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Nem após ser preso no Rio de Janeiro, em 2011. A/A BEATRIZ (REUTERS)
“Peão E2 para E4”, grita Antônio Bonfim Lopes, 41 anos, de dentro da sua cela de 7 metros
quadrados na penitenciária federal de Porto Velho, em Rondônia, enquanto move uma
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GIL ALESSI
peça de papel sobre um tabuleiro feito à mão. O termômetro bate os 30º C e o dia está
extremamente úmido, obrigando-o a enxugar as mãos constantemente. Segundos depois
a resposta ecoa do outro lado do corredor: “Cavalo B8 para C6”. Assim, jogando xadrez à
distância com outro preso como se fosse batalha naval, o ex-traficante mais conhecido
como Nem da Rocinha passa boa parte de seus dias na moderna prisão de segurança
máxima construída em meio à selva amazônica. Em um duro regime disciplinar que inclui
22 horas por dia dentro de uma cela individual sem TV e apenas duas horas de banho de
sol, ele explica que matar o tempo – “e os mosquitos” – é fundamental. A reportagem do
EL PAÍS visitou o ex-traficante no início de março na penitenciária onde ele cumpre penas
que somam mais de 96 anos por tráfico de drogas, formação de quadrilha e lavagem de
dinheiro.
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aproveitar a vida". Apesar de já condenado, Nem vislumbra um futuro
próximo ao lado dos sete filhos.
Ele traduz sua filosofia de pacificação da favela com uma frase simples:
Misha Glenny: “Os
“Eu sempre perguntei pro meu pessoal: o que tu quer? Trocar tiro com
grandes traficantes
brasileiros não moram polícia ou curtir o baile na Rocinha? Porque se quiser trocar tiro não
nas favelas” tem baile, a polícia vem pra cima e fecha tudo. Claro que eles sempre
preferiram o baile”. A estratégia adotada por ele, de manter o nível de
AO VIVO Caso Marielle crimes violentos o mais baixo possível de forma a deixar a polícia (e a
Franco: as últimas
mídia) longe fez da Rocinha uma das favelas mais lucrativas do Rio de
notícias sobre a morte
da vereadora do Rio Janeiro para o tráfico, movimentando em torno de 15 milhões de reais
por mês. Questionado sobre o atual momento da comunidade, com
diferentes grupos disputando o poder e trocas de tiro frequentes, Nem
mostra irritação. "Isso pra mim é uma grande traição. Saber que agora tem moleque andando com fuzil na
Rocinha e que tem traficante extorquindo o morador, nada disso existia quando eu estava lá", diz, em uma
referência velada ao ex-guarda-costas e agora rival Rogério Avelino Santos, vulgo Rogério 157, preso em
dezembro 2017.
A história de Nem – e da Rocinha – poderia ter sido diferente não fosse a ação de policiais corruptos. Com a
morte de Lulu, em 2004, ele vislumbra uma saída do crime. “Eu cheguei a efetivamente sair do tráfico quando o
Lulu morreu. Eu disse ‘bom, não tenho mais porque continuar nessa vida, já paguei minha dívida’. E saí. Eu tinha
um carro que ia usar para trabalhar como taxista, esse era o meu plano, ia deixar toda essa vida pra trás”, afirma.
Mas no Brasil as coisas não são tão simples assim. De acordo com ele, setores da polícia não viram com bons
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olhos sua saída: Nem era garantia de estabilidade na Rocinha e propinas vultuosas para os agentes corruptos.
“Minha mãe foi ameaçada pela polícia. Foram até a casa dela. ‘Ou você volta [para o tráfico] ou vai acabar mal pra
ela’, eles me disseram. Não tive opção, precisei reassumir as coisas”, conta. “Minha vida daria um filme”.
Ao falar sobre a violência do Rio, Nem fica em silêncio por um momento. Em seguida, dispara: “Você acha que os
políticos não sabem como resolver o problema da violência?”. Em instantes responde à própria pergunta. “O
problema é que eles sabem que não serão reeleitos se fizerem isso. Sabem que isso exige um investimento em
educação e políticas sociais que não têm retorno na urna, no curto prazo, mas que é algo para o médio prazo,
para daqui a dez ou 15 anos. A preocupação maior é o mandato, não é resolver nada”, desabafa. Para Nem,
políticos de olho no voto apostam no velho discurso de enfrentamento, “de botar polícia na rua e endurecer
penas”. “Mas está mais que provado que nada disso dá resultado. Nada disso funcionou até agora”.
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Então qual seria a solução? A posição de Nem da Rocinha é pouco
ortodoxa para alguém cujo negócio dependia justamente de um “Você acha que os
comércio ilegal: “Além de investir em educação, se você quer acabar políticos não sabem como
com o tráfico você precisa legalizar as drogas. Quer tirar todo o poder resolver o problema da
do traficante? É só legalizar”, afirma, com uma ressalva. “Não adianta
violência?”
só legalizar. É preciso falar sobre isso nas escolas. Ensinar desde cedo
o que é a droga. Não adianta falar apenas ‘droga é ruim’, ‘ não usa’. O
jovem tem curiosidade com isso”, diz. Nem cita ainda as receitas que o
Estado pode obter com a venda ou cobrança de impostos de um comércio legal de drogas como mais uma
justificativa para a legalização.
A metáfora do xadrez, com reis e peões, também permeia sua visão sobre a máquina do tráfico de drogas. Nem
da Rocinha se considera, em certa medida, injustiçado. Apesar de admitir que “não é santo”, para ele as
autoridades “com o apoio da grande mídia” usam o traficante “da favela, negro e pobre” como bode expiatório,
quando na verdade ele seria apenas parte de uma engrenagem mais complexa. “E o helicoca? Quem foi preso? E
o filho da desembargadora?”, questiona, referindo-se a dois episódios recentes ocorridos no país envolvendo
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traficantes brancos e de classe média. O primeiro foi a apreensão, em 2013, do helicóptero da família do senador
Zezé Perrella (MDB), que é próximo de Aécio Neves (PSDB), no Espírito Santo com quase meia tonelada de
cocaína. O segundo diz respeito à libertação (em tempo recorde) no final de 2017 de Breno Fernando Solon
Borges, de 38 anos, filho de uma desembargadora que foi preso com 130 quilos de maconha e várias munições de
uso restrito das forças armadas.
Aliás, Nem da Rocinha conhece bem o papel dos políticos no tráfico. Ele admite já ter conversado com alguns no
Rio de Janeiro, mas se recusa a dar os nomes. Diz também que já foi procurado várias vezes para firmar um
acordo de colaboração com as autoridades em troca de redução de pena. Sobre uma possível delação premiada,
ele é enfático: “Pretendo manter o mínimo da dignidade que ainda me resta. Nunca faria uma coisa dessas. Aqui
não é como Brasília onde o sujeito delata até a mãe”.
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Sobre o atual presidente Michel Temer, do MDB, ele é taxativo:
“Golpista né? Rasgaram a Constituição. ‘Tem que manter isso aí’ [referência à gravação sobre a suposta compra
do silêncio de Eduardo Cunha]... É uma piada. O cara deveria estar preso, imagina quanto dinheiro não rolou pra
comprar o apoio dos deputados e senadores que apoiaram o impeachment...”. Nem também critica os que
apoiavam a Lava Jato e hoje criticam a operação: “Quando iam só atrás do PT todo mundo gostava. Agora que
chegou aos outros partidos um monte de gente começa a falar ‘pera lá!”.
Mesmo pessimista, Nem da Rocinha não acredita na vitória do candidato Jair Bolsonaro, deputado federal
saudoso dos tempos da ditadura militar que lidera algumas pesquisas de opinião. “Eu não acho que o brasileiro
vai fazer igual o pessoal fez nos Estados Unidos, e eleger um cara como o Trump”, diz. O ex-traficante afirma não
votar há mais de década, mas se pudesse, seu voto seria do ex-presidente Lula. “Ele fez muito por quem mais
precisava, pelos mais pobres. Eu pude acompanhar na Rocinha. Gente que trabalhava pra mim vinha pedir pra
sair do tráfico e ir trabalhar nas obras do PAC [Processo de Aceleração do Crescimento]”, relembra Nem.
“Do jeito que as coisas são, quando você publicar a matéria vão dizer que o Nem tá
fechado com o ETA [grupo separatista basco que atua na Espanha]!”
A prisão não fez com que seu nome ficasse de fora do noticiário. Em fevereiro as autoridades fluminenses
informaram que ele teria se filiado à facção paulista Primeiro Comando da Capital, dando origem a um novo grupo
chamado Terceiro Comando Puro 1533, no qual os números indicam a posição das letras PCC no alfabeto.
“Dizem que fui batizado pelo PCC. Como? Onde? Fico 22 horas dentro da cela. Até minhas conversas com meu
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advogado são gravadas em vídeo. Como é que eu posso ter sido batizado?”, indaga. “Do jeito que as coisas são,
quando você publicar a matéria vão dizer que o Nem tá fechado com o ETA [grupo terrorista basco que atuava na
Espanha]!”, brinca.
Apesar de negar filiação ao PCC, Nem afirma que o modelo de negócios do grupo paulista é mais eficiente “e
menos violento” do que o das facções fluminenses. Ele menciona a tese já famosa no meio acadêmico, de que o
grupo criminoso foi responsável pela queda dos homicídios no Estado ao tomar para si o papel da Justiça nas
periferias com os tribunais do crime. “Sem o PCC São Paulo ia virar um inferno. Quem você acha que acabou com
a violência lá? Foi o Estado por acaso?”, questiona. Nem não acredita, no entanto, que a facção consiga ter
sucesso em uma possível empreitada no Rio. “Lá é outra coisa. São muitos interesses diferentes, às vezes é tão
bagunçada a situação lá que não dá nem pra chamar de crime organizado”.
Outra notícia envolvendo Nem da Rocinha ganhou as manchetes em setembro de 2017, quando a comunidade
fluminense foi invadida por criminosos armados após sua namorada, Danúbia Rangel, ter sido supostamente
expulsa do morro por Rogério 157. Autoridades disseram que a ordem partiu de Porto Velho. “Tudo que acontece
na Rocinha dizem que fui eu. Quando teve esse problema na Rocinha eu estava há mais de dez dias sem receber
uma visita. Como eu ia dar ordem pra invasão?”, questiona. Sobre Danúbia, que foi presa em outubro de 2017,
Nem lamenta o que considera uma “vaidade” excessiva da companheira, famosa por aparecer nas redes sociais
se divertindo em festas e até andando de helicóptero.
“Queria ler a biografia do contato com outros 12 presos durante o banho de sol), o ex-traficante
Stalin, mas não foi também aproveita o tempo no cárcere para se dedicar a leituras: “Os
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autorizada pela direção” últimos livros que eu li foram O príncipe, do Maquiavel, a biografia da
Catarina a Grande, uns do John Grisham [autor de romances de
tribunal] e livros jurídicos”. Ele lamenta, no entanto, a censura a alguns
títulos. “Queria ler a biografia do Stalin, mas não foi autorizada pela
direção”, diz. Na penitenciária de Porto Velho revistas e jornais enviados pelos familiares precisam passar pelo
crivo de um departamento de triagem. Antes do início da visita do EL PAÍS, os guardas do presídio entregaram
para a reportagem uma edição da revista IstoÉ sobre a intervenção federal no Rio, levada por algum parente para
o preso mas que não teve a entrada liberada.
O livro que conta sua história, O Dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio (Companhia das Letras), do
jornalista inglês Misha Glenny, também não foi autorizado para Nem. “Eu devo ser o único biografado que não
pode ler a própria biografia”, comenta. Uma vez por mês os presos têm direito a assistir filmes. “Mas a censura é
12 anos”, brinca Nem. “A gente queria ver aquela comédia Se beber não case, mas não foi autorizada. É só de
Formiguinhas pra baixo”.
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O problema na saúde da pequena mergulhou a família pobre moradora de um cortiço da Rocinha em uma espiral
de dívidas médicas que chegaram a 20.000 reais. Para arcar com os custos Antônio precisou pedir um
empréstimo para a única empresa disposta a dar dinheiro para um desempregado morador de favela: o tráfico de
drogas. Para quitar a dívida, ele colocou sua expertise gerencial a serviço de Luciano Barbosa da Silva, vulgo Lulu,
o chefe do tráfico da Rocinha e uma das principais lideranças da facção criminosa Comando Vermelho (CV). "O
que você faria no meu lugar?".
FE DE ERRORES
Em uma versão anterior do texto o partido do senador Zezé Perrella constava como PDT. A informação foi corrigida.
ARQUIVADO EM:
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