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Resumo
O artigo apresenta os principais elementos que permitem situar a teoria e a clínica psicanalíticas
hoje como tributárias da radical renovação produzida pela leitura da obra de Sigmund Freud
empreendida por Jacques Lacan.
1. Texto originalmente escrito para a Encyclopaedia Britannica e permanecido inédito. Revisto, aumentado e atua-
lizado em 2017.
2. Em sua biografia de Freud recém-publicada, Elisabeth Roudinesco contesta a veracidade dessa afirmação pelo
método histórico. Ela permanece mais uma lenda freudiana. (ROUDINESCO, E. Sigmund Freud em sua época e em
nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016).
Se tal desconhecimento pôde ser de- um sob uma forma específica, um sentido
tido em sua progressão, isso se deve sem ocultado por efeito do recalcamento, era
dúvida ao trabalho rigoroso e fecundo de o agente da produção de uma formação do
reconsideração dos fundamentos da obra inconsciente, o qual para se fazer presente
de Freud empreendido pelo psicanalista necessitava de uma expressão indireta e
francês Jacques Lacan. Entretanto, não que deformava para o sujeito em questão
é em toda parte que a obra de Lacan tem o desejo inconsciente em jogo.
merecido acolhida. Até hoje, com algumas Se no trabalho sobre a Psicopatologia
exceções, os centros de estudo de psicaná- da vida cotidiana Freud se dedica à de-
lise voltados para ela parecem restritos, de monstração exaustiva de sua tese do
um modo geral, aos países de língua latina. determinismo psíquico para evidenciar
É assim que se observa, além da França, que nenhuma de nossas ações escapa à
uma posição particularmente privilegiada sobredeterminação (no sentido de super-
da Argentina, do Brasil, da Espanha e da determinação) inconsciente, é em Mais
Itália, para citar alguns, quanto à conti- além do princípio de prazer (texto completa-
nuidade dada ao ensino de Lacan. mente esquecido por muitos psicanalistas
pós-freudianos até que Lacan chamasse
O determinismo inconsciente atenção para sua importância decisiva
Partindo de sua experiência inaugural com em seu seminário sobre O eu na teoria de
as pacientes histéricas, Freud não tarda Freud e na técnica da psicanálise) que ele
a outorgar à sua teoria uma abrangência dará o relevo maior e mais abrangente à
absoluta. Desse modo, a fronteira entre sua teoria do inconsciente.
o normal e o patológico, nitidamente Se, no primeiro, Freud surpreende ao
demarcada pelo discurso da medicina, se valer de exemplos tão contundentes
acha-se problematizada de saída pela tese para exemplificar o grau de profundidade
freudiana do “determinismo psíquico in- da ação da sobredeterminação inconscien-
consciente”. Radicalizando as formulações te, mencionando que até mesmo a escolha
freudianas sobre o assunto, Lacan chegou aparentemente casual de um número é
a dizer que o inconsciente é a verdadeira determinada por uma constelação sim-
doença mental do homem. bólica específica, no segundo, ele renova
Freud destaca paulatinamente a ação o conceito de repetição, através do qual
do desejo inconsciente num amplo espec- já abordara a transferência e a fantasia,
tro de fenômenos até então relegados a para lhe outorgar um relevo ainda mais
um plano desimportante (como o sonho, poderoso na ação dos mecanismos incons-
o esquecimento de palavras e nomes, o ato cientes. Para exemplificar tal repetição
falho, o chiste) ou, ainda, naqueles cuja na qual sua pesquisa desemboca, Freud
estrutura se revelara até então ininteligí- se vale dos sonhos traumáticos (sonhos
vel pelos discursos médico e psiquiátrico reiterativos centrados em torno de uma
(sintomas neuróticos, delírios psicóticos, vivência particularmente traumática para
perversões sexuais). o sujeito), cujo caráter coercitivo revela
Na análise de todos esses fenômenos a ação de uma força – a pulsão de morte
que haviam sido jogados na lata do lixo – que ultrapassa aquelas que regulam a
pelo discurso da ciência, um mesmo de- busca da homeostase, na qual se baseia o
nominador comum foi depreendido por princípio de prazer. A repetição constituirá
Freud: a expressão, por meios distorcidos a grande novidade do seminário sobre Os
pela censura psíquica, de uma verdade quatro conceitos fundamentais da psicanálise
à qual o sujeito não tinha acesso cons- ao ser alçada por Lacan à categoria de
cientemente. Em todos eles, e em cada um dos quatro conceitos fundamentais
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Marco Antonio Coutinho Jorge
bém tem sua importância ressaltada pela veemente crítica aos desvios engendrados
leitura de Freud feita por Lacan. pelos psicanalistas pós-freudianos em sua
Desde o início de seu ensino, Lacan prática. Tais desvios implicavam no fun-
reintroduz no seio da experiência psicana- do uma deterioração da dimensão ética
lítica a importância fundadora da palavra, particular da psicanálise, a qual não se
fato esquecido pelos pós-freudianos. E, se centra na obtenção de um ‘bem’ para o
a supremacia da palavra no contexto da sujeito (forma camuflada de dominação
cura é salientada por Lacan, do mesmo na qual se esteiam todos os discursos do
modo o é a utilização da palavra por par- poder), mas sim na possibilitação para o
te do psicanalista. Assim, Lacan dá seu sujeito de ‘bem dizer’ seu próprio sintoma
próprio exemplo através de seus Escritos, e, não cedendo sobre seu desejo, chegar a
cuja dificuldade de leitura procede de uma diminuir ao máximo a distância que separa
verdadeira estratégia metodológica: opa- seus enunciados de sua enunciação.
cificando seu sentido, elevando-os a um Seguindo a recomendação freudiana
intenso grau de densidade textual, Lacan que indicava para o analista uma posição
promove a requisição de que o sujeito se de neutralidade, sede de um não agir po-
inclua efetivamente no ato da leitura, sitivo, Lacan redefine o lugar do analista
assim como traz à demonstração teórica enquanto o “lugar do morto”. Tal formu-
uma verossimilhança ímpar, aproximan- lação implica precisamente que o analista
do-a da forma particular de exegese que o esteja morto quanto à própria subjetivida-
psicanalista deverá operar em sua prática. de, a qual não pode estar presente no ato
Por isso, o teor poético de seus escritos é analítico sob pena de obliterar sua escuta.
exemplar da utilização rigorosa da palavra A partir daí, Lacan passa a criticar a uti-
enquanto meio precioso e supremo do lização, difundida universalmente, entre
qual se vale a psicanálise. A crítica feita a nós sobretudo pelos trabalhos de Heinrich
Lacan de preciosismo se esquece de que Racker, da chamada contratransferência
a rigor é impossível não sê-lo quando se do analista (sentimentos e ideias evocados
trata da palavra. no analista pelo discurso do analisando),
Dessa ênfase posta na palavra, decorre enquanto meio técnico, pois ela se calca
a constituição da ‘lógica’ lacaniana ‘do na suposição da existência de uma re-
significante’, a qual, partindo das noções lação intersubjetiva entre o analista e o
introduzidas pela linguística estrutural analisando. Essa suposição é imaginária,
de Saussure, subverte-as ao articulá-las depende de uma concepção da análise
com a categoria do sujeito, excluída da enquanto uma relação dual, especular, de
linguística. eu a eu, e tem em seu horizonte o objetivo
As intervenções estabelecidas por de identificar o eu do analisando ao eu do
Lacan no campo da teoria psicanalítica analista, perpetuando, assim, uma aliena-
podem ser repartidas, grosso modo, sob três ção imaginária que, na verdade, a análise
rubricas gerais: (a) questões pertinentes deve visar suprimir.
à direção do tratamento analítico; (b) Tal desvio na prática era uma decor-
contribuições à metapsicologia da psica- rência da ação cada vez mais centrada no
nálise; e (c) desenvolvimentos relativos eu pelos pós-freudianos, que passaram
à problemática da transmissibilidade da a valorizar no manejo técnico a análise
psicanálise. das resistências. Lacan veio ainda aí
Quanto aos problemas colocados estabelecer uma importante retificação,
pela direção da análise, o trabalho de demonstrando que voltar a atenção para
Lacan, simultaneamente ao resgate das a resistência constitui, com efeito, uma
postulações freudianas essenciais, é uma “resistência do analista”. Parecendo à
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Marco Antonio Coutinho Jorge
primeira vista incongruente, tal afirmação os afetos mantêm alguma relação com
é na verdade consoante com a tese freu- o simbólico e nela trata-se precisamente
diana, posta em Mais além do princípio de de ‘dar a palavra’ àquilo que até então só
prazer, de que o “inconsciente não resiste”, encontrava expressão através do sintoma.
mas sim “insiste”, e é a essa insistência Antes de ser não verbal, o sintoma é na
desejante que cabe ao analista aliar-se na verdade hiperverbal; no entanto, apenas
direção do tratamento. Um dos sentidos trazendo-o ao regime da palavra o sujeito
das sessões de duração variável introdu- pode se realizar plenamente.
zidas por Lacan, que estiveram na origem Tal crítica lacaniana implica que na
de sua expulsão da IPA, é precisamente psicanálise de crianças, por exemplo, a
a aliança que deve ser estabelecida pelo técnica de utilização do desenho e do
analista, sem dar ouvidos às resistências, jogo possa ser utilizada, mas desde que
com a insistência desejante. As sessões de acompanhada pela enunciação da crian-
duração variável adquirem seu valor ainda ça ou ainda que os afetos preservem sua
da necessidade de desritualizar a prática, importância desde que seu mero extra-
através da introdução no seio mesmo da vasamento não seja considerado como o
experiência daquele elemento de surpresa, objetivo maior do tratamento, mas sim a
de inesperado, através do qual o incons- assunção subjetiva de seu sentido através,
ciente se manifesta. ainda e sempre, da enunciação.
Acentuando o desejo, e não a resistên- Paralelamente ao resgate para a teoria
cia, Lacan pôde vir a retrazer à “interpreta- psicanalítica da importância da palavra e
ção”, modo de intervenção do analista por da linguagem, Lacan toma para si o encar-
excelência, seu estatuto freudiano original. go de obter para aquela alguma forma de
Diversa da compreensão, à qual de fato se transmissibilidade. Essa questão se revela
opõe (do mesmo modo que a transferência fundamental na medida em que, se para
se opõe à sugestão), a interpretação é a Freud não se colocava a questão da não
emergência no discurso do analisando da cientificidade da psicanálise, sabe-se das
verdade de seu desejo, cabendo ao analista críticas sofridas por esta desde sempre pela
apenas colhê-lha, acolhê-la e relançá-la ao epistemologia da ciência. Lacan traz essa
sujeito. Por essa via, o psicanalista M. D. questão para o seio da própria psicanálise
Magno desenvolveu a tese de que o ato e, através disso, não só levanta um questio-
psicanalítico e o ato poético são isomórfi- namento do estatuto da ciência enquanto
cos, pois o poeta, definido por Saint-John promotora da exclusão do sujeito de seu
Perse como aquele sujeito que apresenta discurso, como também estabelece algu-
uma contínua aptidão para o espanto, é mas balizas que visam dar alguma cienti-
também aquele que consegue chegar a ficidade à psicanálise.
dizer algo que ninguém mais poderia dizer Não poderíamos nos estender sobre
em seu lugar. esse ponto complexo no quadro deste
Se a palavra é fundadora e seu valor ensaio, mas, digamos sucintamente, que
na psicanálise é absoluto na medida em tais balizas residem, por um lado, na re-
que ela constitui o único meio do qual a corrência à topologia matemática (por
psicanálise dispõe, Lacan vem a empreen- exemplo, à banda de Moebius, para ilustrar
der uma veemente crítica ainda aos ana- a topologia do sujeito), à teoria dos nós
listas que se valiam de noções decorrentes (com a utilização do nó borromeano para
da ideia de uma comunicação não verbal demonstrar a tripartição estrutural entre
e, através desta, só faziam objetificar o Real, Simbólico e Imaginário); por outro
analisando. Para a psicanálise, com efei- lado, no estabelecimento gradual ao longo
to, todos os atos, os gestos, as mímicas, de seu ensino de uma álgebra cujas letras
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Freud com Lacan: a psicanálise hoje
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