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ISBN 978-85-64022-60-7

Paulo Herkenhoff (Org.)

a amazônia no mar
a amazônia no mar
a amazônia no mar

Paulo Herkenhoff
(Org.)

CONCEPÇÃO E REALIZAÇÃO PATROCÍNIO MASTER

APOIO GESTÃO REALIZAÇÃO

2014
sumário

8 Pororoca – A Amazônia no mar 79 Palafitas em dois invernos:


Carlos Gradim do lago de Zurique à linha do Equador
Paulo Herkenhoff
11 Amazônia, a Pororoca e alguns
paradigmas possíveis Trecho de “Diário de Bordo do São José III
84
Paulo Herkenhoff (MCPUL – MA – Z6) do dia 19 de
setembro de 2013”
16 Manifesto do Rio Negro –  Bernardo Mosqueira
do naturalismo integral
Pierre Restany 90 A ideia é que a Amazônia é toda água
Walter Firmo
20 Enricar – perder tudo
Armando Queiroz 92 O imaginário de Luiz Braga – 
a contra-Amazônia (excertos)
22 Máquina de pensar a paisagem –  Paulo Herkenhoff
O esplendor dos contrários
Arthur Omar 107 A pororoca da arte como vida
Flávio L. Abreu da Silveira
27 A imagem instauradora
João de Jesus Paes Loureiro 108 A madeira e a aquarela forjam
o milagre da flutuação
42 Octavio Cardoso, Danielle Fonseca
inútil paisagem
Paulo Herkenhoff 112 Plus Ultra: outrasvagâncias
Oriana Duarte
56 Tinha eu 5 anos de idade
Walter Firmo 114 Plus Ultra (Nós, errantes)
Fernando Cocchiarale
58 Sobre a pele...
Cláudia Leão 128 Abaeté de miriti
Armando Queiroz
64 A solidão do Sujeito
Paulo Herkenhoff 130 Guy Veloso, o corpus em êxtase
Paulo Herkenhoff
70 Katie van Scherpenberg:
a ocupação do mundo pela pintura 138 Judeus na Amazônia
Paulo Herkenhoff Paulo Herkenhoff

76 Luz amazônica 142 Portfólio de luz


Todas as obras, objetos e documentos incluídos nesta publicação
Paulo Herkenhoff Luiz Braga
integram o acervo do Museu de Arte do Rio – MAR,
salvo quando houver expressa indicação em contrário.
153 A poesia como encantaria da linguagem 256 Ethos 324 Dirceu Maués: território em transe 404 Quase um sopro
João de Jesus Paes Loureiro Paulo Herkenhoff e trânsito Paulo Herkenhoff
Paulo Herkenhoff
161 Hinos dionisíacos ao Boto 258 Circunstâncias 406 Acácio Sobral e os desafios
João de Jesus Paes Loureiro Claudia Andujar 327 ...feito poeira ao vento... da matéria
Dirceu Maués Marisa Mokarzel
164 Otoni Mesquita, Oferenda da floresta 260 Mater Dolorosa, in memoriam
Rafael Cardoso Roberto Evangelista 332 Prece de amazonense em São Paulo 412 Esta é uma pintura sobre
Milton Hatoum o feminino
170 La pendaison, ou Campo de espera 264 Nasci às margens do Rio Caetés Thiago Martins de Melo
Paulo Herkenhoff Bené Fonteles 335 Cócócóooo có có có có?
Victor de La Rocque 418 Orlando Maneschy – o olhar
190 A última aventura: Romy Pocztaruk 266 Somos todos filhos da terra não dizente e dizer o dizer torcido
Ana Maria Maia
Milton Guran
346 Autorretrato Paulo Herkenhoff
Eder Oliveira
195 Arte de ciclos da borracha: 292 Vídeo nas aldeias 424 Livros de artista e outras
seringueiros artistas Filmografia na Coleção Pororoca (Fundo Z)
352 Berna Reale ou do corpo íntegro publicações no MAR
Paulo Herkenhoff entre a vileza e o vilipêndio
Paulo Herkenhoff
296 Ymá Nhandehetama 425 Erosão
208 Aquele menino poderia ter sido eu
Almires Martins Paulo Herkenhoff
Armando Queiroz 361 Corte seco
Eder Chiodetto
218 As fronteiras são invenções humanas 298 A libido e a cafuza 427 Sujeitos melancólicos
Paulo Herkenhoff Paulo Herkenhoff
(e os sonhos também) 367 Pistolagem na Amazônia
Adolfo Gomes Violeta Refkalefsky Loureiro
300 Elza Lima, taxonomia das distâncias 454 Amazônia e Modernidade (excertos)
246 Uma festa Baniwa na Pororoca Paulo Herkenhoff 380 Histórias às margens Paulo Herkenhoff
Thiago Oliveira Adriano Pedrosa
305 Nazaré do Mocajuba 475 Notas sobre o caminho
248 Há 300 anos, a voz do trovão Alexandre Sequeira 383 Açaí – cacho de signos Miguel Chikaoka
Cláudio de La Rocque Leal João de Jesus Paes Loureiro
316 Pintores cenógrafos, um olhar curioso 479 Projeto de aquisição para a
253 Fragmento de Sermão do Espírito Santo sobre o Pará do século XIX 398 Margalho Açu e a potência do precário Coleção Pororoca
Pe. Antônio Vieira Jussara Derenji Marisa Mokarzel
482 Suplemento da
254 Sermão da Primeira Oitava de Páscoa 320 A fotografia de Mariano Klautau 400 Horizontes dinâmicos de Osmar Dillon Coleção Pororoca
Pe. Antônio Vieira Paulo Herkenhoff Marília Palmeira (obras no acervo do MAR)
Pororoca – A Amazônia no m a r Carlos Gradim
diretor-presidente
do instituto odeon – mar

Como instituição capaz de se articular a partir de Paula Sampaio, Paulo Sampaio, Hélio Melo, Walda
seus próprios poros, o Museu de Arte do Rio vem for- Marques, entre outros.
mando seu acervo por meio de parcerias e diálogos Séries inteiras desses artistas são trazidas a públi-
contínuos com artistas, colecionadores e instituições. co, muitas delas exibidas pela primeira vez no Rio de
Situado no porto do Rio de Janeiro, o museu pro- Janeiro. Com grande presença da produção do Pará,
põe uma escuta ativa da sociedade brasileira. Talvez nossa Pororoca, como onda enorme que é, traz em
isso aconteça, fundamentalmente, porque o MAR está sua crista artistas de outras partes do Brasil. Gen-
aqui, diante do mar. E porque este local de vislumbre te que pensou e experimentou a Amazônia, como
nos desvela a vastidão cultural deste nosso país e nos Miguel Rio Branco, Rodrigo Braga e, fundamental-
lembra o compromisso que uma casa como a nossa mente, Claudia Andujar. Além das obras que ativam
deve sempre ter com a formação libertadora da ci- aspectos diversos dessa região sociocultural singu-
dadania. O Instituto Odeon, parceiro da prefeitura lar – como a paisagem, a história da violência social
da cidade na gestão do Museu de Arte do Rio, tem e a questão ambiental – Pororoca – A Amazônia no
papel crucial como gestor e propulsor de um acervo MAR articula ainda trabalhos, documentos e outros
crescente e plural. elementos que tratam da autorrepresentação e da in- Luciana Magno
Certos de que a responsabilidade de formar coleção terpretação das culturas indígenas do Brasil. Belterra, 2014
significa também contribuir para os processos de for- Exposição e catálogo são partes do exercício dia- Vídeo, looping
Doação da artista
mação de imaginários sociais, a política de constitui- lógico e contínuo do MAR, que atrai experiências e
ção de acervo do MAR é orientada por Núcleos Signi- experimentações para seu interior e se expande de-
ficativos, conjuntos de objetos que adensam sentidos volvendo-se à cidade e a seus visitantes. Reafirmando
No Museu de Arte do Rio não seria diferente. Por ou- Herkenhoff também tenha se dedicado ao processo
por estarem juntos, articulando-se por afinidades o legado do MAR para a educação, nossa expectativa
tro lado, a orientação de Herkenhoff tem sido levar o de formar um acervo amazônico no MAR e a implan-
e convergências, e também por transversalidades e é que Pororoca seja, como já se disse, onda ingente e MAR a assumir uma política de apresentação da arte tar uma política de exposições com a arte da região.
cortes. Nosso núcleo dedicado à visualidade amazô- transformadora para aquele que a encontra, toman- do Brasil no Rio de Janeiro sob um viés diversifica- Um viés por ele escolhido é a história da violência na
nica – conceito surgido na década de 1980, inicial- do-a como fenômeno do encontro de águas de dife- do e inédito. São suas histórias transversais. Propôs Amazônia, com as mostras individuais de Berna Rea-
mente em correlação com a cultura popular – é parte rentes naturezas, capaz de trazer outros mundos con- ao MAR a mostra Pernambuco Experimental, dando le, em 2013 e Armando Queiroz, em 2016. O MAR se
do encontro do MAR com outras regiões do Brasil, sigo. O que daqui deste MAR se vislumbra e se pede prosseguimento a Pernambuco Moderno, que ele reali- sente distinguido e muito agradecido pela adesão de
valorizando a contribuição do Norte brasileiro para é que tais mundos, artistas, falares e pensares, aspec- zou em Recife em 2006. Confiou-a a Clarissa Diniz. A artistas amazônicos na formação de nosso acervo, bem
sensibilidades que são comuns ao próprio país. tos, geografias, definições e indefinições possam ser política com relação ao Nordeste já se implantou com como pelas doações da Fundação Roberto Marinho,
Foi dessa ideia e desse desejo que surgiu a Coleção aprendidos e, simbolicamente, construídos por meio as mostras Turvações Estratigráficas, de Yuri Firmeza, da Fundação Romulo Maiorana, do Fundo Z, do Fun-
Pororoca, já partilhada com o público na mostra Vídeos da experiência direta da arte. Da arte, esta pororoca Tatu: Futebol, Adversidade e Cultura da Caatinga e do Orlando Nóbrega, do Museu do Índio, dos Fundos
da Coleção MAR, em 2013. E foi apresentada na ín- estrondosa, capaz de mudar as paisagens. Museu do Homem do Nordeste, de Jonathas de An- Luiz Paulo Montenegro, Guy Veloso, Max Perlingeiro,
tegra em uma exposição que se abriu ao público de Pororoca não é obra do acaso. Paulo Herkenhoff drade. Com o Centro-Oeste, abriu-se por meio da Adriana Varejão, Arthur Omar, Berna Reale, Patrícia
9 de setembro a 23 de novembro. Além disso, está frequenta a Amazônia desde o início da década de exposição e processo de residências Eu como Você, e Cicero Amaral, Emmanuel Nassar, Fernando Lindo-
parcialmente publicada neste catálogo. Assim, ex- 1980, quando trabalhou na Funarte e dirigiu o anti- do Grupo EmpreZa. Os grupos experimentais de São te, Luiz Braga, Marcio Roiter, Milton Guran, Orlando
posição e livro se organizam a partir da presença go Instituto Nacional de Artes Plásticas. Desde então, Paulo serão objeto da exposição Zona de Poesia Árida Maneschy, Maria Eduarda e Cesar Aché, Ricardo Faizi-
significativa de artistas cuja obra tem um de seus manteve um fluxo ininterrupto de contatos e viajou em 2015. Pororoca – A Amazônia no MAR (2014) e a liber, Pedro e Gabriel Chrysostomo, Grupo EmpreZa,
principais centros de representação e documentação mais de 50 vezes à região. Realizou inúmeras exposi- mostra de Berna Reale, Vazio de Nós (2013), foram Armando Queiroz e de dezenas de doadores esparsos.
no Museu de Arte do Rio – Berna Reale, Arman- ções lá e no Sudeste do país, além de ter escrito mais as primeiras experiências com a cultura do Amazo- Ao todo são cerca de 60 fontes doadoras de mais de
do Queiroz, Alexandre Sequeira, Danielle Fonseca, de 50 artigos sobre a cultura visual da Amazônia. nas. É um privilégio para nosso museu que Paulo 500 itens entre obras de arte e documentos históricos.

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Amazônia, a Pororoca Paulo Herkenhoff

e alguns paradigmas possíveis

A Amazônia interroga sobre as possibilidades de que do fantasma antitransparente. O Brasil que se enxer-
seu ambiente ecosófico possa propiciar paradigmas ga através dele é uma cultura subalterna a um centro
de análise e inquietação. Um museu que pense o Bra- simbólico. A totalização é totalitária. A luxúria dos
sil contemporâneo de forma múltipla, e sem centros corpos da escultura de Maria Martins – os corpos
de poder institucionalizados sobre a arte, precisa ca- em missão poético-antropológica evoluem do mito
minhar por vias transversais e compor seus circuitos. para a fantasmática do desejo desvelado. Evolução de
uma espécie amazônica. A subalternidade simbólica
1. Fantasmas da modernidade amazônica da Amazônia em Macunaíma de Mário de Andrade,
A modernidade geral brasileira produziu alguns fan- pois, afinal, como ilusões distorcem a realidade, são
tasmas sobre a cultura da Amazônia, que lhe servi- absorvidas pela maioria de seus leitores famintos
ram como uma espécie de reserva de estranhamento, de brasilidade. Em Ismael Nery, a arte era a superfí-
de Unheimliche freudiano – familiar e incongruen- cie da fantasmática sobre a qual emergiam imagens
te, ou seja, familiar ao imaginário do Sul sobre a oriundas da profundidade das dobras da alma.
Amazônia. Das Unheimliche é oposto ao que é fami-
liar – isto é, é oposto ao que é familiar à dominação 2. O “fluxo amazônico da linguagem” de Blaise
pela prosa e pela pintura, à cultura regente produ- Cendrars
zida no Sul do Brasil. Alguns fantasmas são memó- Muitas das fotografias dos coffee table books são me-
rias – como a obra de Oswaldo Goeldi, cuja infância ras interjeições de pasmo diante da grandeza da paisa-
viveu no Pará –, outros são aparições extemporâneas gem e da riqueza simbólica da Amazônia urbana, rural
(como a tela A Paraense, da paulista Anita Malfatti. e silvícola. Muitas são para bancos de imagens, dimen-
Estranha mulher, a “paraense”, mas não se conhece, são da economia bancária da cultura. Quase sempre,
entre suas imagens de mulheres do Sul, uma intitu- são também interjeições ora da boa alma hegeliana,
lada A Paulista, pois “aqui” de onde pinto – não es- ora da exploração do capital simbólico representado,
tamos falando da Amazônia – é o centro do mundo). pela cultura material e pelo patrimônio imaterial de
Goeldi escavou na madeira a matriz de seus fantas- povos indígenas e de segmentos de população, como
mas ‒ é a matéria amazônica com que este “outro”1 os ribeirinhos, que servem como uma espécie de “bom
do modernismo constrói sua cena de uma espécie selvagem” e de uma “reserva de alteridade”. Essas fo-
de “inconsciente amazônico”. A madeira tem uma tografias são quase reações emotivas fáceis, detonadas
relação fundante na narrativa de Cobra Norato, a na mecânica de apertar o disparador da câmera. O
hiperfantasmagoria de Raul Bopp, na de Martim “fluxo amazônico da linguagem” de Blaise Cendrars só
Cererê, de Cassiano Ricardo, não à toa ambas ilus- tem significado poético quando, em lugar das interjei-
tradas por Goeldi. Outras encenações são visitas de ções, ocorre no plano semântico.
outro mundo, como a fotografia de Mário de Andra-
de, o turista aprendiz. Alguns fantasmas são trans- 3. Animal symbolicum amazônico
parentes, i. e., são diáfanos. Diáfano, do grego, dia e A política da memória na Amazônia demanda, con-
phaínein – que se deixa enxergar através de si. Vê-se tra o esquecimento da violência, a construção de
Luiz Braga o quê? Fantasia. Mário de Andrade, por sua agenda história crítica do animal symbolicum amazôni-
Casa de Nagô, 1988
Cromo digitalizado 35 mm
secreta paulistocêntrica, trai a etimologia, inverten- co.2 Invocando a psicologia animal, Ernst Cassirer
Fundo Orlando Nóbrega do seu sentido. Sua narrativa do Brasil é o paradoxo reivindica a passagem de uma linguagem emocional,

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expressão reativa como nas interjeições fotográficas espécie de território fractalizado por diferenças, imo- 8. Visualidade amazônica borracha; (3) o modernismo e (4) as rupturas pós-
já abordadas, em direção à linguagem proposicional bilidade sócio-regional e sistemas de dominação na- Com a visualidade amazônica na década de 1980, a -modernas. São ciclos de consolidação política, co-
de discurso simbólico. Essa passagem, segundo Cas- cionais e intra-amazônicos. Isso nunca seria The Flag, antropologia visual como discurso do artista encon- nhecimento e produção simbólica.
sirer, requalifica a racionalidade do homem. de Jasper Johns. Talvez seja essa a mais verdadeira trou na região uma formulação singular que repre- O Estado do Grão-Pará foi a primeira modernida-
Aparentemente, a memória amazônica se constrói bandeira do Brasil, que vê o país concreto e múltiplo, sentou um salto intelectual no modo de articular o de: a arquitetura com rasgos neoclássicos de Giuse-
sobre o que está fora do território da história nos ter- que se recusa à totalização totalitária de um Mário pensamento sobre o visível. Hoje é menos literária. ppe Maria Landi e a ciência de Alexandre Rodrigues
mos de Hegel. No entanto, sobre a sociedade ágrafa, de Andrade. Bené Fonteles, o artista nascido no Pará, Ultrapassado o período de desenvolvimento concei- Ferreira pensada a partir de Sistema da Natureza, de
analfabeta, isolada na selva, está a história dos movi- nunca saiu do Brasil, nem Mário conseguiu não dei- tual e estabelecimento de alguns paradigmas, tornou- Lineu. Comparado ao resto do Brasil, o Grão-Pará
mentos físicos do projeto colonial e de suas sequelas xar o Brasil, pois visitou a Bolívia. -se mais sutil e fenomenológica. A necessidade de pombalino foi um salto singular de modernidade. No-
sobre o ethos brasileiro: a violência como solução de evitar o cânon que seduz, como modelo fácil, porque vas pesquisas sobre Landi, como a de Flávio Nassar,
conflitos, o esmagamento do mais fraco como res- 5. Fenomenologia pronto, aos artistas mais jovens. reiteram as bases paraenses da modernidade no Bra-
posta à diferença minoritária. O colonialismo ontem Por uma fenomenologia da Amazônia. Qual? A tão sil. Desde então, a luta emancipatória da Cabanagem
e as formas de colonialismo interno hoje são movi- evocada diversidade biológica sobrepõe-se omitin- 9. Treme-terra terá sido o maior episódio histórico da Amazônia até a
mentos do capital. do outra, não menos diversa – os múltiplos olhares A música popular indica que Belém é nossa porta borracha, que Armando Queiroz retoma em sua obra.
Se pensarmos no eixo Emmanuel Nassar e Marco- que se abrem de dentro da floresta ou sobre ela inci- para o Caribe. A Amazônia é transnacional. Aquele O auge do ciclo da borracha (ca. 1879-1912) é a se-
ne Moreira, podemos reconhecer uma tradição. Algo dem, no intento de atravessar mata cerrada. Portanto, universo é uma matriz para o Brasil profundo de Em- gunda modernidade. A nova consolidação territorial
que aconteceu no Brasil no pós-guerra com o impac- não há uma fenomenologia da Amazônia, mas mo- manuel Nassar. do Brasil incluiu o Acre, então parte da Bolívia. A Es-
to do neoconcretismo. A arte do Pará teria então uma dos como a região se apresenta e é apreendida pelo trada de Ferro Madeira-Mamoré é construída. A civi-
“curta história densa”, um processo que me parece sujeito. A teoria de Carlos Zílio, Claude Monet e a 10. A elasticidade e os territórios nacionais lização da borracha cria o segundo museu de ciências
ter ocorrido na Califórnia dos anos 1960 aos 1980 Amazônia,3 como provocação às visões essencialistas. A supraterritorialidade das etnias sobre as fronteiras do país. Sob a direção de Emílio Goeldi, com a Socie-
e em Brasília, após sua inauguração. Nassar funda a A pintura abstrata de Flavio-Shiró com a construção nacionais. Ianomâmis. dade Filomática convertida no Museu Paraense, o evo-
relação com a Amazônia como dimensão radical do de fantasmas no gesto e pântanos na matéria. O que é Um projeto de discussão da Amazônia levaria em lucionismo orienta os estudos da Amazônia. Ele não
“Brasil profundo” para a cultura contemporânea do a luz em diferenças como Armando Reverón, Oswal- conta fatores geopolíticos e suas consequências cul- era propriamente darwiniano, mas seguia a visão evo-
país – a gambiarra hoje de tantos. O peso de Nassar do Goeldi e Luiz Braga? As noites de Hélio Melo e turais. Cabe reconhecer que a região não coincide lucionista de Ernst Haeckel, que se correspondia com
se assemelha ao de Torres García invertendo a ideia Octavio Cardoso, entre o medo e a cautela em um e o com o espaço territorial brasileiro. O olhar supera Darwin, como aponta Nelson Sanjad. Essa moderni-
de “Norte” como significação de Sul no olhar do Rio silêncio do outro. Arte é subjetividade. fronteiras legais. A Amazônia poderia ser uma por- dade expande o sentido de cultura. Por que temos de
de La Plata na direção da Europa. Sua sintaxe e seus ta para compromissos maiores do Brasil com o con- tratar a pintura como base do modernismo brasileiro?
processos generativos do signo visual amazônico po- 6. Lugar e imensidão texto amazônico da Bolívia, do Peru, do Equador, da Por que não o urbanismo, como o de Belém?
pular, sobretudo urbano e ribeirinho, articulam-se Linha do Equador, entre-hemisférios, entreoceanos, Colômbia, da Venezuela e das Guianas. Outra forma A fotografia de Albert Frisch chega ao Alto Ama-
numa arte polissêmica. Sua política do signo rede- entremares. O Brasil caribenho – caraíba na etimo- ética de ver a Amazônia é pensá-la a partir dos ter- zonas em 1865. O Teatro da Paz (1878) e o Teatro
fine a luta contra a regência simbólica do país pela logia do canibal. Como comparar a Amazônia com a ritórios e das terras correspondentes aos povos indí- Amazonas (1896) não tinham rival no país na época.
centralidade determinada pelo Estado e pelo capital. imensidão íntima do sujeito? Uma questão que a obra genas que a habitam. A Amazônia é supranacional As reformas urbanísticas pensavam Belém como Pa-
A síntese de Marcone é na direção da economia se- de Elza Lima parece bordejar. Não existe a produção e transtemporal se pensarmos em culturas como os ris sob Haussmann. No Brasil, só o Rio adota o art
mântica, com tendência ao olhar construtivo sobre o amazônica nem uma produção amazônica – isso só é ianomâmis. A Amazônia brasileira se restringe à di- nouveau ou modern style com a intensidade de Be-
efêmero e o frágil. Seu desafio implicou compreender possível operacionalmente. O que ocorre é um rizo- visão do IBGE, ao conceito de Amazônia Legal. Inclui lém. Cabe comparar os antecedentes do moderno no
que precisava perceber Nassar profundamente para ma de individualidades. Maranhão, Tocantins, Mato Grosso e outras zonas. Pará e no Amazonas ao modernismo sulista e romper
dele diferenciar-se e, logo, enunciar-se de modo sub- Outra questão excruciante é a hipótese de colonia- com a vassalagem à geopolítica paulista, sobretudo
jetivo próprio por uma lógica de tensões distinta. 7. A invenção do olhar lismo interno na própria Amazônia. É preciso não da USP. Lá se degrada o processo brasileiro para con-
Paula Sampaio. “[...] lembrei de uma manhã dessas reproduzir para o interior da região o que acontece ferir a São Paulo o lugar de centro determinante do
4. Disparates de uma rosa dos ventos da Amazônia de dia claro em que encontrei Miguel. Na porta da com o Norte no contexto do Brasil. modernismo. Dada historiografia paraense tem sido
Sul, na Amazônia, é região do poder político e eco- casa (somos vizinhos), ele olhava firme pra algum lu- servil a tal modelo. Às vezes é preciso esquecer a Se-
nômico, entre o Rio de Janeiro e São Paulo na moder- gar que eu não via e me disse: ‘Hoje furei meus olhos’. 11. Portas de modernidades do Brasil: ciência e arte mana de Arte Moderna – afinal, ela não foi capaz de
nidade, isto é, Sudeste do Brasil, antes de Brasília. N Como assim?! ‘Com espinhos de tucumã’, ele falou. no Grão-Pará setecentista e as miragens do ciclo da incluir o paraense Ismael Nery. Desde os anos 1980, o
não é Norte nem E é Este ou Leste. Ambos configu- Esperei pela cegueira. Nasceu Hagakure, no dia em borracha no inferno da seringa. livro de Célia Bassalo sobre o art nouveau em Belém
ram regiões do Brasil profundo. Por isso, é necessário que Miguel Chikaoka furou seus olhos. Instalação/ A modernidade da Amazônia desdobrou-se em ci- propunha a ruptura dessa opacidade. Jussara Derenji
fraturar a bandeira brasileira, recompor seus cacos fotografia/filosofia… Pra mais ver e pensar, pra que- clos, entremeados por saltos e estagnação: (1) acon- também avançou o debate. A arquitetura de ferro em
em articulação cambiante de obra aberta, como uma rer ter feito.” tecimentos iluministas no Grão-Pará; (2) o ciclo da Belém é outro signo de modernidade, a “rocinha” é o

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modelo arquitetônico amazônico que incorpora con- metrópole. A caboquice, então, só faria sentido vis-
forto ambiental a padrões úteis e estéticos. ta como hibridismo vivo e em movimento, que não
O terceiro ciclo indaga o que foi o modernismo na se retém nem pode ser retido, mas isso não significa
Amazônia. A tese “Eternos modernos: uma história estar aberta para ser violentada. Que as mudanças se-
social da arte e da literatura na Amazônia, 1908- jam para a emancipação coletiva e a realização subje-
1929”, de Aldrin Moura de Figueiredo, confronta tiva. Que o caboclo conflua para a universidade, para
o real e a vassalagem universitária. A tese, feita na os centros de aprendizado técnico, para as escolas de
Unicamp, comprova que a ruptura do modelo não arte. Pensemos na população afro-americana. A ge-
ocorrerá nas universidades da cidade de São Paulo, ração do jazz era uma, mas a dos artistas contempo-
onde o interesse em consolidar a presente hegemo- râneos é outra, com Melvin Edwards, Martin Puryear,
nia paulistana se sobrepõe a todo questionamento. David Hammons, Lorna Simpson, Kara Walker ou
Campinas é a alternativa. A exposição Pernambuco Glenn Ligon, que produzem uma arte que configu-
Moderno foi minha ocasião para demonstrar a exis- ra dimensões do presente da sociedade americana. É
tência de modernidade e vanguarda pernambucanas uma relação entre continuidade e descontinuidade
que antecipavam e sustentavam o eixo Rio-São Paulo muito interessante. Cabe também pensar a saída lite-
ou diferiam da visão de Mário de Andrade. Assim, rária de Milton Hatoum...
trabalhei com o meio acadêmico pernambucano e
publiquei no Journal of Decorative Arts (1994) ensaio 13. Selva
sobre a imagem da selva e o padrão marajoara no Se a Amazônia é símbolo de selva, por que se aban-
modernismo brasileiro. donou o conceito “capitalismo selvagem” a partir da
instalação do neoliberalismo?
12. Violência
A violentação da violência é uma prática da arte na 14. Verbo
Amazônia (Roberto Evangelista, Cildo Meireles, Em- Pensar. Agir. Produzir. Debater. Compartilhar. Prepa-
manuel Nassar, Bené Fonteles, Miguel Rio Branco, rar-se. Planejar. Fazer trocas. Fazer autocrítica. Pre-
Sebastião Salgado, Ary Souza, Alberto Bitar, Arthur servar. Fazer pressão. Reivindicar. Articular. Aliar-se.
Leandro, Armando Queiroz, Berna Reale, Eder Oli- Viajar. Voltar. Usar a internet. Não compactuar com o
veira, Victor de la Rocque) [como em Michel Fou- colonizador. Opor-se. Dar nome à opressão. Resistir.
cault]. Não compactuar com o monopólio cultural.

13. Gueto 15. Contra a natureza


A Amazônia já pôde ser vista como o Grande Gue- Aflições à natureza: a coivara tradicional e a tapi-
to. Hoje, o capital mercantil do mercado de arte quer ragem no equilíbrio ecológico entre as sociedades
esta parte da produção porque a amazonidade tor- tradicionais versus a grilagem, o genocídio, o crime
nou-se fator que agrega valor ao objeto de arte. encomendado – o capital é voraz – em múltiplas for-
A Amazônia se desfolha múltipla. Pensá-la como mas de vampiragem social.
uma totalidade é arrogância e totalitarismo. A cabo-
quice é transtemporal, embora seja dinâmica. Tem 1 Expressão de Carlos Zílio.
ritmo próprio em fricção com as rápidas mudanças 2 Ernst Cassirer introduz a ideia de animal symbolicum em An essay on man. New
no mundo que afetam a vida cotidiana. Contra o Haven: Yale University Press, 1944. p. 26.
folclorismo e contra a visão urbanoide de elogio da 3 In: Artes visuais na Amazônia. Belém: Funarte/Semec, 1985.

Armando Queiroz
Midas, 2010
Vídeo, 9'59"
Fundo Armando Queiroz

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