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Mas ó mãe!…
Hoje é domingo!
O homem que lê
Os Livros Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Apetece chamar-lhes Olhei as suas páginas como rostos
irmãos, que se ensombram pela profunda reflexão
tê-los ao colo, e em redor da minha leitura parava o tempo.
afagá-los com as mãos, —
De repente sobre as páginas lançou-se uma
abri-los de par em par, luz
ver o Pinóquio a rir e em vez da tímida confusão de palavras
e o D. Quixote a sonhar, estava: tarde, tarde… em todas elas.
e a Alice do outro lado Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
do espelho a inventar as longas linhas, e as palavras rolam
um mundo de assombros dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
que dá gosto visitar. transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
Apetece chamar-lhes irmãos o sol deve ter surgido de novo. —
e deixar brilhar os olhos E agora cai a noite de Verão, até onde a vista
nas páginas das suas mãos. alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos
Pela casa fora, José Jorge grupos,
Letria obscuramente, pelos longos caminhos vão
pessoas
e estranhamente longe, como se significasse
algo mais,
Ler ouve-se o pouco que ainda acontece.
Ler sempre.
Ler muito. E quando agora levantar os olhos deste livro,
Ler “quase tudo”. nada será estranho, tudo grande.
Ler com os olhos, os ouvidos, com Aí fora existe o que vivo dentro de mim
o tacto, pelos poros e demais e aqui e mais além nada tem fronteiras;
sentidos. apenas me entreteço mais ainda com ele
Ler com razão e sensibilidade. quando o meu olhar se adapta às coisas
Ler desejos, o tempo, o som do e à grave simplicidade das multidões, —
silêncio e do vento. então a terra cresce acima de si mesma.
Ler imagens, paisagens, viagens. E parece que abarca todo o céu:
Ler verdades e mentiras. a primeira estrela é como a última casa.
Ler o fracasso, o sucesso, o
ilegível, o impensável, as O Livro das Imagens, Rainer Maria Rilke
entrelinhas.
Ler na escola, em casa, no campo, Os livros. A sua cálida,
na estrada, em qualquer lugar. terna, serena pele. Amorosa
Ler a vida e a morte. companhia. Dispostos sempre
Saber ser leitor, tendo o direito de a partilhar o sol
saber ler. das suas águas. Tão dóceis,
Ler simplesmente ler. tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
Edith Chacon Theodoro branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
Ofício de Paciência, Eugénio de Andrade
Os heróis dos livros E no centro do centro do mundo,
Deflagravam guerras, desse vasto mundo tumultuoso,
morriam presidentes, eu aprendia os sonhos dos homens,
vulcões despertavam, decorava as dores dos homens
tufões desfaziam cidades inteiras. e neles me conhecia.
Pouco soube porém
do que se passava nos confins da Terra. O G é um gato enroscado, João Pedro
Porque perto, muito perto de mim, Mésseder
os cavalos do Pony Express
deixavam atrás do galope
um rasto de poeira do deserto,
Pó
e no Kentucky Daniel Boone
batia-se com os Shawnees Nas estantes os livros ficam
em combates de vida ou de morte; (até se dispersarem ou desfazerem)
Spártaco em Cápua levantava os enquanto tudo
escravos, passa. O pó acumula-se
e na esplanada do Café do Gato e depois de limpo
com os dedos sujos de graxa torna a acumular-se
Pepe salivava no cimo das lombadas.
diante do homem gordo Quando a cidade está suja
ao molhar churros quentes (obras, carros, poeiras)
numa chávena fumegante; o pó é mais negro e por vezes
os meninos da gruta espesso. Os livros ficam,
na Nova Zelândia valem mais que tudo,
fugiam de casa para a montanha mas apesar do amor
e do alto observavam (amor das coisas mudas
no vale os pequenos adultos; que sussurram)
o pai, Sandália de Vento, e do cuidado doméstico
e o filho, Sapato de Fogo, fica sempre, em baixo,
corriam mundo mochila às costas, do lado oposto à lombada,
como dois velhos amigos; uma pequena marca negra
e Rudi, o rapaz da Steinstrasse 16, do pó nas páginas.
ali, bem ao pé da porta, A marca faz parte dos livros.
crescia desvendando um mistério Estão marcados. Nós também.
para provar a sua inocência:
Duplo Império, Pedro Mexia
Não fui eu quem roubou o relógio,
não fui eu quem roubou o relógio. A um livro
Por causa de todos eles, No silêncio de cinzas do meu Ser
pouco soube das fomes, das cheias, Agita-se uma sombra de cipreste,
dos temporais e das batalhas Sombra roubada ao livro que ando a ler,
que varriam o mundo no meu tempo. A esse livro de mágoas que me deste.
Mas Boone,
Spártaco, Estranho livro aquele que escreveste,
Pepe, Artista da saudade e do sofrer!
Rudi, Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!
Sapato de Fogo
e os outros, Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
no escuro sótão da minha infância, O livro que me deste é meu, e salma
no coração de uma cidade de granito, As orações que choro e rio e canto!…
olhavam-me nos olhos,
rosto diante de rosto: Poeta igual a mim, ai que me dera
gente de palavras Dizer o que tu dizes! … Quem soubera
com cara-de-muitos-amigos. Velar a minha Dor desse teu manto!…
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.