Sie sind auf Seite 1von 16

216 216

A Formação em Psicologia
Após 50 Anos do Primeiro
Currículo Nacional da
Psicologia – Alguns Desafios
Atuais

Training In Psychology 50 Years After The First


National Curriculum Of Psychology – Some Current Challenges

Formación En Psicología 50 Años Después


Del Primer Plan De Estudios Nacional En
Psicología – Algunos Desafios Actuales

Jefferson de Souza
Bernardes

Universidade Federal
de Alagoas
Artigo

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2012, 32 (num. esp.), 216-231


217
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

Resumo: Atualmente, muitos cursos estão a pleno vapor tentando terminar a implantação ou avaliando
seus currículos, conforme determinado pelas novas Diretrizes Curriculares, homologadas pelo Ministério
da Educação, em 2004. A construção das Diretrizes Curriculares marca um processo histórico importante
para a Psicologia brasileira, pois foram produzidas a partir de debates, de relações de poder e de intensas
negociações entre diversos atores/autores e instituições. Como todo processo histórico e coletivo, foi
marcado por avanços e retrocessos. A partir da análise das novas Diretrizes Curriculares, observações e
conversas com professores e estudantes de diversos cursos no País, problematizo dois conceitos das Diretrizes
Curriculares em Psicologia: competências/habilidades e ênfases curriculares. Argumento que as Diretrizes
Curriculares são dispositivos tecnológicos produzidos a partir de certa racionalidade prática, que caracterizam
formas específicas de governo. Proponho ressignificar tais conceitos perspectivando uma formação em
Psicologia orientada para um perfil generalista, vinculado aos contextos locais de produção de práticas
sociais/profissionais, ampliando o conceito de competências para a competência linguística, originária da
etnometodologia, e para a competência ética. Temos o que celebrar nestes 50 anos da regulamentação da
profissão e do primeiro currículo nacional para os cursos de Psicologia, entretanto, no que diz respeito à
formação, talvez não tanto quanto se gostaria.
Palavras-chave: Formação do psicólogo. Currículo. Ensino da Psicologia. Diálogo. Competência. Ensino
superior.

Abstract: Nowadays, many courses are in full development, trying to finish the implantation or evaluating
their curricula,  as determined by the new Curriculum Guidelines, which were approved by the Ministry
of Education in 2004. The elaboration of the Curriculum Guidelines marks an important and historical
process to the Brazilian psychology. Those guidelines had been produced by debates, involved power
relations and intense negotiations among different actors/authors and institutions. This process, like every
historic and collective process, was marked by advances and setbacks. This work explores, by analysis of
the new Curriculum Guidelines, observations and conversations with teachers and students from various
courses in the country, as well as two concepts of Curriculum Guidelines in psychology: skills/abilities and
the curricular emphases. By my argument, the technological devices of the curriculum are produced by
certain practical rationality, with specific forms of government. I propose to reframe these concepts which
provide training  in psychology oriented to a generalist profile, linked to local contexts of production of social
professional practices, expanding the concept of competence to language competence, which is originated
in ethnomethodology, and ethical competence. We have to celebrate these 50 years of the professional
regulation and the first national curriculum for courses in psychology. However, about the formation, perhaps
we don’t have much to celebrate.
Keywords: Psychologist education. Curriculum. Psychology Education. Dialogue. Competence. Higher
education.

Resumen: Actualmente, muchos cursos están a pleno vapor tentando terminar la implantación o evaluando
sus currículos, conforme determinado por las nuevas Directrices Curriculares, homologadas por el Ministerio
de la Educación, en 2004. La construcción de las Directrices Curriculares marca un proceso histórico
importante para la Psicología brasileña, pues fueron producidas a partir de debates, de relaciones de poder
y de intensas negociaciones entre diversos actores/autores e instituciones. Como todo proceso histórico y
colectivo, fue marcado por avances y retrocesos. A partir del análisis de las nuevas Directrices Curriculares,
observaciones y conversaciones con profesores y estudiantes de diversos cursos en el País, problematizo
dos conceptos de las Directrices Curriculares en Psicología: competencias/habilidades y énfasis curriculares.
Argumento que las Directrices Curriculares son dispositivos tecnológicos producidos a partir de cierta
racionalidad práctica, que caracterizan formas específicas de gobierno. Propongo re-significar tales conceptos
dando perspectiva de una formación en Psicología orientada para un perfil generalista, vinculado a los
contextos locales de producción de prácticas sociales/profesionales, ampliando el concepto de competencias
para la competencia lingüística, originaria de la Etnometodología, y para la competencia ética. Tenemos
qué celebrar en estos 50 años de la reglamentación de la profesión y del primer currículo nacional para los
cursos de Psicología, sin embargo, en lo que dice respecto a la formación, tal vez no tanto como se querría.
Palabras clave: Formación del psicólogo. Currículo. Enseñanza de Psicología. Diálogo. Competencia.
Ensino Superior.

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
218
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

Os diálogos e os debates sobre a formação Já as Diretrizes Curriculares constituem as


em Psicologia atualmente estão candentes. orientações sobre princípios, fundamentos,
Muitos cursos estão a pleno vapor tentando condições de oferecimento e procedimentos
terminar a implantação ou avaliando seus para o planejamento, a implementação e a
currículos, conforme determinado pelas avaliação dos cursos envolvidos (Brasil, 2004).
novas Diretrizes Curriculares, homologadas São dispositivos constituídos pela Lei de
pelo Ministério da Educação, em 2004. Diretrizes e Bases da Educação (1996) com o
Edital n° 04/1997, do Ministério da Educação,
Nesses processos, muitas dúvidas e desafios quando afirmam que as Diretrizes Curriculares
surgiram e ainda surgem. É nesse sentido Nacionais seriam definidas por cada curso
que pretendo dialogar sobre a formação superior no País, tomando por base a noção
em Psicologia atualmente no País, tentando de perfis formativos e as competências e as
ressignificar alguns conceitos constituintes habilidades necessárias para que tal perfil fosse
das Diretrizes Curriculares dos cursos de contemplado.
Psicologia. Afinal, após 50 anos do primeiro
currículo de abrangência nacional para os Em outro momento (Bernardes, 2006),
cursos de Psicologia, é importante fazer uma apresentei propostas de aproximações da
breve análise de onde chegamos. Não tenho formação em Psicologia com a saúde pública.
a pretensão de realizar uma análise histórica, Ali, problematizei os principais conceitos
mas um recorte transversal de nossa formação das Diretrizes Curriculares, argumentando
o quão distante nossa formação estava da
nos dias de hoje.
saúde pública. Não retomarei tais discussões,
embora em um ou outro momento neste
Vale lembrar, as definições para os currículos
ensaio isso seja inevitável. Avanço aqui
atualmente não são mais sustentadas pelo
no sentido de apresentar propostas de
chamado Curriculum Mínimo, e, sim, pelas
ressignificação de alguns desses conceitos, o
Diretrizes Nacionais Curriculares.
que não havia feito anteriormente, partindo
de experiências compartilhadas por colegas e
O Curriculum Mínimo, que possui por base
estudantes de alguns dos cursos de Psicologia
teorias da aprendizagem formais, constitui-se
do País, durante os últimos oito anos, pós-
basicamente de processos institucionais de
homologação das Diretrizes Curriculares.
transmissão de conhecimentos e de inculcação
Entretanto, estarei mais orientado para
de valores socialmente aceitos. Nesse
compartilhar dúvidas e apresentar alguns
processo, destacam-se: “uma metodologia
desafios do que para apresentar respostas
genérica de ensino que se fundamenta na prontas ou receitas pré-fabricadas em torno
passagem de informações, um plano de da reforma curricular.
ensino que se organiza em disciplinas isoladas
e divididas simultaneamente (estrutura Vale destacar que trabalho aqui sustentado
horizontal) e correlativamente (estrutura por uma perspectiva pragmática na
vertical)” (Rosi, 2005, p. 32). No currículo análise discursiva (Levinson, 1983), pela
mínimo, a transmissão de conhecimentos se etnometodologia (Garfinkel, 1967; Coulon,
dá por meio do parcelamento de disciplinas, 1987) e pela abordagem das práticas
o estudo é isolado dos problemas e dos discursivas e da produção de sentidos (Spink,
processos concretos do contexto social em 1999). Dessa forma, o posicionamento é
que se dão, e, por fim, a aprendizagem orientar o diálogo para os usos e os efeitos da
é realizada por meio do acúmulo de linguagem, no caso, para os possíveis efeitos
informações. das Diretrizes Curriculares nos cursos.

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
219
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

Neste ensaio sugiro a ressignificação de dois produzindo pessoas e coisas, modos de ser e
conceitos que considero importantes nas de viver, produzindo modos de subjetivação
Diretrizes Curriculares da Psicologia: ênfases (Veiga-Neto, 1995, 2003; Silva, 1993, 1995,
curriculares e competências e habilidades. 2001; Mancebo, 1997, 1999), ou, como diz
Considero-as importantes mais pelos efeitos Silva (2001, p. 15), um “currículo é sempre
e ansiedades que estão produzindo nas uma imposição de sentidos, de valores, de
comunidades acadêmicas que tenho contato saberes, de subjetividades particulares”.
que pelos conceitos em si. Para percorrer esse
trajeto, organizei este texto da seguinte forma: Portanto, esse primeiro desafio está vinculado
à superação da ideia de que o currículo não
1. Sobre currículos, propostas político- se reduz a uma lista ou à grade de disciplinas,
pedagógicas e graduação. mas é implementado no campo das relações
2. Diretrizes Curriculares – alguns conceitos: de poder e na produção de cultura.
2.1. Ênfases curriculares;
2.2. Competências e habilidades; Uma segunda questão: em relatos de
3. Comemorações e alguns desafios. colegas e estudantes, percebo que não raro
ocorre baixa participação da comunidade
acadêmica nos processos de reformas
1. Sobre currículos, propostas
curriculares. O desafio nas reformas é fazê-las
político-pedagógicas e transformarem-se em um processo de trabalho
graduação eminentemente coletivo, participativo e
produtor de protagonismos e autorias.
São muitos os sentidos produzidos para Isolar a comunidade acadêmica desse
currículo, para proposta político-pedagógica processo só provoca mais e mais afastamentos
(PPC) e para graduação. Não há aqui intenção e movimentos excludentes. Incluo na
de apresentá-los. Pretende-se, tão somente, comunidade acadêmica todos os atores que,
chamar a atenção para alguns efeitos e de uma forma ou de outra, vivenciam ou
relacioná-los com alguns processos que fazem parte do curso (professores, estudantes,
vivenciamos em nosso cotidiano acadêmico funcionários, preceptores, usuários dos
atual. serviços, etc).

Nesse sentido, a primeira questão é: boa parte Assim, ao início da reforma, talvez valha a
dos processos de reformas curriculares são pena conversar coletivamente com todos
reduzidos a preocupações com conteúdos os envolvidos sobre alguns acordos que
e disciplinas. Parece ainda predominar certa merecem ser constituídos:
lógica territorial de que os conteúdos e as a) Nível da reforma: caso a comunidade
disciplinas delimitam poder das mais variadas queira realizar uma reforma curricular, qual
formas, seja em instituições públicas, seja em o nível de reforma que se quer atingir?
instituições privadas. Qual o grau de compromisso assumido pelo
departamento/colegiado do curso, pelos
A primeira questão, Portanto, esse primeiro professores, estudantes e funcionários?
desafio está vinculado à superação da b) Posicionamentos dos atores para a
ideia de que o currículo se reduz a uma multiplicidade de sentidos da proposta
lista ou à grade de disciplinas, mas, que é político-pedagógica e da graduação: que
implementado no campo das relações de vozes circulam na comunidade acadêmica
poder e na produção de cultura; mais que sobre PPC, graduação, reformas? Que sentidos
pensar sobre o currículo como reprodutor são produzidos a partir daí? Que perfil formativo
de algo, considerá-lo como efetivamente será produzido? Que objetivos querem atingir?

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
220
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

c) Relações com a comunidade acadêmica, e de intensas negociações entre diversos


a instituição e a sociedade: o que a PPC atores/autores e instituições. Como todo
tem a ver com as comunidades envolvidas processo histórico e coletivo, foi marcado
(acadêmica e não acadêmica), o curso e a por avanços e retrocessos. Apresentarei dois
estrutura organizacional/institucional? A PPC conceitos centrais nas Diretrizes Curriculares,
ajuda/facilita/dificulta tais relações? Qual procurando caracterizá-los e destacando a
é a história da instituição e do curso nesse influência histórica de certas tecnologias em sua
contexto? Qual é a história da formação dos constituição. O termo tecnologias refere-se ao
professores? Dos egressos? Qual é a história agenciamento de relações sociais e humanas,
da região e o que se quer modificar nela? híbridos de conhecimentos, instrumentos,
Que vozes constituem o curso? Enfim, qual pessoas, sistemas de julgamentos, edificações
é a vocação do curso? e espaços, estruturados por uma racionalidade
prática governada por metas mais ou menos
São três conjuntos de questões importantes, conscientes (Rose, 1996, pp. 26-27).
além de outras, claro, para que não se perca
o norte dos trabalhos das reformas. Não Racionalidades práticas significam os modos
há intenção de buscar consenso entre os ou sistemas de pensamento sobre a natureza
da prática de governamento (quem pode
atores sobre tais questões, mas de clarear
governar, o que é governar, o que e quem
posicionamentos. De onde cada um dos
é governado), capaz de tornar pensável e
envolvidos fala? Tais questões serão espécie
praticável alguma forma daquela atividade,
de bússolas do exercício coletivo. Sem tais
tanto para aqueles que a exercem como para
posicionamentos estarem minimamente
aqueles sobre quem é exercida.
claros, as reformas acabam se transformando
em um exercício, boa parte das vezes,
As Diretrizes Curriculares, dessa forma,
reduzido a trocas de título de disciplinas,
são dispositivos tecnológicos produzidos
que, no currículo anterior se chamavam
a partir de certa racionalidade prática, e
Psicologia Clínica 1 e, após a reforma,
caracterizam formas específicas de governo.
Processos Clínicos.
Em tal dispositivo, abordaremos os conceitos
de ênfases curriculares e de competências
Finalizando este primeiro tópico, destaco que
e habilidades, visto serem, em minha
currículo é vida, e, portanto, é desejável que
compreensão, centrais para a discussão das
esteja na pele das pessoas, encarnado em seus reformas curriculares.
corpos, vivenciado e em constante processo
de avaliação e mutação. Por ser vivo, o Acredito que temos o que celebrar nestes
currículo que se estatiza, definha, iniciando 50 anos da regulamentação da profissão
processos de reproduções culturais, sociais, e do primeiro Currículo Nacional para os
valores, poder e de práticas quase sempre Cursos de Psicologia. No que diz respeito à
questionáveis. formação, talvez não tanto quanto se gostaria.
Entretanto, isso não impede de seguirmos
2. Diretrizes Curriculares adiante e de reelaborarmos conceitos que
tendem a manter a situação como está.
A construção das Diretrizes Curriculares
marca um processo histórico importante para 2.1. Ênfases curriculares
a Psicologia brasileira, pois foram produzidas
a partir de debates, de relações de poder O conceito de ênfases curriculares, conforme

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
221
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

apresentado nas Diretrizes Curriculares da reformas curriculares, para além de mudanças


Psicologia, apresentados pelos artigos 10º e nas disciplinas, estão repletas de substituições
12º das Diretrizes (Brasil, 2004), está definido de áreas de conhecimentos (ou campos de
da seguinte forma: aplicação/atuação) para ênfases curriculares.

Art. 10°. Pela diversidade de orientações O parágrafo 3º do artigo 12º dá o tom para
teórico-metodológicas, práticas e contextos as mudanças: “As ênfases devem incorporar
de inserção profissional, a formação estágio supervisionado estruturado para
em Psicologia diferencia-se em ênfases garantir o desenvolvimento das competências
curriculares, entendidas como um conjunto específicas previstas” (grifos meus).
delimitado e articulado de competências e
habilidades que configuram oportunidades Antes das Diretrizes Curriculares, boa
de concentração de estudos e estágios em parte dos cursos de Psicologia organizava-
algum domínio da Psicologia (grifos meus). se nos três estágios tradicionais como
obrigatórios: Psicologia Clínica, Psicologia
Dois aspectos destacam-se nesse artigo: Escolar e Psicologia do Trabalho – com suas
o primeiro diz respeito a essa primeira especificidades e variações. Atualmente, boa
definição de ênfases (“conjunto delimitado e parte desses cursos foi reduzida de três para
articulado de competências e habilidades”). dois estágios, pois vincularam os mesmos às
Em relação a essa primeira definição, deixarei ênfases, sob a condição de obrigatoriedade
para comentá-la junto ao próximo conceito, do curso de ofertar ao menos duas delas aos
de competências e habilidades. A segunda alunos. As ênfases, além de uma ou outra
definição caracteriza ênfases como “algum disciplina, foram reduzidas aos estágios.
domínio da Psicologia”. Claro, a pergunta
salta aos olhos: mas, o que é um domínio Acredito que o ponto central dessa questão
da Psicologia? O artigo 12º tenta responder: seja a expressão definidora de ênfases
“Os domínios mais consolidados de atuação vinculada a caracterizá-las como os domínios
profissional do psicólogo no País podem consolidados da Psicologia, que são as áreas
constituir ponto de partida para a definição de conhecimento hegemônicas associadas
de ênfases curriculares (...)” (grifos meus). diretamente aos campos de atuação que,
historicamente, sustentam determinados
Direto ao ponto: em que essa definição modos do exercício profissional em Psicologia.
modifica ou promove avanços para as Alguns autores (Bernardes, 2004; Mancebo,
reformas curriculares na Psicologia? Os 1997, 1999; Jacó-Vilela, 1997) afirmam
sentidos produzidos até o momento, em que, ao longo da consolidação do saber/
grande parte dos cursos de Psicologia pelo fazer psicológico, tais domínios sempre
País, é o de replicar o que já existe. Domínios foram ditados pela Psicologia escolar, pela
mais consolidados de atuação é o que já Psicologia organizacional e, posteriormente,
está aí: Psicologia Clínica, Psicologia Escolar, pela Psicologia clínica:
Psicologia Organizacional, assim, a área de
conhecimento em Psicologia Escolar, por As práticas e concepções da Psicologia
aplicada, sob forte embasamento
exemplo, aplicada fundamentalmente em
funcionalista, são praticamente ignoradas
campos vinculados a escolas (ou a algumas pela maioria dos autores de ensaios de
instituições de ensino e aprendizagem), vê-se história da Psicologia. A trajetória das
diante de uma ênfase curricular em Psicologia práticas psicológicas na educação, no
trabalho, e voltadas para o ajustamento do
e de processos educativos. Avançamos? Creio indivíduo em suas relações com os demais,
que seria nos iludirmos afirmar que sim. As

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
222
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

consigo mesmo e no social, com pregnante Essa questão culmina, em meu modo de ver,
desenvolvimento neste século, permanece na clássica discussão entre perfil generalista
por se fazer (Geniviève, 1992 como citado
ou especializado na formação do psicólogo.
em Mancebo, 1999, p. 95)
Ora, percebo a existência de certo mito
sobre a formação generalista em Psicologia.
É o modus operandi da Psicologia aplicada:
Nossa formação jamais foi generalista,
a Psicologia aplicada à escola, à organização,
ao contrário, sempre foi uma formação
à clínica etc. São saberes e técnicas racionais
com dupla especialização precocemente
e científicas de controle individual e social,
estabelecida: a primeira especialização em
um exemplo das racionalidades práticas,
determinado modus operandi centrado no
conforme apresentado anteriormente,
indivíduo, individualizante e intimista, e
baseado no conceito de Nikolas Rose.
uma segunda especialização em torno desse
modus, localizada geralmente na atuação
Assim, argumento que a noção de ênfases
clínica. Em 1964, Angelini já demonstrava
curriculares é herdeira de certa racionalidade
sua preocupação com o Curriculum Mínimo
prática, e produz nos processos das reformas
(Parecer nº 403/62), que formava especialistas
curriculares a hegemonia histórica da
precocemente:
Psicologia aplicada. Um dos motores desse
processo é a não diferenciação entre áreas de Diante da situação de fato criada pelo
conhecimento, campos de atuação e objetos Parecer (n° 403/62), ou lutaremos para que
de estudo, que se encontra consolidada nas o prazo seja dilatado, ou nos resignaremos
a iniciar a especialização já no 4° ano. Se
escolas, empresas e clínicas (consultórios,
essa última hipótese tiver de ser obedecida,
ambulatórios, hospitais). estamos certos que a abreviação do curso se
fará em detrimento de uma real formação
Áreas de conhecimento da Psicologia, (1964/1965, p. 45)
campos de atuação e objetos de estudo são
mesclados de forma a garantir a hegemonia Em 1979, Botomé também problematizava
da Psicologia aplicada. Trocando em miúdos, a clássica divisão proposta na formação,
é o clássico discurso comumente escutado derivada da chamada Psicologia aplicada.
nos cursos de que a Psicologia escolar, por Diz ele:
exemplo, é trabalhada em escolas e foca
processos de ensino-aprendizagem, ou a As escolas de Psicologia ainda mantêm as
clássicas divisões entre clínica, escola e
Psicologia organizacional é trabalhada em indústria (serão essas as necessidades que o
empresas e foca seus estudos em processos povo brasileiro tem em relação à Psicologia?).
e em relações de trabalho. Tudo o mais que Essa e outras características de nossos cursos
compõe esses campos ou locais fica fora selecionam bastante os interesses e as
percepções dos profissionais da Psicologia
da atuação desse profissional, como se, nas
(1979, p. 11)
escolas, não pudéssemos tratar de relações de
trabalho, sofrimento, relações comunitárias,
Segundo Mancebo, as instituições formadoras
familiares, etc. Uma checagem rápida em
“têm atuado como reprodutoras de um
instituições hospitalares, por exemplo, e
modelo básico de atuação – as atividades
verificamos claramente isso: os modos de
clínicas desenvolvidas em consultórios
atenção geralmente estão afastados dos
particulares, na perspectiva de formação
modos de gestão. Os setores de recursos
de profissionais liberais” (Mancebo, 1997,
humanos possuem pouco ou nenhum diálogo
p. 23). Para Spink (1999), é a hegemonia
com os setores clínicos e vice-versa.
do paradigma da simplificação, que opera
por meio de processos de disjunção e

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
223
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

redução. Fragmenta-se o saber/fazer em noções são herdeiras das noções de matérias e


especialidades, com a ilusão de que cada disciplinas do Curriculum Mínimo. Mas, nesse
especialidade aprofundará os conhecimentos caso, também não sou pessimista. Há formas
em torno do objeto de estudo recortado e de ressignificar tais noções e de avançar nos
isolado (disjunção). Com o passar do tempo, processos de reformas curriculares.
serão associados e reduzidos a uma só teoria
explicativa dos fenômenos (redução). Em outro momento, também argumentei
que o repertório utilizado no debate sobre
Dessa forma, ficam como desafios: como a formação em Psicologia se modificou ao
transcender a lógica replicante dessa longo dos tempos. A partir da década de 90,
racionalidade técnica (Psicologia aplicada)? surgem novos termos que, a princípio, nada
Como transcender a lógica da dupla têm a ver com os anteriores, da década de
especialização? Como trazer para o debate a 60: habilitações são substituídas por perfis
perspectiva do perfil generalista na formação? de formação, currículo mínimo por Diretrizes
Curriculares, campos de aplicação por ênfases
Não sou pessimista. Argumento que a curriculares, disciplinas por habilidades,
formação generalista não pode ser reduzida e matérias por competências (Bernardes,
a um transitar, em pouco tempo, entre áreas 2004). Entretanto, os sentidos produzidos
ou campos de atuação em Psicologia; não a partir dessas modificações praticamente
pode ser confundida com a agregação da permaneceram inalterados.
experiência dos estudantes por meio de um
pot-pourri de diferentes áreas ou campos de Competências e habilidades, junto ao
atuação em Psicologia. Tampouco pode ser conceito de perfil formativo, são os dois
confundida com pluralidade ou diversidade grandes conceitos que surgem no Edital
(sugere-se sempre que os cursos sejam plurais n° 04/1997, do Ministério da Educação,
em suas abordagens teóricas, garantindo, orientadores das Diretrizes Curriculares, ou
assim, a diversidade na formação). seja, são centrais para as reformas curriculares.

Em outros momentos (Bernardes, 2004, As competências e as habilidades são


2006), argumentei que o conceito de ênfase definidas nas Diretrizes Curriculares da
pode ser caracterizado de maneira ampla, Psicologia da seguinte forma:
temática e de forma não excludente entre
as escolhas realizadas pelo aluno das ofertas Art. 4º - A formação em Psicologia tem por
oferecidas pelo curso. Dessa forma, há alguma objetivos gerais dotar o profissional dos
possibilidade de resistirmos às racionalidades conhecimentos requeridos para o exercício
práticas ditadas pela Psicologia aplicada e de das seguintes competências e habilidades
produzirmos uma formação que esteja atenta gerais: (...)
às questões da vida, buscando transformações Art. 8º - As competências reportam-se a
sociais e atendendo as necessidades das desempenhos e atuações requeridas do
populações. formado em Psicologia, e devem garantir
ao profissional um domínio básico de
2.2. Competências e habilidades conhecimentos psicológicos e a capacidade
de utilizá-los em diferentes contextos
Da mesma forma que o conceito de ênfase que demandam a investigação, análise,
não abre para muitas celebrações nestes 50 avaliação, prevenção e atuação em processos
anos de Psicologia, as noções de competências psicológicos e psicossociais, e na promoção
e habilidades também não. Afirmo que tais da qualidade de vida. (...)

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
224
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

Art. 9º - As competências, básicas, devem característica do indivíduo, sempre da ordem


apoiar-se nas habilidades de: (...) do indivíduo. Vale destacar que, segundo
Art. 14 – A organização do curso de Psicologia as Diretrizes, competências e habilidades
deve, de forma articulada, garantir o reportam a “desempenhos e atuações
desenvolvimento das competências do requeridas do formando”.
núcleo comum, seguido das competências
das partes diversificadas – ênfases – sem Nesse processo, no que concerne à
concebê-los, entretanto, como momentos concepção de conhecimento e cultura
estanques do processo de formação (Brasil, subjacente às diferentes políticas curriculares
2004, grifos meus). oficiais, percebe-se uma visão utilitarista e
instrumental de currículo, limitadora das
A fundamentação das novas diretrizes potencialidades humanas. A organização do
curriculares no ensino superior, ditadas currículo por competências faz-se traçando
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação objetivos e definindo operações cognitivas
(LDB), de 1996, sustenta-se em concepções (Pacheco, 2001). O conhecimento e a cultura
relacionadas às pedagogias psicológicas, não são problematizados como campo plural
principalmente as concepções derivadas de conflitos e acordos, e a função cultural da
das obras de Perrenoud (2001, 2002) e universidade é submetida à lógica mercantil
Thurler (2001), que centram o processo de da formação para habilidades e competências
aprendizagem na questão das competências (Chassot, 1998); trata-se, portanto, de
e das habilidades. conceito com raízes cognitivas e indivíduo-
centrado, que localiza as competências
Machado (2002), um dos defensores para as habilidades no corpo/psiquismo do
da pedagogia psicológica, ao definir indivíduo.
competências, afirma que são padrões de
articulação do conhecimento a serviço da A modificação do repertório ao longo
inteligência. São associadas aos esquemas dos anos, anteriormente apresentada,
de ação – desde os mais simples até as aponta uma mudança nas concepções de
formas mais elaboradas de mobilização do aprendizagem: da concepção ambientalista,
conhecimento –, às capacidades, “como eminentemente behaviorista, em que os
a capacidade de expressão nas diversas conteúdos são o centro do processo, para os
linguagens, a capacidade de argumentação processos cognitivos centrados no estudante
na defesa de um ponto de vista, a capacidade (competências e habilidades), de concepção
de tomar decisões, de enfrentar situações- externalista para uma concepção internalista,
problema, de pensar sobre e de elaborar da ordem do ambiente e do conteúdo para a
propostas de intervenção na realidade” ( p. cognição e os processamentos de informação
146). localizados no aluno, que é o responsável
pelas competências e habilidades adquiridas
Para Allessandrini, as competências são ou, também, o responsável pela não aquisição
definidas pela “capacidade de compreender das mesmas.
uma determinada situação e reagir
ssa concepção de competências e habilidades
adequadamente a ela” (2002, p. 164). É a
localizadas no indivíduo também explicita
qualidade de quem é capaz de apreciar e
formas de racionalidade prática analisadas
de resolver certo assunto, um ato em torno
por Rose (1996). Segundo Pacheco,
de determinado objeto. Relaciona-se ao
saber fazer algo, que, por sua vez, envolve
uma série de habilidades. É uma posse, uma

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
225
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

A pedagogia por competências decorre do denominam  competência linguística  o


modelo de gestão científica do currículo, conjunto de conhecimentos que permitem
tornando-se, por isso, um instrumento
que reforça não só a racionalidade técnica ao falante de uma língua compreender e
mas também as práticas pedagógicas que produzir certa quantidade, potencialmente
delimitam o processo ensino/aprendizagem infinita, de orações gramaticalmente corretas,
como um dispositivo que é justificado pela
com uma quantidade finita de elementos, ou,
transmissão (2001)
também, que tais processos são centrados
nos conhecimentos que o falante possui.
Em outro momento (Bernardes, 2004), Chomsky, linguista norte-americano, é um
argumentei que essa lógica está associada exemplo de pensador dessa perspectiva.
a uma perspectiva neoliberal de educação,
preocupada com objetivos e metas. Pacheco Para Gardner, a competência linguística está
afirma que: centrada em processo psicológico vinculado às
capacidades intelectuais (fonologia e sintática
Objectivo e competência estão ligados a
são centrais na inteligência, a semântica,
critérios de ordenação do conhecimento
segundo um código burocrático e disciplinar, com a inteligência lógico-matemática, e a
mesmo que a imagem dominante nos pragmática, com a inteligência interpessoal).
discursos dos reformadores seja a da
transdisciplinaridade. Voltando à definição
Algumas concepções cognitivas definem
de competência e objectivo, diremos que são
instrumentos de uma racionalidade curricular competência linguística como aquela
técnica que têm por função compendiar o capacidade que possui a mente humana de
conhecimento em comportamentos ou em processar informações a partir de um sistema
saberes ligados à acção (2001 )
de símbolos.

As diretrizes curriculares atuais fazem


Em outras palavras, as concepções acima
parte da herança da tendência liberal
apresentadas argumentam que a competência
tecnicista, orientada para a cientificidade e a
linguística se centra em torno de operações
competência e para as técnicas e os métodos
que aumentam a eficiência da aprendizagem. gramaticais interiorizadas no indivíduo que se
Oliveira (1999) afirma que o que resta ao articulam e se desenvolvem de acordo com
psicólogo, nessa tendência de ensino, é sua capacidade de falar. Essa competência
conhecer e dominar a tecnologia educacional origina-se no próprio indivíduo, e não no
e os procedimentos instrucionais. campo do coletivo ou das relações entre as
pessoas. Assim, a competência linguística se
Diante dessas questões, também não sou faz realidade através de regras generativas que
pessimista. O desafio é, portanto, como se relacionam com a gramática, que é saber
ressignificar o conceito de competência? organizar-se e estruturar-se.
Como trabalhar, por exemplo, o conceito de
competência sob outras perspectivas que não Proponho considerar competência linguística
reduzindo-o às perspectivas individualistas ou tomando por base não as concepções
cognitivistas? Objetivando iniciar um debate cognitivas, mas sim, a vertente pragmática
sobre essa questão, apresento dois exemplos da Linguística e os aportes teóricos da
dessa possibilidade: etnometodologia.

1) Competência linguística A pragmática é o estudo dos princípios que


regulam os usos da linguagem (Iñiguez, 2002).
Em geral, as teorias linguísticas centradas A partir da pragmática, realizamos a análise
na análise da gramática formalizada da produção de sentidos: os usos e os efeitos

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
226
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

da linguagem; a pragmática, dessa forma, Dessa maneira, como em nossos currículos


estabelece como foco o estudo da linguagem e na formação em Psicologia são trabalhadas
em uso e concentra-se no que acontece questões vinculadas à competência linguística?
quando as pessoas falam. É no contexto da Abaixo, apresento dois exemplos: um
produção linguística que está a compreensão primeiro, vinculado à noção de campo na
de seu significado. pesquisa, e um segundo, relacionado à prática
profissional.
A pragmática analisa práticas sociais concretas,
focando na significação linguística de acordo Pesquisa: nessa perspectiva, na pesquisa
com a interação existente entre quem fala social, por exemplo, o campo de pesquisa
e quem ouve, do contexto da fala, dos não é algo dado, pré-existente, com existência
elementos socioculturais em uso e, também, independente do pesquisador(a). Peter Spink
dos objetivos, efeitos e consequências desse (2003) nos auxilia aqui com a noção de que
uso. o campo (de pesquisa) se constitui desde
o primeiro momento que o pesquisador(a)
Já a etnometodologia possui como um dos fala dele. A todo instante, quem investiga
princípios a ideia de membro competente. está em campo; é o que o autor chama de
Esse conceito não está relacionado à ideia de campo-tema.
pertencer a um grupo – alguém fazer parte
de um grupo. Essa é uma parte da noção de Mesmo em sentido clássico, o pesquisador,
competência, mas não a única: quando chega ao campo a ser pesquisado,

A ideia de competência não é unicamente está diante de uma comunidade que não
estar socializado em um grupo social, conhece, e determinados problemas lhe
mas dispor dos recursos, ou seja, das serão colocados. Então vai compartilhar
competências para a ação conjunta e um universo de significados, uma certa
a interação. Ser capaz de interagir com experiência etc. (...) Se você não for membro
outras pessoas. A mais importante de todas competente de um grupo, será muito difícil
as competências é a lingüística; se não interagir adequadamente, e parece ser pouco
conhecemos um idioma, não podemos ser possível, ou altamente improvável, fazer-se
competentes nele. (...) A questão não está membro competente de um grupo que não
apenas, insisto, em socializar-se em um seja o próprio (Iñiguez, 2002, p. 139)
grupo, mas em ser capaz de falar, o que é
algo muito diferente. (...) A competência, no
sentido da etnometodologia, é, sobretudo,
Prática profissional: já na prática profissional, a
o manejo da linguagem comum (Iñiguez, noção de setting ou de contexto depende das
2002, pp. 165-166) formas linguísticas que usamos para configurar
a interanimação dialógica. Costumamos
Vale destacar, linguagem, nessa perspectiva, considerar a noção de contexto como um
não se reduz a funções ou a processos cenário que acolhe determinada cena de um
básicos ou mentais. A linguagem aqui indivíduo ou entre pessoas. O que proponho
é compreendida como um fenômeno é pensar que esse cenário é produzido a partir
eminentemente coletivo. Para pragmatistas das interanimações dialógicas oriundas da
e etnometodólogos, a linguagem não existe linguagem em uso. É nos usos e nos efeitos das
no interior da cabeça das pessoas, ela existe palavras que configuramos o que venham a ser
no mundo cotidiano. É mais uma forma de as relações. O contexto não é algo imutável,
construção do mundo e de nós mesmos fixo, pré-existente à vida das pessoas. Ele
que de suas descrições. A linguagem, então, é produzido nas relações que constituímos
é uma forma de ação social, mais que um com nossos usuários, pacientes, clientes. O
espelho ou um reflexo dos acontecimentos. uso dessas palavras não é arbitrário: cada

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
227
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

uma delas remete a uma relação distinta Além da ética prescritiva, observada nos
da outra. A palavra usuário, no campo da manuais de pesquisa e códigos profissionais,
Psicologia, e, mais especificamente, no propomos o debate sobre a ética dialógica
campo da saúde, remete-nos a um contexto (Spink, 2000) e a noção de competência ética
quase que imediatamente associado à saúde (Varela, 2003). Para Varela, o comportamento
pública, a palavra cliente, a uma determinada ético não surge de hábitos ou da obediência
concepção teórica em Psicologia, a palavra a padrões ou a regras. A vida cotidiana, ou o
paciente, a toda uma determinação histórica micromundo (jamais considerado oposição
do poder biomédico sobre as concepções a macromundo), é repleta de confrontações
de saúde e doença. Enfim, a competência imediatas que exigem comportamentos
linguística tem a ver com o domínio desses éticos, ações concretas, personificadas,
códigos em determinada interação, atentando corporificadas, vivas. A questão central
para seus usos e efeitos. para o diálogo é como, no micromundo,
compreender/estabelecer relações éticas no
Em suma, a competência linguística campo profissional (seja na pesquisa, seja na
está centrada nas condições da dialogia, prática profissional).
compreendida aqui como uma prática
social e em seu potencial de produção Já para Spink, a ética dialógica vai além
da realidade (mais que descritivo), que da ética prescrita, normativa, dos códigos
possui as seguintes características: polifonia deontológicos e documentos oficiais. A
(multiplicidade de vozes) e polissemia autora (2000) argumenta a favor da ética da
(multiplicidade de sentidos), uso não abusivo responsabilidade, e, para isso, apresenta a
das relações de poder, marcadas pela ética dialógica (pautada na competência ética
horizontalidade nas relações, implicando, de Varela) em distinção à ética prescritiva
portanto, o abandono de posicionamentos (pautada na moral contratual).
hierarquizantes, da neutralidade e de
metalinguagens na produção da ciência, A dialogia é o conceito central para a
e, finalmente, caracterizado pelo fato de construção da noção de ética dialógica. Para
o conhecimento não estar na mente de conceituar dialogia, partimos do pressuposto
um indivíduo, mas nas relações entre as que dar sentido ao mundo é o mais poderoso
pessoas, resgatando, assim, a raiz da palavra motor da ação humana:
diálogo (dia – entre; logos – conhecimento):
o conhecimento que é produzido entre as Estamos também propondo que a produção
de sentido está colada ao uso da linguagem,
pessoas. e que a linguagem em uso é um fenômeno
da ordem da interação. Dito de outra forma,
2) Competência ética – ética a produção de sentido é um fenômeno
sociolinguístico: os sentidos são construídos
dialógica quando uma ou mais vozes se confrontam,
quando a voz de um ouvinte responde à voz
Para avançarmos na ressignificação de de um falante (speaker) (Spink, 2000, p. 19)
competências e não reduzirmos seu conceito
a um conjunto de habilidades do indivíduo, Novamente, dois exemplos, um, na pesquisa,
proponho refletirmos sobre a competência e outro, na prática profissional: no exercício
ética. Esta propõe não reduzirmos o da pesquisa, a ética dialógica (pautada na
conhecimento e suas aplicações a um saber/ competência ética de todos os envolvidos nos
fazer, mas em como saber/fazer e para que processos), leva os preceitos éticos de plena
saber/fazer. informação, livre consentimento e análise de

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
228
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

riscos e benefícios às últimas consequências. Nacionais?


São três os cuidados éticos essenciais nessa
perspectiva: “os consentimentos informados, Estamos dispostos a manter a articulação
a proteção do anonimato e o resguardo entre as distintas áreas de conhecimento
do uso abusivo do poder na relação entre e os campos de atuação em Psicologia?
pesquisador e participantes” (Spink, 2000, Que rupturas seriam necessárias em nosso
p. 20). cotidiano? Que territórios ou espaços de
poder seriam modificados?
Já no exercício da prática profissional, é pensar
a ética dialógica a partir dos posicionamentos Que modificações nas práticas profissionais
da dialogia (polifonia, polissemia, relações de seriam realizadas para que isso fosse possível?
poder), ser produzido entre as pessoas. E na formação? A graduação seria a mesma
como a constituímos atualmente?
A competência ética se caracteriza pelo
contexto concreto em que os sujeitos estão O curso é constituído por quais vocações?
inseridos e se sentem pertencentes e o que Vocações no sentido forte de vozes –
é produzido a partir daí. Mais que isso, é multivocalidade/polifonia e polissemias.
também caracterizada pela vivência de tal
conceito em seu cotidiano. Varela apresenta Que dispositivos construímos em nosso
o conceito de enação para caracterizar a cotidiano para dar conta dessas questões?
corporificação/encarnação da competência
ética que busca a habilidade para atender, Que diálogos são possíveis e desejáveis?
expandir essa atenção e concentrar-se em
objetos concretos da vida cotidiana. Alguns pequenos passos/desafios nos processos
de reformas curriculares são importantes na
Além de trabalhar com os estudantes questões tentativa de esboçar respostas a algumas das
deontológicas ou da moral contratual, é indagações acima:
fundamental trabalhar o diálogo, o encontro
e a alteridade. Tenho certa sensação de que O exercício do diálogo no sentido de
nossas PPC estão aquém dessas possibilidades, explicitação dos sentidos e posicionamentos
mas ficam os desafios. produzidos por diferentes atores sociais.
Não falamos a mesma língua, e os conceitos/
3. Comemorações e alguns palavras não possuem sentido único e
desafios... homogêneo. Isso não é um problema (sinto
que é o contrário, é onde reside nossa força
Muito há o que comemorar nestes 50 anos! como vasto campo de saber/fazer). Não se
E muito mais comemoraremos no avanço aos busca homogeneizar tais diferenças por meio
desafios em busca de caminhos progressistas de processos consensuais, boa parte das vezes
e críticos para o diálogo sobre formação em artificiais. O principal é o que fazer com essas
Psicologia. Assim, valem as indagações e as divergências/diversidades/diferenças:
dúvidas abaixo, dentre outras:
Diálogos com todos os envolvidos no processo
Que sentidos são produzidos pela e para de formação, promovendo desnaturalizações
a lógica disciplinar/conteudista ou, mais nas relações entre os grupos envolvidos
atualmente, pela lógica das competências (atores e posicionamentos distintos). Os
e habilidades nas Diretrizes Curriculares processos de produção de currículo exigem

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
229
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

participação e convite permanente a todos departamentos pode conferir determinada


os envolvidos, sejam professores, alunos, configuração aos mesmos, distinta da
preceptores, supervisores locais, comunidade instituição de ensino que não opera sob a
envolvida, etc; égide departamental.

Diálogos sobre as relações de poder que Enfim, fica o convite à produção de novos
circulam/são produzidas entre os distintos sentidos a alguns conceitos e ideias que
grupos e instituições, explicitando os persistem em permanecer inalterados entre
diferentes posicionamentos dos atores nós, novos sentidos que possam ser oriundos
envolvidos; da história do curso e da região, os saberes e
fazeres locais, orientados para as necessidades
Diálogos sobre nossas estruturas e práticas de nossas populações. Daí o convite a dar
institucionais e as concepções de formação novo sentido às competências linguísticas,
que circulam/são produzidas a partir daí. que falam de contextos específicos de cada
O fato de a organização dos cursos, por um dos cursos, e às competências éticas,
exemplo, ser baseada em um somatório de que falam de nossas condições de dialogia.

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
230
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

Jefferson de Souza Bernardes


Universidade Federal de Alagoas – Doutor em Psicologia Social
E-mail: jbernardes.ufal@gmail.com

Endereço para envio de correspondência:


Campus A. C. Simões / Curso de Psicologia – ICHCA - Av. Lourival Melo Mota, s/n, Cidade Universitária -
Maceió - AL, CEP: 57072-900.

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais
231
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2012, 32 (num. esp.), 216-231
Jefferson de Souza Bernardes

Referências Allessandrini, C. D. (2002). O desenvolvimento de competências F. Jabur & H. B. C. Rodrigues (Orgs.), Clio-Psyché: histórias da
e a participação pessoal na construção de um novo modelo psicologia no Brasil (pp. 209-213). Rio de Janeiro: UERJ, NAPE.
educacional. In P. Perrenoud, M. G. Thurler & L. Macedo et
al. As competências para ensinar no século XXI – a formação Pacheco, J. A. (2001). Competências curriculares: as práticas
dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed ocultas nos discursos das reformas. In 24 Reunião da ANPED.
Editora. Recuperado em 04 novembro, 2010 de http://www.anped.
org.br/reunioes/24/ts2.doc.
Angelini, A. L. (1964/1965). O status do psicólogo em
diversos países: excerto da Conferência Internacional sobre
Intercâmbio em Psicologia. Boletim de Psicologia, 16/17 Perrenoud, P. et al. (2001). Formando professores profissionais.
(47-50), 3-40. Quais estratégias? Quais competências? Porto Alegre: Artmed.

Bernardes, J. S. (2006). Formação generalista em psicologia e Perrenoud, P., Thurler, M. G., & Macedo, L. et al. (2002). As
sistema único de saúde. In I Fórum Nacional de Psicologia e competências para ensinar no século XXI – a formação dos
Saúde Pública: contribuições técnicas e políticas para avançar professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed
o SUS. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. Editora.

Bernardes, J. S. (2004). O debate atual sobre a formação em Rose, N. (1996). Inventing our selves: Psychology, power and
psicologia no Brasil –permanências, rupturas e cooptações personhood. Cambridge: Cambridge University Press.
nas políticas educacionais. Tese de doutorado. Programa
de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social. PUC-SP,
São Paulo. Rosi, S. S. et al. (Orgs.). (2005). Projeto multiplica SUS. Oficinas de
capacitação pedagógica para a formação de multiplicadores.
Brasília, DF: Ministério da Saúde
Botomé, S. P. (1979). A quem nós, psicólogos, servimos de fato?
Psicologia, 5(1), 1-15.
Silva, T. T. (1993). Desconstruindo o construtivismo pedagógico.
Educação e Realidade. Educação & Realidade Edições, 18(2),
Brasil. (1997). Edital nº 04/1997. Brasília, DF: Ministério da 3-10.
Educação.

Silva, T. T., & Moreira, A. F. B. (1995). Territórios contestados.


Brasil. (1996). Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Petrópolis, RJ: Vozes.
Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Brasília, DF: Ministério
da Educação.
Silva, T. T. (2001). Dr. Nietzsche, curriculista – com uma pequena
ajuda do professor Deleuze. In 24 Reunião da ANPED.
Brasil. (2004). Resolução CNE/CES Nº 8, de 7 de maio de 2004. Recuperado em 04 novembro, 2010 de http://www.anped.
Diretrizes Curriculares para os cursos de Psicologia. Brasília, org.br/reunioes/24/T1299570907599.doc.
DF: Conselho Nacional de Educação.

Spink, M. J. (Org.). (1999). Práticas discursivas e produção de


Chassot, A. (1998). Currículo: (re)montando fragmentos. sentidos no cotidiano –aproximações teóricas e metodológicas.
Seminário Currículos. São Leopoldo, Universidade do Vale São Paulo: Cortez
do Rio dos Sinos, 25/09/1998. (mimeo).

Spink, M. J. (2000, jan./jun.). A ética na pesquisa social: da


Coulon, A. (1987). La etnometodología. Madrid: Cátedra. perspectiva prescritiva à interanimação dialógica. Psico,
1(31), 7-22.
Garfinkel, H. (1967). Studies in etnomethodology. England
Cliffs: Prentice Hall. Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em psicologia social: uma
perspectiva pós-construcionista. Psicologia & Sociedade, 15(2),
Iñiguez, L. (2002). A análise do discurso. In J. B. Martins, N. D. 18-42. Recuperado em 18 junho, 2012 de http://www.
E. Hammouti, L. Iñiguez, Temas em análise institucional e em scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
construcionismo social. São Carlos, SP: Fundação Araucária. 71822003000200003&lng=en&tlng=pt.

Jacó-Vilela, A. M. (1999, jul./dez.). Formação do psicólogo: Thurler, M. G. (2001). Inovar no interior da escola. Porto Alegre:
um pouco de história. Interações: Estudos e Pesquisas em Artmed.
Psicologia, 8(4, Supl.), 79-91.
Varela, F. (2003). La habilidad ética. Barcelona: Agencia Literária
Levinson, S. C. (1983). Pragmatics. Cambridge: Cambridge Eulama.
University Press.
Veiga-Neto, A. (2003). Foucault e a educação. Belo Horizonte,
Machado, N. J. (2002). Sobre a ideia de competência. In P. MG: Autêntica.
Perrenoud, M. G. Thurler, L. Macedo et al. As competências
para ensinar no século XXI – a formação dos professores e o Veiga-Neto, A. (1995). Currículo e cultura. Trabalho apresentado
desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed Editora. no curso de extensão Teoria e Prática da Avaliação Escolar,
promovido pela UFRGS, para o Conselho de Diretores
Mancebo, D. (1997). Formação do psicólogo: uma breve analise das Escolas Agrotécnicas Federais, na EAF de Sertão, RS.
dos modelos de intervenção. Psicologia: Ciência e Profissão, Recuperado em em 18 de junho de 2011 de http://orion.
1(17), 20-28. ufrgs.br/faced/alfredo/sertao.htm.

Mancebo, D. (1999). Formação em psicologia: gênese e


primeiros desenvolvimentos. In A. M. Jacó-Vilela, F. Jabur &
H. B. C. Rodrigues (Orgs.), Clio-Psyché: Histórias da psicologia
no Brasil. (pp. 93-120). Rio de Janeiro: UERJ, NAPE.

Oliveira, E. S. G. (1999). Psicologia e tendências pedagógicas no


Brasil – perfis de atuação do psicólogo. In A. M. Jacó-Vilela,

A Formação em Psicologia Após 50 Anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia – Alguns Desafios Atuais

Das könnte Ihnen auch gefallen