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A CIDADE ANTIGA

Fustel de Coulanges

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Tradução
FERNANDO DE AGUIAR

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Martins Fontes
São Paulo I995
INTRODUÇÃO
14

Mas quê esperanças nós poderemos alimentar de vir a alcançar


com o conhecimento desse passado distante? Quem nos dirá hoje como
pensavam os homens de dez ou quinze séculos antes da nossa era? Po-
c'er-se-á encontrar assim facilmente oque tão imaterial etão fugitivo se
nos revela como ascrenças e as idéias? Sabemos realmente como pensa LIVRO PRIMEIRO
ram os arianos do Oriente há trinta e cinco séculos; más conhecemo-lo
pelos hinos dos Vedas, com certeza, muito mais antigos ainda no tempo, Crenças antigas
epelas leis de Manu, onde, apesar de mais recentes, ainda podemos dis-
tLuir vestígios de época bastante afastada do tempo em que as adota
ram Mas onde estão os hinos dos antigos helenos? Tiveram estes, tanto
como os itálicos, cantos antigos, velhos livros sagrados; mas nada, de tu
do isso chegou até nossos dias. Que conhecimento poderemos, pois,
mostrar ter dessas gerações, quando estas não nos legaram um umeo
texto esoito?
felizmente opassado nunca morre completamente para ohomem. CAPITULO 1

Ohomem pode esquecê-lo, mas deste passado guardará sempre a recor


dação Com efeito, tal como se apresenta em cada época, ohomem e o Crenças sobre a alma e sobre a morte
produto eoresumo de todas as suas épocas anteriores. Ese cada homem
auscultar asuaprópria alma, nela poderá encontrar edistinguir as dije- Até os últimos tempos da história da Grécia e de. Roma, vemos persistir
rentes épocas, eoque cada um dessesperíodos lhe legou. entre o homem do povo determinado conjunto de pensamentos e de
Observemos os gregos do tempo de Pêricles, ou os romanos do tempo usos, por certo datando de época muito afastada, mas onde já podere
de Cícero- estes homens trazem consigo os sinais mais autênticos e os mos'reconhecer as idéias primitivas concebidas pelo homem quanto à
vestígios mais certos dos séculos mais recuados. Ocontemporâneo de Cí sua própria natureza, à sua aima, e sobre o mistério da morte.
cero (falo principalmente do homem do povo) tem aimaginação prenhe Por muito que remontemos na história da raça indo-européia, de
de lendas- estas lendas sobrevivem a tempos muito antigos esao, neste que as populações gregas e itálicas descendem, notamos não ter esta
homem 'testemunho da maneira de pensar desses tempos idos. Ocon raça acreditado que tudo se acabasse com a morte, paxá o homem,
temporâneo de Cícero sewe-se de uma língua cujos radicais sao infini depois desta curta vida. As mais antigas gerações, muito antes ainda de
tamente antigos; esta língua, exprimindo os pensamentos de épocas ve existirem filósofos, acreditavam já em uma segunda existência passada
tustas foi-se modelando afeição dessa alta antigüidade,, conservando o para além desta nossa vida terrena. Encaravam a morte, não como
cunho transmitido de século em século. Osentido intimo de um radical decomposição do ser, mas como simples mudança de vida.
node desta sorte revelar-nos alguma tradição antiga ou certo antigo uso; Porém, em que lugar e de que maneira se viveria esta segunda exis
as idéias evoluíram eas recordações apagaram-se no tempo, mas as pa tência? Acreditava-se que o espírito imortal, uma vez evadido do corpo,
lavras ficaram, testemunhas imutáveis de crenças desaparecidas. O ia dar vida a um outro corpo? Não; porque a crença na metempsicose
contemporâneo de Cícero pratica ritos nos sacrifícios, nos funerais, nas nunca conseguiu enraizar-se nos espíritos das populações grcco-itálicis;
ceLônias de casamento; estes ritos são de uma idade anterior asua e não era essa também a crença seguida entre os antigos arianos do Orien
aprova de tudo oque hoje afirmamos temo-la no fato de que• os no a te, porque os hinos dos Vedas a isso se opunham. Acreditava-se que
nao correspondem às crenças que esse homem mostra ter. Mas aral e o espírito subisse ao céu, para a região da luz? Também não, porque o
mos-de perto os ritos praticados por esse mesmo homem ou as formulas pensamento de que as almas entravam em morada celeste é de época
por elo recitadas, eseguramente teremos encontrado os vestígios de tudo relativamente moderna no Ocidente; a habitação celeste apenas se consi-
rm que os homens acreditaram quinze ou vinte séculos antes. 15
CRENÇAS ANTIGAS CRENÇAS SOBRE A ALMA E SOBRE A MORTE 17
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derava recompensa dada a alguns grandes homens e aos benfeitores da tal ponto se acreditava em que o mesmo ser ia continuar a viver debaixo
humanidade. De harmonia com is mais antigas crenças dos itálicos e dessa terra e lá conservando o usual sentimento de bem-estar e de sofri
dos gregos, não era em um outrc mundo que a alma ia passar essa sua mento! Escrevia-se sobre o túmulo para afirmar que homem ali repou
segunda existência; ficava perto dos homens, continuando a viver na sava: costume que sobreviveu a estas crenças e que, transmitindo-se de
terra, junto delesí1). século em século, chegou até os nossos dias. Empregamo-lo ainda, em
Acreditou-se mesmo, durai te maito tempo, que nesta segunda bora hoje ninguém acredite que um ser imortal repouse no túmulo. Mas
existência a alma continuava associada ao corpo. Nascida com o corpo, na antigüidade supunha-se tão firmemente que o homem ali vivia sepul
a morte não os separava; alma i5 corpo encerravam-se juntamente no tado que nunca se deixava de, juntamente com o homem, se enterrar os
objetos os quais se julgava viesse a ter necessidades: vestidos, vasos,
mesmo túmulo.
Por mais antigas que sejam estas crenças, delas nos ficaram teste armas(4). Derramava-se vinho sobre o seu túmulo para lhe mitigar a
munhos autênticos. Esses testemunhos estão nos ritos fúnebres, sobrevi sede; deixavam-lhe alimentos para o apaziguar na fome(5). Degolavam-
ventes em muito às crenças primitiva;, e, porque certamente nascidos -se cavalos e escravos, pensando que estes seres, encerrados com o mor
com estas, podem portanto melhor faz;r-nos compreendê-las. to, o serviriam no túmulo, como o haviam feito durante a suavida(6).
Os ritos fúnebres mostram- los claramente como, quando se colo Depois da tomada de Tróia, os gregos regressaram ao seu país, cada um
cava um corpo no túmulo, se acreditava em que, ao mesmo tempo, se deles conduzindo a sua bela cativa, e tendo Aquiles, morando já debaixo
punha lá algo vivo. Virgílio, descrevendo sempre com tanta precisão c da terra, reclamado também a sua, deram-lhe Polixcna(7).
escrúpulo as cerimônias religiosa, ter nina asua narrativa dos funerais Um verso de Píndaro guardou-nos certo curioso testemunho destes
de Polidoro por estas palavras: "Encerramos a alma no túmulo". Igual pensamentos das gerações antigas. Frixo fora obrigado a deixar a Gré
expressão se encontra em Ovíd.o e em Plínio, o Moço; não queremos cia e fugira para a Cólquida. Morreu neste país; mas embora morto que
dizer que tenha isto correspondido propriamente às idéias formadas por ria regressar à Grécia. Aparece então a Pélias e ordena-lhe que vá à Cól
estes escritores sobre a alma, nas somente afirmar que, desde tempo quida para dali trazer a sua alma à Grécia. A sua alma sentia sem dúvida
imemorial, isto mesmo se percetuar.i na linguagem, atestando deste a saudade do solo pátrio, do túmulo da família; mas, vivendo ligada aos
seus restos corporais, evidentemente que não poderia abandonar a
modo crenças antigas e correntes(2).
No final da cerimônia fúnebre h «via o costume de chamar por três Cólquida sem os trazer consigo(8).
vezes a alma do morto, ejustamente pelo nome que este havia usado em Desta crença primitiva surgiu para o homem a necessidade de uma
vida. Faziam-lhe votos de vida feliz debaixo da terra. Dizia-se a ele por sepultura. Para a alma se fixar na morada subterrânea destinada a
três vezes: Passa bem. E acresci ntava-se: Que a terra te seja leveiJ). A esta segunda vida, impõe-se, igualmente, que o corpo, ao qual a alma
está ligada, seja coberto de terra. A alma que não tivesse o seu túmulo,
(1) Sub terra consevant relique m vita magi mortuorum. Cícero, Tusc, I, 16.
(4) Eurípides, Alceste, 637, 638; Orestes, 1416-1418. Virgílio, En., VI, 221;
Esta crença estava tão arraigada, acre: centa ícero, que, mesmo quando se cstabele- XI, 191-196. —O antigo uso de levardádivas aos mortos atesta-se, quanto a Atenas,
ecu o uso de queimar os corpos, aii ida cn tão se continuou a crer que os mortos cm Tucídidcs, II, 34; Eisphérei tói heautoá hékastos. A lei de Sólon proibia enterrar
mantivessem a vida debaixo da terra. - Cf. E urípides, Alceste, 163 ;Hécuba, passim.
mais de três vestidos com o morto (Pltitarco, Sólon, 21). Luciano fala ainda deste
(2) Virgílio, En., III, 67:Anim imque sepulcro condimus. - Ovídio, Fast., V, uso: "Que de vestidos c de adornos têm sido queimados, ou enterrados com os mor
451: Túmulo fraternas cotididit umb Plínio, Ep., Vil, 27: Manes rite conditi.
•as. -
tos como se eles devessem servir-se deles debaixo da terra!". — Ainda nos funerais
- A descrição de Virgílio refere-se ; o uso dos cenotáfios; admitia-se que, quando de César, cm época de grande superstição, este uso antigo se observou; levaram-se à
não se pudesse encontrar o corpo de i ente, se fizesse certa cerimônia reprodu-
im par
fogueira os munera, vestidos, armas, jóias (Suetônio, César, 34); Cf. Tácito, Ann.,
zindo exatamente todos os ritos da s< pultur í e acreditava-se que se encerrava a alma
no túmulo à falta do corpo. Eurípid :s, Hei •na, 1061, 1240. Escoliastes, ad Pindar.
HI.3.
(5) Eurípides, Ifigênia em 'Táurida, 163. Virgílio, En., V,76-80; VI, 225.
Pyth., IV, 234. Virgílio, VI, 505, XII 214. (6) Ilíada, XXI, 27-28; XXIII, 165-176. Virgílio, En., X, 519-520; XI, 80-84,
(3) Ilíada, XXI11, 221. Eurípi- les, Al ceste, 479: Koúpha soi khthôn ephánô-
f/ic»i pésoi. Pausânias, II, 7, 2. -'Avi atquí vale, Catulo, C. 10. Sérvio, adAeneid., 197. - Os mesmos usos na Gália. César, B. G., V, 17.
52; Metam., X, 62. - Sit tibi terra levis; (7) Eurípides, Hécuba, 40-41; 107-113; 637-638.
II, 640; III, 68; XI, 97. Ovídio, Fast ., IV, f
(8) Píndaro, Pythic, IV, 284, ed. Heyne; ver o Escoliastes.
tenuem et sitiepondere terram; Juvei ai, VI) ,207; Marcial, l, 89; V, 35; IX, 30.
CRENÇAS ANTIGAS CRENÇAS SOBRE A ALMA E SOBRE A MORTE 19
18

não teria morada. Era errante. Em vão aspiraria ao repouso que amava, Temia-se menos a morte do que a privação de sepultura. Porque na
depois das agitações edos trabalhos desta vida; ficava condenada aerrar sepultura está o repouso e a bem-aventurança eterna. Não nos devemos
sempre sob a forma de larva ou de fantasma, sem jamais parar, sem surpreender quando vemos os atenienses a mandarem matar aqueles
nunca receber as oferendas e os alimentos de que tanto carecia. Desgra generais que, depois de uma vitória no mar, negligenciaram o enterra
çada cedo essa alma se tornaria malfazeja. Atormentaria então os vivos, mento dos seus mortos. Estes generais, discípulos dos filósofos, talvez
enviândo-lhes doenças, devastando-lhes as searas, atormentando-os com já distinguissem entre alma e corpo, e, deste modo, por não acreditarem
aparições lúgubres, para deste modo os advertir de que tanto o seu que a sorte de uma estivesse presa à do outro, teriam assim pensado que
corpo como ela própria queriam sepultura. Edeste motivo vieram-nos ao cadáver tanto importaria decompor-se na terra como na água. Não
as crenças nas almas do outro mundo(9). Toda a antigüidade se per tinham portanto querido arrostar com a tempestade só pela vã formali
suade de que, sem sepultura, a alma vive desgraçada eque so pelo seu dade de recolher e enterrar os seus mortos. Mas a multidão, mesmo em
enterramento adquiria a felicidade para todo o sempre. Nâo era por Atenas, presa da velha tradição, imediatamente vem acusar estes mes
mostrar a dor que se realizava a cerimônia fúnebre, mas para repouso mos generais de impiedade, e fá-los morrer. Se pela sua vitória estes
e felicidade do morto(10). generais haviam salvado Atenas, pela sua negligência tinham perdido
Atentemos bem ao fato de não bastar que o corpo fosse deposi milhares de almas. Os parentes dos mortos, pensando no longo suplício
tado na terra. Era ainda preciso observarem-se certos ritos tradicionais que estas almas viriam a sofrer, vieram ao tribunal em trajes de luto e
e pronunciarem-se determinadas fórmulas. Encontramos em Plauto a reclamaram vingançaí1^).
história de uma alma do outro mundo(U); história de certa alma Na cidade antiga a lei pune os grandes culpados com um castigo
andando forçosamente errante, porque tinham enterrado o seu corpo sempre considerado terrível: a privação da sepultura(15). Punia-se-
sem a prática dos ritos. SuetÔnio conta-nos que, tendo sido enterrado o -lhes assim asua própria alma, inílingindo-lhe um suplício quase eterno.
corpo de Calígula sem esse ato de a sua sepultura se haver feito acom É preciso observar ter tido ainda aceitação entre os antigos uma
panhar da cerimônia fúnebre, a sua alma andou errante e apareceu aos outra crença sobre o destino dos mortos. Concebiam elas certa região,
vivos até o dia em que se decidiu desenterrar o corpo e dar-lhe sepul subterrânea também, mas infinitamente mais vasta do que o túmulo, e
tura 'segundo os ritos(12). Estes dois exemplos revelam claramente a na qual todas as almas, apartando-se dos seus corpos, vinham viver jun
importância atribuída pelos antigos às fórmulas eaos ritos da cerimonia tas, sendo as penas e as recompensas distribuídas segundo a conduta
fúnebre. Uma vez que, sem eles, as almas andavam errantes e apareciam que o homem tivera durante a vida. Mas os rituais da sepultura, tais
aos vivos, éporque só mediante asua rigorosa observância se fixavam e como acabamos de descrevê-los, surgem-nos em manifesto desacordo
encerravam nos túmulos. Ecomo existiam fórmulas com esta virtude, com esta outra crença: prova certa de que na época em que esses ritos
os antigos também possuíam outras fórmulas tendo eficácia contraria; se estabeleceram ainda não se acreditava no Tártaro e nos Campos Elí-
ade evocar as almas e fazê-las sair momentaneamente do sepulcro. sios. O primeiro juízo formado por estas antigas gerações foi o de o ser
Pode ver-se em escritores antigos como o homem constantemente
vivia atormentado pelo receio de que, depois da sua morte.nao se dês o meu corpo aos cães junto aos navios dos gregos; aceita o ouro que meu pai te
observassem tais ritos. Era isto motivo para amargas inquietações^). oferecerá em abundância e entrega-lhe o meu corpo, a fim de que os troianos e
troianas me concedam a minha parte nas honras da fogueira". —No mesmo sentido,
(9) Cícero, Tusculanes, I, 16. Eurípides, Tróia, 108!>• H«ódoto V92^Virgí- em Sófocles, Antígona enfrenta amorte "para que seu irmão não fique sem sepultu
lio VI 371. 379. Horário, Odes, 1, 23. Ovídio, Fast, V, 483. Phmo, Eptst, VII. 27. ra" (Sóf., Antígona, 467). - Igual sentimento semostra em Virgílio, IX, 213; Horá
cio, Odes, I, 18, v. 24-36; Ovídio, Heróides, X, 119-123; Tristes, III, 3, 45. - Igual-
SuetÔnio, Calig., 59. Sérvio, ad Aeneid., III, 63. mente, nas maldições, o que de mais horrível se podia desejar ao inimigo era que
(10) Ilíada, XXII, 358;Odisséia, XI, 73. morresse sem sepultura (Virgílio, Eneida, IV, 620).
(11) Plauto, Afoifelarw, III, 2. ,„...«,-,.,
12 SuetÔnio, Calígula, 59: Satis constat, priusquam idfieret, hortorum cus- (14) Xenofonte, Helênicas, I, 7.
tndes (15) Esquilo, Sete contra Tebas, 1013. Sófocles, Antígona, 198. Eurípides,
t0des umbris
mm inquietatos.
inquie . . nullam
^ ^noctem
^ sim^aliquo^ terrore transactam.
vencedor que este nao o Fen., 1627-1632. —Cf. Lísias, Epitaf., 7-9. Todas as cidades antigas acrescentavam
prive de sepultura: "Eu te suplico de joelhos, pela tua V1da. por teus pa,s, que nao ao suplício dos grandes criminosos o de privação da sepultura.

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CRENÇAS SOBRE A ALMA E SOBRE A MORTE 21


20 CRENÇAS ANTIGAS
para fazer chegar os alimentos sólidos até ao morto; e mais no de que,
humano viver no túmulo, a alm i não se separar do corpo e fixar-se quando se lhe imolava alguma vítima, todas as suas carnes eram queima
naquela parte do solo onde estiv essem enterrados os ossos. O homem das para que nenhum vivo delas pudesse compartilhar; no fato de se
não tinha nenhuma conta a prestí x da sua vida anterior. Uma vez encer- pronunciarem certas fórmulas consagradas e destinadas a convidar o
rado no túmulo, nada tinha a esperar, nem recompensas, nem castigos, morto a comer e a beber; também porque, embora toda a família assis
Opinião grosseira, mas revelando, ia sus origem, a noção de vida futura, tisse a essa refeição, nem sequer mexia naquelas iguarias; finalmente,
O ser que vive debaixo da t< rra n;io se encontra tão despreendido porque, ao retirarem-se, tomavam grande cuidado em deixar um pouco
do humano que não tenha necess idade de alimento. Por isso, em certos de leite e alguns pastéis nos vasos, considerando-se grande impiedade
dias do ano, se leva a refeição a ca iatúriulo(16). quando algum ser vivo tocasse nesta pequena provisão apenas destinada
Ovídio e Virgílio dão-nos deserção desta cerimônia, cujo uso às necessidades do morto,
permanecera intacto até à sua <poça, posto que as crenças já então Estas velhas crenças persistiram durante longo tempo e ainda entre
tivessem sé alterado. Descrevem-) ios o costume de se cercar o túmulo os grandes escritores da Grécia se encontra a sua manifestação. "Verto
de grandes grinaldas de plantas e de flores e de sobre o mesmo se colo- sobre a terra do túmulo, diz Ifigênia, de Eurípedes, o leite, o mel, o
carem pastéis, frutas, sal e ainda di se verterem o leite, o vinho e algu- vinho, porque é com isto que os mortos sentem prazer"(18). —"Filho
mas vezes o sangue de uma vítima ;i7). de Peleu, diz Neoptolomeu, recebei esta bebida tão doce aos mortos;
Enganar-nos-íamos muito se acreditássemos ver nesta refeição vem e bebe este sangue"(19). Elecfra derrama as libações e diz: "A bebi
fúnebre apenas uma espécie de ccmemoração. O alimento que a família da penetrou a terra, meu pai a recebeu"(20). Vide a oração dirigida por
lhe leva destina-se efetivamente ;10 morto, e exclusivamente a este. A Orestes a seu pai morto: "Oh meu pai, se eu viver, tu receberás ricos
prova do que aqui afirmamos terr o-la no fato de o leite e o vinho serem banquetes, mas se eu morrer, não tomará:, nais a tua parte nas refeições
derramados sobre a terra do tún mio; ainda no de se abrir um buraco deliciosas de que se nutrem os mortos"(21). As zombarias de Luciano
(16) Isto chamava-se em latim in "erias f irre, parentare, ferre solemnia. Cícero,
provam-nos subsistirem estes usos ainda em seu tempo: "Os homens
De legibus, II, 21: Majores nostri moi tuis p.irentari voluerunt. Lucrécio, III, 52: imaginam que as almas vêm, lá de baixo, aojantar que se lhes leva, que
Parentant et nigras mactant pecudes et ManibiS divis inferias mittunt. Virgílio, En., se regalam com o aroma das iguarias e bebem o vinho vertido sobre as
VI, 380: Túmulo solemnia mittent; 1X, 21*: Absenti ferat inferias decoretque sepulturas"(22). Entre os gregos, defronte de cada túmulo, existiasem
sepulcro. Ovídio, Amor, I, 13, 3: Ann <m soltmni caede parentat avis. —Estas ofe- pre o lugar destinado à imolação da vítima e à colocação da sua car-
rendas, a que os mortos tinham direitc , chan.avam-se Manium jura. Cf. Cícero,De ne(23), o túmulo romano tinha mesmo a sua culinai2*), espécie de
legibus, II, 21. Cícero refere-se a elas >io Pro Flacco, 38, e na primeira Filípica, 6.
—Estes usos eram ainda observados nc tempD de Tácito (Hist., II, 95);Tertuliano
ataca-os como se estivessem ainda em pleno ngor no seu tempo: Defunctis paren- (18) Eurípides, Ifigênia em Táurida, 157-163.
tant, quos escam desiderare praesurru int {Di ressurr. camis, I); Defunctos vocas (19) Eurípides, Hècuba, 536;Electra, 505 e segs.
securos, si quando extra portam cum c•bsonii: et matteis parentans adbusta recedis (20) Esquilo, Coêforas, 162.
[De testim. animae, 4). (21) Esquilo, Coêforas, 432-484. —Em Persas, Esquilo atribui a Atossa as
(17) Solemnes tum forte dapt 'jet trstia dona idéias dos gregos: "Trago a meu esposo estas iguarias que agradam os mortos, o
Libabat cineri Androma> :he manesque vocabat leite, o mel dourado, o fruto da vinha; chamemos a alma de Dario e derramemos
Hectoreum ad tumulum. estas bebidas que a terra beberá e penetrarão até os deuses de lá de baixo" (Persas,
(Virgílio, En., III, 301-303). 610-620). —Quando as vítimas eram oferecidas às divindades do céu, a carne era
- Hic duo rite mero liba ns carchesia Baccho comida pelos mortais; mas, quando oferecida aos mortos, a carne era completa
Fundit humi, duo lacte i tovo, cuo sanguine sacro mente queimada (Pausânias, II, 10).
Purpureisque jacitflores ac taliifatur: (22) Luciano, Caron, 22. -Ovídio, Fastos, II, 56*>: Posito pascitur umbra
Salve, sancte parens, àni naeqw. umbraeque patemae. cibo,
(Virgílio, £*., V, 77-81). (23) Luciano, Caron, 22: "Cavam valas junto aos túmulos e ali preparam
Est honor, et tumulis; ai\imasplacate paternas, iguarias para os mortos".
. . . Et sparsae fruges paicaque mica salis (24) Festus, v.° Culina: Culina vocatur locus in quo epulae infunere combu-
Inque mero mollita cere ; violai que solutae. runtur.
(Ovídio, Fast.,\ 1,535-542).

li.
CRENÇAS ANTIGAS O CULTO DOS MORTOS 23
22

cozinha de aspecto singular e unicamente destinada ao uso do morto. Os mortos eram tidos como entes sagrados(27). Os antigos davam-
Plutarco conta como, depois da batalha de Platéias, os guerreiros mor -lhes os epítetos mais respeitosos que podiam encontrar no seu vocabu
tos foram enterrados no lugar de combate, tendo-se os plateanos com lário; chamavam-lhes bons, santos, bem-aventurados(28). Tinham por
prometido a oferecer-lhes todos os anos arefeição fúnebre. Consequen eles tanta veneração quanto o homem pode ter pela divindade que ama
temente, no dia do aniversário da batalha, estes iam em grande procis ou teme. Para o seu pensamento cada morto era um deus(29).
são conduzidos pelos seus magistrados mais notáveis, ao outeiro onde Esta espécie de apoteose não era somente apanágio dos grandes
repousavam estes mortos. Ofereciam-lhes leite, vinho, óleos, perfumes e homens; entre os mortos não havia distinção de pessoa. Cícero diz-nos:
imolavam uma vítima. Quando alinhados os alimentos" sobre o túmulo, "Os nossos antepassados quiseram que os homens que tivessem deixado
os plateanos pronunciavam certa fórmula ritual pela qual convidavam os esta vida fossem contados no número dos deuses"(30). Não era mesmo
mortos a tomarem essa refeição. Esta cerimônia realizava-se ainda ao necessário ter sido homem virtuoso; tanto era deus o mau como o ho
tempo de Plutarco, que pode assistir-ao seiscentésimo aniversário do mem de bem; somente o mau continuaria na sua segunda existência
acontecimento^). Luciano fala-nos no conceito fundamental de todos com todas as suas más inclinações já reveladas durante a sua primeira
estes usos: "Os mortos nutrem-se dos manjares que lhes colocamos vida(31).
sobre o túmulo e bebem do vinho ali vertido por nós; de modo que um Os gregos davam de bom grado aos mortos o nome de deuses sub
morto a quem não se ofereça coisa alguma está condenado à fome terrâneos. Em Esquilo, o filho invoca seu falecido pai por estas palavras:
perpétua"(26). , c. '•'Oh tu que és um deus sob a terra". Eurípedes, falando de Alceste,
Estas crenças são muito antigas e apresentam-se a nos como talsas acrescenta: "Junto do teu túmulo o viandante parará e dirá: Aqui vive
e ridículas. No entanto exerceram o seu domínio sobre o homem e agora a divindade bem-aventurada"(32). Os romanos davam aos mortos
durante muitas gerações. Governaram as almas; veremos mesmo como, o nome de deuses manes. "Prestai aos deuses manes quanto lhes é devi
dentro em pouco, regeram as sociedades ecomo amaior parte das insti do, diz Cícero, são homens que abandonaram esta vida terrena; conside
tuições domésticas esociais dos antigos teve ali as suas origens. rai-os como seres divinos"(33)É
Os túmulos eram os templos destas divindades. Por isso tinham a
inscrição sacramentai Dis Manibus, em grego Theoíz khthomois. O deus
vivia enterrado no seu túmulo, Manesque sepulti, no dizer de Virgí-
(27) Hótion tous metestôtas hieroüs nomízein, Plutarco,Sólon, 21.
CAPITULO II (28) Krestoi mákares, Aristóteles citado por Plutarco, Quest. rom., S2\grecq.,
5 —Mákares, khthónioi, Esquilo, Coêf, 475.
O culto dos mortos (29) Eurípides, Fenic, 1321. Toís thanoútoi khrê tòn ou tethnêhóta timàs
didonta khthónion eu sébein theón. - Odisséia, X, 526: Eukhêisi lísêi klutà éthnea
Desde os mais remotos tempos, deram estas crenças lugar anormas de nekrôn. - Esquilo, Coêf, 475: "Oh bem-aventurados os que habitais sob a terra,
escutai a minha invocação; vinde em socorro de vossos filhos e dai-lhes a vitória".
conduta. Como, entre os antigos, o morto necessitasse de alimento e - É em virtude desta idéia que Enéias chama por seu pai morto Sancte parens,
de bebida, concebesse, como dever dos vivos satisfazer-lhe esta sua divinusparens; Virgílio, En., V, 80; V, 47. Plutarco, Quest. rom., 14: Theòngegoni-
necessidade. O cuidado de levar aos mortos os alimentos não esteve a nai tòn tethnêkóta légousi. - Cornélio Nepote,.Fragm., XII: Parentabis mihi et
cargo do capricho ou dos sentimentos variáveis dos homens; foi obri invocabis deum parentem.
gatório Assim se estabeleceu toda esta religião da morte, cujos dogmas (30) Cícero, De legibus, 11,22.
(31) Santo Agostinho, Cidade de Deus, VIII, 26; IX, 11.
cedo desapareceram, durando, no entanto, os seus ritos ate ao tnunto (32) Eurípides, Alceste, 1015: Nún desti makaira daímôn: khatr', ô pótni',
do cristianismo. eu dè doíns.
(33) Cícero, De legibus, II, 9. Varrão, em Santo Agostinho, Cidade deDeus
(25) Plutarco, Aristides, 21. Parakalet toas apothanóntas epi to dexpnon kai VIII, 26.
tên ahimokovrían.
(26) Luciano, De luctu, 9.
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CRENÇAS ANTIGAS O CULTO DOS MORTOS 25


24

lio(34). Diante do túmulo havia un altar para os sacrifícios igual ao que feito segundo os ritos, os antepassados daquele que oferece a refeição
há em frente dos templos dos deu:es(35). experimentam contentamento inalterável"^7).
Encontramos este culto dos mortos entre os helenos, os latinos, os Deste modo, no começo, os arianos do Oriente pensaram como os
sabinosí36) e entre os etruscos; encontiamo-lo também entre os arianos do Ocidente, em relação ao mistério do seu destino para além da morte.
da índia. Os hinos do Rig-Veda referem-se a ele. O livro das leis de Antes de crerem na metempsicose, que supunha existir uma distinção
Manu fala deste culto para no-lo apreíentar como o mais antigo culto absoluta entre a alma e o corpo, acreditaram na vaga c indecisa existên
professado pelos homens. Já vimos neste livro como a idéia da metem- cia do ser humano, invisível mas não imaterial, reclamando dos mortais
psicose passou por cima desta velha crença; e, apesar da religião de alimento e bebidas.
Brama já estar estabelecida anteriormente, contudo, sob o culto desta O hindu, como o grego, tinha os mortos como seres divinos gozan
religião ou sob a doutrina da me:empsicose, subsiste ainda viva cindes do de existência bem-aventurada. Mas era preciso preencher-se uma
trutível a religião das almas cios antepassados, a obrigar o redator das condição indispensável à sua felicidade; era preciso que nos tempos
leis de Manu a tomá-la em consideração e a admitir ainda as suas pres próprios os vivos lhes trouxessem as suas oferendas. Quando se deixasse
crições no livro sagrado. Não é singularidade menor deste livro tão de trazer o sraddha ao morto, a alma desse morto abandonava a morada
excêntrico conservar as regras relativas às antigas crenças, sendo eviden pacífica, c tornava-se alma errante, atormentadora dos vivos; desta
temente redigido em época em qi.e já predominam crenças inteiramente forma, se os manes eram verdadeiramente deuses, eram-no tão-somente
opostas. Isto nos prova que, se c prec so muito tempo para as crenças enquanto os vivos os honrassem com o seu culto(3 8).
humanas evoluírem, ainda muito mai:, tempo se torna necessário para Eram exatamente estes os mesmosjuízos formulados a tal respeito
as práticas exteriores c as leis s«: moc.ificarem. Ainda em nossos dias, tanto por gregos como por romanos. Ao deixarem de oferecer a refeição
depois de tantos séculos passacos e de tantas revoluções, os hindus fúnebre aos mortos, estes saíam dos seus túmulos; sombras errantes,
continuam fazendo as suas oferendas aos antepassados. Estas idéias e sentiam-nos gemer pela calada da noite silenciosa. Repreendiam os vivos
estes ritos são o que de mais antigo en:ontramos na raça indo-européia, pela sua negligência ímpia; procuravam puni-los, enviando-lhes doenças
sendo também o que ali tiveram de mais persistente. ou ameaçando-os com a esterilidade do solo. Enfim, não deixavam aos
O culto na Índia era o mesmo qie na Grécia e na Itália. O hindu vivos descanso algum até o dia em que as refeições fúnebres se restabe
devia oferecer aos manes a refeic ão chamada sraddha. "Que o chefe da lecessem^), O sacrifício, a oferta de alimento e a libação faziam-nos
casa faça o sraddha com arroz, leite, raízes e frutos, para conseguir a
benevolência dos manes". O hir du acreditava que, quando oferecia a (37) Leis de Manu, I, 95; III, 82, 122, 127, 146, 189, 274.
refeição fúnebre, os manes dos antepassados vinham sentar-se junto dele (38) Este culto prestado aos mortos exprimiu-se cm grego pelas palavras
e ali tomavam o alimento que lhes en, oferecido. Acreditava ainda que enagízô, enagismós. Pólux, VIII, 91; Heródoto, I, 167. Plutarco, Aristides, 21;
esta refeição prestava aos morto; grata alegria: "Quando osraddha esta Catão, 15; Pausânias, IX, 13, 3. A palavra enagízô designava os sacrifícios ofereci
dos aos mortos, í/iúô os oferecidos aos deuses do céu; esta diferença cvidcncia-sc cm
Pausânias, II, 10, 1, e no anotador de Eurípides, Eenic, 281. Cf. Plutarco, Quest.
rom., 34: Khoàs kai enagitmous toís tetlmêkóti. . . , khoàs kai enagitmòn phéroutin
(34) Virgílio, Cm., IV, 34. epi tòn táphon.
(35) Eurípides, Troianas, 96: T imbou ç thierà tòn kekmêkótôn, Electra, 505- (39) Vide em Heródoto, I, 167, a história das almas dos foceus, que assom
-510. - Virgílio, En.. VI, 177: Aram, [ue sei •ulcri; III, 63: Stant Manibus arae; III, braram toda uma região, até que lhes celebraram o aniversário da morte; muitas
305. Et geminas, causam lacrimis, sac raverai aras; V, 48: Divini ossa parentis condi- outras histórias semelhantes se encontram em Heródoto e cm Pausânias, VI, 6, 7.
dimus terra moetasque sacravimus ara S. O gr ímático Nônio Marcelo diz que os anti- Do mesmo modo, em Esquilo, Clitemncstra, advertida de que os manes de Agamc-
gos chamavam templo ao scpulcro e i:fctiva nente encontramos cm Virgílio a pala- non estavam irritados contra ela, apressa-se em enviar-lhes alimentos ao seu túmulo.
vra templum como designando o túmi ilo ou :cnotáfio erigido por Dido a seu esposo
Vide também a lenda romana que Ovídio nos conta, Fastos, II, 549-556: "Tcndo-sc,
(Eneida, IV, 457). - Plutarco, Que çf. ron i., 14: Epi tòn táphón epistréphontai certo dia, esquecido o dever de parentalia, as almas saíram dos túmulos e sentiram-
katháper theôn hierà Hmôntes tà tòn patérc n mnêmata. - Continuou a chamar-se -nas correr ululando pelas ruas da cidade e pelos campos do Lácio até que os sacrifí
ara à pedra colocada sobre o túmulo (Suetc ttio, Nero, 50). Esta palavra usa-se nas cios as obrigaram a voltar aos seus túmulos". Cf. com a história que nos narra ainda
inscrições fúnebres, Orelli, n.os 4521, 4522, 1826.
Plínio, o Moço, VII, 27.
(36) Varrão, De língua latiria, \ ,74.
CRENÇAS ANTIGAS O FOGO SAGRADO 27
26

voltar ao túmulo e garantiam-lhes o repouso e os atributos divinos. O mcwe.s(44), gênios. "Os nossos antepassados creram, diz Apuleio, que os
homem ficava, então, em paz com os seus mortos(40). manes, quando malfazejos, lhes devíamos chamar larvas, reservando-lhes
Se ao morto cujo culto se descurara acontecia tornar-se um ser o nome de lares só paraquando benfazejos e propícios"(45). Lê-se nou
malfazejo, aquele outro que se honrava era sempre um deus tutelar. tra parte: "Gênio e lar é o mesmo ser: assim o acreditaram os nossos
Amava aqueles que lhe traziam o alimento. Para os proteger continuava antepassados"(46); e em Cícero vem: "Àqueles que os gregos chamam
a tomar parte nos negócios humanos; neles desempenhava freqüente demônios, damos-lhes o nome de lares"(47).
mente o seu papel. Por muito morto que estivesse, sabia ser forte e Esta religião dos mortos parece ter sido a mais antiga que existiu
ativo. Orava-se-lhe; pedia-se-lhe o seu apoio e os seus favores. Quando entre estes povos. Antes de conceber e de adorar Indra ou Zeus, o ho
se encontrava algum túmulo parava-se e dizia-se: "Tu, que és um deus mem adorou os seus mortos; teve-lhes medo e dirigiu-lhes preces. Parece
sob a terra, sê propício"(41). que o sentimento religioso do homem começou com este culto. Foi
Podemos facilmente fazer juízo do poder atribuído pelos antigos talvez por via da morte que o homem pela primeira vez teve a idéia do
aos mortos, por esta oração dirigida por Electra aos manes de seu pai: sobrenatural e quis tomar para si mais do que lhe era legítimo esperar
"Tende piedade de mim e de meu irmão Orestes; fazei-o regressar a da sua qualidade de homem. A morte teria sido o seu primeiro mistério,
este país; atende a minha prece, ó meu pai; escuta os meus votos rece colocando o homem no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pen
bendo as minhas libações". Esses deuses poderosos não facultam somen samento do visível ao invisível, do transitório ao eterno, do humano ao
te bens materiais, porque Electra acrescenta: "dai-me um coração mais divino.
casto do que o de minha mãe, e mãos mais puras do que as suas"(42).
Do mesmo modo, o hindu pede aos manes "que seja acrescentado na
sua família o número de homens de bem e se lhe conceda muito para CAPITULO III
lhes dar".
Às almas humanas divinizadas pela morte chamavam os gregos
O fogo sagrado
demônios, ou herôis{43). Os latinos, por sua vez, as apelidavam lares,
Toda casa de grego ou de romano possuía altar; neste altardevia haver
(40) Ovídio, Fast., II, 518: Animasplacatepaternas. - Virgílio, En., VI, 379:
Ossa piabunt et statuent tumulum et túmulo solemnia mittent. —Comparai o grego sempre restos de cinza e brasas(48). Era obrigação sagrada do dono de
hiláskomai. (Pausânias, VI, 6, 8). - Tito Lívio, I, 20: Justa funebria placandosque cada casa conservar o fogo, dia e noite. Desgraçada daquela casa onde o
manes. fogo se extinguisse! Ao anoitecer de cada dia se cobriam de cinza os
(41) Eurípides, Alceste, 1004 (1016). - "Crê-se que quando não temos carvões, para deste modo se evitar que elesse consumissem inteiramente
nenhum respeito pelos mortos e nos esquecemos do seu culto, estes fazem-nos mal durante a noite; ao despertar, o primeiro cuidado do homem era avivar
e que, pelo contário, nos fazem sempre bem, quando os tornamos propícios pelas
nossas ofertas." Porfírio, De abstin., II, 37. Vide Horácio, Odes, II, 23; Platão, Leis,
IX, pp. 926, 927.
(44) Manes Virginae (Tito Lívio, 111, 58). Manes conjugis (Virgílio, VI, 119).
(42) Esquilo, Coêf, 122-145. Patris Anchisae Manes (Id., X, 534), Manes Hectoris (Id., III, 303). Dis Manibus
(43) É possível que o sentido primitivo da palavra hêrôs fosse o de homem Martialis, Dis Manibus Acutiae (Orelli, n.os 4440, 4441, 4447, 4459, etc). Valerii
morto. A linguagem das inscrições, exprimindo-se na fala do vulgo e sendo, simul deos manes (Tito Lívio, III, 19).
taneamente, aquela em que o sentido das palavras persiste por maistempo, emprega (45) Apuleio, De deo Socratis. Sérvio, adAeneid., III, 63.
algumas vezes hêrôs com a significação natural que nós damos à palavra defunto: (46) Censorinus, Dedie natali, 3.
hêrôs khrêste kaxre: Boeckh, Corp. inseri., n.os 1629, 1723, 1781, 1782, 1784, (47) Cícero, Timeu, 11. - Dionísio de Halicarnasso traduz Larfamiliaris por
1786, 1789, 3398; F. Lebas, Monum. deMorêe, p. 205. videTeógnis, ed.Welcker, Kat oikían hêrôs (Antiq. rom., IV, 2).
v. 513,"è Pausânias, VI, 6, 9. Ostebanos tinham uma velha expressão como signifi (48) Os gregos tinham vários nomes para designar este altar, bômos, heskhára,
cado de morrer, hêrôa génesthai (Aristóteles, frag., ed. Heitz, t. IV, p. 260;Cf. Plu hestía; a última destas expressões prevaleceu no uso è foi a palavra pela qual mais
tarco, Proverb. quibus Alex. usi sunt. c. 47). —Os gregos davam também à alma do tarde se designou a deusa Vesta. Os latinos davam ao mesmo altar onome de vesta,
morto o nome de daímòn. Eurípides, Alceste, 1140 e anotadores. Esquilo, Persas, ara, ou focus. In primis ingressibus domorum vestae, id est arae et foci, solent
620:DaímonaDareton. Pausânias, VI, 6-.Daímòn anthrôpou. haberi. (Nônio Marcelo, ed.Quicherat, p. 53).
28 CRENÇAS ANTIGAS O FOGO SAGRADO 29

o fogo e alimentá-lo com alguns rimos secos. Ofogo só deixava de bri coleção de hinos órficos, está concebida assim: "Torna-nos sempre
lhar sobre o altar quando toda ;. famlia havia morrido; lar extinto, prósperos, sempre felizes, ó lar; ó tu que és eterno, belo, sempre novo,
família extinta, eram expressões stiônirr as entre os antigosí49). tu que nutres, tu que és rico, recebe de bom coração as nossas oferen
E, evidentemente, o uso de manter-se sempre o fogo sobre o altar das, dando-nos em troca a felicidade e a saúde que é tão doce"(55).
remonta a antiga crença. As regrai e os ritos observados a este respeito, Assim, via-se no lar o deus benfazejo conservador da vida do homem, o
mostram-nos não ser então este entre as gentes um costume qualquer, deus rico alimentando-o com os seus dons, o deus forte protetor da casa
insignificante. Não lhes era pernitido alimentar este fogo com qual e da família. Em presença de qualquer perigo, procurava-se refúgio
quer espécie de madeira; a religião dist:nguia, entre as árvores, aquelas junto dele. Quando o palácio de Príamo foi invadido, Hécuba arrasta o
espécies que podiam ser empregacas con este fim, e aquelas outras de velho rei para junto do lar: "As tuas armas não saberão defender-te, diz-
que era impiedade servirem-se(50). Areligião ensinava ainda como este -lhe ela, mas este altar nos protegerá a todos"(56).
fogo devia .permanecer sempre pu-o(51 , o que em sentido literal signi Olhai para Alceste quando vai morrer, dando a vida para salvar o
ficava que nenhum objeto sujo lh; devia ser atirado e que, em sentido seu esposo. Aproxima-se do seu lar e invoca-o usando estes termos: "O
figurado, nenhuma ação culposa c.everi;. ser cometida em sua presença. divindade soberana desta casa, pela derradeira vez eu me inclino na tua
Havia determinado dia no ano, er tre o: romanos, o Primeiro de Março, presença, e te dirijo as minhas orações; porque vou descer para onde
no qual cada família devia apagai o sei. fogo sagrado e reacender logo estão os mortos. Vela por meus filhos, que já não mais terão mãe; dá
outro em seu lugar(52). Mas, paia se acender o novo fogo havia ritos a meu filho uma terna esposa, e à minha filha um marido nobre de
que necessariamente tinham de s;r ob.«ervados com todo o escrúpulo. sentimentos. Faz com que eles não morram antes do tempo comoeu, e
Deviam sobretudo evitar fazer ume usando de ferro e pederneira. que, no seio da felicidade, guardem eles longa vida"(57). Olar enrique
Os únicos métodos permitidos eiam o; de fazer incidir num ponto o cia a família. Plauto, numa das suas comédias, apresenta-no-lo a graduar
calor dos raios solares ou de fr ccionar dois pedaços de madeira de as suas dádivas pelo culto que lhe tributam(58). Os gregos davam ao
determinada espécie e deles fazei saltar a faísca(53). Estas diferentes deus da abastança o nome de Ktésios{$9). O pai invocava-o para seus
regras provam de sobejo como nãrj esta/a no juízo dos antigos apenas o filhos, suplicando-lhe que sempre "lhes dê saúde e abundância de
fato de produzir ou conservar uri elemento útil e agradável; estes ho bens"(60). No infortúnio, o homem lastima-se da sua miséria junto do
mens viam mais do que isso no fo§o que ardia sobre os altares. seu lar, dirigindo-lhe repreensões; na felicidade cumula-o de graças. O
Este fogo tinha algo de divii.o; adoravam-no, prestavam-lhe verda soldado, ao voltar daguerra, agradece-lhe o fato de tê-lo preservado dos
deiro culto. Davam-lhe como off renda tudo quanto julgavam pudesse perigos. Esquilo apresenta-nos Agamênon, regressando de Tróia, feliz,
agradar a um deus: flores, frutas, incenso, vinho(54). Imploravam-lhe aureolado de glória; não é para Júpiter a sua gratidão; não é ao templo
proteção, que supunham poderosa. Dirigiam-lhe fervorosas preces para que vai levar sua alegria e gratidão; mas oferece o sacrifício de ação de
dele conseguirem os fins eternos desejados por todo o homem: saúde, graça ao lar de sua casai0 U. Este homem nunca saía de casa sem antes
riqueza e felicidade. Uma destas orações, que nos foi conservada numa dirigir uma prece ao seu lar; ao regressar, antes de saudar a mulher e de
abraçar os filhos, devia inclinar-se perante o lar e invocá-lo(62).
(49) Hinos homér., XXIX. Hinos órf., I XXXIV. Hesíodo, Opera, 679. Ésqui-
Io, Agam., 1056. Eurípides, Hercul. fu\, 503 , 599. Tucídides, I, 136. Aristófancs, (55) Hinos órf, 84.
Plut., 795. Catão, De re rust., 143. Cúero, P o domo, 40. Tíbulo, I, 1, 4. Horácio, (56) Virgílio, En„ II,523. Horácio, Epit, I, 5. Ovídio. Trist., IV, 8, 22.
Epod., II, 43.Ovídio, A.A., I, 637. Vir jílio,£ n., II, 512.
(57) Eurípides,Alceste, 162-168.
(50) Virgílio, VII, 71: Castis taeois Fest d, v.o Felicis. Plutarco, Numa, 9. (58) Plauto, Aululária, prólogo.
(51) Eurípides,Hèrc.fur., 715. Citão, I e re rust., 143. Ovídio, Fast. III, 698. (59) Theós ktêtios. Eustates, In Odiss., p. 1756 e 1814. O Zeus ktêsios, a
(52) Macróbio, Satum., I, 12. quem muitas vezesse refere, é um deus doméstico, o lar.
(53) Plutarco, Numa, 9; Festo, ed. Müll :r, p. 106. (60) Iseu, De Cironis hered., 16: Êhúkheto hêmtn hugieian didónai kai
(54) Ovídio, A. A., I, 637: Denturin an Hquos thura merumque focos. Plauto, ktêsin agathên.
Captiv., II, 39-40; Mercator, V, 1, 5. Tíbulo , I, 3, 34. Horácio, Odes, II. 23. 1-4. (61) Esquilo, Agam., 851-853.
Catão, De re mst., 143. Plauto, Aululár.a, prol ogo. (62) Catão,De re rust., 2. Eurípides, Hércul. fur., 523.
m

30 CRENÇAS ANTIGAS O FOGO SAGRADO 31

O fogo do lar era, assim, a Providência da família. O culto era deixaram, por ainda muito tempo os seus vestígios entre os povos, com
arraigadamente simples. Como primeira regra exigia-se ao homem que usos, ritos e modos de falar, a que o próprio incrédulo não podia esca
mantivesse continuamente sobre o altar alguns carvões acesos porque, par. Horácio, Ovídio, Juvenal, ceavam ainda diante do seu lar e costu
extinguindo-se o fogo, deixava de existir o deus. Em certas horas do dia, mavam fazer-lhe a libação e a prece(67).
colocava-se sobre o lar ervas secas e lenha; e então o deus manifestava-se O culto do fogo sagrado não viveu exclusivamente entre as popula
em forma de chama brilhante(63). Ofereciam-lhe sacrifícios; na sua ções da Grécia e da Itália. Encontramo-lo igualmente no Oriente. As leis
essência todos os sacrifícios consistiam em alimentar e reanimaro fogo de Manu, na redação chegada até nós, mostram-nos ainda a religião de
sagrado, em nutrir e desenvolver o corpo do deus. Por isso, em primeiro Brama no seu apogeu e depois na decadência; e estas leis conservam
lugar se lhe dava a lenha, e, em seguida, vertendo-se sobre o altar vinho vestígios e restos de religião mais antiga, a do lar que o cultode Brama
ardente da Grécia, o óleo, o incenso e a gordura das vítimas. O deus relegou para segundo plano, embora sem ter podido destruí-la. O brâ-
recebia estas oferendas e devorava-as; satisfeito, radiante, levantava-se mane tem o seu lar, que deve manter aceso noite e dia; todas as manhãs
no altar e iluminava o seu adorador com os seus raiosí^4). Era este o e todas as noites lhe oferece lenha para seu alimento; mas, como entre
momento solene da invocação: o hino da oração subia até ele, elevando- os gregos, só pode utilizar lenha de certas árvores permitidas pela reli
-se do coração do homem. gião. Tanto comoos gregos e os itálicos, que lhe levam o vinho, o hindu
Considerava-se a refeição como o ato religioso por excelência. O derrama-lhe licor fermentado, a que dá o nome de soma. A refeição
deus presidia. Era o deus quem tinha cozido o pão e preparado os ali- aparece também aqui como ato religioso, estando os seus ritos escru-
mentosí65); por isso se lhe devia uma oração no começo e outra no fim pulosamente regrados pelas leis de Manu. Dirigem-se preces ao lar, tal
da refeição. Antes de comer, depositavam-se sobre o altar as primícias como na Grécia; oferecem-se-lhe as primícias da refeição, arroz, man
do alimento; antes de beber, espalhava-se a sua libação de vinho. Era o teiga e mel. Escreveu-se: "O brâmane não deve comer arroz de nova
quinhão do deus. Ninguém duvidava da sua presença na cerimônia, nem colheita, sem oferecer as primícias ao lar. Na verdade, o fogo sagrado
que ali vinha comer e beber; e, de fato, não se via a chama elevar-se, está ávido de grão e, não se sentindo honrado, arruina a vida do brâ
como se se tivesse alimentado com os manjares oferecidos? Assim, a mane negligente". Os hindus, como os gregos e os romanos, julgam os
refeição partilhava-se entre o homem e o deus: cerimônia sagrada, sem deuses como seres sôfregos, não somente de honras e respeitos, mas
dúvida, pela qual homem e deus entravam em comunhão(66). Velhas também ardentemente desejosos de bebida e alimento. O homem, para
crenças, com o correr dos anos desaparecidas dos espíritos, mas que evitar-lhes a cólera, julga-se, assim, obrigado a saciar-lhes a fome e a
mitigar-lhes a sede.
(63) Virgílio, En., I, 704; Flammis adolere Penates. Entre os hindus muitas vezes se chama Agni a esta divindade do
(64) Virgílio, Georg., IV, 383-385: fogo. O Rig-Veda contém grande número de hinos dirigidos a ela. Diz-
Ter liquido ardentem perfudit nectare vestam, -se num deles: "ó Agni, tu ésvida, tu és o protetordo homem. . . Como
Terflamma adsummum tecti subjecta reluxit. prêmio de nossos louvores, dá ao pai de família que te imploraa glória e
a riqueza. . . Agni, tu és um defensor prudente e um pai; devemos-te a
Sérvio comenta deste modo estes dois versos: Id est, in ignem vinum purissi-
mumfudit, post quod quia magis flamma convaluit bonum omen ostendit. vida, somos a tua família". Deste modo, o fogo do lar, tal como na Gré
(65) Ovídio, Fast., VI, 315. cia, é um poder tutelar. O homem pede-lhe abastança: "Faz com que a
(66) Plutarco, Quest. rom., 64: Ieròn ti ê tràpeza. Id., Simposíaca, VII, 4,7: terra seja sempre generosa para conosco". Pede-lhe a saúde: "Que eu
Trápeza hup'eníôn hestia kalettai. Id., ibid., VII, 4, 4:Aparkhòs tôipúri apodídon- goze a luz por muito tempo, e alcance a velhice como o Sol o seu poen
tas. - Ovídio, Fastos, VI, 300:Et mensae credere adesse deos; VI, 630:In omatum te". Pede-lhe mesmo a sabedoria: "Ó Agni, tu fazes encontrar o bom
fundere vinafocum; II, 634: Nutriat incinctos mixta patella Lares. Cf. Plauto, Aulu- caminho a todo o homem que se extraviou pelo mau. . . Se cometemos
lária, II, 7, 16;Horácio, Odes, III, 23;Sat., II, 3, 166;Juvenal, XII, 87-90; Plutarco,
De Fort. Rom., 10. —Compare-se com Hino homérico, XXIX, 6. Plutarco, Frag
mentos Com. sobre Hesíodo, 44. —Sérvio, in Aeneid., I, 730: Apud Romanos, cena (67) Ante larem proprium vescor vemasque procaces Pasco Hbatis dapibus
edita, silentium fieri solebat quoad ea quae de cena libata fuerant adfocum ferren- (Horácio, Sat., II, 6, 66). - Ovídio, Fastos, II, 631-633. -Juvenal, XII, 83-90. -
tur et igni darentur ac puer deos propitios nuntiasset. Petrônio, Satir., c. 60.
O FOGO SAGRADO 33
32 CRENÇAS ANTIGAS
Deste modo, lemos nos hinos do Rig-Veda: "É preciso invocar Agni
uma falta, se caminhamos longe ie ti, perdoa-nos". Este fogo do lar era, antes de o fazermos a qualquer outro de todos os demais deuses. Pro
como na Grécia, essencialmente puro; proibia-se severamenteao brâma- nunciaremos o seu nome venerável antes do de quaisquer outros imor
ne lançar nele qualquer coisa suja e até mesmo aquecer os pés no seu tais. Ó Agni, seja qual for o deus honrado pelo nosso sacrifício, é
calor(68), Como na Grécia, um homem culposo não podia aproximar-se sempre a ti que dirigimos o holocausto". Certíssimo portanto, e assim
do seu lar, sem antes se haver pu:ificac o do pecado. na Roma de Ovídio, como na índia dos brâmanes, ter o fogo do lar
Verdadeira prova da antigüidade destas crenças e destas práticas, disposto em lugar destacado em relação a todos os demais deuses; não
temo-la no fato de encontrá-las, ao mssmo tempo, entre os homens das porque Júpiter e Brama não tivessem adquirido muito maior importân
margens do Mediterrâneo e entre os moradores da península indiana. cia na religião dos homens, mas porque se lembravam de que o fogo do
Certamente os gregos não tom.iram dos hindus esta religião, nem os lar surgira como um deus muito anterior àqueles. Ocupava, desde
hindus a aprenderam dos gregos. Ma; gregos, itálicos e hindus provi muitos séculos, o primeiro lugar no culto e os deuses mais novos e
nham de uma mesma raça; os seis antepassados, em época muito afasta maiores não tinham podido desapossá-lo desse lugar.
da, moraram conjuntamente na Ásia Central. E aí pela primeira vez se Os símbolos desta religião modificaram-se segundo as épocas.
formaram estascrenças e se estabeleceram estes ritos. A religião do fogo Quando as populações da Grécia e da Itália começaram a considerar os
sagrado data, pois, de época remota e obscura, quando ainda não exis seus deuses como pessoas e a dar a cada um deles nome próprio e forma
tiam gregos, nem itálicos, nem hindus, havendo apenas os arianos. humana, o velho culto do lar sofreu a lei comum que a inteligência,
Quando as tribos se separaram umas cas outras, trouxeram consigo esse neste período, impunha a toda a religião. O altar do fogo sagrado foi
culto comum, levando-o, umas, até as margens do Ganges e trazendo-o, personificado, chamou-se-lhe éstia, Vesta; o nome era o mesmo tanto
outras, para as costas do Mediterrâneo. Mais tarde, entre as tribos divi em latim como em grego e foi aquele pelo qual na linguagem comum e
didas, e não existindo entre estas quiisquer relações recíprocas, umas primitiva se designou o altar. Por um processo muito vulgar, de nome
adorando Brama, outras Zeus, outras ainda Juno, cada um dos grupos comum derivou em nome próprio. Formou-se pouco a pouco uma
imaginou os seus deuses. Mas todos mantiveram como tradição esta lenda. Figurou-se esta divindade sob a forma de uma mulher, porque a
religião primitivamente concebida e praticada, conjuntamente, no berço palavra designativa de altar era do gênero feminino. Chegou-se mesmo
comum da sua raça. a representar esta deusa por meio de estátuas. Mas nunca pôde apagar-se
Se a existência deste culto entre iodos os povos indo-europeus não o vestígio da crença primitiva, segundo a qual esta divindade tinha sido
demonstrasse demasiadamente a sua ílta antigüidade, encontrar-se-iam simplesmente o fogo do altar; eo próprio Ovídio chega aconcordar que
outras provas mais, nos ritos religiosos dos gregos e dos romanos. Em apalavra Vesta não quer significar mais do que "chama viva"(73).
todos os sacrifícios, mesmo no:; celebrados em honra de Zeus, ou de Se relacionarmos este culto do fogo sagrado com o culto dos
Atena, era sempre ao lar que se dirigia a primeira invocação(69). Toda a mortos, há pouco aqui falado, surgem-nos os dois em estreita corres
oração feita ao deus, fosse a qu; deu:, fosse, principiava e acabava por pondência.
uma prece ao lar(70). Em Olímpia, c primeiro sacrifício que a Grécia Notemos em primeiro lugar que esse fogo mantido no lar, para o
reunida oferecia destinava-se ao lar, o segundo a Zeus(71). Da mesma pensamento dos homens, não é o mesmo fogo da natureza material.
forma, em Roma, a primeira adoraçãc pertencia sempre a Vesta, repre Nele vemos não o elemento puramente físico que aquece ou queima,
sentando esta o próprio lar(72); Ovídio, ao falar-nos desta divindade, transforma os corpos, funde os metais e se torna em poderoso instru
diz-nos ocupar ela o primeiro lugar nus práticas religiosas dos homens. mento da indústria humana. O fogo do lar é de natureza inteiramente
distinta. É um fogo puro, só podendo ser produzido quando ajudado
(68) Na religião romana existia igual prescrição: Pedem infocum non impo- por certos ritos e somente podendo alimentar-se de determinadas espé
nere. Varrão, em Nônio,p. 479, ed. Q íicherst, p. 557. cies de madeira. É um fogo casto; a união dos sexos deve arredar-se para
(69) Porfírio, Deabstin., II, p. :.06; PIitarco,Defugido, 8.
(70) Hinos hom., 29; Ibid., 3, \ 33. Platão, Cratilò, 18. Hesíqm°. aph'hes-
tías, Deodoro, VI, 2. Aristófanes, Ave:; 865.
(71) Pausânias, V, 14. (73) Ovídio, Fasf., VI, 291.
(72) Cícero,De nat. Deor., II, 27. Oví lio, Fastos, VI, 304.

1
34 CRENÇAS ANTIGAS O FOGO SAGRADO 35

longe da sua presença(74). Não se pede a ele somente a riqueza e a dos Penates, nem tampouco aos Penates dos deuses lares. Lemos em
saúde; roga-se-lhe mais que também conceda ao homem a pureza de Sérvio: "Por lares entendiam os antigos os deuses lares; também Virgí
coração, a temperança, a sabedoria. "Torna-nos ricos e prósperos, diz- lio empregou indiferentemente tanto lar por Penates como Penates por
-nos certo hino órfico, torna-nos também sábios e castos." O fogo do lar"(77). Em passagem famosa da Eneida, Heitor pede a Enéias que este
lar é, pois, uma espécie de ser moral. É verdade que brilha, aquece e lhe mande os Penates, e Enéias remete-lhe o fogo do lar. Noutro passo,
coze o alimento sagrado; mas tem ao mesmo tempo um espírito, uma Enéias, invocando esses mesmos deuses, apelidava-os, ao mesmo tempo,
consciência; dita deveres e vigia o seu cumprimento. Dir-se-ia homem, de Penates, Lares e Vesta(78),
porque do homem possui a sua dupla natureza; fisicamente, resplan Já vimos aliás que aqueles a quem os antigos chamavam Lares ou
dece, move-se, vive, procura a abundância, prepara a refeição, alimenta Heróis eram tão-somente as almas dos mortos, a que o homem atribuía
o corpo; moralmente, possui sentimentos e afetos, dá ao homem a um poder sobre-humano e divino. A lembrança de algum destes mortos
pureza, educa o beloe o bem, e alimenta a alma. Podemos dizerque ele sagrados achava-se sempre ligada ao lar. Adorando um, não podia esque
cuidava da vida humana da dupla sucessão das suas manifestações; cer-se o outro. Estavam associados no respeito dos homens e nas suas
representava, ao mesmo tempo, a origem da riqueza, da saúde e da vir orações. Os descendentes, quando falavam do fogo, recordavam imedia
tude; figurava verdadeiramente o Deus da natureza humana. Mais tarde, tamente o nome do seu antepassado: "Deixa este lugar, diz Orestes a
quando este culto é relegado para segundo plano por Brama ou por Helena, e vai para o antigo lar de Pélops para poderes entender as mi
Zeus, o fogo do lar ficara apenas naquilo que do divino tem de mais nhas palavras"(79). Do mesmo modo, Enéias, falando do lar que con
acessível ao homem; é o intermediário do homem junto dos deuses duz através dos mares, designa-o pelo nome de lar de Assaracus, como
da natureza física; encarrega-se de transmitir ao céu a prece e a oferen se nele visse a alma do seu antepassado.
da do homem e de trazer até junto do mesmo homem os favores divinos. O gramático Sérvio, notavelmente conhecedor das antigüidades
Mais tarde ainda, quando deste mito do fogo sagrado se criou a grande grega e romana (estudavam-nas em seu tempo, muito mais do que no
Vesta, Vesta surge como deusa virgem; não representa nem a fecundi- de Cícero), diz ser tradição antiga enterrarem-se os mortos nas casas de
dade, nem o poder, mas a ordem; não a ordem rigorosa, abstrata, mate habitação; e acrescenta: "Por virtude deste uso, também nas casas são
mática, a lei imperiosa e fatal anâgkê, apercebida desde muito cedo honrado os lares e os penates"(80). Esta frase estabelece nitidamente
entre os fenômenos da natureza física, porque Vesta encarna a ordem a antiga relação existente entre o culto dos mortos e o lar. É lícito
moral. Surge-nos como espécie de alma universal, regendo os diversos julgar-se portanto ter sido o lar doméstico, na sua origem, considerado
movimentos dos mundos, do mesmo modo que a alma humana governa como expressão do culto dos mortos e que sob a pedra do larrepousava
os nossos órgãos. um antepassado, sendo o fogo ali acendido para o honrar, parecendo
Assim se deixa entrever o pensamento das gerações primitivas. O esse fogo manter-lhe a vida ou representar a sua alma sempre vigilante.
princípio deste culto está fora da natureza física e encontra-se no miste Todavia o que acabamos de dizer não passa de mera conjectura
rioso microcosmo que é o homem. nossa, porque nos escasseiam as provas a este respeito. Mas o certo é
Isto nos leva de novo ao culto dos mortos. Ambos têm a mesma terem tido as mais antigas gerações da raça donde saíram os gregos e os
antigüidade. Estavam tão estreitamente associados que a crença dos romanos o culto dos mortos e do lar, a religião antiga, não tirando os
antigos fazia deles apenas uma religião. Lar, Demônios, Heróis, deuses seus deuses da natureza física, mas do próprio homem, e apresentando,
Lares, tudo se acha confundido(75). Vê-se por duas passagens de Plauto como objeto de adoração, o ser invisível que está em nós, a força moral
e de Columela como, na linguagem vulgar, se diz indiferentemente lar, e pensante que anima e governa o nosso corpo.
ou Lar doméstico; e ensina-nos ainda Cícero(76) não o distinguirem
(74) Hesíodo, Opera, 678-680. Plutarco, Com. sobre Hes., frag. 48. (77) Sérvio, inAen., III, 134.
(75) Tibulo, II, 2. Horácio, Odes, IV, 11, 6. Ovídio, Trist., III, 13; V, 5. Os (78) Virgílio,En., II, 297; IX, 257-258; V, 744.
gregos davam aos deuses domésticos ou heróis e epítetodeephéstioi ou hestioükhoi. (79) Eurípides, Orestes, 1420-1422.
(76) Plauto,Aulul., II, 7, 16:Infoco nostro Lari. Columela, XI, 1, 19: Larem (80) Sérvio, inAen., V,64; VI, 152. Vide Platão, Minos, p. 315:Éthapton en
focumquefamiliarem. Cícero, Prodomo, 41; Pro Quintio, 11, 28. têioikiai tousapothanóntas.
Hfvtrrínii"-'"' "Mnif '
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36 CRENÇAS ANTIGAS A RELIGIÃO DOMÉSTICA 37

Esta religião nem sempre se mostrou do mesmo modo poderosa próximo. Quanto à refeição fúnebre, que se renova em épocas determi
sobre a alma; pouco a pouco seenfraq jeceu, mas nunca tanto que desa nadas, só a família tinha o direito de assistir, estando todo o estranho
parecesse inteiramente. Contemporânea dos primórdios da raça ariana, rigorosamente excluído dela(81). Acreditava-se que o morto só aceitava
arraigou-se tão profundamente :io sentimento desta raça que não bas a oferenda quando esta lhe fosse prestada da mão dos seus; queria
tou, para desenraizá-la, a brilhante religião do Olimpo grego, tendo sido apenas o culto dos seus descendentes. A presença de um homem estra
necessário, paravencê-la, o cristianismo. nho na família logo perturbava o repouso dos manes. Por essa razão a
Veremos dentro em pouco a pcderosa ação exercida por aquela lei proibia o estrangeiro de se aproximar do túmulo(82). Tocar com o
primeira religião nas instituiçõe:: don esticas e sociais dos antigos. Foi pé, mesmo por descuido, numa sepultura era ato ímpio, que obrigava a
concebida e estabelecida nessa época ongínqua, quando esta raça pro fazer ato de reconciliação com o morto, e exigindo aindado delinqüen
curava as suas instituições, tenco-lhe ao mesmo tempo determinado a te a sua purificação. A palavra pela qual os antigos designavam o culto
estrada pela qual os povos depoü caminharam. dos mortos afigura-se-nos bastante elucidativa: os gregos diziam pátria-
zeín(83), os latinos chamavam-lhe parentare. De fato a prece e a ofe
renda somente se dirigiam aos pais de cada um(84). O culto dos mortos
representa autenticamente o culto dos antepassados(85). Luciano, zom
CAÍITULO IV bando das razões do vulgo, no entanto, explica-no-las brilhantemente,
ao dizer: "O morto não deixando filhos, não recebe oferendas; assim fica
A religão doméstica sujeito à fome perpétua"(86).
Tanto na índia como na Grécia, a oferenda só podia ser trazida ao
morto por aqueles que dele descendessem. A lei hindu, como a lei ate
Não podemos representar esta antiga religião como aquelas funda niense, proibia na refeição fúnebre a admissão de estranhos, embora
das mais tarde, em civilização mais avançada. Há muitos séculos já amigos. Era tão indispensável que estas refeições fossem oferecidas
que o gênero humano só admite uma doutrina religiosa, sob duas condi pelos descendentes do morto e não por intrusos, que se supunha que os
ções: uma, a de anunciar um só deus; em segundo lugar, desde que, de manes, muitas vezes, além-túmulo, proferiam este voto: "Oxalá na nossa
igual modo, se dirija a todos os homens e seja acessível a todos, sem
repelir sistematicamente qualquer classe ou raça. Mas a religião dos tem (81) A lei de Sólon proibia a quem não fosse parente do defunto acompanha
pos primevos não obedecia a nenhum destes dois requisitos. Além de do, gemendo, no enterro (Plutarco, Sólon, 21). Só autorizava o acompanhamento
não dar a adoração dos homem; um :;ó deus, ainda os seus deuses não do morto por mulheres até ao grau de primo, entòs anepsiadòn. (Demóstenes, In
aceitavam indistintamente a adoração de todos e quaisquer homens. Macartatum 62-63.) Cf. Cícero, De legibus, II, 26. Varrão, L. L., VI, 13: Ferunt
epulas ad sepulcrum quibus jus ibiparentare. Gaio, II, 5, 6: Si modo mortuifunus
Não se apresentavam como deuses de gênero humano. Não se asseme adnospertineat.
lhavam mesmo nem a Brama, pelo menos, deus de toda uma grande (82) Ouk êxestin ep' allótria mnêmata badizein (lei de Sólon, em Plutarco,
casta, nem ao Zeus pan-heleno. que o foi de toda uma nação. Nesta Sólon, 21). Pittacus omnino accedere quemquam vetat in funus alioium. Cícero,
religião primitiva cada um dos seus deuses não podia ser adorado por Delegib., II, 26.
mais de uma família. Areligião era puramente doméstica. (83) Pólux, III, 10.
(84) Ainda lemos em Iseu, De Meneclis herede., 46: "Como Menecles não
É preciso esclarecer esta importante situação porque sem o fazer tem filhos, não se realizarão por ele os sacrifícios domésticos, e não terá quem lhe-
mos nunca se compreenderá ;i íntima correspondência estabelecida levar ao túmulo a oferenda anual. De outras passagens do mesmo orador se prova
entre as velhas crenças e a constiruiçãc das famílias grega e romana. dever ser sempre o filho quem leva as bebidas ao túmulo". De Philoct. hered., 51,
O culto dos mortos não o podsmos de modo algum aproximar ibid., 65;De Apollod. hered,, 30.
daquele que os cristãos têm pelos sartos. Uma das primeiras regras do (85) Assim foi, pelo menos originariamente; depois, as cidades tiveram os
seus heróis típicos e nacionais, como mais adiante veremos. Igualmente estudaremos
culto dos mortos estava no fatc de e;te apenas poder ser prestado aos como a adoção criava parentesco fictício e dava o direito de honrar uma série de
mortos de cada família que pelo sargue lhes pertencia. O funeral só antepassados.
podia realizar-se religiosamente quando presidido pelo parente mais (86) Luciano, De luetu.
38 CRENÇAS ANTIGAS A RELIGIÃO DOMÉSTICA 39

linhagem nasçam sempre em sucessão filhos que nos ofereçam, no Ali se celebravam as cerimônias e se festejavam os aniversários. Cada
decorrer dos tempos, o arroz cozido em leite, o mel e a manteiga família julgava ter ali os seus sagrados antepassados. Em tempos muito
purificada! "(87). antigos, o túmulo estava no próprio seio da família, nocentro da casa,
Sucedia daí que, na Grécia e em Roma, como na índia, o filho não longe da porta, "a fim de que, cita um antigo, os filhos tanto ao
tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes de seu pai e aos entrar como ao sair de sua casa, encontrem sempre a seus pais, e, de que
de todos os seus avós(88). Faltar a este dever era a mais grave impie cada vez que o façam, lhes dirijam uma invocação"(90). Deste modo, o
dade de quantas podia cometer, porque ainterrupção do culto levando antepassado vivia no grêmio dos seus familiares; invisível, mas sempre
ao descuido de uma série de mortos, aniquilava-lhes a felicidade. Esta presente, continuava fazendo parte da família, nesta sendo sempre o
negligência tomava proporções de verdadeiro parricídio multiplicado pai. Imortal, propício, divino, interessava-se pelo que tinha deixado de
por tantas vezes quanto os antepassados havidos na família. mortal sobre a terra; conhecia as suas necessidades, ajudava os seus nas
Se, pelo contrário, os sacrifícios sempre se realizavam segundo os suas fraquezas. E o homem ainda vivo, o que trabalhava, o que, nodizer
ritos e se os alimentos eram levados ao túmulo nos dias fixados, tínha dos antigos, não tinha ainda se divorciado da existência, esse tinha sem
mos então no antepassado um deus protetor. Hostil a todos os que não pre junto de si, como seus guias e auxiliares, a seus próprios pais. No
descendiam dele, repelindo-os dejunto do seu túmulo, atacando-os com meio das suas dificuldades invoca-os pela sua antiga sabedoria; nas oca
doenças quando dele se aproximavam, para os seus era sempre bom e siões de perigo^suplica-lhes o seu auxílio, depois da falta implora-lhes o
compassivo. perdão.
Havia troca perpétua de bons serviços entre os vivos e os mortos de Certamente que hoje sentimos relutância ao querermos compreen
cada família. O antepassado recebia dos seus descendentes a série de der como um homem pudesse adorar o seu pai ou o seu antepassado.
refeições fúnebres, únicos prazeres usufruídos na sua segunda vida. O Fazer do homem um deus parece-nos contrário à religião. Quase tão
descendente alcançava do seu antepassado o auxílio e toda a força de difícil se torna para nós compreendermos as antigas crenças destes
que necessitava. O vivo não podia passar sem o morto, nem este sem homens, como para eles o teria sido se quisessem entender as nossas.
aquele. Por este motivo, poderoso laço se estabelecia unindo todas as Lembremo-nos, porém, de que entre os antigos não existia aindaa idéia
gerações de uma mesma família, fazendo dela um corpo eternamente de criação; e por isso, para os seus homens, o mistério da geração lhes
inseparável. aparecia como aquilo que o mistério da criação pode hoje representar
Cada família tinha o seu túmulo, onde os seus mortos repousavam para nós. O gerador surgia-lhes como ente divino e por isso o adoravam
juntos, um após outro. Todos os do mesmo sangue deviam ser enterra no seu antepassado. Épreciso que este sentimento seja natural e bastan-
dos ali, com exclusão de toda e qualquer pessoa de outra famíiia(89)t
biógrafo de Tucídides, e em Plutarco, Cimon, 4. —Conhecemos uma velha história
(87) Leis de Manu, III, 138; III, 274. que serve de prova em como se julgava necessário que cada morto fosse enterrado
(88) Justamente aquilo que em grego se chama poieín tà nomizómena no túmulo de sua família; conta-se que os lacedemônios na ocasião de darem bata
(Ésquüo, In Timarch., 40. Dinarca, In Aristog., 18). Cf. Plutarco, Catão, 15: Khrè lha aos messênios, ataram nos seus braços direitos sinais particulares contendo o seu
toís goneúsin enagízein. Note-se em como Dinarca repreende Aristogíton por este nome individual juntamente com o de seu pai, a fim de que, em caso de morte, o
não fazer o sacrifício anual a seu paimorto em Erétria. Dinar., InAristog., 18. corpo de cada um pudesse assim ser reconhecido e transportado ao túmulo paterno;
(89) O antigo uso dos túmulos de família está provado da maneira mais for este traço dos costumes antigos conserva-se emJustino, III, 5. Esquilo alude ao mes
mal. As palavras táphos, patrôios, mnêma patrôion, mnêma tòn prónôn aparecem mo uso quando diz, falando dos guerreiros que vão morrer, que estes serão levados
constantemente nos gregos, do mesmo modo que nos latinos surgem acada passo as para os túmulos dos seus pais, táphôn patrôion lakhai (Sete contra Tebas, V, 914).
palavras tumulus patrius, monumentum gentis. Demóstenes, In Eubulidem, 28. Tà - Os romanos possuíam também túmulos de família. Cícero, De ofic, 1, 17: San-
patròia mnêmata òn koinônoútin ótoiper eiti toü génous. A lei de Sólon proibia guinis conjunctio, eadem habere monumento majorum, iisdem uti sacris, sepulcra
que se enterrassem no túmulo de família homens de outra família; ne alienum habere communia. Como na Grécia, também aqui se proibia o sepultamento no
inferat (Cícero, De legib, II, 26). Demóstenes, in Macartatum, 79, descreve certo túmulo de outra família. Cícero, De legibus, II, 22: Mortuum extra gentem inferri
túmulo como lugar "onde repousam todos os quedescendem de Buselos; chama-se fas negant. Vide Ovídio, Tristes, IV, 3, 45; Veleio, II, 19; SuetÔnio, Nero, 50; Tibê-
o monumento dos Busélidas; segundo a regra antiga, é um grande recinto fechado". rio, I;Cícero, Tuscul., I, 7; Digesto, XI, 7; XLVII, 12, 5.
O túmulo dos Lakiadas, mnêmata Kimônia, encontra-se referido em Marcelino, (90) Eurípides, Helena, 1163-1168.
r 40 CRENÇAS ANTIGAS A RELIGIÃO DOMESTICA 41

te poderoso, para poder surgir, líomo base de uma religião, nas origens cium faciat, era regra absoluta(97). Cada família tinha as suas cerimô
de quase todas as sociedades humanas; encontramo-lo tanto entre os nias, que lhe eram próprias, c do mesmo modo as suas festas particula
chineses, quanto nos antigos getas e citas; não só entre as populações da res, as suas fórmulas de oração e os seus hinos(98). Só o pai, único
África, como até mesmo entre as do Novo Mundo(91). intérprete e único pontífice da sua religião, é que tinha o poder de
O fogo sagrado, tão estreitamente associado do culto dos mortos, ensiná-la, e somente a seu filho, e ninguém mais podiaser instruído nas
tinha também por caráter essencial pertencer propriamente a cada famí regras de sua religião caseira. Os ritos, as palavras próprias da oração, os
lia. Representava os antepassados(92^; era a providência dessa família, cantos, tudo isso preenchendo a parte essencial desta religião doméstica,
nada o ligando ao fogo da fam lia vi/.inha, que, por sua vez, represen era patrimônio, propriedade sagrada que a família com ninguém parti
tava uma segunda providência. Cada lar protegia somente os seus. lhava, sendo até mesmo proibido revelá-los a estranhos. Sucedeu o mes
Toda esta religião se limita ao i ucrior de cada casa. O culto não mo na índia, onde o brâmane dizia: "Sou forte contra os meus inimigos
era público. Antes, ao contraiio, todas as cerimônias se cumpriam pelos cantos conservados da minha família e que meu pai me transmi
somente no seio da família(93). O lai nunca estava colocado nem fora tiu^99).
da casa, nem mesmo junto da oorta exterior, de onde qualquer estra Nesta ordem, a religião não se manifestava nos templos, mas em
nho o pudesse ver sem dificuldíde. Os gregos colocavam-no sempre em casa; cada qual possuía os seus deuses; cada deus não protegia mais de
lugar(94) onde estivesse defendido centra o contato e mesmo contra o uma família e não era deus em mais de uma só casa. Não podemos
olhar dos profanos. Os romanos escondiam-no no próprio coração da racionalmente supor que uma religião com este caráter fosse revelada
casa. A todos estes deuses (fogo, lar;s, manes) chamavam-lhes deuses aos homens pela imaginação poderosa de alguém entre eles, ou por uma
ocultos, ou deuses domésticos(S 5). para todos os atos desta religião se casta de sacerdotes. Nasceu espontaneamente no espírito humano,
tornava indispensável a sua prálica o«:ulta, sacrificia oceulta, na língua sendo seu berço a família e tendo cada família criado os seus deuses.
de Cícero(96); se uma cerimônia fosse presenciada por estranho, logo Esta religião só podia propagar-se pela geração. O pai dando a vida
ficava perturbada, profanada, só pelo :eu olhar. a seu filho transmitia-lhe, ao mesmo tempo, com a vida, a sua crença, o
Para esta religião doméstica nãc existiam nem regras uniformes, seu culto, o direito de manter o lar, de oferecer a refeição fúnebre, de
nem ritual comum. Cada família gozava a esse respeito da mais comple pronunciar as fórmulas da oração. A geração estabelecia esse vínculo
ta independência. Nenhum poder estn nho tinha o direito de estabelecer misterioso entre o filho que nascia para a vida e todos os deuses da
regras para o seu culto ou de fir nar nrjrmas para a sua crença. Não exis família. Estes deuses eram a sua própria família, Theoíéggeneis; eram o
tia outro sacerdote além do pai, e este como sacerdote não conhe seu sangue Theoí súnaimoii100). A criança ficava portadora, logo ao
cia superior hierárquico. O ponlífice de Roma ou o arconte de Atenas nascer, da obrigação de adorá-los e de lhes oferecer os sacrifícios, assim
podiam certificar-se se o pai de família cumpria com todos os seus ritos como também, mais tarde, quando a morte a tivesse divinizado, estaria,
religiosos, mas não tinham o direito de lhe ordenarem a mais ligeira ela própria, por sua vez, contada entre o número dos deuses da família.
alteração nas suas leis domésticas de religião. Suo quisque ritu sacrifi- Mas é preciso atentar, como particularidade, ao fato de esta reli
gião doméstica só se transmitir de linha masculina em linha masculina.
Este fato resulta, sem dúvida nenhuma, da idéia de geração, tal como
(91) Entre os ctruscos c os romanos era costume que cada família guardasse
as imagens dos seus antepassados alinhadas cm volta do atrium. Seriam essas ima
gens simples retratos de família ou íd dos?
(92) Hestia patróia, Focus pairius. C'o mesmo modo, entre os Vedas; ainda (97) Varrão, De ling. lat„ VII, 88.
algumas vezes encontramos Agni invo:ado como deus doméstico. (98) Hcsíodo, Opera, 701. Macróbio, Sat., I, 16. Cícero, De legib., II, 11:
(93) lseu, De Cironis hcreditaU , 15-1 \. Ritus familiac patrumque servare.
(94) Chamava-se a este recinto hérkos. (99) Rig-Veda, trad. Langlois, t. I. p. 113. As leis de Manu mencionam mui
(95) Theoi múkhioi, dii Penatr.s. Cíc:ro, De nat. Deor., II, 27: Penates quod tas vezes os rituais privativos de certas famílias: VIU, 3; IX, 7.
penitus insident. Sérvio, í»i /leu., III, 12: Pinotes ideo appellantur quod in penetra- (100) Sófocles, Antig., 199; Ibid., 659. Comparar Patròioí theoi cm Aristó-
tibus aedium coli solebant.
fanes, Vespas, 388; ÉsquUo, Pers., 404; Sófocles, Electra, 411; Theoi genethlioi,
(96) Cícero, De arusp. resp., V. • Platão, Leis, V, p. 729; Digeneris, Ovídio, Fast.. II, 631.
42 CRENÇAS ANTIGAS

os homens a conceberam(lOl). a crença das eras primitivas, como a


encontramos nos Vedas, e da qual restam vestígios por todo o direito
grego e romano, foi a de o poder reprodutor residir exclusivamente no
pai. Só o pai possuía o princípio misterioso do ser e transmitia essa LIVRO SEGUNDO
centelha de vida. £ deste antigoconceito se partiu até provir como regra
que o culto doméstico passasse sempre de varão para varão;a mulher só
participava nesse culto por intervenção de seu pai ou de seu marido e, A família
depois da morte, não recebia a mesma parte que o homem no culto e
nas cerimônias da refeição fúnebre. Daqui resultam, ainda, outras conse
qüências muito graves, no direito privado e na constituição da família;
vê-las-emos mais adiante.

CAPÍTULO I
A religião como principal elemento constitutivo
da família antiga
Se nós nos transportarmos, em pensamento, para o seio dessas antigas
gerações de homens, encontraremos em cada casa um altar, e ao redor
desse altar, toda a família reunida. Cada manhã, a família ali se reúne
para dirigir ao lar as suas primeiras orações, enão há noite em que ali o
não invoque ainda uma derradeira vez. Durante odia, junto dele compa
rece para a refeição, partilhada pela família piedosamente, depois da
oração e libação. Em todos os seus atos religiosos a família canta em
comum os hinos que seus pais lhe legaram. Fora de casa, em campo
vizinho, mas o mais próximo possível de casa, existe o túmulo. É a
segunda morada desta família. Aqui repousam em comum muitas gera
ções de antepassados; a morte não os separou. Continuam agrupados
entre si nesta segunda existência e persistem, formando uma família
indissolúvel.
Entre os vivos e os mortos da família apenas existe a distância de
alguns passos, tantos quantos os que separam a casa do túmulo. Em
certos dias, determinados na sua religião doméstica por cada família, os
vivos reúnem-se junto dos antepassados. Levam-lhes arefeição fúnebre,
derramam-lhes leite evinho, depõem os bolos e as frutas, ou queimam
para eles as carnes de alguma vítima. Em troca destas oferendas, cla
mam por sua proteção; tratam-nos por seus deuses e pedem-lhes que
tornem o seu campo fértil, a casa próspera, os corações virtuosos.
A origem da família antiga não está unicamente na geração. A
(101) Os Vedas consideravam o fogo sagrado como causa da posteridade mas
culina. Vide oMitakchara, trad. Orianne, p. 139. 43
r 44 A FAMÍLIA
O CASAMENTO 45

os estabeleceu. Sem dúvida, não foi a religião que criou a família, mas
prova disso temos no fato de a irrrã na família não igualar seu irmão, no seguramente foi a religião que lhe deu as suas regras e daí resultando
filho emancipado ou a filha casadí deixarem completamente de fazerem receber a família antiga constituição muito diferente da que teria tido
parte dela, e, enfim, nas numerasas disposições importantes das leis se os sentimentos naturais dos homens tivessem sido os seus únicos
gregas e romanas, como adiante teremos ocasião de estudar.
causadores.
O esteio da família não o encontramos tampouco no afeto natural.
O direito grego como o direito romano não tinham em conta este senti A antiga língua grega oferecia palavra bastante significativa para
designar a família; chamava-lhe èpístion, o que literalmente significa:
mento. Este podia realmente exislir no íntimo dos corações, mas parao
aquilo que está junto de um lar. A família era assim um grupo de pes
direito não contava, nada era. O sai pedia amar sua filha, mas não lhe soas a quem a religião permitia invocar o mesmo lar e oferecer a refei
podia legar os seus bens. As leis d2 sucessão, isto é, aquelas leis de entre ção fúnebre aos mesmos antepassados!2).
as demais que com mais exatidão traduzem as idéias formadas pelos
homens acerca da família, essas, -istão em flagrante contradição, tanto
com a ordem de nascimento como com o afeto naturalU).
Os historiadores do direito romanc, muitojustamente, têm notado
CAPITULO II
que nem o nascimento, nem o afeto foram fundamento da família
romana, julgando que devemos ir encontrar este fundamento no poder O casamento
paterno ou no marital. Fazem deste poder uma espécie de institui
ção primordial. Mas não explicam como a família se formou, a não
ser pela superioridade da força de marido sobre a mulher, do pai sobre Na verdade, a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica
os filhos. Ora, parece-nos um e:TO grave atribuir-se assim à força a
origem do direito. Veremos, além disso, como a autoridade paternal, ou foi o casamento.
a marital, longe de ter sido causa principal, foi, ela mesma, efeito; deri É preciso reparar como esta religião do lar e dos antepassados,
vou da religião e por esta foi estabelecida: não foi, pois, o principal transmitindo-se de varão em varão, não pertenceu exclusivamente ao
elemento constitutivo da família.
homem, pois a mulher também tomava parte no culto. Como filha, a
O que uniu os membros da família antiga foi algo de mais pode mulher assiste aos atos religiosos de seu pai; depois de casada, aos de
roso do que o nascimento: o sentimento ou a força física;.na religião do seu marido.
lar e dos antepassados se encontra esse poder. Areligião fez com que a Só por isso avalia-se bem o caráter essencial da união conjugai
família formasse um corpo nesta e na outra vida. A família antiga é entre os antigos. Duas famílias vivem ao lado uma da outra, mas têm
assim associação religiosa, mais cue associação natural. Também vere deuses diferentes. Numa destas famílias, a rapariga toma parte, desde a
mos como a mulher só será verdadeiamente considerada, quando a infância, na religião de seu pai; invoca o seu lar; oferece-lhe libações
cerimônia sagrada do casamento :. tiver iniciado no culto; como o filho diárias, cerca-o de flores e de grinaldas nos dias de festa, pede-lhe prote
já não conta tampouco para a família quando renuncia ao culto ou em ção, agradece-lhe os benefícios recebidos. Esse lar paterno é o seu deus.
sendo emancipado; como, ao contrário, o adotado se tornará verdadeiro Se, porém, o moço da família vizinha a pede em casamento, trata-se,
filho para a família, porque, embora não exista o laço de sangue, passa a para esta moça, de ato diferente do de passar de uma casa para outra.
ter na comunhão do culto alguma coisa de mais e de melhor que o san Trata-se de abandonar o lar paterno, para ir invocar dali em diante o lar
gue; como o legatário ao recusar-se a adotar o culto dessa família não do esposo. Trata-se de mudar de religião, de passar a praticar outros
terá a sua sucessão; enfim, como o parentesco e o direito à herança ritos e a pronunciar outras orações. Vai deixar o deus da sua infância•
estão regulados, não por virtude do fato-nascimento, mas de acordo para se colocar sob o império de um deus até então para ela de todo
com os direitos de participação no culto, e exatamente como a religião
(2) Heródoto, V, 73, para nomear 700 famílias, emprega a expressão hepta-
kótia hepistia. Em outro lugar, I, 176, para designar 80 famílias, diz ogdòkonta
(1) Torna-se evidente que falamos aqu do direito mais antigo. Veremos a hestiai. A mesma expressão pode encontrar-se emPlutarco, Rômulo, 9.
seguir como estas velhas leis foram se rcogando.
46 A FAMÍLIA O CASAMENTO
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desconhecido. Não espere permanecer fiel a um, honrando o outro, rancia, nao se pode deixar de invocá-los, também, nas orações do casa
porque nesta religião é princípio imutável a mesma pessoa não poder mento; torna-se mesmo costume ir previamente aos templos oferecer
invocar dois lares, nem duas séries de antepassados. "A partir do casa aos deuses sacrifícios, cerimônia a que se dá onome de prelúdios do
mento, diz escritor antigo, a mulher nada mais tem de comum com a casamento(6). Mas a parte principal e essencial da cerimônia continua
religião doméstica de seus pais: sacrifica no lardo marido"!3). realizando-se sempre diante do lar doméstico.
O casamento é, assim, ato sério para a moça, mas não o é menos Entre os gregos a cerimônia do casamento constituía-se, digamos,
para o esposo. Porque esta religião exige se tenha nascido junto do em três atos. O primeiro passava-se diante do lar do pai, èggúesis; oter
lar para se ter o direito de nele sacrificar. E, não obstante isso, este ceiro, no lar do marido, télos, sendo o segundo o da passagem de um
homem vai introduzir uma estranha junto do seu lar; juntamente com paraoutro lar,pompé.
esta, irá esse homem, futuramente, desempenhar as misteriosas cerimô 1.° Na casa paterna, estando presente o pretendente, o pai
nias do seu culto, revelar-lhe-á os ritos e as fórmulas, seu patrimônio de rodeado ordinariamente de sua família, oferece o sacrifício, Terminado
família. Nada de mais precioso tem o homem que esta herança; estes este, pronunciando certa fórmula sacramentai declara dar sua filha ao
deuses, ritos, hinos, conservados de seus pais e protegendo-o na vida, e rapaz. Esta declaração torna-se inteiramente indispensável no casamen
a prometerem-lhe a riqueza, a felicidade e a virtude. Contudo, em vez to. Porque a moça não pode ir adorar olar do esposo, enquanto seu pai
de guardar só para si esse poder tutelar, como o selvagem retém junto previamente não a tiver desligado do lar paterno. Para entrar na sua
de si o ídolo ou o amuleto, vai este homem tomar mulher, para com ela nova religião, deve estar desligada de todo o laço e de todo o afeto atri
partilhardesse seu dom. buídos à sua primitiva religião(7).
Deste modo, ao penetrarmos no pensar destes antigos, vê-se da 2.o Amoça élevada àcasa do marido. Algumas vezes éopróprio
importância da união conjugai, assumida por estes homens, e como, marido quem a conduz(8). Nalgumas cidades, o encargo de conduzir a
para isso, se lhes tornava indispensável a intervenção da religião. Não donzela pertence a um desses homens que entre os gregos tinham cará
seria preciso qualquer cerimônia religiosa para iniciar a moça no culto ter sacerdotal e eram chamados arautos(9). Ordinariamente a moça
que seguirá daí em diante? Para se tornar sacerdotisa desse lar, a que, no seguia de carro(lO), tendo o rosto coberto com um véu elevando uma
entanto, o nascimento não a ligava, não necessitará de uma espécie de coroa na cabeça. A coroa, como teremos ocasião de ver muitas vezes,
ordenação, ou de adoção? era de uso em todas as cerimônias do culto. O vestido é branco. O
O casamento era a cerimônia santa que devia produzir esses gran branco era a cor do vestuário em todos os atos religiosos. Alguém a
des efeitos. É costume nos escritores latinos ou gregos designar o casa precede, levando um archote, oarchote nupcial(l 1). Por todo opercur
mento por palavras que o indicam como ato religioso(4). Pólux, vivendo so se canta em sua volta certo hino religioso, tendo por estribilho
no tempo dos Antoninos e possuidor de toda essa literatura antiga que ô humén ò humênaie. Chamava-se a este hino himeneu eaimportância
não chegou aos nossos dias, refere-se a como, em épocas distantes, em do canto era tão grande que deu o seu nome a todaa cerimoniai 12).
vez de se designar o casamento pelo seu nome peculiar (gamos), o desig
(6) Protéleia, progàmia. Pólux, III, 38.
navam simplesmente pela palavra télos, que quer significar cerimônia (7) Heródoto, VI, 130. Iseu, DePhiloctem. hered., 14. Demóstenes dáalgu
sagrada(5): como se, nos tempos antigos, o casamento fosse a cerimô mas palavras da fórmula: Egguô epi dikaióis dámarta etnai (In Stephanum, II, 18).
nia sagrada por excelência. Esta parte do ato do casamento chama-se também ékidotis, traditio, Pólux, III,35.
Ora, a religião realizadora do casamento não era a de Júpiter, de Demóstenes, Pro Phormione, 32.
Juno, ou a dos outros deuses do Olimpo. A cerimônia não tinha lugar (8) Pólux, III, 41.
no templo, mas em casa, sendo o deus doméstico quem presidia ao ato. (9) Plutarco, Quest. grecq., 27.
(10) Plutarco, Quest. rom., 29. Photius, Lex., p. 52: Paralabóntes autôn ek
É verdade que, quando a religião dos deuses do céu alcança preponde- tês patrôias hestías epi tên hamàzan ágoutin eis tên toú gamoüntos.
(11) Ilíada, XVIII, 492. Hesíodo, Scutum, 275. Eurípides, Ifig., em Aulis,
(3) Dicearca, citado em Estêvão de Bizâncio, v.° pátoa. 732;Fenícios, 344; Helena, 722-725. Pólux, III, 41. Luciano, Aétion, 5.
(4) Thúein gámon, sacrum nuptiale. (12) Uiada, XVIII, 495. Hesíodo,Scutum, 280. Aristófanes, Aves, 1720,Paz,
(5) Pólux, III, 3, 38. 1332. Pólux, III, 37; IV, 80. Photius, Biblioth., c. 239.

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