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VULNERABILIZAÇÃO
Resumo
Este artigo apresenta a questão dos refugiados em Roraima (Brasil) destacando as ações
de acolhimento, proteção e inserção realizadas por organizações sociais em contraste
com o processo de vulnerabilização instaurado pela omissão
governamental. Elencamos as demandas socioeconômicas dos refugiados, ações que
vem sendo desenvolvidas no campo das organizações sociais e sugestões para as
políticas públicas de acolhimento, proteção e inserção no mercado de trabalho. Do
ponto de vista analítico, concebemos a situação dos refugiados como um tema
transversal que perpassa áreas como moradia, saúde, educação, relações étnicas,
mercado de trabalho, política e comunicação social. Os dados para a leitura que fizemos
vêm da etnografia comunitária do cotidiano que vimos desenvolvendo na equipe
multidisciplinar que compõe o Projeto Acolher da Universidade Federal de Roraima
(RR). Procuramos estabelecer um diálogo com a pesquisa realizada pelo Conselho
Nacional de Imigração e com o diagnóstico que a Organização Internacional do
Trabalho realizou em Roraima, ambos no segundo semestre de 2017. O eixo central do
artigo é a carta-relatório apresentada pelas organizações sociais ao Conselho Nacional
de Direitos Humanos em 26 de janeiro de 2018. Apresentamos alguns traços gerais do
fluxo de refugiados para Roraima para depois descrever as condições de moradia. Em
seguida trazemos alguns dados sobre o perfil dos refugiados no tocante à educação, às
demandas na área e aos serviços que estão sendo oferecidos.
Abstract
This article presents the issue of refugees in Roraima (Brazil) highlighting the actions of
reception, protection and insertion carried out by social organizations in contrast to the
process of vulnerability reinforced by the governmental omission. We bring the socio-
economic demands of the refugees, actions that have been developed in the field of
social organizations and suggestions for public policies of reception, protection and
insertion in the labor market. From the analytical point of view we conceive the
situation of refugees as a cross-cutting theme that social areas such as housing, health,
education, ethnic relations, labor market, policy state and social communication. The
data for the social reading that we do comes from community ethnography of the daily
life that we have been developing in the multidisciplinary team that composes the
Project to Receive of the Federal University of Roraima (RR) and the insertion in the
Social Pastoral of the Archdiocese of Roraima. We seek to establish a dialogue with the
research carried out by the National Immigration Council and with the diagnosis made
by the International Labor Organization in Roraima, both in the second half of 2017.
The central axis of the article is the letter-report presented by social organizations to the
Council On Human Rights on January 26, 2018.
Introdução
Nas vias públicas, assim como nos portões das casas, imigrantes imploram por trabalhos,
seja de forma oralizada, seja segurando cartazes com dizeres de pedidos. Tal situação levou
o estado a um grande aumento de mão de obra barata e competição por postos de emprego.
Além disso, subempregos e em condições semelhante à escravidão (não pagamento de
salário ao final do trabalho, sem direitos trabalhistas, em situações insalubres) e aliciamento
para a prostituição de adultos e menores são reportadas pelos imigrantes. (VENTURA,
2018)
O empresariado por sua vez ganhou maior oferta de mão de obra qualificada,
aumento de consumidores e barateamento da força de trabalho com a chegada massiva
de refugiados. Porém, as organizações empresariais fazem silêncio sobre a temática e se
isentam de qualquer responsabilidade social. No final de setembro/2017, uma equipe da
OIT veio a Roraima fazer um diagnóstico da realidade local no tocante ao mercado de
trabalho. Compunham um grupo junto com o Ministério Público do Trabalho e voltaram
em dezembro para apresentar os resultados da pesquisa. Nas duas visitas, agendaram
reuniões com entidades empresariais, sendo que somente a Federação do Comércio e o
SESC compareceram, acenando levemente no sentido de pautar as condições de
trabalho no estado. Em compensação, as duas tentativas de agendar conversas com a
prefeita e a governadora abortaram. Já o Projeto Acolher está articulando para
maio/2018 um Fórum sobre Mercado de Trabalho em Roraima com intuito de levantar
sugestões para melhorar as condições de trabalho e introduzir a temática nas campanhas
eleitorais 2018.
Também merece destaque o quadro referente às profissionais do sexo. Esse setor
tradicionalmente informal e vinculado às tradições patriarcais da sociedade brasileira se
tornou rentável na sociedade de consumo. A prostituição de rua na região da Feira do
Passarão em Boa Vista (RR) se iniciou na década de 90 com os recursos provenientes
do garimpo no Brasil, Venezuela e Guiana, e essa atividade ganhou maior visibilidade e
notoriedade com o ingresso de mulheres venezuelanas. Nas cidades do interior como
São João da Baliza, Mucajaí, Alto Alegre, Bonfim e Rorainópolis, elas foram cooptadas
pelos prostíbulos. Em 2017, vários cárceres privados de prostitutas foram
desmantelados pela polícia federal no estado. As prostitutas, travestis e transexuais
formam um grupo altamente estigmatizado e vulnerável. Espancamentos, estupros,
tentativas de homicídio e desaparecimentos foram detectados pela equipe da UNFPA de
Roraima. Além disso, confirmou-se o descaso por parte de policiais quando elas fazem
boletins de ocorrências nas delegacias. Atualmente, discute-se um projeto de extensão
na Universidade Federal voltado para defesa pessoal e apoio psicológico a prostitutas,
travestis, transexuais e mulheres vítimas de violência sexual. Um dos segmentos
focados pelo projeto será das refugiadas que trabalham como profissionais do sexo.
Serviços de educação e saúde públicas
Em relação à saúde pública, temos uma área que sofre precarização intensa. Os
governos anteriores e o atual têm gerado uma crise financeira na área da saúde que a
cada ano vem se agravando devido à má gestão e ao desvio de verbas. A rede estadual
de saúde, responsável pelos hospitais e maternidades, atende à demanda curativa de
forma deficitária. Chegou a faltar analgésico no Hospital Geral de Roraima e no
Hospital de Rorainópolis em 2015. Nesse mesmo ano, os servidores da saúde entraram
em greve por melhores salários e melhores condições de trabalho. Além disso, o sistema
de atendimento da saúde indígena que conta com dois Distritos Sanitários em Roraima
se utiliza da rede hospitalar estadual, tanto que uma parte da verba para saúde no estado
provém do orçamento da Secretaria Especial da Saúde Indígena. Assim, é evidente que
o governo estadual, seja por problemas de gestão, seja por falta de recursos, permitiu o
sucateamento do setor.
Acompanhamos a internação de um jovem músico venezuelano que teve um
surto psicótico. Ele estava numa casa de apoio de artistas que viajam pela América
Latina, e o apoio dos anfitriões foi fundamental, inclusive para contatar a família. Após
dez dias de internação no Hospital Geral de Roraima, fez acompanhamento por um mês
no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) e voltou com a mãe para a Venezuela.
O processo inicialmente foi muito difícil, pois ele resistia a entrar no carro para ir ao
CAPS. Chegando lá, nos disseram que, como era refugiado, tinha que entrar pela
emergência do Hospital Geral. No Hospital Geral, os atendentes e o médico não
falavam espanhol na primeira entrada. Na segunda entrada, foi atendido por um médico
cubano. Nos cinco primeiros dias ficou num leito ao lado de um paciente algemado,
vítima da chacina da Penitenciária em outubro/2017, que gritava o tempo todo. Depois,
removeram esse paciente para outro quarto e colocaram alguém mais calmo. Tal
mudança tem a ver com a simpatia que os técnicos de enfermagem e o enfermeiro-chefe
adquiriram em relação ao jovem músico e sua mãe. Observamos nesses dois anos de
Projeto Acolher que a qualidade afetiva do atendimento aos refugiados depende muito
dos servidores que estão no serviço público naquele momento. Já as questões relativas
à infraestrutura dependem de instâncias superiores que não têm contato direto com os
refugiados.
As redes municipais de atendimento básico à saúde têm assistido brasileiros e
refugiados com os recursos que dispõem. Postos de saúde como o da Vila Campos
Novos no município de Iracema (RR) têm uma equipe pequena e pouca medicação para
o atendimento. Algumas regiões periféricas de Boa Vista (RR) tiveram aumento da
população devido à implantação de conjuntos habitacionais na última década, sem a
construção ou ampliação dos postos de saúde dos bairros adjacentes, o que gerou uma
incapacidade de atendimento em bairros como o Conjunto Habitacional Pérola I, II, III,
IV e V e Vila Jardim. Ademais, a chegada massiva dos refugiados sobrecarregou ainda
mais o sistema de saúde que, em contrapartida, não teve aumento de repasses de
recursos por parte do governo federal. Como agravante, observa-se que as epidemias de
dengue, chikungunya, zica e gripe H2N1 alcançaram índices alarmantes na última
estação das chuvas (abril a agosto de 2017). Nas regiões de floresta no interior do
estado, a malária é outra ameaça constante, e os programas de saúde preventiva voltados
ao combate de epidemias têm sido insuficientes para deter essas epidemias. Os
refugiados puderam se inscrever nos processos seletivos da Secretaria Municipal de
Saúde para contratação de agentes de combates a endemias e agentes de saúde da
família, porém ficaram mal classificados ou não foram aprovados, provavelmente em
decorrência da dificuldade com a língua portuguesa.
Muitos refugiados trazem uma bagagem ampla de conhecimentos relacionados à
fitoterapia provenientes da medicina popular e das pesquisas na internet. A falta de
remédios na Venezuela tem levado a população a resgatar as medicinas tradicionais de
origem camponesa, bem como buscar tratamentos alternativos com ervas medicinais na
internet. O compartilhamento desses conhecimentos nas aulas de português de
acolhimento quando a temática era saúde por parte dos refugiados foi fenômeno comum
nas salas de aula.
Mídia: entre a sensibilização da opinião pública e a culpabilização dos refugiados
A mídia local tem pautado campanhas de doação de roupas de bebês para filhos
de refugiados nascidos na maternidade Nossa Senhora de Nazaré, bem como tem dado
cobertura a ações de acolhimento, apoio e inserção no mercado de trabalho a refugiados.
As redes nacionais de televisão também abriram espaço nesse sentido, por exemplo, o
Programa Encontro com Fátima Bernardes apresentou reportagem sobre ações do
Projeto Acolher e chegou a convidar a coordenadora do Projeto para uma participação
ao vivo no programa. Por outro lado, programas de televisão e rádio sensacionalistas
têm estimulado a xenofobia, principalmente contra venezuelanos. Nas redes sociais
temos uma disputa semelhante.
Sensibilizar a opinião pública tem sido um dos grandes desafios do Projeto
Acolher: realizamos uma palestra com a fotógrafa portuguesa Elizabeth Maisao no
SESC sobre os campos de refugiados na Europa em 02.06.2017. O anfiteatro ficou
lotado com 500 pessoas dos setores de renda média interessados em formar opinião
sobre o tema. Inúmeros seminários no âmbito acadêmico das instituições de ensino
superior também elegeram esta temática nos últimos dois anos. Mesmo assim, setores
xenófobos têm conseguido adeptos às ideias de culpabilização dos refugiados pelo
aumento da criminalidade e desemprego.
Recentemente, por iniciativa de uma organização não governamental de São
Paulo (Estado de São Paulo), houve um workshop para jornalistas e outro para
estudantes de jornalismo, ambos voltados para a garantia de direitos humanos. Houve
boa adesão e repercussão junto aos profissionais do setor, com exceção dos repórteres
ligados aos programas sensacionalistas, que não compareceram. Esses programas em
geral incitam a raiva difundindo o medo e o pânico, fazem julgamentos sumários
baseados em leituras superficiais dos fatos, indicando práticas condenáveis e segmentos
que devem ser culpabilizados. Quanto às direções das empresas, estas se mostram
arredias a qualquer discussão sobre o assunto.
Uma interpretação corrente na cultura popular é a de que os maranhenses foram
trazidos para o estado pelo governador Ottomar de Souza Pinto, falecido no exercício do
terceiro mandato em 2007, para votarem nele. Atualmente, essa visão foi atualizada nos
seguintes termos: a governadora trouxe os venezuelanos para votarem nela nas eleições
de 2018. É óbvio que essa recriação tem a ver com grupos políticos, mas o mais
surpreendente é que essa história tem se difundido na opinião pública das classes de
baixa renda, ancorada em espaços de conversas no cotidiano. Esses dados provêm dos
contatos com trabalhadores brasileiros de baixa renda nos eventos ligados à cultura
popular maranhense no estado de Roraima, os quais vimos acompanhando desde de
2012 pelo Instituto de Antropologia da UFRR.
Os meios de comunicação ligados a organizações religiosas têm se pautado a
favor da solidariedade aos refugiados. As igrejas têm se apresentado como formadores
de opinião pública a favor do acolhimento e apoio, principalmente no âmbito dos seus
frequentadores. As igrejas evangélicas em geral direcionam a assistência a refugiados
evangélicos. O campo católico se difere porque a assistência está concentrada no
CMDH e nas pastorais sociais que atendem refugiados sem discriminação de crença.
Acreditamos que uma sociedade mais justa, igualitária e acolhedora seja possível em nosso
Estado. Os refugiados em sua maioria desejam retornar ao seu país de origem, não
escolheram se humilhar, passar fome e tão pouco colocar suas vidas em risco. Governo e
sociedade precisam ter claro que ser imigrante em situação de refúgio não é algo fácil.
Percebemos em meio a eles a frustação que expressam na incapacidade de poder gritar por
estar na “casa alheia”, não poderem se expressar na sua língua materna, a perda dos laços
familiares, a perda de contato com todos seus amigos de uma vida inteira, o não acesso à
sua cultura e hábitos, o medo do amanhã, a permanente luta para ter direito a direitos e a
luta para ser percebido como bom ser humano pela sociedade que o recebe. (VENTURA,
2018)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LIMA, José Carlos Franco. Acolhimento, proteção e inserção criativa: uma reflexão
sobre a metodologia do Projeto de Apoio a Refugiados em Roraima. Boa Vista, I
Seminário do Doutorado Insterinstitucional UFPE/UFRR, 2018.
VENTURA, Luís; et. al. Relatório sobre a situação das populações imigrantes no
Estado de Roraima. Boa Vista, 26 jan. 2018.