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Malcolm Coulthard
Virgínia Colares
Rui Sousa-Silva
Linguagem e Direito:
os eixos temáticos
Recife, 2015.
2
L755 Linguagem & Direito : os eixos temáticos [e-book]
/ organizadores Malcolm Coulthard, Virgínia
Colares, Rui Sousa-Silva. -- Recife : ALIDI,
2015.
437 p. : il.
CDU 34:800.866
Créditos
3
Diretoria Biênio 2014-2016
Conselho Fiscal
4
Conselho Editorial
5
Sobre os autores
6
UFPE, e exerceu PIBIC/UNICAP. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.
br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4439013D8
7
análise da conversa, polícia civil, tribunal, hospital. CV Lattes: http://lat-
tes.cnpq.br/7495899332518368
8
FERNANDO JOSÉ DE SOUZA FILHO é mestre em Direito pela
Universidade Católica de Pernambuco. Realizou curso na Universitá di Pisa,
Alta Formazione in Giustizia Constituzionale (2013). Delegado de Polícia
Civil de Pernambuco. Professor de Direito Penal da Faculdade Boa Viagem.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7314354278678980
9
JULIANA DE BRITO GIOVANETTI PONTES é advogada. Mestra
em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2013), na qualidade
de bolsista da CAPES. Possui graduação em Direito pela Universidade Ca-
tólica de Pernambuco (2011). Atua no Grupo de Pesquisa Jurisdição Cons-
titucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos - UNICAP. CV
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4994802161065885
10
LUCIANE FRÖHLICH é Doutora em Estudos da Tradução pela
UFSC, com tese direcionada às particularidades da linguagem de textos
jurídicos brasileiros. Trabalha como linguista forense e perita ad hoc em in-
terpretações e traduções jurídicas na área de alemão. É membro da ALIDI e
do grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. Integra o corpo do-
cente do IPEBJ e o corpo editorial da revista Language and Law/ Linguagem
e Direito. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4500511891405124.
11
ências da Linguagem da Universidade da Universidade do Sul de Santa
Catarina (UNISUL), onde também é professora. É colaboradora do Grupo
de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC e tem interesse por pesquisas
em Análise do Discurso, gênero, violência doméstica e Lei Maria da Penha.
CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.
do?id=K4127297H4
12
MARINA PIOVESAN GONÇALVES é bolsista CNPq. É licenciada
em Letras Português/Inglês pela Universidade do Extremo Sul Catarinen-
se - UNESC. É Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da
Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na área de
Estudos da Linguagem e Tradução. É membro do Grupo de Pesquisa de
Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/
buscatextual/visualizacv.do?id=K4447821H6
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a contextos de investigação policial, em particular. CV Lattes http://lattes.
cnpq.br/0407778486256721
14
Apresentação
INTERFACES: terceira margem do rio 1
“Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai”
Este livro “Linguagem & Direito: os eixos temáticos”, organizado por Mal-
colm Coulthard, Virgínia Colares e Rui Sousa-Silva, patrocinado pela Asso-
ciação de Linguagem & Direito (ALIDI), foi construído a partir do diálogo
entre esses dois domínios de saber, reúne quarenta pesquisadores desde os
sêniores aos iniciantes com o propósito de estreitar o diálogo e estabelecer
eixos temáticos nessa interface.
A ideia da terceira margem do rio remete a uma espécie de entrelugar que
a transdisciplinaridade evoca. O art. 3 da Carta da Transdisciplinaridade
2
afirma:
A transdisciplinaridade é complementar à
aproximação disciplinar: faz emergir da
confrontação das disciplinas dados novos
que as articulam entre si; oferece-nos
uma visão da natureza e da realidade. A
transdisciplinaridade não procura o domínio
sobre as várias outras disciplinas, mas a
abertura de todas elas àquilo que as atravessa
e as ultrapassa.
Assim, com esse propósito, realizamos o primeiro congresso “Lingua-
gem & Direito: os múltiplos giros e as novas agendas de pesquisa no Di-
1. Agradeço a José Lindomar Albuquerque (UNIFESP) de quem ouvi o uso dessa alegoria
numa remissão “A terceira margem do rio”, uma das narrativas que compõem o volume
Primeiras estórias, do mineiro João Guimarães Rosa, publicado originalmente em 1962. A
epígrafe traz uma estrofe da letra de Caetano Veloso e Milton Nascimento para a melodia
com o mesmo título “A Terceira Margem do Rio”.
2. Adotada no Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado no Convento
de Arrábida, Portugal, 2 - 6 novembro, 1994; cujo comitê de redação foi constituído por
Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu.
15
reito” para construir coletivamente procedimentos teórico-metodológicos
que subsidiem as reflexões acadêmicas sobre o discurso jurídico e judicial e
sobre os papéis institucionais desempenhados pelo Poder Judiciário no Bra-
sil, cujos atos processuais são mediados pela linguagem e têm a linguagem
como suporte.
A Linguística Forense é uma disciplina acadêmica oriunda dos países
de língua Inglesa. O pesquisador britânico Malcolm Coulthard, um dos or-
ganizadores deste livro, atuou oficialmente como perito em mais de duzen-
tos casos perante tribunais na Inglaterra, Alemanha, Hong Kong, Irlanda do
Norte e Escócia. Na Grã-Bretanha, em 1993, fundou com outros investiga-
dores a Associação Internacional de Linguistas Forenses (International As-
sociation of Forensic Linguists, IAFL). Hoje, Malcolm Coulthard é docente
permanente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e profes-
sor emérito de Linguística Forense da Universidade de Aston, Birmingham,
Grã-Bretanha.
No momento, o Brasil vive uma efervescência nesta interface dos es-
tudos da Linguagem e do Direito pela demanda emergente de conhecimen-
to da natureza da linguagem em uso no âmbito jurídico. Um dos fatores mo-
bilizadores é a Lei n° 13.105/15, o Novo Código de Processo Civil brasileiro
que exige dos juristas (juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público) maior conhecimento da interação interpessoal, pois são
estimulados a ouvir e promover a conciliação, a mediação e outros métodos
de solução consensual de conflitos.
A linha de pesquisa Linguagem & Direito consiste nessa criativa cons-
trução de metodologias pela aplicação de princípios e teorias aos dados au-
tênticos coletados no âmbito jurídico. A Associação Internacional de Lin-
guistas Forenses (IAFL) (http://www.iafl.org/forensic.php) assegura que em
seu sentido mais amplo, “a linguística forense” abrange todas as áreas onde
o direito e a linguagem se entrecruzam e se encontram.
Em 03 setembro de 2012, na Universidade Católica de Pernambu-
co, no Recife-PE, foi criada a Associação de Linguagem & Direito (ALIDI)
(http://www.alidi.com.br/) com pesquisadores de todo o Brasil e dos demais
países da comunidade de língua portuguesa interessados nos diversos e plu-
rais estudos da Linguagem em suas interfaces com o Direito. A ALIDI tem
como propósito promover, desenvolver e divulgar a Linguística Forense, os
estudos do Discurso Jurídico, as situações de Interação em contextos legais
e o diálogo entre as Teorias do Direito e do Processo Judicial e as Teorias da
Linguagem.
Este livro está organizado em cinco partes, a seguir:
16
textuais envolvidos numa lide ante o judiciário. Nesses casos os linguistas
atuam como peritos na justiça.
Parte II: DISCURSO JURÍDICO - volta-se para as relações de poder que
se materializam nos gêneros textuais legais e questões interculturais e de
mediação em contextos jurídicos como os casos dos direitos das minorias
linguísticas. Esta linha também realiza a análise e interpretação dos textos
legais nos mais diversos contextos.
Parte III: PROCESSO JUDICIAL & LINGUAGEM - concentra-se na
análise e interpretação dos textos legais em uso nos eventos comunicativos.
Estabelece o diálogo entre as Teorias do Processo e a Análise Crítica do Dis-
curso Jurídico (ACDJ).
Parte IV: INTERAÇÃO EM CONTEXTOS LEGAIS - volta-se para a
análise de interrogatórios na delegacia e no tribunal, problemas de testemu-
nhas vulneráveis, uso de intérpretes, etc.
Parte V: CRIMINOLOGIA CRÍTICA - afasta-se de conceitos naturali-
zados sobre o crime e criminoso, próprios do senso comum, para proble-
matizá-los à luz do interacionismo simbólico, segundo o qual é a partir das
interações sociais, por meio da linguagem, que se constroem as relações e
as identidades. Assim como estuda o processo de criminalização (primária
e secundária), desde o controle social informal até o exercício oficial das
agências de poder.
Assim, esses eixos temáticos nessa interface Linguagem & Direito,
tecem a terceira margem do rio, essa espécie de entrelugar no qual pode-
remos estudar/ compreender a linguagem em uso nessa instância social de
estabelecimento do direito.
Recife, 20 de junho de 2015
17
Sumário
Sobre os autores 6
Apresentação
INTERFACES: terceira margem do rio 15
Parte I
LINGUÍSTICA FORENSE
Parte II
DISCURSO JURÍDICO
18
6. Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o
poder dizer em recurso sem mérito apreciado
Vinicius de Negreiros Calado 142
Parte III
PROCESSO JUDICIAL & LINGUAGEM
19
Parte IV
INTERAÇÃO EM CONTEXTOS LEGAIS
Parte V
CRIMINOLOGIA CRÍTICA
20
20. Analisando a lei nº 12.654/12 com a lupa
criminológica:as principais críticas ao cadastro de
perfis genéticos dos criminosos à luz de uma abordagem
criminodogmática
Diego José Sousa Lemos 401
21
Parte I
LINGUÍSTICA FORENSE
1
1. Introdução
23
24 | A adequação das advertências de cigarro no Brasil
Imagem 1 Imagem 2
Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer | 27
Como pode ser visto nas imagens acima, a combinação de cores, em bran-
co e preto, aumenta a visualização e chama a atenção para a mensagem.
Vale ressaltar que o uso destas cores segue uma determinação da ANVISA
(Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão responsável pela regula-
mentação, controle e supervisão das advertências de cigarro. Na tentativa
de dificultar a visualização das advertências e chamar a atenção para seus
produtos, as empresas de tabaco adotaram o uso de cores diferenciadas para
transmitir a imagem de um cigarro mais fraco, além do uso das palavras
“soft” e “light”. No entanto, o uso de tais palavras foi proibido, assim como
o uso de decalques que acompanhavam o pacote de cigarro, para serem
colados em cima das advertências.
Em 2003, um segundo grupo de 10 advertências foi lançado com men-
sagens e imagens mais fortes. Foram ainda incluídas as mensagens: “Venda
proibida para menores de 18 anos – Leis 8.069/1990 e 10.702/2003” e “este
produto contém mais de 4.700 substâncias tóxicas e nicotina que causam
dependência física e psíquica. Não há níveis seguros para o consumo destas
substâncias”.
Imagem 3
Imagem 4
6. Análise e discussão
Imagem 5
pessoal da advertência” (p. 370). Sendo assim, uma advertência deve ter
seu conteúdo renovado frequentemente e ser relevante para o público alvo.
A tabela 1 abaixo, resume o conteúdo das advertências nas três fases.
Câncer de
X X X
pulmão
Infarto X X
Impotência
X X X
sexual
Perda do fôlego X
Câncer de
X X
laringe
Gravidez X X X
Mau exemplo
X
para as crianças
Cigarro é uma
X X X
droga
Gangrene X X
Sofrimento X
Derrame X
Fumaça tóxica X X
Amputação X
Aborto X
Envelhecimento X
Como pode ser visto na tabela acima, dos nove temas abordados na primeira
fase, três não são repetidos na segunda fase, infarto, perda do fôlego e mau
exemplo para as crianças. Além disso, quatro temas foram acrescentados
Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer | 31
Imagem 6
Imagem 7
2. According to Halliday (1994: 110) “express the notion that an entity ‘does’ something”
34 | A adequação das advertências de cigarro no Brasil
from the international tobacco control four country study. American Journal of
Preventive Medicine, 2007(32) 3.
Anexos
Advertências Sanitárias
1ª fase (2001-2003)
2ª fase (2004-2008)
4. Ele é uma vítima do tabaco. Fumar causa doença vascular que pode levar
a amputação.
MORTE – O uso deste produto leva à morte por câncer de pulmão e enfisema.
1. Plágio jornalístico
1 . Este capítulo é uma versão traduzida e reformulada do capítulo publicado originalmente
em Sousa-Silva (2015).
38
Rui Sousa-Silva | 39
rem as suas fontes, os jornalistas parecerem reger-se por “dois pesos e duas
medidas”. Por um lado, com o objetivo de assegurarem a veracidade da peça
noticiosa, não hesitam em citar inequivocamente as suas fontes de infor-
mação primárias. Em casos extremos, levam até às últimas consequências
a proteção dessas fontes, o que implica manter o seu anonimato e confi-
dencialidade e, inclusivamente, resistir a pressões internas e externas para
identificarem e nomearem essas fontes. Por outro lado, reutilizam, frequen-
temente, o texto de outras fontes de texto (secundárias) para redigirem os
seus próprios artigos, nem sempre citando essas fontes, como é o caso de
reutilização de notícias publicadas por outros media ou, inclusivamente,
escritas por agências noticiosas.
Apesar destas condicionantes, que dificultam a análise de potenciais
casos de plágio, não são raros os exemplos de jornalistas acusados e punidos
por plagiarem. Em fevereiro de 2015, Jared Keller, diretor de informação do
site de notícias Mic, foi demitido depois de se descobrir que tinha retirado
e reproduzido, literalmente ou com pequenas alterações, trechos de texto
de outras fontes noticiosas sem citar devidamente as fontes. Nesse mesmo
mês, o jornal The Australian demitiu o cronista Tanveer Ahmed depois um
blogger o ter acusado de plagiar um website político americano. Dois anos
antes, o então autor do New Yorker Jonah Lehrer foi despedido por reciclar
publicações no blog da revista, para além de cometer outros atos transgres-
sivos. Um dos casos mais paradigmáticos, contudo, é indubitavelmente o
caso de Jayson Blair, o jornalista do The New York Times que apresentou
a sua demissão, em 2003, depois de ter sido acusado de praticar diversos
atos fraudulentos na sua carreira como jornalista, incluindo plágio. Blair foi
acusado, em particular, de ter utilizado indevidamente material de agências
noticiosas e de outros jornais, tais como o Washington Post e o The San An-
tonio Express-News.
No universo da língua portuguesa, casos de plágio como estes também
não são inéditos. Em 2007, um leitor do jornal português de referência Pú-
blico descobriu que Clara Barata, uma das jornalistas, tinha copiado textos
de outras fontes, incluindo da Wikipedia. O caso desta jornalista é ainda
mais complexo do que os descritos anteriormente, uma vez que a peça noti-
ciosa não reutilizava o texto de um original na mesma língua, mas sim origi-
nais escritos noutra língua, nomeadamente em inglês. Um caso idêntico foi
o de um repórter do jornal Telegraph-Journal, no Canadá, que foi demitido
em 2009 por ter reutilizado indevidamente texto do L’Acadie Nouvelle.
Neste contexto, este capítulo discute de que modo uma análise lin-
guística de natureza forense poderá auxiliar a deteção e/ou o fornecimento
de elementos de prova em casos de plágio jornalístico, defendendo que é es-
sencial desenvolver um método que permita recorrer a elementos linguísti-
cos para identificar determinado texto como constituindo um potencial caso
de plágio, não só com o objetivo de levantar suspeitas relativamente à sua
originalidade, mas também com o intuito de contribuir para o desenvolvi-
40 | Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense?
tivo identificar claramente a fonte. Este guia de estilo afirma ainda que “é
essencial, por uma questão de transparência, que o material que não seja
recolhido por nós próprios seja claramente atribuído, nas peças noticiosas e
nas reportagens, à respetiva fonte, incluindo nos casos em que a fonte seja
uma organização concorrente”, concluindo que “o incumprimento desta
norma poderá sujeitar-nos a acusações de plágio” (REUTERS, 2008: 5).
De modo idêntico, a International Federation of Journalists (IFJ –
http://www.ifj.org/en) e, em Portugal, o Sindicato dos Jornalistas (http://
www.jornalistas.online.pt/) consideram o plágio “uma infração profissional
grave”. Também o guia de estilo de um dos principais jornais de referência
portugueses, o Público3 proíbe terminantemente o recurso ao plágio, acres-
centando que todas as informações relevantes recolhidas junto de outras
organizações de comunicação social ou de agências noticiosas devem ser
atribuídas. No caso de notícias baseadas em material de diferentes agências
noticiosas, os contributos de cada uma destas agências devem ser citados no
texto pela ordem com que mais contribuíram para a redação da peça. Sem-
pre que o material das agências noticiosas for utilizado como fonte e o artigo
for escrito sobretudo pelos seus jornalistas, as agências devem ser citadas no
corpo da peça noticiosa. Porém, se o artigo se basear sobretudo em serviços
noticiosos, então deverá ser incluída uma referência aos mesmos e, no caso
de textos traduzidos de outras línguas, deverá ser claramente assinalado
como tradução e indicar o nome dos tradutores.
Tendo em conta a política editorial do jornal Público, não é, por isso,
surpreendente que o jornal tenha publicado um pedido de desculpas aos lei-
tores, em 2006, depois de uma das suas jornalistas, Clara Barata, ter publi-
cado um artigo que constituía sobretudo uma tradução de material da New
Scientist e da Wikipedia. As suspeitas foram levantadas por um leitor que
reparou, após a leitura da peça noticiosa, que o texto lhe parecia familiar,
tendo de seguida identificado as fontes originais. O jornal instaurou um pro-
cesso de investigação e detetou, posteriormente, que a jornalista tinha pla-
giado 13 excertos relevantes recorrendo à tradução. O caso foi comparado
ao do famoso jornalista do New York Times, Jayson Blair, que, em 2003, foi
demitido depois de o jornal sofrer acusações de plágio e ser alvo de proces-
sos legais instaurados por outras organizações noticiosas. Não obstante, há
vários anos que são reportados casos de plágio jornalístico, o que revela que
não se trata de um problema recente. Em 1996, por exemplo, a agência no-
ticiosa portuguesa Lusa apresentou uma queixa ao Sindicato dos Jornalistas
contra vários organismos de comunicação social portugueses, que estavam
a plagiar textos assinados pelos seus jornalistas. Em sua defesa, os media
plagiadores argumentaram que eram subscritores dos serviços noticiosos
da agência, estando, por isso, autorizados a reproduzir esses textos. Porém,
os textos assinados não se encontram incluídos nos serviços de subscrição
e, como quaisquer outros materiais sujeitos a direitos de autor, não podem
3. Disponível em http://static.publico.clix.pt/nos/livro_estilo/16p-palavras.html
42 | Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense?
4 Segundo o website Internet World Stats, em 2013 a língua inglesa era, de longe, a língua
mais utilizada na Internet – ver http://www.internetworldstats.com/stats7.htm
Rui Sousa-Silva | 47
Plágio literal
Excerto 3:
5 http://www.theaustralian.news.com.au/story/0,25197,25555182-5018557,00.html
6 http://www.channelnewsasia.com/stories/afp_world/view/432503/1/.html
56 | Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense?
GARNER, B. A. Black’s Law Dictionary. St. Paul, MN: West, 2009 (9ª
ed.).
Miquéias Rodrigues
1. Introdução
64
Bruna Batista Abreu | 65
de existência de plágio. Sob tal ponto de vista, identificar plágio tem ficado
cada dia mais fácil, mas plagiar também – muitas vezes bastando apenas o
uso das opções “copiar e colar”. A produção intelectual mundial está a um
clique de distância de qualquer um com acesso à internet. Isso tem muda-
do nossa maneira de produzir, consumir e distribuir conhecimento. Conse-
quentemente, essa nova prática social exige uma adequação das práticas
pedagógicas.
Considerando a importância de tal assunto, a presente investigação
tem por objetivo documentar e revelar de que forma duas instituições de
ensino superior, uma no Brasil e outra no Chile, lidam com o plágio aca-
dêmico, e qual o nível de conhecimento dos alunos e professores acerca
da existência das regras sobre plágio ou da falta delas. Este estudo inclui
e parte de um outro estudo desenvolvido por Abreu & Coulthard (2014)
apenas investigando as percepções dos alunos de pós-graduação da mesma
instituição brasileira ora investigada. Abreu & Coulthard (2014) basearam
sua investigação numa sugestão de Coulthard & Johnson (2007, p. 197)1.
Este capítulo está organizado em quatro seções, além desta introdutó-
ria. A primeira seção, revisão de literatura, apresenta uma breve exposição
de alguns dos aspectos do tema, indicando algumas complexidades ineren-
tes ao assunto. A segunda seção, aspectos metodológicos, descreve os par-
ticipantes, os materiais e os procedimentos utilizados para coleta e análise
dos dados. A terceira seção, resultados e discussão, relata os resultados dessa
investigação e contrasta as respostas dos participantes nas duas instituições.
Finalmente, a conclusão apresenta algumas considerações finais advindas
da pesquisa juntamente com sugestões e reflexões para o desenvolvimento
de novas práticas pedagógicas.
2. Revisão de Literatura
‘3. Nossa tradução para: “The conventions of individual disciplines cross-cut the problem,
because some frown on plagiarism more than others – journalists apparently feel able to
borrow large chunks of text with no attribution at all, whereas academics are ever more
anxious to have every source acknowledged.”
Bruna Batista Abreu | 67
4. Patchwriting é um termo cunhado por Howard, que descreve a prática escrita utilizada
por alunos em processo de aprendizagem em escrita acadêmica. De modo geral, trata-se de
montar um texto valendo-se de diversos fragmentos de outras fontes.
5. Nossa tradução para: “Since paraphrasing consists largely of the student’s own words,
that writing is considered to ‘belong’ to them and thus is presented within the student text
absent any citation.”
6.Com este objetivo, a pesquisa de doutoramento da primeira autora deste trabalho tem
sido desenvolvida.
68 | Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e
chilenos
7 . Nossa tradução para: “the analyses and the reports provided by detection systems can
be interpreted with the assistance of a forensic linguistic analysis, so as to discard false
positives, on the one hand, while at the same time unveiling hidden true positives that may
have been missed by the detection systems.”
Bruna Batista Abreu | 69
3. Aspectos metodológicos
2.1 Participantes
2.2 Materiais
Foram utilizados dois procedimentos para coleta dos dados nesta investi-
gação: os resultados do trabalho de Abreu & Coulthard (2014) para fins de
comparação; e a coleta de dados por meio de dois questionários online, um
para os alunos da instituição chilena, e outro para os professores de ambas
as instituições. Os pesquisadores enviaram e-mails aos grupos de e-mail
específicos de cada instituição e de cada grupo de participantes (professores
e alunos) convidando-os a participar desta pesquisa. O e-mail identificava
os pesquisadores, fornecia seus contatos, ressaltava a importância da parti-
cipação e fornecia o link de acesso ao questionário apropriado.
Apesar de os questionários terem preservado a confidencialidade e
anonimidade dos participantes, conforme mencionado anteriormente, obti-
vemos uma participação modesta, principalmente em relação à quantidade
de professores das duas universidades. Além disso, estamos cientes de que
buscamos dados de um curso de graduação em uma instituição e dados de
um curso de pós-graduação em outra instituição. Essa foi uma escolha me-
todológica que objetivava revelar um cenário mais amplo sobre a abordagem
do plágio, já que estávamos impossibilitados de pesquisar ambos universos
em ambas universidades. Todavia, não consideramos tais fatos como limita-
ções deste estudo, uma vez que o objetivo é revelar a necessidade de inves-
tigar e documentar a percepção e a prática em relação ao plágio acadêmico.
No que se refere aos procedimentos para análise de dados, a presente
pesquisa é de enfoque qualitativo. As análises, portanto, foram feitas a partir
das respostas oferecidas nos questionários. Ryan (2006) diz que devemos
analisar os dados em vez de apenas deixar que eles falem por eles mesmos.
A autora explica que os dados brutos, que aqui seriam as respostas de cada
participante, não nos dizem nada. É necessário, segundo ela, que os dados
brutos passem pelo processo de análise para que eles façam algum sentido,
constituindo o que chamamos de resultados de pesquisa (RYAN, 2006, p.
92).
Posto isso, para que os dados brutos passassem a revelar algum sig-
nificado, eles foram primeiramente classificados nas seguintes categorias
pré-estabelecidas por Abreu & Coulthard (2014): definição de plágio; co-
nhecimento sobre as regras da instituição acerca de plágio; conhecimento
das penalidades para quem descumpre as regras sobre plágio; conhecimen-
to de casos envolvendo plágio na instituição; e opiniões e sugestões sobre
punições por plágio. Em seguida, dentro de cada uma dessas categorias,
as respostas foram organizadas por afinidade originando subcategorias que
72 | Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e
chilenos
surgiram dos dados. Por fim, os resultados foram contrastados a fim de re-
velar o retrato do universo pesquisado.
Ainda, na fase de escritura deste capítulo, os excertos escolhidos para
exemplificar os resultados apresentados na próxima seção foram traduzidos
para o português.
4. Resultados e discussão
O roubo de ideias
Com exceção de um aluno, que disse não saber das regras sobre plágio por-
que não havia informações sobre isso nem mesmo na página da internet
da universidade, todos os demais disseram conhecer as regras sobre plágio
existentes na instituição chilena, como mostram alguns excertos, que se-
guem:
Se um professor de qualquer disciplina
descobre que você cometeu plágio em um
74 | Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e
chilenos
Como demonstrado, 56,25% dos alunos afirmam terem sido informados das
regras da universidade sobre plágio, enquanto que 31,25% afirmam que
não receberam nenhum tipo de informação. O participante que disse que
recebeu informação de alguma forma afirma que fizeram um módulo sobre
Bruna Batista Abreu | 75
regras de APA, mas que ninguém ofereceu exemplo sobre algo com plágio,
conforme excerto abaixo:
Existe um módulo na nossa disciplina principal
em que somos ensinados sobre as normas do
APA; entretanto, ninguém nos disse que tipo
de artigo seria plágio para que tivéssemos
um exemplo.
Você tira 1.
Outros alunos apenas informaram que recebem a nota mínima, mas não
disseram explicitamente conhecer quanto ela vale:
sentido de definir regras tanto para evitar o plágio quanto para a punição
aos que o cometem, uma vez que ambas instituições não possuem direcio-
namentos oficiais acerca do assunto.
Como sugerido por um participante aluno, o ensino médio parece ser
um momento adequado para expor o aluno à definição de plágio. Segundo
Buckley (2015), a transição desta etapa escolar para a universidade é um
momento “marcado por uma série desafios para o aluno novo” (p. 352)9 e o
peso do plágio acaba aumentando a carga das novas tarefas nessa nova fase.
Atualmente, o ensino médio tem sido um contexto onde a prática vigente de
certa forma induz o desenvolvimento de atividades em que os alunos ficam
mais propensos a cometer plágio, como no caso das famigeradas pesquisas
que os alunos precisam fazer sobre determinado assunto e apresentar ou
entregar na próxima aula. O aluno conduz uma procura sobre o assunto na
internet, copia e cola vários trechos que julga interessante, entrega o traba-
lho e ainda recebe uma avaliação alta. Esse mesmo aluno, de um momento
para o outro, muda de contexto, saindo do ensino médio e entrando na
universidade. Contudo, ele continua atuando como aluno do ensino médio
no que concerne produção escrita, pois essa é a única prática social que ele
conhece. Ou seja, esse aluno desenvolverá trabalhos da mesma maneira
que vinha desenvolvendo, com a diferença de que em vez de receber uma
avaliação positiva, agora alguém o avisará que ele está cometendo um crime.
Buckley (2015) sintetizou muito bem o que acontece com os alunos
nesta fase de transição quando eles parafraseiam:
Como a paráfrase consiste em grande parte de
palavras próprias do aluno, tal escrita [a
paráfrase] é considerada ‘pertencer’ a eles
e, portanto, é apresentada no texto do aluno
ausente de qualquer citação. Todavia, onde o
tutor vê plágio, o aluno vê ‘suas’ palavras,
uma parte legítima da escrita acadêmica.10
9 . Nossa tradução para: “marked by a series of challenges for the new student”.
10 . Nossa tradução para: “Since paraphrasing consists largely of the student’s own words,
that writing is considered to ‘belong’ to them and thus is presented within the student text
absent any citation.”
Bruna Batista Abreu | 81
Dear Students!
Bruna Batista Abreu, PhD candidate, along with Professor Malcolm
Coulthard, has designed a questionnaire on the subject of plagiarism that
was applied to the students of a Graduate English Program at a university
in Brazil. With a view to broadening the scope of her research and to offer-
ing your own viewpoints on the subject, we have decided to apply the same
questionnaire (with only minor modifications) to students at the ___(inser-
imos aqui o nome da universidade chilena)___ Undergraduate English Pro-
gram. Therefore, for the purposes of unveiling possible contrasting views on
the subject, we kindly invite you to participate in this research by answering
the questionnaire provided in what follows. The results of this research will
be presented and published in a Forensic Linguistics Conference to be held
in Brazil. You and your institution will remain anonymous. You will receive
a copy of the final work.
IMPORTANT: When answering the questionnaire and submitting your an-
swers, you will be consenting to the use of your data to the research ends
specified above.
We thank you for your collaboration!
Researchers:
Bruna Batista Abreu, Kátia Eliane Muck, Miquéias Rodrigues
* Required
1. Please tick below the Semester you are currently in: * Mark only one
oval.
1 3 5 7 9
2 4 6 8 10
4. When you entered the university, were you informed about these rules?
If so, how, when and by whom?
5. Does the violation of these rules lead to any penalties? * Mark only one
oval.
Yes
No
I don’t know
5.2 Does the penalty depend on the degree of plagiarism? If so, how is this
measured?
5.3 What is your opinion about these penalties? Are they too lenient, too
heavy or about right?
5.4 Do you know of any actual cases of students who were punished? Do
you have any views on the level of their punishment?
6. What changes, if any, would you make to the way this problem is current-
ly treated? *
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Dear Professors!
Bruna Batista Abreu, PhD candidate, along with Professor Malcolm Coulthard,
has prepared a questionnaire on the subject of plagiarism that was applied to the
students at a Graduate English Program at a university in Brazil. With a view to
broadening the scope of her research and to offering professors’ viewpoints on
the subject, we have decided to apply the same questionnaire (with only minor
modifications) to professors at that same Graduate English Program. Additionally,
for the purposes of unveiling possible contrasting views on the subject, we kind-
ly invite the professors of the English Undergraduate Program at ______(neste
espaço foi inserido o nome da instituição chilena, quando enviado os professores
da mesma) _____to participate in this research by answering the questionnaire
provided in what follows.
The results of this research will be presented and published in a Forensic Linguis-
tics Conference to be held in Brazil. You and your institution will remain anony-
mous. You will receive a copy of the final work.
84 | Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e
chilenos
2. Do you know what are the rules about plagiarism in your university? * Mark
only one oval.
Yes No
3. Does the violation of these rules lead to any penalties? * Mark only one oval.
Yes
No
I don’t know
3.2 Does the penalty depend on the degree of plagiarism? If so, how is this mea-
sured?
3.3 What is your opinion about these penalties? Are they too lenient, too heavy or
about right?
3.4 Do you know of any actual cases of students who were punished? Do you
have any views on the level of their punishment?
4. What changes, if any, would you make to the way this problem is currently
treated?
4
1. Introdução
1. Contém parte dos estudos da tese da primeira autora, Luciane Fröhlich, defendida na
PGET/UFSC em 2014.
85
86 | Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia
Assim, conforme Cao, tradução jurídica seria “um tipo de tradução espe-
cializada ou técnica, uma espécie de atividade translacional que envolve
uso especial da linguagem, ou seja, a linguagem com um propósito especial
(LSP), no contexto do Direito, ou a linguagem com fins legais (LLP)”3.
Note que Cao utiliza o adjetivo ‘legal’ ao invés de ‘forense’. Esta é a
escolha mais comum. Em praticamente todos os textos da área, o termo
‘tradução forense’, ainda é pouco explorado. Normalmente opta-se pelos
termos sinônimos ‘tradução jurídica’, ‘tradução judicial’ ou mesmo ‘tradu-
ção legal’.
Neste trabalho usa-se, preferencialmente, a palavra ‘forense’ para ten-
tar abarcar todo o espectro de significados ligados ao universo do Direito e
também para fazer uma espécie de diferenciação, em contraposição aos
adjetivos ‘legal’, ‘jurídico’ ou ‘judicial’, uma vez que estes “parecem” possuir
2. Nesse caso particular de estudo, a primeira autora fez parte de todo processo, atuando diretamente
como tradutora pública, previamente intimada como perita ad hoc pela Justiça Federal do Estado
de Santa Catarina. Esse trabalho in loco lhe permitiu visualizar de perto todas as etapas e percalços
envolvidos nas situações de pesquisa.
3.Tradução nossa.
Luciane Fröhlich | 87
4. Leitura da lei.
88 | Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia
Assim, o termo ‘lei’ poderia ser definido resumidamente como algo escrito,
estável, que está codificado, que advém de instância superior e serve para a
informação, e, mais ainda, normatização da sociedade.
Já o termo ‘jurídico’, definido por Ferreira (1986 p. 995): “[Do lat.
juridicu]. Adj. 1. Relativo ou pertencente ao direito. [...], parece ser mais
extenso, no qual o termo ‘judicial’, como apresentado anteriormente, figura
como seu sinônimo.”
Também aqui Acquaviva (2006) se esmera para qualificar a etimo-
logia da palavra ‘direito’, ocupando cinco colunas e meia de seu dicionário
jurídico. Abaixo seguem alguns excertos de seu texto:
A palavra direito é plurívoco-analógica,
isto é, apresenta uma pluralidade de sentidos
análogos […]. Provém do latim directu, que
suplantou a expressão jus, do latim clássico,
por ser mais expressiva. Em Roma havia o
jus e o fas. O jus é o conjunto de normas
formuladas pelos homens, destinadas a dar
ordem à vida em sociedade; fas é o conjunto
de normas de origem divina, religiosa, que
regeriam as relações entre os homens e as
divindades. Nos primórdios da história de
Roma o fas imperava, sua aplicação cabia aos
pontífices, ministros supremos da religião
[…]. A palavra direito penetrou no vocábulo
das nações por via latina, originando-se de
um primitivo radical indo-europeu (rj) em
substituição ao latino clássico jus, como
vimos. [...]
Desta forma, cartas rogatórias diferem-se dos demais atos processuais por
serem dirigidas à autoridade judiciária estrangeira. Conforme as Disposi-
ções Gerais sobre as Comunicações dos Atos (CPC, Cap. IV, Seção I):
Art. 201. Expedir-se-á carta de ordem se o
juiz for subordinado ao tribunal de que ela
emanar; carta rogatória, quando dirigida à
autoridade judiciária estrangeira; e carta
precatória nos demais casos. (Grifo nosso).
A CR, apresentada no quadro acima, foi emitida pela Justiça Federal bra-
sileira (Juízo Rogante) para o Juízo competente da Alemanha (Juízo Roga-
do), com prazo de 90 (noventa) dias para seu cumprimento. Neste caso foi
concedida ao requerente o benefício da justiça gratuita, nos termos da Lei
nº1.060, de 5 de fevereiro de 1950.
6 .Todos os dados particulares foram omitidos para não expor as partes e por se tratar de
sigilo judicial.
Luciane Fröhlich | 93
2. peça autoral
3. peça de arranque
4. peça de ingresso
5. peça de intróito
6. peça dilucular
7. peça prodrômica
8. peça inaugural
9. peça incoativa
De fato, pode-se julgar que tais exemplos são neologismos que desafiam a
língua portuguesa, pois saem da esfera de meros sinônimos e entram na
esfera prolixa do discurso escrito. Não obstante, é consenso entre os pesqui-
sadores da área, que a linguagem jurídica precisa ser clara. Há um termo
clássico para designar o sentido que se deseja alcançar, qual seja: “petição
inicial”, que já faz parte do repertório terminológico jurídico.
Com efeito, Andrade (ibidem) menciona que um texto jurídico bem
escrito deve conter “apenas o essencial, falar o que deve ser dito, argumen-
tar com coerência e precisão, averiguar o veículo adequado da comunicação
e vislumbrar o destinatário, sabendo que, muitas vezes, este nem sempre
coincide com interpretante real. O desafio está posto” (ANDRADE, 2009).
Desta forma, no caso da tradução de tais termos, uma das soluções se-
ria os tradutores assumirem esse desafio, ponderando todas as faces do pro-
blema, “transformando” o texto original pouco coerente/coeso em um texto
traduzido limpo e o mais informativo possível, com o uso de apenas um
termo (de preferência o mais conhecido, como é o caso de “petição inicial”).
Tais desafios da hermenêutica jurídica exigem, portanto, atenção re-
dobrada por parte do tradutor/intérprete, bem como conhecimento profun-
do e especializado nas línguas envolvidas. E relembrando, ao caso da Carta
98 | Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia
13. Atualmente, no entanto, Lúcia Nascimento está lotada em Brasília, Distrito Federal.
14. Lista parcialmente extraída do site da Associação dos Tradutores Públicos e Intérpretes
Comerciais do Rio de Janeiro http://www.atprio.com.br/pages/legislacao.html. (Acessado
em 03.07.2012).
100 | Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia
24. Neste caso, na prática, quem decide enquadrar o texto neste gênero textual é o próprio
tradutor, ao analisar o documento. A demarcação da categoria usada é mencionada na
apresentação dos emolumentos, com a letra “C”, sendo o preço calculado de acordo com
a tabela da Junta Comercial competente (no caso de Santa Catarina, a JUCESC). Cf.
orientações ACTP 2014, disponíveis em www.jucesc.sc.gov.br, último acesso em julho de
2014.
25. Conferir artigo 5 da respectiva tabela.
Luciane Fröhlich | 105
de seu país de origem. Por exemplo, o Brasil possui cerca de 1.400 empre-
sas alemãs, ou de origem alemã, empregando mais de 250.000 pessoas. De
outro lado, há cerca de 50 empresas brasileiras ativas na Alemanha, que
empregam em torno de 2.100 pessoas28. Circunstâncias como essas geram
documentação jurídica bilíngue29. Entre 2010 e 2011, quase 600 mil pes-
soas vieram morar no Brasil. Nunca houve tantos imigrantes desde 1890.
Desta forma, torna-se visível a necessidade cada vez maior de tra-
dutores e intérpretes forenses à disposição não só da justiça direta, como
também de bancos, escritórios de advocacia, empresas bi- e multinacionais,
órgãos públicos (como no Ministério do Trabalho), etc.30
Outro dado, retirado do jornal Gazeta do Povo do Paraná, de
15/02/201331, mostra que em um ano, o número de presos estrangeiros no
país cresceu 6,3% (totalizando 3.392 em junho de 2012). Segundo a maté-
ria, o aumento foi semelhante ao da população carcerária total, que chegou
a 6,9% no mesmo período.
Com efeito, essa tendência de crescimento na demanda por traduto-
res e intérpretes forenses não é perceptível somente no Brasil. É fato que a
necessidade de traduções forenses, em nível global, tem aumentado consi-
deravelmente por conta da globalização. As leis europeias, por exemplo, são
traduzidas simultaneamente para quase todas as línguas da comunidade.
Em jurisdições bilíngues ou multilíngues, como é o caso do Canadá e da
Suíça, há demanda constante por redação e tradução bi- e multilíngue. A
China é outro exemplo, a maioria das firmas estrangeiras empregam con-
tinuamente tradutores forenses para traduzirem seus contratos e demais
textos jurídicos.
Não obstante, será que as traduções forenses estão sendo executa-
das de maneira apropriada, ou seja, será que as traduções dos documentos
jurídicos estão atingido legitimidade tradutória, bem como estão tendo o
alcance legal esperado?
Deborah Cao comenta, em seu livro “Translating Law” (CAO, 2007),
que quando a China estava em ascensão à OMC (Organização Mundial do
1. Introdução
1. Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada individualmente em CALADO,
Vinicius de Negreiros. Análise crítica do discurso jurídico em caso de absolvição de acusado
em fato enquadrado na Lei Maria da Penha: desvelamento do fundamento implícito
reformador do julgado e suas consequências. In: Regina Lucia Teixeira Mendes; Fernando
Antonio de Carvalho Dantas; Leonel Severo Rocha. (Org.). Sociologia, Antropologia e
Cultura Jurídicas. 1ed.Florianópolis: FUNJAB, 2013, v. 1, p. 51-67.
112
Maurilo Sobral | 113
circulam nessa sociedade que promulgou tal lei, assim como a utilização
desse diploma legal reflete modos de operação da ideologia (THOMPSON,
1995) do sistema penal e processual penal.
A lacuna ou insuficiência, nas ciências sociais, de teorizações do pa-
pel da linguagem na vida social e as ferramentas apropriadas para a aná-
lise empírica desses materiais verbais, constatada por Chouliaraki (2005),
o fez caminhar para as práticas sociais. Já para Fairclough (2001, p.167),
a análise das práticas sociais constitui um foco “teoricamente coerente e
metodologicamente efetivo”. Por essa razão, eleger a agenda da ACD para
tratamento dos dados verbais produzidos na instância jurídica vem sendo
tão profícua. Desde a criação, por Virgínia Colares, do Grupo de Pesquisa
“Linguagem e Direito” na Plataforma Lattes do CNPq, no ano 2000, esses
estudos transdisciplinares têm sido nomeados de Análise Crítica do Discur-
so Jurídico (ACDJ)2.
O propósito dessa agenda de pesquisa é estudar a linguagem na ins-
tância jurídica como prática social e, para tal, considerar o papel crucial do
contexto social. Esse tipo de análise se interessa pela relação que há entre
a linguagem e o poder - relações de dominação, discriminação e controle,
na forma como elas se manifestam através da linguagem (WODAK, 2003).
Nessa perspectiva, a linguagem é um meio de dominação e de força social,
servindo para legitimar as relações de poder estabelecidas institucionalmen-
te. A ACD rompe com a análise de discurso (AD) na medida em evita o pos-
tulado de uma simples relação determinista entre os textos e as estruturas
sociais, ou seja, a “/.../ ACD permite analisar as pressões provenientes de
cima e as possibilidades de resistência às relações desiguais de poder que
aparecem em forma de convenções sociais (WODAK, 2003, p.19-20).
A ACD não pode ser considerada um método único, porém uma
agenda que tem consistência em vários planos, pois faz ancoragem em: (a)
a tradição da análise textual e linguística; (b) a tradição macrossociológica
de análise da prática social em relação às estruturas sociais ; e (c) a tradição
interpretativa ou microssociológica de considerar a prática social como al-
guma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em
procedimentos de senso comum partilhados. (FAIRCLOUGH, 1989, 2001)
A ACD nunca se propôs a ser um corpo teórico homogêneo, assim,
daquele grupo fundador, cada um dos pesquisadores constrói uma hetero-
geneidade de abordagens identificadas pelo mesmo guarda-chuva de prin-
cípios da ACD e diferenciadas pelo ecletismo teórico. Norman Fairclough
e outros da escola de Lancaster realizam a articulação entre Linguística
Sistêmica Funcional (LSF) e Sociologia (FAIRCLOUGH, 2003, 2006); Theo
van Leeuwen amplia o conceito de texto e trabalha as questões de multi-
Além dos instrumentos legais, conforme expõe Foucault ”existe uma sé-
rie de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia, e toda
uma rede de instituições de vigilância e correção” (2003, p. 11). Segundo
o autor, esse complexo de redes institucionais assume a função de corrigir
indivíduos em potência e subordina esse indivíduo à construções advindas
das relações de poder.
Em torno dessa rede reprodutora de controle e disciplina, o judiciário
e suas práticas se situam como ferramentas indispensáveis da sociedade
para a solução de conflitos dentro das estruturas sociais vigentes. Dessa
forma, reproduzem direta e indiretamente construções sociais que manifes-
tam uma carga cultural histórica e de solidificação de interesses, conforme
preconiza Foucault (2003, p.11):
As práticas judiciárias – maneia pela qual,
entre os homens, se arbitram os danos e
as responsabilidades, o modo pelo qual, na
história do Ocidente, se concebeu e se definiu
a maneira como os homens podiam ser julgados
em função dos erros que haviam cometido,
a maneira como se impôs a determinados
indivíduos a reparação de algumas de suas
ações e a punição de outras, todas essas
regras ou, se quiserem, todas essas práticas
regulares, é claro, mas também modificadas
sem cessar através da história- me parecem
uma das formas pelas quais nossa sociedade
definiu tipos de subjetividade, formas de
saber e, por conseguinte, relações entre o
homem e a verdade que merecem ser estudadas.
118 | Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em
caso enquadrado na Lei Maria da Penha
Dessa forma, fica claro o exercício da disciplina como produção das relações
de poder (FOUCAULT, 2013, p. 165). Relações legitimadas e institucio-
nalizadas através da atuação do Judiciário, que dotado de uma rede de dis-
positivos reproduzem meios de coerção incisivos sobre o individuo. Ou seja,
mecanismos disciplinares assumem um papel de atuação efetiva sobre os
corpos, mesmo que sem precisar toca-los, impondo sobre as consequências
de um processo de dominação.
A força simbólica escamoteada pelo discurso do relator no julgado
analisado reproduz um sistema de violência direcionado à vítima, especi-
ficamente à sua representação como mulher ao ponto de coloca-la como
merecedora da agressão. Tal coação, no entendimento de Bourdieu só é pos-
sível a partir do exercício direto da força simbólica contra aquele individuo,
onde tais mecanismos só assumem uma postura eficaz porque se apoiam
em predisposições que funcionam como “molas propulsoras, na zona mais
profunda dos corpos” (BOURDIEU, 2012, p. 50). Ou seja, a eficácia dessa
violência simbólica contra a mulher, só é possível porque já se encontra
incorporada nas estruturas sociais vigentes, até porque a “ forma como as
mulheres percebem o fenômeno da violência de gênero e dos crimes sexu-
ais, por exemplo, tem um impacto direto em seu comportamento social.”
(FIGUEIREDO, 2014, p. 148)
Ademais, o Judiciário legitima como necessário para a solução da bri-
ga, o ato violento direcionado à vítima que resultou em lesões em seu rosto.
O voto do relator, o qual foi acompanhado pelos demais julgadores (todas
mulheres!), enfatiza a agressão desferida pelo réu como atitude necessária
e ponderada contra quem havia dado início as agressões físicas, nesse sen-
tido:
[...] Um único soco, portanto, foi a medida
certa para fazer cessar a agressão, não havendo
que se falar em excesso. Este só ocorreria
se o réu continuasse a desferir outros
golpes, o que efetivamente não aconteceu,
pois a briga terminou ali. E na audiência
em juízo, o casal já estava reconciliado.
120 | Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em
caso enquadrado na Lei Maria da Penha
O soco desferido pelo homem contra mulher carrega o peso de uma carga
androcêntrica (BOURDIEU, 2012, p. 69) solidificada ao longo do processo
histórico e legitimado e reproduzido pelo judiciário. Observa-se que o julga-
dor não considera, sequer a possibilidade da vítima ter reagido a um proces-
so de violência ao qual possivelmente estava submetida, mesmo ela tendo
afirmado que havia dado início a agressão física.
A carga do simbolismo hostil atribuída pelo judiciário se junta ao peso
do golpe desferido pelo agressor, onde o relator justificou tal agressão como
elemento necessário para a solução do conflito. Tal justificativa atribui aque-
le soco desferido pelo réu contra sua companheira, o peso da honra, onde
não só se encontra a “honra” do agressor, mas de todo machismo presente
nas relações e estruturas sociais da sociedade, conforme segue:
Este investimento primordial nos jogos
sociais (illusio), que torna o homem
verdadeiramente homem — senso de honra,
virilidade, manliness, ou, como dizem os
cabilas, “cabilidade” {thakbaylith) —, é o
princípio indiscutido de todos os deveres
para consigo mesmo, o motor ou móvel de
tudo que ele se deve, isto é, que deve
cumprir para estar agindo corretamente
consigo mesmo, para permanecer digno, a seus
próprios olhos, de uma certa idéia de homem.
É, de fato, na relação entre um habitus
construído segundo a divisão fundamental do
reto e do curvo, do aprumado e do deitado,
do forte e do fraco, em suma, do masculino e
do feminino, e um espaço social organizado
segundo essa divisão, que se engendram, como
igualmente urgentes, coisas a serem feitas,
Maurilo Sobral | 121
1. R E L A T Ó R I O
1. E. A. R. apela da sentença que o condenou como incurso nas penas do artigo 129, § 9º, do Código
2. Penal, c/c artigo 5º, inciso I e artigo 7º, incisos I e II, ambos da Lei nº. 11.340/06, a uma pena de 03
3. (três) meses de detenção, a ser cumprida inicialmente no regime aberto.
4. Consta da denúncia que, no dia 27 de março de 2010, por volta das 02h00, em sua residência, o
5. denunciado de forma livre e consciente, mediante emprego de força física, agrediu sua
6. companheira S. R. V., causando-lhe as lesões descritas no laudo acostado às fls. 15/16.
7. A Defesa pleiteia a absolvição, aos argumentos de que agiu acobertado pela excludente da legítima
8. defesa e de que, após os fatos, reconciliou-se com a vítima (fls. 88/97).
9. O Ministério Público, em contrarrazões, pugna pelo não provimento do recurso (fl. 109/111).
10. A douta Procuradoria de Justiça oficia pelo conhecimento do recurso e o seu desprovimento (fl.
11. 122/125).
Maurilo Sobral | 123
1. Este o relatório.
Fragmento 01
26. violência por parte dos homens com que mantêm convivência em ambiente doméstico e familiar.
27. Isso não significa que o homem, quando agredido pela mulher, não possa reagir. 2. Comprovado,
28. nos autos, ter sido a varoa quem dera início à contenda, desferindo uma bofetada na cara do réu,
29. tendo este retorquido com um único soco, o suficiente para fazer cessar a agressão, resta
30. configurada a legítima defesa, de molde a excluir a ilicitude da conduta. 3. Recurso provido, para
31. absolver o acusado.
Fragmento 02
sem reagir (linha 52), logo, se reage a um tapa na cara com um único soco
(linha 60), age em legítima defesa (linha 63).
Porque atentar para os detalhes e dar ênfase ao laudo (linha 07 do
Fragmento 01) no seu voto? Talvez a briga tenha “parado por aí” para o
apelante que “foi embora”, mas a vítima foi à delegacia de polícia, registrou
a ocorrência e foi submetida a exame de corpo delito, afinal existe nos autos
um laudo descritivo das lesões.
Responde-se: porque a briga terminou e o casal já estava reconciliado
(linha 62). Eis o real fundamento da decisão.
A manutenção da condenação do apelante iria, em verdade, trazer
uma consequência socialmente indesejada, pois a vítima perdoou o ofensor
e reconciliou-se com ele. A questão social fora maior que a jurídica, mas o
desembargador não poderia externar tal fundamento porque as questões de
política criminal não competem ao desembargador, mas sim a aplicação de
Lei, a justiça criminal no caso concreto.
Nas linhas 65-68 externa o desembargador relator fundamento explí-
cito acerca de sua decisão, asseverando que houve, no caso, agressões recí-
procas (linha 65), utilizando nas linhas 69-82 do argumento de autoridade
de um precedente anterior.
Contudo, cai por terra o argumento de autoridade por falta de coerên-
cia ou similitude fática, ao constar no precedente a ausência de prova segu-
ra (linha 72), condição fática que no caso em análise se observou, através
do laudo (linha 07 do Fragmento 01).
Desta feita, o que prevaleceu foi o aspecto arbitrário da decisão, no
sentido de poder. Nas palavras de Dinamarco (2005, p. 100), ao tratar do
tema jurisdição e poder:
A idéia de poder, que está ao centro da visão
moderna do direito processual, constitui
assim fator de aproximação do processo à
política, entendida esta como o processo de
escolhas axiológicas e fixação dos destinos
do Estado.
66. dado inicio à contenda, a jurisprudência é no sentido de que se deve absolver. Com muito mais
67. razão, então, nas hipóteses como a dos autos, onde não resta qualquer dúvida de que foi a
68. suposta vítima quem deu início às agressões.
69. Confira-se, sobre o tema, a seguinte decisão, in verbis:
70. “APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LEI MARIA DA PENHA.
71. COMPANHEIRO QUE AGRIDE A ESPOSA DURANTE UMA DISCUSSÃO. PEDIDO DE
ABSOLVIÇÃO
72. POR LEGÍTIMA DEFESA. AGRESSÕES RECÍPROCAS. CONTRADIÇÃO NAS
73. VERSÕES DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE PROVA SEGURA. TESE DE LEGÍTIMA DEFESA
74. ACOLHIDA. ABSOLVIÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPROVIMENTO. 1. Em
75. crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, a palavra da vítima assume especial relevância
e
76. autoriza a condenação, mas se vier corroborada por outros indícios idôneos e não padeça de
77. contradição e dúvida. 2. Se a versão prestada pela vítima na delegacia encontra-se em
contradição
78. com a que declarou em juízo, quando admitiu a ocorrência de agressões recíprocas, gerando
79. dúvida sobre quem teria iniciado as agressões, é de rigor acolher a dirimente da legítima defesa e
80. absolver o réu, com base no benefício da dúvida. 3. Recurso conhecido e não provido, mantida a
81. sentença que absolveu o apelado dos crimes previstos nos artigos 147, caput, e 129, § 9º, do
82. Código Penal.(20070111560724APR, Relator ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 2ª Turma
83. Criminal, julgado em 18/06/2010, DJ 02/07/2010 p. 150).
84. Em face do exposto, DOU PROVIMENTO ao apelo, para ABSOLVER o apelante da imputação que
85. lhe é feita, fazendo-o com fulcro no art. 386, inciso VI, do CPP.
86. É como voto.
Fragmento 03
A primeira ilação que pode ser feita é a de que existe forte possibilidade da
decisão objeto do presente estudo ser usada como argumento de autoridade
136 | Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em
caso enquadrado na Lei Maria da Penha
para a perpetuação de uma prática que deveria a Lei Maria da Penha coibir,
influenciando outras decisões.
Constatou-se que o Tribunal em questão absolveu um agressor exter-
nando na ementa que existiram agressões recíprocas e que a resposta ime-
diata (de um soco lesionador a um tapa), fora capaz de gerar uma excluden-
te (legítima defesa), construção esta, no mínimo, perigosa para a atribuição
de sentido que se espera daquilo que constitui o núcleo deôntico da Lei.
Constata-se que houve omissão do “verdadeiro” motivo, qual seja, a
reconciliação do casal – um fundamento metajurídico – e, ao omiti-lo, ao
invés de contribuir com a justiça social e demonstrar que a política crimi-
nal não é a saída para os problemas sociais, o acórdão acabou criando uma
excludente para um fato corriqueiro, qual seja, agressões mútuas no âmbito
doméstico, onde o homem agride a mulher com mais violência, dada as suas
características físicas, que a questão de gênero, justamente, tenta dar um
tratamento diferenciado.
Não atribuir este sentido à norma, com a devida contextualização do
fato social, e ainda, com a prática social corriqueira (infelizmente) de nossa
sociedade, tem como consequência ferir-se de morte a própria norma, legi-
timando-se a violência.
A aprovação e aplicação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) no
caso concreto é resultado de uma política pública que restou inócua, produ-
zindo consequência desastrosa, pois apesar da legislação ter sido instituída
para coibir a violência doméstica contra a mulher, a voz daquela mulher
violentada no caso concreto foi silenciada.
Assim, diante da complexidade do caso (do ponto de vista sócio jurí-
dico) os desembargadores não conseguiram atingir a intenção legal de em-
poderamento da mulher, silenciando-a, posto que o interesse do estado res-
tringe-se a condenação ou absolvição do réu. No caso, ocorreu a absolvição
do réu em face do fundamento implícito contido na reconciliação do casal.
Ademais, o Judiciário ao assim agir assume o seu papel de protagonista
na ação numa posição que não contempla os interesses vítima da violência,
legitimando a violência sofrida pela mulher, tendo em vista que apesar ter
feito referência na decisão a situação de reconciliação vivida pela vítima e
o réu, tal fato em momento algum foi usado como razão jurídica decisória
para a absolvição.
Constata-se que o próprio estado-juiz manteve e legitimou a violência
sofrida pela vítima, por meio da produção de uma violência simbólica dire-
cionada numa rede de mecanismos de controle e disciplina que carrega as
estruturas de submissão, inclusive aceito, muitas vezes, por outras mulhe-
res, como no presente caso em que as demais desembargadoras que acom-
panharam o voto do relator.
Maurilo Sobral | 137
______. Discourse, social theory, and social research: the discourse of welfare
reform. Journal of Sociolinguistics, 4(2), p. 163-195, 2000.
MELLO. Marilia Montenegro Pessoa de. Da mulher honesta à lei com nome
de mulher: o lugar do feminismo na legislação penal brasileira. In Videre,
Dourados, MS, ano 2, n. 3, p. 137-159 , jan./jun. 2010.
1. Introdução
1. Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada em CALADO, Vinicius de Negreiros.
Recurso não conhecido e apreciação de mérito: uma análise crítica do discurso de acórdão
do Superior Tribunal de Justiça STJ. In: Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas
II.1 ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014, v.1, p. 90-106.
141
142 | Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem
mérito apreciado
Nesse sentido, para o autor análise textual e linguística perfaz uma descri-
ção e a análise da prática discursiva e da prática social uma interpretação
(2008, p.101), sendo certo que na prática discursiva importa analisar os
processos de produção, distribuição e consumo textual, pois no tocante a
produção nem sempre é fácil identificar o produtor textual porque na com-
plexidade do mundo contemporâneo, por vezes, aquele que figura como
autor não o único responsável pelo texto. Já o consumo pode ser individual
ou coletivo, dependendo significativamente dos contextos sociais onde são
consumidos, dos modos de interpretação disponíveis e do processamento
dos textos (2008, p. 106-108).
A dimensão sociocognitiva para Fairclough tem nítida relevância na
interiorização do processamento pelos consumidores do texto, posto que
os processos de produção e interpretação são restringidos pelos recursos
disponíveis aos membros e pela natureza da prática social, asseverando Fair-
clough que devem ser fortemente exploradas as restrições, principalmente
a natureza das práticas sociais (2008, p. 109).
A força de um texto ou de parte dele vem de seu componente acional,
que é a ação que se realiza (atos de fala), como por exemplo, “julgo proce-
dente”, “declaro nula a cláusula contratual” (2008, p.111). Nesse sentido, o
contexto funciona como um fator importante na redução de ambivalências
textuais, sendo a posição sequencial no texto uma forma de preditor de
força, ajudando a explicar a carga e o peso daquela determinada palavra
naquela situação, posto que fora daquele contexto, possivelmente, a inter-
pretação não seria aquela (2008, p.112).
A intertextualidade é uma das maiores preocupações de Norman Fair-
clough na obra multireferida, considerando ele que esta é “a propriedade
que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos”, cuja pers-
pectiva intertextual denota a historicidade dos textos, classificando a inter-
textualidade em manifesta e constitutiva (também chamada de interdis-
cursividade), concebendo-a como um foco principal na análise do discurso,
(2008, p. 114 e 135) inclusive deste trabalho, dada a marcante característi-
ca intertextual do acórdão analisado.
O presente trabalho aborda algumas das categorias de análise propos-
tas por Norman Fairclough, entrelaçando sua metodologia com a análise
dos modos de operação da ideologia proposta por Thompson, de modo a
analisar criticamente os julgados do Superior Tribunal de Justiça - STJ que
compõem o corpus da pesquisa.
Para a exata compreensão da teoria social crítica de Thompson é pre-
ciso apresentar o seu conceito de ideologia, vez que essa palavra é polissêmi-
ca e passou por inúmeras modificações ao longo do tempo (1995, p. 43-80):
[...] proponho conceitualizar ideologia
em termos das maneiras como o sentido,
Vinicius de Negreiros Calado | 143
cetível de uma análise sintática (conexão dos signos entre si), semântica
(conexão do signo com o sentido) ou pragmática (que examina o contexto
situacional em que o signo é utilizado)”, afirmando que a relação texto-con-
texto é perceptível no “movimento de estudos críticos”.
Ao tratar do caráter problemático do significado das palavras e das pro-
posições linguísticas Pietro Perlingieri assevera que “as palavras assumem
no tempo significados mesmo qualitativamente diversos, segundo a cultura
e a sensibilidade do destinatário” (2002, p. 73), concluindo que “[...] a sua
leitura será sempre influenciada pelo conhecimento do universo normati-
vo” (2002, p. 74).
Nesse sentido o texto, o contexto e o conhecimento jurídico do intér-
prete não podem ser olvidados numa análise crítica de uma decisão judicial,
sob pena de extrema redução de sua complexidade.
O texto jurídico situado no contexto de uma decisão judicial exerce
um “poder dizer” e conta com uma força própria dos textos produzidos pelo
aparato estatal. Este tipo de texto faz parte do objeto de pesquisa do pro-
fessor Malcolm Coulthard (2014), o qual afirma com base em sua própria
experiência que já fora instado a comparecer como perito para que o judi-
ciário pudesse rever “[...] condenações errôneas baseado em uma análise
detalhada de traços lexicais e gramaticais nos textos” .
No presente estudo aborda-se o texto, o contexto, e a prática social
desenvolvida pelo STJ que fixa seu entendimento em sede de Recurso Es-
pecial cujo mérito não fora efetivamente enfrentado no acórdão.
A ACDJ parte do arcabouço teórico metodológico linguístico-discursi-
vo, mas a ele não se limita, visando construir um aparato próprio interdis-
ciplinar jurídico-discursivo, minimizando desse modo as lacunas apontadas
por Teun A. van Dijk (2008, p.131).
Assim, trabalhar com ACDJ exige, antes de mais nada, a contextuali-
zação do evento autêntico a ser abordado, a partir da formação jurídica da
comunidade de intérpretes.
Foucault assinala que o discurso é poder que se quer apoderar e não
simplesmente o local onde as lutas são travadas, pelo que quando um in-
divíduo se apropria de um discurso através de uma formação discursiva,
na verdade ele está se apropriando do próprio poder. Assim, o advogado ao
conhecer as regras e o funcionamento da corte tem efetivamente um poder,
pois não se permite que qualquer pessoa tenha acesso, sendo ele ao mesmo
tempo submetido ao poder e às regras/condições de funcionamento da corte
(2009. p. 10 e 36).
O que Bourdieu chama de encenação paradigmática da luta simbólica
denomina Foucault de ritual, acrescentando que este define “todo o con-
junto de signos que devem acompanhar o discurso” que “não podem ser
146 | Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem
mérito apreciado
morais e materiais em
68. face do recorrido LÊNIO CARLOS DAGNOLUZZO TREGNAGO, por
conta de
69. suposto erro médico decorrente de cirurgia ineficaz de
vasectomia, alegando que,
70. embora tivesse sido informado pelo médico de que o
procedimento seria irreversível
71. e definitivo -o que fez com que o recorrente e sua
esposa deixassem de utilizar-se
72. de métodos contraceptivos -, ele tornou-se pai após
aproximadamente 10 (dez)
73. anos da realização da cirurgia. Em primeiro grau, a
ação foi julgada improcedente
74. (fls. 276/284).
75.
76. Interposto recurso de apelação, o e. Tribunal de
Justiça do Estado
77. do Rio Grande do Sul negou-lhe provimento, conforme
assim ementado:
78.
79. “APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE
80. INDENIZAÇÃO. CIRURGIA DE VASECTOMIA. GRAVIDEZ
81. POSTERIOR NÃO PLANEJADA. IMPERÍCIA MÉDICA NÃO
82. COMPROVADA. Não estando comprovada nos autos a
imperícia do
83. réu quando da realização da cirurgia de vasectomia no
autor,
84. inviável a sua responsabilização pela não planejada
gravidez da
85. esposa do recorrente, mormente por que a falha no
resultado de tal
86. procedimento é uma possibilidade admitida pela doutrina
médica,
87. em razão da recanalização espontânea dos ductos
deferentes, até
88. mesmo anos depois do método cirúrgico, conforme
esclarecido no
89. laudo pericial. Dever de informar devidamente observado
pelo réu.
Vinicius de Negreiros Calado | 151
pelo réu
155. comprova que para os demais pacientes foram prestadas
as
156. devidas informações ao procedimento da vasectomia, o
que implica
157. considerar que em relação ao autor não se justifica
acreditar em
158. ressalvas ou exceções.
159.
160. (...)
161.
162. Assim, com base na confiança depositada no réu
decorrente de ser
163. médico da família e com base nas declarações de outros
pacientes
164. que também realizaram o mesmo procedimento cirúrgico,
conclui-se
165. que não pode ser imputado ao réu a responsabilidade
civil, pois não
166. houve inobservância do dever de informar.
167.
168. Por fim, a responsabilidade do réu também inexiste
porque não
169. demonstrado por meio de provas seguras de que sua
conduta, ao
170. realizar a cirurgia, foi culposa. A alegada imperícia
sustentada pelo
171. autor não foi comprovada (...) enfim, não restou
demonstrado nos
172. autos que o proceder do médico réu foi em desacordo com
as
173. técnicas conhecidas na literatura médica.
174.
175. Não apontada especificamente e não comprovada de forma
segura
176. uma conduta culposa por parte do réu, não há que se
falar em
177. responsabilidade civil, mormente porque salientado em
diversas
Vinicius de Negreiros Calado | 153
195.
196. É o voto.
197.
198. MINISTRO MASSAMI UYEDA
199.
200. Relator
Fragmento 07
Fragmento 17
A análise crítica do discurso – ACD tendo como marco teórico Norman Fair-
clough, apoiada ainda nas construções de John B. Thompson pode ser apli-
cada a discursos jurídicos.
O estudo de caso de acórdão do Superior Tribunal de Justiça - STJ foi
realizado com o levantamento de seus elementos textuais e contextuais.
Buscou-se demonstrar a existência de uma prática discursiva em que
o exercício de poder pelo tribunal superior exorbita o caso concreto, tendo
em vista a existência de fixação de três posicionamentos na ementa do acór-
dão que aprecia o Recurso Especial - REsp objeto do estudo.
Vinicius de Negreiros Calado | 157
1. Introdução
Meu objetivo, aqui, será explorar, por uma análise crítica aplicada a textos
próprios do sistema penal, de que maneira um problema social como a vio-
lência nas relações de gênero é tratado no sistema judiciário. Esse objetivo é
acessado a partir de um corpus1 formado por 25 processos penais de ameaça
e lesão corporal, enquadrados na Lei Maria da Penha, nos quais vítimas e
agressores tinham relações de parentesco, sendo a maioria casais. Esses
processos representam uma parte do montante total de 68 demandas de
violência doméstica contra a mulher, registradas entre os anos de 2007 e
2008 no Cartório do Crime da cidade de Jaraguá, interior de Goiás.
Essa cidade é tomada como campo específico da pesquisa em virtude
de minha atuação como professora e pesquisadora na Universidade Esta-
dual de Goiás, Unidade de Jaraguá, onde o projeto original foi proposto.
Paralelamente, essa escolha visa preencher uma lacuna no que se refere
às cidades do interior em geral, uma vez que a maioria das pesquisas so-
bre violência de gênero realizadas no Brasil nas últimas décadas (Almeida,
2001; Azevedo, 1985; Fausto, 1984; Gregori, 1993; Grossi e Werba, 2001)
retratam o universo de grandes centros e capitais, tendo sido as pequenas
cidades e suas respectivas instituições pouco contempladas. Nessa direção,
a cidade de Jaraguá, especificamente, é tomada como ponto referencial
de outras localidades semelhantes, espalhadas pelo interior do país, cuja
herança cultural, a exemplo desta, guarda marcas da atuação recente de
1. O presente artigo é resultado parcial da pesquisa coordenada pela autora intitulada
“Violência contra a mulher em uma cidade do interior de Goiás: silêncio e invisibilidade?”,
financiada pelo Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA nº. 57/2008 do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
160
Lúcia Freitas | 161
Contradizendo a própria lei, que reconhece a união estável como uma for-
ma de casamento, o termo amásia permanece na linguagem dos processos
e continua a rotular as mulheres insubmissas que não seguiram o velho
modelo de organização familiar. Por ser empregado predominantemente
no feminino, uma vez que não encontrei nenhum registro no masculino, o
termo ainda demonstra a maior carga de preconceito sobre a mulher que
burla as normas tradicionais do casamento.
Para Campos (2003), o que move a lógica jurídica é um ideal impreg-
nado de valores tradicionais sobre o matrimônio e a família, que se orientam
para a preservação do casamento. Segundo o autor, essa lógica permanece
inalterada há muito tempo e, até o advento da Lei Maria da Penha, era
operada pelo arquivamento massivo dos processos provocado pela renúncia
Lúcia Freitas | 167
são de culpa das mulheres, que assumem agir sob descontrole emocional ou
irresponsavelmente. É o que se observa no exemplo dado: a vítima confessa
que fez uma acusação errônea ou falsa e vem a público para se desculpar e
anular a declaração anterior. Em síntese, o que o gênero faz concretamente
é registrar o arrependimento das vítimas, seu perdão aos agressores e, mais
indiretamente, seu próprio pedido de perdão pelos constrangimentos re-
sultantes da abertura dos processos. Executadas nesses moldes, as retrata-
ções atendem tanto aos critérios burocráticos próprios do sistema judiciário,
quanto a ideais conservadores da cultura patriarcal. Tudo orquestrado por
arranjos linguisticos que operam uma duvidosa distribuição de poder.
5. Os papéis de gênero no discurso do judiciário: cultura patriarcal
e a distribuição desigual de poder
3. Nesse sentido, pesquisas (Almeida, 2001; Soihet, 1997) têm exibido a insubmissão das
mulheres das camadas populares sob diferentes formas, desde o final do século XIX até
os tempos atuais. O movimento do cangaço, por exemplo, realizado no sertão nordestino
durante as décadas de 1920 e 1930, rompeu com uma cultura secular, posto que, com a
entrada da mulher para o cangaço, tornou-se emblemático seu envolvimento no mundo da
violência.
170 | Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha
ênfase não recai propriamente nesse perfil. No caso em questão foi realçado
o fato de a mulher ter traído o acusado, conforme se observa no recorte:
10. Excelência, cumpre esclarecer que o acusado, jamais
agrediu a vitima. O que realmente ocorreu foi que, depois do
denunciado ter tomado conhecimento de que fora traído pela
vitima, o casal se separou, sendo que aquele, ao tentar a
reconciliação, já buscada por esta, foi humilhado, em dado
momento da conversa, com palavras, sendo que ambos começaram
a se agredir, ocasião em que a vitima pegou um pedaço de pau
para bater no acusado e este, com o intuito de se defender, a
empurrou. A vítima, descontrolada, voltou a agredir o acusado
com o pedaço de madeira, momento em que o mesmo colocou sua
bicicleta entre eles, empurrando-a contra a vitima para mais
uma vez se defender.
Observa-se que, neste auto, a Justiça faz uma proibição explícita ao réu de
frequentar bares, prostíbulos e casas de jogos. Como bem argumenta Fair-
clough (2001), o que é dito em um texto é sempre dito em contraposição ao
que não é dito, mas tido como garantido, apontando para o consensual, para
as normalizações e aceitação. Nesse sentido, há implícito nessa sentença
uma pressuposição de que essas práticas proibidas são atividades próprias
do universo masculino. Todas elas apelam para a liberdade de comporta-
mento e para o papel sexual ativo do homem, que neste caso está sendo
cerceado, enquanto perdurarem os efeitos da suspensão do processo sobre
o qual o réu responde pela agressão contra a ex-mulher. Essas proibições
que cerceiam a liberdade masculina, especialmente a sexual, parecem fun-
cionar como uma espécie de punição ao acusado para compensar o fato de
a Justiça ter-lhe concedido o benefício de suspensão do processo.
Ficam, portanto, muito evidentes nas análises os valores e prerrogati-
vas culturais que definem os tradicionais papéis do gênero dentro da polari-
dade masculino e feminino, que reservam os atributos de liberdade, poder,
dominação, força, violência e superioridade, em relação aos primeiros, e
submissão, passividade, fraqueza e inferioridade, em relação aos últimos. A
ofensa concreta ao ideal igualitário se expressa tanto nos enredos das histó-
rias reconstituídas na pesquisa, em que é nítida uma imensa desproporção
de forças entre homens e mulheres, com o prejuízo destas, vítimas reais
de toda sorte de imposições, arbitrariedades e agressões de seus parceiros,
quanto na atitude condescendente do judiciário, a essas mesmas despro-
porções.
6. Considerações finais
1. Introdução
177
178 | Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na
hermenêutica jurídica
No dia 04 de junho de 2010, foi editado o diploma normativo que ficou co-
nhecido como Lei da “Ficha Limpa”, a LC nº 135/2010. Publicado no dia 07
do mesmo mês e ano, o referido diploma originou-se de um projeto de lei de
inciativa popular, que contou com o auxílio de diversos entes da sociedade
civil organizada, tal como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral –
movimento que estimulou e defendeu, no Congresso Nacional, a aprovação
do projeto de lei que deu origem à norma – bem como com a participação
de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Em sua ementa, a LC nº 135/2010 indica a natureza jurídica de suas
normas, dispondo:
Altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio
de 1990, que estabelece, de acordo com o §
9º do art. 14 da Constituição Federal, casos
de inelegibilidade, prazos de cessação e
determina outras providências, para incluir
hipóteses de inelegibilidade que visam a
proteger a probidade administrativa e a
moralidade no exercício do mandato.
A Lei da “Ficha Limpa” foi editada, desse modo, com o objetivo de inovar
a ordenamento jurídico, complementando o sistema infraconstitucional de
inelegibilidades, que, inaugurado com a publicação da LC nº 64/1990, tinha
sido requestado pelo § 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, cita-
do in verbis:
Lei complementar estabelecerá outros casos de
inelegibilidade e dos prazos de sua cessação,
a fim de proteger a probidade administrativa,
a moralidade para o exercício do mandato,
considerada a vida pregressa do candidato e
a normalidade e legitimidade das eleições,
contra a influência do poder econômico ou
abuso do exercício de função, cargo ou
emprego na administração direta ou indireta.
Pêcheux ([1983a] 1997, [1983b] 1999), por sua vez, retoma a noção
de memória discursiva para fazê-la funcionar no âmbito dos trabalhos e
discussões teóricas da Análise de Discurso. Nesse sentido, o filósofo fran-
cês propôs discutir, no texto O discurso, estrutura ou acontecimento (PÊ-
CHEUX, [1983a] 1997), a partir da descrição do acontecimento discursivo
“a eleição de François Mitterrand à Presidência da França” – fato ocorrido
às 20 horas do dia 10 de maio de 1981 –, “o acontecimento, no ponto de
1. Escola fundada pelo filósofo francês Michel Pêcheux, no final dos anos sessenta,
caracterizada por Orlandi (1996) como uma disciplina de entremeio, uma vez que coloca
em relação pressupostos teóricos da Psicanálise Freudiana relida por Lacan (o sujeito
do inconsciente), do Materialismo Histórico Marxista relido por Althusser (o sujeito da
ideologia) e da Linguística Saussuriana relida pelo próprio Pêcheux (o sujeito do discurso),
e que tem sido chamada de Escola Francesa de Análise de Discurso ou Pêcheuxtiana
(doravante denominada AD).
182 | Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na
hermenêutica jurídica
Podemos dizer, assim, que a memória discursiva é algo que já está lá:
uma estruturação de fatos de discurso que se apresentam enquanto inscri-
ções materiais dessa mesma memória. Ela é um já-dito que permite que
um dado objeto de discurso seja movimentado novamente, isto é, que esse
objeto seja redito, contraditado, (re)significado pelos enunciadores das po-
sições-sujeito que nela estão inseridas... um espaço do dizível e do indizível,
onde o ato de enunciar pressupõe o de interpretar.
184 | Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na
hermenêutica jurídica
Não raro nos depararmos com casos sub judice em que um mesmo prece-
dente jurisprudencial é utilizado para fundamentar teses jurídicas que se
opõem diametralmente. O que é possível graças ao jogo interpretativo, por
meio do qual são reforçados certos aspectos do julgado, enquanto outros
são apagados. Ou seja, os precedentes jurisprudenciais, ao serem utilizados
como critérios hermenêuticos para a compreensão de normas ou questões
jurídicas, eles próprios passam por processos de interpretação, a partir dos
quais se seleciona o que deverá ser citado, bem como a própria inteligência
que deverá ser dada às partes ou elementos citados. Na maioria das vezes,
essa construção de um novo sentido para o julgado que se cita como pre-
cedente ocorre de tal forma que se consegue até mesmo fundamentar te-
ses jurídicas totalmente contrárias àquelas adotadas quando do julgamento
apontado.
Esse processo pode ainda ser mais complexo: os julgados, antes mes-
mo de se tornarem precedentes, isto é, quando ainda estão sendo aprecia-
dos e discutidos, formam-se sempre a partir de exegeses, que, sendo jul-
186 | Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na
hermenêutica jurídica
O fato é que o art. 1º, da EC nº 52/2006, que deu nova redação ao art. 17, da
Constituição Federal de 1988, não cuida de novos casos de inelegibilidade,
tal como fez parecer, em sua exposição, o patrono de Joaquim Roriz. Na rea-
lidade, a EC nº 52/2006 cuidou da chamada verticalização das coligações,
nada tendo a ver com matéria de elegibilidade. O intérprete, no entanto,
reconfigura o julgado de tal forma que o faz parecer, de fato, um precedente
aplicável ao caso ora em apreço.
Por seu turno, o causídico Eládio Barbosa Carneio, patrono da re-
corrente Coligação Esperança Renovada, também citou, em sua sustenta-
ção oral, a ADI 3.685 como sendo um precedente jurisprudencial aplicável
ao julgamento do recurso de Joaquim Roriz. Além disso, suscitou violação
por parte do acórdão recorrido a outro julgado do Supremo, constituído na
ADPF 144, em que a Associação dos Magistrados Brasileiros buscava a auto
aplicabilidade do § 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988. Todavia,
da mesma forma que a ADI 3.685, esse julgado também não discutiu maté-
rias de inelegibilidade. Por meio dele, o Supremo decidiu, interpretando o
sentido da expressão “vida pregressa”, contida na norma do § 9º, do art. 14,
da Constituição Federal de 1988, que essa seria uma norma de eficácia li-
mitada e que, portanto, somente a edição da lei complementar mencionada
em seu texto poderia aperfeiçoar a sua eficácia.
André Henriques Maimoni, por sua vez, terceiro advogado a falar da
Tribuna do Supremo, como patrono das partes recorridas, adotou o mes-
mo itinerário hermenêutico seguido por seus antecessores, utilizando, mais
uma vez, como precedente jurisprudencial o RE 129.392. Só que, nesse
caso, o julgado se prestou, exatamente, para solidificar a tese contrária, qual
seja, a de que inelegibilidade não constitui matéria de processo eleitoral, não
estando, portanto, inserida no âmbito de incidência do Princípio da Anuali-
dade. Perlustremos, a seguir, trecho da sustentação oral do advogado:
188 | Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na
hermenêutica jurídica
Excerto nº 02
No parecer do órgão ministerial, tal como ocorreu nas falas dos exegetas
advogados, o julgado constituído no RE 129.392 é, novamente, apresentado
como um precedente jurisprudencial capaz de demonstrar o entendimento
que o Supremo Tribunal Federal vinha esboçando acerca da matéria e as-
190 | Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na
hermenêutica jurídica
A análise dos excertos selecionados indica ainda que, dispersos nas várias
formulações/teses interpretativas propostas, discutidas e/ou contestadas,
encontram postos dois valores jurídicos que são, a todo o momento, retoma-
dos, esquecidos, reforçados ou enfraquecidos: moralidade administrativa e
segurança jurídica. Na memória discursiva, em que se situam esses ditos e
não ditos, identificamos, outrossim, funcionando um imaginário político-ju-
rídico constituído a partir da interpretação não só de textos da Lei, como
também de fatos, acontecimentos e condutas humanas, que se referem à
situação vivenciada, nos últimos tempos, pela política pátria. É precisamen-
te nesse imaginário que ganha corpo uma das maiores preocupações atuais
do Estado brasileiro: combater a corrupção política.
Luis Cláudio Aguiar Gonçalves | 191
Excerto nº 07
Excerto nº 08
Excerto nº 10
Excerto nº 11
1. Introdução
201
202 | A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades
complexas e pluralistas
Conceituar democracia não é uma tarefa fácil, ademais, não faz parte do
cerne do presente trabalho delongar-se nessa esfera da Ciência Política. No
entanto, não se pode se eximir de delimitar o que se compreende, aqui, por
democracia para, então, tentar-se discutir acerca da pretensa legitimidade
democrática Judiciário brasileiro em sede de controle jurisdicional de cons-
titucionalidade das leis.
Tradicionalmente, atribui-se à democracia a insígnia de governo do
povo, conforme a origem grega do vocábulo. Entretanto, não se pode afirmar
que a concepção atual de democracia é a mesma da Grécia Antiga, cujas
características principais eram a unidade, solidariedade e participação; não
podendo esquecer que a cidadania, à época, era um conceito altamente
restritivo, porque poucos participavam da vida pública, excluindo-se mulhe-
res, escravos e estrangeiros (HELD, 1987). De lá para cá a noção de estado
mudou de maneira radical e, hoje, como já aduzido, vive-se em um tecido
social permeado pelos problemas da complexidade e do pluralismo.
Como já afirmado, a sociedade contemporânea é marcada por uma
miríade de possibilidade e pela convivência dos mais diversos projetos de
vida, aspirações e crenças, dando lugar a variados grupos separados de modo
virtual, o que implica dizer que a noção de um poder emanado de um povo
não mais se agrega a acepções de unicidade ou de um governo exercido de
maneira totalmente direta pelos cidadãos.
Dessa maneira, a atual configuração da democracia não pode des-
considerar as referidas características que marcam grande parte dos es-
tados hodiernos, inclusive a sociedade brasileira; logo, deve-se encontrar
maneiras de compatibilizar os atos estatais com as atuais exigência demo-
cráticas.
Nesse sentido, o conceito majoritário de democracia não é mais su-
ficiente para atender todas as exigências dessa nova configuração estatal,
pois, em sociedades pluralistas, a fragmentação social não mais permite a
necessária flexibilidade exigida pela regra majoritária, na medida em que os
grupos minoritários poderiam quedar-se preteridos das decisões políticas.
208 | A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades
complexas e pluralistas
Para atingir essa meta, o Judiciário deve pautar suas decisões num
método racional, que permita ao cidadão e, principalmente às partes, a de-
liberação e o exame da fundamentação de todas e cada uma das decisões
judiciais. Tal intuito parte do pressuposto que todo ato estatal, não somente
as tomadas de decisão do Judiciário, deve restar fundamentado racional-
mente, sob pena de ferir a formação do Estado Democrático de Direito,
como exigido de modo expresso pelo texto constitucional, em seu art. 93, IX
(SOUZA CRUZ, 2004).
Nesse aspecto, os novos contornos da democracia demandam, como já
explanado, uma atuação mais direta e igualitária de todos os setores sociais,
e, em sede de prestação jurisdicional, seja constitucional ou infraconstitu-
cional, essa exigência não é diferente. Logo, o processo decisional por parte
do Judiciário não pode ser concebido como um momento individual do ma-
gistrado, mas uma construção racional, formada do debate e das argumen-
tações de cada litigante, somando-se à deliberação do Poder Público.
Para que isso seja possível, é indispensável uma postura mais ativa dos
cidadãos nesse processo de edificação do direito. E é justamente daí de onde
advém a legitimidade democrática, vez que somente quando os indivíduos
efetivamente participam dessa construção, como “povo ativo” (MÜLLER,
1998), e não somente como destinatário do ato público, é que a decisão
pode ser considerada democrática.
Corroborando esse pensamento, Gisele Cittadino aduz que:
Uma cidadania ativa não pode, portanto,
supor a ausência de uma vinculação normativa
entre Estado de Direito e democracia. Ao
contrário, quando os cidadãos vêem a si
próprios não apenas como os destinatários,
mas também como os autores do seu direito,
ele se reconhecem como membros livres e
iguais de uma comunidade jurídica. Daí a
estreita conexão entre a plena autonomia do
cidadão, tanto pública quanto privada, e a
legitimidade do direito (CITTADINO, 2004,
p. 109)
Assim sendo, não se pode permitir que o Judiciário seja considerado o guar-
dião de valores da sociedade, pois como é que se pode determinar um esca-
lonamento de valores em uma sociedade pluralista, formada por indivíduos
com crenças, anseios e culturas distintas?
Ao contrário, o modelo social atual, com toda a complexidade e dife-
rença possíveis, não abriga, como demonstrado, uma reunião dos grupos
em prol de um consenso sobre os valores que deveriam reger seus direitos.
Noutros termos, o caminho a ser trilhado em busca da legitimidade demo-
crática não está num consenso imposto, seja pelo Chefe de Executivo, seja
pelas maiorias parlamentárias, os conchaves econômicos ou pelo juiz.
Assim, a legitimidade dos atos públicos encontra seu lugar no dissenso,
na pluralidade, na possibilidade de divergir. Em outras palavras, somente
por meio do diálogo entre todos os valores heterogêneos é que se pode obter
uma solução pautada na racionalidade.
Nesse sentido, o Judiciário brasileiro, em sede de controle de constitu-
cionalidade das leis, não pode continuar nesse processo de distanciamento
vertical da opinião dos particulares, com o uso recorrente de mecanismos
que priorizam o controle concentrado de constitucionalidade das leis, por
parte do Supremo Tribunal Federal, em detrimento do controle difuso.
O controle difuso de constitucionalidade das leis, de acordo com a
vertente procedimentalista, seria a via que melhor asseguraria as exigências
de uma democracia mais participativa (SOUZA CRUZ, 2004, p. 22), já que
possibilitaria a maior participação das partes na tomada de decisões, dife-
rentemente do que ocorre em sede da via concentrada, em que as decisões
são orientadas por um processo objetivo, fechado ao diálogo e concentrado
Ana Virgínia Cartaxo Alves | 215
1. Introdução
221
222 | Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação
do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas.
medicamentos me too. Eles também são conhecidos por remédios me better,
follow on, copycats, dentre outras expressões. No Brasil, eles podem ser
chamados de medicamentos de imitação.
Em uma definição introdutória, esses medicamentos constituem, basi-
camente, versões similares – para não falar praticamente idênticas - a outros
medicamentos que lhes precederam e, geralmente, são lançados quando as
patentes destes últimos estão prestes a expirar – coincidentemente ou não.
Então, ao invés de recompensar os laboratórios farmacêuticos por
colocarem no mercado verdadeiras inovações que contribuam para o de-
senvolvimento da saúde, o público consumidor recompensa esse segmento
da indústria pagando altos valores por remédios que possuem efeitos tera-
pêuticos idênticos ou praticamente idênticos a remédios que já estavam no
mercado!
Pergunta-se: será que esse tipo de medicamento mereceria a pro-
teção patentearia? Seriam os medicamentos me too apenas uma forma de
perpetuar o monopólio dos laboratórios farmacêuticos sobre a exploração de
medicamentos cujas patentes já expiraram? A concessão de patentes a esse
tipo de remédios não seria, ao arrepio da finalidade do próprio instituto da
patente, um desincentivo ao desenvolvimento de novos - no sentido real da
palavra - remédios?
Essas e outras questões serão analisadas no presente artigo, com um
estudo dos medicamentos me too à luz das disposições de Direito relativas à
propriedade industrial.
Para tanto, tomaremos como exemplo principal um medicamen-
to bastante conhecido da população e, ao mesmo tempo, um dos maiores
exemplos quando se fala em medicamentos de imitação: o Nexium, suces-
sor do antigo Prilosec, ou, como é conhecido popularmente, a “pílula roxa”.
Antes, entretanto, faz-se necessária uma explanação acerca dos re-
quisitos essenciais para a concessão de uma patente em geral, bem como
das peculiaridades quando se trata de patentes farmacêuticas.
2. Patentes farmacêuticas
Figura 1: Fluxo de Análise para Pedidos de Patentes, envolvendo Anuência Prévia, de Pro-
dutos e Processos Farmacêuticos.
Essa denominação pode ser desconhecida para os leigos, mas, para os pro-
fissionais e pesquisadores envolvidos com a saúde, ela é bastante difundida
e envolve uma ferrenha polêmica entre aqueles a favor e contra esse tipo
de remédios.
Medicamentos me too, ou, medicamentos de imitação1, são
aqueles que possuem qualidades terapêuticas idênticas ou semelhantes às
1. Os me too não devem ser confundidos com os genéricos ou os similares. Ainda que
estes possam ser considerados cópias, eles apenas são comercializados após a decadência
da patente do medicamento de referência. Nem medicamentos genéricos nem similares
dispõem, como os me too, de uma nova proteção patentearia. Segundo a Lei nº 9.787/99:
“XX – Medicamento Similar – aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos,
apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e
indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica, do medicamento de referência registrado
Artur Stamford da Silva | 229
3. CHADHA, ALKA. BLOMQVIST, AKE. Patent races, “me-too” drugs and generics:
a developing-world perspective. Disponível em: <http://www.fas.nus.edu.sg/ecs/pub/wp/
wp0513.pdf>. Acesso em: 14 agosto, 2012.
Artur Stamford da Silva | 231
5. SPECTOR, Rosanne. Me-too drugs. Sometimes they’re just the same old, same old.
Disponível em: <http://stanmed.stanford.edu/2005summer/drugs-metoo.html>. Acesso
em: 15 maio, 2012.
6 . IMS HEALTH. Total unaudited and audited global pharmaceutical market,
2003 – 2011. Disponível em: <http://www.imshealth.com/ims/Global/Content/Corporate/
Press%20Room/Top-Line%20Market%20Data%20&%20Trends/2011%20Top-line%20
Market%20Data/Global_Pharma _Market_ by_Spending_2003-2011.pdf>. Acesso em: 14
agosto, 2012.
234 | Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação
do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas.
da molécula do omeprazol. Em outras palavras, o Nexium é o medicamento
me too que sucedeu o Prilosec, perpetuando para o AstraZeneca o imenso
faturamento alcançado deste último – cerca de 6,1 bilhão de dólares tanto
em 2000 quanto 2001 (OHLY, 2008, p. 6)7.
Anos antes de a patente do Prilosec expirar, o AstraZeneca deu início
a estudos com o intuito de encontrar uma saída para esse acontecimento
inevitável. Mas essa saída não seria criar um remédio inovador. Com o mer-
cado consumidor tão grande e de lucros certos como era o do Prilosec, o que
o AstraZeneca queria era um novo medicamento para assumir a posição da
pílula roxa como um dos seus produtos mais vendidos. E essa solução foi
encontrada no Nexium, ou melhor, no meio-Prilosec.
Para explicar como se deu esse estratagema do AstraZeneca, antes
faz-se necessário deter-se em aspectos mais específicos da Química. Algu-
mas moléculas são chamadas de enantiômero por constituírem a imagem
no espelho de outra molécula. Idênticas em suas fórmulas estruturais – os
mesmos átomos, na mesma ordem, submetidos às mesmas ligações quími-
cas - mas que não se sobrepõem uma à outra. A mistura dessas moléculas é
denominada de mistura racêmica.
Pois bem. O Prilosec é composto da mistura racêmica da substância
chamada omeprazol, sendo que um desses enantiômeros possui uma forma
ativa e, o outro, inativa, inerte. Já o Nexium é composto apenas do enantiô-
mero de forma ativa do Prilosec, chamado de esomeprazol (ANGELL, 2004,
p. 94).
Ou seja, o que o AstraZeneca fez foi, simplesmente, separar a mis-
tura racêmica. Inexiste nesse remédio a novidade ou mesmo a atividade in-
ventiva, exigidas no Acordo TRIPs – e na legislação brasileira. Entretanto, ao
invés de ser indeferido o pedido em razão da ausência de inovação, a “modi-
ficação” na molécula do Prilosec foi considerada suficientemente diferente
pelo FDA para que o Nexium obtivesse uma patente – e pelo INPI, visto que
ambos os medicamentos aqui mencionados são comercializados no Brasil.
Tudo isso em evidente dissonância com os requisitos estabelecidos em lei
para a concessão de uma patente de inovação.
Mas, mesmo conseguindo a patente, o AstraZeneca precisaria ainda
conseguir a aprovação da FDA para a comercialização do Nexium como um
medicamento, precisando esse laboratório demonstrar um aumento, ainda
que mínimo, dessa droga em relação a sua antecessora.
Nesse sentido, foram realizados cerca de quatro estudos, promovidos
financeiramente pelo próprio AstraZeneca. Neles foram comparadas as do-
7. OHLY, Christopher. Omeprazole is over - or nearly so. Disponível em: <www.
schiffhardin.com>. Acesso em: 8 agosto, 2012.
Artur Stamford da Silva | 235
SWIDEY, Neil. The Costly Case of the Purple Pill. Disponível em:
<http://home.comcast.net/~neilswidey/pill.htm>. Acessado em: 9 agosto,
2012.
1. Introdução
239
240 | Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um
estudo da sumula vinculante nº 11 do STF
1. Pureza aqui é sinônimo de inocência. Pois a partir do momento que o discurso é externado,
seu autor o faz de um lugar social para os ouvintes de outro lugar social, com base em suas
próprias ideologias e convicções, fazendo censuras a sua externalização (ponderar sob o
que pode ser dito e o que não pode ser dito).
2. Para maior aprofundamento, ver: Abbagnano, 2007
242 | Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um
estudo da sumula vinculante nº 11 do STF
Essa qualificação dar-se-á de forma diferente ao quadro dos idos mais anti-
gos. Antes se aprendia os ofícios e suas qualificações no próprio “lócus” de
exploração. Hoje em dia, aprende-se na escola, as regras “que assegurem a
submissão à ideologia dominante ou o domínio de sua prática”, de modo que
os “agentes da divisão do trabalho” saibam exatamente seu local de trabalho
(de comando ou de comandado) e de como se expressar e ser entendido.
Isto se deve ao fato de que, segundo o referido autor,
A reprodução da força de trabalho não exige
somente uma reprodução de sua qualificação,
mas ao mesmo tempo uma reprodução de sua
submissão às normas vigentes, isto é, uma
reprodução da submissão dos operários a
ideologia dominante por parte dos operários
e uma reprodução da capacidade de perfeito
domínio da ideologia dominante por parte dos
agentes da exploração e repressão, de modo a
que eles assegurem também, pela palavra, o
predomínio da classe dominante (p. 58).
Após tais explanações, Althusser formula a sua tese central sobre a estru-
tura e o funcionamento da ideologia: “A ideologia interpela os indivíduos
enquanto sujeitos12”.
A categoria sujeito é constitutiva de
toda a ideologia, mas ao mesmo tempo, e
imediatamente, acrescentamos que a categoria
de sujeito não é constitutiva de toda
ideologia, uma vez que toda ideologia tem
por função (é o que a define) constituir
indivíduos concretos em sujeitos. É nesse
jogo de dupla constituição que se localiza o
funcionamento de toda a ideologia, não sendo
a ideologia mais do que o seu funcionamento
nas formas materiais de existência deste
mesmo funcionamento (Althusser, 2003, p.
93).
É com base nesta teoria, que Althusser afirma ser possível, por intermédio
do mecanismo da interpelação, a ideologia transformar os indivíduos em
sujeitos, conduzindo-os a sua auto – sujeição,
A ideologia age ou funciona de tal forma que
ela recruta sujeitos dentre os indivíduos (ela
recruta a todos) ou transforma os indivíduos
em sujeito (ela transforma a todos) através
desta operação muito precisa que chamamos de
interpelação, que pode ser entendida como
o tipo mais banal de interpelação [...]
cotidiana (2003, p. 96).
Como vimos, para Althusser todas as ações do sujeito são determinadas pelo
seu assujeitamento, que é total. Para nos, a questão do assujeitamento total
defendido por Althusser deve-se ao fato de que ele comunga de uma visão
gnosiológica do ser, “própria do neopositivismo e do irracionalismo pós-mo-
derno, que hiperdimensiona o sujeito mesmo quando busca negá-lo” (Costa
& Vasconcelos, 2011, p. 01).
Mas como se sustentar um assujeitamento total, em uma sociedade
estratificada por classes sociais, onde a dicotomia burguesia x proletariado,
reina? Em nosso entendimento, o assujeitamento é um fator parcial e nun-
ca total. Encontramos respaldo para nossa posição em Lukács que analisa o
fenômeno da ideologia sob o fundamento ontológico-prático. Segundo Vais-
man (1989)
O indivíduo faz sim, escolhas, mediante as possibilidades que lhe são postas.
Numa hipótese mais simples, podemos compreender que sempre diante
das condições postas o indivíduo, sempre poderá optar por “sim” ou “não”,
frente às diferentes formas específicas de ideologia que lhe são veladas. Es-
sas formas ideológicas específicas são denominadas de Formações Ideoló-
gicas (FI). Segundo Haroche (1971, p. 102, apud Cavalcante 2007, p. 42)
As formações ideológicas são, pois, expressão
da estrutura ideológica de uma formação
social que põem em jogo práticas associadas
às relações e classe. Trata-se de realidades
contraditórias, na medida em que em uma
conjuntura dada, as relações antagônicas
de classe possibilitam o confronto de
posições políticas e ideológicas que não são
atos individuais, mas que se organizam em
formações conservando entre elas as relações
antagônicas de aliança e de dominação.
É por esse motivo, que, numa dada formação ideológica, pode-se encontrar
o confronto de ideias, posições, alianças ou, simplesmente, a subserviência
de uma ideologia a outra dentro da FI, demonstrando uma sujeição/ do-
minação. É nessa perspectiva, que diferentes FI, mesmo que demonstrem
antagonismo entre si, podem falar de questões como cidadania, patriotismo,
segurança pública, atribuindo-lhes sentidos diferentes.
O sentido de uma palavra, de uma expressão, de
uma proposição etc., não existe em si mesmo,
(...) mas ao contrário, é determinado pelas
posições ideológicas que estão em jogo no
248 | Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um
estudo da sumula vinculante nº 11 do STF
processo sócio histórico no qual as palavras,
expressões e proposições são produzidas
(isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir,
essa tese, dizendo: as palavras, expressões,
proposições etc., mudam de sentido segundo
as posições sustentadas por aqueles que a
empregam, o que quer dizer que elas adquirem
seu sentido em referencia (...) as formações
ideológicas (...) nas quais estas posições
se inscrevem (Pêcheux, 1995, p. 160).
Uma Súmula Vinculante é uma decisão que vem sendo tomada de forma
reiterada pelo tribunal, ao ponto de que todos os julgados que forem sími-
les, devem ser enquadrados em tal “documento normativo”, que terá força
“erga omnes” vinculando a decisão dos outros tribunais, magistrados e ad-
ministração pública.
É obrigação de qualquer policial (Civil, Militar ou Federal), diante do
caso concreto, “posicionar-se de maneira crítica, ética, responsável e cons-
trutiva nas diferentes situações sociais”.
Deyvid Braga Ferreira | 249
Assim, as classes abastadas não devem ser tratadas da mesma forma que as
pessoas desprovidas de recursos.
Entendemos ser pertinente, aqui, o que dizem Marx & Engels ( 2006,
p. 46).
A moderna sociedade burguesa, surgida das
ruinas da sociedade feudal, não eliminou
os antagonismos entre as classes. Apenas
estabeleceu novas classes, novas condições
de opressão, novas formas de lutas em lugar
das antigas.
É assente que lhe resta, apenas o diálogo como forma principal de “media-
ção de conflito e tomada de decisões”, pois “conhece e valoriza a diversidade
social brasileira”. Complementando as orientações de ação do agente de
segurança, indica-se o instrumento que o sujeito deverá usar em situações
de conflito. Ora, como diz Cavalcante (2007, p. 127),
O diálogo caracteriza-se por troca,
alternância de opiniões entre interlocutores,
enquanto a ação de mediar, significa
intermediar, encontrar um meio termo, fazer
250 | Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um
estudo da sumula vinculante nº 11 do STF
acordo, buscar soluções na base do diálogo
e nunca do confronto.
A violência em nosso país é crônica, sendo uma das missões dos agentes pú-
blicos da segurança seu combate. Mas existem peculiaridades que somente
no trabalho policial são encontradas. Imagine um policial num confronto
armado, dentro de um complexo de favelas tais como as do Rio de Janeiro,
onde o confronto bélico possui armas de uso exclusivo/ proibido/ privativo
das Forças Armadas13 e que as polícias não possuem. Um exemplo são as
armas de calibre .50 (12,7 x 99) mm em poder de integrantes de organiza-
ções criminosas. Para que o leitor possa ter uma noção deste poderio bélico,
imagine que um disparo de arma neste calibre, atravessa um carro forte
das empresas de transporte de valores, com a mesma facilidade que você
rasgaria uma folha de papel.
É nesse sentido que podemos afirmar cada vez mais, os conflitos
inerentes à luta de classes e os antagonismos sociais que hoje se apresentam
no Brasil. De um lado as elites historicamente postas no comando da
máquina pública, servindo-se, não só dos AIE, mas principalmente dos
agentes de segurança inscritos no interior dos ARE para implementar seu
projeto de sociabilidade. É importante constatar a atualidade das reflexões
de Marx & Engels (2006, p.46) quando assim se expressam,
A nossa época, [...], caracteriza-se por
ter simplificado os antagonismos de classe.
A sociedade inteira vai dividindo-se em dois
grandes campos inimigos, em duas grandes
classes diretamente opostas entre si:
burguesia e proletariado.
13. De acordo com o decreto federal nº 3665 de 2000, mais conhecido como R – 105.
Deyvid Braga Ferreira | 251
Com isso, resta claro que as formações ideológica contidas na Súmula pos-
suem o objetivo de dissimular os conflitos de classe próprios do capitalismo,
pois apesar de aparente “cristalinos” em concepção, tal sequencia mostra-
-se atravessada pela formação ideológicas do capital.
4. Conclusão
Todo este quadro, que perdura de nosso descobrimento e vai até os dias
atuais (ou seja, mais de cinco séculos), contribuiu para cada dia, aprofun-
dar as relações de desigualdades sociais, provocando exponencialmente o
aumento no número de miseráveis que, sem opção, lançavam-se a práticas
de crimes, como única forma de se manter.
Tudo isto regado à ideologia neoliberal, que galopantemente aparecia
na mídia para informar a população brasileira que o setor público inchado,
sucateado, deteriorado... seria o responsável direto por este quadro. A so-
lução era propor um “enxugamento da máquina estatal”, de forma que ela
fosse ágil como a iniciativa privada. Passados quase 30 anos da implemen-
tação de tais políticas, o povo ainda espera pelo milagre, vendido de forma
financiada pela iniciativa privada aos contribuintes, mas ainda não quitado,
colocando-se aí, conforme Marx & Engelsz (2007, p.48)
no lugar da exploração mascarada por ilusões
políticas e religiosas colocou a exploração
[de forma] aberta, despudorada, direta e
árida. A burguesia rasgou o véu do comovente
sentimentalismo que envolvia as relações
familiares e as reduziu a meras relações
monetárias
252 | Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um
estudo da sumula vinculante nº 11 do STF
255
256 | Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação
linguística na dogmática jurídica
4. De acordo com David (2002), duas são as grandes famílias jurídicas atuais: a Common
Law e a Romano-Germânica. Esta compreende os países de tradição civilista, ao passo
que aquela os países da antiga Commonwealth, isto é, os de origem anglo-saxônica e suas
colônias.
5. No original: “Das Recht kann nicht anders aufgefaßt werden als die Idee. Alle
philosophischen Wissenschaften sind Teile eines großen Ganzen. Die Philosophie hat zu
ihrem Gegenstand das Universale, das Absolute. Das Recht ist eine Seite der Manifestation
dieses Absoluten, der göttlichen Idee.”
258 | Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação
linguística na dogmática jurídica
7. Wittgenstein (2008, p. 283) escreve: “[…] mas aquilo que nos dá o direito de, num caso
destes, dizer que ele compreende, que ele sabe continuar a sucessão, são as circunstâncias
debaixo das quais ele teve uma tal vivência.”
260 | Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação
linguística na dogmática jurídica
pretado pela parte – que se chama círculo hermenêutico. Este todo pressu-
posto e condicionador do direito, nesta teoria, seria a ordem. O direito seria
um composto de ordem e hermenêutica (SALDANHA, 2003).
Então, hermenêutica não é mera técnica de interpretação e aplicação
do direito. É uma forma de olhar o direito. A hermenêutica é conceito que
não existe se não houver o de ordem, ao tempo em que é também condição
(pressuposto) para esta. Do ponto de vista da lógica formal isto é um pa-
radoxo. No entanto, tal oximoro9 (ὀξύμωρον) pode ser desmistificado pela
teoria de Saldanha, o qual considera que ser e pensar se confundem no
existir, então a hermenêutica pressupõe a ordem ao tempo em que também
a constitui.
Para entender a ordem (e o direito) seria preciso ter antes uma pré-
-compreensão dela, ainda que seja uma noção gerada para promover a ideia
de uma estabilidade estatal. Mas esta ideia, determinada principalmente
pela historicidade, para ser útil na prática, deve ser somada à própria her-
menêutica, que a pressupõe. Entender a ordem sem a hermenêutica – e
o direito sem este conjunto – é dizer que o ser (ordem) é sem o pensar
(hermenêutica). No entanto, o ser e o pensar, como dito alhures, estariam
amalgamados no existir.
5. A dogmática como limite outorgado pela vontade de verdade e o
dirscurso tomado por verdadeiro
10. De acordo com Kuhn (1996, p. 10), o paradigma nas ciências não quer dizer
uniformidade, mas normatização (ciência normal). Ademais, um paradigma já comporta
no seu seio o seu próprio fim, pois se fosse “explicação total do mundo” ao invés de
paradigma, não seria necessária qualquer ciência. A mudança nas estruturas do método ou
do paradigma, entretanto, é contingente. Já para Popper (2008, p. 41), a ciência deve tentar
falsear a sua teoria a todo o momento, pois toda ela [a teoria] é provisória. Quanto mais a
teoria resistir, mas ela valerá. O que ocorre na dogmática, e mesmo nas ciências naturais,
não é jamais a proposta de Popper, mas a de Kuhn; tenta-se confirmar o paradigma.
Bruno Lemos Hinrichsen | 263
6. Poder e sistema
11. Tradicionalmente traduzido como “penso, logo existo”, o cogito ergo sum, quer dizer, na
realidade “penso, logo sou”, como se nota da edição em francês (suis) e, mesmo, da palavra
latina ‘sum’, cujo sentido inicial e primordial é “ser”. Observe-se (DESCARTES, 2009, p.
64): “Et remarquant que cette vérité: je pense, donc je suis, était si ferme et si assurée,
que toutes les plus extravagantes suppositions des sceptiques n’étaient pas capables de
l’ébranler, je jugeai que je pouvais la recevoir, sans scrupule, pour le premier principe de la
philosophie, que je cherchais”. Em tradução livre: “E notando que esta verdade: eu penso,
logo eu sou, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos
não eram capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro
princípio da filosofia que procurava”.
264 | Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação
linguística na dogmática jurídica
O segundo, por outro lado, volta-se como uma simulação. Não mais existe
o real, donde as coisas podem ser representadas em pensamento, mas um
hiper-real, ou virtual (BAUDRILLARD, 1991). Este virtual, porém, é ainda
uma res cogitans – e nada mais pode ser.12
Assim, o sistema jurídico simula, isto é, pretende ter o que não tem,
quer dizer, realidade (BAUDRILLARD, 1991, p. 13): “seriam estas as fases
sucessivas da imagem: [...] ela não tem relação com qualquer realidade: ela
é o seu próprio simulacro puro.” A relação é simples, o sistema não é real,
ele pretende-se como tal, mas nessa empreitada, ele assume o lugar do que
simula e torna-se o modelo por excelência. Não há mais vida, por exemplo,
mas regulação jurídica e tão somente “morta” de seres corpóreos e sociais.
Isto é uma questão de discurso. O discurso toma o palco do acontecimento
aleatório e faz-se em primazia, faz-se continuado (FOUCAULT, 2010, p. 8).
Mas afinal, o que é esse sistema? De acordo com a teoria de Bertalan-
ffy (2009, p. 240), o sistema é uma acepção de “mundo como organização”
– quer dizer, o sistema, ao passo em que é um mundo organizacional, é, em
consequência, ordem. Por isso que o direito é um sistema. Mas, pressupon-
do que haja diferenças profundas entre os sistemas das ciências naturais e
o da ciência social, Bertalanffy define (2009, p. 251): “a ciência social tem
de tratar com seres humanos no universo da cultura criado por eles. O uni-
verso cultural é essencialmente um universo simbólico.”
Luhmann (1984) aprofunda esta noção em suas obras, principalmen-
te ao afirmar continuamente que os sistemas sociais são sistemas de comu-
nicação13. Observe-se: dizer que um universo é simbólico é afirmá-lo como
referenciado por sinais, os quais, por sua vez, se reportam à compreensão e
interpretação daquilo que simbolizam e isto, para Heidegger (2009, p. 209-
215) é o ser-aí como poder-ser que já é.
Ainda em Luhmann (1984, p. 191), o problema da comunicação está
ligado ao da complexidade do sistema. Ao limitar sua linguagem, o sistema
faz com que haja uma redução da complexidade em relação ao ambiente14.
12. Afirma Baudrillard (1991, p. 8): “É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui
e ali, nos desertos que já não são os do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real.
[...] Algo desapareceu: a diferença soberana de um para o outro, que constituía o encanto
da abstração. [...] O real é produzido a partir de células miniaturizadas, de matrizs e de
memórias, de modelos de comando – e pode ser reproduzido um número indefinido de
vezes a partir daí. [...] É apenas operacional. Na verdade, já não é o real, pois já não está
envolto em nenhum imaginário. É um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos
combinatórios num hiperespaço sem atmosfera.”
13. Para aprofundar a noção da teoria dos sistemas, ver, também, Luhmann em das Recht
der Gesellshaft (1993) e Luhmann em die Gesellschaft der Gesellschaft (1997).
14. Afirma Luhmann (1991, p. 191): “Geht man von der Möglichkeit einer Theorie
selbstreferentieller Systeme und von Komplexitätsproblemen aus, spricht viel dafür,
das Einschränkungsverhältnis einfach umzukehren. Sozialität ist kein besonderer Fall
von Handlung, sondern Handlung wird in sozialen Systemen über Kommunikation
Bruno Lemos Hinrichsen | 265
und Attribution konstituiert als eine Reduktion der Komplexität, als unerläßliche
Selbstsimplifikation des Systems.” Em tradução livre: “Se se assume a possibilidade de
uma teoria dos sistemas autorreferenciais e dos problemas da complexidade, há uma forte
evidência de que a razão de restrição simplesmente inverta. Sociabilidade não é um caso
especial de ação, mas a ação é constituída em sistemas sociais de comunicação e atribuição
como uma redução de complexidade, como uma indispensável auto-simplificação do
sistema.”
15. O Homem-Máquina é um livro escrito por Julien Offray de la Mettrie.
266 | Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação
linguística na dogmática jurídica
O quadro geral já foi traçado: há um sistema jurídico, o qual exerce seu po-
der por uma base discursiva, fazendo valer como “real” as suas membranas
hiper-reais, quer dizer, o virtual (como res cogitans subvertido pela carência
do real, que não mais necessita de máscara e consolo). Isto implica dizer,
assim como se fez – e pretende-se aprofundar –, que o sistema passa a valer
como vida, vez que esta não mais existe propriamente. Acontece algo pare-
cido nas redes sociais, a vida passa a ser a do avatar, não mais a de quem lhe
empresta forma – que, por mais estranho que pareça, passa a não mais ser.
Este é o deserto do real anunciado por Baudrillard (1991).
De acordo com Freud (1996, p. 384):
Os sonhos se valem desse simbolismo para a
representação disfarçada de seus pensamentos
latentes. Aliás, muitos dos símbolos são,
habitualmente ou quase habitualmente,
empregados para expressar a mesma coisa.
Não obstante, a plasticidade peculiar do
material psíquico [nos sonhos] nunca deva
ser esquecida.16
O importante é notar que o comentário é aquele que faz repetir com tom
de novo e redescoberto o idêntico e o mesmo, nas caras simuladas da repre-
sentação. Ele passa a ser o principal e, ao mesmo tempo, reforça a vontade
de verdade sempre presente, do discurso continuado. Agora, entretanto,
deve-se falar um pouco mais acerca da continuação do discurso e de sua
relação com o poder.
Durante a aula de 14 de janeiro de 1976 ministrada no Collège de
France, Foucault aborda o que ele chama de a analítica do poder. Ali, logo
no começo da aula, ele elabora uma inversão da “verdade” filosófica, quan-
17. [...] le commentaire n’a pour rôle, quelles que soient les techniques mises em oeuvre,
que de dire enfin ce qui était articule silencieusement là-bas. Il doit, selon um paradoxe
qu’il déplace toujours mais auquel Il n’échappe jamais, dire pour la première fois ce qui
cependant avait été déjà dit et répéter inlassablement ce qui pourtant n’avait jamais été dit.
Le moutonnement indéfini des commentaires est travaillé de l’intérieur par le rêve d’une
répétition masquée: à son horizon, Il n’y a peut-être rien d’autre que ce qui était à son point
de départ, la simple récitation.
268 | Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação
linguística na dogmática jurídica
fazendo com que outra coisa seja incluída, uma terceira coisa. O “papel”
do poder, neste caso, é manter-se de pé e o seu aparato é o discurso. Neste
sentido, utiliza-se, a exemplo de Foucault (1999), das ferramentas jurídicas
para produzir e reproduzir a verdade, fazendo com que o discurso continue
um e o mesmo.
O direito, dessa maneira, se caracteriza como o lugar de reprodução
do impessoal – na lei, na jurisprudência ou na doutrina. A intenção é per-
petuação sistêmica, cuja possibilidade não há se não for mantido o discurso
do ninguém (do todo mundo indefinido). Explica Heidegger (2009, p. 185):
“Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O impessoal, que responde
à pergunta quem do ser-aí cotidiano, é ninguém, a quem o ser-aí já se entre-
gou na convivência de um com o outro.”
Fica então esclarecida a característica primordial da dogmática como
a de um causador (e ela própria em si mesma, também) do impessoal. Ob-
viamente, enquanto se quiser falar em direito, em Estado de Direito e em
segurança jurídica, ela será necessária, pois sem ela não há ordem: a dog-
mática é a própria ordem; ela é quem ordena o discurso.
8. Análise discursiva nas leis da educação no Brasil
Neste sentido, vez que nada disso mudou radicalmente nas sociedades mo-
dernas (a não ser a tendência econômica ao ter em substituição ao ser) o Es-
tado, para manter-se como centro, não cedendo completamente às grandes
corporações capitalistas, necessita ordenar o discurso em função do capital
ou de termos mais genéricos e abstratos, como o ‘bem comum’ – que nada
mais quer dizer que o Estado ele mesmo (MIAILLE, 2005, p. 124-125). Isto,
entretanto, não faz com que a sociedade dos desejos seja menos subordina-
da ou mais livre que outras quaisquer de outrora: os desejos são impostos
como realidade e clausura pelo Estado soberano, por um poder que não é
só seu, mas é em si concentrado por acaso, por costume, hábito político: o
poder da palavra; o ritual da palavra sagrada do direito.
Bruno Lemos Hinrichsen | 271
Por fim, na Lei de 96 (BRASIL, 1996), são 32 vezes que a palavra e seus
parônimos aparecem. Por exemplo: (a) ensino fundamental, art. 4, I; ensi-
no de recuperação, art. 24, V, e; inclusão de filosofia e sociologia no ensino
médio, art. 36, IV.
Art. 4º O dever do Estado com educação
escolar pública será efetivado mediante a
garantia de:
Fica patente, que a educação não é uma escolha; a criança não está ali por
sua vontade. Tudo gira em torno da perpetuação do discurso, do prolonga-
mento do paradigma. E não há melhor ambiente para operar a anátomo-
-política (entenda-se, disciplina) do que no ambiente escolar, na criança,
Bruno Lemos Hinrichsen | 273
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
217p.
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1986. 509p.
LYONS, David. Moral aspects of legal theory: essays on law, justice, and
political responsibility. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. 217p.
1. Introdução
1. Minha tradução para: “the interrelatedness between adjacent discourse segments”.
2. Minha tradução para: “the interrelatedness of larger spans of discourse”.
3. Minha tradução para: “although several studies have investigated the role of discourse
markers in establishing a coherent discourse representation, there is still no consensus on
279
280 | Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais
É mediante essa visão que os termos coerência local (coesão) e global são
discutidos neste estudo. O primeiro se refere à coesão textual advinda da
inter-relação entre sequências de textos enquanto a última diz respeito a
grandes extratos do discurso que podem ser exemplificadas como “sequ-
ências de ações demarcadas e estruturas retóricas da narrativa (tais como
cenário + conflito + enredo + resolução), de textos expositores (como rei-
5. Minha tradução para: “Coherence can be reserved for the conceptual relationships
that comprehenders use to construct a coherent mental representation accommodated
by what is said in the discourse. Cohesion is limited to the linguistic markers that cue
the comprehender on how to build such coherent representations. Cohesion emphasizes
discourse-as-product, and coherence emphasizes discourse-as-process”.
282 | Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais
6. Minha tradução para: “scripted action sequences and the rhetorical structures of
narrative (such as setting + conflict +plot + resolution), expository (such as claim +
evidence, problem + solution), and other discourse genres”.
7. Minha tradução para: “reporting, contrasting, formulating and repeating are at the heart
of the process of formulating the facts of the legal story. Their use produces important fact-
making moments that distil and encode a version of reality, which play an important part
in the legal case”.
Sabrina Silveira de Souza Jorge | 283
8. Minha tradução para: “police–suspect interviews as presented as evidence are still not
accurate and faithful representations of the interviewee’s words”.
9. Minha tradução para: “recontextualisation involves both shifting and changing something
in one text, discourse, genre or style by slotting it into another text, discourse, genre or style
and, crucially, altering its use and environment and creating new meanings”.
10. Minha tradução para: “on the goals, values and priorities of the communication in
which they are recontextualised”.
284 | Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais
Os dados para análise usada neste estudo são três textos de registros po-
liciais de ocorrências criminais realizadas por oficiais da policia militar de
Minas Gerais (apêndice A).
Por razões éticas, e como já mencionado, é importante ressaltar que
o material usado neste estudo é parte dos dados usados em uma dissertação
de Mestrado (Tristão, 2007) que utilizou os textos como objeto de análise.
Os textos usados aqui foram escolhidos de um total de 20 registros policiais
disponíveis na dissertação. Estes registros foram elaborados por policiais no
local das ocorrências na tentativa de relatar os fatos ocorridos. Os textos uti-
lizados para este estudo foram escolhidos por esta pesquisadora de acordo
com seus aparentes níveis de compreensão textual, sendo o Texto 1 consi-
derado o mais claro de todos e o Texto 3, o mais problemático em termos
de descrição dos fatos. De acordo com Tristão (ibid.), todas as informações
Sabrina Silveira de Souza Jorge | 285
O Texto 2 fala de uma pessoa que foi encontrada com uma substância
química similar à maconha. De acordo com o que o policial registrou na
Sabrina Silveira de Souza Jorge | 287
permitisse que ele pegasse a sua filha. Quando os participantes foram inda-
gados sobre o que achavam que tinha acontecido (questão 1), todos mostra-
ram dificuldades de compreensão. P1, P2 e P3 fizeram o uso de expressões
tais como, eu acho, me parece e eu não tenho certeza, respectivamente. Por
outro lado, P2 usou um ponto de interrogação no meio de sua resposta que
também mostrou a sua dúvida em relação ao que foi relatado na ocorrência.
Quando indagados sobre a que a expressão fatos ocorridos (linhas 19
e 20) se referia, eles afirmaram compreender que dizia respeito à invasão
do homem na sua ex-residência. Porém, P4 afirmou não ter compreendido,
relatando que o texto se apresentava confuso. Na tentativa de conferir como
a coerência local é estabelecida no texto, os participantes foram solicitados
a responder a respeito da identidade dos sujeitos envolvidos na ocorrência
(questão 2). Com respeito a Jose Aritmeia, todos os participantes responde-
ram que ele era o pai da garota. Porém, P1 afirmou que não estava certo se
ele era mesmo o proprietário do apartamento, devido a informação que não
parece clara no texto, descrita nas linhas 4 e 5. No entanto, todos os parti-
cipantes identificaram facilmente os outros sujeitos envolvidos no ocorrido,
como a ex-esposa e a empregada. Assim como nas atividades dos Textos 1 e
2, quando questionadas sobre o que poderia levar o Texto 3 a parecer con-
fuso, P1, P2 e P3 mencionaram a falta de pontuação como a causa principal
para que isso ocorresse. Mais especificamente, P1 mencionou que o texto
possuía frases sem sentido e P3 relatou que elas eram muito longas.
4. Discussão
11. Minha tradução para: “cohesion alone is not sufficient for the interpretation of the
discourse. Comprehenders generate inferences on the basis of background knowledge and
discourse constraints”.
12. Minha tradução para: “although cohesion alone cannot fully account for coherence in
discourse, the psycholinguistic literature has shown that cohesion facilitates coherence”.
Sabrina Silveira de Souza Jorge | 289
BARETTA, L. et. al. Inference making while reading narrative and expository
texts: An ERP study. Psychology & neuroscience. 2009.Vol. 2, No.2, p.
137 – 145.
MURRAY, J.D. Logical connectives and local coherence. In: LORCH, R.F.
& O’Brien, E.J. (Org.). Sources of coherence in reading. New Jersey:
LEA, 1995. p. 107 – 126.
ROCK, F. Collecting oral evidence: police, the public and the written
word. In: COULTHARD, R.M. & JOHNSON, A. (Org.). The routledge
handbook of forensic linguistics. London: Routledge, 2010. p. 126-38.
handle/1843/ALDR-76QHNJ/disserta__o_de_mestrado_roberto__1_.
pdf?sequence=1>.
Apêndice A
TEXTO 1
1 Ao senhor delegado da Delegacia Adida do Estádio do Mineirão. Durante
o evento
2 Cruzeiro X Atlético no Mineirão, efetuávamos o policiamento preventivo
nas
3 imediações dos bares, quando ao nos aproximarmos do bar 30, depara-
mos com uma
4 briga generalizada entre torcedores da torcida do Atlético; ao intervir-
mos,
5 constatamos que o senhor João José, furtou a camisa do clube Atlético
Mineiro, de
6 uma das vítimas que estava caído ao solo. Ao abordá-lo, o mesmo tentou
se evadir
7 do local com o produto, através de solavancos e safanões. Nesse momen-
to foi lhe
8 dado voz de prisão por resistência. A vítima do furto, devido a enorme
confusão da
9 briga generalizada, não foi localizada, entretanto o produto do furto, foi
apreendido
10 com o autor da resistência. Após os fatos relatados o mesmo foi condu-
zido a vossa
11 presença, ficando a disposição para providências futuras. No momento
da
12 imobilização do autor o mesmo lesionou a cabeça ao bater no solo, tendo
sido
13 encaminhado ao posto médico local, onde recebeu atendimento médico.
TEXTO 2
1 Durante operação realizada no aglomerado do bairro Cabana, Beco da
Boa
292 | Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais
TEXTO 3
1 No local comparecemos, onde a sra Solange disse-nos que por volta das
20:30hs
2 compareceu o seu ex-marido José Arimatéia, Neste Edf. Vindo ele soli-
citar o
3 comparecimento da VP5818 Sgt Ferreira que tomou conhecimento por
parte de José
4 Arimatéia que necessitava de adentrar ao Edf. Sam Rafael até o (807)
apartamento
5 este de propriedade de José Arimatéia, porém em nome de outro. Na
portaria José
6 Arimatéia deu conhecimento ao porteiro Renato Rocha que, ele estava
de posse de
Sabrina Silveira de Souza Jorge | 293
Apêndice B
Caro (a) participante,
Você irá realizar 3 atividades similares que correspondem a interpretação de
textos de ocorrências policiais. Por favor, siga as instruções abaixo correta-
mente até o final desta pesquisa.
Muito obrigada!
ATIVIDADE I
Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo:
TEXTO 1
Ao senhor delegado da Delegacia Adida do Estádio do Mineirão. Duran-
te o evento Cruzeiro X Atlético no Mineirão, efetuávamos o policiamento
preventivo nas imediações dos bares, quando ao nos aproximarmos do bar
30, deparamos com uma briga generalizada entre torcedores da torcida do
Atlético; ao intervirmos, constatamos que o senhor João José, furtou a ca-
misa do clube Atlético Mineiro, de uma das vítimas que estava caído ao solo.
Ao abordá-lo, o mesmo tentou se evadir do local com o produto, através de
solavancos e safanões. Nesse momento foi lhe dado voz de prisão por resis-
tência. A vítima do furto, devido a enorme confusão da briga generalizada,
não foi localizada, entretanto o produto do furto, foi apreendido com o autor
da resistência. Após os fatos relatados o mesmo foi conduzido a vossa pre-
sença, ficando a disposição para providências futuras. No momento da imo-
bilização do autor o mesmo lesionou a cabeça ao bater no solo, tendo sido
encaminhado ao posto médico local, onde recebeu atendimento médico.
Em sua opinião, o que não está claro no texto que impede a total compre-
ensão do mesmo?
ATIVIDADE II
Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo:
TEXTO 2
Durante operação realizada no aglomerado do bairro Cabana, Beco da Boa
Esperança, próximo ao número 20 (vinte), deparamos com o cidadão infra-
tor citado no
campo 01, onde o João José foi abordado e encontrado em seu poder um
tablete, dois cigarros e uma pequena porção de uma substância esverdeada
semelhante a maconha. O mesmo nos relatou que comprou a referida subs-
tância no valor de trinta e cinco reais, na rua Monsenhor Paulo Brasil, no
bairro Cabana. Diante dos fatos os militares deslocaram até a sua residência
onde a senhora Rosa Inês Pereira da Silva, mãe do Guilherme autorizou a
entrada dos militares em sua residência para ser realizada uma busca com
o objetivo de certificar se não havia nenhuma outra substância semelhante
que fora encontrada em poder do João José. Diante do exposto foi garantido
seus direitos constitucionais bem como mantido a sua integridade física, fi-
cado a disposição desta seccional para as providência que julgardes cabíveis.
Obs.: adianto-vos que na residência nada foi encontrado.
ATIVIDADE III
Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo:
TEXTO 3
296 | Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais
No local comparecemos, onde a sra Solange disse-nos que por volta das
20:30hs compareceu o seu ex:marido José Arimatéia, Neste Edf. Vindo ele
solicitar o comparecimento da VP5818 Sgt Ferreira que tomou conheci-
mento por parte de José Arimatéia que necessitava de adentrar ao Edf. Sam
Rafael até o (807) apartamento este de propriedade de José Arimatéia, po-
rém em nome de outro. Na portaria José Arimatéia deu conhecimento ao
porteiro Renato Rocha que, ele estava de posse de um “Mandato Judicial”
e que iria subir até o apartamento e usando de má fé mostrando um “ter-
mo de audiência” (no. 024.03.028.949-0) não deixando que o porteiro e
o zelador Júlio César verificasse o teor da documentação e contando uma
história que não condiz com a verdade para os policiais militares que acom-
panharam até o citado apartamento, vindo a empregada doméstica abriu a
porta do apartamento 807 para atender José Arimatéia, quando ele aden-
trou e colocou sua filha no colo (Larissa) quando a empregada Andréia deu
conhecimento a Solange que a criança estava com o pai (José Arimatéia)
vindo Solange conversar com o Sgt Ferreira e pedi-lo para que orientasse a
José de Arimatéia que deixasse a criança Larissa descer pelo elevador com
ela Andréia, fato este que aconteceu. Solange relata que estava aguardando
José Arimatéia para buscar a criança desde cedo, conforme acordo policial.
Quando no interior do Roll deste Edf. Sam Rafael Solange aguardou para
despedir de sua filhinha Larissa e tomar ciência dos fatos ocorridos; quando
José Arimatéia estava no lado externo (rua) vindo Solange despedir da sua
filha e aguardando retorno dos militares que estavam na rua no interior da
viatura e logo após eles deslocando para suas atividades. Vindo Solange ligar
190 para relatar sua versão neste.
1. Introdução
297
298 | Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma
Delegacia da Mulher
6. De acordo com o Art. 4º do Código de Processo Penal, a polícia judiciária será exercida
pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a
apuração das infrações penais e da sua autoria (BRASIL, 2012). Nesse sentido, o cargo de
delegado de polícia é aquele a quem se atribui a autoridade de polícia judiciária, em âmbito
administrativo.
Márcia Cristiane Nunes Scardueli | 301
7. Dos vinte relatórios de inquérito analisados nesta pesquisa, dezenove foram produzidos
por um sujeito-delegado e um por outro, possivelmente que estivesse atuando na DPCAMI
durante o período de férias do primeiro, que é o titular da unidade policial.
8. O vocativo meritíssimo juiz foi empregado onze vezes, excelentíssimo cinco vezes e
quatro relatório foram produzidos sem emprego de vocativos.
302 | Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma
Delegacia da Mulher
lisadas, a menção à Lei Maria da Penha se faz apenas na parte inicial (no
preâmbulo), em que a Autoridade Policial contextualiza os fatos ocorridos
que geraram a instauração daquele procedimento policial.
Nos relatórios analisados, o instrumento motivador da ação jurídica de
instauração dos procedimentos policiais – a Lei Maria da Penha – foi assim
mencionada:
Instaurou-se o presente Inquérito Policial
para apurar o crime de ameaça, este abrangido
pela Lei 11.340/06, fato ocorrido em 04 de
março de 2013 na Rua Doutor Virgulino de
Queiróz, Centro, nesta cidade, figurando
como vítima [nome] e como investigado [nome]
[R18].
essa lei que está sendo aplicada, então fica implícito que a violência sofrida
era no meio doméstico. Essa compreensão é possível porque a Lei Maria da
Penha se inseriu historicamente na formação discursiva dos sujeitos que
enunciam a violência. Essa questão remete, ainda, à presença de um inter-
discurso.
Azevedo (2007), referindo-se ao interdiscurso, diz que as escolhas lin-
guísticas e discursivas que compõem um texto de determinado discurso não
são aleatórias, mas marcadas por interlocutores (sujeitos) que enunciam a
partir de posições inscritas numa formação social. Por isso, as condições de
produção passam a ser compreendidas através da representação do imagi-
nário histórico-social, porque os sujeitos que produzem linguagem o fazem
de lugares ideologicamente marcados.
Outra observação que se faz logo no início dos relatórios é a descrição
do cenário em que os crimes aconteceram, em que o emprego do termo
‘figurando’ desperta a atenção também para essa questão do silenciamento.
Em treze dos vinte relatórios analisados o verbo figurar é empregado para
apresentar a posição ocupada pelos sujeitos vítima e agressor, conforme o
excerto a seguir:
Instaurou-se o presente inquérito policial
objetivando apurar o crime de ameaça,
abrangido pela Lei 11.340/06, ocorrido em 13
de fevereiro de 2012, nesta cidade, figurando
como vítima [nome] e investigado [nome] [R6].
Em ambos os casos, fica implícita uma suspeita sobre a ocorrência dos cri-
mes e/ou a autoria deles; ou seja, o emprego desses termos produz sentido
de dúvida. No dicionário, o verbo figurar significa “representar, simbolizar,
fingir, imaginar, supor” (XIMENES, 2000, p. 436). A expressão em tese,
por sua vez, significa “teoricamente, supostamente”. O emprego dessas ex-
pressões nos relatórios policiais indica a falta de condição para se chegar à
verdade real, buscada pela polícia durante a apuração de crime, posto que
essa verdade de fato não existe, e o que fica, a materialidade do crime com
a qual a polícia trabalha, é, pois, apenas simbólica.
304 | Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma
Delegacia da Mulher
Fica a dúvida, por que o uso de “figurar e em tese” no texto final do trabalho
policial, se é nesse momento que a autoridade vai declarar se está convicta
de que o crime aconteceu e que fora determinada pessoa que o cometeu?
Ou não estaria convicta?
A contradição apontada acima indica a não homogeneidade da lingua-
gem e do sujeito, o que pode também ser especulado em face do emprego do
verbo “apurar”, na sequência discursiva apresentada anteriormente: Trata-
-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça [R13].
O enunciador, ao referir-se a apurar o crime de ameaça, afirma a ocor-
rência do crime, ou seja, o inquérito trataria, então, de “apurar” a ocorrên-
cia, no sentido genérico do meio policial, buscando responder as perguntas
investigativas: quem cometeu, onde foi cometido, como e por que foi come-
tido. Assim, parte-se da premissa de que o crime ocorreu, o que novamente
não explica o emprego de “figurar e em tese”. Essas expressões poderiam
significar a dúvida sobre a ocorrência ou não do crime se ao invés de “apu-
rar o crime de ameaça”, tivesse sido empregado “apurar a denúncia de cri-
me de ameaça”, pois a investigação partiria então da suspeita da ocorrência
criminosa. Pode-se, aqui, fazer referência a Pêcheux e a sua teorização so-
bre a incompletude da língua, da falha, do furo a que todo dizer está sujeito
(2008).
A produção do texto técnico prima (teoricamente) pela observância da
objetividade e da imparcialidade, fazendo uso da função referencial da lin-
guagem, uniformizando as estruturas linguísticas empregadas, que buscam
lisados, todos foram iniciados pela denúncia das próprias vítimas. Além de
denunciar, também é possível perceber que outras atitudes dessas vítimas
destoam desse quadro descrito por Saffioti (1997), de que elas se sentem
incapazes de reagir, conforme demonstram os excertos abaixo:
A vítima, em depoimento, disse que conviveu
com [nome] por dois anos e que resolveu
separar-se em virtude do comportamento dele
[R1].
Importante pensar que essas ações praticadas pelos homens que ficam mais
restritas aos atos de fala podem indicar a preocupação em não deixar mar-
cas visíveis, que poderiam ser mais eficazes para a penalização desses auto-
res pela Lei Maria da Penha, posto que marcas visíveis se configuram como
vestígios do crime praticado e independem de testemunhas como no caso
de ameaças e injúrias. No cenário da violência doméstica, a penalização
muitas vezes deixa de acontecer pela ausência de provas, que podem ser
tanto técnicas quanto testemunhais.
Além dessa questão da produção de provas, também se pode pensar
sobre o efeito simbólico da agressão verbal sobre as mulheres, que pare-
ce manter estreita relação com a sua sexualidade. Observa-se que os xin-
gamentos proferidos pelos agressores contra as vítimas deslizam para sig-
nificados relacionados à traição, com forte apelo sexual, sugerindo que as
mulheres envolvem-se com outros homens, como no caso de puta, vaga-
bunda e sem-vergonha, como mencionados nos relatórios de número 2, 4 e
8, exemplificados acima. Essa também foi uma constatação da pesquisa de
Zanello, Bukowitz e Coelho (2011), que investigou valores de gênero nas re-
presentações de xingamentos, manifestados por adolescentes da cidade de
308 | Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma
Delegacia da Mulher
Observa-se que, ainda que o relatório policial seja produzido com a preo-
cupação da neutralidade e a impessoalidade, os excertos apontam o uso da
primeira pessoa verbal como enunciadora: represento e informo. Possivel-
mente esse emprego seja uma retomada da autoridade policial garantida
ao sujeito-delegado para decidir pelas ações quanto ao que foi apurado no
inquérito policial.
Quanto à questão da alteridade, é possível identificar, nos relatórios
analisados, que a autoridade policial atribui a elementos externos ao texto a
certeza sobre a prática delituosa de alguém, a fim de subsidiar sua decisão,
conforme excertos a seguir, com grifos meus:
Isso posto, baseado nas declarações da
vítima e testemunha, indicie-se [nome] pela
prática dos crimes previstos nos artigos 149
e 147 do Código Penal [R12].
Pode-se inferir que o uso de aspas para marcar os xingamentos sirvam para
distinguir o quanto inapropriados aqueles termos ficariam na formalidade
do texto do relatório. Ainda que necessários para a qualificação criminal, o
emprego dos xingamentos parece destoar do cenário da escrita formal, cujas
palavras seriam, ilusoriamente, do enunciador e as marcadas com aspas
não. É relevante observar que, na produção do texto jurídico, há uma cons-
tante preocupação com a forma e com a semântica, de maneira a construir
um texto que atenda ao cenário discursivo do meio jurídico, a saber, um
cenário de formalidades, de polidez, de gentilezas. Nesse cenário, o empre-
go de palavras ofensivas e xingamentos, de maneira geral, não tem lugar;
isso justificaria, então, o emprego das aspas, a fim de tentar limpar o texto
312 | Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma
Delegacia da Mulher
Outro aspecto que desperta atenção nos excertos dos relatórios apre-
sentados anteriormente dizem respeito à postura dos agressores para com
as vítimas. Em: “após a separação [nome] passou a ir em sua casa e chamar
[nome] de puta, vagabunda, bem como disse que iria agredi-la fisica-
mente se a visse com outro homem” [R20] (grifos meus), o agressor
indica o sentimento de possessão que nutre pela vítima, ao ponto de amea-
çar agredi-la, caso a encontrasse com outro parceiro. Considerando que ele
também proferiu xingamentos como puta e vagabunda, que sugerem uma
conduta sexual com muitos parceiros, é possível que esse agressor já esteja
prevendo que, de fato, vai encontrá-la com outra pessoa. Considerando que
estão separados, muito provavelmente ela encontrará outro parceiro e ele
também. Ocorre que, enredado numa cultura machista em que incorporou
um ideário de controle do homem sobre a mulher, esse agressor acredita
que tem o domínio sobre ela, numa expressão de virilidade, conduzida por
um padrão hegemônico atribuído ao gênero masculino, conforme definiram
Freitas e Pinheiro (2013).
Outra amostra desse sentimento de posse está em “Relatou que cons-
tantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que
“somente a morte iria separá-los” [R18]. Há uma postura extrema des-
se agressor que não aceita a separação do casal e que só admitiria isso em
caso de morte. A morte é uma separação radical. Antes mesmo de o sujeito
aceitar a morte, se faz necessário que aceite a separação, o que parece que
ele não está disposto a fazer. É uma posição discursiva narcísica forte, que
novamente demonstra sentimento de posse pela mulher, que ou será dele,
ou não será de mais ninguém. Além disso, também ressoa aí também uma
voz genérica de cunho religioso, ouvida no ato do casamento: até que a mor-
te os separe.
Assim, para finalizar, por ora, as discussões sobre os relatórios de in-
quéritos policiais selecionados para esta pesquisa sobre os efeitos de sentido
gerados nos discursos produzidos nesses documentos, percebe-se que, dis-
cursivamente, o enfrentamento às situações de violência a que as mulheres
são submetidas, no meio doméstico não se efetiva. De fato, os sentidos que
se produzem reafirmam e/ou reforçam as condições de hierarquias estabe-
lecidas entre os gêneros masculino e feminino, no que concerne às marcas
de gêneros deixadas no discurso que refere a violência.
Ainda que o trabalho da polícia judiciária, no contexto da violência
conjugal, tenha por objetivo o encaminhamento dos agressores à esfera
judicial para julgamento pelos crimes praticados contra suas parceiras, os
discursos empregados na fase policial geram sentidos ainda muito impreg-
nados por relações ideológicas e de poder, referente às questões de gênero.
Nesse sentido, esses discursos mais reproduzem o status quo do cenário
da violência conjugal do que inovam, como se esperava que acontecesse
com a promulgação da Lei Maria da Penha que, conforme Pasinato (2010),
representou um marco no extenso processo histórico de reconhecimento
314 | Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma
Delegacia da Mulher
1. O título do artigo pode ser traduzido como “Uma simples sistemática para a organização
da tomada de turnos na conversa”.
2. O título da obra pode ser traduzido como “Conversas no trabalho”.
317
318 | “Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade
dos encontros legais na fala-em-interação
3. No original: “It may seem surprising that a perspective which, as its very name suggests,
is associated with the analysis of ordinary conversation between peers in everyday contexts
should be applied to interactions which are evidently not ordinary conversation in quite
this sense. [...] “There is nothing about the perspective and techniques associated of ordinary
conversation which is inimical to the analysis of institutional talk.”
4. No original: [there is] a congruence, even a convergence, between certain aspects of the
programs of AL and CA.
5. O título do livro pode ser traduzido como “Aplicando a Análise da Conversa”.
Daniela Negraes Pinheiro Andrade | 319
6. No original: [...] have come to recognize the value of research that respects their peculiar
achievements.
7. Menos do que lidar com conceitos tais como cultura, classe social, gênero, racismo,
competência, dentre outros, de forma apriorística, a perspectiva êmica leva em conta o
ponto de vista dos atores sociais. A organização social é construída situadamente de acordo
com o “sentido que os atores atribuem aos objetos, às situações, aos símbolos que os
cercam” (COULON, 1987, p. 15) .
320 | “Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade
dos encontros legais na fala-em-interação
pesquisa. Kitzinger (2005) reflete sobre essa problemática em seu artigo inti-
tulado “Working with childbirth helplines: the contributions and limitations
of Conversation Analysis”8 e conclui que o tempo necessário para conduzir
uma pesquisa em ACA “pode tensionar o gerenciamento das expectativas
das organizações por resultados rápidos” (KITZINGER, 2005, p.115, minha
tradução) 9. A autora também se posiciona a favor do emprego de métodos
outros aliados à AC(A), tendo em vista que a área não oferece solução para
todas e quaisquer demandas das organizações, mesmo quando a investiga-
ção se encontra dentro dos domínios da linguagem. Esse “apelo por ecletis-
mo em estudos analíticos da conversa” (HERITAGE; ROBINSON, 2005, p.
31)10 não deixa de ser um (re)posicionamento surpreendente em vista da
preocupação de alguns analistas da conversa em se manterem “fiéis” aos
princípios fundamentais da AC.
É importante ressaltar que, embora os estudos acadêmicos em AC que
impulsionam o continuum da área tendam a ocorrer no eixo Estados Uni-
dos – Europa, várias pesquisas em AC no Brasil apresentam caráter forte-
mente aplicado (OSTERMANN; SOUZA, 2011; OSTERMANN, 2003; DEL
CORONA, 2012) no sentido de oferecerem algum retorno pós-pesquisa às
instituições que gentilmente abriram suas portas para os pesquisadores.
São os casos, por exemplo, de Ostermann e Souza (2011), que realizaram
pesquisa junto ao Disque Saúde, de Del Corona (2010), que estudou as
interações do “190”, serviço de atendimento telefônico da Brigada Militar,
no Rio Grande do Sul e Ostermann (2003), que investigou as interações em
contexto de serviço de proteção à mulheres em situação de vulnerabilida-
de. Há que se salientar, porém, que embora se tenham pesquisas de porte
em AC no Brasil, ainda há um longo caminho a ser percorrido pela área no
que diz respeito aos trabalhos de base em língua portuguesa. Em outras
palavras, a grande maioria das pesquisas em AC está fundamenta na língua
inglesa, havendo bastante espaço para estudos dedicados a descrever fenô-
menos interacionais em língua portuguesa. Embora fenômenos tais como
organização de construção e tomada de turno, organização de sequência,
de reparo e de preferência, entre outros, sejam comuns aos eventos de fala-
-em-interação, de um modo geral, não se pode negar que as particularida-
des de cada língua, como seus traços prosódicos, por exemplo, são nuances
que devem ser descritas para que se consiga fazer uso de todo o potencial
oferecido pelos métodos da AC.
8. O título do artigo pode ser traduzido como “Trabalhando com atendimento de apoio às
gestantes em situação de pré ou pós-parto: as contribuições e limitações da Análise da Conversa.”
9. No original:“[The length of time necessary to conduct AC analysis] may mean managing
organizations’ expectations for rapid results.”
10 No original:“[...] a plea for eclecticism in applied conversation analytic studies.”
Daniela Negraes Pinheiro Andrade | 321
11. No original: “[...] how social action is brought about through the close organization of talk.”
12. Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
13. Serviços de Atendimento ao Consumidor.
322 | “Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade
dos encontros legais na fala-em-interação
14. No original: “Probably the most distinctive and most widespread linguístic feature of
legal talk is the question – in both interrogative and declative form [...].”
15. No original: “Lay interactants are largely controled by and at the mercy of questions
from professionals in dyadic legal encounters.”
324 | “Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade
dos encontros legais na fala-em-interação
Na linha 7, Kátia oferece a segunda parte do par adjacente aberto pela as-
sistente (não mostrado aqui) e informa sua idade. Na linha 8, a assistente
abre mais um par adjacente, agora, com respeito ao estado civil de Kátia
ao que a depoente responde sem hesitação, fechando o par. Na linha 10, a
assistente profere algo que não foi identificado pela analista e, em seguida,
326 | “Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade
dos encontros legais na fala-em-interação
na linha 11, Kátia diz “saber do que se trata” (= a sei a↑té: ↑x >que (se
tra:ta)<=), provavelmente referindo-se ao porque de ela ter sido intimada a
depor. Na linha 12, a assistente profere um “sinal de recebimento da fala do
outro”18 (GARDNER, 2001), indicando ter ouvido o que Kátia falou. Nesse
ponto, contudo, ao invés de se alinhar ao comentário de Kátia, a assistente
demonstra estar orientada para impropriedade da fala da depoente naquele
espaço interacional e segue focada em sua tarefa abrindo mais um par adja-
cente, agora, solicitando que Kátia informe sua profissão. Note-se que Kátia
não se orienta imediatamente para a pergunta da assistente, mas somente
fechará o par aberto na linha 15, após ter proferido uma fala não relativa ao
provimento da informação solicitada e após uma pausa (linha 14) e uma he-
sitação (ã:, linha 15). O fechamento do par adjacente prefaciado com pausa
e hesitação sugere certo estranhamento por parte de Kátia pelo fato de ter
tido sua fala ouvida, porém não legitimada.
A não familiaridade da participante leiga reside no fato de ela ter “falado
fora de hora” e ter sofrido consequências interacionais por isso. Explicando
de outro modo, a fala da depoente, na linha 11, não havia sido autorizada
pelo juiz, portanto, embora a assistente tenha sinalizado ter ouvido o que
foi falado por Kátia, ela não se engaja no comentário feito pela depoente. É
plausível pensar que Kátia tenha dirigido sua fala não somente para a assis-
tente, mas também ao juiz, uma vez que ele estava posicionado a sua frente
e já havia se dirigido a ela (linha 5). Nesse ponto, embora nem sempre seja
possível, é essencial que se diga que gravações em vídeo são de grande uti-
lidade como fontes de recursos preciosos para pesquisas em AC pela possi-
bilidade de incorporação de mais elementos de sustentação para as análises
como, por exemplo, pistas de contextualização (GOFFMAN, 1974; 1981)19
(gestos, direcionamento do olhar, etc.). De um modo ou de outro, pode-se
dizer que o comentário de Kátia não tem sua fala legitimada. O lapso de
tempo entre a abertura da primeira parte do par adjacente feita pela assis-
tente e o momento de provimento da segunda parte do par feito por Kátia
aliado ao material morfológico que indica hesitação na fala evidenciam um
possível estranhamento da depoente com relação ao desvio do que é comum
que se espere em uma situação similar em contexto de conversa mundana.
Em outras palavras, um comentário como o feito por Kátia também consti-
tui a abertura de um par adjacente e, como tal, requer que a segunda parte
do par opere como endosso da primeira. Como se percebe, nesse caso, o
“sinal de recebimento da fala do outro” da assistente não cumpre o papel de
endossar a fala da depoente. O desconhecimento de Kátia perante os pro-
cedimentos comuns às audiências de instrução pode ser percebido também
em outra sequência interacional, conforme mostrado mais adiante.
18 No original: Acknowledgement token . A tradução para o português foi sugerida por
Ana Cristina Osterman.
19 No original: Contextualization Cues.
Daniela Negraes Pinheiro Andrade | 327
22. A pesquisadora possui a transcrição total da interação e, por isso, pode afirmar que tal
informação, em nenhum momento, foi apresentada à depoente.
Daniela Negraes Pinheiro Andrade | 329
linha 110, Kátia, ao que parece, começa a ler o documento, haja visto seu
comentário (°<só tô: (.) tentando (entendê)>°, na linha 113. Após uma
pausa na qual a depoente, provavelmente, dá continuidade à sua leitura, na
linha 116, Kátia solicita uma explicação (você pode me expli↑cá assim >o
que que:<) ao que a promotora lhe explica tratar-se do termo de confirma-
ção de comparecimento à audiência (linhas 118, 119, 120). Note-se que o
prolongamento da fala de Kátia, sinalizado por (:), abre um espaço relevante
para a tomada de turno. No entanto, a promotora não toma o turno pronta-
mente, mas somente após uma pausa. A pausa, numa interação face-a-face,
assim como o riso, pode desempenhar ações variadas não podendo ser to-
mada, a priori, como negativa. Entretanto, na interação em análise, é plau-
sível refletir sobre o aspecto negativo da pausa na linha 117 haja vista que a
solicitação de Kátia demonstra sua preocupação com relação ao documento
que ela teve que assinar sem ler. Segue-se o excerto:
Na linha 134, Kátia questiona seu direito a uma cópia do documento (>vou
ganhá uma cópia de:ssa,<). Após uma micro pausa, o juiz, que tinha se
manifestado pela última vez na linha 104 para encerrar oficialmente a au-
diência (não mostrado aqui), toma o turno na linha 136 (“não.”). A resposta
do juiz, conforme o que aponta Pomerantz (1974), apresenta-se no forma-
to preferido, o que pode ser pensado como uma das formas de contribui-
ção para a construção da hostilidade desse encontro situado. Explicando
de outro modo, observa-se, na maioria das situações de fala-em-interação,
que os interagentes, ao terem que negar algo a alguém, tendem a proteger
suas próprias faces bem como as faces dos seus interlocutores (GOFFMAN,
1955). Uma das formas ad hoc de trabalho de proteção de face, nesses ca-
sos, é a mitigação da resposta que, normalmente, vêm acrescidas de carga
morfológica, de hesitação e de “prestações de contas” (COULON, 1995, p.
42) da razão pela qual uma negação é necessária naquele momento. Ou
seja, nesses casos, o formato socialmente esperado é o despreferido.
A resposta do juiz, contudo, apresenta-se em um formato que con-
traria o que é socialmente esperado. Em outras palavras, em face do for-
mato preferido em que se apresenta (direta, sem hesitação, sem pausas e
sem acréscimo de carga morfológica), a resposta do juiz pode ser conside-
Daniela Negraes Pinheiro Andrade | 331
se confirma no seu turno da linha 145 (↑não eu digo de:sse aqui.) ao que
o juiz novamente nega e é endossado,dessa vez, pela promotora. Diante da
terceira negativa do juiz e do endosso da promotora, Kátia repete a negativa
em volume baixo (˚não,˚, linha 148). Veja-se como a depoente lida com a
situação que lhe é imposta frente a sua falta de familiaridade com os proce-
dimentos próprios a esse tipo de audiência, no excerto 5, a seguir:
Após uma breve explicação por parte da promotora de que o “processo cri-
minal diz respeito ao acusado”, entre os turnos 150 e 156, Kátia expressa
sua apreensão. A carga morfológica trazida por Kátia dá conta de explicitar
que ela “estava perdida”, que “não sabia o que estava se passando” e que
“havia consultado o advogado da empresa onde trabalhava” com respeito a
ter que prestar depoimento. Observa-se também que há vários momentos
nos quais a promotora ou o juiz poderiam ter tomado o turno, mas não o
fizeram, o que pode explicar o alongamento do turno de Kátia. É somente
depois de uma pausa mais prolongada que a promotora tranquiliza a de-
poente, ainda assim, sem prover mais explicações sobre os procedimentos
práticos adotados em situações de audiência de instrução.
4. Considerações finais
amigável. Uma das formas que a depoente encontra para lidar com a desa-
filiação do juiz é reformular o design do seu turno de modo a construir uma
pergunta de polaridade negativa, tendo em vista a primeira resposta nega-
tiva do juiz frente a sua primeira pergunta. A depoente, ao empregar essa
estratégia interacional, salva sua face e a face do juiz, agindo em conformi-
dade com o que é esperado socialmente. As falas da promotora, por sua vez,
trazem mais carga morfológica e apresentam-se em formato despreferido
diante das indagações da depoente (pedido de explicação – fornecimento de
explicação), o que, nessas ocasiões, é socialmente esperado. No entanto, as
respostas dadas pela promotora diante das indagações de Kátia não podem
ser interpretadas como não problemáticas, hajam vistas as pausas que as
antecedem. Além disso, de qualquer forma, pela sequencialidade da inte-
ração, vê-se que as explicações ofertadas pela promotora não dão conta de
despreocupar a depoente. Ainda, uma última informação faz-se necessária
nesse ponto para reforçar as conclusões tiradas a partir das análises fei-
tas. Embora não mostrado aqui por motivos de limitação de espaço, mesmo
diante da proposta da promotora de que ela deve se tranquilizar, a depoente
mostra-se insegura e retorna à sala de audiência após alguns minutos de
ausência para, mais uma vez, perguntar se não havia “mesmo” nenhum
problema em ter assinado o documento requerido pelo juiz. Isso demonstra
que as informações providas pela promotora não foram suficientes para dis-
sipar as dúvidas da depoente.
As questões levantadas aqui servem como reflexão sobre os direitos
dos cidadãos em saber o que se passa em situações como a apresentada
no artigo. Dito de outro modo, qualquer cidadão intimado a oferecer seus
préstimos de forma a contribuir com a justiça brasileira deveria ter o direito
preservado de conhecer os motivos pelos quais foi chamado a comparecer a
uma audiência de instrução. Ademais, o cidadão tem o direito de ser notifi-
cado quanto ao fato de as interações nas salas de audiência serem gravadas
e também de ser informado sobre a razão de tal procedimento. Deveras
importante, ainda, o cidadão tem o direito de saber que tipo de documento
está sendo impelido a assinar. Todas essas medidas tendem a evitar com-
plicações interacionais que possam contribuir para a percepção do senso
comum de que as audiências de instrução são constrangedoras e hostís.
No que tange à área forense, os trabalhos em ACA podem contribuir
para a sensibilização dos profissionais do Direito em relação às necessidades
e anseios dos depoentes, principalmente em se tratando de participantes
não familiarizados com os procedimentos adotados em audiências públicas.
Precisa-se ter em mente, porém, que, diferentemente do que tende a acon-
tecer em situações comerciais, talvez, os participantes do Direito, na esfera
pública, não sejam receptivos às propostas que visam ao aprimoramento
dos recursos linguísticos dos profissionais, dado o engessamento próprio da
área. Entretanto, essa não é uma afirmação com valor de verdade sem que
antes seja feito um trabalho de campo com vistas a apresentar a esses pro-
334 | “Não, a gente fica meia perdida, né?”: como se traduz a hostilidade
dos encontros legais na fala-em-interação
GARDNER, Rod. When listeners talk: response tokens and listener stance.
Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2001.
GOFFMAN, Erving. Frame Analysis. New York: Harper & Row, 1974,
1981. Interaction. Psychiatry: Journal for the Study of Interpersonal
Processes, v. 18, p. 213-231, 1955.
LAMERICHS, Joyce; MOLDER, Hedwig te. Reflecting on your own talk: the
discoursive action method at work. In: RICHARDS, Keith; SEEDHOUSE,
Paul. Applying Conversation Analysis. Basingstoke: Palgrave Macmillan,
2005, p. 184-206.
1. Introdução
1. Texto elaborado para o evento científico Linguagem e Direito: os múltiplos giros e as
novas agendas de pesquisa no Direito.
338
Fernando José de Souza Filho | 339
3. Teoria do discurso
Isto implica dizer que uma norma deverá, para que ocorra a sua acei-
tação social, ter sua validez racionalmente justificada. Conforme analisado,
o mundo das normas funciona diferentemente da natureza, em que a refe-
rência é o estado das coisas, o qual independe de fundamentação, ou seja, a
validez normativa é dependente de justificação, de modo que a verdade de
atos de fala constatativos independe de fundamentação.
3.2 Princípios da universalização e do discurso
1. Introdução
350
Cristhovão Fonseca Gonçalves | 351
âmbito das drogas tem sido marcada pela criação de mitos e estereótipos a
respeito dessa atividade criminosa e dos efeitos do uso dessas substâncias.
Sucessivas tendências, antes da legislação que de fato foi marco na
reprovação normativa do tipo tráfico de drogas, nos anos 40, podem ser en-
contradas em Convenções Internacionais, como a de Haia (1912) e as de
Genebra (1925, 1931 e 1936), que revelam a influência sofrida pelo Brasil4.
Trata-se de um quadro social e político, que explicita a internaciona-
lização do controle das drogas marcado pelo modelo sanitarista, reformado
“centripetamente”, isto é, de fora para dentro no qual a legislação interna
funciona como ressonância que reflete a influência das legislações inter-
nacionais sobretudo na América Latina, constituída por países que na divi-
são internacional do trabalho, no mercado das drogas ocupam a função de
produtores de maconha, cocaína, heroína, ácido lisérgico, mais conhecido
LSD, por exemplo.
Contemplava-se na realidade social da Nação, em princípio, a venda
de drogas sob receituário médico rubricado pela autoridade sanitária. As
drogas, esclareça-se, estavam nas prateleiras, sob o patrocínio de farmacêu-
ticos. As autoridades sanitárias aderiram às técnicas higienistas, tendo, na
origem, como instrumento as barreiras alfandegárias.
A drogadição, diante desse contexto, consubstanciava-se em doença
de notificação compulsória. Desenhava-se, com isso, um sistema médico-
-policial de enfretamento da questão das drogas.
Usuários, “curiosos”5, inicialmente, ressalte-se, não eram
criminalizados. Entretanto, isso não significa ausência de controle, posto
6 . A expressão toxicônomos pode ser lida como adictos, dependente, drogado e outras
denominações que adjetificam o uso abusivo de álcool e outras drogas, embora algumas
sejam classificadas como drogas lícitas. A palavra toxicônomo, nesse fragmento do texto, foi
utilizada de acordo com seu uso histórico, posto que essa nomenclatura fora utilizada com
bastante frequência no Brasil, sobretudo, após a vigência da Lei nº 6368/76, tida como Lei
Antitóxicos.
7. Goffman (2012, p. 12) alerta para esse processo quando um estranho é apresentado a
um desconhecido e os primeiros aspectos permitem a previsão de sua categoria e os seus
atributos, de status social, nesse inclusas percepções como “honestidade”, “ocupação”.
Esses julgamentos morais consistem a formulação social a respeito da identidade do
usuário de drogas
8. A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 resultou num protocolo assinado
em 1972, pelos Estados Participantes, iniciando o que se denomina de Ideologia da
Diferenciação. Desse modo, é possível perceber que até os anos sessenta do século XX
não havia nas legislações nacionais a criminalização da figura do usuário de drogas. É
com o marco da Ideologia da Diferenciação que o traficante é definido como criminoso e o
usuário como doente. (cf. ZACONNE, 2011, p. 86) São as marcas transitórias da história
da criminalização das drogas de um modelo sanitário para um bélico.
9. O acompanhamento do avanço legislativo da repressão às drogas, demonstra que as
marcas de embrutecimento punitivo foram se consolidando a partir da vigência da Ditadura
354 | Uma análise do discurso das decisões denegatórias e concessivas de habeas
corpus de tráfico de drogas no estado de pernambuco: entre a (in)segurança
pública e um direito penal do inimigo
Civil Militar Brasileira, a partir de Decretos e Leis do Período, que serão, a seguir, exploradas
neste trabalho
10. Para compreender melhor o termo e sua dimensão na Política Criminal de Drogas, ler
referência nº 09 deste trabalho.
Cristhovão Fonseca Gonçalves | 355
11. A Lei de Entorpecente (11.343/2006), ainda hoje conhecida pelo senso comum como
Lei Antitóxico (6368/1976), é marcada por profunda ambiguidade legislativa. Utiliza-se
na técnica legislativa alicerçada em normas penais - responsáveis por definir o que é
entorpecentes; proliferação dos verbos nucleares que sinalizam o que seja o ato de traficar;
utilização de termos imprecisos e genéricos; incriminação de condutas autolesivas em
defesa da suposta saúde pública; incriminação de atos meramente preparatórios; indefinição
do dolo de tráfico; desproporcionalidade das sanções penais aplicadas e minimização de
princípios processuais garantistas, como o contraditório e a ampla defesa, tal como é a
prática corrente da escuta do acusado antes das testemunhas de defesa e acusação, a
exemplo questionável regra do artigo 57 da Lei 11.343/2006 e do artigo 44 do mesmo
diploma legal, declarado inconstitucional incidentalmente pelo STF no Habeas Corpus
97.256/RS, que vedava a liberdade provisória para quem respondesse por crimes de tráfico
(artigo 33) e associação( artigo 35).
356 | Uma análise do discurso das decisões denegatórias e concessivas de habeas
corpus de tráfico de drogas no estado de pernambuco: entre a (in)segurança
pública e um direito penal do inimigo
Tal lei em questão transpôs, desse modo, no âmbito penal, aqueles que
seriam os espectros da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170 de 1983) e
impôs grande repressão. Esse diploma legal deixa de considerar o usuário
de drogas como criminoso mas continuar a equiparar usuários e traficantes,
impondo às duas figuras pena privativa de liberdade de 01 a 06 anos, culmi-
nando com a Lei 6.368/76. (CARVALHO, 2010, p. 17).
Oportunamente, é necessário contextualizar a primeira lei penal ex-
travagante a respeito do tráfico (Lei nº 6.378/76) que revogou a outrora
previsão do Código Penal. A partir daqui, atrela-se a política de drogas, ba-
sicamente, a dois pilares: a ideia de que o uso e o tráfico de substâncias en-
torpecentes devem ser combatidos mediante prevenção, repressão e como
problema abstrato de índole de saúde pública e através da implementação
de um modelo internacional da guerra contra as drogas, nos moldes nor-
te-americanos. Eis que se flexibiliza a punição do usuário, o que passa a
constituir a marca do controle penal sobre drogas no País desses anos de
transição até os anos 2000.
A Lei nº 11.343/2006, segunda lei penal especial no Brasil de comba-
te às drogas, deve ser pontuada como promovedora de uma agudizaçãodo
quadro prisional brasileiro com as características que se já vinham se de-
marcando numa moldura repressiva da política criminal, promovendo au-
mento de penas e de gravames à execução penal. Eis algumas constatações
respeito do diploma legal.
Essa breve história revela que, desde os anos 60, caminha-se para mo-
delos de repressão às drogas, ou melhor, às pessoas envolvidas no universo
do comércio e produção cada vez mais brutais.
3. Pontuações criminológicas a respeito da “evolução” da
criminalização das drogas e das ideologias repressivas ao tráfico de
drogas
DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
1. Ponto de partida
1. Parte deste artigo é procedente da dissertação “Direito à saúde e o dever da fundamentação
jurídica: uma abordagem transdisciplinar ancorada na Análise Crítica do Discurso
Jurídico”, construída por José Antonio de Albuquerque Filho no Mestrado em Direito da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), sob a orientação da Professora Doutora
Virgínia Colares. ALBUQUERQUE FILHO, José Antonio. Direito à saúde e o dever da
fundamentação jurídica: uma abordagem transdisciplinar ancorada na Análise Crítica
do Discurso Jurídico. 2011. 154 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade
Católica de Pernambuco, Recife, 2011.
Registramos também a publicação do presente artigo no livro Cárcere Social: por um
direito penal sem fronteiras, organizado pela Drª. Vanessa Pedroso, tendo como objetivo
geral a importância da interdisciplinaridade nos estudos do direito penal e da criminologia
crítica, referente à aplicação do direito. ALBUQUERQUE FILHO, José Antonio; QUEIROZ,
Maria Emília. A importância da criminologia crítica para o direito penal: como
aplicar o direito numa perspectiva interdiswciplinar. In: Cárcere Social: por um direito
penal sem fronteiras. 1 ed. Recife: Appodi, 2011, p. 122-140.
2
. “Criminologia Crítica é a expressão genérica, sinônima de Nova Criminologia,
Criminologia Radical, Economia Política do Crime, Criminologia Moderna. Trata-se do
movimento criminológico que importa numa reação à chamada Criminologia Tradicional,
que fulcrada no pensamento positivista, preocupa-se, apenas, com a etiologia do delito e
com os aspectos psicológicos da passagem do ato, a partir de conceitos estratificados em lei”
LYRA, Roberto; ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. Criminologia. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1992, p. 224.
362
José Antonio de Albuquerque Filho | 363
3. GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Criminologia: introdução
a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lai 9.099/95 – lei dos
juizados criminais. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 25.
4. Nesse sentido, cf. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 6. ed. Niterói-RJ:
Impetus, 2011, p. 2.
364 | A Importância da Criminologia Crítica para o Direito Penal: como Aplicar o
Direito numa Perspectiva Interdisciplinar
Logo, em face das limitações do Direito Penal, que não representa o direito
criminal em sua plenitude e não abrange toda a complexidade das relações
sociais, a Criminologia se apresenta como caminho possível na explicação
do fenômeno delitivo, não resumindo seu objeto de estudo apenas ao crime
e ao criminoso, voltando-se também para a vítima e para o controle social
do comportamento delitivo.
Nesse contexto, “cabe definir a Criminologia como ciência empírica
e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator,
da vítima e do controle social do comportamento delitivo (...)”6. Podemos
observar que esta definição da Criminologia expressa claramente o seu mé-
todo (empírico e interdisciplinar), bem como o seu objeto de estudo (crime,
delinquente, vítima e controle social), consagrando-a como ciência autôno-
ma.
Como função, a Criminologia oferece as ferramentas necessárias para
que o analista mergulhe na realidade criminal, no intuito de conhecer e pre-
venir o delito. A análise é realizada observando o crime em sua totalidade,
inserido numa sociedade criminógena, dinâmica e complexa. O observador
estuda a realidade fenomênica, insere-se “na própria realidade a ser obser-
vada7” a ponto de conhecê-la, explicá-la e transformá-la.
O jurista nada mais é do que um observador. É o aplicador do direito,
considerando “as diversas características do uso da palavra direito”8. Consi-
deramos a atitude do jurista como um estilo, que observa e aplica o direito,
9. HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 81.
10. Para Wodak, a ACD é uma “agenda de pesquisa”, um modelo que se estabeleceu
no interior da lingüística. A ACD não é uma teoria pura da lingüística, não é método de
pesquisa e nem se propõe a tal finalidade, antes, apresenta-se como uma proposta teórico-
metodológica interdisciplinar ou transdisciplinar, que busca identificar na superfície
dos textos as evidências, que muitas vezes se encontram no plano do implícito ou do
subentendido, das relações de poder e ideologia e suas implicações nos contextos sociais
mais complexos. A relação da ACD com outras áreas do conhecimento revela o seu caráter
interdisciplinar, possibilitando diversas pesquisas, onde o objeto de estudo é compreendido
na interação com outras disciplinas. WODAK, Ruth. Do que trata a ACD – um resumo de
sua história, conceitos importantes e seus desenvolvimentos. Revista Linguagem em
(Dis)curso. vol. 04, 2004, p. 04.
366 | A Importância da Criminologia Crítica para o Direito Penal: como Aplicar o
Direito numa Perspectiva Interdisciplinar
17. Leia-se o conceito amplo de cidadão, não restringindo à participação na vida político-
eleitoral, mas ampliando à submissão às normas.
18. Utilize-se aqui a analogia à doutrina Católica, que faz uso de dogmas que seus
adeptos devem seguir e aceitar, sem questionamentos, até porque não são comprováveis
empiricamente, só pela fé. Como é exemplo a aflição que viveu Santo Agostinho tentando
destrinchar o dogma da Santíssima Trindade. A inquietude, ilustrativa de um espírito
zetético, não o abandonava, o fazendo supor diversas teorias acerca do assunto, sem
sucesso, pois se tratava de um dogma. Até que, como conta a tradição, caminhava pela
praia buscando uma resposta e encontrou uma criança (que esta mesma tradição classifica
como um anjo enviado para esta missão) que carregava vagarosamente um pequeno balde
de água do mar e trazia à areia, um a um, pacientemente. Então Agostinho lhe questionou
o que pretendia com aquilo, respondeu a criança que tentava esvaziar o mar. Ele alertou
que seria impossível aquilo, então retrucou que impossível também seria ele entender o
dogma da santíssima trindade, como um só Deus englobaria pessoas três.
19 . Terminologia utilizada por Cláudio Souto, em Ciência e Ética no Direito: uma
alternativa de modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1992.
20. ARNAUD, André-Jean (direção - et. al.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de
Sociologia do Direito. Tradução de Patrice Charles, Ef. X. Willlaume. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 96.
José Antonio de Albuquerque Filho | 369
21. Wittgenstein foi quem primeiro utilizou a expressão “jogo de linguagem”, associando
“a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 3. ed. Bragança Paulista:
Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2004, p. 19.
22 . SIDOU, J. M. Othon. Dicionário Jurídico - Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 456.
23. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 6. ed. Niterói-RJ: Impetus, 2011,
p. 11.
370 | A Importância da Criminologia Crítica para o Direito Penal: como Aplicar o
Direito numa Perspectiva Interdisciplinar
Para aqueles atores do direito que apenas observam a norma jurídica abs-
trata na aplicação do direito, é necessário alertá-los que o direito tem um
caráter multívoco, podendo ser concebido não só como norma, mas como
faculdade, ideia de justo e, principalmente, como fato social. É como fato
social que o direito revela seus preceitos éticos, fornecendo aos magistrados
e demais colaboradores do direito o despertar de um pensamento crítico do
contexto situacional (dos mais variados problemas surgidos na sociedade),
bem como da ampliação de uma consciência criminológica, fundamentada
não apenas no crime e no delinqüente, mas também no estudo da vítima
(vitimologia) e do controle social do comportamento delitivo. A nossa so-
ciedade reclama atitudes coesas e coerentes através dos julgamentos dos
magistrados, considerando o fenômeno criminal nas perspectivas empírica
e interdisciplinar.
29. Ou ator do direito, denominação alertada pela Professora Mirian de Sá Pereira, quando
do magistério da disciplina Sociologia Jurídica, na Universidade Católica de Pernambuco,
criticando a utilização do termo “operadores do direito”, uma vez que o direito deve ser
criado e vivido.
30. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 6. ed. Niterói-RJ: Impetus, 2011,
p. 12.
372 | A Importância da Criminologia Crítica para o Direito Penal: como Aplicar o
Direito numa Perspectiva Interdisciplinar
1. Introdução
374
Naira Celi Pereira Vinhas | 375
1. A Professora Ester Kosovski defende que este fato ocorreu em The Origins of the Doctrine
of Victimology, obra pioneira de Mendelson. (PIEDADE JR, 1993)
376 | A análise da neutralização da vítima no Crime de Estupro de
Vulnerável
Apesar de não haver convergência quanto ao assunto, neste trabalho será le-
vado em conta que tanto a Criminologia quanto a Vitimologia apesar de suas
particularidades e especialidades devem ser estudadas e compreendidas em
conjunto, pois se complementam fato bastante comum na atualidade por
outras ciências. Existe uma interdisciplinariedade entre elas, de maneira
que dependem uma da outra. Apesar de tudo tem-se em vista que objeto da
Criminologia é mais abrangente que o da Vitimologia.
2.2 Conceito de vítima sob o enfoque da vitimologia
É a personalidade do indivíduo ou da
coletividade na medida em que está afetada
pelas conseqüências sociais de seu sofrimento
determinado por fatores de origem muito
diversificada, físico, psíquico, econômico,
político ou social, assim como do ambiente
natural ao técnico. (apud PIEDADE JR. 1993,
p.88)
Entretanto, a concepção do termo vítima deve ser mais ampla do que a en-
tendida pelo Direito Penal e a Criminologia devendo abranger aquele que
Naira Celi Pereira Vinhas | 377
2. O direito penal atual, enquanto monopólio do Estado neutraliza a vítima e ao invés de
promover o acordo proporciona a ação penal pública entre as partes envolvidas.
Naira Celi Pereira Vinhas | 379
Em 2009, o STJ proferiu uma decisão que absolveu dois acusados3 do cri-
me previsto no art. 244-A do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
(exploração sexual de menores). Em 1º Grau os réus foram absolvidos do
crime de estupro, mas condenados pelos outros crimes. A defesa apelou ao
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul contra a decisão que condenou
os réus com base no ECA e o presente Tribunal absolveu-os do crime de
exploração sexual de menores por considerar os antecedentes da vítima, ou
seja, por já estarem corrompidas. Entretanto ressaltou que a responsabili-
dade penal dos acusados seria maior caso tivessem iniciado as atividades de
prostituição das vítimas e mantiveram a condenação pelo crime do art. 241
4
do ECA.
O Ministério Público interpôs recurso extraordinário ao STJ alegando
que o fato das vítimas já serem corrompidas não excluiria o ilicitude do cri-
me de exploração sexual, baseando- se em repercussão geral. (COUTINHO,
2009). O Supremo teve o seguinte posicionamento5: “o crime previsto no
art. 244-A do ECA não abrange a figura do cliente ocasional, eventual diante
da ausência de exploração sexual nos termos da definição legal”.
3. O caso em questão refere-se à contratação feita pelo ex-atleta José Luiz Barbosa,
Zequinha Barbosa, e seu acessor Luiz Otávio Flores para fins sexuais a três adolescentes
de idades 13, 15 e 17 já iniciadas na prostituição as quais se encontravam em um ponto
de ônibus.
4. Adquirir, possuir ou armazenar fotografia, vídeo ou outra forma de registro de sexo
explícito envolvendo menores
5. Exige-se a submissão do infante à exploração ou à prostituição sexual, o que não ocorreu
no caso em questão, de acordo com o STJ. (BRASIL, 2009a)
Naira Celi Pereira Vinhas | 381
Após este caso, surgiu o projeto de lei nº 253/04 que viria se tornar a
Lei e 12.015/09 a qual provocou uma profunda reforma no Título IV do Có-
digo Penal, pois tentou adaptar as normas penais ao modo atual de pensar
e agir da sociedade. A primeira alteração encontra-se na própria denomina-
ção do Título o qual deixou de ser “Dos crimes contra os costumes” e passou
a ser “Dos crimes contra a dignidade sexual6”.
Outra mudança significativa foi a unificação dos crimes de estupro e
atentado violento ao pudor; severidade quanto ao crime de exploração sex-
ual e a previsão do crime de estupro de vulnerável entendendo este último
que para a sua configuração é apenas necessária à prática da relação sexual
com o menor, não constituindo elemento típico a grave ameaça e violência.;
proteção estendida aos vulneráveis por enfermidade ou deficiência mental;
intensificou a repressão a outras formas de exploração sexual.
4. Considerações gerais a cerca do estupro de vulnerável
6. O termo “dignidade” possui diversas definições, mas combinado com o termo “sexual”
“relaciona com o sadio desenvolvimento da sexualidade e a liberdade de cada indivíduo de
vivenciá-la a salvo de todas as formas de corrupção, violência e exploração” (MIRABETE;
FABBRINI, 2011).
Reconhece - se a primazia do desenvolvimento sadio da sexualidade e do exercício da
liberdade sexual, como bens merecedores de proteção penal, deslocando o objeto central
de tutela da moralidade pública para o indivíduo.
7. STJ, REsp 1.102.005-SC, 5ª. T., rel. Felix Fischer, 29/09/2009
382 | A análise da neutralização da vítima no Crime de Estupro de
Vulnerável
A conjunção carnal é elemento normativo extrajurídico do tipo e re-
fere-se à cópula ou coito vaginal que representa na introdução do órgão
masculino na cavidade vaginal. (PRADO, 2010) Já os atos libidinosos con-
sistem em atos que ofendem o pudor ou decência sexual, ou seja, é o ato
sexualmente obsceno8.
No que tange ao elemento subjetivo, dolo, ou seja, vontade de ter a
conjunção ou de praticar o ato libidinoso é necessária a consciência da vul-
nerabilidade. Existindo dúvida quanto à condição de vulnerabilidade (idade,
enfermidade ou doença mental) incorre em dolo eventual. O erro neste
caso exclui o dolo, mas pode-se verificar a hipótese de crime previsto no art.
213 ou 215 (estupro ou violência sexual mediante fraude). Neste caso não
se admite a culpa. (MIRABETE; FABBRINI, 2011)
Em relação à consumação dá-se com a conjunção carnal ou prática de
outro ato libidinoso. A tentativa configura-se quando o agente inicia a exe-
cução do delito com a prática de todos que tendem sua consumação, mas
deixa de fazê-lo, pois é impedido por coisa superveniente a sua vontade. Por
exemplo, o agente chega a ameaçar o menor para a prática de ato libidinoso
o qual foge. É possível a desistência voluntária desde que ocorra antes de
qualquer prática libidinosa. (MIRABETE; FABBRINI, 2011)
As qualificadoras do crime encontram-se previstas nos §§ 3º e 4º do
art. 217-A do Código Penal, e consistem em lesão corporal grave9 ou mor-
te10, do ato praticado pelo agente, conjunção carnal ou ato libidinoso. Estes
resultados são configurados pela culpa, pois o agente não tinha intenção de
provocá-los. (PRADO, 2010) Dessa forma, há dolo na ação do agente de
praticar a conjunção carnal ou ato libidinoso e culpa na consequência desta
ação, pois o agente não tinha o intuito de provocá-la. (GRECO, 2010)
Entretanto, se o agente tem a intenção ou assume o risco de praticar
a lesão corporal grave ou morte utilizando da prática da relação sexual, ha-
verá concurso material entre crime sexual e o delito de homicídio ou lesão
corporal grave. Como exemplo, temos a hipótese do agente que para estu-
prar a vítima joga-a no solo de forma abrupta de maneira que esta fratura
um dos braços ficando impossibilitada de exercer atividades habituais por
mais de 30 dias; (PRADO, 2010)
As lesões corporais de natureza leve e as vias de fato decorrentes
da violência empregada pelo agente para a prática da relação sexual serão
incorporadas pelo próprio art. 217-A do Código penal. (PRADO, 2010) Por
8. Neste caso deve haver o contato ou aproximação corporal, de maneira que pode ser
realizado pela vítima no próprio corpo, sobre o corpo do agente ou de um terceiro ou até
mesmo sobre a vítima pelo agente ou por terceiro. (LUNA apud PRADO, 2010)
9. Pena será reclusão de 10 (dez) a 20 (vinte) anos
10. Pena é reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta) an
Naira Celi Pereira Vinhas | 383
outro lado, André Estefam defende que haverá concurso de crime formal
se do fato resultar lesão corporal de natureza leve, pois entende que não
absorção da lesão pela figura típica do estupro de vulnerável, pois este não
tem previsto a violência como elementar do tipo. (ESTEFAM, 2011)
5. Da presunção de violência à vulnerabilidade
A nova lei ao trazer uma nova roupagem para a presunção não põe fim ao
debate. Isto porque nem sempre que se tiver relação sexual com menor de
14 anos configurará estupro, devendo a vulnerabilidade ser relativa, confor-
me será demonstrado posteriormente.
Segundo Nucci, o legislador perdeu a oportunidade de adequar o Có-
digo Penal ao Estatuto da Criança e do Adolescente, pois poderia ter adotado
o conceito de criança, pessoa menor de 12 anos, e de adolescente, pessoa
maior de 12 anos, eliminado a idade menor de 14 anos. Além disso, defende
que, baseando-se no ECA, a tutela absoluta deveria ser prevista para os me-
nores de 12 anos e a relativa aos maiores de 12 anos de maneira que seria
possível a atipicidade do fato ou sua desclassificação quando for possível
Naira Celi Pereira Vinhas | 385
Sendo assim, percebe-se que a Lei 12.015/09 trouxe uma maior rigidez para
os casos que envolvem menores de 14 (quatorze) anos, pois o estupro de
vulnerável possui pena maior que o estupro simples. O porquê de tal mu-
dança e sua eficácia será discutido posteriormente.
Naira Celi Pereira Vinhas | 387
11. Este conceito de liquidez é trazido por Bauman referindo-se a fluidez da era moderna
e a flexibilização das relações da pós-modernidade. Além disso, remete as inseguranças
trazidas pela sociedade globalizada diante da falta de vínculos e de valores sólidos que
trazem uma perspectiva de previsibilidade. (BAUMAN, 2001)
12. Ou como sugere Bauman sociedade de incertezas, pois o conceito de risco com base
no estudo de Ulrich Beck permite que os mesmos sejam calculados o que só teria sentido
num mundo repetitivo, isto é, monótono.
388 | A análise da neutralização da vítima no Crime de Estupro de
Vulnerável
cia das instancias de controle social, consistindo a “Cultura de Emergência”
(CEPEDA apud CALLEGARI, 2010).
Assim, o Direito Penal se expande e se arma como resposta ao medo
possuindo as seguintes características:
1. Maior identificação social com a vítima do delito diante do medo de se
tornar uma delas de forma que o Direito Penal deixa de ser visto como um
instrumento de defesa dos cidadãos diante do jus puniendi estatal, ou seja,
como Carta Magna do delinquente e passa a ser visto como Carta Magna da
vítima. (SILVIA SÁNCHEZ, 2002,);
2. Politização do Direito Penal, ou seja, utilização política de segurança,
resultante de um empobrecimento ou simplificação do discurso político cri-
minal e influência dos meios de comunicação consistindo num processo
de politização populista do Direito Penal. (CEPEDA, apud CALLEGARI;
WERMUTH, 2010);
3. Instrumentalização do Direito Penal no intuito de evitar que os riscos se
convertam em situações concretas de perigo. Aparecem leis penais preven-
tivas tentando evitar a inatividade política diante dos riscos (ALBRECHT,
apud CALLEGARI; WERMUTH, 2010) ;
4. Desapreço quanto as formalidades e garantias penais e processuais, ca-
racterísticas de um direito penal liberal e que passam a consistir em obs-
táculo frente à eficácia que se espera do sistema punitivo da insegurança
(SILVIA SANCHEZ, 2002)
A expansão do Direito Penal decorre do populismo punitivo13 o qual consiste
num fenômeno frequente que alimenta a aplicação do direito penal como
forma de solucionar as patologias sociais (CADENAS, 2009). Bottoms en-
tende que o populismo punitivo aparece em três situações: maiores penas
podem reduzir o delito, as penas ajudam a reforçar o consenso moral da
sociedade, e ganhos eleitorais como produto. (LARRAURI, 2006).
Este fenômeno pede uma reforma na legislação penal diante de acon-
tecimentos que geram a comoção da opinião pública a qual tem relação di-
retamente com o papel das redes sociais e da televisão os quais trabalham a
relação entre a vítima e seu agressor, além de difundirem o caso a terceiros.
Surge um novo autoritarismo, denominado por Zaffaroni de Autoritarismo
Cool, pois é um autoritarismo diferente do anterior (de entre guerras) já que
se propaga por meio de publicidade e impõe uma propaganda puramente
emocional, sendo caracterizado pela expressão cool consistindo o que é su-
perficial, indiferente de maneira que não possui convicção profunda, mas
está vigente, pois é da moda e por isso é preciso se adequar a ele, visto que
se não o fizer será estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e perderá
espaço na publicidade. (ZAFFARONI, 2007)
14. Percebe-se a presença do maniqueísmo nesta relação, pois há uma separação na própria
sociedade entre os que consomem e os que geram a insegurança, devendo estes últimos
serem contidos pelo sistema penal no intuito de promover a segurança dos consumidores.
392 | A análise da neutralização da vítima no Crime de Estupro de
Vulnerável
bem jurídico, contrariando o Princípio da Intervenção Mínima15. A inobser-
vância deste Princípio decorre do aumento de leis penais em branco, perigo
abstrato consequências de uma legislação penal de emergência. Além disso,
corresponde um risco as garantias fundamentais e de liberdade do cidadão.
(NUNES APOLINÁRIO, 2009)
A expansão do Direito Penal tendo como consequência a criação de
novos tipos penais, estipulação de penas mais graves consiste na substitui-
ção de um Estado Democrático de Direito por Estado de Polícia, pois de-
senvolve um Direito Penal com caráter preventivo geral dando uma maior
ênfase à pena. Desta forma, cabe ao Estado decidir se houve ou não violação
á norma e aplicar as sanções cabíveis para cada caso concreto, ocorrendo,
portanto, o fenômeno da neutralização da vítima, pois esta é esquecida pas-
sando o Estado a roubar-lhe o conflito.
Como exemplo de tal questão foi trazido o estupro de vulnerável o qual
decorreu do empoderamento do conflito por parte do Estado como resposta
ao clamor social influenciado pela mídia diante de um caso envolvendo me-
nores de 14 anos que já possuíam vida sexual ativa. Percebe-se que a vítima
menor de 14 anos, teve sua vontade e discernimento neutralizado, já que
o crime se configurará independentemente de seu consentimento tal como
assim prevê o Código Penal e a Jurisprudência pátria. Como consequência
a tal aspecto tem-se que a omissão do legislador quanto à violência ou a
grave ameaça para a configuração do crime demonstra uma incapacidade
do menor de 14 anos quanto ao discernimento da prática de atos sexuais,
havendo, portanto, uma limitação da liberdade sexual de tais sujeitos.
Portanto, o que se percebe é um passo contrário às conquistas do
movimento vitimológico, devendo, assim, o legislador, ou mesmo o Supremo
Tribunal Federal, no seu exercício de conformação da legislação infraconsti-
tucional à Carta Maior, ponderar pela relativização do tipo penal, atendendo
à prerrogativa constitucional da autonomia da pessoa humana.
10. Conclusão
15. Segundo Nilo Batista (2005) estabelece a intervenção nos casos de grave ataque a bem
jurídico, sendo os de leve ataque correspondendo uma criminalidade de bagatela objeto de
outros ramos do direito, ou seja, protegidos por instrumentos não penais.
Naira Celi Pereira Vinhas | 393
______. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 7 ed. Niterói,
RJ: Impetus, 2010.
1. Art. 1o O art. 5o da Lei no 12.037, de 1o de outubro de 2009, passa a vigorar acrescido do
seguinte parágrafo único:
“Art. 5o .......................................................................
Parágrafo único: Na hipótese do inciso IV do art. 3o, a identificação criminal poderá incluir
a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético.” (NR) Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm Acessado em
junho de 2012
2. Art. 2o A Lei no 12.037, de 1o de outubro de 2009, passa a vigorar acrescida dos seguintes
artigos:
“Art. 5o-A. Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em
banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.
§ 1o As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão
revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética
de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos,
genoma humano e dados genéticos.
§ 2o Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso,
respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua
utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial.
§ 3o As informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser
consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.”
397
398 | Analisando a lei nº 12.654/12 com a lupa criminológica:as principais críticas
ao cadastro de perfis genéticos dos criminosos à luz de uma abordagem
criminodogmática
“Art. 7o-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo
estabelecido em lei para a prescrição do delito.”
“Art. 7o-B. A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso,
conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.” Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm Acessado em junho de
2012
3. Art. 3o A Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, passa a vigorar
acrescida do seguinte art. 9o-A:
“Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza
grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25
de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético,
mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.
§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme
regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso
de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.”
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm
Acessado em junho de 2012
Diego José Sousa Lemos | 399
reza grave contra a pessoa. Neste caso o material genético irá para banco
de dados visando ser usado como prova em relação a fatos futuros. Não se
exige autorização judicial para a coleta do material, ela é obrigatória. Tam-
bém não se prevê por quanto tempo esses dados ficarão disponíveis, tendo
em vista que aqui não há a anterior finalidade probatória e investigatória
(OLIVEIRA, 2012).
Relevante é que se compreenda o conceito de crimes dolosos cometi-
dos com “violência de natureza grave contra pessoa”, inédito termo estabe-
lecido na Lei nº 12.654/12. Seguramente, pelas compreensões doutrinárias
que já se têm, tratam-se daqueles crimes cometidos dolosamente nos quais
resultam lesões graves, gravíssimas ou morte da vítima. Portanto, teríamos
aqui a ideia de condenados por crimes praticados com violência real contra
a pessoa com resultado grave, logo lesão grave, gravíssima ou morte (LO-
PES JR., 2012).
Em que pese a intenção de trazer as principais críticas ao cadastra-
mento dos perfis genéticos como um todo sob uma abordagem criminodog-
mática, é precisamente sobre este segundo momento da lei em comento
que nos deteremos com mais afinco por ocasião deste artigo, conforme já
mencionado. Será, sobretudo, no art. 3º da Lei nº 12.654/12 que repousa-
remos nossa atenção, procurando desvendar os absurdos, incongruências e
inconstitucionalidades que essa inovação legislativa acabou por validar. Para
tanto, há de se tomar a lupa da criminologia crítica para construção de uma
verdadeira abordagem criminodogmática.
2. O Penalismo Crítico e a construção de uma abordagem
criminodogmática
Todo o sistema penal, portanto, vai tender a intervir como subsistema espe-
cífico no amplo universo dos processos de socialização e educação, os quais
são institucionalizados pelo Estado e outros aparelhos ideológicos em uma
rede cada vez mais capilarizada (BARATTA, 2011, p. 169).
A crise de legitimidade ou deslegitimação desse abrangente sistema
penal, então, vai encontrar seus porquês no desvelamento das múltiplas in-
capacidades do sistema. Conforme aponta Louk Hulsman, há três grandes
problemas incontornáveis reveladores dessa deslegitimação: 1) o sistema
penal causa sofrimentos desnecessários distribuídos socialmente de modo
injusto; 2) ele não apresenta efeito positivo algum sobre as pessoas envolvi-
das nos conflitos; 3) é extremamente difícil manter este sistema sob contro-
le (HULSMAN apud ZAFFARONI, 1991, p. 98).
Diego José Sousa Lemos | 403
lá para sempre. Essa pessoa jamais poderá voltar a ser primária, a rigor. É
quase que a implantação de uma pena perpétua no Brasil: ao lado dos efei-
tos sociais extra-penais de estigmatização e marginalização – incontroláveis
e quase sempre eternos, mas a depender do caso ocultáveis – estabeleceu-se
um acessório perpétuo para a pena em alguns tipos de crimes: a presença
num cadastro genético criminal, o biobanco.
Convém ressaltar que esta mudança de procedimentos e de resulta-
dos é a clara e inequívoca tradução do abandono do ideal da ressocialização.
Substitui-se o paradigma da reinserção por uma filosofia gerencial que se
contenta em administrar fluxos e conter os custos contábeis. Evita-se, por-
tanto, cuidadosamente, enfrentar a questão das causas e das consequências
do encarceramento em massa. Não fosse esse o caso, se continuaria apos-
tando na reinserção social do detento, uma vez paga a pena. Invés disso,
porém, tem-se a prisão como espaço para isolar e, sobretudo, neutralizar
categorias desviantes ou perigosas por meio de uma vigilância padronizada,
o panoptismo punitivo, e de uma gestão estocástica dos riscos. No lugar do
trabalho social, uma pesquisa operacional para a absorção carcerária dos
“dejetos sociais” (WACQUANT, 2003, p. 247).
Sendo assim, a fraqueza externa do Estado é compensada pelo au-
mento de seu autoritarismo (SANTOS, 1994). O Direito Penal esvazia-se
enquanto sistema de garantias, ao mesmo tempo em que amplia as suas
competências regulatórias para novas fronteiras (BARATTA Apud DIAS
NETO, 2002). É precisamente daí que surgem conceitos como o “direito
penal do inimigo”, o “direito penal do risco”, o “direito penal simbólico e
eficiente” – todos eles absolutamente compatibilizados com as finalidades
implícitas e explícitas da lei em tela. E, na análise crítica do tema, é de rigor
a percepção do uso instrumental do sistema penal para fins político-sociais.
O cadastro de perfis genéticos, notadamente aquele obrigatoriamen-
te imposto por ocasião do art. 3º da lei em análise, serve muito bem para
aplacar os temores sociais e indicar para a população uma atuação política
nos conflitos que desagradam e aflingem a sociedade. Cria-se o “monstro”
que é o criminoso hediondo ou o criminoso violento e, ao mesmo tempo,
encontra-se a “mágica” solução para combatê-lo que é o cadastramento de
seu perfil genético. Uma estratégia muito bem posta e orquestrada pelo
“populismo punitivo”, teatralizado pela mídia, braço forte da comunicação
do sistema punitivo, e pelo senso comum teórico, ecoado pelas vozes de es-
pecialistas de variadas matizes.
4. Fechando o ciclo de uma abordagem criminodogmática: a crítica
legal ao cadastramento obrigatório dos perfis genéticos criminais da Lei
nº 12.654/2012
6. STJ-3ª Seção, REsp nº 1.111.566/DF (sistemática dos recursos repetitivos), rel. Min.
Napoleão Nunes Maia Filho. DJ 17/11/2010.
Diego José Sousa Lemos | 409
Referências
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica:
do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003.
1. Introdução
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414 | Lei Maria da Penha: uma análise crítica da sua aplicação na cidade do Recife
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A Lei “Maria da Penha” não criou novos tipos penais, mas conceituou e
identificou as formas de violência doméstica contra a mulher, que pode
ser física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Diante de conceito tão
abrangente, o legislador praticamente não deixou, no ordenamento jurídico
brasileiro, infrações penais livres da possibilidade de serem praticadas con-
tra a mulher no contexto doméstico e familiar. Outrossim, para que todas
essas infrações passassem a ser vistas como mais graves, no lugar de qua-
lificar individualmente cada uma delas, bastou o artifício legal da inserção
de uma agravante penal genérica no Código Penal brasileiro, para os crimes
praticados no contexto da violência doméstica contra a mulher.
Percebe-se, assim, que as modificações nos tipos penais incriminado-
res surgiram conforme a atual tendência política de se recorrer ao sistema
penal (criando novos crimes ou aumentando a pena de delitos preexisten-
tes) para solucionar um problema social, muito embora pesquisas não con-
sigam demonstrar a relação entre o aumento do rigor penal e a diminuição
de determinada criminalidade (CID; LARRAURI, 2009).
O maior enrijecimento legal, no entanto, está presente na redação do
artigo 41, da Lei n.º 11.340/2006 o qual afasta expressamente a aplicação da
Lei n.º 9.099/95 aos crimes praticados no contexto da violência doméstica
contra a mulher. Logo, independente do crime e pena, configurada a violên-
cia descrita, a possibilidade de utilização das medidas despenalizadoras será
afastada, o termo circunstanciado de ocorrência não poderá ser lavrado, o
inquérito policial deverá ser instaurado, o procedimento utilizado deverá ser
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como também, muitas vezes, põem em risco os próprios bens que preten-
dem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89).
No contexto dessa expansão e interpretações extensivas do direito pe-
nal que potencializou a criminalização de homens pela prática da violência
doméstica, resta saber, face a dados de pesquisas nacionais que revelam a
“democraticidade” da violência doméstica, se a Lei Maria da Penha é tão
democrática quando da criminalização masculina, ou se o homem crimi-
nalizado, dito “agressor”, preenche apenas o perfil dos selecionáveis pelo
sistema de justiça criminal.
4. Análise dos processos-crimes da 1ª Vara de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher do Recife nos anos de 2007 a 2010, sob o
enfoque criminológico crítico
4. Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho, com base no Relatório Anual do Conselho
Nacional de Justiça (2010) e em registros do Ministério Público do Rio Grande do Sul,
afirmam que os crimes mais praticados contra mulher no contexto da violência doméstica
e familiar no Brasil são as lesões corporais e a ameaça (cf. CAMPOS; CARVALHO, 2011,
p. 163-165).
5. Nos processos arquivados nos anos-base 2007 a 2008, as contravenções inseridas no
contexto da violência doméstica foram processadas e julgadas pelos JECrims. Já na segunda
parte da análise, referente aos anos-base 2009 e 2010, observou-se que, do universo
das 79 infrações analisadas, apenas 2 eram de contravenções penais, correspondendo a
2,5% daquelas. Ressalta-se, entretanto, que um dos processos-contravenção somente foi
conduzido pelo 1º JVDFM em virtude da necessária citação do réu por meio de edital, pelo
procedimento do Código de Processo Penal, uma vez que não prevista no âmbito da Lei
9.099/95.
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de trazer para esses movimentos uma base teórica que possa orientá-los em
suas opções político-criminais, já que constatou que esse sistema (enrijeci-
mento penal legislativo) não está apto, por si só, a garantir direitos, uma vez
que atua, muito mais, no plano simbólico, criando a sensação apenas ilusó-
ria de segurança jurídica. O que se pretendeu, pois, na presente pesquisa,
foi o aprofundamento do referencial teórico e empírico dessa constatação,
possibilitando um clareamento, aos movimentos feministas, das melhoras
formas para a realização de seus objetivos reais.
A violência doméstica ocorre devido ao sentimento de superioridade
do gênero masculino perante o gênero feminino. A mulher é controlada du-
rante toda a sua vida por homens (LARRAURI, 2008, p. 3). Primeiramente,
por seu pai, o qual se preocupa com a sexualidade da filha e exerce um
maior controle sobre a mesma. Posteriormente, a mulher é controlada pelo
marido quando depende economicamente deste, sofrendo restrições por
parte deste, dada a ideia de que o homem trabalha e a mulher deve obediên-
cia (LARRAURI, 2008, p. 4). Além disso, a mulher sofre controle de outras
mulheres e dela mesma, visto que as mulheres foram criadas com o pensa-
mento machista e recriminam umas às outras quando desviam da postura
“padrão”, assim entendida pela sociedade. O controle excessivo que envolve
a mulher, de certa forma, legaliza socialmente a violência doméstica, como
se ela pudesse e, até mesmo, devesse ser castigada por não se portar como
uma mulher ideal. O que se combate principalmente com a intervenção do
direito penal nesses casos é a subordinação da mulher e não sua diferença
em si do gênero masculino, pois tal subordinação está arraigada na cultura
da sociedade e não muda de uma hora para a outra, é preciso ser ensinada
através das gerações (MELLO; ALENCAR; MEDEIROS, 2012, p. 3).
5. Conclusão
Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – com-
bater a violência e estabelecer a paz social – e realiza outras funções não
declaradas, mas, na verdade, a qual perpetua aquela, o que Vera Andrade
denomina de “eficácia invertida, pois a eficácia das funções não declaradas
sobrepõe-se à das declaradas” (ANDRADE, 2003b, p. 74).
O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina
é ferramenta ineficaz no âmbito das políticas, uma vez que esse reproduz o
sistema social no qual está inserido - em sendo a sociedade culturalmente
patriarcalista, naturalmente o sistema o será.
Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha
não causaram mudanças na realidade da violência ora tratada, apenas ins-
tituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema, forjando
uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas.
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entre os anos de 2007 e 2010
BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral – Tomo II. Rio de Janeiro:
Forense, 1984.
CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Tensões atuais entre a
criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira. In:
CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada em
uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2011.
GOMES, Luiz Flávio. Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados
Estaduais e outros estudos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
TELES, Maria Amélia de Almeida. MELO, Mônica de. O que é violência contra
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