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Imagens da imanência
Escritos em memória de H. Bergson
CAPA
Rafael Silva
Sobre imagem do The nobel Foundation (http://nobelprize.org/index.html)
REVISÃO
Cecília Martins
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Carolina Rocha
BELO HORIZONTE
AUTÊNTICA 2 0 0 7
SÃO PAULO
Tel.: 55 (11) 6784 5710
e-mail: autentica-sp1@autenticaeditora.com.br
CDU 11
Ficha catalográfica elaborada por Rinaldo de Moura Faria – CRB6-1006
7 Spinoza
Henri Bergson
19 Atualidade de Bergson
Débora Morato Pinto; Siomara Borba; Walter Kohan
225 Os autores
Spinoza1
Extraído das aulas complementares de filosofia e história da
filosofia por Henri Bergson – Clermont-Ferrand, 1884-1886
1
In: BERGSON, Henri. Cours III: Leçons d’histoire de la philosophie moderne. Théories de l’âme.
Paris: PUF, 1998, p. 86-96. Para esta tradução foram omitidas todas as notas do autor e dos
editores a fim de tornar a leitura do texto mais fluente. As notas aqui constantes são, portanto,
todas de minha autoria e têm por objetivo situar a discussão e apontar para algumas das
diferenças fundamentais entre as concepções de Spinoza e Bergson. As notas contêm, em sua
maioria, comentários que visam auxiliar um eventual estudo comparativo entre bergsonismo
e spinozismo.
2
Essa obra de juventude é por vezes traduzida como Tratado da correção do intelecto. O livro
permaneceu, contudo, inacabado – provavelmente porque Spinoza se sentiu instado a se
dedicar ao diálogo com o cartesianismo e a questões de natureza política. O período de sua
redação se situa entre 1661 e 1663.
Sua filosofia é ali apresentada de modo geométrico. A Ética procede por defi-
nições, axiomas, demonstrações etc.
3
Caráter que é bem ressaltado por Gilles Deleuze, desde o título de seu pequeno livro sobre
Spinoza (Spinoza. Filosofia prática), cuja primeira redação data de 1970. Porém, mais impor-
tante do que o mero título da obra é o tom assumido ao longo de suas páginas, em particular
no capítulo VI – “Spinoza e nós” – na sua última página: “O livro V [da Ética de Spinoza] é
a unidade intensiva extrema, mas porque é também a ponta intensiva mais justa: não há ali
mais nenhuma diferença entre o conceito e a vida”.
ainda mais obscura do que já é para o senso comum a questão da criação. Ele
colocou no mundo criado a necessidade absoluta e universal, e ocorre que essa
necessidade aparece como efeito de um capricho divino. Mais do que isso, é
preciso que Deus intervenha sem cessar no mundo, para manter o estado atual
das coisas, para conservar as mesmas leis. Enfim, se Deus cria o mundo sem
cessar, com tudo o que ele contém, ele também não cria nossas ações? E
como, a partir de então, compatibilizar a liberdade do homem com a criação
contínua?4 Essas três dificuldades graves, Spinoza as contorna por meio de
uma concepção nova, uma concepção original: primeiramente, da relação en-
tre real e possível; em segundo lugar, da relação de causa e efeito; em terceiro
lugar, da relação do infinito ao finito. Essa concepção é essencialmente mate-
mática, e o spinozismo não é inteligível para aquele que não acompanha com
precisão a verdadeira natureza das proposições matemáticas e, em particular,
da matemática cartesiana. Algumas considerações preliminares são, portanto,
indispensáveis:
1º) Os objetos que o matemático estuda são objetos reais num certo sen-
tido, pois a linha reta, a circunferência, a elipse etc. são verdadeiros seres para
ele. Mas é preciso observar que a realidade desses seres converge com a sua
simples possibilidade: pelo mero fato de que são possíveis, existem, no sentido
matemático da palavra “existir”. Quando o geômetra quer provar a existência
de duas retas paralelas, ele estabelece que é possível conceber duas retas situa-
das no mesmo plano e que não se encontram. E, com efeito, duas perpendicu-
lares a uma mesma reta satisfariam essa condição. Duas retas paralelas são,
portanto, possíveis. Isso basta, e, a partir de então, as paralelas existem. Mais
do que isso, essa possibilidade, que existe desde sempre e é até mesmo inde-
pendente do tempo, permite que se diga que o paralelismo de duas retas sem-
pre existiu: ele é eterno. O ato pelo qual se estabelece a possibilidade de uma
essência matemática é, portanto, o mesmo que aquele pelo qual se constata sua
existência e até mesmo sua eternidade.
2º) Quando a definição de uma figura geométrica é enunciada, extrai-se
um número indefinido de teoremas que exprimem todas as propriedades da
figura. Todos esses teoremas existiam na definição de onde são extraídos e não
fazem senão exprimir a infinita multiplicidade latente na unidade. Um mate-
mático de inteligência infinita teria acesso a todos esses teoremas no próprio
seio da definição a qual eles equivalem. Essa multiplicidade indefinida é equi-
valente a essa unidade. Está claro que é a definição que cria os teoremas. Eles
são o seu efeito, já que não existiriam sem ela. Mas essa criação não é um ato
4
Ou criação “continuada”, que, para alguns comentadores, traduz melhor a concepção cartesiana.
Resumo da Ética
Spinoza define a Substância como “o que existe em si e é por si concebi-
do”.5 E se aceitarmos dar à palavra “existência” seu sentido matemático (o que
é o postulado oculto de todo o spinozismo), pode-se concluir dessa definição
que há uma Substância. Com efeito, se uma coisa não é concebida por si
própria, ela é concebida por alguma outra coisa, e é forçoso que se chegue a
uma coisa que só é concebida por si mesma. Portanto, a Substância existe.
5
Ética I, definição 3.
10
6
O termo utilizado por Bergson é “indéfinité”.
7
O que elimina qualquer hipótese de transcendência ontológica, isto é, qualquer possibilidade
de algo (um modo) separado desta realidade que vivemos, já que, como se vê logo a seguir, os
modos exprimem os atributos, e a substância se dispensa inteiramente neles. Na filosofia
bergsoniana, porém, essa hipótese não é completamente descartada, na medida em que a
realidade do mundo, dita modal por Spinoza (natura naturata), não está toda ela virtualmente
dada na eternidade divina da natura naturans, mas se dá a cada momento como novidade
absoluta, fruto de um jorrar contínuo operando entre as coisas do mundo. A realidade é
duração, mas a duração é expansão, e não continuação indefinida de certa ordem causal eterna.
11
Natureza naturante
Deus que é natureza naturante se exprime em seus Atributos em número
infinito entre os quais conhecemos apenas o Pensamento e a Extensão.
1º) A Extensão como atributo, isto é, a Extensão em Deus, não é a exten-
são de que temos idéia. A extensão que conhecemos é composta de uma mul-
tiplicidade de partes. A Extensão divina ou Extensão como atributo é una e
indivisível. Mas, poder-se-á dizer, se a extensão que conhecemos é um modo
da Extensão como atributo, como a primeira pode ser divisível e a outra indi-
visível? Essa dificuldade, colocada ao spinozismo desde muito tempo, está
longe de ser insuperável. Os modos não são partes do Atributo. Se os corpos
que percebemos fossem partes da Extensão divina, é por demais evidente que
esta seria divisível como esses corpos. Os modos desenvolvem o conteúdo do
Atributo, mas não se assemelham a ele. É assim que, se supusermos todos os
Cf. A evolução criadora, a comparar com as definições de eternidade e duração em Spinoza (Ética
I, definição 8; e II, definição 5). Está claro que não se trata, para Bergson, de afirmar outra
realidade além desta, mas de estabelecê-la como duração absoluta e eterna cujo sentido é
oposto ao da repetição material. Desse modo, Bergson inverte o princípio da filosofia de base
platônica em termos do privilégio que ali é dado ao imutável, vinculando essa esfera à materia-
lidade, que passa a exercer um papel secundário e dependente: “Toda esta filosofia que
começa com Platão para desembocar em Plotino é o desenvolvimento de um princípio que
formularíamos assim: ‘Há mais no imutável do que no movente e passamos do estável ao
instável por uma simples diminuição’. Ora, é o contrário que é a verdade” (O pensamento e o
movente, p. 245). Mas esse procedimento é precisamente o que permite pensar a eternidade-
duração bergsoniana como um princípio superior e independente, reintroduzindo a transcen-
dência em outros moldes, conforme algumas tendências “espiritualistas” em que o mundo
externo à consciência é apresentado como ilusório.
12
8
Ética, II, proposição 44, escólio.
9
“Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é
determinado a agir” (Ética, I, definição 7).
10
No original em francês, “personnalité”.
13
Mas ele não é uma pessoa, porque a Substância não é uma propriedade, mas
sim uma negação de toda qualidade.
Natura naturada
A natureza naturada não guarda com a natureza naturante as relações
que se dão entre uma coisa criada e seu Criador. Ela lhe é co-eterna e se segue
necessariamente da essência de Deus, da qual é expressão múltipla e indefini-
da. A natureza naturada é um conjunto de Modos, Modos da Extensão de um
lado, do Pensamento de outro.
1º) Os corpos. Os Modos da Extensão são os corpos. Retomando nesse
ponto as idéias de Descartes e as desenvolvendo, Spinoza representa o univer-
so material como um sistema indefinido de elementos extensos submetidos a
leis necessárias. Tudo se explica mecanicamente, os corpos viventes assim
como os demais corpos.11 Mais do que isso, todos os corpos vivem de uma
certa maneira, pois a todo corpo responde uma idéia que é como a alma dele.
Mas, como também veremos, não pode haver nenhum contato, nenhuma co-
municação entre as idéias e os corpos. Além disso, nada é mais absurdo,
segundo Spinoza, do que crer numa finalidade na natureza. A finalidade é a
idéia penetrando na matéria. Ora, entre os Modos do Pensamento e os da
Extensão toda comunicação é impossível e inconcebível. Os estados dos cor-
pos e suas mudanças se explicam, portanto, por causas puramente mecânicas,
e um Modo da Extensão não pode achar sua explicação e sua razão de ser
senão em outros Modos da Extensão.
2º) As idéias. Os Modos do Pensamento são as idéias. Da mesma forma
que o atributo Extensão se exprime numa infinidade de modos extensos, assim
também o atributo Pensamento se desenvolve numa infinidade de idéias. Da
mesma forma que todo modo da extensão se explica por modos da extensão,
assim também toda idéia encontra sua razão em outras idéias. Essa é a razão
pela qual os corpos não poderiam influir nas idéias, assim como estas não
podem exercer influência sobre os corpos. De que maneira, então, conhece-
mos os corpos, e como se explica a ação aparente do pensamento sobre as
11
Pode-se dizer que nisso reside o essencial da crítica que Bergson dirige ao spinozismo. Para
o filósofo francês, Spinoza não levou a intuição como síntese unificadora dos fatos da consciên-
cia até o final e, por causa disso, foi incapaz de descobrir a duração absoluta, isto é, uma
eternidade-duração independente dos movimentos materiais. A razão disso estaria no fato de
Spinoza ter ficado preso à pesada massa de conceitos herdados do cartesianismo e do aristote-
lismo. Haveria, portanto, um contraste entre a forma e o fundo da Ética: entre a intuição de
auto-criação da realidade e a tendência mecanicista que esmigalharia a consciência ao apre-
sentá-la como coextensiva à matéria (cf. “A intuição filosófica”, in: O pensamento e o movente).
14
coisas e das coisas sobre o pensamento? É que a série dos Modos do Pensa-
mento e a série dos Modos da Extensão são duas séries paralelas. Na realida-
de, os Modos do atributo Extensão desenvolvem e exprimem todo o conteúdo
do atributo Extensão; os Modos do Pensamento exprimem todo o conteúdo
do atributo Pensamento; e como o Pensamento e a Extensão são, por sua vez,
apenas duas expressões equivalentes da essência da Substância, segue-se que,
para todo modo extenso deve corresponder um modo do pensamento e reci-
procamente. Todo corpo também responde a uma idéia, e toda idéia, a um
corpo. A alma humana não é outra coisa senão a idéia do corpo ao qual ela se
encontra ligada. Como diz enfaticamente Spinoza: “ordo et connexio idearum
idem est atque ordo et connexio rerum”.12
Segue-se daí que, no nosso pensamento em particular, não podem haver
idéias que não representem alguma realidade e, inversamente, nada pode acon-
tecer ao nosso corpo de que nossa consciência não esteja advertida. E, no
entanto, entre o corpo e o pensamento não há comunicação possível. Supo-
nhamos, para compreender a concepção spinozista das relações entre a alma e
o corpo, a idéia do círculo se exprimindo, de um lado, por uma equação
algébrica e, de outro, por uma definição geométrica; se desenvolvemos essa
definição em teoremas que chamaremos A1, A2, A3, A4 e se desenvolvemos
essa equação em equações que chamaremos a1, a2, a3, a4, os termos a3 e a4,
por exemplo, representarão sob forma algébrica as mesmas coisas que os ter-
mos A3 e A4 representam sob forma geométrica, pela razão bastante simples
de que as duas séries desenvolvem e exprimem em duas línguas diferentes a
mesma essência da circunferência. Entretanto, nem uma equação poderia in-
fluir sobre uma figura nem uma figura sobre uma equação, porque a forma e
a quantidade são dois atributos diferentes no sentido spinozista da palavra. É
dessa mesma maneira que todo corpo tem sua idéia e que toda idéia tem seu
estado corporal. A correspondência dos Modos do Pensamento e da Extensão
se explica, portanto, por uma harmonia preestabelecida e pelo mero efeito do
desenvolvimento necessário da essência da Substância.13
12
“A ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas” (Ética, II,
proposição 7).
13
A utilização do termo “harmonia preestabelecida” parece um pouco forte para designar o
necessitarismo spinozista. Ela talvez se explique pela aproximação que Bergson fará posteri-
ormente entre Spinoza e Leibniz: “se eliminada das duas doutrinas [de Spinoza e Leibniz] o
que lhes dá a animação e a vida, se retemos apenas a ossatura delas, temos diante de nós a
imagem que obteríamos se olhássemos o platonismo e o aristotelismo através do mecanicismo
cartesiano. Estamos na presença de uma sistematização da nova física, sistematização cons-
truída com base no modelo da antiga metafísica” (A evolução criadora, p. 375). Ao situar
Spinoza dentro da órbita greco-cartesiana, fica realmente difícil compreender sua filosofia
como distante do mecanicismo e distinta de uma mera sistematização da ciência de sua época.
15
Todavia, a realidade ou Substância spinozista é uma totalidade infinita de causas que, por isso
mesmo, não se coaduna a idéia mecanicista de leis causais discretas e independentes umas das
outras, capazes de assegurar regularidade absoluta, como na imagem do tic-tac de um relógio.
Eis porque Spinoza não necessita recorrer a um Deus de tipo leibniziano para assegurar a
liberdade nem tampouco à tese de uma harmonia preestabelecida que dê conta da relação
entre Pensamento e Extensão. Parece bastar – ao contrário do que supõe Bergson, insatisfeito
com a tese paralelista – o que ele próprio chama, aqui, de “desenvolvimento necessário da
essência da Substância”.
14
“Na natureza nada existe de contingente” (Ética, I, proposição 29).
15
Aqui, mais uma vez, creio que falar de “emanação” no contexto do spinozismo parece um
pouco exagerado, na medida em que isso tende a aproximar demais a doutrina neoplatônica de
Plotino da concepção de Spinoza. No entanto, como bem mostrou Deleuze em seu livro maior
sobre o filósofo holandês (Spinoza e o problema da expressão, capítulo XI: “A imanência e os
elementos históricos da expressão”, p. 153-169), há duas diferenças extremamente importan-
tes a se destacar entre a idéia de emanação a partir de um Princípio infinito e a idéia de imanência
do Princípio-Substância infinita nos modos vistos como suas afecções. É bem verdade que o
Princípio, compreendido tanto como causa emanativa quanto como causa imanente, perma-
nece em si ao produzir. Contudo, na causa emanativa, o efeito produzido não reside em
nenhum momento nela própria (1). Segundo a fórmula plotiniana: “é porque nada está nele
16
finitas que equivale a esse Princípio. Obtém-se, assim, a idéia adequada, e não
mais inadequada, do objeto pensado.
Entre as idéias inadequadas, é preciso colocar as paixões que exprimem
nos modos do Pensamento as modificações que o corpo recebe dos demais cor-
pos. É ao estudo das paixões, da escravidão a que elas nos reduzem e do estado
de liberdade que podemos atingir, que são dedicadas as três últimas partes da
Ética. Spinoza, que trata o livre-arbítrio como uma ilusão ou quimera, não
deixou por isso de escrever um tratado de metafísica que contém um sistema
moral. Mas não devemos achar que Spinoza nos dá conselhos ou mesmo regras
de conduta.16 Tudo o que fazemos se segue necessariamente daquilo que somos,
e todo conselho é inútil, assim como todo lamento acerca do que poderíamos
ter feito é pueril. O papel do moralista é de definir o bem e o mal, os melhores
estados e os que devemos considerar como piores. Trata-se de determinar em
que condições a escravidão é produzida, em que condições se produz o estado
de uma alma liberada do jugo das paixões. Mas o moralista não reforma a
humanidade ao tratar do bem e do mal, assim como geômetra não modifica a
posição de um corpo ao determinar as condições de seu equilíbrio.17
[no Um-Uno como princípio ou causa das causas] que tudo vem [emana] dele” (Enéadas, V, II,
§ 1). Na causa imanente, ao contrário, o efeito está e permanece ali, dentro do – por assim dizer
– processo de produção; ele não sai ou emana da causa como no som emitido por uma corda. O
efeito imanente fica na causa tanto quanto esta permanece em si mesma. Eis porque é impossí-
vel ver na imanência algo da ordem da degradação, como ainda é o caso do neoplatonismo. Em
segundo lugar, a imanência implica uma ontologia em que o chamado Um é apenas uma
propriedade da substância, sem designar um termo superior (Uno) aos seres produzidos. A
imanência estabelece, assim, o princípio de uma igualdade do ser: ele permanece igual em si
mesmo (um), mas está igualmente presente em todos os seres (múltiplo).
16
Trata-se, porém, de um sistema moral-ético que destoa da moral entendida como teoria dos
deveres (segundo um Bem e um Mal) para se transformar em teoria da potência, que parte de
uma análise do desejo. Não se trata apenas – como coloca Bergson – de não dar conselhos ou
afirmar regras de conduta. Importa, sobretudo, recusar a naturalização e reificação dos valores
humanos para pensá-los em termos de variação de potência, um caminho que parece muito
pouco explorado pelo bergsonismo.
17
Uma vez mais, a questão parece ir além dessa comparação com a geometria. O caráter
demonstrativo do encadeamento de proposições sob a forma geométrica aparece, no spinozis-
mo, antes de tudo, como uma escolha teórica. Spinoza não é Galileu. Nesse sentido, não é a
natureza que está escrita em linguagem matemática, mas é o more geometrico que serve de crivo
para nossas idéias acerca da natureza por se elevar acima do nível das percepções primeiras, de
caráter puramente imaginativo ou corporal. Não se trata, é claro, de tentar reformar a huma-
nidade, mas de permitir que os homens compreendam a natureza interna e externa a cada um
deles de modo a permitir que eles sejam determinados mais intrínseca do que extrinsecamen-
te. O necessitarismo spinozista está, portanto, longe de ser uma doutrina que ensina a
suportar tudo que ocorre porque “tem de ser assim”. A descrição feita por Bergson na passa-
gem não ajuda a compreender a diferença fundamental que há entre os homens e os demais
modos (corpos) na filosofia de Spinoza. É o preconceito contra o determinismo (identificado ao
17
Há, com efeito, dois estados possíveis da alma. Quando as idéias inade-
quadas, e mais particularmente as paixões, a constituem essencialmente, ela é
escrava. [Mas] ela é livre quando escapa à paixão, isto é, quando passa da
idéia inadequada à idéia adequada, quando pensa não sob forma finita mas sob
forma de eternidade, sub specie aeterni. O bem e o mal, segundo Spinoza,
devem se definir em termos de aumentos e diminuições de ser, ou seja em
termos de força, e existimos plenamente quando nos re-situamos por meio do
pensamento em Deus, quando nos damos conta da necessidade universal. Se,
portanto, a liberdade consiste, no caso de Deus, na necessidade de seu desen-
volvimento interior, ela consiste, no caso do homem, na consciência que ele
consegue ter de suas relações com Deus, isto é, na consciência da necessidade
a qual ele obedece. É nisso que consiste a liberdade, e é nisso que também
consiste a beatitude.18 A beatitude não é o prêmio pela virtude – diz Spinoza –, ela
é a própria virtude. Pois a virtude é o estado de uma alma que compreende e
sente o parentesco que tem com Deus, estado de uma alma que se encontra,
por assim dizer, recolocada em Deus. Aí também se encontra a eternidade,
pois a eternidade não é algo que é acrescentado à alma e que prolonga de
algum modo sua existência, indefinidamente. Tornamo-nos eternos pelo sim-
ples fato de que, ao pensar as coisas sob forma de eternidade, coincidimos, por
assim dizer, com o eterno. O eterno não vem até nós, somos nós que entramos
na eternidade, pelo simples fato de que, uma vez liberados das paixões, adqui-
rimos algo da liberdade divina.
mecanicismo) que talvez impeça o filósofo francês de melhor avaliar o que está em jogo no
spinozismo e, até mesmo, de ver nele um aliado na afirmação da duração. Um geômetra não
pode, certamente, modificar a posição de um corpo ao determinar as condições de seu equilí-
brio. Ele pode, porém, modificar a posição de seu próprio corpo diante desse outro corpo a
partir da determinação das condições de equilíbrio de ambos os corpos. Ele pode, até mesmo,
descobrir novas possibilidades para o seu próprio corpo em função de um desejo que não se
reduz a uma mera necessidade mecânica dos corpos quaisquer que sejam eles e em qualquer
situação que seja.
18
A beatitude, ou suprema felicidade, não deve ser confundida com o estado de êxtase místico
qualquer que seja ele, mas diz respeito à situação em que passamos a desejar apenas o que
conduz à ação, o que nos convém, o que pode aumentar nossa potência de existir ou de agir.
18
Atualidade de Bergson
Débora Morato Pinto
Siomara Borba
Walter Omar Kohan
19
20
Bergson, em 1959, abre uma nova etapa. A reedição das obras de Bergson a
cargo de André Robinet em 3 volumes permite uma nova difusão do seu
pensamento, que coincide com uma renovação dos leitores. Entre eles, apare-
cem com força Maurice Merleau-Ponty e, particularmente, Gilles Deleuze,
que escreve em 1956 o verbete dedicado a Bergson num célebre dicionário de
filósofos organizado pelo próprio M. Merleau-Ponty1 e um livro, Le Bergso-
nisme, em 1966.2
Desde então numerosos colóquios e encontros internacionais são consa-
grados à obra de Bergson. Entre eles, adquire destaque o Colóquio de Cler-
mont-Ferrand de 1989, em ocasião dos 100 anos da publicação dos Essai sur
les données immédiates de la conscience, um dos últimos textos que se propõe a
pensar as condições de possibilidade de uma filosofia geral. Outros encontros
provêm de diversos campos de saber, como a estética ou a neurologia. Em
abril de 2000 a revista Magazine Litteraire dedica um dossiê inteiro a Bergson.
Atualmente, a obra de Bergson, depois desse percurso alternado de sucesso e
esquecimento, parece ter encontrado certa posição de momento essencial na
história da metafísica.
1
DELEUZE, G. Bergson. In: MERLEAU-PONTY, M. (Org.). Les philosophes célèbres. Paris:
Mazenod, 1956, p. 292-299. [Tradução para o potuguês in: DELEUZE, G. Bergsonismo. São
Paulo: Editora 34, p. 125-139].
2
DELEUZE, G. Le Bergsonisme. Paris: PUF, 1966.
21
3
Intervenção de Bento Prado Junior na abertura do debate realizado em Paris sobre seu livro,
no Collège International de Philosophie em janeiro de 2002. Publicado em Worms, F. (Ed.).
Annales Bergsoniennes I. Paris: PUF, 2002, Épiméthée, p. 331-335.
4
Ibidem, p.331.
22
como bem notou Marilena Chaui, para tornar explícito como “a filosofia de
Bergson cria um campo de pensamento no qual se moverá a filosofia francesa
posterior”,5 operando como “fundo silencioso” na interpretação de autores sem-
pre considerados centrais ao trabalho filosófico da segunda metade do século,
como Husserl, Nietzsche, Marx, Freud e Heidegger. Bergson é o mestre
oculto da suspeita.
Acompanhemos então o trajeto do livro e de sua receptividade nos dois
países. As datas de publicação pedem um comentário: escrito em 1964, em
razão das turbulências e dos prejuízos que a ditadura militar impôs ao exercí-
cio intelectual – particularmente àquele que se praticava no meio acadêmico –,
somente foi publicado em 1989. Muito mais tarde, em 2002, foi publicado na
França, graças ao empenho e à tradução de Renaud Barbaras.6 Com a publi-
cação do livro, concentrado na análise do que podemos chamar “aspectos
transcendentais” da filosofia bergsoniana, encontramos um modo de pensar a
relação estreita entre essa filosofia e a fenomenologia. A convergência está
explícita na necessidade de um retorno à experiência cuja verdade foi de algum
modo perdida ou esquecida, ocultada pela tradição metafísica que formata, às
suas expensas, o vivido, nele inserindo categorias ou conceitos a priori, juízos
antecipadores, prejuízos, numa palavra. Assim, para as duas vertentes filosófi-
cas, a crítica do conhecimento é tarefa imprescindível e mesmo condição do
retorno às coisas mesmas ou à experiência direta em sua temporalidade imediata.
Em Bergson, isso significou denunciar e superar a origem prática do conhe-
cer, que implica negar aspectos da realidade que escapam à determinação
conceitual, isto é, tudo o que, na nossa experiência real, aparecer como mu-
dança, movimento, transformação, dinamicidade, em proveito de uma repre-
sentação estável e tendendo à identidade. A passagem direta de uma represen-
tação comum ou natural do mundo e de nós mesmos à reflexão filosófica que
busca a verdadeira realidade determina as direções da metafísica e da teoria do
conhecimento – a negação da duração está, segundo Bergson, no núcleo da
história da filosofia, é o seu fio condutor. Os filósofos não desconfiaram dos
princípios que os dirigiam quando se colocavam questões radicais e seguiram
assim impulsionados por um motor invisível do pensamento. Trazer à luz os
pressupostos que direcionam a metafísica é a contribuição do trabalho crítico,
é o coração da vertente negativa do bergsonismo. A crítica do conhecimento
consiste, assim, no esforço para desmascarar as ilusões naturais ao entendi-
mento nas quais está mergulhada a filosofia. Sua lição primordial, justamente
5
Prefácio a Presença e campo transcendental. São Paulo: Edusp, 1989, p. 12-13.
6
O fato de que Renaud Barbaras domina plenamente a língua portuguesa lhe permitiu conhe-
cer plenamente o livro e, em seguida, traduzi-lo.
23
aquela que Presença toma como foco central de análise, reside em reconhecer
que é indispensável à filosofia um trabalho de desconstrução para impedir que
concepções já sedimentadas operem tacitamente na descrição do real: “é pre-
ciso desfazer as ilusões que servem de horizonte à praxis humana e lhe em-
prestam vigor”.7 Esta é a ênfase e o trunfo da leitura de Bento: mostrar que
cada trabalho de dissociação analítica de conceitos e cada explicitação de pres-
supostos comuns a alternativas dialeticamente constituídas no tratamento clássico
de problemas filosóficos apontam para um funcionamento ilusório da razão.
A dialética produzida pelo entendimento se efetiva à luz da “miragem da au-
sência” de mãos dadas com a obsessão pela imobilidade, um pano de fundo
que revela como figura a determinação mais essencial da duração, sua delimi-
tação ontológica como presença.
O que estamos sublinhando aqui é o modo como essa interpretação da
filosofia de Bergson engendra um diálogo extremamente frutífero e inédito
em solo francês até então. Trata-se de uma conversa filosófica “ultramar”8 que
é inaugurada por Victor Goldschmidt e Bento Prado Junior e retomada, 30
anos mais tarde, por Renaud Barbaras e Frédéric Worms, com o curioso
papel mediador de Gerard Lebrun. Membro do “jury de thèse” de Bento e de
Worms, Lebrun apresenta reservas similares em relação aos dois trabalhos,
que foram defendidos justamente nesse intervalo de 30 anos, assinalando uma
dificuldade de leitura cujo alcance engloba o âmago das relações entre teoria
do conhecimento e metafísica, o que significa também o núcleo das conver-
gências e diferenças entre Bergson e os fenomenólogos. Antes da publicação
do livro na França, a relação franco-brasileira parece ter uma só direção: o
estudo de autores franceses pelos pesquisadores brasileiros que é alimentado e
mesmo dirigido pelas interpretações, algumas vezes canônicas, dos historia-
dores da filosofia na França. Com o livro de Bento, o fluxo adquire uma nova
direção. Um efeito dela é a publicação do curso de Goldschmidt, que perma-
neceu curiosamente inédito na França até que o debate brasileiro fosse reto-
mado em solo francês no início de 2000. Sua tese foi avaliada por Lebrun,
cujas reservas se concentravam justamente nesse viés “transcendentalista” au-
torizado em parte pela famosa teoria da percepção pura que Bergson desen-
volve em concomitância com a noção de campo de imagens.
No Brasil, os desdobramentos do golpe de 1964 levaram Bento ao exílio
na França: cassado de seu cargo, ele se dedica ao estudo de Rousseau de 1969 a
1974, como pesquisador do CNRS (Centre Natinal de la Recherche Scientifique).
7
Presença e campo transcendental, p. 89.
8
É o adjetivo que Paulo Arantes atribui ao departamento da USP em sua famosa análise dessa
história de formação. Ver ARANTES, P. E. Um departamento francês de ultramar. 1. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1994.
24
9
A relação tensa entre percurso transcendental e acesso ao absoluto se insere no “espaço de
confrontação com a fenomenologia”, discutido mais detalhadamente pelos debatedores do
livro na França, especialmente Renaud Barbaras e Frédéric Worms. Ver Annales I, p. 337-
341 e p. 356-362.
25
10
SILVA, F. L. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.
26
11
Publicou recentemente: SILVA, F. L. Ética e literatura em Sartre. São Paulo: Editora UNESP,
2004.
12
MOSSÉ-BASTIDE, R.-M. Bergson educateur. Paris: PUF, 1955.
13
TREVISAN, R. Muríllio. Bergson e a educação. Piracicaba: Unimep, 1995. Notadamente seu
capítulo 6 “O esboço de uma filosofia bergsoniana da educação”.
27
14
Cf., por exemplo, de T. Araujo, “Contribuições do pensamento bergsoniano para o estudo das
convicções pedagógicas do professor universitário: apontamentos de formação”, texto publicado
nos Anais em CD-Rom do Colóquio Internacional Henri Bergson (UERJ, novembro 2007).
15
COELHO, Lígia Martha Coimbra da Costa. Escola pública de horário integral: um tempo
(fundamental) para o ensino fundamental. Texto apresentado no site da Escola Fundamental
do Centro Pedagógico da UFMG: http://www.cp.ufmg.br/.
16
T. Pinto, texto publicado nos Anais em CD-Rom do Colóquio Internacional Henri Bergson
(UERJ, novembro 2007).
17
Barone, A. F. C. Memória, quotidiano e educação. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 27. Anais do..., 2004. São Paulo: Intercom, 2004. CD-
ROM.
18
Cf. V. Kastrup, “Flutuações da atenção no processo de criação”. A mesma autora dedica um
capítulo (“Bergson, crítico do cognitivismo”) de seu livro A invenção de si e do mundo (Belo
Horizonte: Autêntica, 2007, p. 113-128).
28
19
BERGSON, H. A intuição filosófic”. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 55-68.
20
Ibidem, p. 59.
29
21
Ibidem, p. 66.
30
31
32
33
22
PRADO JÚNIOR, B. Presença e campo transcendental. Consciência e Negatividade na Filosofia de
Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
34
modo como Bergson articulou as três dimensões temporais tem sido uma inspira-
ção privilegiada, um modelo, na hora de pensar a temporalidade na analítica
existencial do Dasein. E, no final, os dois coincidem em uma ácida crítica à
metafísica, um, por que ela esquece o ser, o outro, por ela negar a duração.
A professora Amparo Vega, da Universidade Nacional de Colômbia,
propõe relações significativas entre H. Bergson e J.-F. Lyotard em “Existên-
cia, direito, resistência. De J.-F. Lyotard a H. Bergson, uma aproximação”.
O faz a partir de duas referências a Bergson em dois textos de Lyotard distan-
ciados no tempo, escritos com diferença de quase 20 anos. As duas referências
– a primeira é de Discurso figura (1971) e a segunda de “Linha Geral” (1991.
In: Moralidades pósmodernas, 1993), estão mediadas pelo giro lingüístico do
pensamento de Lyotard, que o fazem se deslocar de uma abordagem crítica a
uma em que o que prima é a analítica e a pragmática da linguagem.
Em todo caso, na primeira das duas referências a Bergson, Lyotard re-
cupera uma expressão bergsoniana (“diferença no tempo”) no marco de sua
mais ampla reivindicação da diferença como forma de “decifrar o aconteci-
mento, reconhecer o desconhecido, significar a desordem”; na segunda, a
recuperação se traduz na análise do diferendo, como conflito impossível de se
superar entre as linguagens e que se expressa, por exemplo, em alguns termos
com prefixo de ausência: “indeterminado”, “intratável”, “inhumano”, “inespe-
rado”, “inconsciente”, “impossível”, “inarticulado”, “infância”. As relações en-
tre inhumano, indeterminação e resistência, sob a forma de um “direito abso-
luto”, ocupam a última parte do texto.
Em “Negação e nada na metafísica bergsoniana, uma reescritura de Par-
mênides”, Eric Méchoulan procurar mostrar que, para além da decantada
oposição entre Bergson e a escola de Eléia, é possível encontrar uma ancora-
gem profunda da reflexão bergsoniana na “metafísica parmenidiana”, sob a
condição de não aplicar sobre o pensamento de Eléia concepções que não
encontram nele senão o hierático profeta do Ser. Assim, um pouco como
Bergson discute a ciência de seu tempo e a crítica desde uma perspectiva
filosófica, Parmênides propõe manifestamente elementos de cosmologia, ado-
tando uma posição crítica que desmonta as ilusões de seus adversários. É
preciso, portanto, revisar nossas “opiniões” sobre Parmênides antes de ver nele
o adversário por excelência de Bergson.
A hipótese original de Méchoulan é capaz de mostrar que podemos
captar uma proximidade surpreendente entre as reflexões de Bergson sobre a
idéia do Nada e a relação com o Ser na filosofia de Parmênides, isso se acei-
tarmos re-introduzir esse pensamento naquilo que era justamente uma das
primeiras tentativas especulativas de pensar uma “evolução criadora”. Bergson
35
36
37
38
Bergson, hoje:
virtualidade, corpo, memória
Maria Cristina Franco Ferraz
1
Cf. ZOURABICHVILI, 2004, p. 82, ao comentar o tratamento deleuzeano da imanência e o
conceito de “plano de imanência”.
39
40
2
Para toda essa passagem, cf. p. 122.
41
3
Para toda essa passagem, cf. GIL, 2001, p. 133-134.
42
4
Cf. especialmente, para essa passagem, GIL, 2001, p. 41.
43
5
Gil ressalta: “Os termos ‘imagem’, ‘imaginação’, ‘imaginário’ incomodam Steve Paxton, que
tende a recusá-los, chegando a afirmar que ‘as imagens [dos movimentos, no exercício acima
mencionado] eram consideradas como sendo, digamos, ‘reais’. Quer dizer, não eram conside-
radas como sendo claramente irreais [obviously unreal]” (GIL, 2001, p. 133). Na página 138,
Gil acrescenta: “A linguagem muito empírica, senão positivista, de Steve Paxton não o impede
de detectar fenômenos que exigem outros conceitos para serem explicitados.” A menos –
poderíamos acrescentar – que Paxton tivesse lançado mão do conceito bergsoniano de “imagem”,
remetido, na contramão de uma longa tradição de pensamento, à própria materialidade e
desvinculado do regime da “representação” (cf. BERGSON, 1896/1985, primeiro capítulo).
44
45
6
Gil menciona o aceno de despedida na página 71 do livro Movimento total (2001), articulando-
o ao tema dos agenciamentos de que o corpo é capaz e ressaltando, oportunamente, de que
forma a dança é “uma espécie de experimentação pura desta capacidade de se agenciar”.
7
As concepções em neurociências aqui privilegiadas dizem respeito sobretudo a pesquisas que
são freqüente e amplamente disseminadas e vulgarizadas na cultura contemporânea. No
âmbito deste texto, não cabe aprofundar divergências e discussões que atravessam esse vasto
(e nem sempre homogêneo) campo.
46
8
Cf. IZQUIERDO, 2002, p. 17: “o cérebro converte a realidade em códigos e a evoca por meio
de códigos”.
47
9
“Sabe-se [...] que o alerta, a ansiedade e o estresse causam a liberação de hormônio adrenocortico-
trófico [...], de glucocorticóides [...], de adrenalina [...] e de vasopressina [...]. O nível sanguíneo
destas substâncias correlaciona-se com o estado do sujeito.” (IZQUIERDO, 2002, p. 64).
48
49
10
Também encontramos em William James uma concepção ativa e viva das lembranças, sob a
forma de uma presença latente ou virtual. Por exemplo, no capítulo 9 de seus Principles of
psychology (JAMES, 1952), intitulado “O fluxo de pensamento”, James enfatiza que uma
palavra esquecida não está ausente da mente. É o que podemos constatar quando, tendo
esquecido um nome próprio, temos a capacidade de assinalar, quando nos perguntam se é este
ou aquele nome, que não se trata dos nomes mencionados – o que prova que o nome esquecido
não se encontra eliminado da memória, mas brilha, por assim dizer, em ausência, permanece
vivo, embora inacessível à clareza e luminosidade da consciência.
11
Cf. a segunda das conferências apresentadas em Oxford em 1911 (BERGSON, 2001, p.
1389), a que remetemos também para o desenvolvimento que se segue imediatamente à
citação.
12
Eis como Bergson explica, no capítulo III, a dificuldade em admitir que o passado não está
abolido (em admitir, portanto, a existência do inconsciente): “O mesmo instinto em virtude
do qual abrimos indefinidamente diante nós o espaço faz com que fechemos atrás de nós o
tempo, à medida que escoa” (BERGSON, 2001, p. 160-161).
50
13
E isso de dois modos: ao instalar-se na mobilidade de um tempo contínuo, indivisível, que só
pode ser detido caso seja ilusoriamente rebatido sobre o espaço; e ao contrair a duração do
universo segundo sua própria duração, tal como no exemplo da luz vermelha (cf. item IV do
capítulo IV de Matéria e memória).
51
14
Cf. Jorge Luis Borges, “Funes, o memorioso”, do livro Ficções (1997).
15
Acerca da potência plástica e salutar do esquecimento, entendido como uma força inibidora
ativa, cf. igualmente Nietzsche, Genealogia da moral, segunda dissertação, parágrafo 1.
16
Nesse sentido, podemos dizer que, em Bergson, o conceito de memória engloba o de esque-
cimento. No caso de Nietzsche (cf. FERRAZ, 2002), é o termo desqualificado pela tradição
52
filosófica (esquecimento), considerado como mais fundamental e originário, que engole “me-
mória”, que pode então ser transvalorada pelo filósofo (como “memória da vontade e de
futuro”, não mais prisão conservadora e ressentida ao passado). De todo modo, ambos os
filósofos, cada um à sua maneira, apontam para uma ultrapassagem do par opositivo memória/
esquecimento.
17
Há certas passagens em Matéria e memória que dotam as lembranças de uma curiosa força e
vivacidade. Bem ao contrário do que postulava o empirismo inglês (que pensava a lembrança
como uma percepção enfraquecida) – e sem dúvida em um vivo combate contra tal visada –,
as lembranças, para Bergson, são dotadas de intensidade e parecem ter a “intenção” de se
atualizarem, reencontrando o calor do vivido. Cf. a esse respeito, a nota 1 da página 143 de
BERGSON, 1896/1985 e a página 145, no final do capítulo II.
18
Cf., entre outros, GUMBRECHT, 1988 e BAUMAN, 1998.
19
A esse respeito, cf. SENNETT, 1999.
53
20
Cf., por exemplo, GUMBRECHT, 1988.
21
“Um passo adiante na determinação das áreas envolvidas nas memórias foi dado pelas moder-
nas técnicas de imagens, das quais a mais usada hoje é a ressonância magnética nuclear. Essas
técnicas medem indiretamente a ativação metabólica de uma ou outra região do cérebro...”
(IZQUIERDO, 2006, p. 41).
22
Cf. EHRENBERG, 2004 e VIDAL, 2005 e 2007.
23
Burnout é uma síndrome vinculada ao estresse ocupacional e profissional. Deve seu nome ao
verbo inglês “to burn out” – queimar por completo, consumir-se – e foi introduzida no início dos
anos 1970 pelo psicanalista nova-iorquino Herbert J. Leia-se, na internet, o artigo “Esgota-
mento total”, de Ulrich Kraft (médico e colaborador da Gehirn & Geist), em que o autor
também descreve, como um dos traços da enfermidade, a “memória afetada”, acrescentando:
“Especialistas concordam que, por si só, uma jornada de 60 horas semanais não causa doença,
contanto que se encontre o equilíbrio entre tensão e relaxamento. Pacientes afetados pela
síndrome, entretanto, ultrapassaram muito a ‘fronteira da adaptabilidade às demandas’. Os
sistemas internos de processamento do stress dessas pessoas sofrem de sobrecarga crônica.”
Disponível em: <http:www2.uol.com.br/vivermente/estatica/indice_164.pdf>.
54
24
Cf. o capítulo “Memória, esquecimento e corpo em Nietzsche”, em FERRAZ, 2002.
25
Cf., a esse respeito, meu artigo “Guerra, televisão e superexcitação dos corpos: ensaio de
reflexão acerca dos atentados de 11 de setembro de 2001”, in: PORTO, 2002.
26
Cabe assinalar que a síndrome do pânico é caracterizada justamente por uma ausência de
contornos nítidos do inimigo ou da ameaça, por uma generalização do pânico, que se desconecta
dos mecanismos de sobrevivência para se espraiar, de modo indeterminado, por todos os lugares
e situações, em uma semelhança visível com a lógica (viral) do terrorismo e do contra-terrorismo.
27
Cf. MARTINS, 1996, bem como meu artigo “Sociedade tecnológica: de Prometeu a Fausto” (2000).
55
Referências
ANSELL-PEARSON, Keith. Philosophy and the adventure of the virtual (Bergson
and the time of life). Londres/Nova York: Routledge, 2002.
BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Jorge
Zahar, 1998.
BERGSON, Henri. Matière et mémoire. Paris: PUF, 1985.
BERGSON, Henri. Oeuvres (édition du centenaire). Paris: PUF, 2001.
BEZERRA JR., Benilton. O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a
clínica. In: PLASTINO (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Ed. Globo, 1997.
CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture.
Massachusetts: MIT Press, 2000.
CRARY, Jonathan. Techniques of Observer. On vision and modernity in the XIXth
century. Massachusetts: MIT Press, 1992.
CRARY, Jonathan. A visão que se desprende: Manet e o observador atento no fim
do século XIX. In: CHARNEY; SCHWARTZ. O cinema e a invenção da vida
moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
56
57
58
59
60
61
62
pessoa que fica o tempo todo zapeando os canais da TV. A focalização conse-
cutiva impede a espessura temporal da experiência. No fim do séc. XIX T.
Ribot (1889/1931) já havia notado essa diferença, presente na distinção pro-
posta por ele entre distração dissipada (que eu chamo de dispersão) e distra-
ção absorta. Segundo Ribot, esses dois regimes apenas em aparência são se-
melhantes, sendo na verdade contrários, pois no primeiro a atenção passa
incessantemente de um estado mental a outro, enquanto no segundo a atenção
mantém-se tão concentrada num único estado que outros acontecimentos não
são capazes de penetrá-la. A semelhança é que ambos revelam um movimento
de irradiação da atenção, mas a diferença essencial é que no primeiro essa
irradiação vem associada a uma ausência de concentração, enquanto no se-
gundo a concentração é mantida.
Além de um aquém da idéia, há também um além da idéia. O processo
de criação não se esgota no ato de ter uma idéia. A idéia nova é uma condição
necessária, mas não suficiente, para que o processo de criação se dê por intei-
ro. Não é fácil criar algo novo: um conceito filosófico, uma função científica,
uma obra de arte ou mesmo um estilo de vida dependem de um processo. Isso
quer dizer que a criação envolve trabalho, no sentido de trabalho de compo-
sição e de lida com a matéria. Dada uma idéia, há um movimento forçado que
deve ser seguido para lhe dar corpo, para torná-la algo que se ponha de pé,
que se sustente. Pois a idéia não é o pensado, mas o que faz pensar. O pensa-
mento criador não vai por si, mas se realiza por meio de uma experimentação
e movimentos que buscam dar expressão à idéia. A idéia requer uma matéria
para se exprimir. Como sublinhou Simondon (1989), a matéria não é molda-
da sem resistências, mas impõe seus próprios constrangimentos. A argila é um
dos exemplos analisados por G. Simondon; voltaremos a ela adiante. Deleuze
(1987) também apontou que o marceneiro deve seguir os veios da madeira,
aprender sua semiótica para lidar com ela. Nesse sentido, podemos dizer que
a matéria não é inerte e submissa à vontade do criador. Tocado pela idéia e
usando a matéria que lhe dará corpo, o criador deve ser sensível a suas exigên-
cias. Há um aprendizado que deve ter lugar aí. O resultado não é imediato,
requer tempo e, conforme apontou Bergson, envolve esforço.
No texto sobre o esforço intelectual, Bergson inicia afirmando:
63
1
As citações desse texto são tradução nossa.
2
Para uma discussão detalhada sobre a distinção entre o virtual e o possível cf.DELEUZE,
1999b.
64
65
66
67
Sujeitos e objetos são efeitos dessas práticas. Avançando ainda mais, o próprio
processo de criação opera o desmanchamento das configurações do sujeito e
do objeto anteriormente formadas. Enfim, a criação se dá num sujeito, mas
não se explica por ele.
John Dewey (1889/1980) aponta um caminho nessa mesma direção em
seu texto sobre a experiência estética. Dewey questiona a adequação da sepa-
ração entre percepção estética e prática artística. Afirma que em geral a pala-
vra “artístico” se refere primordialmente ao ato de produção, e a palavra “esté-
tico”, ao ato de percepção e apreciação. Embora o vocabulário corrente separe
as dimensões ativa e receptiva, a arte revela a profunda conexão entre elas. O
fazer artístico não se separa do sofrer e do gosto. Por outro lado, o artista,
enquanto trabalha, incorpora a atitude de quem percebe. Além disso, a ação
artística só se completa com a participação do expectador, daquele que perce-
be o produto executado. A experiência perceptiva é, ela própria, uma expe-
riência criadora, completando o trabalho de produção. Nessa direção, a prá-
tica artística, como a percepção estética, aciona processos de cognição inventiva
e tem papel na produção de subjetividades, na transformação de domínios
cognitivos e no engendramento de novos territórios existenciais.
Há algum tempo venho investigando o funcionamento da atenção du-
rante processos de criação em cegos e portadores de baixa visão. Todas as
pessoas do grupo são portadoras de deficiência visual adquirida, ou seja, per-
deram ou estão em processo de perda da visão em virtude de doenças ou
acidentes os mais diversos. Pessoas, portanto, que por não terem nascido ce-
gas enfrentam o desafio de reinvenção de suas vidas e de seu território existen-
cial. Essa pesquisa,3 realizada na oficina de cerâmica do Instituto Benjamin
Constant, no Rio de Janeiro, me conduziu ao estudo não apenas das transfor-
mações cognitivas, mas também da produção de subjetividade a partir do tra-
balho com a cerâmica.
A argila é uma matéria estranha e muito peculiar, por suas característi-
cas de maleabilidade, temporalidade lenta e imprevisibilidade. Como explico
com maiores detalhes em outro texto (KASTRUP, prelo-a), ela é extremamente
flexível, mas não é possível dominá-la. É preciso entrar em sintonia com ela e
lidar com seu tempo lento. Durante o processo de criação das peças, inúmeras
coisas imprevisíveis podem acontecer – a argila pode rachar, pesar, pender
para o lado, quebrar etc. Não apenas aceitar, mas principalmente aprender a
incluir os acasos que surgem, no próprio processo de criação, é um dos desa-
fios de seu aprendizado.
3
Projeto de pesquisa “Atenção e invenção na produção coletiva de imagens – um estudo com
deficientes visuais numa oficina de cerâmica”, apoiado pelo CNPq.
68
Pode ser observado que a experiência com a argila corresponde não ape-
nas a um movimento cognitivo voltado para o exterior, para o trato com a
massa, mas também a um movimento voltado para o interior. É pelo seu lado
de dentro que a experiência vai cavando e modulando a subjetividade. Na
experiência estética que tem lugar na oficina de cerâmica, a produção dos
objetos é indissociável da produção da subjetividade de seus participantes. Na
prática artística com a cerâmica ficou evidenciado que há uma atenção voltada
para a fabricação das peças e também uma atenção direcionada para si. Pen-
sando com Varela, Thompson e Rosch (2003) podemos dizer que tal atenção
entra em contato com a virtualidade do si-mesmo. O si não se limita ao plano
identitário de um ego, mas se encontra ligado a uma rede de processos de
onde ele emerge. No caso da oficina, a prática com a argila não coloca os
participantes em contato atencional com a crosta identitária de “deficientes
visuais”, mas com sua potência inventiva.
Bergson apontou em diferentes momentos a necessidade de ampliar o
conceito de atenção, sublinhando que além da atenção à vida prática, havia
uma “atenção suplementar”. A atenção suplementar é caracterizada como uma
atenção à duração ou à “mobilidade que existe no fundo das coisas” e – o que
é especialmente interessante – pode ser cultivada e desenvolvida. Segundo
Bergson a intuição traz consigo essa atenção suplementar. Ela é uma visão
direta das coisas e também a atenção que o espírito presta a si mesmo, como
um suplemento, quando se fixa sobre a matéria, seu objeto (BERGSON, 1934/
2006, p. 88-89). A intuição é mais próxima do pensamento que do sentimen-
to. Ela concorre ainda para o alargamento do campo da experiência, para
além de seu alcance funcional e utilitário. Para Bergson, a intuição exige um
esforço, sendo uma “maneira difícil de pensar”. É um método que requer do
espírito, para cada novo projeto, um esforço inteiramente novo. Enfim, ela
põe em marcha “um outro conhecimento”.
Bergson (1911/2006) afirma que a arte pode concorrer para alargar a
percepção, fazendo-nos ver o que, na percepção comum, permanecia invisí-
vel. A percepção comum é constrangida pela vida prática e voltada para a ação
futura. Já os artistas são pessoas que “Quando olham para alguma coisa, vêem-
na por ela mesma, e não mais para eles; percebem por perceber – por nada,
pelo prazer” (p. 158). Bergson atribui também à filosofia a capacidade de
operar um deslocamento, ou melhor, de operar a conversão de nossa atenção.
A arte, como a filosofia, tem uma dimensão educativa, atuando diretamente
sobre a atenção. Para Bergson educar a atenção consiste em “reter seus anto-
lhos, em desabituá-la ao encolhimento que as exigências da vida prática im-
põem” (p. 160). Afirma também que a arte nos faz ver nas coisas mais quali-
dades e matizes do que percebemos naturalmente.
69
Referências
BERGSON, H. A percepção da mudança. (1911) In: O pensamento e o movente:
ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON, H. O possível e o real. (1930) In: O pensamento e o movente: ensaios e
conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON, H. O pensamento e o movente (Introdução). (1934). In: O pensamento
e o movente: ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON, H. L´effort intellectuel. (1902). In: BERGSON, H. L´énergie spiri-
tuelle. Paris: PUF, 1990.
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
DELEUZE, G. O ato de criação. Caderno Mais! Folha de São Paulo, 27 jun. 1999a.
DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999b.
DELEUZE, G. L’abécédaire de Gilles Deleuze. Entrevistas com Claire Parnet, reali-
zação de P- A. Boutang. Paris: Éditions Montparnasse/Liberation, s/d.
70
71
72
O infinitamente simples
(na obra de Bergson, a intuição e
as diferenças de natureza)
Mário Bruno
73
A intuição filosófica
A aproximação da simplicidade
Há questões que vão da segurança do falar à perturbação do silêncio. A
intuição do que é simples é uma dessas questões. Tentemos uma clarifica-
ção... Em O pensamento e o movente, Bergson (2006, p. 125) afirma que o
discurso filosófico parece erguer-se como um edifício completo, uma sábia
arquitetura, na qual podemos acomodar todos os problemas de modo confor-
tável. Daí, reconhecemos as fontes, extraímos as semelhanças e vemos distin-
tamente a doutrina daquele pensador. Não obstante, o contato renovado com
um filósofo nos leva a um sentimento totalmente distinto. Só começamos a
compreender o novo depois de termos tentado reduzi-lo ao antigo. A partir
daí, diz Bergson, a doutrina se transfigura e a complicação diminui. Parece
que começamos a nos aproximar pouco a pouco de um ponto, mesmo que
nunca possamos atingi-lo: “Nesse ponto, encontra-se algo simples, infinita-
mente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conse-
guiu dizê-lo. E é por isso que falou por toda a sua vida” (p. 125).
Que intuição é essa? O filósofo não pode explicá-la, e não somos nós que
o faremos. Procuramos apenas um lugar intermediário entre a simplicidade da
intuição e a complexidade das abstrações. E aí tentamos caminhar com o
filósofo pelos meandros de seus pensamentos. Observamos a sombra e tenta-
mos adivinhar o corpo que a projeta. A partir desse infinitamente simples
dão-se as idas e vindas, os ziguezagues de uma doutrina. Embora uma doutri-
na se expresse a partir dos problemas que se punham no seu tempo, ela retorna
a si quando volta à intuição do filósofo. Remontando à intuição, ele se liberta
das condições de tempo e de lugar das quais parecia depender. Mesmo onde o
filósofo aparenta repetir coisas já ditas, ele as pensa ao seu modo. Um filósofo,
digno desse nome, sempre disse uma única coisa, ou melhor, procurou dizê-
la mais do que disse (p. 127).
A intuição do infinitamente simples é a intuição de uma idéia? Ele só
procurou dizer uma coisa a partir do infinitamente simples e tentará expressar
essa intuição em conceitos. A intuição do infinitamente simples talvez seja
próxima da satisfação experimentada pelos artistas, e eles parecem em função
disso ser privilegiados pela natureza e/ou pelo acaso. A arte seria um privilé-
gio de alguns? Não temos como responder a essa pergunta, mas, segundo
Bergson, a filosofia pode oferecer esse momento a todos: “As satisfações que a
arte nunca fornecerá senão a privilegiados da natureza e da fortuna, e apenas
de longe, a filosofia assim entendida ofereceria a todos, a cada instante [...]”
(p. 148). Por esse motivo, notaremos desde já que o filósofo encontra um lugar
74
fundamental ao lado do artista. É mister assinalar que Bergson nos diz algo
quase análogo a isso quanto ao papel da filosofia em relação à ciência. Para
ele, as ciências, tanto na prática quanto na especulação, com suas aplicações,
“visam apenas a comodidade da existência, a ciência nos promete o bem-estar,
no máximo o prazer. Mas a filosofia já nos poderia dar a alegria” (p. 148). O
mínimo que se pode dizer é que a filosofia traz satisfações e alegrias a partir
do que está aquém ou além da nossa percepção galvanizada das coisas. Berg-
son fala das relações da filosofia com uma sub specie durationis (p. 148).
75
(p. 35). Sobre isso diz-nos Deleuze: “A matéria é justamente, no ser, aquilo
que prepara e acompanha o espaço, a inteligência e a ciência” (Ibidem, p. 35).
Nesse sentido, Bergson está longe de desqualificar os conhecimentos da ciên-
cia. Ela encontra seu lugar por apreender pelo menos uma “das duas metades
do ser, um dos dois lados do absoluto, um dos dois movimentos da natureza,
aquele em que a natureza se distende e se põe ao exterior de si” (p. 35). Sendo
assim, em certas condições, podemos ter uma união da ciência e da filosofia
para uma compreensão total (p. 35).
A filosofia constipada
Aceitar essa maneira de ver não elimina inumeráveis problemas e difi-
culdades. De saída, precisamos afirmar que essa divisão em duas partes (ma-
téria e duração) não se trata de um platonismo. O conceito de duração é
apresentado de formas distintas na filosofia contemporânea. Fora isso, cabe
explicar, para aqueles que estão iniciando um estudo sobre Bergson, que o
intuicionismo bergsoniano não é referenciável, ou, se o é, não é convertível ou
explicitável a partir da obra de Platão. E isso porque Platão e Bergson tinham
concepções muito distintas sobre a intuição e a duração. Certamente, mundos
diferentes se configuram no sentido que têm, para cada um dos dois filósofos,
esses dois conceitos. E ouso dizer que, tanto em Platão quanto em Bergson,
esses dois conceitos estão inexoravelmente entrelaçados.
Cabe recapitular a visão caricatural sobre a duração que está no Teeteto,
de Platão. A filosofia da duração, ou se quiserem, do devir, é apresentada por
Sócrates como filosofia constipada. Não há como esconder essa imagem que
instaura a metafísica e recalca o panta rei de Heráclito. Nesse sentido, a dura-
ção é destrutiva, a continuidade é vã e anuladora. Sim! Platão apostou na
plenitude parmenidiana, por isso a negação, e, às vezes, denegação, do devir.
Há, para Platão, uma plenitude mensurável que uniria as relações da essên-
cia, da propriedade e quiçá da liberdade como conteúdos presentes na ins-
tauração de um logos. Podemos objetar que ainda não interrogamos suficien-
temente o conceito de tempo em Platão. Não obstante, o platonismo é para
nós uma velha aranha que se realiza ao tecer sua teia na qual estamos ainda
envolvidos. Há em Platão evidências demais de uma filosofia da presença e
anuladora da idéia de duração. Por isso, cabe-nos continuar interrogando e
manter o olhar atento.
Dá-se como indiscutível, não há em Bergson a distinção de dois mundos
(o sensível e o inteligível). Há dois movimentos, ou dois sentidos de um único
e mesmo movimento. À sua maneira, cada um dos dois sentidos é natural,
mesmo que o segundo se faça contra a natureza, pois ela se retoma na tensão.
76
O método bergsoniano
77
Nuança e duração
Ninguém ignora que sobre uma mesma palavra acabamos muitas vezes
por subsumir coisas extremamente distintas por natureza. Fora isso, a diferen-
ça não é sua relação a uma outra coisa, uma relação puramente exterior; nem
sua relação com tudo aquilo que a coisa não é. Nesses casos, ou cairíamos na
instância do espaço ou na dialética da contradição. Mostra-nos Deleuze (2006,
p. 37-38) que Platão encaminhou o pensamento da diferença como alteridade
e o remeteu à contradição. É fato verificado, isso não ocorre na obra de Ber-
gson, não se trata nem de alteridade nem de contradição. Para chegarmos ao
ser bergsoniano das coisas é preciso substituir o conceito platônico de alteri-
dade pelo conceito aristotélico de “alteração” (p. 37-38). O ser é alteração, e
a alteração é a substância. O que define um ser é a duração, o seu modo de
durar. A duração é o que difere, o que muda de natureza ou o que difere de si
mesmo. É legível que a intuição é o método para pensarmos a duração. Mais
ainda, coube a Bergson censurar constantemente as ciências e a filosofia por
terem perdido o sentido da duração sendo o que difere.
A verdade é que Bergson contava com a duração para estabelecer a filo-
sofia como uma disciplina tão precisa quanto à ciência. A questão a ser expli-
cada por Bergson é como a intuição pode ser considerada um método, se, em
geral, os métodos são mediados e a intuição é imediata (DELEUZE, 1999, p. 7-
8). De acordo com Deleuze (p. 8), Bergson estabelece três atos que determi-
nam as regras do método: a posição e a criação de problemas, verdadeiras
diferenças de natureza, e a apreensão do tempo real. Vejamos se podemos
expor as regras do método bergsoniano.
78
invenção dá ser ao que não era. A história dos homens, tanto teórica quanto
prática, é de constituição de problemas; a consciência dessa atividade é a con-
quista da liberdade.
É certo que muitos filósofos perceberam a necessidade de se distinguir
os verdadeiros dos falsos problemas, mas se contentaram em definir a verdade
ou a falsidade pela possibilidade de receber uma solução. Todavia, a expres-
são “falso problema” ganha aqui uma determinação intrínseca, e podem ser
classificados em dois tipos: os problemas inexistentes e os problemas mal-
colocados. Por um lado são problemas inexistentes os do não-ser, da desordem
e o do possível. Na idéia de não-ser há a idéia de ser mais a operação lógica de
negação. Na idéia de desordem há a idéia de ordem mais a sua negação. A
idéia de possível é o real contendo a mais um ato do espírito; o motivo desse
ato é a suposição de uma imagem retrógrada no passado, a partir de uma
sucessão de estados num sistema fechado (p. 11). Por outro lado, os proble-
mas mal-colocados são os mistos mal-analisados. Arbitrariamente, agrupa-
mos coisas que diferem por natureza. No Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência, Bergson (1988, p. 38-54) dá como exemplo a idéia de intensida-
de, quando confundimos a qualidade da sensação com o espaço muscular
que lhe corresponde ou com a quantidade da causa física que a produz. O
mesmo acontece com a liberdade: diz-nos Deleuze (1999, p. 12) que con-
fundimos “dois tipos de multiplicidades, a dos termos justapostos no espaço
e a dos estados que se fundam na duração”. Desde logo, podemos dizer que
a noção de falso problema aponta para uma ilusão fundamental. Não são
simples erros (falsas soluções), os falsos problemas são inseparáveis de nossa
condição. Em outras palavras, observamos que o procedimento de Bergson é
análogo ao de Kant, mas trata-se de uma outra tendência crítica, e só a intui-
ção pode suscitá-la (p. 13).
79
80
Linhas de diferenciação
Há ainda, de acordo com Deleuze (2006, p. 40-41), a última caracterís-
tica do método da intuição: pensar as linhas de fato ou as linhas de diferenci-
ação. A diferenciação é o poder do indivisível que dura, a duração é um im-
pulso vital. Bergson vê, na evolução das espécies, a diferenciação como
produção de diferenças reais. Nesse sentido, temos dois trabalhos fundamen-
tais: A evolução criadora (1979a) e As duas fontes da moral e da religião (1978).
Por diferenciação, as atividades da vida culminam na planta e no animal ou no
instinto e na inteligência ou ainda em diversas formas do instinto. Sem dúvi-
da, a diferenciação é o modo do que se realiza, uma virtualidade se atualiza
por diferenciação. Isso quer dizer que o impulso vital é a própria duração à
medida que se atualiza e se diferencia: “o impulso vital é a diferença à medida
que ela passa ao ato” (p. 41). Se conseguirmos compreender isso, não nos
parece difícil entender que a diferenciação é uma força e a dicotomia é a lei da
vida. O próprio da duração é a virtualidade, e o impulso vital é a duração que
se diferencia. A duração, desde O ensaio sobre os dados imediatos da consciência,
apresentava-se como virtualidade, mas A evolução criadora aprofunda a apre-
sentação do conceito de virtual.
O círculo fechado
Bergson observa o absurdo de ter de operar numa dimensão estreita como
se fosse a mais vasta e o de não poder esquecer de que ela realmente não é – ler
o aberto no fechado e entreler o relativo nesse fechado que se lê. Não sabemos
se é uma evidência, todavia se esqueceu e se esquece a diferença. Mas o que é
a diferença? Para muitos, um mal-estar físico ou moral, ou um mal-estar na
cultura. Pensar a diferença é decisivo? Sim, tão decisivo que as doutrinas mais
opostas se exprimem pensando encontrar resultados positivos mas que esca-
pam à determinação da diferença.
A mesma palavra pode dizer em filosofia muitas coisas. Diferença não
queria dizer para Hegel o mesmo que para Bergson. Para Hegel, se tivermos
reconhecer a diferença que caracteriza a parcialidade e a individualidade do ser,
precisamos reconhecer o movimento negativo do ser (HARDT, 1996, p. 30).
Sabemos que desde suas primeiras leituras de Bergson, Deleuze demonstra
que ele se distanciava da dialética da negação. O ensaio deleuziano de 1956
afirmava que a diferença constituída a partir do negativo da determinação é
uma falsa diferença. A análise de Deleuze recaía sobre a natureza da diferença.
81
82
Ontologia política
Michael Hardt (1996, p. 43) assinala bem que a relação entre o uno e o
múltiplo é uma base ontológica para política, atacá-la é confrontar-se com a
primazia do Estado na formação da sociedade, insistir na pluralidade real. Cabe
recordar a distinção que Hardt estabelece entre “pluralismo da organização”,
83
Conclusão
E, todavia... o aceno que vem do infinitamente simples estende-se como
diferença em tudo que a vida recobre, compõe, guarda... Mas as diferenças
não são obscuras névoas nem intangíveis realidades, nem etéreos corpos em
distantes presenças. A simplicidade da diferença, se não a dialetizarmos, per-
passa nos interstícios de nossos gestos, habita o coração das pedras, dos ho-
mens, e faz com que tudo tenha um sentido ou uma razão de ser, sem aquém
nem além...
Referências
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
BERGSON, Henri. OEuvres. Paris: Édition du Centenaire/PUF, 1959.
BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
BERGSON, Henri. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1979b.
84
85
86
De Bergson a Deleuze.
Do mecanismo cinematográfico do pensamento
como ilusão mecanicista à imagem moderna do
não confere com o su- pensamento através do cinematógrafo1
mário???
Adrián Cangi
1
Tradução de Jorge Vasconcellos.
87
88
2
Creemos que Bergson entiende la esencia como un nacimiento del mundo que es en sí mismo
diferencia. Es decir, potencia de variación. La esencia se diversifica al mismo tiempo que se
repite. Sigo entonces, la tesis de Deleuze, que dirá que la diferencia y la repetición son las dos
potencias de la esencia, inseparables y correlativas. Cf. Gilles Deleuze, “La conception de la
différence chez Bergson”, in: L’Île déserte et autres textes. Paris: Minuit, 2002.
3
Cf. BERGSON, H. L’Évolution Créatrice. París: PUF, 1959, cap. IV.
4
Cf. op. cit.
89
5
Cf. op. cit.
6
Cf. DELEUZE, G. L’image-mouvement. Cinéma 1. París: Minuit, 1983, cap. I.
7
Cf. DELEUZE, G. L’image-temps. Cinéma 2. París: Minuit, 1985, cap. II
90
8
Cf. op. cit., cap. IV.
91
92
93
94
9
Cf. DELEUZE. L’image-mouvement. Cinéma 1. París: Minuit, 1983, cap. V.
10
Cf. DELEUZE. L’image-temps. Cinéma 2. París: Minuit, 1985, cap. VII.
11
Cf. op. cit.
95
Referências
BERGSON, H. Oeuvres complètes. París: PUF, 1959. Apresentado por Henri Gou-
tier e com anotações de André Robenet.
BOGUE, R. Deleuze on Cinema. New York and London: Routledge, 2003.
DELEUZE, G. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968.
DELEUZE, G. L’image-mouvement. Cinéma 1. Paris: Minuit, 1983.
DELEUZE, G. L’image-temps. Cinéma 2. Paris: Minuit, 1985.
DELEUZE, G. Le Bergsonisme. Paris. PUF: 1966.
FAURE, É. Fonction du cinéma. Ginebra: Gonthier, 1963.
JANKÉLÉVITCH, V. Henri Bergson. París: 1959.
LEBRUN, G. Le transcendental et son image. In: Gilles Deleuze. Une vie philoso-
phique. Paris: Les empecheurs de penser en rond, 1998.
MARRATI, P. Cinéma et philosophie. Paris: PUF, 2002.
MOULARD, V. The time-image and Deleuze’s transcendental experience. Conti-
nental Philosophy Review, 35, p. 325-345, 2002.
RAJCHMAN, J. The Deleuze Connections. Cambridge: MIT Press, 2000.
VERSTRAETEN, P. De l’image de la pensée à la pensée san image. In: LENAIN,
Thierry (Coord.). L’image. Deleuze, Foucault, Lyotard. Paris: Vrin, 1997.
WHITEHEAD, A. N. Process and Reality. Macmillan: 1929.
ZABUNYAN, D. Gilles Deleuze. Voir, parler, penser au risque du cinéma. París:
Presses De La Sorbonne Nouvelle, 2007.
ZOURABICHVILI, F. Deleuze. Une philosophie de l’événement. Paris: PUF, 1994.
96
O universo das imagens tal com descrito por Bergson em Matéria e me-
mória se mostra como o correlato imediato, como sugeriu Deleuze, da criação
das imagens no cinema. A experiência cinematográfica invocou desde o iní-
cio, em razão do automatismo da imagem, um universo preenchido por mun-
dos perceptivos, afetivos e ativos. Ele ensejou, também, o despertar de uma
subjetividade material automática: o autômato espiritual, alimentando a espe-
rança de uma consciência libertária e de um devir revolucionário. O cinema
moderno, ao denunciar o fracasso da esperança clássica, deparou-se com uma
interioridade petrificada e com a evidência da múmia subjetiva. As novas li-
nhas que se abrem no mundo, a partir das imagens de nosso tempo, indicam
novos modos de subjetivação das “imagens entre imagens” que, a cada dia, nos
tornamos. Ainda aqui, novamente, reencontramos os grandes temas bergsoni-
anos da imagem, do movimento e do tempo.
1
BERGSON, Henri. Matéria e memória. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
97
2
DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento e suas três variedades – Segundo comentário de
Bergson. In: Cinema 1: A imagem-movimento. Tradução de Estella Senra. São Paulo: Brasilien-
se, 1985, p. 76-94.
98
3
BERGSON, Henri. op.cit., “Prefácio da sétima edição”, p. 2.
4
DELEUZE, Gilles. op. cit., p. 78-79.
5
Idem, p.79.
6
Idem, p.79.
7
Idem, p. 79.
99
8
Idem, p. 80.
9
Idem, p. 81.
10
Cf. MARRATI, Paola. Gilles Deleuze: cinéma e philosophie. Paris: PUF, 2003.
100
nisso reside talvez uma de suas maiores virtudes, já que esse retardamento
corresponde ao desenvolvimento das afecções. Imagens vivas são imagens que
expressam os efeitos do tempo na matéria.
Estamos, portanto, diante do tríplice regime bergsoniano das imagens:
imagem-percepção, imagem-afecção, imagem-ação. Em seu conjunto, esse
tríplice registro das imagens define o regime sensório-motor, percepção-afec-
ção-ação, e o traço de união que liga o vivo a seu meio, o homem ao mundo,
a matéria ao tempo.
11
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. Cf. cap. IV: “O mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecani-
cista”, p. 295-398.
12
MÉNIL, Alain. Deleuze et le “bergsonisme du cinéma”. Gilles Deleuze, Philosophies, Paris: Les
Èditions de Minuit, n. 47, p. 28-52, sep. 1995.
13
FIHMAN, Guy. Deleuze, Bergson, Zénon d’Éléé et le cinéma. In: FAHLE,Oliver; ENGE-
LL, Lorenz (Orgs.). Der Film bei Deleuze/Le cinéma selon Deleuze,. Weimer: Verlag der Bau-
ahaus-Universität Weimar/ Presses de la Sorbonne Nouvelle, s/d, p. 63-73.
14
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A imagem-movimento. Tradução de Estella Senra. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 79-80.
101
A esperança sensório-motora:
a imagem-movimento e o autômato espiritual
O cinema clássico, segundo Deleuze, sempre aspirou amplificar o vínculo
natural da percepção humana com o mundo. Ao se instalar diretamente na modu-
lação do real e em razão do caráter automático da imagem cinematográfica, o
cinema realizava aquilo que para as outras artes era somente uma possibilidade. A
imagem automática é uma imagem que se mexe, não é um corpo real que se mexe
como na dança nem uma imagem imóvel como na pintura. Eis o essencial: a
realidade expressa pelas imagens cinematográficas atinge diretamente a plena
15
Idem, p. 80.
16
Refiro-me especialmente ao site: www.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_artilcle=6,
L’image automatique, (article=7) Pensée et automatisme, cf. também www.webdeleuze.com.
102
17
Disponível em: <http://www.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_artilcle=6>.
18
Idem, p. 3.
103
19
Idem, p. 3.
20
Idem, p. 4.
21
Idem, p. 5.
104
22
BRESSON, Robert. Do automatismo. In: Notas sobre o cinematógrafo. Tradução de E. Mocar-
zel e B. Riberolle. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 30-39.
23
FAURE, Elie. Fonction du Cinema. Suisse: Éditions Gonthier, 1964, p. 56.
24
Idem, p. 6-7.
105
25
Cf. ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. Organizado por: J. Guinsburg, Sílvia Fernandes
Telesi e Antonio Mercado Neto (orgs.), São Paulo: Perspectiva, 2004, “No cinema”, 155-187.
26
DELEUZE, Gilles. Cinema 2: Imagem-tempo. Tradução de Eloísa de Araujo Ribeiro. São
Paulo: Brasiliense, 1990, p. 201.
106
27
BLANCHOT, Maurice. Artaud. In: O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p.47-56.
28
DELEUZE, Gilles. Cinema 2: Imagem-tempo. Tradução de Eloísa de Araujo Ribeiro. São
Paulo: Brasiliense, 1990, p. 203.
29
Idem, p. 206.
107
30
Idem, p. 209.
108
Psicologia e ontologia:
Bergson, Sartre, Merleau-Ponty
Franklin Leopoldo e Silva
109
110
para justificá-la enquanto tal, mas para verificar se esse tipo de constituição da
certeza do conhecimento é fiel à realidade ou a deforma.
Dito de outra maneira trata-se de examinar se as formas intelectuais que
são as mediações pelas quais o conhecimento se constitui na representação
não implicam de alguma maneira um distanciamento da realidade que acaba-
ria por distorcê-la. Essa é a pergunta que faz Bergson a propósito do que
considera um dado fundamental da realidade: o tempo, ou a temporalidade
presente na realidade subjetiva e objetiva. Essa pergunta se desdobra num
questionamento das concepções tradicionais de tempo e devir. Por exemplo:
1) o tempo não é mais do que a imagem móvel da eternidade, como queria
Platão? 2) O tempo é a articulação do movimento e da mudança que se podem
observar no real? 3) O tempo é uma forma de apreensão do real na qual os
elementos se apresentariam como sucessivos? Note-se que nos três exemplos o
tempo é apreendido de forma mediata: no primeiro caso, a eternidade, inapre-
ensível pela percepção e pelo intelecto humanos, apresenta-se por meio de
uma imagem da passagem do tempo, que é aparência, posto que a intuição
imediata nos daria a eternidade, que nesse caso seria a verdade do tempo, à
qual devemos nos esforçar para chegar por meio da superação das aparências
de mudança, movimento e sucessão. No segundo caso, que é o de Aristóteles,
o tempo é uma articulação que introduzimos na realidade para representar o
movimento do passado para o futuro passando pelo presente (o antes e o de-
pois), o que nos permite representar o real dividido segundo as dimensões do
tempo. No terceiro caso (Kant) o tempo é uma forma de se perceber a reali-
dade tal como aparece para nós enquanto fenômeno; o tempo está na percep-
ção e não nas coisas; ele faz parte daquelas condições a priori que nos permitem
conhecer objetivamente conteúdos de realidade representados como sucessão.
A pergunta feita por Bergson é se esse tempo constituído segundo as
nossas necessidades de relação com as coisas não seria muito mais um produto
da percepção e do entendimento do que algo imediatamente real. Aqui surge a
questão ontológica: o que tem a ver isso que representamos como tempo com o
tempo real? O fato de que conhecemos as coisas através do tempo significa
que as conhecemos realmente no tempo? Essa questão é importante porque, se
o tempo for um dado essencial da realidade, o desconhecimento do tempo –
essa deformação representativa da temporalidade – implica uma perda de rea-
lidade para o conhecimento. Essa constatação crítica se prolonga numa pro-
posta de conhecimento: se as mediações representativas nos fazem perder de
vista o tempo real, somente uma volta aos dados imediatos da realidade nos fará
reencontrar o tempo como modo essencial da existência de tudo o que é real.
A questão é como operar esse retorno aos dados imediatos. É exatamente
aqui que se estabelece em Bergson a relação entre psicologia e ontologia. Para
111
1
Bergson é contemporâneo de Freud, a quem se refere poucas vezes e de forma não muito
significativa. Em todo caso, Bergson parece não pôr em dúvida a possibilidade de um auto-
conhecimento derivado da presença imediata do sujeito a si mesmo. Podemos não coincidir
com a realidade em geral, diz Bergson, mas certamente coincidimos com nós mesmos. É
interessante notar que Bergson, em Matéria e memória, afirma o inconsciente, mas sem tirar
conseqüências análogas às de Freud. Nessa mesma linha, podem-se encontrar entre Bergson
e Freud interessantes afinidades, sobretudo no que diz respeito à “normalidade” como princí-
pio regulador da inserção do sujeito na realidade social.
112
expressão articulada de uma realidade que não cabe nos conceitos e nas pala-
vras. Assim, será sempre aproximadamente que poderemos nos referir à reali-
dade do processo consciente. O entendimento é avesso à abordagem de realidades
processuais que são essencialmente movimento e mudança e em que as formas
seriam secundárias em relação à própria transformação.
Por isso a subjetividade é abordada e conhecida ali onde pode ser objeti-
vada: na interface entre interioridade e exterioridade, região em que a consciên-
cia se faz exterior a si mesma para que o Eu se possa comunicar com as coisas
por meio de uma representação governada por critérios pragmáticos de inser-
ção empírica e intelectual num mundo sobre o qual o sujeito deve agir, e não
numa realidade que ele deveria conhecer em si mesma. O papel da percepção
e da representação, para Bergson, é pragmático, e o critério de relação entre o
sujeito e as coisas é de ordem utilitária. Prevalece a ação, real ou possível, e
não o conhecimento da realidade em si. Prevalece o interesse vital, e não o
desinteresse especulativo. O sujeito do senso comum e do conhecimento cien-
tífico está mais atento à significação prática da realidade; por isso a realidade
lhe escapa, e sua própria realidade lhe escapa, como que necessariamente.
Assim a relação entre psicologia e ontologia tal como Bergson a estabe-
lece é fundada numa crítica radical da atitude objetivante, isto é, da racionali-
dade instrumental aplicada à representação da realidade objetiva e da própria
subjetividade.
Quando passamos a Sartre e Merleau-Ponty, encontramos pelo menos
algo em comum com Bergson: o propósito da fenomenologia husserliana de
voltar às próprias coisas, isto é, de reencontrar a camada originária da relação da
consciência consigo mesma e com as coisas. O projeto de Husserl é essencial-
mente fundacionista: ele pretende recolocar de modo radical a questão dos
fundamentos do conhecimento, que no final do século XIX se apresentava
como a polêmica entre o psicologismo, tendência que considerava a atividade
psicológica como raiz explicativa de toda evidência (inclusive na matemática),
e o logicismo, que considerava o conhecimento como fundado em normas ló-
gicas cujo valor absoluto transcendia a representação. Husserl considera que
fazer repousar a evidência na psicologia equivale a naturalizar o conhecimen-
to e reduzir a noção de verdade à contingência do aparato psíquico. Por outro
lado, como só existe conhecimento na relação entre sujeito e objeto, a nature-
za da evidência não pode ser considerada como completamente estranha ao
sujeito cognoscente, como se pudesse haver conhecimento e verdade mesmo
na ausência de sujeitos.
É por isso que a fenomenologia husserliana concede importância central à
noção de correlação, isto é, à reciprocidade entre sujeito e objeto. A consciência
e os conteúdos do mundo são correlatos, e um não existe sem o outro (noésis e
113
114
2
FOUCAULT, M. La psychologie de 1850 à 1950. In: WEBER, A.; HUISMAN, D. Tableau
de la Philosophie Contemporaine. Paris: Fischbascher, 1957. Republicado em: Revue Internatio-
nale de Philosophie, n. 2, 1990.
3
SARTRE, J-P. Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade.
Originalmente publicado em La Nouvelle revue Française, 1939. Republicado em Situações I,
tradução brasileira da editora CosacNaify, São Paulo, 2005.
115
4
SARTRE, J-P. L’Imaginaire. Paris: Gallimard, 1940. SARTRE, J-P. Esquisse d’une Théorie des
Émotions. Tradução brasileira Esboço de uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2006.
116
117
5
MERLEAU-PONTY, M. La Fenomenología y las ciencias del hombre. Buenos Aires: Editorial
Nova, 1969, sobretudo p. 50ss.
118
119
6
Sartre, a partir dos anos 1960, desenvolverá em termos de filosofia da história e de psicanálise
existencial essa relação entre o singular e o universal. O indivíduo é determinado pelas
condições que o ultrapassam, do ponto de vista histórico, social e psicológico; mas o resultado
dessa determinação é o indivíduo singular, porque as determinações gerais são assimiladas
singularmente. Se assim não fosse, as mesmas condições objetivas produziriam os mesmos
indivíduos, e não haveria diferença ou singularidade. Assim, a universalidade está dialetica-
mente presente em cada indivíduo singular. Cf. a respeito: SARTRE, J-P. Questão de Método.
São Paulo: Editora Nova Cultural (coleção “Os Pensadores”).
7
PRADO JÚNIOR, B. Presença e campo transcendental. Consciência e negatividade na filosofia de
Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
120
8
Cf. a respeito dessa identificação entre essência e significação numa ontologia fenomenológica,
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995, unidade 6, capítulo 4.
121
122
1
Tradução de Ingrid Müller Xavier.
2
“Estritamente falando, a intuição do imediato é inexpressável. Mas pode-se sugeri-la, evocá-
la. Como? Rodeando-a de metáforas convergentes” (LE ROY. Une philosophie nouvelle: Henri
Bergson. Paris: Alcan, 1913). Salvo indicação contrária, todas as traduções são nossas.
3
“Recorrer a metáforas é uma maneira de utilizar a linguagem para fazê-la expressar o inexpres-
sável…” (VIEILLARD BARON. Bergson et le bergsonisme. París: Armand Colin, 1999, p. 61).
4
“Quando Bergson explica longamente que não pode dizer a vivência, recorre a uma teoria
esboçada em uma linguagem encantadora e metafórica que lhe dá argumentos. Essa teoria é
uma solução desesperada: consiste em convidar o leitor, por meio de imagens múltiplas, a
instalar-se no centro de una intuição filosófica” (MERLEAU-PONTY à la Sorbonne, Résumé
de ses cours établi par des étudiants et approuvé par lui-même. Bulletin de psychologie, XVIII,
236, p. 153-154).
5
RICŒUR. La métaphore vive. Paris: Seuil, 1975, p. 376.
123
diz a experiência viva”.6 Exemplifica sua proposta com Heidegger, mas poderia
tê-lo feito com Bergson. De fato, é John Mullarkey quem o faz, quando escreve
que a metáfora, por sua própria variação, imita o dinamismo da natureza7.
Pois bem, o próprio Ricœur assinala que a preocupação em marcar a
diferença entre a metáfora e a analogia constitui um traço característico do
discurso especulativo.8 Por outro lado, quando tenta caracterizar certo estilo
hermenêutico, o situa na intersecção de duas correntes, a do metafórico e a do
especulativo, desejoso de conservar o poder da metáfora para dizer o vivido, é
certo, mas sem querer renunciar à claridade do conceito.9
Ricœur também contribui interrogando a metáfora para determinar se
verdadeiramente é ela a figura mais adequada para significar a durée e, mais
amplamente, para expressar todo “empirismo verdadeiro”, toda filosofia que,
ainda que postule uma ordem distinta por natureza daquela da matéria, realiza
o esforço para conferi-la o máximo de consistência, de tangibilidade. Mas,
para além de Ricœur, podemos perguntar-nos também se a relação entre essa
ordem e o discurso é uma relação de significação ou de imitação, na qual o
espírito seria o objeto, por mais movente que seja, da palavra.
Se muitos comentadores insistiram sobre a importância da metáfora no
estilo bergsoniano, é sem dúvida porque o próprio Bergson a apontou. “A
intuição não se comunicará a não ser pela inteligência. É mais que idéia;
deverá, no entanto, para transmitir-se, cavalgar sobre idéias. [...] Compara-
ções e metáforas sugerirão aqui o que não chegaremos a expressar”.10 O fun-
damento do problema reside em uma incompatibilidade constituinte entre a
linguagem e o pensamento, incompatibilidade que Bergson formula e refor-
mula em varias oportunidades,11 mas cuja expressão mais acabada é esta: “o
pensamento permanece incomensurável com a linguagem”.12 É que um e ou-
tra possuem notas opostas: heterogeneidade, sucessão e indivisibilidade por
um lado; continuidade, simultaneidade e homogeneidade por outro. O indizí-
vel e o inefável em Bergson não consistem em um mais além de uma estrita
coincidência entre a linguagem e o pensamento, como em Wittgenstein, mas
ao contrário, justamente em uma defasagem entre uma e outro. É uma região
6
Ibidem, p. 391-392.
7
MULLARKEY. Les nouvelles lectures. Magazine littéraire, n. 386, p. 25, avril 2000.
8
P. RICŒUR, op. cit., p. 353.
9
Ibidem, p. 383.
10
PM, p. 42. Citamos as obras de Bergson e de Deleuze com as iniciais. Ver a lista ao final.
11
Ver, por exemplo, PM, p. 119 ou E, p. 178.
12
E, p. 124.
124
ou um tempo ao que nos leva o pensamento sem que a linguagem possa segui-
lo. Porém, é justamente essa fenda que Bergson propõe preencher com uma
expressão determinada, a expressão metafórica, como se ela fosse capaz de
inserir o movimento, a continuidade, a sucessão na língua. Pois bem, se nos
remetemos aos casos particulares, trata-se verdadeiramente de metáforas? No
momento, nos limitaremos a uma definição muito simples da metáfora, quase
escolar: vamos considerá-la como a figura que substitui o termo comparado
pelo termo comparante. Desde esse ponto de vista, propomos a avaliação si-
multânea de dois textos perfeitamente equivalentes no que concerne ao senti-
do, uma passagem de A evolução criadora e um famoso poema de Antonio
Machado, poeta espanhol discípulo de Bergson, pelo menos antes de receber
a influência de Unamuno.
13
“La vie, elle, progresse et dure. Sans doute, on pourra toujours, en jetant un coup d’œil sur le
chemin une fois parcouru, en marquer la direction, la noter en termes psychologiques et parler
comme s’il y avait eu poursuite d’un but. C’est ainsi que nous parlerons nous-mêmes. Mais, du
chemin qui allait être parcouru, l’esprit humain n’a rien à dire, car le chemin a été crée au fur et
à mesure de l’acte qui le parcourait, n’étant que la direction de cet acte lui-même” (EC, p. 51).
14
MACHADO. Poesías completas. Madrid: Espasa Calpe, p. 239. Caminhante, são teus rastos
/o caminho, e nada mais/caminhante, não há caminho /faz-se caminho ao andar./Ao andar
faz-se o caminho /e ao olhar-se para trás / vê-se a senda que jamais /se há de voltar a pisar. /
Caminhante, não há caminho /somente sulcos no mar (trad. José Bento, Ed. Cotovia).
125
que iria ser percorrido, o espírito humano nada tem a dizer” –, Bergson com-
para a vida a um caminho que percorremos. Pois bem, o termo comparado
está bem presente, mais que presente, imponente, pois aparece ao princípio da
primeira frase seguido de uma vírgula que obriga o leitor a fazer uma pausa e
duplicado pelo pronome que lhe corresponde: é a vida. “A vida, ela…” Nada
semelhante ocorre no poema de Machado, que, tomado literalmente, fala de
um caminho e nada mais. É certo, suspeitamos que o caminho está em lugar
de outra coisa, e sobre esta suspeita, se funda o valor do poema. Mas, estrita-
mente, não é mais que uma interpretação que cabe ao leitor. Além do mais, na
última linha, o mar substitui o caminho e as estrelas, os rastos, elevando a
metáfora à segunda potência e afastando uma vez mais o termo comparado,
realizando, no texto, o que sucede na realidade, a saber, que o passado se
afasta sempre irreversivelmente e irreversivelmente para sempre.
O poema de Machado, posto que se organiza em uma espécie de efeito
de eco metafórico, revela a que ponto as metáforas de Bergson são simuladas,
ou a que ponto se aproximam a uma comparação. Talvez devêssemos sofisti-
car um pouco a nossa definição inicial da metáfora, ou relativizá-la introdu-
zindo “graus de metáfora”. Efetivamente, se a metáfora é uma comparação
que perdeu seu termo comparado, este bem pode ser reencontrado ou não.
Diremos que em Bergson sempre é fácil descobri-lo, posto que está sempre
muito próximo – na frase precedente na passagem apresentada –, enquanto
que no poema de Machado está completamente ausente. A melodia, metáfora
bergsoniana por excelência, confirma a hipótese porque, ainda que o termo
comparado esteja absolutamente ausente do texto, se dirige sempre a um leitor
avisado que sabe sempre fazê-la corresponder com a durée. “A metáfora, dire-
mos, é mais um abuso da linguagem que um uso da língua, pois repousa
sempre em uma comparação”. Frédéric Cossutta, em uma análise de “O pos-
sível e o real”, sustenta que a metáfora tem uma função de identificação onto-
lógica.15 Ilustra sua proposta com dois casos: aquele em que Bergson faz cor-
responder o mundo a uma obra de arte e aquele em que a correspondência
concerne, por um lado, ao ato da leitura e à intuição e, por outro, ao livro e ao
mundo. Nesses dois casos se produz uma defasagem entre a comparação e a
metáfora. Bergson constrói uma comparação e, algumas proposições mais
tarde, esquece o termo comparado. Isso, pensa Cossutta, produz uma fusão,
uma identificação entre o termo comparado e o comparante, uma identifica-
ção ontológica que tem por objetivo, nos exemplos considerados, expressar
que o mundo não é como uma obra de arte ou como um livro, mas que o
15
COSSUTTA. L’œuvre philosophique de Bergson: une “création continue d’imprévisible nou-
veauté”? In: COSSUTTA. Lire Bergson: “Le possible et le réel”. París: PUF, 1998, p. 98-100.
126
16
Esta projeção já foi sugerida por Daniele Gambara, em “Henri Bergson: une philosophie de
la signification”, In: STANCATI. Henri Bergson: esprit et langage. Sprimont: Mardaga, 2001,
p. 305-306: “Como o possível toma forma pela projeção retrospectiva do real, e não há um
possível que não seja o possível de uma certa realidade, a linguagem silenciosa das coisas é a
projeção inevitável – em um mundo disposto a acolhê-la – da linguagem, de uma linguagem
qualquer, da faculdade da linguagem, da qual nós, os homens, não seríamos capazes de nos
desfazermos.”
127
que não há nada indizível, mas sempre diferentes maneiras de falar. O que quer
dizer Bergson quando declara que a durée é estritamente indizível? Para saber o
que um homem pensa, não há que escutar o que diz, mas ver o que faz…
aconselha Bergson com freqüência. Mas o problema reside em que aqui a ação
coincide com a dicção. O que quer dizer então? Quer dizer, pela negativa, que
a durée possui as notas inversas da língua, que é movente, contínua, heterogênea
e cambiante, que não pode transmitir-se senão por meio de uma expressão que
negue a língua, de uma voz que ponha a expressão contra a língua.
Reencontramos o mesmo problema no que diz respeito à definição. Em
reiteradas ocasiões, Bergson rechaça a definição, se nega a dar uma definição
precisa ou geométrica: da intuição,17 da consciência,18 da liberdade,19 do riso.20
Esse último caso é o mais eloqüente porque o riso será logo expresso em uma
fórmula que não deixará de reaparecer em todo o texto: du mécannique plaque
sur du vivant “o mecânico encouraçando o vivente”. Objetaremos, com Berg-
son, que não se trata de uma definição. Mas só se definirmos a definição como
o faz Bergson. Basta dar uma definição mais ampla para atribuí-la à fórmula
do riso e afirmar que Bergson rechaça a definição quando quer definir um
objeto como algo que não é um objeto, como um processo, movente, vivente,
mutante. É que, indefinível não há nada; o que há são muitas maneiras de
definir. “Por conseguinte, não diremos que a expressão de Bergson evoca o
indizível com metáforas, mas que diz algo sempre dizível com comparações”.
Em síntese, para Bergson, o mundo parece ser o oposto do que é para o poeta
argentino Roberto Juarroz: “El mundo es el segundo termo / de una metáfora
incompleta, / una comparación/ cuyo primer elemento se ha perdido”.21
Não só é o primeiro termo, mas também a comparação está completa.
Qual pode ser então o sentido desse ocultamento provisório, fugaz do
primeiro termo? Quiçá seja pedagógico. Muitas vezes, Bergson fala de um
filósofo antigo que provou a existência do movimento pondo-se a caminhar.22
“É Diógenes”, pensa o leitor, mas Bergson não diz, quiçá, porque segundo
ele, “não conhecemos, não compreendemos senão o que em alguma medida
podemos reinventar”.23 Não sem reservas, queríamos sugerir que esse tipo de
17
PM, p. 29.
18
ES, p. 5.
19
E, p. 165
20
R, p. 1, 28 e 101.
21
JUARROZ. Poesía vertical. Buenos Aires: Emecé, 2005, p. 209.
22
MR, p. 51, PM, p. 160.
23
PM, p. 94-95.
128
24
SOULEZ. Bergson: une prosodie de la philosophie? In: Le langage comme défi. St. Denis:
PUV, 1991, p. 251.
25
PHILONENKO. Bergson. Ou de la philosophie comme science rigoureuse. Paris: Cerf, 1994, p. 11.
Também Dominique Maingueneau fala de um certo “estilo pedagógico”, em “‘Le possible et
le réel’: quel genre de texte?”. In: COSSUTTA. Lire Bergson: “Le possible et le réel”. Paris: PUF,
1998, p. 38.
26
GENETTE. Figures III. Paris: Seuil, 1972, p. 41.
27
Ibidem, p. 41 e 45.
28
Ibidem, p. 50.
29
“Tous les vivants se tiennent, et tous cèdent à la même formidable poussée. L’animal prend
son point d’appui sur la plante, l’homme chevauche sur l’animalité, et l’humanité toute
entière, dans l’espace est dans le temps, est une immense armée qui galope à côté de chacun
de nous, dans une charge entraînante capable de reverter toutes les résistances et de franchir
bien des obstacles, même peut-être la mort” (EC, p. 271).
129
30
CC, p. 89; C2, p. 32; PP, p. 45.
31
D, p. 25.
32
AO, p. 336.
130
33
K, p. 127.
34
C1, p. 107.
35
GENETTE, op. cit., p. 46.
36
MP, p. 291-292.
131
37
ID, p. 258.
38
MP, capítulo 4.
39
K, p. 39.
40
C2, p. 78.
41
C2, p. 168-169.
132
133
134
Texto será
trocado!!!não confere
com o sumá-
? ? ? o i r
A crítica que Heidegger endereça, de passagem, em Sein und Zeit, à
concepção bergsoniana do tempo é bem conhecida. No prolongamento do
tempo vulgar de Aristóteles, ela acabaria por ocultar a origem temporal por
sua redução ao espaço. Heidegger limitava-se ao Ensaio sobre os dados imedia-
tos da consciência que parecia, então, exaurir, aos seus olhos, a exposição do
tempo que Bergson viria a propor em seguida.1 Entretanto, Heidegger co-
nhecia a obra inteira de Bergson e na mesma época, em seus cursos, pôde
considerar suas obras posteriores como plenas de possibilidades que seu pri-
meiro livro não continha ainda. No seu curso de 1928 sobre a lógica, Heide-
gger propunha uma bibliografia sobre o conceito de tempo que precisava,
para cada autor, o lugar textual em que ele era mencionado – à exceção notá-
vel da obra de Bergson para qual ele reenviava em sua totalidade: “Bergson,
todos os seus escritos”.2 Quer dizer que Heiddeger considerava a obra de
Bergson como um corpus sobre o tempo, longe de reconduzir esta unicamente
ao seu primeiro trabalho. Já o curso de 1925, Prolegômenos à história do concei-
to de tempo, tinha uma preocupação maior de lhe fazer justiça, projetando
inicialmente consagrar-lhe uma seção inteira, a primeira da segunda parte.
A crítica, em parte injusta, que Heidegger endereça, em Sein und Zeit, à
concepção bergsoniana do tempo não interrompe, portanto, a relação entre
eles e não é de fato, do ponto de vista dos cursos públicos, senão o pólo
negativo de uma leitura que encobre um pólo positivo. Debruçaremos-nos aqui
sobre o segundo, menos conhecido, que oferece a possibilidade de compreender
1
“Bergson manteve em seguida a exposição do tempo que havia elaborado nas suas obras de
juventude” (GA, 21, p.250-251). As obras de Heidegger serão citadas, salvo indicação con-
trária, pela edição completa Gesamtausgabe (GA), publicada pela editora V. Kostermann de
Frankfurt.
2
GA 26, p. 256 : “Bergson, alle Schriften” ; cf. também p.262-269.
135
3
GA 20, p.11-12, trad. fr. Alain Boutot, Prolégomènes à l’histoire du concept de temps, 2006, p.
29: “Bergson essaie bien d’atteindre, par delà ce concept, un concept plus originaire du temps, et
c’est ce qui justifie qu’il soit abordé à part dans la question de l’histoire du concept de temps”.
4
GA 25, § 12, p.262-263
136
5
Nós citamos Sein und Zeit 1927, na tradução de Emmanuel Martineau, éd. Authentica, 1985, com
a paginação alemã no corpo do texto (citada SuZ). Modificamos um único termo Gewesen-sein que
tomamos como être-passé (ser-passado) no lugar de être-été (N. T. literalmente ser-sido). Nós citamos
igualmente no corpo do texto L’Essai sur les données immédiates de la conscience, 1889, Puf “Quadrige”
(citado L’Essai) para o primeiro capítulo; Matière et mémoire, 1896, Puf “Quadrige” (citado MM)
para o segundo; L’évolution créatrice, 1907, Puf “Quadrige” (citado EC) para o terceiro.
6
Para um estado global da questão, cf. F. Dastur, Heidegger et la question du temps, 1990, Puf
“Philosophies”, que pode-se prolongar por seu artigo recém publicado: “Le temps chez le
dernier Heidegger” (In: Heidegger, Cerf, 2006, sous la dir. de M. Caron, p.273 sq.)
137
7
Remetemos para esta crítica bergsoniana da sucessão, no sentido clássico do termo, ao estudo
mais completo de C. Romano, Il y a, op. cit. (p.129-138), que reconstituiu habilmente o
argumento, disseminado na obra, extraindo desta o que ele chama de “núcleo fenomenológico”.
8
BERGSON. Le possible et le réel. In: PM, p. 110 et 111.
9
BERGSON. Le souvenir du présent et la fausse reconnaissance. In: L’énergie spirituelle (cité
ES), p. 130.
10
Ibidem, p. 132 (grifo do auitor).
138
11
Uma tal leitura, necessariamente retrospectiva, posto que ela aloja Heidegger em Bergson
como um de seus possíveis e prólogos, não poderia ser comparada – seria necessário poder
igualar – à leitura empreendida recentemente por J.-F. Marquet (Durée bergsonienne et
temporalité dans “Bergson, la durée et la nature”, coordenada por J.-L. Vieillard-Baron, Puf
2004, p. 77-97), a qual, certamente de inspiração heideggeriana, interpreta a duração berg-
soniana em função de sua estrutura singular. Ela recupera, entretanto, alguns pontos.
12
Respectivamente GA 61, p.80 e Kant et le problème de la métaphysique, Tel “Gallimard”, trad.
fr. Waelens et Biemel, p. 294
13
GA 21, p.251
14
Bergson, Matière et mémoire, ch3, éd. Puf “quadrige”, p. 160-161. Na verdade, a citação
inscrita em seu curso de 1919/1920 GA 58, Problèmes fondamentaux de la phénoménologie,
p. 1) retoma a formulação que Bergson propõe algumas páginas mais adiante e que Heidegger
cita em francês impossível (“Nous sommes en d’ouvrir toujours devant nous l’espace, de
refermer toujours derrière nous la durée”) para ter amputado de seu início: “On oublie que le
139
140
15
Respectivamente Bergson em G. Lechalas, Mélanges, éd. du centenaire, p.411 ; “L’âme et le
corps” dans L’énergie spirituelle (cité ES), p.30 ; a renúncia ao cartesianismo é explícita duran-
te a discussão ocorrida na Société française de philosophie em 22 de dezembro de 1904: La
théorie moderne de la perception… dérive de la définition cartésienne de l’âme et du corps,
l’âme étant considérée uniquement comme res cogitans, et le corps uniquement comme res
extensa. Mais ni cette conception du corps ni cette conception de l’esprit ne doivent être
conservées, en métaphysique, comme des expressions adéquates de la réalité. [...] A vrai dire,
votre moi n’est pas plus dans votre cerveau que dans l’objet extérieur ; il est partout où se trouve
une de ses représentations, ce qui revient à dire qu’il est virtuellement (ou inconsciemment)
dans tout le perceptible, et actuellement dans tout le perçu” (Mélanges, p.644-645); cf. Em
termos muito similares: Heidegger, GA 20, § 25, p.306-308, tr. fr. Boutot, p.324-326.
16
[ N. do T. em francês: On. Este termo se refere ao pronome alemão man. Optamos por seguir,
neste caso, a tradução para a língua portuguesa de Maria de Sá Cavalcante. Para esclarecimentos
141
mesmo modo que Bergson diz “sempre” (MM, p. 165) para qualificar a tem-
poralização, Heidegger dirá “antes de tudo e quase sempre” afim de arranjar a
possibilidade de um outro modo de temporalidade, próprio e próprio a si”.17
(i) O “esperar-se” (Gewärtigen) é o futuro inautêntico: “preocupando-se,
o Dasein é atento a si, a partir do que oferece ou recusa o que lhe preocupa”
(SuZ, § 68, p. 337). O Dasein não pode esperar isso ou aquilo, senão se o
“espera-se...” aberto ao horizonte em que qualquer coisa pode ser esperada.
Mutatis mutandis, é porque a atenção das coisas sobre o nosso corpo não se
prolonga imediatamente em uma reação dele sobre elas, é porque irresolvido,
esperamos, retardando o momento de agir que se abre diante de nós, o espaço
de nossa percepção, esquema de nosso futuro próximo. Os objetos percebidos
que me envolvem simbolizam nosso poder-agir cujo o término é marcado por
seu “maior ou menor afastamento”. Longe, então, de que uma resolução deci-
dida no instante abra a situação, é por nossa irresolução que se abre o espaço
em que minha ação retardada se dispersa em ações possíveis. Longe de me
antecipar ou de me anteceder (vorlaufen) de modo resolvido em direção à
minha possibilidade, a mais própria que me lança à morte, não estou, portan-
to, atento a meu poder-ser, ao menos do meu poder-agir, senão a partir dos
objetos, promessas ou ameaças, que me chamam à atenção, ou minha hesita-
ção nasce diante de mim do mesmo modo que as possibilidades de agir sobre
eles a curto ou longo prazo. E porque a atenção à vida descarta dela essencial-
mente a morte que nos espreita, é de maneira conseqüente que nosso futuro
será definido por Bergson como indeterminado e que o horizonte apercebido
será inscrito num horizonte que o transborda infinitamente: “como este futuro
deve transcorrer indefinidamente, o espaço que o simboliza tem a propriedade
de permanecer, na sua imobilidade, indefinidamente aberto” (MM, p. 160).
(ii) O “presentificar” (Gegenwärtigen) é o presente inautêntico: “assim como
para compreender inautêntico projeta-se o poder-ser a partir do que não pode se
preocupar, isso torna a dizer que se temporaliza a partir do presentificar” (SuZ,
§ 68, p. 338). Mutatis mutandis, assim como o futuro me abre um espaço onde
agir, os objetos percebidos me são apresentados, com efeito, sem serem ainda
sobre o termo, cf. Heidegger, Ser e tempo, parte. I. Trad, Maria de Sá Cavalcante, Petrópolis:
Vozes, 1998. p. 319.]
17
Com efeito, se a referência a Bergson é verificada, se porá a questão de saber se a existência
inautêntica não obedece a um modo de temporalização próprio dos vivos que Heidegger teria
em seguida limitado ao homem somente em virtude da estrutura existencial do ser-no-mundo
que identifica ao Dasein, também impessoal esteja ele aqui sob a forma do “On (impessoal)”.
[N. do T. cf. nota do tradutor 16, acima]. Nós deixamos a questão aberta, como deixamos de
lado o problema da difícil conexão entre a vida e a existência em Heidegger e para a fenome-
nologia em geral (cf. os trabalhos de Henry, Derrida, Greisch et Barbaras).
142
presentes eles-mesmos, quer dizer, sem serem ainda objetos de uma ação real.
Eles designam simplesmente o começo. Com efeito, se “meu presente consiste
na consciência que tenho do meu corpo” (MM, p. 153), o espaço que abre o
futuro não pode, portanto, senão tornar presentes os objetos que sugem e os
limitar às possibilidades que oferecem para minha ação. Em outras palavras,
absorvidos pelo que pecebemos, “nos sentimos destituídos destes objetos mate-
riais que erigimos assim em realidades presentes” (MM, p. 160, grifo nosso). Com-
preendemos, portanto, com Heidegger, que só o presente autêntico poderá cum-
prir-se no instante (Augenblick), porque cabe apenas a si se resolver e se manter
na resolução, ainda que o presentificar deposite de algum modo o presente nas
coisas que necessariamente são apenas presentes, durante o tempo, irresolvido,
que dele me distancio? A espera é então bem presentificante.
(iii) O “esquecimento” é o passado inaltêntico que é já compreendido
como ser-passado (Gewesen-sein):
143
18
Esta recapitulação de todo o nosso ser passado em virtude deste retorno repetitivo a si mesmo
parece muito, por outro lado, com o ato livre tal como Bergson o descreve no terceiro capítulo
do Ensaio.
144
Ainda se trata aqui do modo impróprio. Ainda seria preciso estar em posse de
seu fio condutor para, sobre este ponto, receber Bergson.
145
19
Bergson, “Introduction à la métaphysique” In PM, p.183
146
20
GA 26, p. 266-267
147
21
PM, p.183
148
seu termo, porque a imagem implica necessariamente que o rolo possa termi-
nar. Como o fio, a duração do vivo se enovela desde seu fim que é o futuro e
a partir do qual ela se recolheem seu passado. A evolução criadora dará uma
imagem equivalente: “a duração é o progresso contínuo do passado que corrói
o futuro” (EC, p. 4, grifo nosso). Isso não é, então, conferir ao futuro um
certo primado pensando-o de saída como aquilo que o passado visa corroer?
Deve-se notar, no entanto, uma diferença: a imagem do rolo incide sobre a
duração pessoal do eu de modo que Heidegger pode, de bom grado, suben-
tender ainda a finitude intrínsece da existência do Dasein que determina o
sentido do futuro como ser-para-morte. Esta conclusão, A evolução criadora
nos ensina que Bergson não pôde aceitá-la – posto que a finitude não incide de
saída sobre os indivíduos, mas sobre a corrente vital que os atravessa: “a força
imanente à vida... é finita, e... se esgota tão logo se manifesta” (EC, p. 142).
Isso está então em alguns de seus desenvolvimentos ou ramificações – o reino
dos micro-organismos em primeiro lugar, que Bergson diz que “chegam mais
ou menos rápito ao fim de seu rolo” (EC, p. 119). Tudo se passa como se a
tendência que tem a vida a se dividir e a abandonar uma parte dela mesma se
explicaria, antes de tudo, pelo objetivo de tornar sua finitude intrínseca e de
manter uma tensão para o elan que a revela sem cessar na figura da curvatura
fatal que ela porta en si. Viver, assim, para mim consiste certamente em enve-
lhecer, mas se fala propriamente de meu corpo e somente “por metáfora” (EC,
p. 15) de minha pessoa consciente. O futuro pode, entretanto, conservar o
primado que uma tal imagem sugeria, mesmo quando ele não mergulha na
morte?22
É neste estágio que a análise de Heidegger intervém para dar crédito, de
qualquer modo, a A evolução criadora, e sua noção de Elan, de haver compreen-
dido o futuro como a dimensão propriamente temporal do tempo originário.
A vida lança-se à frente pondo, doravante, o peso sobre o futuro que, longe de
22
A imagem do rolo resta, entretanto, compatível com a revelação de nossa morte natural. E tal
é a tentativa de Max Scheler em seu livro póstumo, Mort et survie (escrito entre 1911 e 1923)
que constitui sobre este ponto a síntese realizada de Bergson lido por ele e de Heidegger que
ele antecipa em certas teses. Se apoiando sobre Bergson de quem ele evoca a imagem do
passado corroendo o futuro, ele conclui assim sobre o envelhecimento da vida: “Quel qu’il soit [le
moment de la vie], nous y voyons encore l’orientation selon laquelle changent, dans leurs propor-
tions relatives, les dimensions d’une totalité vitale T. qui va croissant. Et cette orientation est une
absorption constante, par la vie vécue et son retentissement, de la vie disponible donnée comme
future. Il s’agit donc d’un accroissement du volume du passé aux dépens de celui de l’avenir, et
d’une conscience progressive de ce changement – expérience donnée dans la structure essentielle
de chaque moment vécu – nous pouvons la nommer aussi expérience intime de notre orientation
vers la mort. [...] La révélation de la mort naturelle est nécessairement contenue en chaque
expérience possible de la vie personnelle” (trad. Dupuy, Aubier, p. 24-25).
149
23
V. Jankélévitch, Henri Bergson, Puf “Quadrige”, 1959, ch. IV, p.153 ; tal é um dos limites,
nos parece, da comparação insistente que se propõe de Bergson com Schopenhauer no capítu-
lo consagrado à sua vida.
150
24
Péguy, Le porche du mystère de la deuxième vertu, Œuvres poétiques complètes, éd. pléiade, p.
649.
25
GA 26, p. 268.
151
26
BERGSON, “Le souvenir du présent et la fausse reconnaissance”, 1908, In ES, Puf “quadri-
ge”, p. 151.
27
BERGSON, “La conscience et la vie”, 1911, idem, p. 5
28
J.-F. MARQUET, Singularité et événement, Millon, 1995, p. 71
152
29
D. FRANCK, Heidegger et le problème de l’espace, éd. de minuit, 1986.
30
SARTRE, L’être et le néant, Tel “Gallimard”, 1943, p.151; MERLEAU-PONTY, Phénomé-
nologie de la perception, Tel “Gallimard”, p. 319 ou 72.
31
BERGSON, PM, p. 206.
153
32
LÉVINAS, préface, op. cit., p.9
33
PÉGUY, Note conjointe sur M. Descartes et la philosophie cartésienne, Œuvres complètes, t.
III, éd. de la pléiade, p. 1365.
154
1
Tradução de Ingrid Müller Xavier.
2
LYOTARD. Discours Figure (1971).Paris: Kliencksieck, 1985. Doravante DF.
3
LYOTARD. Moralités postmodernes. Paris: Galilée, 1993. Doravante MP.
155
4
Esse conceito está desenvolvido amplamente em LYOTARD. Le Différend (1983). Paris: Les
Éditions de Minuit, 1983. Doravante D.
5
Essa expressão, utilizada em uma conferência recente em Bogotá, não é de Lyotard e sim da
artista brasileira Ana Maria Tavares.
6
Ver WITTGENSTEN, Ludwig. Investigaciones filosóficas. UNAM, 1988. Doravante Witt.
7
LYOTARD. La Condition Postmoderne. Paris: Éd. de Minuit, 1979 (em português A condição
pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998). Doravante CP.
156
“A diferença na temporalidade”
A “diferença” como abismo entre desejo e linguagem
Lyotard, referindo-se a Matière et mémoire (1989) e a La pensée et le mou-
vant (1922),9 escreve – em “VEDUTA sobre um fragmento da ‘história’ do
desejo”, publicado em DF em 197110 –, que um filósofo como Bergson, “é
capaz de agarrar e de encontrar a diferença na temporalidade” (mas não do
mesmo modo a diferença na espacialidade).11 DF explora e assenta as bases de
um dos conceitos centrais do pensamento de Lyotard, a saber o conceito de
“diferença”, que nos anos 1980 se transformará, devido à orientação analítica
e pragmática da linguagem que Lyotard adota desde essa década, no conceito
de “diferendo”, do qual falaremos mais adiante.
DF, que é um livro sobre estética – principalmente da arte moderna –, se
interessa por aprofundar uma questão política geral, uma idéia retomada do
jovem Marx para desenvolver a reflexão sobre o discurso da filosofia crítica,
8
LYOTARD. “Los derechos del Otro”. Conferência de J.-F. Lyotard na Universidad Nacional
de Colombia, Bogotá, 1994.
9
BERGSON, H. Matière et mémoire e La pensée et le mouvant, publicados em: Oeuvres complètes,
La pléyade. Paris: PUF, 1959. Lyotard se refere concretamente ao capítulo II da primeira
obra e à Introdução (1) da segunda. Ver BERGSON. Oeuvres (1959). Paris: PUF, 1984.
10
LYOTARD. VEDUTA sur un fragment de l’”histoire” du désir. DF, p. 165.
11
Lyotard se refere a Bergson para afirmar que este filósofo encontra e revela a “diferença” na
temporalidade, mas não faz o mesmo com a espacialidade. Ver DF, 165.
157
cujo sentido reside em sua relação com a ação (política).12 A pergunta se for-
mula da seguinte maneira: como o discurso crítico da filosofia pode escrever “o
desejo de transformação da realidade”, já que esse desejo está presente na socie-
dade que quer transformar-se – e para cuja transformação já está preparada,
mas apenas em forma “latente” –, pois o desejo não pode dizer-se porque seu
maior adversário está precisamente no pensamento e na linguagem? O abismo
entre o desejo e a linguagem, por um lado, e, por outro, o “figural”13 (como
próprio da arte moderna e como tema estético central de Discurso figura), que
é a forma como o desejo entra em uma linguagem, são três ordens distintas e
heterogêneas. Vale a pena recordar que a estética serve a Lyotard para encon-
trar “os conceitos críticos mais discriminatórios”, os mesmos que serão utili-
zados em suas indagações posteriores sobre a política crítica.
O que entende Lyotard na expressão “diferença na temporalidade”? Em
DF, Lyotard não entende por “diferença” a oposição dos significados tais como
“sim” e “não”, a afirmação e a negação de um significado: a diferença não
consiste nas oposições dadas nos significados no interior de um sistema estrutu-
ral como é a língua (Saussure) nem de um sistema cultural, que, ao ser sistema
também funciona, segundo Lyotard, como uma língua.14 Para resumir, em
DF a “diferença” não é a oposição de termos que estão dentro de um mesmo
plano. A diferença se refere à distância (l’écart) entre planos ou ordens hetero-
gêneas e à distância “crítica” que um discurso crítico tem de reconhecer e
distinguir quando fala. Trata-se da distância dos planos do desejo por um lado,
e, por outro, da linguagem – ou a realidade instituída por este ou outro sistema
que opere como uma língua, isto é, determinando todos os significados em
uma estrutura. Mais especificamente, em DF a diferença é o “abismo” ou o
“quiasmo” que há entre as ordens heterogêneas do desejo e do discurso, pois
por diferença não se entende tampouco o referente de um discurso como o que
lhe falta a este. O reconhecimento dessa diferença diz respeito ao discurso
crítico da filosofia na medida em que ele deve “escutar”, “deixar falar” e “aco-
lher” o desejo para que possa “entrar” e expressar-se no discurso.
O que é, pois, para Lyotard “a diferença na temporalidade” que ele encon-
tra em Bergson? No texto de onde provém essa afirmação, Lyotard não explo-
ra precisamente o que é a diferença no tempo, mas no espaço pictórico. No
12
LYOTARD. ¿Por qué filosofar? (1964). Barcelona: Paidós, 1989. Doravante PQF.
13
Uma das maneiras pelas quais esse desejo se manifesta é na arte moderna, mais precisamente
no que Lyotard chama em DF a “figura”, “o figural”. Porém, esses dois conceitos não se
relacionam com a distinção arte figurativa/arte abstrata, mas vêm de Freud, especificamente
das “operações” que têm lugar nos sonhos (Ver, FREUD, A interpretação dos sonhos).
14
Ver DF, p. 165.
158
entanto, ao mostrar que a língua instituída não pode acolher o desejo (Marx,
Freud, Nietzsche),15 que é indizível como significado, e ao postular que a
diferença é quiasmo ou abismo entre planos distintos, como são o desejo e o
discurso, e que o desejo se manifesta nas artes e na literatura, Lyotard elabora
alguns conceitos da diferença no espaço que podem ser relacionados com a
diferença no tempo, tais como a espessura, a opacidade, a profundidade, a late-
ralidade, principalmente as operações do figural, tudo o que pode expressar o
que em DF se chama o “acontecimento”.
Deste modo, com a expressão “a diferença no tempo”, Lyotard mostra
que Bergson admite o papel da linguagem na organização do tempo (mas não
na organização do espaço).16 Uma função que se relaciona a uma ordem cole-
tiva, e “que funciona como mediador para o individuo em sua relação com a
realidade”, é uma ordem que “é de linguagem”, escreve Lyotard. Assim tam-
bém a “realidade”, cito, “está mediatizada por um sistema cultural que opera
como uma barreira ou como uma linguagem”. Diante da linguagem e do
sistema cultural como mediadores e como barreiras da relação do indíviduo
com a realidade, Lyotard reivindica a “diferença”: “é uma função importante
da cultura precisamente permitir aos membros da comunidade decifrar o acon-
tecimento, reconhecer o desconhecido, significar a desordem”. A diferença
exige o deciframento, o reconhecimento e a significação do acontecimento,
do desconhecido, da desordem e da “atemporalidade irreversível”, ou a “dife-
rença no tempo”, que Lyotard reconhece em Bergson. Recordemos por últi-
mo que em DF o acontecimento, o desconhecido e a desordem correspondem
a signos ou sintomas que são da ordem do desejo, e que a ordem do desejo
nasce ao mesmo tempo que a ordem da linguagem (Freud). De modo que, em
DF, a diferença se refere à distância como abismo entre essas duas ordens ou
planos, e o acontecimento, à “entrada” do desejo na linguagem do discurso crítico.
15
Em DF essa perspectiva do desejo é tomada inicialmente de Marx (Ver PQF, quarta confe-
rência) e tratada nesse livro com base em Freud e Nietzsche.
16
Para o que se segue, ver “Le parti pris du figural”, DF, p. 9-19.
17
MP, (Ver nota 2), capítulo 8, p. 105-110.
159
18
A justificativa dessa mudança de perspectiva na questão da linguagem está desenvolvida em
CP, capítulo 11, p. 79-82.
19
Ver em D, a “Fiche de lecture” e o capítulo “Le différend” dedicado ao conceito.
20
DF, 29.
160
frase por outras frases depende também se se gera para ela um dano, injustiça,
ou vítimas. A nova perspectiva, analítica e pragmática, da linguagem como
múltipla e diversa entende o acontecimento do “não-dito”, do sentimento, do
silêncio como frases inarticuladas ou inarticuláveis; quer dizer que não há jogo
de linguagem que as tenha articulado ou que as possa articular. A correspon-
dente tarefa de “dizer o não-dito” se translada em perspectiva pragmática à
correspondente carência de jogos de linguagem que possam dizer “a frase de
silêncio ou inarticulada”.
Desde os anos 1980, e desde a nova perspectiva da linguagem, Lyotard
toma alguns conceitos para desenvolvê-los e relacioná-los ao conceito de di-
ferendo e para estudar os efeitos de seu “acontecimento”. Tudo isso, como já
dissemos, não mais em termos de linguagem em geral nem de múltiplos jogos
de linguagem, mas de frases, famílias de frases e gêneros de discurso.
Muitos dos conceitos que apresentam o acontecimento do diferendo têm
uma qualificação negativa ou o prefixo negativo “in”, o que permite relacioná-
los com o que Bergson chama, em La conscience et la vie, de “zona de indeter-
minação”, o “movimento imprevisível e livre”, o “tempo de continuidade indi-
visa”,21 negações que em Bergson permitem “inserir no mundo real uma ação
livre”. Desde os anos 1980 Lyotard utiliza conceitos como o indeterminado e o
intratável (PS),22 o inumano e a in-fância (L’I), o inesperado (MP), o inconsciente
e o impossível, fazendo ênfase no fato de que tudo isso se apresenta como o
inarticulado (FD),23 mais precisamente como “frases inarticuladas” (FD). É
possível dizer que tais negações afirmam a ocorrência de frases imprevisíveis e
de zonas de indeterminação, que são o não-dito nas línguas em que se joga a
realidade das sociedades desenvolvidas contemporâneas. Essas negações não
são os únicos conceitos utilizados para qualificar isso que é o acontecimento do
diferendo. Lyotard enfatiza também outros conceitos para requalificar o acon-
tecimento em termos de frase e pensamento “livre”, o que se assemelha em
alguns aspectos à “consciência” de Bergson, que surge por oposição aos esta-
dos expressados como o torpor, o automatismo, o sonambulismo, produzidos
pela necessidade, como veremos, mas que em Lyotard estão referidos à vida e
às condições das sociedades contemporâneas desenvolvidas. Tais conceitos
21
BERGSON. La conscience et la vie. In: Oeuvres, op cit.
22
LYOTARD. Pierre Souyri: le marxisme qui n’a pas fini. Introduction à Pierre Souyri,
Révolution et Contre-Révolution en Chine, Christian Bourgois, 1982; e y Esprit, 6, 1982.
In: LYOTARD. Pérégrinations. Loi, forme, événement (1988). Paris: Galilée, 1990. Doravan-
te PS.
23
LYOTARD. Flora Danica. La sécession du geste dans la peinture de Sig Brogger. Paris: Galilée,
1997.
161
24
Estes dois conceitos se desenvolvem em vários textos publicados LYOTARD. L’Inhumain.
Causeries sur le temps (1988). Paris: Galilée, 1988. Doravante L’I.
25
BERGSON, H. Oeuvres. op. cit., p. 824.
162
26
L’I, 14, destaque meu.
27
Este tema é desenvolvido en CP (1979).
163
164
1
Tradução de Débora Cristina Morato Pinto. Revisão de Raquel de Almeida Prado.
2
“No fundo, a ilusão vem do fato de que o movimento, uma vez efetuado, depositou ao longo de
seu trajeto uma trajetória imóvel sobre a qual se pode conter tantas imobilidades quanto se
quiser. Daí se conclui que o movimento, ao efetuar-se, depositou a cada instante, abaixo de si,
uma posição com a qual ele coincidia [...] Isso é distinguir dois atos sucessivos onde, por
hipótese, só há um. Enfim, é transportar ao próprio curso da flecha tudo o que se pode dizer
dos intervalos que ela percorreu, isto é, admitir a priori esse absurdo de que o movimento
coincide com o imóvel.” BERGSON, H. L’Évolution créatrice. Paris: PUF, 1986 [1907], p.
309. Doravente, abrevio a referência por EC e dou a página diretamente no corpo do texto.
165
3
Mais geralmente, sobre a invenção dos pré-socráticos, ver o bom equacionamento de André
Laks, Introduction à la “philosophie présocratique”. Paris: PUF, 2006.
4
Sexto assim introduz a proposta de Parmênides: “No começo de Sur la nature, ele escreve desse
modo: os jumentos que me carregam […]” (Enarchomenos goûn toû peri phuseos graphei toûton ton
tropon: Hippoi tai me pherousin […]). Parmênides “escreve em verso um tratado Da natureza
assim como outras obras em prosa” (Suidas, Lexique, “Parmênides”) ; “Melisso e Parmênides
deram à sua obra o título Da natureza” (Simplicius) ; “Parmênides em sua obra Da natureza
[...]” (Caelius Aurelianus, Sur les maladies chroniques, IV, 9) ; “As obras [tôn palaiôn] de Melis-
so, Parmênides, Empédocles, Alcmeon, Górgias, Pródico e todas as outras têm por título Sur
la nature.” (Galien, Sur les éléments d’Hippocrate, 1, 9, VS 24 A 2). É bem possível que o uso
antigo consistisse em dar como título genérico a esse tipo de reflexão “filosófica” o nome de Peri
phuseos, sem que, para tanto, se possa simplesmente fazer do tratado de Parmênides uma
obra de física ou de cosmologia. Entretanto, a tradição parece efetivamente inscrever Parmê-
nides nesse âmbito mais que do lado de uma reflexão inovadora sobre o ser. Assim, Jamblique
diz que, “entre todos os filósofos da natureza que adquiriram um renome, são citados em
primeiro lugar Empédocles e Parmênides de Eléia” (Vie de Pythagore, paragraphe 166).
Diógenes Laércio, falando de Zenão, prertende que ele “fazia cursos sobre a natureza como
Parmênides” (Diogène Laërce, Vie de Périclès, IV, 5) e, do próprio Parmênides, ele retém
sobretudo suas descobertas cosmológicas (em particular a identidade entre a estela da noite,
Hesperus, e a estrela da manhã, Phospherus), suas concepções do universo (a terra é esférica)
mais ainda que a invenção de raciocínios lógicos e a divisão da filosofia entre verdade e opinião.
Uma inscrição funerária do século I d.C. faz de Parmênides um phusikos (ver Yvon Lafrance, “Le
sujet du poème de Parmênides : l’être ou l’univers ?”, Elenchos, XX, 1, 1999, p. 267-270). É isso
já que pretendia Aristóteles, tanto em sua Física (A 3, 186 a 11-25) quanto em sua Metafísica
ao falar do conjunto dos pensadores pré-socráticos (G 3, 1005 a 31). Plutarco fala de sua
“cosmogonia” (Amatorius, 756 f, Réponse à Colotes, 1114 b) e Cícero ironiza sobre suas concep-
ções das estrelas (De la nature des dieux, I, 28).
5
É sintomático que a cosmologia de Parmênides, tal como pode ser reconstituída segundo o que
Aetius ou Diógenes Laércio reportam e aquilo que os fragmentos existentes indicam, tenha
sido julgada pouco provável, quando não é confusa e inútil. Ora, Jean Bollack mostrou que era
possível reconstruir-lhe um funcionamento coerente em “La cosmologie parménidienne de
Parmênides”. (In: Herméneutique et ontologie. Mélanges en hommage à Pierre Aubenque. Éd. Rémi
Brague et Jean-François Courtine, Paris: PUF, 1990, p. 17-54).
166
6
VERNANT. Écriture et religion civique en Grèce. In: L’Orient ancien et nous. L’écriture, la
raison, les dieux. Éds. Jean Bottéro, Clarisse Herrenschmidt, Jean-Pierre Vernant. Paris: Albin
Michel, 1996, p. 203-204.
167
fogo para Anaximandro, etc. Mas o conflito coloca-se também sobre a tem-
poralidade desses fenômenos: de onde vem o que aparece? Como crescem e
perecem todas as coisas do mundo? É por isso que os problemas fundamentais
são os do móvel e do imóvel, do criado e do incriado, da disseminação e do
todo, do múltiplo e do uno; em suma, para dizer em termos que vão constituir
o essencial da história da filosofia, do devir e do ser ou do que Bergson vai
retomar sob a noção de “elã vital” e de “evolução criadora”.
Se recolocamos Parmênides no horizonte de seu contexto imediato mais que
na linearidade de seus sucessores, ele aparece então mais como um pensador da
natureza, um “físico”, do que como um pensador do ser, um “metafísico”.7 É
sem dúvida significativo que os fragmentos mais importantes nos venham de
Simplício em seu comentário justamente da Física de Aristóteles, e Parmêni-
des lhe serve seguramente para tomar certas distâncias em relação à proposta
aristotélica, aproximando-o, portanto, do neoplatonismo:8 as propostas sobre o
ser e o não-ser são, com efeito, integradas a uma reflexão sobre a natureza.
De fato, o paradoxo aparece, sobretudo, ao se estabelecer uma ruptura
radical, ontológica, entre verdade e opinião tal como entre inteligível e sensí-
vel. Ora, os fragmentos de Parmênides não vão necessariamente nessa dire-
ção. Há, seguramente, uma desconfiança em relação aos sentidos e um ques-
tionamento do empirismo dos físicos, sem implicar, entretanto, a cesura entre
as Idéias e as aparências sensíveis que será instaurada por Platão. Isso faz parte
da leitura platônica de Parmênides (retomada manifestamente por Bergson,
uma vez que não somente ele lê os eleatas segundo Platão, mas também lê
Platão segundo Plotino) que se vê bem operar quando o neo-platônico Sim-
plício introduz e cita o fim do preâmbulo (os versos 28-32):
7
É o que enfatiza Yvon Lafrance em “Le sujet du poème de Parmênides: l’être ou l’univers?”
(Elenchos, XX, 1, 1999, p. 265-308), ao insistir sobretudo no princípio de não-contradição
mencionado por Parmênides no quadro das investigações sobre a natureza. É evidente que a
oposição física/metafísica é bem mais tardia que Parmênides, talvez mesmo bem mais tardia
que a filosofia de Platão e de Aristóteles: efeito de leitura retrógrado que impõe uma certa
leitura de textos antigos.
8
Ver, RAMNOUX, C. Parmênides et ses successeurs immédiats, s. l., Éditions du Rocher, 1979.
168
9
Eu cito e traduzo o texto de Simplício na edição de A. H. Coxon, The Fragments of Parmenides.
A critical text with introduction, translation, the ancient testimonia and a commentary.
Assen: Van Gorcum, 1986, p. 143.
10
É característico que, para Plutarco, Sexto Empírico, Clemente e Diógenes Laércio (autores
dos séculos I a III), a verdade é “bem persuasiva” (eupeithéos), para Proclo no Ve siècle, ela é
“bem iluminada” (euphengéos), enfim, para Simplício no séc.VIe, ela é “bem redonda” (euku-
kleos). A escolha não é anódina. Diels prefere a lição de Simplício, pois se trata, para ele, do
texto geralmente mais confiável (por sua extensão e porque ele cita um manuscrito que tem
sob os olhos). Pode-se, entretanto, duvidar que o neo-platonismo de Simplício vai fazê-lo
hesitar diante de uma “verdade bem persuasiva”, que inscreve a verdade à sombra da lingua-
gem, e que ele prefere certamente uma verdade tão felizmente redonda quanto a esfera do
ente ou do universo (fragmento VIII, 43: eukuklou sphaires).
169
11
CASSIN, B. Présentation. In: Parménide, Sur la nature ou sur l’étant. La langue de l’être?
Apresentado, traduzido e comentado por Barbara Cassin. Paris: Seuil, 1998, p. 65-66.
12
Sobre esse ponto, ver CASSIN, B. Glossaire. In: Parménide, Sur la nature ou sur l’étant. op. cit.,
p. 153-174.
170
13
Pierre Aubenque já havia notado: “Aristóteles não se colocou, não mas que o pensamento
grego em seu conjunto, essa outra questão: Por que há ser antes que nada ?” (Le problème de
l’être chez Aristote. Paris: PUF, 2002 [1966, 2e éd.], p. 13).
171
indicar que não é preciso tomar a virtude da linguagem (que permite construir
pelo uso da negação a ausência de uma coisa) por uma verdade do mundo
sensível. Pode-se construir corretamente a expressão “não-ser” sem ter come-
çado a designar por ela o que quer que seja na natureza.
Ora, trata-se efetivamente da maneira pela qual Bergson tenta, ele também,
resolver as aporias da metafísica moderna do nada. O problema que ele levanta é
simplesmente que nós utilizamos as práticas da ação e da inteligência para tratar
de um assunto de especulação e de intuição. Para uma ação, é preciso um desejo,
seja de possuir um objeto do qual alguém se sente privado, seja de criar uma coisa
que viria preencher esse desejo. Parte-se, com efeito, de uma falta, uma ausência,
um vazio para se abrir para alguma coisa, uma presença, um pleno. A inteligência
contrai seus hábitos de ação, enquanto seria preciso que a intuição dilatasse as
suas imagens para melhor se inserir no tempo, em lugar de tomar vistas sucessi-
vas, cada vez imóveis, sobre o curso de um movimento.
É por isso que Bergson passa por uma análise cuidadosa da composição
da idéia de nada e da instrumentalização lógica e sintática da negação para
melhor permitir esposar especulativamente o sentido de uma “evolução cria-
dora”. Essa análise descobre assim que o nada não é simplesmente uma ausên-
cia ou um vazio, mas, ao contrário, uma imagem que é não somente composta
a uma só vez do sujeito e do objeto, mas ainda do salto contínuo de um ao
outro. O nada é pleno de coisas e, além do mais, longe de ser uma represen-
tação estática (uma ausência total de mobilidade), ele implica movimento:
14
“Acaso e desordem são então necessariamente concebidos como relativos. Pois, ao querer
representá-los como absolutos, percebe-se que involuntariamente se cai num vai-e-vem como
numa lançadeira entre duas espécies de ordem, passando para uma no momento preciso em
que se surpreendia a si mesmo na outra, e que a pretensa ausência de toda ordem é na
realidade a presença de duas acrescidas do balanço de um espírito que não se coloca definiti-
vamente nem sobre uma nem sobre a outra” (EC, p. 235).
172
15
Ver BERGSON. Le possible et le réel. In: La pensée et le mouvant: Essais et conférences. Paris:
Librairie Félix Alcan, 1939 [1922].
173
16
Assim, enquanto “juízo sobre um juízo”, a negação é concebida pelos lógicos como uma
modalidade (ver GOBLOT. Traité de logique. Paris: Armand Colin, 1952, p. 166). Mesmo
que tenha havido nuances e complexificações do modelo, uma tal análise lógica da negação foi
freqüentemente retomada pelos lingüistas. Por exemplo: Um enunciado negativo aparece de
algum modo como uma notação de segundo grau, que supõe como intermediário um enunci-
ado positivo não expresso : “Não está chovendo” é uma constatação feita por alguém que
imaginou inicialmente que deveria chover. [...] O enunciado negativo [...] representa, como
diz Ch[arles] Bally, “um recusa de asserção”. (MAROUZEAU. Traité de stylistique latine.
Paris,: Les Belles Lettres, 1954 [1935], p. 255).
17
Ver PHILONENKO. Bergson ou De la philosophie comme science rigoureuse. Paris: Éditions du
Cerf, 1994, p. 324.
174
18
Ver DETIENNE. Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque. Paris: Éditions La Découverte,
1990 [1967], em particular p. 55, 59, 94-95.
19
É o que destacam Claudine Haroche e Jean-Jacques Courtine: “atualmente, a expressão
humana é abordada a partir da observação experimental, mas deriva também de um conti-
nuum que coloca o homem em contato com sua origem animal: no próprio princípio da
expressão das emoções, não encontramos mais a linguagem, mas o organismo” (Histoire du
visage, Rivages, 1988, p. 270).
175
ela passa aquém da forma, assim como “o exprime” Georg Simmel, na sua
Filosofia da modernidade,
a vida sente a forma enquanto tal como alguma coisa que lhe é
imposta, e quer romper a forma em geral e não somente tal ou
tal forma, e reabsorvê-la na sua imediação, para colocar-se a si
mesma em seu lugar, para deixar sua própria força dissipar-se.
Não é mais o conflito da forma que a vida investe atualmente
contra a forma antiga mumificada, mas o conflito da vida contra
a forma em geral, contra o princípio da forma. [...] Os homens
que têm um senso estrito do estilo, têm razão quando se quei-
xam da “ausência da forma” que cresce por todos os lados da
vida moderna.20
20
SIMMEL. Philosophie de la modernité. Tradução de Jean-Louis Vieillard-Baron. Paris: Payot,
1990 [1918], t. II, p. 232.
21
A esse respeito, ver a judiciosa análise de Frédéric Worms em Bergson ou les deux sens de la vie
(Paris: PUF, 2006, p. 239-241).
176
1
Tradução de Leonardo Maia.
2
BERGSON. Mélanges. Paris: PUF, 1972, p. 774. L’évolution créatrice. Paris: PUF, 1981, p. 248.
177
3
Mélanges, p. 773.
4
L’évolution créatrice, p. 11.
178
A própria ciência nos incita, portanto, a não ver na matéria senão “per-
turbações, mudanças de tensão e de energia, e nada mais”.5 Matéria e memória
não deixa de citar Maxwell que, já em 1864, mostrou que a luz é uma forma
de onda eletromagnética.6 E ainda que seja preciso esperar até 1924 para que
as partículas de matéria tais como os elétrons também sejam consideradas
como possuindo propriedades ondulatórias e para que se comece a falar de
ondas de matéria, fato é que a matéria atômica se dissolve já nessa época em
campos imateriais de forças.7 Reconheçamos que, em A evolução criadora, a
ciência eletromagnética está sempre presente, como o indicam as referências à
penetração atômica de Faraday, à descoberta de que cada átomo “preenche o
mundo”, ou seja, à idéia de campos de forças. Repitamo-lo, parece nos dizer
Bergson, a ciência, assim como a consciência, faz-nos compreender que um
ponto material é “uma simples visão do espírito”.8 A física eletromagnética
confirma que os corpos sólidos não são primeiros, que a matéria é inicialmen-
te ondas e luz, energia indivisível e fluxo contínuo. Não há, por conseqüência,
nenhum hiato entre o que a consciência nos desvela e aquilo a que tende a
mostrar a ciência: “Ciência e consciência no fundo estão de acordo”, dizia
Matéria e memória.9 “Quanto mais a física avança, mais ela apaga a individua-
lidade dos corpos e até das partículas nas quais a imaginação científica come-
çava a decompô-la: corpos e corpúsculos tendem a se fundir em uma interação
universal”, diz, por sua vez, A evolução criadora.10 Bergson novamente o dirá,
bem mais tarde, nos ensaios introdutórios de O pensamento e o movente, mos-
trando que é justamente a ciência que serviu de vetor a esse movimento, mes-
mo se ela não o acompanha até o fim, em razão de suas convenções:
5
BERGSON. Matière et mémoire, Paris: PUF, 1968, p. 226.
6
DAVIES. Les forces de la nature. Paris: Champs Flammarion, 1988, p. 32.
7
Ibidem, p. 67 e NOTTALE. L’univers et la lumière. Paris: Champs Flammaron, p. 34.
8
Ibidem, p. 204.
9
Matière et mémoire, p. 221.
10
L’évolution créatrice, p. 189.
179
11
BERGSON. La pensée et le mouvant. Paris: PUF, 1969, p. 77.
12
L’évolution créatrice, p. 204-205 e 207: “Nossa ciência, que aspira a tomar a forma matemáti-
ca, acentua mais do que seria preciso a espacialidade da matéria”.
13
Ibidem, p. 203.
14
Ibidem, p. 206.
180
15
Ibidem, p. 204.
16
Ibidem, p. 209.
17
Ibidem, p. 209.
18
Ibidem, p. 155.
181
ao qual estamos ligados? Por que isso é importante para uma teoria da nature-
za? Porque essa matéria está conectada a nós e porque o universo material não
muda sem que o percebamos mudar, e sem que nos percebamos transforma-
dos em nós mesmos.
Uma segunda referência importante de Bergson à física concerne ao se-
gundo princípio da termodinâmica. Sabemos que esse princípio não tem ou-
tro sentido senão o de mostrar como um sistema isolado transforma progres-
siva e irreversivelmente sua energia potencial em estrutura equipotencial. Esse
segundo princípio da termodinâmica confirma, segundo Bergson, a tendência
do universo material à espacialização, a passagem, em suma, de uma energia
potencial a uma estrutura espacial. O universo/energia, se o supomos fecha-
do, se transforma energeticamente tendendo para a entropia. De modo que a
segunda lei da termodinâmica se revela para Bergson como “a mais metafísica
das leis da física”, porque ela indica absolutamente a direção para a qual o
universo caminha, a saber, a da repartição uniforme da energia: “Nosso siste-
ma solar aparece como esgotando a cada instante algo da mutabilidade que ele
contém”.19 Em duas palavras, a física é realmente forçada, nesse aspecto, a sair
da relatividade do movimento. Mas como dar conta dessa tendência? Essa
informação não tem nenhum sentido se não a religamos mais uma vez a nossa
experiência. Mais uma vez, a atestação de nossa experiência de vida conscien-
te desempenha um papel essencial. O cientista que se restringe à matéria não
toma por objetivo explicar como consciência, vida e universo se comunicam e
estão em relação. Não esqueçamos que é, de todo modo, sobre esse ponto que
se conclui A evolução criadora:
19
Ibidem, p. 244.
20
Ibidem, p. 368.
182
21
Ibidem, p. 245.
183
22
A filosofia de Bergson permitiria ainda uma compreensão diversa dessa passagem, que pode-
ríamos traduzir por “em que coincidem o que se está sentindo e o que é sentido”, que
ressaltaria o caráter de movimento presente na sensação mesma [N do T].
23
BERGSON. Durée et simultanéité. Paris: PUF, 1968, p. 49.
24
La pensée et le mouvant, p. 210.
184
25
Manifeste rayonniste, in L’art en mouvement, Maeght, 1992.
26
Durée et simultanéité, p. 126.
185
que opõe a luz invisível, ou luz-treva, mais luminosa do que a luz, à luz do
mundo. Para além das formas, a pintura se esforça em pintar aquilo por meio
do que as formas se tornam visíveis, a fonte da visibilidade do visível, e que é
também o seu avesso negro.
27
A respeito desse ponto, ver: DUBORGEL. Malevitch, la question de l’icône. Publications de
l’Université de Saint-Etienne, 1997.
186
1
Tradução de Paula Sibília.
2
Artigo publicado em 1903 na Revue de Métaphysique et de Morale, que será integrado a O
pensamento e o movente no momento da sua publicação, em 1934.
187
evolução criadora, salvo por uma acácia e uma variedade de mimosa que são
citadas apenas pelo movimento de suas folhas.3 Há também uma referência à
natureza colonial das árvores, mais do que individual, que faz com que o
envelhecimento atue nelas como um crescimento externo das células jovens.4
No que concerne às imagens, cumpre constatar que a árvore parece suscitar
menos interesse em Bergson que aquele célebre pedaço de açúcar cuja disso-
lução em um copo de água tende a não conseguir jamais seu ponto de efetua-
ção.5 Entretanto, uma árvore bergsoniana chegou a ver a luz do dia alguns
anos antes, em O riso, onde simbolizava a força de expansão do cômico pela
dupla multiplicidade das imagens e das analogias repartidas entre raízes e
galhos.6 Uma velha árvore retomará ainda seu vigor, bem mais tarde, em As
duas fontes da moral e da religião, para lembrar que a antiga metafísica poderá
sempre fazer saltar a cortiça de seus métodos ancestrais desde que se deixe
atravessar pela seiva da intuição.7 São bem poucas árvores, então, consideran-
do a profusão de tendências que a vida tem explorado através delas para atingir
tamanho grau de perfeição quanto à sua inscrição na matéria. Símbolo daqui-
lo que Bergson denominou “estado de torpor no seio da consciência”, há efe-
tivamente na conjunção dessa incrível extensão espacial e desse sábio espessa-
mento temporal que o menor dos arbustos encarna, uma sorte de pura
receptividade capaz de explicar por que a árvore foi tão investida de qualida-
des simbólicas, colocando-a em uma posição intermediária entre a terra e os
céus, às vezes inclusive entre os homens e seus deuses. Mas talvez seja preci-
samente essa abundância de representações antropomórficas com que os ho-
mens de todas as culturas sobrecarregaram a árvore, que permite compreender
por que esta não encontrou seu lugar na imageria bergsoniana, como se hou-
vesse nessa empreitada o risco de cair no déjà-vu, no já conhecido; ou melhor,
nesse prêt-à-porter do pensamento ao qual Bergson tem consagrado algumas
das mais belas páginas de A evolução criadora.
Assim, então, “a árvore vigorosa” do nosso início nada deve à pluma de
Bergson. A fim de assinalar as virtualidades da sua filosofia, ela foi mobiliza-
da por Georges Sorel, um de seus discípulos mais heterodoxos. E isso ocor-
reu bem antes que a filosofia de Bergson fosse reconhecida como uma das
mais importantes do seu século, antes mesmo que seu nome fosse conhecido no
interior da comunidade filosófica. Ademais, tão bela qualidade foi atribuída
3
L’Évolution créatrice, 1907, en Œuvres, Éditions du Centenaire, 1959, p.587.
4
Ibidem, p.508.
5
Ibidem, p.502 e 781.
6
Le Rire, 1900, in Œuvres, op cit, p.417-418
7
Les deux sources de la morale et de la religion, 1932, in Œuvres, op cit, p.1201.
188
8
Na edição do 2 de janeiro de 1921 de Ordine Nuovo, Gramsci publicou um artigo intitulado
“Bergsoniano!” onde assumia plenamente essa influência que lhe fora frequentemente repreen-
dida, desde 1917. Nesse gesto, Gramsci reconhecia a dívida que os revolucionários italianos
contraíram com Sorel.
9
Refere-se ao conceito bergsoniano de “ressaisissement métaphysique”.
189
tão decisiva, hoje, que através dessa crítica do socialismo que implica um
empirismo metafísico, Sorel permite repensar o lugar ocupado pelo trabalho,
tanto na vida de cada homem quanto como elemento constitutivo das socieda-
des. Retomando a metáfora arborícola poderíamos dizer que, diante dessa
“árvore vigorosa”, Sorel se recusou a virar lenhador, bem como a dela extrair
os mesmos clichês que os visitantes mais convencionais desse bosque; ao con-
trário, preferiu erguer ao seu lado um edifício sobre o qual subir, para poder
ter sobre ele uma perspectiva original.
10
Em Personnalités, artigo publicado em Les Cahiers de la Quinzaine, em sua edição de 5 de
abril de 1902, Éditions das œuvres en prose de Péguy, tome 1, Bibliothèque de la Pléiade,
p.483.
11
Especialmente Julien Benda em La trahison des clercs.
12
Crítico literário e ensaísta, baseou toda sua obra sob a tutela de Bergson, a quem conheceu
nos últimos anos de sua adolescência. Charles do Bos lhe atribuiu especialmente a paternida-
de do conceito de “golpes de sonda”, ao qual Bergson se refere em L’introduction à la métaphy-
sique, que ele logo erigira como método de análise de textos literários.
13
Na homenagem que ele rendera a Charles do Bos no apêndice de Qu’est-ce que la littérature?,
Éditions Plon, 1945, p.107.
190
14
Em Note sur Bergson et la philosophie bergsonienne, artigo publicado em Les Cahiers de la
Quinzaine, em sua edição de 26 de abril de 1914, Éditions des œuvres en prose de Péguy,
tome 2, Bibliothèque de la Pléiade, respectivamente p.1270, 1268 e 1285.
191
15
Apêndice III de Réflexions sur la violence, acrescentado à quarta edição de 1919, p. 454.
192
16
Especialmente pelo discurso ministrado na Académie des Sciences Morales et Politiques no
dia 12 de dezembro de 1914, onde ele opõe uma Alemanha completamente voltada para a
força material, força que se gasta e que só pode sobreviver efetuando novas conquistas, e uma
França que supostamente encarnaria uma força espiritual aberta e sempre disposta para a
criação do novo.
17
Mélanges, Éditions du centenaire, 1972, p.941.
18
Edouard Le Roy sucedeu Bergson no Collège de France e publicou junto com ele um texto
sobre a filosofia francesa durante a primeira guerra mundial. Matemático e filósofo de forma-
ção, em 1928 publicou Les origines humaines et l’évolution de l’intelligence, que apareceu como
uma prolongação antropológica de L’Évolution créatrice.
19
Carta de 14 de janeiro de 1936, reproduzida em Correspondance, Éditions du Centenaire, p.
1524-1525.
193
20
O artigo de Sorel se intitulava “Sur les applications de la psychophysique”. Marcou o começo
de uma colaboração de vários anos, ao longo dos quais publicou várias artigos apresentando
uma orientação epistemológica, até a publicação do seu texto sobre “La philosophie de Prou-
dhon”, em 1892, que abriu uma nova etapa. O artigo de Bergson, por sua vez, intitulava-se
“De la simulation inconsciente dans l’hypnotisme”. Relatava algumas experiências às quais
assistira como jovem professor de filosofia em Clermont-Ferrand, dando conta de uma vontade
de portar um olhar sem a priori, cuja marca encontramos em alguns dos textos reunidos em
L’énergie spirituelle.
21
Edouard Berth republicará esse texto em forma de livro em 1936, sob o título D’Aristote à
Marx. Para a ocasião, escreveu uma longa introdução consagrada a essa recepção singular do
bergsonismo da qual Sorel teria sido o instigador, delineando a idéia de uma metafísica do
movimento da qual Bergson e Proudhon teriam sido as figuras emblemáticas.
194
22
La pensée et le mouvant, in Œuvres, op cit, p.1253.
23
À medida que Sorel foi avançando em sua análise do socialismo, criticou cada vez com mais
firmeza o componente utópico presente no interior mesmo do pensamento de Marx.
195
interna desse social cuja efetividade explorara O riso, enquanto o homo faber de
A evolução criadora explicará os fundamentos ontológicos.
24
Essai sur les données immédiates de la conscience, in Œuvres, op cit, p.151.
25
Em um artigo de Resto del Carlino, citado por Pierre Andreu em Georges Sorel, entre le
rouge et le noir.
26
Réflexions sur la violence é, de todos os ensaios de Sorel, o mais frequentemente citado. Foi
publicado sob a forma de artigos em 1906 por Le Mouvement Socialiste, revista da qual ele foi
um dos principais colaboradores, desde sua criação em 1898 até 1909. É nessa revista onde
publicou, em 1907 e 1908, a sua série de artigos sobre A evolução criadora.
196
27
Essai sur les données immédiates de la conscience, in Œuvres, op cit, p.151.
28
Páginas 166 a 185 da edição Marcel Rivière.
29
Eis uma construção recorrente em toda a obra de Bergson: apresentar um dualismo suposta-
mente antagônico, mas cujos dois pontos opostos seriam decorrentes de um mesmo erro de
base. O mais célebre desses falsos dualismos é o par idealismo–materialismo, a cuja refutação
é consagrada uma parte essencial de Matéria e memória.
197
do as redes em cujo seio a vida será reduzida a uma série de equações. Ela
tende naturalmente a ser pensada como perfeição universal e atemporal, e
necessita – tanto para advir como para se manter – a potência de um Estado no
qual Sorel via a causa de todos os terrores que atravessaram a história. Já o
mito é de outra natureza. Não é uma realização, mas um móbil, e isso nos dois
sentidos do termo. O mito é, no cerne do campo político, aquilo que a intui-
ção é para o conhecimento. Ele oferece em um todo indivisível aquilo que
nenhuma argumentação poderia justificar nem, sobretudo, emendar. Em uma
época em que as escolas socialistas se dividiam quanto às questões de progra-
ma e de táctica, Sorel via assim no tema da greve geral – que os sindicalistas
revolucionários transformaram em sua palavra de ordem – um mito compará-
vel àquele que permitiu ao cristianismo primitivo se desdobrar no âmago da
história até coincidir com ela para constituir um plano de imanência.
Linha de fratura que obriga cada um a escolher seu campo e, desse
modo, proíbe os compromissos de ocasião, a greve geral porta em si mesma
todas as contradições cuja emergência anunciara o marxismo. A primeira des-
sas contradições, que poderíamos denominar essencialista, refere-se ao papel
decisivo que é reconhecido ao trabalho, pois basta suspendê-lo para que todo
a edifício social termine afundando. Essa contradição, cujos primeiros profe-
tas foram Adam Smith e Henri de Saint-Simon, não decorre de uma análise
sociológica mas, ao contrário, resulta de uma experiência que tende – tanto
nos indivíduos como nas sociedades – a se reconverter nessa forma imanente
de humanização da natureza da qual surge toda sociologia. A segunda contra-
dição, por sua vez, remete aos próprios fundamentos da política, pois sem
precisar mesmo anunciá-lo, a greve geral induz essa abolição do Estado sobre
cuja significação os marxistas têm se dividido tanto. Não há Estado dos traba-
lhadores que valha, por uma simples razão: o Estado não é outra coisa que
uma forma transcendente da propriedade que, ao mesmo título que a inteli-
gência criticada por Bergson, tende a solidificar o real. Para Sorel, o trabalho
não é nem uma instituição nem um fato social; é uma dinâmica, é a própria
expressão da vida ou, melhor ainda, sua manifestação na existência humana.30
Ao contrário da ditadura do proletariado de Lênin, a de Marx revisada por
Sorel toma, assim, o valor de uma dinâmica, de um contra-Estado que repou-
sa sobre a única determinação das comunidades de produtores. E sempre que
o socialismo se definisse em termos de estruturas estatais, para Sorel não
30
É certamente aqui onde se manifesta com mais força o proudhonismo de um Sorel que via
nessa filosofia, efetivamente, o elemento que lhe faltaria a Bergson; isto é, a função vital de um
trabalho que tende a devir consciência no sentido em que Bergson utiliza esse conceito a partir
de A evolução criadora.
198
31
No primeiro capítulo de As duas fontes da moral e da religião, Bergson diferencia uma “justiça
relativa”, constituída “de aproximações geométricas” que dão conta da sua natureza intelec-
tual, e uma “justiça absoluta” que, assim como a mística, se inscreve em uma plenitude da
qual o mito seria uma manifestação.
199
32
Réflexions sur la violence, Éditions Marcel Rivière, 1936, p.208.
33
Especialmente em Introduction à l’économie moderne, publicado em 1903, La décomposition du
marxisme, publicado em 1908, e Mes raisons du syndicalisme, publicado em 1910.
34
Essa noção aparece pela primeira vez em 1905, em um artigo intitulado “Préoccupations
métaphysiques des physiciens modernes”, e permaneceu presente em sua obra até seus últi-
mos textos, especialmente em “De l’utilité du pragmatisme”, publicado em 1917.
35
Op cit, p.492.
200
onde ele introduz uma extensão do conceito de consciência que estaria presen-
te em toda forma de vida.
As razões dessa antecipação não são difíceis de compreender, referem-se
simplesmente ao fato de que Sorel foi um dos ouvintes mais fieis dos cursos
que Bergson ministrara no Collège de France a partir de 1900. Talvez seja
esse, também, o motivo pelo qual a leitura que Sorel efetuará de A evolução
criadora, bem como a crítica que publicará nos meses seguintes, deixou de
lado os pontos que pareceram essenciais aos contemporâneos que só descobri-
ram a filosofia de Bergson após a publicação de A evolução criadora. A leitura
de Sorel se propunha a extrair os fundamentos metodológicos e ontológicos
do bergsonismo; por isso, concentrou-se principalmente nos aportes específi-
cos desse texto. Sorel não se interessa, aqui, pelos traços metafísicos do berg-
sonismo que emergem confirmados dessa travessia pelas teorias da evolução;
não porque os considerasse negligenciáveis, mas simplesmente porque já os
tinha assimilado plenamente, até o ponto de utilizá-los em outros domínios
para compor a sua própria filosofia.
Sorel publicou sua crítica sobre A evolução criadora sob a forma de cinco
artigos, que apareceram entre outubro de 1907 e março de 1908 em Le mou-
vement socialiste. O texto se divide em dezesseis partes dispostas em uma ar-
quitetura cuja lógica não é evidente. Certas partes são compostas de longas
citações do texto de Bergson, retiradas de diversos capítulos e apresentadas em
ordem aleatória, enquanto outras partes tratam de questões anexas para as
quais pode parecer que Bergson é um mero pretexto. No entanto, um tema
principal confere à sua crítica uma coerência irrefutável: o fato de que A evo-
lução criadora, assim como o conjunto das teorias do vivente, teria ignorado os
fundamentos epistemológicos sobre os quais repousa a biologia. Em uma época
na qual todos buscavam na biologia os modelos para pensar o social, dos
anarquistas até os pensadores mais reacionários, Sorel explica que as teorias
da vida se constituíram tomando emprestados seus modelos das ciências rela-
tivas às práticas sociais; particularmente, a essas formas singulares de sociabi-
lidade centradas no trabalho e na técnica. Não apenas “a biologia é uma falsa
sociologia”,36 mas é em razão mesmo de seus empréstimos à vida social que os
sociobiólogos e seus discípulos pensam poder encontrar na sociedade alguns
elementos de naturalidade. De fato, o argumento é bastante bergsoniano, pois
aquilo que Sorel assinala é a nossa capacidade de compor uma estrutura arti-
ficial que se torna a tal ponto comum, chegando a se apresentar como de uma
natureza genérica. Prefigurando a episteme foucaltiana, a tese é que não have-
ria bases objetivas de um saber que se basta a si próprio. Ao contrário, todo
36
Primeiro artigo, publicado em outubro de 1907, p.270.
201
37
Op cit, p.608.
38
Textos escritos após a primeira guerra mundial (1922 e 1930) e publicados em O pensamento
e o movente.
39
Segundo artigo, publicado em dezembro de 1907, p.478.
202
um sentido amplo, não redutível, por exemplo, a essa forma de atuar que
Hannah Arendt designou sob o conceito de “obra”. Para além do paradigma
do homo faber, a filosofia de Bergson parece abrir assim novas perspectivas
capazes de fundar uma filosofia do trabalho. Em primeiro lugar, porque dedi-
ca uma verdadeira atenção ao esforço, e permite captar que cada uma de suas
realizações é ao mesmo tempo abertura do possível e fechamento de uma
multidão de virtualidades. Para Sorel, a teoria bergsoniana da evolução nada
perde ao se tornar uma mera projeção das transformações econômicas dos
modos de produção. Ao contrário, ela permite pensar as bases concretas e
metafísicas do trabalho, inclusive em razão mesmo das numerosas referências
ao mundo da técnica. Como escrevera Jean-Pierre Séris, “o conceito de traba-
lho recebe em Bergson uma extensão considerável”.40 Ele se localiza no cru-
zamento entre a vida e o social, efetua um constante ir-e-vir entre o indivíduo
e a comunidade, é a instância onde se ajustam as discrepâncias entre repetição
e criação. Em um tempo em que as definições do trabalho se limitam, cada
vez mais, às questões salariais que o reduzem à sua dimensão econômica, o
pensamento de Bergson permite introduzir novamente o jogo nesse esquema,
permitindo assim reconsiderar o par alienação–emancipação. Através de sua
teoria da atenção, abre o caminho para estabelecer no próprio cerne do traba-
lho, qualquer que seja sua utilidade social, uma distinção mais fina entre o
esforço que tende a coalhar o movimento para produzir uma condição estável
e aquele que, ao contrário, procura reencontrar toda a fluidez. Não há traba-
lho intelectual, de um lado, e de outro lado trabalho manual; tampouco há
um trabalho para si e outro cujos benefícios reportariam a outrem; em vez
disso, há duas atitudes diferentes que conferem ao trabalho suas qualificações.
Por um lado, há um trabalho no qual procuramos esperar o mesmo, um tra-
balho no qual somos levados a produzir um objeto conforme a um modelo,
um trabalho no qual o hábito é a regra intangível, um trabalho de cujo exer-
cício se emerge idêntico a si próprio; um trabalho, enfim, que visa a se encer-
rar no uso de um conceito. De outro lado, há o trabalho que conduz ao
inédito, que produz objetos para os quais é sempre necessário inventar novos
conceitos. O hábito não só seria incapaz de constituir a regra nesse segundo
tipo de trabalho, mas é precisamente ao evitá-lo ou mesmo ao se descolar
violentamente dele que o trabalho tem acesso a sua posição mais alta: essa
forma singular de experiência que nos transforma e desenvolve em nós a capa-
cidade de sermos livres. É precisamente aí onde reside a base da “recuperação
40
Bergson et la technique, incluído no livro Bergson, naissance d’une philosophie, obra coletiva
publicada na ocasião do centenário do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, p.123,
Éditions PUF, 1990.
203
41
Argumento desenvolvido em Vues sur les problèmes de la philosophie, série de dois artigos
publicados pela Revue de Métaphysique et de Morale, em 1910 e 1911.
42
O trabalho como um dispositivo originalmente associado ao tato, e a linguagem à vista.
204
43
BERGSON, Éditions des PUF, 2002.
205
um homo faber que não cessa de querer construir o estável enquanto a vida é
um movimento perpétuo. Como acabamos de ver, a inteligência é sempre a
adaptação da consciência a um interesse que implica uma efetuação. O traba-
lho se inscreve aqui em uma voz ativa à qual ele concede suas principais
qualificações na colocação em ordem gramatical da linguagem. Contudo, em
cada um desses dois livros, os termos opostos a essa voz ativa são claramente
distintos. Em A evolução criadora, o segundo valor do trabalho é essencial-
mente pronominal. Nós “nos” trabalhamos em uma criação que é ela própria
uma manifestação concreta do élan vital, para o qual as categorias de interio-
ridade e exterioridade, de sujeito e objeto, são desprovidas de sentido. Na
busca daquilo que Bergson escrevera em Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência, somos constantemente transformados, movidos, inclusive agidos,
por uma duração que é a própria essência do nosso ser – uma duração que, no
sentido estrito, é a nossa única concretude. Já o segundo valor apresentado em
As duas fontes é de uma natureza completamente diferente. Com efeito, à inte-
ligência, Bergson opõe aqui o trabalho de uma “função fabuladora” que não
cessa de nos trabalhar, que se posiciona às vezes como rival da inteligência,
mas com mais freqüência ainda tende a atravessá-la e orientá-la. A ocasião da
“recuperação”, por sua vez, o élan místico, coloca-se fora dessa dicotomia, e
poderia precisamente ser definido por uma total inadequação com toda forma
de trabalho – inclusive se, como escrevera Bergson, muitos grandes místicos
foram homens de ação.44 O trabalho reintegra aqui as categorizações clássicas
da filosofia, que frequentemente se limitam a vinculá-lo aos conceitos de ne-
cessidade, dever e organização. Devemos extrair, então, como conclusão, que
o trabalho teria perdido a sua virtualidade emancipadora? Certamente não, se
lembrarmos o que Bergson diz precisamente acerca da necessidade,45 e como
ele mostra que a “recuperação” que permite dela se livrar implica um esforço
comparável àquele que permitiu à humanidade se libertar de um hábito que,
desde A evolução criadora, ele tem constantemente associado à natureza, ao
ponto de redefini-la como matéria repetitiva.
Charles Péguy também reconheceu na metafísica bergsoniana uma filo-
sofia virtual do trabalho, mostrando de maneira convincente que essa “recupe-
ração” seria, em primeiro lugar, um ato de resistência contra uma servidão que
é uma mera tradução histórica do hábito.46 Introduzindo no seio da filosofia
uma “dinâmica”47 capaz de rivalizar com os “pensamentos preconcebidos”, que
44
Les deux sources de la morale et de la religion, op cit, p.1059.
45
Especialmente p.985-986.
46
Em Note sur Bergson et la philosophie bergsonienne, op cit, p.1266-1271.
47
Péguy a denomina também “cinématique” e “réorganique”.
206
não fazem mais do que ordenar e repetir os elementos formatados por e para a
linguagem, o conhecimento autêntico proposto por Bergson se proíbe de trans-
passar um saber de um campo para outro, mas busca fazer corpo com seu
objeto. Ele opõe ao trabalho passivo do hábito essa virtude pronominal do
trabalho que faz com que todo conhecimento autêntico proceda de uma in-
trospecção prévia e desemboque em uma experiência da qual saímos transfor-
mados. Para explicar esse processo, Péguy também – bom bergsoniano – uti-
liza uma imagem. Ele compara assim a árvore de papelão que serve de cenografia
em um palco teatral e a árvore que cresce livremente na natureza. A cada uma
delas corresponde um tipo de pensamento. A árvore do teatro nasceu para ser
plana, ela não é aplanada ou deformada, portanto sua própria essência é con-
trária à de qualquer árvore, mesmo se tem condições de se parecer com ela.
Mas é para sempre “preconcebida”, simplesmente sujeita a ser retocada, re-
manejada, inserida em um novo décor. Por isso, é o modelo daquilo que pode
conseguir essa inteligência que nunca se encontra mais à vontade que quando
se inscreve em um campo de hábito cujos fundamentos ela própria estabelece-
ra. Mas para além desse primeiro esquema – que, para Péguy, serve antes
como um instrumento para qualificar uma obra autêntica, livre rebento com
desdobramentos imprevisíveis –, em cada uma dessas duas árvores manifesta-
se uma tendência interna ao trabalho. Uma e outra encarnam os dois limites
extremos entre os quais o trabalho parece sempre hesitar, como se portasse
nele próprio uma indeterminação que conspira contra toda esperança de poder
algum dia oferecer uma definição exata. Mas não se trata da manifestação de
um problema que não saberia se fechar, e que continua a produzir tantos
sentidos como virtualidades a própria vida pode abrir. Como escreveu Berg-
son em Da posição dos problemas, não é no conceito mas é sempre no “encade-
amento dos sentidos intermediários”48 que se exprime a plenitude do sentido.
E é precisamente aí, no cruzamento dessas tendências, que o trabalho se torna
fonte de emancipação.
“Eu creio que A evolução criadora marcará na história das doutrinas uma
data importante; ela rompe de maneira explosiva com as metafísicas moder-
nas, e afirma o direito à existência para as novas filosofias”.49 Dessa constata-
ção geral enunciada por Sorel em 1910, convém efetivamente conservar uma
visão mais geral que aquela que costuma ser resgatada na hora de explicar essa
singular recepção do bergsonismo. Certamente, para Sorel, os princípios
metafísicos delineados por Bergson tiveram como primeira vocação a de ser
mobilizados para a ação, desde que essa ação tenha por finalidade escrever a
48
Em La pensée et le mouvant, op cit, p.1275.
49
Vues sur les problèmes de la philosophie, segundo artigo, op cit, p. 68-69.
207
história. Leitor atento de Vico, a quem consagrara vários estudos, ele asso-
ciou com brio o ricorso viquiano e a intuição vitalista bergsoniana, a fim de
conceder todo seu sentido ao conceito de proletariado, classe de uma imanên-
cia revolucionária que constitui sua própria teorização enquanto desdobra suas
asas. Assim, tanto o bergsonismo de Sorel como o de Péguy, e mais tarde o de
Deleuze, são fundamentalmente uma questão de método. Descobrir o cami-
nho de um empirismo que conduza a um absoluto, colocando de maneira
constante a linguagem em uma posição de impotência que a constrinja a não
se satisfazer com suas próprias produções: tal é a linha de uma “recuperação
metafísica” que, para cada um deles, irá garantir a salvação da filosofia. A
questão do trabalho, confiscada em grande parte por um marxismo que se
recusou categoricamente a admitir seu caráter metafísico, hoje debe ser “recu-
perada”. Não apenas porque o objeto merece nossa atenção, mas também por-
que a revolução metafísica inspirada por Bergson não será plenamente consu-
mada sem que essa dimensão do nosso ser seja verdadeiramente explorada.
Essa tem sido, com certeza, uma das inspirações mais fortes de Sorel, e talvez
seja nesse ponto onde o bergsonismo ainda pode conceder às novas filosofias,
árvores das formas mais variadas, um direito à existência.
208
1
Este artigo retoma parte da dissertação de mestrado apresentada em junho de 2005 na
Universidade Paris I – Panthéon Sorbonne, sob a direção do professor Renaud Barbaras.
2
TI I.
209
Considerações metafísicas:
totalidade e espaço, duração e infinito
3
Desde o dia em que Zenão “assinalou as contradições inerentes ao movimento e à mudança tal
como se os representa a inteligência [...], escreve Bergson, a metafísica foi levada a buscar a
realidade das coisas fora do tempo, fora do que se move e do que se modifica” (PM 1259).
Enquanto os filósofos “antigos e modernos” buscam “situar-se através de um salto na eternida-
de”, eles se mantêm fiéis ao funcionamento natural da inteligência, para a qual, em razão de
sua destinacão prática, “nada se perde, nada é criado” e o “novo” é sempre, a rigor, “um novo
ordenamento de elementos pré-existentes”. Mas na medida em que “tratam a sucessão como
uma coexistência falida, e a duração como uma privação de eternidade [...], eles nunca
conseguem [...] se representar a novidade radical e a imprevisibilidade” (PM 1260).
210
Tempo e alteridade
Em primeiro lugar, cabe destacar um certo ar de família entre o “surgi-
mento ininterrupto de novidades imprevisíveis” descrito pela duração bergso-
niana, por um lado, e, por outro, a análise do rosto que propõe Lévinas. Cito
Lévinas: “o rosto fala. [...] Desfaz a cada momento a forma que oferece” (TI
61). Em outras palavras, o rosto é o que escapa de maneira permanente e
imponderável a toda tentativa de encerrá-lo em uma idéia; é o que faz trans-
bordar “as imagens sempre imanentes a meu pensamento” (TI 331). O rosto
do outro, tal como o descreve Lévinas, é o que, apesar de sua proximidade
física, nunca está de todo presente: como a duração, o rosto é o que se mantém
211
sempre por vir. Assim como a relação da consciência com a duração, a relação
com o rosto conjuga, pois, proximidade e transbordamento.
Lévinas apóia-se sobre esse paralelismo quando, nas conferências reuni-
das em O tempo e o outro4 – “guiadas pela analogia entre a transcendência que
a dia-cronia significa e a distância da alteridade do outro”5 – busca pensar o
tempo a partir da relação com o outro homem. O tempo e o outro é, sem
dúvida, o mais bergsoniano dos livros de Lévinas, a um tal ponto que, em
dados momentos, o autor se limita a parafrasear certas afirmações de seu pre-
decessor: “a exterioridade do porvir, escreve por exemplo, é totalmente dife-
rente da exterioridade espacial, pelo fato de que o porvir é absolutamente
supreendente” (TA 64). Lévinas assinala aí que, em contraposição à presença
inexorável e horrorosa à qual está condenada o sujeito solitário,6 a relação
com o outro (com o rosto, dirá Lévinas a partir de Totalidade e infinito) intro-
duz uma fissura que interrompe essa presença e, nesse sentido, traz um certo
alívio. É que “longe de ser uma fusão, [a relação com o outro ou a outra] é a
relação [...] com a ausência do outro, não a ausência de um puro nada, mas
ausência num horizonte de porvir, uma ausência que é tempo”.7 Daí a tese que
atravessa o texto de 1947 segundo a qual “a relação com o porvir, a presença
do porvir no presente, se cumpre no cara a cara com o outro [...]. A condição
do tempo é a relação entre seres humanos”.8
Tanto a descrição levinasiana do rosto como a sua concepção do tempo
como epifenômeno da relação com o outro homem seriam, portanto, tributá-
rias da filosofia da duração.9
4
Le Temps et l’Autre, Paris, collection “Quadriges”, PUF, 2001.
5
Ibidem, p. 11.
6
Seja sob a forma impessoal e universal do há que no deixa escapatórias, ou, sob a forma da
identidade pessoal à qual não podemos aderir – isto é, como exterioridade sem interioridade
ou como interioridade sem exterioridade. Cf. Le Temps et l’Autre, Paris, collection “Quadriges”,
PUF, 2001, pp. 24-38.
7
Ibidem, p. 83.
8
Ibidem, p. 68.
9
Seria necessário acrescentar que, mais tarde, quando no último capítulo de Totalidade e infinito
Lévinas propõe a sua fenomenologia do Eros e da paternidade, ele voltará a fazer apelo ao
bergsonismo, mas desta vez referindo-se mais precisamente à idéia desenvolvida por Bergson
em seu artigo “O possível e o real”, segundo a qual o porvir encerra possibilidades que não
podem ser projetadas a partir do presente. O apelo é então descrito como “aquele que [...]
retira-se em seu porvir, para além de toda possibilidade prometida à antecipação” (TI 289).
No que concerne à relação com o filho, Lévinas afirmará que se trata de uma relação com um
porvir absoluto (TI 300), uma vez que pelo filho o eu acede a uma “possibilidade que se situa
para além do possível”. Deste modo, ele acrescenta, “meu porvir não entra na essência lógica
do possível. Chamo de fecundidade a relação com um porvir semelhante, irredutível ao meu
poder sobre os possíveis” (TI 300).
212
10
Cf., por exemplo, Le Temps et l’Autre, Paris, collection “Quadriges”, PUF, 2001, p. 11.
11
“La relation avec l’avenir, la présence de l’avenir dans le présent semble encore s’accomplir
dans le face-à-face avec autrui” (TA 68).
12
“Não é porque o outro é novo – quididade inédita – que ele significa a trascendência ou, mais
exatamente, que ele simplesmente significa; é porque a novidade provém do outro que há, na
novidade, trascendência e significação. [...] Sem a proximidade do outro em seu rosto tudo se
absorve, se dilui, se solidifica no ser, cai do mesmo lado, tudo forma um todo, absorvendo
inclusive o sujeito ao qual se desvela” (AE 279).
13
Cf. Emmanuel Lévinas, De l’existence à l’existant e Le Temps et l’autre.
14
Le Temps et l’Autre, Paris, collection “Quadriges”, PUF, 2001, pp. 24-38.
213
15
R. Calin e F.-D. Sebbah., “Diachronie”, Le vocabulaire de Lévinas. Paris: Ellipses, 2002.
16
Esse passado imemorial poria em xeque tota tentativa de sincronizar minha presença com a
do outro. Garantiria, pois, a manutenção da distância no seio da proximidade, impedindo a
fusão, a síntese dos termos que entram em relação.
17
“Dans la continuité [...] qui pèse encore sur la durée bergsonienne [...], où l’être porte toute
la charge du passé, [...] le passé limite l’infinitude de l’être” (TI 311).
214
Considerações gnoseológicas
Sentido e adequação
Assinalamos mais atrás que, tanto para Bergson como para Lévinas, a
“espiritualidade” pressupõe uma relação com aquilo que, de alguma forma,
18
“[na criação] o possível se converte rapidamente em poder e dominação. Na novidade que
dele surge, o sujeito se reconhece. Encontra-se nela e a domina. Sua liberdade escreve a
história, que é uma, seus projetos desenham um destino do qual é mestre e escravo. [...] O
homem sedento de potência, que aspira a sua divinização e que se encontra, deste modo,
condenado à solidão, aparece no término dessa trascendência” (TI 308).
19
Trata-se, claro está, do Ser tal como o pensa nossa tradição filosófica que, segundo Lévinas,
nunca deixou de ser parmenídica, apesar de todos os presumidos parricídios.
20
“L’œuvre profonde du temps délivre à l’égard [du] passé [...]. Il faut une rupture de la
continuité” (TI 316).
215
21
“Este modo de desfazer a forma adequada ao Mesmo para apresentar-se como Outro é
significar ou ter um sentido. [...] A significação é [...], por excelência, a presença da exterio-
ridade” (TI 61).
216
do absoluto”, afirma Lévinas (que diz coincidir com Bergson nesse ponto), é
preciso proceder “de outro modo que mediante o conhecimento” (EN 150),
isto é, consentir em interromper a representação, em suspender o saber que é
sempre redução do Outro ao Mesmo.
Essa supensão do saber corresponde àquilo que Lévinas descreve em
seus textos como relação ética (ou Desejo metafísico). O absoluto – isto é,
aquilo que significa a partir de si mesmo o Rosto – se daria somente no cara a
cara ético, na responsabilidade infinita pelo outro, na resposta sempre deficiente
ao chamado que retumba em seu rosto. Nem conhecimento nem acidente
gnoseológico, essa irrupção de uma exterioridade radical implica uma relação
que é “de outro modo que saber”22 e que desbanca a tendência da consciência
e do saber a igualar, a reduzir.
Sob esse aspecto, e ainda que isto possa parecer surpreendente, Lévinas
considera Bergson como seu precursor: “Bergson, ele escreve, é uma etapa
essencial do movimento que põe em questão os marcos da espiritualidade
entendida como saber e, nesse sentido, a significação prioritária da presença”
(TrIn 20). A intuição, sustenta Lévinas, “não é visão e, a partir de então,
‘presença de...’ que acederia à ‘novidade’ já despojada de sua novidade, à alte-
ridade que já não é outra” (TrIn 35). Em defesa dessa interpretação poder-se-
ia alegar que a intuição bergsoniana (“visão direta do espírito pelo espírito”),
à diferença da inteligência (da “análise”) e na medida em que prescinde de
toda mediação,23 não reduz o real a um quadro prestabelecido e, por isso, não
reconduz o novo ao já conhecido (PM 1395). Nesse sentido, ela implicaria
um duplo movimento de transcendência: em direção à singularidade do objeto
intuído (simpatia) e à alteridade do porvir inantecipável desse ser (que é esse
ser). A intuição não representaria, pois, um saber no qual o Outro é reduzido
ao Mesmo, mas “um movimento de transcendência que leva do Mesmo ao
Outro, absolutamente outro” (EDE 199).
A linguagem do saber
Mas trata-se claramente – e o próprio Lévinas o reconhece (TrIn 35) –
de uma leitura heterodoxa do texto bergsoniano. A filosofia de Bergson é
talvez, antes de tudo, uma tentativa de restaurar, depois de Kant, o projeto de
um conhecimento absoluto do eu e do mundo: a intuição não deixa de ser um
22
Posso sem dúvida ter uma experiência do outro homem “mas precisamente sem discernir nele
a sua diferença indiscernível” (DVI 243). A alteridade irredutível do outro homem “‘résiste’ à
sincronização da correlação noético-noématico e significa o imemorial e o infinito que não
cabem na presença ou na re-presentação” (DVI 243).
217
Consideracões éticas
O tempo, a morte
Nesee plano, Lévinas fará apelo ao bergsonismo em sua crítica do ser-
para-a-morte heideggeriano. Na medida em que a existência humana é uma
existência temporal, dirá Lévinas com acentos bergsonianos, a morte não cons-
titui seu horizonte último.
Em primeiro lugar, Lévinas concebe a possibilidade de um “triunfo so-
bre a morte”, sob a condição de que a morte do outro me obrigue a ir mais
além da minha própria morte.24 Mas esse sacrifício pelo outro pressupõe, por
sua vez, o intervalo aberto pelo tempo entre o momento presente e o instante
23
Esta imediatez da intuição reaparece talvez na insistência, por parte de Lévinas, sobre o fato
de que, quando o Eu se encontra na proximidade do Outro, ele o aborda de frente, sem
mediações, sem contexto, permitindo assim que o outro se manifeste a partir de si mesmo:
“Autrui ne nous vient pas seulement à partir du contexte, mais sans médiation, il signifie par
lui-même” (EDE 270).
24
“A bondade comporta, pois, a possibilidade para o eu exposto à alienação de seus poderes pela
morte, de não ser para a morte” (TI 277, cf. também AE 204)
218
Duração e Amor
Cabe destacar que a idéia levinasiana do sacrifício pelo outro como condi-
ção dessa vitória sobre a morte também pode ser encontrada na última obra de
Bergson, As duas fontes da moral e da religião. Aí Bergson sustenta que a intuição
da duração, quando alcança o seu ponto culminante, converte-se em sacrifício
pelo outro, pela humanidade inteira, isto é, em relação ética: “o élan vital, apon-
ta Lévinas, não é a última significação da duração bergsoniana. Em As duas
fontes, a duração – que em A evolução criadora é pensada como élan vital – torna-
se vida inter-humana. Converte-se no fato de que um homem pode lançar um
chamado à interioridade do outro homem” (DMT 66, EN 236).
Bergson sustenta, com efeito, em seu livro de 1934, que nos grandes mís-
ticos, nos quais a intuição da duração alcança o seu grau máximo de intensidade,
esta se transforma em contato e união com a fonte mesma da vida (DSMR
1168-9). Mas se tal união quer ser total, ela não pode ser meramente contem-
plativa. A intuição completa, afirma Bergson, compromete também, e sobretu-
do, o querer (DSMR 1171). E resituar o próprio querer em Deus é, segundo a
25
“O tempo é o fato de que toda a existência do ser mortal – exposto à violência – não é o ser
para a morte, e sim o ‘ainda não’, que é uma forma de ser contra a morte, uma retirada com
relação à morte no seio mesmo de sua aproximação inexorável” (TI 247).
26
A duração é, para Bergson, mais forte que a morte. O próprio Lévinas, em uma das aulas
publicadas em Dieu, la mort et le temps que tem como título: “En deçà de Heidegger:
Bergson”, opõe ao pensamento do ser para a morte a noção bergsoniana de élan vital: “Chez
Heidegger, le temps originaire [...] décrit la finitude de l’être-là. [...] Le temps infini est
déduit de la finitude originelle. Pour Bergson, la finitude et la mort indépassable ne sont pas
inscrites dans la durée. [...] Au contraire la vie est durée, élan vital [...] ‘Tous les vivants se
tiennent, et tous cèdent à la même formidable poussée. L’animal prend son point d’appui sur la
plante, l’homme chevauche sur l’animalité, et l’humanité entière, dans l’espace et dans le
temps, est une immense armée qui galope à côté de chacun de nous, en avant et en arrière de
nous, dans une charge entraînante capable de culbuter toutes les résistances et de franchir
bien des obstacles, même peut-être la mort’. [...] L’humain est alors une façon de ne pas être-
à-la-mort.” (DMT 64)
219
leitura que propõe Bergson dos textos místicos, amar, através Dele, a humanida-
de inteira. A verdadeira intuição, enquanto união com Deus, compromete o
místico a atuar para completar a obra divina, isto é, para tornar a humanidade
mais livre, mais espiritual, mais próxima do sentido último da vida, sejam quais
forem as dificuldades e sem pedir nada em troca. A intuição da duração torna-
se, portanto, em As duas fontes, amor, inquietude pelo outro, sacrifício.27
Mediante essa virada ética, o pensamento bergsoniano comungaria com
a promoção levinasiana da ética ao estatuto de filosofia primeira – “esse amor
é a raíz da sensibilidade e da razão”, escreve Bergson (DSMR 1173). Do
mesmo modo, ela aproximaria Bergson da tese de O tempo e o outro, segundo a
qual “falar do tempo para um sujeito isolado, falar de uma duração puramente
pessoal, parece impossível” (TA 64).28
E, no entanto, mais uma vez, essa possível aproximação entre os dois
autores realiza-se sobre um fundo de divergências incontornáveis.
27
“C’est désormais pour l’âme une surabondance de vie. [...] C’est une poussée irrésistible qui
la jette dans les plus vastes entreprises. [...] Car l’amour qui le consume n’est plus simplement
l’amour d’un homme pour dieu, c’est l’amour de Dieu pour tous les hommes. A travers Dieu,
par Dieu, il aime toute l’humanité d’un divin amour. [...] Il voudrait, avec l’aide de Dieu,
parachever la création de l’espèce humaine et faire de l’humanité ce qu’elle eut été tout de suite
si elle avait pu se constituer définitivement sans l’aide de l’homme lui-même. [...] Sa direction
est celle même de l’élan de vie ; il est cet élan même communiqué intégralement à des hommes
privilégiés qui voudraient l’imprimer alors à l’humanité entière” (DSMR 1169-1173).
28
Lévinas explicita esta convergência entre suas inquietudes e os últimos desenvolvimentos do
bergsonismo em um artigo dedicado a Vladimir Jankélévitch, publicado em Hors sujet. Aí ele
escreve: “la durée [...] – sublime antipode de cette fière et ‘quiète’ éternité assurée de la
pleine possession de son être – [constitue] la figure d’une in-quiétude pour l’autre, d’une
dépense sans calcul, d’une générosité, d’une bonté, d’un amour, de l’obligation envers autrui.
[...] Dés-inter-essement de la durée [...]. Morale sans eudémonisme et qui serait, si on peut
le dire, la ‘temporalisation’ même du temps” (HS 118-119).
220
Conclusão
Na obra de Lévinas é possível ler, em alguns momentos, uma certa in-
fluência bergsoniana (por exemplo, em sua crítica à categoria de totalidade).
Aparecem também certas interpretações curiosas de Bergson (por exemplo,
sua interpretação da intuição como modalidade do autrement que savoir), assim
como certos usos do bergsonismo (por exemplo, no momento de elaborar a
sua tese acerca do tempo como epifenômeno da relação inter-subjetiviva, ou
em sua crítica do ser-para-a-morte). Podem-se detectar, além disso, algumas
coincidências entre ambos os autores (penso na assimilação entre sacrifício e
espiritualidade em Lévinas e no último Bergson).
Entretanto, creio que trata-se apenas de pontes estendidas sobre o abis-
mo que separa essas duas filosofias. Apesar de um certo ar de família, de
certos pontos de convergência, não caberia identificar a duração bergsoniana
– heterogênea mas contínua – e a diacronia levinasiana. Ou o “de-outro-
modo-que-saber” e a intuição, que não deixa de ser um certo tipo de saber.
Ou o sujeito concebido como responsabilidade e o eu pensado como liberdade
– ainda que essa liberdade culmine em um amor pela humanidade.
Essas divergências manifestam, na realidade, a distância que separa o
gesto fundamental (a intuição?) operado por cada uma dessas duas filosofias.
29
“Proférer ‘je’ – affirmer la singularité irréductible où se poursuit l’apologie – signifie posséder
une place privilégiée à l’égard de responsabilités pour lesquelles personne ne peut me rempla-
cer et dont personne ne peut me délier. Ne pas pouvoir se dérober – voilà le moi” (TI 275).
221
30
F.-D. Sebbah, Lévinas, Paris, Les Belles lettres, 2° edición, 2003, p. 120.
31
Obras citadas nas edições indicadas na bibliografía.
222
EI Ethique et infini
TrIn Transcendance et intelligibilité
HS Hors sujet
EN Entre-nous. Essai sur le pense-à-l’autre
DTM Dieu, la mort et le Temps
Obras de Bergson
PM La pensée et le mouvant
MM Matière et mémoire
DI Les données immédiates de la conscience
DSMR Les deux sources de la morale et de la religion
EC L’évolution créatrice
Bibliografia
223
Entre-nous. Essai sur le pense- à-l’autre, Paris, Le livre de Poche, 1998 (Grasset,
1991).
Dieu, la mort et le Temps, Le livre de Poche, 1997 (Grasset, 1993).
224
Os autores
ADRIÁN CANGI
Doutor em Sociología e Filosofia e Pós-Doutor pela Universidade de São
Paulo. Professor em diversas instituições argentinas: Universidad de Buenos
Aires, Fundación Universidad del Cine e Universidad Nacional de La Plata.
Publicou, dentre outros: Gilles Deleuze-Carmelo Bene. Superposiciones (trad.
e estudo preliminar, 2002). Glauber Rocha. Del hambre al sueño. Obra, polí-
tica y pensamiento (edição, 2004); Papeles insumisos. Ensayos de Néstor Perlon-
gher (comp. e prólogo, 2004); Abbas Kiarostami. Una poética de lo real (editor,
2006), Jean-Luc Godard. Historia(s) del cine (trad. e estudo preliminar, 2007).
AXEL CHERNIAVSKY
Formado em filosofia pela Universidad de Buenos Aires, com monografia
sobre o discurso filosófico em Bérgson. Mestre em história pela Univer-
sité de Paris X Nanterre. É doutorando sobre Gilles Deleuze pela Uni-
versidad de Buenos Aires em co-tutela com a Université de Paris I Panthéon-
Sorbonne (bolsista CONICET). Apresentou diversos trabalhos sobre
Bérgson e publicou diversos artigos sobre a filosofia bergsoniana em
periódicos especializados.
AMPARO VEGA
Doutora em filosofia pela Université Paris 8, com tese sobre a analogia
entre a maneira estética, crítica e política em J.-F. Lyotard. Professora
do Instituto de Investigações estéticas da Universidade Nacional de Co-
lômbia, onde coordena o Doutorado em Arte e Arquitetura. É autora
de: Le premier Lyotard, entre critique et politique (no prelo) e membro do
comitê de redação de Ensayos (Instituto de Investigaciones Estéticas, Uni-
versidad Nacional de Colombia).
225
CAMILLE RIQUIER
Professor na Université de Paris 4 Sorbonne. Co-editor, com Cyrille Ha-
bert, do periódico on-line Trans-paraître, membro do comitê de redação
do periódico Alter, e da sociedade de amigos de Bergson. Sua tese de
doutorado versou sobre o tempo e o método em Bergson. Dentre outros
textos publicados: “Y a-t-il une réduction dans Matière et mémoire ?”
(Annales Bergsoniennes, II, PUF, “Épiméthée”, 2004), Bergson et le problè-
me de la personnalité (Les Etudes Philosophiques, PUF, Avril 2007).
ERIC LECERF
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Paris 8, onde
coordena o curso de graduação em filosofia. Diretor de Programa no
Collège International de Philosophie (1992 - 1998). Autor de La famine
des temps modernes (Paris: Éditions l’Harmattan, 1992) e Le sujet du chô-
mage (Paris: Éditions L’Harmattan, 2002).
ERIC MECHOULAN
Doutor em literatura comparada pela Universidade de Paris III. Professor
Titular de Estudos Franceses na Universidade de Montreal. Diretor de
programa no Collège international de philosophie, Paris (2004-2010). Autor
de: Pour une histoire esthétique de la littérature (Paris, P.U.F., coll.
“ L’interrogation philosophique ”, 2004) e Le livre avalé: De la littérature
entre mémoire et culture (XVIe-XVIIIe siècle), Montréal, 2004.
226
JAMES ARÊAS
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Publicou, den-
tre outros: Nietzsche e as singularidades préplatônicas (In: Charles Fei-
tosa; Miguel Angel de Barrenechea. (Org.). Nietzsche e os gregos: arte,
memória e educação. Assim falou Nietzsche V. Rio de Janeiro: DP&A,
2006, p. 99-107) e “Bergson: a metafísica do tempo” (In: Marcio Doc-
tors. (org.). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor,
2003, p. 130-141).
MANUEL MAUER
Mestre em história pela Université de Paris I Panthéon-Sorbonne com a
dissertação “Lévinas lecteur de Bergson”. Doutorando pela Universidade
de Buenos Aires (bolsista CONICET). Apresentou diversos trabalhos
sobre Bérgson e Levinas e publicou artigos sobre a filosofia bergsoniana
em periódicos especializados.
MÁRIO BRUNO
Professor do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Teoria Lite-
rária e Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
227
Pierre Montebello
Professor de filosofia moderna e contemporânea da Université de Toulouse-
le-Mirail. Dentre outros, é autor de: L´autre métaphisique. Essais sur
Ravaisson, Tarde, Nietzsche et Bergson (Desclée de Brouwer, 2003);
Nietzsche, La volonté de puissance (PUF, 2001); L’art, une théologie moderne
(com Frédéric Guerrin, L’Harmattan, 1997); La décomposition de la pensée,
(Jérôme Millon, 1994),
SIOMARA BORBA
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenou e participou de diversos
projetos de investigação, com particular interesse para as relações entre
conhecimento e educação. Foi parecerista ad-hoc e representante no
comitê científico do Grupo de Trabalho em Filosofia da Educação da
Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd).
VIRGINIA KASTRUP
Professora de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pós-doutora no Centre National de la Recherche Scientifique, CNRS,
França, participa em diversos grupos de pesquisa sobre cognição e sub-
jetividade. É autora, dentre outros, de “O funcionamento da atenção no
trabalho do cartógrafo” (Psicologia e Sociedade, v. 19, p. 15-22, 2007);
“A propos de l’apprentissage de la compétence éthique”.(Intellectica,
228
WALTER KOHAN
Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Pesquisador do CNPq e do Prociência/UERJ/FA-
PERJ. Fez estudos de pós-doutorado na Universidade de Paris VIII.
Publicou, entre outros, Filosofia na escola pública (Petrópolis: Vozes, 1999);
Infância. Entre educação e filosofia. (Belo Horizonte: Autêntica, 2003) e
Infância, estrangeiridade e ignorância (Belo Horizonte: Autêntica, 2007).
229
vendas@autenticaeditora.com.br
@
www.autenticaeditora.com.br