola já priorizam a discussão da


temática da Educação das Relações Étnico-Raciais para o ensino de História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira, 77% dos docentes afirmam que sim, porém 72,7% não participam da seleção de
materiais da biblioteca, demonstrando que mesmo que a temática seja abordada na pauta das
reuniões entre professores/as e a gestão, os recursos disponibilizados pela escola que contemplam
a temática, não são utilizados como instrumento de pesquisa.
Essa afirmação é evidenciada, quando 40,9% dos professores/as utilizam
apenas o material didático como fonte de conhecimento acerca da temática
Africana e Afro-Brasileira. Encontramos também 9,1% de professores que assumem
não abordar a temática em sala de aula., 22,7% de professores que não conhece
fontes de informação para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira.
Considerando que todos os professores da unidade de ensino apontam como importante,
muito importante ou essencial o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, mas que
ainda temos esse número significativo de professores que não abordam a temática ou que não
conhecem fontes de informação, concordamos com Lourenço Cardoso (2014) quando propõe
o conceito de branquitude crítica. Para este autor, existem duas manifestações de branquitude: a
branquitude crítica, que tem consciência de que o racismo existe e o repudia publicamente, porém
não age para a modificação deste cenário; e a branquitude acrítica, que defende publicamente a
superioridade racial branca.
Consideramos ainda importante salientar a falta de reflexão sobre o lugar que é ocupado
pelo branco nas relações raciais concordando com os apontamentos de Maria Aparecida Bento
no livro Psicologia Social do Racismo, quando nos propõe que “A falta de reflexão sobre o papel
do branco nas desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro,
pois só ele é estudado, dissecado, problematizado” (BENTO, 2014, p. 26).

Considerações Finais

Iniciamos nossas considerações finais destacando o descaso com que a biblioteca escolar
na rede pública estadual de Santa Catarina é tratada. A escola tem que contar com a boa vontade
da direção e até mesmo professores que em seus horários vagos, dispõe-se a abrir a biblioteca
para que esta possa ser utilizada, pois a professora readaptada que é responsável pelo espaço está
na escola apenas 3 dias na semana. Verificamos que durante a permanência das pesquisadoras
na biblioteca os olhares atentos das crianças que passavam pelos corredores e nos perguntavam
se poderiam entrar também, visto que geralmente naquele horário a biblioteca estaria fechada.
Em relação a não atratividade para os/as estudantes, dos livros que abordam a temática
africana e afro-brasileira a dois aspectos: O primeiro pela ausência de um documento orientador

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

à bibliotecária, e o segundo, pelo silenciamento e naturalização da branquitude enquanto local


de privilégio e portanto, de universalidade das produções de conhecimento existentes no espaço
escolar. De acordo com Maria Aparecida Silva Bento (2014)
O silêncio, a omissão, a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades
raciais no Brasil têm um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vem
acompanhado de um pesado investimento na colocação desse grupo como grupo de
referência da condição humana (BENTO, 2014, p. 30).

A ausência de um documento orientador que auxilie a profissional da biblioteca,


dificulta a democratização ao acesso a esses materiais, de forma que os livros não são
conhecidos pelos/as professores/as e muito menos pelos/as alunos/as. Essa realidade
sem dúvidas, impacta na formação dos/as alunos/as que são instrumentalizados/
as por uma educação marcada por um cientificismo excludente e perpetuador
de estereótipos ligados a história das populações de origem africana e indígena.
O acesso aos livros escolares dispostos na biblioteca, se relaciona diretamente com
a utilização de materiais de caráter eurocêntrico que privilegiam a produção de conhecimento
advinda da Europa em detrimento de outras produções. É muito mais prático na rotina escolar,
serem utilizados os materiais acessíveis de maneira rápida aos/as professores/as, materiais estes,
que por se tratarem majoritariamente de produções eurocêntricas, não contemplam de forma
correta a temática obrigatória por Lei.
A escolha das temáticas abordadas nos livros didáticos que chegam aos/as alunos/as
é marcada por intencionalidades políticas e ideológicas, as quais são fruto da divergência de
interesses provenientes da sociedade estruturalmente racista em que vivemos.
É evidente a expressão da branquitude no espaço da biblioteca que atua como
recorte da sociedade que privilegia os saberes marcados pela colonialidade e contribui
por meio da escola, na manutenção do racismo e das desigualdades que nele se
alicerçam. O fato de os livros que abordam temáticas que buscam um equilíbrio entre as
histórias estarem ou encaixotados ou perdidos na biblioteca, evidencia a necessidade
de se discutir os privilégios da branquitude, bem como formas de superá-los.

REFERÊNCIAS

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Página 800
A PSICOLOGIA ENQUANTO INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DO
RACISMO NO INÍCIO DO SÉCULO XX.

CRUZ, Margoth Mandes da. (UFPR)


margothcz@gmail.com
SILVA, Graziela Lucchesi Rosa da (UFPR)
grazielaluc@hotmail.com

Resumo

O presente trabalho, produto parcial de pesquisa em andamento, objetiva analisar, a partir de


investigação historiográfica da Psicologia, sob os fundamentos do materialismo-histórico-dialético,
o papel da Psicologia na manutenção do racismo no final do século XIX e início do século XX, com
foco nos estudos produzidos pelo eugenismo. Segundo a literatura historiográfica, foi na transição do
século XIX ao século XX que se iniciaram estudos psicológicos de caráter científico correspondentes
à demanda de reconhecer e avaliar a população brasileira para que se investigasse possibilidades de
modernização do país almejado pós período abolicionista. Este Projeto de Nação foi reconhecidamente
institucionalizado, no período em que predominaram as concepções higienistas e eugenistas, momento
notoriamente marcado pelos estudos psicológicos derivados da Medicina, Educação e Direto, os
quais contribuíram, dentre outros fatores, na elaboração e aplicação de técnicas psicométricas. Tais
estudos praticados com fim de controle social foram propulsores para o cientificismo da Psicologia e
sua autonomização enquanto ciência e profissão. Ante o exposto, podem-se identificar os estudos
raciais nesses processos, na manutenção do racismo da época e o modo pelo qual estes estudos
contribuíram para o trajeto sucessor da Psicologia. Para tanto, foi realizado levantamento histórico sobre
o lugar do negro pós-abolição e os estudos raciais, permeado pelo movimento eugênico e pelo início da
democracia racial, articulado com cenário político-econômico; posteriormente, elaborou-se uma revisão
dos estudos promovidos pelos principais pesquisadores historiográficos que examinam a construção
da Psicologia no Brasil, realizando um recorte sobre seu papel na atuação das ciências e perspectivas
raciais. Os resultados apontam que dentre as produções de estudos psicológicos da época houve uma
demanda específica para o controle das pessoas negras, legitimando discursos raciais por meio do
caráter científico.

Palavras-chave: Psicologia Racial. Racismo. Historiografia. Eugenia.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

A presente proposta de estudo integra uma pesquisa de monografia que objetiva analisar, a
partir de investigação de caráter historiográfico, e sob os fundamentos do materialismo histórico-
dialético, o papel da Psicologia na manutenção do racismo no início do século XX, com foco nos
estudos produzidos durante o período eugenista.
A Psicologia nasceu dentro de contextos históricos perpassados por interesses político-
econômicos. No período eugenista os estudos psicológicos produzidos tiveram como um dos
principais objetos a saúde mental, e dentre os públicos que demandou compreensão estavam
as pessoas negras. Deste modo, aponta-se que o discurso científico neste período serviu de
instrumento para disseminação de interesses econômicos e políticos, que trouxe consequências
também para as configurações raciais e ao racismo hegemônico. A hipótese é de que este
movimento contribuiu com a naturalização de discursos racistas ao legitimar tais discursos
como ciência, principalmente pelo pressuposto biológico-causal. Mediante esta especificidade
pretende-se analisar o papel dos estudos psicológicos na lógica racial que foi corroborada pelo
cientificismo da eugenia. Com isso, formulou-se a seguinte questão norteadora: “Qual o papel dos
estudos psicológicos na manutenção do racismo no início do século XX?”.
Para tal, fez-se necessário contextualizar o processo histórico das configurações raciais no
período delimitado, bem como seus impactos na dinâmica social. Assim como, identificar a relação
entre as concepções raciais e a produção de saberes psicológicos especificamente no processo
de cientificismo.
A pesquisa se fundamenta no método materialista histórico-dialético, pois é por meio
do levantamento do objeto real, de sua materialidade histórica que se pode investigar qual o
papel desta ciência dentro da manutenção do racismo naquela época, assim como os impactos
do discurso científico sobre o objeto negro naquele período. Sendo que tais resultados podem
contribuir para a compreensão da historicidade e transitoriedade da Psicologia, auxiliando para a
produção de conhecimento em relação à temática racial.

1 Relação entre racismo e saúde mental: Historização

Nas primeiras décadas da República, durante o fim do século XIX e início do século XX,
houve uma necessidade de modernizar a nação, por meio do Projeto de Nação. O propósito
econômico e político de modernizar e nacionalizar a identidade do povo brasileiro estava atrelada
a noção de que haviam perfis de pessoas que atrasavam este propósito e degenerava os demais.
Bem como, estes perfis precisariam ser eliminados gradativamente. Concomitante a isto a nação
poderia atingir um caminho evolutivo. De acordo com Munanga (2004) para a constituição do Brasil
como uma nação e de uma identidade nacional, era requerida por parte influente da sociedade
que a composição racial de negro fosse solucionada. Para tanto, foram utilizadas diversos meios e

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espaços para que os objetivos sociais, políticos e econômicos fossem atingidos em larga escala e
pouco tempo.
Ao encontro desta demanda, teorias eugenistas disseminadas no contexto Europeu
estavam sendo importadas para o Brasil. A Eugenia, ou “melhoramento da raça humana”, é uma
ciência que foi criada pelo inglês Francis Galton (1822-1911). Sua teoria consiste em diretrizes
para estudos de manipulação da hereditariedade. A intervenção na evolução humana poderia
extinguir “deficiências e degenerações” e construir um mundo ideal evoluído que não houvesse
doença, crime, loucura, entre outras degenerações. Dentre as descobertas, Galton formulou
uma classificação das diferenças de raças, de forma hierarquizada do mais “primitivo” ao mais
“evoluído”, no qual brancos estariam no topo desta pirâmide (MASIERO, 2005).
As teorias eugenistas trouxe um entendimento de que a partir do ideário de branqueamento
seria construído uma nação mais evoluída; devido às especificidades únicas do contexto histórico
e social do país, como a miscigenação racial. Assim, grandes organizações e eventos sobre
projetos eugênicos foram construídos com o objetivo de adaptá-los e estruturá-los ao contexto
brasileiro, a fim de dar início a sua aplicação, bem como sua manutenção. Eventos que por meio
de intersecções dos estudos raciais com outras áreas de conhecimento trataram os assuntos
com maior abrangência. Nesses encontros se discutiam, por exemplo, o controle do nascimento, a
educação eugênica, a mistura racial, a degeneração da raça, o alcoolismo, as taras, etc.
Contudo, durante a implantação, foi-se ultrapassando o modelo profilático e ganhando
caráter preventivo. Foram desenvolvidas ações higienistas sistemáticas com objetivo de
estabelecer programas de adestramento de conduta, para que fosse prevenido o processo
degenerativo (COSTA, 1980; WEYLER, 2006). De acordo com Weyler (2006), é durante a referida
conjuntura estabelecida na época que o discurso psiquiátrico preventivo surge como uma “nova
ciência” e ganha impulso por se apresentar como projeto político de evolução racial da nação.
Neste movimento que se apresentava os primeiros discursos e teses com base nas teorias raciais.
Nestes compreendia-se que o papel e os impactos da degeneração da população eram devido
principalmente a presença dos negros e cruzamento dos mesmos, corroborando o discurso de
projeto de branqueamento em ascensão.
Deste modo, durante as décadas de ascensão do pensamento higienista e eugenista foram
efervescentes a discussão de uma política de branqueamento por meio do discurso de inferiorização
de todos não europeus, em especial aos negros. Com as discussões sobre configurações de
miscigenação, os discursos positivos à política foi trazendo a tona novamente a noção de harmonia
e conciliação das diferenças, um caminho de consenso de que seria necessário tempo para
branquear a população e que durante esta transição este discurso deveria ser aceito; não poderia
haver discursos racistas e discriminatórios, para assim a sociedade se manter pacífica. O objetivo
era que o mestiço se tornasse o símbolo da identidade nacional, pensamento que passou a ser
dominante na época e nos anos que sucederam (GUIMARÃES, 2002).
O discurso da democracia racial tornou-se fortemente ideológico e disseminado a partir de
1930, estudos foram produzidos em largas escalas pela academia. Ganhando destaque o sociólogo

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

e polímata Gilberto Freire - reconhecido como um dos precursores da noção de democracia racial
- com sua obra “Casa-Grande e Senzala”, de 1933. Restritos ao culturalismo, os negros ganharam
e incorporaram com legitimidade mais este nicho de estereótipo que enaltece “características” até
um ponto, mas que invisibiliza e nega diferenças de outro, como a intelectualidade e acesso aos
bens. Respaldando no imaginário social de que as questões raciais estão submetidas às questões
sociais, logo seria responsabilidade individual dos negros alcançarem espaço, e não uma lógica
provida de um histórico e contexto.

2 A construção da Psicologia e seu papel na atuação das ciências e perspectivas raciais


no período eugenista.

Atrelado ao Projeto de Nação, a produção de conhecimento se tornou símbolo de


importância e de investimento. Uma nação em desenvolvimento necessitava de sua própria
produção de conhecimento, de acordo com as demandas nacionais. Deste modo, a expansão das
instituições educacionais e o início do ensino superior no Brasil foram potencializados pelo viés
cientificista e seu discurso iluminista.
De acordo com Santos (2015), o processo de cientificismo no país ganhou mais força
devido aos êxitos dos métodos aplicados a ciências naturais. A aplicação de uma perspectiva
científica por meio dos métodos das Ciências Naturais passou a ser o modo de estudo de todos
os fenômenos da realidade, inclusive do próprio homem, que se tornou um dos objetos passíveis
de análise por meio de técnicas e resultados. Ao considerarmos que a elite intelectual tem também
a função de servir como ferramenta de controle social, a configuração do método das ciências
naturais poderia ser validada também nos estudos de fenômenos sociais, ganhando o status de
segurança e legitimidade ao responder de forma racionalista tais questionamentos.
Este movimento influenciou o processo de institucionalização dos pensamentos psicológicos
que nos países europeus e nos Estados Unidos ganhavam status de psicologia científica. Como
o autor aponta (2015, p. 28), “as reflexões psicológicas que antes eram fundamentalmente de
interesse da filosofia, da religião e da moral, passam a ser pensadas a partir de uma base material,
fisiológica. A medicina, em especial, se dedica a estas investigações”. Com isto, as demandas
sociais de modernização ao ser estudado pelo campo científico dos saberes psicológicos e por
meio dos seus métodos de produzir conhecimento, afirmaram uma legitimidade que era requerida
e se distanciaram cada vez mais dos conceitos teológicos e outros não “comprováveis”. Antunes
(2004) aponta a Psicometria como uma das práticas especificamente psicológicas compostas por
um corpo de técnicas de medição quantitativa, considerado pela autora um grande responsável
pela divulgação do ensino da psicologia no Brasil.  
É com esta entre outras bases que a psicologia e a psicopatologia, submetidas à Medicina,
se desenvolveram como inovadoras em relação à tradição cultural anterior - centrada na teologia.
Deste modo, “os distúrbios psíquicos, que vêm a depender do funcionamento do organismo, podem

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ser conhecidos causalmente, prevenidos e tratados, modificando as variáveis determinantes,
através de remédios físicos e normas higiênicas” (MASSIMI, 1900, p. 25).
Este período de transição entre os saberes teológicos para filosóficos e posteriormente para
os ditos científicos é marcado por diversas substituições da compreensão de homem. Tratados
tradicionais de teologia moral e edificação religiosa quando elaborado por médicos passaram a
categoria de tratados de higiene. Os vícios morais passaram a ser interpretados como doenças
orgânicas; as categorias éticas anteriormente de culpa e castigo, deram nomes de “infração” e
“distúrbio”; a punição para o pecado foi transformada em “castigo da natureza”; as normas morais
propagadas se modificaram para as regras gerais de higiene; e a finalidade de salvação perde o
lugar para uma busca da boa regulação ou equilíbrio da “máquina corporal” segundo as ordens
estabelecidas pelo sistema de natureza (MASSIMI, 1900). Este movimento foi sendo legitimado
por meio dos métodos compostos por:
técnicas psicométricas na avaliação e classificação das qualidades comportamentais
e intelectuais dos diferentes grupos constituintes da população brasileira. A partir
destas apurações, a ciência psicológica ofereceu dados que supostamente provariam
a inferioridade mental dos negros e mestiços. Logo, deduziu-se que as manifestações
culturais ligadas a estes grupos também expressavam valores degenerados (SANTOS,
2015, p.43).

Em suma maioria, os discursos e teorias raciais que referenciava a inferioridade dos negros
em relação aos brancos, fazem parte de uma ampla discussão a nível político-social-econômico
sobre o ideário de branqueamento do Brasil. Estes discursos e teorias raciais eram produzidos em
formato de estudos apresentando suposta base científica e em consequência disto, legitimando
tais discursos. Em tempo se tornava um consenso de que o branqueamento da população, assim
como a ausência de negros, andaria junto com o desenvolvimento de uma nação evoluída. Com
destaque nas produções de Raimundo Nina Rodrigues e Oliveira Vianna.
Os resultados confirmaram uma suposta hierarquia de degeneração na qual o branco estaria
no topo da evolução e o negro em posição contrária, necessitando intervenção e sua eliminação
de forma preventiva. Uma repercussão que sustentou e legitimou práticas discriminatórias, uma
naturalização difícil de questionar devido ao caráter de neutralidade das ciências positivistas e
também pelo acúmulo do ideário racial característico de países colonizados, em especial o Brasil.
Os interesses políticos e econômicos almejavam uma nação mais evoluída, sendo o processo de
cientificismo e institucionalização no Brasil um instrumento de planejamento e aplicação desta
autonomização e nacionalismo do país (SANTOS, SCHUCMAN e MARTINS, 2012).

Conclusão

Nos estudos produzidos na época, com objetivo de compreender a panorama racial


e classificar as populações racializadas, foi constatado a inferioridade das pessoas negras.
Produções afirmaram que dentro da hierarquia racial, negros pelo seu componente biológico,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

estariam na base da pirâmide, em âmbito ético, moral e estético. Assim, sendo portador de
degeneração, era fator primário para obstruções da evolução nacional, sendo necessário um
projeto de branqueamento para aniquilamento da raça negra pura e a longo prazo, por meio da
miscigenação, de todo componente negro na sociedade.   
O projeto foi formulado com os resultados de análises realizadas por grandes pesquisadores
sobre os indícios estatais, análises realizadas pelo método biológico-causal e com poucas ou
nenhuma consideração dos fatores socioculturais. O cientificismo em expansão e seu discurso
iluminista de neutralidade e verificabilidade por meio de métodos importados, possibilitaram que
estatais aplicasse em formato de políticas diferentes projetos eugênicos durante as primeiras
três décadas do século XX. Dentre os estudos cientificistas, os primeiros estudos psicológicos
ganharam destaque por se mostrar uma ciência capaz de substituir a compreensão teológico da
subjetividade dos homens, através de técnicas psicométricas em adesão em países europeus. “O
problema negro” era um problema em questão para todas as áreas da ciência, e com esta justificativa
foi construído parte dos estudos sobre psicologia coletiva, psicopatologia, a periculosidade dos
negros, entre outros.
Deste modo, os resultados apontam que dentre as produções de estudos psicológicos
da época, em especificidade as produções de base eugênica, houve uma demanda específica
para o controle das pessoas negras, legitimando discursos raciais por meio do caráter científico.
Ao longo da produção, é possível identificar os estudos raciais nesses processos, seu papel na
manutenção do racismo da época ao contribuir com o projeto racista de branqueamento entre
outras configurações raciais que necessitavam de transição para se manter hegemônico.
A literatura nacional confirma que estudos psicológicos foram utilizados também para
controle social de determinados grupos caracterizados quanto perigosos para ordem social e
descartáveis para a produção capitalista. Os sujeitos são muitos, pessoas em situação de rua,
desempregados, prostitutas, pessoas em sofrimento psíquico grave, idosos, crianças, etc.
Contudo, são poucos os estudos que apontam qual é cor da maioria dessas pessoas em
relação a proporção de raça/cor, assim como são ínfimos os estudos que examinam esta lógica para
além dos grupos delimitados, enquanto uma parcela da sociedade diferenciada hierarquicamente
pela sua cor, ou seja, de acordo com a configuração racial e o racismo.

Referências

ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua
constituição. 5 ed. São Paulo: EDUC, 2014.

COSTA, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil. Editora Campus, 1980.

GUIMARÃES, Antonio S. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à


Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002.

MASIERO, André Luís. A Psicologia racial no Brasil (1918-1929). Estudos de Psicologia, v. 10, n.

Página 806
2, p. 199-206, 2005.

MASSIMI, Marina. História da psicologia brasileira: da época colonial até 1934. São Paulo:
EPU, 1990.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – Identidade Nacional versus


Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2004.

SANTOS, Diego Luis Rodrigues. Psicologia no Brasil: antecedentes históricos, 2015. Trabalho
de Monografia em Psicologia. Centro Universitário de Brasília. 

SANTOS, Alessandro de Oliveira dos; SCHUCMAN, Lia Vainer; MARTINS, Hildeberto Vieira. Breve
histórico do pensamento psicológico brasileiro sobre relações étnico-raciais. Psicol. ciênc. prof,
v. 32, n. spe, p. 166-175, 2012

WEYLER, Audrey Rossi. A loucura e a república no Brasil: a influência das teorias raciais. Psicologia
USP, v. 17, n. 1, p. 17-34, 2006.

Página 807
EIXO 16: História da África e da
Diáspora

O Grupo de Trabalho aqui proposto tem a intenção de estimular a


apresentação de trabalhos dedicados ao estudo das sociedades africanas
e diaspóricas do passado e do presente. Serão bem vindos textos que tratem
de temas vinculados às formas de exercício do poder (formações estatais
antigas; micro-estados, macro-estados; relações internacionais; Estados-
nações; protetorados; hierarquias e contestação política; revoltas, guerras e
revoluções); aos vínculos sociais (relações de classe, relações de parentesco,
relações etárias, relações sexuais e de gênero, relações comunitárias,
relações familiares, redes de solidariedade, hierarquias sociais); às formas
de expressão sócio-cultural (artísticas, religiosas, tradições orais e oralidade,
testemunhos escritos, literatura, teatro, cinema, formas de comunicação
tradicionais e modernas) e cultura material
(subsídios arqueológicos, artesanato, técnicas
e tecnologia, culturas alimentares, artesanato e
indústria) dos povos situados nas diversas áreas
do continente africano, das origens aos dias atuais.
Paralelamente, serão aceitos trabalhos que
tratem das experiências dos africanos e seus
descendentes em contextos diaspóricos na
América e na Europa, como estudos e reflexões
que tratem das adaptações e
recomposições das visões de mundo
e instituições de matriz africana e suas
implicações sócio-culturais. Também
serão contemplados trabalhos que
observem as formas como os povos
negros da África e suas diásporas
foram e são representados.
“A DESCOBERTA DA ÁFRICA”: RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS E POLÍTICA
EXTERNA DO BRASIL PARA A ÁFRICA NAS PÁGINAS DA REVISTA VEJA
(1969-1985)1

PACHECO, Ana Júlia (UFRGS)


anajulia.gp@gmail.com
Resumo

Na década de 1970, o governo brasileiro, sob Regime Civil- Militar instalado em 1964 começou a
construir um projeto de organização social para o país. Do ponto de vista político, o governo brasileiro
procurou se fortalecer economicamente com novos parceiros comerciais, e viu nos recém países
africanos independentes promissoras possibilidades. Na esfera da política externa o continente africano
foi uma das regiões que ganhou atenção da diplomacia brasileira militar. A imprensa brasileira, em
especial as revistas semanais, oriundas do amplo processo de modernização da imprensa, sobretudo
dos jornais diários na década de 1950 e 1960, atuaram informando os acontecimentos nacionais e
internacionais por meio da publicação de notícias imediatas e na formulação e intermediação de projetos
de interesses públicos e governamentais. Publicada a partir de 1968 pela editora Abril, a Revista Veja
passou a produzir jornalismo no Brasil, veiculando em suas páginas temas relacionados aos universos
da política, da economia e do social, tornando-se um importante veículo de produção de informação no
mercado editorial do país até hoje. Entre suas páginas estão publicadas também notícias que narrarão
episódios do diálogo entre o Brasil e os países africanos, este trabalho propõe-se portanto, analisar
esses materiais e investigar os sentidos retóricos, ideológicos, políticos e estratégicos, atribuídos nesse
conjunto de notícias e entender qual o papel da veiculação dessas narrativas e imagens na construção
desse novo projeto de Brasil.

Palavras-chave: África; Brasil; Relações Externas; Revista Veja.

1 Este estudo é um recorte do projeto de pesquisa do mestrado Intitulada “Representações: A África nas
Páginas da Revista Veja (1968-1985)” desenvolvida no âmbito do Programa de Pós Graduação em História (UFRGS)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Página 809
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução: Um breve apanhado histórico

Apesar dos vínculos históricos entre Brasil e África datarem do século XVI, o governo
brasileiro iniciou uma aproximação cooperativa com o continente somente a partir da segunda
metade do século XX, em meados da década de 1960, que atingirá seu ápice apenas no governo
de Luís Inácio Lula da Silva em 2003 com sua política externa “ativa e afirmativa”, no sentido de
unir o mundo em desenvolvimento e gerar mudanças na ordem internacional. A África se tornou a
região onde a diplomacia brasileira realizou maiores avanços, cujo estabelecimento da cooperação
sul-sul tem sido multidimensional, transcendendo o nível bilateral, e gerando grande significado
global no século XXI (VISENTINI, 2010).
A interação com o continente do outro lado do atlântico dará seus primeiros passos durante
a fase da crise de hegemonia no sistema mundial após a segunda guerra, que se estendera até
a atualidade, marcando uma mudança significativa nas relações exteriores brasileiras com
o aprofundamento da vinculação da política exterior com a estratégia de desenvolvimento
econômico e a diversificação dos nossos parceiros internacionais, em que até então “Durante
todo esse período que se estendeu até o fim da década de 50, as relações exteriores do Brasil
voltaram-se, prioritariamente, para os EUA, em busca do status de aliado privilegiado” (VISENTINI,
1999, p. 135).
De modo geral, com a Política Externa Independente de 1961 a 1964 de Jânio Quadros e Joao
Goulart houve uma primeira aproximação, fundamentada nas afinidades culturais dada a formação
sócio histórica brasileira. Na visão do governo, o Brasil poderia ser um interlocutor privilegiado
dos países africanos nos foros internacionais, entretanto, denotavam-se ainda ambiguidades no
posicionamento brasileiro quanto aos processos de independências africanas, já que embora
o discurso da diplomacia brasileira defendia nos foros multilaterais, o anticolonialíssimo e os
princípios da autodeterminação dos povos e da não intervenção; na prática era hesitante quanto
a apoiar ou não o movimento independentista das colônias africanas decorrida especialmente
do apego às relações especiais com antigas metrópoles, tais como Portugal e França (MANZUR,
2014, p. 185-186).
Após uma fase de distanciamento sufocado pelos anos iniciais do golpe civil-militar,
que encerrou os projetos encaminhados por Jânio Quadros da primeira metade da década de
1960 em relação ao continente africano, houve um salto qualitativo nas relações Brasil-África do
governo de Emílio Garrastazu Médici até o fim do governo Jose Sarney (1969-1990) com intensa
cooperação em várias áreas. O relacionamento externo do Brasil durante os anos de 1970 e 1980
passou por algumas oscilações, em que a preocupação com a segurança e o desenvolvimento do
país trespassou a ação política dos governos militares em uma perspectiva de alcançar condições
de autonomia relativa à cena internacional, nesse sentido, a diplomacia brasileira procurou ampliar
seus canais de relacionamento, direcionando em parte, sua atenção para os países do terceiro
mundo, buscando uma atuação multilateral (PEREIRA, 2007).
Nesse cenário o continente africano foi uma das regiões que ganhou atenção da diplomacia

Página 810
brasileira militar, onde se pretendia ampliar canais de comércio com os países situados na faixa
tropical. Acreditava-se que, pela tecnologia de porte médio dos produtos manufaturados e,
também pelos vínculos históricos que unem o Brasil à África, tínhamos condições de cultivar um
mercado para exportação. Embalado assim por essa expectativa positiva, o ministro das Relações
Exteriores, Mario Gibson Barbosa, efetuou em 1972 um programa de visitas a nove países da Mrica
subsaariana: Senegal, Costa do Marfim, Gana, Ibgo, Daomé, Nigéria, Camarões, Gabâo e Zaire
(GONÇALVES; MIYAMOTO, 1993, p. 227).
Após o fim do regime salazarista de Portugal, com a Revolução dos Cravos em 1974, que
gerou o colapso do colonialismo português, o Brasil conseguiu sair do seu estado de ambiguidade
com relação aos países africanos, podendo dar prosseguimento a expansão de suas relações
com o continente africano com mais coerência e desenvoltura. Apesar de levar em consideração
o continente como um todo, alguns centros ganharam maior atração e importância, cujo países
identificados como sendo produtores de petróleo, foram vistos como territórios em potencial para
exportar o petróleo para o Brasil e capacidade de compra de produtos industrializa dos brasileiros.
Assim, especificamente, é somente na terceira fase da política externa militar referente aos
Governos Geisel e Figueiredo (1974-1985) que é retomado em linhas gerais a Política Externa
Independente, caracterizada pelo apoio ao desenvolvimento econômico-industrial e a construção
do status de potência média. Tal política conduziu à busca de maior autonomia na cena internacional,
produzindo uma crescente multilateralização e mundialização, de dimensão econômica e política.
Vejamos abaixo, o acompanhamento dessa teia de relações por parte do periódico Veja.

Relações diplomáticas e política externa na mira da Veja

O conjunto desses debates acerca das continuidades, rupturas e novas articulações


comerciais e diplomáticas com os países do continente do outro lado do atlântico farão parte das
pautas noticiadas nas páginas de Veja. As notícias que discutem as relações Brasil-África somam
ao todo 85 materiais, que distribuímos a partir de quatro periodizações. 1. 1968-1969 (2%) com
apenas duas notícias publicada em abril e junho do ano de 1969; 2. 1970-1974 correspondente a
27 (33%) materiais; 3.1975-1979 com 24 (28%) notícias; 4.1980-1985 sob 32 (37%) materiais.
Esses recortes jornalísticos encontram nas seções Brasil (61%) geralmente no tópico “Diplomacia”,
Radar (15%), Economia e Negócios (13%), Cartas (7%) e Internacional, Gente e Entrevista (1%
cada).
A primeira notícia localizada no período 1968-1969 intitula-se “As gafes Sul-Africanas”
e se encontra no tópico “Diplomacia” da seção Brasil de Veja. Ela discorre sobre uma possível
aliança naval entre África do Sul e as negociações até então realizadas para tal, apontando que
a manutenção das relações com os sul africanos “é um grande negócio” (VEJA, n.33 23/04/69,
p.16)2. Semanas depois, a África do Sul e outras nações africanas são apontadas no artigo “Portugal

2 Nos atentaremos novamente a esta notícia e outras fontes que serão citadas ao longo do texto no próximo
tópico deste capitulo, investigando a presença apenas da África do Sul.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

procura seus amigos” localizado na seção internacional que discute as possibilidades da visita do
Primeiro-Ministro de Portugal Marcello Caetano ao Brasil para o rompimento do isolamento político
português em África e sua tentativa de abrir-se novamente para a vida internacional. A dicotomia
portugueses-negros, entre outros adjetivos como selvas e tribos são utilizadas na narrativa que
explica a situação conflituosa nas províncias ultramarinas de Angola e Moçambique, consideradas
pela revista como “a principal fonte de riquezas e também de problemas” de Portugal (VEJA, n.44
09/07/69, p. 35), já que, embora esses territórios tenham apresentado um razoável índice de
desenvolvimento, cuja exploração do lençol petrolífero em Angola dobrara a produção no próximo
ano exportando parte do excedente até para o Brasil, eles estão sob contexto de luta anticolonial.
Embora a revista salienta que o a política portuguesa para com suas províncias vem
provocando protesto unanime na África Negra bem como condenações por parte da ONU, ela
aponta que a visita do Primeiro Ministro pode ser a oportunidade portuguesa de pleitear maio
apoio Brasileiro à sua política em Angola, Moçambique e Guine. Lembramos que nesse contexto,
o governo de Costa e Silva manteve a posição de estreitamento dos vínculos e apoio à repressão
dos movimentos nacionalistas que lutavam pela independência, em que a diplomacia brasileira
persistia na tese de que nos territórios colonizados por Portugal o aspecto principal da guerra era a
luta do mundo ocidental contra a expansão comunista (GONÇALVES; MIYAMOTO, 1999, p. 224).
O arcabouço de notícias que compete ao período dos anos de 1970 a 1974 correspondente
a narrativas que tatearão as pequenas porem proveitosas possibilidades do continente africano
para a desenvoltura das relações e política externa brasileira. Em abril de 1970 Veja já destaca
que “A presença da diplomacia brasileira vai ser reduzida em alguns lugares, como África, e
aumentada em outros, sobretudo Japão” (VEJA, n.85 22/04/70, p. 20) no artigo que abre a seção
Brasil intitulado “A nova ação da diplomacia” destacando os principais pontos das redefinições
diplomáticas formuladas no governo de Emilio Garrastazu Médici, e dando ênfase na permanência
de duas das principais posições do Brasil no âmbito das relações internacionais, a recusa de
assinar o Tratado de Não-Proliferação das Armas Nucleares e a melhor distribuição de riqueza
internacional pela criação de melhores condições de comercio.
A contradição da posição brasileira diante dos processos africanos de independência é
discutida pelo periódico no artigo “Paradoxo” que inicia com a proposição de que “Na atividade
diplomática, assim como na política, nem sempre teoria corresponde a pratica” (VEJA, n.121
21/12/70, p. 21) e discute a postura do Brasil na Assembleia Gera da ONU que votou a favor de
Portugal num projeto de resolução sobre a concessão de independências aos povos coloniais sob
a justificativa de que embora a independência seja uma das formas de a autodeterminação dos
povos, ela não e a única, já que os habitantes dos territórios de protetorado português poderiam
adotar um estatuto de associação com Portugal. Tal posicionamento como esclarece a revista,
pode custar a não inclusão do Brasil em alguns organismos da ONU, cujos países de África e
Ásia, embora considerem o Brasil líder natural do terceiro mundo, votam unidos nas questões de
descolonização. Na visita do chanceler do Quênia ao Brasil, Njoroge Mungai, discutido em outro

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artigo publicado em agosto do mesmo ano3, o assunto é retomado frente a postura de não adesão
do Itamaraty sobre o pedido de Mungai para o governo brasileiro reconhecer o direito os povos de
Moçambique, Angola e Guiné tem a liberdade e autodeterminação.
Em janeiro de 1972, o artigo “Um ano apertado” em referência a agenda do Itamaraty,
anunciava a viajem do chanceler Mario Gibson Barboza para a África em junho e sua visita a oito
países da costa atlântica sob o evidente interesse comercial adormecido desde 1966, quando
existia um plano de missões periódicas a África. Em maio Veja aponta a visita do chanceler sul
africano Hilgard Muller no Brasil para sondar as intenções brasileiras na sua aproximação com os
países da África Negra e distancias com a África do Sul, concluindo a reafirmação de que Brasil
quer aumentar seu intercambio com todos os países africanos. Os balanços e as expectativas do
periódico com relação a missão brasileira a África, só serão retomados no final de outubro e início
de novembro com dois artigos4 intitulados respectivamente “O primeiro passo certo” e “De volta a
África”. O primeiro descreve os preparativos da equipe refutando que

Tamanha prudência parece ser plenamente justificável levando-se em conta que


nos últimos vinte anos o Itamaraty foi acometido de sucessivas paixões africanas,
grandiloquentes e inócuas. Infelizmente, até hoje a única linha comercial já mantida com
regularidade entre o Brasil e a África foi a condenável pratica do tráfico negreiro. Além
dessas lembranças, restam apenas detritos de fracassos (VEJA, n.216 25/10/72, p. 20)

Nesse sentido, a investida de Gibson Barboza é vista com bons olhos pela revista que
poderá efetivamente solidificar relações bilaterais entre o governo brasileiro e as nações africanas,
estimuladas pelo interesse de maiores mercados comerciais. Em controversa, a revista destaca que
a diplomacia brasileira caminhara ao largo dos conflitos políticos evitando misturar os interesses
na África com interesses nas lutas colonialistas que se desenvolvem no continente. No segundo
artigo, é narrado o retorno da missão tomada como vitoriosa por Veja especialmente no aspecto
de dissipar o arraigado preconceito dos africanos de que o Brasil não possuía uma política externa
própria, mas conectada aos interesses de Portugal e nas boas perspectivas para os empresários
nacionais em que “o principal resultado da viajem – acreditam diplomatas que acompanharam
o chanceler – será o despertar das empresas brasileiras para as possibilidades – por hora ainda
modéstias - que estão ao seu dispor nos países africanos” (VEJA, n.221 29/11/72, p. 21).
Os frutos do “primeiro passo” são evidenciados nos artigos seguintes dos anos de 1973 e
1974. Na visita do chanceler brasileiro ao Egito, Quênia e Israel em janeiro de 1973, veja considera
que “Para um país ávido de aumentar as proporções de seu peso no cenário internacional, como
o Brasil, uma visita à região, agora, é, oportuna” (VEJA, n.230 31/01/73, p. 21) apontando que

3 O método Mungai (VEJA, n.205 09/08/72 p.23)


4 Em meio a isso temos três notícias envolvendo países africanos na diplomacia brasileira e uma relacionada as
relações comerciais nacionais. “Mercado Egípcio” (VEJA, n.207 23/08/72, p. 21) que discutira a visita do chanceler
egípcio no Brasil, Murad Ghaleb; “Diplomacia: Brasiáticos? ” (VEJA, n.210 13/09/72, p. 21) sobre a ex pulsão de 50 mil
asiáticos de Uganda por Idi Amim e possibilidade do governo brasileiro em receber essa população; e Mercado negro
(VEJA, n.215 18/10/72, p. 110) sobre a limitações e perspectivas de exportação de produtos entre Brasil e África.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

a embaixada brasileira ainda tenha deixado satisfeito o profundo interesse que nos últimos
tempos vem sendo manifestado em todo o país por questões petrolíferas “ao patrocinar no Egito
negociações e acordos comerciais da Braseiro – subsidiaria internacional da Petrobras” (VEJA,
n.231 07/02/73, p. 21). As novas relações comerciais efetuadas com Argélia, Líbia, Nigéria e Zaire
descritas pelo periódico “levam os diplomatas brasileiros a admitir que a África é um mercado
lógico e próximo” (VEJA, n.259 22/08/73, p. 86). As alterações na política do Brasil em relação a
postura de Portugal para com suas províncias, começa a ser alterada, fator considerado importante
pela revista, embora considere que o Itamaraty não deseja patrocinar nem a causa de Lisboa, nem
a das republicas Negras mas “Interessado em preservar sua posição de mediador em potencial,
ele estaria apenas atento ao aparecimento do petróleo como uma nova arma que, ao ser usada,
tem a capacidade de pulverizar velhas teorias, domínios e preconceitos ” (VEJA, n.271 14/11/73,
p. 20).
Em maio de 1974, o artigo “O mercado da diplomacia” (VEJA, n.291 03/05/74, p. 65)
discorre sobre as significativas as mudanças e os novos rumos das relações externas brasileiras na
“cautelosa arrancada em direção ao mercado africano”. A revista descreve que os países africanos
permaneceram “a margem do roteiro oficial de intercambio brasileiro” porem, vem se aproximando
das exigências de africanos e árabes revisando seu comportamento no apoio as independências
dos territórios africanos, oportunidade esta levantada pela revista, da ameaça do boicote árabe
no fornecimento de petróleo aos países que apoiassem Israel no conflito do Oriente Médio. As
embaixadas criadas na Líbia, Iraque a Arábia Saudita indica uma mudança na diplomacia brasileira
no oriente médio e igualmente “promete influir diretamente sobre o tratamento dado pelo Brasil
as questões do oriente médio nas assembleias da ONU” (VEJA, n.302 19/06/74, p.23). Nesse
momento, Guiné Bissau era a primeira ex-colônia portuguesa reconhecida pelo Brasil como Estado
independente, ao noticiar tal posicionamento comenta “E um triunfo diplomático nunca desprezível
é saber identificar a tempo mudanças na direção dos ventos que varrem a política internacional”
(VEJA, n.307 24/07/74, p. 31). “Agora, a África” e “Um bom início” são os dois últimos artigos
que encerram a presença africana no âmbito das relações internacionais brasileiras nas páginas
de Veja do ano 1974. Os artigos tratam da visita oficial do chanceler brasileiro Antônio Francisco
Azeredo da Silveira ao Senegal e do ministro Italo Zappa, chefe do Departamento da Ásia, Africa e
Oceania do Itamaraty a sete países africanos para se encontrar com os líderes dos movimentos de
libertação das colônias portuguesas no continente para estabelecer, segundo o periódico, apenas
contatos prévios, embora prevê que o Brasil poderá oferecer ás novas nações ajuda nas áreas
da educação e saúde. “Mas ainda será cedo para tentativas no campo comercial. Assim, todos
os esforços estarão concentrados para a instalação da embaixada em Luanda, Angola, após a
independência” (VEJA, n.328 18/12/74, p. 29).
No período entre os anos de 1975-1979 os artigos que tratarão do lugar da África nas linhas
das relações externas brasileiras irão apresentar e discutir as premissas e as ações efetivas que
se desenvolverão no quadro do Itamaraty e sua política africana. A visita de sete dias de Albert-
Bernard Bongo, presidente do Gabão, possibilitou um convenio com medidas concretas para que

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o Brasil até o fim daquele mês enviasse um embaixador em Libreville e a abertura de um credito de
10 milhões de dólares para que o pais adquira manufaturados brasileiros, para o periódico, contudo,
essas medidas “não parecem muito para um pais, como Brasil, que proclama reiteradamente seu
interesse em ampliar os laços com África” (VEJA, n.327 23/10/75, p. 23).
No final de 1975 e início de 1976 as notícias se concentram nos debates sobre o
reconhecimento da Independência de Angola e do governo local angolano e as implicações
nas relações entre os dois países. Como aponta Pio Penna Filho e Antônio Carlos Moraes Lessa
(2007) ela foi uma das nações que passou a se destacar no cenário da política africana no Brasil
nesse período, e houve o acompanhamento do Itamaraty do complexo quadro angolano, com três
movimentos de liberação, a saber: Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA) e União Nacional para a Independência Total de Angola
(UNITA), muito embora o representante especial do Brasil em Luanda se esforçasse por manter
uma atitude de equidistância perante os três movimentos, já em meados do ano, ele havia se
convencido de que o MPLA era o movimento mais bem qualificado para assumira governado novo
pais (PENNA FILHO; LESSA, 2007, p. 74). Em 10 de novembro a revista anuncia que “O Brasil
reconheceu a independência angolana, e implicitamente, a hegemonia política do Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA)” (VEJA, n.316 19/11/75, p. 24). A entrevista publicada em
fevereiro de 1976 com pesquisador, sociólogo e jornalista alemão Wolf Grabendorff, que escreveu
um livro sobre as determinantes da política externa brasileira, endossa as boas expectativas com
relação a Angola “Acho que, se Angola se tornar mesmo uma República Popular, o Brasil manterá
com ela excelentes relações” (VEJA, n.389 18/02/76, p. 4). Nos anos seguintes, o momento
é lembrado na edição de retrospectiva de 1979, e apontado como uma atitude marcante da
diplomacia brasileira “Sem o cabresto rígido da doutrina de segurança, os diplomatas profissionais
marcaram um feito” (VEJA, n.590 26/12/79, p. 38).
Igualmente nesse contexto, as notícias mergulham nas relações exitosas com os demais
países africanos, frisando que “A política africana de Itamaraty, de ’diálogo direto e solidariedade
operativa’ do chanceler Antônio Francisco Azevedo da Silveira, começa efetivamente a produzir
resultados objetivos” (VEJA, n.393 17/03/76, p. 26). A missão em Bissau é anunciada com boas
expectativas no qual “um grupo de técnicos brasileiros prepara-se para examinar, do outro lado do
atlântico, as possibilidades efetivas de uma ‘cooperação enorme, uma cooperação exemplar’ de
que então falava em Brasília o esperançoso chefe da missão de Bissau” (VEJA, n.405 09/06/76, p.
24). A notícia da maior descoberta petrolífera pela Petrobras Internacional (Braspetro) não ocorrida
em território brasileiro, mas na África, em Argélia é apresentada como “Promessa Africana”5 na
seção Economia e Negócios em junho de 1976. No mês seguinte, o artigo “A descoberta da África”
retoma em linhas gerais o excelente resultado da Missão em Bissau, para Veja “A mais recente
conquista da diplomacia brasileira na África é, literalmente, um troféu6” (VEJA, n.410 14/07/76,

5 VEJA, n.406 16/06/76, p.87


6 Diverte-se a revista se referindo a partida de futebol entre funcionários da delegação oficial brasileira
funcionários do governo local, que perdem para a delegação brasileira por 7 a 5.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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p. 24) avaliando que o Brasil conseguiu nos últimos anos multiplicar sua presença diplomática
no território africano representado por um total de vinte diplomatas que cuidam de 25 países da
“África Negra” na existência de embaixadas em dez capitais e representação nas outras quinze,
além de seis embaixadas – Costa do Marfim, Gabão, Gana, Senegal, Nigéria e Zaire - que compõe
a comunidade africana em Brasília.
A postura anticolonialista e em favor da autodeterminação dos povos por Itamaraty é
acentuada no artigo7 sobre o apoio a independência da Namíbia, e na ênfase da posição brasileira
em não manter relações comerciais com a África do Sul sob regime do apartheid. A presença
da chancelaria moçambicana no Brasil para tratar dos detalhes da compra de dezessete barcos
pesqueiros8 tem um inegável significável político para Veja, bem como as aproximações com Cabo
Verde em 19779 intermediadas pelo então Ministro da Educação e Cultura, Carlos Reis. A Nigéria
também ganha destaque, na visita de Joseph Nanven Garba, ministro das relações exteriores
nigerianas que ressalta o interesse em investimentos do exterior10. Em novembro de 1977, a
cerimônia de inauguração da embaixada do Senegal em Brasília traz a visita do seu presidente
Lépoldo Sedar Senghor, narrada brevemente pela revista11, e a visita do ministro da Angola em
dezembro de 1979, Carlos Alberto Van-Dunen, aponta a abertura de uma embaixada angolana
em Brasilia “vista pelo Itamaraty como um claro indicio de que sua política de aproximação com os
países africanos dá certo” (VEJA, n.588 12/12/79, p. 30)
De acordo com Henrique Gerken Brasil (2007) o governo de Joao Figueiredo, iniciado em
1979, da continuidade à política africana dos anos anteriores, com especial prioridade a África de
língua portuguesa, numa fase mais produtiva, com a evidencia e aceleração de contatos, visitas
e entendimentos, num aprofundamento de relações mais políticas que econômicas. Entretanto,
a dificuldade gerada pelas crises das dívidas externas, bem como a diminuição nas importações
totais de petróleo, vai propiciar o decrescente fluxo comercial na década de 1980, antes disso
porem, a recuperação das importações da África a partir de 1983 ocorre devido a diversificação de
fornecedores de petróleo, tendo a África significativa participação. É também governo Figueiredo,
todavia, que ocorre a concentração de parceiros comerciais, com exportações na Nigéria, Argélia,
Egito, Angola e Zaire e importações por conta de Argélia, Angola e Nigéria (2016, p. 56). O conjunto
das notícias impressas na Veja entre o período dos anos de 1980 a 1985 sobre as relações
diplomáticas entre Brasil-África permearão nesse âmbito.
O breve anuncio das visitas dos presidentes da Guiné, Sekou Touré em fevereiro e da Guiné
Bissau, Luís Cabral, em maio de 1980, foi intitulado pelo periódico de “Uma revoada africana
de verão” (VEJA, n. 594 23/01/80, p. 2). A visita de Touré ganha espaço num artigo salientando
que “só a médio prazo a Guiné devera transformar-se num bom parceiro comercial” (VEJA,
n.597 13/02/80, p. 28) devido à baixa renda per capita e a carência das tecnologias advindas do

7 VEJA, n.412 28/07/76, p. 25


8 VEJA, n.440 09/02/77, p. 26-27
9 VEJA, n.452 04/05/77, p. 22
10 VEJA, n.456 01/06/77, p. 20
11 VEJA, n.479 09/11/77, p. 17-18

Página 816
isolamento após a independência do pais, segundo Veja, todavia, “muito mais estimulante que
a parte econômica foi o capitulo político da visita” (Idem, p.28) que poderia conforme discorre o
periódico abrir para o Brasil as portas dos africanos de retorica socialista que tomaram distância do
Brasil a partir de 1964, quando a diplomacia brasileira passou a voltar incondicionalmente alinhada
aos interesses coloniais portugueses.
Nos artigos seguintes localizados em junho de 1980, realizarão uma cobertura do giro
africano efetuado pelo chanceler brasileiro Ramiro Saraiva Guerreiro em cinco países da África
Austral, Tanzânia, Angola, Zâmbia, Moçambique, e Zimbabwe, durante 12 dias e acompanhado
de comitiva composta por outros diplomatas, assessores e jornalistas. O objetivo da missão era a
aproximação com esses países e a demonstração prática do universalismo proposto pela política
externa de Guerreiro, que se pautava pelo esforço da manutenção da autonomia brasileira num
cenário internacional desfavorável, sem deixar de transparecer traços do anterior Pragmatismo
Responsável e Ecumênico, vale lembrar que a convergência do Brasil com os países do Terceiro
Mundo, nos foros internacionais, aproximou-o do Movimento dos Países Não-Alinhados (RIZZI,
2010, p. 13). A cobertura de Veja inflige apontando possibilidades e limites de âmbito comercial
com as nações africanas, considerando que “a grande conclusão de todo esse giro de Guerreiro
pela África Austral deverá ser fornecida pelo próprio governo brasileiro” (VEJA, n.614 11/06/80,
p. 36). No artigo publicado em edição seguinte do mesmo mês, narrando os possíveis acordos
de cooperação entre Brasil e Guiné-Bissau a partir da visita do presidente Luís Cabral, a revista
novamente ressalta que “o grande significado da visita foi político, sem dúvida: nada melhor, para o
Brasil, que encerrar seu ‘seu ciclo africano‘ de junho recebendo um presidente respeitado – irmão
do venerado Amílcar Cabral, assassinado em 1971, tem muito prestigio na África Negra” (VEJA,
n.616 25/06/80, p. 48).
A visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Moçambique no Brasil, Joaquim
Chissano12, em 1981, também foi noticiada pela revista, que nessa oportunidade, firmou o Acordo
Geral de Cooperação entre a República de Moçambique e a República Federativa do Brasil. Ao
denunciar os ataques da África do Sul à Angola, o chanceler segundo Veja “exprimiu” a política
africana do Brasil, pois desde a invasão dos sul africanos ao território de Angola “O Itamaraty está
sendo compelido a assumir a luz do dia todo o trabalhoso e solido emaranhado de posições e atos
que compõe atual política africana” (VEJA, n.681 25/09/81, p. 33).

12 A visita de Chissano ao Brasil, bem como outras viagens realizadas por Samora Machel, a partir de 1980,
visavam ampliar as parcerias internacionais de Moçambique, e indicavam a reorientação política econômica do seu
país. Ver mais em: SANTOS, Vanicléia Silva. Brasil e Moçambique nos anos 1974-1986: economia e política externa
no diálogo Sul-Sul. Revista de Ciências Humanas, Viçosa, v. 14, n. 2, p. 277-301, jul./dez. 2014.

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Negras e negros no Sul do Brasil
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Em meados de 1983 até o início de 1985, a Líbia aglutinará as notícias13 acerca das
relações Brasil-África devido à crise diplomática entre as duas nações advindas da apreensão de
aviões líbios, com carregamentos militares para a América Central, em Manaus e Recife. “Estava
finalmente em andamento após uma semana de hesitação, a ‘operação Líbia‘ lançadas pelas
Forças Armadas brasileiras para desvendar, por bem ou por mal, o mistério contido em quatro
aviões comerciais líbios” (VEJA, n.764 27/04/83, p. 36) O evento ganhou grande comoção dos
leitores, que identifiquei pela presença de cartas sobre o acontecimento em cinco edições14, que
expunham diversas opiniões sobre o posicionamento do governo brasileiro em relação a Líbia.
Tendo em vista ainda a conjuntura nacional e internacional que marca a década de 1980
e princípios da década de 1990, vemos, conforme Walace Ferreira (2013) que política externa
brasileira ingressou numa tendência de concentração de seus esforços para promoção das
relações com países considerados prioritários no continente africano, particularmente com os
de língua portuguesa e, posteriormente, com a Nigéria cujos acordos de cooperação militar e
comercial já serão noticiados no artigo intitulado “de mãos dadas”15 em novembro de 1983, e com
a África do Sul, frente à iniciativa deste em favor da superação do apartheid.

Referências
RASIL, Henrique Gerken. Relações Externas Brasil-África: Da politica Externa Independente ao
Governo Lula. São Paulo, 2016.

GONÇALVES, Williams da Silva; MIYAMOTO, Shiguenoli. Os militares na política externa brasileira:


1964-1984. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12, p. 211-246. 1999.

MANZUR, Tânia Maria P. G. A Política Externa Independente (PEI): antecedentes, apogeu e


declínio. Lua Nova, São Paulo, 93: 169-199, 2014.

PENNA FILHO, Pio; LESSA, Antônio Carlos Moraes. O Itamaraty e a África as origens da política
africana do Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 39, jan/jun, 2007.

PEREIRA, Analúcia Danilevicz. Brasil e África do Sul: dois caminhos rumo ao pós-Guerra Fria

13 Onze artigos formam o conjunto dessas notícias: “Na rota de Khadafi: o Brasil inspeciona a força as armas
clandestinas da Líbia para a Nicarágua, e entra contra a vontade no imbróglio da America Central” (VEJA, n.764
27/04/83, p. 36-42); “Incômodos até o fim: antes de reaver as armas, Khadafi ainda destrata o Brasil e os tripulantes
trocam socos” (VEJA, n.765 04/05/83, p. 46-48); “Mudança de tom: Brasil endurece jogo com coronel Khadafi”
(VEJA, n.766 11/05/83, p. 43); “Diplomacia enrascada: Ministro da Aeronáutica já admite que aviões líbios voltem a
Trípoli levando armamento” (VEJA, n.767 18/05/83, p. 44,45); “Desfeita a confusão: depois de 53 dias de celeuma,
o governo brasileiro aceitou liberar os aviões com suas armas” (VEJA, n.771 15/06/83, p. 42-43); “Os aviões líbios
não seriam líbios” (VEJA, n.772 22/06/83, p. 45); Líbia quer apagar caso dos aviões” (VEJA, n.798 21/12/83, p. 47);
“Brasil e Líbia buscam aproximação” (VEJA, n.832 15/08/84, p. 41); “Acordo com Líbia fracassa na véspera (VEJA,
n.840 10/10/84:35); “Líbia recebe nova missão do Brasil” (VEJA, n.841 17/10/84, p. 34); “Os líbios estão de volta”
(VEJA, n.857 06/02/85, p. 33).
14 Há cartas nas edições de número 766, 767, 768, 769, 772 que cobrem maio e junho do ano de 1983.
15 O artigo discute que a viajem do Presidente Joao Figueiredo realizada no início de novembro de 1993 a
Nigeria, Guine Bissau, Senegal e Cabo Verde, marcando a primeira visita oficial de um chefe de estado brasileiro a
países africanos “deverá abrir mais portas para as crescentes exportações do Brasil, agora mais próximo ainda do
chamado Terceiro Mundo” (VEJA, n.794 23/11//83, p. 114).

Página 818
(1985-1994). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do rio grande do Sul (UFRGS).
Porto Alegre, 2007.

SANTOS, Vanicléia Silva. Brasil e Moçambique nos anos 1974-1986: economia e política externa
no diálogo Sul-Sul. Revista de Ciências Humanas, Viçosa, v. 14, n. 2, p. 277-301, jul./dez. 2014.

VIZENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. O Brasil e o Mundo: a política externa e suas fases. Ensaios
FEE, Porto Alegre, v.20, n.1 p. 134-154, 1999.

_____. A África na política internacional: o sistema interafricano e sua inserção mundial. 1. ed.
Curitiba: Juruá, 2010.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

“BAKIN! BALIBA! SAMBOUNE! APOYA! ABOUNKET!”: A


ANCESTRALIDADE E COSMOVISÃO WOLOF NOS FILMES LA NOIRE DE...
E EMITAI DE SEMBÈNE OUSMANE (ÁFRICA OCIDENTAL, ANOS 1960-
1970).

GOMES, Vinícius. (UDESC)


vgomes19@gmail.com

Resumo

Os filmes de Sembène Ousmane constroem narrativas significativas para compreender a História da


África e podem ser ferramentas que auxiliam seu ensino no Brasil. O cineasta passou boa parte de sua
carreira, consolidada no século XX, produzindo filmes que reescrevessem a imagem dos homens e
mulheres do continente africano, apresentando suas culturas sem os estereótipos construídos pelos
não africanos e em especial a resistência dessa população contra o colonialismo. As duas produções
aqui trabalhadas são muito próximas temporalmente, sendo La Noire de... de 1966 e Emitai de 1971,
contemporâneas a vários movimentos de independência que aconteciam na Costa Ocidental africana.
Nesse sentido, o trabalho aqui proposto busca analisar a forma com que o diretor se relaciona com a
ancestralidade e a cosmovisão dos wolof nos dois primeiros longas-metragens de Sembène. A partir
disso, utilizando a história do filme e os aspectos estéticos, buscaremos perceber como o diretor constrói
essa narrativa e a maneira com que a sua câmera apresenta esse aspecto cultural da ancestralidade
muito presente nas várias sociedades de África. Assim, analisaremos a fonte tendo como metodologia as
discussões produzidas no campo dos estudos pós-coloniais e decoloniais, dialogando com a produção
de intelectuais africanos, tanto no entendimento do contexto, como na analise da cinematografia.
Para tanto, algumas perguntas podem ser lançadas: como os ancestrais são representados nos dois
filmes? De que forma os ancestrais participam na sociedade? Elas aparecem dentro do cotidiano ou
em momentos específicos? Essas questões e outras que possam surgir ao longo da pesquisa podem
nos ajudar a compreender de que forma essa cosmovisão é organizada e se faz presente na vida dos
africanos e africanas.

Palavras-chave: História. Cinema. Estudos Africanos.

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Introdução

Os filmes de Sembène Ousmane e o próprio artista atravessaram a metade do século XX e


tornaram-se a grande referência para o cinema africano e mundial, suas histórias e as mensagens
que ele queria passar formaram consciência e se tornaram, juntamente com a sua escrita, um
discurso de combate às várias injustiças que existiram e, ainda se preservam no continente e fora
dele. A análise que aqui é proposta tem o interesse de discutir cenas de dois de seus filmes: o
primeiro, seu segundo filme e primeiro com longa metragem é La Noire de..., lançado em 1966 e o
outro é Emitai, lançado em 1973. Em linhas gerais, os dois filmes tratam sobre a violência colonial
que o estado francês e o mundo ocidental suscitam contra as populações africanas.
A questão é perceber de que forma o diretor se relaciona tanto com a ancestralidade e a
cosmovisão, categorias que muitas vezes caminham juntas, nos grupos étnicos1 Wolof e Diola,
sendo que são esses os dois grupos que Sembène trabalhará na sua carreira. Em La Noire de...,
a personagem principal e todos ali presentes fazem parte dos primeiros, já em Emitai, são os
segundos que estarão na tela. A analise dos filmes partiu da sua visualização, marcando as cenas
e os acontecimentos que ocorriam na tela para produzir uma interpretação dentro do contexto do
filme, mas também olhando elas de isoladamente. A situação que ocorre dentro da análise fílmica,
no que tange a uma metodologia, não tem ainda uma forma muito bem assentada, porém cada um
faz do seu jeito e a partir da sua própria relação com os filmes.
A discussão historiográfica com os filmes, , torna-se uma amálgama de discussões, unindo
a teoria do cinema, nas questões de montagem e estética com as discussões dos estudos pós-
coloniais de maneira geral. A construção desse texto caminha a produzir uma pesquisa que dá
os primeiros passos em um terreno ainda bastante inóspito dentro do campo das humanidades.
Os resultados obtidos e as categorias analisadas caminham por várias discussões, não somente
históricas, mas transitam por várias disciplinas que de maneira unida podem auxiliar nas respostas
as perguntas lançadas na proposta do trabalho.

1 O Senegal de Sembène Ousmane



Apresentando um pouco o artista, ele é nascido na cidade de Zinguichor em 1923, na
borda sul do rio Casamance, na região que foi denominada de Baixo Casamance. A localidade
era um centro administrativo daquela região, pois além da sua localização no rio, ela também é
próxima da fronteira com a Guiné-Bissau. Sembène Ousmane – ou Ousmane Sembène – cresceu

1 Dentro do Senegal não são somente esses os dois grupos étnicos que fazem parte do leque de culturas que
habitam aquele território, mesmo que os Wolof ocupem a maioria. Os outros são os Fula, Serer e os Diola (ou Jola),
entre outros. O que é preciso compreender é que dentro da Costa Ocidental Africana esses grupos estão espalhados
ao longo desses países, situação que foi causada pela colonização, já que as fronteiras não eram excludentes com a
vizinhança.

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Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

nessa região, e na sua juventude alistou-se no exercito colonial francês, os thiaroye senegaleses2,
que haviam lutado na primeira guerra mundial e foram utilizados no conflito subsequente onde ele
lutou. Posteriormente, Sembène imigra para a cidade de Marselha, onde trabalha como estivador e
escreve o seu primeiro livro Le Dock Noir, que poderia ser traduzido livremente como O Estivador
Negro. Entre idas e vindas na sua vida, o artista que era membro do partido comunista francês e
frequentador de várias reuniões e congressos do pan-africanismo que surgiam naquela época,
sentiu a necessidade de dialogar com seu povo. O caminho que ele havia feito em todos esses
anos foi o de escritor, mas no seu país eram poucos os que liam, restringia a uma elite dirigente.
Dessa forma, o diretor, segundo ele mesmo, parte em busca de outra via e a escolhida será a
cinematográfica.
A partir dessa mudança, o cineasta realizou uma carreira que começou na metade dos
anos 60 e terminou com a sua morte já no século XXI, tendo vários filmes na sua carreira com um
variado leque de temáticas, indo do colonialismo, para a islamização da costa ocidental africana e
atravessando as corrupções das elites dirigentes. Os dois filmes que serão utilizados como fontes
para esse artigo fazem parte das suas primeiras produções cinematográficas. Em La Noire de...
o diretor vai contar os dissabores da vida de Diouana, uma jovem senegalesa que vai trabalhar na
casa de um casas de franceses na Cote d’Azur, onde conhece toda a violência colonial na perda
da sua identidade. Por sua vez, Emitai vai apresentar a resistência de um povoado Diola onde as
mulheres se negam a entregar o arroz para o exercito francês em um ato de desobediência ao
poder estabelecido, na trama poucos são os personagens brancos, pois Sembène trabalha essa
violência colocando os africanos no foco da narrativa, tanto nos que praticaram as violências a
mando de uma nação estrangeira, como naqueles e naquelas que resistiram e lutaram contra
esses desmandos.
O contexto dessas duas produções é importante na compreensão das narrativas, pois
a metade do século XX vai marcar a luta de independência que ocorreu por todo o continente
africano, no caso do Senegal isso não foi diferente, conseguindo a sua emancipação em junho
de 1960. O cineasta, portanto, produz uma narrativa nesse momento que buscava consolidar o
estado senegalês, falar a sua população e ensina-la sobre as situações que a cercavam e a sua
história, mas que não montava uma narrativa heroicizante e homogeneizadora dessa nação que
se construía. Ao mesmo tempo, existe uma preocupação em prestar homenagem a todos que
lutaram e ainda estavam lutando nesse processo em outros países. Isso é percebido no início de
Emitai onde Sembène coloca a frase “Dedico esse filme a todos os militantes da causa africana”
(Sembène, 1973). Havia, nesse sentido, uma preocupação com as lutas contra o colonialismo
que naquele momento, apesar de muitos já libertos, ainda ocorriam lutas em alguns lugares do
continente, como em Moçambique e Angola.
Outra preocupação do cinema de Ousmane era apresentar a sociedade como ela era e não

2 O agrupamento referenciado aqui era a dos artilheiros senegaleses, o grupo de infantaria do exercito colonial
francês que teve o papel de servir como braço armado do império dentro do território africano, mas também lutou
durante a Segunda Guerra Mundial contra os alemães no norte do continente.

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se economizava, em comentários polêmicos acerca de várias questões delicadas da sociedade
senegalesa e que atravessam outros países. Nessa esteira, a cosmovisão e a ancestralidade
aparecem dentro do cotidiano, na maneira como elas estão presentes na cultura em geral, o que
significa dizer que efetivamente o cinema africano não criará uma versão própria do que é ser
africano, mas sim, aquilo que faz parte desses sujeitos e suas histórias, estando embebido por
esses mesmos. No cinema produzido pelo artista discutido, a mensagem que se está querendo
passar tem uma posição central, muito mais do que a perfeição da imagem ou mesmo uma estética
bela. A pretensão é ensinar as massas e, dessa forma, se utilizaram de todos os recursos possíveis
para que elas compreendam tudo o que se estava a dizer, como nos diz Manthia Diawara sobre o
primeiro longa metragem:
Sembène usa de La Noire de... como um veículo para a imagem africana que fala
eloquentemente para nós, pela primeira vez no cinema africano, falando sobre um lugar no
mundo moderno das imagens e que fala coisas que não haviam sido ditas nos filmes que
eram produzidos perfeitamente. (Diawara; 1992: p 29).

Na questão da mensagem é importante perceber as escolhas desse diretor, como foi


apontando anteriormente, ele vai à busca do cinema e vai buscar aprender sobre essa nova
linguagem indo para a Rússia estudar nos estúdios Gorki. Para Sembène, era preciso construir uma
literatura nacional, mas, novamente, poucos tinham acesso à escrita e ele se viu discursando a um
pequeno grupo e não a totalidade do povo como ele queria. O uso do cinema segue esse caminho,
pois ele se via imbuído de ajudar a construir a nação e com a participação popular isso poderia ser
conquistado. Em muitas medidas, o discurso do pan-africanismo que ele havia escutado e que
o havia inspirado estava ainda muito presente no seu imaginário e é dele que ele lança as suas
narrativas e polêmicas para o mundo africano.
Nos anos 1920, a África não era o centro do pan-africanismo; o centro era na diáspora. E
continuou durando naqueles primeiros anos, no começo da década, em que nós vimos os
primeiros africanos estudados. Depois da Primeira Guerra, isso ficou mais forte e todas
as pessoas que vieram de todos os horizontes se conheciam e nós nos encontrávamos
e, conversávamos sobre a independência: Chou-En-Lai da China, Georges Padimore,
WEB Dubois – essas eram as pessoas engajadas na luta. Depois da independência, nós
preservamos a ideia do pan-africanismo para a união do continente. Para mim, isso
é muito importante. (SEMBENE; 2005).

O diretor e sua geração engajaram-se nos projetos de nação e buscaram construir países
que pudessem ser independentes. Tanto no cinema quanto na literatura, a grande ideia era
colocar nessas narrativas o povo africano. Como aponta Manthia Diawara, um importante crítico
e estudioso do cinema africano no documentário sobre a vida Sembène de mesmo nome. Era
importante para ele e a sua geração ver o que era produzido pelo cineasta, pois aquelas pessoas ali
registrada estavam nas ruas, os homens eram os seus país, as mulheres suas mães. Percebe-se,
então, que ali estava a questão cerne de se ver representado na tela e ter os seus problemas ditos
e as violências debatidas.
A chave da ancestralidade não caminha sozinha, para pensa-la dentro do contexto
africano é preciso, como dito, lançar mão da também da noção de cosmovisão que pretende ser

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

um guarda-chuva para toda essa visão de mundo que é própria. Indo pelo mesmo caminho, a
categoria de tradição oral também aparece muito forte para compreender como essa organização
da sociedade, ou seja, essa cosmovisão, o ver o todo, participa e é parte significativa da educação
dentro desses modos de ser existentes na costa ocidental africana. No que tange a ancestralidade,
ela é participante do cotidiano em praticamente todas as sociedades africanas, a particularidade
está na organização e nas formas que essa cultura se apresenta. Como dirá Hampáte Bá:
A tradição é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode
parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e descontentar a mentalidade
cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição
oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico
para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes
de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas.
Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar a
Unidade primordial (BÁ, 2003 p.183).

A separação entre o mundo espiritual e o material e inexistente, pois eles coabitam o mesmo
plano e se inter-relacionam. O cotidiano, dessa forma, é bastante inundado por essa cosmovisão
que traz os espíritos para serem conselheiros, mas que também podem ser os juízes e carrascos
das disputas. Dentro das narrativas dos dois filmes aqui analisados isso aparece, em alguns
momentos mais forte do que em outros, mas aquilo que forma a visão de mundo do diretor está lá.
O ambiente dos filmes é coabitado por essas entidades que fazem uso dos seus poderes para agir
dentro das narrativas e, por ter esse aspecto de estarem presentes como participantes, os espíritos
podem ser desafiados, a conversa faz parte dessa relação. Em La Noire de... as forças ancestrais
agem para expulsar o colonialista, mostram a sua força a favor do povo e como essa lógica pode
ser motor para a revolução. Já Emitai mostrará a discussão com as entidades que não estão tão
próximas do povo, mas agem por interesses próprios e que serão tão vitimas do massacre e da
fome quanto às pessoas, pois elas só podem existir se coabitarem o espaço com os vivos.

2 Cenas de Sembène Ousmane

A primeira cena analisada nesse texto é a do seu primeiro longa metragem, na sua
parte final, com o desfecho da história. A narrativa que havia começado na França e pulava em
flashbacks voltando para o Senegal, agora se passa totalmente em terras africanas. O começo da
sequência traz o patrão de Diouana, depois do trágico final da jovem suicidando-se na banheira
do apartamento na Riviera Francesa, levantando-se, pegando as coisas dela e saindo da casa,
onde o corte faz um fade entre elas e no final ele já esta dirigindo seu carro para o bairro onde ela
nasceu no Senegal. A caminhada do patrão segue trajeto para encontra-la, mostra o endereço
para um sujeito na rua e ele aponta a escola popular e o leva até lá para encontrar o professor, que
é o próprio Sembène e apresenta os dois. No encontro, o africano é avisado com quem ele está
falando e diz aos outros que estão ali quem era aquele branco. Os olhares dos jovens ali mostra a
indignação com aquele sujeito, a câmera mostra os sentimentos e aponta o desconforto que ele

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têm em enfrentar essa situação.
O desenrolar da cena também apresenta um menino, que já apareceu em outro momento
do filme e que tem uma relação muito próxima tanto com a Diouana, quanto com a máscara que
representa os ancestrais. Dessa maneira, os personagens do patrão, do professor e do menino
caminham para a casa da mãe da jovem, lugar para o qual o francês queria levar os objetos que
estavam com ele. Por fim, no encontro entre eles e a mãe o patrão entrega os objetos e tenta dar
uma quantia em dinheiro para ela como reparação pelos “incômodos”. Ao passo que, isso não foi
aceito por ela que entra na casa e vai embora, ele olha para o personagem de Sembène e este o
apresenta a saída da casa. Ele sai e o menino olha para a máscara, a coloca no rosto e vai atrás
dele.
A partir disso, a montagem apresenta-se como perseguição entre o patrão e o menino
com a máscara, em que ela vai comparando o incomodo do francês, saindo correndo daquele
bairro com medo. O menino, por sua vez, caminha de maneira muito tranquila e monta-se aos
poucos por detrás do menino sombras de pessoas adultas que caminham junto com ele com a
mesma velocidade. Podemos pensar que a ferramenta estética que é utilizada aqui representa aos
ancestrais que andam junto a ele e afastam o colono francês e também na metáfora ali apresentada
também esta a violência colonial. A narrativa do cineasta mostra o movimento da ancestralidade,
dentro do cotidiano, no qual os espíritos agem contra a violência e participam da libertação e da
formação desse contexto da nação e, mais ainda, da população, foco central da sua narrativa e
motivo da feitura do seu cinema.
Analisando um pouco mais a questão ancestral, o sociólogo Fábio Leitte, escritor do livro
A Questão Ancestral, tem um trabalho que nos possibilita refletir acerca dessa dinâmica em
sociedades da costa ocidental de maneira geral. A morte dentro dessas sociedades é um importante
momento, que se conforma em um rito de passagem que toda a comunidade se envolve e participa
junto com a família do processo. Ele aponta que não é somente a morte que fará o sujeito tornar-se
uma entidade ancestral, mas tudo aquilo que é feito durante e depois do seu enterro. Portanto, as
pessoas devem também participar dos rituais que vão produzir o ancestral e o falecido se tornará
uma força ativa na sociedade.
Em certa medida, a questão no campo imagético também vai ao encontro das máscaras,
pois elas muitas vezes carregam a expressão maior do que é a ancestralidade, mas que não são,
necessariamente, a materialidade de toda essa crença, elas tem um papel de panteão (LEITE,
2008 p.378). O entendimento desse processo nos ajuda a perceber o que pode estar no segundo
plano e que já foi mencionado, a cena, então, carrega elementos que vão além do personagem do
menino, mas então nas sombras e em especial na forma como o colonizador foge do lugar. Nesse
sentido, o conjunto todo faz parte do que se pode perceber da ancestralidade. Citando o autor:
[...] como os fatores sociais de essência ancestral apontados ao longo deste trabalho
integram historicamente relações e instituições de inúmeras esferas dos processos sociais
– muitas delas de notável envergadura -, julgamos cabível propor que tal realidade institui
uma outra massa ancestral privativa das sociedades, aquela formada pelo conjunto de
práticas sociais nela envolvidas, impactadas pelos entes sobrenaturais, mas produzidas

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Negras e negros no Sul do Brasil
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pelo homem (LEITE; 2008, p.379).

Em linhas gerais, o autor afirma que todo esse corpo sobrenatural afetará as esferas
sociais, nos mais diversos níveis, mas que efetivamente são produzidas pela própria sociedade
nos seus rituais. A força da expulsão do colono branco que vai pagar a morte de uma jovem que
era daquela localidade só poderia existir, em determinada interpretação, quando a mãe de Diouana
nega e anteriormente quando a sociedade mostra evidentemente a sua posição de indignação
com o fato de aquele homem, causador do sofrimento de todos, vai lá entregar o dinheiro.
O cinema, dessa forma, encarregado da mensagem, em poucos segundos traz uma série
de interpretações, mesmo não sendo o ponto absolutamente central da obra, o que o cineasta faz é
colocar de maneira naturalizada um aspecto social muito importante na sua sociedade. Isto posto,
não é preciso um grande processo revolucionário, apesar de ele ser importante, mas de situações
simples, onde pequenos gestos mostram toda a força e indignação das pessoas simples. As quais,
como dito, era para quem Sembène tinha algo a dizer.
Partindo para a outra cena, a do filme Emitai de 1973 e que tem como personagens o
povo Diola e seu enfrentamento direto contra as tropas coloniais que haviam tomado a aldeia
para confiscar o arroz que seria destinado às tropas em guerra. O escopo central da narrativa é
representar a resistência à violência, situação que já está no começo do filme quando os homens
mais jovens da região são sequestrados pelas tropas para lutarem na guerra, o desenrolar todo
da trama vai mostrar exatamente quando a população que está indignada com o que foi feito aos
seus filhos se recusa e esconde o grão no mato. Os enfrentamentos se dão de várias maneiras. Em
um primeiro momento, os mais velhos reunidos, sabendo da ordem, ficam discutindo se devem
ou não defender a aldeia do invasor, a grande questão está na oferenda aos deuses, pois estas
devem ser com o arroz, mas esse está escondido e não há também como esperar por todos os
rituais. Essa posição defendida por Djimeko não tem consenso, mas mesmo assim ele assume a
responsabilidade e vai junto com os homens restantes da localidade atacar o exercito francês. No
primeiro enfrentamento armado, o que acontece é a derrota e a morte de muitos dali, inclusive o
próprio comandante é ferido em batalha.
Da parte das mulheres, elas têm um papel central na trama, como apontado por Diawara,
pois constituíram a resistência direta ao exercito invasor que toma a vila e reúne todas elas no meio
daquele lugar, embaixo do sol escaldante propositalmente para eu informassem aos colonialistas
onde estava o arroz. O exercito, por sua vez, tem uma formação interessante, pois todos ali a não
ser o comandante geral, são africanos, dessa maneira, Sembène volta na ferida do passado e
representa os conflitos da maneira como eles ocorreram, ou seja, a máquina de guerra francesa
não era construída por pessoas que vinham de longe, mas sim de sujeitos que eram de localidades
vizinhas ou mesmo mais distantes. Isso significa dizer que a violações causadas nesse contexto
e em outros, foram resultado da ação daqueles que também eram subalternizados. As mulheres
da aldeia, portanto, resistem a toda a tortura que lhes é jogada por aqueles que são parecidos com
seus filhos e netos.

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Dado o contexto geral, a ancestralidade aparece quando do ferimento de Djimeko e ele
é levado para o lugar de cerimônia dos mais velhos homens daquele lugar. E é lá que os deuses,
os ancestrais mais velhos, os primeiros que produzem as lendas de criação, são chamados para
interceder na contenda e discutir com o chefe ferido. A sequência toda começa com um homem
levando uma galinha para a porta da frente da casa, da qual um dos mais velhos sai, pega o animal,
aponta para onde outros homens esperam sentados e o manda esperar. Neste momento todas as
cenas aconteceram lá dentro e em grandes planos sequência que dão até um sentido de calma,
em especial com relação ao ritual, a velocidade não é acelerada pela busca por resposta, pois
em uma concepção africana as coisas precisam do seu tempo para acontecer. Em contrapartida,
a discussão entre o chefe e as entidades é um pouco mais acelerada, cortando entre o plano
espiritual e o terreno que nesse momento estão em pleno coabitar.
O cenário produzido é o de uma reunião aos pés de uma grande árvore, em cada banqueta,
um homem mais velho que tem direito a palavra, perto de cada um deles existe uma espécie de
patuá com ossos e cabeças humanas que representam ao que tudo indica a relação próxima que
eles mantêm com os ancestrais. Na ponta dessa reunião, uma árvore enorme, com uma abertura
chama bastante à atenção do espectador. A cena segue com o plano sequencia do sacrifício da
galinha para que se possa iniciar o ritual de consulta aos deuses, ali o encarregado, que é um dos
mais velhos, sangra o animal e joga o seu sangue em um chifre que fica colado a árvore, banhando
todo o objeto, no final, o corpo é jogado dentro da abertura. Posterior a isso, o mesmo sujeito pega
um pote que ele trazia consigo com algum líquido que não se diz qual é e o joga no mesmo lugar
que o sangue. É somente com esse ritual que os deuses aparecem.
A representação dos deuses carrega uma escolha estética interessante e que é única
nos filmes do diretor, ao passo que, depois desse filme ele nunca mais representou diretamente
as entidades. Os espíritos quando são mostrados tem um filtro arroxeado, marcando a sua não
presença no plano terreno, pois não há qualquer tipo de filtro, somente a luz natural. A escolha do
diretor em fazer isso não é muito evidente, nem mesmo se pode afirmar com toda a certeza que ela
tenha partido dele e não da edição ou do fotografo. Mas, a cena traz uma distinção entre aqueles
deuses e as pessoas. No que tange a caracterização desses quatro seres, a escolha se dá por
representar dois como o masculino e o feminino e essas duas características são reconhecidas
facilmente. Contudo, nas outras duas isso não fica tão aparente, em uma delas o que pode estar
representado é a ferramenta para o cultivo do arroz, uma espécie de pá que é mostrada logo no
inicio do filme quando o diretor mostra os agricultores trabalhando, com relação à outra não fica
muito evidente, ou foge a interpretação qual é o elemento que aparece ali.
A cena toda se desenrola na discussão entre Djimeko, o chefe ferido em batalha e Emitai,
a entidade que rege os céus e a guerra. No argumento entre dois, o debate, sendo essa a melhor
palavra para descrevê-lo, se dá a partir do descontentamento dos deuses que não tinham mais as
suas oferendas e o dos seres físicos que não tinham a ajuda deles contra os invasores brancos.
A discussão acontece de maneira bastante interessante, pois não há necessariamente um
distanciamento entre o físico e o espiritual, em especial no jeito de falar um com o outro. O respeito

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Negras e negros no Sul do Brasil
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de Djimeko é perceptível, mas ao mesmo tempo em que é aparente que ele não se deixará levar
pelas decisões dos deuses, mas questionará aquilo que ele acredita ser injusto.

Conclusão

Retomando as questões propostas nesse trabalho, o diretor Sembène Ousmane se


mostra bastante preocupado em representar na tela a sociedade que ele vivia, um dos aspectos
é a ancestralidade. Em especial, a maneira com que ela é proposta na narrativa é de tal forma
uma focalização de como o relacionamento com o mundo espiritual se entrelaça com o mundo
terreno. A partir disso, na discussão de Djimeko ou na perseguição do menino com a máscara em
La Noire de... o cotidiano é tocado por essas entidades e é isso que mostra como a ancestralidade
se constrói nas relações sociais dos africanos.
O ponto crucial nessa discussão é perceber como os africanos da costa ocidental se veem
dentro das suas culturas e como isso é transportado por Sembène, nos casos analisados, o diretor
coloca essas culturas de maneira bastante dinâmicas e questionadoras das suas realidades, onde
os ancestrais se interpõem como conselheiros e debatedores das realidades, ao mesmo passo
que podem também ser a metáfora de que ninguém está sozinho. Assim, a ancestralidade está
colocada como participante da cosmovisão dos wolof e dos diola e estão em constante circulação
e transformação.
Por fim, é importante notar que a discussão sobre o cinema africano já tem um caminho
internacionalmente, alguns nomes como Manthia Diawara, Samba Gadijgo, Frank Ukadike e Sada
Niang já se debruçaram sobre alguns aspectos do cinema desse continente, especialmente a
carreira de alguns diretores, porém muitas das suas obras ainda permanecem sem tradução para
o português. No Brasil, a referência era o professor Mahomed Bamba que se esforçava também
na produção de festivais para disseminar as imagens desses cineastas no país. O seu falecimento
jogou para trás a discussão que, particularmente, no âmbito da história ainda é bastante recente,
mas que tem atraído vários novos acadêmicos que se interessam por aquilo que o continente quer
mostrar na tela.

Referências
DIAWARA, Manthia. African Cinema. Politics & Culture. Bloomington: Indiana University Press.
1992.

GADJIGO, Samba. Ousmane Sembène. Bloomington: Indiana University Press. 2008.

LEITE, Fábio. A questão Ancestral: África Negra. São Paulo: Palas Athena. 2008.
Bá, Hampâté. Amkoulle, o menino fula. São Paulo: Casa das Áfricas. 2003.

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NEM LÁ, NEM CÁ: O SENTIMENTO DE NÃO PERTENÇA DE
AFRODESCENDENTES E INDIANOS DE PELE ESCURA PRESENTE EM
O PAÍS SEM CHAPÉU DE DANY LAFERRIÈRE E AGUAPÉS DE JHUMPA
LAHRI.

PESSOA, Kátia M.B.F(UNIPLAC)


katiamarlowapessoa@gmail.com

Resumo

Este trabalho tem por objetivo destacar o sentimento de não pertença presente nas narrativas O
País sem chapéu de Dany Laferrière e Aguapés de Jhumpa Lahri. Apesar dessas se desenrolarem
em países, culturas e línguas diferentes possuem em comum a condição de ex-colonizados marcada
principalmente, pelos sentimentos dos personagens Vieux Os de O País sem Chapéu e Subhash de
Aguapés de não pertencer a lugar nenhum. Ou seja, estrangeiros no país dos outros (Canadá, Estados
Unidos) e no seu de origem e criação (Haiti e Índia). Essas observações se dão sob a ótica das teorias
de Edward Said, Francis Fanon, Stuart Hall.Homi Bhabha,Ana Mafalda Leite e G. Spivak. Pretende-se
neste artigo destacar esse sentimento de não-pertença, de estranhamento e de distanciamento da
cultura estrangeira como também da própria. Dessa forma, o sentimento da não pertença comparece
do início ao final das narrativas, no dia a dia de Vieux Os (País Sem Chapéu) e Subhash (Aguapés), uma
vez que no Canadá, o primeiro era só mais um operário negro imigrante que se perdia entre outros na
mesma situação. Quanto ao segundo, apesar da sua condição de doutor em Oceanografia, formado
pela universidade de Rhode Island, Estados Unidos e depois fazer parte do seu quadro de docentes,
continuava a ser um indiano, de pele mais escura, um intelectual, mas assim mesmo um estrangeiro.
Portanto, despatriados tanto em um lugar quanto em outro.

Palavras-chave: Deslocamento. Não pertença. Pós-colonialismo.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução
O estudo das literaturas de países pós-coloniais tem estado em evidência nos dias atuais
e é possível dizer, que começou a alcançar o seu boom a partir das duas últimas décadas ao ser
enfocada em cursos, seminários, congressos e pesquisas. Todavia, se considerar a relevância que
possui no contexto acadêmico atual, as discussões acerca da temática continuam sendo um tanto
escassas. Nessa perspectiva, a posição de docentes e pesquisadores da área incita a realização
de estudos condizentes com a importância de propostas que promovam a sua exposição e a
valorização de seu caráter estético.
Edward Said em seu livro Cultura e Imperialismo reforça a importância dos estudos dessas
literaturas ao afirmar, em 1993, que
à medida que o século XX se aproxima de seu fim, cresce em quase todo o mundo uma
consciência das linhas entre culturas, as divisões e diferenças que não só nos permitem
diferenciar as culturas, como também nos habilitam a ver até que ponto as culturas
são estruturas de autoridade e participação criadas pelos homens, benévolas no que
abrangem e incorporam e validam, menos benévolas no que excluem e rebaixam. (p.50)

Desse modo, este trabalho tem por objetivo destacar o sentimento de não pertença presente
nas narrativas O País sem chapéu de Dany Laferrière e Aguapés de Jhumpa Lahri. Apesar dessas
se desenrolarem em países, culturas e línguas diferentes que possuem em comum a condição
de ex-colonizados marcada principalmente, pelos sentimentos dos personagens Vieux Os de O
País sem Chapéu e Subhash de Aguapés de não pertencer a lugar nenhum. Ou seja, estrangeiros
no país dos outros (Canadá, Estados Unidos) e no seu de origem e criação (Haiti e Índia). Essas
observações se dão sob a ótica das teorias de Edward Said, Frantz Fanon, e G. Spivak.
Pretende-se, assim, destacar esse sentimento de não pertença, de estranhamento e de
distanciamento da cultura estrangeira como também da própria. Desse modo, faz-se necessária
uma breve explanação do que é a não pertença a fim de explicar como ela atua na vida das
personagens dessas narrativas. Logo, para compreendê-la é preciso, em primeiro lugar, buscar o
significado de sua forma afirmativa.

O SENTIMENTO DE NÃO PERTENÇA EM PAÍS SEM CHAPÉU E AGUAPÉS

A palavra pertença vem do verbo pertencer, verbo transitivo indireto que significa ser
propriedade de; fazer parte de; ser do domínio de. E por sua vez, tem como sinônimo adequar-se
cujo significado é compatibilizar-se, ajustar, combinar, harmonizar, afinar, casar, condizer, assentar.
Assim, pertença de acordo com o Dicionário Caldas Aulete é um substantivo feminino que significa
aquilo que faz parte de; pertence, propriedade; atribuição. Além disso, pertença também é um
termo jurídico usado para definir tudo o que acresce em caráter acessório ao bem, passando a
ser parte dele. Desse modo, a introdução da palavra não à pertença, faz com que todos esses
conceitos sejam anulados e se apresentam assim nas narrativas País Sem Chapéu e Aguapés.

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O livro País Sem Chapéu se divide em duas partes: País Real e País Sonhado. O primeiro se
refere ao país diurno que obedece às regras, às leis e à língua adquirida por meio da colonização
branca cuja estrutura é escrita de modo fragmentado em que os pedaços são iniciados por
títulos e a maior parte das vezes não há uma sequência do assunto exposto de um com o outro.
Provavelmente, essa fragmentação se dê pelo fato do autor-narrador, Vieux Os, estranhar o Haiti ao
retornar após vinte anos de exílio. E ao descrevê-lo ele se depara com fatos e situações novas que
não correspondem ao país de suas lembranças, levando-o a registrá-los à medida que vão surgindo
como um turista que ao chegar em um lugar desconhecido passa a tirar fotos das novidades
encontradas sem apresentar, muitas vezes, uma sequência lógica, de modo desordenado.

O cemitério

Bem ao pé do morro Nelhio, o cemitério de Porto Príncipe, como uma porção de diamantes
brutos.

É o ponto de encontro de todos (p.36).

A guerra

Foi o que aconteceu nestes vinte anos com a habitação. A guerra. A população de Porto
Príncipe aumentou muito com a chegada de emigrantes de todas as camadas sociais.
Esse movimento provocou um pânico geral na cidade. Os burgueses tradicionais de
Porto Príncipe se refugiaram maciçamente nas montanhas Na classe média, a população
quintuplicou, enquanto o espaço continuou o mesmo. Instalou-se uma feroz dança de
cadeiras. E quem perdeu o lugar foi parar ipso facto no deus nos acuda de Martissant (...)
(pp. 36,37).

Brincadeira

São quatro ou cinco garotos de doze a catorze anos, sentados em um murinho, debaixo de
uma amendoeira, provocando-se, rindo (...) A brincadeira torna-se cada vez mais brutal.
As risadas, mais roucas. Algumas disputas corporais. Um deles é agarrado pela gola. (...) A
brincadeira para instantaneamente. (...) O que está sem camisa desculpa-se longamente.
O outro, mais desesperado que bravo, desce do murinho para ir embora, cabisbaixo (p.46)
(...).

A tarde

- Acabou de chegar, patrão? –Como é que você sabe?-Patrão, dá para ver na cara.

Posso lhe dar um conselho? Vá em frente. – Mude a data da sua volta e vá embora amanhã
logo cedo. – Por quê? Eu estou no meu país. – O país mudou, meu amigo. As pessoas com
quem se cruza na rua não são todas seres humanos, hum... – Por que você diz isso? E
você? – Eu? Faz muito tempo que morri... (...) Este país virou o maior cemitério do mundo
( pp.46,47).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Ah! Eu me lembro desse exército de zumbis que o velho presidente tinha ameaçado
lançar contra os americanos se eles ousassem por os pés em solo haitiano. O general
do exército morto(...). Eu estava em Miami, na época, e o Miami Herald transcreveu as
palavras do velho presidente. Onde estava, então, esse exército quando os americanos
desembarcaram?

De repente o rosto de minha mãe fica sombrio.

- Ele estava lá - ela acaba articulando. - Ele esperou as ordens. Finalmente, o velho
presidente fez um pacto com o jovem presidente americano. O exército americano
ocupará o país durante o dia. À noite, o país será entregue ao exército dos zumbis (...).
É preciso dizer que o único pavor do soldado americano - como esse jovem soldado de
Ohio-, era circular na noite haitiana. Todos eles ouviram falar do vodu antes de chegar a
Porto Príncipe, e todos têm medo de enfrentar o inimigo invisível cujo riso congela os ossos
(pp.54,55) (...).

- Meu caro amigo - diz ele -, a metade das pessoas que o senhor encontra nas ruas estão
em outro lugar ao mesmo tempo. O senhor me entende? Não, eu ainda não tinha entendido,
mas não queria dizer isso ao senhor Pierre para não decepcioná-lo. É nisso que dá passar
quase vinte anos fora do seu país. Já não entendemos as coisas mais elementares (p.96).

Assim, Vieux Os divide suas atenções entre os dois países: o real e o sonhado sendo
surpreendido por ambos após vinte anos de ausência. Pelo primeiro, por não reconhecê-lo
conforme dito acima e o segundo por tê-lo, em parte, esquecido apesar de reconhecê-lo como
o país de suas lembranças. Este é o país sonhado, o esperado por Vieux Os, mas ele se sente
estranho nesse país também.
Em relação ao livro Aguapés, a narrativa apresenta uma sequência linear em ordem
crescente, dividida em partes e capítulos numerados, que se inicia com a infância das personagens
irmãs: Subhash e Udayan em Calcutá, na Índia e termina com a maturidade do primeiro em Rhode
Island, Estados Unidos e na Irlanda. Desde o início, observa-se uma rivalidade entre eles camuflada
pela amizade e pelo amor fraternal que os une.
Desde pequeno, Subhash era muito comportado. A mãe nunca precisava correr atrás dele.
Ficava ao lado dela, olhando-a (...). Ajudava o pai a plantar dálias em vasos no quintal (...). Nos
jogos tumultuados, esperava até acabarem. Os gritos, cessarem. Do que mais gostava era de
ficar sozinho ou de se sentir sozinho. (...) Enquanto Subhash sempre estava à vista, Udayan vivia
desaparecendo: mesmo na casa de dois cômodos, quando menino, tinha mania de se esconder,
debaixo da cama, atrás das portas (...). Fazia essa brincadeira sem avisar, sumindo de uma
hora para outra (...) obrigando a mãe chamar a sua atenção e mandá-lo parar com o que estava
fazendo(...) enquanto entrava na brincadeira e o chamava, Subhash via o pânico momentâneo
no rosto dela, o medo de talvez não o encontrar (p.5) (...). Apesar de suas diferenças, os dois
sempre se fundiam e assim quando chamavam o nome de um, os dois respondiam. (...) Eram
muito parecidos fisicamente, podendo usar as mesmas roupas.(...) Subhash se perguntava se
seus pais viam seu temperamento pacato como falta de criatividade, talvez até como defeito.
Seus pais não precisavam se preocupar com ele, mas nem por isso era o preferido. Tomou como
missão obedecê-los, já que surpreendê-los ou impressioná-los não era possível. Isso quem fazia

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era Udayan (...). Subhash podia ter começado a escola um ano antes. Mas, por uma questão de
conveniência - e também porque Udayan protestou à ideia de Subhash ir sem ele -, os dois foram
postos na mesma turma ao mesmo tempo (p.7).
Observa-se no decorrer da narrativa que a personalidade dominante de Udayan persiste
até quando se tornam adultos, pois Subshah apesar de escolher uma graduação diferente a do
irmão, continua sob sua influência. Ele é Subhash, sub remete a submisso. Este é ao irmão e aos
pais, o nome se adequa à condição de subordinado, visto que Subshah em sânscrito significa
suaves faladas, eloquente. Su bom hahs discurso. Assim ele é de fala polida, de tom calmo e
racional. Já Udayan significa tanto em sânscrito quanto em hindi: o nome do rei, como também se
levantando, mostrando-se. Como se pode observar, adequa-se bem à personagem Udayan que é
autoritária e voluntariosa, o oposto do irmão. Os opostos que se complementam.

Subhash resolve se candidatar a alguns programas de doutorado nos Estados Unidos. As


leis de imigração tinham mudado, facilitando a entrada de estudantes indianos(...), Achou
melhor comentar primeiro com Udayan, antes de contar aos pais(...). Mas Udayan não
se deixou impressionar. Como você pode se afastar do que anda acontecendo? Daqui,
em primeiro lugar? É um programa de doutoramento. Questão de poucos anos. Udayan
sacudiu a cabeça. Se você for, não vai voltar. Como você sabe? Porque te conheço. Porque
você só pensa em si mesmo. Subhash encarou o irmão. Você acha que o que você está
fazendo não é egoísta? (...) Você é minha outra metade, Subhash. Sem você, eu é que não
sou nada. Não vá. Foi a única vez em que ele admitiu uma coisa dessa. Falou com amor
na voz. Com carência. Mas Subhash tomou como uma ordem, (...) Mais uma exortação a
fazer o que Udayan fazia, a segui-lo (p.10).

No entanto, por motivos políticos, quem desaparece é Udayan. Idealista, ele havia se
engajado ao Naxalismo1, partido comunista considerado radical de extrema esquerda, de apoio
político e de ideologia maoísta,tentando fazer com que os pais o apoiassem e o irmão mais uma
vez o seguisse, o que ele não o fez. Assim, ocorre a primeira separação entre Sushash e Udayan:
este parte para a revolução, ajudando a organizar o campesinato e àquele parte para os Estados
Unidos, visto que o sentimento de não pertencer mais ao lugar de origem se inicia antes de partir.
“Era o retrato de uma cidade da qual Subhash não se sentia mais como parte integrante. Uma
cidade que ele se preparava para deixar (p.13)”.
Constata-se que tanto Vieux Os de O País Sem Chapéu, quanto Subhash de Aguapés
saíram de seus países de origem por motivos políticos. O primeiro, por contrariar as ideias e os

1 O termo “Naxal” deriva do nome da vila Naxalbari no estado de Bengala Ocidental, na Índia, onde o movimento
teve a sua origem. O Naxals são considerados comunistas radicais de extrema-esquerda, de apoio político e ideologia
maoísta. Sua origem pode ser rastreada até a separação em 1967 do Partido Comunista da Índia (Marxista), levando à
formação do Partido Comunista da Índia (Marxista-Leninista). Inicialmente, o movimento teve seu centro em Bengala
Ocidental. Nos últimos anos, espalhou-se em zonas rurais menos desenvolvidas da Índia Central e Oriental, como
Chhattisgarh, Orissa e Andhra Pradesh, através das atividades de grupos

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

atos de Jean-Claude Duvalier, “Baby Doc”2 em seus artigos de jornal, é obrigado a se exilar no
Canadá, onde permanece durante vinte anos sem visitar o Haiti, de acordo com a narrativa; o
segundo, busca um auto exílio por meio dos estudos por dois motivos: tentar ser sujeito de sua
própria história, saindo da sombra do irmão, da condição de submisso e por não apoiar as ideias
naxalistas de Udayan.
É importante ressaltar que as narrativas dialogam entre si quanto à situação das personagens,
conforme dito acima, em relação ao sentimento da não pertença. Este comparece do início ao final
das narrativas, no dia a dia de Vieux Os (País Sem Chapéu) e de Subhash (Aguapés).
Assim, verifica-se que as personagens das duas narrativas encontram um lugar diferente
daquele mantido em sua memória e quando retornam ao país de origem, percebem que quase
tudo lhes é estranho: as pessoas, os costumes, o cheiro. O cheiro que antes lhes parecia normal,
agora é ruim, desagradável. No caso de O País Sem Chapéu, o problema do cheiro aparece mais
de uma vez citado pela personagem:
O cheiro

O problema não é tanto a multidão. É o cheiro. Por volta de cem mil pessoas concentradas
em um espaço estreito sem água corrente (p.38). (...) O que impressiona primeiro é o
cheiro. A cidade fede. Mais de um milhão de pessoas vivendo em uma espécie de lodo
(mistura de lama preta, de detritos e de cadáveres de animais. Tudo isso debaixo de um
céu tórrido. O suor. Mija-se em todo lugar, homens e animais. Esgotos a céu aberto. (...)
Sempre a multidão. O cheiro de Porto Príncipe tornou-se tão forte que elimina todos os
outros perfumes individuais. (O País Sem Chapéu, p.58)

Ele esquecera a possibilidade de tamanha aglomeração humana no mesmo espaço


(p.20). (...) Foi assaltado pelo cheiro ácido, pútrido de seu bairro, de sua infância. O cheiro
de água parada. O fedor de algas e esgotos a céu aberto. (...) ele viu a casinha que deixara
para trás, agora substituída por algo grande, desajeitado. (Aguapés, p.21)

Essas afirmações remetem ao pensamento de Kusch em América Profunda quando


escreve acerca do Juízo do Asseio exposto por Ezequiel Martinez Estrada,

“se o fedor da América é o menino lobo, o bêbado de chicha, o índio rezador ou o mendigo
hediondo, será o caso de interná-los, limpar as ruas e instalar banheiros públicos. A
primeira solução para os problemas da América está em corrigir sua sociedade e impor-
lhe o asseio.”(Kusch. p.13,14)

2 Com a retirada dos EUA, e a promulgação da nova constituição do país em 1950, elege- odiado, perseguidor
incansável de seus opositores e da Igreja Católica, conduzindo sua guarda se, neste mesmo ano, Paul Maglorie para a
presidência da república. O ditador fica no poder até os meses finais de 1956, quando o médico François Duvalier, o
“Papa Doc”, chega à presidência iniciando um período longo e nebuloso na história haitiana. Ao colocar em marcha um
governo ditatorial que tinha como braço administrativo o exército e suas práticas repressivas, tornou-se um presidente
temido e pessoal a realizar uma série de assassinatos justificados, sobretudo, pelo não-alinhamento político. Foram
quase 15 anos de uma política estabelecedora do silêncio característico dos regimes totalitários, até o dia que Papa
Doc foi assassinado, em 1971. Todavia a morte do ditador não significou a elevação de vozes abafadas durante o
período, os sussurros seguiriam, pois Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier assume a continuidade da política terrorista
de seu pai.

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Segundo Kusch, o “fedor” apresenta uma dimensão política que se opõe ao processo
de colonização, visto que trata como “fedor” também o odor natural do local das pessoas. E o
processo de higienização se refere também à imposição da raça e da cultura branca aos nativos.
Caso o “fedor” volte a prevalecer, acabaria com “o trabalho civilizatório feito a esses povos tão
carentes de cultura e asseio”. Observa-se por trás da “preocupação” de retrocesso do colonizador,
o medo de perder o poder sobre a colônia e junto com ele as regalias que ela proporciona.
O texto mostra a visão eurocêntrica em relação aos povos colonizados. Ele fala da América,
mas ela pode ser aplicada a qualquer país que passou por um processo de colonização, como, por
exemplo, a Índia. Assim, Vieux Os e Subhash após morarem em outros países, assumem também
esse olhar ao estranhar algo com o qual conviveram grande parte de suas vidas. A falta de higiene
das cidades natais é o primeiro sentimento de não pertença que lhes surge ao retornar. Eles vieram
de cidades organizadas e sem mau cheiro, por isso o cheiro natural de suas cidades não mais lhes
pertence.
Nas palavras de Fanon, “O negro que viveu na França durante algum tempo volta
radicalmente transformado. Geneticamente falando, diríamos que seu fenótipo sofreu uma
mutação definitiva, absoluta” (Fanon, Peles negras, máscaras brancas,p.35). Conforme o autor, os
negros que voltam para casa parecem ter adquirido algo que lhes faltava. Eles voltam literalmente
cheios de si. Possivelmente, acham-se melhores que os conterrâneos que não saíram do país
natal, pois tiveram contato com outras culturas “mais civilizadas” e de um certo modo, não se
enquadram mais na sua cultura de origem. Fato semelhante ocorre com Vieux Os e Subhash : eles
se sentem estrangeiros em seus próprios países.
No entanto, nos países estrangeiros em que Vieux Os viveu e Subhash vive, o sentimento
de não pertença também existe. No Canadá, o primeiro era só mais um operário negro, imigrante
que se perdia entre outros na mesma situação. Talvez com a diferença que tentava publicar seus
escritos, tentando ser ouvido num país que lhe era de empréstimo. Quanto ao segundo, apesar da
sua condição de doutor em Oceanografia, formado pela universidade de Rhode Island, Estados
Unidos e depois fazer parte do seu quadro de docentes, continuava a ser um indiano, de pele mais
escura, um intelectual, mas assim mesmo um estrangeiro.

Era tão extrema a diferença que ele não conseguia acomodar os dois lugares em sua
mente. Neste novo país enorme, parecia não haver lugar para o país anterior. Não havia
nenhuma ligação entre os dois; a única ligação era ele.Aqui a vida deixava de tolhê-lo
ou de atacá-lo. (...) E no entanto alguns aspectos físicos de Rhode Island- (...) tinham
certa correspondência com os de Calcutá, na índia.Montanhas ao norte, oceano ao leste,
a maior parte da área ao sul e ao oeste. (Aguapés,p.30) Também não apoiava a guerra
no Vietnã.(...) Sabia que podia ser preso nos Estados Unidos por criticar o governo.(...)
Estava aqui por cortesia, com visto de estudante, na universidade graças a uma bolsa.
Era um convidado dos Estados Unidos, como hóspede de Nixon.(...) Sabia que podia ser
mandado de volta ao local de onde viera (p.31).

Logo, um estrangeiro sem direito a voto nem a dar opinião. Após alguns anos, Subhash

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Negras e negros no Sul do Brasil
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reencontra Holly, uma antiga namorada, que se admira por ele ainda estar nos Estados Unidos:
“Você aqui! Pensei que tivesse voltado para a Índia” (p.54). Muito mais tarde, quando Subhash
se encontra na casa dos sessenta, o mesmo ocorre com Richard, seu companheiro de casa na
universidade, que afirma não tê-lo procurado, pois acreditava que tinha voltado ao país natal.
Assim, sempre um estrangeiro.
Considera-se as personagens Vieux Os e Subhash sujeitos ex-cêntricos3, porque anseiam
se identificam com seus centros pátrios - Haiti e Índia - e com seus centros escolhidos, novos
- Canadá e Estados Unidos. Porém, ambos os renegam, os pátrios por não reconhecê-los mais
como seus; os novos por nunca vê-los como seus.
-Esqueceu o costume, Velhos Osso? Deve se oferecer primeiro aos mortos. (O País Sem
Chapéu, p.32) (...) Este calor vai acabar comigo. Meu corpo viveu tempo demais no frio do
norte. ( p.32)

(...) eles são tão espertos que podem muito bem fazer você acreditar que são seres vivos .-
Não entendo. Você está falando sério, mãe? Você acredita mesmo nessas coisas? (p.42)

Ficou espantado como era escuro,como era pequeno o quarto. (Aguapés, p.40) (...) Você
lhe tirou as roupas coloridas,o peixe e a carne das refeições. São nossos costumes, disse
a mãe (Aguapés,p.42). (...) Viu estrangeiros nas ruas, europeus com kurtas e colares de
contas. (...) Embora se parecesse com os outros bengalis, agora sentia afinidade com
os estrangeiros. Dividia com eles o conhecimento de outros lugares. De outra vida a
retomar(p.41).

Nem cá, nem lá é como se sentem as personagens, tornaram-se híbridos com a sensação
de pertencer a dois lugares e simultaneamente a nenhum. Eles se encontram num entre lugar
semelhante aos zumbis da narrativa de Laferriére que estão mortos, mas também estão vivos.
Portanto, ex-patriados tanto em um país quanto em outro.
Para finalizar, cabem os escritos de Spivak em Pode o Subalterno Falar? Quando se refere
à problemática causada pelos argumentos de Deleuze em relação à representação do subalterno.
Dois sentidos do termo ‘representação’ são agrupados: a representação como ‘falar
por’como ocorre na política, e representação como ‘re-presentação,’ como aparece na
filosofia. Como a teoria é também apenas uma ‘ação’, o teórico não representa (fala por)
um grupo oprimido. (...) São mudos aquele que agem e lutam, em oposição àqueles que
agem e falam? (p.32)

Provavelmente, a resposta se encontre nas narrativas estudadas. Eles não são mudos
porque Laferriére e Larih representam a nós, leitores e estudiosos, por meio de Vieux Os e Subhash.
Assim, parafraseando Spivak, pode o subalterno falar sim, pois tanto um quanto outro passaram
por um processo de transformação e se fizeram ouvir. Vieux Os através de seus escritos no exterior;
Subash saindo do jugo do irmão, indo aos Estados Unidos e renegando a tradição se casando com

3 HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria,ficção.Tradução: Ricardo Cruz. Rio de


Janeiro: Imago,1991,p.88.

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a cunhada sem o consentimento dos pais, saindo da condição pacífica de “sub”. O que custou a
ambos a não pertença a lugar nenhum.
Doc”, chega à presidência iniciando um período longo e nebuloso na história haitiana. Ao
colocar em marcha um governo ditatorial que tinha como braço administrativo o exército e
suas práticas repressivas, tornou-se um presidente temido e pessoal a realizar uma série
de assassinatos justificados, sobretudo, pelo não-alinhamento político. Foram quase 15
anos de uma política estabelecedora do silêncio característico dos regimes totalitários, até
o dia que Papa Doc foi assassinado, em 1971. Todavia a morte do ditador não significou a
elevação de vozes abafadas durante o período, os sussurros seguiriam, pois Jean-Claude
“Baby Doc” Duvalier assume a continuidade da política terrorista de seu pai.

REFERÊNCIAS:
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: Edufba,
2008.

LAFERRIÈRE, Dany. País Sem Chapéu. Tradução Heloísa Moreira. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011.

LAHIRI, Jhumpa. Aguapés. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Globo. 2014.

KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Córdoba: Editorial Fundación Ross, 2000.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Companhia
de Bolso. 2001.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Tradução Sandra Regina Goulart Almeida,
Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O AGIR DAS CANDACES NA ANTIGA CIVILIZAÇÃO KUSH DESMISTIFICA


O LUGAR INFERIOR IMPOSTO ÀS MULHERES NEGRAS E, PRODUZ
NOVOS CAMPOS DE SUBJETIVAÇÃO, SABER E PODER

CUSTODIO Santos, Carla, graduanda na (UENP)


carla_santoscustodio@hotmail.com

Resumo

Há escrita que hora se apresenta tem como intenção resgatar a figura da mulher negra e, de seu
protagonismo, buscando retomar a história da África como aporte para discussões em torno de questões
sobre a figura feminina, o perigo da história única, enquanto pratica legitimadora do pensamento
etnocêntrico e das ações racistas O acesso ao saberes permitiria o conhecimento, mas, a disponibilidade
dos aparelhos escolares fornece-nos, muitas vezes, à produção de intelectuais do ocidente provocando
limitação da busca de entendimento e, estrategicamente naturalizando a ideia universal de apenas um
campo de saber. A aplicação histórica da representação do corpo negro, discursivamente dissemina
as marcas dos valores sociais, por via dos estereótipos criados a partir do fenótipo, estabelecendo
assim, ideias ilusórias de uma especifica classe social à negritude, logo, a mulher negra é naturalmente
distinguida como pertencente à inferioridade, marginalidade nos ambitos da vida societária. A história
de as Candaces oferece-nos assim, a oportunidade de revisitar as questões em torno da lógica de
invisibilidade, esquecimento e, negação do dominante diante as memórias e lembranças contributivas
dos povos étnico-raciais do continente africano, sobretudo, a ação da mulher negra e, possibilita-
nos desconstruir paradigmas colonizadores em torno das noções de gênero e raça. Com esse relato,
investiga-se, a provocação para reflexão de novos campos de subjetivação, saber, poder.

Palavras-chave: Candaces, Protagonismo, África, identidade.

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Introdução

Em face das demandas sociais dos movimentos em defesa do direito e da obrigatoriedade


do ensino da história da África e das relações etnicorraciais, torna-se urgente à busca pelo
entendimento de referências que representem a figura da mulher negra. As Candaces, portanto,
nos possibilita compreender que a legitimidade das ações racistas e sexistas tem como um dos
aportes a intemporal história única do Ocidente. Quer dizer, o Ocidente estabiliza historicamente
relações de poder por via da lógica de invisibilidade, esquecimento e negação do dominante,
diante as memórias dos acontecimentos reais, sobretudo, da África.
Neste ensejo, tentamos mostrar por meio desta pesquisa como a construção da identidade
acerca do objeto, neste caso, o outro, o diferente estabelecem relações de poderes, ou seja,
causam normalidade da inferioridade da negritude e superioridade eurocêntrica nos âmbitos da
vida social.
Para tanto, utilizamos das fontes de obras produzidas por Abbagnano (2007) e Foucault
(2006). O primeiro autor trabalha no dicionário de filosofia com a concepção de conhecimento
no Ocidente. O ultimo autor, trabalha com as estratégias de poder-saber, no qual, o discurso dos
acontecimentos históricos são um dispositivo de relações de poder. Logo, tendo em conta o que
essas duas questões envolvem lidar com a história da África, em específico com as Candaces.
Desta maneira, esta pesquisa visa buscar discursos que analisam a real historicidade
africana. Para explicitar a historicidade africana, especificamente, alguns fatos relevantes das
rainhas da civilização Cuxita, foram utilizados os aportes teóricos encontrados de SILVA (2011),
Moore (2011) e Lopes (2011).
Ao final, acredita-se que voltando a esses marcos discursivos históricos, convertam-se em
um instrumento de concepção identitária positiva da população negra.

Desenvolvimento

A discussão proposta por Abbagnano no Dicionário de Filosofia possibilita-nos


entendimentos sobre o que vem a ser o conhecimento conforme a concepção ocidental. O autor
observa que a ideia de conhecimento está intimamente vinculada ao procedimento de verificação.
O que, no caso, corresponde a uma operação cognitiva, isto é:
Como procedimento de verificação, qualquer operação cognitiva
visa a um objeto e tende a instaurar com ele uma relação da qual
venha a emergir uma característica efetiva deste. Portanto, as interpretações do
Conhecimento que foram dadas ao longo da história da filosofia podem ser consideradas
interpretações dessa relação e, como tal, resumir-se em duas alternativas fundamentais:
1- essa relação é uma identidade ou semelhança (entende-se por semelhança uma
identidade fraca e parcial) e a operação cognitiva é um procedimento de identificação com
o objetivo ou de reprodução dele; 2a a relação cognitiva é uma apresentação do objeto e
a operação cognitiva é um procedimento de transcendência. (ABBAGNANO, 2007, p.174)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

O ato de pensar debruça-se acerca da coisa em si, verificação daquilo que permanece
imutável apesar das modificações ocorridas no mundo externo. Com a operação cognitiva capta-
se aquilo que oportuniza a descrição do que venha a ser o objeto.
Entende-se por objeto: realidade, fato, coisa, propriedade. Portanto, a definição do objeto
confirma a sua própria identidade. De acordo com o próprio Abbagnano (p.174): “Na primeira,
a identidade ou a semelhança com o objeto é entendida como identidade ou semelhança dos
elementos do C. com os elementos do objeto: p. ex., dos conceitos ou das representações com as
coisas.”.
Quer dizer, o princípio de identidade do ponto de vista ocidental regula o que vem a ser
o conhecimento. Logo o principio da identidade, por este sentido, proporciona a extirpação do
“outro”, o diferente para tão logo assimilá-lo.
A ideia do outro se torna possível quando as palavras e as coisas, a forma e o conteúdo,
coincidem. Logo, a identidade criada do diferente comprova aquilo que o objeto é, sua identidade.
Segundo Carneiro (p.29) “É imprescindível que esse Outro dominado, vencido, expresse em sua
condição concreta, aquilo que o ideário lhe atribui.”.
Apresentado o conhecimento como identificação por Abbagnano (p.174) “Constitui a forma
como a doutrina do C. surgiu no mundo antigo, ou seja, como identificação. ” Prosseguiremos
analisando como as representações construídas por intelectuais ocidentais do “outro”, sobretudo,
dos povos do continente africano, estabelecem relações de poderes, saberes.
As produções de conhecimento do continente ocidental possuem, diversas vezes, o poder
narrativo de codificar a periodização contextual da humanidade. A partir deste viés, variados
pensadores ocidentais geraram estudos teoréticos sobre questões raciais (fenótipo), com intuito
compreensivo das diferenças humanas.
No caso do pensamento filosófico grego-romano em face das hierarquias sociais pautadas
nas distinções vividas nestas sociedades, como observa Moore (2007), no início parece não ter
havido correspondência entre as distinções: inferior e superior, bárbaros e civilizados. E mais,
entre aqueles que nasceram livres e os que nasceram escravos, até o momento em que o mundo
grego-romano restringia-se ao mundo europeu, essas designações eram restritas às populações
vizinhas. Contudo, com ascensão do helenismo e seu imperialismo ao norte da África e no Oriente
Médio durante mais de um milênio (VIII a.C. – V d.C.), tal situação viria mudar.
O racialismo e a sua evolução no mundo grego-romano como atestam escritos de Homero
e de Aristóteles, ainda conforme Moore (2007) permitiria entender como os escritos sobre a
Fisiognômica de Aristóteles possibilitariam dar entendimento ao pensamento pseudocientífico
baseado no conceito de fenótipo.
Neste sentido, a ideia de conhecimento como identidade possibilitaria identificar qualidades
e defeitos morais a partir da verificação fenotípica. Como diz na apresentação de Fisiognômica de
pseudo-Aristóteles (p.09):

La correspondencia unívoca entre un signo visible y una afección interna o la

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relación de interdependencia entre los rasgos físicos y los psíquicos, al tiempo que
excluía de sus argumentaciones la intervención de causas sobrenaturales. Esta
aspiración se hace patente em los tratados fisiognómicos de la cultura grecolatina
que conocemos, y muy especialmente en la Fisiognomia de pseudo-Aristóteles,
el primer tratado íntegramente conservado sobre esta materia en su lengua origin.

O conhecimento do Ocidente  como operação cognitiva do objeto, desta vez baseados


na distinção de sexo, assimilou também, a  figura feminina. No mundo greco-romano o papel
das mulheres nos espaços sociais tanto no plano material (econômico, político) como no plano
intelectual foi marcado por representações negativas. Por conseguinte, a identidade feminina foi
atribuída na inferioridade quando comparada a um homem. 
Segundo Aristóteles (2006), na sua ciência política, entende-se por esse saber como um
âmbito do discurso racional. O espaço público é lugar entre iguais, ao quais, todos visam o alcance
do bem da sociedade. Para tanto, cada pessoa pertence a um lugar definido por natureza. 
O filosofo observa (2006, p.27), que a mulher por natureza, ocupa um lugar inferior no
espaço civilizatório “Quanto ao sexo, a diferença é indelével: qualquer que seja a idade da mulher,
o homem deve conservar sua superioridade.” . Portanto, o lugar subalterno das mulheres torna-se
legitimo, tendo ordenamento inteligível.
Tais distinções de sexo e fenótipo possibilitam lidar com a ideia de conhecimento e como
essas legitimam desigualdades  a partir das diferenças. Nesse caso, admitem-se as diferenças
para legitimar ordem e relações de poder.
Conforme Scholl (2016), quando se observa as formulações ocidentais no período
colonial sobre o continente Africano, particularmente, o papel das mulheres, notam-se discursos
evolucionistas. Alguns intelectuais como Bachofen (1861/1967) e Engels (1884/1970) ao
examinarem as dinâmicas internas de algumas sociedades africanas depararam-se com a
preponderância executiva de mulheres nos orgões sociais.
Como já exposto, a mulher ocupa no ponto de vista do conhecimento ocidental um
lugar inferior na vida social, no entanto, a operação investigativa do território de sociedades
africanas, fez alguns pensadores se chocarem com essas dinâmicas diferentes, ao qual, a
mulher exerce o lugar de autoridade. Consequentemente, os intelectuais europeus viam-se
na insurgência de nomear esses acontecimentos, ou seja, dar uma identidade através de
seus discursos.
Como observa a autora Scholl (2016, p.7), a identificação deste exercício de poder foi
representada por antropólogos coloniais como: “regime de matriarcado” ou “matriarcado”.
A tradução dos estudos de Bachofen por García permitiu-nos entender a analítica das
civilizações históricas de caráter matriarcais. Bachofen inquiriu essas civilizações através
de um processo evolutivo. Isto é, pelo desenvolvimento de uma civilização nomeada como
primitiva, matriarcado, para um nível mais elevado, ora, patriarcado:

(...) El matriarcado se desarrolla en un período cultural más primitivo que el sistema


patriarcal; con el victorioso ascenso de ·este último, su esplendor comienza a marchitarse.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

De acuerdo con esto, las formas de vida ginecocráticas se muestran claramente en aquellos
pueblos que se contraponen a los griegos como razas más antiguas; son un componente
esencial de aquella cultura originaria cuya fisonomía peculiar está íntimamente relacionada
con el predominio de lo materno, lo mismo que la del helenismo lo está con la supremacía
de lo patriarcal. (BACHOFEN, 1985, p.29)

Os Processos de verificação do objeto, neste caso, civilizações matriarcais, foram


atribuídos como exercício de poder que se vincula com o estagio primitivo. Os discursos
proferidos destes acontecimentos pertencem às relações de poderes. Logo, as identidades
criadas justificam certos mecanismos de poder. Conforme Scholl (2016, p.08):
O conceito de matriarcado, dentro deste paradigma evolucionista social, se expressa
como um estágio de evolução das sociedades primitivas que necessariamente
passarão, com sua evolução, para um estágio mais elevado e civilizado, o patriarcado.
A produção deste discurso faz parte da justificativa colonial forjada tendo como
bengala a antropologia que visava a intensificação do “processo civilizador” das
sociedades “atrasadas”/”bárbaras”/”matriarcais”.

Até então, deparamo-nos com discursos vindos do Ocidente extirpando e assimilando


o continente africano. Por isso, torna-se insurgente perscrutarmos discursos que nos
concedem verificar as posições políticas da mulher negra na África e suas variações em
diferentes âmbitos da sociedade, sem deturpações dos acontecimentos históricos.

1.1 Análises das estratégias de poder-saber: o discurso dos acontecimentos históricos


como dispositivo de relações de poder.
Partimo-nos das questões teóricas metodológicas que envolvem lidar com o
conhecimento apresentando as questões do poder-saber posto por Foucault, tendo em
conta o que isso envolve lidar com a história da áfrica, em específico com as Candaces. Assim,
tendo em vista o que observa o próprio Foucault (1999, p. 44):
Lo que hay que preguntarse es qué es lo que rige los enunciados, y cómo se rigen unos
a otros, para constituir un conjunto de proposiciones aceptables científicamente, y
susceptibles, en consecuencia, de ser verificadas o invalidadas mediante procedimientos
científicos.

O discurso teórico, científico sobre o objeto, opera-se no interior das relações de poderes.
Faz-se necessário entender por discurso como uma série de acontecimentos, isto é, acontecimentos
políticos, econômicos, sociais que estabelecem e descrevem relações de poderes. Segundo
Foucault (2006, p.253) “O poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio
discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relação de poder”.
Os discursos científicos sobre a identidade do outro, neste caso, a inferioridade do
continente africano, notadamente, a primitividade da autoridade de mulheres, ligam-se a muitos
sistemas de poder do Ocidente que, geram representações tidas como verdadeiras. Em outros
termos, produções de verdades que legitimam ordem e relações de poder. Assim como observa
Foucault (2006, p. 229):
Há efeitos de verdade que uma sociedade como a ocidental, e hoje se pode dizer a

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sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdade. Essas produções de
verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo
tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções
de verdade, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que
nos unem nos atam.

A regra polivalência tática dos discursos oportuniza-nos entendimentos de como funciona


as técnicas dos mecanismos de poderes que se utilizam do silenciamento, invisibilidade na
operação cognitiva sobre algum acontecimento. Como observa Carneiro (2005, p. 33):
É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. (...) O discurso veicula
e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da
mesma forma o silêncio e o segredo da avaliação guarida ao poder, fixam suas interdições;
mas, também afrouxam, seus laços dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras.

Ao que concerne o silenciamento da real historicidade africana, sobretudo, a analise


verdadeira da dinâmica de poder das mulheres, conferem-se, a inevitabilidade do abarcamento
ocidental em apagar dados pertinentes, para que só assim o seu discurso do outro, se naturalize.
Em consequência, os efeitos históricos das coerções dos mecanismos de poder do
Ocidente, inferidos na África, transportam-nos para averiguação da legitimação de ordem
e relações de poderes, permitindo-nos entender assim, a deliberação do assujeitamento da
negritude, principalmente do corpo negro/feminino. Conforme Foucault, de certa forma, somos o
que foi produzido discursivamente nos acontecimentos históricos:
Penso que há, em na nossa sociedade e naquilo que somos, uma dimensão histórica
profunda e, no interior desse espaço histórico, os acontecimentos discursivos que se
produziram há séculos, ou há anos são muito importantes. Somos inextricavelmente
ligados aos acontecimentos discursivos. Em um certo sentido, não somos nada além do
que aquilo que foi dito, há séculos, meses, semanas... (FOUCAULT, 2006, p.258)

O racismo e a discriminação de gênero são estruturas complexas, caracterizam-se


por elaborações dinâmicas de poderes-saberes que se penetram, redefinem-se nos períodos
históricos, por conseguinte, não é imediata a captação dos dispositivos estruturantes, mas, tantas
investigações têm sido feitas por pesquisadores no enfoque dos acontecimentos marcantes do
processo histórico, ao qual racismo e sexismo, provavelmente, se originaram, desenvolveram e
perpetuaram até a contemporaneidade, subsidiando-nos, deste modo, com juízos teóricos e
metodológicos. Assim, ajuda-nos, o intelectual Moore (2007, p.210):
Tanto o sexismo quanto o racismo compartilham a singularidade de serem dinâmicas
determinadas e construídas historicamente e não ideologicamente. Por isso a gênese
destes dois fenômenos não parte de elaborações intelectuais conscientes, mas de conflitos
longínquos cujas origens se perdem no fundo do tempo, persistindo na consciência
contemporânea sob forma fantasmática, simbológica e atemporal. A dinâmica própria ao
racismo se desenvolve dentro do universo de atitudes, valores, temores e, inclusive, ódios
- mesmo quando inconfessos - ; infiltrando-se em cada poro do corpo social, político,
econômico e cultural. Ambos os fenômenos surgiram historicamente de uma só vez, a
partir de situações e condições sui generis e irreproduzíveis, mas que se replicaram ao
longo dos tempos num processo similar ao das células do organismo dos seres vivos - a
repetição idêntica da célula inicial. De modo que o sexismo é um fenômeno exclusivamente
anti-mulher, e o racismo um fenômeno, inicialmente, em todo o caso, exclusivamente anti-
negro. Contrariamente aos preconceitos, estes são fenômenos atemporais, universais e

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

transversais.

Como exposto no excerto acima, a longínquo tempo, os construtos históricos racismo


e sexismo são pertencentes às relações de poderes, no qual, normalizam desigualdades entre
indivíduos. Estes fenômenos se transmutam por meio dos desenvolvimentos dos acontecimentos
discursivos, especificamente do Ocidente, tanto no plano material como no intelectual, deste
modo, permanecendo assim, na consciência contemporânea.
Por tal permanência desses fenômenos, as existências das mulheres negras na África e nas
experiências diásporicas encontram-se, repetidamente, pertencentes às posições marginais da
vida social. Gonzáles (1984, p.159) relatou esta naturalização da imagem das afrodescendentes
“Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta.
Basta à gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é
que ser favelados.”. Repara-se que as transformações dos acontecimentos no processo histórico
do racismo e discriminação de gênero intemporalmente redefinem-se o contingente de mulheres
com identidade de objeto a mercê da conveniência da sociedade.
Quer dizer, o discurso como uma série de acontecimentos históricos constrói identidades,
em outros termos, conferem existência a algo. Logo, construiu-se historicamente a identidade da
negritude, dando-lhes existências no plano da inferioridade.
Para tanto, torna-se necessário pesquisarmos discursos da real historicidade africana que,
permita-nos aportes para construir-se uma identidade positiva da negritude, especificamente da
mulher negra. Por conseguinte, a figura representativa das majestades Candaces, oferece-nos
chances de absorção do primordial lugar das mulheres africanas no espaço civilizatório singular
da África.

As variadas posições sociais das Candaces na antiga civilização Kush


Acima de tudo, a historicidade africana deve ser penetrada por uma via metodológica que
respeite as singularidades intracontinental. Por esse intermédio, a verificação vai condizer com
as relações, formas de organizações de cada povo, e não por meio da utilização impositiva dos
conceitos europeus que,imperam sobre o estudo do continente africano.Dessa forma,a metodologia
exposta por Moore (2011) tem grande importância1: “A) Diacronicidade intracontinental, e B)
Diacronicidade extracontinental”.
Tendo isso em vista, para verificarmos as posições das rainhas, reportaremos ao enfoque
histórico-temporal do espaço civilizatório da Antiguidade Clássica Africana (5.000 a.C., – 200
d.C.). A metodologia exposta no excerto acima permitiu-nos entender as inter-relações do reino

1 A metodologia exposta por Moore (2011) traz uma abordagem transversal, transdiciplinar e de longa duração
baseadas em uma dupla diacronicidade para analisar-se o dinamismo da África. A diacronicidade intracontinental
verifica como eram as relações econômicas, políticas, societárias no continente africano entre as diversas civilizações
africanas. Por outro lado, a diacronicidade extracontinental permitira-nos analisar como eram as relações das variadas
civilização africanas com outras civilizações não pertencentes à África. De fato, não se pode utilizar de uma tradição
linear fatual para verificar os acontecimentos do continente africano, pois, a África possui dinamismos econômicos,
políticos, estratificações sociais que inegavelmente não pode ser assimiladas com o Ocidente.

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Kush que não pode ser analisada sem a relação com Kemet (Egito) e com os povos estrangeiros.
Assim, compreende-se que Kush e Kemet tornam-se instrumentos para criar-se uma identidade
positiva da negritude, especificamente da mulher negra quando se referindo a Kush.
Os primeiros estados burocráticos existentes na mãe África2, particularmente, ao longo
do rio Nilo, são Kemet (Egito), e Kush (5.000 a.C. – 200 d.C.), o ultimo, localizava-se ao sul, por
percurso longitudinal da região Núbia3, entende-se que, operavam a relação intracontinental,
portanto, se relacionavam entre si, ora mantendo uma troca de influencias, e ora em combate franco.
Essas duas civilizações foram importantes centros comercias que, atraiam povos estrangeiros de
diversos locais, e eram riquíssimos tanto em poder econômico, cientifico cultural e tecnológico.
Além do mais, a diacronicidade extracontinental, pode ser explicitada também, nos contatos com
povos Greco-romano, hicso, hititas, assírios, persas4...
Dado os atributos de Kemet e Kush, os pressupostos idealizados sobre uma suposta África
mítica parecem ser confrontados com documentos históricos que, comprovam a potencialidade
das duas grandes civilizações. Por conseguinte, podemos-nos, iniciar a desagregação da unicidade
ilusória, de um continente essencialmente primitivo, e a subserviência dos povos negros que existe
no imaginário social.
Como já escrito, em relação à localização do reinado cuxita e sua importância em relação
à temática deste artigo. Há que se observar a ideia de agência das mulheres negras sob o efeito
de dar entendimento e o que representam tais agentes e o significado das Candaces em sua
nominação, pois como observa Lopes (2011, p.69):
Título, derivado da palavra meroítica ktke ou kdke, significando “rainha-mãe”, através do
grego kentakes, atribuído a algumas rainhas cuxitas, como Amanitare, Amani-xaquete e
Xanacdaquete, que foram efetivamente governantes em Meroe.

Os Greco-romanos empregavam o vocabulário kentakes para indicar as rainhas com as


quais firmavam relações políticas. Esse vocabulário, permiti-nos inferir assim que, tratava-se
de uma identificação que descrevia contatos políticos entre potências civilizatórias. Quer dizer,
naqueles acontecimentos históricos, a identificação não foi dada através da dependência e
inferioridade de uma civilização para com a outra.
Ao que se remete o desenvolver da civilização Kush, viabiliza-nos deslindar a partir do
seguinte fragmento, os derivados lugares das mulheres nestes espaços: “De início, a capital se
manteve em Napata, ao pé da montanha sagrada de Djebel Barkal. Mais tarde, provavelmente
no século VI antes da Era Cristã, foi transferida para Méroe, bem mais ao sul.”. Destarte, dado o
advento do centro em Napata, muitas mulheres direcionavam-se em funções religiosas, mantendo

2 Segundo Moore (2011, p.142-145), a África é o berço da humanidade, pois, os povos autóctones foram
os progenitores de todas as populações humanas do planeta. Além do mais, é o berço da humanidade em todas
as configurações tanto na antiga (Homo Habilis, Homo Eretus, Homo Neanderthalensis) como na moderna (Homo
Sapiens Sapiens).
3 A região Núbia na atualidade localiza-se no Sudão.
4 Conforme Moore (2011, p.166), as riquezas das diversas civilizações africanas aguçaram povos estrangeiros.
Por tal motivo, diversos confrontos ocorreram em busca de posses.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

um poder paralelo que passava de tia para sobrinha, seguindo assim, uma linhagem matrilinear.
Segundo Silva (2011):
O poder da rainha fosse esposa, viúva ou mãe, devia ser considerável. E também o das
princesas. Pelo menos, o daquelas que se votava a funções religiosas. A grande sacerdotisa
de Amon, em Tebas, era filha ou irmã do rei. E princesas, as que se consagravam aos
outros quatro grandes santuários de Amon: em Jebel Barcal, Torá, Kawa e Pnubos. Elas
conservavam o cargo na família, com sucessão de tia a sobrinha. (SILVA, 2011, p. 131)

Não obstante, foi no período méroitico (300 a.C. – 300 D.C.) que as Candaces ascenderam
ao poderio, umas das que possivelmente tenha sido primeira a assumir o carro chefe foi
Shenakdakhete 170-160 a.C. e, em outras fases as quatro Candaces que se destacaram foram
Amanirenas, Amanishakhete, Nawidemak, e Maleqereabar. Uma das maneiras de comprovar
essas soberanias é através das ruínas de construções que as majestades ergueram com vigor,
muitas se encontram em Naga (Naqa)5.
Méroe, naquele momento de sua história, tangeu um dos fundamentais entrepostos
comerciais entre África e o mar mediterrâneo, tendo assim, inerente contato com outras grandes
nações e impérios do mundo, logo, no que diz respeito à autoridade das Rainhas neste período,
supostamente, foram elas que controlavam o comércio de bens de luxo da África.
As soberanas eram tão reconhecidas que, muitas vezes, os seus protagonismos
foram relatados em escritas, como é o caso de Estrabão, ao qual descreveu o combate entre o
exército Cuxita comandado pela Rainha Candace que, possivelmente possa ser Amanineras ou
Amanishakhete, contra a tropa dos romanos guiada por Petrônio. Silva (2011, p.146-147) descreve
o combate em sua obra “A enxada e a lança a África antes dos portugueses”:
Em 23 a.C., grande parte das forças militares romanas foram retiradas da fronteira núbia
para se empenharem numa campanha na Arábia. Os meroídes, queixosos e agravados,
aproveitaram a situação e atacaram a Tebaida. Venceram e puseram a saque Assuã e Filas.
Derrubaram as estátuas de César que ali havia e devem ter levado algumas para as suas
terras, juntamente com grande número de cativos.

Os romanos reagiram rapidamente. Petrônio, que substituíra Cornélio Galo, marchou,


com dez mil infantes e oitocentos cavaleiros, contra os núbios. Estes eram trinta mil, “mal
comandados e mal armados” – como escreve Estrabão, ao relatar o episódio -, alguns
brandindo apenas machados, e outros, espadas e lanças, com a precária proteção de
grandes escudos de couro cru. Petrônio os escorraçou pra Dakka e lhes mandou um
ultimátum: que devolvessem o butim das cidades que haviam atacado. E, como não
obtivesse reposta satisfatória, deu-lhes combate e lhes desbaratou as tropas. Venceu
Dakka, tomou Qasr Ibrim e investiu contra Napata, onde ficava a residência real de uma
virago caolha. A candace não se encontrava ali. Estava o filho, e este fugiu. Petrônio arrasou
a cidade e fez de seus habitantes escravos. Mas, vendo quão áspero era o país que tinha
à frente, resolveu retornar a Alexandria com seu exército e o produto da pilhagem. No
caminho de regresso, reforçou a fortaleza de Qasr Ibrim e ali pôs uma boa guarnição, com
víveres para suportar o isolamento de dois anos. Mal se afastara, a candace marchou contra
Qasr Ibrim. Petrônio enviou os embaixadores meroítas a Samos, que hospedava Augusto.
Ali, parece, obtiveram pela diplomacia o que lhes negaram as armas: o condomínio sobre
o Dodecaschenos foi restaurado, e os romanos renunciaram ao tributo de Méroe.

5 Conforme Silva (2011), Naqa foi uma antiga cidade da civilização cuxita no período méroitco.

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Direcionando-se para os discursos dos acontecimentos históricos, verificam-se uma
diversidade de significações, ou seja, interpretações. A construção do outro, como mostrado outrora,
o reconhece através da operação cognitiva do conhecimento, atribuindo-lhe uma identidade. No
entanto, no discurso ocidental requer o silenciamento de alguns signos do acontecimento para
a naturalização do discurso. Uma outra significação parte-se da real historicidade africana que
nos possibilita uma construção identitária da negritude, especificamente da mulher negra. Nesta
perspectiva, não silenciar a narrativa dos acontecimentos do continente africano, sobretudo das
Candaces, viabiliza a reflexão sobre novas formas de saber, poder e subjetividade.

Conclusão

Nesse estudo, analisou-se como o resgate da efígie das Candaces, aporte investigativo,
possibilita-nos a compreensão dos meios técnicos que fortificam o monopólio de poder- saber
do continente ocidental, em detrimento dos povos do continente africano e as experiências
diaspórica, acima de tudo, o componente mulheril e, buscamo-nos, tentativas de desconstrução
do assujeitamento das mulheres negras, a partir, da inserção das rainhas na narrativa contextual
da humanidade.
Para isto, no segmento I deste trabalho, partimos da noção de conhecimento do Ocidente.
Notamos que o conhecimento é uma operação cognitiva acerca de um objeto. Logo, inferimos
que as distinções de sexo e fenótipo possibilitam lidar com a ideia de conhecimento e como essas
legitimam desigualdades a partir das diferenças.
Compreendemo-nos que os discursos do Ocidente operam internamente nos mecanismos
de poder. Algumas técnicas do discurso são de invisibilidade, esquecimento, a respeito, da real
historicidade do continente africano e das diásporas. Ademais, os entrelaçamentos dos discursos
pejorativos dos intelectuais ocidentais, ainda vigentes nas áreas dos saberes, contribuíram para a
intencionalidade das ações políticas por meio da naturalização, justificação dos pontos históricos
que, desumanizaram a negritude, essencialmente, as mulheres negras. Ora, no que tange a história
única ocidental, nota-se esse fator, como norteador dos parâmetros construtivos das relações entre
indivíduos, firmando desde tempos antigos e contemporaneamente, a inferioridade de um grupo
em face de seu fenótipo e sexo por via da intrínseca relação do poder- saber que, propositalmente,
por outro lado, justificam a superioridade eurocêntrica.
No segmento II demonstramos a investigação acerca da historicidade africana, que
confirma a presença de Rainhas-Mães no trono acionando o desenvolvimento do reinado cuxita.
As Candaces assumiram a governança em diversos postos e mantinham-se relações políticas
com outros povos. Percebe-se que o acesso à representação das soberanas gera a inevitabilidade
do desmantelamento das argumentações tidas como verdades absolutas.
No entanto, deparamo-nos com dificuldades em descobrir aportes teóricos em língua
portuguesa em relação às rainhas. Uma vez que os estudos anglófanos prevalecem, sem contar a
presença da narrativa eurocêntrica a obliterar a tradução destes trabalhos assim como a pesquisa

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

e a publicação no idioma local.


No mais, compete-nos enfatizar que, se caso no Brasil a lei 10.639 for aplicada de forma
pertinente em todos os centros educativos, tal ação poderia oferecer-nos possibilidades de novas
formas de saberes que, por sua vez, permitira-nos uma educação emancipatória que abrange a
todos.

REFERÊNCIAS

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por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti – 5ª
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FOCAULT, M. Estrategias de poder: Introducción y editión a cargo de Julia Varela y Fernando


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SCHOLL, C. J. Matriarcado e África: A produção de um discurso por intelectuais africanos


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MOTTA, Manoel Barros da (org.). Michel Foucault: Estratégia, Poder-Saber. Coleção Ditos &
Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

Página 848
QUAL ÁFRICA ENSINAR? A HISTÓRIA DAS ÁFRICAS NOS RELATÓRIOS
FINAIS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO DO CURSO DE HISTÓRIA DA
UDESC (2000 – 2015)

ANDRADE, Maíra Pires ( UDESC)


mairaandradep29@gmail.com

Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo investigar quais são as representações sobre a História das Áfricas
e das populações de origem africanas que são apropriadas e expressas pelos estudantes do Curso
de graduação em História da UDESC na condição de estagiários na disciplina de Estágio Curricular
Supervisionado. Isto é, irei verificar quais os sentidos e abordagens dado a História das Áfricas pelos
estudantes na posição de professores em escolas de Educação Básica, buscando perceber como estes
se apropriam das orientações da Lei 10.639/03 e quais foram ás mudanças e permanências depois da
regulamentação desta normativa. Portanto, minha pesquisa busca compreender as apropriações dos
indivíduos em relação a História das Áfricas a partir de dois níveis: primeiro a apropriação dos alunos
da graduação como estagiários e segundo a apropriação dos estudantes da escola. Para o alcance
desses objetivos, utilizarei como fonte histórica os Relatórios finais de estágio da disciplina de Estágio
Curricular Supervisionado da UDESC, selecionando uma amostragem de 25 relatórios a partir do
recorte temporal de 2000 a 2015. Como aporte teórico usarei autores como Fanon, Quijano e Mbembe
para pensar a colonialidade e o racismo na atualidade e Hall para mobilizar o conceito de representação.
Nesse aspecto, irei abordar os trechos dos relatórios em que a África ou as populações de origem
africana são invisibilizadas, são vistas a partir de um viés eurocêntrico, ou apresentaram uma visão que
se direcionava a uma perspectiva positiva e descolonizada em relação a estas populações. Atentarei
também nos relatórios executados depois da implementação da Lei 10.639/03 nas novas posturas,
conteúdos e categorias que a partir deste marco passam a ser inseridos no Ensino de História. Este
artigo é um recorte de uma dissertação em desenvolvimento na UDESC na área de História do Tempo
Presente

Palavras-chave: História Africana. História Afro-Brasileira. Lei Federal 10.639/03. Racismo.

Página 849
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Este artigo, recorte de uma dissertação de mestrado,1 investiga as representações sobre


a História Africana e Afro brasileira que foram expressas pelos estudantes de Graduação em
História da UDESC, durante a disciplina de Estágio Supervisionado, na condição de estagiários
na Educação Básica, que ressoaram nos Relatórios finais dessa disciplina entre os anos 2000 até
2015. Para o alcance desses objetivos, utilizei como fonte histórica os Relatórios finais de estágio
da disciplina de Estágio Curricular Supervisionado da UDESC, selecionando uma amostragem de
24 relatórios.
Estes relatório apresentam de modo geral toda a trajetória do estágio docente, a estrutura
destes pode ser descrita da seguinte maneira: introdução com apresentação do campo de estágio
e a temática escolhida; artigos escritos individualmente por cada estagiário do grupo, abordando
algum aspecto específico de suas aulas; projeto de execução das aulas; planos de aula; modo de
avaliação, materiais de apoio, aporte teórico para as aulas e atividades feitas no decorrer das aulas.
Estes documentos, compreendidos dentro de uma gama de documentos escolares,
possibilitam perceber diferentes modos pelos quais estes estagiários atribuíam legitimidade e
significado a um espaço, conhecimento e também às práticas enquanto docentes. Assim, tais
produções materiais se tornam síntese escrita da trajetória de múltiplos indivíduos, de lugares
sociais e de sensibilidades distintas, fornecendo indícios da prática docente e também discente,
assim como ações e posicionamentos em relação às práticas cotidianas e o saber histórico (SILVA,
2016). Nessa direção, as análises permitem identificar as potencialidades do estágio, configurando
não apenas relatos e impressões dos estagiários, mas também representações sobre o ensino
de História e a própria prática docente, pois, como todo documento escrito, estes conformam
representações, elaborados a partir de referenciais e conceitos que variam ao longo do tempo, de
acordo com o lugar social de cada autor (OLIVA, 2007).
Para a escolha dos relatórios, a metodologia empregada foi pesquisar em cada um, quantas
vezes e em quais contextos de conteúdo, apareciam as palavras África, africano e negro. A partir
disso, selecionei 24 relatórios que viabilizam maior amplitude sobre como a história das Áfricas é
mobilizada, mas também utilizei aqueles que não se referiam em nenhum momento à temática,
permitindo refletir sobre as ausências. Em suma, num primeiro momento, realizei uma sondagem
em todos os relatórios disponíveis em cada ano.
Mas por que pesquisar especificamente estas palavras: África, africano e negro? O que elas
podem dizer? Mbembe (2014) é contundente ao afirmar que os conceitos África e Negro estão
intimamente relacionados por uma ligação de coprodução, ou seja, falar de um é automaticamente
falar de outro, pois ambos compartilham os mesmos sistemas de significação no nosso imaginário.
Mbembe (2014, p.73) não afirma que um seja sinônimo do outro, pois, nem todo africano é negro
e nem todo negro é africano, mas, “se África tem um corpo e se ela é um corpo, um isto, é o Negro
que o concebe, pouco importa onde ele se encontra no mundo”. Estes dois conceitos e suas
derivações, como objetos de um discurso e do conhecimento, se encontram desde o início do

1 Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado “Qual África? A história das Áfricas e as práticas de
ensino na UDESC (2000-2015)”.

Página 850
período chamado moderno, numa profunda crise de representação. Estes termos - África, africano
e negro -, ganharam forças próprias e a palavra acaba por dizer pouco sobre o mundo concreto.
O autor atribui esta repercussão aos liames conflituosos que a lei da raça como elemento
constitutivo da sociedade causou, da era moderna até o presente. O conceito de raça, pautado
nos argumentos de Mbembe (2014), é eficaz para a compreensão de como determinadas
representações acerca da África, do africano e de seus descendentes foram construídas e são
reforçadas na atualidade. Torna-se imprescindível, portanto, nesta pesquisa, identificar em quais
contextos estes termos foram utilizados por estagiários e estudantes, a fim de perceber se ainda
estão vinculados a uma crise de representação, se houve avanços ou retrocessos, ou se estamos
ainda estagnados nas dicotomias que fazem tais termos esvaziados e os tornam não-dito.
Quem somos? De onde viemos e para onde vamos? Munanga (1996), afirma a importância
de entender essas questões que, embora surjam como simples, transcendem uma grande
complexidade, pois fazem referência à composição étnico-cultural de cada povo, às suas origens
e aos problemas enfrentados pela sociedade. Nesses termos, trazem para o debate a questão
de diversidade e do reconhecimento das diferenças, elementos que envolvem uma reeducação
das relações étnico-raciais e nos direcionam ao conhecimento das múltiplas histórias, entre elas
a história das Áfricas.
Nessa perspectiva, a instituição escolar emerge como um local fundamental para exercício
deste debate, onde os professores, cumprindo com o seu papel de educadores, devem construir
estratégias para a igualdade racial e principalmente, o não silenciamento das discriminações
raciais que aparecem no dia a dia. O conhecimento e o reconhecimento sobre a história das Áfricas
e das populações de origem africana, a denúncia do racismo e das estratégias de invisibilização
históricas, a desconstrução de estereótipos, a mobilização de outros lugares de produção de
conhecimento, o combate ao eurocentrismo e o rompimento com o mito da democracia racial,
tornam-se urgentes no ensino de História, para além de todas as relações cotidianas. Estas
dimensões compõem os relatórios aqui analisados, ao longo do recorte temporal estabelecido,
seja a partir de uma perspectiva positiva, como a valorização destas populações, ou a partir de uma
perspectiva a ser questionada, como por exemplo, a adesão ao eurocentrismo nas metodologias
em sala de aula.
Desse modo, nenhuma ruptura foi percebida na abordagem dos relatórios, no entanto,
principalmente a partir dos anos de 2007, momento em que os debates em torno da Lei Federal nº
10.639/03 emergem com mais frequência, os relatórios ressoam estas dimensões positivamente,
de modo gradual e a passos curtos. Ainda assim, determinadas metodologias, alinhadas a
mudanças, em alguns trechos dos relatórios antes de 2007, situam perspectivas e avanços.
A escola não está sozinha nessa empreitada, pois, existem e existiram diversos outros
movimentos, grupos e práticas, que desde o pós-Abolição, também desenvolveram ações
voltadas para as populações afrodescendentes, atuando em diversas frentes: nas comunidades,
no espaço acadêmico, no espaço escolar, na constituição de legislações como a Lei e as Diretrizes
(BRASIL, 2004), na criação de clubes e associações, núcleos de estudos vinculados à academia,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

coletivos vinculados ao movimento negro e uma substancial produção de conhecimento por


parte de intelectuais. Há muito tempo, diferentes atores contribuem para o avanço desse debate,
reivindicando demandas, como a reformulação curricular e a inclusão dos afrodescendentes na
educação de modo igualitário.
É importante a reflexão sobre a trajetória, entre avanços e recuos, dos movimentos sociais,
como o movimento negro, em busca de um reconhecimento da história e dos direitos civis das
suas populações, tornando a questão étnico-racial aglutinadora destas demandas. No que diz
respeito à disciplina de História na educação básica, sabemos que ela não anda sozinha, mas
que possui forte diálogo com a História acadêmica, a historiografia, os movimentos sociais e as
próprias legislações. Todos estes elementos dimensionam, ao longo dos anos, o ensino e alguns
destes elementos causaram mudanças mais visíveis, outros são visíveis apenas se ampliarmos a
escala. Se a efervescência dos movimentos sociais em busca de uma mudança no espaço escolar
e na estrutura curricular é uma solicitação antiga, no âmbito da disciplina de História, só podemos
observar estas mudanças mais recentemente, a partir da década de 1990, a partir de pequenas
alterações direcionadas a inclusão desta.
Nesse sentido, percebo a atuação da colonialidade e do racismo, pois não faltaram
reivindicações, projetos de leis e ações dos movimentos, visando à inclusão da temática africana
e afro-brasileira no espaço escolar. Como constatado nas análises dos relatórios, num recorte
de 15 anos, conteúdos e formas de abordagem não passaram por mudanças grandiosas, mas
independente da demora para ocorrer estas transformações, ou dos obstáculos proporcionados
pelo racismo, considero substancial valorizamos cada passo adiante, pois estes foram fruto de
anos de lutas dos movimentos sociais e, nesse sentido, significam conquistas. Saliento que as
transformações na escrita da História não são expressas por rupturas, mas pela ascensão de
novos pensamentos, ao mesmo tempo que vemos resquícios da permanência de pensamentos
enraizados nas teorias do passado, conforme os relatórios aqui analisados.
Entre 2000 á 2006, os 10 relatórios analisados, foram divididos em três grupos, de acordo
com a temática central das aulas: imigração e modernização (grupo 12), ditadura militar e guerra fria
(grupo 23) e escravidão (grupo 34). No primeiro grupo, a explicitação da branquitude se apresenta
pela temática e os sujeitos históricos privilegiados para os conteúdos, os imigrantes europeus. A
participação dos afrodescendentes na construção do Brasil e de Santa Catarina é tratada apenas

2 O grupo 1 era formado pelos seguintes relatórios: “A música: cantigas e histórias da ilha”, “Imigração e
Colonização”, “República em Santa Catarina: modernidade e exclusão – ações e reações que transformaram as
estruturas sociais, políticas e econômicas entre o fim do século XIX e início do século XX”, “A revolução industrial e a
inserção de Florianópolis na modernidade.”
3 Grupo dois: “À ditadura, aquele abraço”; “As experiências da docência: novas perspectivas sobre o ensino de
história”; e, novamente o relatório “A Guerra Fria e a Ditadura Militar no Brasil: em busca de uma história em movimento”.
Estes, juntos, somam-se ao relatório do conjunto 1, denominado “República em Santa Catarina: modernidade e exclusão
– ações e reações que transformaram as estruturas sociais, políticas e econômicas entre o fim do século XIX e início do
século XX”.
4 Grupo três: “Relatório de Estágio”; “Violência hoje e suas raízes sociais no período colonial”; “Escravos,
alemães, subversivos na ditadura e moradores de favela durante os séculos XIX e XX da história do Brasil e de Santa
Catarina”.

Página 852
como meros contribuintes, ao lado oposto dos imigrantes europeus, os construtores da nossa
história.
No grupo 2, ampliando as lentes para pensar como a história das Áfricas é encaixada no
currículo, percebo como esta é esquecida ou mencionada em segundo plano, demonstrando
a falta de sensibilidade dos grupos de estagiários, mesmo quando o foco não é a África ou os
afrodescendentes. O conteúdo de história da África surge em um dos planos de ensino apenas no
campo teórico, mas no dia da execução da aula, o conteúdo foi negligenciado. Ou ainda, quando
os estudantes da educação básica lembraram a África e explicitaram a vontade de aprender sobre,
se referiram a uma África imersa e congelada no passado, por meio das grandiosidades do Egito
antigo.
A representação de afrodescendentes e africanos como indivíduos sem agência histórica
foi marcante neste grupo, delegando ao europeu a capacidade de contar a história dos africanos,
como quando a descolonização da África foi explicada apenas pela ação europeia. Deste modo,
é possível perceber, nos diferentes relatórios, a emergência, mesmo que implícita, do racismo
existente na sociedade que, atrelado às relações de poder, definem currículos, conteúdos e
abordagens utilizadas no espaço escolar.
No grupo 3, a partir da temática da escravidão, a violência emerge como linha norteadora
dos relatórios. Dentro desse grupo, 2 relatórios destacaram diretamente o continente africano, um
deles, a partir de uma visão homogênea, tratou das religiões, da oralidade e da ancestralidade5,
algo que se destacou entre os demais relatórios. Entretanto, seu objetivo não era o estudo do
continente, mas da escravidão, algo mais fundamental, na visão do relatório.
Em suma, evidenciei entre os anos 2000 á 2006, que a história das Áfricas, quando não
ausente, seja pelo desinteresse dos estudantes em conhecer a temática ou pela falta de preparo
dos estagiários, surge a partir do seu significado e sentido para a escravidão. No que diz respeito à
valorização dos afrodescendentes e do seu papel como agentes históricos na construção do Brasil,
demanda reivindicada ao longo do tempo pelos movimentos sociais e que também emerge na
LDB, os relatórios analisados exprimem a branquitude presente em nossas relações, ao colocarem
a atuação dos afrodescendentes em menor escala em relação aos brancos. De mesmo modo,
observei na abordagem direcionada à disciplina de História, o uso de categorias sustentadas pela
epistemologia eurocêntrica, sem a devida reflexão, o que corrobora com o olhar opressor à história
das populações de origem africana, indicativo da necessária descolonização epistemológica.
Com este panorama de análise realizada até 2006, situei como o campo da História é
subjetivo e permite diversas interpretações, enfoques e abordagens, muitas vezes contraditórias
e equivocadas, no entanto, são reflexo das diversas dimensões que envolvem a produção de
conhecimento. Sobre isso, Carlos Moore (2008) aponta que esta temática, a história africana,
situa-se em lugar privilegiado para a produção de saberes e ideias pautados no racismo, dentre as
suas diversas faces.

5 Relatório de autoria de Poluceno, Martino e Lazzaris (2001).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Moore (2008) afirma que, para uma efetiva mudança nas bases do ensino de História e na
atuação docente, é necessário a junção de diversos fatores, entre eles destaco: sensibilidade e
empatia com a experiência histórica dos povos africanos, renovação, atualização e descolonização
dos conhecimentos e a existência de uma interdisciplinaridade que cruze os diferentes horizontes
do conhecimento. Estes pontos podem ser vistos em menor ou maior medida nos relatórios, sendo
que muitas vezes não aparecem, o que possibilita pensar as dificuldades de implementação da
história das Áfricas, seja no âmbito acadêmico ou escolar, já que, por exemplo, o ensino continua
a ser divido nesses dois âmbitos, pela divisão quadripartite e eurocêntrica. Entretanto, é possível
notar, através das ementas das disciplinas de história da África no curso de História da UDESC,
a utilização de referências pautadas numa nova perspectiva de produção de conhecimento,
elemento refletido nos relatórios, principalmente a partir de 2011, quando mobilizam em suas
bibliografias para as aulas, estas referências.
Nas análises realizadas no recorte entre 2007 e 2015 evidenciei algumas mudanças, para
além da inclusão de conteúdos, destacando mudanças de posturas e de olhares. Estas mudanças
são pontuais e só foi possível percebe-las, por meio das repetições destas práticas especificadas
nos relatórios, entretanto, não podemos afirmar a existência de uma ruptura, mas a sobreposição
de diferentes estratos de reflexão, permitindo averiguar avanços e retrocessos, muitas vezes,
simultaneamente.
Nesse panorama, os relatórios a partir de 2007 abordam o continente africano sob
perspectiva plural e heterogênea. Dentro da importância de compreender a diversidade do
continente africano, o conhecimento das concepções de oralidade e ancestralidade emergiram
como pontos primordiais a serem estudados. Do mesmo modo, percebi a mobilização de
referenciais e fontes oriundas do pensamento africano, dimensão não apreendida nos relatórios
anteriores a 2007. Além disso, contrariando as permanências do mito da democracia racial, os
estagiários começaram a colocar em evidência a existência do racismo.
Em minha concepção, as Diretrizes (BRASIL, 2004) influenciaram na escolha metodológica
e de conteúdo dos estagiários, não necessariamente de forma direta, mas inclusive em alguns
relatórios, os estagiários foram além do proposto em lei, tomando-a como ponto de partida ou
justificativa para a sua prática em sala de aula. Ou seja, a Lei e as Diretrizes (BRASIL, 2004), apesar
de terem limites, estimularam a reflexão dos estagiários, permitindo uma gama de possibilidades e
de experiências, antes não vislumbradas como importantes no espaço escolar. Como, por exemplo,
a abordagem das tradições de oralidade e ancestralidade ou das religiões de matriz africana.
Ainda assim, alguns relatórios enfatizaram noções voltadas a uma perspectiva que
desumaniza os afrodescendentes, com isso, percebo que a principal permanência nestes
documentos, foi a narrativa da escravidão como lugar central para pensar os afrodescendentes
e a dificuldade em pensar as Áfricas por elas mesmas, sem relação com o período da escravidão
no Brasil, um dos obstáculos a ser superado. Destaco que o problema não é tratar da escravidão,
mas sim a forma de abordagem dada a este conteúdo, que muitas vezes retira a humanidade dos
afrodescendentes ou reforça a centralidade da condição jurídica do escravo como único elemento

Página 854
de sua história.
De igual modo, chamo a atenção, que não há problema em ensinar a história da África
apenas em sua relação com o Brasil, em especial a história afro-brasileira. Até porque, conforme
Silva (2003), a história das Áfricas possui diversas dimensões e conexões, que interligam este
continente a todos os outros, ou seja, não podemos estuda-lo isoladamente. Mas ressalto que
há uma carência nestes relatórios, de aulas sobre a história do continente africano de modo
específico, compreendendo dinâmicas internas, para além da sua relação com a escravidão e com
o colonialismo.
Afirmo que o caminho não é a simples introdução de conteúdos, embora seja fundamental
incluir e reconhecer a existência da história das Áfricas e de seus povos, mas é necessário superar
o eurocentrismo, o racismo e a colonialidade na forma como estes conteúdos são abordados, nos
aportes teóricos e na maneira como interpretamos o mundo. O desafio é proporcionar um ensino de
História que não dicotomize, nem idealize a história das diferentes Áfricas, mas que compreenda
dinâmicas internas e externas, apreendendo relações entre o passado e o presente.
Neste espectro, torna-se urgente os Estudos Africanos, tanto na escola como na
universidade, com a finalidade de desfazer estereótipos e deslocar o olhar para outras formas de
vivências e de produção de conhecimento, configurando assim, um ponto alternativo que coloque
a África como centro de sua própria história. Em consonância a isto, faz-se preponderante atentar
às múltiplas histórias africanas, embasadas numa teia multicêntrica e cruzada pelos sujeitos que
também são múltiplos, como a história da África no Brasil (AZEVEDO, 2016).
Sobre a Lei Federal nº 10.639/03 e as Diretrizes (BRASIL, 2004), argumento que, os
impactos destas, não foram percebidos apenas de forma direta, prescrita, mas também no campo
do debate, suscitando discussões em vários locus refletidos nos relatórios. Este impacto, ainda
não é grandioso, a considerar a densidade das orientações destas normativas e também o tempo
que já passou desde a sua implementação e desde as lutas mais antigas do movimento negro.
Então, estas normativas não contribuíram em nada? Muito pelo contrário, afirmo a
importância destas regulamentações que, mesmo com diversos problemas, limites e dificuldades,
estimularam e motivaram o debate e a reflexão sobre a questão racial e africana. Contudo, a
prática desta legislação, ainda depende da atuação pessoal de cada docente, de cada estagiário
e de cada estudante, variando de acordo com o arcabouço teórico, com a sensibilidade e com a
interpretação de cada um. Por este motivo, os relatórios não conformam um grupo homogêneo,
mas isto não impossibilitou constatar avanços e embates.
Nessa conjuntura, pondero que, mesmo com a implementação desta normativa, o ensino
de história das Áfricas ainda possui obstáculos e equívocos, logo, como seria este ensino sem a
legislação? Diante disso, é imprescindível explicitar a visibilidade que esta legislação possibilitou
à temática das Áfricas. Como vimos na escolha de conteúdo dos relatórios, somente nos últimos
anos do recorte temporal estabelecido, observa-se a história do continente africano como
elemento central das aulas.
Ao longo desse recorte temporal, de 2000 a 2015, destaquei indícios, através das

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

amostragens dos relatórios de cada ano, de um complexo processo que, apesar de obstáculos
e dificuldades, permite uma visão positivada, de construção de um ensino de história das
Áfricas pautado num olhar descolonizado, antieurocêntrico, policêntrico, dialógico e antirracista
(AZEVEDO, 2016). No entanto, como demonstrou esta pesquisa, ainda estamos sob as estruturas
racistas que pairam sobre a nossa sociedade e, com isso, como diz o provérbio Ioruba, uma
árvore sozinha não compõe uma floresta, portanto, temos ainda, um longo caminho em busca
do florescimento desta floresta, constituída por outras práticas, posturas, valores, pensamentos,
histórias, olhares, sensibilidades e empatias.

REFERÊNCIAS

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Página 857
EIXO 17: Mídia e negritude

O Grupo de Trabalho propõe reunir pesquisas que abordem criticamente


produtos, processos e fenômenos comunicacionais e midiáticos, relacionados
à negritude, racismo, anti-racismos e o direito à informação e a produção desta
nas culturas contemporâneas e históricas. Interessa também os saberes que
emergem das relações entre tecnologias de comunicação e informação e as
culturas locais, regionais ou globais em tempos de convergência de mídias e
de sentidos. Consideram-se com isso, estudo sobre produção, experiências,
leituras e consumo cultural e midiático, bem como os processos de interação,
apropriação, representação, imersão, uso e afetação pelas diferentes formas
de comunicação – da interação pessoal ao digital. Atenta-se igualmente para
autores, teorias e metodologias acionadas nestas pesquisas e a avaliação
crítica dos processos de investigação.
DANÇO LOGO EXISTO, PENSO LOGO EXISTO: DEMOCRACIA RACIAL OU
MITO DA DEMOCRACIA RACIAL SOB UMA NOVA CONFIGURAÇÃO NO
PROGRAMA ESQUENTA?

Roberto Jardim da Silva1


robertojardimdasiva@gmail.com
Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar a representação das pessoas negras no programa de televisão
da Rede Globo, “Esquenta”, verificando se este consegue promover ou motivar reflexões acerca das
desigualdades étnico-raciais no Brasil ou reproduzem os lugares sociais que o racismo delegou a esta
parcela da sociedade brasileira, uma vez que a falsa ideia de igualdade racial no Brasil é opressora
e silenciadora das diferenças sociais causadas pela racialização das relações sociais. Este programa
de televisão foi analisado porque a mídia é um importante mecanismo de veiculação e enraizamento
da forma como as pessoas negras são representadas na sociedade brasileira. Para esta análise foram
usados os referenciais teóricos Frantz Fanon, Joel Zito de Araújo e Knolo Foé. Parte-se da hipótese de
que os estereótipos sobre a população negra estão tão enraizados também nos meios de comunicação,
que as tentativas deste programa, cujo um dos objetivos anunciados seria romper com a ideia de
desigualdade racial, muitas vezes fracassam, pois, estão permeadas pelas ideias de democracia racial e
de branqueamento. Concluímos que o programa não promove uma discussão de fato transformadora
acerca das relações raciais, pois, não consegue romper com o mito de democracia racial e com a ideia
de branqueamento, sendo o rompimento com esses dois paradigmas de construção da sociedade
brasileira, condição necessária para se promover uma discussão étnico-racial transformadora acerca
das desigualdades raciais no Brasil.

Palavras-chave: Protagonismo. Representação social. Mito da democracia racial.


Branqueamento.

1 Doutorando em Sociologia pela UFPR; membro do conselho editorial da revista Sociologias Plurais e
pesquisador do Núcleo de estudos afro-brasileiros da UFPR.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Abstract

The objective of this study is to analyze the representation of black people in Rede Globo television
program, “Esquenta”, verifying if it can promote or motivate reflections on ethnic-racial inequalities in
Brazil or reproduce the social places that racism delegated to the Black society, since the false idea
of ​​racial equality in Brazil is oppressive and silencing social differences caused by the racialization of
social relations. This television program was analyzed because the media is an important mechanism of
placement and rooting of the way black people are represented in Brazilian society. For this analysis were
used the theoretical references Frantz Fanon, Joel Zito de Araújo and Knolo Foé. It is hypothesized that
stereotypes about the black population are so entrenched in the media that the attempts of this program,
whose aim would be to break with the idea of ​​racial inequality, often fail because they are permeated by
the ideas of Democracy and money laundering. We conclude that the program does not promote a
transformative discussion about race relations, since it can not break with the myth of racial democracy
and the idea of ​​money laundering, being the rupture with these two paradigms of Brazilian society, a
necessary condition for A transformative ethno-racial discussion about racial inequalities in Brazil.

Keywords: Protagonism. Social representation. Myth of racial democracy. Bleaching.

Página 860
Introdução

Este trabalho visa estabelecer uma análise do programa Esquenta da Rede Globo sobre a
forma como as pessoas negras são representadas e também busca verificar qual o lugar reservado
a essas pessoas no programa. A escolha do Esquenta como objeto de análise se justifica pelo
fato de que, mesmo havendo um número considerável de análises deste programa presentes
em artigos, monografias e dissertações, foi possível verificar e constatar que até 2016 nenhuma
delas tratou de fato da questão etnoracial, do racismo, do branqueamento ou da democracia
racial. Nessas análises está presente a discussão sobre a diversidade (algumas delas, sugerindo
ser positivada no programa), acerca de processos comunicacionais, de mídia de classes sociais,
verbalizadas como minorias, e sobre estereótipos, mas de forma generalizada. Mas o racismo
enquanto questão não aparece, sendo mais evidente uma discussão sobre preconceitos, de forma
bem generalista, dissolvendo o preconceito racial entre os demais.
No artigo “Tudo junto e misturado”: Práticas discursivas do programa Esquenta! Ohana
(2014) trata de processos comunicacionais e da diversidade como sendo algo positivado no
programa. Em A Representação Social do Popular na Mídia Televisiva: O Caso do Programa
“Esquenta!” da Rede Globo, Pinheiro (2012) trata da representação do popular na mídia televisiva.
Na dissertação de mestrado Representações midiáticas da pobreza: O programa Esquenta! E o
reposicionamento do discurso sobre os pobres na tv brasileira, Penha (2012) faz uma discussão
da representação da pobreza no discusso midiático, tendo o Esquenta como foco. Na dissertação
A construção da brasilidade: uma análise cultural midiática do programa esquenta- tv globo,
Corrêa (2016) buscou analisar os sentidos de brasilidade construídos no programa em questão.
Na monografia intitulada O que a Globo separa, o Esquenta Junta ! Uma análise da participação
das minorias sociais na televisão brasileira, Silva (2014) faz uma análise acerca da diversidade
e tentando da conta da pergunta acercado combate do preconceito no programa. A análise tem
resultados otimistas, uma vez que conclui que o programa contém a possibilidade promover
entreterimento «sem reforçar os estereótipos que potencializam preconceitos contra determinados
grupos sociais» (SILVA, 2014, p. 7). Na monografia O retrato das minorias? Uma análise do
Programa Esquenta como elemento de representação das diversidades sociais, Silva (2014)
tratou da discussão da representação das minorias na televisão brasileira. No artigo Programa
‘Esquenta’ como palco de cidadania, Silva (2015) buscou verificar se o Esquenta conseguem
despertar discussões relacionadas com a cidadania. No artigo Rede Globo de Televisão e cultura:
representação das favelas brasileiras através do programa “Esquenta!”, Souza (2012) faz uma
discussão de classe social, tratando da favela na televisão, vendo o Esquenta como promotor
desta discussão. Na monografia Do popular ao massivo: Uma análise o programa Esquenta!,
Hilgert (2015) buscou identificar elementos da cultura popular, presentes no programa.
Dos textos verificados até então, apenas o livro A Larva no Caroço: Regina Casé, o
programa Esquenta! e a deseducação (2016) de Everton Marcos Grison faz uma análise do
ponto de vista das relações raciais. Sua análise é bastante pertinente, uma vez que aborda com

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

propriedade questões acerca dos estereótipos das pessoas negras, reforçados no telespectador e
na telespectadora pelo programa.
Este trabalho está dividido em 4 partes. Na primeira parte, intitulada A configuração do
programa esquenta e a forjada democracia racial, é feita uma breve apresentação do programa,
com algumas considerações sobre as características do palco, auditório, participantes fixos e
convidados. Na segunda parte intitulada A evidente perda da iniciativa histórica da população
negra reproduzida no programa Esquenta, é evidenciado o lugar de não protagonismo que
historicamente fora construído para as pessoas negras pelos intelectuais Europeus. Na terceira
parte intitulada O lugar de protagonismo na fala científica e política, a partir da análise de edições
do programa, é evidenciado como a fala científica das pessoas negras, quando esta teve algum
espaço no Esquenta, foi interrompida e legitimada pela fala de um intelectual branco, na qual este
acaba tendo o papel de legitimar a fala intelectual negra. Na quarta parte intitulada O protagonismo
no não lugar, mostramos a condição de não protagonista das pessoas negras em lugares não
circunscritos pelos estereótipos, sendo estes contemplados como protagonistas apena no lugar do
risível ou da pessoa sem família, que foi abandonada pelo pai ou pela mãe ou no lugar de pobreza.

1. A configuração do programa esquenta e a forjada democracia racial

O programa Esquenta é uma produção da Rede Globo de televisão, criado em 2011,


que ia ao ar aos domingos à tarde, tendo como apresentadora a atriz e humorista Regina Casé,
conhecida no meio televisivo por apresentar programas de caráter popular. Em sua trajetória na
televisão brasileira ela apresentou programas como Brasil Legal (1995), Muvuca (1998), Central
da Periferia, (2006) e atuou como atriz em programas de humor como TV Pirata (1988).2 Ele teve
inicio em 2 de janeiro de 2011 e saiu do ar no dia 1° de janeiro de 2017.
O Esquenta contou, na sua configuração espacial, com um cenário bastante colorido
recurso utilizado costumeiramente para sugerir a ideia de étnico. Trata-se de um programa de
auditório, onde a plateia é, muitas vezes, convidada a interagir. Conta também com a presença
de um número considerável de moradores da periferia, dentre eles, um grande público negro e
mestiço, bem como personalidades negras da televisão e da música brasileira. Existia neste
programa a pretensão, dita abertamente, de combater o preconceito racial e disseminar a ideia de
que no Brasil “somos todos iguais” – que vivemos em uma democracia racial.
Dentre os/as artistas, cantores/as, atores e atrizes, existem alguns que participavam com
relativa frequência. Grande parte deles eram pessoas negras e/ou de origem humilde como o
sambista carioca negro Arlindo Cruz, a cantora carioca Preta Gil, filha do cantor e ex-ministro da
cultura, Gilberto Gil, o ator negro Douglas Silva, um dos protagonistas do filme “Cidade de Deus”
(2002) e Mumuzinho, cantor da comunidade do Realengo (SOUZA, 2014).
Eventualmente o programa contava também com a presença de pessoas anônimas,

2 http://www.reginacase.com.br/vida.

Página 862
moradores de periferia, de intelectuais e personalidades políticas que vêm falar sobre problemas
sociais do Brasil. Toda esta diversidade apresentada representa bem o ideal de democracia racial
presente no imaginário brasileiro, bem como uma ideia de aproximação das classes sociais.
Para Souza (2014) o programa Esquenta é positivo porque seria o início de uma ruptura
com a ideologia elitista que a rede globo vinha seguindo. Buscaremos evidenciar se tal ruptura
acontece na tv brasileira, porém, segundo Araújo (2000) “O mito da democracia racial3 brasileira
persiste até hoje na indústria do cinema e da telenovela.” Mas são os papéis ocupados por pessoas
negras e brancas no interior do programa que possibilitam, após uma análise cuidadosa, constatar
se de fato o programa rompe com as desigualdades raciais e os estereótipos, ou apenas os reforça
sutilmente.
O número de cantores e cantoras negras presente no auditório do programa é bastante
expressivo. Estão presentes todos os domingos, com um repertório de músicas populares como o
samba e o pagode. Os dançarinos de funk também colaboram para o entretenimento do público
com suas coreografias bem elaboradas. O programa contava também com a participação de
atores e atrizes negros e negras, sendo estes e estas bastante exaltados/as pelo público e pela
apresentadora, como símbolos da superação da pobreza e do preconceito.
Ao olhar de forma desatenta, é possível deixar-se levar pelo clima de festa permanente
presente no programa, sem promover uma reflexão sobre as situações produzidas e reproduzidas,
pode-se pensar que o cotidiano da vida social brasileira caracteriza-se por essa harmonia
étnico-racial e social. Porém, nos momentos em que a festa é intercalada por discussões acerca
de problemas sociais, culturais ou qualquer outra discussão acadêmica, é possível identificar
os primeiros problemas, uma vez que, tais discussões são sempre promovidas por intelectuais
brancos, a quem é dada a legitimidade para promover reflexões acerca da realidade social de
negros e brancos no Brasil.

2. A evidente perda da iniciativa histórica da população negra reproduzida no programa


esquenta

É possível observar que, neste programa, às pessoas negras são relegadas a tarefa de dançar
e cantar, em suma, ao papel de animadores. A fala científica, sobre a cultura e o modo de vida da
periferia, é sempre branca. Trata-se da essencialização dos papéis sociais atribuídos às pessoas
de acordo com o fato de serem negras ou brancas. É o “Danço logo existo” substituindo o “Penso
logo existo”, quando o protagonismo é atribuído a parcela negra da população brasileira. Araújo
(2000), ao analisar as telenovelas da Rede Globo, mostra como a inserção e a representação das
pessoas negras na teledramaturgia brasileira desde os anos 60 se dá de forma que se naturalize

3 Ver mais acerca do conceito de mito da democracia racial em : FERNANDES, Florestan, O Mito Revelado.
Revista Espaço Acadêmico [originalmente publicado em Folhetim de São Paulo1980], Ano II, n. 26, 2003. Disponível
em: <http://www.espacoacademico.com.br/026/26hbrasil.htm>. Acesso em 12. Jan. 2014

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

o lugar de subalternidade das pessoas negras no cotidiano social. Ele constatou, em sua análise,
que os poucos negros e negras que apareciam nas telenovelas eram representados de forma
invisibilizada, estereotipada e como não protagonistas das estórias que se sucediam neste tipo de
dramaturgia. Deixa evidente que as poucas tentativas de se criar um protagonismo negro na mídia
foram fortemente contestadas pelo público ou pela própria emissora. Esse não protagonismo das
pessoas negras foi continuamente forjado no Brasil, fazendo-se entender como algo natural.
Foé (2012) chama esta construção do não protagonismo das pessoas negras de perda
de iniciativa histórica. Para ele, tal lugar de reservado às pessoas negras fora construído por
pensadores como Kant, Hume, Voltaire, Montesquieu, Condorcet (FOÉ, 2012, p.176) e Heidegger
e Hegel (DANTAS e JARDIM, 2016). Nessa construção Kant reduzia a religiosidade das pessoas
negras a fetiches e idolatria (FOÉ, 2012, p. 185). Voltarie por sua vez enfatizava a inferioridade das
pessoas negras para tornar legítima a escravização (FOÉ, 2012, p.187). Montesquieu (assim como
a igreja católica) defendeu que as pessoas negras não tinham alma (FOÉ, 2012, p.189). Dessa
forma, os cristãos poderiam deitar sua cabeça no travesseiro após um longo dia açoites, maus
tratos conferidos aos escravizados.
Com isso, torna-se pertinente ainda interrogar-se sobre a existência de uma democracia
racial, sugerida por Gilberto Freyre nos anos 1930, na mídia brasileira ou se ela é ainda um mito,
um fantasma que a todo o tempo permeia as relações sociais no Brasil. Florestan Fernandes, a
partir de suas análises acerca das relações raciais no Brasil disse em 1980 que a democracia racial
não se tornou uma realidade e que “ela se tornou um mores, como dizem alguns sociólogos, algo
intocável, a pedra de toque da “contribuição brasileira” ao processo civilizatório da Humanidade”
(FERNANDES, 2003, p. 01)
. De fato existe uma harmonia racial que paira no programa, mas isso só acontecer na
medida em que cada um ocupa um espaço um específico, que é determinado social e racialmente
(o de subalternidade para as pessoas negras e os demais espaços para as pessoas brancas). De
fato há muito que fazer. O mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento (o esforço
de ter Brasil cada vez mais branco)4 continuam a ser uma armadilha que impedem o resgate da
iniciativa história da população negra na sociedade brasileira.

3. O lugar de protagonismo na fala científica e política

O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA NO PROGRAMA ESQUENTA: EQUÍVOCOS E REFORÇO


DE ESTEREÓTIPOS.

Na edição exibida no dia 17 de novembro de 2013 (data que precede o dia 20 de novembro)
feita a comemoração do dia da Consciência Negra, contando com um público bem mais negro,
e com discussões, figurinos e apelos à questões relacionadas as pessoas negras na sociedade

4 Ver mais sobre o conceito de branqueamento em  : SOUZA,Neuza Santos. Tornar-se negro ou As
vicissitudes da identidade do negro brasileiro em Ascensso social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

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brasileira. Embora as pessoas negras estivessem quantitativamente representadas nesta ocasião,
os estereótipos e lugares sociais continuavam a ser reforçados. Estavam presentes a juíza Luislinda
Dias Valois dos Santos, primeira e única desembargadora negra do Brasil, a atriz Thaís Araújo, o
ator Luíz Miranda e a ministra da Igualdade Racial, Luiza Bairros.
Tal situação fica bastante evidente, quando a juíza Luislinda Dias de Valois Santo, uma
referência para os negros, sobretudo para estudantes de direito, teve cerca de 15 segundos para
falar, sendo interrompida por Regina Casé, pois, o programa precisava continuar a seguir sua pauta
de acontecimentos. Tal interrupção acontece também de outra maneira no momento em que a
intelectual negra e ministra da Igualdade Racial, naquela ocasião, Luiza Barros, foi convidada a
falar sobre a Lei 10639/03, que torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro- brasileiras e
africana nas escolas. Ela teve sua fala, de menos de um minuto, imediatamente completada pela
fala de um intelectual branco que já redireciona a discussão para as relações raciais nos Estados
Unidos e na África do Sul. Além de ter um tempo maior de fala, ele é chamado pela Regina Casé
para ficar de pé e ir para o meio do palco para concluir sua fala. Como se sabe, é comum, quando
não se pode evitar a discussão sobre o racismo no Brasil, redirecioná-la para os Estados Unidos, a
África do Sul e dar ênfase ao Apartheid, sugerindo que em nosso pais o racismo é menos agressivo
e endossando uma democracia racial que sabemos não existir. Outro aspecto recorrente no
programa é o fato de que a fala de pessoas negras são sempre seguidas pela fala de pessoas
brancas, uma forma de legitimar o que a pessoa negra falou, uma vez que já está no imaginário
social que a ciência, o conhecimento, são brancos.
A interiorização e naturalização de tais ideologias se dá, em grande medida, no processo
de socialização nas escolas, quando estudamos o humanismo iluminista europeu que se pretende
branco, bem como as revoluções científica branca e revolução francesa e outra estadunidenses,
também brancas. Também se aprende que a filosofia é branca, grega na sua essência. (DANTAS
e JARDIM, 2016). A mídia também tem esse papel importante nesse processo, uma vez que
bombardeia o telespectador com uma branquidade normativa que se expressa em uma maioria
quase absoluta com respeito ao sujeito protagonista da produção de conhecimento científico,
político e das demais esferas de realização do ser humano. Fanon (2015) fala dessa interiorização
do que hoje chamamos de branquidade normativa, como consequência do processo colonial e diz
que as diversas teorias raciais conferiram às pessoas brancas o status de humanidade e às pessoas
negras um lugar qualquer entre o caminho seguido entre os primatas e o homem (FANON, 2015,
p.13). Ele diz ainda que quando se fala de um alemão, um russo, estes têm um país específico, uma
língua e podem ser advogados, engenheiros na sua cultura. Mas no caso das pessoas negras isto é
diferente. Não menção à cultura, nem civilização, nem história. Segundo Fanon, as crianças negras
[e acrescentamos que as crianças brancas também] aprendem com o cinema uma representação
das pessoas negras que reforça este lugar de não protagonismo (FANON, 2015, p. 27).
Fanon (2015) analisa o lugar que o negro ocupa na sociedade e diz que o ele somente se
realiza de fato, tendo o branco como espelho ou referência. Segundo ele o Ocidente construiu a
concepção de que a humanidade é branca. Portanto, uma vez que o negro quer se tornar humano,

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

ele tem que tomar o branco como ponto de partida para a construção de sua humanidade.
Segundo ele, o homem branco viu o mundo, o queria e se viu como o mestre predestinado do
mundo. (FANON, 2015, p. 103)

4. O protagonismo no não lugar

A COPA DO MUNDO NO PROGRAMA ESQUENTA

Durante a copa do mundo o programa contou com um cenário voltado para o campeonato
mundial com uma propaganda a nível internacional contra o racismo. Nos programas circulava
uma faixa em inglês com a seguinte mensagem: “Say no to the racisme” (Diga não ao racismo).
No dia 6 de junho de 2014, Regina Casé abriu o programa com uma mensagem contra todos
os tipos de preconceito, o preconceito racial, preconceito religioso, a homofobia, o preconceito
de classe, entre outros. Ela reforçou que a quatro anos está gritando a frase “xô preconceito” no
Esquenta. Na sequência a apresentadora disse que quando a câmera passasse pelas torcidas de
futebol: “mostre uma torcida vibrante, quente, com gente de muitas cores, gente e muitas religiões,
porque esse é o Brasil, esse é o mundo em que a gente vive [...] queremos um Brasil e um mundo
sem racismo” (GSHOW GLOBO, 2014). Ela convocou a todos e todas para lutar contra todos os
tipos de preconceito e principalmente o racismo.
Neste mesmo episodio, foi apresentado um quadro onde convocou-se duas torcidas
de países estrangeiros para vir ao programa falar sobre como é estar no Brasil durante a copa e
cantar alguns gritos de guerra de torcida. Estava presente uma torcida alemã e uma holandesa. É
possível observar que, independente de quais sejam os resultados no campeonato, o estrangeiro,
o “gringo” é sempre sinônimo de europeu, de pessoas brancas. Não observou-se a participação
de torcedores nigerianos, camaroneses, argelinos e de outros torcedores de países africanos, bem
como de outros continentes. Os negros estrangeiros não são visibilizados como protagonistas
nem na torcida pelo seu país.
Como afirma Joel Zito de Araújo, em entrevista no programa Na Moral, apresentado
por Pedro Bial em 10 de julho de 2014: “Houve avanços acerca da representação do negro na
teledramaturgia. Mas a mídia, bem como a população brasileira, compactuam ainda com um
desejo de branqueamento da sociedade.” Segundo ele, “isso é bem visível na cor das crianças
que entraram com os jogadores na copa, a maioria branca. Até mesmo os que entraram com os
jogadores africanos.” (PROGRAMA NA MORAL, 2014)

O DIA DOS PAIS NO PROGRAMA ESQUENTA

No último dia dos pais, 10 de agosto de 2014, o programa Esquenta teve como foco esta
temática. Regina Casé pediu ao auditório para que levantasse a mão, quem não tinha o nome do

Página 866
pai reconhecido em cartório. A grande maioria das pessoas que levantaram as mãos eram negras
o close da câmara nelas conduz o telespectador a pensar que todas as pessoas que levantaram
as mãos eram negras. Em seguida, a apresentadora convida os cantores Djavan e Salgadinho,
para falar da sua experiência como filhos que não têm o nome do pai no documento. O mesmo
pedido foi feito ao ator Douglas Silva. Nesse momento a pessoa negra não e preterida, somente é
convocada quando vai se falar de famílias com ausência de pais ou mães.
Essas cenas nos levam a concluir que a criança órfã é a criança negra. Possivelmente
existem cantores e atores brancos que não tiveram o nome dos pais na certidão de nascimento,
mas parece que isso não é nem cogitado (talvez por deixar tais pessoas mal diante das câmaras ou
simplesmente por que não é interessante para a televisão fazer isso.). Tais cenas reforçam também
a ideia de que a família negra, pai, mãe, irmãos (modelo de família tradicional) não existe no Brasil,
no máximo existe a família inter-racial.
Na sequência, a apresentadora, chama uma mulher que desenvolve um trabalho social
de integrar pais e filhos desconhecidos, levando ao reconhecimento de paternidade. E como um
dos resultados desta ação social, o programa trouxe ao ar uma filha que conseguiu se aproximar
de seu pai e ter sua paternidade reconhecida, ambos eram brancos. Dentre todos os filhos
não reconhecidos apresentados apenas uma era branca, e esta aparece em um contexto de
reaproximação com o pai.
Desta observação percebe-se o apelo a imagem das pessoas negras como filho não
assumido ou como órfão, transformando tal situação quase em uma regra, sendo aquele que nasce
no seio de um família constituída uma exceção. Em contrapartida, a jovem que também não teve a
paternidade assumida ao nascer, mas encontrou o pai posteriormente, por ser mostrada como um
caso isolado, também pode denotar uma ideia de exceção a regra, enquanto pessoa branca, bem
como jovens brancos que vão para o mundo do crime, famílias brancas não constituídas, jovens
que não terminaram só estudos e não adquiriram uma profissão, etc.
Na sequência do programa, entre outros quadros, foi apresentado o caso do pai de 37 anos
que tem 20 filhos, com esposas diferentes, evidentemente. Em um primeiro momento, pode-se ter
a ideia de que o programa está dando visibilidade a família negra, porém esta é colocada no lugar
do exótico uma vez que não se trata de um pai negro que constituiu uma grande família com uma
única esposa, mas que substitui a sua companheira de tempos em tempos.
Tal situação reforçaria a ideia de homem negro animalizado, levado pelos instintos, que não
tem compromisso, sendo incapaz de constituir uma família – dito de outra forma, ele é somente
corpo, por que ainda estão presentes os pressupostos do século XIX em que a razão é branca e
a emoção, a animalidade é negra. Aparentemente existe uma negação da ideia de família negra
enquadrada aos padrões tradicionais de família, embora não se esteja aqui buscando ressaltar tal
modelo de forma valorativa, mas sim mostrar que, a existência de famílias constituídas por negros
(pai negro e mãe negra, casados/as) parece ferir o imaginário brasileiro de que o Brasil seria o
país da mistura racial, da miscigenação caminhando da tão sonhada nação branca, ideias que
nasceram no contexto do mito da democracia racial (ARAÚJO, 2008, p. 982)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

5. Do reforço de estereótipos à naturalização do lugar de ridicularizável

Existe um quadro em que os convidados do programa escolhem duas ou três pessoas


da plateia para tornar explícita uma característica bem peculiar da pessoa, normalmente algo
do qual se possa rir ou pode ser transformado em algo risível (pelo menos essa foi a impressão
que ficou). Na edição de 20 de dezembro de 2014 foram escolhidas três pessoas que estavam
na plateia e foi apresentado seu jeito peculiar de se vestir. Dentre elas estava uma mulher negra
da periferia e duas mulheres brancas (que não se sabe dizer se de qual classe social são). As
três foram expostas pelo jeito peculiar de se vestir. A mulher negra que usava vestimentas de
crochê foi bem mais exposta e tornou-se o símbolo da “breguice” ou da forma “nada a ver” de
se vestir. Como se não bastasse ser exposta, sua condição financeira foi exposta também. Foi
dito que ela gostava de assistir ao programa Esquenta, mas, que não tinha televisão, tal exposição
teve como resultado a entrega, a mulher negra em questão, de uma TV tela plana de cerca de
32 polegadas. A mulher ficou emocionada ao receber a televisão o que a impediu (impedindo
também o telespectador) de questionar o que aconteceu logo em seguida, o ator Douglas Silva e o
cantor Mumuzinho se vestiram de mulher e a imitaram, tornando a exposição mais ridicularizadora
ainda. Eles apresentaram vários modos de usar utensílios do dia a dia, usando a o crochê como
referência.
Em um quadro de 5 minutos do programa a mulher negra foi ridicularizada por seus trajes
pessoais, e como se não bastasse, foi exposta na sua condição financeira ao extremo. A posse de
uma televisão que é hoje algo bem banal e qualquer casa de brasileiros e brasileiras, indiferente
da classe social (salvo alguém que é muito miserável e não tem onde morar) foi colocado como
algo que essa mulher negra não tem. Dessa forma fica explicito que o lugar de pobre é conferido a
negros e negras sendo bem situados neste programa de tv e logo, na sociedade.

Conclusão

No programa Esquenta Regina Casé trouxe as pessoas pobres e negras para o palco, para a
plateia e deu a muitas delas a possiblidade de dançar, de cantar e de falar. Isso ficou bem evidente
na análise feita de alguns quadros do programa. Mas este programa, da forma como foi veiculado,
não deu conta de promover uma reflexão acerca do racismo e nem deu conta de romper com
estereótipos, naqueles momentos semanais em que o programa fora veiculado. Isso porque essas
tentativas tiveram como pano de fundo a democracia racial e o branqueamento, que são pilares do
racismo e da constituição da sociedade brasileira.
A invisibilisação das pessoas negras enquanto protagonistas é uma das maiores barreiras
a ser enfrentada para que se possa falar de igualdade étnico-racial no Brasil. Não adianta fazer
um discurso contra o preconceito, o racismo, a desigualdade e imediatamente colocar as pessoas
negras em lugares de não protagonistas da história, do cotidiano, restando apenas o futebol e
outros esportes em que se tem o condicionamento e físico como bem empregados para o seu bom

Página 868
desempenho (porque em alguns esportes como a corrida de carros, esgrima, equitação e outros
que requerem investimento o negro não está) e a dramaturgia, como lugares positivos em que as
pessoas negras podem ocupar.
O não protagonismo das pessoas negras é algo que está na mentalidade de todos brasileiros
e brasileiras, seja qual for sua cor, etnia ou classe. Isso foi ensinado no processo de socialização,
pela família, pela escola, pela igreja, pelo mercado de trabalho e, sobretudo, pela mídia, valores
estes, sustentados pelo desejo de branqueamento da sociedade brasileira, velado pelo mito da
democracia racial e pelo silêncio em questões que dizem respeito ao racismo.
Dado que o Ocidente incutiu na cabeça das elites colonizadas pela Europa, na América e na
África, que a humanidade e o protagonismo eram sinônimos de ocidentalidade e, portanto brancos,
valendo o mesmo para produção de ciência e de tecnologia, torna-se necessário desconstruir essa
falsa ideia de protagonismo e de humanidade, circunscrita geográfica etnicamente ao Ocidente.

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2014.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

MULHERES NEGRAS NA MÍDIA: INVISIBILIDADE, ESTEREÓTIPOS E


EMPODERAMENTO

Clarice Fortunato Araújo1


Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
CAPES Foundation, Ministry of Education of Brazil2
E-mail: claricearaujo2011@gmail.com

Resumo

Os meios de comunicação moldam a memória pública/social. Na sua tessitura, vida, cultura e arte
estão ligadas pelo mesmo fio condutor, de forma que, retoricamente ambos se entrelaçam. É neste
sentido que se entende o papel dos veículos de comunicação para a manutenção de opressões
sociais. Precisamente, no Brasil, o racismo midiático fica evidente quando observamos o seguinte
paradoxo: a população brasileira é majoritariamente negra e a população representada na mídia é
predominantemente caucasiana. A partir do romance Gabriela cravo e canela (1958), de Jorge
Amado e suas adaptações para a telenovela, se articula uma discussão sobre a representação das
mulheres negras nas páginas e nas telas com o intuito de explanar a invisibilidade e a estereotipia destas
mulheres na mídia. As discussões propostas serão fundamentadas na perspectiva da teoria pós-colonial
porque tais estudos buscam entender os efeitos da colonização que marcaram, de forma distinta, tanto
colonizador como colonizado; em outras palavras, a crítica pós-colonial propõe uma perspectiva de
escrita contra-hegemônica, de resistência aos modelos universalizantes. Com isso, pretende fortalecer
as políticas de emancipação das literaturas dos povos oriundos do processo de colonização. Apesar
da condição de opressão histórica, as mulheres negras, incansavelmente, protestaram por igualdade
de direitos, mesmo tendo seu grito silente.  Outrossim, paulatinamente, estas mulheres optaram por se
associar para transformar a dor da opressão em luta política.

Palavras-chave: Mulher Negra. Mídia. Estereótipo. Racismo.

1 Doutoranda e Pesquisadora Capes no Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade Federal


de Santa Catarina (UFSC) (2014-2018), com PDSE na Universidade de Exeter, Inglaterra, UK (2015-1016).
2 O presente trabalho foi realizado com apoio da CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil

Página 872
INTRODUÇÃO

Desde a sua gênese, a nossa cultura é racista, sexista e elitista. Dentro dessa lógica, é
oportuna a discussão sobre o racismo midiático, incontestável quando observamos o seguinte
paradoxo: a população brasileira é majoritariamente negra e a população representada na mídia é
predominantemente caucasiana.
As discussões propostas serão fundamentadas na perspectiva da teoria pós-colonial
porque tais estudos buscam entender os efeitos da colonização que marcaram, de forma distinta,
tanto colonizador como colonizado; em outras palavras, a crítica pós-colonial propõe uma
perspectiva de escrita contra-hegemônica, de resistência aos modelos universalizantes. Com isso,
pretende fortalecer as políticas de emancipação das literaturas dos povos oriundos do processo
de colonização.
O Brasil é um país em que se destaca a as diferenças étnico-culturais, idiossincrasia
dos povos marcados pelo processo de colonização. Diante de tamanha diversidade é possível
prever a quão complicada é a função de classificar a população brasileira de acordo com critérios
de cor. Mesmo assim, desde 1987, o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) incorporou em suas pesquisas uma questão sobre a autoclassificação do
brasileiro em relação à cor própria pele, entre as opções étnicas: preta, parda (incluindo mulato e o
mestiço), branca, amarela (orientais) ou indígena. A mudança no censo pode parecer sutil, mas é
fundamental para se detalhar a composição de um povo em permanente contato e mistura étnico-
cultural, porque, como nos diz Rebecca Reichmann Tavares3 (2011, p.9), representante da ONU
Mulheres para Brasil e Cone Sul: “um país que conhece a sua população tem mais chances de
investir melhor seus recursos para enfrentar desigualdades e questões sociais”.
Em Casa grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre faz uma descrição detalhada
das (consideradas) raças formadoras do povo brasileiro, mostra o movimento da sociedade
escravocrata e ilumina o patriarcalismo vigente no Brasil pré-urbano-industrial. O autor traça um
panorama idealizado da relação entre colonizador e colonizado e reafirma a unidade existente
entre as colônias portuguesas e a predisposição do português como “colonizador ideal dos
trópicos”. Freyre, como poucos historiadores na época, percebia a relevância da questão racial
para entender a formação da população brasileira. Dissonante do pensamento dominante no final
do século XIX, presente nas artes e na literatura, que considerava o negro um problema e a mistura
racial maléfica, o autor defendia energicamente a teoria da democracia racial.
Assim como Freyre, Jorge Amado faz uma leitura de um Brasil harmoniosamente
miscigenado, e faz da mestiçagem um tema recorrente em suas obras. Já no seu primeiro romance,
O país do carnaval (1931), o personagem Paulo Rigger, intelectual brasileiro de formação europeia,

3 Texto de Apresentação do projeto intitulado “Retrato das desigualdades de gênero e raça” (2011),
publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, com a participação da ONU Mulheres,
Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM e Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
– SEPPIR.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

confronta a cultura do carnaval, declarando que a mestiçagem é o que considera um forte fator de
atraso. O título da obra lembra o ditado popular do século XVI, sugestivo de que “não existe pecado
ao sul do Equador”, uma espécie de lema libertino, que faz alusão ao imaginário europeu, segundo
o qual os povos dos trópicos sul-americanos, se entregavam prazerosamente ao conquistador
português, estabelecendo uma imagem do Brasil como um centro de prazeres sem culpa: um
lugar com um povo sensual, exótico e receptivo.
Mais uma vez, em Tenda dos milagres (1969), Jorge Amado representa outra discussão
racial, em que o personagem mulato Pedro Archanjo torna-se um ardente defensor da miscigenação:
“Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal, foi com
a miscigenação” (AMADO, p.80). Presumidamente, a mestiçagem se fez um tema tão rotineiro na
obra amadiana que é possível afirmar que
Jorge Amado foi um escritor movido pela utopia que se transformou num elogio rasgado
da mestiçagem. O Brasil amadiano é mestiço, alegre e sensual e apresenta elementos de
um país tão real como imaginário, do mesmo modo como seus livros permitem entender
aspectos sociais e culturais fundamentais da própria sociedade brasileira. Se nas suas
páginas desfilam sociabilidades de toda ordem, cruzamentos e contatos fáceis.( Schwarcz
& Goldstein (2009, p.8)4.

Célebre em seu acervo, Gabriela cravo e canela é a obra com mais forte tom tropicalista.
O romance exalta a mestiçagem, na figura de Gabriela, mulata5 sensual, de sorriso fácil e beleza
genuína – não por acaso, a mesma mulata que transita no imaginário social, desde os tempos em
que eram meros objetos de prazer dos senhores de escravos. Como parte deste imaginário, as
teorias sobre as relações raciais no Brasil, a exemplo de Casa grande & Senzala, passam a fazer
parte da concepção de identidade nacional. Pelas lentes de Freyre e Amado, o projeto um país
multiculturalista parecia sedutor e inofensivo, porém, por traz deste pensamento se camuflava o
desejo de se embranquecer a nação, que, consequentemente, implica no perigoso processo de
supressão da cultura dominada pela cultura padrão dominante.

A protagonista invisível: a mulher negra na teledramaturgia

Diante do panorama de uma nação que ainda compactua, mesmo que de forma velada,
com um ideal de branqueamento fenotípico, é fundamental se discutir as estratégias de
resistência e afirmação da identidade negra. Segundo Martin-Barbero (2006, p. 68), tanto “a
identidade contemporânea, como a identidade étnica negra, está continuamente construindo-se
e modificando-se, e a mídia atua neste processo, inclusive para seu reconhecimento social”. Nesta

4 SCHWARCZ, Lilia Moritz & Ilana GOLDSTEIN. O Universo de Jorge Amado. Orientações para o trabalho em
sala de aula. Caderno de Leituras. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda - Cia das Letras, 2009.
5 “Mulata”, palavra de origem espanhola, feminina de “mulato”, “mulo” (animal híbrido, resulatado do
cruzamento de cavalo com jumenta ou jumento com égua). A palavra mulata (o) foi usada de forma perjorativa para os
filhos mestiços das escravas que coabitaram com seus senhores (donos de escravos) e deles tiveram filhos, muitas
vezes frutos de estupros.

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lógica, destaca-se o caso da telenovela, no Brasil, um dos principais meios de entretenimento,
cuja influência é capaz de formar opinião e ditar comportamento. Por conseguinte, ao analisar
os modelos reproduzidos neste veículo, se revela um cenário preocupante, pois se conclui que a
mulher negra se encaixa neste universo pelo prisma das relações sociais, e, neste sedimento ela
ocupa as esferas mais baixas. A partir desse entendimento, ao refletir sobre a rara presença mulher
negra na telenovela, se confirma a problemática das relações raciais no Brasil.
Pesquisadores de várias áreas tem se debruçado a discutir a representação (quase nula,
quando não, deturpada) de negros na televisão. Pode parecer muito, porém, mais recorrente
que as discussões é a reincidência do problema. Em 2000, Joel Zito Araújo, abordou a escassa
presença de negros na teledramaturgia brasileira, no documentário A Negação do Brasil. Segundo
Joel Zito, por muito tempo, negros e mulatos desempenharam apenas papéis subalternos, como
empregados domésticos, as mammies, copiadas dos modelos norte-americanos, ou mesmo a
mulata sedutora, um estereótipo que também atravessa a literatura.
Na tentativa de entender o motivo pelo qual o universo televisivo é tão elitista, o pesquisador
questionou os produtores que, culpam os patrocinadores das telenovelas, que exigem um padrão
estético sob a justificativa de que o público alvo da propaganda é bem determinado: o telespectador
de classe média/alta, que tem maior poder de consumo e patronato. Pelo teor do depoimento do
diretor Walter Avancini Avancini, no documentário supracitado, fica evidente que a escalação de
elenco passa pelo critério de raça/classe.

Um outro fator também que sempre afastou o negro da televisão, é o mesmo fator que
afastou o pobre da novela, [...] enfocar isso não seria conveniente sob ponto de vista de
marketing para a própria emissora que exibia suas telenovelas, seria mostrar um mundo
que poderia incomodar o próprio telespectador de classe média, porque a televisão, dos
anos 70 até o começo dos anos 90, era especificamente dirigida à classe média e um
pouco da classe média alta. A classe menos favorecida, não tinha espaço porque não era
uma boa estética para televisão.

O argumento alegador por Avancini é muito vigente, visto que, desde o lançamento do
documentário de Joel Zito, o cenário pouco se alterou, de modo que, nas novelas brasileiras, os
papeis reservado às atrizes negras ainda são os de empregadas domésticas, ou de mulata sensual.
Contudo, Zito destaca que uma indicativa de mudança nesse processo ocorre quando a atriz Taís
Araújo é escalada para o papel de protagonista em Xica da Silva (1996-1997). Depois disso a
mesma atriz foi protagonista das tramas Da cor do pecado (2004) e Viver a vida (2009). Contudo,
a protagonista de “A cor do pedado” recebeu algumas críticas pela alusão à sensualidade do “corpo
moreno”, tema da música de abertura; já na segunda novela, o protagonismo negro simplesmente
não aconteceu.
Possivelmente Joel Zito se mostra otimista demais, porque as mudanças nesse panorama
são tão lentas, que, por vezes, parecem retroceder um passo dado, tal qual as telas de Penélope6.

6 Mitolgia grega.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

A discriminação persiste quando, na adaptação de um cânone literário, uma personagem


negra é interpretada por uma atriz branca ou de tez muito clara. É só observar que, em todas as
adaptações para as telenovelas, as atrizes intérpretes de Gabriela eram brancas. Na versão de
2012, comemorativa do centenário de Jorge Amado, sob influência dos debates raciais no Brasil,
os caracterizadores usaram uma grossa camada de maquiagem para aproximar o tom da pele da
atriz Juliana Paes à “cor de canela” da protagonista amadiana.
Ao contrário que argumentam os novelistas, no casting da emissora Globo, há atrizes negras
como por Taís Araújo e Camila Pitanga que costumam interpretar personagens negras, mas elas
não foram cotadas para o papel. Quando se confronta os responsáveis pelas adaptações, seus
argumentos confirmam os estigmas presentes no mercado televisivo, como noutro depoimento
em que o diretor Walter Avancini justifica a escolha atriz Sônia Braga para interpretar Gabriela, na
versão da novela de 1975:
Em princípio deveria ser uma atriz negra ou mulata mais autêntica interpretando a
personagem (Gabriela). Aí aconteceu aquele fenômeno: não havia no mercado, realmente,
nenhuma atriz preparada para isso. Eu fiz teste pessoalmente com aproximadamente 80
atrizes negras, com alguma possibilidade, dentro do biótipo, porque tinha um biótipo do
Jorge Amado, que era descrito. E dei de frente com essa impossibilidade. Seria realmente
um desastre se eu insistisse em colocar uma atriz negra não preparada. Seria a reafirmação
dos reacionários de que o ator negro não tem talento, quando na verdade ele não tem
possibilidade cultural de preparação pra entrar então esse mercado de trabalho artístico.7

Os diversos debates protagonizados pela comunidade negra e por pesquisadores


como Joel Zito tem influenciado mudanças - lentas, porém graduais - no meio televisivo. Na
contemporaneidade se percebe um tímido aumento - mais de atrizes negras que de atores negros
- em papéis de destaque. No entanto, estas atrizes ainda são rejeitadas como protagonistas, o que
se constatou na novela Viver a vida, em que o escritor Manoel Carlos prometia trazer uma “Helena”
totalmente diferente das demais. Marca registrada do novelista, as protagonistas “Helenas” são
mulheres fortes, belas, independentes e inspiradoras. A perspectiva da primeira Helena negra
deixou o público, em especial do movimento negro, em grande expectativa para a estreia do folhetim.
Era uma promessa de representatividade; da possibilidade de retratar o negro de forma assertiva,
em horário nobre. No entanto, a limitação dos autores e diretores para lidar com a questão racial
é perceptível quando a personagem de Taís Araújo perde o protagonismo para as personagens
de Lilian Cabral e Aline Morais, respectivamente mãe e filha, na trama. Críticos argumentam que
a Helena negra não convenceu porque estava absolutamente isolada entre o núcleo branco na
novela. Sua personalidade soava esnobe e elitista, ganhando a antipatia do público. Tanta rejeição
do telespectador não encontrou resistência de Manoel Carlos, que, prontamente, mudou o foco
da narrativa, e, fatidicamente, pela primeira vez, a Helena é coadjuvante. A protagonista negra
se encolheu, tímida e frágil, diante da protagonista branca, que foi a verdadeira Helena da trama:
forte, sofrida e com histórico de superação, ex-esposa ainda apaixonada, que defendia a filha

7 Depoimento extraído do documentário A Negação do Brasil: o Negro na Telenovela Brasileira. São


Paulo, Editora SENAC, 2000.

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com unhas e dentes. Marta, e não Helena, tem as características de uma típica heroína, porque
simboliza a imagem romântica da mãe que se sacrifica pela filha Luciana, tetraplégica por conta de
um acidente. Ao lado da mãe, Luciana supera as limitações físicas e vive uma comovente história de
amor, e, assim se torna porta-voz da mais importante mensagem de conscientização comumente
presente nas telenovelas deste autor: a inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais.
A proposta de Manoel Carlos de trazer uma Helena totalmente inovadora resultou num fiasco.
Consequentemente, Taís Araújo, declarou, depois da experiência desastrosa, que, para ela, não é
importante fazer papel de protagonista8:

Minha Helena foi um fracasso e, depois dela, eu virei outra atriz. Comecei a entender que
protagonista não é necessariamente um bom personagem. Tem tantos que são muito
mais ricos e que te proporcionam desafios maiores. A Helena foi importante para isso. Para
eu saber que tipo de atriz eu quero ser, que tipo de papel eu posso fazer.

Parece tão normal usurpar o protagonismo negro: é só deixá-lo pouco à vontade no papel.
Tanto é que, por mais que Taís Araújo seja politicamente engajada nas lutas raciais, ao ser rejeitada
pela crítica e telespectadores, ela, inconscientemente, endossa o argumento dos produtores sobre
os papeis de protagonista negras nas novelas. O curioso é que, no depoimento, Walter Avancini se
referia à Gabriela na versão de 1975, enquanto a declaração de Taís é de 2015.
Em ambas as versões de Gabriela (1975 e 2012), não há nenhum negro no elenco principal,
mesmo na última adaptação, em que se aumentou o número de personagens para estender a
trama. Do total de 78 atores escalados para o elenco geral, na versão de 2012, apenas cinco (não
mais que 6%) eram negros: as mulheres representando o papel de empregadas e os homens
de jagunços, incluindo o garoto Tuísca, que era companheiro de brincadeiras de Gabriela. Esses
dados são surpreendentes, quando se sabe que na Ilhéus de 1925, onde se passa o idílio amoroso
de Gabriela e Nacib, a maioria da população de era negra ou mestiça.
Com relação à seleção das protagonistas, além do argumento citado por Avancini, o que
se sabe é que para desempenhar tais papeis, invariavelmente, a estrela do momento é escalada,
aquela que está em evidência, porque o objetivo desse mercado é atrair patrocinadores e alcançar
audiência, que se dá de acordo com o interesse do público. O argumento de “estrela do momento”
pode justificar a escolha de 1975, mas para 2012 não é relevante, porque havia inúmeras atrizes
negras com o mesmo talento e prestígio de Juliana Paes, que poderiam para representar o papel. No
momento da estreia da novela como parte da comemoração do centenário de Jorge Amado, estão
acirrados os debates sobre a importância da cultura afro-brasileira e sobre as Ações Afirmativas,
que oportunizam a maior presença de negros nas universidades. É, portanto, controverso que,
novamente, é elencada uma atriz de pele clara para interpretar Gabriela.
Ainda, com relação ao concupiscente mercadológico, Sônia Regina de Araújo Caldas, no

8 Entrevista disponível no link: <http://www.purepeople.com.br/noticia/tais-araujo-lembra-papel-de-


helena-em-novela-de-manoel-carlos-um-fracasso_a76557/1>. Acesso em 20 mai. 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

seu estudo intitulado Gabriela, baiana de todas as cores (2009) faz um estudo das capas dos
livros de Jorge Amado e cita o depoimento de um ilustrador, que desenhava as capas dos livros,
de acordo com o que solicitava o autor:

Era a capa do livro que eu tinha feito com um quadro, porque aquilo ia ser exposto na Bienal
do Livro em São Paulo. Então Alfredo Machado (editor) trouxe aquilo e disse: “Você fez um
negócio desse e não pode. Eu não vou colocar uma velha na capa do livro”. Eu disse que
foi o Jorge quem me pediu para colocar essa velha. Ele disse: “Jorge não entende de livro,
rapaz, quem entende de livro sou eu. Coloque uma mulher nova, bonita, porque mulher
nova é que vende livro”. Então, eu fui fazer uma mulher nova. (CALDAS, 2009, p.70-71
apud TEIXEIRA 1993, p.180-181)

O ponto de vista do ilustrador exemplifica como funciona a relação mercado/lucro perpassa


a escolha por um padrão estético, no mercado das editoras. Como já dito, dentro da lógica capitalista,
para garantir maiores lucros, um produto deve atrair um número de consumidores cada vez maior,
já que a produção em larga escala diminui o custo/produção da mercadoria. Neste sentindo, os
anúncios da propaganda, direcionados na sua maioria às mulheres, tomam todas elas como parte
da engrenagem capitalista, de modo que, ao atingir seus alvos, estas consumidoras parecem sair
de uma linha de produção: idênticas; parcialmente subtraídas em suas identidades. Nesse jogo
de interesse mercadológico, as mulheres negras são as mais prejudicadas, pois que está mais
distante do padrão. Caldas enfatiza, ainda que
“[...] a maioria das pessoas não analisa as regras sociais que deram origem a determinados
produtos. Não procuram descobrir os vestígios e marcas do sistema produtor que o
engendrou, já que estes permanecem “invisíveis” superficialmente, mas latentes para
quem os analisa. As informações passadas ao público pelas embalagens não revelam
explicitamente o que está por trás desse discurso. (CALDAS, 2009, p.70)

No que tange à televisão, a discrepância entre as obras literárias e suas adaptações para os
folhetins tem gerado polêmicas, e, por efeito disso, as novelas adaptadas da literatura, passaram
a ser “inspiradas” – e não mais baseadas na obra original. Deste modo se, adquire “licença
poética” para interferir, à vontade na obra e que excluir o que, de acordo com os novelistas, não
se pode negociar: a população negra. Estes indivíduos, quando se veem suprimidos dos meios
de comunicação, confirmam sua exclusão das estruturas de poder político e social, conforme
sintetiza Joel Zito.

A telenovela, [...] ao não dar visibilidade à verdadeira composição racial do país, compactua
conservadoramente com o uso da mestiçagem como escudo para evitar o reconhecimento
da importância da população negra na história e na vida cultural brasileira. Pactua com um
imaginário de servidão e de inferioridade do negro na sociedade brasileira, participando
assim de um massacre contra aquilo que deveria ser visto como o nosso maior patrimônio
cultural diante de um mundo dividido por sectarismos e guerras étnicas e religiosas, o
orgulho de nossa multirracialidade. (ARAUJO, 2008. p. 4):

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Ora pela invisibilização, ora pela representação deturpada, a cultura dominante reverbera o
discurso de inferioridade do povo negro. Sem dúvida, tal pensamento opera socialmente como um
forte mecanismo mobilizador, como no caso da atriz Taís Araújo, que passa a renunciar os papeis
personagem principal porque acredita não ser importante ocupar este espaço. Por aproximação, a
rejeição da protagonista negra em rede nacional mostra uma estreita semelhança com a estrutura
da sociedade, em que os negros, excluídos dos espaços de poder, ocupam as esferas mais baixas
da pirâmide social.

Afirmação da negritude e estratégias de emancipação e empoderamento da mulher negra


no Brasil

Os dados do IPEA (2009) confirmam o que já indicavam outras pesquisas: as mulheres


negras permanecem em desvantagem em relação às mulheres e homens brancos em todos os
indicadores. Apesar da condição de desigualdade histórica, a mulher negra, arduamente, tem
lutado por mudanças, mesmo quando o seu grito não era ouvido. Desde o início dos anos 1980,
com a solidificação do Movimento Negro, que se fortaleceu a partir da criação do Movimento Negro
Unificado – MNU, em 1978 –, uma série de políticas públicas foi estabelecida a fim de romper
com as barreiras à participação igualitária em diversos campos da vida social. A articulação do
Movimento Negro possibilitou uma série de conquistas, dentre as quais destaca-se a criação da
Fundação Cultural Palmares9, cuja missão é assegurar, junto ao Estado, as diretrizes de reforços
da cidadania, identidade e memória cultural dos grupos étnicos, além de fomentar o direito de
acesso à educação e à cultura, fundamentais na preservação das manifestações afro-brasileiras.
Foi em virtude da pressão do Movimento que a prática do racismo passou a figurar como crime,
na constituição de 1988. Além disso, a Fundação Cultural Palmares é uma entidade pública
brasileira vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei Federal nº 7.668, de 22 de agosto
de 1988. Em 1990, a criação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), contribuiu para
fomentar a produção de pesquisas e reflexões que interseccionam gênero e raça, estruturantes da
desigualdade social brasileira. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
foi outro órgão do Poder Executivo brasileiro instituído em 21 de março de 2003, com o intuito de
promover a igualdade e a proteção de grupos raciais e étnicos em situação de vulnerabilidade,
com ênfase na população negra. Outra conquista importante para a população afro-brasileira
foi a criação do Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que visa
assegurar à população negra a garantia dos direitos de igualdade de oportunidades; a preservaç­
ão dos direitos étnicos individuais, coletivos e o combate à discriminação racial. Esse conjunto de
políticas públicas, feitas pelo governo ou pela iniciativa privada, faz parte de uma série de medidas
denominadas como “Ações Afirmativas”, consideradas constitucionais por unanimidade, em

9 Lei Federal nº 7.668, aprovado pelo Decreto nº 418, de 10 de janeiro de 1992.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

2012, pelo Supremo Tribunal Federal, a qual visa garantir as mesmas condições de acesso aos
direitos, almejando oferecer igualdade de oportunidades a todos. Segundo o SEPPIR10, as ações
afirmativas podem ser de três tipos: cujo objetivo seja de reverter uma representação negativa dos
negros; para promover igualdade de oportunidades; e para combater o preconceito e o racismo,
sendo uma das mais importantes, uma cota destinada especialmente para estudantes negros nas
universidades públicas.
Contemporaneamente, no Brasil, as mulheres negras combinam vivências subjetivas com
debates acadêmicos para fortalecer a luta rumo à emancipação política e a igualdade de direitos.
Entre um número cada vez mais expressivo, se destacam: Sueli Carneiro, uma das mais importantes
intelectuais do país na contemporaneidade; Lélia Gonzales, historiadora, antropóloga e filósofa,
autora de livros e diversos artigos, foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU);
Alzira Rufino, atuante no Movimento Negro e no Movimento de Mulheres Negras; Maria Aparecida
Silva Bento11, ativista que luta pela promoção da igualdade racial e de gênero; Jurema Werneck,
coordenadora da Ong Criola, que atua em defesa dos Direitos de Mulheres Negras; Ruth Pinto de
Souza (1921), atriz e cofundadora do Teatro Experimental do Negro (1944-1961), uma companhia
que contribuiu com a formação, profissionalização e inclusão de artistas negros na dramaturgia;
Conceição Evaristo12, escritora e professora na UFMG, nascida na favela, Conceição faz da sua
escrita uma denúncia contra as discriminações de gênero, raça e classe; Bendita da Silva, ativista
do movimento negro e feminista, primeira senadora negra do Brasil, um símbolo da ascensão dos
negros e mulheres na política brasileira; Elisa Lucinda, atriz, poetisa, cantora, jornalista e escritora
e militante nos debates de gênero e raça; Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo:
Diário de uma Favelada (1960), é considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras
negras do Brasil. Assim como os destaques supracitados na luta por igualdade de direitos para as
mulheres negras e respeito à cultura afro-brasileira, poder-se-ia citar uma quantidade numerosa
de outras delas.
Outrossim, vale ressaltar que, se a mídia convencional é controlada pelos mesmos indivíduos
responsáveis pela perpetuação do padrão de beleza caucasiano, a internet veio democratizar a
comunicação. Em virtude disso, temos iniciativas de sucesso como sites, blogs e revistas digitais,
que trazem discussões relacionadas ao universo da mulher negra, como por exemplo o Instituto
da Mulher Negra - Geledés13, que publica artigos referentes a racismo, sexismo e violência racial.
O Geledés, como é conhecido, é um espaço de compartilhamento de saberes e discussão política
voltados para a mulher negra. O blog das Blogueiras Negras14, construído por uma comunidade

10 Dados constantes no link: <http://www.seppir.gov.br/assuntos/o-que-sao-acoes-afirmativas>. Acesso em


20 mai. 2017.
11 Maria Aparecida Silva Bento é uma das fundadoras do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e da
Desigualdade (Ceert), que tem por objetivo conjugar pesquisa e produção de conhecimento para a implementação
de programas institucionais de promoçã da igualdade racial e de gênero.
12 Autora do romance Ponciá Vicencio (2003), é mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, e doutora em
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente leciona na UFMG como professora visitante.
13 Localização do site: <http://www.geledes.org.br/>.
14 Localização do site: <http://blogueirasnegras.org/>.

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de mulheres comprometidas com as discussões de gênero e raça, com o objetivo de produzir e
publicar conteúdo de diversas linguagens, atuando online e offline. A série Cadernos negros, cujo
primeiro volume publicado em 1978, com a temática afro-brasileira, tem despertado o interesse de
pesquisa inspirado ensaios, teses e outros estudos. Iniciativas, individuais ou coletivas são, deveras,
uma atitude de luta política que conecta todas as mulheres negras para, juntas, subverterem o
discurso hegemônico, que historicamente permeia os campos midiáticos e marca profundamente
as relações sociais.

Considerações finais

Os meios de comunicação combinam a memória individual e coletiva, e, por conseguinte


moldam a história. No cerne dessa discussão, a negação e a estereotipia da mulher negra na
mídia estão fortemente vinculadas à condição histórica de marginalidade da arte, da cultura e das
identidades afro-brasileiras. O que se conjectura, é que veículos como a televisão, um dos maiores
e mais populares meios de entretenimento no Brasil, tem seus interesses pautados exclusivamente
no lucro e, indiferente aos problemas sociais, mantendo um padrão estético exclusivo nas
programações.
Em outras perspectivas, a popularização dos veículos de comunicação, como a internet,
trouxe à tona vozes marginais; vozes de mulheres negras que fazem ressoar, nas páginas e nas
telas, seus discursos em primeira pessoa. Não que estas mulheres não lutassem antes, pois, ainda
que a opressão das mulheres negras no Brasil tenha sua gênese fixada nos tempos coloniais, elas,
incansavelmente, protestaram por igualdade de direitos, mesmo tendo seu grito silente.  Agora
mais fortes, estas mulheres optaram por se associar para transformar a dor da opressão em luta
política.
Outrossim, as representações são discursos construídos e, portanto, devem ser
reconsiderados sob uma perspectiva mais humanitária e inclusiva, pois que tais construções
formam uma rede de saberes sociais integrados que reverberam diretamente na vida de cada
indivíduo.

Referências

AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. Posfácio de José
Paulo Paes. — 2a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

AMADO, Jorge, O país do carnaval. São Paulo: Companhia Das Letras, 2011.

ARAÚJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: o Negro na Telenovela Brasileira. São Paulo, Editora
SENAC, 2000.

Página 881
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Apresentação de Fernando Henrique Cardoso. São Paulo: 51 ed. - Global,
2006.

______. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guarareira


Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2006.

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça.
4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades


da comunicação no novo século. IN: MORAES, Denis de (org.). Sociedade midi­atizada. Rio de
Janeiro, 2006.

SCHWARCZ, Lilia Moritz & Ilana GOLDSTEIN. O Universo de Jorge Amado. Orientações para o
trabalho em sala de aula. Caderno de Leituras. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda - Cia das Letras,
2009.

Sites consultados:

QuilomHoje (sobre Cadernos Negros) <http://www.quilombhoje.com.br> acesso em 19 mai.


2017

SEPPIR (Sobre Ações Afirmativas) <http://www.seppir.gov.br/> acesso em 19 mai. 2017.

Revista Raça Brasil (sobre mulheres negras) < http://racabrasil.uol.com.br/Edicoes/130/10-


mulheres-negras-de-destaque-politicas-modelos-jornalistas-artistas-127789-1.asp/> acesso
20 mai. 2017

Geledés, Instituto da Mulher Negra <http://www.geledes.org.br/> acesso em 20 de mai. 2017.

Fundação Palmares < http://www.palmares.gov.br/> acesso em 20 de mai. 2016.

Blog Blogueiras Negras < http://blogueirasnegras.org/> acesso em 20 de mai. 2017.

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RELAÇÕES RACIAIS NOS LIVROS DOS CURSOS TÉCNICOS NA
MODALIDADE A DISTÂNCIA

GHIGGI, Gioconda (UFPR/IFPR)1


gighiggi@yahoo.com.br

Resumo

O presente trabalho discute as relações étnico-raciais nas iconografias dos materiais didáticos, mais
especificamente nos livros digitais, que servem de suporte para os/as estudantes na modalidade
a distância. O objetivo foi analisar as relações étnico-raciais nas imagens presentes em quatro livros
de quatro componentes curriculares dos cursos técnicos, subsequentes, na modalidade a distância,
ofertados pelo Instituto Federal do Paraná. Compreendemos a necessidade de tal discussão, visto os
documentos legais (Lei nº 9.394/1996, Resolução CNE nº 06/2012, Resolução CNE nº 01/2004) e a
importância da inclusão da temática racial na educação como uma das formas de combate às situações
de discriminação presentes, tanto nas instituições educacionais, quanto na sociedade brasileira. As
principais referências utilizadas foram Muller (2015), Rosemberger et al. (2003) e Silva (2005, 2008).
Para a pesquisa utilizamos a seguinte metodologia: analisamos os livros e contabilizamos as imagens
que apresentavam alguma forma ou traços humanísticos, que foram classificadas nas categorias
cor-raça e sexo. Entre as conclusões alcançadas, com base nos dados levantados, temos a pouca
representação imagética de negros e negras nos quatro livros analisados. Avaliamos a necessidade
de mais investimentos, sobre a temática das relações étnico-raciais, na formação e orientação dos/
as envolvidos/as no processo de elaboração dos materiais (os/as professores/as conteudistas, os/as
responsáveis pela iconografia, os/as responsáveis pelo desenho educacional, entre outros).

Palavras-chave: Relações Raciais. Material didático. Educação a distância. Cursos


Técnicos.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR), graduação em Pedagogia (UFPR),


integra o NEAB-UFPR, NEPIE-UFPR e EDiTeDi-IFPR. Atualmente trabalha como pedagoga no Instituto Federal do
Paraná. Contato: gighiggi@yahoo.com.br

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

Na educação a distância, o material didático tem um importante papel como mediador


no processo de aprendizagem, estes materiais trazem os conteúdos destinados para cada
componente curricular e as concepções pedagógicas da instituição, do curso e dos responsáveis
pela elaboração (SALES, 2005), por isso, consideramos necessário realizar reflexões sobre os
elementos presentes, sejam eles os textuais ou imagéticos.
Os levantamentos das produções sobre a presença e representação dos/das negros/as
nos livros didáticos realizados por Tânia Mara Pedroso Müller (2015) e Fúlvia Rosemberg, Chirley
Bazilli e Paulo Vinícius Baptista da Silva (2003), evidenciaram a pouca representatividade da
população negra mas não localizamos questões relacionadas com a modalidade presencial. Ao
consultar o banco de dados do Scielo, não localizamos pesquisas sobre relações étnico-raciais ou
racismo em livros de cursos na modalidade a distância.
Considerando a expansão da modalidade a distância no Brasil, principalmente como forma
de levar formação para locais afastados, e sua importância no âmbito educacional, avaliamos a
necessidade de pesquisar os livros produzidos para subsidiar o processo de aprendizagem.
Nosso objetivo foi verificar as relações raciais nas imagens presentes em quatro livros de
quatro componentes curriculares dos cursos técnicos, subsequentes, na modalidade a distância
de um Instituto Federal. A proposta inicial era analisarmos os 6 livros presentes no denominado
Núcleo Comum, ou seja, os componentes curriculares que integram cinco cursos técnicos, que
foram realizados no ano de 2016. Como dois livros ainda não estavam prontos no momento
da pesquisa, o trabalho foi realizado com quatro. Outro aspecto, que motivou a escolha destes
materiais, foi o número de estudantes que tiveram acesso aos livros, cerca de 10 mil.
Como forma de alcançarmos o objetivo proposto, utilizamos a abordagem qualitativa e a
análise de conteúdo, como metodologia.

1 As Relações Étnico-raciais e a Educação Profissional Técnica de Nível Médio

Os cursos de Educação Profissional estão regulamentados pela LDB nº 9.394/1996,


Capítulo III, e Resolução CNE nº 6/2012 (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Profissional Técnica de Nível Médio). A finalidade da Educação Profissional é “proporcionar
ao estudante conhecimentos, saberes e competências profissionais necessários ao exercício
profissional e da cidadania, com base nos fundamentos científico-tecnológicos, sócio-históricos
e culturais” (BRASIL, 2012, p.2). O percurso formativo dos/das estudantes busca tanto uma
formação técnica, quanto humana.
Os/as discentes participantes dos cursos técnicos subsequentes, já realizaram um
percurso anterior de estudos, ingressando com uma significativa bagagem cultural e simbólica das
questões que o cercam. Como ainda vivemos em uma sociedade permeada por desigualdades e

Página 884
preconceitos, os estudantes trazem estas questões para o cotidiano formativo. As instituições
de ensino precisam ter claro que independente da modalidade ou etapa, é necessário combater
qualquer forma de discriminação. Assim, ao pensarmos nos materiais realizados para os/as
estudantes, não podemos ignorar que apresentamos um posicionamento, por isso a necessidade
de refletirmos sobre a produção das diversas mídias, estre elas o livro (digital ou impresso).

1.1 Legislação da Educação Profissional e da Educação para as Relações Étnico-raciais

Em 2003 o então presente Luiz Inácio Lula da Silva, assinou a Lei nº 10.639 que alterava o
Artigo 26-A da LDB nº 9.394 de 1996, em 2008 tivemos uma nova alteração com a Lei nº 11.645,
ficando o Artigo 26-A com a seguinte redação:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e


privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da


história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses
dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos
negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e
o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas


brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas
de educação artística e de literatura e história brasileiras. (BRASIL, 1996, p.08).

A temática foi uma grande reivindicação dos Movimentos Negros, que juntamente com
pesquisadores, colocam a educação como espaço de reprodução de racismo, portanto a
necessidade de trazer para os espaços educacionais o combate aos processos de discriminação.
No ano seguinte, a aprovação da Lei nº 10.639/2003, o Conselho Nacional de Educação
(CNE) aprovou o Parecer CNE nº 03/2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, regulamentada pela Resolução CNE nº 01/2004.
Com relação aos materiais didáticos, o Parecer CNE nº 03/2004 apresenta alguns pontos.
Entre as ações educativas de combate ao racismo destacamos a necessidade da “crítica pelos
coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais, professores, das representações dos
negros e de outras minorias nos textos, materiais didáticos, bem como providências para corrigi-
las (BRASIL, 2004, p.10). Observamos que o combate à discriminação passa pelo olhar criterioso
dos materiais disponibilizados, tornando-se necessário observar como são representados os
diversos grupos étnicos.
Na Resolução CNE nº 01/2004, no art. 12 consta que “os sistemas de ensino orientarão
e supervisionarão para que a edição de livros e de outros materiais didáticos atenda ao disposto

Página 885
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

no Parecer CNE nº 03/2004, no comprimento da legislação em vigor” (BRASIL, 2004). A Diretriz


é clara, o Parecer precisa ser considerado nas produções didáticas, ou seja, os envolvidos no
processo precisam conhecer e se apropriar dos elementos contidos no referido documento.
No que tange a Educação Profissional, temos as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, publicada em 2012 pelo Conselho Nacional
de Educação (Resolução CNE nº 06/2012). Neste documento encontramos como princípio o
“reconhecimento das identidades de gênero e étnico-raciais, assim como dos povos indígenas,
quilombolas e populações do campo” (BRASIL, 2012, p. 3). Outro princípio são os valores estéticos,
políticos e éticos da educação nacional, importante para pensarmos a nossa proposta pedagógica
e o trabalho com os/as estudantes.
Em 2013 o MEC publica a Portaria Normativa nº 21/2013, no Art. 1º temos:

Os programas e ações do Ministério da Educação incluirão na formulação e na produção


dos materiais didáticos e paradidáticos, bem como nas linhas de ação e eixos temáticos
a educação para as relações étnico-raciais, o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana e promoção da igualdade racial e enfrentamento ao racismo. (BRASIL, 2013)

Observamos que a legislação não deixa dúvidas sobre a necessidade de considerarmos


a Educação das Relações Étnico-raciais (ERER) dentro das propostas pedagógicas, ambientes
educacionais entre outras ações que favoreçam a valorização dos/as negros/as e combate ao
racismo existente na sociedade.

2 Livros didáticos e relações raciais

Na pesquisa bibliográfica realizada não encontramos nada específico com relação a


produção de materiais para a modalidade a distância, utilizamos assim levantamentos realizados
Rosemberger et al. (2003) e Muller (2015). O trabalho de Muller (2015), intitulado A Produção
Acadêmica Sobre a Imagem do Negro no Livro Didático: Estado do Conhecimento (2003-
2013), evidenciou a “pouca representatividade textual e imagética da população negra que se
expresse em situações de relevância histórica, cultural, social e cotidiana, e persiste a imagem do
negro de modo subalternizado ou mesmo invisibilidade” (MULLLER, 2015, p. 13). Mesmo após a
alteração do Art. 26-A, Parecer CNE nº 03/2004 e Resolução CNE 01/2004, temos ainda, pouca
representatividade dos/das negros/as.
Outro aspecto a ser observado é o silenciamento dos/as negros/as, quando a maioria
significativa das imagens são representações de pessoas brancas (SILVA, 2008). O livro, como
um importante mediador do processo de aprendizagem, é carregado de mensagens simbólicas e
pode contribuir para combater o racismo ou ser reprodutor de situações de discriminação.
Os materiais didáticos para os cursos na modalidade a distância, mais precisamente os
livros (impressos ou digitais), também podem contribuir ou não no combate às discriminações

Página 886
raciais. Considerando a modalidade e o caráter do curso, outro documento consultado foram
os Referenciais para Elaboração de Material Didático para Educação a Distância no Ensino
Profissional e Tecnológico, de 2007. Com relação ERER encontramos entre os elementos
norteadores: “Consideração das características de representações da brasilidade” (BRASIL,
2007, p. 03). Outro ponto importante é a necessidade do material apresentar a “caracterização da
diversidade étnica e cultural da formação do povo brasileiro” (BRASIL, 2007, p. 04).
Entendemos que estes Referenciais, juntamente com a legislação sobre a Educação das
Relações Étnico-raciais, servem como indicadores da necessidade de questionarmos a presença
de imagens de qualidade, de representação positiva dos/das negros/as nos livros, que neste
trabalho são da modalidade a distância.

3 Metodologia

Para este trabalho utilizamos a abordagem qualitativa e a análise de conteúdo como método
de pesquisa. A metodologia proposta foi descrita por Laurence Bardin, nos anos 1970, e organiza-
se em três fases: pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados (BARDIN,
2006). A primeira fase, a pré-análise, é composta por quatro etapas: leitura flutuante (contato
com os documentos), a escolha dos documentos (definição do corpus de análise), a formulação
das hipóteses e elaboração de indicadores para interpretar os dados coletados. A exploração
do material, segunda fase, consiste na descrição analítica do corpus, definição de regras para
a classificação, agrupamento e contagem nas categorias propostas. A última fase consiste no
tratamento dos resultados, inferência e interpretação, com análise crítica e reflexiva.
Foram selecionados, dentre os materiais da Diretoria de Educação a Distância do IFPR,
quatro livros realizados no ano de 2016. Os livros escolhidos foram: Comunicação e Linguagem,
Desenvolvimento Pessoal e Profissional, Tecnologia e Ambientes Virtuais de Aprendizagem e
Ética e Cidadania. Os materiais foram utilizados nos componentes curriculares do Núcleo Comum,
Módulo I, dos cursos Técnicos: Agente Comunitário de Saúde, Logística, Meio Ambiente, Serviços
Públicos e Segurança do Trabalho. Os referidos cursos técnicos são na modalidade a distância,
subsequentes, que iniciaram no ano de 2015. Além dos livros, consultamos as orientações
enviadas para os autores e as orientações encaminhadas à equipe responsável pela iconografia.
Nossa análise considerou as imagens que representavam figuras humanas (suas
características fenotípicas e cores utilizadas), mesmo de forma estilizada. Para contabilizar os
dados organizamos seis categorias relacionadas a raça-cor com base na classificação utilizada
pelo IBGE: branco, preto, pardo, amarelo e indígena, além destas colocamos a categoria indefinido
para imagens que não conseguimos incluir nas classificações anteriores. Para cada categoria
raça-cor, colocamos a subcategoria: sexo (masculino, feminino ou indefinido).

Página 887
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

4 Presença (Ausência) dos/as negros/as

No levantamento realizado, nos quatros livros selecionados, contabilizamos 179 imagens,


que foram classificadas nas categorias: branco, preto, pardo, amarelo, indígena e indefinido.
Também fizemos a classificação por sexo (masculino, feminino ou indefinido). Com relação a
categoria racial, como podemos observar no Gráfico nº 1, das 179 imagens observadas 86 foram
classificadas como personagens brancos/as, 10 pardos/as, 6 pretos/as e 77 indefinidos/as.
Gráfico 1 – Classificação cor/raça

Branco, 48%
Indefinido, 43%

Preto, 3%
Pardo, 6%

Fonte: Autora, 2016

Os dados demonstram que temos pouca presença de figuras humanas que representam
a população negra (pardos/as e pretos/as), principalmente se considerarmos que este grupo
representa a metade da população brasileira.
Se retirarmos as figuras colocadas na categoria indefinida, temos uma diferença ainda mais
marcante, conforme podemos observar no Gráfico nº 2:

Gráfico 2 – Classificação cor-etnia sem a categoria indefinido

Preto. 6%

Pardo. 10%

Branco. 84%

Fonte: Autora, 2016.

Estes dados demonstram a pouca representatividade da população negra, assim como

Página 888
observamos nas pesquisas sobre as temáticas das relações raciais nos livros didáticos (MULLER,
2015). O número ínfimo de figuras de negros/as, apresenta um silenciamento, como observamos
nos trabalhos de Silva.
A sub-representação do negro nos diversos meios toma parte na situação de silenciamento
sobre as desigualdades raciais que observamos na sociedade brasileira. O silêncio, como
apontamos, exerce um duplo papel, de negar os processos de discriminação, buscando
ocultar a racialização presente nas relações sociais, ao mesmo tempo em que propõe uma
homogeneidade cultural ao “brasileiro” (SILVA, 2005, p. 15).

Outro dado é sobre os sexos das figuras humanas que encontramos, mesmo não sendo
o foco deste trabalho, consideramos relevante esta informação. Das 179 imagens mapeadas,
temos 90 para o sexo masculino, 47 para sexo feminino e 42 para indefinido, conforme podemos
observar no Gráfico 3:

Gráfico 3 – Classificação por sexo, incluindo a categoria indefinido

Indefinido. 24% Feminino. 26%

Masculino. 50%

Fonte: Autora, 2016.

Temos uma maioria significativa de imagens masculinas, se considerarmos somente as


imagens que conseguimos identificar o sexo, chegamos a 66% (Gráfico nº4).

Gráfico 4 – Classificação por sexo sem a categoria indefinido

Feminino. 34%

Masculino. 66%

Fonte: Autora, 2016.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Considerado o aspecto racial e o sexo, temos uma predominância de imagens de homens


brancos. A maioria das imagens de figuras femininas estavam em grupos, onde eram minorias. No
caso das figuras masculinas, estas estavam em destaque, em destaque, muitas vezes de forma
individual.
A escolha da iconografia é algo importante, tanto para o processo de aprendizagem quanto
na identificação dos/das estudantes. Como os livros foram produzidos recentemente, buscamos
os materiais que orientaram os autores. No “Material Orientador para Professores-conteudistas
da Rede e-Tec Brasil – IFPR, 2016” que tivemos acesso, no item destinado a iconografia
encontramos somente orientações sobre os direitos autorais das imagens e como identificar e
numerar as figuras no texto. O documento não apresenta uma reflexão sobre a necessidade da
diversidade étnico-racial no uso das imagens.
Considerando a legislação recente sobre a ERER e a diversidade de profissionais envolvidos
no processo de construção dos materiais didáticos, seria importante uma orientação e formação
mais consistente sobre as relações raciais, assim como a questão da representatividade feminina
nas imagens. E não qualquer imagem, mas sim aquelas que coloquem os sujeitos em situações
positivas.

Conclusão

A proposta deste trabalho foi refletir sobre as relações raciais e os materiais didáticos na
educação a distância, mas especificamente os livros utilizados pelos/as estudantes dos cursos
técnicos subsequentes, desenvolvidos pela Diretoria de Educação a Distância do IFPR.
Na pesquisa realizada com quatro livros utilizados na modalidade a distância do IFPR,
os dados apontaram para uma predominância de imagens de representações brancas e um
silenciamento dos negros, além da presença maior de figuras masculinas. Outro ponto que precisa
ser considerado é a necessidade de representações de pessoas com deficiência. Tal resultado
coaduna com os dados das pesquisas levantadas por Muller 2015), que colocam a branquidade
como elemento normativo dos livros didáticos.
A iconografia dos livros se constituem como um importante elemento para colaborar na
mediação dos conteúdos e suas escolhas são pautadas pelas concepções que norteiam os autores
dos materiais e da instituição. Cabe ressaltar que a os/as estudantes estabelecem um processo de
identificação, por isso a necessidade de imagens positivas, principalmente da população negra.
Com a ampliação da oferta na modalidade a distância e o uso de diversas mídias como
no processo de aprendizagem, é preciso mais investimentos em pesquisas e orientações para os
materiais utilizados, que perpassa a formação da equipe sobre a ERER.
Alguns pontos que precisam ser considerados pelos envolvidos no processo (autores/as,
revisores/as, ilustradores/as, coordenações, entre outros):
As imagens escolhidas apresentam a população negra em situações positivas (por
exemplo: médicos e executivos negros)?

Página 890
Temos um equilíbrio entre os diversos grupos étnicos presentes na cultura brasileira
(negros, brancos, índios, entre outros)?
Quando o texto faz referência a África (seus países e suas populações), temos imagens
positivas (por exemplo: arte e cultura)?
As referências sobre a presença negra no Brasil, trazem contribuições positivas (escritores,
pintores, contribuições nas áreas sociais, economia, entre outras)?
Não podemos ignorar o elemento imagético, pois ao tratarmos estas questões nos livros
(além da questão da representatividade das mulheres e pessoas com deficiência, por exemplo),
contribuímos para reflexão dos/as profissionais envolvidos e dos/das estudantes que utilizam
estes materiais como um importante apoio para o processo de aprendizagem.
Finalizamos indicando a necessidade de aprofundarmos os estudos com relação a ERER
na modalidade a distância, principalmente pela particularidade da referida modalidade onde
as relações e a aprendizagem acontecem pelo Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Na
modalidade presencial temos uma intervenção mais direta do professor, problematizando imagens,
textos ou mesmo aspectos relacionais do cotidiano e as relações raciais.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. 2006

BRASIL, Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Inclui a obrigatoriedade da temática “História


e Cultura Afro Brasileira” no currículo oficial da rede de ensino. Diário Oficial da União, Brasília,
2003.

BRASIL, Ministério da Educação. Portaria Normativa nº 21, de 28 de agosto de 2013, Dispõe


sobre a inclusão da educação para as relações étnico-raciais, do ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, promoção da igualdade racial e enfrentamento ao racismo nos programas e
ações do Ministério da Educação, e dá outras providências.

BRASIL. Lei n° 9.394, 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Brasília, 1996.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de


1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Secretaria


de Educação a Distância. Referenciais para elaboração de material didático para EaD no
Ensino Profissional e Tecnológico, 2007.

BRASIL. Parecer n° 03, de 10 de março de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Página 891
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e


Africana.

BRASIL. Referenciais para elaboração de material didático para EaD no Ensino Profissional
e Tecnológico, 2007.

BRASIL. Resolução nº 01, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana.

BRASIL. Resolução nº 06, de 20 de Setembro de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio.
Instituto Federal do Paraná. Material Orientador para Professores-conteudistas da Rede
e-Tec Brasil – IFPR, 2016.

MULLER, Tânia Mara Pedroso. A Produção Acadêmica Sobre A Imagem Do Negro No Livro
Didático: Estado Do Conhecimento (2003-2013). In: 37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a
08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis

ROSEMBERG, Fúlvia; BAZILLI, Chirley; SILVA, Paulo Vinícius Baptista. Racismo em livros didáticos
brasileiros e seu combate: uma revisão da literatura. In: Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29,
n.1, p. 125-146, jan./jun. 2003.

SALES, Mary Valda Souza. Uma reflexão sobre a produção do material didático para EaD.
2005. In: http://www.abed.org.br/congresso2005/por/pdf/044tcf5.pdf

SILVA, Paulo Vinícius Baptista. Racismo discursivo na mídia brasileira. In VI Congreso


Latinoamericano de Estudios del Discurso (ALED 2005), Santiago (Chile) de 05 a 09 de
setembro de 2005.

SILVA, Paulo Vinícius Baptista. Racismo em livros didáticos: estudo sobre negros e brancos
em livros de Língua Portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

Página 892
MÍDIA E NEGRITUDE: O USO DOS FILMES NA (DES)CONSTRUÇÃO DE
ESTEREÓTIPOS

SOUZA, Izaque Pereira de. (UEM)


ipsouza.souza@gmail.com
JORGE, Wellington Junior (UEM)
professormanzato@gmail.com
TERUYA, Teresa Kazuko (UEM)
tkteruya@gmail.com

Resumo

A referência à população negra brasileira ainda se constitui a partir de estereótipos que foram fixados
a partir de processos históricos e em sua formação social. Isso porque a cultura eurocêntrica, dada
sua condição hegemônica, acaba por colocar a cultura negra em uma condição subalterna desde
os tempos da escravidão reduzindo-a a elementos pejorativos ou de pouca expressividade. Ao
estigmatizar o outro – neste caso a população negra – se desconsideram suas contribuições para a
construção social, econômica, política e cultural do Brasil, reforçando os estereótipos que reforçam e/ou
inferiorizam o sujeito, colocando-o em posição de desvantagem e fraqueza o que pode se dar por meio
de diversos artefatos, dentre eles os culturais. Dentre os artefatos culturais que nos cercam e contribuem
para fixar nossa identidade, podemos citar os filmes. O presente trabalho busca analisar a contribuição
dos filmes na (des)construção de estereótipos da população negra bem como as possibilidades de
problematizar essas questões nos ambientes escolares por compreendermos os filmes pedagogias
culturais que possibilitam essa desconstrução na escola. Partiremos do pressuposto da Lei 10.639/03
(que inclui a obrigatoriedade da História e Cultura Afrobrasileira na rede de ensino) e da Lei 13.006/14
que traz a obrigatoriedade da exibição de filmes de produção nacional no componente curricular
complementando a integração da proposta pedagógica da escola. Assim, analisaremos a contribuição
dos filmes na identidade da população negra na perspectiva dos Estudos Culturais, tendo como
referencial teórico Tomaz Tadeu da Silva (2014), Kathryn Woodward (2014), Stuart Hall (2003; 2014;
2015), Douglas Kellner (2001), Elí Fabris (2008), Elizabeth Ellsworth (2001) e Zygmunt Bauman (2005).

Palavras-chave: Identidade. Midia. População negra.

Página 893
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

A Lei 13.006/2014, projeto criado pelo Cristóvão Buarque (PPS), estabelece a


obrigatoriedade da exibição de filmes de produção brasileira nas escolas de educação básica. O
teor da lei é estimular a exibição de filmes como componente integrador do currículo escolar, a fim
de proporcionar visibilidade as produções cinematográficas nacionais, tanto estigmatizada pela
população brasileira. O filmes norte-americanos foram massivamente exibidos nos cinemas e nas
emissoras de televisão brasileira, de tal modo que se estabeleceu como um modelo ideal de se
fazer cinema.
O cinema e a educação são temas discutidos por vários pesquisadores/as como: Fresquet
(2013); Duarte (2009); Felipe (2009, 2015); Fabris (2008); Teruya (2006, 2009); Louro (2015).
As discussões dos respectivos autores/as não têm como intencionalidade esgotar a temática, mas
sim, apresentar possibilidades entre o cinema e educação.
Os filmes fazem parte de um mundo que envolve técnicas de produção de sentidos e
significados por meio dos recursos imagéticos possibilitados pelo cinema, cuja narrativa ficcional
pode cutucar o inconsciente do público que está assistindo. Com essa prerrogativa, incorporar
esse artefato cultural na matriz curricular, pode colaborar para a desconstrução de estereótipos
cristalizados no senso comum, auxiliando assim na formação cultural do indivíduo.
A Lei 13.006/2014, que estabelece a utilização de filmes no espaço escolar, propicia também
a discussão a Lei 10.639/2003 para tratar sobre a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
Afrobrasileira na educação básica. O conteúdo desta lei incluiu nos currículos escolares a luta dos
negros e a contribuição da cultura negra no Brasil. Este assunto é pertinente para a desconstrução
de estereótipos veiculado no currículo hegemônico, inspirado na matriz eurocêntrica.
A medida que os artefatos culturais contra hegemônicos foram incorporados nas práticas
pedagógicas, as discussões étnico-raciais também puderam ser ser problematizadas no decorrer
do ano escolar e não apenas em datas “comemorativas”, por exemplo o dia 20 de novembro (Dia
da Consciência Negra). O combate ao racismo nas escolas e a história do Negro no Brasil, podem
ser compreendidas pelos autores/as: Cavalleiro (2001); Gomes (2001, 2006, 2013); Praxedes
(2010); Felipe e Teruya (2010); Silva (2012); Pereira (2011); Aguiar (2011); Munanga (2009).
Os/as pesquisadores/as que estudam cinema e relações étnico-raciais investigam as
contribuições do cinema para a educação escolar e apontam as possibilidades na desconstrução
de estereótipos referentes à cultura afrobrasileira. Neste artigo ancoramos em autores que fazem
essa discussão, procurando balizar a abordagem do cinema e relações étnico-raciais de forma
sistematizada.

Página 894
1 Repensando identidade e educação

A aprovação da Lei 10.639/2003 que trata sobre a obrigatoriedade da temática “História e


Cultura Afrobrasileira” nos currículos escolares, foi um grande marco na história do Brasil e também
para a luta dos negros. A proposta da lei, não é instituir uma superioridade “negra” dentre as outras
raças/etnias, mas sim, dar visibilidade e o reconhecimento da população negra no processo de
construção social, econômica, política e cultural da sociedade brasileira, que foi formada por
indígenas, portugueses, africanos (negros) e depois por imigrantes (brancos e amarelos) de todas
as partes do mundo.
Mesmo com a contribuição da população negra na construção do país, sua história e cultura
sempre estiveram invisibilizadas. Com isso a lei traz como prerrogativa fazer um processo de
“reparação” e “inclusão” da história e cultura do negro, problematizando a história “eurocêntrica”
nos currículos escolares. Outro ponto a ser discutido são as lutas sociais e políticas da população
negra desde a sua chegada até os dias de hoje. Com esses pressupostos e as práticas pedagógicas
tendo como referência a Lei 10.639/03, questionamos a visão única e parcial do pensamento
“eurocêntrico” e a imagem de uma África “exótica”, “primitiva” e estigmatizada, a fim de visualizar
uma África repleta de culturas e histórias.
A história dos/as negros/as africanos/as foi muito diferente dos imigrantes brancos, os/
as negros/as foram “(...) trazidos principalmente da costa ocidental da África, foram capturados
meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não inteligíveis uns
aos outros”. (RIBEIRO, 2005, p. 114). Ao chegarem aqui em condições sub-humanas, logo eram
separados de suas famílias para serem comercializados como mercadorias pelos homens brancos
(portugueses), assim, totalmente dispersos em novas terras ao lado de outros/as negros/as
capturados/as de culturas e dialetos totalmente diferentes tinham que se adaptar a base da força
e violência a nova formação social.
O tráfico negreiro é considerado, por sua amplitude e duração, como uma das maiores
tragédias da história da humanidade. Ele durou séculos e tirou da África subsaariana
(região do continente africano abaixo da linha do deserto do Saara) milhões de homens e
mulheres que foram arrancados de suas raízes e deportados para três continentes: Ásia,
Europa e América [...] (GOMES; MUNANGA, 2006, p. 18).

Desde sua chegada em 1549, os/as negros/as tiveram que passar por um processo de
readaptação em um novo continente, sua contribuição econômica foi valiosa aos portugueses.
Na metade do século XVI e XVII, o Brasil estava no auge da exportação de cana-de-açúcar,
consequentemente, aumentando a produção, teria que aumentar “[...]o tráfico de africanos[/
as] para o Brasil, especialmente para o Nordeste, onde um tipo de agroindústria se concentrou
e floresceu com o cultivo de cana de açúcar” (MOURA, 1992, p.8). O trabalho escravo do povo
africano, comprado ou vendido como mercadoria, proporcionou um grande avanço econômico
para a Portugal. Com o passar dos anos os/as escravos/as que ocupavam os diversos meios
de produção, tais como nos “(...) engenhos de produção de açúcar, nas lavouras de café, fumo,

Página 895
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

algodão, nas minas de extração de ouro, etc., trouxeram consigo seus costumes, línguas, valores,
deuses e crenças” (SANTOS, 2012 p.11). Assim, o/a negro/a que aqui estava ou chegava na
condição de escravo servia para repor ou aumentar a mão-de-obra nos grandes latifúndios.
Desde a sua chegada até o ano de 1888, o processo de escravidão foi árduo e cruel,
durante aproximadamente 400 anos de escravidão aconteceram várias formas de resistência,
o negro não aceitava sua condição de escravo e muitos fugiam para o meio da mata. Os que
conseguiam fugir de seus senhores se juntavam com outros escravos/as e se organizavam em
Quilombos. Um dos símbolos de resistência no período escravocrata foi o Quilombo de Palmares,
que se tornou um núcleo de organização da população negra e a preservação da cultura africana,
servindo também de refúgio. Os/as escravos/as negros/as eram trazidos da África na condição
de mercadoria adquirida pelos seus senhores brancos, estes, por sua vez, poderiam explorar o
trabalho escravo. No entanto, nem todos concordavam e aceitavam essa condição e, por isso,
fugiam para os quilombos, unindo-se com outros/as escravos/as fugitivos/as que juntos lutavam
para se manter livres do trabalho escravo. (MOURA, 1992; GOMES e MUNANGA, 2006; SOUZA,
2008; RODRIGUES, 1976).
Nos primeiros anos do século XX, depois de ter saído de sua condição de escravo no ano
de 1888, o movimento de resistência enfrentou outra batalha contra o racismo. O estereótipo
atribuído ao/à negro/a sempre esteve ligado à referência negativa e aquilo que de mais ruim
poderia se intitular ao homem, carregando este estigma de inferioridade, os homens brancos
negaram até seus direitos de exercerem sua cidadania de forma livre e independente. “[...] A ‘raça’
ou cor negra está associada a uma série de estereótipos preconceituosos que fundamentam
atitudes discriminatórias e práticas racistas que dificultam o desenvolvimento pleno dos seres
humanos (AGUIAR, 2011, p. 46). A ideologia racista sempre esteve muito presente na sociedade
brasileira. Esse discurso fez com que os negros tivessem dificuldades de terem qualquer tipo de
ascensão social e todo trabalho que conseguiam eram trabalhos que exigiam muita força e de
baixa remuneração, ou seja, continuava o trabalho escravo de forma velada.
Portanto, o racismo existente na sociedade brasileira, que desvaloriza e inferioriza o
corpo negro diante do corpo branco, marca intimamente a trajetória de vida do negro e
principalmente a construção da sua identidade étnico-racial. O cabelo do negro, visto
como “ruim”, serve de expressão ao racismo e à desigualdade racial que recaem sobre
esse sujeito social. Acreditar que o cabelo do negro é “ruim” e que do branco é “bom”
expressa um conflito construído histórica e culturalmente e que busca legitimar o negro
como um ser inferior. É neste cenário social que a mulher negra brasileira constrói sua
imagem. O seu corpo social será resultado dessa complexa realidade das relações raciais
que permeiam até hoje a sociedade brasileira, na qual a estética negra incorpora diversos
símbolos e significados negativos e pejorativos. (RODRIGUES, 2012 p.62)

Após a escravidão no Brasil, a população negra e seus descendentes nunca receberam


qualquer tipo de indenização ou apoio do Estado para terem condições de se reestabelecerem de
forma digna, ao contrário, o que ficou instituído para ao corpo negro foi sua depreciação vinculado
ao preconceito racial e o estereótipo de sua inferioridade frente a ‘raça’ branca. Esse discurso
racista e atitudes negativas quando se referia ao negro, não só estava presente no discurso embora

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muito forte, mas sim de forma institucionalizada seja na escola e até mesmo no currículo escolar:
na fala do professor e nos livros didático, consequentemente o mesmo discurso era reproduzido
pelos alunos (CAVELLEIRO, 2001; AMBROSETTI, 2012; AGUIAR, 2001; SILVA, 2011; CANDAU,
2013; PRAXEDES, 2010).
Durante toda a história da população negra no Brasil desde sua chegada às terras brasileiras,
não houve aceitação pacífica da sua condição de escravo, ao contrário, eram frequentes os
movimentos de resistência que questionada a condição escravista. Após a abolição da escravatura
a luta pela liberdade e a reivindicação dos direitos iguais na sociedade foram as bandeiras de
luta com o surgimento do Movimento Negro no século XX. Os propósitos deste movimento era
a integração da população negra na sociedade brasileira, já que a extinção da escravidão não
ocorreu de forma plena e imediata, várias intervenções do Movimento Negro foi necessário para
obter mínimas condições de sobrevivência social. Assim “[...] para esse movimento, a efetiva
integração do negro só se daria na medida em que a população negra conseguisse meios de
sobrevivência que lhe garantissem acesso à educação (AGUIAR, 2011, p. 47). Outra grande forma
de luta pelos espaços na política foi “[...] Frente Negra Brasileira, que tinha entre seus propósitos a
efetiva integração do negro na sociedade brasileira. Esse movimento se desenvolveu entre 1931 e
1937 e agremiou várias pessoas em todo o Brasil” (AGUIAR, 2011, p. 47).
Entre várias lutas e conquistas no século XX pelo Movimento Negro, ressaltamos a
promulgação da Lei 10.639/2003 que inclui a obrigatoriedade da temática da História e Cultura
Afrobrasileira. A proposta da lei tem como prerrogativa estabelecer o direito de os/as alunos/as
terem acesso à cultura africana e promover a valorização do negro e todos os seus descendentes
na formação do Brasil, “[...] A implementação da Lei Federal 10.639/2003 é fator fundamental
no combate à discriminação e ao racismo” (AGUIAR, 2011, p.52). Valorizar a diversidade cultural
brasileira aos/às alunos/as, é uma forma visibilizar a luta e combater o preconceito e o racismo. A
Constituição de 1988 no artigo 205, estabelece: “A educação, direito de todos e dever do Estado
e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa [...]” (BRASIL, 1988). Para atender a este artigo da Constituição
Federal, “[...] a escola se apresenta como um espaço vital para a discussão do racismo e para
potencializar ações que visem à conscientização sobre a igualdade subjacente às cores, às raças
(AGUIAR, 2011, p. 52).
A Lei 10.639/2003 não pretende invisibilizar a cultura europeia ou qualquer outra cultura.
Esta lei propõe que a temática sobre a História e Cultura Afrobrasileira seja também levada em
consideração e como pertencente a cultura brasileira. A história afrobrasileira não pode ser ocultada
pelo Estado, tão pouco pelos currículos escolares. A história apresentada nos livros didáticos com
viés eurocêntrico deve ser revista e repensada pelos/as professores/as e até mesmo na formação
de professores/as. A formação brasileira não foi uma conquista apenas do povo português, mas
sim uma composição de indígenas, negros/as, mestiços/as e imigrantes dos mais diversos grupos
étnicos.
Os artefatos culturais presentes na escola não podem tratar a cultura e a história da

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

população negra como inferior frente a outros grupos. A própria Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO nos anos de 1950, ao convocar cientistas e
pesquisadores para saber se era possível diferenciar os indivíduos por raça, depois vários anos
de pesquisa afirmaram que “A ciência não tem como classificar rigidamente determinado grupo
partindo de características físicas” (BENTO, 2005, p. 19). A ideologia racista deve ser combatida
também na escola, é necessário desconstruir estereótipos de que o/a negro/a é “(...) preguiçoso,
indolente, caprichoso, sensual, incapaz de raciocinar” (BENTO, 2005, p.25) e problematizar esse
tipo de discurso em sala de aula.
Qualquer forma de racismo deve ser combatida, os Parâmetros Curriculares Nacionais
– PCNs, trouxe uma outra história para os currículos. Os negros mesmo estando em condição
de escravo contribuiu e muito para a formação econômica do país, os conceitos negativos por
meio dessas discussões, devem ser revistas, para que o preconceito racial seja combatido. A Lei
10639/03 é uma das formas de fazer com que a imagem do/a negro/a e seus descendentes sejam
revistas em todas as esferas.
O racismo é construído nas relações que estabelecemos na sociedade. Uma vez que a
escola é uma das instituições que faz parte de nossa sociedade, ela também reproduz
o racismo. Em 1994, o Ministério da Educação divulgou um estudo que atestava que os
livros didáticos estimulavam o preconceito. [...] Um dos mais importantes veículos de
reprodução do estereótipo, do preconceito e do racismo na escola é o conteúdo dos livros
de História (BENTO, 2005, p. 41).

O discurso racista está presente na fala do/a aluno/a, do/a professor/a, da própria
comunidade escolar, nos livros didáticos e no currículo. Com base nesses estereótipos a escola
tem um papel importante no combate as práticas discriminatórias, embora o discurso esteja em
várias esferas, se faz necessário ações afirmativas para descontruir tal discurso. “A educação
é um dos caminhos para se conhecer a diversidade de nossa gente, podendo contribuir para a
construção de uma sociedade mais democrática e plural, onde as múltiplas formas de preconceito,
discriminação e racismo sejam mantidas”. (SILVA, 2012. p.123). É necessário, portanto, que a
escola tenha sua função social capaz de trazer a diversidade étnica e cultural para a sala de aula e
problematizar as visões que discriminam e inferiorizam as culturas de minorias, mas sim, ressaltar
as riquezas culturais que compõem a formação social, política, cultural e econômica do Brasil.

Formação de identidade nas produções cinematográficas

A identidade é uma marcação feita pelo próprio sujeito, para assim ter condições plena de
se localizar na sociedade em que ele vive. A partir do momento que é estabelecida uma identidade,
tudo aquilo que você não é, servirá de parâmetro para perceber sua diferença com o outro. Ao
mesmo tempo que a identidade é construída, ela tem a total condição de se destruir ou até
mesmo reconstruir sua identidade. Desta forma, “a identidade é marcada por meio de símbolos”
(WOODWARD, 2014, p.9), estes mesmo símbolos, capazes de dizer o que somos e o que nos

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difere do outro.
Vivemos em uma sociedade na qual somos rotulados por todos os individuos que nos
cercam. Aquilo que somos ou não, são atribuídas incorporadas de forma natural pelos grupos ao
nosso redor, porém, os ambientes ao qual nos encontramos pode ser diferente em outros locais,
do mesmo modo quando um sujeito nos é apresentado, logo buscar relacionar com a nossa
diferença, criando expectativas que temos sobre ele, a partir do momento que os laços sociais vão
se firmando, alguns rótulos são inseridos ou excluídos.
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos
considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias:
Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de
serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos
permitem um relacionamento com ‘outras pessoas’ previstas sem atenção ou reflexão
particular. Então, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos
permitem prever a sua categoria e os seus atributos, a sua ‘identidade social’ (GOFFMAN,
2004, p.5).

Woodward (2014, p.11) trata a identidade como uma construção do sujeito, podendo ser
estabelecida tanto na dimensão simbólica quanto na dimensão social, pois “[...] a identidade
é marcada pela diferença (...)”. Essa busca para firmar seu eu, pode ser trazida nas relações
atuais, ou, a busca histórica, supostamente perdida. Dessa forma, explica a autora, a identidade
não é estática, porque passa por mudanças, “[...] a cultura molda a identidade ao dar sentido à
experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis [...]” (WOODWARD,
2014, p.19).
Umas das formas de firmar sua identidade e ao mesmo tempo sua diferença, são as
representações simbólicas e sociais como já discutido, porém, algumas instituições sociais,
presentes na vida do indivíduo. Tomaz Tadeu da Silva (2014) apresenta características marcantes
nas atribuições de sentidos simbólicos e as disputas que marcam o sujeito. Como o próprio
autor afirma, a identidade não é fixa e nem homogênea, há uma diversidade cultural presente na
sociedade, assim, “[...] a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma
relação, um ato performativo” (SILVA, 2014, p.96).
Dentre as construções de identidade do sujeito presentes na sociedade, podemos
encontrar na produção cinematográfica, já que o mesmo tem condições de interpelar o indivíduo
ativando assim sua imaginação, percepção e os estímulos audiovisuais produzidas pelas imagens
em movimento. De maneira subjetiva, cada sujeito é interpelado, é descartado a influência que as
produções cinematográficas causam nas pessoas, já que nos filmes são apresentadas diversas
formas de significado e símbolos, “[...] a cultural molda a identidade ao dar sentido à experiência
e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de
subjetividade” (WOODWARD, 2014, p. 19).
As práticas culturais são produzidas e reproduzidas numa variedade de locais sociais, e o
peso de sua “gravidade social” se manifesta na forma como elas estão inscritas no corpo,
como movem as pessoas à ação e colocam limites à gama de possibilidades através das
quais os indivíduos negociam suas identidades e seu sentido de agência social (GIROUX,
2013, p. 132).

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Giroux (2013), exemplifica que as práticas culturais estabelecidas têm plenas condições
de se descolar facilmente, ou seja, as identidades são estabelecidas de acordo com os sentidos
apresentados naquele contexto. Os aparatos que cercam o sujeito, se não for conduzido de uma
forma a proporcionar as variáveis, acaba sendo locado de uma única forma, ou por uma esfera
hegemônica. A cultura hegemônica para se manter no poder, utiliza de artefatos culturais para que
a formação do indivíduo e seus anseios sejam estimulados, contribuindo assim para a identidade
do sujeito.
A forma como a escola propõe e trabalho os mais variados assuntos e conteúdos, devem
ser vistos com cautela, já que aquilo que é exposto para o/a aluno/a, tem plenas condições de
afirmar sua identidade ou diferença. “A cada momento histórico, o sujeito, à medida que participa
das transformações, também é transformado por elas” (SILVA, 2012, p.68). Essas transformações
são apresentadas por meio dos artefatos culturais presentes na escola.
Ao indivíduo é oferecido um grande leque de opções, até mesmo de identidade. O
mercado está à disposição para que o consumidor possa compor e recompor a identidade
que desejar, no momento e por quanto tempo desejar (SILVA, 2012, p.14)

O cinema como um artefato cultural constitui-se em uma das mais variadas formas de mexer
com a emoção, suas imagens e narrativas possibilitam ao espectador um mundo ficcional que
instiga a sonhar, desejar, suprir suas necessidades, ter medo, se ver triste ou alegre, abandonado,
protegido. As produções cinematográficas pode ou não envolver o indivíduo, e mesmo ao se
satisfazer com um filme, logo virão outros para suprir essa necessidade e outras necessidades
são criadas e se estabelecem, cada filme, com suas características e especificidades, assim, “o
filme evidencia o cotidiano do indivíduo” (SILVA, 2012, p.17).
O cinema [o filme] é como uma obra aberta, capaz de possibilitar múltiplas interpretações
criadoras e que, a todo momento, apresenta brechas que levam o sujeito a se deparar com
os paradoxos existentes. O mal-estar que o cinema produz no telespectador ao despertá-
lo é que as semelhanças só existem porque as diferenças estão presentes (SILVA, 2012,
p.18).

Em meio a tantos valores que o cinema exibe e pode exibir, permite o seu público refletir
e analisar sobre o que faz parte de si ou não. Por sermos repletos de símbolos culturais, nossa
identidade se constitui no contato com aquilo que nos é exposto, assim, a cultura condiciona as
ações do sujeito, direcionando o que somos ou não. O ser humano ao estar inserido nos grupos
sociais, inviabiliza o não pertencimento a uma cultura, já que “[...] a cultura não é algo sobre ou
além do sujeito; ela se dá a partir dele” (SILVA, 2012, p.22).
A escola por fazer parte da construção da identidade do sujeito, tem que possibilitar o
direito ao acesso as mais variadas formas culturais. Assim a escola precisa lidar e compreender a
diversidade cultural. A cultura não é singular e fixa, pois ela está em pleno processo de hibridação,
na perspectiva de Canclini (2008), cuja fusão das práticas sociais na vida cotidiana, que ocorrem
nos intercâmbios culturais, é inevitável no mundo globalizado.
A instituição escolar não pode se manter isenta na construção e desconstrução de
estereótipos, se faz necessário que todas as culturas sejam visibilizadas, sem valorizar uma

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e inferiorizar outra, mas tratar como culturas diferentes. Dessa forma, o reconhecimento das
identidades e logo das diferenças de cada sujeito é posicionada da mesma forma e um dos
artefatos culturais que contribuem para a luta na desconstrução de estereótipos é o cinema.

Considerações Finais

O presente artigo trouxe a importância do cinema na desconstrução de estereótipos


referente as relações étnico-raciais no Brasil. Com a efetivação da Lei 10.006/2014 no currículo
escolar, que além de incentivar as produções cinematográficas brasileira, pode proporcionar
reflexões sobre a forma que a imagem do negro é construída no cinema e como esse conteúdo
pode ser utilizado para problematizar essas relações étnico-raciais, utilizando o cinema na sala de
aula.
O cinema na educação escolar pode desenvolver potencialidades necessárias para o
desenvolvimento intelectual do indivíduo, promovendo assim reflexões da posição social do
negro no Brasil. Em conjunto com a Lei 13.006/14, trouxemos para a discussão a Lei 10.639/03 e
procuramos refletir sobre o potencial pedagógico do cinema para a desconstrução de estereótipos
nas relações étnico-raciais.
Com base nos estudos culturais, analisamos os filmes como artefatos culturais que
contribuem para a construção de identidade do sujeito, mesmo que de forma subjetiva, assim, ao
serem expostos a história da população negra no Brasil nas produções cinematográficas, cabe
ao sujeito refletir como determinados grupos viviam em determinados períodos da história. Outro
grande ponto a ser levado em consideração é a função do professor como mediador na escolha
dos filmes a serem reproduzidos na sala de aula e as possíveis problemáticas que possam ser
trazidas para a discussão.
De fato, da mesma forma que o cinema possibilita um outro universo de realidade e/ou
ficção, ele também pode intensificar os estereótipos que cercam o/a negro/a no Brasil e sua
história/cultura. Sendo assim, a escola por fazer parte da construção de identidade e diferença do
sujeito, ela também possibilita provocar o desconforto e fazer uma autorreflexão no sujeito.
Por fim, longe de limitar ou esgotar as reflexões sobre o cinema e educação, apontamos
como a Lei 13.006/14 e 10.639/03 podem trabalhar juntas para a desconstrução de estereótipos
referente à população negra. Afinal consideramos que a educação escolar é uma possibilidade de
apresentar um caminho para que essas temáticas possam ser discutidas, já que esse assunto é
tão presente na atualidade.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Referências

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Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais. Petropolis, RJ:
Vozes, 2014.

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EIXO 19: Pretas e Pretos nas
encruzilhadas da antropologia
O GT se propõe a discutir, refletir e compartilhar experiências acerca das
vivências das pretas e dos pretos na antropologia. Propõe-se a abertura de
um espaço para conhecer e debater os temas de pesquisa, ensino e extensão
nos quais atuam as pretas e os pretos no âmbito acadêmico da disciplina.
Nesse contexto, cabe instigar relatos e discussões sobre as condições de
ingresso e permanência nas universidades, encontradas nas especificidades
da Antropologia, seja na graduação ou pós-graduação e na docência.
Reflexões a respeito da intersubjetividade dessas pesquisadoras e desses
pesquisadores frente a seus temas de investigação, seu posicionamento e
estratégias adotadas, bem como a forma de inserção e tratamentos dados
às pautas que se referem à população negra durante a formação das
antropólogas e antropólogos, especialmente durante as pesquisas que
atuam na área em questão. Para além dos espaços encontrados na academia
buscamos debater a constituição de outros espaços profissionais de atuação
das antropólogas e dos antropólogos, bem como
os relatos de sua inserção no campo profissional,
êxitos e dificuldades encontradas. Como plano de
fundo dos debates, interessa pensar as relações
interdisciplinares que se impõem aos pesquisadores
na construção de uma antropologia que volta
seu olhar sobre as questões raciais ao investigar
assuntos ligados às tradições de matriz africana,
classe, gênero, patrimônio, memória, educação,
às epistemologias silenciadas, entre outros. Neste
GT teremos a oportunidade tanto de
dialogar sobre nossas áreas de atuação
acadêmica, atuação profissional em
outros órgãos, entidades e instituições,
as relações interdisciplinares para
atuarmos sobre os temas raciais, como a partir de nossas
experiências e vivências enquanto antropólogas/as pretas/os.
NA FRONTEIRA: MULHERES NEGRAS NAS ARTES

LOBO, Jade Alcântara. (UNILA)jadealobo@gmail.com


Orientadora: Prof.ª Dr.ª Angela Maria de Souza

PIBIC - CNPq

Resumo
“Na fronteira: Mulheres Negras nas Artes” é uma Pesquisa de Iniciação Científica que
ultrapassa os limites do Estados-nação, buscando refletir sobre as populações afrodescendentes
nos espaços de fronteira, a partir da cidade de Foz de Iguaçu nas relações estabelecidas com
as cidades de Ciudad del Este - Paraguai e de Puerto Yguazú – Argentina. A mulher negra na/
da fronteira, possui papel político que marca as ações da população negra na região e a partir
desta perspectiva pretende-se especificar este olhar da pesquisa em direção às distintas formas
de atuação destas mulheres, especificamente na produção artístico-cultural compreendendo o
processo de atuação destas para a construção de seu posicionamento enquanto mulheres negras
na região.
A primeira parte do projeto foi de pesquisa bibliográfica sobre negritude, mulheres negras,
arte e educação (Gonzales, 1983, hooks, 2013, Gomes, 1996, Davis, 2016, etc). Em seguida,
através do método etnográfico, buscou-se os primeiros contatos com as mulheres negras da
região, a partir de seus espaços de atuações. Percebendo a situação de falta de apoio em que
vivem estas artistas, a proposta é estabelecer uma relação mais aproximada destas mulheres
com os espaços de educação - escolas da periferia da cidade. Para isso, as ações estão sendo
realizadas no Colégio Estadual Doutor Arnaldo Busatto, buscando atuar no empoderamento das
estudantes negras artistas.

Palavras-chave: Mulheres negras; negritude; produção artístico-cultural; etnografia.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução

O Brasil é conhecido internacionalmente pela floresta Amazônica, pelas suas comidas e


pessoas chamadas de “exóticas”: tapioca, açaí e frutas de todas as cores e cheiros, “índios” e
“mulatas”, escolas de samba e calor. O país se projeta internacionalmente com a figura da “mulata
exportação”, uma negra de pele clara com cabelos crespos seminua como a Globeleza e que sabe
sambar. Um estereótipo hipersexualizado da mulher negra, apropriado como identidade nacional
voltada ao exterior e que transforma o país num alvo de safari sexual colonial, comércio sexual
de mulheres ou prostituição étnica como cita Pinho (2004) ao analisar a fixação dos turistas
europeus pela a figura da “mulata” que encontram em vídeos, books e catálogos. O país também
é conhecido pelos seus estilos musicais samba e funk, dois estilos negros e que hoje sofrem um
processo de apropriação pela branquitude. Outrora estes ritmos eram criminalizados e agora são
concedidos certos espaços se tiverem como seu símbolo precursor um corpo branco, é a história
musical do rock, criado por uma mulher negra se repetindo.
Funk agora é um dos estilos musicais mais ouvidos no país, movimentando várias pessoas
de classe média para bailes dentro de favelas pacificados com preços caros, que a maior parte
da população preta local não pode pagar. No caso do samba a cantora, compositora e deputada
estadual do PCdoB-SP, Leci Brandão para revista Época defende apropriação cultural como uma
pasteurização da cultura negra:
Um exemplo que eu sempre dou e que se aplica bem ao que falamos está nos desfiles
das escolas de samba. Eu acompanho os desfiles de Carnaval desde menina. Adorava ir
com minha mãe assistir às escolas na Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Cada família
levava alguma coisa para comer e a gente fazia uma espécie de lanche comunitário. Isso
era no tempo em que o samba não era visto com bons olhos. Com o passar dos anos,
continuei acompanhando os desfiles e vi o protagonismo do Carnaval mudar. Fui vendo as
Tias Baianas serem desconsideradas. Vi as meninas das comunidades serem preteridas
por pessoas famosas ou por pessoas em busca da fama. É aí que falamos de apropriação.
Ela ocorre quando aqueles que de fato fizeram o desfile são substituídos por pessoas
que nada têm a ver com a produção simbólica da agremiação, por mera questão estética,
midiática ou propriamente comercial. Questões essas sempre são pautadas pelo racismo.
Nesse momento da discussão, normalmente ouvimos o seguinte argumento: “Ah, mas
como brasileiro tenho muito da cultura negra”. A troca cultural entre grupos sociais não
é e nunca foi um problema. O problema está no fato de que os elementos simbólicos da
cultura negra sempre são esvaziados de sua negritude. Essa é a questão! E eu chamo isso
de racismo.Nesse sentido, a apropriação cultural da identidade negra está na tentativa
cruel de relativizar e diminuir, insistentemente, aquilo que nos proporciona a noção de
pertencimento e identidade. (Brandão, 2017).

O mito da democracia racial apontado por Leci pesa: “somos todos filhos de negros e
indígenas”. A afroconveniência brasileira toma conta do discurso, privilegiando o entendimento de
miscigenação, esvaziando símbolos de resistência cultural e da luta antirracista. Apesar da cultura
Afrobrasileira e dos Povos Originários ser apreciada e popular e de negros e negras serem a maioria
da população brasileira; de acordo com o IBGE (2014a), 53,6% dos brasileiros se declararam pretos
e pardos; essas pessoas ainda sofrem diariamente com o racismo do país. Opressão essa que não

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é somente fruto de um preconceito direto gerado pelo ódio à certas características desses corpos,
ou repetição de estereótipos historicamente inventados que fixam um olhar de inferioridade a
estes; mas também de um racismo institucional.
Segundo o IBGE (2014a) a população negra é 76% dos 10% mais pobres do país, recebem
40% menos que os brancos, possuem índices de desemprego 50% mais elevado que estes, além
de possuirem 1,6 menos anos de estudos e um índice de mortalidade infantil 40% maior que os
dos brancos segundo a UNICEF (2014). Essa desigualdade é ainda mais extrema, os estudos da
Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI em 2016 confirmam que a cada 23 minutos um jovem
negro é morto. Esta construção de não espaços impedem pessoas negras de assegurarem seus
direitos fundamentais (segundo a Constituição Brasileira de 1988, atualmente vigente: direito à
vida, liberdade, igualdade, segurança, propriedade, educação, saúde, alimentação, trabalho, etc.)
e se configura como um racismo institucional, que segundo a CPI:
O racismo institucional constitui a forma mais sofisticada e bem-acabada do preconceito,
envolve o aparato jurídico institucional, e está presente em todos os segmentos sociais.
Tendo sua existência mais demarcada no plano macro, o racismo institucional é o principal
responsável pela reprodução ampliada da desigualdade no Brasil. Estudos realizados nos
últimos anos demonstram a perversa existência do racismo institucional, com destaque
para as áreas de educação e saúde. (CPI, 2016, p.29).

Acrescentando a estes dados, os técnicos da ONU em uma vinda ao Brasil em 2013,


declaram que “(...) os negros são os que mais são assassinados, os que têm menor nível de
instrução, os menores salários, o menor acesso à saúde, os que morrem mais cedo e o que menos
participam no Produto Interno Bruto (PIB)”.
Para além de uma análise de raça, é necessário um recorte de gênero. O patriarcado, “sistema
sexual do poder, com a organização hierárquica masculina da sociedade que se perpetua através
do matrimônio, da família e da divisão sexual do trabalho” (Costa, 1998, p.30). A mulher negra
além de viver uma dupla opressão por causa do sistema racista e do sistema patriarcal, sofre uma
violência de classe, fruto destas duas estruturas, muito mais forte que mulheres brancas, o que
configura uma tripla opressão: gênero, raça e classe (Garcia, 2012).Segundo o livro Estatísticas de
gênero: Uma Análise dos Resultados do Censo Demográfico 2010, do IBGE (2014b), o rendimento
médio de mulheres brancas correspondem a 67% do rendimento de homens brancos, enquanto
o de mulheres negras representam 35% deste e em comparação ao de mulheres brancas 52%.
Logo, percebe-se que capitalismo, racismo e patriarcado são estruturas que caminham
juntas, o capitalismo se alimenta das desigualdades para existir. Como disse
Angela Davis em uma conversa com Judith Butler sobre desigualdades no Oakland Book
Festival 2017 (informação verbal) :
1

Primeiramente capitalismo sempre foi um capitalismo racializado, capitalismo não seria


uma instituição econômica global como é hoje se não fosse a escravização, se não fosse

1 Informação tirada do evento 2017 Oakland Book Festival, On Inequality: Judith Butler and Angela Davis
in Conversation, em Oakland Califórnia no dia 21 de Maio de 2017. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=-MzmifPGk94>.Acesso em: 10 jun. 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

por causa da colonização, e de alguma forma nós pensamos que esses são problemas
separados mas eles não são.Você não pode assumir que somente adicionando aqueles
que anteriormente estavam excluídos nessa organização que haverá alguma mudança
significativa, vai continuar do mesmo jeito que sempre foi. [...] A escravidão está presente
atualmente, os dias de hoje ainda continuam sendo a vida pós escravidão. (Davis, 2017,
tradução nossa)

A partir dessa discussão o projeto Na Fronteira: Mulheres Negras nas Artes nasce com o
objetivo de compreender o processo de atuação das mulheres negras da cidade de Foz do Iguaçu
na a construção de seu posicionamento na região a partir de sua produção artístico-cultural e de
aproximá-las do espaço escolar, trabalhando no Colégio Estadual Doutor Arnaldo Busatto que
se localiza no bairro Três Lagoas, região periférica de Foz do Iguaçu e conta com a maioria dos
estudantes da zona rural . Vale ressaltar a importância do trabalho de resistência das mulheres
2

negras da região frente aos estudos que apontam o Paraná como o estado mais negro do sul ,
3

possui 24,5% de sua população negra e Foz do Iguaçu com 36% desta população. Segue tabela
explicativa referente a população de Foz do Iguaçu.

Fonte: Tabela desenvolvida por SOUZA, Angela e MADERI, Vinícius, a partir dos dados
do IBGE de 2010.

Foz do Iguaçu é uma das maiores cidades turísticas do Brasil está localizada ao oeste do
estado do Paraná, na fronteira com Paraguai e Argentina, apresentando uma grande diversidade
étnico-cultural. Os países da fronteira Argentina e Paraguai, comparadas com Foz possuem uma
população negra pequena, sendo um dos motivos principais os batalhões inteiros somente de
pessoas negras utilizados por estes países em guerras como na de sua independência e do Guerra

2 Informação retirada do Projeto Político Pedagógico do Colégio. Disponível em:


<http://www.czgarnaldobusato.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/10/664/18/arquivos/File/PPP.pdf>Acess o em:
10 jun. 2017
3 Dado encontrado no livro Paraná Negro,da FUNPAR (Fundação da Universidade Federal do Paraná), 1.
ed.Curitiba: 2008. A obra reúne pesquisas realizadas pelo Grupo de Trabalho Intersecretarial do Governo do Paraná

Página 908
do Paraguai, na qual o Brasil participou .
4

A pesquisa/extensão tornou-se aqui a maneira de realizar o trabalho de campo a partir


de uma relação estabelecida entre mulheres negras. A metodologia escolhida foi o método
etnográfico Geertz (1989), com trabalho de campo, fundamentado na observação participante
dos espaços artístico-culturais da região de Foz do Iguaçu, onde essas mulheres se encontram e
atuam no contexto de fronteira, baseando-se na prática da observação etnográfica dos espaços
de ações destas mulheres negras, a partir da cidade de Foz do Iguaçu. A interação é determinante,
o atuar conjuntamente, nos eventos, nas atividades culturais é definidor para a realização deste
trabalho. Além do diálogo, convivência, observação participante de trabalhos, eventos, e do dia-
a-dia dessas mulheres negras foram realizadas entrevistas com 6 moças que fazem parte de
manifestações artístico-culturais consideradas fundamentais no cenário cultural de Foz do Iguaçu.
Trabalhando na perspectiva de uma antropologia simétrica (Latour, 2008) e antropologia reversa
(Wagner, 2010), percebendo que a categoria “outro” também antropologiza e elabora sua própria
teoria sobre a interação do campo, devendo assim ser tratado em uma relação de equidade.

1 Aproximação

A primeira parte do projeto foi dedicado à aproximação com o tema através de um


levantamento bibliográfico sobre negritude, gênero, mulheres negras, arte e educação. Alguns
autores como Angela Davis, Franz Fanon, Antonia dos Santos Garcia, Lélia Gonzales, bell hooks,
Gisele Santos, foram fundamentais nesse processo de aprendizado. As discussões puderam ser
realizadas coletivamente em eventos como o I Congresso Internacional Epistemologias do Sul,
Seminário da Saúde da População Negra Teresa de Bengala, na 6ª Semana de Consciência Negra
da Universidade Federal da Integração Latino Americana, e no debate assistido de Djamila Ribeiro,
pesquisadora na área de Filosofia Política e feminista, ex-secretária-adjunta da Secretaria de
Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, com Rosane Borges jornalista, professora doutora
na Universidade Estadual de Londrina (UEL) com pós-doutorandaemComunicação,pelaECA-
USP,integrantedaCojira-SP(Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial) e pertencente ao
grupo de Comunicadoras Negras durante lançamento do livro Mulher Raça e Classe em SãoPaulo.
Um dos primeiros contatos com mulheres negras que promovem artes na região foi com um
dos grupos artísticos de suma importância na cidade de Foz do Iguaçu, o Afoxé Ogún Fúnmilaiyó.
O encontro se deu através da participação do Seminário da Saúde da População Negra Teresa
de Bengala, promovido pela Secretaria da Saúde do Estado promovido pela Rede de Mulheres
Negras do Paraná que teve uma caravana organizada pelo Afoxé para levar pessoas interessadas

4 Para saber mais sobre população negra na Argentina: A história dos negros argentinos: por que eles quase
“sumiram” do mapa por lá? Disponível em: <https://www.geledes.org.br/historia-dos-negros-argentinos-por-
que-eles-quase-sumiram-do-mapa-por-la/#gs.iIPS5=Y> Acessado em: 10 de jun de 2017; População Negra no
Paraguai: A participação dos negros escravos na guerra do Paraguai. Diponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000200015>. Acessado em: 10 de jun de 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

no assunto ao evento em Curitiba. O grupo é um dos principais na luta antirracista na cidade e que
procura trabalhar através não somente de suas apresentações artístico culturais, mas de palestras
em escolas, participação em diversos eventos além do carnaval.
O Afoxé tem como presidente a Yalorisá Marina Tunirê e vice- presidente sua filha Iya Egbe
Crica de Oiyá, que veio junto de sua mãe da cidade de São Paulo para fundarem o Ilê Asé Oju
Ogun Fúnmilaiyó em 1994. O Afoxé foi criado por elas com ajuda inicial de um patrocínio da Itaipu
saindo pela primeira vez nas ruas de Foz do Iguaçu no carnaval de 2012, com entorno de 300
pessoas. O grupo da organização conta em média 10 pessoas e sobrevive através de realização
de eventos como bingo, pagodes, realizando festas como a Festa Preta em 2016, vendendo
alimentos como Baião de Dois, pizza; além de apoio esporádicos da Fundação Cultural da cidade
através de projetos. Como disse Iya Egbe Crica de Oiyá em uma das entrevistas “o Afoxé nasce
para desconstruir preconceitos da comunidade e aproximar as pessoas do candomblé quebrando
estereótipos e mostrando o que temos de mais lindo para a cidade”. Desde a vinda para Foz a
família tem se dedicado na luta antirracista, são membros da Rede de Mulheres Negras no Paraná
e promovem eventos ligados à Rede.
Quando chegaram na cidade as pessoas não respeitavam o Ilê, nem o Afoxé, chegando
a falar que estavam “abrindo a casa do demônio” - teve caso em uma escola que estudantes se
levantaram pois “não iriam ouvir falar de macumba - nem os seus corpos, agredidos verbalmente
com expressões como “neguinha da macumba”.
Apesar da necessidade de resistir e lutar cotidianamente, o grupo não mede esforços para
contribuir para sua comunidade, suas apresentações em grande maioria são gratuitas, sendo
um dos mais requisitados pelas escolas para não somente se apresentar mais conversar sobre o
candomblé e as funções do Afoxé como a de abrir o carnaval pedindo energias positivas. Em 2016
foi marcante a participação do grupo na Marcha pela Diversidade no dia 20 de maio manifestando
solidariedade ao estudante haitiano Getho Mondesir, agredido covardemente .
5

Durante os trabalhos de campo e vivências com as mulheres negras artistas da região,


percebeu-se que a arte funciona como mecanismo de resistência e expressão de seus sentimentos
de vivência do ser mulher negra em uma fronteira permeada de conflitos sociais. A professora
formada em artes e educação, artesã e artista plástica Roseli Rodrigues é um desses exemplos,
possui uma história de luta e superação de dificuldades como racismo e pobreza, e hoje utiliza de
sua arte como mecanismo de denúncia das desigualdades sociais através de suas telas. Nascida
em Guaíra- Paraná, vivia uma dupla jornada entre trabalho e estudos, começou a trabalhar cedo
como empregada doméstica e ajudando sua família na colheita de algodão em grandes fazendas
de famílias ricas. Sua família foi desabitada pela Itaipu da Ilha Guaíra depois da destruição das

5 Getho Mondesir era estudante de administração pública e políticas públicas da Universidade Federal da
Integração Latino- Americana, ele foi agredido no centro de Foz do Iguaçu quando estava indo à rodoviária para ir à
Cascavel passar o final de semana com seu filho. Ele foi agredido verbalmente chamado de “macaco”, os agressores
diziam que ele estaria na cidade “por causa de Dilma” e agora deveria voltar ao seu país. Ele também foi agredido
fisicamente com golpes de garrafa. Fonte: <http://fronteiraurgente.com.br/estudante-haitiano-e-agredido-
em-foz-do-iguacu-por-questoes-politicas/>. Acessado em: 10 de junho de 2017.

Página 910
Sete Quedas não chegando a receber indenização completa segundo seus avós, algumas regiões
no local não chegou a sofrer danos, sendo habitada atualmente por casarões, colo ela relata.
Podemos perceber a expressão artística de Roseli a partir da seguinte colocação durante uma das
entrevistas:

A arte para mim é mais do pintar ou desenhar. É um refúgio onde posso expressar
sentimentos, sem medo de errar. É como eu vivesse a cada momento, a cada vida e
emoções. Por isso gosto de pintar sobre questões sociais e políticas, porque a arte está
presente na vida do ser humano em todas as dimensões. Então, é uma forma de representar
um pouquinho da cultura política e social do brasil. Acredito que a arte é muito importante
na política. É possível ver claramente sua relação no cotidiano da sociedade. Nas letras
das músicas, nos movimentos sociais, na literatura, teatro, cinema, enfim em qualquer ato
do ser humano. (Roseli, 2017).

Uma outra figura importante é a família de Mirá Rocha que contribui para a cidade desde
a época de seus pais que movimentavam o cenário artístico de seu bairro, recebendo pessoas da
comunidade para fazerem refeições em sua casa, ensinando vários à ler e escrever, organizando
campeonato de futebol que culminou na criação do estádio do Porto Meira. Hoje Mirá e suas duas
irmãs Arinha Rocha e Rosângela, três mulheres negras de luta que se consideram artistas políticos,
ocupam a mais de 20 anos o Teatro Municipal Otília Schimmelpfeng, apelidado de Teatro Barracão,
abandonado pela prefeitura.
No teatro diariamente são oferecidas várias oficinas de ballet, jazz, sapateado, hip-hop,
canto, violão, fotografia, teatro, entre outras; além do evento mensal Café com Teatro que reúne
manifestações culturais dos três países da fronteira: Brasil, Argentina e Paraguai, comidas de
diversos regiões do mundo. A família arrecada dinheiro para manter o Teatro Barracão através de
projetos, parcerias com instituições como a Itaipu e com a promoção de eventos. O Teatro Barracão
é um espaço que fortaleceu várias das entrevistadas que hoje promovem arte como a cantora
Panambi, estudante de música da UNILA e Juliana Zacarias formada em Letras- Artes e Mediação
Cultural e atualmente professora de dança afro. O teatro foi fundamental para o aprendizado e
aperfeiçoamento de técnicas assim como contato inicial com o que atualmente trabalham.
Uma das maiores dificuldade é falta de acolhimento da cidade com o projeto multicultural,
viver de arte em Foz do Iguaçu não gera muitas recompensas financeiras, para todas que
participaram desta pesquisa é de costume terem de tirar dinheiro do próprio bolso para poder manter
um projeto ou realizar um trabalho artístico que muitas vezes não é acolhido pela comunidade da
região. Uma das entrevistadas a Tati Bafo, formada em artes cênicas e que trabalha com Brechó,
entende o artista como ser político e transformador, para ela “uma cidade sem arte é uma cidade
atrasada porque a arte modifica o ser, é uma potência de empoderamento, o artista é um ser
político e tem obrigação de mudar o lugar em que vive”, arte é entendida como ferramenta possível
de criar sensibilidade pelo outro, sendo esta essencial para o entendimento entre as diversas
etnias que existe em Foz.
O grande problema é que estas manifestações culturais são pouco valorizadas na região,

Página 911
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

não só por poucos incentivos financeiros mas por falta de interesse da comunidade em participar
de eventos de cultura negra em oposição a eventos tradicionais da cultura hegemônica branca
do sul do país. As variadas etnias não se encontram e dialogam, uma hipótese é a falta de centros
de convivência além do Teatro Barracão, Shoppings, e recentemente feirinhas (que mesmo assim
funcionam cada uma em seu bairro), além da própria disposição geográfica da cidade que possui
bairros extremamente afastados e cada um com seu pequeno centro comercial, o que dificulta a
convivência. Esse afastamento afeta também o relacionamento entre as pessoas dos países da
tríplice fronteira que é muito mais pontual e comercial, dependendo de fatores como o preço do
dólar, salve algumas tentativas de integração como a promovida pelo Café comTeatro.
Existem também outras manifestações de cultura afro brasileira e indígena não
necessariamente lideradas por corpos negros ou indígenas e que são criticados por estas moças
por fazerem essa separação do cultural com o ativismo, o que causa uma descontextualização e
esvaziamento do significado de muitas dessas expressões carregadas de resistência, simbolismo
e que ocupam um lugar central na vida destas pessoas. Essa descontextualização começa com
a falta do estudo afrobrasileiro e indígena de forma adequada na escola. Juliana Zacarias ressalta
que toda comunidade possui um “ouro”, algo a ser oferecido ao mundo e que o racismo se instaura
como sistema que ainda opera muito bem e se reinventa, pela falta de contato da população
brasileira com as origens da cultura que vive. Esse movimento ocorre através do distanciamento
do conhecimento que era passado de geração em geração da atual educação normatizadora, que
conta somente uma versão embranquecida da história do país e que preza o preparo o indivíduo
para uma prova de vestibular. Ela reforça que é preciso mostrar para as pessoas o que está além
da performance, a contextualização e o significado dessa manifestação.

2 Além dos Encontros

Em paralelo às reuniões, participações e vivências com as mulheres negras da cidade,


procurou-se verificar outros tipos de manifestações artísticas ligadas a negritude. Dessa forma
participando de reuniões do Núcleo Regional de Educação, com as Equipes Multidisciplinares
6

da escolas, tentou-se analisar a formação dessas possíveis negras artistas no ambiente escolar
através do contato com a cultura Afrobrasileira e indígena, ou da participação de professoras
negras como mediadoras desse contato através do uso da Lei 10.639/11.645 . Pode-se observar
7

muitas manifestações artísticas como propostas de trabalho das escolas da região, contudo devido
à forma com que estas foram elaboradas caiam no risco de perpetuarem estereótipos racistas por
muitas vezes não trazerem uma contextualização do fenômeno cultural, o que leva ao risco da
falta de criação do sentimento de empatia causado pelo distanciamento quando é trabalhado as

6 Essas reuniões estavam sendo realizadas para o debate da aplicação da Lei 10.639/11.645 nas escolas com
as/os professoras/es da rede pública da região e com as/os que trabalham com a temática de relações étnico-raciais
da UNILA, Prof. Dr. Waldemir Rosa e Prof.ª Dr.ª Angela Maria deSouza.
7 Este projeto ainda está em vigor.

Página 912
culturas como congeladas fixas somente em uma África do passado, deixando de lado a cultura
como fenômeno dinâmico e perdendo a característica afrobrasileira.
Mediante à esse fenômeno no ambiente escolar e as dificuldades encontradas pelas
mulheres negras artistas da região em conseguir espaço e serem reconhecidas, surgiu a segunda
parte do projeto: a Arte como Ferramenta Transgressora: Aplicação da Lei 10.639/11.645 na
Escola. Este é um trabalho de extensão que atua a partir de uma visão da arte enquanto ferramenta
de atuação direta para o empoderamento de meninas negras e/ou indígenas e estabelecimento
de um processo de reconhecimento, respeito e empatia com estas pessoas e com a cultura
afrobrasileira e indígena. Essa parte do projeto possui como objetivo trabalhar noColégio Estadual
Doutor Arnaldo Busatto a Lei 10.639/11.645, que torna obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena, através da arte enquanto ferramenta transgressora de uma educação
tradicional, racista e europeizada, e veículo para uma tentativa de criação de um processo de
reconhecimento respeito e empatia com a diversidade e com a cultura afrobrasileira e indígena.
A preocupação central está sendo em não reproduzir estereótipos racistas através
destas aulas e com a percepção destas culturas no dia-a-dia do brasileiro através de práticas
populares (rap,samba, capoeira,etc), as contextualizando enquanto elemento de resistência e luta
e aproximando esses estudantes aos trabalhos de algumas das artistas, Juliana Zacarias - com a
dança afro- e Roseli Rodrigues - em todas as aulas ajudando a levantar debates e na elaboração
de pinturas, bonecas abayomis, etc.

Considerações Finais

A cultura brasileira é repleta da participação afrobrasileira e dos povos originários, mas


estas só se tornam válidas e concebíveis quando seus precursores são figuras embranquecidas.
O Paraná é o estado mais negro do sul do país contudo estes povos se encontram invisibilizados
através do racismo institucional. Neste cenário o papel artístico transgressor das mulheres negras
na fronteira é de suma importância como ferramenta política. O ser artista não é separado do ser
político para estas mulheres, o resistir é cotidiano, a luta pela resistência feminina e antirracista é
diária e parte essencial de suas vivências. Notoriamente essas moças utilizam de sua criatividade
e expressão artística como maneira de passar para a comunidade um pouco de sua cultura,
tornando real suas vontades e anseios por uma sociedade onde haja equidade em suas relações
através de sua participação e ocupação de espaços.

Referências

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2017. Época, mar, 2017. Disponível em:
<http://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/03/apropriacao-cultural-e-uma-pasteurizacao-
da-cultura-negra-diz-leci-brandao.html>. Acesso em: 10 jun. 2017.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

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cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Página 914
OLHAR COLONIAL: CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA
AFROCENTRICA SOBRE O FAZER ANTROPOLÓGICO NO BRASIL.

MARIOTO, Djiovanni Jonas França. (UFPR)


djiovanni.marioto@ufpr.br
MOTA JUNIOR, Julio Corcino Rodrigues (UFPR)
juliocorcinojr@gmail.com

Resumo

Esse estudo se refere a uma descolonização do saber dentro da UFPR, mas especificamente dentro
da antropologia. Para com isso quebrarmos as barreiras do saber eurocentrado dentro da academia,
trazendo autores africanos, invisibilizados a partir de uma história singular. O local dos autores
Africanos dentro das leituras obrigatórias, contidas tanto nas matérias obrigatórias como optativas se
tornaria o problema empírico de pesquisa, o problema teórico de pesquisa se encontra na formação
eurocêntrica da antropologia, e a partir disso como poderíamos pensar em uma contribuição de
autores Afrocentrados para a constituição do olhar antropológico. Concomitante ao problema traz-se
os objetivos gerais pretendidos alcançar com esse estudo, o qual, seria levantar a discussão sobre a
formação eurocêntrica da antropologia na UFPR através dos autores africanos ausentes nas disciplinas,
propondo um novo olhar para o ensino da antropologia, em conjunto com a ressignificação do papel
da África (saindo de objeto, para se tornar sujeito). Após a definição dos objetivos pode-se traçar o
método central de análise, o qual, gira entorno da verificação do currículo e das matérias ofertadas no
curso de antropologia nessa faculdade, tentando encontrar disciplinas sobre a África, ou textos com
autores africanos dentro dos planos de aula montados para cada mateira, tudo isso feito a partir de uma
verificação minuciosa e uma posterior tabulação e análise quantitativa a partir de variáveis estatísticas.
Logo após essa verificação iniciara uma segunda fase do projeto, que seria a parte qualitativa, pensando
como esses antropólogos afrocentricos poderiam realmente contribuir para uma formação mais plural
e menos colonial da antropologia.

Palavras-chave: Antropologia colonial, Descolonização da antropologia, Afrocentrismo,


Educação, Antropologia Africana.

Página 915
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Introdução.

Dentro desse grande debate, da não representatividade do negro, de sua história, e da


África sendo representada como sujeito, autora e produtora, podemos encontrar o escopo analítico
desse trabalho, o qual seria a colonealidade da antropologia ministrada na Universidade Federal
do Paraná, que também está inserida na colonealidade da antropologia em si.
O local dos autores Africanos dentro das leituras do curso de antropologia, contidas tanto
nas matérias obrigatórias como optativas se tornaria o problema empírico de pesquisa, o problema
teórico de pesquisa se encontra na formação eurocêntrica da antropologia. Desse modo então,
pode-se encontrar os objetivos gerais desse artigo, os quais seriam levantar a discussão sobre
a formação eurocêntrica da antropologia na UFPR através dos autores africanos ausentes nas
disciplinas, propondo um novo olhar para o ensino dessa Ciência, em conjunto com a ressignificação
do papel da África (saindo de objeto, para se tornar sujeito).
A metodologia utilizada para a produção desse trabalho e constituída a partir de um tripé
central, África, América e Europa, sendo representada cada uma por um autor. No pé referente a
África será utilizado o autor Molefi Kete Asante, em seu livro “Afrocentricidade: a teoria da mudança
social” publicado em 1980, nesse livro encontramos a primeira base de institucionalizaçao da
Afrocentricidade como conceito filosofico e analitico dentro da academia.
O autor demonstra que o povo negro espalhado pelo mundo seriam africanos expurgados
de seu territorio, desse modo demonstrando a nao aceitaçao de rotulos como Afro-americanos,
Afro-descendentes, e outros rotulos vinculados a uma patria, outro ponto que utilizaremos desse
livro do Asante seria a Afrocentricidade como praxis reinterada, ou seja, deve-se sempre elevar
tanto os pensamentos como ações a Africa, para fugir do epstemicidio imposto pelos Brancos1.
Desse modo mostrar o verdadeiro papel de sua terra de origem, esse pensamento deve
ser feito de maneira continua em conjunto com uma “açao de luta” (FANON,1952) como ja havia
pontuado anteriorente o psicanalista Frantz Fanon em seu livro “Pele Negra, mascaras brancas”
publicado em 1952. Na America utilizaremos algumas das lentes analiticas produzidas por Anibal
Quijano em um capitulo de livro ”Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina” publicado
em 2000, articulando com o Afrocentrismo de Asante será utilizado o conceito de colonealidade
e colonialismo, proposto por Quijano, o qual pode-se identificar todas as nuances em que o
colonialismo age, desde as relações de trabalho até a cultura, como poderá ser identificado no
trecho a baixo.
“Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas –entre seus descobrimentos
culturais– aqueles que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em
benefício do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja,
em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção de conhecimento
dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus
padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. A repressão neste campo foi

1 Como Branco deve-se pensar principalmente nos europeus, com as bases da colonização, em especial a
Inglaterra, Portugal, Alemanha, França.

Página 916
reconhecidamente mais violenta, profunda e duradoura entre os índios da América ibérica, a
que condenaram a ser uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua herança
intelectual objetivada. Algo equivalente ocorreu na África. [...]. Em terceiro lugar, forçaram
–também em medidas variáveis em cada caso– os colonizados a aprender parcialmente
a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja
no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa.
É este o caso da religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado processo implicou
no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou
outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário,
do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura” (QUIJANO,
2000, p. 121)

Indo para o último ponto do tripé analítico temos a Europa, com o autor do texto ”Tempo e
o Outro: Como a antropologia estabelece seu objeto”, Johannes Fabian, escrito em 1983. A parir
desse texto pensaremos na perpetuação das relações de poder dentro da antropologia, por uma
atribuição do tempo ao outro, pensando também na retificação das distancias entre o pesquisador
e o pesquisado, mesmo depois do evolucionismo, em conjunto com uma falta de relação dialógica
entre as partes dentro da pesquisa.
Desse modo pode-se pensar em uma perpetuação do colonealidade dentro da antropologia
a partir do presentismo antropológico e alocronismo, que reiteram as objetificações, as relações de
poder em conjunto com uma perpetuidade da colonealidade2.
Depois da definição desse olhar metodológico, entra-se na parte quantitativa do artigo,
nessa parte a metodologia usada seria um mapeamento dos autores africanos dentro das
disciplinas obrigatórias e optativas ofertadas no ano de 2013 e de 2015, os quais pode-se encontrar
todos os planos de aula de todas as disciplinas ofertadas, sendo possível fazer um levantamento
desses autores ou da ausência deles para com isso poder pensar o motivo deles não estar nesse
currículo, e como esses autores afrocentricos excluídos poderiam contribuir para uma possível
descolonização da antropologia.
Para maior compreensão esse trabalho foi separado em 4 partes, primeiramente esta
introdução que faz um apanhado geral sobre o trabalho, o próximo capitulo seria a “Antropologia
na África” que pretende trazer um pouco da história da antropologia no contexto africano, pelos
olhos dos autores africanos, mostrando todo o processo de dominação que estava permeando e
cooperando, em conjunto com as mudanças em alguns países posterior aos grandes processos
de independia, o ultimo capitulo seria o mapa analítico, o qual irá expor os dados coletados dentro
das disciplinas do curso de antropologia na UFPR.

1 Antropologia na Africa

2 Desse modo estabelece-se um paralelo entre os autores, Quijano definindo o que seria a colonealidade e que
ela ainda estaria vigente mesmo pós colonialismo, o Fabian demonstrando que a antropologia ainda reitera as relações
de poder e objetificações de seus pesquisados, e por fim temos Asante, pensando em um contraposto ao presentismo
antropológico com a Afrocentricidade, que e marcada por um caráter de localidade e temporalidade.

Página 917
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Para a produção desse capitulo, o livro “NTARANGWI, Mwenda; MILLS, David; BABIKER,
Mustafa. African Anthropologies: history, critique and practice. Zed Books, 2006” será a base
do pensamento e das informações sobre a antropologia na África.
O início da antropologia dentro da África está ligado a diretamente ao período colonial, pela
expansão dos países da Europa, principalmente a Inglaterra e a França nesse contexto, a partir
disso grandes trabalhos antropológicos foram feitos na África, sempre tornando como objeto de
análise e de produção (pela parceria entre o colonial e o antropólogo), desse modo pode-se pensar
que parte das bases dessa antropologia foi feita sobre a África.
Construindo uma visão de que a antropologia sempre estaria aliada ao colonialismo, sendo
uma das expressões do colonizador sobre aquele povo, à vista disso, alguns países como o Kenya
decidem abolir as cadeiras de antropologia, posterior a independência do pais, ficando algum
tempo desse modo. Porém, a percepção sobre a antropologia foi mudando ao longo dos anos,
saindo do evolucionismo, para uma “antropologia nativa”, que fez com que todo o pensamento
sobre a antropologia colonial fosse resinificado, gerando um novo momento de produção, com
a criação de métodos diferenciados de analise, a abertura das antigas cadeiras de antropologia,
incluindo a criação desse curso em novas universidades dentro do Kenya, isso ocorreu também
por uma percepção vinda de uma pesquisa realizada no Sudão, onde alguns pesquisadores
perceberam que a antropologia dentro da África poderia causar reformas sociais e a produção de
um conhecimento diferenciado.

2 Mapa analítico

Nesse capitulo serão apresentados os dados analíticos coletados no site da coordenação


do curso de Ciências Sociais da UFPR3, para realizar essa analise foram escolhidos os anos de
2013 e 2015. 2013 foi escolhido por ser o ano mais antigo que tinham sido publicadas todos os
planos de aulas das disciplinas ministradas dentro do curso de ciências sociais na habilitação de
antropologia, dessa forma sendo possível analisar todas as matérias e comparar com o ano mais
recente, que possuía todos os planos de aula publicados.
A partir desse mapa analítico pode-se perceber uma ausência imensa de autores africanos
dentro do currículo da Universidade Federal do Paraná, dentro dos 648 textos que seriam as
leituras obrigatórias para os alunos apenas 26 textos abordavam a África, ou seja 4% do total de
textos ofertados em todas as disciplinas, porem o maior problema se encontra nos autores que
escreveram sobre a África desses 4% apenas 0,8% eram de autores Afrocentrados, dessa maneira
perpetuando o olhar do outro sobre a cultura deles, mantendo todas as relações de poder contidas

3 http://www.humanas.ufpr.br/portal/cienciassociais/ementas-e-programas-de-disciplinas/ Acessado em
10/06/2016 as 10:20

Página 918
na escrita da antropologia (FABIAN, 1983).
Os motivos desse número incrivelmente baixo de autores africanos poderiam ser a falta de
textos traduzidos para o português desses autores, a falta de conhecimento desses autores pelos
docentes do departamento de antropologia.
A primeira hipótese se torna invalida quando analisamos os autores obrigatórios contidos
nas matérias do curso, nele encontramos diversos autores com traduções recentes como o próprio
Fabian, que está nessa lista desde a sua primeira tradução em 2013, ou também encontramos
muitos autores estrangeiros sem tradução, sendo eles em espanhol, inglês e até mesmo em
francês, tornando assim essa hipótese obsoleta.
A segunda hipótese vem munida de um etnocentrismo latente, que só demonstra a falta de
conhecimento sobre o continente e sobre toda a sua história. Porem todas essas hipóteses tem
em seu plano de fundo a colonealidade da antropologia, desconsiderando a escrita do Africanos,
desconsiderando, sua história, produção e cultura4, formando assim uma história singular, contada
por apenas um agente, vista por uma lente muito seletiva e parcial.

Conclusão

Passando pela breve história da antropologia, que demonstra a formação colonial a partir da
objetificação dos povos africanos, em conjunto com seu período evolucionista que ressignificava
a África como um Atraso, povos próximo a barbárie, em uma linha evolutiva até a grandiosa Europa
central (LEWIS, 1973), mesmo superada essa fase, a falta de atribuição do tempo fez com que
fosse mantida as relações de poder dentro da escrita antropológica, em conjunto com um não
dialogismo, contribuíram para uma objetificação continua de seus objetos de pesquisa.
Desta forma entende-se a visão dos da população do Kenya que tinha a antropologia como
aliada do colonizador, como sinal da presença da colonização efetiva em sua terra. Porem após
um longo processo de ressignificações da antropologia dentro da África, trouxe uma nova fonte de
produção para esses pesquisadores em conjunto com novas ferramentas analíticas (NTARANGWI,
MILLS, BABIKER,2006), algumas delas provindas da Afrocentricidade, como a fixação de tempo
e espaço bem definidos, o qual ajuda a não diferenciação do seu tempo para o tempo do outro
reduzindo significativamente o alocronismo e o presentismo antropológico.
Dentro do debate mais especifico da Antropologia dentro da Universidade Federal do Paraná,
a introdução desses autores dentro do currículo do curso, acarretaria em uma maior pluralização
do conhecimento dos futuros formandos, dando-lhes novas lentes analíticas, em conjunto com
uma descolonização de um saber pautado na Europa, mostrando outras antropologias, que não
sejam a latino-americana e a indiana e sim aquela que está presente no sangue da maioria da

4 Vide a primeira citação do Quijano, onde o autor explica o processo de dominação e colonização sobre os
povos americanos e africanos

Página 919
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

população, a Africana.
Esse trabalho e produzido em um contexto especifico dentro de um curso em uma única
universidade, porém, eles podem ser expandidos ao ensino dentro das escolas e universidades,
pensando quem seriam a maior parte dos autores que estão sendo trabalhados.

Referências

ASANTE, Molefi Kete. Kemet, Afrocentricity and knowledge. Trenton, NJ: Africa World Press,
1992.

FANON, Franz. Les damnés de la terre. A verba futuroruM, 2016.

FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis:
Vozes, 2013.

LEWIS, Diane. Anthropology and colonialism. Current Anthropology, p. 581-602, 1973.


NTARANGWI, Mwenda; MILLS, David; BABIKER, Mustafa. African Anthropologies: history,
critique and practice. Zed Books, 2006.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. 2000.

Página 920
EIXO 20: Filosofia africana e o
pensamento da afrodiáspora

Este Grupo de Trabalho objetiva estabelecer uma reflexão acerca das


contribuições da Filosofia Africana no pensamento, tendo em vista a
encarnação e a atualização da ancestralidade africana no mundo, bem
como o fato de suas contribuições serem invisibilizadas pelo pensamento
ocidental colonial. As reflexões abordarão a identidade negra e as condições
de reconhecimento por meio da africanidade. Também serão analisadas
as estruturas, os modos de ser e o potencial de destruição do mundo e
da humanidade pela colonialidade. Desta forma, os trabalhos privilegiarão
temas oriundos dos filósofos africanos e dos pensadores que refletem sobre
a afrodiáspora no Brasil e nos demais países da América Latina. Pretende-
se projetar um novo significado aos modos de
ser, pensar e conviver de mulheres, homens e
suas diversidades sexuais e raciais, mediados
pelos conhecimentos da filosofia e ciências
contemporâneas.
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

“A FERIDA ABERTA DO TALHO FUNDO NA CARNE DO MAPA QUE


SEPARA AMÉRICAS E ÁFRICA”: TELEOLOGISMO E MANUTENÇÃO
DA ORDEM SOCIAL

FERNANDES, Antonio Donizeti (UENP)


donizete@uenp.edu.br

Resumo

Conforme mostra a história das relações étnico-raciais e de classes sociais, a herança


africana que guardamos em cada um de nós por nos apresentar tão familiar e resistente,
dado os nossos gestos, sentimentos estéticos e maneiras de ser e de viver. Mesmo com
as políticas em favor da vinda de imigrantes europeus; desafricanização dos costumes e
higienização social das províncias no final do século XIX. Ainda assim com essas medidas,
o Estado não faria secar “a ferida aberta do talho fundo na carne do mapa que separa
Américas e África”. O processo mais longo da história do Brasil, advindo com o escravismo,
marcaria a nossa formação e o nosso entendimento enquanto comunidade imaginada a
partir do modelo de subalternização e das contradições próprias das relações de produção
mantidas pelas desigualdades e hierarquizações definidas conforme o fenótipo das pessoas
ocupadas nesse processo. Daí entender-se e não causar estranheza essas referências, de
há muito, tidas como práticas regulatórias e de uso comum, tanto em nossa navegação social
como em nosso ensino-aprendizagem. A partir da ideia de resgate das ciências humanas
e das humanidades através das perspectivas africanas, apresento aqui revisão de leitura
buscando dar entendimento à crítica ao eurocentrismo tendo em conta as questões relativas
aos conceitos de afrocentricidade e de colonização do saber das ciências sociais. Retomo,
em específico, a crítica ao teleologismo e sua presença nas ciências sociais, bem como a
ideia de manutenção da ordem social como juízo de valor na tentativa de marginalização
da história e da diáspora africana.

Palavras-chave: Desafricanização; afrocentricidade; eurocentrismo; relações étnico-


raciais.

Página 922
Introdução

Um talho fundo na carne do mapa Américas e África margeiam. Um navio negreiro como
faca: mar de sal, sangue e lágrimas no meio. Um sol bem tropical ardendo forte, ventos
alísios no varal dos juncos e sal e sol e vento sul no corte de uma ferida que não seca
nunca1.

Diversos são os estudos que apontam ter sido muito tênues os laços entre o Brasil e a África,
durante os quatro séculos em que se manteve o comércio humano e a exploração do trabalho
escravo. Aqui como em Cuba, poder-se-ia mesmo dizer, ao contrário das demais colônias da
América Espanhola, a migração forçada obedeceu e estabeleceu uma uniformidade de presença
e de continuidade do escravismo2 que veio se manter até meados do século XIX.
E, assim, diferentemente dos demais países a se apresentarem proclamados em Estados-
Nação político e anteriormente independentes à abolição da escravatura. Em Cuba, a libertação
do cativeiro, 1886, diferentemente ocorreu 12 anos antes de sua emancipação e 21 anos após a
abolição nos EUA, 1865, tendo esse último a sua declaração de independência ocorrida em 1776.
No Brasil isso levaria mais de 66 anos, após a sua independência política, 1822, o que demonstra
o quanto a economia dessas duas nações latino-americanas dependiam do comércio e de tais
vidas humanas no trabalho escravo.
Assim para efeito e compreensão das relações sociais em nossos dias, quando Bastide
(1974, p.26) observa que “os navios negreiros traziam a bordo não somente homens, mulheres e
crianças, mas ainda os seus deuses, suas crenças e seu folclore”, o que ele nos propõe a pensar
e a entender é que a presença africana permaneceria como um fato indelével nas três Américas.
E ainda que em 1850 tenha ocorrido a proibição do comércio de tais vidas humanas. Quase
quatro décadas depois, com a promulgação da Lei Áurea em consonância com aquilo que se
passou a caracterizar como “política de desafricanização”, ver-se-ia nas ações do Estado, sob o
controle da elite republicana e de seus intelectuais, a difícil tarefa de conciliar a visão negativa da
miscigenação e a tentativa de eliminar costumes que pudessem ver e lembrar os jeitos e coisas da
África: algum tipo de identificação ou de sua valoração positiva3.
Em nosso país, contudo, a presença africana permaneceria como algo tão familiar que
pouquíssimas situações causar-nos-iam estranhamento, a não ser quando contrariadas as
expectativas relativas às situações de permanência e de ocupação dos espaços sociais tidos e
destinados aos descendentes da experiência transatlântica.
Face ao exposto, na primeira seção deste artigo apresento a ideia de espaço temporal
enquanto estrutura que permite dar entendimento à constituição da sociedade e da “colonização
do saber” frente às questões apontadas pelo afrocentrismo. Em seguida, a partir da questão: Por
que riem da África? Desenvolvo discussão sobre a ideia de teleologia e o seu uso pelos cientistas

1 Oliveira, apud: Ianni (2003, p. 50)


2 Moura (1993)
3 Ainda que de maneira diversa, como demonstra Gate Jr (2014), algo mais que comum em toda América Latina.

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

sociais, buscado responder, entre outras, a questão anteriormente assinalada. O objetivo é


contrapor às concepções que buscam negar ou imunizar-se4 em face da obrigatoriedade do
ensino das relações étnico-raciais e a história da África nos ensinos infantil, básico, EJA, médio
e superior. Esta investigação pautou-se pela revisão e análise, atendo nas categorias: espaço-
temporal e relações étnico-raciais o aporte para compreensão e crítica à invenção da antiguidade
europeia em detrimento e negação do continente africano.

1 Instrumentalidade do tempo e negação da história

Desenvolver investigação tendo como aporte teórico e crítico à ideia de afrocentricidade,


em face das práticas de ensino e aprendizagem, dada a obrigatoriedade do ensino das relações
étnico-raciais e a história da África nos ensinos infantil, básico, EJA, médio e superior, possibilita-nos
retomar a ideia de emancipação social mediante a crítica ao modo de produção do conhecimento
e à prática de ensino-aprendizagem das ciências humanas.
Nesse aspecto é que se pode dizer que o tempo e o espaço se apresentam como estruturas
fundamentais que permitiriam dar entendimento à constituição da sociedade e de sociação5 em
seu duplo efeito, dada, a maneira como se constitui a história humana tanto enquanto associação,
assim como sistema específico de relações sociais - os sentidos de valores e a agência dos sujeitos
a partir da escrita, propriamente, dessa história e de seu ensino-aprendizagem.
Ou seja, para pensarmos a especificidade a problemática das relações sociais e étnico-
raciais na constituição da sociedade em nossa história brasileira, em sua conexão-desconexão,
far-se-ia necessário lidar com as ideias e práticas em torno dos sentidos e dos sentimentos
nacionais em ralação ao continente de onde provieram milhões de homens, mulheres e crianças
escravizadas.
Assim como com a herança e os herdeiros de tal experiência africana, tendo em mira os
aspectos estruturais e de sociabilidade em seu sentido prático ao tratar do espaço-lugar e o
tempo-causalidade/possibilidades6 do ponto de vista teórico e político.
Portanto, quando nos reportamos às relações mantidas entre Brasil e África, deixando de
observar as questões relativas ao ideário e às ideias de sociedade e de sociação, mediante as
representações e as práticas que passaram a estar vinculadas à conquista do “novo mundo”, é
quase esquecer que esse evento consubstanciar-se-ia como “produto e condição da ruptura
histórica espacial, acompanhada de explicações científicas, filosóficas7”.

4 Sodré (2006)
5 Fernandes (2017)
6 Conforme Abbagnano (2007) o conceito de tempo obedeceria três definições na história do pensamento filosófico, tais
como: ordem mensurável do movimento associada ao conceito cíclico do mundo e da vida do homem; a concepção científica do
tempo, na idade moderna, enquanto movimento intuído ou percebido; e como estrutura (organização, disposição e ordem dos
elementos essenciais que compõem um corpo (concreto ou abstrato) de possibilidades. Já a ideia de espaço corresponderia,
desde a antiguidade, há três ordens de problemas da natureza exterior; qualidade posicional dos objetos (lugar, posição de um
corpo); qualidade ou aquilo que está contido ou que contém os objetos materiais e, por fim, o espaço como campo.
7 Ianni (2000, p.39)

Página 924
O que justificaria aos olhos e ao imaginário do “velho continente”, daí por diante, a missão
civilizadora e de seu entendimento conformador da posição central da Europa e de sua
gente, tendo na dinâmica do capital e da sociedade capitalista, a tradução das ideias de
progresso, atraso e desenvolvimento8.
Nesse sentido é válido dizer que, a ideia de “ver o mundo a partir dos meus olhos e não
do “outro9”, corresponder a uma prática comum de colonização do espaço e do tempo. Ou seja,
ao transformar o “outro” deixando de reconhece-lo como igual a apartir de suas diferenças, a
colonização do espaço e do tempo acabou por negar a validade de tais conhecimentos para, em
seguida, a partir das desigualdades sociais e da hierarquização das diferenças arrogar a sua
posse10.
Isso equivaleria a dizer que tais representações do espaço e do tempo, validadas
principalmente pela educação em seu sentido escolarizador, apresenta-se como fruto daquilo
que passou a caracterizar-se como uma história fraudulenta imposta ao restante do mundo, bem
como a sua insistência em manter-se hegemônica.
Até aí, poder-se-ia dizer: isto sempre foi algo muito comum a todos os povos11. Entretanto,
o que difere o eurocentrismo dos demais etnocentrismos, ainda conforme Goody (2008),
corresponderia a sua visão de mundo em particular como resultado da produção e reprodução da
ideia de antiguidade europeia. Tendo no sistema de escrita grega não só o aporte, mas também a
sustentação da apropriação, absorção e reelaboração plena do discurso historiográfico europeu
com sua aparente cobertura científica.
Em outras palavras, Goody em sua escrita sobre “O roubo da história”12, ao revisitar o
que passou a ser concebido e tido como uma prática comum, oferece-nos a possibilidade de
retomar e entender como o monopólio da representação e da interpretação do espaço e do tempo
encontram-se relacionados, intimamente, à leitura da natureza a partir da ideia de método científico
e de instrumentalização da ciência.
“Deste modo, como ajuda entender Galimberti (2006, p. 543) ao referir-se ao período
denominado como renascente, a natureza não é mais expressão da ordem imutável da necessidade,
mas domínio de uma vontade [...]”. O racionalismo enquanto corrente filosófica, por assim dizer,
iria instrumentalizar a concepção judaico-cristã sobre a natureza: “[...] por ordem de Deus, ela

8 Para crítica aos críticos do capital e do capitalismo e as questões relativas ao colonialismo, leia-se as análises de Moore
(2010) em sua pesquisa sobre as obras de Marx e Engels, assim como, a sua avalição em relação ao marxismo a partir dos
apontamentos de Hobsbawn em sua tentativa, ainda segundo esse autor, de redimir tais teóricos de posturas eurocêntricas e
racistas.
9 Goody (2008)
10 Santos (2007); Lander (2000)
11 “Se dice de la actitud del que cree que la cultura própria es decididamente superior de las otras, habitualmente
acompanhada de certa tendência a considerar a otras culturas a través del filtro de los prejuicios de la própria. Ello puede incluir al
descuido de los diferentes marcos de referencia em que operan los indivíduos de las culturas ajenas. Todas las culturas y gentes
son em certa medida etnocêntricos”. (Barfield, 2010, p. 252)
12 “O roubo da história pela Europa Ocidental começou com as noções de sociedade arcaica e Antiguidade, prosseguindo
daí em uma linha mais ou menos reta pelo feudalismo e Renascença até o capitalismo. Aquele começo é compreensível porque,
mais tarde para a Europa, as experiências gregas e romanas representaram o amanhecer da “história”, com a adoção do alfabeto
escrito (antes da escrita tudo era pré-história, e esfera de arqueólogos, não de historiadores) ”. (Goody, 2008, p. 38)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

depende do homem feito à imagem e semelhança de Deus”.


O racionalismo, corrente filosófica surgida no século XVII, muito embora presente na
filosofia grega desde o seu peródo clássico, ao que tudo indica durante o renascimento, em face da
invenção da concepção de antiguidade europeia passou ele, então, a influenciar tanto as práticas
sociais como a história do pensamento mundial. Época ou momento em que caracteriza-se a
expansão do comércio no mar Mediterrâneo e Oceano Atlântico: a colonização como processo de
expansão e conquista; do mesmo modo, o colonialismo enquanto doutrina, prática institucional e
politica de coloniazação.
Sob esse efeito, ao impor-se no mundo e ao mundo, o espaço-temporal a partir do que se
poderia denominar como deslocamento do pensamento grego em relação à imagem da natureza
e de sua escrita, entre tantas outras categorias analíticas, iriam essas se tornar “europeizadas” em
seu uso, expressão e forma comum de emprego na filosofia e no pensamento científico.
Identificando-se como local de origem da herança e da ideia de surgimento do segundo
nascimento ou nascimento do homem novo e denominando-se como portadora de inscrição
na moderna idade, período posterior a antiguidade romana, é essa uma época que possibilitaria
à Europa Ocidental readequar o monopólio de sua representação sobre o tempo, o espaço e a
concepção de que “nenhum limite é sagrado”. Assim, a descoberta e a colonização da quarta parte
do mundo no século XVI tornariam esses eventos mais do que a descoberta da imagem de si
mesma da Europa, mas também a invenção e a imposição de sua representação como modelo ao
mundo e sua instrumentalização.
Como observa Heller (1982, p.11)
O Renascimento foi a aurora do capitalismo. As maneiras de viver dos homens do
Renascimento e, portanto, o desenvolvimento do conceito renascentista do homem,
tinham as suas raízes no processo através do qual os primórdios do capitalismo destruíram
a relação natural entre o indivíduo e a comunidade, dissolveram os elos naturais que
ligavam o homem à sua família, à sua situação social e ao seu lugar previamente definido
na sociedade, e abalaram toda a hierarquia e estabilidade, tornando as relações sociais
fluidas tanto no que se refere ao arranjo das classes e dos estratos sociais como ao lugar
dos indivíduos neles.

Para efeito das questões relativas à temporalidade e a justificativa de uma aceitação forçada
da hegemonia dos valores, símbolos, ícones e instituições é que se torna de grande importância
lembrar que as relações entre Europa, Ásia e África precedem ao que passou a ser uma justificativa
comum e de fundamental importância a dominação de um grupo ou camada social em função da
diversidade humana lida a partir da insurgência do racialismo e uso da concepção de raça13 como
“ideia força” e legitimação do racismo como prática comum.
Desde o século I, como apontam os registros sobre a antiguidade, o litoral índico
africano vinha sendo alvo das navegações e ancoradouro dos navios de nações distantes como

13 Todorov (1989). A visão negrofóbica, encontra-se inscrita em escala mundial em todos os povos euro-semitas da
Europa e do Oriente Médio. Mas o protoracismo teria seu sentido pleno com os gregos e os romanos e a evidência de tal assertiva
encontrar-se-ia nos escritos produzidos pelas suas elites dominantes a partir de Homero, Aristóteles, Heródoto e Plínio. (MOORE,
2012)

Página 926
as dos romanos, árabes e persas em busca de incenso, marfim, carapaças de tartarugas, peles de
pantera e escravos em troca de lanças, adagas e machados de ferro, tecidos de algodão, vidros,
vasos de cerâmica, como já nesta época, também,“mel extraído de cana” - o açúcar14 .
As impressões que os povos detêm sobre si em relação ao outro, em face de tais contatos, de
há muito parecem estar marcadas pelo etnocentrismo, contudo, o xenofobismo e o protorracismo
ao que tudo indica tornar-se-iam mais comum à medida que houve maior intensificação do
comércio humano15 .
Portanto, quando pensamos nas relações étnico-raciais e a história da África o que se pode
verificar é que, a partir da descoberta e a conquista do novo mundo, a Europa se viu como demiurgo
da humanidade e, assim, auto se encarregou da tarefa de “[...] formular uma nova visão de mundo,
capaz de compreender, explicar e universalizar o processo histórico”16.
Do ponto de vista das questões relativas à educação e às relações de dominação, estes
anseios - materializados em práticas de ensino-aprendizagem - a partir da ideia de objetividade e
da lógica das verdades absolutas em favor da herança do “adulto branco europeu”, ainda em nossos
dias manter-se-ia como ordem de justificação do discurso da supremacia branca: modernização e
legitimação dos processos de exclusão-inclusão, negação, invisibilidade e silenciamento.
Em outras palavras,para efeito de investigação e análise sobre o processo de desafricanização
pautado no modelo da modernidade colonialista e dos estereótipos vinculados ao fenótipo, há
muito não causa estranheza serem essas as referências tidas como prática regulatória de comum
uso de ensino-aprendizagem. Uma ordem que tem na hierarquização das relações de força das
classes sociais e dos sentidos, a ideia de distinção lidas a partir do conjunto de caracteres que os
atores portam ao ocupar espaços e a desenvolver o que denomina-se navegação social.
Em contraposição a tais práticas, a afrocentricidade se apresenta, assim, como uma
concepção epistemológica outra para entender e contrapor-se a prática acadêmico colonizadora,
ou seja, as práticas de negação do africano e dos povos africanos dispersos no mundo. Bem como,
permitir o desenvolvimento da crítica à desmoralização que encerra cilíndrica e psiquicamente
os povos da África e os povos afrodiaspóricos a aceitarem, em parte, a explicação que a história
europeia17 oferece continuamente como troça e desdém através dos currículos escolares e da
mídia.

2 Vantagens contemporâneas projetadas a partir de épocas pretéritas

Por que riem da África? Essa pergunta que dá título a escrita de Silva (2007), parece-me

14 Silva (2009)
15 Patterson (2008) observa que leituras apressadas sobre a escravidão no “novo mundo” levam a entender que esta foi a
única no tocante à carga extra de racismo que carregavam escravos e libertos, mas ao contrário do que possa parecer, a mácula
por ser ou ter sido escravo é tão antiga como a própria escravidão. Ambos negativos, o status de ser escravo e estrangeiro, como
adverte Moore (2012), contribuiria, inclusive, para com a base intelectual e moral do racismo greco-romano, distinguindo-o dos
demais racimos como o sofrido pelos eslavos.
16 Hernandes (2008, p. 17).
17 Rodney (1975)

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Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

oferecer, em sua formulação, um dos pontos fundamentais para lidar com a temática da teleologia
e seus usos na interpretação e compreensão daquilo que nos é, insistentemente, apresentado
como digno de exotismo, opacidade e invenção.
“A invenção da África”, assim como, “A África que incomoda” e, ou então, “Como a
Europa subdesenvolveu a África” parece-me guardar em seus títulos a pergunta em comum feita
por Silva. Assim como, também, a tentativa de identificar e apresentar a crítica da gênese dos
efeitos e sentidos que insistem em se fazer como algo ausente, ainda que a legitimar vantagens
contemporâneas projetadas a partir de épocas pretéritas.
Nesse sentido é que se pode ver em tal riso, enquanto sentimento e típica expressão
humana, algo a mais do que o sentido de inocência ou de alegria. A partir de tal riso é possível
mesmo, observar a expressão manifesta de juízos de valores classificatórios: uma operação
mental surgida sob o efeito de situações que permitiriam identificar aquilo que provoca o ridículo;
o escárnio e a sua adjetivação vinculada às ações de alguns homens - ações essas estúpidas,
bestiais, imbecis, néscias, infantis, inconvenientes e, entre outras, insanas.
Rir do continente africano e o seu porquê, leva-me a perguntas outras sobre o efeito e os
sentidos de tal riso. Quer dizer, de quais assuntos ou situações riem da África? Teria o riso da África
uma finalidade como causa?
Ainda que “o riso do outro” possa se apresentar como efeito do disfarce daquilo que não
se sabe18. O que fica evidente, de acordo com Mudimbe (2013, p.10), é que as imagens ocidentais
de África não se reduzem à produção discursiva sócio histórica e aos propósitos de antropólogos,
missionários, ideólogos, ou o ponto de vista de opinião, ciência ou configuração intelectual
genérica, mas também a “[...] discursos de sociedades africanas, com culturas enquanto marcas
de algo mais”. E assim, a luz dos olhos ocidentais voltados para o continente africano, esse autor
revela-nos as sutilezas discursivas do século XVI materializadas e combinadas de modo a darem
o testemunho sobre a originalidade e distinção do ocidente.

Essas evidências dentre outras fontes, conforme Mudimbe, poderiam ser reconhecidas tal
como acima, na gravura feita em 1509, sobre uma família negra composta por quatro integrantes

18 Silva (2007)

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nus “na Guiné” (IN GENNEA).
De autoria de Burgkmair (1473-1531), em sua proposta de ilustrar a escrita de Balthasar
Springer sobre a primeira viagem dos comerciantes alemães de Augsburg para África. Essa pintura
proporcionaria o que se pode compreender, ainda segundo Mudimbe, como a dupla representação
do homem negro: a assimilação dos corpos exóticos, sob modelo da pintura italiana do século XVI,
em seu objetivo de neutralizar todas as diferenças em favor da igualdade simbolizada pela norma
branca19, assim como, a distinção e as separações a partir das similitudes.
Em resumo, observa Mudimbe (2013, p.24):
[...] posso afirmar que na pintura de Burgkmair existem duas actividades representativas:
por um lado, sinais de uma ordem epistemológica que, silenciosa mas imperiosamente,
indicam os processos de integração e diferenciação das figuras no âmbito da igualdade
normativa; por outro lado, a excelência de uma pintura exótica que cria uma distância
cultural, graças a uma acumulação de diferenças acidentais, nomeadamente, a nudez, a
negrura, o cabelo encarapinhado, as braceletes e os fios de pérolas.

Ainda sobre essa perspectiva e de maneira mais incisiva, Ake (2016) apresenta-nos o
fato da teleologia se encontrar disseminada teórica e metodologicamente nos clássicos das
ciências sociais e, com ela, a análise desenvolvimentista ou historicista da sociedade. O que, por
esta, equivaleria a dizer que o desenvolvimento dos grupamentos humanos corresponderia à
capacidade de prever ou antever a passagem de duas ou mais etapas, isto é, a de seguirem de
uma etapa menos desejável de ser para uma outra mais desejável como um fim a ser alcançado.
A teleologia, de há muito destaque no pensamento ocidental, encontraria expressão nos
escritos de Platão (429 - 347 a. C), Aristóteles (384 - 333 a.C), Santo Agostinho (324 - 430),
Aquino (1225 -1 274), Jean Quidort (1255 - 1306), Dante (1265 -1321) e Marcílio de Pádua (1275-
80 - 1342-43); ou seja, da filosofia clássica à medieval, desde sempre, manter-se-ia presente. Daí
os cientistas sociais europeus, a partir dos clássicos do pensamento social, darem a impressão de
que todas sociedades devessem conceber ou deterem como propósito ser como as sociedades
ocidentais, pois ali tais etapas já teriam sido alcançadas.
Entre os gregos, para lembrarmos uma das suas maiores preocupações, o movimento e
toda a alteração da realidade encontraria explicações na teoria das quatro causas20. A “causa
final” sendo ela a de maior relevância - dentre as demais causas concebidas por Aristóteles -
desde então, apresentar-se-ia como princípio organizador de propostas de direcionamento das
finalidades, disposição que iria se tornar de uso mais que comum e em comum entre sociólogos
europeus ao equipararem à sociedade europeia, no ápice de sua evolução, à sociedade ideal.
O tempo e sua instrumentalidade enquanto duração parece-me ser, assim, de fundamental
importância para entender a definição das trajetórias e a posição ocidental em face das sucessões
dos acontecimentos: a sua irreversibilidade diante do desenvolvimento social21. O que permitiria

19 Há que se observar que tais objetivos encontravam-se intimamente vinculados ao ideário religioso e o professar pela
origem em comum de todos os seres humanos, ainda que diante das diferenças de distribuição geográfica e diversificação racial e
cultural.
20 Chauí (1996)
21 Elias (1998)

Página 929
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

dar materialidade, por essa lógica, à ideia de progresso enquanto sucessão de etapas, bem como
entender, o que acontece a aqueles que não buscam ou que não se encontram alinhados a tais
fins.
Na sociologia de Durkheim o tempo, quando da comparação do organismo biológico com
a vida social, do mesmo modo, possibilita dar entendimento à duração e a finalidade da maturação
progressiva. E, como reflexo de tal finalidade, o conceito de função permitiria ao analista social dar
cognoscência às atividades e o grau de complexidade alcançada pelas sociedades modernas em
contrapartida às sociedades “atrasadas” ou tradicionais.
No caso das sociedades dos países africanos e demais países do terceiro mundo, sob o
enfoque das categorias desenvolvimentistas das sociologias pautadas nos modelos funcionalistas
e historicistas, ao insistirem em suas análises de que se encontrariam nas etapas mais baixas do
critério de desenvolvimento. Por assim dizer, essas sociedades não só seriam convencidas, mas
também ver-se-iam persuadidas a adotarem o raciocínio sobre modo como deveriam lidar com o
tempo e seu desencantamento - a sua racionalização22.
O desenvolvimento enquanto processo em que os povos buscam suas aptidões em viver
as suas vidas de maneira mais satisfatória não é algo exclusivo ou restrito de um determinado
grupamento humano. No entanto, o que torna a África diferente dos demais continentes é que
foi ali onde o desenvolvimento físico do homem se mostrou, antes de todos outros, diferente dos
demais seres vivos.
A partir desta questão, passo então a discorrer sobre a ideia da origem humana em conjunto
com a ideia de desenvolvimento tendo em conta a questão espaço-temporal e demais questões
anteriormente apontadas à luz da pergunta heurística que segue a soar: Por que riem da África?
Os escritos sobre a origem do homem ter surgida no continente africano, em face da maior
divulgação de tais evidências, apontam eles para assertivas de ser a África não só o berço humano,
mas, também e principalmente, o espaço-temporal que possibilita repensar e resgatar as ciências
humanas.
Quer dizer, o continente africano enquanto “um enorme regaço materno” se apresenta como
espaço-território da origem humana e de sua reprodução do ponto de vista tanto antropogênico
como cosmogônico, civilizatório e de tradução do mistério do tempo.
Do mesmo modo, segundo Moore (2010), a África reúne sobre si a “característica de
ser ela um verdadeiro escândalo geológico”. Pois se por um lado causa incômodo à eficiência
instrumental da racionalidade científica, por outro, o continente reúne e traz consigo o que entendo
corresponder a própria oposição entre “história verdadeira” e “história falsa” enquanto narrativas
capazes de revelarem modelos de interpretação adotados, tais como o eurocentrismo.
A origem humana traz consigo, antes de tudo, os caráteres marcantes de pertencimento,
deferência e distinção. No caso da cultura ocidental, o desejo de conhecer a origem das coisas
apresenta-se como característica marcante sendo que foi nos séculos XVIII e XIX, sobretudo

22 Bourdieu (1979)

Página 930
nesse último, que vieram se dar as investigações não só sobre o universo, mas também, sobre as
origens das espécies e do homem; da sociedade e da religião, bem como da linguagem e de todas
as instituições humanas.

Conclusão

A infância humana, a não ser para a psicanálise proporcionaria uma espécie de beatitude,
ao passo que para as demais ciências da vida, como observa Eliade (1989), apresentar-se-ia como
uma espécie de precariedade e de imperfeição. O que as levariam a se inspirarem nas ciências da
natureza: a física e a biologia, essa última em particular – a partir da ideia de evolução – possibilitou
a conversão de toda história humana a uma história natural, enquanto causa final.
Enquanto local de experiências daqueles que são tidos e vistos como periféricos, a Europa
a partir da instrumentalização do espaço-temporal forjou sua identidade moderna. A localização
do continente africano enquanto recurso conceitual e de poder ser ele o berço da humanidade,
em face das descobertas científicas atuais, atribui uma força de orgulho aos africanos e aos
afrodiaspóricos capaz de fazê-los gargalharem daqueles que riem da África.

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Página 933
Índices
Autor(a) Daiane Franciele Morais de Quadros 388
Dandara Manoela dos Santos 364
Abrahão de Oliveira Santos 88 - 767
Daniela Rieg 345
Adilce Teresinha Flores Woichiewoski 671
Darlam do Nascimento 178
Ailyn Amanda Rojas Covalski 748
Díjna Andrade Torres 323
Alex Sander da Silva 41
Dimas Floriani 411
Amabile Costa 699
D. J. F. Marioto 153
Ana Carolina Marquevicz 756
Djiovanni Jonas França Marioto 627 - 915
Ana Christina Vanalli 462
Dulce Mari da Silva Voss 78 - 270
Ana Júlia Pacheco 809
Edimara Soares 482
Ana Paula Evaristo Russi 314
Eliane Quincozes Porto 671
Ana Paula Freitas dos Santos 51
Eliane Santana Dias Debus 14
Andrea Maila Voss Kominek 462
Elison Antonio Paim 566 - 581 - 608
Andressa Pinto da Costa 78
Eliziane Tamanho de Oliveira 779
Angela Maria de Souza 905
Emiko Liz Pessoa Ferreira 445
Ângela Pereira Oliveira 732
Fernanda Lima da Silva 422
Angie Edell Campos 205 - 294
Fernanda Mara Borba 719
Antonio Donizeti Fernandes 922
Franciéle Carneiro Garcês da Silva 700
B. G. P. Reis 153
Gabrielle Dutra 756
Camila da Silva Santana 592
Gioconda Ghiggi 883
Carla Brito Sousa Ribeiro 681
Gisele Karine Santos de Souza 700
Carla Rosane Bressan 615
Gisely Pereira Botega 493
Carla Santos Custodio 838
Graziela Lucchesi Rosa da Silva 801
Carla Silva de Ávila 455
Igor Luiz Rodrigues da Silva 334 - 472
Carolina Cavalcanti do Nascimento 652
Ivanilde de Jesus dos Santos Ferreira 433
Carolina Cristina dos Santos Nobrega 217
Izabela Fernandes Souza 196
Carol Lima de Carvalho 251
Izabel Espindola Barbosa 671
Cátia Simone Ribeiro Barcellos 455
Izaque Pereira de Souza 893
Cíntia Cardoso 542
Jade Alcântara Lobo 905
Clarice Fortunato Araújo 872
Jeruse Romão 135
Claudete Gomes Soares 161
Jesse da Cruz 135
Cláudia Cristina Rezende Puentes 334 - 472
Jéssica Vicência das Chagas 41
Cláudia Moscarelli Corral 555
Joana Célia dos Passos 433 - 445
Clemilda Santiago Neto 482
João Alberto Rodrigues 121 - 304
Cristiane Dias 634
Josafá Moreira da Cunha 627
Cristiane Mare da Silva 231
Josiane Beloni de Paula 566

Página 935
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Júlio Cesar da Rosa 708 Paulo Roberto Cardoso da Silveira 262


Julio Corcino Rodrigues Mota Junior 627 - 915 Paulo Tiego Gomes de Oliveira 641
Kátia M.B.F Pessoa 829 Rafael Coutinho Paulo 262
Larissa Ribas dos Santos 663 Raquel Barbosa 224
Lázaro de Oliveira Evangelista 121 Renata Schlickmann 756
Lázaro Evangelista 304 Roberto Jardim da Silva 859
Lílian Amorim Carvalho 401 Roselete Fagundes de Aviz 281
Lucimar Rosa Dias 542 Sandra Regina Fontes 790
Lucy Cristina Ostetto 111 Sandra Santos Costa 615
Luis César Rodrigues Jacinto 270 - 555 Sara da Silva Pereira 32
Luzinete Simões Minella 372 Sílvia Regina Teixeira Christóvão 503
Maíra Pires Andrade 849 Tamna Amandio 790
Marcia Barragan Goulart 515 Tânia Aretuza Ambrizi Gebara 532
Margoth Mandes da Cruz 801 Tatiana Valentin Mina Bernardes 14
Maria de Fátima Monteiro Alves 555 Tatiane Melissa Scoz 100
Mariah Amanda da Silva 355 Tatiane Valéria R. de Carvalho 66
Maria Luísa Pereira Anderson 524 Tautê Frederico Oliveira 411
Mariana Probst Luiz 790 Teresa Kazuko Teruya 893
Mariana Vitória da Silva Penha 345 Thais Rodrigues Santos 205 - 294
Marielda Barcellos Medeiros 172 Tulane Oliveira da Paixão 88 - 767
Marina Gonçalves Ribeiro 532 Vanessa de Senia Monteiro Carneiro 32
Marinês Ribeiro dos Santos 21 Vanessa Maria Rodrigues Viacava 66
Marta Iris Camargo Messias da Silveira 515 Vinícius Gomes 820
Mateus Felipe Socha 524 Wellington Junior Jorge 893
Maybel Oliveira 189
Nathália Dothling 241
Neiva Krewer 741
Neuri José Andreola 161
Norma Soares Flores 262
Odair de Souza 581
Patrícia Adriane Elias Pisani 21
Patrícia da Silva Pereira 573 - 690
Patrícia de Moraes Lima 314
Patrícia Magalhães Pinheiro 608
Paulino Cardoso de Jesus 462
Paulino de Jesus Francisco Cardoso 345 - 699

Página 936
Palavra-chave Candaces 838
Candomblé 153 - 323
A Alvorada 732 Capoeira 78
Abordagens poéticas 231 Carnaval 66
Ações Afirmativas 345 - 355 - 364 - 388 - 411 - 433 Carolina Maria de Jesus 51
-
445
Cartas de Alforria 741
Adolescentes 135
Ciberespaço 542
África 809 - 838
Cidadania 524
Afrobetização 51
Cinema 820
Afro-brasileira 701
Colonialidade de poder 111
Afrocentricidade 153 - 922
Comunidade 634
Afrocentrismo 915
Comunidade Quilombola 241
AfroSul/Ọ̀dọ́mọdé 690
Concursos 189
Águas Mornas 756
Corpo Negro 135
AMAB 251
Cotas 663
Ambiente escolar 641
Cotas Raciais 462
Ancestralidade 78
Cotistas raciais 372
Antropologia Africana 915
Criança Negra 542
Antropologia colonial 915
CTS 652
Antropologia Urbana e da Memória 178
Cultura Afro-brasileira 51 - 78 - 121 - 262 - 270 - 555
ARQIN 524
Cultural 304
Arqueologia 719
Cultura material 21
Arte 111
Curadoria 681
Arte Afro-brasileira 681
Currículo 51 - 555
Balé Bolshoi 135
Currículo escolar 401
Batuque 262
Currículo na educação Infantil 224
Beleza 189
Cursos Técnicos 883
Biblioteca Escolar 790
Cútis 641
Biblioteca Especializada 701
Dança 135
Black identity 304
Decolonizar 566
Branqueamento 859
Desafricanização 922
Branquitude 756 - 779 - 790
Descolonização da antropologia 915
Brasil 809
Desigualdades Raciais 652
Cabelo 21
Deslocamento 829
Cacumbi/Catumbi 281
Diálogo de Epistemologias 411
Campos de Palmas 741
Diáspora 472

Página 937
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Diáspora Africana 719 Feminismos Negros 231


Direitos das comunidades remanescentes 515 Festa 503
Educação 314 - 592 - 627 - 671 - 915 Formação Identitária 41
Educação a distância 883 Fotografia 482
Educação Ambiental 652 Gênero 21 - 217 - 281 - 372
Educação Escolar Quilombola 482 Geografia 355
Educação étnico-racial 401 Griots 748
Educação Física 217 Griots-Educadores 573
Educação Infantil 32 Haiti 161
Educação para as Relações Étnico-raciais 532 História 515 - 708 - 820
Educação Superior UTFPR 462 História Africana 849
Egresso 433 - 445 História Afro-Brasileira 849
Emanoel Araújo 681 Historiografia 801
Empoderamento 51 - 196 Identidade 262 - 503 - 838 - 893
Empreendedorismo Social 634 Identidade Negra 51 - 78 - 153 - 304 - 592
Encontro de Saberes 411 Identidade Paranaense 66
Ensino de artes visuais 121 Identidades 708
Ensino de Geografia 482 Identidades plurais 217
Ensino Superior 345 Imigração 161
Escravidão 741 Imigrantes africanos 748
Espaço 100 Imprensa negra 732
Estado da arte 532 Indígena 445
Estado de Conhecimento 314 Indígenas 433 - 455
Estereótipo 872 Infância 224 - 314
Estéticas decoloniais 111 Infâncias 690
Estudos Africanos 820 Influencia social 304
Etnia 51 Informação 701
Étnico-raciais 627 Instalação 681
Etnografia 905 Interculturalidade 608
Eugenia 801 Interseccionalidade 178 - 241
Eurocentrismo 922 Invisibilidade 281 - 671
Experiência 41 Jovem 634
Experiências de Mulheres Negras 231 Jovens Negros 135
Favela 51 Juventudes 615
Feminismo 196 Juventudes Negras 592
Feminismo Negro 241 - 251 Laguna 708

Página 938
Lei 10.639/03 555 - 627 - 756 - 790 Negras 663
Lei Federal 10.639/03 849 Negras/os 455
Lei Federal nº 10.639 355 Negritude 905
Lei n.º 10.639/03 51 Negro 66 - 445 - 566
Leitura 32 Negros 433
Liberdade 741 Negros LGBT 178
Liderança 634 Núcleo de Estudos Afro-brasileiros 701
Literatura Afro-brasileira 21 - 51 O Exemplo 732
Literatura Autobiográfica 41 Países latinoamericanos 205
Literatura Infantil de temática da cultura africana e Paraná 627
afro-brasileira 32
Patrimônio 472
Literatura Infantil e Juvenil 14
Patrimônio Cultural 719
Literatura Periférica 51
Pedagogia Griot 690
Luta Antirracista 251
Pensamento Social 767
Marcadores sociais 304
Periferia 100
Material didático 883
Permanência 364
Mediação Cultural 196
Pertencimento 51 - 100
Medicina 372
Política Afirmativa 462
Memória 671 - 708 - 748
Política de Cotas 388 - 455
Memória Coletiva 41
Políticas de Ações Afirmativas 455
Mercado de trabalho 433
Políticas públicas 608
Mestres Tradicionais 411
População Africana 701
Método 178
População negra 88 - 893
Midia 893
Pós-colonialismo 829
Mídia 872
Pós-Graduação 445
Mito da democracia racial 859
Prática Docente 555
Movimento Hip-hop 66
Práticas de resistências 566
Movimento Negro 542
Preconceito 641
Mujer Negra 205
Preconceito e discriminação étnico-racial 608
Mulheres Negras 241 - 251 - 905
Preconceitos 372
Mulher Negra 189 - 270 - 872
Pretos Velhos 334
Museu Afro Brasil 681
Pretos-Velhos 294
Música 503
Processos de socialização 493
Não pertença 829
Produção acadêmica dos Colégios de Aplicação
Narrativas 100 Federais 532
NEABI 671 Produção artístico-cultural 905

Página 939
Negras e negros no Sul do Brasil
Desenvolvimento, Patrimônio e Cultura Afro-brasileira

Projetos futuros 372 Sexo Biológico 641


Protagonismo 838 - 859 Símbolos 323
Psicologia 88 Sociabilidade 708
Psicologia Racial 801 Social and cultural influence 304
Psicologia social 767 Social markers 304
Quilombo 493 - 503 - 515 Sociedade 224
Quilombo dos Palmares 472 Subjetividade 88 - 121
Quilombolas 524 Temática africana e afro-brasileira 14
Raça 21 51
-
Terra 524
Racialização 732 Terra Vermelha 196
Racismo 615 - 663 - 779 - 801 - 849 - 872 Terreiro de Umbanda 493
Rappers 100 Territorialidade afrocentrada 573
(Re) contos 14 Trabalho doméstico 241
Relações Étnico-Raciais 217 - 364 - 756 - 790 - 922 Trajetórias 372
Relações Externas 809 Udesc 355
Relações Raciais 161 - 615 - 767 - 883 Umbanda 294 - 334
Religião 334 UnB 411
Religião de Matriz Africana 262 - 294 UNIAFRO/UFRGS 573
Religiões de Matriz Africana 314 Universidade Federal da Fronteira Sul 779
Religiosidade 270 - 281 - 472 Vestibular 401
Representação 121 - 334 Vida Comunitária 270
Representação social 859
Representación social 205
Representativeness 304
Representatividade 304
Resistência 515 - 542
Resolução UNIV N°17/13 2013 388
Resoluções 345
Revista Veja 809
Roda de samba 88
Rosana Paulina 111
Sagrado 323
Santa Catarina 161
São Borja 671
Segredo 323
Serviço Social 615

Página 940

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