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11/03/2018 Sociedade de classes e violência sexual (2): Uma história do estupro | Passa Palavra

Sociedade de classes e violência sexual (2): Uma


história do estupro
18/06/2017

"Violação das Mulheres de Sabine", de Pietro de Cartona

À medida que o capitalismo, o direito e a ética burguesa se reforçavam as


mulheres adquiriram “liberdade” para consentir ou rechaçar o sexo. Por Maya
John

Leia aqui a série completa.

Uma história do estupro: um fenômeno sempre presente?

Desde os anos 70 e 80, os círculos intelectuais in uenciados pela perspectiva


feminista foram evoluindo, pondo cada vez mais ênfase na questão da
violência sobre as mulheres. Alguns textos elaborados por estes meios
particulares de debate e discussão se tornaram hegemônicos no que se refere à

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questão da violência sexual sobre as mulheres. Os ecos destes debates,


movimentos e campanhas promovidos por estas intervenções feministas não
tardaram em ser ouvidos em outras partes do mundo. In uenciados pelo
movimento feminista dos Estados Unidos, onde várias campanhas feministas
lograram importantes reformas judiciais e políticas, surgiram na Índia vários
grupos autônomos de mulheres a partir do movimento de mulheres
previamente existente. De fato, todo este processo de surgimento de grupos
autônomos de mulheres na Índia contou com a colaboração das redes
mundiais de grandes ONGs e agências subvencionadas, que promoveram por
todo o mundo suas campanhas para “empoderar” as mulheres e mudar as leis,
campanhas nas quais se defendia a perspectiva de algumas feministas norte-
americanas.

Ali, o livro de Susan Brownmiller, Contra nossa vontade: Homem, Mulher e


Estupro [Against Our Will: Men, Women and Rape][14], que em 1995 foi
selecionado pela Biblioteca Pública de Nova York como uma das 100 obras
mais importantes e in uentes do século XX, constitui uma das mais famosas
contribuições à questão do estupro. Este trabalho in uenciou muitas ativistas,
estudantes e intelectuais em todo o mundo, o que se re ete na popularidade
que gozam em vários círculos feministas suas teorias de que a violência sexual
que sofrem as mulheres (o estupro, o assédio sexual e a exploração sexual) não
tem nada a ver com sexo, e sim com poder. Em sua obra, o estupro se de ne
como “um processo consciente de intimidação mediante o qual todos os
homens mantêm todas as mulheres em um constante estado de medo”. Em
termos parecidos, a rma coisas como: “o descobrimento por parte do homem
de que seus genitais podiam ser uma arma geradora de medo é um dos mais
importantes da época pré-histórica, junto ao descobrimento do fogo e o
machado de pedra” (Susan Brownmiller); “em termos de anatomia humana, a
possibilidade de forçar o coito sem dúvida existe… Este simples fato pode ter
sido su ciente [grifo de MJ] para gerar a ideologia masculina do estupro”
(ibid.); e os esforços do homem por submeter a mulher constituem “a luta

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mais longa que o mundo já viu” (ibid.). É importante assinalar que este
enfoque particular do estupro, que dá destaque à opressão ligada à
desigualdade de gênero, é o que distingue a análise feminista das demais
análises sobre o estupro[15].

Ironicamente, as mencionadas concepções feministas se parecem bastante


com essa controvertida perspectiva conhecida como “história natural do
estupro”[16]. Segundo esta história natural do estupro, os homens tendem a
estuprar devido à agressiva orientação de sua sexualidade, enquanto as
mulheres tendem a ser violadas devido à sua atitude submissa, e porque sua
sexualidade está menos governada pelo desejo sexual que pelo desejo de uma
relação estável e forte. A capacidade de estuprar se considera, pois, como uma
forma de adaptação humana a uma vida hostil, ou como uma consequência da
adaptação do desejo sexual e a agressividade, que evoluíram desde a época
primitiva por razões que nada têm que ver com os “benefícios” dos
estupradores ou o “custo” do estupro para as vítimas. Em outras palavras,
segundo as teorias da seleção sexual, a copulação e a reprodução dos humanos
primitivos só era possível naqueles casos em que os homens sexualmente
agressivos e sicamente fortes forçavam as mulheres. Assim, a agressão
sexual se converteu em uma parte da masculinidade humana, que evoluiu
progressivamente. Por sua parte, a evolução das mulheres primitivas se
baseou supostamente no refreio de si mesmas, para evitar que homens não
agressivos, menos férteis ou menos viris copulassem com elas[17].

A perspectiva da história natural do estupro e a feminista têm em comum o


fato de que consideram o estupro de forma a-histórica, deixando-o à margem
da sociedade onde se produzem os estupros[18]. Por quê? Para explicar o
problema que é posto por esta forma a-histórica de enfocar as diferenças de
gênero e a violência sexual, vamos nos imaginar em uma enquete.
Suponhamos uma situação em que uma mulher se aproxime dos primeiros dez
homens que se encontram pela rua e lhes pergunta se querem ter relações
sexuais com ela. E suponhamos também a situação oposta, um homem que se
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acerca das primeiras dez mulheres que vê e lhes pergunta se querem ter
relações sexuais com ele. O que ocorreria? No caso da mulher, podemos supor
que a maior parte dos homens aceitaria a oferta. No caso do homem, a maior
parte das mulheres ou considerariam uma ofensa ou se queixariam de seu
comportamento. E se esta mulher e este homem fossem transladados a
distintas épocas da história humana, o resultado seria o mesmo? Podemos
assegurar que a resposta das mulheres à oferta do homem seguiria sendo a
mesma, e que seguiria considerando-se como uma afronta? O normal seria
que as respostas variassem, pois a estrutura da sociedade humana, a natureza
e a forma das relações humanas etc. passaram por consideráveis mudanças
desde a época primitiva.

Com a evolução da sociedade primitiva à sociedade agrária, e mais tarde com a


passagem da sociedade pré-capitalista para a capitalista, que supôs enormes
mudanças demográ cas, urbanas, comerciais, etc., seria um erro dizer que
não se produziram mudanças na forma em que se desenvolve e se expressa a
sexualidade masculina e feminina. Estas mudanças na sexualidade masculina
e feminina, assim como a situação geral da mulher, tiveram que provocar
mudanças na existência, no signi cado e na frequência dos casos de estupro.
Está claro que o estupro só pode se apresentar como uma prática onipresente
através de um processo de contínuas mudanças sociais se empregarmos
noções a-históricas de diferenças de gênero e supusermos que a sexualidade
humana permaneceu inalterada. Infelizmente, existe uma forte inclinação a
considerar a separação de gênero como um sistema/divisão que é
independente das condições históricas e socioeconômicas predominantes. Se
seguirmos esta concepção da realidade social, é fácil, se não inevitável, cair na
concepção de que a desigualdade homem-mulher atravessa tudo, e de que
ademais esta desigualdade não se pode atribuir nem explicar a partir das
estruturas socioeconômicas sobre as quais se desenvolve.

É claro, o movimento comunista internacional e algumas correntes do


movimento das mulheres puseram em dúvida esta concepção da desigualdade
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de gênero. Graças a essa intervenção, a


desigualdade de gênero foi progressivamente
historicizada, de tal forma que se conseguiu revelar
sua relação[linkages] com a forma em que
surgiram e evoluíram na sociedade humana as
“Violação das Mulheres de Sabine”, de
Pietro de Cartona relações sociais de domínio. Assim, se pensa que
estas divisões sociais baseadas no gênero, que
aceitam uma sexualidade feminina submissa e uma sexualidade masculina
agressiva, não estavam presentes nas sociedades humanas primitivas, onde
semelhantes relações de domínio estavam mais ou menos ausentes. Anos e
anos de intensa pesquisa acadêmica interdisciplinar terminaram
corroborando estas a rmações. Estudos recentes também demonstraram que
até mesmo na sociedade “contemporânea” existem algumas comunidades
humanas livres de estupro[19].

No século XIX, ao estudar as incipientes pesquisas sobre os humanos


primitivos (que viveram como caçadores e coletores em pequenos bandos),
Friedrich Engels apresentou uma das primeiras formulações sobre a opressão
da mulher desde a perspectiva do movimento comunista internacional. Em sua
obra[20] Engels demostrava de que forma o gradual desenvolvimento da
produção excedente (em forma de agricultura e domesticação de animais)
terminou criando as primeiras sociedades classistas, que por sua vez levaram
ao surgimento da unidade familiar monogâmica. Segundo Engels, quando se
fez possível produzir um excedente de alimentos, a sociedade foi capaz de
manter uma minoria de seres humanos à margem do penoso trabalho
produtivo diário. Isto deu lugar a sociedades de classe baseadas na submissão
da maioria por parte da minoria. Esta minoria só podia manter seu domínio
mediante o controle da produção excedente, o que levou ao surgimento do
poder armado, o Estado, assim como à herança no seio da família. A questão da
herança surgiu juntamente ao produto excedente, pois aqueles que se
dedicavam ao trabalho produtivo rotineiro tratavam de proteger seu direito

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sobre sua porção de excedente. Os lhos adquiriram importância como


depositários dos direitos de seus pais sobre o excedente, e se converteram na
garantia desse excedente quando seus pais envelheciam. No entanto, em uma
sociedade em que os homens e as mulheres não praticavam a união
monogâmica, não era fácil estabelecer os direitos sobre o trabalho dos
descendentes partindo da base de quem dava a luz aos lhos, pois muitos
homens podiam reclamar sua paternidade. Para resolver esta crise, as jovens
sociedades agrárias estabeleceram o “direito paterno” em lugar do “direito
materno” sobre a progênie, uma transformação histórica que restringiu a
prática da poligamia e a substituiu pela monogamia.

Antes que surgissem as primeiras sociedades classistas, a monogamia e a


supervisão coletiva do comportamento sexual não constituíam a norma, pois
os primeiros ou primitivos grupos humanos tinham normas sexuais menos
restritivas, que permitiam o prazer e o desfrute sexual, ainda que seja provável
que existissem algumas regras de nidas e algumas restrições para pôr o grupo
a salvo da possível extinção. Nestas condições históricas em que os humanos
viviam em pequenos grupos onde todos faziam as mesmas tarefas, isto é,
caçar e coletar comida, a atividade sexual não se baseava na escolha de uma
parceira ou outra. Por exemplo, não se escolhia o “melhor caçador”, ou o
“mais gato”, ou o de “melhor status”, etc. dentro do grupo de iguais que
realizavam as mesmas funções[21]. E mais, naquele momento a atividade
sexual era muito comum e estava organicamente ligada à vida diária e à rotina
dos humanos primitivos, e não se via afetada por questões de hierarquia ou
propriedade. A noção de hierarquia estava de fato ausente, pois as divisões
sociais não existiam entre os primitivos humanos. Assim, nestas jovens
formações sociais, as mulheres não rechaçavam a atividade sexual dos
diversos homens. Ao menos isto é o mais plausível, tendo em conta que, ao
contrário das integrantes de outras espécies que passam por um período de
excitação sexual vinculado à sua ovulação, a mulher humana evoluiu de tal
forma que é capaz de estar sexualmente ativa e de desfrutar da atividade

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sexual durante todo o ano. É ademais um fato que a mulher, ao contrário de


outras primatas, é a única que parece ter capacidade para alcançar um
orgasmo[22].

Aqui poderíamos nos perguntar se a gravidez


poderia ter sido um fator que restringisse a
atividade sexual dos homens e mulheres
primitivos. No entanto, no contexto de uma
formação social que ainda não compreendia a
“Estupro”, de Pablo Picasso
imediata conexão entre a atividade sexual e a
concepção, coisa que não era fácil de intuir tendo
em conta o lapso de nove meses que tarda a mulher em dar a luz, é difícil
pensar que a gravidez levasse as mulheres a rechaçar o sexo. Dado, ademais,
que as mulheres são sexualmente ativas durante todo o ano, não devia ser
simples para os primitivos humanos dar-se conta do papel que jogam as
relações sexuais na concepção. E mais, em uma sociedade na qual o cuidado
dos lhos era uma tarefa de todo o grupo, a gravidez estava longe de supor
uma carga suportada exclusivamente pelas mulheres que pariam os lhos.
Assim, pois, é evidente que em semelhante contexto histórico o estupro era
um fenômeno que estava ausente.

Não obstante, à medida que a sociedade foi progredindo desde a época


primitiva, e à medida que a questão da propriedade e o produto excedente
foram adquirindo importância, as primeiras sociedades de classe começaram a
a rmar o direito paterno sobre a progênie, promovendo assim a legitimidade
da unidade familiar monogâmica. Engels chamava esta progressiva
desaparição do direito materno de “primeira derrota histórica do sexo
feminino”, um processo que abriu o caminho para que o sexo feminino fosse
progressivamente identi cado como “mulher-do”, propriedade do guardião
masculino da unidade familiar. Neste sentido, a a rmação independente da
sexualidade feminina foi sendo cada vez mais estigmatizada.

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Dentro deste processo de limitação da sexualidade feminina a m de


monopolizar os direitos reprodutivos das mulheres, que se impunha pouco a
pouco e ia aumentando a opressão, o estupro começou a identi car-se
gradualmente como um ataque sexual de caráter criminal sobre as mulheres. O
sentido genérico da palavra rape [estupro, em inglês] ilustra muito bem como
se percebia a sexualidade feminina e como se foi conformando com o passar
do tempo. A raiz da palavra é o verbo latino rapere, que signi ca tomar ou
colher pela força. Originalmente se de nia como o sequestro de uma mulher
contra sua vontade ou a do homem sob cuja autoridade vivia, e o coito nem
sequer era um elemento necessário. Considerada mais como um sério crime
contra a propriedade do homem “proprietário” da sequestrada do que como
um ataque à mulher, as leis antigas costumavam ditar uma compensação
nanceira por parte do violador (sobretudo nos casos em que as mulheres
acabavam comprometidas com alguém), que se devia pagar à família da
mulher cujos “bens” haviam sido “violados”. Simplesmente, a princípio o
estupro foi considerado como um crime contra a comunidade e a família da
mulher afetada, não como um ataque ao corpo da mulher sem seu
consentimento. Não surpreende, pois, que as mulheres começaram também a
ser castigadas por manter relações sexuais sem a permissão dessas
comunidades e famílias. Como resultado, toda atividade sexual que saísse das
normas, como o adultério, a fuga com o amante, etc., também se considerava
um estupro. Só com o passar do tempo (a partir da Baixa Idade Média), em
algumas partes do mundo, o estupro começou a ser de nido em seu sentido
moderno e a excluir de seu âmbito algumas práticas, como a fuga sem a
permissão familiar.

Este desenvolvimento histórico está estritamente ligado ao surgimento da


gura do sujeito individual, um produto do período renascentista em Europa,
época em que gradualmente se foram superando as leis senhoriais feudais,
substituídas pela lei municipal que surgiu nas novas cidades que prosperaram
com a expansão do comércio e que eram controladas pelas ricas famílias de

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mercadores. Nesta luta contra as leis comunais feudais que garantiam a


propriedade hereditária dos recursos (também dos lucros comerciais) e os
direitos baseados no pertencimento a um Estado, comunidade, etc., os novos
municípios (paraísos do capitalismo mercantil em ascensão) começaram a
a rmar os direitos e o status do indivíduo frente à comunidade. Por conta
disso, inclusive o estupro começou gradualmente a deixar de ser considerado
como um ataque à família ou à comunidade a que pertencia a mulher, e a ser
concebido como um ataque aos direitos inalienáveis do indivíduo.

“Susana e os Velhos”, de Artemisia Gentileschi

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O surgimento da gura do sujeito individual não foi simplesmente um produto


das leis municipais, mas de transformações socioeconômicas através das quais
os indivíduos foram arrancados da estrutura comunitária à medida que o
trabalho e a propriedade deixavam de depender do pertencimento do indivíduo
a uma comunidade ou a um Estado. Nestas novas condições socioeconômicas,
a eleição individual do companheiro não só se fez possível, como também
desejável. O surgimento da Ilustração, a progressiva perda de in uência da
igreja ortodoxa, etc., foram fatores que também contribuíram com o processo
que necessitavam as mulheres para poder (e querer) exercer seu
consentimento individual à margem da comunidade e da família. Assim, se
foram desenvolvendo os paradigmas e as sanções legais oportunas, apesar das
limitações que eram impostas pela transição do pré-capitalismo ao
capitalismo, marcada por complexidades (questão à qual voltaremos mais
tarde). Com o tempo, pois, a escolha e o consentimento individual foram
adquirindo importância, e o estupro terminou sendo de nido como o coito
sem o consentimento individual da mulher. Além disso, dito consentimento
supunha claramente uma ação “voluntária” que, se por um lado a rmava sua
independência frente aos ditados da comunidade, por outro também implicava
a exclusão de certos indivíduos dessa possível escolha. Basicamente, a mulher
podia escolher, mas só entre certos homens.

Com a extensão do colonialismo aos países do Oriente e da África, as


transformações econômicas que se produziram e as intervenções do Estado
colonizador na vida social das colônias terminaram provocando o
desenvolvimento de estruturas socioeconômicas similares, um
desenvolvimento que culminou no surgimento de regimes legais semelhantes
nas colônias, que foram impondo progressivamente a gura do sujeito
individual e os direitos do indivíduo[23]. No contexto da Índia, há duas coisas
que é importante assinalar no que diz respeito à evolução da categoria estupro.
Primeiro, a palavra “estupro” se dizia (e em general se segue dizendo) “izzat
lootna”. Esta terminologia indica que, como em outras partes do mundo, o

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estupro não tinha nada que ver com a questão do consentimento individual da
mulher. Ao contrário, o signi cado do termo estupro era um ataque à honra da
família da mulher e de sua comunidade. Neste sentido, o estupro se concebia e
identi cava com o acesso sexual ilegítimo a uma mulher, que implicava
desonra para a família/comunidade e, portanto, incluía também as relações
sexuais consentidas entre um homem e uma mulher. A segunda coisa a
apontar sobre a evolução da categoria estupro na Índia é o con ituoso e
gradual processo através do qual o termo evoluiu até chegar a englobar o
elemento de consentimento individual por parte da mulher[24]. No século
XIX, na Índia, os debates em torno da legislação colonial, como no caso do
ritual sati, a idade de matrimônio, etc., nos ajudam a perceber todo este
processo através do qual a escolha e o consentimento individual terminaram
sendo uma parte crucial do tecido legislativo das sociedades colonizadas.

Não é preciso dizer que este processo através do qual foi surgindo a gura
legal do sujeito individual, com o desenvolvimento da economia capitalista,
esteve assolado por complicações[25] e, portanto, não foi um processo de
desenvolvimento linear. Não obstante, este processo impulsionou várias
mudanças institucionais e legais, e gradualmente terminou estabelecendo
novas formas de direito de propriedade e de relações laborais que muitas vezes
desa avam o sistema tradicional de direitos baseados no nascimento. Em
muitas circunstâncias, o Estado colonial impunha deveres contratuais e
cidadãos baseados na gura do sujeito individual frente ao Estado. Neste
complexo processo, para evitar que “o indivíduo se refugiasse no anonimato
de sua comunidade” e que “mudasse o nome para escapar de suas
responsabilidades individuais legais ou contratuais”[26], é que pela primeira
vez se outorga às mulheres a condição de sujeitos individuais.

De fato, os anais jurídicos do período colonial estão recheados de casos de


“fugas” (relações entre indivíduos de distintas castas) nos quais os “tutores”
masculinos tentavam separar suas lhas dos homens com quem haviam
escolhido viver. Estes “tutores” costumavam acusar estes homens de
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sequestro, rapto e matrimônio forçado de suas lhas. Alguns interessantes


estudos sobre estes casos de “fuga” revelam que o Estado colonial se viu
obrigado a determinar e estabelecer os direitos individuais das mulheres, por
um lado, e a proteger os direitos familiares ou comunitários tradicionais, por
outro[27]. Claro, com o passar do tempo as profundas mudanças econômicas
foram erodindo as travas impostas pelas castas e a comunidade, e com a
entrada de cada vez mais mulheres na força de trabalho os direitos individuais
das mulheres foram sendo implantados, às vezes por completo.

O que evidencia tudo isto é que à medida que o fortalecimento do capitalismo,


do direito e a ética burguesa se iam reforçando mutuamente, as mulheres
adquiriram pela primeira vez (isto é, pela primeira vez desde a época
primitiva, quando sua vida sexual estava menos restringida) “liberdade” para
consentir ou rechaçar o sexo. No entanto, o direito da mulher a exercer sua
escolha permanecia limitado, pois a escolha estava condicionada para o
rechaço na maioria das vezes e só consentir em certos casos. Assim, pois,
embora a noção de consentimento fosse transferida à mulher como indivíduo,
a lógica dos direitos de propriedade, exclusivos ou de proteção sobre a
sexualidade feminina, permaneceram incrustados na mentalidade da maioria
das mulheres, assim como na opinião pública, e tudo isso terminou dando
forma àquilo que se percebia como estupro. Junto à estigmatização da
atividade sexual feminina antes de uma relação (como o matrimônio) em
casal, a demonização da mulher “promíscua”, etc., e junto ao fortalecimento
da norma de formar casal com alguém da mesma classe, casta, etc., surgiu o
estupro como um ataque recorrente sofrido pelas mulheres.

Nestas condições sociais, o estupro se converteu em uma possibilidade efetiva


para as mulheres, enquanto que os ataques aos homens eram uma exceção.
Isso se deve ao fato de que a trajetória histórica da sexualidade masculina
demonstra que os homens não estão cultural nem socialmente condicionados
a rechaçar relações sexuais com a mesma frequência e pelas mesmas razões
pelas quais as mulheres se veem obrigadas a isso. Estas diferenças óbvias no
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desenvolvimento da sexualidade masculina e feminina devem ser atribuídas às


transformações econômicas, que foram erodindo gradualmente o papel
“produtivo” das mulheres e exagerando seu papel reprodutivo, assim como às
estruturas de domínio (família, Estado, grupos sociais dominantes, etc.) que
emergiram com as sociedades classistas. Em outras palavras, mais que tratar-
se de um fenômeno onipresente, o estupro, como experiência e categoria
juridicamente reconhecida, é produto de um processo histórico de formação
de classe, e portanto, é um desenvolvimento tardio na sociedade humana.

Isto nos leva à questão de saber como o desenvolvimento do capitalismo, com


a transformação das normas sociais, a estrutura familiar e os vínculos de
casamento, foi provocando mudanças na forma de de nir o estupro. É uma
questão historicamente importante: como impacta exatamente na sexualidade
masculina e feminina o surgimento e a expansão do capitalismo por todo o
mundo?, como surgiram as bases que terminaram mudando a compreensão e
a categorização do estupro?

A parte 3 deste artigo será publicada no próximo domingo.

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“Judith decapitando Holofenes”, de Artemisia Gentileschi

Notas

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[14] Susan Brownmiller (1993), Against Our Will: Men, Women and Rape (New
York: Ballantine Books).

[15] Lee Ellis (1989), Theories of Rape: Inquiries into the Causes of Sexual
Aggression (New York: Hemisphere): 10.

[16] Randy Thornhill and Craig T. Palmer (2001), A Natural History of Rape:
Biological Bases of Sexual Coercion (Cambridge: The MIT Press).

[17] Não se pode negar que o problema da “história natural do estupro” é que
se baseia em muitas perspectivas sem pé nem cabeça, como aquelas que
defendem que existem diferenças genéticas entre o homem violador e o não
violador, ou que o homem sexualmente agressivo (estuprador) tem maior
capacidade de engravidar uma mulher do que aquele que não força as
mulheres.

[18] Esta aproximação a-histórica à desigualdade de gênero impregna os


discursos de muitas renomadas feministas. Por exemplo, sabe-se que Simone
de Beauvoir a rmou que as mulheres “não têm passado nem história” (citado
por Lerner (1986), Creation of Patriarchy, New York: Oxford University Press:
22). Do mesmo modo, Andrea Dworkin, em uma entrevista, disse: “Creio que a
situação da mulher é basicamente a-histórica” (E. Wilson (1982), “Interview
with Andrea Dworkin”, Feminist Review, vol. 11: 27).

[19] Christine Helliwell (2000), “It’s only a Penis”: Rape, Feminism, and
Di erence,” Signs, vol. 25 (3): 789-816; Peggy Reeves Sanday (1981), “The
Socio-Cultural Context of Rape: A Cross Cultural Study,” Journal of Social
Issues, vol. 37 (4): 5-27. Christine Helliwell e Peggy Sanday demostraram que
algumas comunidades contemporâneas como os Gerai da comunidade Dayak
na Indonésia ou os Minangkabua estão livres de estupros.

[20] Friedrich Engels (1973), A origem da família, da propriedade privada e do


Estado.
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[21] A existência de hordas com este tipo de atividade sexual levou ao


desenvolvimento de um genótipo relativamente pequeno, e, portanto, a
reprodução de uma progênie de similares características. Ademais, a natureza
do sistema de caça e coleta implicava que as qualidades e as capacidades
individuais estavam tão vinculadas à coletividade humana que era difícil que
um indivíduo se distinguisse dos demais. Assim, pois, os distintos fatores que
levam a escolher preferencialmente a uma determinada parceira, como o
status, o físico e as capacidades, etc., não eram predominantes.

[22] Tal como a forma masculina da raça humana, a feminina desenvolve certa
memória muscular e sensibilidade no tato na fase pré-natal, ou seja, durante
seus 9 meses de existência na bolsa amniótica do útero materno. Protegida e
cuidada pelo cálido e espesso uído do útero, a espécie humana desenvolve
uma maior sensibilidade ao tato em certas partes de seu corpo, isto é, nas
zonas erógenas, que incluem os genitais, glândulas mamárias, lóbulos da
orelha, etc. Desenvolvendo este sentido do tato que acalma os nervos, os
músculos e os órgãos sensoriais, a espécie humana tenta replicar o que
aprendeu na fase pré-natal. Neste sentido, o sexo é uma forma desenvolvida
de tato e sensibilidade à que o ser humano se acostuma na longa fase pré-
natal. De fato, assim como o canto é uma forma desenvolvida da fala, o sexo
pode ser considerado como uma forma desenvolvida de tato humano. Claro, as
consequências e a intenção implicadas na interação sexual são determinadas
pelas formas de relacionar-se dos indivíduos. Portanto, o sexo não é só
questão de psicologia, mas está profundamente mediado e transformado pelo
meio social em que vivem os humanos. Nas sociedades divididas em classes, os
signi cados culturais e pessoais ligados aos indivíduos, objetos e situações
in uenciam enormemente em nosso desejo sexual.

[23] Radhika Singha (2000), “Settle, Mobilize, Verify: Identi cation Practices
in Colonial India”.

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[24] Radhika Singha (1998), A Despotism of Law (New Nova Délhi: Oxford
University Press).

[25] A transição da estrutura social e econômica indiana desde o pré-


capitalismo ao capitalismo foi ao mesmo tempo freada e facilitada pelo Estado
colonial, que limitou a sobrevivência, recreação e reprodução das velhas
formas sociais. Falaremos mais adiante disso.

[26] Radhika Singha (2000), “Settle, Mobilize, Verify: Identi cation Practices
in Colonial India”.

[27] Prem Chowdhry (2007), Contentious Marriages, Eloping Couples: Gender,


Caste and Patriarchy in Northern India (New Nova Délhi: Oxford University
Press).

Traduzido por Pablo Polese. O texto de Maya John foi originalmente publicado
em Radical Notes e sairá dividido em sete partes, uma por semana.

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