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REFUGIADOS EM RORAIMA (BRASIL): ACOLHIMENTO E

VULNERABILIZAÇÃO

José Carlos Franco de Lima, Coordenador do Projeto de Apoio aos Refugiados em


Roraima (Projeto Acolher) da Universidade Federal de Roraima; Doutor em
Antropologia; Rua Arineu Ferreira Lima, 1535 - Jardim Caranã - Boa Vista - Roraima -
Brasil; josecarlosfrancodelima@gmail.com

Gilmara Fernandes, estudante do mestrado em Antropologia Social da Universidade


Federal de Roraima; Graduada em Antropologia; Rua São Mateus, 465 - Bairro
Cinturão Verde - Boa Vista - Roraima - Brasil; gilmakunaima@gmail.com.

Resumo
Este artigo apresenta a questão dos refugiados em Roraima (Brasil) destacando as ações
de acolhimento, proteção e inserção realizadas por organizações sociais em contraste
com o processo de vulnerabilização instaurado pela omissão
governamental. Elencamos as demandas socioeconômicas dos refugiados, ações que
vem sendo desenvolvidas no campo das organizações sociais e sugestões para as
políticas públicas de acolhimento, proteção e inserção no mercado de trabalho. Do
ponto de vista analítico, concebemos a situação dos refugiados como um tema
transversal que perpassa áreas como moradia, saúde, educação, relações étnicas,
mercado de trabalho, política e comunicação social. Os dados para a leitura que fizemos
vêm da etnografia comunitária do cotidiano que vimos desenvolvendo na equipe
multidisciplinar que compõe o Projeto Acolher da Universidade Federal de Roraima
(RR). Procuramos estabelecer um diálogo com a pesquisa realizada pelo Conselho
Nacional de Imigração e com o diagnóstico que a Organização Internacional do
Trabalho realizou em Roraima, ambos no segundo semestre de 2017. O eixo central do
artigo é a carta-relatório apresentada pelas organizações sociais ao Conselho Nacional
de Direitos Humanos em 26 de janeiro de 2018. Apresentamos alguns traços gerais do
fluxo de refugiados para Roraima para depois descrever as condições de moradia. Em
seguida trazemos alguns dados sobre o perfil dos refugiados no tocante à educação, às
demandas na área e aos serviços que estão sendo oferecidos.

Abstract
This article presents the issue of refugees in Roraima (Brazil) highlighting the actions of
reception, protection and insertion carried out by social organizations in contrast to the
process of vulnerability reinforced by the governmental omission. We bring the socio-
economic demands of the refugees, actions that have been developed in the field of
social organizations and suggestions for public policies of reception, protection and
insertion in the labor market. From the analytical point of view we conceive the
situation of refugees as a cross-cutting theme that social areas such as housing, health,
education, ethnic relations, labor market, policy state and social communication. The
data for the social reading that we do comes from community ethnography of the daily
life that we have been developing in the multidisciplinary team that composes the
Project to Receive of the Federal University of Roraima (RR) and the insertion in the
Social Pastoral of the Archdiocese of Roraima. We seek to establish a dialogue with the
research carried out by the National Immigration Council and with the diagnosis made
by the International Labor Organization in Roraima, both in the second half of 2017.
The central axis of the article is the letter-report presented by social organizations to the
Council On Human Rights on January 26, 2018.

Introdução

O estado de Roraima nos últimos anos tem recebido refugiados venezuelanos,


haitianos e cubanos. Os cubanos entram pela fronteira da República Cooperativista da
Guiana. Já os haitianos vêm de Manaus (Estado Amazonas), e algumas famílias vêm da
Venezuela. Em 2016 houve uma intensificação da vinda de venezuelanos indígenas e
não indígenas para Roraima, principalmente para a cidade de Boa Vista, capital desse
estado, o qual possui 224.299 km². Há vias que favorecem o fluxo de refugiados: o
Brasil tem uma fronteira de 2.199 km com a Venezuela, e a rodovia BR 174 que liga
Manaus (Amazonas) a Pacaraima (Estado Roraima) também é situada na fronteira com
a Venezuela. Do lado venezuelano está Santa Helena de Uiarén (Estado Bolivar), que
conta com ligação asfáltica até Ciudad Bolivar, Porto Ordaz e Caracas. Nas últimas
décadas do século XX e primeira década do século XXI, muitos brasileiros migraram
para a Venezuela para trabalhar no garimpo de ouro, movimento que estabeleceu o
fluxo migratório Brasil-Venezuela, intensificado quando muitos brasileiros adquiriram
cidadania venezuelana durante o governo Chávez.
Já recentemente houve a inversão desse fluxo devido a fatores como disputas
entre governo e oposição na Venezuela, que se aprofundaram nos últimos dois anos,
levando o país ao desabastecimento, inclusive de alimentos. Soma-se a isso o
aprofundamento da crise hídrica na região do Rio Orinoco e no Vale de Caracas. Por
essas razões, a migração de Venezuelanos para o Brasil vem se intensificando em 2016
e 2017. Diante do aumento gigantesco de pedidos de refúgio na política federal em Boa
Vista (RR), um mutirão permanente com voluntários da Pastoral Universitária Católica
(PU), do Grupo de Estudos de Fronteiras das UFRR (GEFRON) e do Serviço Jesuíta a
Migrantes e Refugiado (SJM) foi organizado na Polícia Federal para agilizar a
regularização dos migrantes. Foram 7.600 pedidos de Refúgio até junho de 2017, além
dos pedidos de residência temporária e os irregulares. Devido à grande demanda, o
governo federal abriu a possibilidade de solicitação de residência temporária sem a
cobrança das taxas, mesmo assim, as solicitações de refúgio superam os pedidos de
residência temporária. Diariamente, mais de 200 pessoas se aglomeram nas madrugadas
em frente ao prédio da Polícia Federal para entrarem com pedido de refúgio ou
residência temporária.
A presença de refugiados é evidente: estão trabalhando em empresas, estão nas
ruas pedindo trabalho ou mendigando, suas crianças e adolescentes estão nas escolas, e
a língua espanhola é o principal fator que os distinguem dos brasileiros. Essa presença
ostensiva gerou um consenso na percepção dos setores populares, dos voluntários em
ações sociais e dos setores de renda média de que há uma cifra de “30 mil”
venezuelanos em Roraima. Esse consenso simbólico, observado a partir dos contatos
que realizamos no Projeto Acolher da Universidade Federal de Roraima (UFRR)
durante 2017, quantifica miticamente o volume desse fluxo. Ao mesmo tempo, entrou
em pauta nas conversas a questão dos venezuelanos em bares, nos lanches de rua, nas
salas de aula das universidades, nas filas de espera dos hospitais e postos de saúde, bem
como nas casas das famílias e na mídia. As informações de cunho qualitativo que
apresentamos nesse artigo provêm da convivência com brasileiros e refugiados nas
ações do Projeto Acolher da UFRR, iniciado em fevereiro de 2017. Foram realizadas
ações voltadas ao ensino de português como língua de acolhimento, à orientação
jurídica, às campanhas de sensibilização da opinião pública e à arrecadação de roupas e
alimentação. Em termos de pesquisa qualitativa, podemos afirmar que realizamos uma
etnografia comunitária do cotidiano com caráter transdisciplinar.
A grande maioria dos refugiados está em Boa Vista, capital de Roraima, com
cerca de 320 mil habitantes, mas também existe a presença de venezuelanos em outras
cidades do estado, que possui 14 municípios no interior, todos com menos de 30 mil
habitantes. Essa concentração na capital deve-se à proximidade com a Venezuela e à
espera de legalização da situação no país e familiarização com a língua portuguesa.
Estando-se próximo à fronteira, é mais fácil fazer remessa de dinheiro a partir de Santa
Helena, bem como viajar para a Venezuela e levar utensílios e alimentos para familiares
residentes naquele país. A maioria das ofertas formais de emprego na cidade estão
vinculadas ao serviço público municipal, estadual e federal. Inclusive, setores como a
construção civil pesada trabalham em obras públicas, por exemplo, na manutenção de
ruas e rodovias. A contratação de empresas terceirizadas pelo setor público também é
muito comum para os serviços municipais de limpeza de rua e os serviços de limpeza
dos hospitais públicos. Entretanto, a recessão econômica brasileira, iniciada no final de
2014, aumentou o desemprego no país, em especial em Boa Vista (RR), principalmente
em decorrência da redução de investimentos públicos em obras de infraestrutura.
Devido a essa conjuntura, trabalhadores venezuelanos passaram a representar um
contingente adicional de mão de obra excedente no mercado de trabalho local, e isso
gerou na opinião pública um processo de culpabilização dos refugiados em relação ao
desemprego.
Muitos refugiados seguem para outros estados do Brasil. Uma das turmas de
português de acolhimento do Projeto Extensão Acolher da Universidade Federal
funciona num espaço comunitário chamado Recanto Apuí, Bairro Caiuamé (Boa Vista-
RR), e em junho/2017 ingressaram nesse curso cinco cubanos. Um mês depois, três já
estavam em Curitiba (Estado do Paraná) juntando dinheiro para enviar aos dois que
ficaram em Boa Vista para seguirem viagem. Outro exemplo são Merlina, Rafael e os
dois filhos, que chegaram em 2015. Vindos de La Vitória (Estado Miranda, Venezuela),
viajaram para Joinville (SC) em avião no dia 02 de fevereiro de 2018. Muitos
venezuelanos têm utilizado o aeroporto de Boa Vista (RR) para viajarem em direção ao
Uruguai e Argentina, entretanto, até o momento inexiste em Roraima um programa para
encaminhar os refugiados para outras regiões do Brasil, tanto no campo da sociedade
civil, quanto no campo estatal.
As primeiras iniciativas de acolhimento e apoio aos refugiados se deram no
âmbito da sociedade civil, principalmente no campo das organizações religiosas, nos
anos de 2015 e 2016. Exemplos dessas ações de acolhimento são: as campanhas de
arrecadação de alimentos nas igrejas católicas e evangélicas; o acolhimento no
Sindicato da Construção Civil (SINTRACOM) em parceria com o Centro de Migração
e Direitos Humanos (CMDH) e com Pastorais sociais da Arquidiocese de Roraima; a
distribuição de cestas básicas de alimentos e assessoria jurídica pelo CMDH; as
remessas de alimentos para Porto Ordaz e outras cidades pela Assembleia de Deus; e as
doações de alimentos e roupas a desabrigados acampados em espaços públicos por
grupos de voluntários. Já o ano de 2017 caracteriza um segundo momento: houve
intervenções do Ministério Público Federal, audiências públicas e seminários
envolvendo sociedade civil e órgãos públicos. Entram em cena organismos como o Alto
Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a
Organização Internacional da Migração (OIM) e o Fundo das Nações Unidas para a
População (UNFPA).
Moradias e abrigos

A maioria dos refugiados venezuelanos vive em apartamentos térreos tipo kitnet


nas chamadas vilas ou estâncias, que são imóveis com vários apartamentos alinhados
nos limites laterais do terreno, um após outro. O grau de insalubridade é alto, pois os
tetos são de telhas de fibrocimento sem forração interna. Como as temperaturas mantém
uma média anual entre 35 a 40 graus no cerrado roraimense, aqui conhecido como
lavrado, o ambiente da moradia se assemelha a uma estufa. O aluguel é pago com
trabalho formal ou informal.
Atualmente existem cinco abrigos para refugiados na cidade. O primeiro,
localizado no Bairro Pintolândia, recebe indígenas waraos e panares, e sua a gestão está
a cargo da Federação Humanitária Internacional (Fraternidade Internacional), em
cooperação com Defesa Civil e Secretaria de Bem-Estar Social do governo estadual. O
segundo se localiza em Pacaraima, na fronteira, e está sob a gestão da Área Missionária
de Pacaraima da Arquidiocese de Roraima em cooperação com a Secretaria de Bem-
Estar Social do governo estadual. O terceiro, instalado recentemente (novembro/2017)
no bairro Tancredo Neves, é resultado da remoção de um acampamento espontâneo de
refugiados que estava no Terminal Rodoviário. O quarto, também inaugurado
recentemente, é gerido e mantido pela ONG Fraternidade Sem Fronteiras e abriga 300
refugiados. O quinto é um abrigo de pequeno porte, que atende 60 pessoas que podem
ficar no máximo 60 dias e é mantido pela Igreja Quadrangular.
O abrigo do Bairro Pintolândia, o do Bairro Tancredo Neves e o do município de
Pacaraima oficialmente estão sob responsabilidade do governo estadual, geridos por
Organizações da Sociedade Civil através de termos de cooperação. Porém, eles se
sustentam graças ao trabalho das entidades, pois o governo estadual investe muito
pouco, sob a alegação de que o governo federal não repassa recursos. O argumento é
verídico, pois o governo federal se omite quanto à implementação de políticas de
acolhimento e proteção a refugiados. O líder do governo federal é senador pelo estado
de Roraima e opositor do governo estadual, por isso dificulta o repasse de verbas
federais para desgastar a oposição em vistas das eleições de 2018. Internamente, a
política de abrigamento do governo estadual tem se mantido graças aos oficiais do
Corpo de Bombeiros através da defesa civil, pois a governadora e os secretários de
governo têm se mostrado resistentes às políticas de acolhimento e proteção aos
refugiados. Por exemplo, grande parte dos refugiados haitianos, cubanos e venezuelanos
tem ensino médio completo. No entanto, a secretaria estadual de educação não
apresentou nenhuma proposta de facilitar o reconhecimento dos diplomas de ensino
médio para estrangeiros ou ofertar aulas de português para estrangeiros nos programa de
Educação de Jovens e Adultos.
A destinação de recursos para contratação de equipes técnicas profissionalizadas
para atuar nos abrigos em conjunto com os voluntários, os investimentos em
infraestrutura e o planejamento estratégico das ações das várias secretarias de governo
junto aos abrigos são algumas medidas necessárias para melhorar as condições de vida
nessas instalações. Essas e outras sugestões foram formalizadas em uma carta relatório
apresentada pelas organizações sociais que trabalham com refugiados ao Conselho
Nacional de Direitos Humanos no final de janeiro de 2018. Entretanto, a prefeita alega
que a questão dos refugiados é da alçada federal. Ela tenta torná-los invisíveis, evitando
que ocupem espaços públicos como praças e semáforos, assim, tenta camuflar a situação
atual da migração em Roraima. Os governos federal, estadual e municipal trabalham
com vistas às eleições de 2018, por isso evitam investir em políticas de acolhimento,
proteção e inserção para os refugiados, já que estes não votam e a opinião pública local
oscila entre o apoio e a rejeição a tais investimentos.
O número de migrantes em busca de refúgio, provenientes principalmente da
Venezuela, continua crescendo. Isso tem levado parte desta população a residir em
espaços públicos, como ruas, praças, portas de lojas e imóveis abandonados com algum
teto, e a vagar pela cidade em busca de trabalho, aglomerando-se nas calçadas de ruas
movimentadas pedindo emprego ou mendigando em diversos espaços das cidades.
Desse modo, estão expostos a situações como aliciamento para a prostituição, tráfico
humano, exploração de trabalho, prisões infundamentadas e estupros. Frente a essa
situação, as ajudas humanitárias por iniciativa pessoal, grupal ou institucional
continuam muito presentes. É comum ver gestos de solidariedade, mas são insuficientes
diante da grande demanda, por isso, a ação dos organismos estatais é fundamental. As
organizações sociais que atuam junto aos refugiados têm a seguinte visão nessa questão:

Em relação aos desabrigados, percebemos a presença de um grande contingente nos


espaços públicos (ruas e praças principalmente). Adultos e crianças famintas mendigando
nas vias, perdendo a sanidade e a própria dignidade. Tal população em situação de rua se
encontra em alta vulnerabilidade social, sofrendo discriminação social, xenofobia pela
população civil e por representantes de instituições governamentais como a polícia
(VENTURA, 2018).

O mesmo relatório sugere que a implementação de um programa municipal de


assistência e proteção social baseado nos Centros de Referência e Assistência Social
(CRAS) e nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) já
existentes pode ser uma forma eficiente de atendimento aos refugiados, principalmente
os que estão em situação de desabrigo.

Inserção no mercado de trabalho: desemprego e exploração

A reforma trabalhista protagonizada pelo governo federal combinada com o alto


índice de desemprego no estado tem estimulado a precarização e exploração do
trabalho. Um exemplo é o caso da NR construções. A empresa, ligada ao ramo da
construção civil pesada, opera na construção de ruas e tapa buracos em rodovias
estaduais. Em novembro de 2017, a empresa estava tapando buracos na rodovia entre a
Comunidade Indígena dos Três Corações e a Vila de Tepequem, município de Amajari
(RR). Eram 27 operários trabalhando das 6:30 às 18:00 horas com direito de vir para
Boa Vista (RR) quinzenalmente. Eles trabalhavam aos domingos até 12 horas.
Recebiam salário mínimo, sem direito a hora extra e não tinham contrato de trabalho
formal. No domingo, dia 29.11.2017, havia previsão do ônibus da empresa vir para a
capital e trazer os funcionários, porém o dono enviou uma ordem para ficarem em
Amajari (RR). Alguns trabalhadores brasileiros vieram por conta própria e, ao
retornarem no domingo à noite, foram sumariamente demitidos. Segundo testemunho,
os trabalhadores venezuelanos, treze ao todo, apoiaram a vinda dos brasileiros e
disseram não vir por falta de recursos para pagar o táxi lotação ou o ônibus.
Segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2016, a
maioria dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes se inserem nos setores e atividades
econômicas que possuem os piores salários e as piores condições de trabalho. Isso
acontece com a mão de obra qualificada provinda de Cuba, Haiti e Venezuela à medida
que os certificados não são reconhecidos no Brasil. Trabalhos parciais, eventuais,
temporários e subcontratados são práticas usuais e legais na economia globalizada, por
isso o trabalho informal sem proteção social acaba sendo a alternativa para a maioria
dos trabalhadores refugiados e trabalhadores brasileiros. O pagamento na forma de
diárias por serviços domésticos, como limpeza de quintais e fazendas, representa outra
forma de exploração: 20 reais ao dia para limpeza de quintais ou por um dia de trabalho
nas fazendas; 25 reais diários para uma jornada de seis horas em lanchonetes ou
churrasquinhos noturnos. Em geral, a exploração e a precarização do trabalho têm
atingido brasileiros e refugiados. A diferença está no fato de que os brasileiros estão
abrigados e dispõe de uma rede de apoio familiar e de amizade já consolidada. Segundo
relato entregue pelas organizações sociais aos representantes do Conselho Nacional de
Direitos Humanos em 26 de janeiro de 2018:

Nas vias públicas, assim como nos portões das casas, imigrantes imploram por trabalhos,
seja de forma oralizada, seja segurando cartazes com dizeres de pedidos. Tal situação levou
o estado a um grande aumento de mão de obra barata e competição por postos de emprego.
Além disso, subempregos e em condições semelhante à escravidão (não pagamento de
salário ao final do trabalho, sem direitos trabalhistas, em situações insalubres) e aliciamento
para a prostituição de adultos e menores são reportadas pelos imigrantes. (VENTURA,
2018)

O empresariado por sua vez ganhou maior oferta de mão de obra qualificada,
aumento de consumidores e barateamento da força de trabalho com a chegada massiva
de refugiados. Porém, as organizações empresariais fazem silêncio sobre a temática e se
isentam de qualquer responsabilidade social. No final de setembro/2017, uma equipe da
OIT veio a Roraima fazer um diagnóstico da realidade local no tocante ao mercado de
trabalho. Compunham um grupo junto com o Ministério Público do Trabalho e voltaram
em dezembro para apresentar os resultados da pesquisa. Nas duas visitas, agendaram
reuniões com entidades empresariais, sendo que somente a Federação do Comércio e o
SESC compareceram, acenando levemente no sentido de pautar as condições de
trabalho no estado. Em compensação, as duas tentativas de agendar conversas com a
prefeita e a governadora abortaram. Já o Projeto Acolher está articulando para
maio/2018 um Fórum sobre Mercado de Trabalho em Roraima com intuito de levantar
sugestões para melhorar as condições de trabalho e introduzir a temática nas campanhas
eleitorais 2018.
Também merece destaque o quadro referente às profissionais do sexo. Esse setor
tradicionalmente informal e vinculado às tradições patriarcais da sociedade brasileira se
tornou rentável na sociedade de consumo. A prostituição de rua na região da Feira do
Passarão em Boa Vista (RR) se iniciou na década de 90 com os recursos provenientes
do garimpo no Brasil, Venezuela e Guiana, e essa atividade ganhou maior visibilidade e
notoriedade com o ingresso de mulheres venezuelanas. Nas cidades do interior como
São João da Baliza, Mucajaí, Alto Alegre, Bonfim e Rorainópolis, elas foram cooptadas
pelos prostíbulos. Em 2017, vários cárceres privados de prostitutas foram
desmantelados pela polícia federal no estado. As prostitutas, travestis e transexuais
formam um grupo altamente estigmatizado e vulnerável. Espancamentos, estupros,
tentativas de homicídio e desaparecimentos foram detectados pela equipe da UNFPA de
Roraima. Além disso, confirmou-se o descaso por parte de policiais quando elas fazem
boletins de ocorrências nas delegacias. Atualmente, discute-se um projeto de extensão
na Universidade Federal voltado para defesa pessoal e apoio psicológico a prostitutas,
travestis, transexuais e mulheres vítimas de violência sexual. Um dos segmentos
focados pelo projeto será das refugiadas que trabalham como profissionais do sexo.
Serviços de educação e saúde públicas

Em relação à educação escolar, segundo O perfil sociodemográfico e laboral da


imigração venezuelana no Brasil do Conselho Nacional de Imigração, 46,1% dos
migrantes venezuelanos possuem ensino médio completo e 28,4% ensino superior
completo. Em relação a refugiados cubanos e haitianos, encontramos perfis
semelhantes. Aqui se apresentam dois desafios: fazer o processo de reconhecimento dos
certificados de ensino médio, competência da secretaria estadual de educação, e fazer a
equivalência de diplomas de ensino superior, competência do Ministério da Educação
através da universidade federal de Roraima.
A UFRR instalou oficialmente a Cátedra Sérgio Vieira de Melo em 2017, ligada
à ACNUR, visando construir uma política de apoio aos refugiados na universidade.
Porém, as tentativas seguem lentamente. O maior empecilho para a implementação de
um programa de equivalência acessível para diplomas de estrangeiros é a sobrecarga de
trabalho. A instalação de processos de reconhecimento implica em muito trabalho
docente e técnico-administrativo. Os professores estão sobrecarregados porque, devido
às perdas salariais e cortes de recursos federais, estão trabalhando mais e ganhando
menos. Além disso, as tendências corporativistas de algumas áreas profissionais
dificultam a implementação de programas de reconhecimento de diploma para
profissionais estrangeiros. Um exemplo positivo, nesse sentido, é a postura do Conselho
Nacional de Odontologia, que tem facilitado a regulamentação do trabalho de dentistas
estrangeiros no Brasil, principalmente em regiões onde há grande carência destes
profissionais. O domínio da língua portuguesa tem sido outro obstáculo para o
reconhecimento de diplomas e ingresso nos cursos superiores. Um processo seletivo
vestibular específico para refugiados e a possibilidade de concorrerem à ocupação de
vagas remanescentes nos cursos da universidade são outras propostas em andamento.
A rede estadual oferta vagas para ensino fundamental e ensino médio,
respondendo principalmente pela oferta de vagas do sexto ao nono ano do ensino
fundamental. Nesse caso, exigência do histórico escolar para filhos de refugiados tem
sido um empecilho para o avanço na carreira escolar em algumas escolas. A ausência de
programas de ensino de português para jovens e adultos nas escolas municipais e
estaduais no período noturno também é uma demonstração de omissão de políticas de
acolhimento. O ensino básico é uma competência compartilhada pela rede municipal e
estadual: o acesso tem sido garantido a filhos de refugiados, porém não há programas de
apoio e reforço escolar para esses estudantes. Além disso, rotatividade decorrente das
mudanças constantes de endereço por parte as famílias migrantes tem sido outro fator
que dificulta a aprendizagem, inclusive da língua. Segundo Relatório das organizações
sociais apresentado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos:

Há acesso; contudo, a rede pública da educação vem dificultando o mesmo e colocando


empecilhos para a matrícula de estudantes, aproveitando o desconhecimento das leis que
regem a educação e o desconhecimento da língua portuguesa pelo imigrante; agindo assim
de forma intencional enquanto há outros funcionários que assim o agem por
desconhecimento do direito do refugiado. (VENTURA, 2018)

Em relação à saúde pública, temos uma área que sofre precarização intensa. Os
governos anteriores e o atual têm gerado uma crise financeira na área da saúde que a
cada ano vem se agravando devido à má gestão e ao desvio de verbas. A rede estadual
de saúde, responsável pelos hospitais e maternidades, atende à demanda curativa de
forma deficitária. Chegou a faltar analgésico no Hospital Geral de Roraima e no
Hospital de Rorainópolis em 2015. Nesse mesmo ano, os servidores da saúde entraram
em greve por melhores salários e melhores condições de trabalho. Além disso, o sistema
de atendimento da saúde indígena que conta com dois Distritos Sanitários em Roraima
se utiliza da rede hospitalar estadual, tanto que uma parte da verba para saúde no estado
provém do orçamento da Secretaria Especial da Saúde Indígena. Assim, é evidente que
o governo estadual, seja por problemas de gestão, seja por falta de recursos, permitiu o
sucateamento do setor.
Acompanhamos a internação de um jovem músico venezuelano que teve um
surto psicótico. Ele estava numa casa de apoio de artistas que viajam pela América
Latina, e o apoio dos anfitriões foi fundamental, inclusive para contatar a família. Após
dez dias de internação no Hospital Geral de Roraima, fez acompanhamento por um mês
no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) e voltou com a mãe para a Venezuela.
O processo inicialmente foi muito difícil, pois ele resistia a entrar no carro para ir ao
CAPS. Chegando lá, nos disseram que, como era refugiado, tinha que entrar pela
emergência do Hospital Geral. No Hospital Geral, os atendentes e o médico não
falavam espanhol na primeira entrada. Na segunda entrada, foi atendido por um médico
cubano. Nos cinco primeiros dias ficou num leito ao lado de um paciente algemado,
vítima da chacina da Penitenciária em outubro/2017, que gritava o tempo todo. Depois,
removeram esse paciente para outro quarto e colocaram alguém mais calmo. Tal
mudança tem a ver com a simpatia que os técnicos de enfermagem e o enfermeiro-chefe
adquiriram em relação ao jovem músico e sua mãe. Observamos nesses dois anos de
Projeto Acolher que a qualidade afetiva do atendimento aos refugiados depende muito
dos servidores que estão no serviço público naquele momento. Já as questões relativas
à infraestrutura dependem de instâncias superiores que não têm contato direto com os
refugiados.
As redes municipais de atendimento básico à saúde têm assistido brasileiros e
refugiados com os recursos que dispõem. Postos de saúde como o da Vila Campos
Novos no município de Iracema (RR) têm uma equipe pequena e pouca medicação para
o atendimento. Algumas regiões periféricas de Boa Vista (RR) tiveram aumento da
população devido à implantação de conjuntos habitacionais na última década, sem a
construção ou ampliação dos postos de saúde dos bairros adjacentes, o que gerou uma
incapacidade de atendimento em bairros como o Conjunto Habitacional Pérola I, II, III,
IV e V e Vila Jardim. Ademais, a chegada massiva dos refugiados sobrecarregou ainda
mais o sistema de saúde que, em contrapartida, não teve aumento de repasses de
recursos por parte do governo federal. Como agravante, observa-se que as epidemias de
dengue, chikungunya, zica e gripe H2N1 alcançaram índices alarmantes na última
estação das chuvas (abril a agosto de 2017). Nas regiões de floresta no interior do
estado, a malária é outra ameaça constante, e os programas de saúde preventiva voltados
ao combate de epidemias têm sido insuficientes para deter essas epidemias. Os
refugiados puderam se inscrever nos processos seletivos da Secretaria Municipal de
Saúde para contratação de agentes de combates a endemias e agentes de saúde da
família, porém ficaram mal classificados ou não foram aprovados, provavelmente em
decorrência da dificuldade com a língua portuguesa.
Muitos refugiados trazem uma bagagem ampla de conhecimentos relacionados à
fitoterapia provenientes da medicina popular e das pesquisas na internet. A falta de
remédios na Venezuela tem levado a população a resgatar as medicinas tradicionais de
origem camponesa, bem como buscar tratamentos alternativos com ervas medicinais na
internet. O compartilhamento desses conhecimentos nas aulas de português de
acolhimento quando a temática era saúde por parte dos refugiados foi fenômeno comum
nas salas de aula.
Mídia: entre a sensibilização da opinião pública e a culpabilização dos refugiados

A mídia local tem pautado campanhas de doação de roupas de bebês para filhos
de refugiados nascidos na maternidade Nossa Senhora de Nazaré, bem como tem dado
cobertura a ações de acolhimento, apoio e inserção no mercado de trabalho a refugiados.
As redes nacionais de televisão também abriram espaço nesse sentido, por exemplo, o
Programa Encontro com Fátima Bernardes apresentou reportagem sobre ações do
Projeto Acolher e chegou a convidar a coordenadora do Projeto para uma participação
ao vivo no programa. Por outro lado, programas de televisão e rádio sensacionalistas
têm estimulado a xenofobia, principalmente contra venezuelanos. Nas redes sociais
temos uma disputa semelhante.
Sensibilizar a opinião pública tem sido um dos grandes desafios do Projeto
Acolher: realizamos uma palestra com a fotógrafa portuguesa Elizabeth Maisao no
SESC sobre os campos de refugiados na Europa em 02.06.2017. O anfiteatro ficou
lotado com 500 pessoas dos setores de renda média interessados em formar opinião
sobre o tema. Inúmeros seminários no âmbito acadêmico das instituições de ensino
superior também elegeram esta temática nos últimos dois anos. Mesmo assim, setores
xenófobos têm conseguido adeptos às ideias de culpabilização dos refugiados pelo
aumento da criminalidade e desemprego.
Recentemente, por iniciativa de uma organização não governamental de São
Paulo (Estado de São Paulo), houve um workshop para jornalistas e outro para
estudantes de jornalismo, ambos voltados para a garantia de direitos humanos. Houve
boa adesão e repercussão junto aos profissionais do setor, com exceção dos repórteres
ligados aos programas sensacionalistas, que não compareceram. Esses programas em
geral incitam a raiva difundindo o medo e o pânico, fazem julgamentos sumários
baseados em leituras superficiais dos fatos, indicando práticas condenáveis e segmentos
que devem ser culpabilizados. Quanto às direções das empresas, estas se mostram
arredias a qualquer discussão sobre o assunto.
Uma interpretação corrente na cultura popular é a de que os maranhenses foram
trazidos para o estado pelo governador Ottomar de Souza Pinto, falecido no exercício do
terceiro mandato em 2007, para votarem nele. Atualmente, essa visão foi atualizada nos
seguintes termos: a governadora trouxe os venezuelanos para votarem nela nas eleições
de 2018. É óbvio que essa recriação tem a ver com grupos políticos, mas o mais
surpreendente é que essa história tem se difundido na opinião pública das classes de
baixa renda, ancorada em espaços de conversas no cotidiano. Esses dados provêm dos
contatos com trabalhadores brasileiros de baixa renda nos eventos ligados à cultura
popular maranhense no estado de Roraima, os quais vimos acompanhando desde de
2012 pelo Instituto de Antropologia da UFRR.
Os meios de comunicação ligados a organizações religiosas têm se pautado a
favor da solidariedade aos refugiados. As igrejas têm se apresentado como formadores
de opinião pública a favor do acolhimento e apoio, principalmente no âmbito dos seus
frequentadores. As igrejas evangélicas em geral direcionam a assistência a refugiados
evangélicos. O campo católico se difere porque a assistência está concentrada no
CMDH e nas pastorais sociais que atendem refugiados sem discriminação de crença.

A ausência de políticas públicas de acolhimento e proteção a refugiados


São evidentes a ausência do governo federal nesse cenário e a desarticulação
entre governo estadual e prefeitura no tocante a política de acolhimento e proteção aos
refugiados. Por exemplo, o escritório local do ACNUR vem tentando construir uma
pauta de convergência entre o governo federal, estadual e municipal desde sua
instalação em 2017. Além disso, o não reconhecimento da situação de calamidade
pública humanitária pelos governos estadual e municipal, bem como pela mídia em
Roraima, demonstra o descaso em relação aos refugiados. Desse modo, o silêncio e a
omissão dos governos geram insegurança na opinião pública e criam espaço para que
cresça o preconceito e a xenofobia na população roraimense.
Não obstante, falta transparência na aplicação de verbas federais para a questão
migratória: não é possível ter acesso a informações quanto aos recursos que foram
repassados pelo governo federal, nem quanto à sua aplicação, de modo que não é
possível saber se estão sendo usados de forma adequada. Já ações de acolhimento e
orientação jurídica têm sido feitas por organizações da sociedade civil, como o Centro
de Migração e Direitos Humanos (CMDH), o Grupo de Estudo de Fronteira
(GEFRON), o Projeto Acolher, a Pastoral Universitária, a Fraternidade Internacional e a
Fraternidade Sem Fronteiras.
Sem planejamento estratégico e sem recursos, os abrigos estatais se assemelham
a filhos reconhecidos, porém abandonados. O sistema político eleitoral, baseado na
cooptação de votos pela oferta de benefícios imediatos, na forma de ajuda monetária,
serviços e mercadoria, continua sendo predominante em Roraima. Essa prática
eleitoreira repercute nas políticas públicas à medida que os programas de governo
respondem a questões imediatas que tragam retorno eleitoral. Esses representantes dos
poderes executivos e legislativos dos âmbitos municipal e estadual têm maioria na
Câmara dos Vereadores e Assembleia Legislativa, respectivamente. Desse modo,
eleitores buscam em vereadores e deputados estaduais a resolução de problemas
cotidianos através do assistencialismo. Os poderes legislativos seguem a mesma lógica
dos poderes executivos: cooptação de votos através do assistencialismo. São raros os
mandatos que saem dessa lógica, dessa forma, o estabelecimento de políticas públicas
estratégicas de longo prazo fica inviabilizado.
Fica evidente que grupos de interesse que se apoderam das instâncias estatais
agem em interesse próprio. A deputada relatora da comissão da reforma política no
Congresso Nacional é de Roraima, sendo que a bancada do estado tem somente oito
deputados federais. Já o líder do senado no governo é de Roraima, senador financiado
por doações de campanha feitas por grandes corporações ligadas à mineração. Desse
modo, em anos eleitorais ocorre uma injeção imensa de recursos públicos provindos do
governo federal para o financiamento de obras de infraestrutura nos municípios
vinculados politicamente ao senador. Esses recursos não passam pela aprovação das
câmaras de vereadores por não serem próprios dos municípios. Assim, os processos
licitatórios são legais, porém não têm monitoramento por parte da opinião pública,
consequentemente, segmentos empresariais aliados são beneficiados, o que aumenta a
oferta de trabalho para os setores de baixa renda, e é em meio a essa conjuntura que o
cenário eleitoral vai sendo composto. Repasses diretos de dinheiro a cabos eleitorais e
eleitores na forma de listas no período das campanhas e a ação eleitoral dos ocupantes
dos cargos comissionados, indicados pelo executivo, completam o quadro. Novamente
nos deparamos com o imediatismo eleitoral que tira de pauta o debate sobre questões
estratégicas, como a política de acolhimento aos refugiados.
A cidade dos migrantes

A cidade de Boa Vista (RR) é composta por migrantes: macuxis e wapixanas


provindos das comunidades indígenas são cerca de 30 mil; há também paraibanos,
cearenses, amazonenses, mineiros, gaúchos e maranhenses, esses últimos totalizam 95
mil pessoas no estado, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE); somam-se a eles os guianenses e, recentemente, os haitianos, os cubanos e os
venezuelanos.
As identidades étnicas que se constroem no estado de Roraima podem ser
mapeadas a partir das culturas indígenas, matrizes culturais regionais brasileiras e
migrantes internacionais. No campo dos grupos indígenas estão macuxis, wapixanas,
wai-wai, taupepangues, ianomamis, waimiri-atroaris e pemons. No campo das matrizes
culturais regionais estão gaúchos, paraenses, amazonenses, maranhenses e migrantes
provenientes do semiárido nordestino. No campo da migração internacional estão
guianenses, haitianos, cubanos e venezuelanos. Podemos falar em etno-indigeneidade,
etno-regionalidade e etno-nacionalidades.
As fronteiras étnicas entre esses grupos são fronteiras sociais, se configurando
através do pertencimento e reconhecimento da alteridade e da interação entre grupos
étnico-sociais. Assim, estamos abordando aqui grupos em sentido lato para representar
todos os membros que compartilham traços étnicos. A partir dessa visão, observa-se
que, ainda que as fronteiras culturais sejam permeáveis, podendo provocar mudanças
nas identidades de um grupo, as fronteiras étnicas e as identidades socioétnicas
permanecem apesar do fluxo e da troca de bens simbólicos, significados e informações
entre elas. Elas podem persistir mesmo em quadros de trocas intensas e estabelecimento
de vínculos entre diferentes (BARTH, 2000).
O último censo do IBGE constatou um contingente de 92 mil maranhenses
vivendo em Roraima. As políticas governamentais para ocupação da Amazônia durante
o regime militar e a nova república estimularam a vinda de maranhenses para o extremo
norte, principalmente após a abertura da Rodovia BR 174 no início da década de 80.
Boa parte dos maranhenses se instalou na área rural em pequenas propriedades rurais.
Entretanto, devido ao fato de que a maioria dos colonos não teve apoio para
infraestrutura e custeio, esses acabaram se mudando para Boa Vista. Muitos se tornaram
funcionários públicos, maior segmento do mercado de trabalho local, mas a maioria
engrossou a fileira dos desempregados. A dependência de auxílios estatais, como Bolsa
Família, Vale Alimentação, entre outros, se intensificou nessa conjuntura.
Do ponto de vista político reproduziu-se a práticas políticas vigentes no estado
do Maranhão: a centralização do poder combinada com populismo assistencialista e a
compra-venda de votos. A maioria dos maranhenses é afrodescendentes, representando
a negritude presente no estado. Desse modo, o casamento de homens maranhenses com
mulheres indígenas se tornou muito comum. A região do Pintolândia concentrou a
maioria dos maranhenses da cidade, já que a crescente demanda de camponeses
maranhenses por moradia obteve resposta nos conjuntos habitacionais construídos pelo
governo do estado com financiamento federal na década de 90.
A população indígena em Boa Vista, segundo dados da Organização dos
Indígenas da cidade, alcança cerca de 30 mil pessoas, principalmente macuxis e
wapixanas. O deslocamento indígena para viver na cidade tem se mantido constante,
aumentando à medida que a sociedade de consumo foi alcançando essas comunidades.
Observamos que há certa invisibilidade em relação a esse contingente de indígenas
urbanos. Lideranças do Conselho Indígena de Roraima (CIR) em assembleia realizada
em julho de 2017 foram enfáticos nas suas falas para os representantes dos waraos
venezuelanos convidados para participarem da assembleia: Nós não expomos nossas
famílias dessa maneira, se referindo à mendicância warao e à moradia em
acampamentos em praças públicas. Esse manto de invisibilidade também cobre os
guianenses e africanos que vivem na cidade. Em 2012 fomos convidados para um
almoço na casa de um nigeriano que vivia no bairro 13 de setembro; eram 18 africanos
de várias nacionalidades e etnias. O prato principal era eba. Os haitianos compõem um
grupo de alta visibilidade, seja pela venda de picolés e alho nas ruas e feiras, seja pela
negritude. Porém, são segregados em estâncias alugadas quase que exclusivamente por
haitianos, por isso a comunicação com brasileiros é muito limitada, também devido à
língua. Em uma visita de campo a uma estância onde vivem somente haitianos, quando
perguntados sobre a opinião que tinham em relação aos brasileiros, foram extremamente
cuidadosos com as palavras. Uma moça haitiana que falava português fazia a tradução,
mas antes de autorizarem ela a falar em português o que diziam, conversavam entre si
em francês o que deveria ser dito.
Os migrantes provenientes do semiárido nordestino são muito comunicativos,
contam histórias, são curiosos e carregam um acento peculiar, por isso se destacam no
cenário sonoro linguístico. Fato semelhante ocorre com gaúchos e venezuelanos, que
também fazem questão de demonstrar o acento sonoro linguístico. Esses três grupos
utilizam uma estratégia inversa dos indígenas e africanos: eles se afirmam pela
visibilidade.
Já os paraenses e amazonenses são os representantes das culturas ribeirinhas da
Pan-Amazônia. Migraram inicialmente para cidades como Manaus (Amazonas), Porto
Velho (Rondônia), Belém (Pará) e Itaituba (Pará) e depois para Boa Vista (RR). Parte
desse contingente veio para trabalhar na mineração e, recentemente, para trabalhar no
setor de serviços. As noites paraenses são eventos promovidos anualmente em Boa
Vista (RR) para um público de renda média. Nessas noites dançantes com jantar e som
ao vivo, as mesas custam em torno de 200 reais para quatro pessoas.
A solidariedade étnica viabiliza uma rede de apoio entre os que têm uma mesma
identidade étnica. Entre os venezuelanos criollos, por exemplo, viabiliza para muitas
famílias um abrigo ao chegar ao Brasil e o intercâmbio com os parentes e amigos que
ficaram na Venezuela. Já entre os venezuelanos waraos, essa rede propicia a entrada
nos acampamentos em espaços públicos ou abrigos destinados a eles. A venda de
produtos voltados para cada grupo ainda representa um mercado restrito. Chimarrão
para os gaúchos, farinha de arepa para os venezuelanos, caxiri e bejú para os indígenas
são exemplos desse mercado nascente.
As informações circulam com muita velocidade nas redes sociais, o que permite
articular com rapidez e funcionalidade a recepção de migrantes em busca de refúgio e a
remessa de recursos para o local de origem, principalmente para haitianos e cubanos.
Em Boa vista, a venda de alimentos, roupas e artefatos culturais voltados para os grupos
étnicos ainda é pouco expressiva. Já os pontos de concentração de trabalhadores
desempregados para oferta de serviços reúnem membros desses mesmos grupos étnicos.
Há, por exemplo, haitianos vendendo picolés nas ruas, haitianas vendendo alho nas
feiras, venezuelanos concentrados em esquinas pedindo trabalho e Waraos nas portas de
mercados e bancos mendigando.

Acolhimento, proteção e inserção


Por fim, queremos apresentar, à guisa de conclusão, essa manifestação de fé
na solidariedade das organizações sociais que trabalham com refugiados em Roraima
contida na carta-relatório entregue ao Conselho Nacional de Direitos Humanos:

Acreditamos que uma sociedade mais justa, igualitária e acolhedora seja possível em nosso
Estado. Os refugiados em sua maioria desejam retornar ao seu país de origem, não
escolheram se humilhar, passar fome e tão pouco colocar suas vidas em risco. Governo e
sociedade precisam ter claro que ser imigrante em situação de refúgio não é algo fácil.
Percebemos em meio a eles a frustação que expressam na incapacidade de poder gritar por
estar na “casa alheia”, não poderem se expressar na sua língua materna, a perda dos laços
familiares, a perda de contato com todos seus amigos de uma vida inteira, o não acesso à
sua cultura e hábitos, o medo do amanhã, a permanente luta para ter direito a direitos e a
luta para ser percebido como bom ser humano pela sociedade que o recebe. (VENTURA,
2018)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTH, Fredrik. O Gurú. In: BARTH, Fredrik. O iniciador e outras variações


antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.

FROTA, Gustavo da. Perfil sociolaboral da imigração venezuelana no Brasil. Curitiba,


CRV, 2017.

LIMA, José Carlos Franco. Acolhimento, proteção e inserção criativa: uma reflexão
sobre a metodologia do Projeto de Apoio a Refugiados em Roraima. Boa Vista, I
Seminário do Doutorado Insterinstitucional UFPE/UFRR, 2018.

OIT/Brasil. Inserção laboral de migrantes internacionais: transitando entre a economia


formal e informal na cidade de São Paulo. Brasília, 2017.

VENTURA, Luís; et. al. Relatório sobre a situação das populações imigrantes no
Estado de Roraima. Boa Vista, 26 jan. 2018.

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