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GUERRA DO PARAGUAI:

escravidão e cidadania
na formação do exército
Agradecimentos

Este livro foi elaborado entre maio de 1988 e março de 1989. Sua realização
teria sido impossível sem a colaboração do AFS Programas Interculturais para o Brasil,
organização a cujos quadros profissionais pertenço. Durante todo esse período, tive livre
acesso a seu computador para a edição do texto em fins de semana e horários
posteriores ao expediente. Entretanto, meu agradecimento vai em especial para
Elizabeth Ramos Albuquerque, Superintendente do AFS por ocasião do grosso do
trabalho de pesquisa, que, além da força de amiga, permitiu-me alguns períodos de
licença para que pudesse realizar pesquisas em instituições com horários de
funcionamento coincidentes com aqueles do AFS.
Outros amigos foram meus companheiros nesta empreitada Cunca Bocaiúva e
Sandra Mayrink Veiga demonstraram, durante o trabalho, o mesmo carinho e apoio que
têm marcado nossa amizade já ao longo destes muitos anos. Inúmeras foram as
sugestões que surgiram de nossas conversas. A força de Helena Gasparian foi decisiva
na reta final, especialmente para a publicação do livro.
Liliane Gnocchi da Costa Reis é a companheira que, mais que eu, teve sempre a
certeza de que o livro sairia. Com ela discuti as primeiras fotos pesquisadas, o primeiro
texto. Cada idéia teve sua atenção e dedicação, assim como o texto em seu aspecto de
estilo e clareza. Se não fosse por isso, meu amor seria mais que o suficiente para que eu
lhe dedicasse este livro.
Chegou a hora de fazer alguma justiça, tão pouco quanto a de que
somos capazes, à raça que tem feito gratuitamente no Brasil tudo quanto ele
é, a raça que não paga somente o subsídio dos representantes da nação,
mas paga, também, a alta lista civil da famí1ia imperial; paga ainda os
juros da nossa dívida em Londres, e quando a honra da nacionalidade
brasileira corre risco, paga com seu sangue larguíssimo tributo.

Joaquim Nabuco


Discurso de 30 de julho de 1885. Citado por Evaristo de Moraes, A Campanha Abolicionista, Editora
Universidade de Brasília, 2a. ed., 1986.
Índice

Introdução

I - Dimensões da guerra
Os recursos empregados
Forças empregadas e perdas humanas
As perdas materiais

II - Antecedentes: crítica às versões revisionistas sobre as razões do conflito


A versão tradicional
O revisionismo
A versão da unidade da América hispânica
A versão da intervenção imperialista

III - O império às vésperas da guerra do Paraguai

IV - A guerra do Paraguai e o Brasil: a formação de um exército nacional e o fim


do Império
A organização militar do Império antes da guerra do Paraguai
A organização de um exército nacional
O exército e os escravos
O exército e as camadas populares livres
Os voluntários da Pátria
O exército e as camadas médias

V - O exército imperial em campanha: nacional e escravista (I)


O envio de tropas ao Paraguai
O cotidiano da tropa em campanha

VI - O exército imperial em campanha: nacional e escravista (II)


Os critérios de bravura
Promoções, condecorações e disciplina no exército imperial: a marca escravista

VII – Conclusão
Apêndice: Cronologia das operações de guerra

Bibliografia
Introdução

Num país em que a fome e a miséria da imensa maioria da população estão


juntas com o analfabetismo, o resgate da memória histórica parece um objetivo distante,
pouco prático e quase inatingível. A história foi, durante muito tempo, o ofício de
eruditos refinados cujo trabalho recuperou  e muitas vezes até criou  uma memória
oficial: a memória de fachada, de nossas instituições, tão civilizadas e tão distantes do
cotidiano do povo, dos grandes vultos de discursos pomposos, dos grandes feitos.
Enfim, uma memória que, aclarando a vida das elites, envergonhada destas tristes
paragens pouco européias, encobria a realidade do povo miserável. Aqui e ali, era
possível, devido ao trabalho de poucos ou às frestas nas cortinas de veludo dos salões,
vislumbrar o cotidiano popular, a vida e o lazer dos esquecidos.
Quando se começou a tentar conhecer e compreender nossa história mais a
fundo, as atenções voltaram-se para as estruturas econômicas, os grandes movimentos
políticos. Pouco a pouco, entretanto, a historiografia moderna descobre novos temas do
mundo do trabalho e do cotidiano e coloca sob novo prisma episódios só conhecidos por
via de sua carapaça oficial.
Muito ainda resta por ser feito. Há áreas, temas, acontecimentos e episódios
inteiros que permanecem obscuros.
A história militar é um desses temas. Não é de estranhar que os historiadores
modernos dêem mais atenção ao papel dos militares na história política do Brasil do que
à história militar propriamente dita e à relação desta com a vida de nosso povo. A
história militar é patrimônio da memória oficial ou então tema técnico da corporação
militar, igualmente pródiga em oficialismos e elogios. Tanto os conflitos internos como
as guerras externas são pouco conhecidos, e quase nada se sabe sobre como esses
acontecimentos foram vivenciados e protagonizados por soldados e pela massa da
população.
A guerra do Paraguai é um dos muitos fatos esquecidos de nossa história: ou é
tratada pela historiografia oficial, e, como tal, perde interesse, ou não é tema daqueles
que se dedicam à revisão de nossa formação histórica. Paradoxalmente, quando é
lembrada e abordada, causa imediatamente polêmica: o Brasil é apresentado como
agente civilizatório na região ou como agente do imperialismo inglês; nossas tropas são
as mais bravas ou as mais covardes; o Paraguai era governado por um tirano ou por um
estadista esclarecido e antiimperialista; libertamos o Paraguai ou exterminamos sua
população. O quadro ainda fica mais complicado quando sabemos que até recentemente
o Itamarati impediu o exame de documentos sobre o conflito, em seu poder (o que, para
bem da verdade, é extensivo a documentos referentes a outros episódios de nossa
história1). Recentemente, diversos autores têm se dedicado a demolir os mitos oficiais
da guerra do Paraguai. Não raro, sem prejuízo do enorme mérito de seu trabalho, têm
criado outros tantos mitos sobre o conflito: o Paraguai é retratado como uma nação
independente do imperialismo, com enorme progresso material e social.
O Paraguai sofria influência do imperialismo, ainda que diferentemente de seus
vizinhos da região meridional da América do Sul. Devido às peculiaridades de sua
formação histórica colonial, baseada nas missões jesuíticas, não se encontrava no centro

1
A atual Constituição determinou a abertura dos arquivos públicos. A abertura dos arquivos entretanto,
não revelou muitas novidades como era esperado
seja das atenções coloniais, seja, mais tarde, das atenções imperialistas. Daí a
caracterizá-lo como uma nação independente do imperialismo, ou até como uma
possibilidade de desenvolvimento autônomo na região, vai uma longa distância.
Por outro lado, a estrutura econômica baseada nas missões, o poder de
centralização administrativa exercido pela Igreja, o pouco desenvolvimento de uma
classe dominante local crioula, proprietária de terras ou comerciante, iriam permitir que
o Estado jogasse um papel decisivo na organização econômica paraguaia após a
independência. Foi através deste Estado que uma parcela da classe dominante,
travestida de alta burocracia estatal, exercia seu poder econômico sobre uma massa da
população organizada comunitariamente. Essa parcela da classe dominante, de origem
crioula, era, inclusive, dona de largas extensões de terra, além de usufruir, via honras e
regalias ligadas às funções públicas, de boa parte do excedente econômico.
O Estado paraguaio, portador de um nacionalismo precoce, é apresentado por
alguns autores como tendo sido um legítimo defensor dos interesses de toda a nação
contra o imperialismo. Leon Pomer2 é o mais expressivo deles, mas também podemos
citar Júlio José Chiavenatto3. Esse Estado, contudo, herdeiro de uma estrutura
centralizada da época colonial, era autoritário e garantia uma estrutura social desigual,
ainda que bastante diversa da de seus vizinhos, em especial do Brasil escravista.
É fato, entretanto, que o Paraguai, na primeira metade do século XIX, não era
um país totalmente ajustado às regras de livre comércio que facilitavam a penetração da
Inglaterra nas antigas áreas coloniais ibéricas. Isto mais por suas particularidades
históricas do que por uma opção de resistência ao imperialismo que penetrava na região.
Há, ainda, muita especulação e, principalmente, muita simplificação sobre o papel do
imperialismo inglês, apresentado como a mão oculta por trás das ações da Tríplice
Aliança. Se é evidente que a Inglaterra considerava as práticas monopolistas do
Paraguai prejudiciais a seu comércio, é evidente também que seu interesse principal não
estava concentrado nessa área secundária da região platina. Ver a guerra do Paraguai
como uma necessidade do imperialismo inglês para garantir o livre comércio é, por um
lado, superestimação grosseira do nacionalismo paraguaio e da cobiça inglesa e, por
outro, uma subestimação dos interesses próprios da Argentina e do Brasil.
Não é, no entanto, nossa intenção nos determos sobre as particularidades da
formação histórica do Paraguai e, tampouco, sobre a região platina como um todo
(ainda que, mais tarde, voltemos a abordar essa questão). O trabalho que se segue
concentra sua atenção principalmente sobre o Brasil e a guerra e sobre as repercussões
sociais e políticas do conflito no período de crise do Império e da economia escravista.
Particularmente, se concentra sobre a formação do exército durante a guerra em sua
relação com as camadas médias, setores populares livres e escravos.
Buscaremos ver, com mais detalhes, como, no interior desse drama, formou-se
no Brasil uma instituição que desempenharia um papel vital em nossa história: o
Exército Nacional.

2
Leon Pomer, A Guerra do Paraguai: A Grande Tragédia RioPlatense, São Paulo, Global, 1980, e
Paraguai:Nossa Guerra Contra Esse Soldado, São Paulo, Global, s.d.
3
J. J. Chiavenatto, Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, São Paulo, Brasiliense, 2ª ed., 1979.
No capítulo I, trataremos de algumas informações que revelam a magnitude da
guerra do Paraguai  fato nem sempre merecedor do necessário relevo  em relação aos
países envolvidos.
Em seguida, no capítulo II, discutiremos as razões do conflito a partir da crítica a
representantes da historiografia  cada vez mais difundida  que se opõem às versões
tradicionais sobre os antecedentes da guerra. No capítulo seguinte, prosseguiremos com
a análise do mesmo tema. Para tanto, procuraremos inserir as motivações brasileiras em
sua política externa, notadamente em relação à região platina, na perspectiva mais
ampla do desenvolvimento da sociedade escravista imperial.
O processo de mobilização e recrutamento para a guerra, em seu aspecto social,
no que diz respeito a sua relação com os escravos, setores livres populares e camadas
médias, se constitui no tema central deste trabalho e é tratado no capítulo IV.
Tentaremos delinear como o Exército Nacional, que se formava como uma necessidade
do Estado Imperial, reproduziu e recriou no seu interior as contradições sociais do
escravismo brasileiro.
Nos capítulos V e. VI, analisando o envio das tropas ao Paraguai, seu cotidiano,
suas formas de combater, os critérios de determinação dos atos de bravura, as políticas
de promoções e de manutenção da disciplina e, finalmente, as relações entre oficiais e
soldados, procuraremos avaliar como essas contradições não puderam ser abafadas na
corporação militar, agravando as tensões internas delas decorrentes.
Finalmente, há um apêndice descritivo e cronológico dós principais
acontecimentos militares. Aqueles que desconhecem o andamento das operações de
guerra podem achar necessário recorrer a esta descrição no sentido de melhor
compreender as referências feitas a fases da guerra no decorrer do texto principal.
O gigantismo do conflito impõe um tratamento mais aprofundado no estudo da
guerra e de suas conseqüências para toda a região. A guerra do Paraguai requer o
tratamento de drama e não de opereta, essencial se quisermos (todos nós do Cone Sul)
ter uma consciência maior de nossa história.
I

Dimensões da guerra

A primeira tarefa com que nos deparamos quando analisamos a guerra do Paraguai é
a de estabelecer a magnitude do conflito: sua dimensão em seu contexto histórico, o esforço
social requerido, suas conseqüências políticas, sociais e econômicas e seu significado em
termos de desperdício de recursos materiais e humanos.

A guerra do Paraguai foi o conflito em larga escala de maior duração no continente


americano, superando inclusive a guerra de Secessão nos Estados Unidos1. Teve a duração
total de quase seis anos, estendendo-se de 11 de novembro de 1864 (tomada do vapor
Marquês de Olinda pelos paraguaios) a 1 de março de 1870 (morte de López em Cerro
Corá).

Os recursos empregados

Ao considerar a década de 60 do século XIX como “uma década de sangue”, o


historiador inglês Eric Hobsbawm levanta três fatores que teriam contribuído nesse sentido:
1. a expansão do capitalismo, multiplicando tensões no mundo não europeu e não-
capitalista; 2. a paz interna que se seguiu ao aplacamento das revoluções de 1848 na
Europa, que permitiu o recurso à guerra a governos estáveis para a consecução de
determinados objetivos no plano externo; 3. a nova tecnologia, que permitiu a mobilização
de recursos humanos em escala e rapidez até então desconhecidas e a utilização de recursos
materiais qualitativamente mais modernos e eficazes2.
A guerra do Paraguai, pelo menos no que diz respeito à participação brasileira,
como veremos a seguir (capítulo III), guarda uma íntima relação com esses três fatores. Em
primeiro lugar, o conflito esteve inserido  ainda que mais indiretamente do que se supõe 
no contexto geral de expansão do capitalismo da época, especificamente do capitalismo
britânico na região platina. Em segundo lugar, analogamente aos países europeus, o conflito
se seguiu a um período de consolidação e estabilidade do governo imperial no Brasil. Em
terceiro lugar, o governo brasileiro lançou mão de uma série de recursos tecnológicos
modernos  e aqui nos afastamos do historiador inglês, que considera a guerra do Paraguai
como um conflito pré-tecnológico  em seu esforço de guerra. Finalmente, assim como o
conflito que dividiu os Estados Unidos, a guerra do Paraguai pode ser definida como uma
guerra total (uma das primeiras da história): um conflito que mobilizou recursos humanos e
materiais em larga escala das sociedades nacionais nele envolvidas.

1
A guerra civil americana, seja por sua contemporaneidade com o conflito platino (1860-1864), seja por suas
dimensões, será constantemente utilizada como parâmetro de comparação ao longo do texto.
2
EricJ. Hobsbawm, A Era do Capital  1848-1875, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 3ª ed., 1982, pp. 96-97.
No que toca a este último aspecto, ele é absolutamente verdadeiro em relação ao
grande perdedor, o Paraguai. O conjunto de sua população foi mobilizado pelo esforço de
guerra e também sofreu diretamente as conseqüências do conflito, e não apenas uma
parcela ou a totalidade de sua população adulta masculina. O conjunto dos recursos
materiais nacionais foi mobilizado de forma centralizada pelo Estado e totalmente
despendido no decorrer das operações. Como vencido, o Paraguai terminou a guerra
exaurido.
Em relação aos países da Tríplice Aliança Brasil, Argentina e Uruguai , a
mobilização para a guerra guardou aspectos bem distintos.
O Uruguai, recém-saído de um conflito civil, teve uma presença simbólica no teatro
de operações, tanto numérica como materialmente. Mesmo esta presença, devido à
instabilidade presente no país e à forte oposição interna ao envolvimento no conflito, foi
decrescente ao longo do tempo.
A Argentina, no início da guerra, contou com um forte contingente em operação, 25
mil soldados. Entretanto, a oposição das províncias ao envolvimento no conflito (como
parte de uma oposição maior ao crescente domínio de Buenos Aires sobre o resto do país)
levou também à redução constante dos efetivos militares em operação no teatro da guerra,
em particular, após a expulsão dos paraguaios do território argentino e a possibilidade de
uma nova invasão ter sido completamente afastada. No período da guerra, a Argentina
enfrentou uma série de conflitos internos decorrentes da centralização do poder efetuada
pela burguesia de Buenos Aires em detrimento do poder local da classe dominante e dos
estancieiros das demais províncias, havendo mesmo confrontos armados. Em 1869, havia
apenas 4 000 argentinos em armas no Paraguai. Do ponto de vista material, a Argentina não
só não teve seus recursos despendidos, como também obteve enormes ganhos com o
conflito, como grande fornecedora das tropas da Tríplice Aliança.
O Brasil, ao se iniciar a guerra, já havia concluído um longo processo, marcado por
uma série de conflitos internos regionais, que resultara na implantação de um poder
centralizado3. O fato de esse poder já estar consolidado permitiu uma formidável
mobilização de recursos materiais (principalmente) e humanos. Mesmo tendo uma parte
relativamente pequena e pouco povoada de seu território afetada diretamente pelas
operações militares, todo o país foi mobilizado, ainda que em graus diferentes, para a
campanha. O poder central, que já anteriormente tinha uma presença marcante na vida
nacional, fortaleceu-se ainda mais como elemento capaz de captar, organizar e empregar
recursos humanos e materiais necessários à condução da guerra.

Forças empregadas e perdas humanas

Durante todo o conflito, nunca mais que cem mil soldados estiveram em operação.
Alguns autores estimam o exército paraguaio no início da guerra em cerca de 80 000

3
Em 1848, terminava em Pernambuco a última das grandes revoltas que agitaram o Império brasileiro na
primeira metade do século XIX, a Revolução Praieira. O governo imperial conheceria então um período de
estabilidade política com a alternância de conservadores e liberais nos diversos gabinetes que se sucederam.
homens4. Se esse dado for correto, apenas em sua primeira fase (invasão de Mato Grosso,
Corrientes, Entre Rios e Rio Grande pelos paraguaios) o número total de soldados
mobilizados estaria em torno de 150 000. No restante do conflito, em seu teatro de
operações principal ao longo do rio Paraguai, o contingente total de forças empregado
esteve sempre em torno de 60 000 soldados. A Tríplice Aliança, com o exército brasileiro
como força majoritária (pelo menos 2/3 do efetivo total aliado), esteve sempre em
superioridade numérica. O exército paraguaio, depois da batalha de Tuiuti, nunca foi
superior a 20 000 soldados. As forças da Tríplice Aliança, por sua vez, estiveram sempre
em torno de 30 000 homens, em sua maioria, brasileiros.
A manutenção desses contingentes ao longo de quase seis anos de conflito
significou para o Paraguai a mobilização de toda a sua população masculina com idade
superior a 10/12 anos de idade e inferior a 60. Como não há estatísticas certas sobre a
realidade demográfica do Paraguai à época do conflito, é difícil determinar o que isso
representou em números relativos. As estimativas em torno da população do país, ao
iniciar-se o conflito, variam de 700 000 a 1 200 000 pessoas, sendo algo em torno do
primeiro número o mais provável. As perdas paraguaias (militares e civis) variam, de
acordo com a estimativa sobre o número total de habitantes do país, entre 500 000 e 1 000
000 de mortos. Em qualquer hipótese, portanto, a guerra significou o sacrifício quase total
 por mortes em combate, assassinatos, epidemias e fome  da população. O certo é que, ao
final do conflito, 95 % da população masculina do país haviam desaparecido. A
mobilização militar paraguaia envolveu praticamente o conjunto da população masculina,
que pereceu nos inúmeros combates ou vítima das epidemias e péssimas condições de
higiene, habitação e proteção contra o frio e a fome que marcavam o cotidiano dos
exércitos na época, em especial do exército paraguaio.
As perdas uruguaias foram praticamente irrelevantes em relação ao contingente
populacional do país. O Uruguai, apesar de ter sido o estopim da guerra, de fato, pouco
esteve envolvido nela.
Os argentinos, de acordo com Leon Pomer5, perderam 18 mil soldados no conflito,
um número expressivo relativamente à população do país de aproximadamente 1 500 000.
Em relação ao Brasil, também não há estatísticas precisas, seja sobre o número total
da população (o primeiro censo só seria realizado em 1872), seja sobre as perdas militares.
O general Paulo de Queiroz Duarte6 cita a mobilização de 135 580 soldados ao longo do
conflito para uma população masculina de 4 903 630, estimada em 1865. Há quem
considere 200 000 o total mobilizado para 139 000 efetivamente enviados aos campos de
batalha.7
As perdas, considerando-se as mortes em combate, por epidemias e seguramente um
percentual elevado de perdas entre os feridos, devido às péssimas condições sanitárias e de

4
J. J. Chiavenatto (Os Voluntários da Pátria e Outros Mitos, São Paulo, Global, 1983), estima o exército
paraguaio no início do conflito em 50 000 soldados. O número de 80 000 significaria cerca de 60 000
mobilizados ao início do conflito e outros 20 000 de reserva.
5
Leon Pomer, A Guerra do Paraguai: A Grande Tragédia RioPlatense, op. cit.
6
Gen. Paulo de Queiroz Duarte, Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai, Rio de Janeiro, Biblioteca
do Exército, 1981.
7
General Antônio de Souza Júnior, "A Guerra do Paraguai", in Sérgio Buarque de Holanda (org.), História
Geral da Civilização Brasileira, tomo II, voI. 3, São Paulo, DIFEL, 1987.
atendimento dos hospitais, não foram nunca inferiores a 50 000 homens. Apenas em
combate  que nas guerras da época não era a principal causa de mortalidade entre a tropa
, segundo o general Queiroz Duarte, foram 23644 soldados, só até a segunda fase da
guerra. Baseado nesses dados, o mesmo autor contesta as estatísticas oficiais da Repartição
dos Negócios da Guerra para 1870, de 23 917 mortos em toda a guerra. Alguns, como
Dionísio Cerqueira (Reminiscências da Campanha do Paraguai), falam em 100 000
mortos, a maior cifra apontada.
Pode-se considerar, aceitando as estimativas mais baixas em termos de população
paraguaia, que o número de mortos total ficou em torno de 600 mil. Esta cifra é semelhante
ao número de mortos (também em torno de 600 mil) da guerra civil americana, para
continuarmos com nosso parâmetro de comparação. Entretanto, a população total dos
Estados Unidos, incluindo-se a massa escrava, era de cerca de 22 milhões no Norte e 9
milhões no Sul. Estes números dão uma idéia da dimensão relativa da guerra do Paraguai.

As perdas materiais

A mobilização paraguaia para a guerra, como já dissemos, foi total. Na verdade, o


Paraguai já vinha, mesmo anteriormente, canalizando recursos nacionais crescentes para a
montagem de um aparelho militar desproporcionalmente grande e complexo em
comparação com os recursos do país. Esse fato explica o sucesso das armas paraguaias na
fase inicial do conflito. Com efeito, toda a cartada estratégica do Paraguai estava baseada
nessa mobilização e preparação anteriores ao conflito.
Assim como em relação ao seu manancial humano, as perdas materiais paraguaias
foram completas. O país terminou a guerra arrasado, tendo suas terras cultiváveis
abandonadas, seu rebanho desaparecido e as poucas manufaturas, fundições, estradas de
ferro, telégrafos, etc. destruídos. Os recursos materiais acumulados (moeda, ouro e outras
formas de riqueza) foram igualmente consumidos ou saqueados. Finalmente, o Paraguai foi
ainda obrigado a pagar uma dívida de guerra ao Brasil até o ano de 1943.
Suas perdas territoriais não foram menores: todas as terras em litígio com o Brasil
na fronteira com Mato Grosso e parte do Chaco ocidental para a Argentina. Desnecessário
dizer ainda que o desfecho da guerra trouxe a tutela militar e política brasileira, juntamente
com a subordinação econômica, com conseqüências que se estendem até nossos dias.
Para o Brasil, o outro grande contendor e vencedor da guerra, a vitória teve um
gosto amargo. Além das inúmeras conseqüências políticas e sociais que veremos adiante, a
condução da guerra esgotou as finanças públicas e acelerou o processo de endividamento
com bancos ingleses, que já vinha acontecendo anteriormente. A formação de uma
esquadra fluvial moderna, capaz de operar no rio Paraguai e na bacia do Prata, responsável
última pelo desequilíbrio estratégico favorável ao Brasil na região, significou um
investimento financeiro de monta para o país. A formação e manutenção de um exército
numeroso, bem armado e abastecido, ao contrário dos efetivos militares até então
empregados nos conflitos platinos, que podiam viver do terreno ocupado, exigiu também
recursos ponderáveis do governo imperial.
Diferentemente de conflitos em escala semelhante envolvendo nações centrais do
sistema capitalista, o término da guerra  e a própria mobilização nacional para ela  não
foi um trampolim para uma fase de expansão econômica do vencedor. Comparando-se a
guerra do Paraguai com o outro grande conflito total contemporâneo no continente, vemos
que o fim da Guerra de Secessão americana, ao implicar o estabelecimento da hegemonia
clara do Norte capitalista, significou a possibilidade de sua expansão econômica.
II

Antecedentes: crítica às versões revisionistas sobre as razões


do conflito

Entender as razões que levaram à guerra entre o Brasil, Argentina e Uruguai, por
um lado, e o Paraguai, por outro, não é tarefa simples. Sobretudo, no caso brasileiro.
Não é objetivo deste trabalho discutir o assunto a fundo. A abordagem que faremos
sobre os antecedentes da guerra visa apenas permitir uma maior compreensão de nosso
tema principal: a formação de um exército nacional profissional, como demanda da guerra,
e suas relações com a sociedade, em particular, com os escravos e as camadas populares.
Entretanto, é inevitável não nos furtarmos a algumas considerações a respeito da questão
das origens do conflito. Estas considerações se prenderão basicamente a dois aspectos: a
crítica às versões correntes sobre as razões da guerra, principalmente, a crítica da
historiografia revisionista, e, no próximo capítulo, a inserção da intervenção brasileira na
região platina em uma determinada análise mais ampla da natureza da sociedade imperial.

Se os estudos tradicionais sobre a guerra pecam por um excessivo oficialismo e


factualismo, por sua vez, as versões revisionistas da história do conflito tendem a
simplificações e nem sempre estão embasadas em investigações mais profundas. Os
acontecimentos são muitas vezes adaptados a esquemas interpretativos extremamente
genéricos e outros tantos fatos são deixados de lado1.

A versão tradicional

De acordo com a visão tradicional do conflito, este foi basicamente decorrente da


agressividade de Solano López, que tinha pretensões expansionistas ou hegemônicas na
região platina. As razões para essa pretensão não são muito explicadas, ficando por conta
da vaidade pessoal e da megalomania do governante paraguaio.
A alegação do governo paraguaio de que entrava em guerra contra o Brasil a pedido
do governo uruguaio e contra a intervenção de tropas imperiais na República Oriental é
vista quase que a título de pretexto para que López iniciasse sua aventura militarista2.

1
Como exemplos da versão tradicional poderíamos citar toda a literatura militar, especialmente Tasso
Fragoso, A História da Guerra Entre a Triplice Aliança e o Paraguai, as obras clássicas de História do Brasil
(Pedro Calmon, História do Brasil). Na trilha da revisão crítica, temos Chiavenatto, o mais conhecido entre
nós (Guerra do Paraguai, Genocídio Americano), que em grande parte reproduz a visão de Leon Pomer (A
Guerra do Paraguai, A Grande Tragédia Rioplatense).
2
Em 1864, alegando defender os interesses de cidadãos brasileiros no Uruguai contra os abusos que estes
vinham sofrendo por parte da população e das autoridades, um exército brasileiro, sediado no Rio Grande do
Sul, invade o território oriental e presta apoio ao caudilho colorado Venancio Flores, então em revolta contra
Por sua vez, a intervenção brasileira na guerra civil uruguaia3 é explicada de forma
insuficiente. Ou se considera que realmente ela visava interromper os agravos sofridos por
brasileiros no Uruguai, ou, no máximo, estabelece-se uma ligação entre ela e os interesses
de estancieiros riograndenses da fronteira, em constante conflito com seus rivais da Banda
Oriental. Aqueles estariam interessados em uma intervenção militar brasileira no sentido de
pilhar as estâncias uruguaias, seja para auferir proveitos diretos com a operação, seja para
debilitar a concorrência oriental no mercado brasileiro de charque.
A versão tradicional enfatiza o ataque paraguaio ao Brasil e dá pouca importância
ou cobertura à intervenção militar brasileira no Uruguai. Quando não apresentada como
uma questão independente, esta é mostrada como um último recurso do governo imperial
ao não ter atendidos seus pedidos de reparação às agressões sofridas por brasileiros no
Uruguai.
Uma nota do representante uruguaio ao conselheiro Saraiva, então em missão
diplomática na região platina, a propósito dos incidentes fronteiriços e maus-tratos a
brasileiros residentes no Uruguai, deixa clara a atitude imperialista brasileira de buscar um
pretexto a qualquer custo para uma intervenção militar.

“S. Excia. O Conselheiro Saraiva evocou, para pintar a situação insuportável


em que viviam os brasileiros domiciliados neste país, as reclamações feitas em seu
favor por seu Governo desde 1852, para não fazer, diz S. Excia., referência a uma
época anterior. (...) Em doze anos, quarenta mil habitantes da República, mira de
perseguições diárias ininterruptas, teriam dado lugar com razão, observem-se os
infinitos incidentes da vida social quer em relação de particular com particular, quer de
governado a governante, a sessenta e três reclamações da parte do Governo Imperial! -
em uma população de mais de quarenta mil almas, distante, confiante, mais exposta
que as demais a atos indevidos de autoridades subalternas do Governo central,
aconteceram sessenta e três casos dignos de reclamação (cinco por ano) as quais por
estar pendente sua resolução teriam provado uma situação intolerável e tornado forçosa
uma invasão e um levante. Julgue-se, seguindo esta lógica, o que teria acontecido no
Império vizinho se, em suas condições de maior desenvolvimento administrativo, a
população oriental ali residente e que é de algumas centenas e não milhares, desse
motivo, em um período muito menor, a quarenta e oito reclamações do Governo a seu
favor.”4

o governo blanco. Este, por sua vez, pede auxílio ao governo paraguaio, que já havia manifestado suas
preocupações quanto a uma intervenção militar brasileira na crise uruguaia junto ao governo imperial. Em 11
de novembro de 1864, o Paraguai apreende o vapor brasileiro Marquês de Olinda, que se dirigia à província
de Mato Grosso navegando pelo rio Paraguai, e declara guerra ao Brasil. Em seguida, pede permissão ao
governo argentino para que as suas tropas pudessem cruzar o território argentino para ir em auxílio do
governo uruguaio e invadir o Brasil. Ao ter seu pedido negado pelo governo Mitre  pró- Venancio Flores e
hostil ao Paraguai  López invade a Argentina. Essa decisão baseava-se em uma suposta adesão à sua causa
por parte de Urquiza, chefe político das províncias de Entre Rios e Corrientes (o que não aconteceu).
3
Na verdade, a intervenção brasileira se dá como um dos fatores  e não de pequeno peso  na instigação da
guerra civil, apoiando e patrocinando a volta de Venancio Flores ao Uruguai, desafiando o governo
estabelecido.
4
Citado por Lidia Besouchet,José Maria Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Ensaio Histórico-Biográfico,
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 88
No capítulo seguinte, voltaremos a tratar das motivações do governo imperial em
sua política platina a partir de 1850. Por hora, voltemos nossa atenção à historiografia, que,
revendo as origens do conflito, efetuou uma crítica à versão oficial e à historiografia
tradicional da guerra.

O revisionismo

A revisão das causas da guerra do Paraguai ganha força nas obras de autores
platinos a partir, basicamente, do final da década de 50. Em comum, todos fazem uma
inversão da história oficial e buscam revelar um Paraguai totalmente distinto daquele
representado pela figura do “tirano” Solano López. Sublinham ainda interesses e motivos
diretamente econômicos e expansionistas nas ações dos governos aliados.
Essas versões apresentam análises que partilham pontos de vista semelhantes e
ressaltam aspectos comuns do conflito. O Paraguai é apresentado como uma próspera
república portadora de uma via original de desenvolvimento econômico e social.
Desenvolvimento este que teria, por sua vez, como traço marcante, a resistência e
independência em relação à penetração imperialista inglesa, que predominava no restante
da região. No período imediatamente anterior e durante o conflito; à grandeza e ao
heroísmo que caracterizaram a resistência paraguaia, são contrapostas a subserviência em
relação à Inglaterra, a tibieza e a mesquinhez do comportamento das forças da Tríplice
Aliança.
Ainda que comungando basicamente o mesmo ponto de vista, para efeitos de
análise, distinguiremos duas das mais conhecidas versões revisionistas, a de José Maria
Rosa e a de Leon Pomer.

A versão da unidade da América hispânica

No prólogo da primeira edição de seu La Guerra del Paraguay y las Montoneras


Argentinas, em 1964, José Maria Rosa assim resume os fatos de que trataria na coletânea
de artigos que então publicava sob a forma de livro:

“O ocaso da nacionalidade poderia chamar-se, com reminiscências


wagnerianas, esta tragédia de vinte anos que ESFACELOU a América espanhola e lhe
tirou a possibilidade de integrar-se em uma nação; ao menos durante um longo século
que ainda não transcorreu. Foi a última tentativa de uma grande causa, começada por
Artigas nos momentos iniciais da Revolução, continuada por San Martin e Bolivar ao
cristalizar-se a independência, restaurada pela habilidade e energia férrea de Rosas nos
anos do Sistema Americano e que teria em Francisco Solano López sua continuidade
posterior. Causa da Federação dos Povos Livres contra a oligarquia diretorial de uma
massa nacionalista que busca sua unidade e sua razão de ser frente a minorias
estrangeirizantes que ganhavam em manter a América débil e dividida; da própria
determinação opondo-se à ingerência forânea; da pátria contra a antipátria, enfim, que
a historiografia colonial, da qual padecemos, deforma para que os povos hispânicos
não despertem da letargia que lhes é imposta. Causa tão velha como a América. Narrá-
la é escrever a história de nossa terra, e separar os grandes americanos das pequenas
figuras das antologias escolares” (grifos do autor).5

A citação, apesar de longa, é válida porque nela estão expressos os principais


elementos dessa versão da guerra.
O Paraguai de Solano López é considerado como o herdeiro de uma causa da
unidade hispano-americana que se manifestava numa solução de continuidade desde a
época da independência. Os opositores dessa causa são principalmente determinadas
oligarquias que lucravam  e lucram  com a influência e intervenção externas.6
Mais tarde, os grandes vilões da história ganharão nomes definidos: a classe
dominante portenha, a Inglaterra e o Brasil imperial.
Finalmente, a própria história dos fatos narrados é apresentada como um
prolongamento da mesma luta, e o objetivo de revisar a versão oficial presente nas
antologias escolares é manifesto.
O Paraguai não só é apresentado como o paladino da causa da unidade hispano-
americana em continuação às lutas de independência contra o domínio espanhol, como
também o precursor de uma via distinta de desenvolvimento sócio-econômico.
A República guarani é vista como um Estado nacionalista, antiimperialista, onde a
classe dos proprietários de terra, crioulos, havia sido praticamente exterminada e a terra era
explorada pelas comunidades guaranis. A existência de algumas manufaturas é considerada
como sinal de uma política de desenvolvimento econômico nacionalista e contrária aos
interesses do capitalismo inglês. O poder quase que absoluto exercido sobre o aparelho de
Estado e sobre o conjunto da sociedade pelos governantes que se sucedem à independência
é encarado como um paternalismo benevolente.

“Era um verdadeiro Estado socialista a paternalista República do Paraguai...”7

Esse socialismo precoce consistia num exemplo de organização econômica, social e


política:

“Era um modelo na América a República paraguaia, onde a vida era


sumamente fácil com a única condição de haver-se tido a fortuna de nascer ali e prestar

5
José Maria Rosa, La Guerra del Paraguay ylZas Montoneras Argentinas, Buenos Aires, Hyspamérica, 1986.
Os artigos foram publicados na imprensa entre outubro de 1958 e outubro de 1959
6
Antes mesmo desse prólogo, o autor utiliza-se de uma citação de uma carta de Rosas, datada de fevereiro de
1869, em seu exílio em Southampton, a Solano López, na qual lhe confere simbolicamente a espada de San
Martin doada por este a Rosas por seus serviços prestados ao país na luta pela independência.
7
José Maria Rosa, op. cit., p. 20
em forma de trabalho manual, de labor intelectual ou de tarefas militares, sua parte de
serviço à comunidade”8.

Entretanto  e diferentemente de outra versão revisionista, a de Leon Pomer, como


veremos a seguir , a ênfase de José Maria Rosa está na questão da unidade da América
hispânica, particularmente no que diz respeito à região platina.
Para ele, o Paraguai de Solano López representava a continuidade de um projeto de
uma nação forte e unida na região do rio da Prata de colonização espanhola que teve na era
de Rosas na Argentina seu momento máximo.9 O grande inimigo desse projeto era o Brasil
imperial com sua política exterior que continuava o intervencionismo português na região
platina.
Essa política brasileira de intervencionismo na região contava com o apoio eventual
dos comerciantes e das elites de Buenos Aires e também da Inglaterra. O apoio destes dois
aliados tinha seu limite no estabelecimento claro e absoluto de uma hegemonia brasileira na
região: “... o Império chocava-se com dois obstáculos em sua política de expansão: a
resistência nativa dos castelhanos, e os diplomatas e navios da Inglaterra que não queriam
deixar arrebatar o monopólio, e não tolerariam na América do Sul poder mais forte que o
seu”.10
Buenos Aires, por sua vez, livre de seus inimigos internos  principalmente os
federalistas  tinha suas próprias pretensões hegemônicas, ainda que, segundo José Maria
Rosa, sob a liderança de Mitre, totalmente subordinadas aos interesses comerciais ingleses.

“O ‘mitrismo’ era a ponta-de-lança do colonialismo no Prata, a minoria


estrangeirizante que se impunha pela ajuda forãnea e se mantinha pelo engano e o
terror.”11

A versão de José Maria Rosa tem o excelente mérito de, em assunto de pleno
domínio da historiografia tradicional e oficialista, dar voz aos vencidos. Neste sentido,
muito da diplomacia do Império e do governo Mitre é exposto, principalmente, no que diz
respeito ao apoio mitrista à insurreição de Venancio Flores contra o governo de
Montevidéu e a posterior intervenção militar brasileira na crise uruguaia.
Por outro lado, os interesses específicos do Império são bastante caracterizados e,
inclusive, em uma certa medida, contrapostos parcialmente, como já vimos na citação
anterior, aos interesses imediatos ingleses. A política de estabelecimento de uma

8
Idem, ibidem, p. 21
9
Após uma série de lutas internas, o caudilho federalista Juan Manuel Rosas assumiu o poder em Buenos
Aires. Em 1852, após uma intervenção militar brasileira apoiada no caudilho Urquiza, que dominava as
províncias de Entre Rios e Corrientes, Rosas foi deposto e exilado. Entretanto, durante seu governo  e
mesmo representando, ao menos teoricamente, os interesses federalistas em oposição ao unitarismo da classe
dominante de Buenos Aires , a unidade argentina deu enormes passos no rumo de sua consolidação.
10
José Maria Rosa, op. cit., p. 25
11
Idem, ibidem, p. 22.
hegemonia brasileira na região platina é bastante discutida, e seu significado não é
minimizado por eventuais confluências de interesses com o imperialismo inglês.12
Se há essa matização em relação ao papel do Brasil nos acontecimentos platinos, tal
não parece ser o caso da análise de Rosa em relação à atuação argentina: todo o significado
do período Mitre e dos governos subseqüentes para a história da Argentina é praticamente
reduzido a uma entrega do país ao imperialismo e aos interesses do capital comercial e
bancário de Buenos Aires e estrangeiro.
A crítica principal que se pode fazer a essa versão do conflito é a respeito de seu
reducionismo que superdimensiona a influência inglesa na região e ignora as motivações
específicas dos países diretamente envolvidos. Não se trata, evidentemente, de negar
vinculações e subordinações dos grupos dirigentes e classes dominantes  e aí incluímos o
caso brasileiro13  latino-americanos a interesses do capitalismo central. Entretanto, reduzir
o papel desses grupos e classes  e este nos parece o caso em José Maria Rosa no que diz
respeito ao mitrismo e à classe dominante portenha  ao de prepostos do imperialismo
pouco contribui para a elucidação de relações mais complexas e sutis que estão na base da
formação efetiva de nossas nacionalidades não idealizadas, mas como realidades concretas.
A contribuição e o valor documental que a obra de José Maria Rosa trouxe à
compreensão do tema da guerra do Paraguai  até então reduzido à monótona sucessão de
vitórias militares e causas e efeitos da historiografia oficial  é inegável. Contudo, é
impossível não considerarmos que há uma utilização bastante acentuada da interpretação
dos fatos históricos para objetivos e projetos político-ideológicos da época presente. No
caso de Rosa, sua interpretação insere-se no contexto de propostas de desenvolvimento
nacionalista, autônomo e antiimperialista para os países latino-americanos, características
do final dos anos 50 e início da década de 60.
Não se trata, é claro, de negar que toda versão, por maior que seja sua pretensão
científica e neutra, do passado é informada pelo e produzida no presente e, portanto,
carregada de seus conflitos, dilemas e disputas. Isto seria ingênuo. Em dois pontos
específicos José Maria Rosa é simetricamente oposto à historiografia oficial: na eleição do
Paraguai de López como paladino de um projeto de unidade hispano-americana na região e
na subordinação total da política portenha aos interesses estrangeiros. Nesse sentido,
permanece no mesmo nível de debate e de análise pouco profundos.
As premissas são simplificadas. Se houve algum projeto de unidade hispano-
americana, ocorreu no período imediato da independência e não correspondeu às realidades
regionais que emergiam da crise do sistema colonial. Entretanto, tal projeto  ou quimera 
representou importante papel nos movimentos de independência das regiões do antigo
Vice- Reinado do Prata. Estendê-lo, como expressão de realidades e processos sociais da
região, para além dos marcos da independência  em especial, da argentina  é desconhecer
a complexidade e a especificidade dos diferentes processos de formação das nações na
região.

12
O que acontece com bastante freqüência em Leon Pomer.
13
Como verificaremos, outros autores cometem o mesmo tipo de simplificação ao se debruçarem sobre o
papel do Brasil imperial nos conflitos platinos.
No caso do Paraguai, por exemplo, isso não ocorreu. A independência foi uma luta
contra qualquer subordinação ao sistema colonial ou a qualquer sistema que implicasse a
abertura e a penetração da região ao complexo platino. Estabelecer, como faz José Maria
Rosa, que num primeiro momento a independência paraguaia havia sido assegurada
também contra a hegemonia portenha e que mais tarde, no período Rosas, tal contradição
desaparecera carece de bases documentais. As contradições do Paraguai com o sistema
platino eram bem mais amplas do que as contradições internas da história argentina.
O projeto de transformação da herança de centralização administrativa colonial em
unidade nacional platina carecia de bases sociais e econômicas. Em larga medida, os
processos de independência da região se dão contra essa centralização, vista como causa de
opressão dos interesses sub-regionais emergentes. O projeto de unidade regional
correspondeu, num primeiro momento, a uma necessidade de unificação das forças pró-
independência contra a reação metropolitana, no período da guerra de libertação do jugo
colonial. Passada a conjuntura de risco, afloraram as particularidades, as vontades e
interesses das forças sociais sub-regionais. A partir desse momento, um projeto de unidade
hispano-americana na região platina passou a corresponder aos interesses da única força
sub-regional com interesses no conjunto da região: a burguesia mercantil portenha.
Ao identificar a guerra do Paraguai e, em grande parte, o próprio desenvolvimento
do país a momentos da história argentina, como o período Rosas e as montoneras14, José
Maria Rosa pouco esclarece as razões de um conflito de tal magnitude. Tem o mérito de
pôr a nu o encobrimento da historiografia oficial, que, em larga medida, reproduz o
discurso dos próprios governos empenhados no conflito, mas não vai além de reduzir o
drama a uma espécie de negociata da classe dominante portenha, de agentes imperialistas
ingleses e, ainda que menos caricatamente, da política externa imperial brasileira.

A versão da intervenção imperialista

Na trilha da revisão da história da guerra, temos ainda a versão para as causas do


conflito que foi sugerida por Leon Pomer. Segundo esta versão, o Paraguai, no concerto das
nações sul-americanas, era caracterizado por um desenvolvimento próprio. No período
imediatamente posterior à independência das nações hispano-americanas, o Paraguai teria
seguido um caminho de desenvolvimento original, autônomo, auto-suficiente, nacionalista
e, até mesmo, antiimperialista (especificamente contra a Inglaterra). Como exemplos da
originalidade desse desenvolvimento histórico são citados a criação de fundições, o
monopólio estatal do comércio externo, o surgimento de algumas manufaturas, a quase
inexistência de importações, o fechamento do país ao contato com os vizinhos.
Entretanto, utilizando-nos de dados do próprio Pomer,15 vemos que a pauta de
importações paraguaias não era muito diferente daquela de seus vizinhos, isto é, importação
de manufaturados e exportação de produtos primários (em ordem decrescente de valor):
tecidos de algodão e de lã, comestíveis, vinhos, vários, calçados, sedas e ferragens. O

14
Movimentos armados baseados em lideranças caudilhas regionais e que contavam com apoio popular
contra o governo central de Buenos Aires
15
Leon Pomer, op. cito
mesmo sucedendo com as exportações: erva-mate, tabaco, couros secos, couros curtidos,
vários, laranjas, cortiça e madeira. É verdade, como afirma Pomer, que à exceção do ano de
1852, o saldo da balança comercial foi sempre positivo, o que não altera a natureza da pauta
de importações e exportações.16 É bom lembrar ainda que, a partir da década de 60 até o
final do século passado, pelo menos, a balança comercial brasileira também foi positiva,
sem contudo significar que o país se afastava da esfera de influência do imperialismo.17
Por outro lado, a existência de, uma fundição (de Ibicuí), de telégrafo e de estradas
de ferro é insuficiente para caracterizar o Paraguai como um país que tivesse um tipo de
desenvolvimento econômico que o colocasse fora do contexto geral da região de
dependência do capital e do imperialismo inglês. É claro que nesse contexto  e sem
escapar dele  o Paraguai ocupava uma posição periférica, se comparado a seus vizinhos.
Isto mais por razões de natureza histórica vinculadas a sua formação durante o período
colonial, quando igualmente ocupava uma posição periférica, do que por opções de
desenvolvimento pós-independência.
“O Paraguai, ao contrário de outras regiões da América hispano-portuguesa, não
teve grandes plantações tropicais nem consideráveis fazendas de gado.”18 Assim como no
caso das missões na Amazônia, a presença colonial no Paraguai deu-se através dos jesuítas,
que controlavam as populações indígenas organizadas em comunidadas de produção
comunitária.
O fato de essas comunidades não terem sido marcadas pela exploração quase
absoluta, extensiva e predatória da mão-de-obra característica das regiões escravistas ou das
encomiendas, não permite excluir essa forma de organização econômica do quadro geral de
exploração colonial.19 É verdade que as relações dessas regiões periféricas com aquelas de
produção principal para exportação foram sempre marcadas por contradições e atritos.
Muitas vezes, os colonos  no século XVIII, as Coroas também  não viam com bons olhos
o monopólio da Igreja sobre determinadas regiões da colônia que, em parte, barrava seu
acesso seja à exploração da mão-de-obra representa da pelas populações indígenas, seja a
exploração direta de determinados produtos.
Essas contradições, no caso do Paraguai, vão se transferir para o período pós-
independência. No processo de independência da região do Vice-Reinado do Prata, a
contradição entre o porto de Buenos Aires  região central diretamente vinculada ao
sistema colonial  e o periférico Paraguai foi imediata. O Paraguai reivindicava a livre
16
Leon Pomer., op. cit., p. 56
17
Cf. Octávio Ianni. “O Progresso Econômico e o Trabalhador Livre”, in História Geral da Civilização
Brasileira, op. cit., tomo 11, voI. 3, p. 300, citando Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil,
Brasiliense, 1958, p. 328.
18
Idem, ibidem, p. 35
19
Depois de descrever a ação dos jesuítas na colonização do Paraguai, através das missões que concentravam
sob sua direção a população indígena numa forma comunitária de produção, Pomer considera a expulsão dos
jesuítas do império espanhol e suas repercussões no Paraguai: “Depois que os jesuítas foram expulsos, suas
posses passam ao poder da Coroa, o que provoca um crescimento significativo nas propriedades estatais. O
Estado manterá em seu poder essas terras, até que a Tríplice Aliança triunfante e o governo títere que se
instalará comecem a dilapidá-las com sinistra generosidade” (p. 34). Aqui temos uma espécie de estadolatria.
Não importa a natureza do Estado, se colonial, absolutista e monárquico, ou autocrático pós-independência,
seu controle sobre a produção é sempre superior ao controle privado, igualmente independente da natureza da
exploração econômica e das relações sociais de produção
navegação até o mar para o escoamento de sua produção. Os comerciantes e a classe
dominante do porto de Buenos Aires a isto se opuseram, desejando manter a situação
colonial e auferir lucros sobre as exportações paraguaias. A própria independência
paraguaia não foi bem aceita, e houve a tentativa de reduzir o Paraguai a uma das
Províncias Unidas do Rio da Prata.
Além desses aspectos econômicos, são também apresentados como sinais do
desenvolvimento histórico original paraguaio, contrastante com os países vizinhos, o fato
de o país não possuir analfabetos, de os camponeses terem acesso à terra, de estas mesmas
terras pertencerem em grande parte ao Estado, a perseguição e quase o extermínio dos
crioulos, grandes proprietários de terra.
Essas características sociais do Paraguai, mais que uma opção que se segue à
independência, são decorrentes das particularidades do processo de colonização. A
dominação jesuítica sobre as populações indígenas era principalmente assegurada pela
expansão da religião católica e pela produção de uma cultura letrada (no sentido de escrita e
não no sentido de sofisticação cultural) entre essas populações. A difusão da cultura por
meio escrito era simplesmente elemento vital para a perpetuação dessa forma de
dominação.
Por outro lado, como já foi salientado, a inexistência de grandes propriedades rurais
trouxe como conseqüência a quase ausência do tipo tradicional de crioulo, descendente de
espanhóis e grande proprietário, presente em outras regiões americanas de colonização
espanhola. Na verdade, a elite crioula tendia  particularmente após a expulsão dos jesuítas
 a se concentrar em torno do aparelho de Estado, no exercício de funções administrativas e
gerindo o governo, ou parcelas dele, em seu próprio benefício. Característica, aliás, presente
mesmo nas zonas mais tipicamente exportadoras das colônias ibéricas.
O próprio Pomer considera que na gestão de Carlos López, pai de Francisco Solano
e sucessor de Francia, o fundador do Paraguai independente, começou a dissolução das
comunidades indígenas como forma de exploração e posse da terra. Ainda que diga que
esse processo representava a transformação de alguns índios em uma camada de pequenos
proprietários, “... outros (se tornam) proletários obrigados a vender a sua força de trabalho
para subsistir”.20
O que sucedeu no Paraguai é que a ausência de uma classe de grandes proprietários
forte, a expulsão dos jesuítas e o processo de independência criaram um vazio em termos de
classe social que pudesse levar a cabo o processo de independência, se compararmos com o
restante do processo de independência da América hispano-portuguesa.
Quem, então, realizou a independência do Paraguai? As comunidades indígenas,
num processo original, semelhante ao ocorrido com os escravos negros do Haiti?
Cremos que não. Ainda que não devamos subestimar o papel que a massa
camponesa guarani desempenhou na defesa de seus interesses imediatos (particularmente
em suas revoltas no início do século XVIII), não havia uma proposta de construção de uma
nação independente, baseada na pequena propriedade rural, radicalmente oposta à
manutenção dos vínculos de dependência externa e com projeto alternativo original de
desenvolvimento sócio-econômico.
20
Leon Pomer, op. dt., p. 48.
Os autores que assim buscam nos fazer crer21 são incapazes de fornecer evidências
nesse sentido. Sem dúvida, ressaltam a especificidade da formação histórica paraguaia, mas
daí a demonstrar o caráter de desenvolvimento autônomo paraguaio vai uma grande distância.
A elite esclarecida que encabeçou o processo de independência do Paraguai o fez
em seu próprio nome, em seu próprio proveito, tomando conta do aparelho estatal como de
uma propriedade privada.
O historiador paraguaio Ricardo Caballero Aquino, em ensaio crítico introdutório às
memórias de Centurión, faz a seguinte citação de Brian Mac Dermot, em prólogo ao livro
de Josefina Pla, The British in Paraguay, 1850-1870:

“Através das tradições remanescentes das instituições públicas coloniais, se


seguiam aí modelos europeus, e nesse período a Constituição era ostensivamente a de
uma República com poder legislativo, judicial e executivo. A realidade era um tanto
distinta, dado que o país era regido como uma grande estância familiar governada
paternal, porém despoticamente por uma pessoa cujo filho maior era o ministro mais
importante e cujo irmão era o bispo”.22

O extermínio dos crioulos, menos que ação de defesa das comunidades populares,
foi o resultado da luta de facções em disputa pelo aparelho do Estado. A ação desses grupos
só foi possível na conjuntura de esfacelamento do poder metropolitano característica do
processo de independência do Rio da Prata. Os crioulos de Buenos Aires e demais
províncias litorâneas mostraram-se incapazes de, naquele momento, ainda que tentassem,23
impor seu domínio sobre o conjunto da região.
A comunidade guarani, por sua vez, exigia, com sua presença maciça e tradição
histórica, o respeito a sua cultura, modo de vida e tipo de atividade econômica (ainda que
sempre subordinada a uma instância superior de dominação, os jesuítas, as autoridades
metropolitanas ou o Estado independente de El Supremo, do Dictador Perpetuo).
Mas de Francia a Solano López  e não apenas por pressões externas  o Estado
paraguaio se modernizou, se complexificou, se ocidentalizou, não somente no sentido de
sua adesão a determinadas instituições típicas dos Estados nacionais europeus e de seus
congêneres em formação na América Latina,24 mas como lugar de promoção de iniciativas
administrativas que aprofundaram os traços de complementaridade das economias
exportadoras: estradas de ferro, linhas de navegação, administração das rendas de

21
Além de Pomer, Rosa e Chiavenatto (por nós extensamente citados), podemos mencionar, entre outros,
Horton Box Pelham, Los Orígenes de la Guerra de la Triple Alianza, Buenos Aires, Nizza, 1958; Manlio
Cangogni e Ivan Boris, Solano López, o Napoleão do Prata, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975;
Oscar Creydt, Formación Histórica de La Nación Paraguaya, Buenos Aires, 1963
22
Juan Crisóstomo Centurión, Memorias o Reminiscencias Históricas Sobre la Guerra del Paraguay, EI
Lector, Assunção, s.d., Prólogo de Ricardo Caballero Aquino, p. 10
23
Logo após os primeiros movimentos pela independência, uma Junta Governativa em Buenos Aires buscou
manter sob seu poder a região do Paraguai. Ante a recusa dos paraguaios, foi enviada uma expedição militar
que, no entanto, terminou por ser derrotada.
24
Instituições de cunho governativo e administrativo, como exército, ministérios, serviços públicos, e não de
cunho representativo. Havia também no Paraguai um Congresso, ainda que sem poderes e praticamente sem
representatividade.
exportação e importação. No caso do Paraguai, inclusive, essa ação começou a determinar a
privatização da propriedade rural. Não foram apenas pequenas propriedades rurais que se
formaram a partir da dissolução das comunidades indígenas; a partir do lugar que
ocupavam na máquina estatal, governantes, altos funcionários e seus parentes apropriaram-
se privadamente de terras do Estado,25 além de geri-lo em grande parte, como já
observamos, de modo privado.
Mas, voltemos a Pomer.
Sem caracterizar o Paraguai de López como um Estado socialista e sim como um
Estado nacional que buscava sua via própria de desenvolvimento, cortando os laços
coloniais, aliás de formação histórica frágil, ele o considera um obstáculo à penetração do
imperialismo inglês no Prata. Este país original constituía-se numa ameaça à presença
imperialista, na medida em que a permanência e o sucesso de sua experiência de
desenvolvimento pudesse representar um exemplo para os demais povos e países da região
contra a constante interferência britânica em seus assuntos internos. Paralelamente, o
Paraguai, com, sua política externa nacionalista e isolacionista e de fechamento do rio
Paraguai à navegação estrangeira, era um cobiçado mercado e zona de expansão comercial
que se mantinha fora do alcance dos interesses ingleses.
Nesse quadro, a guerra teria resultado da pressão exercida sobre o Paraguai pelo
Brasil e pela Argentina no sentido de abandonar sua via de desenvolvimento autônomo e
abrir o país às demais nações (entenda-se Inglaterra). Por trás dessa pressão esteve sempre,
como inspirador último, o imperialismo britânico.
Para demonstrar seus argumentos, Pomer cita basicamente a enorme influência que
a Inglaterra exercia na vida política e econômica do Brasil, da Argentina e do Uruguai.
Assim ele considera a importância de se resolver o problema paraguaio, tanto para
ingleses como para brasileiros:

“Um dos problemas capitais da burguesia comercial anglo-brasileira (os


grifos são nossos) que controla o comércio interno e externo do Império está por ser
resolvido: a unificação do mercado interno e o livre acesso a todas as partes. A zona
Oeste e Sudoeste do Império, desde o Estado do Rio Grande até o Mato Grosso e
Paraná, depende dos rios do sistema do Prata para sua integração no mercado mundial.
Por essas correntes fluviais deve passar  inexoravelmente até que as estradas de ferro
apareçam  a produção dessas regiões brasileiras em direção aos mercados
ultramarinos; por essas mesmas vias entram as manufaturas européias que são
consumidas pela (sic) então longínqua zona Oeste e Sudoeste do Império. O Paraguai
constituirá um obstáculo na medida em que é dirigido por governos ciumentos de sua
soberania e dignidade nacional26”.

Mais adiante, concluindo:

25
Solano López já possuía grandes propriedades e, ao final do conflito, sua companheira, Madame Lynch, era
dona de extensíssimas propriedades anteriormente pertencentes ao Estado.
26
Leon Pomer, op. cit., pp. 73-74
“Não é uma conclusão exagerada admitir que o grande e definitivo beneficiário
da guerra é o capitalismo inglês, que não apenas reforça as cadeias douradas com as
quais submete o Brasil, através de uma dívida que continua crescendo
assustadoramente, como também garante o livre acesso ao Mato Grosso e outras zonas
do Império, o que lhe garante novas possibilidades mercantis”.27

O conceito de “burguesia comercial anglo-brasileira” não corresponde à realidade e


é uma redução que atrapalha o entendimento das relações entre a classe dominante do
Império, dona de terras e escravos e ligada fundamentalmente à produção agrária, e os
comerciantes ingleses, que dominavam o comércio de exporatação - importação brasileiro,
por um lado, e o imperialismo inglês no período desenvolvendo a exportação de
mercadorias e, principalmente, de capitais, por outro.
Ainda que essas relações fossem complementares e hierarquizadas, no sentido de
uma predominância do capital inglês, isto não significa que não ocorressem contradições e
atritos, principalmente no nível político, da relação entre os dois Estados. Nunca é demais
lembrar que, ao iniciar-se a guerra, Brasil e Inglaterra estavam com as relações
diplomáticas cortadas, por iniciativa do governo brasileiro, desde julho de 1863.28
O Estado imperial brasileiro, representando os interesses globais da classe
dominante dos senhores de escravos, era seu mediador, melhor seria dizer, interlocutor
privilegiado nas suas relações econômicas com o contexto capitalista do sistema mundial,
em especial dominado pela Inglaterra. Considerando os elementos dessas relações como as
faces complementares de uma moeda, Ilmar Rohloff de Mattos assim as define:

“Relações complementares entre as duas faces da moeda, assim, possibilitando


que se efetive e reproduz a articulação econômica que gera a divisão internacional do
trabalho; mas, relação contraditória também, que erige a Coroa que se opõe à extinção
do tráfico negreiro intercontinental e da própria escravidão, contrariando assim os
interesses prevalecentes na primeira face da moeda (a Inglaterra)”.29

27
Idem, ibidem, p. 75. Todas essas argumentações são repetidas e enfatizadas (melhor seria dizer,
exageradas) por Pomer em Paraguai: Nossa Guerra Contra Esse Soldado, (São Paulo, Centro Editorial
Latino-Americano, s.d). Assim, à página 20: “Esta questão (a navegação pelo rio Paraguai) tem prioridade
total tanto para o Império como, principalmente, para seu aliado britânico, que sem isto não poderá saquear o
ouro das distantes terras brasileiras”. Ou ainda: “Existe alguma coisa que os obriga (Brasil, Argentina e
Uruguai) a se porem de acordo, apesar das diferenças e contradições que os dividem: o poder da City, a
ganância capitalista que não tolera que alguém contrarie sua cobiça, exige a extirpação de todo mau exemplo,
como o Paraguai, que tem a petulância de realizar uma política de desenvolvimento de cunho exclusivamente
nacional” (p. 31).
28
As relações seriam reatadas em 1865, já durante a guerra, por iniciativa britânica. A questão Christie, que
teve como causa imediata uma série de incidentes de menor importância, refletia, na verdade, toda uma
década de conflitos entre Inglaterra e Brasil em assunto mais grave e decisivo para a classe dominante
escravista: as pressões e intervenções britânicas no sentido da extinção do tráfico negreiro e mesmo do fim da
escravidão no Brasil.
29
lImar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, São Paulo, HUCITEC, 1987, p. 100.
Analisando as relações entre Brasil e Inglaterra em torno da questão do tráfico
negreiro, Richard Graham considera que a atitude dos brasileiros, no que diz respeito às
exigências inglesas, “... consistia em concordar verbalmente e satisfazer publicamente (...)
por outro lado adiavam, procrastinavam e tornavam insignificante grande parte da
substância objetivada pelos britânicos. (...) A técnica funcionava admiravelmente. O tráfico
escravo durou vinte e cinco anos após o tratado de 1826 (que o extinguia). A libertação dos
filhos de escravos, declarada em 1871, foi uma concessão vazia, pois eles permaneciam
virtualmente escravos até os 21 anos de idade e, sob suas provisões, a escravatura poderia
ter-se mantido até a década de 1930”.30 Evidentemente, mais que uma técnica diplomática,
tratava-se de um poder de barganha do Império com a primeira potência mundial. Poder
que não deve ser subestimado.
Uma análise superficial das relações econômicas entre a Inglaterra e os países
nascentes latino-americanos e o economicismo presente, que reduz as relações políticas às
relações econômicas (por sua vez simplificadas) estão na base da interpretação parcial e
equivocada de Pomer. Por um lado, ele unifica e confunde aquilo que é complementar e
contraditório,31 as relações entre o Império e a Inglaterra. Por outro lado, são os próprios
interesses econômicos ingleses e do Império que são torcidos. Afirmar que uma das
questões capitais para os interesses econômicos brasileiros ou ingleses era a abertura das
províncias brasileiras do Oeste e do Sudoeste ao comércio internacional é um exagero sem
base alguma nos fatos. Os interesses e as atenções do imperialismo inglês e da classe
dominante escravista brasileira estavam concentrados na produção, exportação e
comercialização do café. As ferrovias, que segundo Pomer ainda não estavam presentes,
vinham sendo implantadas desde a década de 50 e por toda a década de 60, na região do
Vale do Paraíba e em direção ao Oeste paulista, e mais tarde, seguindo a expansão cafeeira,
para o novo Oeste paulista, durante a década de 70.
Por sua vez, a vitória na guerra e a abertura da navegação no sistema fluvial platino
não trouxeram qualquer desenvolvimento significativo para as províncias do Oeste e do
Sudoeste. É verdade que a questão da livre navegação pelo Paraguai ficou definitivamente
resolvida e que as comunicações com Mato Grosso foram retomadas. Cabe lembrar,
contudo, que a passagem de navios brasileiros e de outras nacionalidades pelas águas do
Paraguai já havia sido estabelecida desde o tratado entre Brasil e Paraguai de 1858, sendo
interrompida com o advento da guerra.32 No mesmo sentido, incluir o Rio Grande e o
Paraná como províncias cuja comunicação seria beneficiada pela abertura dos rios da bacia
do Prata à livre navegação é um exagero que não corresponde à realidade. Por seu turno, a
ligação econômica da província do Rio Grande com suas charqueadas era com o mercado
interno brasileiro, em particular com a região cafeeira, e independia para o escoamento de
sua produção do livre acesso ao rio Paraguai. Os interesses dos charqueadores e criadores
de gado sulistas tinham e muito a ver com a região do rio da Prata, mas basicamente no que

30
Richard Graham, “Brasil e Inglaterra”, in História Geral da Civilização Brasileira, op. cit., tomo II, voI. 4,
p. 145.
31
E interessante notar que, mesmo superdimensionando o papel e a ação da Inglaterra nos conflitos platinos,
em especial, a guerra do Paraguai, José Maria Rosa não comete o mesmo erro, propondo uma distinção entre
até onde iam os interesses britânicos e os interesses políticos e econômicos brasileiros. Conferir citação na
página 6 da obra de Rosa.
32
Ressalte-se que o primeiro ato de guerra é justamente a apreensão do vapor brasileiro Marquês de Olinda
no porto de Assunção, que levava o presidente dessa província a seu destino.
diz respeito às suas relações com seus concorrentes uruguaios e argentinos e com a
preservação de seus interesses em suas propriedades no Uruguai. O Paraguai era uma
realidade distante.
Há ainda a questão dos empréstimos ingleses ao governo imperial e conseqüente
dependência deste em relação à Inglaterra como argumento demonstrativo ‘do dedo oculto’
de Londres por trás das ações brasileiras. Com efeito, o conflito do Paraguai acarretou a
necessidade de enormes gastos públicos por parte do governo imperial para cobrir as
necessidades de material bélico e organização de um exército nacional. Nesse sentido, a
guerra aprofundou essa dependência que já havia se estabelecido a partir de 1822 e
continuaria depois da guerra.33 A vinculação da guerra a interesses ingleses no sentido da
efetivação dos empréstimos, no entanto, não tem maiores evidências e é desprovida de
sentido. Os empréstimos são decorrentes da guerra e não o contrário. Imputar a interesses
ingleses a deflagração do conflito apoiando-se no fato de que o esforço de guerra baseou-se
em empréstimos junto a bancos ingleses (de resto, já uma tradição do governo imperial) é
uma conclusão que inverte os nexos de causalidade entre os dois fatos.
Por fim, ainda que rapidamente, consideremos a ação diplomática inglesa na região
platina.
Essa ação, fiel aos princípios do livre comércio e da livre navegação, foi sempre
hostil ao governo paraguaio, ainda que, em grande parte, aspectos consideráveis do
desenvolvimento paraguaio dependessem da colaboração de técnicos britânicos. Já
comentamos anteriormente, no entanto, que o Paraguai não era o alvo principal das
intenções britânicas, mais concentradas em Buenos Aires e no Uruguai. José Maria Rosa
cita extensamente a participação de Edward Thornton, diplomata inglês em Buenos Aires,
nos acordos entre Argentina e Brasil que antecederam à invasão do Uruguai pelo exército
imperial. 34
E possível que o objetivo inglês com essa participação fosse o de contribuir com
uma política (que de qualquer forma já vinha sendo levada a cabo pelo Império) no sentido
de garantir em Montevidéu um governo colorado mais afinado aos interesses comerciais
britânicos e, juntamente com seus vizinhos Argentina e Brasil, favorável à livre navegação.
Um governo que comporia um quadro de paz necessário ao bom desenvolvimento do
comércio na região platina. É possível ainda que Thornton estivesse apenas buscando
estender a influência de Buenos Aires ao Uruguai para contrabalançar os efeitos da
iminente invasão brasileira. Nesse quadro, após a neutralização dos blancos no Uruguai, o
Paraguai estaria isolado e, sem dúvida, pressionado no sentido de aumentar suas concessões
à livre navegação. .

Esse é um quadro que corresponderia aos interesses livre-cambistas britânicos. Ir


além e considerar o Paraguai como objetivo último da política britânica e dar a este país um
peso que ele não tinha na região, seja em termos de mercado consumidor, seja em termos
de fornecedor de matérias-primas, é algo diverso.

33
Segundo Richard Graham, entre 1831 e 1889 houve 14 empréstimos brasileiros junto aos bancos ingleses,
principalmente junto à casa Rothschild, em sua maioria necessários para equilibrar déficits orçamentários. op.
cit., p. 151.
34
José Maria Rosa, op. cit., pp. 126 e segs.
A total submissão do Paraguai e uma presença brasileira vitoriosa e militarmente
forte no Prata, entretanto, não Corresponderiam aos anseios britânicos. Tampouco
interessava à Inglaterra que a Argentina, ainda que sob a liderança livre-cambista de Mitre,
realizasse seu objetivo, perseguido desde a independência, de anexar total ou parcialmente
o território paraguaio.35
A publicação pelo governo britânico do tratado secreto da Tríplice Aliança, fato que
muito comprometeu a imagem dos aliados junto à opinião pública mundial, corrobora essa
tese. Nunca é demais afirmar que a política britânica na região tinha como linha condutora
impedir a formação de uma potência regional hegemônica, fosse esta Brasil ou Argentina.

A versão revisionista das origens da guerra tem seu ponto fraco talvez exatamente
naquilo que caracterizou sua novidade: a inserção do conflito no contexto mais geral de
expansão do capitalismo. A supervalorização da ação direta da Inglaterra e a subestimação
das motivações particulares das nações envolvidas (à exceção do Paraguai) acabaram por
obscurecer a eventual originalidade da abordagem.
A crítica dessas versões é bem mais fácil que apresentar uma versão alternativa. De
qualquer modo, como já adiantamos no início deste capítulo, tal não é o objetivo deste
trabalho. No próximo capítulo, ao buscarmos compor o quadro da sociedade imperial que
assiste à formação de um exército nacional com características específicas de fundação
devidas a sua participação na guerra, vincularemos as origens da participação brasileira no
conflito a esse quadro e avançaremos algumas hipóteses de trabalho que, evidentemente,
necessitariam de investigações mais aprofundadas e específicas sobre o tema.

35
A Argentina, aliás, parecia ter objetivos bastante claros com sua participação na guerra. Como coloca
Ricardo Caballero Aquino (in Juan Crisóstomo Centurión, op. cit., p. 8): “De todos los contendientes, Mitre
fue el único que tenía una meta clara, la unión y el fortalecimiento del estado argentino bajo el liderazgo
económico e intelectual del puerto de Buenos Aires”.
***parei aquiIII

O Império às vésperas da Guerra do Paraguai

Antes de buscarmos traçar as linhas gerais da política externa do Império no Prata,


são necessárias algumas observações sobre o quadro da sociedade brasileira no período.
O final da guerra do Paraguai coincide com o começo dos anos 70, a partir dos quais
se inicia todo um processo de transformações econômicas, sociais e políticas que vão
culminar com a queda do Império. Entretanto, em determinado sentido, a guerra do
Paraguai é justamente o último grande acontecimento do período anterior, de apogeu do
Império.
A segunda metade da década de 50 e o início da década de 60 foram marcados pelo
máximo desenvolvimento da sociedade escravista brasileira.
A produção agrícola escravista, base da economia ,estava em expansão com as
plantações de café, principalmente na região .do vale do Paraíba. O Brasil gozava de uma
situação privilegiada em relação ao mercado internacional, tendo praticamente o monopólio
do fornecimento do produto. A produção agrícola nas outras regiões à base do trabalho
escravo, se não conhecia expansão semelhante à região cafeeira, conseguia, no mínimo,
manter-se estavelmente, em termos de preservação da unidade de produção escravista,
devido a características próprias do modo de produção escravista.1 Em outras regiões,
ainda, como no Rio Grande do Sul, conhecia-se mesmo uma expansão da produção, neste
caso o abastecimento do próprio mercado interno da região cafeeira com o charque.
A expansão cafeeira, a maior integração com o mercado mundial, o incremento das
relações internas entre as diversas regiões do país, a montagem de todo um aparato
administrativo necessário ao funcionamento do Estado imperial, o surgimento de novas
necessidades características de um país e um Estado em formação com a conseqüente
diversificação social, enfim, todo o quadro de consolidação da sociedade imperial acarretou
a complexificação do aparelho econômico. Fato que se traduz em outras iniciativas
econômicas, como a construção de ferrovias, instalação de companhias e linhas de
navegação, surgimento de fundições, estaleiros, manufaturas e fábricas. Todo esse quadro
se acelera a partir de 1850 e conta com a participação de capitais ingleses e também de
capitais liberados com a extinção efetiva do tráfico internacional de escravos em 1850. Esse
processo de modernização e diversificação está indissoluvelmente ligado à figura de Mauá,
o promotor de grande parte desses investimentos, e à fase de expansão do capitalismo
europeu que implicava justamente a liberação e exportação de capitais.

1
O fato de a reprodução imediata da mão-de-obra ocorrer no interior da unidade de produção e sob o controle
do proprietário dos meios de produção permitia a manutenção das relações escravistas ainda que em período
de longa crise econômica. Sobre o comportamento e a capacidade da economia escravista de manter-se
estável e articulada apesar de situações prolongadas de contração da produção para o mercado, ver Celso
Furtado, História Econômica do Brasil, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura. Sobre os mecanismos gerais de
funcionamento da economia escravista na América, conferir Jacob Gorender, O Escravismo Colonial, Rio de
Janeiro, Paz e Terra, e Eugene Genovese, Économie Politique de l’Esclavage, Paris, Maspero.
Do ponto de vista demográfico também ocorriam importantes alterações. Crescia a
população e se acelerava a urbanização. Nas cidades, desenvolvia-se a função
administrativa  pública e privada , além da prestação de serviços e outras atividades
econômicas de caráter diretamente produtivo. Seja no desempenho de funções públicas,
seja em atividades privadas, toda uma nova camada social composta de pequenos
funcionários públicos, profissionais que desempenhavam tarefas de coordenação e
administração, prestadores de serviços ganhava forma nesses centros urbanos. Ocorriam
também as primeiras iniciativas no sentido da atração de parte das correntes imigratórias
européias.
Conhecia-se uma relativa paz social. As revoltas de cunho social que marcaram as
décadas de 30 e 40  o exemplo mais impressionante sendo a Cabanagem, no Pará ,
agitando a massa da população livre despossuída e mesmo parte da população escrava,
estavam sufocadas e rescaldadas. Ainda que permanecesse a situação social que propiciara
sua origem, já não havia as mesmas condições para sua eclosão. Em primeiro lugar, elas
tinham sido militarmente sufocadas a ferro e fogo pela ação do poder central, que, ao
praticar essa repressão, marcava mais acentuadamente seu domínio e controle sobre as
regiões do país. Carentes de uma proposta política clara e alternativa, as revoltas populares
se exauriram no confronto militar e direto com as forças da ordem. Em segundo lugar, o
momento de instabilidade e disputa no interior da classe dominante, que havia em larga
medida propiciado condições para aquelas revoltas, estava encerrado. É verdade, contudo,
que permaneciam as revoltas e os distúrbios no que toca à população escrava. Estes
acontecimentos restringiam-se agora a um nível local, sem encontrar eco em um quadro
mais amplo de instabilidade política e social nos setores populares e até nos setores médios
da população, que lhes poderia vir a conferir uma dimensão global. A partir da década de
70, a questão da escravidão, trazida ao centro do debate político, iria recolocar
dramaticamente essa possibilidade.
Encontravam-se regrados os conflitos internos à classe dominante, agora expressos
no jogo político e parlamentar. A Maioridade, a derrota de todas as revoltas que buscavam
a descentralização e a manutenção de uma autonomia local haviam criado as condições
para a consolidação do Estado imperial. Nas diversas regiões do Império o Estado
centralizado, superando resistências, incorporando e subordinando potentados locais e
regionais, impunha seu controle sobre todo o território nacional. Suas instituições, práticas,
símbolos eram aceitos pela classe dominante e também pelos setores médios da população
como expressão particular de uma cultura política brasileira, por sua vez caudatária da
cultura européia ocidental vigente. Mesmo os setores populares despossuídos, seja através
das relações locais de compadrio e dependência, seja pelo mero fato de assistirem,
incapazes de uma ação mais contundente contra a ordem, após a derrota de seus
movimentos nas décadas anteriores, ao desfile triunfante do discurso da estabilidade
imperial, encontravam seu lugar  ainda que incomodo  nesse mundo. A figura
benevolente do imperador aparecia como síntese e símbolo da solidez das instituições
imperiais. No quadro institucional-parlamentar, essa síntese e esse símbolo transfiguravam-
se em presença política efetiva através do Poder Moderador.2

2
Sobre a consolidação da ordem imperial como construção de uma hegemonia de classe e o papel da Coroa
nesse processo, conferir Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, op. cit.
Do ponto de vista da política externa, a presença brasileira na região platina era
marcante, particularmente após a intervenção vitoriosa contra a Argentina de Rosas, em
1852. A ruptura das relações diplomáticas com a Inglaterra após os incidentes com o
ministro inglês no Rio de Janeiro, Christie, parecia ter posto, senão um fim, ao menos um
basta à pressão britânica em relação à questão da escravidão.
Sobre a questão das relações internacionais, voltaremos a falar mais adiante.
O desenvolvimento cultural das elites era grande. Haviam sido fundadas faculdades
e escolas. A administração pública aparecia como o lugar social adequado para a
intelectualidade. O próprio imperador era uma imagem de cultura e erudição e apresentava-
se como seu protetor. A sociedade refinava-se seguindo basicamente padrões europeus. A
literatura e o teatro, por sua vez, produziam a imagem necessária da sociedade, que não
poderia ser decorrente da simples importação da produção cultural européia.
Numa palavra, o escravismo havia conseguido desenvolver sua civilização. Uma
civilização que era contemporânea de seu tempo, dominado pelo desenvolvimento do
capitalismo na Europa e nos Estados Unidos. Uma civilização que, tendo sua proposta
específica de organização econômica e social de base escravista, fora capaz de organizar
uma vida política e cultural que lhe conferia uma identidade própria, seja em relação a si
mesma, seja em relação ao mundo que a cercava e a continha. 3
Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse estar no mundo da civilização escravista
do Segundo Reinado, em especial no que diz respeito ao mundo mais imediato que ela
partilhava com seus vizinhos platinos.
Para efeito de nossa análise, distinguiremos dois períodos na política externa do
Império:4 o primeiro vai, aproximadamente, de 1830 a 1850, girando em torno da questão
do tráfico intercontinental de escravos, e tem como interlocutor a Inglaterra. O segundo 
que importa a nosso objeto de estudo  vai de 1850 a meados dos anos 70, e diz respeito às
diversas intervenções brasileiras na política platina.
Entre a independência e 1850, falar em relações internacionais do Império significa,
em larga medida, falar de suas relações com a primeira potência do mundo capitalista, a
Inglaterra. E falar em nossas relações diplomáticas com a Inglaterra significa falar da
coerção sistemática exercida pelos britânicos no sentido da extinção do tráfico internacional
de escravos e, mais tarde, da pressão pela própria extinção da escravidão. Tais ações
inglesas chegaram mesmo até à vistoria e apreensão de navios em águas territoriais
brasileiras. As relações entre o Império escravista subordinado e o Império capitalista
dominante estabeleciam-se em terreno dominado por uma questão crucial para o primeiro e
inerentemente excludente à natureza do sistema capitalista imperialista do segundo: o fim
da escravidão. Um mercado de livre comércio no plano mundial era um componente
essencial da expansão imperialista inglesa. A livre circulação de mercadorias  a força de

3
Sobre a capacidade das diversas classes de produtores escravistas do Novo Mundo de produzirem uma
civilização, no sentido que acima conferimos ao termo, ver Eugene Genovese, O Mundo dos Senhores de
Escravos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
4
Essa periodização obedece somente às necessidades da temática abordada aqui. Assim, por exemplo, não
estamos considerando o período de consolidação da Independência.
trabalho incluída  era sinônimo de barateamento de produtos importados pela Inglaterra e
predomínio de suas mercadorias nos mercados consumidores.
A extinção do tráfico em 1850 e, mais tarde, a questão Christie significaram uma
certa estabilização nas relações dos dois países. A Inglaterra mostrou-se satisfeita com os
avanços obtidos, ao mesmo tempo que, constatou que ir além em suas pressões acarretaria
praticamente uma situação não desejada de confronto com o governo imperial. Este, por
seu turno, tampouco interessado no confronto, buscou assumir e dirigir o encaminhamento
da questão da mão-de-obra, abandonando a, política de concessões formais e manutenção
real do tráfico e assumindo a necessidade de reformas que, ao final, resultariam no fim da
escravidão.
Como bem observou Robert Conrad,5 a guerra do Paraguai atuou justamente como
um elemento de adiamento dessas reformas, na medida em que concentrou as atenções da
Coroa. O que nos importa ressaltar é que esse fato demonstra a ênfase crescente que o
Império vinha dando a sua política externa no Prata.
As questões platinas não eram novas na agenda das relações internacionais do
governo brasileiro, é claro, mas não contavam com o peso que teriam a partir de 1852 e,
principalmente, na década de 60. Menos que determinar, entretanto, a freqüência com que
as questões platinas apareciam como tema de nossas relações internacionais, importa
estabelecer como elas o faziam.
Até o início da década de 50, a diplomacia brasileira basicamente respondia aos
impulsos que vinham da região, onde predominavam as disputas entre as diversas
lideranças caudilhas que haviam brotado do processo de independência.
Apenas no Paraguai, a unidade nacional e a estabilidade política, inicialmente sob a
liderança de Francia e, mais tarde, sob o comando de Dom Carlos López, haviam sido
atingidas logo após a independência. Entre as lideranças caudilhas do restante da região
emergiu, a partir do final da década de 20, Juan Manuel Rosas. Tornando-se a figura
exponencial. das Províncias Unidas do Rio da Prata, .basicamente ambicionava a
recomposição do .antigo “Vice-Reinado do Prata sob seu controle. Neste sentido, interferia
constantemente na política uruguaia e não reconhecia a independência paraguaia. Por outro
lado, teve que assegurar a soberania das Províncias Unidas contra as intervenções militares
inglesa e francesa, que objetivavam a obtenção do maior número possível de vantagens
comerciais na região.
Nesse quadro, que resumimos de forma bastante esquemática, o Brasil tinha alguns
interesses: 1. impedir a formação de um Estado nacional forte e que unificasse o antigo
Vice- Reinado do Rio da Prata; 2. assegurar a livre navegação pela bacia do Prata; 3. fazer
valer determinadas reivindicações territoriais nas áreas de fronteira; 4. estar presente de
forma marcante na política interna uruguaia; 5. garantir a não restauração da presença
européia na região.
De um modo geral, foram esses mesmos objetivos que estiveram presentes na
política brasileira no Prata nas décadas de 50 e 60. O que é característico do período
anterior é que a ação brasileira não buscou sistematicamente a consecução desses objetivos.

5
Robert Conrad, Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª ed.,
1978, pp. 88 e segs.
A política imperial oscilava, respondia a iniciativas que partiam, em sua maioria,
principalmente de Rosas. Ora alinhava-se com a ação dos diplomatas e navios ingleses e
franceses, ora reagia positivamente às iniciativas de Rosas contra a presença dessas
potências européias na região,6 aceitando mesmo uma eventual aliança; mostrava uma
postura de neutralidade que, entretanto, paulatinamente seria substituída por atitudes de
hostilidade. Mantinha constante o apoio à independência do Paraguai e procurava evitar
que os caudilhos platinos apoiassem os revoltosos farrapos do Rio Grande do Sul (o que,
entre as idas e vindas características das disputas entre os caudilhos, nem sempre ocorreu).
As razões para essa política imediata pouco clara  ainda que apoiada, como
dissemos, em objetivos constantes  residiam, por um lado, na crescente tensão que se
acumulava nas relações do Império com a Inglaterra no que diz respeito à questão do
tráfico externo de escravos e, por outro, na instabilidade da política interna do Império.
Como já vimos, até a extinção definitiva do tráfico internacional de escravos, em
1850, as relações entre Brasil e Inglaterra deterioraram-se a tal ponto que chegaram a
comprometer, ao menos aos olhos da época, a própria soberania nacional brasileira. A
extinção definitiva, mesmo cedendo as pressões inglesas, contudo, terminou por ter como
resultado um fortalecimento do poder imperial e dos interesses dos grandes proprietários
escravistas do vale do Paraíba e da Corte. Ao assumir  no momento em que era impossível
qualquer recuo, adiamento ou tergiversação sobre a questão  como sua a iniciativa da
proibição efetiva da importação de escravos africanos, a Coroa esvaziou em muito as ações
inglesas contra a escravatura, concentradas até aí na questão da interdição do tráfico.7
Durante os anos 50, a Inglaterra prosseguiu com medidas de apreensão e com pressões
sobre o governo brasileiro no que diz respeito às condições dos africanos escravos no
território nacional, teoricamente livres. Essas pressões culminaram em 1862 com a questão
Christie.
Nesse momento, o Brasil foi capaz de conduzir a disputa de uma forma que lhe era
favorável e terminar por romper relações diplomáticas com a Inglaterra. Com esse lance,
esgotou-se momentaneamente o repertório de medidas contra o governo imperial brasileiro.
Sem poder ir além (o que só poderia significar uma invasão ainda que temporária do
território brasileiro) em retaliações contra o governo imperial e tendo contra si a decisão de
uma arbitragem internacional em relação ao conflito governo britânico viu-se na
contingência de, na primeira oportunidade, buscar o reatamento das relações diplomáticas.
Para o Brasil, a questão Christie significou pôr as cartas na a mesa e deixar claros os limites
da pressão inglesa.
O desenlace da questão Christie (estamos falando da ruptura das relações
diplomáticas mais do que seu reatamento como ponto decisivo da questão) desanuviou uma
área de tensão das relações internacionais que vinha se conturbando desde a época da
independência. Se não reverteu o quadro geral de posição subalterna do Império escravista
no mundo de relações crescentemente capitalistas, deu-lhe tempo de respirar. Possibilitou-
lhe dedicar-se mais sistematicamente a outros objetivos no plano internacional, como sua
presença no rio da Prata, por exemplo.

6
Cf. J. A. Soares de Souza, “O Brasil e o Rio da Prata de 1828 - A Queda e Rosas”, p. 123 em particular, in
História Geral da Civilização Brasileira, op. cito
7
Para as razões da extinção do tráfico, ver Ilmar Rohloff de Mattos, op. cit., pp. 22-1 e segs.
Do ponto de vista de sua política interna, os anos 50 também significaram condições
mais favoráveis para uma presença mais efetiva do Império na região platina. Como já
frisamos anteriormente, esses anos marcaram o apogeu do Império. O reflexo desse apogeu
e da estabilidade política interna foi o poder voltar-se para fora, para expandir o prestígio e
os interesses do Estado nacional, de base escravista, além de suas fronteiras. Essa expansão
significava a busca de objetivos políticos, econômicos e territoriais imediatos: impedir a
formação de um Estado nacional forte e unificado nas fronteiras do Sul do Império;
assegurar-lhe uma posição hegemônica no continente sul-americano; garantir a livre
navegação e o livre acesso ao Mato Grosso; proteger interesses comerciais e bancários
brasileiros na região; realizar os interesses econômicos regionais da classe dominante
escravista do Sul em relação a seus vizinhos e concorrentes do Prata; estabelecer a
demarcação de fronteiras que mais conviesse aos interesses brasileiros.
O pano de fundo para a realização desses objetivos imediatos era o próprio estar no
mundo do Império brasileiro. Civilização que se pretendia estar em pé de igualdade com os
parâmetros europeus, o Império escravista tinha não apenas que demonstrar sua adesão aos
padrões culturais e políticos da Europa capitalista. Na era dos impérios, em que o
capitalismo europeu se colocava o direito de militarmente civilizar seus diferentes e, para
tanto, produzia culturalmente o que eram as diferenças, era necessário que mostrasse
capacidade efetiva de resistência e de manutenção de suas diferenças.
Buscar um lugar mais favorável na correlação de forças internacional era essencial
para o Império. Esse lugar era primordialmente possível de ser conquistado onde a
afirmação de sua diferença era exeqüível: em relação a seus vizinhos americanos. A
escravidão, a monarquia, a origem portuguesa, a soberania do Estado sobre o vasto
território nacional eram aspectos a serem ressaltados e não minimizados nas relações do
Brasil com seus vizinhos platinos. Esta via indireta de afirmação de prestígio internacional
era a única viável para o Império escravista em suas relações  marcadamente defensivas
ante a agressividade e a superioridade do mundo capitalista  com as potências européias.
Em certo sentido, o Império buscava afirmar-se como uma espécie de competidor/parceiro
e não come objeto das ações dessas potências na América do Sul.
A produção escravista guardava inúmeros pontos de contato com o contexto
capitalista dominante que lhe permitiram, no caso da formação histórica brasileira, ser base
de uma proposta de civilização contemporânea. Assim, num contexto capitalista, o Brasil
escravista dispunha de urna economia dominantemente mercantilizada, não estava preso a
formas de produção ou formações sociais que preexistissem à implantação da produção
escravista, contava com uma classe dominante que impunha seus objetivos hegemônicos
sobre o conjunto da sociedade, colocando-se em condições de construir um aparato de
Estado centralizado capaz de gerir o conjunto dos recursos sob sua administração.8

8
Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, op. cit.), Eugene Genovese (Économie Politique..., op. cit.)
conseguem relizar uma análise da economia escravista colonial seguindo em larga medida o modelo
interpretativo de O Capital. O mesmo exercício em relação a outras formas de produção coloniais não
escravistas  e, arriscaríamos dizer, a outras formas de produção pré-capitalistas  resultaria rigorosamente
falso e esquemático. Por outro lado, é interessante ressaltar a observação de Genovese (O Mundo dos
Senhores de Escravos, op. cit.), de que diversas formas de produção escravistas no Novo Mundo não
resultaram em formações sociais escravistas, em especial aquelas formas de produção de origem mais recente,
no contexto internacional capitalista. Nestas áreas, o dono de escravos era mais um empresário capitalista que
Nessa perspectiva, a presença do Brasil na região platina se dava como a de um
outro império. Um império que, na sua relação complementar, subordinada e contraditória
com o pólo dominante capitalista das relações internacionais, tinha que se apresentar como
concorrente, condição necessária para buscar sua sobrevivência. Ele marcava sua diferença
em relação às potências capitalistas centrais não através do enfrentamento direto, mas na
acentuação de suas diferenças com seus vizinhos, que se apresentavam mais fracos, mais
gelatinosos em relação a essas mesmas potências. Obter uma posição hegemônica  mesmo
que regional  no plano internacional era, ao mesmo tempo, resultado e elemento da
consolidação da hegemonia interna da classe escravista. O Estado imperial deveria mostrar-
se capaz de exercer seu controle sobre o conjunto da nação  incorporando, remodelando e
hierarquizando interesses distintos  e também de afirmar e legitimar esses interesses, cada
um deles presente e reconhecido nos objetivos gerais da nação.9
Mais que uma estratégia conscientemente concebida, essa era a única via de
afirmação internacional possível para o Império escravista. A expansão da hegemonia da
classe dominante escravista em direção ao Prata era uma construção positiva, que dava
continuidade às origens históricas advindas da política portuguesa colonial na região. A
resistência às pressões britânicas pela supressão do tráfico internacional de escravos e da
própria escravidão era expressão de um defensivismo incômodo em relação às mesmas
origens históricas advindas da política portuguesa da época colonial.
Lidia Besouchet, ao buscar uma definição para a linha aparentemente incoerente,
com avanços e retrocessos, da política brasileira em relação às questões platinas, nos
fornece uma boa descrição daquilo que acima buscamos situar, ao afirmar que:

“... nossa política exterior, longe de ser um reflexo de realidades estruturadas, era
uma política de antecipações na maioria dos casos. Correspondia a grupos, a minorias, a
aspirações regionais, às vezes a interesses nacionais, mas sem a força polarizadora de uma
solução. Freqüentemente o procedimento do Brasil espelha essa incoerência, e sua rebeldia,
mediante certos atos, diante de Estados poderosos só pode ser explicada pela falta de
maturidade de nossos interesses econômicos”.10

O que buscamos demonstrar, no entanto, é que essa política externa era exatamente
o fruto de interesses econômicos maduros que, por sua natureza social escravista, estavam
na contramão do movimento dominante no nível internacional de universalização das
relações capitalistas. Os pontos de contato entre o escravismo brasileiro e o contexto
internacional capitalista permitiram, num primeiro momento, a maturação da sociedade
escravista só para, num segundo momento, deixar transparecer a acentuação das diferenças.

um senhor de escravos no sentido de uma classe social específica. O recurso da utilização da mão-de-obra
escrava, assim com havia sido utilizado para maximização dos ganhos, poderia ser abandonado tão logo isso
se mostrasse uma necessidade para a otimização de ganhos dentro de uma ótica tipicamente capitalista.
9
Não por acaso, o conceito de hegemonia, que redefine e hierarquiza distintos interesses particulares, refere-
se a noções como nação, pátria, povo, etc. A identidade desses interesses distintos e contraditórios é ressaltada
na afirmação de sua diferença em relação a outros conceitos igualmente genéricos presentes no mundo
externo.
10
Lidia Besouchet, José Maria Paranhos, Visconde do Rio Branco. Ensaio Histórico-Biográfico, op. cit.
A contramão do movimento histórico dominante no que diz respeito à região platina
significava basicamente a busca de uma construção/consolidação de uma hegemonia
regional.
Enquanto que a tentativa de Rosas de estabelecer uma hegemonia regional a partir
da reunificação das províncias que compunham o Vice-Reinado do Prata era um projeto
carente de base social mais ampla, o mesmo não acontecia com o Brasil escravista. A maior
unificação dos recursos materiais e morais no plano nacional permitia que a Coroa
alimentasse esse sonho e que efetivamente buscasse torná-lo realidade. Aquilo que em
Rosas era em grande parte retórica, sustentado no peso econômico, demográfico, militar e
diplomático do Império, foi ação política concreta.
Em carta ao ministro dos Negócios da Guerra de 19 de março de 1868, Caxias
deixava clara a visão da presença hegemônica brasileira na região. A citação é importante
por expressar não apenas a opinião de um militar, mas de um político conservador de peso.
Ele assim demonstrava seu contentamento sobre a passagem de Humaitá pela esquadra
brasileira, ao sentir a necessidade de “... transmitir aos nossos bravos o reconhecimento e
gratidão do Governo e do Povo pela conquista da paz, e da nossa futura supremacia na
América do Sul”.11
A busca de uma “futura supremacia na América do Sul”, entretanto, se era um
projeto que indicava a maturação econômica, social e moral da civilização escravista do
Segundo Reinado, estava no limite e mesmo além de suas forças. O triunfo brasileiro foi
como que uma vitória de Pirro, nem tanto por suas perdas militares, mas porque se
inscreveu no quadro geral de crise  que muito contribuiu para acentuar  do escravismo e
do regime monárquico que se desenvolveu a partir da década de 70 do século passado. A
vitória brasileira expressou, a um só tempo, o triunfo e os limites da vontade imperial,
como bem coloca José Maria Rosa:

“Nos esteiros paraguaios se afundaria o grande Paraguai de Francisco Solano López,


mas também o Brasil imperialista de Pedro II”.12

Tendo analisado as determinações mais gerais da política brasileira no Prata, cabe


determo-nos no exame dos fatos imediatos que antecederam à deflagração do conflito.
Como já vimos no capítulo anterior, o Paraguai, quando iniciou as hostilidades, o
fez a partir de um pedido de ajuda do governo blanco uruguaio contra a intervenção

11
Cartas, Reservados e Confidenciais Referentes à Campanha do Paraguai (1867-69), Arquivo Nacional,
Códice 924.
12
José Maria Rosa, op. cit., p. 26. É interessante notar que o mesmo não sucedeu com a Argentina. Apesar de
durante a guerra ter-se visto crescentemente envolvida em revoltas internas, tendo diminuído sua colaboração
militar a níveis simbólicos, e de não ter obtido todas as vantagens territoriais que almejava, os anos que se
seguem ao fim do conflito são de grande prosperidade para o país. Conferir Ricardo Caballero Aquino. op.
cit., p. 9.
brasileira. O governo paraguaio alegou que a invasão brasileira do Uruguai alterava o
equilíbrio de forças da região.13
Comentando a questão do equilíbrio de forças no Prata, principal alegação
paraguaia para o início das hostilidades, Ricardo Caballero Aquino considera que tal
equilíbrio na verdade não existia, sendo o Brasil a potência claramente hegemônica na
região.14 Ainda que, do ponto de vista da comparação dos recursos demográficos e
materiais, tal predomínio brasileiro possa ser facilmente constatado, se considerarmos o
jogo político imediato entre as nações platinas, a situação se apresentava mais complexa.
A partir da derrota de Rosas em Caseros em 1852 e ao longo de toda a década de 50
e início dos anos 60, a política externa brasileira vinha progressivamente ganhando forma
no sentido de exercer concretamente a possibilidade de predomínio que sua situação
demográfica e material lhe conferia. Entre uma situação de desequilíbrio estrutural de
forças e uma política externa expansionista concreta, houve toda uma série de mediações
conjunturais presentes no jogo entre as nações. A intervenção militar brasileira no Uruguai
e o apoio ou, pelo menos, a aquiescência argentina a essa intervenção davam uma forma
bastante ameaçadora e concreta, do ponto de vista paraguaio, ao desequilíbrio de forças
estrutural da região. Isso parecia tão mais verdadeiro quando consideramos o quadro mais
geral de pressões brasileiras ao longo da década de 50 pela abertura do rio Paraguai à livre
navegação (obtida em 1858) e a tradicional hostilidade argentina em relação ao Paraguai.
O governo paraguaio poderia considerar  como de fato considerou  a conjuntura
resultante do sucesso da intervenção militar brasileira no território oriental algo mais amplo
que a mera deposição do governo blanco, hostil aos interesses brasileiros. A neutralização
do Uruguai e os entendimentos entre Brasil e Argentina isolavam completamente o governo
paraguaio. Toda a ação brasileira no decorrer da crise uruguaia mostrava claramente uma
crescente disposição de nosso governo em resolver suas pendências no Prata pela via
militar. O temor paraguaio de se tornar o próximo alvo brasileiro parecia bastante razoável.
Contudo, dois fatos são evidentes na situação como ela se apresentava naquele
momento:
1. o Brasil não só não estava preparado para uma guerra com o Paraguai, como
também não esperava que a reação de López se desse no campo militar  até mesmo por
subestimação do poderio militar paraguaio e superestimação do valor militar da marinha
imperial;
2. a política externa de López tendia ao abandono do isolacionismo tradicional
paraguaio e apostava na construção de um poderio militar para fazer valer seus interesses.
A mediação de López no conflito civil argentino em 1859 e a construção de um poderoso
exército são indicadores dessa mudança de rumo na política externa guarani.
Mesmo que as vistas brasileiras estivessem se voltando cada vez mais para o

13
Em 30 de agosto de 1864 o ministro paraguaio Berges entregou nota, ao representante brasileiro em
Assunção considerando que o “... Paraguai julgará qualquer ocupação de território oriental... como atentatório
ao equilíbrio dos Estados do Prata, descomprometendo-se desde logo de toda responsabilidade das
ulterioridades”. Citado por José Maria Rosa, op. cit., p. 142.
14
Ricardo Caballero Aquino, in Juan Crisóstomo Centurión, op. Cit., pp. 17 e segs. A opinião está baseada
no trabalho de Diego Abende Los Orígenes de la Guerra dela Triple Alianza, Buenos Aires, Nizza, 1948.
Paraguai, não havia ainda uma iminência de guerra que justificasse a atitude paraguaia
como uma ação militar defensiva. A combinação de recursos diplomáticos, no sentido de
romper seu isolamento e alertando para o perigo de uma hegemonia brasileira clara na
região, e de uma atitude de firme oposição ao possível estreitamento do cerco brasileiro,
sustentada num poderio militar razoável, era ainda um caminho possível e  arriscaríamos
prever sobre fatos acontecidos  com maiores chances de êxito para López.
E fácil ver hoje que López, ao superestimar seu poderio militar, as contradições
entre Brasil e Argentina e, particularmente, as contradições internas a este último país
arriscou em uma só cartada a sorte do Paraguai. Sua tenacidade e determinação, aliadas ao
heroísmo quase sem limites do povo guarani, prolongando indefinidamente o conflito e
resultando na extenuação do Brasil vitorioso, não permitem dúvidas sobre isso. Em
momento algum do conflito o Paraguai esteve perto da vitória, e após a derrota naval de
Riachuelo, em junho de 1865, sua sorte estava selada.
O fato é que, em 1865, o Brasil viu-se, em parte como resultado de sua política de
busca de hegemonia no Prata, em parte devido à escolha paraguaia do caminho da
resistência militar a essa política, envolvido numa guerra de proporções nunca antes  e
tampouco posteriormente  experimentadas.
IV

A guerra do Paraguai e O Brasil: a formação de um exército


nacional e o fim do Império

Como uma guerra total, afetando de forma diferenciada o conjunto da sociedade e


requerendo recursos e a ação centralizada do governo, a guerra do Paraguai foi um
acontecimento marcante em nossa história. Ao mesmo tempo que foi uma resultante dessa
história, ela foi um dos elementos  e não de pequeno peso  no processo histórico
concreto que marcou o período de transição do escravismo ao capitalismo, que se inaugura
na década de 70 do século XIX.
O país passou nesse período por profundas modificações na sua estrutura social e
econômica: a decadência da produção escravista e a expansão da lavoura de café no Oeste
paulista baseada no trabalho livre, a expansão de uma infra-estrutura de serviços, o
surgimento de manufaturas, estaleiros, pequenas fábricas, a urbanização, a imigração
européia, o crescimento das camadas médias urbanas.
Do ponto de vista político, esse processo foi acompanhado pelo fortalecimento de
um setor novo (os grandes proprietários do Oeste paulista) no esquema político da classe
dominante, pela fundação do Partido Republicano, pelo surgimento do movimento
abolicionista, pela crescente oposição da população escrava ao cativeiro. Todo esse
processo de transformações e crise da sociedade imperial culminou com dois
acontecimentos marcantes: abolição da escravidão, em 1888, e a proclamação da República
no ano seguinte.
Os militares desempenharam importante papel nesses acontecimentos. A guerra do
Paraguai, por sua vez, foi um dos fatos constitutivos de peso decisivo na formação do
exército e na criação de um espírito de corpo propício a que alguns militares se sentissem
com condições  e mesmo com o dever  de interferir na vida política do país, entrando em
conflito crescente com o Império e a classe dominante escravista.
A influência da guerra do Paraguai na conformação da corporação militar,
entretanto, não pode ser vista como uma simples questão relativa a esta última. Sua
influência junto ao exército foi, em primeiro lugar, decorrente do significado do conflito
para as diferentes classes sociais. Os fatores sociais e econômicos, aos quais já nos
referimos, davam um novo, perfil à sociedade brasileira. A guerra, ao fazer com que o
Império se visse obrigado a mobilizar o conjunto da sociedade, permitiu que setores do
exército expressassem, naquela conjuntura, anseios e aspirações de grupos sociais
emergentes.
Mais que as conseqüências globais desse processo, interessa-nos considerar as
formas concretas e específicas em que se deu a formação do exército. Antes de passarmos,
contudo, a examinar essa questão, faremos uma pequena análise da organização militar que
anteriormente caracterizava a sociedade imperial.
A organização militar do Império antes da guerra do Paraguai

Em todos os conflitos anteriores em que o Império esteve envolvido na região


platina houve sempre uma presença marcante da Guarda Nacional nos efetivos em
operação. Os interesses gerais do governo imperial normalmente coincidiam com os
interesses dos estancieiros do Rio Grande em relação aos países limítrofes. Dessa forma, as
forças empregadas provinham da própria organização militar local. É bom lembrar que,
devido aos constantes conflitos e disputas pelo gado com os vizinho, a classe dominante
local sempre manteve uma razoável capacidade de mobilização militar.

“Até a guerra com o Paraguai, (...) foi essa força irregular cuja estrutura assentou na
ordem social sulina, que assegurou a nossa presença no cenário do Prata. Sobre ela repousou,
assim, até a segunda metade do século XIX, a segurança do Império, as tropas regulares,
enviadas da metrópole ou do Rio de Janeiro, apenas reforçaram a tropilha gaúcha e foram por
esta, em regra, mal vistas, inclusive o mercenário.”1

O contingente do exército ou foi sempre muito pequeno, ou estava estruturado a


partir da própria organização da Guarda Nacional. Eventualmente, o papel do poder central
era o de fornecer os meios de guerra mais complexos, não disponíveis ou mobilizáveis em
escala regional, que fossem necessários ao esforço bélico, tais como a esquadra, provisões e
armamento pesado. Além disso, oficiais superiores do exército podiam desempenhar
funções de comando nas operações.
O emprego da Guarda Nacional nesses conflitos, por um lado, refletia a própria
estrutura de poder político e militar do Império baseada nos grandes senhores de escravos e
proprietários rurais. Mesmo devendo obediência ao poder central por sua subordinação ao
Ministério da Justiça, a Guarda Nacional servia aos propósitos dos senhores e proprietários
no exercício direto de sua autoridade local, nas eventuais disputas regionais e como poder
de barganha ante o próprio poder central. Por outro lado, a organização da Guarda Nacional
tinha uma relação direta com a estrutura social escravista. Os corpos eram organizados e
subordinados a autoridades locais, por sua vez subordinadas aos grandes senhores e
proprietários; só eram membros da Guarda Nacional aqueles que tivessem uma renda
superior a 200 mil réis, sendo que não eram obrigados a servir pessoalmente nas fileiras,
podendo indicar um substituto.
Neste quadro, o exército nacional profissional era complementar ao aparato militar
da Guarda Nacional. Seus efetivos eram pequenos, seus quadros profissionais superiores,
recrutados no seio da própria classe dominante, e sua função era basicamente a de fornecer
elementos que permitissem a utilização de forma centralizada e coordenada da estrutura
militar real fundada nos corpos da Guarda Nacional.
A organização militar do Império foi capaz  e com sobras , até a guerra do
Paraguai, de resolver militarmente as pendências com os vizinhos Uruguai e Argentina.
1
Nelson Werneck Sodré, História do Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp. 86-87.
Nestes países também era praticamente inexistente uma estrutura bélica
centralizada. Suas forças militares estavam calcadas no poder de caudilhos locais e
regionais. Nos dois países, se comparados ao Império no mesmo período, a unidade
nacional e a centralização do poder político estavam bastante atrasadas, e os conflitos civis
refletiam a resistência às tentativas de estabelecer um poder central forte. De fato, a ação
diplomática e militar brasileira no Prata reflete o uso dessas divisões internas para a
obtenção de vantagens e o estabelecimento de sua hegemonia na região. Em suas
intervenções platinas, o Império sempre contou com aliados locais: Urquiza contra Rosas e
Oribe, Venancio Flores contra Aguirre.
O Paraguai fugia a esse quadro platino. A colonização baseada nas missões
jesuíticas e a incorporação de um grande contingente da população guarani à sociedade
colonial, a debilidade de uma classe proprietária e de uma elite crioula e o papel
organizativo e mesmo centralizador desempenhado pela ordem dos jesuítas e pelas
autoridades em Assunção, diretamente sobre as comunidades guaranis, todos esses fatores,
aos quais já nos referimos anteriormente, permitiram no país uma centralização do poder
bastante significativa.
A disposição do governo central sobre o conjunto dos recursos materiais e humanos
da nação foi sempre considerável. Isso não só no sentido da centralização administrativa
propriamente dita, mas também do ponto de vista econômico e político mais amplo: a
dominação de classe de setor da elite crioula de Assunção  que exercia as funções públicas
 era diretamente exercida sobre a massa da população guarani via aparelho de Estado e,
até certa medida, em oposição ao poder descentralizado e privado dos proprietários
crioulos.
A essa centralização administrativa, política e econômica correspondia também um
Estado fortemente militarizado. Diante de dois poderosos vizinhos, Brasil e Argentina, em
especial esta última, o Paraguai buscava garantir sua independência via manutenção de um
forte aparato militar.
Diante desse tipo de adversário, a estrutura militar do Império não era o bastante.

“Contra o profundo e sólido sistema fortificado que López levantara nas barrancas do
Paraguai, já não era suficiente, na sua bravura insofrida, a tropilha gaúcha. Ela poderia, como
aconteceu, continuar a ser instrumento importante, mas instrumento auxiliar, colocado ao
lado de outro, enquadrado por outro, o do Exército regular, a cuja disciplina deveria
submeter-se, cujos processos e técnicas deveria aceitar.”2

A guerra do Paraguai  por sua magnitude e devido a opor Estados nacionais


centralizados e não forças regionais  colocou no centro dos acontecimentos um aparato
militar do Império que até então desempenhara funções secundárias: o exército regular.

A organização de um exército nacional

2
Idem, ibidem, p. 140.
Organizar um exército profissional era condição de vitória do Império no conflito
que tinha início.
Baseando-se nos corpos da Guarda Nacional, nos corpos de polícia das províncias e
no chamamento dos Voluntários da Pátria, o governo imperial desenvolveu um esforço de
recrutamento de dimensões nacionais. Além do aspecto geográfico  sua escala nacional 
cabe ressaltar sua dimensão social. Recrutar, vestir, armar, treinar, organizar, transportar,
prover as necessidades mínimas e motivar 100 000 homens foi algo que atingiu o conjunto
da sociedade.
Todo esse esforço dirigido a partir do Estado imperial correspondia à extensão de
seu poder e de sua capacidade hegemônica sobre o conjunto da sociedade. Por um lado,
tratava-se de obter legitimidade, apoio, cooperação e unidade de ação de todos os setores da
classe dominante escravista.
Por outro lado, mas já numa posição subalterna, o objetivo era ter o mesmo efeito
junto às camadas médias urbanas e demais setores livres e respeitáveis da sociedade
escravista os homens livres reconhecidos como tais. Neste último caso, a capacidade
hegemônica era basicamente dirigida para baixo e significava a obtenção de apoio e
cooperação no sentido da mobilização imediata para a guerra, principalmente no que diz
respeito aos recursos humanos e à aprovação moral da liderança do Estado imperial como
representante e síntese da ordem e civilização escravistas encarnados na ordem e
civilização nacionais.
Finalmente, a extensão do poder e da capacidade hegemônica do Estado imperial
tinha um significado mais diretamente coercitivo em relação aos setores livres populares. A
ação do governo junto a estas parcelas da população era primordialmente no sentido do
recrutamento e da disposição física sobre o contingente militar potencialmente representado
por esses setores.
Uma característica essencial do Estado escravista era a clara distinção entre os
direitos diferenciados de grupos da população: cidadãos livres e escravos. Entretanto, no
interior dos primeiros, processava-se uma segunda distinção entre os que eram proprietários
de escravos e aqueles que dispunham apenas de suas pessoas. No caso brasileiro, grande
parte do contingente populacional livre incluía-se numa categoria mais especial: aqueles
que, livres, eram, por suas origens, por sua raça e pelas características das relações de
produção escravistas, incapazes de se situar nos dois grandes campos da sociedade: o dos
senhores e o dos escravos.
O esforço de mobilização nacional resultante da guerra, devido a suas dimensões,
trouxe luz a regiões antes sombrias da sociedade escravista, como o papel e a situação dos
setores livres populares. Como esforço nacional, a organização do exército implicou
ressaltar os laços e contradições que uniam e opunham senhores, cidadãos, despossuídos e
escravos na civi1ização do Império.
Tem-se discutido sobre o caráter coercitivo da mobi1ização e recrutamento de
soldados para a guerra. Há uma versão  sendo Chiavenatto seu mais atual porta-voz entre
nós, que tende a ressaltar o caráter forçado do recrutamento, a não adesão, a indiferença e
mesmo a resistência da maioria da população ao esforço de guerra. As relações sociais na
sociedade escravista do império são extremamente simplificadas e reduzidas à sua face
diretamente repressiva. O fato de autores oficialistas descreverem uma verdadeira cruzada
nacional de voluntariamento para a guerra faz com que, muitas vezes, os que contestam
essa tese caiam em erro oposto. O recrutamento forçado e então apresentado como a
aberração e o não voluntariamento como uma oposição à guerra.
Nas condições da época, o engajamento forçado de indivíduos das camadas
populares era a forma usual de abastecer o exército de material humano. Isso não era
apenas uma característica brasileira, e sim praticamente de todos os países. Na sua
comunicação à Assembléia Legislativa de 1866, o ministro da Guerra propunha uma
modernização do método de recrutamento (reconhecendo-o “injusto e violento”), imitando
nações mais avançadas como a França.3
Nesse sentido, sugeria a conscrição com direito à substituição e doação de
determinada soma em dinheiro. A coerção como forma de organizar exércitos é tão velha
quanto estes e é exercida (ainda que de modo mais indireto) até nossos dias. A ideologia
que acompanha e recobre essa coerção é obviamente a do espírito voluntário/patriótico.
Considerem-se, para nos mantermos com o mesmo parâmetro de comparação, os motins
urbanos nova-iorquinos contra o recrutamento forçado durante a guerra civil americana. O
que gostaríamos de alertar é que a mobilização de voluntários da Pátria não foi uma simples
mentira para escamotear a coerção do recrutamento, e sim uma forma moral que
necessariamente acompanhou essa coerção no, sentido de sua aceitação e legitimação
social.
É importante ressaltar que de forma diferenciada com maiores ou menores graus de
adesão, de acordo com o grupo social, a mobilização para a guerra foi um esforço nacional;
que, ainda que contestado, esse esforço obteve sucesso e um grau satisfatório de aceitação,
mesmo que a posteriori; que, neste sentido, repercutiu sobre o conjunto da sociedade,
abrindo espaços e reconhecimento para grupos e classes subalternos. É interessante notar os
conflitos surgidos depois da guerra, em algumas províncias, pelas tentativas de alguns
senhores de fazer valer seu direito de propriedade sobre escravos que haviam lutado na
guerra. As autoridades posicionaram-se contra a possibilidade de um voluntário da Pátria
voltar à sua condição servil.4 Entretanto, esse êxito imediato no esforço de guerra não, teve
como contrapartida o aprofundamento e o fortalecimento do escravismo.
A sociedade escravista imperial correspondeu a esses parâmetros da época.
Contudo, devido a suas características escravistas e principalmente ao momento histórico
que passava, a guerra trouxe efeitos que contribuíram para o acirramento da crise que se
abriu a partir dos anos 70.
A mobilização para a guerra, tal sua dimensão, não poderia basear-se no mesmo tipo
de tratamento que era dado à questão do recrutamento. Até então, servir nas fileiras do
exército era algo que vinha acompanhado do estigma de degradação social; os recrutados
eram obtidos junto aos elementos desqualificados (como tais definidos pela ordem e pelo
pensamento dominantes vigentes) da população: desocupados, vagabundos e malandros. É
fácil perceber que à mobilização de 100 000 homens para o que era definido como uma
cruzada patriótica de desagravo à honra nacional não poderia corresponder o mesmo valor

3
Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra, ano de 1865.
4
Emília Viotti da Costa, A Abolição, São Paulo, Global, 1982, p. 43.
social e moral que era conferido ao recrutamento. Considerar o serviço militar como uma
penalidade que recaía sobre os desqualificados, quando o exército era uma instituição
secundária e quantitativamente pouco expressiva, era uma coisa. Outra era igualar a
mobilização nacional a uma enorme punição que recaía sobre o conjunto do país. Não se
tratava apenas de buscar evitar revoltas contra um recrutamento tão maciço, definindo-o e
valorizando-o como dever patriótico e ato de abnegação heróica. Estava em jogo a imagem
de sociedade civilizada que a classe dominante escravista produzia, também para seu
próprio consumo. Mesmo que ainda se utilizassem amplamente os métodos coercitivos  e
seguramente foram muito disseminados , estes teriam que contar com uma legitimidade e
algum tipo de aceitação por parte das classes sociais envolvidas. Nesse sentido, a guerra
introduziu de forma abrupta a questão da coesão do corpo social na temática ideológica
definida pelo sistema hegemônico do Império. Elementos qualificados como incapazes de
partilhar e conviver com os padrões de civilização do Império eram chamados a defendê-
los. As conseqüências desse processo, aliadas às condições mais gerais de crise da
sociedade escravista, fizeram-se sentir com crescente intensidade no pós-guerra.
O país terminou a guerra do Paraguai mudado: um tema nacional havia sido
debatido, o governo imperial e a classe dominante haviam tido necessidade de buscar
recursos humanos fora da estrutura social rígida e excludente do escravismo, uma nova
instituição nacional com raízes em outros grupos sociais emergiu da guerra com amplo
reconhecimento moral, sem contudo contar com espaço de participação e poder social e
político condizentes com esse reconhecimento.
Vamos analisar agora como esse esforço repercutiu nas principais classes sociais
sobre as quais ele incidiu.

O exército e os escravos

Determinar o número de escravos que combateram na guerra do Paraguai e, mais


ainda, qual sua contribuição relativa em termos de manancial humano, é algo bastante
difícil, seja devido às precariedades estatísticas da época, seja devido ao desejo de se
ocultar o quanto uma sociedade escravocrata dependeu de escravos para responder ao
chamado de defesa da Pátria. Uma coisa, entretanto, é certa, escravos combateram na
guerra.
O assunto é instigante e polêmico. Apenas para efeito de ilustração vamos citar dois
autores modernos, com perspectivas opostas, que discutem o tema.
Chiavenatto, tentando desfazer o mito dos voluntários da Pátria como grande
corrente patriótica popular e em defesa da nação obedecendo ao chamamento do imperador,
considera que eles foram a maioria das forças combatentes brasileiras.

“Para atrair os que se apresentassem espontaneamente, ofereciam-lhes condições


mais amenas, além de prometer-lhes terra depois da guerra. Aos negros, alforriava-se: o que
também foi um ótimo negócio para os senhores, indenizados ao fornecerem este tipo de
‘voluntário’  aliás, a maioria absoluta dos soldados que fizeram a campanha.”5

O general Queiroz Duarte, com a perspectiva oposta de valorizar o patriotismo da


população ao responder ao decreto do Imperador que criava os corpos de Voluntários da
Pátria, considera sob a categoria de “Recrutamento e Libertos” apenas 8 489 pessoas, num
total de 123 150 soldados mobilizados além do exército de linha.6 Portanto, 6,89% do total.
Robert Conrad estima em 20 000 o número de escravos, incluindo as mulheres dos
soldados, que conseguiram a liberdade com a guerra.7
Richard Graham atesta que não há estimativas sobre o número de escravos que
combateram na guerra. Considera certo, no entanto, que o governo imperial adotou uma
posição em “...que os escravos que lutassem se tomariam livres, mesmo que tivessem
fugido para unir-se às fileiras”.8
O Aviso de 9 de outubro de 1867, do ministro da Guerra, regulando o alistamento
no Município Neutro da Corte, dizia em seu artigo 4º: “O indivíduo apresentado para servir
no Exército será relacionado imediatamente, declarando-se se é recruta, voluntário,
substituto ou liberto...”. Mais adiante, no artigo 10º, explicitava: “Quando for liberto o
indivíduo julgado incapaz para o serviço do Exército, além da nota de que trata o artigo 4 º,
deverá acompanhá-la a carta de sua liberdade, a qual ficará arquivada no quartel-general”.
Pela análise destes trechos do Aviso, infere-se que de fato havia a categoria de liberto para
o ex-escravo apresentado para combater.
Como veremos mais tarde, há referências explícitas de Caxias, em sua
correspondência com o ministro da Guerra, ao “elemento servil” presente nas fileiras do
exército.
No relatório do Ministério da Guerra de 1868, encontramos os seguintes dados
sobre o número de libertos alistados até abril de 1868 (“Mapa dos Libertos que têm
assentado praça desde o começo da guerra”  ver Quadro 1).

QUADRO 1

Da nação 287
Casa Imperial 67
Gratuitos 753

5
J. J. Chiavenatto, Os Voluntários da Pátria e Outros Mitos, op. cit., p. 27.
6
Segundo o general, ao que parece usando como fonte dados dos relatórios do Ministério da Guerra (sua
fonte não fica clara), outros 54 992 combatentes seriam voluntários da Pátria e 59 669, da Guarda Nacional
(op. cit., p. 217, vol. I).
7
Robert Comad, Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ªed.,
1978, p. 96.
8
“Escravatura Brasileira Reexaminada” in Escravidão, Reforma e Imperialismo, São Paulo, Perspectiva, São
Paulo, 1979, p. 37
Conventos 95
Conta do
1 806
governo
Substitutos 889
Total 3897

O quadro é de 23 de abril de 1868 e contêm uma nota dizendo que muitas


províncias ainda não haviam fornecido informações mais recentes, sendo, portanto,
incompleto.
Entretanto, mesmo estando incompleto, é válido comparar esses números com
dados do próprio Ministério sobre o total das forças enviadas ao Paraguai até 15 de maio de
1868. Estas somariam 70 943 soldados (mais tarde analisaremos estes dados com mais
cuidado). Portanto, os escravos representariam 5,49 % do total.
Apesar de o Ministério enviar às autoridades recrutadoras instruções sobre a
classificação dos indivíduos engajados (para o Município Neutro da Corte, como já vimos,
e, mesmo anteriormente, para o conjunto das províncias através da Circular de 2 de outubro
de 1867), é bastante provável que esse número estivessem aquém da realidade. Em mapa
semelhantes ao de que nos utilizamos para obter as informações acima, referente ao período
que vai de 1866 a 26 de abril de 1867, encontramos a seguinte declaração:

“Talvez que o número dos libertos das províncias seja maior que número dado: a
secção porém não pode precisá-lo por falta de participação oficiais”.

Essa impressão dos dados, contudo, não permitem que se considerem que os
números reais alterassem qualitativamente o quadro. Por razões que veremos mais adiante,
acreditamos que os escravos combatentes nunca devem ter ultrapassado 10% do conjunto
das tropas.”
O mapa acima permite uma análise em que ele se mostra mais revelador pelas
categorias de libertos que especifica e sua relação mútua, do que pela precisão estatística.
Os escravos da Nação eram africanos que, entrados legalamente no país, após a
proibição efetiva do tráfico em 1850, haviam sido apreendidos e encontravam-se sob os
cuidados do governo imperial. Representavam 7,36% do conjunto.
Escravos da Casa Imperial (1,17%) e dos Conventos (2,44%) eram doações
particulares destas entidades e, no caso dos primeiros, da família do imperador ao estado
para colaboração no esforço de guerra.
Verificamos que a grande maioria de libertos encontra-se na categoria de Conta do
Governo, 46,34%. Sob este título, estavam os escravos que custaram alguma quantia ao
governo, seja sob a forma de prêmios a seu dono, seja qualquer outro tipo de compra,
indenização ou dispêndio efetuados pelas autoridades. Em lei de 1886, o governo imperial
concedia liberdade aos escravos da nação para que servissem no exército, bem como
estipulava a doação de prêmios honoríficos a particulares que libertassem seus escravos
para combater.9
A segunda maior porcentagem, em seguida, é a Substitutos, 22,81% do total. Estes
eram os que estavam substituindo seus donos, ou parentes destes, nas fileiras.
Provavelmente seu engajamento devia se fazer via corpos da Guarda Nacional.
Os Gratuitos, 19,32%, eram os escravos cedidos espontaneamente por seus donos
como ato patriótico ao esforço de guerra (mais tarde voltaremos a tratar das categorias de
substitutos e gratuitos).
Sob estas categorias finais está o grosso do número de libertos alistados: 89,47% do
total apresentado. Descontando alguns sob a categoria Conta do Governo, que não estariam
sendo cedidos por indenização, mesmo assim encontraríamos uma proporção significativa
de substitutos de um modo geral.
Esse fato significa que, efetivamente, houve uma prática difundida de se mandar o
escravo fazer a guerra de seus senhores. O que discutiremos, nesta e nas seções seguintes, é
em que proporção e com qual peso social isto ocorreu.
Como já dissemos, as estatísticas são precárias, e seguramente o número de
escravos engajados era superior ao dado oficial.
É de se perguntar se tal esforço de mobilização nacional  ao criar uma nova
instituição nacional, o Exército, em parte contraposta à estrutura de poder local da classe
dominante, e que teria profundas repercussões sobre a estrutura social  poderia basear-se
no uso maciço da população escrava como fonte de soldados. Tal fato, se verdadeiro,
abalaria a própria essência do poder escravista. Como amar e treinar militarmente escravos
em tal escala sem temer pelo tipo de reação que poderia advir da população cativa? Como
recrutar esses escravos como soldados e ao mesmo tempo difundir a ideologia do
Voluntário da Pátria que, por menor divulgação que tivesse, significava reconhecer no
escravo o cidadão, o defensor da Pátria, o herói nacional? Como desmobilizar tal exército
ao final do conflito sem causar o perigo da ruptura social?
O gabinete liberal de Zacarias de Góes chegou a discutir a eventualidade do
emprego maciço de escravos nas forças combatentes para fazer face às dificuldades do
recrutamento. Nabuco de Araújo defendeu o engajamento dos escravos urbanos no
exército, já que poderiam ser facilmente substituídos por braços livres em suas atividades
econômicas. Entretanto, assim como no caso das autoridades confederadas no final da
guerra civil americana, esta hipótese não foi levada a diante em esca1a considerável.10
Também do ponto de vista econômico, o argumento que considera a maioria da
tropa combatente composta por escravos não se sustenta. Em 1864 ( ano do início da
guerra), a população servil já era minoritária se considerarmos o conjunto da população

9
Cf. Paula Beiguelman, “O Encaminhamento Político da Questão da Escravidão no Império”. In História da
Civilização Brasileira, op. cit., tomo II, vol. 3, p. 206.
10
Conferir Joaquim Nabuco, La Guerra del Paraguay, pp.165 e segs., par a a discussão do gabinete , e pp.
214 e segs. para as posições de Nabuco de Araújo. Sobre os Estados Unidos, cf. Eugene Genovese, A Terra
Prometida, I, pp. 209 e segs.
brasileira. Depois da proibição efetiva do tráfico externo de mão-de-obra escrava (1850) a
população escrava era francamente  e aceleradamente  declinante em relação à população
livre. Em 1872 (data do primeiro censo oficial), logo após o fim do conflito, os escravos
eram 1 500 000 numa população de 10 000 000 de habitantes em números redondos. Por
sua vez, desde a extinção do tráfico, o preço do escravo vinha subindo no mercado. Entre
1850 (abolição do tráfico) e 1870, o preço de um escravo passou aproximadamente de
1:000$000 para um valor entre 2 e 3:000$000.
Diferentemente do que ocorrera no Sul dos Estados Unidos, a população escrava no
Brasil não tinha um índice positivo de crescimento vegetativo. Este fato era devido às
péssimas condições de vida e trabalho e a incidência de epidemias em seu seio. A extinção
do tráfico externo de mão-de-obra servil acarretou alguma melhoria nas condições de vida
dos escravos, contudo sem reverter o quadro geral de taxa negativa de crescimento dessa
população.11
Portanto, foi a extinção efetiva do tráfico de escravos e não a guerra do Paraguai
(como analisa Chiavenatto em O Negro no Brasil) a grande responsável pelo declínio
acentuado da população escrava a partir da segunda metade do século.
Em 1864, quatorze anos após a extinção do tráfico e em pleno período de expansão
da lavoura escravista cafeeira do vale do Paraíba, a maioria da população escrava estava
concentrada nas áreas rurais cafeeiras,12 ou seja, em emprego produtivo no setor principal
da economia. (Havia ainda um número relativamente grande de escravos empregados nas
charqueadas do Rio Grande do Sul.) É de se divulgar que a classe dominante escravista
abrisse mão desse contingente de mão-de-obra para seu emprego na guerra.
Havia, de fato, aqueles que buscavam alguma compensação econômica pela
apresentação do escravo para o serviço militar. Quase metade (46,34 %) do total de libertos
engajados até 1868 (ver Quadro 1) poderia estar nesta categoria. É pouco provável, no
entanto, que essa compensação fosse, via de regra, superior aos ganhos possíveis com a
venda do escravo para o mercado interno, em franca expansão.
É possível que nesses casos se encontrassem muitas apresentações de escravos que,
por problemas de saúde ou de idade, não teriam bons preços no mercado. Não se deve
esquecer, no entanto, que, por menor que tenha sido, havia algum rigor por parte das
autoridades recrutadoras (conferir mais adiante o texto dos decretos regulamentando o
recrutamento e alistamento).
A compensação financeira pela apresentação do escravo tem mais sentido quando
nos lembramos de que, além de portador de força de trabalho, o escravo representava, para
seu senhor, um bem, um patrimônio. Mesmo disposto a apresentar seu escravo para
combater  e assim perder o direito de uso de sua forca de trabalho , é razoável supor que
o senhor achasse natural algum tipo de compensação pela perda de seu patrimônio e ainda
assim considerasse estar praticando um ato patriótico.

11
Conferir Robert Conrad, Os Últimos Anos da Escravidão no Brasil, op. cit.
12
Os escravos eram em 1872 15,8% da população total do país. Estavam concentrados nas províncias do Rio
de Janeiro (39,7% da população total da província), Minas Gerais (21% do total), São Paulo (20%) e Rio
Grande do Sul (15,9%)  Emília Viotti da Costa, A Ablição, op. cit.
Não se pode considerar seriamente que os senhores tivessem que, em larga escala,
abrir mão de seus escravos para substituir filhos e parentes mais próximos, de outra forma
obrigados a apresentar-se ao exército. Eles obviamente controlavam as próprias autoridades
recrutadoras locais e não tinham por que convergir sobre sua própria classe o processo
mobilizador.
De fato, como vimos pelo Quadro 1, houve senhores que substituíram sua
contribuição ao esforço bélico pela apresentação de escravos para o exército (22,81 %). A
substituição do alistamento militar por um escravo pode ter-se dado por parte daqueles que
dispunham de pouca influência sobre autoridades locais (alistar os inimigos na Guarda
Nacional era uma boa arma de manipulação política na época). A falta de recursos e meios
materiais para conseguir um substituto também pode ter concorrido para o envio de
escravos. O patriotismo de senhores, exercido pela apresentação de seu substituto (como já
dissemos, o fato não era moralmente condenável), também era um fator para o engajamento
de escravos. Finalmente, a apresentação de um escravo em seu próprio lugar podia também
significar o modo mais barato de se conseguir um substituto, particularmente quando os
escravos apresentados tivessem baixo valor no mercado.
É bom lembrar que a prática de se apresentar um substituto para o serviço militar,
principalmente na Guarda Nacional, era relativamente comum na época (e não apenas no
Brasil). O substituto, inclusive, não precisaria ser necessariamente um escravo. Cidadãos
livres, em troca de vantagens, favores e compensação financeira, aceitavam apresentar-se
como substitutos de outros cidadãos.
Por último, havia a apresentação pura e simples de escravos para o serviço militar,
sem exigência de qualquer indenização. Nas circunstâncias morais e ideológicas de então,
tal fato, era mais uma demonstração de patriotismo e lealdade ao governo imperial, que
uma contribuição compulsória. Não deve, entretanto, ter-se expandido de forma completa
no seio da classe dominante. Lembramos que no quadro analisado os gratuitos constituíam
19,32% do total, um número expressivo, ainda que longe de ser o maior contingente
apresentado.
O pequeno proprietário de escravos de ganho também não deve ter sido muito
atingido pelo processo de recrutamento, já que a maioria da população servil deslocava -se
crescentemente para as áreas rurais produtoras e a propriedade escravista urbana estava em
declínio. Além disso, o dono de escravos de ganho tinha um mínimo de posses e poder de
influência que lhe permitiam passar ao largo da mobilização compulsória, já que, como
veremos, havia gente “menos importante” a ser recrutada. O fato de que estes proprietários
concentravam-se nas cidades dificultava seu alistamento por motivos de perseguição
política (estratagema mais utilizado nas áreas rurais).
Buscaremos analisar agora, de um ponto de vista mais amplo, as condicionantes de
ordem econômica que balizavam o recrutamento de escravos. Para tal citaremos os
exemplos das províncias do Rio Grande do Sul e da Bahia, seja por sua contribuição em
termos de material humano no processo mobilizatório, seja pelas diferenças entre as duas
províncias.
No caso do Rio Grande, o exame mais detalhado de alguns dados é significativo.
Foi a província que mais contribuiu, em termos de material humano, para o esforço de
guerra. Segundo dados do general Queiroz Duarte, 33 803 soldados, de um total de 135 580
que fizeram a guerra, eram dessa província.13 Em 1863, a população escrava do Rio Grande
era de 77 419 pessoas e a população livre, 315 306; em 1872, dois anos após o término do
conflito, 67 791 pessoas eram escravas para 367 022 livres. Cabe ressaltar que é a partir de
1865 e, especialmente, de 1870, que, devido à escassez geral de mão-de-obra escrava
provocada pela extinção do tráfico, houve um grande fluxo de exportação de escravos para
o setor produtivo principal da economia escravista nas províncias cafeeiras.
Parece pouco provável que a maioria dos soldados fosse proveniente da população
cativa. Em primeiro lugar, para que isso fosse verdade, bem mais que a metade da
população escrava masculina adulta da província teria que ter sido recrutada, o que não é
plausível. Em segundo lugar, no período imediatamente anterior a guerra, a exportação de
charque passou de 1 932 700 arrobas (1863-64) para 2 395 818 (1864-65). Portanto, os
senhores de escravos estariam liberando mão-de-obra exatamente num momento de
expansão econômica. Segundo Fernando Henrique Cardoso,14 a escassez de mão-de-obra
era uma característica constante a charqueada riograndense.
Esse autor aponta ainda que, ao mesmo tempo, havia na província uma população
livre numerosa e ociosa, não utilizada por razões de ordem psicossocial inerentes à
formação social escravista. O trabalho era visto como um atributo oposto ao da liberdade:
para o senhor, o trabalho escravo aparecia como a única forma de trabalho possível; para a
população livre, não desempenhar a mesma função que escravos era uma prova e um
símbolo de sua liberdade. Era certamente essa camada da população que fornecia os
elementos necessários às forças armadas.
Mesmo se considerarmos que o Rio Grande, por sua posição fronteiriça, guardava
especificidade em termos de sua organização militar, a situação não deve ter sido diferente
nas outras províncias.
A Bahia foi a segunda província a mais contribuir em termos de soldados para a
guerra. Fizeram a campanha 15 197 baianos, quase a metade do contingente riograndense.
Depois de Minas Gerais, essa era a província mais populosa do país. Em 1867, sua
população total era de 1 500 000 pessoas, segundo Katia de Queiroz Mattoso e Johildo de
Athayde.15 Aproximadamente 200 000 deveriam ser escravos (no censo oficial de 1872,
eram 173 639), cerca de 13% da população total. Sabendo-se que a economia não estava
organizada à base da utilização em larga escala do trabalhador livre, é fácil verificar que
havia um grande contingente populacional disponível para o recrutamento.
Isso é tão mais verdadeiro se considerarmos que o escravo como patrimônio estava
longe de ser um bem desvalorizado, do qual se pudesse abrir mão. Já mencionamos que,
após a extinção do tráfico africano, a economia cafeeira do vale do Paraíba passou a
importar escravos das demais regiões do país. Em 1853, o governo da Bahia cobrava uma
taxa de 80$000 por escravo que saísse da província. Em 1862, essa taxa passou para

13
General Paulo de Queiroz Duarte, op. cit., vol. 1, pp. 217-218.
14
Femando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977, 2ª ed.
15
“Epidemias e Flutuações de Preços na Bahia no Século XIX”, in L’Histoire Quantitative du Brésil de 1800
à 1930, Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, 1973.
200$000, numa tentativa de melhorar as finanças públicas e diminuir o fluxo de escravos
exportados, o que trazia conseqüências para o sistema produtivo local.
Assim, também no caso baiano, a indicação é de que os escravos não constituíram a
maioria do contingente enviado ao Paraguai.
Há autores, entre eles Richard Graham e Emília Viotti da Costa, que consideram a
possibilidade de escravos terem fugido e se apresentado para lutar na guerra. Havia, de fato,
escravos que se apresentavam como voluntários para a guerra como meio de obter a
liberdade do cativeiro?
Pela análise do Aviso de 9 de outubro de 1867, acima citado, infere-se que os
escravos apresentados às juntas recrutadoras deveriam vir acompanhados de sua carta de
liberdade. As leis e decretos que regulavam a apresentação e o recrutamento de voluntários
não tinham, entretanto, dispositivos explícitos no sentido de pedir a carta de alforria dos
indivíduos que se apresentassem espontaneamente como voluntários para, dessa maneira,
controlar o afluxo de escravos para as fileiras do exército.
Por outro lado, a legislação e a prática comuns já eram suficientemente rígidas para
impedir, ou pelo menos dificultar, tal fato. É de se supor que as autoridades não se
mostrassem desejosas de criar problemas e incidentes envolvendo senhores e seus escravos.
Havia ainda todo o cerceamento à liberdade de movimentação dos escravos como fator de
impedimento para sua apresentação como voluntários por vontade própria. Portanto, se é
possível que houvesse escravos que buscassem sua liberdade através de sua apresentação
como voluntários, este fato não deve ter sido generalizado.
O escravo soldado, voluntário de fato, oferta patriótica de seu senhor, substituto,
africano sob custódia do governo, foi uma realidade. Se sua presença não foi majoritária
nos efetivos militares, foi marcante e significativa. Analisando a influência da guerra do
Paraguai sobre a população escrava e a estrutura social e de poder características do
escravismo no Brasil da segunda metade do século XIX, importa menos a proporção e mais
os desdobramentos resultantes de sua existência.
Paradoxalmente, ser apresentado ou apresentar-se como voluntário era uma forma
de garantir  e até mesmo, quando o conflito terminou e ocorreu a volta ao Brasil, legitimar
 o abandono da condição servil. Já nos referimos aos conflitos que surgiram quando
senhores de escravos tentaram readquirir o direito de propriedade sobre escravos fugidos
que haviam participado da guerra.
Se compararmos a apresentação voluntária do escravo para combater com a sua
cessão por seu senhor para o exército, é fácil perceber que, no primeiro caso, as
conseqüências sobre o tecido social foram muito mais importantes e críticas ao direito de
propriedade escravista. Entretanto, a guerra igualou essas duas categorias como Voluntários
da Pátria, patriotas que mereciam o respeito da sociedade, terminado o conflito. Os que até
então eram expatriados, foram alçados, mesmo que simbolicamente, à categoria de
Voluntários da Pátria, em idêntica condição à do primeiro voluntário da nação, o
imperador.
Não havia como distinguir o voluntário de fato do voluntário apresentado, do
substituto. A ideologia que, nos anos de mobilização e combate, os havia igualado e
valorizado socialmente não podia ser simplesmente engavetada. A legalidade parlamentar
do Império, sua capa civilizada, sua liberdade de imprensa e seus padrões políticos
europeus não eram simplesmente para inglês ver, mas também para a própria classe
dominante e os grupos sociais subalternos verem. Nesse sentido é que a presença do
escravo como Voluntário da Pátria e Herói Nacional, assim mesmo, com as maiúsculas que
o respeito da época lhes conferia, contribui para minar a estrutura social escravista, ao ser
uma manifestação da contradição entre a estrutura político-jurídica liberal do Império e sua
base escravocrata.
A participação de escravos no exército garantiu, pelo menos à parcela da população
servil envolvida, algum tipo de reconhecimento e mesmo um lugar de interlocução. Sua
incorporação num projeto de realização hegemônica da Coroa e da classe dominante
implicava necessariamente assimilar alguns de seus próprios interesses a esse projeto.
Assim é que a alforria do escravo combatente tinha dois lados: encobrir o fato de a
civilização escravista fundar parte de sua glória dos campos de batalha num segmento da
população não reconhecido como portador de seus padrões culturais e morais e, ao mesmo
tempo, incorporar e atender um interesse imediato desses setores, a liberdade.
Nesse duplo movimento, havia o reconhecimento de uma contradição, de um
conflito de interesses, sobre a qual se fundava todo o projeto de sociedade imperial, que
tinha na instituição militar um desfecho oposto àquele que caracterizava a situação da
massa da população escrava no conjunto da sociedade.
Essa contradição, é claro, não se fez aparente, e restringiu seus efeitos àqueles que
diretamente nela estiveram envolvidos, os antigos combatentes e seus familiares.
Uma interessante litografia de Angelo Agostini, sob o título “De volta do Paraguai”,
mostra um soldado que, no retorno para casa, vê horrorizado sua mãe, no tronco, sendo
chicoteada por um feitor. A ilustração traz ainda a seguinte legenda:

“Cheio de glória, coberto de louros, depois de ter derramado seu sangue em defesa da
pátria e libertado um povo da escravidão, o voluntário volta ao seu país natal para ver sua
mãe amarrada a um tronco!
Horrível realidade!...”.16

A visão do artista expressava claramente, através da imprensa, a contradição


causada pelo acesso de escravos  ou mesmo, como veremos em seguida, de negros e
mulatos livres , em escala ampliada, a um direito e um dever da cidadania.
Para boa parte da população escrava, os anos que se seguiram ao término da guerra
foram marcados pelas fugas e rebeliões, mas também pela tentativa de adquirir direitos de
cidadania. Esse fato ganhou peso quando, nos anos de recrudescimento do abolicionismo,
sua ala mais radical buscou relacionar o fim da escravidão com a obtenção ou ampliação de
direitos dos antigos escravos. Essa ampliação de direitos, por sua vez, só poderia ser efetiva
com a quebra do poder econômico, social e político da classe dominante escravista e
mesmo de todos os grandes proprietários de terra. Esse tipo de solução radical para a

16
Em Vida fluminense, de 11.6.1870, Biblioteca Nacional.
questão da escravidão só poderia ser obtido com a colaboração e a participação ativa da
população escrava no movimento.
Mais importante, contudo, é que essa tendência só pode aflorar e ter significado e
peso por refletir a pressão da emergência das rebeliões, fugas e demais formas de
manifestação dos próprios escravos. As rebeliões, fugas, resistências ao trabalho,
assassinatos, depredações empreendidas por escravos eram tão velhas como a própria
escravidão no Brasil. A novidade é que, a partir da década de 70, elas não só se
intensificaram, como também adquiriram um caráter crescentemente participativo:
deixaram de ser tentativas de evasão do cativeiro e do corpo social, para ganhar um
contorno de busca de direitos, de mudança da própria sociedade. Neste sentido, o Brasil do
abolicionismo era um país mergulhado em profunda crise social, política e moral. Somente
um quadro de tal gravidade  de possível ruptura de toda a ordem social, política e jurídica
 e que pode explicar o ato da abolição como um meio de esvaziar o movimento montante
por transformações no regime de propriedade e na conquista de direitos efetivos pela
grande massa da população.
A participação de escravos e negros nas fileiras do exército na luta contra o
Paraguai foi um dos elementos concretos que deflagraram essa crise, e, como tal, teve
presença constante na temática e no ideário do abolicionismo.17
De qualquer forma  e principalmente em combinação com os fatores que veremos
a seguir , a presença de escravos no exército nacional contribuiu para que a escravidão
fosse colocada como tema de debate na sociedade brasileira a partir da década de 70 do
século XIX.
Especificamente, a presença de escravos, já então livres, combatentes em uma
instituição que teve peso político decisivo no pós-guerra, o exército nacional  e este é
nosso tema de interesse principal , teve conseqüências profundas sobre o processo de crise
e derrubada do Império.

O exército e as camadas populares livres

Já ficou claro que havia um grande contingente populacional livre, não utilizado no
setor principal da produção, sem grande poder de barganha política e social e,
conseqüentemente, disponível para ser recrutado. O fato de essa população ser
majoritariamente negra ou mestiça não permite considerar que ela fosse escrava (distorção
e preconceito compreensíveis, utilizados pelos paraguaios como parte da guerra moral e
psicológica). Sutilmente, a própria ideologia escravista produzia a conclusão racista de que
quem era livre era branco e quem era escravo  e trabalhava  era negro. O trabalho era
desqualificado e a cor, estigmatizada. Herbert S. Klein, em trabalho que aborda a
escravidão na América Latina e Caribe, afirma que o Brasil, entre os países escravistas da

17
Sobre a mudança de caráter dos movimentos de rebelião das populações escravas na América, ver Eugene
Genovese, From Rebellion to Revolution. Sobre as repercussões da participação de escravos na guerra e o
abolicionismo, ver Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949, em
especial, pp. 52 e segs.
região, era o que tinha maior contingente de população de negros livres. Já em 1800, estes
seriam mais numerosos que a população negra escrava. Em 1872 havia 4 200 000 negros ou
mulatos livres para 1 500 000 escravos e 3 800 000 brancos livres.18 Pela tradição brasileira
de utilizar a cor da pele como elemento de discriminação racial e mestiçagem, não é
absurdo considerar que o número de negros de fato devia ser muito maior entre a população
livre.
Sem levar em consideração essas características específicas da evolução da
população negra no Brasil, Chiavenatto considera que “... em 1850 havia uma população de
cinco milhões e meio de habitantes livres brancos contra dois milhões e meio de negros
escravos; essa proporção não mudou significativamente até a guerra...”.19 Depois de
analisar a composição racial das tropas, segundo testemunhos europeus, de um branco para
45 negros, Chiavenatto chega à conclusão de que até 1872 a população branca havia
crescido 60% e a negra declinado outros 60%, e considera o número de perdas na guerra do
Paraguai o grande responsável por este fenômeno. Fica claro que Chiavenatto confunde
branco com livre e negro com escravo, o que o leva a essa incrível conclusão.
Em 1822, a população livre brasileira já era mais numerosa que a população
escrava: aproximadamente dois milhões livres contra um milhão de escravos, segundo
Emília Viotti da Costa.20 A expansão cafeeira do vale do Paraíba incrementou a importação
de escravos africanos, apesar de toda a pressão inglesa para a abolição do tráfico. Em 1872,
a população cativa era de 1 548 632, segundo o primeiro censo nacional. Havia, portanto,
aumentado em 50% em relação a 1822. Como já vimos, a taxa de crescimento natural da
população escrava no Brasil era negativa, seja devido aos maus-tratos e às epidemias
freqüentes, seja devido ao fato de que, provavelmente, eram importados muito mais
homens que mulheres.
A população livre, no entanto, crescia a uma taxa alta: de cerca de dois a dois
milhões e meio, em 1822, para 9 930 500 em 1872. Uma larga parcela dessa população
livre era negra ou mestiça. Esses setores da população estavam dispersos em algumas
atividades urbanas de pequena monta e também no campo, dedicando-se a culturas de
subsistência e tarefas secundárias ao sistema produtivo escravista, que envolviam risco
físico e que poderiam resultar em prejuízo pela perda ou mutilação do escravo (a limpeza
de terrenos e a derrubada das matas, por exemplo).
Já nos referimos anteriormente à forma pela qual a sociedade escravista considerava
o trabalho, como algo que, atributo do escravo, era depreciativo da condição de ser livre.
Essa mentalidade afetava tanto os senhores como os setores livres das camadas mais baixas
da população. Os estudos específicos sobre a transição do trabalho escravo para o trabalho
livre21 demonstram a enorme dificuldade, praticamente a impossibilidade, de os senhores se
utilizarem do contingente de mão-de-obra livre no setor dinâmico da economia. Não havia
uma solução de mercado (no sentido de mercado capitalista) para o problema da mão-de-
obra, ainda que faltassem braços para a lavoura. Não se tratava, entretanto, de uma questão

18
Herbert S. Klein, A Escravidão Africana na América Latina e no Caribe, cf. p.242.
19
J. J. Chiavenatto, Genocídio Americano: A Guerra do paraguai, op. cit., p. 117.
20
Emília Viotti da Costa, A Abolição, pp. 52 e segs.
21
Emília Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia; Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no
Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul; Octávio Ianni, As
Metamorfoses do Escravo: Apogeu e Crise da Escravatura no Brasil Meridional, entre outro.
apenas da mentalidade escravista dos proprietários de terra. Mesmo os produtores de café
não escravistas do Oeste paulista não tinham acesso a esse manancial de força de trabalho;
a solução para seu problema de mão-de-obra foi a imigração européia.
A população livre de baixa extração social era marginal economicamente ao sistema
escravista dominante. A contrapartida ideológica e política desse fato era sua exclusão
institucional: eles não votavam nem eram votados, não tinham acesso à cultura européia
predominante, eram analfabetos e sequer tinham noção do funcionamento e significado do
aparato institucional construído no país. Principalmente nas áreas rurais, estavam
subordinados social, política e ideologicamente aos grandes proprietários através de laços
de mandonismo e dependência pessoal.
Nas cidades, formavam uma multidão de prestadores de pequenos serviços,
biscateiros, pequenos comerciantes e artesãos, desocupados, vagabundos e mendigos,
marginalizados do processo produtivo principal e do sistema administrativo. Social e
politicamente, constituíam a turba,22 participantes das comoções sociais urbanas e sempre
atentos a alterações bruscas em seu padrão de vida. Um bom retrato desses setores sociais
pode ser buscado em O Cortiço, de Aluízio de Azevedo.
Tradicionalmente, era nessas camadas da população que se efetuava o recrutamento
para as forças militares. Este era visto como uma degradação social: o indivíduo recrutado
era considerado uma espécie de pária na sociedade. Os métodos de alistamento eram brutais
e diretos, sendo os recrutas literalmente capturados para o serviço militar; a coerção e o
castigo físicos eram assumidamente os meios de manutenção da disciplina e da ordem na
corporação militar.
Nos conflitos anteriores, a mobilização compulsória desses setores da população
pode ser efetuada em escala local e regional, sem envolver grandes campanhas patrióticas e
outras formas de emulação e reconhecimento sociais. O poder local e os laços de
dependência permitiam a utilização desse contingente para fins militares sem que fossem
necessários outros meios de arregimentação, organização e emulação.
Ao desencadear uma campanha nacional de mobilização popular  mesmo que
forçada, tratava-se de uma campanha, principalmente no que diz respeito ao valor social e
moral que lhe foi atribuído  e ser obrigado a praticamente criar uma nova instituição, que

22
A turba é tipicamente um fenômeno pré-capitalista, característico de uma sociedade não integrada pelo
mercado econômico e pelos meios de comunicação, pelas organizações de massa e pelos canais institucionais
de expressão da cidadania. O fenômeno não se verificou apenas na periferia do sistema (onde perdura e
sobrevive até os nossos dias), mas também ocorreu no período de transição para o capitalismo nos países
centrais. A esse respeito, é interessante consultar A. P. Thompson (A Formação da Classe Operária Inglesa),
que desvenda a pré-história das massas organizadas. A incorporação desses setores sociais ao mercado de
trabalho ou a uma organização social normativa e abrangente, capitalista, gerou conflitos e resistências. A
participação das massas em revoltas urbanas, e mesmo em áreas rurais, no período final do Império e nos
primeiros anos da República: Levante dos Marimbondos, 1852, Arruaças do Quebra-Quilo, em 1874-75,
Manifestações contra o Vintém, 1880, Revolta da Vacina Obrigatória, 1904, foram sinais claros de quanto
esses setores da população eram “marginais”, isto é, não integrados aos mecanismos institucionais
dominantes. Nestes casos, trata-se de movimentos que enxergavam na ação regularizadora do Estado formas
disfarçadas de aumento de impostos e, portanto, de lesar seus interesses imediatos. Havia, ainda, a
participação das massas em manifestações de solidariedade a líderes políticos ou de desagravo da honra
nacional, como no caso da questão Christie, com a Inglaterra. Para os primeiros anos do regime republicano,
conferir José Murilo de Carvalho, Os Bestializados.
por sua natureza valorizava esse contingente da população, o decreto que criou os corpos de
Voluntários da Pátria abriu espaços para a população livre. Espaços que a natureza da
sociedade escravista brasileira não pôde suportar sem grandes abalos.
Como veremos quando o analisarmos mais detidamente, o chamamento dos
Voluntários da Pátria, pelo decreto de janeiro de 1865, mesmo quando não significou o
engajamento direto de indivíduos, representou um esforço de mobilização. Foram muitos os
oferecimentos de serviços e quantias em dinheiro. Desses oferecimentos, não poucos eram
feitos por pessoas das camadas mais baixas da população, em especial pequenos
funcionários.
Dentro das condições sociais da sociedade escravista brasileira, quase que
absolutamente excludente social e politicamente em relação a esses setores da população,
nunca havia sido necessária sua mobilização nacional. Daí a importância da guerra do
Paraguai.
A mobilização ampla desses setores para o esforço nacional que foi a guerra
obviamente não significou seu acesso aos direitos plenos da cidadania.23 Entretanto, foi
seguramente um fator importante na desmoralização institucional do Império, ao entrar em
contradição com as bases excludentes de sustentação social do regime. Tanto mais quando
percebemos que as fronteiras sociais e raciais entre esses setores e a massa dos escravos
eram tênues ou mesmo inexistentes, havendo, além dos vínculos raciais, os de parentesco.
Não havia aqui o tipo de identidade que unia os “brancos e livres” em contra posição aos
“negros e escravos” do Sul dos Estados Unidos. Segundo Nelson Werneck Sodré,
comentando os efeitos da guerra do Paraguai sobre a composição social do exército, a
convocação dos Voluntários da Pátria.

“... faria acorrer às fileiras milhares de cidadãos que, nas condições anteriores, teriam
sem dúvida se eximido do serviço. Essa composição seria afetada também pelo ingresso de
libertos e de escravos, em grande número: a maioria da tropa regular que combateu no
exterior era constituída por negros; depois de carregar o fardo do trabalho, carregariam o
fardo da guerra. Mas voltariam ao país com novo espírito, com capacidade muito mais ampla
de analisar a sociedade escravista brasileira”.24

O governo imperial e a classe dominante foram capazes de mobilizar as camadas


populares no aspecto coercitivo desta necessidade nacional por eles mesmos criada; não
tiveram, entretanto, condições de incorporá-las a um projeto político de manutenção da
ordem vigente que perdurasse depois de terminado o conflito. Mesmo todas as iniciativas
reformistas da Coroa, a partir da década de 70, mostraram-se tímidas ante a magnitude da
crise da sociedade escravista. Ao se mostrarem incapazes de se antecipar e dirigir as novas
demandas sociais, deixaram nua e exposta a natureza real da sociedade escravista brasileira.

23
Direito que mesmo nos nossos dias está muitíssimo longe de ser conquistado
24
Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 143. Nesse sentido, a mobilização dos setores populares livres também
contribuiu para que a questão da escravidão se tornasse tema nacional .
Os Voluntários da Pátria

Para fazer face aos acontecimentos no Sul do país, o governo imperial emitiu o
decreto que criava os corpos de Voluntários da Pátria (7 de janeiro de 1865). Este oferecia
uma série de vantagens àqueles que se apresentassem como voluntários:

“Art. 2º Os voluntários que não forem Guardas Nacionais, terão, além do soldo que
recebem os voluntários do Exército, mais 300 réis diários e a gratificação de 300$000,
quando derem baixa, e prazo de terra de 22 500 braças quadradas nas colônias militares ou
agrícolas, além de outras honrarias militares e pensão por invalidez ou morte.
Art. 3º Os Guardas Nacionais, praças de pré, que se apresentarem, serão alistados na
primeira linha com as mesmas vantagens do artigo 2º, passando nos postos que tiverem nos
Corpos da mesma Guarda, a que pertencem.”
“Art. 9º Os Voluntários terão direito aos empregos públicos de preferência, em
igualdade de habilitações, a quaisquer outros indivíduos”.

Portanto, o decreto era uma tentativa de efetivamente motivar o povo a participar do


esforço de guerra, seja através do incentivo ao voluntariado, seja através de recompensas
àqueles que viessem a participar do conflito. Ao criar uma nova forma de organização
militar em detrimento dos corpos da Guarda Nacional e dos batalhões de linha do exército
regular, o governo imperial reconhecia moral e socialmente a necessidade de recorrer às
energias populares. Já não era suficiente apenas recrutar compulsoriamente o cidadão
pobre, como até então ocorria. Ser soldado do exército deixava de ser uma humilhação e
um castigo para ser um ato de patriotismo.
A formação do corpos de Voluntários da Pátria, entretanto, não atendeu totalmente
às necessidades de mobilização. A Guarda Nacional, a instituição militar com maior
tradição de organização no país, foi, então, chamada a prestar seu concurso.
Logo houve uma certa confusão entre corpos de Voluntários da Pátria e corpos da
Guarda Nacional destacados, isto é, designados para o serviço no exterior. Em agosto de
1865, foram emitidos decretos do governo imperial estendendo as vantagens conferidas aos
corpos de Voluntários àqueles da Guarda Nacional que tivessem se apresentado para servir.
Durante a guerra, apenas os corpos de cavalaria do Rio Grande do Sul mantiveram a
designação de corpos da Guarda Nacional. Com exceção dos batalhões de linha (já
pertencentes ao exército antes da declaração do conflito), os demais corpos, compondo
cerca de 75% do efetivo combatente, eram de Voluntários da Pátria.
O general Queiroz Duarte considera que o grosso dos batalhões de Voluntários da
Pátria foi constituído a partir dos corpos da Guarda Nacional e, em menor escala, a partir
dos corpos de polícia provinciais. O serviço na Guarda Nacional não era voluntário,
estando a ele obrigados todos os cidadãos cujas rendas familiares superassem 200$000, o
que não era muito. Havia, é claro, uma lista enorme de profissões e categorias dispensadas,
formando a segunda linha, como funcionários públicos, advogados, médicos e os que
estivessem no exército regular.
Entre oficiais da reserva, policiais, membros da Guarda Nacional, simples cidadãos
e escravos... quantos acorreram ao chamado patriótico?
Ao que tudo indica, houve, logo após a emissão do decreto, uma pequena onda de
voluntariado, principalmente nos meios estudantis e em setores da população urbana. O
general Queiroz Duarte cita um discurso do ministro da Guerra na abertura dos trabalhos da
Assembléia Legislativa de 1866 em que ele calcula em 10 000 o número de voluntários que
responderam ao decreto. Mais adiante o ministro diz que, por essa razão, “... suspendeu-se
o recrutamento na Corte e em muitos lugares, e ultimamente expediram-se ordens
dispensando os recrutadores, em todas as províncias, porque o Governo julga desnecessário
coagir pessoa alguma para tomar parte na defesa do Império...”.25 No próprio discurso do
ministro fica claro que não havia uma distinção rígida entre voluntariado espontâneo e
forçado.
Nos Relatórios da Repartição dos Negócios da Guerra, dos anos de 1865 e 1866, são
apresentadas listas de oferecimentos de particulares ao governo para o esforço de guerra
(“Relação dos oferecimentos feitos ao governo para as urgências da guerra” e “Relação dos
donativos feitos ao Estado para as despesas de guerra bem como para a aquisição de
voluntários da pátria” , respectivamente). Com base nas informações do Relatório de 1866,
já que ele engloba aquelas contidas no relatório anterior, ao se referir aos oferecimentos
feitos desde o início da guerra até abril de 1866, elaboramos o Quadro 2.

QUADRO 2

Voluntários da Pátria 1
31
Doações* 8
77
Serviços** 4
6
Voluntariado individual de 9
militares
da reserva e da Guarda
Nacional
Voluntariado de corpos da 8
Guarda
Nacional e da polícia
Oferecimento de familiares 1
0
Oferecimento de não 7

25
General Paulo de Queiroz Duarte, op. cit., voI. 1, p. 205. Ver Relatório da Repartição dos Negócios da
Guerra (Relatório do Ministério da Guerra), ano de 1866 (data de publicação). No texto, usamos
indistintamente as designações de Ministério da Guerra e Repartição dos Negócios da Guerra.
familiares até dez 1
Envio de voluntários*** 5
30
Alforrias 9
Substituições 3

Fonte: Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra, 1865 e 1866.


* Em dinheiro, em espécie, prêmios aos que se apresentavam como voluntários,
confecção de fardas, parcelas do ordenado, oferecimento para sustentar famílias de
voluntários, armar e vestir determinado número de voluntários. Não estão computadas as
doações de voluntários que abriam mão de seus prêmios.
** Oferecimento de transporte para os voluntários, serviços pessoais, servir em
guarnições no país.
*** Por instituições governamentais, sociedades patrióticas, em qualquer quantidade,
ou particulares, quando acima de dez. São 28 remessas, totalizando 530 voluntários enviados.

Como Voluntários da Pátria, estamos considerando aqueles que comprovadamente


se apresentaram espontaneamente para o serviço militar.
Foram casos como o de “Francisco José Lemos Magalhães, que encarregado como
mestre de obras na nova matriz de S. Antônio da Jocatinga  ofereceu-se para tomar parte
na guerra atual como voluntário da pátria”, na Corte. Houve ainda oferecimentos em
pequenos grupos: “Eustaquio da Costa Rezende, Jacintho Borges de Sampaio Junior e
Paulino Genaro Rezende  ofereceram-se para servir como voluntários da pátria”.26
Muitos dos voluntários que se apresentaram, por sua vez, abriam mão de seus
prêmios em dinheiro e/ou dos lotes de terra dados pelo governo.
Na categoria de Doações, estão incluídos oferecimentos entre 2$000 e 5:000$000. A
distância entre a maior e a menor das doações mostra que elas eram feitas por altos
magistrados, fazendeiros e também por professores; pequenos comerciantes, artesãos e
outros.
Houve aqueles que ofereceriam prêmios aos que se apresentassem como
Voluntários da Pátria. Um cidadão, por exemplo, dava sua contribuição: “Oferecendo a
quantia de 2:000$000, para ser distribuída a dez Guardas Nacionais que se apresentarem
como Voluntários da Pátria da Freguesia do Turvo, apresentaram-se somente quatro, aos
quais deu 800$000, ficando por saldo a quantia de 1:200$000, que a dá para as urgências do
Estado”.
Muitos se ofereciam para custear despesas de vestuário de voluntários da Pátria,
pagar pensões, pagar despesas com o transporte de soldados, armar um número
determinado de praças.

26
As citações que se seguem foram extraídas dos Relatórios da Repartição dos Negócios da Guerra de 1865 e
1866, nos itens acima mencionados.
Alguns oferecimentos eram de sociedades patrióticas, como o da “... Sociedade
Amor à Pátria, estabelecida na cidade de Pitangui”, que “ofereceu a quantia de
2:110$000...”, em Minas Gerais.
Funcionários públicos e outros profissionais abriam mão de parte ou da totalidade
de vencimentos por prazo determinado, ou pelo período de duração da guerra: “João
Marcelino da Silveira, professor jubilado de primeiras letras  Ofereceu-se para substituir o
professor de primeiras letras da vila do Currumpu, capitão Francisco Manoel da Cunha
Junior, que segue como voluntário, cedendo os vencimentos que perceber por esse trabalho,
para as despesas de guerra”.
Ocorriam casos bizarros e de difícil interpretação, como o de: “Antonio Pires Godoy
Jorge, 1º suplente em exercício do juiz municipal da vila do Amparo...”, que “... deu a
quantia de 100$000 a Antonio de Padua da Silveira Franco, e a de 30$ e uma cavalgadura,
a Joaquim Pedro de Moraes Cunha, que tinham de ser alistados como voluntários da
pátria”. Qual o significado de “tinham de ser alistados como voluntários da pátria”? Eram
substitutos? Recrutados? Guardas Nacionais?
Muito comuns eram as ofertas de senhoras e costureiras para confeccionar
gratuitamente fardas para os que seguiam para a guerra.
Em Serviços estão incluídos os que se apresentavam para prestar determinados
serviços, como, por exemplo, demarcar as terras que seriam cedidas aos voluntários da
Pátria. Outros ofereciam-se para efetuar o exame médico nos praças alistados. Diversos
indivíduos apresentaram-se para servir nos corpos policiais e da Guarda Nacional em seus
municípios, em substituição àqueles que haviam seguido para o Sul.
O Voluntariamento individual de militares da reserva e da Guarda Nacional
ocorreu em escala reduzida. Significava a apresentação individual de militares e membros
da Guarda Nacional, nos dois casos, sempre oficiais, para servir no exército em campanha.
Voluntariamento de corpos da Guarda Nacional e da polícia eram os casos em que
os comandantes de corpos da Guarda Nacional ofereciam -se e a seus comandados como
voluntários. O mesmo aconteceu com corpos policiais das províncias. “Capitão reformado
José Maria Gavião Peixoto, tenente-coronel comandante do corpo de municipais
permanentes  Ofereceu -se para, juntamente com o corpo de seu comando, servirem no
exército enquanto durarem as circunstâncias atuais”.
Diversos comandantes de corpos da Guarda Nacional ofereciam prêmios a seus
comandados que se apresentassem como voluntários: “Coronel comandante superior da
guarda nacional do Rio Claro, José Estanislao de Oliveira.  Convidou os guardas
nacionais da mesma cidade a alistarem-se como voluntários da pátria, oferecendo de seu
bolso particular, além das garantias do Decreto nº 3.371 de 7 de janeiro findo, a gratificação
de 200$ rs., aos que pelo seu estado ou circunstâncias o exigirem”.
O Oferecimento de familiares pode ser considerado como voluntariamento, como
veremos pelos exemplos que citaremos. Entretanto, devido à sua particularidade,
resolvemos mostra-lo como uma categoria à parte.
Em Pernambuco, um tenente-coronel reformado da Guarda Nacional “... ofereceu
para serem alistados como voluntários da Pátria, seu filho João Capistrano Montarroyos e
dois netos...”. “Tenente-Coronel Joaquim Lourenço Correa, e mais cidadãos da vila de
Araraquara.  Ofereceram-se para engrossar as fileiras dos voluntários da Pátria,
oferecendo o mesmo tenente-coronel para esse fim dois filhos seus”.
Oferecimento de não familiares e o Envio de voluntários dizem respeito aos
oferecimentos de voluntários por particulares ou instituições. É a categoria que apresenta
maiores problemas de interpretação. O que significava oferecer, enviar, alistar voluntários?
A divisão que estabelecemos (envios de até dez voluntários e números superiores),
no caso do envio de voluntários por particulares, é mais no sentido de estabelecer a
distinção entre o envio privado, propriamente dito, e aquele realizado em escala ampliada
ou por instituições.
“Comendador Luiz José Henriques, negociantes Raymundo Salazar & Cia., e
lavrador Raymundo Andio Salazar.  Ofereceram: o primeiro, como voluntários três
cidadãos, já que por alquebrado e no último quartel da vida não podia achar-se no campo de
luta em que está empenhado o Império; e os dois últimos a quantia de 400$ rs. para o
auxilio das urgências do Estado”.
Quem eram esses “três cidadãos” oferecidos como voluntários por uma outra
pessoa?
Ou ainda: “Francisco Azarias de Queiroz Botelho, delegado de polícia.  Mandou
apresentar na Corte diversos cidadãos que se alistaram como voluntários da pátria”?
Outro cidadão comunicou que “... engajou e apresentou dois cidadãos para se
alistarem...” como voluntários da Pátria. Há também um que “... apresentou para ter praça
no corpo de Voluntários da Pátria, o indivíduo de nome Joaquim Libaneo Ribeiro”.
Além de casos como o do barão de Guapi, que “... remeteu 63 voluntários da pátria
para a Corte”, havia também sociedades patrióticas que comunicavam ter enviado
determinado número de voluntários.
O que quer dizer o fato de que “José Calmon Nogueira Valle da Gama  Participa
continuar a empregar seus esforços no alistamento de voluntários”?
Podemos levantar três hipóteses para esses casos: 1. tratava-se de fato de voluntários
que estavam sendo alistados, organizados, fardados e transportados por instituições e
sociedades patrióticas e por particulares; 2. eram substitutos, escravos ou cidadãos livres que,
apresentando-se em troca de prêmios, eram alistados em lugar de outras pessoas; 3. eram
cidadãos recrutados à força. Seguramente, ocorreram casos nas três possibilidades e em
combinação entre si.
Havia, por exemplo, muitas pessoas que ofereciam prêmios em dinheiro àqueles que
se apresentassem como voluntários, o que mostra que existia um movimento no sentido do
voluntariamento.
Por outro lado, é sabido que não foram raros os casos de compra de escravos para
servirem no exército. O próprio imperador destinou uma verba de sua fortuna pessoal para
esse fim.27 Talvez fossem escravos muitos dos voluntários fornecidos por sociedades e
grandes proprietários rurais, comerciantes e magistrados.
As referências ao recrutamento forçado de cidadãos por autores como Taunay e
mesmo a discussão sobre o assunto nos relatórios do Ministério da Guerra também tomam
provável a presença de recrutas forçados entre os voluntários enviados à Corte.
As Alforrias são poucas nesses registros dos relatórios do Ministério da Guerra.
Houve oferecimentos individuais: “Manoel Antonio Ayrosa  ofereceu para
assentar praça como voluntário a Pedro, pardo claro, a quem concedeu carta de liberdade”.
Um outro senhor “... participou ter dado a liberdade a um seu escravo de nome Epifanio,
com a condição de marchar para o Sul como soldado, e sem a gratificação concedida aos
Voluntários da Pátria”. Havia também senhores um pouco mais generosos com o Estado,
como um que “... apresentou para assentar praça como Voluntário da Pátria a Rito de Assis,
a quem concedeu carta de liberdade com esta condição, propondo-se além disso a fardá-lo e
a pagar-lhe o soldo por espaço de um ano”. O barão de Nova Friburgo, juntamente com
seus familiares, por sua vez, ofereceu “... seis escravos, que libertarão para o serviço do
Exército”.
Na lista há apenas dois casos explícitos de Substituição. São um pai e um filho que
“... ofereceram o 1º a quantia de 2:000$000 para ser aplicada a dois homens que no teatro
da guerra vão substituir a si e ao dito seu filho; e o segundo pagar todas as despesas feitas
com o indivíduo que o for substituir nas condições da oferta de seu pai”.
O quadro, como tantos outros da época, vale mais pelas descrições que apresenta e
como índice de que de fato houve um certo ardor patriótico na primeira chamada de
voluntários, do que pelo lado estatístico.
O ardor patriótico, entretanto, parece não ter sido tão grande com o prosseguimento
da guerra. Além de uns poucos voluntários pertencentes às elites sociais, de escravos
fugidos e de escravos “patrioticamente” cedidos por seus senhores para o exército, o grosso
da tropa foi mesmo organizado coercitivamente a partir das autoridades locais e do poder
dos grandes proprietários: “100 mil homens arregimentaram-se, no estilo dos velhos
exércitos...”.28 O próprio general Queiroz Duarte, depois de muito louvar o ardor patriótico
do povo, reconhece que:

“Em algumas províncias, na chamada geral, por excesso de zelo no serviço de


recrutamento das autoridades recrutadoras, delegados de polícia e seus prepostos iam caçar o
caboclo no Amazonas e Pará, o tabaréu nordestino na caatinga, o matuto na sua tapera, o
caiçara no litoral, enfim, brancos, mulatos e os negros que, depois de reunidos e contados,
eram despachados em magotes, sem uma simples inspeção de saúde, sem se indagar de sua
condição de chefe de família, para as capitais provinciais ou mesmo para a Corte...”.29

27
Robert Conrad, em Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil, op. cit., fala em anúncios nos jornais
procurando escravos para a guerra.
28
Pedro Calmon, História do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, 1959, vol. 5, p. 1732.
29
General Paulo de Queiroz Duarte, op. cit., vol. 1, pp. 206-207.
A designação de Voluntários da Pátria aos batalhões que combateram no Paraguai
(à exceção da cavalaria riograndense e dos batalhões do exército de linha) encobriu muitas
vezes o fato de o grosso da tropa ser formado a partir da obrigatoriedade de serviço na
Guarda Nacional. Segundo o general Queiroz Duarte, houve 54 992 voluntários para 59
669 guardas nacionais. Os libertos e recrutados somariam 8 489 num contingente
mobilizado (sem contar o exército de linha) para todo o conflito, de 123 150 soldados. O
Aviso de 9 de outubro de 1867, já citado, estabelecia a seguinte distinção entre os
indivíduos alistados na Corte, artigo 16:

“Haverá quatro livros alfabéticos, assim distribuídos: para os recrutas e guardas


nacionais designados; para os voluntários e guardas nacionais designados, que prontamente
concorrerem; para os substitutos; e para os libertos”.30

Já consideramos anteriormente o caso dos libertos.


O voluntariamento dos corpos da Guarda Nacional pode e deve ser posto em dúvida
Jeanne Berrance de Castro,31 num trabalho que tende a destacar as qualidades da Guarda
Nacional, reconhece que, a partir da reforma de 1850, o alistamento era cada vez mais
usado para perseguir adversários políticos. Tampouco é de se crer em apresentação
voluntária do conjunto do corpo de guardas nacionais. A verdade é que estes eram
praticamente propriedade de seus comandantes e autoridades locais, que apresentavam
voluntariamente os serviços de todo o contingente militar sob seu controle para a guerra.

“No meio daquele grande entusiasmo, dores calaram-se para esconder injustiças.
Lembro-me de uma, porque ecoou na minha alma. Um primo carnal, o major da Guarda
Nacional João Evangelista de Castro Tanajura, moço rico, organizou formoso corpo de gente
escolhida no sertão, vestiu-o, alimentou-o e transportou-o até a capital, onde foi aquartelado a
fim de seguir para o sul. Não pôde, porém, o malogrado realizar o desejo ardente de sua alma
patriótica, porque morreu de uma febre cerebral, causada, decerto, pela decepção amarga de
ver seu batalhão dado ao comando de outro, influência política do partido dominante. Há
sempre dessas ingratidões, principalmente na política partidária. O ardor da Bahia nunca
arrefeceu, entretanto; e foi preciso, para cessar a grande leva, que o governo lhe dissesse: Não
precisamos mais de voluntários (grifos do autor). A Bahia foi, entre as irmãs, a que deu para
a guerra maior número de voluntários.”32

Tudo aí está dito. O “moço rico”, voluntário, que organiza formoso batalhão às suas
custas “de gente do sertão” (voluntária?), que é perseguido politicamente e tem, quase que
como se fosse sua propriedade, seu batalhão “dado ao comando de outro, influência política
do partido dominante”. Ao mesmo tempo, “a Bahia foi, entre as irmãs, a que deu para a
guerra maior número de voluntários”. Que tipo de voluntários? Da gente do sertão ou dos
oficiais da Guarda Nacional?
30
Idem, ibidem, p. 217.
31
“A Guarda Nacional”, in História Geral da Civilização Brasileira, op. cit., voI. 6, p. 288.
32
Dionísio Cerqueira, Reminiscências da Campanha do Paraguai, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército,
1980, p. 56
A categoria de substituto designaria o substituto de voluntário (no caso, liberto), a
categoria de guarda nacional designado, ou as duas? O que é certo é que o substituto não
era um voluntário. Estava preenchendo o lugar de outra pessoa que obrigatoriamente
deveria estar se apresentando, no caso da Guarda Nacional , ou de um “voluntário”, no caso
dos Voluntários da Pátria.
Os recrutados, finalmente, seriam aqueles que forçosamente teriam sido
arregimentados para a luta.
A guerra nunca foi completamente popular. Mesmo obtendo algum êxito no
começo, o decreto criando os corpos de Voluntários da Pátria não conseguiu motivar um
entusiasmo espontâneo no seio de uma população que sempre fora excluída e desprezada
socialmente pelas autoridades e instituições do Império. Algumas vezes, as autoridades
locais organizavam festas e outras reuniões populares para então, com o povo reunido,
efetuar o alistamento forçado, através do emprego direto da forca. Richard Morse,33 ao
comentar o impacto da guerra sobre São Paulo, conta, citando Taunay e jornais da época,
que não houve entusiasmo entre o grosso da população. Apenas as elites tiveram algum tipo
de reação à convocação do governo imperial. Entretanto, em que pese o desperdício que
significou a guerra do Paraguai, esse autor considera que ela terminou por provocar um
senso de unidade nacional entre a população.
Do ponto de vista das conseqüências sociais, saber a proporção de voluntários reais
e voluntários compulsórios na composição das tropas que fizeram a guerra do Paraguai não
é a questão central. O que importa é perceber que o governo imperial teve que mobilizar
recursos humanos além do alcance de seu discurso até então. Não se trata de eludir a
questão. O que queremos ressaltar é que o governo imperial e a sociedade escravista como
um todo viram-se às voltas com a questão de produzir um esforço nacional. Isso, não
apenas do ponto de vista de recursos materiais e humanos, mas, igualmente, ideológicos e
morais.

O exército e as camadas médias

Foi justamente nas conseqüências que o conflito trouxe para as relações entre o
Império e a classe dominante escravista, por um lado, e as camadas médias da população,
por outro, que o significado da guerra do Paraguai e a criação de um exército nacional
trouxeram implicações sociais e políticas mais profundas.
Como vimos, por suas dimensões, o conflito fez com que o governo imperial
buscasse recursos humanos que não conseguia com os métodos usuais de recrutamento nas
camadas mais baixas da sociedade. Foi preciso dar uma nova roupagem ao recrutamento;
foi preciso designar os contingentes de Voluntários da Pátria e, assim, dar-lhes um lugar de
destaque.
A estrutura social rígida da sociedade escravista brasileira, o poder centralizado do
Estado e a dispersão política e social desses setores impediram que sua convocação pelo
governo imperial cobrasse um preço elevado. Terminado o conflito, foi possível, passado o

33
Richard Morse, Formação Histórica de São Paulo, pp. 195-197.
sobressalto do abolicionismo, reconduzir a sociedade aos padrões de exclusão social
tradicionais. O lugar social e político destes setores permaneceu basicamente o mesmo;
continuaram excluídos dos direitos e da vida pública.
O mesmo, entretanto, não aconteceu em relação às camadas médias.
Muitos dos oficiais que fizeram a guerra eram oriundos de camadas da população
que, exercendo funções administrativas, ligadas ao pequeno comércio, profissionais
liberais, etc., podemos identificar como sendo as camadas médias da população brasileira
na segunda metade do século XIX.34 Por sua posição, esses setores tinham acesso à cultura
europeizante, aos meios de comunicação e aos canais de expressão política da sociedade
escravista. A modernização do aparelho econômico, a partir da expansão cafeeira, e a
urbanização da sociedade aumentaram em muito o peso social dessas camadas médias.
Por características específicas de sua formação histórica, o Estado desempenhou  e
ainda desempenha  um importante papel na formação da unidade nacional, política e
territorial do Brasil. Mais do que a expressão direta do poder dos senhores de escravos, o
Estado, a partir de sua alta burocracia e de interesses da fração de classe dos senhores de
escravos do Rio de Janeiro e da Corte, constituiu uma rede de instituições que, em parte, se
sobrepunham ao poder local dos proprietários rurais e donos de escravos.
A formação de um exército profissional era uma expressão desse papel do Estado.
Nesse sentido, cabe notar que o processo de formação de um aparelho militar centralizado
era anterior à guerra. Ele já vinha se delineando com a reforma da Guarda Nacional em
1850. A guerra do Paraguai veio conferir maior rapidez ao processo e, principalmente, uma
ênfase especial na relação desse aparelho com os setores médios da população.
A formação de um exército profissional de base nacional no Brasil, por si só,
propiciou um canal, uma via pela qual se forjou uma parcela das camadas médias urbanas.
A própria organização do exército, com o peso que teve devido à guerra, deslocou parcelas
da população para uma posição de classe diferente. Fossem eles advindos de camadas
inferiores às camadas médias, rara exceção, fossem oriundos de setores dos proprietários de
terra.
John Schulz35 considera que, mesmo quando se originavam de setores rurais, o
importante é que a oficialidade passava a viver mais de seu soldo do que da renda da terra.
Esse deslocamento social não pode ser creditado apenas à fonte de renda da oficialidade.
Mesmo sendo solidários com sua classe de origem, os oficiais sempre mantiveram seu
espírito de corpo. O que importa é que a instituição, como um todo, ganhou nova dimensão
social. É esse fato, e menos a origem de seus rendimentos, que deu ao corpo de oficiais do
exército uma coesão de classe social média, para além de seus interesses corporativos.
Por sua vez, o exército não foi apenas mais uma instituição à qual as camadas
médias passaram a ter acesso. Depois da guerra do Paraguai, ele passou a jogar um papel
diferente na estrutura do poder, não mais quase que exclusivamente baseada no poder direto
e local dos grandes proprietários e no distante Estado imperial centralizado. Como
instituição, o exército (e também o governo imperial e a sociedade de um modo geral) teve

34
Há autores que consideram mesmo a ascensão de pessoas das camadas populares ao oficialato, ainda que
em casos excepcionais, como Nelson Werneck Sodré.
35
John Schulz, “O Exército do Império”, in História Geral da Civilização Brasileira, op. cit., vol. 6.
que enfrentar a questão de qual era o seu lugar em tempo de paz. Como corpo, formado no
decorrer de uma guerra assumida como em defesa da Pátria, passou a se sentir como um
tipo de representação/encarnação (a mais digna) da nação; começou a reivindicar sua
manutenção e expansão; passou a querer ter sua voz ouvida, e esta voz não era mais apenas
a de representantes da classe dominante escravista e proprietária de terras.
Às reivindicações tipicamente corporativas (soldos, temas profissionais), juntaram-
se as aspirações de grupos oriundos das camadas médias por mais espaço econômico e
político e reconhecimento moral da sociedade imperial. Mais ainda, ao ter sua “origem” a
partir da guerra, da necessidade de defesa da nação ameaçada, e não de uma gestação mais
gradual e orgânica da sociedade escravista, o exército trazia em seu seio sementes de
inquietação e questionamento social. O método de cooptação de suas principais lideranças à
camada dirigente foi insuficiente para manter as bases da oficialidade em compasso com a
ordem imperial. O exército havia crescido muito, havia incorporado em grande escala
novos grupos sociais a suas fileiras. Reconduzi-lo a um papel meramente técnico e
secundário na vida da nação mostrou -se uma tarefa além das possibilidades do governo
imperial. Depois de toda a mobilização nacional decorrente das necessidades da guerra,
voltar à situação que existira antes não era algo fácil. A guerra do Paraguai chamou os
segmentos médios da população a cumprir um papel de destaque e peso social.
A guerra mostrou uma classe dirigente acostumada à gestão clientelística da coisa
pública, muitas vezes corrupta, indolente e incapaz de organizar um exército como
expressão máxima da independência e dignidade nacionais (de acordo como ele próprio se
considerava). Constantemente, havia referências à guerra como uma questão de honra
nacional. Entretanto, o que se via era um exército com problemas de abastecimento, de
pagamento de soldos, autoridades ineficientes, conforme se depreende da própria
correspondência de Caxias com o ministro da Guerra.

“Têm entendido alguns Presidentes de Províncias que se acham autorizados para


nomear oficiais ou promoverem a postos superiores indivíduos, que pertencendo à Guarda
Nacional das respectivas Províncias para aqui vieram como designados para auxiliar o
Exército, e portanto ficaram desde logo sujeitos às leis e foro militares.”36

Um pouco adiante, dizia que essas promoções nunca levavam em conta a atuação
dos indivíduos.
Era ainda Caxias que logo após os combates de Itororó e Lomas Valentinas, quando
houve um número considerável de baixas entre os oficiais superiores, mostrava-se alarmado
com a possibilidade de ter que passar o comando aos oficiais superiores sob suas ordens.
Pedia especificamente que o ministro enviasse ao teatro de operações o marechal
Guilherme Xavier de Souza, e dizia sobre os oficiais superiores da Corte que preferia estar
“...antes só que mal acompanhado”.37

36
Correspondência sobre a guerra do Paraguai com relação..., vol. 12, Arquivo Nacional.
37
Cartas, Reservados..., livro 5, carta confidencial de 13.12.1868 ao ministro da Guerra.
Essas queixas eram de um militar profissional e, entretanto absolutamente afinado
com a classe dominante escravista e com o Estado imperial. O ingresso de setores médios
nas fileiras, ou ainda a formação de uma camada ampla de oficiais e suboficiais decorrente
da necessidade de expansão dos quadros do exército, foi detectada e apreciada por Caxias.
Para ele, tais elementos seriam a base de uma reformulação no quadro de oficiais do
exército. Tal renovação de quadros corresponderia a livrar o exército da incompetência das
velhas elites, mas também serviria para depurar o material humano utilizado na tropa.
Em carta confidencial ao ministro da Guerra de 2 de setembro de 1868, Caxias
recomendava que se permitisse que os voluntários da Pátria que já tivessem servido dois
anos pudessem ser transferidos para o exército de linha. Via nessa medida uma forma de
melhorar a base social do exército (desqualificada antes da guerra e ainda pior com o
ingresso de escravos nas fileiras). Lembrava ainda que “... muitos deles se achariam
completamente desabrigados, ao terminar a guerra...” se não pudessem permanecer no
exército.38
Esses setores, desde o começo, mostraram-se extremamente críticos em relação à
alta hierarquia do Império. Muitas vezes, por sua classe de origem, tinham suas
oportunidades de carreira preteridas por motivos de influência política. Seu desconforto em
relação à classe dominante e às elites dirigentes do Império era grande e se acentuou depois
de terminado o conflito.
A guerra mostrou a esses oficiais o lado podre da laranja; colocou-os em contato e
proximidade com o soldado enquanto expressão do povo. Nas memórias que produziram
sobre o conflito, os principais relatos de oficiais não conseguem esconder a distância social
que havia entre eles e a tropa. Entretanto, há um certo paternalismo, uma visão positiva do
“povo brasileiro” e seu heroísmo; há orgulho de sua capacidade de combate, de sua
abnegação e de seu humanitarismo.39 Contudo, tendo em vista padrões europeus e os
cânones do progresso na época, essa visão ainda considerava o povo brasileiro imerso no
atraso e na ignorância fundamentalmente pela permanência, entre nós, da escravidão e de
uma organização política que cada vez mais despia sua máscara civilizada, mostrando seus
compromissos com a velha classe dominante.40
Num momento em que o escravismo se encontrava em crise como forma de
exploração da força de trabalho, o acesso a uma instituição diretamente vinculada ao
aparelho repressivo do Estado por parte das camadas médias permitiu que elas viessem a
desempenhar um papel de peso no início do processo de transição para uma economia
capitalista vivido pelo país. Por sua vez, o exército foi, em primeiro lugar, capaz de formar
um discurso político característico das camadas médias  mas também de outros setores,
como os setores populares e escravos e mesmo fazendeiros não escravistas, setores
dissidentes das oligarquias, no caso do republicanismo, que reivindicavam maior
participação e discussão em torno de temas como a ampliação dos espaços políticos, a

38
Confidenciais..., livro 5.
39
Dionísio Cerqueira, em Reminiscências da Campanha do Paraguai, não se cansa de louvar a bravura do
soldado brasileiro. Isto não o impede de deixar claro seu desconforto no contato com seus camaradas quando
ainda não havia sido promovido a oficial.
40
Todo discurso positivista no exército, republicano e abolicionista, era um discurso modernizador,
europeizante. Um discurso que, opondo-se à velha ordem escravista, era eivado de racismo e preconceito. Seu
grande sonho era civilizar, europeizar, branquear a sociedade brasileira.
natureza do regime político e representativo, o federalismo e, principalmente, em torno da
escravidão. Em segundo lugar, ele foi um canal que garantiu a eficácia política e, mais
tarde, militar desse discurso, já que possuía elevado espírito e coesão de corpo, um aparelho
institucional próprio e, como fator decisivo, acesso aos meios materiais e organizacionais
adequados (armas, hierarquia e disciplina). Finalmente, o exército, como instituição
nacional, permitiu que o discurso dos setores médios se apresentasse como discurso de
todos, discurso da nação.

O exército, depois da guerra do Paraguai, não deixou de ser o braço armado do


regime imperial. Afinal, a vitória havia sido justamente das armas imperiais. A cúpula
militar não deixou instantaneamente de estar vinculada aos interesses do governo imperial e
da classe dominante. O que de fato ocorreu é que o aparato repressivo passou de uma
estrutura, em grande parte, diretamente ligada ao poder local e regional da classe dominante
para uma corporação que entretinha vínculos necessários com outros grupos sociais. Uma
corporação mais permeada pelas contradições do todo social que se complexificava.
Esse deslocamento e sofisticação da estrutura repressiva de uma dimensão local
para o âmbito do Estado em sentido restrito era um componente da própria formação do
Estado imperial. Por outro lado, ele acompanharia necessariamente o processo de
transformações econômicas e sociais em curso, independente da guerra. Talvez não tão
rápida ou bruscamente. A reforma da Guarda Nacional em 1850, ao retirar do âmbito local
diversas prerrogativas na organização dos corpos, já apontava no rumo da centralização do
poder repressivo em mãos do governo central. A guerra, como parteira do exército
nacional, aprofundou as dimensões dessa transformação e fez com que as camadas médias
emergentes cumprissem importante papel nesse processo. O que é importante salientar é a
passagem de uma organização militar baseada numa definição censitária de cidadão (a
Guarda Nacional) para uma outra, aberta a setores significativos das massas despossuídas e,
principalmente, das camadas médias. Ao menos formalmente e do ponto de vista das
possibilidades abertas, este segundo tipo de organização militar estava baseado num
conceito mais amplo de cidadania.
O fato de uma instituição tão central como o exército passar a ser um local de
expressão de contradições entre a classe dominante escravista e setores médios da
população, permitindo inclusive que essas contradições se manifestassem, por sua vez,
sobre o tema da escravidão, era um sintoma de perda de hegemonia da classe dominante.
Com ou sem a guerra, a crise da civilização escravista produziria esse fenômeno em algum
ponto de seu desenvolvimento, ainda que nunca de forma tão aguda no interior da
instituição militar. Essa constatação de ordem geral não nos deve levar a subestimar o
processo histórico específico formador da instituição militar que lhe deu duas marcas
bastante particulares: 1. sua identificação com um discurso dos interesses gerais da nação;
2. sua ligação constitutiva com os setores médios.
V

O exército imperial em campanha: nacional e escravista (I)

Veremos agora o processo concreto de formação e organização do exército, bem


como sua vida durante a campanha.1
Como se comportava o exército em campanha? Quantos, como e quando foram
enviados para a linha de frente? Como era o cotidiano da tropa? Como era a relação entre o
corpo de oficiais e os soldados, os praças-de-pré? Quais os principais problemas? Como se
combatia e se morria no Paraguai? Numa palavra, tentaremos analisar como, na prática, se
manifestou a contradição entre o caráter nacional do exército e a base escravista da
sociedade imperial, entre as exigências e padrões de comportamento da cúpula militar e a
base da tropa.

O envio de tropas ao Paraguai

O número total de soldados mobilizados no período da guerra do Paraguai não pode


ser precisado com exatidão devido às precariedades estatísticas da época; deve ter estado
entre 130 e 150 mil homens. A maioria deles foi efetivamente enviada à frente de
operações, enquanto que outros ou permaneceram no país, ou pereceram sem nunca ter
alcançado o Paraguai.2 As cifras variam muito de acordo com o autor. No capítulo anterior,
vimos que o general Queiroz Duarte, provavelmente utilizando dados dos relatórios da
Repartição dos Negócios da Guerra, apresenta 135 580 como o total dos que fizeram a
guerra (portanto, menor que o número mobilizado). Pedro Calmon fala em 100 000 homens
mobilizados.
No relatório da Repartição dos Negócios da Guerra de 1868,3 é apresentado um
“Mapa da força que tem seguido para o exército em operação desde 26 de dezembro de
1864 até15 de maio de 1868”. De acordo com esse mapa, verificamos que haviam sido
enviados para o Paraguai, até a data citada, 66 706 soldados partindo da Corte, oriundos das
diversas províncias, além de 4 237 praças que haviam seguido diretamente das províncias
do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná,4 perfazendo, portanto, um total de 70 943.
Em março de 1868 (segundo o mesmo relatório), havia ainda 5 672 soldados (entre
voluntários da Pátria, praças do exército e guardas nacionais) em diferentes províncias do
Império, principalmente no Rio Grande do Sul e em Mato Grosso.

1
Esse tema será igualmente abordado no próximo capítulo.
2
Somente para citar com exemplo, pelo menos 1/3 da coluna enviada de São Paulo e Minas Gerais para a
invasão do Paraguai pelo Mato Grosso morreu durante as marchas de aproximação em território brasileiro.
3
Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra, 1868.
4
Nesses dados não estão incluídos os soldados que já se encontravam em operações no Uruguai quando se
iniciou o conflito, cerca de 8 000 homens, segundo Tasso Fragoso (História da Guerra Entre a Tríplice
Aliança e o Paraguai).
Entre soldados enviados, soldados que já estavam na região de guerra e aqueles que
permaneciam em território nacional, havia portanto, até maio de 1868, um total de 84 615
homens mobilizados. Eles pertenciam ao contingente de linha do exército, à Guarda
Nacional e, em sua maioria, aos corpos de Voluntários da Pátria.5
Esses números cobrem o período mais longo e intenso da guerra: da invasão do
Paraguai, em Passo da Pátria (abril de 1866) à tomada da fortaleza de Humaitá (agosto de
1868).
Até maio de 1865, haviam seguido para a guerra 10 353 soldados, correspondendo à
primeira tentativa de mobilização, com o decreto de criação dos corpos de Voluntários da
Pátria (7 de janeiro de 1865).
Sobre essa primeira mobilização, o relatório da Repartição dos Negócios da Guerra
de 1865 apresenta dados interessantes (“Mapa dos indivíduos alistados no exército durante
o ano financeiro de 1864 a 1865, e bem assim dos praças que tendo concluído seu tempo
contraíram novo engajamento, conforme os mapas parciais, com declaração dos últimos
dados”) (ver Quadro 3).

QUADRO 3

R V Re Ree Vol T
ecrutas olun- cru-tados nga-jados . da Pátria otal
Pedidos tários
4 73 1 2 10 1
459 5 474 470 240 4 919
Obs. Os dados referem-se ao período até 1 de abril de 1865.

Vê-se, por esse quadro, que o número de recrutas e voluntários fornecidos pelas
diversas províncias, 2 209 (recrutados mais voluntários) é pouco menos que a metade do
total de recrutas requisitado pelo governo central, 4 459. Destes, 33,27% eram voluntários,
o restante, recrutas conseguidos das formas que já citamos anteriormente. De qualquer
modo, os recrutas (voluntários e recrutados para serviço no exército de linha) fornecidos
pelas províncias significaram 14,80 % do total.
Na categoria de reengajados, estavam os soldados do exército de linha que, uma vez
terminado o prazo de seu serviço nas fileiras, se apresentaram novamente para servir. Eles
somavam 2 470, 16,55% do total mobilizado.
O contingente do exército de linha para essa primeira mobilização era, portanto, de
4 679 praças (recrutas mais reengajados), 31,35% do total mobilizado.

5
Esses e outros números, recolhidos nos diversos relatórios da Repartição dos Negócios da Guerra dos anos
relativos ao conflito, não são precisos. Muitas vezes, os próprios quadros referem-se a dados incompletos
vindos das províncias. Por outro lado, mesmo a apuração estatística dos dados disponíveis deve ser
relativizada devido às precariedades da época. De qualquer forma, são os únicos dados efetivos de que
podemos dispor. Outros números são estimativas que nem sempre deixam claras suas fontes.
O número de voluntários da Pátria, como já vimos, diz respeito às mais diversas
origens: voluntários efetivamente, guardas nacionais efetivamente voluntários, guardas
nacionais cujos comandantes ofereceram-se para seguir para a guerra, escravos oferecidos
por seus senhores, pelo Estado e por conventos, substitutos, soldados dos corpos policiais
das províncias e, finalmente, pessoas recrutadas à força.
É de se supor, entretanto, por se tratar do primeiro apelo ao voluntariamento e por
ser a primeira mobilização, que, relativamente, o número de voluntários reais tenha sido
maior desta feita, se comparado com as mobilizações seguintes. Houve algum entusiasmo
quando da emissão do decreto que criava os corpos de Voluntários da Pátria,
principalmente entre a juventude e os estudantes.
De qualquer modo, os voluntários da Pátria representaram o grosso do efetivo
mobilizado, 68,63 % .
Os contingentes encaminhados para o teatro de operações eram em sua maioria
enviados primeiro para a cidade do Rio de Janeiro, e então embarcados para o Paraguai. As
baixas já começavam nas viagens de vinda das províncias. As condições de higiene eram
precárias, seja nas viagens, seja nos depósitos em que se aguardava o embarque para o
Paraguai e quando um treinamento rudimentar era ministrado.
Dionísio Cerqueira, um voluntário de primeira hora, relata em seu interessante
Reminiscências da Campanha do Paraguai sua apresentação como voluntário do exército
(ainda não haviam sido criados os corpos de Voluntários da Pátria):

“A 2 de janeiro, (...) apresentei-me no quartel-general para assentar praça como


‘voluntário do exército’.
Levaram-me à presença do Major Eslebão, da repartição do ajudante-general; e, se
bem recordo, secretário do General Caldwell. (...)
Perguntou-me em tom áspero:
 Quer assentar praça?
 Sim, Senhor.
 Para estudar?
 Não, Senhor, para ir para a guerra.
Lançou-me um olhar de pouco caso e disse a um negro alto, de olhos vermelhos, que
estava perfilado na entrada da sala:
 Cabo, leva este homem para ser inspecionado.
(...)
O cabo acompanhou-me sem dizer palavra até uma sala onde estava um médico com
ares de sargento, metido em farda sebosa, sobre uma calça branca já amarrotada.
 Seu dotô, aí está este reculuta para V.S. inspecioná.
 Dispa-se  roncou o cirurgião. Tirei o fraque e o colete  e parei.
 Dispa-se todo; fique nu...
O sangue subiu-me às faces  e obedeci. Fiquei de botinas.
 Tire os sapatos. Tenho mais o que fazer.
“Olhou-me, mirou me algum tempo e, sem me auscultar nem fazer pergunta ou
exame algum, resmoneou:
 Vista-se...”.6

Um mês depois, Dionísio Cerqueira embarcava, com outros praças da Corte e de


batalhões chegados da Bahia, para Montevidéu.
O grosso do contingente enviado para o Sul foi remetido entre maio de 1865 e
dezembro de 1866: 37 169 praças, a maioria (31 224), até o fim de abril de 1866.
Num mapa incompleto, semelhante ao anteriormente citado, do relatório do
Ministério da Guerra de 1866, constatamos a situação apresentada no Quadro 4.

QUADRO 4

Vol Re En V T
untários crutados gajados ol. da otal
Pátria
713 3 54 2 2
543 4 136 8 446

Obs. Os dados referem-se ao período compreendido entre maio de 1865 e abril de 1866.*
*Há uma discrepância entre o número total apresentado neste quadro e aquele
mostrado antes referente ao mesmo período de maio de 1865 a abril de 1866: respectivamente,
28 446 e 31 224. Isto se deve a que a segunda cifra é de 1868, portanto, já definitivamente
consolidada. Por outro lado, no quadro do relatório do ano de 1866, há o reconhecimento de
que o mapa estava incompleto pela ausência de informações de algumas províncias.

A primeira mudança significativa em relação ao quadro anterior diz respeito ao


contingente do exército de linha, comparado ao de voluntários da Pátria. Entre recrutados,
voluntários do exército e engajados, eles somam 4 310, 15,15% do total mobilizado, uma
diminuição significativa (sua proporção na mobilização anterior era de 31,35% do total).
Seu número absoluto, no entanto, permaneceu estável, 4 310 contra 4 679. Este fato
demonstra que a capacidade recrutadora do exército tinha um limite bem aquém das
necessidades geradas pela guerra.
O segundo aspecto a ser ressaltado é a completa alteração na composição desse
contingente. Sua maioria esmagadora (82,20%) é agora composta por recrutados. Os
voluntários representam apenas 16,54% e os que se reengajaram, 1,25%. É claro que
muitos dos que poderiam se apresentar como voluntários para o exército, na vigência do
6
Dionísio Cerqueira, op cit.. p. 48.
decreto nº 3.371, criando os corpos de Voluntários da Pátria, preferiam se engajar como tais
para obter as vantagens inerentes ao decreto.
O último fato a ser notado é o aumento, não só do número absoluto (de 10 240 para
24 136), como também da proporção de voluntários da Pátria mobilizados, 84,85% do total.
Já então, seguramente estavam incluídos nesse total corpos da Guarda Nacional e de polícia
das províncias. Assim, dos 60 corpos de Voluntários da Pátria organizados, pelo menos 19
originaram-se total ou parcialmente de batalhões da Guarda Nacional. Outros 14 surgiram
pela transformação dos corpos policiais em corpos de Voluntários da Pátria.
Nessa segunda mobilização, o número de substitutos, libertos e recrutas, em relação
aos voluntários efetivos, já devia ser largamente preponderante. Aliás, conforme o conflito
se estendia e continuava a necessidade de cobrir as baixas, a proporção tendia a aumentar.
O treinamento continuava sendo rudimentar e a viagem das províncias à Corte  e
desta para o Sul , realizada em condições precárias. Não havia ainda fardamento
homogêneo (é possível que nunca tenha havido de todo) e as condições logísticas eram
precárias.
Nos primeiros meses do conflito, as tropas mal contavam com vestuário e
alimentação adequados. Bernardino Bormann7 menciona soldados brasileiros praticamente
nus, apenas com uma peça de couro como vestuário, combatendo durante a invasão do Rio
Grande do Sul. Diz ainda que, durante a visita do imperador a Uruguaiana, foram
selecionados corpos especiais, em razão do estado do fardamento, para que ele passasse em
revista.
Não é de admirar que, de acordo com o mesmo Bormann, ainda em território
argentino, isto é, aproximando-se da zona de guerra, na fronteira com o Paraguai, “... um
batalhão do Pará, forte de 450 praças, com uma brilhante oficialidade, em menos de um
mês ficou reduzido a pouco mais de 20 homens”.8 As mortes teriam sido causadas em sua
maioria por gangrena, frio e falta de aclimatação. Queiroz Duarte confirma que as perdas de
Osório, ainda em território argentino, foram consideráveis. Ressalte-se ainda que antes da
invasão do território paraguaio não havia ocorrido qualquer grande epidemia no exército.
É que, nessa primeira fase do conflito, a organização militar ainda obedecia ao
padrão precário das lutas caudilhas do Sul. Entretanto, o contingente empregado já era
numeroso, não se podia viver do terreno, isto é, do saque, em território de um aliado.
Chefes militares com experiência de comando de tropas de pequeno efetivo, ou de grupos e
bandos de cavalarianos armados, viam-se às voltas com as complexidades logísticas de
organização de um grande contingente militar. Somente com a chegada de Caxias  o
militar de maior prestígio no Império  ao teatro de operações em 1866, é que se passou a
ter uma atenção sistemática para os aspectos organizativos do exército em campanha.
Na correspondência entre o marquês de Caxias e o ministro da Guerra e outras
autoridades do Império, são freqüentes, durante o ano de 1867, os pedidos de reforços.
Nesse ano foram enviados 13 249 homens para o Paraguai, embarcados na Corte.

7
José Bemardino Bormann, História da Guerra do Paraguai, Curitiba, 1897.
8
Idem, ibidem, p. 48.
No relatório de 1868, encontramos um “Mapa dos indivíduos alistados do ano
passado até esta data como Voluntários da Pátria, voluntários do exército e Guardas
Nacionais designados” (ver Quadro 5).

QUADRO 5

Vol Vo Re G. T
. da Pátria l. do crutados Nacs. otal
exército designados
1 21 5 7 1
345 3 894 548 5 000

Obs.: em 23 de abril de 1868*

* Mapa incompleto. Provavelmente, os dados de 1867 são referentes ao mês de


maio em diante, pela coincidência do ano fiscal.

O número dos voluntários da Pátria, ainda que significativo (8,96%), havia caído
bastante. Esse fato deve ter ocorrido pelo concurso de efetivos da Guarda Nacional
(50,32%), que iria substituir tanto os contingentes de infantaria (sendo incorporados,
portanto, aos corpos de Voluntários da Pátria), como os contingentes de cavalaria
(permanecendo a designação de Guarda Nacional). Como já explicamos, nos quadros
anteriores devia ser elevado o número de guardas nacionais sob o título de Voluntários da
Pátria.
O dado mais significativo é a alta percentagem de recrutados, 39,29%.
O fato é que no ano de 1867, principalmente a partir da chegada de Caxias, o
exército já estava organizado e com um contingente médio estabelecido em torno de 40 000
soldados. Não se tratava mais de formar um exército e sim de mantê-lo, seja sob o aspecto
logístico e de abastecimento, seja sob o ponto de vista do fornecimento do material humano
necessário à manutenção do efetivo. Para tanto, o recrutamento nos velhos moldes e o
auxílio da Guarda Nacional designada9 eram suficientes.
Segundo mapas do relatório de 1867, em janeiro desse ano havia 31 175 soldados
compondo as forças prontas do exército em operação no Paraguai. Em janeiro do ano
seguinte, os efetivos prontos eram praticamente os mesmos, 31 443 soldados.10 Os reforços
destinavam-se, portanto, apenas à manutenção do efetivo, cobrindo as baixas do período.

9
Por guardas nacionais designados entendiam-se aqueles que cumpriam tarefas fora de suas jurisdições,
notadamente no exterior, assim como os que substituíam os corpos policiais das províncias, por exemplo.
10
As forças prontas eram aquelas em condição de combater, isto é, não doentes. Em abril de 1868, de acordo
com um mapa apresentado por Caxias em sua correspondência com o ministro da Guerra, de um contingente
total de 41 158 combatentes, 10 349 estavam doentes (Arquivo Nacional, Correspondência do Comando em
Chefe com Várias Autoridades sobre Assuntos Referentes à Guerra do Paraguai, volume 12, documento nº
15)
O cerco de Humaitá exigiu um número elevado de baixas, seguramente mais por
doenças e epidemias, como o cólera, que por combates. Em maio de 1868, as operações
ainda se davam em torno da fortaleza, que só viria a capitular em agosto daquele ano.11
Assunção só seria conquistada em janeiro do ano seguinte, depois de uma série de batalhas
campais em tomo da posição paraguaia às margens do rio Piquissiri, conhecidas como a
Dezembrada.
Mesmo tendo já se organizado o exército, as condições dos praças enviados para o
Paraguai deixavam a desejar.
Em carta de 14 de julho de 1868, o marquês de Caxias pedia ao ministro da Guerra,
Paranaguá, que tomasse providências a respeito das condições dos praças enviados da
Corte:

“Acontecendo manifestar-se a bexiga em muitas das praças, que aqui têm chegado
fazendo parte do contingente por V. Ex. remetido, verificando-se não haverem elas sido
vacinadas nas províncias de que são filhos, ou nessa Corte...”.12

Logo após a tomada de Humaitá, Caxias dirigia uma longa carta confidencial ao
ministro da Guerra analisando a situação:

“A guerra está, sem a menor dúvida, muito adiantada: ao inimigo não resta outro
recurso, a não ser a pequena guerra chamada de postos: nenhum dos quais lhe resta tem valor
e importância daqueles de que já tem sido expelido, e que estão em nosso poder”.

Considerava, em seguida, que López iria se internar pelo país, onde poderia contar
com o apoio do povo “ignorante, fanático e passivamente obediente”.
Caxias constatava que o país estava, entretanto, devastado e que haveria mais
necessidade de abastecimento e de gastos para a manutenção do exército, do que
propriamente de soldados.13

11
Segundo o general Antônio de Souza Junior (“Guerra do Paraguai”, in História Geral da Civilização
Brasileira, op. cit.), a conquista da fortaleza de Humaitá  principal posição defensiva estratégica paraguaia 
consumiu 27 meses de operação e 30 mil baixas.
12
Correspondência do Comando em Chefe..., volume 12, documento nº 40.
13
A conclusão de Caxias, mesmo se dispondo a continuar sua missão caso sua sugestão não fosse aceita, era
pela paz, já que considerava o Paraguai neutralizado. Lamentava o Tratado da Tríplice Aliança como a
principal dificuldade na obtenção da paz. (Não fora ele, avalia que López pediria a paz). E, ainda: “Se ela (a
paz) agora nos vier mediante os meios que a política e a diplomacia do atual Gabinete quiserem mover, longe
de nos fazer corar, nos honra e distingue”. Pela análise de outras cartas reservadas e confidenciais, fica claro
que Caxias considerava que só a Argentina lucrava com a continuação da guerra. Ao ministro da Guerra,
14.8.1868, fazendo o sumário de uma série de incidentes ocorridos entre ele e o comandante-em-chefe do
exército argentino, general Gelly y Obes, dizia: “Tenho razões para crer que o General Gelly y Obes está
cumprindo mandato do seu Governo, para quem a terminação da guerra é uma calamidade, por ver que o
Brasil fica ainda com libras esterlinas sem as despejar nos cofres da Confederação”. É possível que temesse a
completa eliminação do Paraguai e as conseqüentes alterações no equilíbrio de poder da região, que pudessem
Mesmo depois da perda de sua capital, entretanto, López conseguiu formar novo
exército.14
O envio de contigentes continuou, ainda que em menor escala, a partir da tomada de
Assunção. Depois da batalha de Campo Grande, a tarefa do exército passou a ser a de
ocupação do território paraguaio e de caça a Solano López e seu pequeno grupo de
seguidores.
Os efetivos do exército presentes no Paraguai passaram a ser, desde então,
acentuadamente declinantes, o mesmo acontecendo com as baixas e a necessidade de
substituições.

O cotidiano da tropa em campanha

A organização militar dos primeiros contingentes enviados ao teatro de operações


obedeceu ainda, em larga escala, aos padrões caudilhescos e improvisados que
predominavam nos conflitos platinos anteriores. Quando a guerra chegou a um impasse em
tomo de Humaitá, ficando claro que a derrota do Paraguai requeria esforço concentrado e
organizado, foi que se passou a uma organização mais profissional e sistemática do
exército. Isto ocorreu basicamente a partir do comando de Caxias, em 1867, isto é,
decorrido um ano e meio de hostilidades.
Comentando a invasão do Rio Grande do Sul pelo exército paraguaio, Bormann
(História da Guerra do Paraguai) deixa claro o caudilhismo dos primeiros tempos. Depois
de tecer severas críticas ao general Canabarro  um típico caudilho riograndense,
responsável por inúmeras incursões armadas em território uruguaio e protagonista das lutas
farroupilhas  por sua morosidade e hesitação em dar combate aos paraguaios, diz que o
general Caldwell, superior de Canabarro, nada podia fazer a respeito; “... qualquer castigo
infligido seria de um efeito moral desastroso, pareceria uma injustiça ao chefe, e a deserção
seria em massa”.15 Em seguida comenta que, após o general Porto Alegre prender o
comandante de um corpo da Guarda N acional, todo ele desertou para o Uruguai. O mesmo
corpo, mais tarde, conduziu-se com bravura no conflito, demonstrando que a deserção era
mais devido a razões de lealdade e dependência pessoal, do que motivada por medo ou
oposição à guerra.
Nos primeiros meses do conflito, o grosso do contingente era composto por gaúchos
que formavam os corpos de cavalaria. O estilo caudilho de guerrear, que, aliás, já era uma
marca do próprio comandante das tropas brasileiras, Osório, caracterizava-se pela

vir a fortalecer a posição argentina (Cartas, Reservados e Confidenciais Referentes à Campanha do Paraguai 
1867-1869, livro 4, Arquivo Nacional).
14
O exército paraguaio de primeira linha, treinado e equipado, havia praticamente desaparecido até a queda
de Humaitá. As batalhas campais de Tuiuti (principalmente a primeira), os diversos combates de menor porte,
as epidemias, as péssimas condições sanitárias e hospitalares, a fome e o frio haviam consumido toda uma
geração masculina em idade militar. A qualidade humana do exército paraguaio foi cada vez mais pobre desde
então. Em Campo Grande (última batalha campal entre os exércitos em choque), em 19 de agosto de 1869,
um exército paraguaio de meninos foi estraçalhado por tropas brasileiras.
15
José B. Bormann, História da Guerra do Paraguai, op. cit., p. 83.
improvisação no que diz respeito às provisões de guerra; vivia-se do terreno. Não é, assim,
de admirar que em Passo da Pátria (começo da invasão do território paraguaio, portanto
antes de qualquer grande combate e tendo a marcha se dado por território argentino aliado),
o grosso de nossa cavalaria já não dispunha de cavalos.
Mesmo os efetivos que chegavam das outras províncias brasileiras não escapavam à
improvisação geral. Para os gaúchos veteranos, eram todos baianos, não afeitos ao pampa e
ao minuano: “Mandai, Mãe de Deus, mais alguns dias de minuano para acabar com tudo
que é baiano” era um dito comum.16
Havia uma diversidade incrível de uniformes, quando havia algum. Não era apenas
um problema de aparência, mas de vestuário adequado para as condições de clima e
terreno. Já citamos o fato de que, durante a invasão do Rio Grande do Sul, soldados
brasileiros combatiam praticamente nus e armados apenas com lanças.
Acampava-se ao relento ou em precárias barracas, em terreno plano, sujeito a
inundações devido às fortes chuvas. O frio era intenso e a tropa não dispunha de proteção
adequada contra ele.
Nesse período, no entanto, não há referências à fome ou a epidemias. Mesmo assim,
eram inúmeras as baixas por doenças e pelo frio.

“Para se ter uma idéia dos sofrimentos e perdas só do exército brasileiro, basta
consignar que em 6 meses de campanha já decorridos, isto é, da marcha de Montevidéu a
Mercedes (ainda em território uruguaio  observação nossa), avançando vagarosamente,
acampando longos dias em um ou outro ponto, já por causa do mau tempo, já pela deficiência
de meios de mobilidade, as baixas, por moléstias, em nossas fileiras, eram computadas em 5
000 homens.”17

O exército aliado, em sua marcha por território argentino, era seguido por uma
multidão de comerciantes, mulheres, crianças, prostitutas, jogadores, aproveita dores e
aventureiros de toda espécie. Podia-se encontrar de tudo nesse “comércio”, contanto que se
tivesse dinheiro: armamento, fardamento, medicamentos, tecidos, vestuário masculino e
feminino, comida, alimentos importados, champanhe, aguardente, jogo, mulheres. A moeda
corrente era a libra esterlina.
Quando a guerra chegou a um impasse diante da fortaleza de Humaitá, o exército
aliado permaneceu acampado em Tuiuti por mais de dois anos. O “comércio”, que seguia o
exército desde sua marcha pelas províncias argentinas de Entre Rios e Corrientes, tornou-se
praticamente uma cidade.
Uma menção especial merecem as mulheres que durante toda a campanha
acompanharam o exército. Eram prostitutas buscando obter lucros da situação, eram
esposas e amantes que seguiam seus companheiros, eram mães que buscavam dar apoio e
cuidados a seus filhos. Elas cuidavam das roupas e da comida de seus companheiros;
muitas vezes atendiam-nos quando doentes; acudiam os feridos em combate; expunham-se

16
Citado por Dionísio Cerqueira, op. cit., p. 72.
17
José B. Bormann, História da Guerra do Paraguai op. cit., p. 107.
ao fogo e, algumas vezes, pegavam em armas.18 Muitas levavam consigo seus filhos
pequenos.
Dionísio Cerqueira recorda-se:

“As enfermidades e os desastres nos iam levando camaradas e abrindo claros nas
fileiras. Em compensação surgia, às vezes, um novo habitante para aumentar a população das
ALDEIAS. Não era muito raro ouvir à noite depois do toque de silêncio um vagido de
criança, que nascia. Na manhã seguinte, fazia sua primeira marcha amarrada às costas de
alguma CHINA caridosa ou da própria mãe, que, com a cabeça envolvida num lenço
vermelho, cavalgava magro MATUNGO, cuja sela era uma barraca dobrada, presa ao lombo
por uma GUASCA.
Esses FILHOS DO REGIMENTO criavam-se fortes e, livremente, cresciam nos
acampamentos, espertinhos e vestidos de soldadinhos, com um gorro velho na cabeça e
comendo a magra BÓIA que com eles e as mães, repartiam os pais, brutais às vezes, mas
quase sempre amorosos e bons”.19

Não eram apenas prostitutas e mulheres humildes de soldados que seguiam a tropa.
Havia também mulheres e mães de oficias, ainda que mais raramente. Isto é verdadeiro
principalmente no que se refere à segunda parte da campanha, já em território paraguaio e
sob o comando de Caxias. Em carta ao ministro da Guerra, de 9 de julho de 1868, dizia ter
dado “...passagem no vapor ‘Arinos’ para essa Corte a Joana Rita dos Impossíveis, mãe de
dois soldados falecidos nesta campanha...” e pedia ao ministro para “... mandar dar-lhe
passagem desde a Corte para a Província do Piauí, d’onde é natural”.20
Do ponto de vista do cotidiano da tropa, o acampamento em Tuiuti e o cerco de
Humaitá representaram, talvez, o período de maior número de baixas de toda a guerra,
ainda que muitas não em combate.
Foram dois anos de acampamento, amontoando milhares de seres humanos em uma
faixa relativamente estreita de terreno, sob fogo de artilharia inimiga, enfrentando
escaramuças e pequenos combates de fricção, em terreno alagadiço e insalubre, com
péssimas condições de higiene, com alimentação deficiente, sujeitos a uma administração
militar ineficaz e muitas vezes corrupta.
Bormann nos dá uma idéia de um terreno particularmente célebre nas imediações de
Humaitá, o Estero Bellaco. Diz que ele é

“... um terreno apertado entre duas correntes de água, Riojas e Bellaco, todo coberto
de capões de mato, atoleiros e banhados; que esse terreno fica submerso na época das

18
Joaquim S. A. Pimentel, Episódios Militares, cita o caso de uma dessas mulheres, de 13 anos de idade, que,
disfarçada de homem, tomou parte no assalto a Curupaiti (o único grande revés brasileiro durante toda a
campanha), sendo ferida e tendo morrido seu companheiro, um soldado comum. Passou a ser conhecida como
Maria Curupaiti.
19
Dionísio Cerqueira, Reminiscências da Campanha do Paraguai; op. cit., p. 99
20
Correspondência sobre a Guerra do Paraguai, vol. 12, Arquivo Nacional. Muitos oficiais receberam suas
famílias e esposas em Assunção, logo após a tomada da capital.
enchentes dos rios Paraná e Paraguai que por ali se espraiam e se reúnem, e então sobre a
superfície vêem-se as porções mais elevadas do solo, como ilhas esparsas; e ainda mais, que
esse terreno, contido entre aquelas duas correntes d’água, tem em sua maior largura 5
quilômetros, que no tempo seco fica todo descoberto”.21

Não é para menos que os aliados o chamassem de terreno maldito.


A completa inadequação do estilo caudilho de guerrear (para a condução do
conflito) fez-se sentir logo após a batalha de Tuiuti. Mesmo vencendo e praticamente
exterminando a nata do exército paraguaio, os aliados mostraram-se sem condições de
explorar sua vitória, devido fundamentalmente à improvisação de sua organização militar.
Durante dois anos, eles permaneceram nas mesmas posições diante da fortaleza de
Humaitá, incapazes de avançar pelo país desconhecido e de suplantar a aguerrida
resistência paraguaia.
Tanto a Argentina como o Uruguai não puderam dar prosseguimento ao esforço de
guerra, e seus contingentes militares foram minguando enquanto crescia em suas províncias
a oposição à luta. Todo o esforço de guerra recaiu sobre o Brasil, que teve que remodelar
seu exército e sua organização militar para levar a cabo seus objetivos estratégicos.
A chegada do marquês de Caxias para comandar as tropas brasileiras marca o início
da reorganização do exército. Sua dupla condição profissional e social (militar e típico
representante da classe dos grandes proprietários e senhores de escravos), é indicativa do
tipo de contradição que a organização de um exército nacional, necessário para a obtenção
da vitória, iria trazer para a sociedade escravista. Como veremos, ao mesmo tempo que foi
o dirigente do processo de criação desse exército, ele tentou por todos os meios evitar as
repercussões sociais decorrentes de sua criação, que poderiam abalar a ordem escravista.
Caxias gastou grande parte do tempo, no início de seu comando, buscando organizar
o exército brasileiro, dando-lhe melhores condições de combate, administração mais eficaz
e restaurando a disciplina. Além de cuidar do abastecimento de armas e munições, garantir
o fornecimento de reforços, homogeneizar o fardamento e adequá-lo às estações do ano, ele
ainda buscou melhorar as condições de higiene e de saúde do acampamento. Em sua
correspondência com o ministro da Guerra, são constantes os pedidos de reforços,
fardamento, barracas, médicos, material hospitalar. Entretanto, todo este esforço
provavelmente só foi capaz de arrefecer o ímpeto das epidemias e doenças, sem, contudo,
alterar qualitativamente o quadro.
Foi nessas condições de terreno e aglomeração de pessoas em péssimas condições
higiênicas que as epidemias iriam ceifar a vida de milhares, principalmente o cólera-
morbo.22
Joaquim Pimentel, provavelmente com algum exagero (aliás, peculiar ao autor), diz
que entre março e abril de 1867 “... fôramos assaltados por uma terrível epidemia do
‘cholera morbus’, que nos ceifou mais da metade do Exército”.23 Em carta confidencial ao

21
José B. Bormann, História da Guerra do Paraguai; op. cit., p. 150.
22
O cólera havia feito sua aparição no Brasil em princípios dos anos 50, e atingia principalmente a população
escrava, devido às suas condições de vida.
23
J. S. de Azevedo Pimentel, O Onze de Voluntários da Pátria, p. 75.
ministro de Guerra, datada de 4 de novembro de 1867, Caxias diz que “a cólera tem
continuado a fazer algum estrago nos nossos soldados, pois já tenho dias de perder dessa
enfermidade 12 homens; há porém uma semana que ela tem diminuído muito”.24
No relatório da Repartição dos Negócios da Guerra de 1869, relativo ao ano de 1868
(portanto, já superada a fase máxima das epidemias durante o cerco de Humaitá), há um
interessante “Mapa das cinco moléstias que reinaram com mais intensidade durante o 4º
trimestre do ano próximo passado”. Por esse mapa verificamos que, de 831 doentes de
cólera-morbo, 367 vieram a falecer (44%), 10 foram transferidos e 436 foram curados; um
percentual bastante elevado de vítimas fatais. As febres e a diarréia também matavam. De
1239 pacientes com diarréia, 71 faleceram (5,7%). Por sua vez, as febres foram
responsáveis por 889 internações, com 50 casos fatais (5,6%). Repetimos que esses dados
referem-se a um período calmo da guerra em termos de doenças. Portanto, eles devem ser
levados em consideração mais no que diz respeito à taxa de mortalidade de cada doença do
que em relação a seus números absolutos.
Todas as descrições de hospitais dos participantes da campanha são péssimas.
Dionísio Cerqueira se pergunta por que havia uma predileção por instalar os hospitais
próximos aos matadouros. Conta ainda casos de completa displicência médica. Diz que
havia soldados que, sofrendo do cólera, preferiam tratar-se ingerindo uma infusão de
pólvora do que ir para os hospitais. Deve-se lembrar, no entanto, que as condições
sanitárias da época, particularmente em conflitos armados, eram péssimas em todas as
partes do mundo. Como um índice da preocupação moderna com as condições sanitárias e
de saúde da tropa, o Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra de 1869 apresenta um
quadro sobre as condições sanitárias da guerra do Paraguai comparadas às guerras de
Secessão e da Criméia. Segundo esse quadro, as condições nos hospitais brasileiros eram
superiores às apresentadas durante a guerra da Criméia e ligeiramente inferiores às da
Guerra de Secessão.
O que fica evidente pelo exposto é que a campanha do Paraguai requereu um
esforço concentrado e coordenado por parte das autoridades imperiais. Por sua vez, a
manutenção da tropa e do equipamento exigiram uma completa mudança nos métodos de
guerrear. Era necessário o cuidado com o abastecimento e com as questões de logística. O
Estado imperial e o comando do exército viram-se obrigados a montar uma poderosa
máquina administrativa para dar conta destas tarefas. Uma máquina que guardava íntima
relação com aquelas organizadas pelos Estados nacionais das nações capitalistas. Essa
máquina, entretanto, não correspondia à base social do Estado imperial, que repousava
ainda na exclusão da maioria da população dos direitos, da vida política e da atividade
econômica principal.

24
Cartas, Reservados e Confidenciais, livro 2, Arquivo Nacional.
VI

O Exército Imperial em campanha: nacional e escravista (II)

A contradição entre as exigências políticas e estratégicas de constituição de um


exército nacional moderno e as bases sociais da sociedade escravista marcou
profundamente o surgimento de um exército nacional no Brasil e trouxe conseqüências
importantes na conformação de seu espírito de corpo e de sua ideologia e cultura de
fundação 1  particularmente em relação ao fim do Império , como já vimos
anteriormente.
Entretanto, a expressão dessa contradição manifestou-se internamente no próprio
exército no decorrer mesmo do conflito. Buscaremos agora mostrar as características
básicas da manifestação dessa contradição no exército imperial em campanha notadamente
na relação entre o corpo de oficiais e a tropa e mesmo no interior da oficialidade.

Os critérios de bravura

Em qualquer conflito armado, a bravura é um dos valores mais exaltados. A


definição do que é bravura, no entanto, é algo que pode variar muito de acordo com o
contexto histórico e com as classes sociais principalmente envolvidas no conflito em
questão.
Como já foi dito anteriormente, a guerra do Paraguai pode ser definida, juntamente
com a Guerra de Secessão e a Guerra Franco-Prussiana de 1870, como um dos primeiros
conflitos totais, característicos do contexto histórico do capitalismo estabelecido.2 O
exército que então se formou foi fruto da mobilização do conjunto da sociedade,
envolvendo todas as classes sociais  ainda que, obviamente, de forma diferenciada  num
esforço nacional. Nesse sentido, sua formação é um dos elementos constitutivos de uma
cidadania brasileira.
Entretanto, a natureza escravista da sociedade imperial, bem como seus padrões de
hierarquia nobiliárquico-monárquicos, fizeram com que a formação do exército nacional se
desse de maneira contraditória: ao mesmo tempo nacional/cidadão e escravista. A
manifestação dessa contradição se deu nas relações internas da instituição militar e mesmo
em seus valores corporativos.

1
César Maia, em artigo no Jornal do Brasil, de 9.7.1988 (“Os Militares”), analisando o papel dos militares na
história do Brasil, emprega esse conceito de ideologia e cultura de fundação das instituições. Segundo ele, o
exército brasileiro busca na sua ideologia e cultura de fundação os elementos que o identificam com uma
entidade abstrata, a nação, e não com a sociedade civil e demais instituições jurídico-políticas do país. Isto se
deve ao fato de que “nas décadas que se sucederam à Independência, surgiu como necessidade inadiável a
defesa e ratificação das fronteiras, a unificação interna”.
2
Capítulo I
Se o desempenho técnico do exército durante a campanha foi relativamente
moderno (engenharia militar, artilharia raiada, emprego de armas de repetição  mesmo que
experimentalmente , uso de balões para observação, hospitais de campanha, etc.), em
termos de valores dominantes, o exército permaneceu atado ao passado. A idéia de bravura
corrente durante o conflito é um claro indício nesse sentido.3
A exaltação da bravura ainda tendia fortemente à valorização da coragem com
honra e tradição. Os batalhões de voluntários combatiam com a bandeira nacional, e os
alferes tinham a incumbência de portá-la e defendê-la. Não são incomuns nas cartas do
comandante-em-chefe ao ministro da Guerra e nos livros de recordação as referências a
inúmeros combates em que destacavam-se os atos de bravura em torno da defesa da
bandeira. Por outro lado, capturar uma bandeira paraguaia era igualmente considerado ato
de extrema importância.
Os ataques obedeciam a ordens de combate que valorizavam a coragem e o garbo. O
uso da camuflagem, de uma ordem de combate mais dispersa e fazendo mais uso da
proteção do terreno estiveram pouco presentes na campanha do Paraguai. A baioneta e a
espada eram consideradas e usadas como armas de grande valia.4
A descrição dos combates, seja nas ordens-do-dia, relatórios e outros documentos,
seja nas recordações pessoais e relatos históricos posteriores, pintam cargas com “Vivas à
Nação Brasileira” e últimos suspiros exalados com o pensamento voltado para a família e
para a Pátria. É óbvio que muitas dessas descrições não correspondem inteiramente ao que
de fato aconteceu. O que importa mais, contudo, é o tipo de visão dos acontecimentos:
sempre ressaltando a nobreza do espírito, o desprendimento moral, o culto à bravura e a
dedicação a Pátria.
As características que ressaltamos até agora, no que diz respeito aos critérios de
bravura, não foram exclusivas do exército brasileiro, e estavam presentes tanto nas forças
aliadas, argentinas e uruguaias, como no exército paraguaio. Nesse sentido, são indícios de
quanto o conflito permaneceu nos marcos de um contexto militar pré-capitalista. Deve-se,
inclusive, salientar que essas características são mais compreensíveis nessas forças
armadas, na medida em que esses países de fato tinham uma estrutura militar pré-capitalista
e arcaica. Mesmo no caso do Paraguai, é interessante notar que o modelo mental  e mesmo
prático  de comparação ainda era o napoleônico e não dos conflitos contemporâneos de
então. Mesmo tendo uma estrutura militar centralizada, as descrições mais pormenorizadas
do estado do exército e da marinha paraguaios dão conta da enorme improvisação, ausência
de uma infra-estrutura e de um desajuste entre a capacidade da sociedade paraguaia e as
dimensões de suas forças armadas.
No caso das forças armadas brasileiras, o que se nota é um certo contraste entre a
modernidade da organização e dos recursos empregados e a permanência de valores ainda

3
. Um exemplo moderno da permanência de antigos valores/critérios de bravura fora do contexto pode ser
buscado no exército francês do início da Primeira Guerra Mundial. Defrontando-se com um exército alemão
imbuído de doutrinas táticas modernas, os franceses contrapuseram o élan de uma poderosa carga de
infantaria trajando garbosos  e vistosos  pantalons rouges. Desnecessário dizer que o ímpeto das calças
vermelhas somente resultou em fracasso e morte ante as metralhadoras alemãs.
4
É verdade que as armas de forgo utilizadas ofereciam pouca rapidez, segurança, precisão e eficiência.
Disparar uma carabina “Minié” e rearma-la com o inimigo a pouca distância demandava tempo e sangue-frio.
calcados numa ordem social e hierárquica nobiliária. Observa-se a profissionalização, no
sentido da criação de uma profissão militar relativamente independente das origens sociais
de seus quadros. Isso, contudo, esbarrava frontalmente com a natureza escravista da
estrutura social do período do Império. Como veremos, a alta hierarquia do exército buscou
a todo custo preservar os valores de diferenciação social no seio do exército, mesmo no que
diz respeito aos critérios de bravura.
O governo imperial e o comando do exército, em especial Caxias, consideravam o
exército como uma das instituições que denotavam o grau de civilização (de acordo com os
parâmetros europeus ocidentais) da sociedade brasileira. Era preciso combater de maneira
civilizada; ser bravo de modo civilizado.
Na correspondência de Caxias a seus auxiliares mais imediatos, eram constantes as
recomendações para que se evitasse o saque, para que fossem respeitadas a propriedade e
os indivíduos civis. Havia ainda recomendações sobre a feitura e o tratamento de
prisioneiros.
Se é verdade que não se pode colocar em dúvida a determinação do comando do
exército brasileiro em seguir as normas civilizadas de guerrear, as constantes
recomendações para que o saque fosse evitado e depoimentos insuspeitos, como o de
Dionísio Cerqueira, não deixam dúvida de que muitos saques e assassinatos eram
praticados. (Essa contradição, aliás, entre a norma e a realidade do comportamento das
tropas está presente em todos os tipos de conflito, em todas as épocas.)
De qualquer modo, havia uma preocupação grande em cumprir as normas, ao menos
no plano das intenções, que caracterizariam uma guerra civilizada. Igualmente a bravura era
uma qualidade da civilização brasileira.
Esse tipo de pretensão, de bravura e cavalheirismo entrava em choque aberto com a
base social do exército, não era um atributo do soldado comum. Em carta confidencial e
reservada ao ministro dos Negócios da Guerra, de 13 de dezembro de 1868, Caxias
comentava os episódios militares que caracterizaram a Dezembrada.5 Depois de dizer que
em relatório anterior sobre o mesmo episódio havia relatado uma versão oficial dos fatos,
no sentido que poderia se tomar pública, ele diz que assim o fez

“... sobretudo porque julguei que não devia escrever nele o que não pudesse ou não
devesse ser publicado.
Agora porém, que a V. Excia. me dirijo em carta confidencial buscarei, ainda que
com profunda mágoa, apresentar a V. Excia. o reverso da medalha manifestando sem rebuço,
e com fidelidade inerente ao meu caráter, minhas profundas convicções fundadas em tudo,
quanto vi, e observei.
Tanto no combate que teve lugar no dia 6 do corrente, como na batalha de 11,
testemunhei com entusiasmo muitos feitos brilhantes por nossos oficiais e tropa, mas a
verdade me obriga a dizer a V. Excia. que também presenciei muitos atos vergonhosos, e que
altamente depõem contra nosso Exército”.

5
Conjunto de batalhas que culminou com o aniquilamento do exército de López e de sua última posição
defensiva ao longo do rio Paraguai, antes da tomada de Assunção por tropas brasileiras.
Em seguida, busca as razões para esse comportamento vergonhoso.

“Ou seja porque a introdução do elemento servil nas suas fileiras esteja produzindo já
seus maléficos resultados por meio dos exemplos imorais, e de todo contrários à disciplina, e
subordinação dados constantemente por homens, que não compreendem o que é pátria,
sociedade e famí1ia, e que se consideram ainda escravos, que apenas mudaram de senhor; ou
seja porque a duração da guerra comece desde agora a arrefecer o ardor de nossos soldados
fazendo-os olvidar seus deveres os mais sagrados; ou seja finalmente porque a maioria dos
oficiais de quaisquer patentes não exerça sobre seus subordinados aquela influência moral,
germem de excelentes resultados, e tão essencial aos Corpos arregimentados, o que é verdade
é que a vitória do dia 6 e a do dia 11 me custaram esforços inauditos.
(...)
Saiba ainda V. Excia., que a perda muito sensível, que nesses dois dias sofremos de
oficiais prestimosos, cheios de inteligência, e de coragem, foi ainda.o resultado da
indisciplina, e tibieza dos Corpos que comandavam”.6

A avaliação de Caxias sobre o comportamento de nossas tropas em combate7


coincide amplamente com a opinião de autores estrangeiros que testemunharam o conflito,
notadamente Thompson e von Versen8, sobre o comportamento das tropas brasileiras em
combate. De maneira explícita, esses autores associam tal comportamento covarde à
composição racial predominantemente negra do exército brasileiro, o que, aliás, era
igualmente feito por paraguaios, argentinos e uruguaios.
Os testemunhos brasileiros, entretanto, são unânimes em ressaltar a bravura de
nossa tropa. Não há, contudo, considerações explícitas e abrangentes sobre a presença
predominante de negros no contingente e, muito menos, de escravos alforriados para o
serviço militar.9 Muitas vezes aparecem referências à rudeza e ignorância das tropas,
sempre, no entanto, associadas a sua boa índole, ingenuidade e bravura.
As observações de Caxias sobre a composição social da tropa e, em especial, a
presença de escravos forros nas fileiras do exército é bastante significativa da visão de um
quadro dirigente da classe dominante sobre a civilização do Império e sua base social no
que diz respeito a uma instituição, em particular, o exército.

6
Cartas, Reservados..., carta confidencial e reservada ao ministro dos Negócios da Guerra de 13.12.1868,
livro 4. Em carta confidencial de 26.12.1868, volta a tratar do mesmo tema.
7
Essa opinião, na verdade, só se manifesta ao final da longa correspondência  nos mais de dois anos em que
esteve à frente de nosso exército  de Caxias com o ministro. É possível que Caxias estivesse querendo forçar
uma opinião: a necessidade do fim da guerra, inclusive pelo cansaço das tropas, ou justificar, pela falta de
combatividade da tropa, a fuga de López depois da batalha de Lomas Valentinas (como de fato justificou na
confidencial de 26 de dezembro). É possível ainda que realmente esse comportamento das tropas brasileiras
só tivesse se manifestado por ocasião dos combates da Dezembrada.
8
George Thompson, Guerra do Paraguai, Rio de Janeiro, Conquista, 1968; Max von Versen, História da
Guerra do Paraguai, Belo Horizonte, Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
9
Conferir Dionísio Cerqueira, Reminiscências...; Joaquim Pimentel, O Onze de Voluntários e Episódios
Militares; Taunay, A Retirada da Laguna, e as notas de Cunha Matos ao livro de von Versen.
Como veremos a seguir, as referências de Caxias ao problema da base social do
exército não se restringem apenas à questão da bravura e do comportamento da tropa em
combate, mas dizem respeito principalmente às relações sociais no interior da instituição
militar.

Promoções, condecorações e disciplina no exército imperial: a marca escravista

A criação de um exército profissional no Brasil imperial trouxe como conseqüência


a necessidade de quadros numa escala até então desconhecida pela instituição militar.
Como já mencionamos, mais importante que constatar a origem social da oficialidade é
reconhecer que uma profissão militar como atribuição de uma parcela assalariada da
população fora criada.
O acesso ao oficialato, entretanto, ainda que consideravelmente ampliado, não se
estendeu ao conjunto da população que teoricamente gozaria das prerrogativas da
cidadania. Além dos escravos forros, permaneceu sem muitas possibilidades de chegar ao
oficial ato o grosso da tropa, composto por negros, mulatos e brancos das camadas pobres e
marginalizadas da população.
Em sua maioria, as promoções e o acesso à carreira militar permaneceram restritos,
além dos proprietários de terras, às camadas médias, que mantinham algum vínculo com as
instituições e o sistema econômico e administrativo.
As hierarquias dirigentes do exército e do Império tentaram cooptar esses grupos
para o interior da instituição militar sem, no entanto, comprometer a rígida estrutura social
excludente do sistema. Não tendo, contudo, condições de oferecer vantagens econômicas,
sociais, corporativas e morais significativas, mostraram-se diante desses setores, ao mesmo
tempo, incapazes de representar o conjunto da nação e corruptas, ineficientes e arraigadas à
manutenção de privilégios arcaicos.
Ao não conseguir oferecer vantagens econômicas e corporativas para as camadas
médias emergentes pela modernização do aparelho econômico e pela urbanização, ao não
conferir um lugar de destaque e prestígio a uma instituição que acabara de se forjar no
sacrifício pela Pátria, a classe dominante escravista acentuou o que havia de comum entre
os setores médios e as camadas populares e a população escrava, ainda que em graus
bastante diferenciados: a marginalização. Assim, a instituição da escravidão do negro,
longe de reforçar os elos entre os setores emergentes da população livre e assalariada e o
setor dominante da economia e da administração, enfraqueceu-os. Ao contrário, o
sentimento preponderante nesses setores era o de pertencer a uma nação cuja elite, atada a
velhos e vergonhosos privilégios mundialmente condenados, mostrava-se incapaz de
conduzir o país ao progresso e à prosperidade.

Quando analisamos a política de promoções no decorrer do conflito, deparamo-nos


com o dilema que marcou a alta hierarquia militar: como incorporar os setores emergentes
com a guerra aos quadros da instituição sem, no entanto, abrir mão de velhos privilégios?
Em sua correspondência com o ministro dos Negócios da Guerra, são constantes as
referências de Caxias às promoções para o quadro de oficiais e à questão da incorporação
de oficiais dos corpos de Voluntários da Pátria às fileiras do exército regular.

“Têm entendido alguns Presidentes de províncias que se acham autorizados para


nomear oficiais ou promoverem a postos superiores indivíduos, que pertencendo à Guarda
Nacional das respectivas Províncias para aqui vieram como designados para auxiliar o
Exército, e ficaram desde logo sujeitos às leis e foro militares.”10

Em seguida dizia que, ao efetuarem-se as promoções, somente o critério da atuação


dos indivíduos deveria ser levado em conta.
Segundo seu ponto de vista, as promoções por merecimento seriam uma forma de
renovar as fileiras do exército com jovens oficiais, já que ele considerava até mesmo o
quadro de generais como pobre.11
Caxias entendia que os oficiais e mesmo praças dos corpos de Voluntários que se
destacassem no teatro de operações não só deveriam ser promovidos, como também
deveriam ser incorporados aos quadros do exército regular. Isso fica claro em longa carta
que dirigiu ao ministro dos Negócios da Guerra em setembro de 1868:

“É de urgente e palpitante necessidade adiantar em postos muitos oficiais distintos e


ainda moços, que aqui vejo, arriscando diariamente suas vidas e tornando-se cada vez mais
comendáveis por suas qualidades”.

Prosseguia dizendo que

“...aqui se acham moços distintos por suas famílias e posição, os quais tendo tudo
abandonado, para aqui marcharam, acudindo ao reclamo da Pátria...
Vossa Excia. sabe melhor do que ninguém que, por um concurso de circunstâncias
deploráveis, o nosso Exército contava sempre em suas fileiras grandes maiorias de homens
que a sociedade repudiava por sua péssimas qualidades”.

Considerava que era uma anomalia que um país regido por instituições livres

“... não possua uma lei de conscrição tão conforme ao princípio da igualdade e de que
estão já de posse Nações menos adiantadas que a nossa. Se dessas considerações resultou o
ter sido o nosso Exército até a presente guerra aquilo, que eu acima disse, piores se tornaram

10
Correspondência do Comando em Chefe com Várias Autoridades sobre Assuntos Referentes à Guerra do
Paraguai, vol. 12, Arquivo Nacional, códice 932. Carta de 3.10.1868.
11
Cf. Cartas, Reservados e Confidenciais eferentes à Campanha do Paraguai (1867-69), livro 4, Arquivo
Nacional, códice 924.
suas condições, depois que infelizmente se introduziu em suas fileiras o elemento servil;
chegando a tal ponto o seu estado atual, que já se encontra suma dificuldade de se acharem
praças, que possam ser Cabos e Sargentos. Daqui a necessidade de inculcar nele
individualidades aproveitáveis, como são aqueles que referi anteriormente; sobretudo quando
muitos deles se achariam completamente desabrigados, ao terminar a guerra (se não
pudessem permanecer nas fileiras do exército regular)...”.12

Tratava -se por um lado de renovar os quadros do exército imperial: dotá-lo de um


corpo de oficiais profissionais combatentes através de um sistema de promoções que
premiasse os mais competentes e não aqueles que contassem com algum tipo de privilégio
ou proteção. Por outro lado, havia a necessidade de uma lei de conscrição militar mais de
acordo com o

“... princípio da igualdade e de que já estão de posse Nações menos adiantadas...”.

O projeto de formar um exército moderno e poderoso correspondia às pretensões


políticas do Império no subcontinente platino.
Toda essa concepção de um exército moderno  à base da conscrição dos cidadãos e
da carreira militar aberta a todos  esbarrava, no entanto, na estrutura de classes da
sociedade imperial escravista. Ainda que abrindo suas fileiras aos elementos oriundos das
camadas médias, o exército imperial deveria permanecer fechado à imensa maioria da
população, que somente em caso de extrema necessidade deveria ser incorporada.
O “princípio de igualdade” que deveria nortear a lei de conscrição militar, base para
a constituição de um exército moderno, era válido para poucos: o elemento servil e “as
grandes maiorias de homens que a sociedade repudiava” eram um mal necessário nas
fileiras. Sua presença deveria ser compensada pela incorporação de elementos livres aos
quadros de oficiais. O escravismo imperial chocava-se com suas pretensões de formação de
um exército nacional, instrumento de uma política de Estado nacional, num contexto em
que ele paulatinamente perderia poder de barganha ante os demais Estados nacionais
modernos.
Para Caxias, a incorporação de novos oficiais, além de seu papel modernizador,
deveria também desempenhar um papel regulador defensivo diante do inevitável, mas
incômodo e indesejado, ingresso dos elementos de baixa extração social no exército. Ele
não percebia que não poderia haver lei de conscrição moderna sem extensão dos direitos da
cidadania mínima ao conjunto da sociedade. Sua ação se dava, ao contrário, no sentido de
restabelecer no interior da própria instituição militar a rígida divisão social e hierárquica da
sociedade escravista que, momentaneamente, havia se tornado difusa no processo de
mobilização nacional.
A exclusão dos setores populares  é bom lembrar que o elemento servil introduzido
nas fileiras era, a partir do ato de inclusão, legalmente livre  dos direitos da cidadania no

12
Idem. Confidencial ao ministro dos Negócios da Guerra, de 2.9.1868, livro 4.
interior da corporação militar fica mais clara quando consideramos a política de pagamento
de soldos de Caxias.
Justificando o atraso do pagamento de soldos aos praças, ele escrevia ao ministro
dos Negócios da Guerra, em carta confidencial de 12 de novembro de 1868:

“...a respeito das praças de pret, atraso, que até três meses era minha opinião, que se
mantivesse sempre não só para evitar os males, que a experiência demonstra que se dão
sempre que o soldado está pago em dia, influindo até essa circunstância no maior, ou menor
número de deserções, como porque a Fazenda lucra com ele, pois que revertem sempre aos
seus cofres somas consideráveis provenientes do falecimento por moléstia, ou em combate de
muitas praças do Exército, sem família, ou herdeiros, que aliás não sofrem privações por não
estarem pagos em dia, por isso que nem lhes falta alimentação, nem vestuário e calçado”.13

Era diferente, na sua opinião, o caso dos oficiais. Estes deveriam receber em dia, já
que deveriam cobrir suas necessidades e gastos pessoais.
No cotidiano do exército em combate, os voluntários da Pátria, iguais ao imperador
nessa condição, permaneciam expatriados, excluídos e sem poderem dispor de suas
pessoas. Não tinham acesso imediato a seu soldo e também não tinham premência de cobrir
suas necessidades e gastos pessoais; outros  seus senhores?  o fariam em seu lugar.
A lógica da administração do exército, ao mesmo tempo que, no campo da logística,
buscava ser moderna e contemporânea das outras nações, no que diz respeito aos soldados
era a lógica da administração da senzala. O soldo nada tinha a ver com uma remuneração;
era visto como uma espécie de recompensa, afeito às questões de ordem disciplinar.
A diferenciação de direitos no interior da instituição militar obedecia aos padrões
sociais da sociedade escravista. Não interessava o fato de que, ao pertencerem ao exército
e, em especial, aos corpos de Voluntários da Pátria, todos eram igualmente livres e
cidadãos brasileiros. Uns eram mais livres e iguais que outros.
Essa questão se refletia com maior intensidade quando se tratava da disciplina e das
relações entre oficiais e soldados.
Em qualquer exército de então, os padrões de disciplina eram extremamente rígidos
e guardavam ainda muitas marcas dos códigos disciplinares do século anterior. No exército
imperial, contudo, tais características não só representavam elementos constitutivos da
coesão interna da instituição militar, como eram ainda derivados das características
particulares da sociedade: escravista e excludente, com uma capacidade mínima de
incorporação de novas camadas sociais aos direitos da cidadania, por um lado, e com a
pretensão de estágio civilizatório europeu, por outro.
A perpetuação de privilégios sociais e nobiliárquicos no Brasil Império parecia algo
natural e adequado. A adoção do trabalho escravo e as diferenças de cor e o preconceito
racial pareciam acentuar a nobreza e a superioridade da classe dominante. No entanto, toda
a pretensão de estágio civilizatório de acordo com os padrões europeus esbarrava na rigidez

13
Cartas, Reservados..., carta confidencial de 12.11.1868. livro 4.
social. Enquanto na Europa era viável que o capitalismo se desenvolvesse no seio de
sociedades que ainda mantinham muitos dos velhos privilégios, no Brasil escravista,
agrário-exportador e dependente, isso era quase impossível.
Fazer um chamado patriótico à nação, mobilizar um exército nacional moderno e
assegurar a manutenção dos privilégios hierárquicos nesse exército fez florescer uma
infinidade de contradições no seu interior e, mais tarde, no próprio tecido social.
Mais uma vez vamos nos valer da palavra de Caxias para exemplificar nosso ponto
de vista.
Entre novembro de 1867 e abril de 1868, há uma extensa troca de cartas entre
Caxias e o ministro dos Negócios da Guerra sobre um tema bastante peculiar e ilustrativo: a
condecoração de simples soldados com medalhas de honra do exército e do Império.
Nada mais lógico, em especial numa guerra que havia recorrido à convocação de
voluntários, que os atos de bravura fossem recompensados com as condecorações que
expressassem o reconhecimento do Império e da nação. E assim buscou agir o governo
imperial.
Tal não era, contudo, o pensamento de Caxias. Em carta ao ministro, de 2 de
dezembro de 1867, ele alegava as razões para sua posição:

“Graves, Exmo. Sr., gravíssimos são os inconvenientes, que já têm resultado, e


continuarão a resultar de se conferir às praças de pret condecorações, a que estão inerentes
honras militares. A disciplina e a subordinação, sem as quais não pode haver Exército digno
de tal nome, se ressentem e sofrem profundos golpes com lançar-se ao peito de um simples
soldado condecoração, que o eleva ao posto e honras de Capitão. A natureza do soldado se
modifica desde logo”.

Os oficiais teriam que tratar de forma distinta os soldados assim condecorados.

“Daqui a altivez, relaxação, a indisciplina, o contagioso mau exemplo, e o


rompimento de a base, em que se acenta a Força armada arregimentada, que nossa
Constituição proclama com sabedoria, essencialmente obediente.
Se Vsa. Excia. atentar aos elementos, de que, até a época da presente guerra, se
compunha em sua grande maioria o nosso Exército, se atentar sobretudo ao [elemento], com
que atualmente se estão refazendo nossas fileiras, há de achar que tenho razão por mim.”

Em seguida, relatava fatos “deploráveis” como o do soldado que desobedecera ao


alferes que o comandava, mostrando-lhe sua condecoração, obrigando este último a
esbofeteá-lo.
Chamava a atenção do ministro para o fato de que
“... muitas vezes se dá o caso de desenvolver no fogo, bravura indomável, temeridade
mesmo o soldado que normalmente é relaxado (...) e desconhecedor de todas as regras de
disciplina pelo que já tem sido corporalmente castigado. Não é raro o caso de achar-se ébrio o
soldado na ocasião em que pratica atos do maior arrojo”.

Recomendava a criação de uma medalha de ferro ou bronze que fosse conferida


pelo próprio general-em-chefe e não pelas autoridades imperiais, ou ainda recompensas em
dinheiro e pensões, como formas corretas de se premiar a bravura dos soldados. Abria
mesmo a possibilidade de promoções.
Concluía mostrando-se disposto, a bem da disciplina, a dar baixa aos praças que
fossem distinguidos com condecorações.14

A manutenção da coesão do exército através da disciplina só era possível, na visão


de Caxias, a partir da reintrodução em seu corpo das hierarquias e diferenças sociais. Mais
uma vez, a qualidade do material humano da tropa (raça? extração social?) era alegada no
sentido de que os soldados seriam incapazes de portar as medalhas, honrarias e os preceitos
civilizados do exército imperial. Ao contrário, Caxias implicitamente reconhecia que estes
preceitos repousavam na exclusão e no controle disciplinar da tropa. A civilização, a
cidadania eram para alguns; sua extensão à massa dos soldados punha em perigo sua
própria existência.
Concluir apressadamente que a ação de Caxias reduzia-se às funções de um feitor
ou senhor conduzindo seus escravos e agregados à luta sob o látego é parcial e falso. É
evidente que a sociedade escravista, e ainda mais seu exército como instituição ligada ao
monopólio da violência pelo Estado, dependia em larga medida do emprego dessa mesma
violência. A questão era, em primeiro lugar, garantir o emprego da coerção e, em segundo,
garantir sua legitamação moral.
A preocupação de Caxias era evitar uma situação em que a ordem social escravista
se desfizesse no interior do exército. Chamava a atenção para a necessidade de restaurar o
princípio hierárquico básico dessa ordem e seu pressuposto de que a grande massa era
incapaz de conviver e vivenciar os valores do topo da hierarquia social; quando praticavam
atos de bravura, o faziam porque, muitas vezes, estavam bêbados e não pela adesão aos
valores mais altos de amor à Pátria, dedicação ao imperador, etc.
Mesmo quando os atos de bravura estavam assentados no verdadeiro patriotismo 
e, ao longo de toda sua correspondência com o ministro, não são poucas as vezes em que
Caxias se refere ao heroísmo e bravura dos soldados em termos elogiosos , o que estava
em questão era o lugar dessa bravura. Cabia reconhecê-la e recompensá-la sem contudo
ferir a hierarquia social, base da hierarquia militar: pensões, prêmios em dinheiro e
medalhas especiais de acordo com o lugar social dos envolvidos. Em casos especiais, até
mesmo guindar elementos provenientes da tropa para o corpo de oficiais era uma forma de
não permitir a fluidez e a interseção entre as esferas de hierarquia social.

14
Idem, de 2.12.1867, livro 2.
Em abril de 1868, Caxias conseguiu impor seu ponto de vista ao governo imperial.
A medalha por ele proposta para agraciar os atos de bravura de elementos da tropa foi
criada.
O lugar da disciplina no interior de um corpo militar em que, para além das
diferenças de competência e comando, havia a diferença social, repousava na ministração
de castigos e recompensas por parte da camada hierarquicamente superior aos de baixo, de
outro modo incapazes de se adaptar e vivenciar as normas e padrões de comportamento
necessários. A tensão e a violência eram, então, a marca predominante nessas relações
disciplinares.
Os castigos corporais eram constantes, e o comando empregava subterfúgios para
burlar as restrições que o governo imperial muitas vezes impunha a seu poder de vida e
morte sobre a tropa.
Dionísio Cerqueira relata o castigo de dois soldados que haviam atacado um oficial
estrangeiro. Por determinação do governo imperial, a aplicação da pena de morte só poderia
ser feita após o réu ter apelado ao governo e com autorização deste (como veremos, quase
todas as sentenças eram comutadas). Neste caso, a solução foi simples: diante da tropa
formada, os dois foram condenados a receber 1 800 pranchadas nas costas. Ninguém havia
sido condenado à morte. Era uma fatalidade que, no decorrer da aplicação da sentença, eles
viessem a falecer.15
Mais importante  e mais constante  que a questão das condecorações na
correspondência de Caxias é o problema da comutação das sentenças de morte, por parte do
governo imperial, a soldados proferidas pelo conselho militar do exército em campanha.
A insistência de Caxias para que as sentenças não fossem comutadas pelo imperador
e pelo Conselho de Estado dá uma idéia da tensão das relações entre o corpo de oficiais e a
tropa e de como sua utilização amiúde era fundamental na manutenção da ordem no
exército.
Não se tratava apenas de coibir as deserções, de resto freqüentes. Era a própria
preservação física do corpo de oficiais que estava em jogo. Caxias chegou a mencionar que
em oito dias, no acampamento de Tuiuti, ocorreram três tentativas de morte contra oficiais.
Ele responsabilizava as comutações das sentenças de morte como causa da crescente
violência da tropa contra os oficiais. Chamava a atenção para fato

“... que tão peno afeta a moralidade do Exército sob meu comando, e a vida destes
moços bravos, que cheios de patriotismo aqui se acham como oficiais, e que têm razões para
exigirem que suas existências sejam garantidas...”.16

Os acontecimentos relatados não eram fatos isolados. Os ataques a oficiais ocorriam


com constância e pelos mais variados motivos: defesa contra maus-tratos, reações a

15
Dionísio Cerqueira, op. cit., pp. 90 e segs. O fato aconteceu sob o comando de Osório, ainda em território
argentino. Mais adiante, entretanto, ele relata ter visto os dois soldados vivos, tempos depois da aplicação da
pena.
16
Cartas, Reservados ..., confidencial de 21.1.1868. livro 3.
perseguições, vingança, roubo. O fato é que a punição era a peça chave para a manutenção
da coesão e da ordem no exército.
A questão da escravidão estava na raiz de tais acontecimentos:

“V. Excia. sabe que infelizmente, têm hoje a honra de se acharem nas fileiras do
Exército Brasileiro, muitos soldados que deixaram os ferros da escravidão para se
constituírem defensores e guardas da honra e dignidade da Nação Brasileira. Infelizmente é
também verdade sabida que a maioria desses indivíduos constituía tudo quanto a escravidão
encerrava em si de mais abjeto e degradante. Escravo de boa índole, mourejado e educado
nos hábitos do respeito e obediência, rarissimamente terá cá chegado. Manter a ordem e a
disciplina, sustentar a subordinação e obediência com tais elementos é dificílimo”.17

E, ainda em outra carta, descreve os punidos como

“... réus convictos de haverem covarde e traiçoeiramente assassinado oficiais seus


superiores, e algumas vezes até seus benfeitores”.18

Ordem, disciplina e coesão do exército estavam juntas, mais uma vez, com as
condições sociais e hierárquicas da sociedade que havia originado o exército. Se o
chamamento dos voluntários da Pátria havia obscurecido momentaneamente as rígidas
fronteiras sociais e hierárquicas, tratava-se de restabelecê-las no interior da corporação
militar. A presença de escravos  já então livres, voltamos a insistir  e, como já vimos, dos
setores da população de extração social mais baixa, era uma infelicidade. Particularmente
porque faltava aos elementos presentes nas fileiras as qualidades do bom e mourejado
escravo. Para Caxias, tratava-se de inculcar nesses elementos não os valores da cidadania e
da igualdade, e sim da obediência característica do bom escravo. Como vimos antes, era
diferente sua idéia a respeito dos jovens que ingressavam no corpo de oficiais. Estes
deveriam ser incorporados, cooptados. Sua presença era mesmo vista como benéfica e
renovadora à instituição militar. Esta era a tarefa: estender a predominância moral, a ordem
e a autoridade imperial como forma de assegurar no exército a hierarquia e a divisão social
da sociedade escravista. Tais eram os conceitos possíveis de valores morais patrióticos, de
ordem e disciplina. A igualdade jurídica e formal era tida como  e de fato seria, se mantida
 desagregadora.

A formação de um exército profissional moderno era uma necessidade do


desenvolvimento da sociedade e do Estado imperial escravista. Seja como elemento de
ordem interna e de monopólio da violência por parte do Estado centralizado, seja como seu
instrumento de força para sua política externa, o Estado imperial gestaria seu exército
nacional. Nesse sentido, ele era a expressão da extensão hegemônica do Estado imperial

17
Cartas, Reservados..., cana de 4.12.1867. livro 2.
18
Cartas, Reservados..., reservado de 13.4.1868, livro 3.
sobre o conjunto da sociedade e elemento de afirmação e defesa desse Estado em relação ao
contexto internacional.
O exército, entretanto, tinha como paradigma, não apenas como modelo ideal e
moral, mas como necessidade prática, os exércitos nacionais que expressavam a
consolidação dos Estados nacionais nos países de desenvolvimento capitalista.
A guerra do Paraguai acelerou e ampliou as necessidades de criação desse exército.
O Estado imperial foi obrigado, para sua formação e manutenção, a recorrer e a fazer uso
de recursos humanos e materiais muito além de sua capacidade aglutinadora moral e
material.
Por um lado, tratava-se de dotar o Estado imperial de um aparelho militar moderno,
tanto do ponto de vista dos armamentos e da preparação técnica, da eficiência e da
capacidade nacional de mobilização, como também do ponto de vista da ampliação de sua
base social e, conseqüentemente, de sustentação do próprio regime.
Por outro lado, essa ampliação da base social do exército  condição de sua
modernização e, em certo sentido, da própria pretensão a civilização e a um papel de
destaque do Império no concerto das nações  sem estar acompanhada de uma abertura
mais ampla do conjunto da sociedade escravista para os setores médios e mesmo populares
não escravos era absolutamente impossível.
Como em parte as outras necessidades modernizantes da sociedade escravista
brasileira do século XIX geradas e conduzidas a partir do Estado imperial, a formação de
um exército nacional moderno, se era ao mesmo tempo um índice de estabilidade, riqueza e
poderio da civilização escravista imperial, também indicava seus limites; produzia espaços
contraditórios em seu tecido social e econômico.
No caso do exército, a sociedade imperial, movida por suas contradições, gerou em
seu interior elementos que, em lugar de o tornarem o último bastião de defesa da ordem
escravista e imperial, permitiram que dele surgissem os instrumentos imediatos de sua
destruição.
VII

Conclusão

Vimos como o exército, enquanto instituição, tem sua formação vinculada à crise da
sociedade imperial escravista brasileira e, especificamente, como ao ligar esse fato ao seu
desempenho na guerra do Paraguai criou-se no seu interior uma mentalidade de que seus
porta-vozes expressavam anseios do conjunto da nação. Como diz o general Lyra Tavares,
no prefácio que escreveu para a edição especial das Reminiscências da Campanha do
Paraguai, de Dionísio Cerqueira:

“... a Guerra do Paraguai se projetou, como acontecimento decisivo, na evolução


histórica da nacionalidade, a partir da Independência, graças à visão esclarecida e ao
empenho de Caxias, em cujo espírito pairava a permanente preocupação de organizar o
Exército com expressão de todo o povo mobilizado, pronto para atender quando já se
pressentia vir a ser necessário, ao chamamento da Pátria”.1

Como cremos já ter demonstrado ao longo de nosso trabalho, a visão de Caxias de


um exército de cidadãos guardava uma importante característica particular ao contexto
social escravista que informou a formação do exército: do conceito de cidadão estavam
excluídos aqueles julgados incapazes de partilhar os valores morais da nação brasileira
expressos na ordem e na civilização imperiais: os escravos e também a grande maioria da
população livre despossuída e relegada à marginalização política e jurídica. A jovem
geração de oficiais que se formou na guerra, oriunda das camadas médias que então
ganhavam peso social e econômico, foi exposta e reagiu a essa contradição. Mais ainda
quando, no pós-guerra, a ordem imperial mostrou-se incapaz de absorver todos os setores
sociais que emergiam e que tinham no exército um canal de participação institucional,
principalmente essa jovem oficialidade.
A partir da guerra do Paraguai, o exército passou a estar indissoluvelmente ligado à
nossa história política, e o próprio fim da monarquia, significativamente, teve nos militares
os atores imediatos de seu desfecho. Desde então, com pesos e conotações políticas
distintos, o exército desempenhou importante papel em diversos períodos e conjunturas de
nossa vida política: na consolidação do regime republicano, na candidatura Hermes da
Fonseca, no movimento tenentista da década de 20, na revolução de 30, no levante
comunista de 35, no golpe do Estado Novo, na redemocratização pós-Segunda Guerra e,
finalmente, no golpe de 64 e nos governos militares que se seguiram por mais de vinte
anos.
Com conteúdo político mais à direita  na maioria dos casos e principalmente
naqueles em que a intervenção militar na política foi coroada de êxito  ou à esquerda, a

1
Dionísio Cerqueira, Reminiscências..., op. cit., p. 13.
ação política dos militares sempre guardou dois componentes importantes: algum tipo de
vinculação com os setores médios e um discurso em nome dos interesses nacionais e do
povo.
Esse povo, contudo, não é apenas uma abstração política, no sentido de legitimar
interesses e objetivos de determinados setores sociais. Enquanto instituição que tem sua
história, tradições e valores particulares, o exército produz uma outra abstração: um
conceito envergonhado de povo brasileiro. O povo mestiço, negro, analfabeto, doente não é
propriamente o povo que freqüenta a imaginação militar, mais afeita a uma visão de um
povo mais branco, mais saudável e mais garboso. O povo brasileiro real é tido como algo
que deve ser melhorado, civilizado.2
Essa aparente contradição entre falar em nome do povo e, ao mesmo tempo,
partilhar um sentimento de desprezo e vergonha em relação a ele já estava presente no
próprio momento de formação do exército, no decorrer da guerra do Paraguai. Não foi
apenas Caxias, militar e intelectual do império escravista, que, como vimos, expressava
claramente esta visão. Os próprios jovens oficiais, que vão passar à oposição crescente à
ordem imperial do pós-guerra, viam o povo real com desconfiança e incredulidade quanto à
sua capacidade de partilhar valores morais e uma participação política mais elevados. Sua
ação política nos primeiros anos da República dá bem uma mostra dessa desconfiança. No
mesmo momento histórico e em nome do mesmo ideal de progresso em que destroem a
monarquia, arrasam Canudos e reprimem a plebe urbana em diversas de suas manifestações
cotidianas.3
A historiografia, a tradição e o imaginário militares sobre a guerra do Paraguai não
deixam dúvidas acerca do que acima consideramos. Não há estudos sérios sobre a
participação de escravos e negros na guerra e na formação da instituição militar.
As pinturas e referências literárias de batalhas e combates  e aqui estamos
incluindo as próprias memórias dos contemporâneos e não apenas a literatura posterior 
estão longe de retratar a realidade.
Significativamente, no Rio de Janeiro, durante as comemorações dos Cem Anos da
Abolição, o exército saiu às ruas diante da eventualidade de uma passeata do movimento
negro vir a realizar protesto ante o monumento e túmulo de Caxias.
Finalmente, mesmo reconhecendo que os padrões elitistas estiveram presentes nas
intervenções políticas militares tanto à direita como à esquerda, devemos considerar uma
tendência histórica mais abrangente que foi se revelando ao longo do tempo e se
sobrepondo ao movimento pendular das incursões militares na política. Paralela à
consolidação do Estado nacional capitalista, a instituição militar  sobre a qual repousou
em larga medida a manutenção da ordem e, mais importante, uma direção política
capitalistas  tomou-se profundamente conservadora.

2
Evidentemente, a glamurização do povo brasileiro não é atributo exclusivo dos militares, e sim da grande
maioria das elites brasileiras.
3
Sobre a repressão às manifestações populares urbanas no início da República, especificamente no caso da
Revolta da Vacina Obrigatória, conferir José Murilo de Carvalho, Os Bestializados. Companhia das Letras,
São Paulo, 2ª ed., 1987.
Do ponto de vista de seu ideário, fechou-se um ciclo e, hoje, Caxias é o patrono do
exército não apenas por seus valores profissionais, mas também por sua ação política
interna. Mais uma vez é o general Lyra Tavares quem exemplifica nosso ponto. No
parágrafo que antecede a citação acima e que abre seu prefácio às memórias de Dionísio
Cerqueira, ele diz:

“Agora, quando o Brasil celebra o primeiro centenário do falecimento do maior de


todos os seus soldados, parece que é a hora própria para exaltar, com o destaque merecido,
entre todos os relevantes serviços prestados pelo Duque de Caxias à Nação Brasileira, o da
integração cívica do povo. Além de pacificá-la, contendo os excessos partidários e
reprimindo os movimentos de rebeldia, era preciso uni-la, no quadro solidário do mesmo
contexto moral, fundado no espírito de fidelidade à Pátria”.4

Toda a inquietação presente na mentalidade dos jovens oficiais que, na guerra do


Paraguai, contemplaram a ferida aberta da escravidão, está esquecida. O exército nacional
paira acima da República. Sua história deve acentuar a continuidade entre o exército
imperial escravista e o exército nacional republicano. Essa continuidade, paradoxalmente,
tem por base contextos sociais bastantes semelhantes, em que há a característica comum de
exclusão da maioria da população dos direitos da cidadania.

4
Idem, ibidem, p. 13.
Apêndice
Cronologia das operações de guerra

O objetivo deste apêndice é tão-somente o de fornecer elementos de referência


sobre as fases das operações de guerra àqueles que, desconhecendo as marchas e
contramarchas do conflito, sintam necessidade de ter estas informações para melhor
compreensão do texto.
Os dados que se seguem, além de nosso conhecimento esparso sobre o assunto,
estão baseados na boa cronologia militar das operações do general Antônio de Souza
Júnior1 e no livro de Hernâni Donato.2

As hostilidades tiveram início após uma troca de correspondência entre o governo


paraguaio e o governo imperial, na qual aquele se mostrava contra a intervenção de tropas
brasileiras no Uruguai.3
Em 11 de novembro de 1864, o vapor brasileiro Marquês de Olinda foi apreendido
em Assunção. No dia 13 de dezembro, o Paraguai declarou formalmente guerra ao Brasil.
As operações militares ocorreram em dois teatros de guerra distintos: No Mato
Grosso e, principalmente, ao longo dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Para efeito de
exposição, vamos relatar os acontecimentos em cada um dos teatros de operação
separadamente.

Operações militares no Mato Grosso

Logo após a declaração formal de guerra, López enviou ao Mato Grosso uma coluna
militar por terra e outra expedição fluvial. A resistência militar brasileira foi praticamente
inexistente, já que o território achava-se muito mal defendido. Em janeiro de 1865, as
tropas paraguaias ocupavam a região de Coxim e carreavam para o Paraguai gado e
material bélico capturado durante seu avanço.
Uma expedição brasileira, saindo do Sudeste, foi enviada à região por via terrestre
atravessando as províncias de Minas Gerais e São Paulo. Mesmo perdendo numeroso
contingente ao longo de sua marcha de aproximação, seja por doenças, seja por deserções,
as tropas brasileiras chegaram até o território paraguaio. Assolada por uma epidemia de
cólera, constantemente fustigada pela cavalaria paraguaia, a coluna foi obrigada a iniciar
um processo de retirada sob permanente hostilidade inimiga que, por pouco, não se
transformou em verdadeira debandada. Esse episódio constituiu a retirada da Laguna.
Até o final da guerra, este teatro de operações permaneceu estável.

1
“A Guerra do Paraguai”, in História Geral da Civilização Brasileira, op. cit.
2
Hernâni Donato, Dicionário das Batalhas Brasileiras, São Paulo, IBRASA, 1987.
3
Cf. capítulo 11.
Operações militares no teatro de operações principal

Pouco depois da invasão do Mato Grosso (em março de 1865), tropas paraguaias
invadiram a província argentina de Corrientes, após ter sido negado o pedido de López para
que suas tropas pudessem percorrer o território argentino para invadir o Brasil.
Depois de pequenos combates, os paraguaios ocuparam Corrientes. Entretanto, em
11 de junho, a marinha brasileira destroçava a frágil marinha paraguaia em Riachuelo. O
domínio do rio Paraná e de toda a bacia platina que resultou desse combate praticamente
selava a sorte do conflito. Bloqueado em sua única via de acesso ao exterior, o Paraguai
encontrava-se à mercê de qualquer ação militar aliada ao longo do rio Paraguai, dominado
pela marinha brasileira.
A vantagem estratégica da batalha de Riachuelo não foi, todavia, integralmente
aproveitada pelos aliados. Temerosos das fortificações inimigas ao longo do rio Paraguai 
em especial em torno de Humaitá , os aliados permaneceram durante longos anos
imobilizados pelo sistema defensivo terrestre dos paraguaios.
As perdas irrisórias da marinha brasileira na ultrapassagem das fortificações
inimigas ao longo do rio (Curupaiti, Humaitá e Angostura), demonstraram que os temores
despertados por essas fortificações eram infundados. Pode-se perguntar o que teria levado a
marinha brasileira a tanta cautela. Provavelmente, essa cautela estava baseada em cálculo
político para não comprometer a esquadra, elemento fundamental para uma política
hegemônica em toda a região platina.
Mesmo após a derrota de Riachuelo, a iniciativa ainda permaneceu por algum tempo
em mãos paraguaias.
Em junho de 1865, tropas guaranis invadiram a província do Rio Grande do Sul. Em
agosto do mesmo ano, cercado por um exército aliado superior em número, o comandante
paraguaio rendeu-se na cidade brasileira de Uruguaiana.
A partir de então, a iniciativa das operações passou para as mãos aliadas, cujas
tropas seguiam sob o comando geral do presidente argentino Bartolomé Mitre. Em
novembro de 1865 já não havia tropas paraguaias em qualquer parte do território aliado, à
exceção da província de Mato Grosso, no teatro de operações secundário. Em dezembro as
forças aliadas invadiram o território paraguaio.
Em maio de 1866 travou-se a maior batalha campal da guerra: Tuiuti. O exército
paraguaio, assumindo a iniciativa tática, atacou as forças aliadas acampadas diante das
fortificações de Humaitá, a grande fortaleza que bloqueava o livre acesso ao rio Paraguai.
Apesar de sua vitória contundente  a fina-flor do exército paraguaio foi destruída neste
combate , os aliados não conseguiram tirar proveito imediato da vitória. Sem
conhecimento do terreno, carecendo de elementos logísticos necessários ao deslocamento
de grandes massas de soldados, assolados por doenças, os aliados foram incapazes de
perseguir as derrotadas tropas inimigas.
Apenas em setembro as forças da Tríplice Aliança iniciaram movimentos ofensivos.
Após abandonar o plano de contornar Humaitá por seu flanco terrestre, as tropas aliadas
buscaram avançar ao longo do rio Paraguai, com o apoio da esquadra. À vitória inicial de
Curuzu seguiu-se a fragorosa derrota dos aliados ante as trincheiras paraguaias de
Curupaiti.
Entre a derrota de Curupaiti e julho de 1867, portanto dez meses, os aliados
permaneceram estacionados em Tuiuiti diante da fortaleza de Humaitá. Nesse período
travaram-se inúmeros pequenos combates. Entretanto, as epidemias e doenças eram o que
mais causava mortandade entre as tropas.
Muito se tem especulado sobre as razões de tal imobilidade: incompetência do
comando, covardia, interesses comerciais que lucravam com o prolongamento das
atividades, etc. Ao que parece, contudo, os exércitos aliados, ainda em muito dependentes
de estruturas militares precárias e de base caudilhesca, eram incapazes, nas condições de
terreno, ausência de meios de locomoção e resistência demonstrada pelo inimigo, de
realizar um movimento de monta.
Em outubro de 1866, Caxias assume o comando das tropas brasileiras. Até julho do
ano seguinte, toda sua ação esteve concentrada em dotar o exército de uma infra-estrutura
adequada: meios de locomoção, uniformes, armamento, munição, treinamento, disciplina,
maior conhecimento do terreno, hospitais.
No final do mês de julho de 1867, ele finalmente iniciou o movimento de
flanqueamento da fortaleza de Humaitá.
Em novembro, López atacou pela segunda vez o acampamento aliado de Tuiuti,
sendo que desta feita o grosso do exército aliado encontrava-se mais ao norte realizando o
movimento de flanqueamento de Humaitá. Apesar da surpresa e do sucesso iniciais, as
tropas aliadas mantiveram-se donas do terreno. Mais importante, entretanto, é que o ataque
paraguaio à base de operações aliada fora incapaz de forçar o retomo do efetivo principal
aliado à sua base, não tendo assim frustrado o movimento de flanco que objetivava o cerco
da fortaleza de Humaitá.
Em janeiro de 1868, Caxias assume o comando de todas as forças aliadas, já que
Mitre fora obrigado a retomar à capital argentina devido a problemas políticos internos,
entre os quais não era de menor importância a crescente oposição ao envio de tropas das
províncias ao Paraguai.
Em fevereiro, a esquadra finalmente força Humaitá sem ter um navio sequer posto a
pique ou fora de combate. Ao mesmo tempo, tropas brasileiras tomam o reduto do
Estabelecimento, às margens do rio Paraguai ao norte de Humaitá, completando o cerco
total da fortaleza guarani. Esta, contudo, só viria a capitular em agosto de 1868.
Na defesa de Humaitá, praticamente mais um exército paraguaio fora consumido.
López ainda foi capaz de organizar mais dois exércitos até o final do conflito. A qualidade
destes, entretanto, deixava a desejar. Além da carência de meios materiais de combate, o
próprio material humano era de qualidade inferior: crescentemente estavam presentes nas
fileiras velhos, doentes, adolescentes e até mesmo crianças.
A próxima fase das operações deu-se em tomo das defesas paraguaias ao norte do
Piquissiri, afluente do rio Paraguai. López havia sido capaz de retirar parte de suas tropas
de Humaitá e organizar um novo exército e fortificações ao longo do Piquissiri e na
embocadura deste com o rio Paraguai.
Em outubro de 1868, Caxias inicia a construção de uma estrada pela margem oposta
do rio Paraguai, que permitiria às tropas aliadas flanquear as posições inimigas e
desembarcar à sua retaguarda. Esse movimento foi realizado com sucesso, e no dia 6 de
dezembro o grosso do exército aliado encontrava-se à retaguarda de López, cortando suas
comunicações e sua via de fuga.
A partir de tão favorável posição estratégica, Caxias marcha para o sul e, durante o
mês de dezembro, bate os paraguaios em três sucessivas batalhas em que os exércitos se
encontravam em posições invertidas: Itororó, Avaí e Lomas Valentinas. Era a campanha da
Dezembrada, que aniquilou mais um exército guarani. Apenas López, acompanhado de um
pequeno número de seguidores, conseguiu escapar.4
A conseqüência natural das vitórias de dezembro foi a conquista de Assunção em
janeiro de 1869.
Doente e desejando a paz,5 Caxias retirou-se do teatro de operações, sendo
substituído pelo conde d’Eu.
Tinha início a fase final do conflito, que custou ainda inúmeras vidas à população
guarani.
Retirando-se para o norte e afastando-se das margens do rio Paraguai, López foi
ainda capaz de organizar mais um pequeno exército, que pereceu massacrado na batalha de
Campo Grande (agosto de 1869). Nessa batalha, um exército paraguaio de velhos, meninos
e doentes morreu lutando contra tropas brasileiras.
A partir de Campo Grande, o conflito se resume numa perseguição a López, que
fugia em direção ao norte. Em 1 de março de 1870, os brasileiros, depois de cercar o
pequeno acampamento paraguaio, matam Solano López, pondo fim ao conflito de mais de
cinco anos de duração.

4
Caxias tem sido duramente criticado desde então por ter permitido a fuga do governante paraguaio e, assim,
ter contribuído para o prolongamento da guerra.
5
Em sua correspondência com o ministro dos Negócios da Guerra, Caxias deixa clara sua posição favorável à
negociação com um governo provisório paraguaio e sua preocupação com a Argentina, segundo ele,
interessada no prolongamento do conflito.
Bibliografia

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2. REVISTAS

 Vida Fluminense, de 16.6.1870 (Biblioteca Nacional).


 Semana Ilustrada, de 1865 a 1870 (Biblioteca Nacional).

3. DEPOIMENTOS E MEMÓRIAS DA ÉPOCA


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 Versen, Max von, História da Guerra do Paraguai, Belo Horizonte, Itatiaia,
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4. RELATÓRIOS E DOCUMENTOS

Relatórios da Repartição dos Negócios da Guerra  ano de 1865:


Arquivo do Exército
 anos de 1866 a 1869: Biblioteca Nacional
 ano de 1870: Arquivo Nacional.
Cartas, Reservados e Confidenciais Referentes à Campanha do Paraguai
(1867-69), Arquivo Nacional, Códice 924.
Correspondência Manuscrita que Pertenceu ao Duque de Caxias,
Arquivo Nacional, Códice 551.
Correspondência sobre a Guerra do Paraguai. Com relações nominais
de oficiais e soldados que tomaram parte da mesma. Relação de mortos, feridos.
Demonstração da força de que se compunha o exército. Relatório da Comissão
de Engenheiros. Mapas. Relação de desertores, projeto de tratado de paz, etc.,
Arquivo Nacional, Códice 547.
Correspondência do Comando em Chefe com Várias Autoridades sobre
Assuntos Referentes à Guerra do Paraguai, Arquivo Nacional, Códice 932.

5. FOTOGRAFIAS
Livros

Escobar, Tício e outros, La Guerra del 70  Una Visión Fotográfica,


Assunção, edição Museo dei Barro, 1985.
Ferrez, Gilberto, A Fotografia no Brasil: 1840-1900, FUNARTE/Pró-
Memória, 2ª ed., 1985.
Kossoy, Boris, Origens e Expansão da Fotografia no Brasil, Século XIX,
Rio de Janeiro, MEC/FUNARTE, 1980.

Documentos

Biblioteca Nacional

“Los Asesinos de Humaitá, Ejecutados el Dia 6”, Pasta de Documentação


Diversa, XXX, tam. A.
“Excursão ao Paraguay”, Res.
“Lembrança do Paraguay”, Res.
“Fotografias de Vários Episódios da Guerra do Paraguai”, Pasta de
Fotografias Diversas, Tam. A., nº 153.
“Fotografias mostrando um acampamento de soldados, em Luque, no
Paraguai”, Arm. 25, prato 1, caixa 2a, nº 150.
“Álbum de retratos e vistas, referentes ao Paraguai”, Arm. 12.1.11.

Arquivo Nacional

Coleção “História da Fotografia”, HF 191, HF 192, HF 193.

Museu Histórico Nacional

“17 Fotos de 2ª Geração”, GPf 3 a GPf 19.


“Fotografias de Bate”, GPf 69.
“Álbum Fotográfico  Guerra do Paraguai”, GPfa 01.

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