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CIDADES E INTELECTUAIS:

os “nova-iorquinos” da Partisan Review


e os “paulistas” de Clima
entre 1930 e 1950

Heloisa Pontes

Neste artigo pretendo explorar as intersec- os “nova-iorquinos” nucleados pela Partisan Re-
ções entre espaço urbano, instituições acadêmicas, view (lançada em 1937). Delineados os termos e o
organizações culturais e formas de sociabilidade, conteúdo substantivo da comparação proposta, o
por um lado, e suas inflexões na modelagem de artigo se fecha com uma tentativa, ainda explora-
distintas gerações de intelectuais, por outro.1 Ten- tória, de pensar esse círculo de intelectuais norte-
do por base os trabalhos de Mary Gluck (1985) so- americanos à luz do modelo teórico construído
bre a geração de Lukács em Budapeste, de Clarck por Elias para analisar as dimensões estruturais re-
(1986) sobre Paris e a pintura da “vida moderna”, correntes na figuração “estabelecidos-outsiders”.
de Schorske (1988) sobre o modernismo em Vie- Os editores da Partisan Review (Philip
na, de Raymond Williams (1982) sobre o grupo Rahv, William Phillips, Dwight Macdonald, Cle-
Bloomsbury, de Thomas Bender (1993) sobre ment Greenberg, Mary McCarthy, mais tarde,
Nova York e seus intelectuais e de Maria Arminda Delmore Schwartz e William Barrett) e seus co-
Arruda do Nascimento (2001) sobre a relação en- laboradores (Alfred Kazin, Lionel Trilling, Diana
tre sociedade e cultura em São Paulo, pretendo Trilling, Irving Howe, Elizabeth Hardwick, Han-
abordar, numa perspectiva comparativa, as simili- nah Arendt, Nicolas Chiaramonte, Sidney Hook,
tudes e as diferenças entre os intelectuais “paulis- Edmund Wilson, Meyer Schapiro, entre outros)
tas” da revista Clima (editada entre 1941 e 1944) e renovaram a discussão sobre a relação entre mo-
dernismo nas artes e radicalismo na política.
Artigo recebido em outubro/2002 Anti-stalinistas fervorosos, de início marxistas,
Aprovado em abril/2003 alinhados ao campo político da esquerda norte-

RBCS Vol. 18 nº. 53 outubro/2003


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americana, foram aos poucos migrando do seu Daniel Bell (1919-), e outros mais jovens, nasci-
pólo mais radical, representado pelos trotskistas, dos no decênio de 1920, como Irving Howe
para o campo dos liberais democratas e dos con- (1920-1993) e Nathan Glazer, entre outros. A eles
servadores.2 Herdeiros do legado modernista, fa- juntaram-se os não judeus, Frederick Dupee
miliarizados com o cosmopolitismo no plano da (1904-1979), Wiliam Barrett (1913-), Dwight Mac-
cultura, atentos à produção intelectual e artística donald (1906-), Mary McCarthy (1912-1989) – na
local, eles marcaram a cena cultural nova-iorqui- condição de editores da Partisan Review – e co-
na dos anos de 1930, 1940 e 1950 e contribuíram laboradores como Edmund Wilson (1895-1972),
decisivamente para a valorização, em novas cha- Elizabeth Hardwick (1916-), entre outros. Com
ves, da cultura norte-americana. Como intelec- exceção de Barrett, os demais provinham de fa-
tuais generalistas, pertenciam a uma geração que mílias norte-americanas prósperas e protestantes.
tinha a literatura como centro de sua educação. Por fim, cabe mencionar os europeus refugiados
Como críticos da cultura, resenhistas e polemis- que chegaram nos Estados Unidos no início da
tas, fizeram do ensaio o meio por excelência de Segunda Guerra Mundial e se integraram ao cír-
expressão e encontraram nas revistas literárias e culo: Nicolas Chiaramonte e Hannah Arendt
políticas o seu fórum institucional de divulgação. (1906-1975) – da mesma etnia da maioria deles,
Como integrantes de um círculo predominante- com a diferença que seus pais eram judeus ale-
mente literário, não se restringiram aos seus mães, educados e de classe média alta.
campos de especialização, diferenciando-se, as-
sim, dos acadêmicos em sentido estrito. Oriun- ****
dos, a maioria deles, de famílias pobres de ju-
deus imigrantes vindos da Europa Oriental para Até os anos de 1920, os intelectuais e escri-
os Estados Unidos – onde nasceram – fizeram tores norte-americanos tinham a Europa como rota
nome na contra-mão da experiência dos pais, obrigatória e referência fundamental, sentindo-se
graças ao desempenho brilhante que tiveram nas muitas vezes como uns “desterrados na própria
escolas públicas e, posteriormente, nos centros terra” (para usar uma célebre expressão de Sérgio
de ensino superior de Nova York. Buarque de Holanda que se aplica tanto à intelec-
Desse encontro entre os filhos talentosos da tualidade brasileira como à norte-americana na
segunda geração de imigrantes judeus destituídos época). Mas a partir dos anos de 1930, com a De-
de capital social e econômico com alguns jovens pressão, e de 1940, com a entrada dos Estados
norte-americanos promissores, oriundos de famí- Unidos na Guerra e sua progressiva hegemonia
lias brancas, protestantes e abonadas, em uma econômica e política, somadas à consolidação da
conjuntura fervente de radicalismo político, de- sua cultura acadêmica e de suas instituições cultu-
pressão econômica e em meio a uma cidade em rais, observa-se uma reorientação da intelectuali-
intensa transformação, como Nova York, consti- dade local com as suas congêneres européias. Pa-
tui-se uma das mais inquietantes e intrigantes ge- ris deixara de ser a capital cultural do mundo.
rações de intelectuais norte-americanos.3 Entre os Nova York, com seus novos movimentos artísticos,
judeus desse círculo, que atingiram a vida adulta sobretudo com o abstracionismo, seus críticos de
no final dos anos de 1920 ou começo de 1930, arte, seus museus e poderosos mecenas, converte-
encontram-se: Philip Rahv (1908-1973), William se no novo pólo de atração mundial. Contribuíram
Phillips (1907-), Clement Greenberg, (1909-1994), para isso não só as instituições locais, respaldadas
Lionel Trilling (1905-1975), Diane Trilling (1905-), por suas elites dirigentes, como os novos círculos
Meyer Schapiro (1905-1996) Sidney Hook (1902- de intelectuais, entre eles os intelectuais nova-ior-
1989). Incluem-se também os nascidos na década quinos ligados a Partisan Review.
de 1910, que atingiram a maturidade no final dos Parecidos e distintos dos “paulistas” de Cli-
anos de 1930, como Lionel Abel (1910-), Alfred ma, eles oferecem um bom contraponto para uma
Kazin (1915-), Delmore Schwartz (1913-1966), sociologia da vida intelectual. Sobretudo, se ao
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lado da recuperação das especificidades das histó- eles. William Philips, Philip Rahv, Dwight Macdo-
rias culturais e intelectuais das cidades de Nova nald, Fred Dupee e Mary McCarthy preparam-se
York e São Paulo, formos capazes de avançar na para almoçar com um dos mais renomados críticos
investigação de um conjunto de problemas socio- literários da época, Edmund Wilson, de quem es-
lógicos pertinentes para o adensamento da pers- peram o apoio necessário para a consolidação da
pectiva comparativa. Entre eles: a relação entre revista que estavam lançando. Queriam dele a
origem social (e etnia, no caso norte-americano), chancela do nome próprio, este bem simbólico
transformações na estrutura social e no campo cul- dos mais prezados nos campos de produção cul-
tural das respectivas cidades e suas implicações tural e intelectual, como mostrou Bourdieu (1984),
nas trajetórias dos integrantes mais expressivos capaz de produzir por si só uma curiosa “contami-
desses grupos; o lugar do ensaio na modelagem nação de prestígio” para todos e tudo que gravi-
da identidade intelectual desses grupos; as rela- tam ao seu redor. “Glória de empréstimo”, diria
ções (e tensões) desses intelectuais com a cultura outro arguto analista da vida em sociedade, no
acadêmica e política da época; o impacto e a in- caso o nosso escritor Machado de Assis.
fluência que receberam dos intelectuais e artistas Os jovens de Nova York sabiam disso por co-
europeus, direta ou indiretamente, seja em razão nhecimento direto da cena intelectual da época e,
da importância que os últimos tiveram na monta- indiretamente, pela experiência social que confor-
gem de instituições universitárias (como a Facul-
mou a trajetória de todos. Dois deles eram judeus
dade de Filosofia da Universidade de São Paulo e
e os demais vinham de famílias de classe média
a New School for Social Research de Nova York),
alta, unidos pelo projeto comum de editar uma re-
seja pelo impacto da sua presença na cena cultu-
vista de cultura, a Partisan Review, engajada num
ral e intelectual das respectivas cidades, onde se
dos poucos e precisos momentos de radicalismo
refugiaram antes ou durante a Segunda Guerra em
político que tomou conta da parcela mais atuante
decorrência de perseguições políticas e étnicas.
e significativa da intelectualidade nova-iorquina da
Além dessas dimensões, outra que parece impor-
época. Adeptos do marxismo, críticos ferrenhos
tante para a análise desses círculos de intelectuais,
do stalinismo, gravitando num caldo de cultura
de suas experiências sociais e do tipo de sociabi-
que unia o cosmopolitismo no plano da cultura ao
lidade praticada por eles diz respeito às inflexões
radicalismo na política, eram próximos do trotskis-
de gênero na conformação desses grupos.
Começo então pela última questão, relativa à mo e admiradores entusiastas de Trotski. Em dis-
posição das mulheres na divisão do trabalho e no puta aberta com os comunistas e com o Partido,
universo de sociabilidade desses círculos de inte- eles precisavam do aval de nomes de peso, como
lectuais. Mas no lugar de construir, de saída um o de Edmund Wilson, para galgarem posições
argumento analítico, vou fazer aquilo que todo mais sólidas e garantir uma visibilidade maior para
antropólogo, por ofício ou vocação, pratica no a revista que estavam em vias de lançar.
dia-a-dia do seu métier: contar casos, com a aten- Todos estavam ansiosos para o encontro,
ção voltada para as dimensões menos óbvias da preocupados em causar uma boa impressão no
interação social, como meio de apreender a dinâ- convidado, mas apenas um se vestiu de um modo
mica vívida e tumultuada da vida social. ligeiramente inadequado para a ocasião. No caso,
Mary McCarthy que, no lugar de adotar o estilo
“nervosamente displicente” dos rapazes, sobre-in-
Sociabilidade, posição das mulheres e vestiu na escolha da roupa e apareceu linda, com
divisão do trabalho intelectual um vestido preto de seda, mais apropriado para
uma recepção de casamento do que para um en-
Nova York, final de 1930. Num domingo de contro de negócios promovido no escritório de
manhã, quatro jovens e uma jovem dirigem-se a uma revista radical. De lá partiram todos para um
um encontro que será decisivo na vida de todos restaurante na Union Square.
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Eles estavam na faixa dos vinte anos e Ed- nistas norte-americanos sobre o lugar da cultura e
mund Wilson na meia-idade. A única mulher do de sua função atrelada a objetivos políticos, moti-
grupo naquela ocasião, Mary não foi particular- varam a ruptura de Phillips e Rahv com o Partido.
mente notada por Wilson que conversou especial- O nome da revista, porém, ficou como proprieda-
mente com Dwight Macdonald e com Fred Dupee. de intelectual deles e foi reutilizado no lançamen-
Com exceção de Dwight – o mais “bem nascido” to da nova Partisan Review em 1937.
do grupo –, todos os demais estavam nervosos, O mais politizado do grupo, Rahv parecia,
sentiam-se com a língua presa e aguardavam com naquela ocasião, particularmente incomodado
ansiedade o garçom para pedirem os drinques. com o convite que Mary recebera, da parte de Ed-
Menos Edmund Wilson que com um gesto irritado mund Wilson, para um segundo encontro que o
declinou a oferta. Eles entenderam rápido o reca- excluía juntamente com os demais rapazes da re-
do e fizeram o mesmo, de modo que o almoço, a vista. Eles, ao mesmo tempo em que insistiam
seco, rolou menos solto do que desejavam e cen- para que ela fosse, estavam temerosos do seu de-
trou-se em torno das proposições programáticas sempenho, pois não achavam que Mary fosse
da Partisan Review, do anti-stalinismo convicto de muito bem informada no plano político. Por isso
seus editores e dos números que eles estavam pre- não escondiam o medo de que a inexperiência
parando para dar seqüência ao lançamento, em política dela pudesse fazer com que a revista pa-
1937, da revista. Wilson concordou que eles deve- recesse ingênua aos olhos do crítico experiente.
riam tentar conseguir de Trotski uma contribuição Ela que tinha uma história de vida singular – órfã
assinada.4 Em seguida falaram do livro que Ed- de pai e mãe, falecidos praticamente no mesmo
mundo Wilson estava escrevendo sobre o marxis- dia em decorrência da gripe espanhola de 1918,
mo em conexão com a Revolução Russa. O livro, educada até os 12 anos por um casal aterrorizan-
Rumo à estação Finlândia, só seria lançado em te de tios-avós ressentidos e a partir daí pelo avô
1940. Mas bem antes disso, Wilson colaboraria materno, advogado renomado, protestante, casa-
com a revista e causaria uma revolução na vida de do com uma judia excêntrica – não entendia, por
alguns de seus editores. exemplo, as razões substantivas que levaram os
Não neste almoço, que correu dentro do es- revolucionários russos a assassinarem o Tsar e sua
perado. Mas no encontro seguinte que ele teria família. Não porque fosse desinformada e sim
com Mary McCarthy, a crítica de teatro regular da porque sua formação fora feita em colégios cató-
revista, que aos 25 anos, divorciada do seu primei- licos e completada no famoso college de Vassar,
ro marido, o ator Jonhsrud, estava vivendo com onde estudavam as moças talentosas de elite da
Philip Rahv, o único imigrante do grupo, que che- época, como a própria Mary e a poetisa Elizabeth
gara aos Estados Unidos em 1922, sozinho, com 14 Bishop, por exemplo.
anos, para morar com um irmão mais velho em Se a mudança para Nova York, em 1936, al-
Oregan, enquanto o resto de sua família permane- terara radicalmente o destino de Mary, em 1938,
cia na Palestina, depois de uma passagem pela quando do seu segundo encontro com Wilson,
Áustria, motivada pelo pogrom de que fora vítima ela que já estava um passo a frente das moças da
em 1917. Autodidata, não completou o segundo sua época em termos da vida amorosa e, em cer-
grau e fez toda a sua formação como leitor obsti- to sentido, profissional ainda estava um passo
nado nas bibliotecas públicas norte-americanas. atrás, segundo a avaliação dos rapazes da revista,
Em 1932, mudou-se para Nova York, entrou em do clima de radicalismo político da época. Por
contato com os comunistas, ingressou no Partido e isso resolveram “treiná-la” para o encontro. Entre
dois anos depois, junto com o amigo William Phil- as medidas adotadas, além das conversas sobre
lips, lançou o embrião da Partisan Review, patroci- temas mais políticos, três martines secos, consu-
nada pelo John Reed Club. O empreendimento midos um pouco antes do encontro. De modo
ocorreu em meio aos processos de Moscou movi- que Mary já chegou calibrada para um jantar que
dos por Stálin. Estes, somados à visão dos comu- todos, ela inclusive, supunham que deveria trans-
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correr no padrão do almoço anterior: conversas Clima, seu universo de sociabilidade, o lugar e a
variadas sobre cultura e política, conduzidas com posição das mulheres.
fluência e a seco por Edmund Wilson.
O que “rolou”, porém, estava bem longe do
script imaginado. Para surpresa de Mary, Wilson O Grupo Clima
bebia, e bem, e só não fez isso no primeiro en-
contro porque naquele dia ele acordara de ressa- Formado no início de 1939, em São Paulo,
ca. Sem coragem de recusar os drinques ofereci- por jovens estudantes da Faculdade de Filosofia,
dos por ele e menos ainda de mencionar os Ciências e Letras (nascidos entre 1916 e 1920),
martines consumidos antes, ela bebeu mais que o unidos por fortes laços de amizade e por uma in-
habitual. Resultado: Mary se empolgou, roubou a tensa sociabilidade, o Grupo Clima era integrado
cena, soltou a língua e, encontrando em Wilson por Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles
um ouvinte atento, fez da sua vida o tema da noi- Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão de
te. Depois apagou. Quando voltou a si, no dia se- Andrada Coelho, Gilda de Mello e Souza, entre
guinte, estava deitada na cama, num quarto des- outros. Juntos lançaram-se na cena cultural pau-
conhecido. Sua primeira medida foi certificar-se lista por meio de uma modalidade específica de
se estava sozinha ou acompanhada. Nem uma trabalho intelectual: a crítica aplicada a teatro, ci-
nem outra no sentido que a atemorizara. Marga- nema, literatura e artes plásticas.
Décio e Paulo Emílio, amigos desde os tem-
reth, a outra convidada do jantar da véspera, es-
pos de colégio, eram filhos de médicos com des-
tava dormindo na cama ao lado e Wilson, que
tacada projeção nos círculos da elite paulista da
apenas depositara as duas no hotel e incumbira a
época. O mesmo aplicava-se ao pai de Antonio
amiga de passar a noite com a Mary, encontrava-
Candido, médico conceituado, com vasta cliente-
se em casa.5
la no interior de Minas. Como o pai de Décio, ele
No terceiro encontro, Mary e Wilson acaba-
também se formara na Faculdade de Medicina do
riam a noite juntos, na cama do escritório da casa
Rio de Janeiro e interessava-se tanto pela medici-
dele. De lá para frente, a história seguiria o curso
na como pela literatura. Rui Coelho, filho de um
previsível dos relacionamentos triangulares. Divi-
advogado de renome, e o mais novo do grupo,
dida e dilacerada, Mary não sabia se rompia com
publicou seu primeiro trabalho – um longo ensaio
Philip Rahv ou com Wilson. Acabou casada com sobre Proust – aos 21 anos, na revista Clima, que
Wilson, 17 anos mais velho que ela, seu segundo projetaria todos na cena cultural paulista, Gilda
marido oficial e pai de seu único filho. Com o ca- inclusive – a prima de segundo grau do “papa” do
samento, Mary se afastaria da Partisan Review e se modernismo brasileiro, Mário de Andrade, e futu-
reorientaria para a ficção. Em grande parte graças ra mulher de Antonio Candido.
à influência e aos métodos pouco usuais de Wil- As afinidades que os uniram, decorrentes de
son que, acreditando no talento da mulher como suas origens sociais semelhantes, da vivência pa-
escritora e duvidando da qualidade da crítica tea- recida que tiveram na infância e adolescência, do
tral de Mary, costumava trancá-la, às tardes, no es- tipo de formação cultural que receberam de suas
critório, para que ela se disciplinasse na prática da famílias e das escolas que freqüentaram, foram re-
escrita cotidiana. forçadas e sedimentadas ao longo do período em
Esta história resumida de uma vida atribula- que cursaram a Faculdade de Filosofia. Para mui-
da, fascinante e instigante como foi a de Mary tos deles, essa instituição representou bem mais
McCarthy – memorialista de mão cheia, conheci- do que um espaço de profissionalização. Foi, an-
da não só por seus talentos literários mas pela sua tes de tudo, o centro irradiador que conformou o
inteligência cortante e língua ferina6 – oferece um universo de sociabilidade do grupo. Ali construí-
contraponto interessante para introduzirmos o ram as relações pessoais, intelectuais, afetivas e,
outro termo da comparação proposta: o Grupo em alguns casos, amorosas, que marcariam para
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sempre suas vidas. Tais foram, por exemplo, os ria, com exceção de alguns poucos escritores,7 eles
casos de Décio e Ruth de Almeida Prado e de An- se parecem, intelectualmente, mais com os mem-
tonio Candido e Gilda de Mello e Souza. bros de Clima do que com os modernistas.
A única mulher do grupo que conquistou Essa dimensão é central tanto para a compa-
um “nome próprio”, em razão de sua trajetória ração que estou propondo entre eles, como para
acadêmica e dos trabalhos que produziu nas áreas discutirmos a posição que as mulheres tinham no
de sociologia e estética, o caso de Gilda de Mello interior desses círculos. Nesse sentido, se a histó-
e Souza é particularmente interessante para pen- ria narrada anteriormente com a intenção de deli-
sarmos a assimetria das relações de gênero no in- near a sociabilidade do grupo – as peripécias amo-
terior desse círculo e, ao mesmo tempo, para rosas de Mary McCarthy e a posição que ela
avançarmos na comparação proposta entre os in- ocupou na divisão do trabalho intelectual da en-
telectuais “paulistas” do grupo Clima e os intelec- tão recém-lançada Partisan – nos lembra (e mui-
tuais nova-iorquinos da Partisan Review. to) as vivências também atribuladas e fascinantes
Enquanto no final dos anos de 1930, em das nossas modernistas Tarsila do Amaral, Anita
Nova York, as mulheres do grupo já podiam pra- Malfatti e Patrícia Galvão, dela se distingue em vá-
ticar uma sociabilidade arrojada, como vimos rapi- rios aspectos. A começar pela formação universi-
damente a partir do caso da escritora Mary tária em literatura que Mary recebeu em Vassar, o
McCarthy, em São Paulo, as moças e os rapazes de que a habilitou a estrear na cena cultural nova-ior-
Clima eram bem mais comportados. Relembrando quina como crítica de teatro – e só um pouco mais
esse período, Gilda afirma que tarde como escritora, voltada também para a críti-
ca de cultura. Tarsila do Amaral (1886-1973) e Ani-
[...] saíamos muito juntos. A partir de certo momen- ta Malfatti (1889-1964) eram pintoras e não críti-
to, creio que só conseguíamos nos divertir se esti- cas.8 E se Patrícia Galvão (1910-1962) – mais
véssemos juntos. Em geral nos encontrávamos no conhecida como Pagu – fez as duas coisas como
fim da tarde, nas aulas de Maugüé. Era já noitinha
Mary, isto é, escreveu ficção e crítica de teatro,
quando saíamos dos cursos para a réplica ligeira-
mente européia da Praça da República de então.
isso se deu numa conjuntura distinta da sua apari-
Os plátanos, a algazarra dos pardais, o vento frio, ção no modernismo, quando era ainda uma cole-
o eco francês da voz de Maugüé – que carregando gial, transformada “em boneca”9 pelo casal Tarsila
a sua serviette, ia à nossa frente, discutindo a aula e Oswald de Andrade. Antes, é claro, do romance
com algum aluno – tudo isso nos envolvia numa avassalador que teve com Oswald e do nascimen-
doce miragem civilizada. Se não tínhamos nenhu- to, em 1930, do filho de ambos, Rudá de Andrade,
ma tarefa escolar urgente, seguíamos dali para o e da entrada deles no Partido Comunista em 1931.
nosso quartel-general, a Confeitaria Vienense, na
A primeira de uma série de acontecimentos políti-
Barão de Itapetininga. Era ali que entre um crois-
sant e um ice chocolate alemão (pois ninguém be- cos que marcariam a vida de Pagu no decênio de
bia no nosso grupo) combinávamos uma esticada 1930: das viagens à volta ao mundo (quando es-
ao cinema, quase sempre um filme francês [...] tréia como repórter), aos longos meses que morou
(Mello e Souza, 1984, p. 135). em Paris (sem o marido e o filho), onde fora pre-
sa em julho de 1935, como militante comunista es-
Esse aspecto bem comportado da sociabili- trangeira. Repatriada, voltaria ao Brasil e, por duas
dade do grupo contrasta com a dos intelectuais vezes, em 1935 e 1938, seria presa novamente. Li-
nova-iorquinos. Menos atirados que eles, os inte- bertada em julho de 1940, depauperada e magér-
grantes de Clima eram antes de tudo universitários rima, Pagu iniciou um romance com Geraldo Fer-
recatados. Assim, se em termos da sociabilidade raz, com quem viveria até o fim da sua vida. De
mundana, os nova-iorquinos estariam mais próxi- modo que foi só nos anos de 1940 que ela reto-
mos dos nossos modernistas, do ponto de vista do mou a vida intelectual, ligando-se ao periódico so-
perfil intelectual do grupo, deles se afastam em as- cialista Vanguarda Literária, em 1945, e iniciando,
pectos decisivos. Críticos de cultura em sua maio- no ano seguinte, a sua colaboração regular no Su-
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plemento literário do Diário de São Paulo. Sua es- ção iriam viver, com as ambigüidades e dilemas
tréia como crítica de teatro, porém, só ocorreria mencionados acima. Nesse contexto de dupla re-
em 1957, quando ela e Ferraz já estavam residin- definição, Gilda, que estreara em Clima com um
do em Santos. conto, seguindo o conselho de Mário de Andrade
Se me estendi no caso de Pagu foi para de que seria bom para a revista ter alguém dedi-
mostrar que tanto ela como as nossas modernis- cado exclusivamente à ficção, abandonou o papel
tas pintoras são e não são comparáveis à escrito- que lhe fora reservado e parou de escrever ficção.
ra norte-americana Mary McCarthy. São, se usar- Seu gesto, reforçado ao que tudo indica pela au-
mos como critério as vidas amorosas atribuladas sência de críticas claramente favoráveis à sua pro-
ou tumultuadas que tiveram e o fato de terem dução como contista, teve um sentido preciso: re-
sido mulheres que desafiaram os padrões domi- cusar a posição e o papel que os companheiros
nantes de moralidade e de gênero na época. Não da revista lhe atribuíram. Insurgir-se contra as
são, se mantivermos o foco no perfil dos círculos duas modalidades socialmente mais adequadas de
intelectuais e artísticos a que pertenceram. Nesta expressão intelectual para as mulheres na época,
dimensão, a comparação de Mary com Gilda de a ficção e a poesia, foi talvez o seu “primeiro ato
Mello e Souza mostra-se pertinente, pois tanto de liberdade”,10 ainda que arrevesado.
uma como outra, além de serem produtos da Enquanto Gilda largava a ficção para se lan-
vida universitária em sua interface com o sistema çar no campo universitário e na área da sociologia
cultural mais amplo das cidades em que construí- estética, Mary McCarthy deixava a crítica de teatro
ram suas vidas profissionais, fizeram parte de cír- para se notabilizar como escritora. Diferenças de
culos com um perfil intelectual parecido. No caso estilo, de personalidade, de parcerias amorosas e
de Gilda e de outras mulheres da sua geração do campo intelectual em que ambas estavam inse-
que integraram o Grupo Clima, o acesso à forma- ridas. Mas ao lado dessas diferenças, inegáveis, é
ção intelectual que tiveram na Faculdade de Filo- preciso sublinhar também as semelhanças, pois
sofia, somado à vivência inédita de uma sociabi- tanto uma como outra são impensáveis sem a pre-
lidade fortemente ancorada na vida universitária, sença das instituições de ensino superior, das trans-
permitiu a várias delas reorientar o papel social formações que estavam ocorrendo na estrutura so-
para o qual haviam sido educadas: mães e donas cial das cidades de São Paulo e Nova York no
de casa. O impacto dessa experiência renovado- período, das novas modalidades de recrutamento
ra propiciada pela Faculdade foi enorme, sobre- social dos intelectuais e de expressão simbólica das
tudo para aquelas que efetivamente tentaram in- dimensões de gênero.
ventar para si um novo destino, como foi o caso
de Gilda. Mas isso se deu às custas de conflitos,
inseguranças e dilemas muito específicos. Sobre- Os intelectuais de Nova York vistos de
tudo no início, quando não se sentiam social- longe e de forma comparativa
mente seguras para se inserirem no campo inte-
lectual predominantemente masculino da época. As relações que uniam esses intelectuais de
As dificuldades preliminares que enfrentaram, Nova York eram, a um só tempo, morais, pes-
transmutadas sob a forma de inseguranças pes- soais, políticas, e, em alguns casos, conjugais. Eles
soais, foram sendo contornadas, mas não elimi- não apenas “envelheceram juntos” como apare-
nadas, à medida que construíam novos modelos cem, com muita freqüência, sob a forma de per-
de conduta e atuação. sonagens nas memórias que escreveram. Retratos
No período em que a revista Clima foi pro- de época, de pessoas, de um universo intelectual
duzida, estava em curso a montagem de um novo e cultural específico, no interior do qual ganha-
sistema de produção intelectual, e iniciavam-se as ram nome e autoridade – por si mesmos e como
transformações dos papéis femininos que Gilda parte inseparável dos círculos a que pertenciam –,
de Mello e Souza e outras mulheres de sua gera- essas memórias são uma fonte preciosa para en-
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tendermos o tipo de sociabilidade que pratica- Escrevendo sobre modalidades variadas da


vam, as fofocas que circulavam na época, os amo- crítica de cultura, deram visibilidade à nova men-
res, casamentos e separações, os conflitos, as ini- talidade universitária que estava sendo definida
mizades, as alianças que fizeram.11 pela Universidade de São Paulo. Mas no lugar de
A profusão de conflitos entre eles12 contrasta fazerem uma crítica apoiada apenas na discussão
com a ausência de atritos manifestos entre os in- de posições teóricas, centraram-se principalmente
tegrantes mais expressivos do Grupo Clima, cujas na análise interna da produção cultural veiculada
relações foram marcadas pela convivência íntima no período. Além disso, cada um dos editores
e pela ausência de competição explícita. Isso se mais expressivos da revista Clima especializou-se
explica menos pela personalidade dos membros numa área da cultura, que, embora fronteiriça,
desses grupos e mais pelo tipo distinto de sistema como a crítica literária, de cinema, de teatro, de
cultural em que estavam inseridos. artes plásticas, permitia aplainar os eventuais con-
No caso paulista e no início dos anos de flitos entre eles.
1940, segundo o então estreante de 22 anos, An- Em Nova York, por contraste, além da produ-
tonio Candido, todos tinham “em preparo um tra- ção cultural e acadêmica ser bem mais segmenta-
balho de história, ou de sociologia, ou de estética da e especializada na época, pesava ainda o fato
ou de filosofia, como os maiores (da geração an- de a maioria dos integrantes da Partisan estar vol-
terior) tinham romances” (Candido, 1945, p. 34). tada para a crítica literária como domínio principal
Com exceção de Gilda de Mello e Souza, que pu- de suas atividades intelectuais (descontados os ca-
blicou primeiro ficção, todos os outros começaram sos dos críticos de arte, Clement Greenberg, Me-
com um artigo de crítica e não se aventuraram na yer Schapiro e Rosenberg).
poesia como os maiores da geração anterior. Nas Se ambos os grupos tinham em comum a crí-
palavras de Antonio Candido, emitidas no auge de tica de cultura e o ensaio como modo privilegiado
sua juventude, todos eram “críticos e estudiosos de expressão, o mesmo não se pode dizer a res-
‘puros’, no sentido de que, neles, dominará sem- peito da origem social de seus integrantes. En-
pre esse tipo de atividade” (Idem, ibidem). quanto os membros de Clima pertenciam ao setor
Como produtos do novo sistema de produ- da burguesia formado por profissionais liberais, al-
ção intelectual implantado na Faculdade de Filoso- tos funcionários, fazendeiros e industriais médios;
fia da Universidade de São Paulo, por intermédio os intelectuais de Nova York – com exceção de uns
dos professores estrangeiros (franceses, em parti- poucos “bem nascidos”, oriundos de prósperas fa-
cular), Antonio Candido e seus amigos mais pró- mílias protestantes – eram provenientes sobretudo
ximos do Grupo Clima renovaram a tradição en- da segunda geração de famílias pobres de judeus
saística brasileira. Situados entre os literatos, os imigrantes. Tanto num caso como no outro, essas
modernistas, os jornalistas polígrafos e os cientis- injunções lhes davam “um ar de família, um viés
tas sociais, construíram seu espaço de atuação por definido de enxergar o real” (Mello e Souza, 1984,
meio da crítica, exercida em moldes ensaísticos p. 135) – nas palavras precisas de Gilda de Mello e
mas pautada por preocupações e critérios acadê- Souza, que, utilizadas para explicar as razões que
micos de avaliação. O fato de atuarem ao mesmo propiciaram e alimentaram o convívio intenso de
tempo como críticos de cultura, acadêmicos e pro- seu grupo de juventude, aplicam-se também aos
fessores universitários sinaliza o alcance das trans- intelectuais nova-iorquinos.
formações que estavam ocorrendo ao longo das Se o “viés definido de enxergar o real” apre-
décadas de 1940 e 1950 no sistema cultural paulis- senta conteúdos distintos em função das experiên-
ta, decorrentes em larga medida da introdução de cias sociais diversas desses intelectuais, é preciso
novas maneiras de conceber e praticar o trabalho ressaltar a existência de um solo estrutural e insti-
intelectual. Nesse contexto, fizeram a “ponte” en- tucional semelhante que torna possível e justifica
tre a Faculdade de Filosofia e as instâncias mais a comparação proposta neste artigo. Em primeiro
amplas de produção e difusão cultural da cidade. lugar, cabe sublinhar que eles deram prossegui-
CIDADES E INTELECTUAIS 41

mento, em novas chaves, ao trabalho de consoli- ra, radical, no âmbito da política, agnóstico, aves-
dação da cultura moderna, cujo impulso inicial so, num primeiro momento, às questões religio-
fora emitido pelos modernistas que os precede- sas em sua interface com os problemas étnicos.
ram. Tendo a França como modelo e, em vários Atingindo o início da idade adulta num con-
casos, como lugar de moradia temporária, esses texto marcado pela grave crise econômica de
“repatriados começaram a se empenhar em produ- 1929, eles viveram esse período como um mo-
zir em casa o similar nacional” (Costa, 2001, p. mento paradoxal de liberdade. Nas palavras de
27).13 Repatriados simbólicos, no caso dos moder- um dos editores da Partisan Review, William Bar-
nistas; reais, no caso de muitos dos intelectuais de rett, aquilo que Sartre disse a respeito da situação
Nova York ligados a Partisan Review, em razão da da intelectualidade francesa durante a ocupação
imigração forçada dos pais, por razões econômi- alemã (“nunca fomos tão livres” quanto naquele
cas e perseguições religiosas, vítimas em sua momento) aplica-se com perfeição para descrever
maioria dos pogroms que tiveram lugar na Europa a experiência de uma parcela dos artistas e inte-
na segunda metade do século XIX. lectuais (ou candidatos a) nova-iorquinos no pe-
Instalados em solo norte-americano, viven- ríodo da Depressão. Sem trabalho fixo e sem as
do nos bairros “étnicos” de Nova York, sobretu- obrigações próprias da carreira e da vida profis-
do no Bronx, onde se concentravam judeus e ita- sional, eles puseram a inteligência e a curiosida-
lianos, antes de sua ocupação pelos negros, esses de a serviço da ampliação dos interesses culturais.
filhos de imigrantes, nascidos norte-americanos, Se a Depressão implicou a suspensão tempo-
trilharam o caminho típico reservado à segunda rária do sonho acalentado pelos pais de ascensão
geração. Primeiro freqüentaram a escola pública, social dos filhos, ela permitiu também que eles se
aprenderam bem o inglês, destacaram-se como reencontrassem no terreno mais arriscado da polí-
alunos brilhantes e encontraram as condições tica. Como muitos dos imigrantes operários, os pais
institucionais e culturais necessárias para se tor- traziam da Europa a cultura socialista. E foi nesse
narem universitários e realizaram o “destino” es- contexto preciso e, sob muitos aspectos, singular
perado pelos pais, que depositaram neles todas na história norte-americana – no interior do qual a
as esperanças de um futuro melhor e o sonho classe operária, os imigrantes e a “plebe” ganharam
norte-americano de ascensão social. Mas isso se visibilidade na cena política e na literatura da épo-
deu às custas de uma vivência dilacerada, per- ca – que os filhos desses imigrantes, já antenados
meada por toda sorte de sentimentos ambivalen- com o cosmopolitismo no plano da cultura, por
tes, vividos no registro individual da culpa, do tu- conta de sua socialização na cultura acadêmica da
multo interno e da vergonha em relação aos época, aderiram ao marxismo e se enfronharam
progenitores e familiares em geral. Pobres, imi- nas polêmicas travadas entre comunistas e trotskis-
grantes, religiosos, os pais falavam inglês com so- tas. Nas palavras de outro integrante do círculo da
taque e apenas na esfera pública formal, em casa Partisan Review, Irving Howe:
e na vizinhança usavam o iídiche, freqüentavam
a sinagoga, trabalhavam duro, divertiam-se pou- [...] o radicalismo dos anos 30 deu aos intelectuais
co. Restritos, de início, à sociabilidade familiar e de Nova York o seu estilo distintivo: o faro pela
da vizinhança, pais e filhos, se já não viviam mais polêmica, o gosto pela grande generalização,
uma impaciência com aquilo que eles enxerga-
confinados em guetos, sentiam que Manhattan
vam (muitas vezes paroquialmente) como erudi-
era mais longe que a Europa. A proximidade ção paroquial, uma perspectiva internacionalista,
geográfica era atravessada por uma colossal dis- uma crença tácita na unidade – ainda que ela es-
tância social que, quando suplantada pelos fi- tivesse fora do nosso alcance – do trabalho inte-
lhos, implicou uma viagem sem volta marcada à lectual (Howe, 1990, p. 244).14
sinagoga, na suspensão dos preceitos familiares e
religiosos dos pais e na adesão a um outro uni- A adesão ao marxismo, o afastamento das
verso de valores: cosmopolita, no plano da cultu- proposições políticas e culturais do Partido Comu-
42 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

nista, o acirramento da convicção anti-stalisnista ter na agenda intelectual dos debates e escritos
(sinalizada com bastante clareza pelo lançamento produzidos no pós-Guerra. A revelação dos cam-
em 1937 da Partisan Review), a defesa da perspec- pos de concentração, do Holocausto e das atroci-
tiva internacionalista, tudo isso correu junto e em dades cometidas durante a Guerra pelos alemães,
meio às transformações da paisagem social e cul- a ampliação das bases econômicas e sociais da co-
tural da cidade de Nova York. No âmbito da pro- munidade judaica em Nova York e da influência
dução acadêmica, áreas de saber que até então ti- de seus membros mais expressivos nos círculos
nham sido monopólio das elites brancas e culturais de maior prestígio da cidade, o arrefeci-
protestantes, como a filosofia e a literatura inglesa, mento do radicalismo e da visada internacionalis-
começaram a ser “invadidas” pelos estudantes ju- ta, tudo isso, somado, contribuiu para que os inte-
deus mais talentosos, que, minoritários na Univer- lectuais nova-iorquinos fizessem uma releitura de
sidade de Colúmbia (a instituição universitária de suas experiências passadas, sobretudo daquelas
maior prestígio da cidade na época), encontraram relativas à vida em família, e dessem início à pro-
na Universidade de Nova York (UNY) e, especial- blematização de um tema que até então estivera
mente no City College, o espaço intelectual neces- ausente de suas preocupações cosmopolitas: a
sário para darem prosseguimento aos estudos su- identidade judaica.
periores e à militância política de esquerda.15 Outsiders, em sua maioria, nos anos de
Havia um clima de urgência no ar e uma sensação 1930, sob todos os aspectos (origem social, capi-
de que, malgrado a crise econômica e o medo or- tal cultural e econômico, procedência étnica, filia-
questrado da “ameaça vermelha” representada
ções doutrinária), os intelectuais de Nova York,
pela Revolução Russa e perpetrado pela direita, os
sobretudo aqueles ligados às revistas Partisan Re-
Estados Unidos poderiam converter-se numa de-
view e Commentary, foram paulatinamente mi-
mocracia de tipo socialista. Esse tipo de utopia po-
grando não só de posição política como de status
lítica, acalentado por parcelas minoritárias da cida-
intelectual e social. Por volta do final da Segunda
de mais avançada dos Estados Unidos, palco das
Guerra, no momento em que recebiam sinais ine-
vanguardas culturais e artísticas da época, não tar-
quívocos da influência intelectual que exerciam
daria a emitir sinais de falência múltipla.
na cidade, eclodiram as primeiras crises internas
Primeiro, como resultado da entrada dos Es-
do grupo. Na visão de Irwing Howe, que pode
tados Unidos na Segunda Guerra Mundial e de sua
ser tomada como expressão condensada da auto-
progressiva hegemonia no plano político e econô-
representação desses intelectuais,
mico. Segundo, pelas implicações da Guerra Fria,
do marcartismo e do anti-comunismo desenfreado
[...] talvez houvesse uma relação entre crise inter-
que tomou conta das elites políticas norte-ameri-
na e influência externa. Tudo aquilo que os man-
canas, não só das mais alinhadas à direita como de tinha atuantes – a idéia do socialismo, a defesa
um parcela dos liberais da época. Terceiro, pelo do modernismo literário, o ataque à cultura de
progressivo conservadorismo de muitos dos inte- massa, um jeito especial de criticismo literário –
lectuais de Nova York, que, marxistas e radicais foi julgado como irrelevante nos anos do pós-
nos anos de 1930, anti-stalinistas fervorosos nos guerra. Mas como grupo, no momento exato em
anos de 1940, defensores do liberalismo e da de- que a desintegração interna começara seriamen-
mocracia, inventaram uma ginástica classificatória te, os intelectuais de Nova York podiam ser
das mais extravagantes para, na década de 1950, prontamente identificados. Os líderes do grupo
eram Rahv, Phillips, Trilling, Rosenberg e Kazin.
afirmarem-se como “anti-anti-comunistas”, parcial-
O principal teórico político era Hook. Os escrito-
mente afinados com os ideários do socialismo de-
res e poetas ligados ao meio de Nova York eram
mocrático, em luta aberta contra todo tipo de to- Delmore Schwartz, Saul Bellow, Paul Goodman
talitarismo.16 Por fim, pelo peso que a questão e Isaac Rosenfeld. E scholar o mais reconhecido,
judaica, ausente na perspectiva internacionalista assim como a força moral inspiradora, era Meyer
partilhada por eles no decênio de 1930, passou a Schapiro (Howe, 1990, pp. 251-252).
CIDADES E INTELECTUAIS 43

Dessa lista, os grandes ausentes são os não- da cidade, nas suas realizações mais expressivas,
judeus, como Dwight Macdonald e William Bar- nos seus projetos mais arrojados.
rett, por exemplo, e as mulheres, como Mary Ao contrário da maioria dos campi universi-
McCarthy, Elizabeth Hardwick, Diana Trilling e tários norte-americanos que, em certo sentido,
Hannah Arendt, reconhecidamente a intelectual eram e continuam sendo isolados e auto-suficien-
mais influente e vigorosa desse círculo, rapida- tes em relação ao meio urbano no qual se situam,
mente incorporada por ele logo após a sua che- as instituições de ensino superior em Nova York
gada em Nova York em 1941. Seu livro As origens jamais perderam a conexão com a vida mais am-
do totalitarismo, escrito no final dos anos de 1940 pla da cidade. De fato, elas são impensáveis sem
e publicado em 1951, foi um acontecimento e o dinamismo cultural da cidade, o jornalismo, as
teve uma recepção estrondosa entre eles. editoras, os artistas, os museus, as galerias, os in-
Nesse mesmo período, no Brasil, os inte- telectuais, os diversos grupos étnicos que, com-
grantes do Grupo Clima, afinados com os ideários posto por levas de imigrantes, deram uma feição
da esquerda, também partilhavam a crítica ao to- particular à cidade.
talitarismo, contrapunham-se ao Partido Comunis- Tanto lá como aqui, assiste-se no domínio
ta, criticavam o stalinismo e defendiam um socia- da produção cultural e intelectual a uma amplia-
lismo de tipo democrático. Mas, diferentemente ção do recrutamento social de seus praticantes.
dos intelectuais nova-iorquinos, que, após a en- Exemplar nessa direção são os intelectuais nova-
trada dos Estados Unidos na Guerra e, sobretudo, iorquinos e, no caso brasileiro, os atores e as atri-
no pós-Guerra, foram deixando o pólo mais à es- zes de origem humilde ou imigrante que se incor-
querda do espectro político, os intelectuais de Cli- poraram ao Teatro Brasileiro de Comédia (como
ma, que, de início, eram mais interessados na Cacilda Becker e Nydia Licia, entre outros) e vá-
agenda cultural do que no debate político (com rios estudantes da Faculdade de Filosofia da Uni-
exceção de Paulo Emílio), passaram a ter uma versidade de São Paulo que, uma vez formados,
atuação mais engajada. Primeiro, por meio dos se destacariam nas suas respectivas áreas de espe-
dois manifestos que publicaram na revista Clima cialização. O exemplo mais notório nessa direção
(em 1942 e 1943), onde lançaram, segundo Anto- é o de Florestan Fernandes. Sua origem social, so-
nio Candido, as bases para a construção de uma mada às dificuldades de toda ordem que enfren-
ação socialista, “sem sectarismo mas sem transi- tara na infância e na adolescência, dificilmente
gência”, fundada na “fidelidade à Revolução Rus- lhe franquearia o ingresso nas faculdades onde se
sa” e no “marxismo como base”, mas aberta “às formavam as nossas elites dirigentes, como as de
correntes filosóficas e políticas do século” com o Direito, Politécnica ou Medicina. Do encontro en-
propósito imediato de “lutar contra o Estado tre jovens talentosos, instituições e projetos arro-
Novo e o fascismo” (Candido, 1986, p. 61). Em se- jados e cidades em intensa transformação com
guida, pelo fato de se manterem como defensores perfil de metrópoles, afastadas dos centros for-
intransigentes da liberdade de expressão e dos mais de poder político, deu-se a criação das con-
valores democráticos, nos dois contextos de dições sociais e simbólicas para a produção dos
maior repressão política no país, o Estado Novo e círculos de intelectuais rastreados nesse artigo.
a Ditadura Militar.
Para além das diferenças políticas e das ori-
gens sociais diversas desses dois círculos de inte- Os intelectuais de Nova York vistos
lectuais, eles são um dos produtos mais bem aca- pelo prisma da configuração
bados do sistema cultural moderno implantado “estabelecidos-outsiders”
nas cidades de São Paulo e Nova York no decor-
rer dos anos de 1930 a 1950, num momento em A reorientação política dos intelectuais de
que a vida acadêmica e a crítica de cultura esta- Nova York, decorrente em parte da alteração da
vam intimamente entrelaçadas na esfera pública posição social de seus integrantes e da conquista
44 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

da autoridade cultural e simbólica, parece ser in- Afirmando-se na economia e na cultura, os


separável da consolidação, no pós-Guerra, da he- judeus alemães, vistos como um grupo socialmen-
gemonia econômica, militar e política dos Estados te inferior, ameaçavam a auto-representação de
Unidos no cenário internacional e da polarização parcelas expressivas dos alemães. Expresso sob a
produzida no plano interno pela Guerra Fria. A forma do ressentimento, esse sentimento encontra
crítica ao totalitarismo e ao stalinismo ganhou, a sua contrapartida na posição, também em certo
nesse contexto, alianças inesperadas e conteúdos sentido “em falso”, da sociedade alemã no século
diversos daqueles exibidos pelo clima de radica- XIX. Como mostra Elias,
lismo dos anos de 1930.17
Essa formulação tem algo de reducionismo Faz pouco tempo – somente depois de 1870 –
político e de “verdade sociológica”. Para aplainar que a sociedade alemã dominante passou, ela
os deslizes reducionistas e dar consistência aos mesma, de um status relativamente baixo e fre-
qüentemente humilhante em relação aos Estados
eventuais acertos sociológicos, vou utilizar o mo-
nacionais europeus considerados estabelecidos, a
delo “estabelecidos-outsiders” de Elias como o
uma posição de poder relativamente elevada. Em
propósito de refletir melhor sobre a posição da razão desse fato, a consciência que ela tinha de
intelectualidade nova-iorquina. Para resumir um seu status e de sua identidade era particularmen-
percurso teórico e analítico dos mais vigorosos no te incerta e frágil, comparada àquela de outras
campo das ciências sociais, como é o de Norbert nações mais antigas e unificadas há muito tempo.
Elias, vou apenas sublinhar que as configurações A minoria judia, que constituía uma grupo margi-
sociais estudadas por ele sob o prisma do modelo nal no país, irritava então especialmente os gru-
pos estabelecidos cristãos e provocava uma ani-
mencionado acima permitem apreender, de uma
mosidade particular porque os próprios grupos
maneira renovada, um conjunto de fenômenos
estabelecidos, em razão de seu destino, mostra-
empíricos que, à primeira vista, parecem avessos a vam-se inquietos quanto ao seu status e à sua
uma generalização conceitual mais abrangente. identidade. [...] Para formular as coisas com mais
Dentre eles, as relações entre negros e brancos, precisão, poder-se-ia dizer: quanto menos se era
entre judeus e não judeus, entre burgueses e aris- seguro de seus status, mais se era anti-semita
tocratas, entre grupos operários idênticos sob (1991, pp. 153-154).
qualquer critério morfológico (nível de renda, es-
colaridade, domicílio, ocupação profissional etc.) Essa reflexão de Elias é particularmente su-
e distintos em termos simbólicos.18 Em todas essas gestiva para lançarmos uma hipótese final sobre a
relações, sobretudo naquelas que apressada e situação dos intelectuais de Nova York ao longo
equivocadamente vêm sendo rotuladas como “ét- dos decênios de 1930 a 1950 e para entendermos
nicas”, o que se verifica, segundo a análise de o progressivo conservadorismo político de seus
Elias, é a existência de níveis variados de interde- integrantes. Eles, que num primeiro momento,
pendência entre os grupos, expressos por uma ocupavam uma posição de “outsiders” em relação
distribuição desigual de poder e por processos às elites dirigentes, brancas e protestantes, foram
complexos de atribuição de sentido que enredam migrando de lugar e tornaram-se os “estabeleci-
todos num jogo dilacerado pela afirmação da su- dos” no plano cultural e da autoridade intelectual
perioridade de uns e da inferioridade de outros. nos anos de 1950.
Aplicada ao caso das relações entre os alemães e Um dos sinais inequívocos dessa nova con-
os judeus alemães no final do século XIX, Elias dição é dado pela profusão de memórias e de es-
mostra que o ressentimento dos primeiros, os “es- critos desses intelectuais a respeito deles mesmos.
tabelecidos”, em relação aos segundos, era decor- Tudo se passa como se ao lado da marca que dei-
rente, em larga medida, do fato destes, os “outsi- xaram nos seus respectivos campos de atuação,
ders”, terem começado a ocupar posições de eles não medissem tempo e energia para reconta-
poder e de prestígio tidas até então como mono- rem a história do grupo, de forma a aparar as frin-
pólio dos “estabelecidos”. chas da imagem que construíram sobre si mesmos.
CIDADES E INTELECTUAIS 45

Essa busca pelo monopólio da representação legí- ge de ser pouco nos anos de 1950 – na crítica da
tima e autorizada, recorrente em todos os círculos cultura, das artes e da literatura. E sim porque eles
de intelectuais e artistas com algum destaque na se tornaram uma elite cultural exatamente no pe-
história cultural, ganha contornos específicos no ríodo em que a sua comunidade “étnica” de ori-
caso dos intelectuais de Nova York. Se tomarmos gem adquiria posições cada vez mais sólidas em
as diversas reflexões que fizeram sobre eles mes- Nova York, que pouco lembravam a situação de
mos como expressões condensadas da auto-repre- seus “parentes pobres” imigrantes.
sentação que gostariam de ver preservadas, talvez Uma menção à situação profissional dos
possamos descobrir novas pistas de análise. membros mais expressivos da Partisan Review no
Vejamos, nesse sentido, como um dos mais decênio de 1950 é necessária para dar contornos
argutos integrantes do grupo, o crítico literário e mais consistentes à afirmação acima. Philip Rahv,
professor universitário Irving Howe, reflete sobre agnóstico e marxista, fez-se reconhecido por suas
a mudança de status, de reconhecimento social e intervenções na intersecção da cultura com a polí-
de posição dos seus pares. A seu ver, isso não im- tica, pela sua capacidade de “farejar” e descobrir
plicou na produção de qualquer conexão com jovens escritores, pelos inúmeros ensaios que pu-
blicou e organizou sobre literatura russa e norte-
[...] uma classe estável de altos funcionários públi- americana, especialmente – Dostoievski, Tolstoi e
cos ou com um segmento significativo dos ricos. Henry James eram os escritores de sua predileção.20
Eles não tinham conexões em Washington. Eles Autodidata, dominava seis línguas (russo, inglês,
não moldaram os gostos oficiais ou dominantes. alemão, francês, hebraico e iídiche) e era um críti-
E não podiam exercer o tipo de controle sobre a
co literário renomado quando foi convidado, em
opinião cultural que o establishment londrino pa-
rece ter logrado manter até recentemente. Críticos
1958, para ser professor de literatura em Brandeis
como Trilling e Kazin eram ouvidos pelo pessoal – famoso college de Boston, conhecido por sua
do setor editorial. Rosenberg e Greenberg pelas ousadia intelectual e institucional, e por contratar
pessoas do mundo da arte, mas dificilmente eles um número expressivo de intelectuais judeus, nas-
poderiam ser considerados algo tão formidável cidos nos Estados Unidos ou refugiados da Euro-
como um establishment (1990, p. 266). pa, como Herbert Marcuse, por exemplo.
Na época em que lecionou em Brandeis,
Se o termo de comparação for o grupo Rahv estava casado com Nathalie Swan, sua se-
Bloomsbury,19 como quer Irving Howe, certamen- gunda mulher oficial e terceira relação conjugal,
te ele tem razão ao insistir no ponto de que os in- constituída pouco tempo depois de sua separa-
telectuais nova-iorquinos não conseguiram o mes- ção de Mary McCarthy que, como vimos, o dei-
mo grau de influência e projeção desfrutado pelo xara para casar-se com Edmund Wilson. Tendo
círculo inglês. Entre outras razões, porque os últi- estudado em Vassar no mesmo período que
mos eram oriundos de uma fração dominante da Mary, Nathalie provinha de uma família rica e
burguesia inglesa. Mas o fato de que as origens era arquiteta de profissão. Nela, Rahv encontra-
sociais assim como a projeção e a influência des- ria “a perpétua Guggenheim”,21 segundo a for-
ses círculos fossem diversas não deve nos impe- mulação precisa e irônica de outro membro do
dir de circunscrever algumas das recorrências es- círculo, William Barrett.
truturais observadas na posição dos mesmos. Um dos poucos não judeus do grupo, mas
Guardadas as devidas proporções, o círculo de in- profundamente identificado com eles, a ponto de
telectuais de Nova York tornou-se com o tempo se dizer um “assimilado”,22 Barrett graduou-se em
tão ou mais estabelecido que o grupo de Blooms- filosofa no City College (integrado por uma maio-
bury. Não porque seus membros tenham enrique- ria de estudantes judeus), antes de ir para a Euro-
cido, estabelecido conexões formais com Was- pa no início dos anos de 1940, onde entraria em
hington ou com as elites dirigentes, tampouco contato com o existencialismo francês do qual se
porque se concentraram apenas – o que está lon- tornou especialista. Professor de filosofia da Uni-
46 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

versidade de Nova York (NYU), amigo do poeta e como professor, suas aulas tinham um público ca-
escritor Delmore Schwartz (que também foi editor tivo. Nas palavras de um de seus alunos, Marshall
da Partisan) desde os tempos em que ambos fre- Berman, autor de Tudo que é sólido desmancha
qüentaram alguns cursos de pós-graduação na no ar, suas aulas eram
Universidade de Colúmbia, Barrett foi colega de
departamento de Sidney Hook, a figura mais po- [...] como sexo, música ou algumas poucas expe-
lêmica do círculo. Marxista convicto nos anos da riências tão estimulantes: ele nos mostrava a ri-
queza de existir [...] ele projetava uma corrente
Depressão, anti-stalinista furioso nas décadas se-
impressionante de imagens, modernas e medie-
guintes, ensaísta brilhante, graduado em filosofia
vais [...] ele fazia ousados saltos ao passado, em
no City College, Hook foi professor de filosofia da culturas radicalmente diferentes, em distintas vi-
Universidade de Nova York, onde ingressou em sões do futuro [...] (Berman, 1996).
1931 e permaneceu até a sua aposentadoria. Lá
teve como aluno William Phillips, quando este es- As observações apaixonadas do ex-aluno
tava fazendo o mestrado, depois de se graduar são contrabalançadas, num registro mais irônico,
em filosofia no City College e antes de se douto- pelos comentários de dois dos seus contemporâ-
rar em Colúmbia. Inicialmente comprometido neos na Partisan. Afiada, Mary McCarthy alardea-
com a literatura proletária e com o radicalismo va que ele era “uma boca à procura de um ouvi-
dos anos de 1930, Phillips, sempre em conjunto do” (apud Barrett, 1982, p. 53). Rahv não deixava
com Rahv, distanciou-se definitivamente dos co- por menos ao dizer que após uma hora de con-
munistas ao lançar, em 1937, a revista que os tor- versa telefônica com Schapiro “podia-se obter um
naria conhecidos na cidade. Seus interesses inte- PhD” (apud Barrett, 1982, p. 69).
lectuais concentravam-se na crítica literária e no Assim como Schapiro, Lionel Trilling também
jornalismo cultural. se graduou em Colúmbia, em 1925. O primeiro ju-
Os críticos de arte da Partisan Review, Cle- deu a integrar um departamento de literatura in-
ment Greenberg e Meyer Schapiro, eram figuras glesa nessa universidade, tornou-se membro está-
de destaque nesse campo nos anos de 1950. O vel de seu corpo docente em 1939. Fazendo do
primeiro teve uma estréia retumbante na cena cul- ensaio seu meio privilegiado de expressão, autor
tural nova-iorquina, graças ao artigo “Avant-garde de estudos importantes sobre a relação entre lite-
and kitsch”, publicado em 1939 na Partisan Re- ratura e psicanálise, Trilling – ao contrário de
view. Defensor intransigente do formalismo no Schapiro, que segundo seu ex-aluno Berman “ba-
plano analítico e do expressionismo abstrato nor- nhava-nos na arte que nos fazia ver a alegria e a
te-americano, Greenberg foi o primeiro crítico a beleza do mundo moderno” – “forçava-nos a ler
reconhecer a importância de Jackson Pollock a literatura moderna de tal maneira que nos fazia
(contribuindo, assim, para projetá-lo como o pin- imaginar se ainda sobrava algo para viver” (Ber-
tor norte-americano mais importante na época) e man, 1996). Espécie de livre-pensador, ele foi
a tratar os artistas modernos de Nova York como dentre todos os integrantes do círculo dos intelec-
parte de uma escola coletiva. tuais nova-iorquinos, o mais resistente na atribui-
Meyer Schapiro, por sua vez, professor de ção da importância da questão judaica na sua tra-
história da arte em Colúmbia, onde ingressou, aos jetória e formação.
16 anos, graças a duas bolsas de estudo que rece- No pólo oposto, encontrava-se Alfred Kazin.
beu (Pulitzer e Regents, respectivamente), gra- O primeiro a editar um livro de memórias voltado
duou-se em 1924 e doutorou-se em 1928, no mes- para a tematização do seu passado de filho de imi-
mo ano em que começou a ensinar história da grantes pobres judeus, ele foi também o primeiro
arte nessa instituição. Em 1952, tornou-se profes- membro do grupo a enveredar pelo estudo da for-
sor titular de Colúmbia, especializado tanto na mação da tradição literária norte-americana. On
arte moderna como na medieval. Reconhecido native grounds, seu primeiro livro escrito nesta di-
por seus escritos, por sua erudição, por sua verve reção, graças a uma bolsa de estudos que recebeu
CIDADES E INTELECTUAIS 47

da Guggenheim Memorial Foudantion, data de nomes de Mary McCarthy, Elisabeth Hardwick,


1942 e foi publicado quando ele tinha 27 anos. O Diana Trilling e Hannah Arendt. Cada uma à sua
menos engajado do grupo, mais interessado na li- maneira e em seus respectivos campos de atuação
teratura do que na política, Kazin era um crítico li- – a primeira como escritora, a última como filóso-
terário renomado nos anos de 1950. Dividia essa fa e as duas outras como críticas literárias e ensaís-
posição com Lionel Trilling e Irving Howe. tas – já tinha conquistado, nos anos de 1950, nome
No caso de Howe, a conquista do nome pró- próprio, independentemente das parcerias amoro-
prio deu-se, de um lado, pela militância política – sas. Elas circulavam com autoridade na cena inte-
em 1950, após colaborar com a Partisan Review, lectual e cultural da cidade e eram reconhecidas
onde estreara em 1946, criou Dissent, a revista como mulheres brilhantes.
mais à esquerda no período. De outro lado, pela No decênio de 1950, eles e elas formavam
sua intensa e profícua atividade como resenhista uma elite cultural que, distinta do grupo Blooms-
da revista Time, onde trabalhou quatro anos em bury, não era, como queria Irving Howe, menos
período parcial. Trotskista na juventude, convoca- “estabelecida” que ele. A diferença entre esses cír-
do a servir o exército norte-americano durante a culos, que existe e precisa ser levada a sério, ad-
Segunda Guerra, Howe foi enviado ao Alaska nes- vém do fato de que os primeiros, os nova-iorqui-
se período. Encarregado de tarefas burocráticas, nos, viveram de início os dilaceramentos próprios
dedicou os dois anos passados ali a ler compulsi- da condição de “outsiders”. Estes, como vimos,
vamente sobre os mais variados assuntos. Os li- exprimiam-se por meio de sentimentos tumultua-
vros eram aqueles disponíveis na biblioteca do dos e ambivalentes, misto de culpa, vergonha e
acampamento do exército. Mas para a sua sorte, ressentimento pela origem e condição de seus
esta era intelectualmente bem equipada, de modo progenitores. Pais e mães enredados na vida dura
que, encorajado a aprender e impossibilitado de de operários, alfaiates, costureiros, pintores de
perseguir qualquer especialização, leu e aprendeu parede, tintureiros, vendedores ambulantes, para
muito nesse período. Em suas palavras, “por puro quem os filhos eram “o único fim de suas existên-
desinteresse da mente, nenhuma universidade que cias”, nas palavras de Alfred Kazin – cuja infância
eu tenha conhecido mais tarde se equiparava a es- e adolescência foi dominada pelo pensamento
ses meses no Alaska” (Howe, 1982, p. 95). Vindo que repartia o mundo entre os “de dentro e os de
de alguém como ele, que ensinou em universida- fora” (Kazin, 1951, p. 55). Na visão de Irving
des do porte de Stanford (entre outras), o comen- Howe, “o lar significa privação”, por isso a dificul-
tário dá o que pensar. Formado como a maioria dade em trazer algum amigo não judeu para co-
dos judeus do círculo pelo City College, onde se nhecer sua família. “Eu ficaria envergonhado de
graduou em literatura inglesa, em 1940, Howe es- mostrar meus pais a ele, assim como de mostrá-lo
treou como professor universitário em 1953, em aos meus pais” (Howe, 1982, p. 5).
Brandeis, onde Rahv também ensinaria, como vi- A situação que eles viveram de início era
mos, a partir de 1958. completamente distinta (e desconhecida) dos inte-
Dwight Macdonald, o único jornalista profis- grantes do grupo inglês que, de tão seguros da sua
sional do grupo, oriundo, como vimos, de uma fa- condição social, podiam-se permitir liberdades ou-
mília de classe média protestante e próspera, estu- sadas na época, como se referirem a si mesmos
dou em escolas particulares, formou-se em Yale, pelo primeiro nome e não pelo sobrenome, como
uma das universidades de maior prestígio nos Es- era usual entre as elites inglesas. Além disso, é
tados Unidos, integrou o corpo de editores da Par- preciso enfatizar que os intelectuais judeus nova-
tisan Review até o ano de 1943, quando saiu da re- iorquinos alcançaram a condição de “estabeleci-
vista, em razão de discordâncias políticas com os dos” no momento em que a cidade, que dava sen-
demais editores que defendiam a entrada dos Esta- tido, direção e vazão à produção (e à
dos Unidos na guerra, para fundar a Politics, que sociabilidade) do grupo, se tornara a capital cultu-
existiu até 1949. Por fim, é preciso mencionar os ral contemporânea e o centro de referência de um
48 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

país que há muito perdera o estatuto de ex-colô- uma série de clivagens de ordem política, enquan-
nia para se transformar na nação mais “estabeleci- to a Partisan Review vai paulatinamente ocupando
da” do mundo. Prisioneiros dessa condição de “es- uma posição de centro, Politics e Dissent situam-se no
tabelecidos” numa nação “estabelecida”, esses pólo mais à esquerda e Commentary mantém-se
intelectuais, ao mesmo tempo em que deixaram mais à direita.
marcas indeléveis na cultura norte-americana, vi- 3 Para um entendimento circunstanciado dos intelec-
veram a ambivalência decorrente da tentativa de tuais de Nova York e do contexto cultural e político
se manterem críticos ao totalitarismo e de se afirma- no qual estavam inseridos, consultar os livros de Ja-
rem às vezes como anti-comunistas, outras como mes Gilbert (Writers and partisans, 1992), Alexander
anti-anti-comunistas, num país praticante do plura- Bloom (Prodigal sons: the New York intellectuals and
lismo cultural, mas afeito às lógicas duais no do- their world, 1986), Terry Cooney (The rise of the New
York Intellectuals, 1986), Alan Wald (The New York
mínio da política.
Intellectuals: the rise and decline of the anti-stalinist
left from the 1930s to the 1980s, 1987), Neil Jumon-
ville (Critical crossing: the New York intellectuals in
NOTAS
postwar America, 1991), David Laskin (Partisans:
marriage, politics, and betrayal among the New York
1 Este artigo, apresentado no Grupo de Pensamento
intellectuals, 2000), Claudia Pierpont (Passionate
Social da Anpocs, em outubro de 2002, é parte de
minds: women rewriting the world, 2001) e os traba-
uma pesquisa mais ampla desenvolvida junto às bi-
lhos do historiador da cultura, Thomas Bender (New
bliotecas e aos arquivos da Universidade de Stan-
York intellect, 1987; Intellect and public life, 1993, e
ford, Estados Unidos, durante o segundo semestre
Budapest and New York [organizado em conjunto
de 2001 e primeiro semestre de 2002, graças a uma
com Carl E. Schorkse], 1994).
bolsa de pós-doutoramento no exterior que recebi
do CNPq. Agradeço aos coordenadores do GT aci- 4 O que de fato aconteceu em 1938, quando Trostsky
ma mencionado, Fernanda Peixoto e Marcos Chor escreveu o artigo “Art and politics” para o número
Maio, pelo incentivo para publicá-lo, e a Ricardo de agosto-setembro da revista.
Benzaquén de Araújo pelos comentários feitos por 5 As informações relativas aos episódios menciona-
ocasião da apresentação. Sou especialmente grata a dos nessa parte do artigo foram retiradas do livro de
Guita Debert, Sergio Miceli e Maria Filomena Gre- Mary McCarthy, Intellectual memoirs (1992).
gori pela leitura aguda. Por fim, quero agradecer ao
6 Atestadas, por exemplo, pela atitude da escritora
comitê acadêmico da Anpocs pelo parecer instigan-
Lillian Hellman, que nos anos de 1980 moveu um
te que recebi. Incorporei, na medida do possível,
processo de danos morais contra Mary envolvendo
algumas das sugestões, reformulei afirmações mais
uma soma significativa de dinheiro, o qual só não
peremptórias ou obscuras, deixei outras em aberto
chegou à sua tramitação final porque Mary foi aco-
ou inconclusas, para trabalhos futuros.
metida por um câncer fatal no pulmão. Apoiada o
2 As revistas culturais mais importantes de Nova York
tempo todo por Hannah Arendt, com quem mante-
nos anos de 1940 e 1950 são uma das fontes privi-
ve uma relação intensa de amizade e uma profícua
legiadas para a apreensão das sucessivas transfor-
correspondência, Mary McCarthy é uma das mulhe-
mações nas posições políticas desses intelectuais.
res mais interessantes e polêmicas do grupo. Suas
Nesse sentido, destacam-se: Partisan Review, criada
memórias, fascinantes do ponto de vista literário e
em 1937; Politics (1944-1949), editada por Dwight
informativo, são um manancial para o aprofunda-
Macdonald que, em 1943, deixou o corpo editorial
mento das convenções de gênero nos círculos inte-
da Partisan, junto com Clement Greenberg; Com-
lectuais de maior prestígio da época.
mentary, fundada em 1945, editada por Eliot Cohen
(até o seu suicídio em 1959) e depois por Norman 7 Com exceção de Mary McCarthy, Elizabeth Hardwick,
Podhoretz, tinha entre os seus colaboradores o nú- Saul Bellow e Delmore Schwartz, não havia outros
cleo da intelligentsia norte-americana judaica; Dis- escritores dentro do círculo dos intelectuais nova-ior-
sent, lançada por Irving Howe e Lewis Coser, em quinos, os quais tinham uma cabeça muito mais críti-
1950. No campo cultural da época, atravessado por ca do que artística (cf. Jumonville, 1991, p. 9).
CIDADES E INTELECTUAIS 49

8 A literatura sobre o modernismo é extensa e daria, (1987) de Sidney Hook, Conversations with Lillian
por si só, um artigo. Para efeitos de “comprovação” Hellman (1986) editado por Jackson Bryer, Essays,
da interpretação que estou propondo (e que mere- selections (1990) de Irving Howe, Intellectual me-
ce uma reflexão mais alentada, a ser feita em outra moirs (1992) de Mary McCarthy, Writing dange-
ocasião), remeto o leitor interessado no aprofunda- rously (1992) de Carol Brightman, Between friends:
mento da dimensão de gênero no círculo modernis- the correspondence of Hannah Arendt and Mary
ta ao recém-lançado livro de Sergio Miceli, Nacio- McCarthy (1995) editado por Carol Brightman.
nal estrangeiro, 2003. 12 Como a que ocorreu, por exemplo, na relação dos
9 A expressão é do artista plástico Flávio de Carvalho dois principais editores da Partisan Review, Philip
e encontra-se reproduzida no “Roteiro de uma vida- Rahv e William Phillips, que romperam de forma in-
obra”, incluído no livro de onde retirei os dados so- tempestiva na década de 1960, depois de anos de
bre Pagu (cf. Augusto de Campos, 1982, p. 320). convivência estreita.
10 Idem, p. 147. 13 Se essa observação é corrente nos estudos sobre o
modernismo brasileiro, ela ganha uma nova dimen-
11 Entre os livros de memórias publicados por eles até
são a partir do instigante estudo de Iná Camargo
a metade dos anos de 1960, destacam-se: A walker
Costa, Panorama vermelho (2001), voltado para a
in the city (1951) de Alfred Kazin, Memoirs of a re-
análise da formação do teatro moderno norte-ame-
volutionist (1957) de Dwight Macdonald, Against
ricano e redigido com o propósito de oferecer uma
the America grain (1962) de Dwight Macdonald,
trama mais consistente para a comparação com a
Starting out in the thirties (1965) de Alfred Kazin. A
formação do teatro moderno no Brasil.
partir do início dos anos de 1970, como resultado
do envelhecimento de vários deles, do questiona- 14 Esta e as demais citações dos intelectuais nova-ior-
mento que sofreram por parte das gerações mais quinos que serão reproduzidas no restante do arti-
novas, sobretudo daquelas ligadas à nova esquerda, go foram traduzidas pela autora.
da publicação do livro de memórias da celebrada 15 Segundo Alexander Bloom, a partir dos anos de
dramaturga e escritora Lillian Hellman, Scoundrel 1920 observa-se um clima de anti-semitismo nos
time (1976), eles voltam à cena editorial e apostam Estados Unidos, expresso, por exemplo, por meio
todas as fichas na reconstrução memorialística de uma série de restrições que os estudantes judeus
suas trajetórias profissionais, experiências pessoais começaram a enfrentar nas universidades norte-
e engajamentos políticos. O livro de Lillian Hellman, americanas. Mas, mesmo assim, dois dos maiores
premiado e aclamado pela crítica, sucesso de públi- colaboradores de Partisan, Lionel Trilling e Meyer
co, é um libelo contra o macartismo dos anos de Schapiro, ainda puderam, nessa época, se graduar
1950 e uma crítica dura ao silêncio de muitos dos in- na Universidade de Colúmbia. O que não foi pos-
telectuais de Nova York em relação ao período de sível aos membros mais novos desses intelectuais
maior arbitrariedade política da história norte-ameri- judeus, nascidos entre 1915 e 1925. Nenhum deles
cana. Uma grande parte dos livros que publicaram a cursou a Colúmbia. A única alternativa de que dis-
seguir traz senão uma refutação contundente à visão punham, em razão quer da precária situação fami-
de Lillian Hellman, ao menos uma reconstrução do liar, quer do acirramento da discriminação étnica
passado que enfatiza o alinhamento de seus auto- observada nas universidades norte-americanas
res no campo político do anti-stalinismo, numa ten- nos anos de 1930, era o City College. Delmore
tativa de demarcarem as suas diferenças em relação Schwartz, nesse contexto, foi uma exceção. Oriun-
ao anticomunismo desenfreado dos conservadores do de uma família judia de classe média, graduou-
de direita e de enfatizarem a importância que tive- se em filosofia, em 1935, na New York University
ram na cena cultural e editorial. Entre os livros nes- e fez a pós-graduação em Harvard (cf. Alexander
sa linha, destacam-se: We must march my darlings Bloom, 1986, cap. 2, “A New York education”, e
(1977) de Diana Trilling, Essays on literature and Shatzky e Taub, 1999).
politics (1978) de Philip Rahv, New York Jew (1978) 16 Referência às disputas classificatórias e políticas que
de Alfred Kazin, The Truants (1982) de William Bar- tiveram lugar entre os intelectuais de Nova York a
rett, A view of my own (1982) de Elizabeth Hard- partir do início dos anos de 1950, quando Philip
wick, A margin of hope (1982) de Irving Howe, A Rahv, William Phillips (os principais editores da
partisan view (1983) de William Phillips, Out of step Partisan), entre outros, criaram o termo “anti-anti-
50 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

comunista” para se diferenciarem, de um lado, do dos grupos se mantiverem inalterados, a posição de


anti-comunismo da direita norte-americana e, de poder de um sobre o outro permanece a mesma.
outro, dos anti-comunistas liberais como Sidney Isso não quer dizer que o modelo não possa ser
Hook e Elliot Cohen (editor da Commentary). Mar- aplicado a grupos que, “outsiders” de início, pos-
cando, assim, o seu alinhamento junto à parcela dos sam vir a se tornar “estabelecidos” ou a ameaçarem
“nova-iorquinos” mais à esquerda no período, a posição dos estabelecidos, como bem mostra Elias
como Clement Greenberg, Meyer Schapiro, Dwight em outros trabalhos, notadamente em Os alemães e
Macdonald, Irving Howe e Lewis Coser (os dois úl- em Mozart: sociologia de um gênio.
timos eram editores da Dissent), entre outros. 19 Para uma análise densa e provocativa desse círculo,
17 Cabem aqui esclarecer que a caracterização mais conferir o artigo de Raymond Williams, “The Blooms-
geral do realinhamento político desses intelectuais, bury fraction”, 1982, pp. 148-169.
feita ao longo do artigo em termos de seu progres- 20 A esse respeito, consultar o ensaio memorialístico
sivo conservadorismo, corresponde, de um lado, à que Mary McCarthy escreveu sobre Rahv, alguns
maneira dominante com que eles foram vistos pela meses depois da morte dele, para o New York Times
esquerda norte-americana nos anos de 1960 e 1970. Book Review, em 17 de fevereiro de 1974.
Conservadores, neste caso, é um qualificativo atri- 21 A observação de Barret refere-se à prestigiada e co-
buído a eles pelos integrantes dessa também cha- biçada bolsa de estudos fornecida para intelectuais
mada “nova esquerda” norte-americana. De outro de destaque em diversos campos de conhecimento
lado, é preciso salientar que o envolvimento de vá- pela John Simon Guggenheim Memoral Founda-
rios desses intelectuais com organizações que rece- tion. Transcrita em Andrew Dvosin, Literature in a
beram na década de 1960 denúncias por suas liga- political world, 1997, p. 103.
ções supostas ou reais com a CIA contribuiu para 22 Comentando a sua identificação com os judeus,
o acirramento dessa percepção. Basta mencionar, William Barrett enfatiza que ela se iniciou de manei-
nesse sentido, a participação de Sidney Hook, Elliot ra reflexiva e deliberada. Em suas palavras, “I was
Cohen, William Phillips, Diana Trilling, entre outros, pro-Jewish because the Jews seemed to me the
no American Comittee for Cultural Freedom (funda- people of the mind”. Cf. The truants, 1982, p. 23.
do em 1949) e no Congress for Cultural Freedom,
entidades voltadas à defesa da democracia, contra o
totalitarismo e o comunismo. Em 1967, veio à tona
BIBLIOGRAFIA
a informação que a segunda recebia suporte e di-
nheiro da CIA. O autor da denúncia, Jason Epstein,
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publicado no New York Review of Books, em abril de
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“bomba” a estilhaçar a imagem e a credibilidade po- BARRETT, William. (1982), The Truants: adventu-
lítica desses intelectuais anticomunistas que se con- res among the intellectuals. Garden
sideravam liberais. A denúncia foi contestada por City, Anchor Press.
alguns dos intelectuais citados. Sobre esse assunto,
ver Diana Trilling, We must march my darlings, BENDER, Thomas & SCHORSKE, Carl (orgs.). (1994),
1977, e Wiliam Phillips, A partisan view, 1983. Budapest and New York: studies in metro-
18 Ver, nesse sentido, o livro de Norbert Elias e John politan transformations, 1870-1930. Nova
Scotson, Os estabelecidos e os outsiders (2000). É York, Russell Sage Foundation.
preciso não esquecer que este livro atualiza uma BENDER, Thomas. (1993), Intellect and public life:
das dimensões analíticas presentes na figuração “es- essays on the social history of academic
tabelecidos-outsiders”. A saber, aquela em que as
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posições sociais de cada um dos grupos, por esta-
more, Johns Hopkins University Press.
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 175

CIDADES E INTELECTUAIS: CITIES AND INTELLECTUALS: LES VILLES ET LES INTEL-


OS “NOVA-IORQUINOS” DA THE PARTISAN REVIEW LECTUELS: LES NEW-YORKAIS
PARTISAN REVIEW E OS “NEW YORKERS” AND THE DE LA PARTISAN REVIEW ET
“PAULISTAS” DE CLIMA, CLIMA “PAULISTAS,” LES “PAULISTAS” DE CLIMA,
ENTRE 1930 E 1950 BETWEEN 1930 AND 1950 ENTRE 1930 ET 1950

Heloisa Pontes Heloisa Pontes Heloisa Pontes

Palavras-chave Key words Mots-clés


Partisan Review e revista Clima; Partisan Review and the Clima mag- Partisan Review et revue Clima; New
Nova York e São Paulo; Sociologia da azine; New York and Sao Paulo; York et São Paulo; Sociologie de la vie
vida intelectual; Cultura e política; Sociology of the intellectual life; intellectuelle; Culture et politique;
Cidades, intelectuais e sociabilidade. Cities, intellectuals, and sociability. Villes, intellectuels et sociabilité.

O artigo analisa, numa perspectiva The paper analyses, in a compara- L’article analyse, suivant une perspec-
comparativa, as similitudes e as tive perspective, both the similarities tive comparative, les similitudes et les
diferenças entre os intelectuais and the differences of the “New différences entre les intellectuels new-
“nova-iorquinos” nucleados pela Yorker” intellectuals, gathered by the yorkais réunis par la Partisan Review
Partisan Review e os “paulistas” da Partisan Review, and the “Paulistas,” et les “paulistas” de la revue Clima.
revista Clima. Herdeiros todos eles gathered by the Clima magazine. Héritiers du légat moderniste, famil-
do legado modernista, familiariza- Being heirs to the modernist legacy, iarisés à un cosmopolitisme sur le
dos com o cosmopolitismo no plano familiarized with cultural cosmopoli- plan de la culture et attentifs à la pro-
da cultura, atentos à produção int- tanism, and aware of the intellectual duction intellectuelle et artistique
electual e artística local, ele mar- and artistic local production, they locale, ils ont marqué la scène cul-
caram a cena cultural paulista e took the stage in the “Paulista” and turelle paulista et new-yorkaise des
nova-iorquina dos anos de 1940 e “New Yorker” cultural scene in the années 1940 et 1950. Ces derniers ont
1950. Os últimos renovaram a dis- 1940’s and 1950’s. The latter could rénové la discussion à propos de la
cussão sobre a relação entre mod- also renovate the discussion on the relation entre le modernisme dans les
ernismo nas artes e radicalismo na relationship between modernism in arts et le radicalisme en politique. En
política. Como intelectuais e the arts and radicalism in politics. As tant qu’intellectuels et écrivains, ils se
escritores, diferenciaram-se dos both intellectuals and writers, they différencient des académiciens dans
acadêmicos em sentido estrito. were distinct from the academics in le sens strict. En tant que critiques et
Como críticos e resenhistas, fizeram the strict sense. As critics and recenseurs, ils ont fait de l’essai le
do ensaio o meio por excelência de reviewers, they made the essay their moyen par excellence de l’expression
expressão e encontraram nas revis- expression means by excellence, et ont rencontré dans les revues lit-
tas literárias e políticas de Nova finding in the New Yorker literary téraires et politiques de New York
York o seu fórum institucional. and political magazines their institu- leur forum institutionnel. Semblables
Parecidos e distintos dos “paulistas” tional forum. At the same time simi- et différents des “paulistas” de Clima,
de Clima, eles oferecem um bom lar and distinct to the Clima ils offrent une bonne contre-mesure
contraponto para adensarmos a “Paulistas,” they provide a reason- pour que l’on puisse approfondir la
investigação da vida intelectual em able counterpoint to go deeper in recherche à propos de la vie intel-
São Paulo no período. Sobretudo, se the investigation of the intellectual lectuelle à São Paulo au cours de cette
ao lado da recuperação das especi- life in Sao Paulo in that period. That période. Particulièrement si, parallèle-
ficidades das histórias culturais e int- will be done if we, above all, are ment à la récupération des particular-
electuais das cidades de Nova York able to advance over the investiga- ités des histoires culturelles et intel-
e São Paulo, formos capazes de tive scope of prevailing sociological lectuelles des villes de New York et de
avançar na investigação de um con- problems aside the recuperation of São Paulo, nous étions capables d’a-
junto de problemas sociológicos the particularities of the cultural and vancer dans la recherche d’un ensem-
pertinentes para o aprofundamento intellectual history of the cities of ble de problèmes sociologiques perti-
da perspectiva comparativa. New York and Sao Paulo, in order to nents à l’approfondissement de la
deepen the comparative perspective. perspective comparative.

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