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PODER E ESCRAVIDÃO

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Luciano R. Pinto

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PODER E ESCRAVIDÃO

PODER
E ESCRAVIDÃO
O Caso do Avaliador de Escravos
no Município da Corte
(Rio de Janeiro, 1808-1831)

Rio de Janeiro

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Luciano R. Pinto

Registrado na Biblioteca Nacional – Escritório de


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PODER E ESCRAVIDÃO

Às minhas meninas,
cujo mundo colorido
enche de cores o meu.

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Luciano R. Pinto

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PODER E ESCRAVIDÃO

Sumário
Prefácio, 9
Marilene Rosa Nogueira da Silva
MAIS QUE UMA SERENDIPIDADE
(a guisa de introdução), 13
Capítulo 1
PODER LOCAL E CONTROLE, 19
1.1. A Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 24
1.2. As Câmaras Municipais e o Senado carioca, 35
1.3. Um perfil dos homens bons, 52
Capítulo 2
PODER LOCAL E REPRESENTAÇÃO, 64
2.1. Câmara Municipal e construção da realidade, 64
2.2. Funções e atribuições, 77
Capítulo 3
O AVALIADOR DE ESCRAVOS:
UM TIPO ESPECÍFICO DE PODER, 101
3.1. A construção da realidade, 101
3.2. Saber e poder, 119
3.3. O caminho da provisão, 132
Capítulo 4
PODER E HIERARQUIZAÇÃO, 139
4.1. Status e representatividade, 139
4.2. Vontade e exclusão, 164
Considerações finais, 173
FONTES E BIBLIOGRAFIA, 177

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Luciano R. Pinto

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PODER E ESCRAVIDÃO

ão inúmeras e complexas as questões que


mobilizam a escolha de um objeto de pes-
quisa. Algumas vezes este parece emergir
como obra do acaso. Entretanto, sabemos que é ne-
cessário estar familiarizado com a temática, ou seja,
é fundamental uma leitura aprofundada da historio-
grafia para que se possa elaborar perguntas, selecio-
nar o material empírico, definir metodologias, enfim
escolher uma teorien – um modo de ver norteador da
pesquisa.
Luciano Rocha Pinto desde a graduação vem
perseguindo, ou sendo perseguido, pela relação es-
cravidão e cidade. Nesse trabalho, desenvolvido co-
mo dissertação no Mestrado de História da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro, experimenta o
fazer de uma História que assume os riscos e subje-
tividades em sua problematização da noção de ver-
dade. Como um historiador de ofício nesses tempos
pós modernos, ele inventa, ou melhor dizendo, cons-
9
Luciano R. Pinto

trói um novo, ou pelo menos, renovado conhecimen-


to sobre a ordem escravista.
Como sua orientadora pude acompanhar a for-
mação do historiador competente, preocupado com
os problemas das diferenças e desigualdades sociais
presentes na cidade, capital de um império nos trópi-
cos, objeto das intervenções urbanas da modernidade
dos tempos da república oligárquica. Uma Paris tu-
piniquim que bota abaixo os lugares de memória das
Áfricas cariocas. Como pesquisador criterioso situa
as testemunhas e seus lugares de falas, evitando cair
nas armadilhas do anacronismo. Assim, ao discutir
as relações de poder na capital da corte, marcada e
demarcada pela escravidão ultrapassa as soluções
maniqueístas da vitimização ou heroificação, procu-
rando entender os limites e as limitações de um tem-
po. Os homens e mulheres escravizados, embora
assujeitados, não deixam de ser sujeitos de suas his-
tórias. Nas hierarquizações produzidas por uma socie-
dade escravista, não estariam à margem ou mesmo
fora do sistema. Muito pelo contrário eles seriam o
próprio sistema. Nesse sentido, o trabalho destaca o
papel normalizador da Câmara na definição das for-
mas da inclusão subordinada não apenas para os
escravos, mas, principalmente, para os senhores de
escravos numa complexa e heterogênea sociedade.
O avaliador emerge, nessa relação de poder,
como um cargo de considerável relevância na dinâ-
mica do “mercado de almas” durante a legalidade
do tráfico. Os marcos cronológicos do trabalho apa-
10
PODER E ESCRAVIDÃO

recem como pontas de iceberg: 1808, relaciona-se


as transformações decorrentes da vinda da família
real, quando o crescimento da cidade demandava
novos negros e negras para as atividades que se
ampliavam e diversificavam. Já 1831 expõe o impas-
se sobre o fim do tráfico com a lei nacional que
proibia a entrada de escravos no país – a chamada
lei para inglês ver, uma ficção jurídica que não con-
segue deter o crescimento do vultoso negócio. En-
tretanto, de acordo com as pesquisas de Luciano, a
figura do avaliador de escravo desaparece dos anais
da Câmara. Como justificar isso? Para responder
essa e outras questões, convido o leitor a acompa-
nhar, na trama urdida em quatro capítulos, as com-
plexas relações de uma cidade mediada pela escra-
vidão. Penetrar na instância burocrática da Câma-
ra Municipal carioca num momento delicado de
constituição do Estado Nacional. Enfim, analisar as
posturas municipais e seus efeitos de poder na iden-
tificação dos conflitos, no controle e na punição dos
impasses institucionais entre o mundo da casa e da
rua. Aceitem o convite de Luciano, mergulhem num
tempo e numa cidade que ainda não era considerada
maravilhosa.

Profª Drª Marilene Rosa Nogueira da Silva *

––––––––––
*Coordenadora do Laboratório do Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais
(LEDDES-UERJ).

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Luciano R. Pinto

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PODER E ESCRAVIDÃO

(a guisa de introdução)

sta descoberta é quase daquele tipo a que chama-


rei serendipidade, uma palavra muito expressiva,
a qual, como não tenho nada de melhor para lhe
dizer, vou passar a explicar: uma vez li um romance bastan-
te apalermado, chamado Os três príncipes de Serendip:
enquanto suas altezas viajavam, estavam sempre a fazer
descobertas, por acaso e sagacidade, de coisas que não es-
tavam a procurar…
Serendipidade então passou a ser usada para descrever
aquela situação em que descobrimos ou encontramos algu-
ma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a
qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja,
precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento so-
bre o que “descobrimos” para que o feliz momento de se-
rendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos. 1

Foi percorrendo as páginas do romance Um defeito de


cor de Ana Maria Gonçalves que nos deparamos com este
relato e com a curiosa palavra “serendipidade”, que surgiu
aos 28 de janeiro de 1754 na carta de Horace Walpole, pre-
cursor do Romance Gótico e autor do conhecido The Castle
of Otranto (1764). Em sua carta conta a um amigo como
––––––––––
1
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p. 9.

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Luciano R. Pinto

havia, por acaso, encontrado uma pintura antiga e muito


valiosa. A explicação é bastante interessante e ilustra muito
bem o nosso primeiro contato com as fontes referentes aos
Avaliadores de escravos.
Em 2003, quando pesquisávamos o mercado do
Valongo, a compra de escravos, e leilão, nos deparamos com
um códice no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
denominado Avaliadores de Escravos. Havia mais referên-
cias em dois outros códices. Esta documentação burocrática
foi produzida pela Câmara Municipal carioca. São proces-
sos, na sua maioria, quase totalidade, incompletos, de diver-
sos homens que faziam pedido ao Senado da Câmara para
exercerem a função de Avaliadores dos cativos que estavam
sob o poder da Câmara. São três códices principais, com não
mais de uma centena de folhas cada referentes aos anos de
1775 e 1830. A partir do ano seguinte o comércio de escra-
vos passou a ser oficialmente proibido e a função, possivel-
mente, se extinguiu. O estado da documentação é bom, com
alguma deterioração, que, de modo geral, não ofereceu pro-
blema para a leitura. Entretanto, o que exigiu maior atenção
foi à desorganização da encadernação, pois os processos
receberam uma nova numeração sobre a original, que procu-
ramos seguir. Em alguns casos, não havia ordem sequencial.
Poucos processos estavam inteiros.
Muitos fizeram desta ocupação seu sustento por lon-
gos anos e até por toda a vida. Função ambicionada, de
provisão pública temporária, representava, nos oitocentos,
a legalidade e requeria idoneidade atestada pelos comer-
ciantes da praça e escrivães da Câmara. Ocupação provisó-
ria de muitos, carreira vitalícia de alguns, o Avaliador esta-
va envolvido numa atmosfera de interesse, status e poder.
Para compreender tal processo, voltamos nossa atenção
para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o maior
mercado de escravos, não só do Brasil, mas de todas as
Américas.

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PODER E ESCRAVIDÃO

No século XIX a escravidão estava no seu auge e em


nenhum outro momento se comercializou tantos escravos e,
em especial, na sua primeira metade. Assim, tomamos como
ponto de partida a chegada da corte portuguesa em 1808. Oca-
sião de singular desenvolvimento para a cidade e de grande
importância para o “comércio de almas”, com a abertura dos
portos. Outro evento significativo é a extinção do tráfico legal
de escravos. “Atendendo ao tratado firmado em 1826 com a
Inglaterra e ratificado no ano seguinte, o Brasil decretou, em 7
de novembro de 1831, a ilegalidade daquele comércio”,2 pro-
mulgando a primeira lei contra a entrada de escravos africanos
no país. Tal medida previa pesadas penas a quem vendesse,
transportasse ou comprasse escravos africanos recém-chega-
dos, os chamados boçais, estabelecendo a prova de conheci-
mento da língua portuguesa para identificá-los.3
Os relatos do século XIX, mais especificamente dos
viajantes, desconhecem a figura do Avaliador de escravos.
Os diversos processos endereçados ao Senado da Câmara
da cidade do Rio de Janeiro, com petições à função, no
entanto, endossam sua existência. Quem era? Onde atua-
va? Qual a sua singularidade dentro deste agitado comér-
cio carioca? Qual sua representatividade político-social?
Quem poderia assumir esta função? Era ele parte da “boa
sociedade”? São questões importantes que, juntamente
com outras, buscaram precisar esta figura, até então, bas-
tante enigmática.
A partir da produção burocrática da Câmara apreende-
mos as especificidades deste ofício, que ocupou a vida de
muitas pessoas e fez de tantas outras aspirantes, caso não
apenas de fortuna, do status que o ofício poderia proporcio-
––––––––––
2
BASILE, Otávio N. de C. O Império Brasileiro: panorama político. In: LINHARES, Maria
Yedda (org.). História Geral do Brasil, 9a ed., 11a reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier,
1990, p. 241.
3
VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002,
p. 474.

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Luciano R. Pinto

nar. Era o Avaliador a mão do Estado e da legalidade que


ganhava as praças da cidade e gerava divisas aos cofres
públicos, reiterando, em nome de Sua Majestade, não apenas
a mão de obra, mas, a hierarquia escravista e seu status quo.
Elaboramos duas hipóteses principais e norteadoras do
trabalho. A mais genérica refere-se ao ambiente na qual o
Avaliador se insere politicamente. Pensamos as câmaras
municipais como organismos político-administrativos, inse-
ridos na lógica do império português, mas, que viviam uma
condição real de autonomia, o que não quer dizer autogeren-
ciamento. Na prática, elas articulavam com desenvoltura os
interesses da elite que ocupava seus quadros. Tal desenvol-
vimento encontrará algum limite de poderes na reforma pom-
balina. A hipótese principal refere-se ao Avaliador de escra-
vos como um agente do poder local. Munido de tal represen-
tatividade, posicionava-se ao lado da legalidade promovendo
a legitimação da ideologia escravista e hierarquizando os
indivíduos mediante a posse do trabalhador cativo. Mais que
gerar divisas aos cofres públicos ele legitimava a estrutura
escravista daquela elite camarária que se beneficiava com a
estrutura arcaica vigente na América portuguesa.
Desejamos, de modo geral, relacionar a presença do
Avaliador de escravos na Câmara Municipal carioca, anali-
sando as especificidades do ofício em sua estruturação orga-
nizacional, precisando as relações político-representativas e
privilegiando o poder estatal e os micropoderes que vêm à
tona na vida cotidiana. Especificamente, buscamos explorar,
no Capítulo 1, a importância crescente da cidade no contexto
imperial. Demonstramos a situação de autonomia das câma-
ras municipais, nos primeiros séculos de colonização lusa na
América, e, como após 1750 este processo foi subvertido pelo
governo de Pombal. Analisamos, também, a formação da elite
camarária em seu desenvolvimento temporal. Posteriormente,
no segundo capítulo, mapeamos a Câmara Municipal da
cidade do Rio de Janeiro no primeiro quarto o século

16
PODER E ESCRAVIDÃO

XIX, identificando a estrutura de cargos e funções, assim


como as respectivas atribuições funcionais. Localizamos,
no Capítulo 3, a função e as respectivas atribuições do Ava-
liador de escravos, contextualizando o ofício nos moldes da
Câmara Municipal carioca e precisando os capitais envolvi-
dos e requeridos para o provimento na função. Por fim, no
Capítulo 4 analisamos como este mecanismo de hierarquiza-
ção está baseado no monopólio da nomeação, nas relações de
representatividade, dominação e legitimação do discurso,
regime de verdade estruturado com vias à reiteração temporal
e beneficiamento pessoal, assim como as redes de poder em
seus mecanismos de inclusão e exclusão.
O presente trabalho se insere na perspectiva da nova
história política, uma vez que o objeto, atravessado pela
noção de poder, ater-se-á a um grupo profissional específico,
um subconjunto da sociedade, perfeitamente passível de
especulação. Conforme definição de René Rémond, a “uni-
formemente narrativa, escrava do relato linear…”4, mais inte-
ressada pelas minorias privilegiadas, cedeu lugar a uma histó-
ria política que “exige ser inscrita numa perspectiva global
em que o político é um ponto de condensação (…) [aprofun-
dando] o jogo dos interesses, as correspondências entre os
pertencimentos sociais e as escolhas políticas…”5
O Avaliador de escravos representa uma esfera do
poder instituído da sociedade carioca dos oitocentos. Efetua-
mos um diálogo com a história administrativa, uma vez que
mapeamos a instância normalizadora do Avaliador, ou seja, a
Câmara Municipal. Pensamos a noção de poder conforme as
matrizes discursivas de Pierre Bourdieu e Michel Foucault.
Como o conhecimento é dialogal, articulamos, com todos os
riscos que isso pressupõe, os autores em questão apropriando-
nos de noções bastante singulares à realização deste trabalho,
––––––––––
4
REMOND, Réne. Por uma História Política. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 17.
5
Ibidem., p. 445.

17
Luciano R. Pinto

a partir de uma abordagem qualitativa. O Avaliador de escra-


vos, de serendipidade a objeto de estudo, revela um olhar
sobre as relações de poder. Desvela seus encontros, blo-
queios, jogos de força e estratégias de luta e dominação. É a
emergência de um tipo particular de exercício de poder.

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PODER E ESCRAVIDÃO

1
PODER LOCAL E CONTROLE

Câmara Municipal, no século XIX, era o lócus


privilegiado de exercício e manutenção do poder.
Os ocupantes de seus cargos eram denominados
Homens bons, “expressão usada na América Portuguesa para
traduzir uma atitude mental típica do Antigo Regime, que era
incapaz de considerar os indivíduos como nascidos iguais e
dotados dos mesmos direitos”.6 A dinâmica do poder local
carioca, suas redes de manutenção e solidariedade são impor-
tantíssimas na compreensão do modo de ser daquela elite
aristocrática fragmentada,7 pouco homogênea, mas extrema-
mente solidária.
Oliveira Viana, enfocando os diversos modos do ser
solidário e da gênese do sentimento de solidariedade, de-
preende uma síntese assaz aplicável à aristocracia camarária,
uma vez que “a solidariedade humana é, historicamente, um
produto do medo, resulta da necessidade de defesa contra os

––––––––––
6
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva,
2001, p. 284.
7
SCHWARTZ, Stuart B (a). Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo, Pers-
pectiva, 1979.

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Luciano R. Pinto

inimigos comuns, feras ou homens” 8 Se, de fato o medo é a


chave da autopreservação, nada mais simples a constatação
da solidariedade como preservacionismo de uma dada condi-
ção social. A análise destas redes de apoio mútuo, portanto,
darão forma às relações de poder que desejamos traçar, pelo
menos no que se refere à identificação daquela elite envolvi-
da no processo de hierarquização, para melhor compreender o
modo de ser da administração colonial local e suas articula-
ções de tomada e/ou manutenção do poder.
Não se pode negar que estes homens foram atores ati-
vos na construção de um projeto que potencializava a união
de diversos fatores e um único interesse: o poder e sua reite-
ração temporal. Não é novidade que para muitos autores a
administração colonial era complexa. Atribuições e compe-
tências se misturavam num grande carrossel que, girando em
torno de si mesmo, não conseguia ver além dos limites rígi-
dos fixados pela coroa ou pelos poderes locais. A síntese
completa deste Estado e expressão de poder era a figura do
rei que delegava seu poder nas diversas funções, cuja divisão
era “mais formal que funcional”.9 Não havia definições níti-
das quanto às atribuições. “O Brasil não constituía para os
efeitos da administração metropolitana, uma unidade. O que
havia nesta banda do oceano, aos olhos dela, eram várias
colônias (…) sob o nome oficial de capitanias”.10 Neste con-
junto heterogêneo de províncias que se integravam à monar-
quia lusa, nossa unidade referia-se apenas ao ordenamento
geográfico, pouco conforme a realidade administrativa.
O Estado metropolitano e a administração portuguesa
no Brasil, “não possuíam um organograma nítido de cargos e

––––––––––
8
VIANA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. In: Intérpretes do Brasil, 2a ed.,
3o vol. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 1055.
9
PRADO Jr., Caio. Administração. In: Formação do Brasil Contemporâneo, 23ª ed.,
7a reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 299.
10
Ibidem, p. 303-304.

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PODER E ESCRAVIDÃO

funções”,11 havendo uma grande distância entre o país for-


mal, conforme as normas jurídicas, e o país real. “O governo
central colonial frequentemente exercia apenas uma jurisdi-
ção nominal”,12 os juízes, ainda na virada do século XVIII
para o XIX exerciam funções judiciais e, conjuntamente,
administrativas, contexto próprio das sociedades de Antigo
Regime. Não havia uma centralização administrativa funcio-
nal e coerente. A colônia portuguesa entre 1624 e 1775, por
exemplo, estava dividida em dois Estados distintos: o Estado
do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará. As adminis-
trações eram totalmente independentes.13 E se, posteriormen-
te manteve-se uma unidade territorial e administrativa esta
surgiu em função de uma opção dentre tantas outras, cuja
manutenção da unidade correspondia aos interesses de um
“tipo de elite política existente à época da Independência,
gerada pela política colonial portuguesa”.14
O que fica evidente aqui é o fato de que a centralidade
administrativa nos trópicos sofreu um longo processo de ges-
tação, cujo enraizamento e concretização aconteceu dentro de
um “conjunto de estratégias e práticas administrativas exerci-
das pela coroa portuguesa em sua gestão governativa no
ultramar”.15 O esmeril de tal administração será a política de
privilégios que tornar-se-á responsável pelo fortalecimento
do poder central, alimentando-se e, ao mesmo tempo, susten-
tando os poderes locais com honrarias, aprimorando, desta
forma, seu corpus burocrático.
––––––––––
11
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil Contemporâneo,
2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 310.
12
Ibidem, p. 315.
13
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro
de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2003, p. 14.
14
Ibidem, p. 21.
15
GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder político e administração na formação do complexo
atlântico português (1645-1808). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOU-
VÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial por-
tuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 288.

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Luciano R. Pinto

A administração da América Portuguesa estava marca-


da pela confusão de poderes e atribuições, uma máquina
complexa que funcionava mal.16 Evidente que esta aparente
descerebração da administração central favoreceu o fortale-
cimento das elites locais, tornando possível o estabelecimento
de poderes regionalizados bem definidos que gestavam inte-
resses próprios ao mesmo tempo em que viabilizavam a con-
tinuidade do Império luso. Segue-se a condição de autonomia
das municipalidades e o posterior processo centralizador
desenvolvido pela coroa em meados do século XVIII na
administração pombalina.
Esta aparente contradição que opõe o centralismo
administrativo português e os diversos poderes locais encon-
tra sua razão de ser na própria natureza do Estado monárqui-
co moderno que não exerceu poder absoluto sobre seus súdi-
tos e nem mesmo chegou a implementar uma centralização
administrativa ou jurídica completa. “Foram sim, até o final o
Antigo Regime, marcadas pelos particularismos corporativos,
pela resistência de corpos políticos tradicionais e pelas hete-
rogeneidades regionais, herdadas da época medieval”17 Neste
sentido fica fácil perceber como o processo de centralização
política, em seu esforço por convencimento e legitimação, de
modo algum significou controle dos micropoderes. A cons-
trução de uma centralização administrativa esbarrava nos
usos e costumes tradicionais, nas relações de poder e interes-
ses financeiros locais, diante dos quais cabia à coroa não a
repressão e o uso da força, mesmo que em momentos especí-
ficos tenha se valido deste mecanismo, mas do convencimen-
to pela promoção, que na maioria das vezes surgia nos prece-
dentes honoríficos de investidura.
––––––––––
16
VIANA, Oliveira. Op. cit., p. 1038.
17
SOUZA, Avanete Pereira. Poder local e autonomia camarária no Antigo Regime: o
Senado da câmara da Bahia (século XVIII). In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINE,
Lúcia Amaral (Orgs.). Modos de Governar: ideias e práticas políticas no império por-
tuguês (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005, p. 312.

22
PODER E ESCRAVIDÃO

Parecia inviável a construção de um corpo burocrático


centralizado sem a participação das elites locais, por isso, a
necessidade “de uma política de distribuição de cargos e, por-
tanto, de mercês e privilégios”,18 cuja governabilidade no ultra-
mar viabilizava-se segundo a inclusão dos poderes locais que,
de alguma forma, legitimavam o poder central metropolitano.
Identifica-se, assim, uma economia política de privilégios.19
Evidente que esta dinâmica objetiva reforçar os laços de sujei-
ção e promover a efetivação, tão próprio do Antigo Regime, do
sentimento de pertença dos vassalos (reinóis e/ou ultramarinos)
à centralidade do poder monárquico. Esta relação imbricada que
se formava entre o público e o privado nas políticas administra-
tivas se transpassavam e aos poucos o centralismo monárquico
se fortalecia com a maior presença de funcionários da coroa e
com o comprometimento daqueles homens bons que se aproxi-
mavam e assumiam o modo de ser cortesão. Este processo de
beneficiamento múltiplo pode ser visto como “uma repactuação
política entre o centro e a periferia imperial”.20
É importante, então, passarmos à caracterização do per-
fil destes cidadãos, termo que lhes é próprio e não aplicável a
todos, para percebermos o desenvolvimento de um perfil que
assumiu diversas características pela própria influência da
corte que promovia o consentimento pela investidura e pro-
moção dos indivíduos no campo social e simbólico, sem
falar, evidentemente, no político e econômico. Mas se o dese-
jo de hierarquização estimulava a legitimação da Coroa, tam-
bém não podemos negar o desenvolvimento histórico dos
poderes locais, a importância política e geopolítica que a
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e, de modo espe-
––––––––––
18
GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder político e administração na formação do complexo
atlântico português (1645-1808). Op. cit., p. 287.
19
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império.
In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.).
Op. cit., p. 219.
20
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico
Sul. São Paulo: companhia das Letras, 2000, p. 303.

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Luciano R. Pinto

cial, a sua Câmara Municipal adquiriram ao longo do tempo.


Neste sentido, passamos a vislumbrar, brevemente, a situação
da cidade no império luso, a importância das câmaras muni-
cipais, principalmente a carioca e seu status quo e, enfim,
focaremos o desenvolvimento do perfil daqueles homens
bons, buscando precisar a construção desta elite e consequen-
temente da burocracia camarária.

1.1. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro


A Câmara Municipal do Rio de Janeiro está imersa em
um contexto de profundas transformações. Entre 1790 e 1840
a cidade era o centro econômico e político do sudeste brasi-
leiro.21 Tal prerrogativa, evidente, não é aleatória. Sua condi-
ção como núcleo da Região Sudeste, sede do governo central
da colônia (1763), posteriormente da Corte Portuguesa
(1808), só foi possível graças ao encadeamento de diversos
fatores que viabilizaram o estabelecimento de políticas na
qual o Rio de Janeiro tornou-se palco de diversas transforma-
ções, desde sua gênese até seu processo de independência.
No século XIX carioca, atualiza-se uma conjuntura na
qual o Rio de Janeiro concretiza seu papel como centro do
sudeste e cabeça do Império. “Foi a geopolítica, e não a
economia que permitia ao Rio de Janeiro destacar-se no
ambiente colonial”.22 O porto carioca intensificou suas ati-
vidades, passando a receber 1/5 do total de africanos impor-
tados pela colônia, em meados de 1710. Vinte anos depois, a
praça carioca passou a receber 40% a mais em relação às
duas décadas anteriores, na qual englobava 1/3 do total de
africanos importados. Além disso, tornou-se o mais impor-
––––––––––
21
FRAGOSO, João Luís. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e hierarquia na praça
mercantil do Rio de Janeiro (1790 -1839). Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1998, p. 305.
22
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlânti-
co, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de
Janeiro, c. 1790 – c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 63.

24
PODER E ESCRAVIDÃO

tante porto receptor das importações do Ultramar e reexpor-


tador dos produtos europeus.
O olhar de muitos viajantes sobre a cidade, na primei-
ra metade dos oitocentos, confirma a importância do porto
no contexto atlântico, inclusive valorizando a posição da
cidade na rota internacional. “Numa época em que a nave-
gação à vela era o único meio de transporte para viagens
além-mar, a escala no Rio de Janeiro fazia-se quase que
obrigatória”.23 De fato, a cidade encontrava-se em posição
privilegiada, sendo um bom porto de arribada para conserto
de avarias e abastecimento de água e gêneros alimentícios.
Pierre Sonnerat, navegador e naturalista francês, esteve na
cidade em 1748 e dentre os diversos comentários que faz,
um auxilia nossa apreciação do porto carioca que, segundo
ele, “é um dos maiores e mais belos do mundo e um ponto
de arribada bastante frequentado pelos navios que vão para
as Índias ou de lá retornam”.24
Chancel de Lagrange, outro francês, esteve no Rio em
condição bem adversa. Ele fazia parte da esquadra do almi-
rante René Duguay-Trouin, que invadiu a cidade em 1711. A
invasão francesa ao Rio de Janeiro durou dois meses, de 12
de setembro a 13 de novembro daquele ano, e levaram consi-
go um polpudo resgate arrancado dos cariocas e também
alguns comentários sobre a cidade. Descrevendo o Rio de
Janeiro, o jovem Lagrange afirma: “depois da Bahia de Todos
os Santos, ela é a cidade mais importante do país, tanto em
decorrência da proximidade com as minas quanto em razão
do movimento do seu porto”.25
Evidente, é preciso cautela quanto à valorização absoluta
destes testemunhos. No entanto, se tomados em conjunto, com
––––––––––
23
MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-
1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 14.
24
SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras Visões do Rio de Janeiro
Colonial: antologia de textos – 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 189.
25
LAGRANGE, Chancel de. Ibidem, p. 140.

25
Luciano R. Pinto

as devidas precauções, podem ser indícios de uma realidade. O


Rio de Janeiro alimentava diversas conexões no além-mar com
a rota do tráfico de escravos, com aquelas ligadas ao comércio
imperial ou mesmo como porto de parada e abastecimento das
rotas transatlânticas. A proximidade com a região das minas,
no entanto, constitui outro fator que promoveu o crescimento
da cidade e sua importância no sudeste colonial, favorecida
mais uma vez pela sua condição geográfica, embora, apenas
isso não explique por completo sua posição hegemônica no
contexto da colônia, mas é denunciante.
A invasão francesa ao Rio de Janeiro nos aponta para um
diferencial em relação às outras capitais. Por que invadir o Rio
de Janeiro e não, por exemplo, a Bahia, então, sede do governo
central da colônia? Que desejos inspiraram duas invasões?
Antônio Brito de Menezes, governador do Rio de Janeiro, em
1718, escreveu à Coroa sobre a falta de ministros na adminis-
tração da justiça na capitania. Esta carência, segundo ele,
decorria do fato de ser a cidade “opulenta mais que todas as do
Brasil, por razão do seu largo comércio, e serem os seus gêne-
ros os mais preciosos”.26 Decerto, estes ataques estabelecem
um indicativo sobre a realidade da capitania no contexto colo-
nial. Uma espécie de reconhecimento à sua opulência.
A descoberta de ouro fez crescer ainda mais o papel
estratégico do Rio de Janeiro, graças à sua proximidade com
as regiões auríferas. Um comentário do governador Luís
Vahia Monteiro27 aponta para esta condição privilegiada da
cidade no conjunto dos negócios imperiais e no comércio
com as áreas mineradoras. Dizia ele: “Esta terra é hoje um
império, donde carrega todo o tráfico da América, e descarre-
––––––––––
26
AN, cód. 80: vol. 1, p. 40.
27
Governador da capitania do Rio de Janeiro, entre 1725 e 1732, ficou famoso pela truculência
com que exerceu o cargo. Devido ao seu temperamento explosivo ficou conhecido como
“Onça”. A irracionalidade de suas atitudes transformou seu apelido em uma referência tempo-
ral para expressar algo fora de moda ou fora de propósito: “suas ideias são do tempo do
Onça” (cf. Revista História Viva, nº 18. São Paulo: Editora Duetto, 2005, p. 17).

26
PODER E ESCRAVIDÃO

ga todo o peso, e aviamento dos governos das Minas Gerais e


São Paulo”.28 Não demoraria muito o Rio de Janeiro substi-
tuiria Salvador em importância no sistema mercantil imperial
e se tornaria a principal cidade da América portuguesa.
Sua elite mercantil estava entregue a diversos ramos de
comércio, seja na navegação de cabotagem, redistribuindo
produtos de origem ultramarina ou mesmo no próprio comér-
cio e tráfico de almas além-mar. Graças a esta estrutura mer-
cantil, os negociantes sediados no Rio de Janeiro tiveram aces-
so privilegiado ao ouro das Gerais, servindo de ponte entre as
regiões auríferas e o comércio ultramarino. Ademais, a região
das minas desde muito cedo se encontrou sujeita ao Rio de
Janeiro e seus negociantes. “Essa subordinação deu-se desde o
início, por meio do crédito”.29 Os negociantes do Rio de Janei-
ro, como também os situados na Bahia e Portugal tinham o
costume de adiantar estoques ou emprestar dinheiro. A falta de
estrutura da região mineradora facilitou a aproximação dos
interesses, uma vez que a produção de gêneros alimentícios
nas Minas era insuficiente para o sustento de uma população
masculina que se avolumava nas faisqueiras. Assim, “preços
fantásticos eram pagos pelos alimentos, durante esta luta em
prol da sobrevivência. Um gato ou um cachorro eram vendidos
por trinta e duas oitavas de ouro, um alqueire de milho por
trinta ou quarenta, e um frango esquelético por doze”.30
Em meio a esta situação de dependência, beneficiaram-
se aqueles com melhores condições de oferta. Desde muito
cedo a região das minas se viu dependente dos negociantes da
––––––––––
28
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Os homens de negócio do Rio de Janeiro e sua atuação
nos quadros do Império Português (1701-1750). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria
Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Op. cit., p. 75.
29
Ibidem, p. 89.
30
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade
colonial, 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 71.

27
Luciano R. Pinto

praça carioca. “Desde o início da colonização das áreas mine-


radoras, „foi sempre o comprar-se tudo fiado‟”.31 Como resul-
tado temos a região mineradora subordinada economicamente
ao Rio de Janeiro. Só averiguada esta condição podemos
entender porque da capitania do Rio de Janeiro saíam três
caminhos à região das minas, sendo um novo aberto por
ordem do governador do Rio de Janeiro, Arthur de Sá e
Menezes no final do século XVII.
Uma vez que os primeiros trajetos demoravam muito,
cerca de um mês, esta empreitada foi encomendada à Garcia
Rodrigues Paes. Este devia ser mais direto e assim foi feito. O
caminho ia por terra até Irajá e seguia os rios Iguaçu, Paraíba e
Paraibuna até as minas.32 Posteriormente, outra estrada foi aber-
ta ligando diretamente São Paulo ao Rio de Janeiro. Estes cami-
nhos, não tinham outro objetivo senão facilitar o acesso do cre-
dor ao devedor e escoar com maior facilidade o produto. A
dependência se torna tão marcante que extrapola a outros seto-
res. Vale a nota que até mesmo o bispo do Rio de Janeiro ficou
responsável por atender a população da região das minas na
primeira metade dos setecentos. Apenas em 1745 foram criados
bispados nas regiões mineradoras, como Mariana, por exemplo.
Nesta mesma direção podemos pensar num fato inusitado:
a criação do Tribunal de apelação (Relação) no Rio de Janeiro,
que começou a funcionar em 15 de julho de 1752. Russel-
Wood, trata o fato como um recurso “adotado pela coroa para
melhorar a eficiência do sistema legal nas zonas de minera-
ção”.33 Este, que era o principal tribunal superior criado na
América Portuguesa, servia de corte de apelação em última ins-
––––––––––
31
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda;
GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Op. cit., p. 89.
32
RUSSEL-WOOD, A. J. R. O Brasil Colonial: o ciclo do ouro, c. 1690-1750. In:
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina Colonial, vol.
II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 1999, p. 480.
33
Ibidem, p. 487.

28
PODER E ESCRAVIDÃO

tância e, possivelmente, “também desempenhava funções admi-


nistrativas e legislativas, a exemplo da fiscalização de órgãos e
funcionários da administração colonial”.34 O Tribunal da Rela-
ção do Rio de Janeiro, no entanto, exerceu jurisdição não apenas
no sudeste. A ela cabiam as treze comarcas compreendidas pelas
capitanias do Sul e do interior colonial,35 também Angola e São
Tomé, escapando-lhe apenas o Estado do Maranhão.
Sem nos determos por demais nesta questão, o que
importa é perceber que a instalação deste importante Tribunal
no Rio de Janeiro surge em função do capital simbólico que a
cidade do Rio de Janeiro vinha adquirindo no cenário do
império português. Discordamos de Russel-Wood quanto ao
objetivo deste Tribunal que passa a existir não em função de
um melhor atendimento legal à região das minas, mas como
uma opção política em prol da centralização monárquica.
Como seria possível atender tantas regiões na colônia e mais
duas na outra margem do Atlântico? A impossibilidade de
realização dos objetivos explícitos nos inquieta e reforça um
dos objetivos deste capítulo, que busca demonstrar o quanto
se esforçou a coroa por submeter os poderes locais à centrali-
zação político-administrativa. Neste sentido, entendemos que
este tribunal enquadra-se perfeitamente no conjunto das di-
versas medidas que objetivaram fortalecer o governo central
numa região de importância crescente. Sobre estas medidas
encontramos seu coroamento na política de Pombal.
A partir de 1750 acontecimentos diversos anunciam
uma virada nas relações entre metrópole e colônia. Tais fatos
marcam o fim e o início de períodos singulares.36 Identifica-
––––––––––
34
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 563.
35
MAURO, Frédéric. Portugal e o Brasil: a estrutura política e econômica do Império,
1580-1750. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina
Colonial, vol. I. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 1999, p. 491.
36
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A crise do colonialismo Luso na América Portu-
guesa (1750-1822). In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil, 9a ed.
Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 111-126.

29
Luciano R. Pinto

se, portanto, três episódios determinantes de um novo perío-


do: o Tratado de Madri (1750), que determina o fim de uma
expansão de facto, onde os domínios portugueses expandem-
se a oeste e estabelecem novas fronteiras. Limites estes que
seu substituto, o Tratado de Santo Ildefonso (1777) muda
pouca coisa de substancial daquela situação básica definida
há quase três décadas. Importante dizer, e é sobre isso que
estamos de alguma forma desenvolvendo, que este expansio-
nismo de facto não ocorreu de jure. Daí a tendência centrali-
zadora que se segue após as definições geográficas. Se antes
a corda estava solta para expandir limites, agora, ela está esti-
cada e puxa numa mesma direção: a Coroa portuguesa.
O segundo fator diz respeito à morte do Rei João V, res-
ponsável pelo enfraquecimento da autoridade real,37 e a ascen-
são de José I, em 1750. Portugal passa a viver um novo momen-
to com o conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Mello,
e depois Marquês de Pombal já no comando do governo que,
levado a cabo com mão de ferro, inaugura um período mercanti-
lista e ilustrado de profunda centralização administrativa e reor-
ganização do Império, que podemos denominar de organização
tardia. Até 1750 as terras coloniais portuguesas na América
vivam em regime de autonomia vigiada.
Pensamos estes dois conceitos da seguinte forma: o
primeiro diz respeito às medidas centralizadoras de Pombal;
enquanto que o conceito de autonomia vigiada encerra o que
até agora vimos, caracterizado por um desenvolvimento das
municipalidades que cresce segundo o direcionamento dos
poderes locais. Deve ficar claro o fato de que as determina-
ções metropolitanas, nem sempre faziam surtir os efeitos que
se propunham. O próprio Governo-geral, tentativa com certo
grau de centralização, justaposta ao regime de Capitanias
hereditárias, não produziu os efeitos desejados como articu-
––––––––––
37
SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portugal e o Brasil: a reorganização do Império. In:
BETHELL, Leslie (Org.). Op. cit., p. 488.

30
PODER E ESCRAVIDÃO

lador entre as regiões da América Portuguesa. A Coroa estava


sempre contemporizando conflitos diversos de autoridade,
especialmente em Pernambuco, por exemplo, onde o gover-
nador-geral Tomé de Souza estava proibido pela Coroa de ir.
Ademais, a maioria dos historiadores concorda, e, por isso,
não nos alongaremos tanto, que a autoridade do governador-
geral estava de fato restrita à Bahia, até 1763, quando a sede
é transferida para o Rio de Janeiro.
Então, na verdade, ele se equiparava, na prática, aos
demais governadores de capitania, o que reforça nossa hipótese
de que até o governo pombalino a colônia portuguesa na Améri-
ca vivia uma condição de autonomia, vigiada, pois sempre a
metrópole esforçou-se por saber o que se passava, afinal, era ela
que se beneficiava com a empreitada na América. A interação
entre o público e o privado, que existia e persistia fortemente
alicerçado pelo costume, nos ajuda a pensar nesta questão, cujos
poderes locais desenvolviam-se autonomamente. Evidente que
tentativas exacerbadas de autodirecionamento provocaram rea-
ções intempestivas por parte da metrópole. O curioso é que na
sua grande maioria, as tentativas de independência política sur-
giam depois de 1750 e não antes. Seria esta necessidade de
emancipação uma reação à centralização administrativa que
seguia e feria o costumeiro e cristalizado na colônia portuguesa?
O reordenamento pombalino era, portanto, uma tentativa centra-
lizadora que abafava os poderes locais e buscava tornar hege-
mônica a presença da coroa em seus domínios.
O terceiro fator que anuncia novos tempos surge nesta
mesma década de 1750 com o auge e, também, o declínio da
produção aurífera brasileira. Situação que demorou a ser
digerida pela metrópole que a custa de devassas foi dando-se
conta de seu esgotamento. Seja como for, este fato não dimi-
nuiu o interesse da Coroa pelo centro-sul da colônia. Em
meados do XVIII o Brasil se transformava em peça mestra no
tabuleiro dos domínios de Portugal. A condição mercantil do
Rio de Janeiro, sua proximidade e situação privilegiada de

31
Luciano R. Pinto

credora da região das minas, foram fatores que promoveram


o desenvolvimento da cidade no cenário colonial. Com a cri-
se do colonialismo luso, a metrópole assume uma nova postu-
ra, exacerbando um desejo preservacionista. Assim, estabele-
ce-se a substituição daquele modo de ser da autonomia vigia-
da, para uma organização tardia . A denominação “tardia”
evidencia a condição temporal de um curto período propria-
mente colonial, uma vez que em 1808 inicia-se, sem dúvida
alguma, o processo de independência formalizado em 1822.
Sem mais delongas, passamos às medidas centralizadoras
pombalinas evidenciando este desejo preservacionista e cen-
tralizador da Coroa que buscava enfraquecer a elite local
carioca e, a um só tempo, hierarquiza-la acomodando-a ao
projeto hegemônico metropolitano. Tal fenômeno contribuirá
ainda mais no prestígio da Câmara Municipal da cidade.
A posição do Rio de Janeiro, como o centro mais im-
portante da América Portuguesa, se deve ao fato de por lá cir-
cular grande fluxo econômico ligado à extração aurífera nas
Minas Gerais e também como principal porto das Américas.
A “média anual [em fins do século XVIII] era de 30 navios
entre Rio de Janeiro e Lisboa e de 20 entre o Rio de Janeiro e
a África”;38 já nos oitocentos, este movimento subiu para
“765 navios portugueses e 90 estrangeiros”,39 em 1808, com
a abertura dos portos. Foi, no entanto, com Pombal que este
processo ascendera de maneira predominante na política
imperial portuguesa, integrando seus domínios de forma a
tornar-se central já na segunda metade dos setecentos. Se de
alguma forma, portanto, a Coroa se via dependente do centro
sul colonial outra postura não seria compreensível senão
aquela que buscasse meios de centralizar e ordenar a colônia
segundo os interesses metropolitanos.
––––––––––
38
CERVO, Amado; MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das Caravelas: as relações
entre Portugal e Brasil (1808–2000). Brasília: Universidade de Brasília, 2000, p. 14.
39
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na Rua: A nova face da escravidão. São Pau-
lo: Editora Hucitec. 1988, p. 45.

32
PODER E ESCRAVIDÃO

Neste sentido diversas medidas foram tomadas a fim de


se restabelecer a autoridade do Estado. Dentre elas não faltou
o uso da força e coerção. Apenas para citar algumas, vale
lembrar que indivíduos ou instituições que eram acusados de
criticar o poder do Estado eram eliminados, mesmo que caís-
se sobre estes mera suspeita. Assim, famílias aristocratas acu-
sadas de tramar contra o rei sofreram tortura e muitas foram
condenadas à prisão perpétua como, por exemplo, o julga-
mento dos Távoras e do Duque de Aveiro em 1759. Da mes-
ma forma, nobres, padres, altos funcionários e magistrados,
acusados de conspiração, críticas ou mesmo má administra-
ção eram presos e exilados.40 Para a formação de um poder
central forte vinculado aos interesses da Coroa, se faz neces-
sário a eliminação daqueles possíveis entraves ao projeto de
centralização. Qualquer um que representasse uma possibili-
dade de frustrar tal idealização devia ser descartado e silen-
ciado. Esta busca de fragmentação das elites locais encontra
sua razão de ser no desejo hegemônico de dominação, na qual
a Coroa promove meios de sobrepor-se aos poderes locais. O
primeiro passo deste projeto foi a repressão das contradições.
O segundo passo em direção às elites locais será de outra
ordem, agora buscando o favorecimento destes homens bons.
O que deve evidenciar-se neste momento é a certeza
do desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e sua
crescente importância no contexto de um Império já de-
pendente, cujo ordenamento tornou-se vital para o governo
metropolitano. As próprias titulações evidenciam sua im-
portância. Em 6 de julho de 1647, D. João IV concedeu-lhe
o título de Leal, ampliando as prerrogativas da câmara,
dentre as quais o direito de fazer às vezes, na ausência do
Governador e do Alcaide-Mor, de Capitão-Mor e ter as
chaves da cidade.41 Essa maior autonomia será posterior-
––––––––––
40
SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Op. cit., p. 488.
41
BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo
do Rio de Janeiro. Rev. Bras. Hist., vol. 18, no. 36. 1998, p. 251-580. ISSN 0102-0188.

33
Luciano R. Pinto

mente diminuída com a presença do Juiz de Fora no século


XVIII. Aos 2 de março de 1689, o monarca ampliou os
poderes dos governadores do Rio, podendo estes prover
postos oficiais da milícia e das Ordenanças. Desta forma,
ficaram os governadores do Rio independentes do Gover-
no-geral da Bahia.
Durante o período de produção aurífera os mesmos
receberam da coroa ampla jurisdição nos assuntos relativos
às minas. Uma carta régia de 27 de dezembro de 1697
ampliou-lhes as atribuições, submetendo-os apenas às deli-
berações da metrópole. Aos governadores do Rio de Janei-
ro foram submetidas à capitania de São Paulo e a Colônia
do Sacramento respectivamente em 1698 e 1699. Em 1751,
como vimos, foi estabelecida ali uma segunda Relação.
Tornou-se sede do governo central da colônia e posterior-
mente da Corte Portuguesa.
Em 1815 o Brasil é elevado à condição de Reino
Unido a Portugal e ao Algarve. Foi no Rio de Janeiro
que D. João foi aclamado Rei e vários títulos foram
conferidos à câmara da cidade desde então, como, Se-
nado da Câmara em 14 de março de 1757 e o tratamento
de Senhoria em 06 de fevereiro de 1818; em 21 de julho
de 1821, foi outorgado aos representantes da cidade o
acesso à sala do dossel e, quando incorporados, pode-
riam comparecer com todas as honrarias ao paço; e,
finalmente, em 9 de janeiro de 1823, o tratamento de
Ilustríssima ao Senado, “em atenção aos bons serviços
prestados à cidade”. 42 Demonstrada a importância da
cidade do Rio de Janeiro no cenário colonial passamos
a nos ocupar com as câmaras municipais e, de modo
especial, com o Senado Carioca.
––––––––––
42
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos
homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Rev. Bras. Hist., vol. 18, nota 19.

34
PODER E ESCRAVIDÃO

1.2 As Câmaras Municipais e o Senado Carioca


A Câmara Municipal carioca possuía um extenso
patrimônio e finanças próprias, por isso, não dependia do
Real Erário.43 Dois terços de toda a renda municipal pertencia
à Câmara, o restante era revertido ao Real Erário da Capita-
nia.44 A “linha” que separava a cidade e o campo era muito
tênue. A urbe era um braço do poder rural, de forma que
grande parte daqueles homens bons eram proprietários de ter-
ras e escravos, o que ocasionará em fins do século XVIII e
virada para o XIX diversas contendas com os comerciantes
da praça carioca, mais abastados e financiadores da realeza.
Com o tempo hierarquizá-los será uma obrigação. Cabia ain-
da à Câmara editar posturas, nomear juízes (Almotacé e de
vintena, cuja funcionalidade e lugar nos quadros administra-
tivos veremos mais adiante) e demais funcionários, inclusive
taxar tributos, atribuição que partilhava com a figura do rei.
As câmaras municipais no período colonial possuíam
uma força colossal.45 A nobreza da terra, os magnatas locas,
congregava parentes, amigos ou vizinhos sob seu amparo e
buscavam algo mais que bens, existência social. Esta elite
local detinha as regalias, os direitos e as funções munici-
pais.46 Enquanto tal hierarquia promovia a uns, outros, no
––––––––––
43
Erário, relativo à palavra latina aeraria, refere-se a uma mina de cobre, ou seja, um lugar
que acumula determinada riqueza ou importância. Aerarium, por sua vez, se aplica ao
tesouro público, no sentido próprio da palavra aqui empregada, donde aerarius nos lembra
o cidadão sem direito de votar e que pagava, apenas, uma taxa fixada pelos censores.
Logo, erário refere-se ao tesouro público (FARIA, Ernesto (Org.), Dicionário Escolar
Latino-Português, 2a ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Departamento
Nacional de Educação, 1956, p. 43).
Vale reforçar a lembrança: “cidadão” é um termo inadequado a quem não tem o direito
de voto na sociedade colonial portuguesa dos oitocentos. As prerrogativas de elegibilidade
e a capacidade de tornar-se votante cabiam apenas a pessoas com determinado poder eco-
nômico. O voto era censitário e funcionava como princípio hierarquizante na sociedade de
corte, classificando assim os cidadãos daqueles despossuídos e indignos.
44
PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 316.
45
VIANA, Oliveira. Op. cit., p. 897-1188.
46
Ibidem, p. 1041.

35
Luciano R. Pinto

entanto, como mercadores, artífices, pequenos lavradores,


foreiros, colonos, agregados, mestiços e trabalhadores de
qualquer ordem, viam-se totalmente à margem de tudo, inclu-
sive da cidadania. Daí o espírito gregário e o sentimento de
solidariedade que promovia os mais simples pela pertença a
um determinado grupo de poder. Tal sentimento movia mui-
tos homens a assumirem, por exemplo, ofícios de segundo
escalão na Câmara. De algum modo estes cargos possibilita-
vam a proximidade do centro do poder e, quem sabe, pode-
riam gerar algum favorecimento pessoal nestas redes solidá-
rias. Alguns privilégios estes não-cidadãos almejavam, caso
não fossem favorecidos pela aquisição de algum capital sim-
bólico, ao menos uma distinção interpares, capital social, por-
tanto. Ser um mero fiscal, agente portuário ou demarcador, se
comparado à massa de desocupados era, sem dúvida, uma
distinção. Afinal, estão todos a serviço de Sua Majestade e
seu comportamento deveria corresponder à nobreza esperada.
No entanto não faltavam acusações contra tais homens
que se favorecendo do poder a eles investido, promoviam
seus interesses pessoais àqueles do bem comum. Crises e
irregularidades no abastecimento da cidade ou mesmo a
diversidade de preços dos produtos (carne, farinha, peixe…)
faziam parte das reclamações, isso sem falar nos tributos.
Outro fator interessante diz respeito às acusações de mecani-
cismo, ou seja, camarários que exerciam algum tipo de ofício
manual (comerciante, taberneiro, sapateiro…) considerado
incompatível com o ethos nobiliárquico.
Era impensável um homem bom trabalhar com suas
mãos. Repreensões diversas foram encaminhadas aos suspei-
tos e enquanto alguns negavam outros realçavam sua neces-
sidade de autossustento, fato que aprofundaremos a seu tem-
po demonstrando a distinção entre aquela nobreza da terra,
descendente dos primeiros colonos, aristocracia com muitos
empobrecidos que, por vezes, viam-se vendendo seu último
negro para manter a roupa apropriada para sua função admi-

36
PODER E ESCRAVIDÃO

nistrativa; e uma nova elite, denominada nobreza de toga, que


ascenderá ao poder não pela pureza de sangue, mas pelo capi-
tal econômico que sustenta. Assim, comerciantes diversos
ligados à atividade mercantil ascenderam aos cargos na
Câmara graças aos seus favores pecuniários feitos ao rei.
Evidente que uma vez lá sua função primeira dará lugar a um
título, como veremos ao aprofundar as características dos
homens bons, e a mudança no perfil desta elite que ganhará
novos protagonistas após o processo de centralização.
A Coroa se apoiava nas municipalidades, que funciona-
vam estrategicamente como os braços do rei no projeto colo-
nizador, parte da estrutura administrativa do Império Portu-
guês. É possível encontrarmos semelhanças tanto nas
câmaras do Brasil, como nas de Goa ou mesmo nas de
Macau. Eram, sem dúvida alguma, agentes disciplinadoras da
vida coletiva e símbolo da presença real. Embora tudo isso
seja verdadeiro, estando empossadas do poder régio para
deliberar em nome de sua Majestade, tais instituições passam,
na prática, a atuar em proveito próprio, equilibrando-se entre
o esperado pela coroa e o querido pelos poderes locais. É
conhecido por demais o fato de as câmaras deliberarem a favor
de interesses dos seus quadros e reordenar os ditames do poder
central segundo os próprios desejos. Equilibravam interesses
próprios e representação dos interesses centrais instaurando,
assim, um paradoxo. Funcionavam como “elementos de uni-
dade e de continuidade entre o Reino e seus domínios, pilares
da sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos do mundo”
e além de ter sua razão de ser nos interesses da Coroa eram as
câmaras ultramarinas “órgãos fundamentais de representação
dos interesses e das demandas dos colonos”.47
Esta dupla serventia fazia da Câmara o elo entre dois
mundos, funcionando como o ponto de equilíbrio da balança.
––––––––––
47
BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo
do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580.

37
Luciano R. Pinto

Evidente que os pratos nunca estiveram perfeitamente alinha-


dos, seria ingênuo estimar um equilíbrio de forças que, em
diversos momentos, se contrastavam. Não havia igualdade de
condições, de forma que a balança inclinava-se sempre para o
lado que oferecesse maior peso e força. A própria razão de ser
da colônia não permitia igualdade de condições. As câmaras
estavam afinadas com a estratégia da colonização que fazia
“cumprir, nessas localidades, suas determinações, sobretudo
no que dizia respeito à área fiscal”.48 O que não quer dizer
que estivessem sempre vinculando os interesses metropolita-
nos. Já vimos em outros momentos que este fato ocorre de
maneira a posteriori, de forma que nesta queda de braço as
municipalidades faziam valer na maioria das vezes os interes-
ses locais.
As câmaras não foram uma novidade. A “administração
portuguesa estendeu ao Brasil sua organização e seu siste-
ma”,49 embora não tivesse havido simples transposição legis-
lativa. Graças aos problemas específicos de cada região a
Coroa se viu forçada a regulamentar usos e costumes locais,50
o que de modo algum comprometeu sua condição de institui-
ção fundamental na construção e manutenção do Império ul-
tramarino, constituindo-se pilares das sociedades coloniais
portuguesas, mesclando uniformidade administrativa, o que
dava aquele caráter harmonioso entre as diversas municipali-
dades do Império, e, a um só tempo, as marcas singulares
produzidas pelas diversas características regionais.51 Neste
estudo, estamos pontuando estas características comuns, dan-
do um enfoque singular à Câmara do Rio de Janeiro.
––––––––––
48
SOUZA, Avanete Pereira. Op. cit., p. 321-322.
49
PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 301.
50
BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo
do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580.
51
Idem. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICA-
LHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Op. cit., p. 191-193.

38
PODER E ESCRAVIDÃO

Seria impróprio, como vimos na primeira parte deste


estudo, atribuir uma organicidade central efetivamente fun-
cional. A Coroa e mesmo o governo-geral da América Portu-
guesa estavam longe de conseguir coordenar toda colônia
segundo ordenamentos gerais. “A administração colonial era,
sobretudo, um feixe de relações entre o governo metropolita-
no e as administrações centrais e regionais”.52 Pouco pode-
mos verificar no período colonial de uma administração cen-
tralizada e organizada segundo os interesses da coroa. Muita
coisa fugia daquela intenção originária metropolitana. Um
exemplo é bem esclarecedor. A administração local, ou seja,
as câmaras municipais deveriam ser instaladas pelo poder
régio segundo seu interesse, no entanto, temos dois casos de
autoconstituição das municipalidades, o primeiro ocorreu em
Parati, em 1660, e o segundo em Campos, em 1673. Poste-
riormente, ambas foram confirmadas pelo rei.53 Estes exem-
plos apenas confirmam o que já foi dito: o governo central
exerceu, em grande parte da história colonial, uma jurisdição
de caráter apenas nominal.
Neste sentido, o uso do termo absolutismo é impróprio
quando aplicado ao Estado monárquico moderno justamente
pelo fato das monarquias ocidentais não terem exercido poder
absoluto sobre seus súditos, sem nem ao menos ordenar uma
administração central eficaz, de forma que grande parte dos
colonos recorria mesmo ao poder local,54 que era mais que
um órgão de primeira instância, era o poder de fato, pelo
menos no que se refere à percepção dos citadinos, que pouco
ou quase nada percebiam de outro poder que não fosse o que
emanava das câmaras. Portugal não representou uma exceção
neste quadro político fragmentado. Os micropoderes não fo-
ram absorvidos plenamente pela centralização portuguesa,
––––––––––
52
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Op. cit., p. 315.
53
Ibidem, 314.
54
SOUZA, Avanete Pereira, Op. cit., 312.

39
Luciano R. Pinto

então, bastante frágil. Existia, contudo, mais que fragilidade,


havia uma “descerebração da administração central”.55
A Coroa se beneficiava com a atuação de particulares, no
entanto, estes que vieram colonizar em nome d‟El-rei, seriam
aqueles que exerceriam autoridade real e era em nome destes, e
em sua memória, que seus descendentes exigiriam da Coroa
posturas contra pessoas simplesmente enobrecidas, mas que não
possuíam a antiguidade que consagrava os nobres da terra, aris-
tocracia descendente dos primeiros colonizadores,56 católicos e
senhores de terras e almas. Se por um lado, portanto, benefi-
ciou-se a metrópole com o investimento particular (benefício
duvidoso, uma vez que as primeiras investidas não deram os
resultados esperados, como, por exemplo, as Capitanias Heredi-
tárias); por outro, seu poder vê-se reduzido à pura nominalidade,
exercendo os poderes locais a autoridade de fato. Este poder
exacerbado que fora conferido aos primeiros colonizadores trans-
formou-se, sem dúvida alguma, em um limite ao poder real.
Muitos fatores contribuíram para o fortalecimento dos
poderes locais e, consequentemente, para a limitação do po-
der real. De modo geral, estava o rei sujeito a um conjunto de
normas governamentais, obrigado à observância da lei divina,
da moral e da justiça. Isso se deve à própria concepção de
realidade herdada do Antigo Regime. 57 A Época Moderna
absorve a sociologia cósmica medieval, no qual o ordena-
mento social está imbuído de uma cosmologia que abrange
homens e coisas, fazendo com que os hábitos e a constituição
social encontrem sua razão de ser na metafísica.
Qualquer ruptura da ordem estabelecida feriria aquela
harmonia querida por Deus, que ordenou as criaturas segundo
––––––––––
55
GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos
homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330.
56
FREYRE, Gilberto. Op. cit., p. 1041 e 1043.
57
HESPANHA, António Manuel. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna.
In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal, 2a ed., Rev. e Ampl. Bauru, SP:
EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001, p. 117-181.

40
PODER E ESCRAVIDÃO

sua vontade, de forma que “era da natureza das coisas que os


súditos seguissem os ditames dos governantes, que estes
tivessem que governar em vista do bem comum, que a mulher
obedecesse ao marido (…) que os poderosos protegessem os
mais fracos…”,58 e assim por diante. Neste sentido, não era a
vontade do governante que deveria prevalecer. Não era ele
que detinha o poder de distinção entre o justo ou o injusto,
entre o lícito ou o ilícito. Tudo estava inscrito num conjunto
moral preestabelecido em um plano superior ao nosso, na
qual nossa vontade só seria justa se, de alguma forma, cor-
respondesse àquela vontade anterior e aquém às vontades
individuais.
Os indivíduos, governantes e governados, não estavam
na origem da constituição política ou da organização social,
que lhes é anterior e emana, não das decisões e relações de
poder, mas de um suposto demiurgo, usando a terminologia
platônica, que criou tudo o que existe conferindo materialida-
de ao existente no mundo das ideias A natureza das coisas e
dos homens, portanto, teria sua gênese no pensamento de
Deus que tudo ordenou segundo seu beneplácito. Uma insti-
tuição que muito exercia influência nesta forma de pensa-
mento era a Igreja Católica, mas não apenas ela, também os
tribunais e a própria exigência do “governar para o bem co-
mum”, que identificava o governante com um grande pai,
obrigava-o a uma moralidade esperada. Como podemos ana-
lisar, o poder régio estava limitado por diversas entidades que
controlavam o rei.
Ao contrário do que acontece hoje, o poder político
estava muito repartido nas sociedades modernas. Com o
poder da coroa coexistiam o poder da Igreja, o dos Conse-
lhos ou comunas, o dos senhores, o de instituições como as
universidades ou as corporações de artífices, o das
famílias. Embora o rei dispusesse de prerrogativas polí-
ticas de que outros poderes normalmente não dispunham –

––––––––––
58
HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p 118.

41
Luciano R. Pinto

os chamados direitos reais, como a cunhagem de moeda, a


decisão sobre a guerra e a paz, a justiça em última instância
–, o certo é que os restantes poderes também tinham atri-
buições de que o rei não dispunha. A Igreja, por exemplo,
tinha uma larga esfera de competências exclusivas – como,
julgar e punir os clérigos. Isso também acontecia com o
poder do pai, no âmbito da família; era impensável que a
coroa se intrometesse, por exemplo, na disciplina doméstica
ou na educação dos filhos. E por aí em diante (…) As
câmaras [por sua vez] editavam normas (posturas) relativas
à vida comunitária.
Também o direito do rei (a lei) não era o único direi-
to. Ao lado dela, vigorava o direito da Igreja (direito ca-
nônico); o direito dos Conselhos (usos e costumes locais,
posturas das câmaras); ou os usos da vida, longamente
estabelecidos e sobre que houvesse consenso, que os
juristas consideravam como de obediência obrigatória,
tanto ou mais do que a lei do rei (…) a lei do rei tam-
pouco era aplicada de forma inexorável e sistemática. 59

Assim, o rei estava preso às normas morais, que exi-


giam obediência e zelo em torno do bem comum, comportan-
do-se como um pai. O desempenho desta paternidade era
necessário ao bom andamento da ordem social. A Igreja, por
sua vez, era uma instituição que exercia muito poder sobre a
figura do rei. Basta lembrarmos que a excomunhão era um
forte instrumento coercitivo. Um governante excomungado
tinha de imediato o desligamento da obrigatoriedade de obe-
diência devida por parte dos súditos. Outra instituição que
desempenhava pressão aos poderes régios eram os tribunais,
que poderiam suspender as decisões do rei, anulando sua
competência. Como podemos perceber, é impróprio pensar-
mos em um Estado absolutista, baseado na vontade
suprema do rei. Mas não apenas no campo político e do direi-
to o rei se encontrava limitado. Financeira e administrativa-
mente, o poder real, de maneira semelhante, estava bastante
fragilizado. Isso pode ser percebido na falta de recursos fi-
––––––––––
59
HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p 128.

42
PODER E ESCRAVIDÃO

nanceiros; na falta de conhecimento do próprio território, sem


representações cartográficas detalhadas, nem, ao menos, con-
tagens demográficas precisas até o princípio dos oitocentos; e
na deficitária rede de comunicações, com estradas ruins e
inexpressivo serviço de correio.60 Nesta estrutura política e
administrativa fragmentada, inadequado seria pensar numa
centralização em torno da metrópole, cujo governante via sua
autoridade alicerçada num contexto cujas forças periféricas
ganhavam espaço no vácuo de poder deixado pela coroa.
As municipalidades, portanto, em um processo de auto-
nomia contínua viabilizavam seus interesses enquanto a coroa
buscava se encontrar em meio à falta de recursos, “descere-
bração administrativa”, fragilidade política e lutas externas.
Não por acaso o processo de centralização efetiva encontra
aplicação real após a consolidação da dinastia de Bragança,
com D. Pedro II (1668-1706) e D. João V (1706-1750). Este
quadro, até aqui descrito, que favoreceu a autonomia das mu-
nicipalidades, declinará com o reformismo ilustrado do go-
verno pombalino impondo forte rigor sobre órgãos e agentes
da administração colonial, reafirmando a primazia do poder
real. Neste momento, contudo, aprofundaremos a condição de
autonomia das câmaras municipais, sua rede tributária e de-
mais características singulares, evidenciando, por fim, o Se-
nado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro.
Com um perfil tão fragmentado, a realeza ver suas
municipalidades exercerem um poder maior que aquele pre-
tendido com sua implantação. Era ela a gestora dos súditos da
Coroa que por sua vez recorriam àquela representante do rei,
encarregada da administração local, detentora de amplos
poderes, que sustentava, em nome d‟El-rei, mas em proveito
próprio. Estas câmaras municipais, que Portugal chama de
Conselhos, concentram a vida política das suas respectivas
cidades, de forma que todos os aspectos da vida municipal
––––––––––
60
HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 127.

43
Luciano R. Pinto

estavam sob seu controle. Seu poder era tamanho que “em
Salvador (1610), Rio de Janeiro (1640), São Paulo (1640) e
Belém (1662), as câmaras comandaram a resistência à políti-
ca real e lideraram movimentos que resultaram na prisão ou
expulsão de governadores ou de jesuítas”,61 por ocasião da
promulgação de leis antiescravistas a favor dos índios. Embo-
ra seus interesses estivessem atrelados à elite local, as câma-
ras deveriam zelar pelo bem comum, uma extensão do po-
der régio. Eram verdadeiros pilares da vida social, que
disciplinava a coletividade. Para isso dispunha de diversas
“funções fiscalizadoras, disciplinadoras, reguladoras, ori-
entadoras e, em certos casos, coercitivas e penalizadoras,
outorgadas aos seus ocupantes”.62
Outra extensão do poder real atribuído às câmaras é a
taxação de tributos, que recaíam sobre as entradas dos açou-
gues, balanças, mercados, aferições de pesos e medidas, mul-
tas atribuídas a quem cometesse alguma infração às diversas
posturas municipais, aluguel de imóveis públicos… Contro-
lando não apenas tributos, mas também o comércio. Ambos,
“se constituíram em dois dos principais elementos sobre os
quais se formaram os Estados Modernos, dando vida à ex-
pansão ultramarina, serão eles também as grandes chaves
explicativas da relação entre colônias e metrópoles”.63 Taxas
extras fixadas pelas câmaras na América eram comuns em
tempos de perigo imediato ou necessidade urgente. Isso ocor-
reu, por exemplo, por ocasião da invasão holandesa, quando
os vereadores do Rio de Janeiro, juntamente com seu gover-
nador, então, Salvador Correa de Sá, e mais pessoas princi-
––––––––––
61
SCHUARTZ, Stuart B. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as Peri-
ferias. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina
Colonial, vol. II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Funda-
ção Alexandre de Gusmão, 1999, p. 405.
62
SOUZA, Avanete Pereira. Op. cit., p. 318.
63
BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo
do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580.

44
PODER E ESCRAVIDÃO

pais, deliberaram uma contribuição destinada a reparar e


municiar as fortalezas do nordeste para a resistência. O mes-
mo ocorreu em 1648, onde os moradores foram conclamados
a contribuir com donativos com fim de organizar expedição
destinada à reconquista de Angola aos holandeses. Assim,
70% do financiamento da expedição foi proveniente da coleta
junto aos negreiros e senhores rurais do Rio de Janeiro. Logo,
as câmaras municipais não apenas administravam os tributos
reais, mas criavam seus próprios impostos.64
Não somente dos tributos encerrava-se a renda das mu-
nicipalidades, que também aforavam seus bens. Com patrimô-
nio e finanças próprias, independente do Real Erário, as câma-
ras deles se dispunham como bem entendessem. Parte do
patrimônio formava-se daquele conjunto de terras que no ato
da criação da vila era concedida. Era o rossio, “destinado para
edificações e logradouros e para a formação de pastos públi-
cos. A Câmara podia ceder parte destas terras aos particulares
ou afora-las. Constituíam ainda o patrimônio municipal as
ruas, praças, caminhos, pontes, chafarizes etc.”65 Boa parte de
seu orçamento era formada, portanto, do arrendamento de pas-
tos, aluguel de prédios, impostos diversos sobre o consumo e
multas devidas por infrações a posturas. Este “autogerencia-
mento” é entendido pelo fato da Coroa apresentar dificuldade
de financiar as despesas militares e custos de defesa no Brasil
dos setecentos em diante, graças às guerras de restauração na
Europa. Neste sentido, foram os poderes locais que assumiram
a manutenção do Império na América, arrecadando impostos,
fixando taxas, arrendando bens etc.66 Fator que muito contri-
buiu no processo de autonomia das municipalidades.

––––––––––
64
BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo
do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580.
65
PRADO JR. Caio. Op. cit., p. 316.
66
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império.
Op. cit., p. 199.

45
Luciano R. Pinto

As funções das câmaras eram diversas, além da res-


ponsabilidade de administrar os bens, tributar impostos e
fiscalizar, a elas cabia a regulamentação das feiras e mer-
cados; obras em estradas, postes e calçadas; limpeza e
conservação das ruas; construção de edifícios; regulamen-
tação dos ofícios e comércio; abastecimento dos gêneros e
cultura da terra. 67 Detendo, assim, o monopólio de bens e
serviços a Câmara constituía-se na maior força local, tan-
to política, com autoridade por vezes superior ao pró-
prio governador; como econômica. Para cuidar de todos
estes assuntos, os oficiais camarários reuniam-se duas
vezes por semana em “vereação” ou “vereança”, de modo
geral, nas quartas e sábados.
As câmaras se compunham de um Presidente, que po-
deria ser eleito pelo povo,68 denominado Juiz Ordinário ou
alguém com nomeação régia, chamado Juiz-de-Fora. Este era
o principal agente no processo de centralização. Juntamente
com ele haviam outras autoridades do poder central que não
participavam dos Conselhos, como os Corregedores e os
Provedores. Dentre os demais oficiais que compunham as
câmaras temos os Vereadores e o Procurador.69 Claro que o
número de ocupantes destas funções variou no tempo e no
espaço. Havia outros funcionários que serviam nas municipa-
lidades e estavam à disposição dos oficiais camarários, como
os Escrivães, Almotacés, Alcaides, Juiz de Órfãos,70 Fiscais,
Avaliadores e outros mais. As atribuições destes oficiais ca-
marários e régios serão discutidos mais adiante. No momen-

––––––––––
67
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e Colonização da América Portuguesa: o
Brasil Colônia – 1500/1750. In: LINHARES Maria Yedda (Org.). História Geral do Bra-
sil. 9a ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 63.
68
Povo, compreendido em sua acepção restrita, sinonimizando com a concepção de cidadão
na sociedade colonial de voto censitário, ou seja, denomina aquele indivíduo com determi-
nado número de bens outorgantes do direito de participação política.
69
PRADO JR. Caio. Op. cit., p. 314.
70
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Op. cit., p. 61.

46
PODER E ESCRAVIDÃO

to, o que nos importa é fechar este quadro que denominamos


de autônomo por parte das câmaras e identificar uma em par-
ticular: o Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro. Por
fim, encerraremos este item com a reação centralizadora
movida por Pombal e uma breve descrição das atribuições
dos funcionários régios acima citados.
A denominação Senado não se constitui em um corpo
superior de pessoas ou órgão distinto na Câmara. É um título
honorífico não concedido, mas arrogado abusivamente em
alguns casos. Foi atribuído à Câmara carioca como uma exal-
tação àquela cidade que, como vimos, crescia em importância
nos quadros imperiais, de forma que correspondia ao capital
simbólico que a cidade vinha adquirindo em meio às demais
municipalidades. Durante o século XVII, gozou de uma auto-
nomia incrível, a ponto de poder, segundo provisão régia de 26
de setembro de 1644, nomear o governador, contando apenas
com aprovação do, então, governo central da Bahia. E assim o
fez no ano seguinte elegendo Duarte Correa Vasqueanes no
lugar do falecido governador Luis Barbalho Bezerra.
Por decreto de 6 de julho de 1647, Dom João IV amplia
suas prerrogativas, de forma que poderia a cidade fazer as
vezes de Capitão-Mor na ausência do governador e do Alcai-
de-Mor.71 Seus respectivos cidadãos passam a gozar dos
mesmos privilégios e prerrogativas de fidalguia daquela carta
régia concedida aos cidadãos do Porto em 1o de junho de
1490. Segundo esta, não poderiam ser “metidos a tormentos
por nenhuns malefícios que tenham feito”; não poderiam “ser
presos por nenhum crimes, somente sobre suas homenagens
(…) e que possam trazer e tragam quais e quantas armas
lhes prouver de noite e de dia”; também não deveriam ser
“constrangidos para haverem de servir em guerras, nem
outras idas por mar, nem por terra (…) nem lhes tomem
––––––––––
71
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Impé-
rio. Op. cit., p. 198.

47
Luciano R. Pinto

suas casas de moradas, adegas, nem cavalariças, nem suas


bestas de sela nem de albarda, nem outra nenhuma cousa
do seu contra suas vontades”.72
A partir dos setecentos a Praça do Rio de Janeiro come-
çou a transformar-se no principal centro comercial da Améri-
ca Portuguesa e também de outras partes do ultramar. Crescia
a importância de seu porto e abastecia largamente de merca-
dorias a região das minas, o que promoveu o crescimento na
arrecadação de impostos, de forma que em meados do século
XVIII, a Câmara Municipal carioca passa a administrar “par-
te significativa dos impostos ultramarinos, o que reforçaria o
papel da cidade como principal praça mercantil no Ultra-
mar”.73 O próprio título de Ilustríssima, concedido por D.
Pedro I, deveu-se ao apoio da mesma no desfecho do proces-
so de independência.74
A este crescente processo valorativo acompanha o inte-
resse por parte da Coroa. Na medida em que a cidade crescia
em importância, avolumava-se o desejo daquela por aumentar
sua força decisional sobre as elites locais. Os poderes locais
caminhavam de maneira autônoma, porém, não se autogover-
navam. A coroa estava fragilizada, como vimos, pela frag-
mentação política e administrativa, além de ocupar-se demo-
radamente com o processo de restauração e consolidação da
dinastia dos Bragança (1640-1750).75
Evidente, não faltaram tentativas centralizadoras em
meio a este quadro de precedência das elites locais. Nos últi-
mos anos dos setecentos a Coroa aumentou gradativamente o
poder do Governador do Rio de Janeiro. Aos 2 de março de
––––––––––
72
AHU, Rio de Janeiro, Documentos Catalogados por Castro e Almeida, N. 334. In: Ibidem,
nota 18.
73
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 78.
74
GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Op. cit., p. 297-330.
75
MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. A Consolidação da Dinastia de Bragança e o Apo-
geu do Portugal Barroco: centros de poder e trajetórias sociais. In: TENGARRINHA,
José (Org.). Op. cit., p. 205-226.

48
PODER E ESCRAVIDÃO

1689 os governadores do Rio de Janeiro poderiam, indepen-


dentemente do governo central da Bahia, prover os postos de
oficiais da Milícia e das Ordenanças. Em 1693, o Governador
Antônio Pais de Sande recebeu ampla jurisdição sobre os
assuntos relativos às minas do sul e Artur Correa de Sá (1697-
1702) recebeu, anos depois, a investidura de Capitão-General,
o que aumentou seu poder sobre os negócios da capitania.
Ainda em seu governo, mais especificamente em 9 de novem-
bro de 1699, o respectivo governador do Rio de Janeiro e seus
sucessores ganhavam jurisdição sobre a Colônia do Sacra-
mento. Após 1711, com a invasão francesa, as despesas
com a defesa da cidade passaram a ser custeadas pelos
cofres régios, assim como a construção de obras públicas
(quartéis, fontes, aquedutos, armazéns…) o que acarretou
no enfraquecimento administrativo, e consequentemente
político, do Senado do Rio. 76
O coroamento deste processo de resistência e assimila-
ção dá-se com o apogeu do despotismo esclarecido em Por-
tugal, na qual o governo de Dom José I, levado a cabo por
Pombal, assume uma postura reativa diante da enfraquecida
autoridade régia. Em 1770, Pombal revoga a prerrogativa do
Senado da Câmara carioca de administrar os negócios públi-
cos na ausência do vice-rei e do Governador. Para tanto,
optou por um governo temporário, formado por três mem-
bros, a saber: o bispo ou decano, o Chanceler da Relação e o
oficial de posto mais alto do exército.77 A fim de cercear os
poderes conselhios, a Coroa cria o cargo de Juiz de Fora,
atribuindo-lhe a presidência da Câmara, este cargo seria o
braço forte da Coroa sobre as elites locais. Oficial letrado
aplicaria o direito veiculado ao poder central. O cargo tem
sua criação no Rio de Janeiro em 1703 e correspondia, por-
––––––––––
76
BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo
do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580.
77
SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Op. cit., p. 490.

49
Luciano R. Pinto

tanto, à necessidade da coroa intervir na administração e nas


finanças,78 entregues, até então, plenamente à elite da terra.
Constituía-se, portanto, no principal agente de controle
das municipalidades. Sabemos que “os Juízes de fora, ainda
que fossem esses instrumentos do poder real de que tanto se
fala, só existiam, até finais do século XVIII, em cerca de 20%
dos Conselhos”.79 Isso se deve ao fato do apego das munici-
palidades às suas respectivas autonomias jurisdicionais,
podendo, até mesmo, “impedir a entrada dos magistrados
régios a cargo de quem estava inspecionar o governo local”.80
Cabia-lhes “julgar e dar sentenças, isto é, resolver litígios
entre partes desavindas, ele é um agente da administração e
um executor de suas providências”.81 Com relação ao Senado
do Rio de Janeiro, a ele caberia promover o reordenamento
político-administrativo em torno da realeza lusa. No entanto,
o Juiz de Fora não era o único funcionário régio e agente do
poder central com esta incumbência. Outras duas funções
concorriam a este fim: o Corregedor e o Provedor.
O Corregedor e o Provedor poderiam escolher oficiais e
fiscalizar a contabilidade da Câmara.82 A funcionalidade recebia
sua razão de ser na intervenção direta da Coroa sobre a autono-
mia das municipalidades, garantindo seus interesses. Ao Prove-
dor cabia a cobrança de outros tributos régios. Por meio das
audiências de correição, instrumento de acompanhamento das
câmaras, que deveria ser feito anualmente, o Corregedor ouvia
os oficiais camarários e os inquiria sobre as atividades do Sena-
do. Os assuntos mais comuns relacionavam-se a posturas, pesos
e medidas, fiscalização do comércio, frequências dos Vereado-
res às sessões da Câmara, eleição de Almotacés e, enfim, sobre
––––––––––
78
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras Ultramarinas e o Governo do Impé-
rio. Op. cit., p. 200.
79
HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 123.
80
Ibidem, p. 123-124.
81
PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 319.
82
SOUZA, Avanete Pereira. Op. cit., p. 314-317.

50
PODER E ESCRAVIDÃO

as rendas, item de exigência crescente e minuciosa durante o


período pombalino. Na prática, contudo, o poder do Provedor
não parece ter efetivado aquela intervenção necessária à racio-
nalização dos reditos camarários. Sua presença não parece con-
dizer com sua responsabilidade. Devendo cuidar das terças e
receitas municipais diversas, oriundas de impostos e aforamen-
tos, pouco se percebe a presença deste agente real no processo
arrecadatório. O que talvez fosse uma dificuldade na realização
de seus deveres foi o fato de que estes magistrados deveriam
atender a toda Comarca executando diversas tarefas e socorren-
do colegas de outras comarcas em matéria de justiça.
Embora a Coroa buscasse maior ordenamento e organi-
zação administrativa, nota-se, ainda no período pombalino, a
característica confusão de atribuições, de forma que estes
agentes do poder central, em momentos diversos se viam
envolvidos com assuntos de natureza variada. O Provedor,
por exemplo, com relação ao Rio de Janeiro, era também o
dirigente máximo da Santa Casa de Misericórdia, o que lhe
garantia uma posição prestigiosa83 e, decerto, dividia seu
tempo como agente régio responsável pelos impostos e fisca-
lização das contas municipais.
Em meio ao processo que objetivava a centralização
administrativa por parte da Coroa, seria impróprio afirmar-
mos que a eficácia de tais ações foi conforme a vontade do
poder régio. Embora o perfil desta elite local tenha inclusive
se alterado com a mão forte da Coroa sobre ela, não devemos
nos esquecer que, apesar de tudo, eram as municipalidades
portadoras de uma tradição fortemente alicerçada nas bases
de uma autonomia que lhe permitiu, inclusive pela distância
da metrópole, a formação de um ethos camarário colonial,
entendido como um modo de ser regrado no falar, nas mesu-
ras, etiquetas e privilégios próprios da vida na colônia.
Assim, esta herança de mediação do poder real, mas, com ali-
––––––––––
83
GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: o caso dos
homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330.

51
Luciano R. Pinto

cerces no poder local não desapareceram do imaginário popu-


lar, nem dos anseios da aristocracia. Não por acaso a popula-
ção sentia o poder local como uma influência decisiva em
suas vidas. Situação fácil de compreender uma vez que as
câmaras regulavam e ordenavam toda a vida social, econômi-
ca e política de suas localidades.
O período centralizador, no entanto, demonstrou-se in-
capaz de abafar inteiramente o poder local, fortemente pre-
sente, por exemplo, no processo de independência. Foi com o
apoio das municipalidades que D. Pedro I na década de 1820
estabeleceu a autonomia política do Brasil, sem dúvida algu-
ma, uma vitória do poder local, que se legitima o novo sobe-
rano, fortalece sua autoridade tradicional por meio de um
novo contrato social de base constitucional;84 notando-se a
influência daquela municipalidade carioca, cuja proximidade
com o monarca e importância colaborou na efetivação do
processo de independência e autonomia política. Visto isso,
cabe-nos agora discutir quem eram estes oficiais que ocupa-
vam os cargos junto ao Senado da Câmara.

1.3. Um perfil dos homens bons


A elite camarária, fundada inicialmente no grande pro-
prietário rural, estende à urbe seus domínios e acumula o que
há de comum em todas as aristocracias: riqueza, poder e auto-
ridade.85 Tem por características essenciais o orgulho e a tra-
dição familiar e religiosa. Para exercer os ofícios de gover-
nança disponíveis nas respectivas municipalidades, os indiví-
duos, desejosos de participação política, deveriam se mostrar
aptos ao seu exercício. Esta aptidão estava vinculada ao pre-
dicado da cidadania. Mas quem era cidadão na sociedade
carioca dos oitocentos em seu primeiro quartel?
––––––––––
84
Cf. SOUZA, Iara Lis Carvalho. A adesão das câmaras e a figura do Imperador. Rev.
Bras. Hist. 1998, vol. 18, no. 36, p. 367-394. ISSN 0102-0188.
85
PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 289.

52
PODER E ESCRAVIDÃO

Cidadãos eram aqueles que, por participarem do gover-


no local, nas câmaras municipais, recebiam privilégios,
honras, mercês do rei de Portugal. Tratava-se de uma socie-
dade organizada nos moldes do Antigo Regime, hierarqui-
zada e excludente e, sobretudo, escravista. 86

“Esperava-se que esses homens bons fossem donos de


propriedades, residentes na cidade, incontaminados por ori-
gens artesãs ou por impureza religiosa ou ética”.87 Só era
considerado cidadão aquele possuidor de determinada quan-
tidade de bens. Constituía, portanto, um grupo seleto de indi-
víduos, famílias tradicionais, cuja riqueza identificava hierar-
quicamente e nobilizava grupos familiares referendados ao
mundo da ordem,88 opostos a todo aquele conjunto de des-
classificados, indivíduos livres e pobres, compostos por for-
ros, índios assimilados, brancos pobres e mestiços; que eram
os não-enqua drados no mundo da ordem vigente. Estes
“homens livres e pobres encontravam-se desvinculados de
modo direto das atividades que conferiam sentido à ocupação
na ordem legada pela Colônia”.89
––––––––––
86
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O que significa ser cidadão nos tempos coloniais.
In: ABREE, Marilia; SOIHET, Rachel. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodo-
logia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, FAPERJ, 2001, p. 139.
87
SCHUWARTZ, Stuart T. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as
Periferias. Op. cit., p. 405.
88
Neste trabalho, pensamos a noção de “ordem” como aquela que norteia o mundo do governo
e do trabalho, sem querer negar a clássica conceituação de Ilmar Rohlof de Mattos, em O
tempo Saquarema. Entendemos que o mundo da ordem engloba o mundo do trabalho, dá-lhe
sentido, significado e ordenamento social. Ele está, portanto, organizado segundo uma deter-
minada representatividade, pensada por aqueles que governam e dão significado, também, à
desordem, mundo avesso ao concebido como ordenado. A desordem é formada pelos não-en-
quadrados, ou seja, todos aqueles que não possuem lugar específico na ordem social estrutu-
rada. Neste sentido, não estamos negando a classificação feita por Ilmar, mas identificando
estes dois mundos, que se contrapõem àquele modo de ser deslocado da realidade concebida.
Ordem e desordem constituem duas forças contrárias em constante conflito, ambas com o
mesmo significante, pois, a desordem ganha significado a partir de alguma concepção estrutu-
rada de ordem. No entanto, como veremos mais adiante, a desordem de alguma forma legi-
tima a ordem dada, uma vez que alimenta desejos nos dominados, próprios daqueles que
ordenaram a estrutura social vigente. Confira o exposto na visão de Ilmar: MATTOS, Ilmar
Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 122-144.
89
Ibidem, p. 135.

53
Luciano R. Pinto

Para eles, “a mais vil canalha”,90 não havia trabalho dis-


ponível, uma vez que eram os negros cativos que trabalhavam.
Por não terem dinheiro, fecha-se o círculo vicioso e degradante
do mundo da desordem. O mundo da ordem, por sua vez, era
composto pelos proprietários de terra e seus cativos.91 “Na
primeira metade do século XIX, o trabalho escravo predomi-
nava francamente no Rio de Janeiro, não só no meio rural como
no urbano”.92 Tudo aquilo que parecia desprezível ao homem
branco era função dos escravos. Reside aqui a identificação do
trabalho com a escravidão, fruto perverso de três séculos de uti-
lização da mão de obra cativa, que gerou uma ideologia alta-
mente excludente. De forma que possuir um escravo, além de
fomentar um meio de renda, já que ele trabalhava pelo seu se-
nhor, também se adquiria certo capital simbólico.
Entre os anos de 1790 e 1830 no Rio de Janeiro quase
todos os homens livres detentores de bens a legar possuíam
ao menos um escravo. “Nunca menos de 2/3 dos mais pobres
inventariados do agro e da urbe carioca detinham escravos”.93
Isso se deve ao fato da mão de obra escrava ser utilizada em
todos os setores da vida urbana. “A esmagadora maioria dos
habitantes possuía pelo menos um escravo, ou uma escrava,
encarregada dos afazeres domésticos. Os que escapam a esses
serviços são enviados à rua pela manhã, para trabalharem por
sua própria conta e obterem o máximo de rendimento possí-
vel”.94 Este testemunho de James Hardy Vaux, escritor inglês
que por estas bandas esteve em 1807, indica mais que apenas
––––––––––
90
SCHUWARTZ, Stuart T. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as
Periferias. Op. cit., p. 134.
91
PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 281-283.
92
MARTINHO, Lenira Menezes, GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Socie-
dade da Independência. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e
Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Edito-
ração, 1993, p. 91.
93
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.
94
VAUX, James Hardy. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 305.

54
PODER E ESCRAVIDÃO

o valor econômico que o escravo poderia gerar, mas o status


que adquiriam seus proprietários. “Pode-se argumentar que
os mais pobres (…) possuam escravos menos em função de
seu baixo preço do que pela força simbólica do „ser senhor de
escravos‟”.95 Não possuí-los significava estar fora daquilo
que se concebia por boa sociedade, correndo o risco de tor-
nar-se, portanto, indivíduo de segunda categoria. Quem não
tivesse um escravo era porque, simplesmente, não podia
pagar por ele, logo, era considerado desclassificado.
A marcante dependência da escravidão reitera, portanto,
uma hierarquia que se norteia à sombra do trabalho compulsó-
rio, de forma que a ociosidade ganha ares de fidalguia e funcio-
na como instrumento de inclusão subordinada da massa cativa e,
sobretudo, exclusão daqueles homens livres pobres, marginali-
zados como indivíduos de segunda categoria. Pierre Sonnerat
nos dá boas indicações deste sinal de dignidade, que era o ócio.
A ociosidade, a propósito, passa, entre eles, por sinal de
dignidade (…) Todos querem ser nobres e gostam de mos-
trar desprezo pelas atividades produtivas, como se o traba-
lho honesto tornasse o homem menor. Eles levam tal com-
portamento tão longe que coisas simples como dar ordens
aos escravos e fiscalizar o seu trabalho parecem-lhes con-
trárias à grandeza e à opulência que ostentam. 96

Não era incomum vislumbrar um escravo carregador,


levando apenas um lápis de cera para seu contratante97 ou
mesmo encontrar homens brancos ostentando unhas compri-
das para mostrarem que não exerciam nenhum tipo de traba-
lho manual.98 Também as mulheres, que nunca saíam sozi-
nhas, eram incapazes de carregar seu próprio lenço, tarefa
que confiavam às suas acompanhantes.99 A identificação do
trabalho com o escravo é, portanto, resultado do abuso da
––––––––––
95
FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.
96
SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 211.
97
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo. Círculo do
Livro, s.d., p. 196.
98
FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.
99
DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 196.

55
Luciano R. Pinto

mão de obra cativa e do valor ideológico que atribui à pro-


priedade de terras e “almas” uma posição de destaque social.
Uma vez adquirido um escravo, o afortunado cidadão “em-
prega filosoficamente o resto da vida na monotonia dos pas-
satempos habituais”,100 da qual exclui o trabalho e vive a
bonança. Não podemos perder de vista que “nas sociedades
pré-industriais, a riqueza mais respeitada era aquela que não
havia sido conquistada pelo esforço, aquela pela qual não era
preciso trabalhar”.101
Entendemos, a partir da identificação ócio/dignidade, a
exclusão imposta pelas câmaras aos artesãos e comerciantes de
modo geral. Todo aquele que não ostentasse a desocupação
voluntária por estilo de vida era povo, ou seja, constituinte
daquela “massa da nação sem direitos pessoais”.102 Estava
negado a eles o direito à cidadania. Todos “os mercadores, os
artífices, os pequenos lavradores, os trabalhadores de qualquer
ordem, os foreiros, os colonos, os agregados, bem como toda
essa patuleia de mestiços, formigante nas bases da população
colonial, nas cidades e no campo”,103 contrapostos à nobreza
da terra, os “magnatas” locais. Acusações a oficiais da Câmara
de exercer algum trabalho manual era considerado ofensivo à
dignidade da municipalidade. Na Câmara Municipal de São
Paulo em 1637, o procurador Manuel Fernandes Gigante, foi
suspeito de mecanicismo.104 Prontamente declarou-se inocente
do “delito”. No ano anterior, o Alcaide Domingos Machado,
mesmo exercendo o ofício camarário, permanecia a vender pão
e vinho. Por isso foi repreendido e ordenado que “usasse da
nobreza que Sua Majestade lhe dava”.105
––––––––––
100
DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 179.
101
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 91.
102
ABREU, Capistrano de. Op. cit., p. 57.
103
VIANA, Oliveira. Op. cit., p. 1041.
104
Ser suspeito de mecanicismo significa incorrer em algum tipo de função que exija esforço
físico, trabalho com as próprias mãos.
105
FREYRE, Gilberto. Op. cit., p. 1040.

56
PODER E ESCRAVIDÃO

Os artesãos possuíam uma representatividade bastante


fraca. Havia uma pequena quantidade concentrada na cidade,
estando em maior número no campo. Já o comerciante, de-
pendendo do movimento do caixa, fazia luzir alguma espe-
rança nobiliária. Surge então a distinção entre os “homens de
negócio”, comerciantes de exportação e importação; e os
“mercadores de loja”, comerciantes varejistas ou lojistas. Sua
proximidade com os artesãos e sua constituição étnica, em
sua origem pelo menos, descendente de cristãos novos, ju-
deus,106 portanto, era suficiente para efetivar a não ascensão
social deste grupo bem identificado, mas, que no século XIX
financiará sua nobreza.
Exigência rigorosa que se fazia primaz na concepção de
cidadania e, decerto, numa possível adesão a algum cargo na
Câmara Municipal era a noção de pureza étnica. Os cidadãos,
homens aptos para receberem a honra de servir em algum car-
go disponível na municipalidade, haviam de ostentar o status
de descendência daqueles colonizadores da terra e estarem
incontaminados de “sangue infecto”.107 A Coroa estabelecia
critérios de inclusão e exclusão baseados nas relações matri-
moniais. Havia uma total incapacidade de um mulato desposar
uma branca nas altas rodas da sociedade. “O mais opulento
mulato é inferior ao branco, ele o sabe, e lhe será lembra-
do”.108 A eles era imposta uma série de restrições: não podiam
ser eleitos, nem candidatar-se aos cargos de eleição popular.
Estava restrito a eles o acesso à posição de jurado e com mais
rigor os cargos de deputado, senador, juiz, delegado, subdele-
gado, magistrado… e, até mesmo, a certos cargos eclesiásticos,
como o bispado.109 Esta questão, que era levada a cabo na
––––––––––
106
SCHUWARTZ, Stuart T. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as
Periferias. Op. cit., p. 407-408.
107
GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos
homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330.
108
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia, 4a ed. – São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998, p. 334.
109
Ibidem.

57
Luciano R. Pinto

cidade do Rio de Janeiro devido sua importância econômica e


política como lócus principal da colônia e, posteriormente do
império, não era tão rigorosa nas regiões mais periféricas.
A mestiçagem era comum nas camadas menos afortu-
nadas, cujos brancos, não resistindo à “indigna” e sedutora
cor, contribuíam com o aumento do número de mulatos que
crescia a cada dia na colônia. A região mineradora padecia
com a falta de mulheres brancas. Este fator somado à libido
lusitana contribuíra com e crescimento de mulatos que naque-
la região assumiam os cargos públicos e andavam armados,
condição própria e exclusiva dos cidadãos, que estava for-
malmente negada aos negros e mulatos.110 “O fato de a maio-
ria dos homens brancos ter filhos mulatos, legítimos ou não,
constituiu-se um problema social e administrativo para gera-
ções em sucessão. Pela lei, sangue de negro era um obstáculo
para ocupar qualquer cargo”.111 Não faltou legislação que
proibisse o costume, que se tornou inútil diante da força do
hábito.112
Decerto, na cidade do Rio de Janeiro, não faltavam
homens de titular bondade que se acostavam a suas cativas.
No entanto, os filhos naturais pardos já estavam impedidos
por lei, nem sempre levada à risca, como vimos, de herdarem
a posição de seu progenitor. “A legitimação dos filhos natu-
rais dos nobres era muito mais complexa na legislação portu-
guesa então em vigor, em grande parte devido à variedade de
bens em questão: bens da Coroa, bens vinculados, bens li-
vres, honras e mercês por serviços prestados etc.”113 Sem dú-

––––––––––
110
BOXER, Charles R. Op. cit., p. 191-196.
111
Ibidem, p. 192.
112
Sobre casamento, adultério e família ver: LIMA, Lana Lage da Gama (Org.). Mulheres, Adul-
teros e Padres. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987. TORRES-LONDOÑO, Fernando. A Outra
Família: concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo: Loyola, 1999. SERBIN,
Kenneth. Padres, Celibato e Conflito Social. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
113
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida Privada e Quotidiana no Brasil na Época de
D. Maria I e D João VI. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 196.

58
PODER E ESCRAVIDÃO

vida alguma, controlar o acesso de negros e mulatos aos car-


gos de governança significa restringir o acesso à representati-
vidade. Como um Estado de caráter escravista poderia deixar-
se representar por aqueles que condenava ao trabalho com-
pulsório? Vale lembrar que nesta categoria de “sangue infec-
to” incluíam-se os judeus e também os mouros.
Outra camada populacional foi excluída de exercer ofí-
cios na Câmara Municipal, pelo menos na carioca: os reinóis.
Por serem as câmaras o lócus do poder local, espaço privile-
giado da nobreza da terra brazilis, honrosa e ostentadora de
seu passado, cor e catolicidade, pouco espaço sobrava àque-
les fora deste grupo tradicional. “Cabeças do povo”, esta elite
privilegiada, não poderia permitir que portugueses engrossas-
sem suas fileiras, com medo de maior interferência de ideias
metropolitanas centralizadoras que ameaçassem a autonomia
dos poderes locais. Este grupo, formado pelas principais
famílias aristocráticas e dirigentes apoiava-se ainda mais no
sentimento antilusitano de uma população que se sentia mar-
ginalizada pelos reinóis que preferiam empregar patrícios
recém-chegados, ou de lá trazidos com esta finalidade, do que
conceder o lugar aos homens brancos pobres destas paragens.
Quanto à forma de eleição dos membros que compõem
as câmaras, o Registro de Lei, de 1o de outubro de 1828, é
bastante esclarecedor. Tomaremos por base este decreto de
Dom Pedro I, tendo em vista que o modo de se proceder com
a dita eleição ocorreu ao longo de nossa história de maneira
variada, mesmo que não tenha sido exacerbada, mas, de for-
ma distinta no tempo e no espaço. Neste sentido, este registro
de lei é bastante útil uma vez que se propõe a todo território
brasileiro, corresponde a nosso corte temporal e nos dá uma
boa visão de conjunto sobre a eleição dos concelhios em seu
procedimento e formação.
Deviam-se as câmaras das cidades oitocentistas se
comporem de nove membros e um secretário. A eleição era
feita a cada quatro anos, no dia sete de setembro em todas as

59
Luciano R. Pinto

paróquias. Podiam eleger-se Vereadores todos os que podiam


votar dentro dos critérios que exaustivamente já nos detive-
mos. No domingo que precedia pelo menos em quinze dias à
eleição, o Juiz de Paz114 da paróquia publicava e afixava nas
portas da Igreja Matriz e das respectivas capelas a lista de
todas as pessoas que tinham o direito de votar. Reunidos os
cidadãos no dia e no lugar orientados, cada votante entregava
ao Presidente uma cédula que continha o número de nomes
de pessoas elegíveis, devendo estar assinada no verso. Os que
não podiam ir pessoalmente, por impedimento grave, deviam
mandar as cédulas. Todo o cidadão com direito de votar que
não cumprisse sua obrigação seria multado em dez mil réis,
dinheiro que deveria ser destinado às obras públicas.
A apuração ocorria de “portas abertas” e uma vez con-
tados os votos, os eleitos pela maioria dos distritos ocupa-
vam os cargos de Vereadores. Estes deveriam receber a Ata
de sua eleição, ocupando-se no dia primeiro de dezembro de
enviar à Câmara os seus títulos para serem conferidos em
sua legalidade e inteireza. Só então poderiam tomar posse e
servir por quatro anos, podendo ser reeleitos com o único
impedimento de não poderem servir na função conjunta-
mente no mesmo ano, e na mesma cidade parentes próxi-
mos, como pai e filho; irmãos, ou cunhados, neste caso, “em
quanto durar o cunhadio”. Situação na qual se empossava o
que tivesse maior número de votos. A partir de então a câ-
mara nomeava os empregados: Secretário, Escrivães, Procu-
rador, Porteiro, ajudantes, se houver necessidade, e fiscais
de diversas coisas.115
––––––––––
O Juiz de Paz, posto criado em 1827, é “um magistrado sem formação específica e sem salá-
114

rio, eleito pela população para exercer nas paróquias a função de juiz em casos menores,
visando, sobretudo, a conciliar os litigantes. Causando grande polêmica desde sua instituição,
os juízes de paz eram, segundo Thomaz Flory, símbolos do próprio liberalismo brasileiro do
Primeiro Reinado, cioso do fortalecimento do poder local e da maior autonomia de distritos e
províncias, sendo por isso combatidos pelos conservadores”. (VAINFAS, Ronaldo (org.).
Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 452).
115
Arquivo Histórico da Cidade de Florianópolis, Caixa 11, livro 54, folhas 1-4v.; 13v-14.

60
PODER E ESCRAVIDÃO

Havia, no entanto, outras funções a cargo da Câmara,


como Capitão do Mato, Demarcador, Alferes de Ordenanças,
Tabelião, Inspetor de quarteirão, Promotor Público, Agente
de Portuário, Administrador das obras públicas, Professor pú-
blico,116 Avaliadores117 de diversas mercadorias. De modo ge-
ral, os Vereadores revezavam-se nas diversas funções e ha-
via apenas dois cargos fixos, a saber: o Presidente da Câ-
mara e o Escrivão. Quando a função parecia muito indigna,
como capitão do mato por exemplo, era nomeado outro indi-
víduo, um funcionário e não um Oficial da Câmara.
Estes homens bons dedicavam-se ao abastecimento de
gêneros, água, definição de preços, fiscalização do comércio,
da higiene pública, organização de festas e divulgação das
mesmas. Para estes eventos festivos não faltavam roupas dis-
tintivas, incluindo capa e vara. No final do século XVIII e
início do XIX esta nobreza da terra estava ornada de diversos
títulos, militares e religiosos, predominando as conexões
familiares. Quanto à sua ocupação primária, temos negocian-
tes e senhores de engenho ocupando a maioria dos cargos,
conforme análise de Gouvêa. Na pauta eleitoral de 1800, por-
tanto, temos um total de 63 indicações, destes, 26 eram nego-
ciantes – 15 de grosso trato – totalizando 41,5% do total.
Apenas 17,5%, ou seja, 11 indivíduos eram senhores de
engenho e 1,6% de advogados. Em 1806, o número de
negociantes aumentou para 52% de um total de 27 pessoas
listadas e em 1815 54 % de 66 pessoas indicadas. Temos,
portanto, a mudança de um perfil nos Conselhos, cuja predo-
minância de senhores de terra e engenhos é substituída pelos
negociantes, aqueles que, neste momento histórico, detinham
capital econômico e souberam angariar outros capitais com o

––––––––––
116
AHCF, cx. 11, lv. 33, f. 65v, 66, 67, 83v., 84, 84v., 85, 85v., 68v., 69, 69v., 92v.-94v. e cx.
11, lv. 44, f. 64v., 65, 66v., 83, 128v,164v.
117
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, códices 6-1-10; 6-1-11; 6-1-12; 40-1-27.
AHCF, cx. 11, lv. 33, f. 41v., 42v., 50, 51, 53, 116v., 117, 117v., 118v., 119.

61
Luciano R. Pinto

bom uso das finanças a serviço d‟El-rei. Após 1822 quase não
se observa mais a indicação referente à primeira ocupação,
sendo substituída pelas titularidades.
A mudança de perfil da Câmara Municipal carioca se
deve, em grande parte, ao processo de centralização desen-
volvido após 1750 e à “homogeneidade ideológica” promovi-
da pela coroa,118 conformando, assim, a nova nobreza, não
mais da terra, substituída em grande parte pela de toga, ao
projeto centralizador metropolitano. Aqueles nobres não con-
formados, como vimos anteriormente, foram perseguidos.
Com a exigência de participação política dos comerciantes e
negociantes, intensificada nos oitocentos, a metrópole encon-
trava nova perspectiva de fortalecimento da política de cen-
tralização. Promovendo uma outra classe à cidadania, a
Coroa poderia formar uma elite mais conforme seus interes-
ses. E, de fato, isso foi feito por meio de uma socialização
que promovesse ocupação e carreira, ou seja, hierarquização.
Esta socialização viabilizou-se por meio da educação da nova
elite, que, de modo geral, era formada em Coimbra, princi-
palmente nos cursos de direito.
A educação era parte essencial neste projeto de homo-
geneização ideológica, cujo treinamento iniciado em terras
lusas, mantinha uma formação essencialmente arcaica e in-
comunicável com o mundo científico. Permanecendo conser-
vadora, tal educação dava o tom da nova melodia a ser toca-
da e dançada nos trópicos. Neste sentido, as funções pú-
blicas desta nova elite sofriam, desde a academia, um treina-
mento específico segundo a carreira que se seguiria. A educa-
ção, como instrumento de socialização e treinamento para
uma carreira conforme a nova política centralizadora foi
essencial na formação desta nova elite política brasileira no
início do século XIX. No entanto, não houve uma integração
absoluta entre Estado e nobres de toga, que se dividia muito
––––––––––
118
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 11-142.

62
PODER E ESCRAVIDÃO

“entre a representação dos interesses do Estado e a represen-


tação dos interesses de classes”.119 Esta política correspondia
ao esforço do poder central em reordenar a administração no
ultramar, segundo seus interesses e promover a repactuação
entre o centro e a periferia.120 Uma organização tardia de um
habitus, fundado na autonomia, mais que consolidado. Não
por acaso serão as câmaras que apoiarão Dom Pedro I no
processo de independência política. Algo como uma contrar-
reforma centralizadora, uma retomada dos poderes locais, ou
pelo menos um anseio saudosista daquela autonomia nunca
mais revivida na sua integralidade.
Cremos ter sido possível demonstrar o quanto a cidade
do Rio de Janeiro cresceu em importância no desenrolar de
sua história a ponto de ocupar lugar de primazia no cenário
imperial. Evidenciou-se neste quadro o caráter autônomo da
Câmara e como o poder local se constituía, incluía e excluía
segundo uma série de capitais distintivos. Por fim, a mudança
no perfil da elite camarária se deve ao reordenamento forçado
promovido pelo processo de centralização desenvolvido pela
Coroa após 1750. Passamos agora, então, a abordar o poder
local em suas especificidades, de modo a precisar as diversas
funções e suas respectivas atribuições.

––––––––––
119
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 140.
120
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p. 302-307.

63
Luciano R. Pinto

2
PODER LOCAL E REPRESENTAÇÃO

2.1. Câmara Municipal


e construção da realidade
O mundo colonial estava regulado segundo os interes-
ses hegemônicos de uma determinada elite que, em três sécu-
los de escravidão, produziram uma sociedade hierarquizada e
naturalmente desigual. A desigualdade racial e social fazia
parte daquela verdade legitimada. Tal representação da reali-
dade era a visão corrente na América Portuguesa. Até ex-
escravos, quando podiam compravam mais que sapatos, ad-
quiriam escravos. Entre 1743 e 1811, em Minas Gerais, cerca
de 14% dos proprietários de escravos eram forros.121 Isso
porque “a realidade não é um antes do conceito, é um concei-
to”, 122 e o mundo perde sentido fora da representação que
sustentamos da “realidade”.123
––––––––––
121
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial
(1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 370.
122
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.
Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007, p. 60.
123
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2004, p. 9.

64
PODER E ESCRAVIDÃO

Tudo está em função do pensamento, inclusive a reali-


dade social, construída segundo determinados interesses. Ao
criar-se determinada visão de mundo, define-se a percepção
de um dado conjunto de indivíduos, que, por sua vez, perce-
bem a realidade segundo aquele conjunto de critérios estabe-
lecidos como verdade. “Tudo o que o mundo encerra ou pode
encerrar está nesta dependência necessária perante o sujeito
(…) O mundo é, portanto, representação”.124 Sua função é a
de atualizar nas consciências uma determinada realidade pro-
duzida, formando-se, assim, a ligação entre as mentes e o que
deve ser pensado como real.125 Ela estabelece, portanto, a
ponte entre a visão e a interpretação da visão, de forma que o
que é visto é pensado a partir das lentes da representativida-
de. Daí se entende porque os brasileiros, de então, e portu-
gueses aqui radicados aceitavam “o sistema escravista como
um direito indiscutível e a mão de obra escrava como uma
necessidade para a manutenção da integridade econômica,
social e política do Brasil”.126
O desdobramento da representação é o desejo. Se o
mundo é o resultado de representações ele só o é mediante a
vontade que move o desejo para tal. O mundo é a concretude
de vontades hegemônicas que influenciaram a outros de for-
ma a condicionar a percepção de realidade. É o desejo que
move comportamentos e condiciona nossa visão de mundo.
Neste sentido, a vontade é o primeiro motor da representação.
O mundo como resultado de representações, ou seja, vonta-
des particulares de indivíduos ou grupos que foram legitima-
das por outros indivíduos e promovidas ao status de verdade
é, portanto, um constructo firmado em duas metades essen-
ciais, necessárias e inseparáveis: o sujeito pensante (indiví-
––––––––––
124
SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 9.
125
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia, 3a ed. Ver. e
ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 235.
126
MARTINHO, Lenira Menezes; GORENSTEIN, Riva. Op. cit., p. 180.

65
Luciano R. Pinto

duo ou grupo) e o objeto social à qual se destina a estrutura


ideológica, ou seja, a sociedade entendida como aquele con-
junto de indivíduos que devem endossar determinada cosmo-
visão. Basta lembrarmos o desejo pelo título de senhor de
escravos. O que representa ser senhor de escravos na socie-
dade de corte carioca dos oitocentos? Status? Poder? Distin-
ção social? Tudo correspondia a uma determinada visão de
mundo construída sobre o trabalho compulsório.
O uso da mão de obra cativa, por sua vez, produziu
uma cultura que privilegiava a ociosidade. A identificação do
trabalho com a figura do negro enraizou-se e tornou-se parâ-
metro de estratificação social. Poucos eram os homens que
não possuíam escravos e quem não os detinha era considera-
do um indivíduo de segunda classe, isento da própria prerro-
gativa de cidadania. A força simbólica de ser reconhecido
como “senhor de escravos” mobilizava a sociedade carioca
do primeiro quarto do século XIX, onde não menos de 2/3
dos mais pobres detinham escravos,127 viviam dos braços
negros e dos louros de seu senhorio. A realidade, portanto,
existe também como vontade. Quem não era senhor de escra-
vos, desejava sê-lo. Este mundo pensado, norteado pelo dese-
jo, que é um condicionador de comportamento e que não está,
ainda, em conformidade com o real, pode atualizar-se na
medida em que concretiza a vontade. No entanto, indepen-
dente da concretização da vontade, esta é a priori uma forma
de legitimação da estrutura já existente.
Essa necessidade recíproca da legitimação produz com-
portamento e conduz a realidade, determinando os indivíduos
no tempo e no espaço. Por mais que a estrutura fomentada
por aquela elite local fosse arcaica e excludente, de alguma
forma ela promovia os indivíduos, hierarquizando-os entre
seus pares, que excluídos de um contexto mais amplo, distin-
guiam-se entre si. Podemos perceber esta questão nos dois
––––––––––
127
FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.

66
PODER E ESCRAVIDÃO

mundos antagônicos e engranzados, como o são livres e es-


cravos. Muitas das associações religiosas de escravos funcio-
navam como uma forma de distinção social, enfocando suas
vidas sociais, principalmente daqueles escravos urbanos, com
maior grau de “liberdade”. Muitas vezes ocorria certa rivali-
dade entre as diversas associações, umas ligadas as religiões
africanas, os filhos de zambi, e outras ao catolicismo, filhos
do Deus cristão.128 As religiões que fortaleciam a vida cativa,
também os distinguia entre si.
A hierarquização que havia no interior das associações
religiosas cumpria a dupla função de salvaguardar e promover.
“Os negros dividiam-se nas irmandades segundo maior ou
menor enriquecimento. Rivalizavam-se crioulos e africanos,
abismos étnicos, sociais, econômicos separavam esses escra-
vos na cidade”.129 Seu papel é ambíguo, pois se fornecia aos
negros uma identidade étnica, possibilitando o próprio acesso à
liberdade e conhecimento de seus direitos, também hierarqui-
zava e distinguia.130 A própria forma de se tatuar existia como
distinção interpares e posicionamento étnico.131 Mesmo o rela-
cionamento dentro das senzalas, baseado no sexo e nas rela-
ções matrimoniais,132 no que se refere à divisão dos espaços ou
da legitimação de uma determinada liderança levavam em
condições alguns capitais simbólicos distintivos.
Quanto ao mundo livre, temos as diversas lutas por hie-
rarquização junto aos cargos de governança. Mesmo que um
indivíduo não pertencesse àquelas famílias aristocráticas e,
portanto, distinguir-se pela cidadania, ele poderia adquirir
algum capital social e simbólico assumindo cargos menores
––––––––––
128
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 341-396.
129
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 101.
130
Ibidem, p. 99-100.
131
DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 282.
132
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava, Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

67
Luciano R. Pinto

junto à Câmara. O próprio Avaliador de Escravos harmoniza


sua primeira ocupação com um cargo na municipalidade, o
que lhe garante alguns benefícios, que veremos a seu tempo
detalhadamente.
O processo de hierarquização só existe tendo em vista a
relação. Na medida em que os homens passam a se relacionar
entre si eles se verticalizam, incluem-se e excluem-se me-
diante o acúmulo de capitais convencionados por legítimos.
Neste sentido, a arte de governar é, decerto, e nada tem de
artístico nisso, a capacidade que determinado grupo tem de se
fazer representante dos demais indivíduos constituídos so-
cialmente e, portanto, legitimante de determinado ordena-
mento social. O real é concebido como aquilo que foi consen-
sual, por esta razão não se entende um homem branco na
sociedade de corte carioca exercendo atividades manuais.
Isso seria ilógico, incompreensível e leso à dignidade. Por
isso, todo cidadão deveria ter um escravo à sua disposição
para trabalhar de portas “a dentro” ou “a fora”.
Um determinado conjunto de juízos, que tendem a or-
denar a realidade, forma um sistema de verdades. A Câmara
Municipal a isso se propunha. A elite camarária, nobreza da
terra e senhores de escravos, possuíam uma determinada
mundo-visão que se aplicava à realidade colonial, construin-
do-a e garantindo sua reiteração temporal. Se for justo que
“todo conceito existe e tem valor apenas enquanto está em
relação (…) com uma representação”,133 as câmaras bem
souberam promover seu poder nas respectivas localidades. A
começar pelo desejo de muitos em obter o status de sua fun-
ção, o que promovia a legitimação do poder local, que versa-
va sobre tudo e ordenava a vida de todos segundo seus dita-
mes, disciplinando a vida coletiva.
Na colônia, o poder se personificava, fazendo com que
os indivíduos se tornassem possuidores e fontes emanadoras
––––––––––
133
SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 74.

68
PODER E ESCRAVIDÃO

de poder, detendo não apenas o poder político, mas também


um poder baseado na fortuna e na cultura. Basta lembrarmos
que esta elite política detinha os latifúndios – nobreza da terra
– ou mesmo o capital mercantil – nobreza de toga – estes,
com justa medida, donos de fortuna que viriam nos oitocen-
tos a ascender com títulos honoríficos. A Metrópole por vezes
contemporizava as duas facções,134 a primeira detentora do
capital simbólico e da tradição conquistadora, a segunda pos-
suidora de capital econômico. Quanto ao poder cultural, outra
questão já discutida por nós, a entendemos no contexto geral
da unificação desta mesma elite, que, principalmente após o
período de centralização administrativa encontra na educação
uma forma de manutenção do poder.
Cabia, portanto, às municipalidades através do discur-
so e manutenção do poder que lhes era atribuído em nome
d‟El-rei, criar a nova realidade daquela “selvagem terra”. Ao
idealizar o mundo colonial deveria a Câmara, enquanto poder
constituído, fomentar a vida e ordena-la de modo civilizado.
Ao editar posturas o que desejava a Câmara era, tão-somente,
regular o convívio, harmonizá-lo segundo seus critérios civi-
lizatórios. A própria introdução ao texto referente às Posturas
Municipais nos dá uma ideia deste discurso em prol do “bem
comum”, expressão quase sinonimizando à civilidade.
Ao dizer: “A Câmara Municipal (…) desejando promo-
ver (…) o bem público, promovendo e mantendo a tranquili-
dade, segurança e comodidade dos seos concidadãos…”135
não se refere a todos, apenas aos seus concidadãos. Ao editar
posturas, deseja preservar o bem-estar de seus pares, e orde-
nar o mundo do caos, daquela “gente miúda” que ameaça a
ordem estabelecida, ou seja, aquele constructo social que
incluiu alguns e excluiu muitos outros. O excluído era o
branco pobre. Ele não fazia parte deste ideal bem estruturado.
––––––––––
134
PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 296, 315.
135
AGCRJ, 6-1-28: Projeto de postura (Escravos) em aditamento às de 11 de setembro de 1838.

69
Luciano R. Pinto

O mundo do governo e o mundo do trabalho, por sua vez,


constituem um único mundo: o da ordem.
Pensamos que os escravos, em seu mundo de trabalho,
também pertenciam, como vimos, ao mundo da ordem. Eles
estavam incluídos, mesmo que de maneira violenta e não
consentida, ao mundo considerado civilizado. O que era o
ladino senão um negro “civilizado”? Por isso valia mais. O
que o tornava mais valioso aos olhos do seu possível com-
prador era a própria civilidade que partilhava: falava o portu-
guês, possuía uma profissão e por vezes exercia atividades de
precisão. O mundo da ordem e da civilização incluía e
dependia do braço negro. A própria identificação do trabalho
com a escravaria fazia parte daquele discurso formador da
realidade colonial, parte integrante do conjunto de juízos
formadores da verdade sobre o mundo do trabalho e do
governo, ou seja, daquela ordem ou estrutura estruturan-
te.136 Esta ordena e identifica os indivíduos no campo social,
hierarquizando-os. Para que este ideário estruturado se torne
hegemônico e reitere-se temporalmente é necessário que seja
consentido.
Se pensarmos na realidade do Rio de Janeiro do sécu-
lo XIX veremos que este ordenamento racional estava mais
que consentido. É, portanto, uma estrutura estruturante,
pois passa a ordenar os indivíduos localizando-os social-
mente, incluindo e excluindo segundo seus critérios de
mais-valia. Que homem branco dos oitocentos não deseja-
ria um escravo? Quem não buscava ser reconhecido por
“senhor de escravos”? Quem não desejava a ociosidade?
Os próprios ex-escravos, quando podiam, adquiriam escra-
––––––––––
136
“Princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objeti-
vamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente de fins e o controle
expresso das operações necessárias para atingi-los, objetivamente “reguladas” e “regula-
res”, sem ser em nada o produto da obediência a regras, e sendo tudo isso, coletivamente
orquestradas sem ser o produto da ação organizada de um maestro.” (BOURDIEU, Pierre.
Le sens pratique. Paris: Lês Éditions de Minuit, 1980, p. 88-89. In BONNEWITZ, Patrice.
Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 76-77).

70
PODER E ESCRAVIDÃO

vos e sapatos, sinal mais que evidente de consentimento da


estrutura arcaizante. Excluídos, portanto, estavam os po-
bres desejosos de um status distante, mas, pulsante.
A lusofobia que atingirá a muitos nos oitocentos surge
desta inquietação, na qual lhes cabia apenas a indignidade do
trabalho manual, tremendamente disputado com os negros de
ganho ou mesmo sendo preteridos por patrícios de comer-
ciantes lusos que empregavam os recém-chegados ou de lá
trazidos já com esta finalidade. O que os homens de bem
temiam era este conjunto de desocupados, justamente pela
sua imprecisão nos quadros ideológicos estruturados. Se por
um lado eles eram influenciados pela verdade produzida e a
legitimavam, por outro, eles representavam uma ameaça a
esta mesma verdade que legitimavam.
Civilização137 é, portanto, um conceito que varia de
acordo com aquele conjunto de juízos estruturados e legitima-
dos. A verdade sobre o que vem a ser civilizado reside no con-
sentimento, de forma que a aparente harmonia social só é pos-
sível mediante a acedência dos indivíduos. Civilização e cultu-
ra estão interligadas e formam um todo estrutural. Isso porque
ser civilizado significa corresponder a uma determinada forma
de portar-se, falar, obedecer a regras de convivência, a posturas
sociais e a todo conjunto de regras fomentadoras do bom con-
vívio. Ser civilizado é corresponder a um modo de ser social
assumindo determinadas posturas como naturais, de forma que
agir diferente significa não ser civilizado. Há uma estética no
modo de ser civilizado, que obriga as pessoas a portarem-se
em sociedade. Esta atitude tende a distinguir socialmente,
promover o desejo e o consentimento. A observância dos
comportamentos airosos diferencia socialmente e estratifica.
Observar as posturas baixadas pela Câmara era, de alguma
forma, participar, mesmo que de maneira forçada quando não
––––––––––
137
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1994, p. 23-29.

71
Luciano R. Pinto

livremente consentida, deste mundo civilizado. O mundo da


desordem era composto pelos “não-civilizados” ou não-en-
quadrados neste sistema de representatividades.
A lei, ou o ordenamento, intui as relações entre os
homens e os liga entre si.138 A identificação pejorativa de uns
em relação a outros reside na própria não adesão àquilo que
os uni: a norma. A lei ou as diversas posturas existem, ape-
nas, como parte do processo civilizatório. Elas estabelecem
as fronteiras entre o digno e o indigno, entre o bom e o mau.
É neste sentido que os indivíduos são classificados. “Nisso é
decisivo que a lei (…) produz o espaço da coisa política e
contém o violento-brutal, próprio de todo produzir”. 139 Ela
está em função de dado projeto civilizador e tende a fazer
com que os indivíduos se movam, no espaço social, conforme
a postura exigida. Só existe lei dentro de um acurado espaço
definido temporalmente. “O que está fora desse espaço, está
sem lei e, falando com exatidão, sem mundo (…) Está na
essência das ameaças…”.140 Eis a condição daquela gente
“incivilizada” e desordenada, “ralé de todas as cores”141.
“Em si mesmas as regras são vazias, violentas, não fina-
lizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo”.142 Burlá-
las faz parte das relações de poder, o que não ocorre sem a
devida punição prevista. Se a lei determina o convívio, ela
também prevê a punição ao não cumprimento da mesma. A
distinção entre civilizado e incivilizado está na observância de
uma instância de poder: a lei. O sistema punitivo existe em
função do não civilizado, ou seja, daquele indivíduo que não
consente com a verdade estruturada. A lei, quando não obser-
vada por simples consentimento, deve sê-la pela sua capacida-
––––––––––
138
ARENDT, Hannah. O que é política?. 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 113.
139
Ibidem, p. 114.
140
Ibidem., p. 123.
141
MATTOS, Ilmar Rohloff. Op. cit., p. 135.
142
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 18a ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003, p. 25.

72
PODER E ESCRAVIDÃO

de de coagir e isolar. A vigilância hierárquica143 no exercício


da disciplina deve promover a ordem em substituição ao caos,
adestrando os indivíduos para garantir a reiteração temporal do
constructo e, decerto, daquele determinado grupo de poder.
Promover um determinado comportamento esperado é
o que se ambiciona ao promulgar-se uma postura. “A disci-
plina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos
no espaço”,144 hierarquizando-os segundo a correspondência
que cada um apresenta à verdade estruturada. A punição sur-
ge como uma forma de controle social. Desde 1823, por
exemplo, havia uma postura proibindo a aglomeração de
negros capoeiras. “Dessa forma o papel do feitor cabia ao
Estado, que procurava manter a ordem disciplinando-lhe a
circulação e punindo com o chicote e com a prisão (…) os
infratores”.145 Mesmo o mundo da ordem estava obrigado à
observância, pois, a ordem que aí está pode ser subvertida
ou mesmo substituída por outra forma de ordenamento social.
Por isso a proibição ao mecanicismo junto aos oficiais cama-
rários.146 É preciso manter o corpo social coeso, com pena de
que o discurso se enfraqueça e perca legitimidade.
No que se refere aos oficiais da Câmara a questão se
torna imprescindível. O que é a municipalidade senão uma
sociedade de discurso, que deve conservar e produzir verda-
des segundo normas estritas?147 Se não houver zelo à realida-
de construída aquele grupo hegemônico corre o risco de per-
der sua posição, obrigando-se a proteger, defender e conser-
var a estrutura ideal. É por isso que cabia às câmaras proces-
sar e julgar os diversos crimes e infrações de suas posturas.
––––––––––
143
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 2004, p. 143.
144
Ibidem, p. 121.
145
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 102.
146
FREIRE, Gilberto. Op. cit., p. 1040-1041.
147
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, 11ª ed. São Paulo: Edições Loyola,
2004, p. 39-40.

73
Luciano R. Pinto

A própria capacidade de tributar é uma forma de poder


sobre os indivíduos. Por mais que oficialmente o discurso
apresente a tributação como uma forma de cuidar da comuni-
dade, zelando pela res publica, sabemos que a coisa pública
está ordenada segundo um conjunto hierárquico de valores
medidos conforme o ordenamento da verdade concebida e sua
preservação. Tanto é fato o exposto que uma das consequên-
cias ao não pagamento do imposto é a multa e posteriormente
o confisco de bens. Neste campo cabia à Câmara “administrar
(…) o pagamento de impostos perenes e temporários lançados
pela metrópole em ocasiões especiais, impor taxas ocasionais,
arrendar contatos, arrecadar „contribuições voluntárias‟ etc.”148
A ela também cabia zelar pela vida urbana, licenciando ou
promovendo festejos, fazendo obras públicas, regulamentando
feiras, conservando as ruas e muito mais.
O que nos importa aqui é perceber como as municipali-
dades ocupavam-se com a regulamentação da vida cotidiana,
promovendo o modo de ser considerado civilizado e vigiando
sua validade. Ao Conselho cabia acautelar-se do corpo social
em seu processo de hierarquização, extremamente restrito e
controlar as diversas atividades dos indivíduos em sociedade.
A realidade é sem dúvida alguma apresentada e constante-
mente representada pela instituição que detém o discurso,
reforçando e reconduzindo a verdade mediante práticas con-
troladas, promovendo alguns indivíduos e distribuindo fun-
ções de forma a garantir a reiteração temporal do constructo.
Assim, o poder promove determinados indivíduos atribuindo-
lhes funções representativas e ao mesmo tempo reforçando
sua hegemonia no campo social.
Parece-nos, contudo, que estes homens bons não cuida-
vam tão bem da vida urbana quanto previa a lei. Os testemu-
nhos dos viajantes concordam com a questão da insalubrida-
––––––––––
148
GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos
homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330.

74
PODER E ESCRAVIDÃO

de da cidade. “Até 1854 [por exemplo,] o Rio de Janeiro não


possuía calçamento de paralelepípedo”,149 e nos “tempos do
Sr. D. João ainda guardava a fisionomia aflita e asselvajada.
(…) Ainda é o mesmo chão úmido e feio (…), com logradou-
ros públicos cobertos de tiririca e de sapé, crianças nuas, pre-
tos resmungões e animais a solta”.150 Carl Seidler, alemão
que passou dez anos no Brasil, apresenta a maior parte das
ruas do Rio como “compridas, tortas e estreitas”.151
No entanto, o que mais nos chama a atenção neste tes-
temunho refere-se a um fato que muito contribuiu para a pés-
sima impressão que este estrangeiro formou da cidade, ao
qual denominou de “asqueroso costume”, onde segundo ele,
“… não é nada extraordinário que os negros encarregados de
transportar das casas para a praia toda sorte de lixo, por sua
vez se revelem demasiado comodistas para levarem o vaso
transbordante em longa caminhada até o mar, e na primeira
esquina despejam toda a porcaria e se vão embora”.152 Seme-
lhante testemunho nos apresenta Tuckey, primeiro-tenente da
marinha britânica e explorador, que permaneceu vinte dias no
Rio de Janeiro, mais precisamente entre 29 de junho e 19 de
julho de 1803, com relação aos próprios habitantes, cujos
“hábitos imundos (…) colaboram para piorar ainda mais a
situação (…) Por aqui, as janelas são escapes noturnos para
todas as coisas que a casa acumulou durante o dia”.153 A
municipalidade carioca estava indiferente ao crescimento
urbano, mais preocupada com a economia privada de seus
membros e com a importação de escravos. Governar em
benefício próprio não nos parece uma matéria que careça de
maiores aprofundamentos, como se estivesse distante da vida
––––––––––
149
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 40.
150
EDMUNDO, Luiz. A Corte de D. João no Rio de Janeiro. In: Ibidem, p. 42.
151
SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Brasília. Martins – MEC. 1976. p. 39.
152
Ibidem, p. 41.
153
TUCKEY, (apud): FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 270.

75
Luciano R. Pinto

pública hoje. Seja como for, interesses particulares permu-


tavam-se nas pautas concelhias.
Aqueles indivíduos a quem coube o ordenamento civi-
lizador, eram portadores de signos, marcas, traços distintivos
que os tornam aquém dos demais indivíduos. Em sociedades
arcaicas,154 como a carioca do século XIX, a nomeação
adquiriu um caráter quase mágico, que ordena o mundo
social mediante o acúmulo de símbolos de reconhecimento da
legitimidade155 e personificação do poder. Nada mais eviden-
te numa sociedade cujo poder é pessoal. A nomeação oficial
impõe sobre os indivíduos “a força do coletivo, do consenso,
do senso comum, porque ela é operada por um mandatário do
Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legíti-
ma (…) dando acerca dos agentes sociais a perspectiva auto-
rizada, reconhecida de todos, universal”.156 Soma-se a isso o
fato de que esta sociedade reproduzia a vontade divina e que,
portanto, de alguma forma, seu representante operava segun-
do desígnios eternos. Questionar as normas é, antes de tudo,
questionar um poder pessoal.
Para fecharmos este quadro, podemos identificar o
espaço social como profundamente marcado por desigualda-
des e por uma sutil contradição na qual aquela sociedade de
discurso – a Câmara Municipal – deveria ordenar o mundo
reproduzindo a realidade celeste. No entanto, o constructo,
elaborado para tanto, previa, desde sempre, a manutenção da
desordem. Ordem e caos coexistiam como as duas faces da
moeda, como o dia e a noite. Ao mesmo tempo em que a boa
sociedade temia o mundo da desordem, também dependia
dela para manter-se hegemônica, pois, era a sociedade como
––––––––––
154
Cf. FRAGOSO, João; FORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlân-
tico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia – Rio de Janei-
ro c. 1790-c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
155
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico, 7 a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2004, p. 142,144-145.
156
Ibidem, p. 146-147.

76
PODER E ESCRAVIDÃO

um todo que legitimava a estrutura arcaica existente. É na


medida em que se administra o caos, que a ordem estabeleci-
da e o mundo idealizado se mantêm.
Toda civilidade produzida pela Câmara estava alicerça-
da em bases exclusivistas, na manutenção de títulos, na dis-
tinção social, na marginalização de outros tantos e, princi-
palmente, na manutenção do desejo. Vale lembrar que o
mundo idealizado existe como representação de um regime
de verdades e, também, como vontade. De um lado, o mundo
da ordem, titulares da bondade e representantes da estrutura
estruturante e, de outro, todos aqueles legitimadores da estru-
tura, que consentindo com a verdade produzida se viam ani-
mados pelo desejo de possuir o que não tinham, volição legi-
timadora da “verdade” que excluía, mas que, de alguma for-
ma, correspondia ao desejo mais profundo do ser humano: ser
mais que aquilo que se é.

2.2. Funções e atribuições


Do grego “cratos” (força, potência) e “arch” (autori-
) surgiram os nomes das formas de governo como aris-
tocracia, democracia, monarquia, oligarquia e, também, pa-
lavras que indicam formas de poder: fisiocracia, burocra-
cia, partidocracia…157 Sem nos adentrarmos por demais
nesta questão, embora um estudo aprofundado sobre estas
formas de poder seja interessante, o que nos importa é per-
ceber como o desejo de poder promove nos indivíduos
relações singulares de associações segundo interesses afins.
Enredados em suas malhas, o exercemos em algum sen-
tido ou direção, ao mesmo tempo em que, contrariamen-
te, também sentimos seu peso. Todos respiramos o mes-
mo ar que sustenta verdades elaboradas e promovidas. A
––––––––––
157
BOBBIO, Norberto. Estado, Gobierno y Sociedad: por una teoría general de la políti-
ca. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 102.

77
Luciano R. Pinto

pura e simples associação a um determinado grupo, pode


promover o indivíduo e excluí-lo da luta de todos contra
todos por prestígio, hierarquização e poder. Se, realmen-
te, o poder se exerce em muitos sentidos e em direções
diversas, isso significa, enquanto possibilidade, que um
determinado indivíduo possa, apenas pelo consentimento
e reprodução, tornar-se portador e representante de de-
terminada verdade, o que o distingue socialmente, pro-
move e propicia, entre seus pares, algum prestígio e sta-
tus. Evidentemente, o exercício do poder, seja ele qual
for, restrito, parcial ou simplesmente aparente, ainda as-
sim, é uma forma de exercê-lo.
O poder se difunde pela adesão e satisfação ou manu-
tenção do desejo. Isso faz com que exista não apenas nas
camadas superiores e dominantes da sociedade, mas também
entre os mais simples e subordinados. É a partir do desejo de
poder que entendemos a procura às funções administrativas
das diversas municipalidades. Não apenas os membros das
famílias tradicionais, descendentes dos primeiros colonizado-
res e nobres desta terra, adentravam as câmaras. Outras pes-
soas portadoras de algum capital, principalmente o econômi-
co – nobres de toga – poderiam exercer determinado ofício na
municipalidade. Evidente que havia uma hierarquia de fun-
ções e atribuições onde a força do prestígio posicionava os
indivíduos segundo o acúmulo de capitais.
As hierarquizações no campo institucional decorriam
dos valores exigidos para determinada função. Como “nada é
mais físico, mais corporal que o exercício do poder…”,158
nada mais interessava que possuí-lo numa sociedade de rela-
ções pessoais. Os indivíduos, mesmo em funções menores
sob a administração da Câmara sentiam-se valorizados, pois,
de alguma forma exerciam uma função de mando, poder
sobre alguém, o que condicionava comportamentos e desejos,
––––––––––
158
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Op. cit., p. 147.

78
PODER E ESCRAVIDÃO

promovia o status quo da classe dominante e hierarquizava os


indivíduos entre seus pares. O que torna o poder tão forte,
portanto, não é sua capacidade de censura, exclusão e repres-
são, mas sua faculdade de produzir efeitos positivos ao nível
do desejo e do saber.159 Decerto, sua aptidão de provocar o
desejo, incluir e hierarquizar, faz com que o poder se tornasse
esta malha que a todos envolve.
A administração camarária, além das funções eletivas,
possuía diversas outras de importância variada. Neste estudo
estamos distinguindo os oficiais dos funcionários da Câmara.
Os primeiros eram eleitos, como Vereador, Procurador e Juiz
Ordinário, acrescido posteriormente do Juiz de Fora, nomeado
pela Coroa. Os demais eram, em geral, indicados e nomeados.
Objetivamos mapear, na medida do possível, a funcionalidade
concelhia. Sem nos propor mais que simplesmente elencar as
funções e suas respectivas atribuições, esperamos construir
uma visão de conjunto bastante uniforme do corpo operacional
da Câmara Municipal, tomando como exemplo a cidade do
Rio de Janeiro por ocasião da chegada da família real.
Neste momento de mudanças para a cidade, ocasião
de singular desenvolvimento, nada mais apropriado que
perceber o corpus administrativo daquela que ordenava a
vida social, política e administrativa da localidade. Quais
funções existiam por ocasião da chegada da família real?
Quais suas atribuições? Quando foram criadas e por quais
mudanças passaram? Como as pessoas acessavam estas
ocupações? Estas, e outras questões, buscaremos responder
nesta última divisão sobre a municipalidade para, então,
aprofundarmos outra função entregue à Câmara Municipal:
o Avaliador de escravos. Este, no entanto, receberá maior
atenção e será discutido posteriormente.
O que se segue é o resultado de um estudo feito na
década de 1980 e que avançou até 1998 no Arquivo Geral da
––––––––––
159
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Op. cit, p. 148.

79
Luciano R. Pinto

Cidade do Rio de Janeiro, denominado História Adminis-


trativa da Cidade do Rio de Janeiro (1565-1945).160 A pes-
quisa aqui apresentada se refere a este trabalho que foi por nós
ordenado segundo o interesse e acrescido de informações novas.
Nele, encontramos as diversas funções da municipalidade cario-
ca desde sua origem até a chegada da família real. No entanto,
não nos interessa trazer à baila uma discussão que aprofunde os
diversos ofícios e suas atribuições devido a grande quantidade
de informações. Isso demandaria um esforço que nos distancia-
ria do objeto principal, que é a localização político-social do
Avaliador de escravos. Nossa proposta é, tão-somente neste
momento, mapear a Câmara Municipal do Rio de Janeiro a par-
tir de nosso corte temporal. Desta forma, esperamos localizar a
rede político-administrativa que se inseria nosso objeto.

2.2.1. Oficiais Camarários


Juízes Ordinários
Estabelecido em 1532, tem por legislação as Orde-
nações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Nos primeiros tempos eram
eleitos a cada três anos, servindo anualmente, juntamente
com os Vereadores, eleitos pelos homens bons do termo
(município). A própria linguagem das ordenações nos aponta
sua funcionalidade temporal, uma vez que era chamado de
“magistrado anual”. Ordinário designa aquilo que se faz por
costume e uso. Como presidente da Câmara devia zelar pelo
costumeiro e usual, observar as regras e fazê-las cumprir.
Usava uma vara vermelha, era a insígnia do Juiz. A mesma
expressão é ainda hoje utilizada para designar um tipo de
jurisdição, como vara civil ou vara criminal.161 Segundo o
––––––––––
160
Nosso agradecimento à museóloga Júnia Guimarães e Silva , do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro, que nos apresentou este estudo interno e que foi por
nós adaptado e acrescido de algumas informações novas.
161
Ordenação Manuelina, do livro 1o, título 44, § 55 (Disponível on-line in: http: // www . ci
. uc.pt/ihti/proj/manuelinas/ni.htm). Código Filipino, p. 134, 2a col. Nota 2 (Disponível
on-line in http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm).

80
PODER E ESCRAVIDÃO

art. 12 da lei de primeiro de outubro de 1828, contudo, o Juiz


Ordinário seria eleito por quatro anos, em número de um,
apenas, sendo aquele, dentre os votados que obtivesse maior
número de indicações. Suas atribuições eram as seguintes:
De 1530 a 1548162
Proceder contra os que cometerem crimes no termo de
sua jurisdição.
Participar das sessões da Câmara.
Exercer as funções de Juiz dos Órfãos 163 onde não
houver este ofício de justiça.
Dar audiências nos Conselhos, vilas e lugares de sua
jurisdição.
Ordenar aos Alcaides que tragam os presos às audiên-
cias e passar mandato de prisão ou de soltura, de acordo
com seu julgamento.
Ter alçada nos bens móveis sem apelação nem agravo,
nos lugares com mais de 200 habitantes, até a quantia
de mil réis, dando execução da sentença; com número
igual ou menor de habitantes, até o valor de 600 réis,
dando execução da sentença.
Ter alçada nos bens de raiz sem apelação e agravo, até a
quantas de 400 réis, dando execução da sentença. Aci-
ma deste valor, dar apelação e agravo.
Impedir que as autoridades eclesiásticas desrespeitas-
sem a jurisdição da Coroa.
––––––––––
162
Primeiro livro das Ordenações Filipinas, título 65 (atribuições no 1 a 17). ALMEIDA,
Cândido Mendes de. Código filipino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal reco-
piladas por mandado d’El-rei dom Felipe I. 14a ed., 3 vol. Rio de Janeiro: Instituto
Filomático, 1870, p. 134-144.
163
“Os juízes de órfãos surgiram no Brasil em fins do século XVII, nomeados pelo rei para vilas com
pelo menos 400 habitantes. Tinham por atribuição a realização do cadastro dos órfãos, assim como
as questões legais que envolvessem seus bens e imóveis, constituindo-se assim o juízo dos órfãos.”
(VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Op. cit., p. 338).

81
Luciano R. Pinto

Fiscalizar os serviços de estalagem e fixar seus preços.


Fiscalizar a atuação dos Almotacés.
Despachar por si só os feitos provenientes dos Almota-
cés até a quantia de 600 réis. Acima deste valor e até
600 mil réis, despachar com os Vereadores da Câmara,
sem dar apelação.
Conhecer dos feitos crimes cometidos por escravos,
cristãos até a quantia de 400 réis, despachando, sem
apelação e agravo, com os Vereadores.
Conhecer dos feitos das injúrias verbais e despacha-los aos
Vereadores na primeira reunião da Câmara. Nas sentenças
até mil-réis, dar execução sem apelação e agravo.
Conhecer dos feitos das injúrias verbais feitas a pessoas
de qualidade, suas mulheres e oficiais de Justiça, despa-
chado por si só e dando apelação e agravo às partes.
Tirar, por si só, devassas (particulares) sobre mortes,
violência de mulheres, incêndios, fugas de presos, des-
truição de moeda falsa, resistência, ofensa de justiça,
cárcere privado.
Tirar inquisições e devassas (gerais) dos juízes, assim
como as de todos os oficiais de Justiça, Vereadores.
Participar da escolha do Juiz de Vintena.
Conhecer de ações novas no seu termo, dando apelação ao
Ouvidor da Capitania, nas quantias estipuladas nas ordens.
De 1548 a 1580164
Mesmas atribuições do período 1530-1548, acrescida:
Eleger com os Vereadores, os Oficiais das ordenanças
do termo (município).
––––––––––
164
Regimento dos Capitães-mores, de 10.12.1570 e das Ordenanças, de 10.5.1574 (atribuição
no 1). In: Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à
administração da Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, p. 183-184 e 195-202.

82
PODER E ESCRAVIDÃO

De 1580 a 1808165
Manteve as mesmas atribuições do período 1548-1580,
acrescidas das seguintes:
Executar das penas pecuniárias aplicadas pelo Sargen-
to-mor da Comarca aos Oficiais da ordenança que falta-
rem com suas obrigações de posto.
Tomar conhecimento das descobertas das minas em seu
distrito, que serão registradas em livro pelo Escrivão da
Câmara, passando certidão a ser apresentada, após 20
dias, ao Provedor das Minas.
Dar apelação dos feitos que julgar nas vilas e povoa-
ções para o Ouvidor-Geral das Capitanias do Sul.
Dar apelação e agravo para o Ouvidor-Geral do Estado
do Maranhão.

Juiz de Fora
Esse cargo foi criado no Brasil, na área da Justiça,
em 1696, suas atribuições constam, inicialmente, em
um órgão específico, a Junta Territorial de Mineração, a
ser instalada nos municípios onde houvesse minas. Ori-
ginando-se de esforços centralizadores da coroa, objeti-
va maior controle sobre as municipalidades. Nomeado
pelo Rei, era, como o próprio nome indica, um Juiz de
––––––––––
165
Regimento dos Sargentos-mores das comarcas, de 28.11.1598 (atribuição no 1). In: Sis-
tema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à adminis-
tração da Fazenda Real…, vol. 5, p. 219.
Regimento das minas de São Paulo e São Vicente, de 8.8.1618, (atribuição no 2). In:
SILVA José Justino de Andrade e. Coleção cronológica da legislação portuguesa,
compilada e anotada desde 1603 [1603-1700]. Lisboa: Impressão de J. J. A. Silva, 1854-
1859, vol. 2, p. 330-332.
Regimento do Ouvidor-Geral das Capitanias do Rio de Janeiro, Espírito Santo e
São Vicente, de 5.6.1619 e 21.3.1630 (atribuição no 3), em C.C.L.P., vol. 2, p. 382-384, e
vol. 4, p. 166-167.
Alvarás de regimento do Ouvidor-Geral do Maranhão, de 7.11.1619 e 21.3.1624
(atribuição no 4). In: Coleção cronológica da legislação portuguesa, compilada e ano-
tada desde 1603 [1603-1700]. Lisboa: Impressão de J. J. A. Silva, 1854-1859, vol. 2,
p. 387-389 e vol. 3, p. 116.

83
Luciano R. Pinto

fora, não pertencente ao lugar de seu exercício funcio-


nal e, portanto, estranho à terra e às redes locais de
poder, que deveria por força de seu exercício limitar.
Onde se instalavam faziam cessar a jurisdição do Juiz
Ordinário, inclusive quanto à presidência da Câmara.
Esse magistrado usava uma vara branca e acumulava
esferas judiciárias e administrativas. Foi extinto pela
disposição Provisória de 1832, art. 18 e pelo Código
Criminal do Império art. 8 o . A ele competia:
De 1696 a 1750166
Proceder contra os que cometerem crimes no termo de
sua jurisdição.
Ter alçada até a quantia de 4 mil réis nos bens de raiz e
de 5 mil nos móveis.
Ter alçada nas penas que puserem até mil réis, sem ape-
lação nem agravo.
Fiscalizar a atuação do Alcaide-mor e Alcaides
pequenos.
Ter alçada nos bens de raiz até 12 mil-réis, nos móveis
até 16 mil e nas penas pecuniárias até 4 mil.

De 1750 a 1808167
Servir de Intendente dos diamantes nas Capitanias do
Brasil onde não houver Ministros encarregados dos
diamantes nem Ouvidores de Comarcas, sob imediata
inspeção da Junta Administrativa de Mineração.
––––––––––
166
Primeiro livro das Ordenações, título 65. In: Código Filipino, p. 134-144.
Alvará de regimento dos salários dos ministros e oficiais de Justiça da Améri-
ca, na beira-mar e sertão, exceto Minas, de 10.10.1754. In: SILVA, Antônio Del-
gado da. Coleção da legislação portuguesa desde a última compilação. [1750-
1820]. Lisboa: Maigrense, 1826-1847, p. 315-327.
167
Alvará regulando as minas de ouro e diamantes na América com diversas providências
e novos estabelecimentos, de 13.5.1803, In: Coleção da legislação portuguesa desde a
última compilação. [1750-1820]. Lisboa: Maigrense, 1826-1847, p. 202-222.

84
PODER E ESCRAVIDÃO

Dividir e demarcar as terras diamantinas que possuam


ouro (cuja exploração, até agora vedada, este alvará
derroga), ouvindo as determinações da Junta Adminis-
trativa de Mineração no tocante à quantidade de terras e
sítios que devem ser repartidos.

Vereador
As câmaras das Cidades eram formadas por nove mem-
bros, conforme o registro da lei do 1o de Outubro de 1828168.
Poderiam ser Vereadores todos os que podiam votar nas assem-
bleias paroquiais, com no mínimo dois anos de domicílio dentro
do termo. Cada cidadão escolhia três nomes elegíveis e os entre-
gava ao Presidente, “que seria o ouvidor, e na sua falta, o juiz
mais velho em exercício”169 que conferia a lista. Feita a apuração
os que obtivessem maior número de votos seriam os Vereado-
res.170 Sua criação para a colônia nos remete a 1532, e apresenta
sua funcionalidade mediante as Ordenações de 11 de março de
1521 e 11 de janeiro de 1603. Inicialmente, no entanto, eram elei-
tos trienalmente, para um mandato de um ano. Promoviam-se as
eleições e obtendo-se três listas com três nomes cada. Para cada
ano de mandato serviria uma determinada lista escolhida. Já no
século XIX carioca, como vimos, ampliou-se sua temporalidade
para quatro anos e o número de vereadores aumentou para nove
membros sem a rotatividade dos primeiros tempos. Nas vilas seu
número era de sete membros. Suas atribuições eram as seguintes:
De 1530 a 1580171
Zelar por todo o regimento das obras do Conselho e da
terra, bem como por tudo que puder beneficiá-la e aos
seus moradores.
––––––––––
168
AHCF, cx. 11, lv. 54, f. 1-16.
169
PRADO Jr. Op. cit., p. 315.
170
AHCF, cx. 11, lv. 54, f. 1v-2.
171
Primeiro livro das Ordenações, título 66. In: Código Filipino, p. 144-153.

85
Luciano R. Pinto

Fiscalizar a atuação dos Juízes no cumprimento da


Justiça.
Avaliar o estado dos bens da municipalidade, tomando
as devidas providências.
Fiscalizar as contas do Procurador e do Tesoureiro do
Conselho.
Designar, com os Juízes, o Carcereiro da munici-
palidade.
Taxar os ordenados dos oficiais da municipalidade e
determinar os preços de certos produtos.
Zelar pelo cumprimento das tarefas atribuídas aos ofi-
ciais da municipalidade.
Pôr em pregão todas as rendas do Conselho e contratar
com os Rendeiros, recebendo fianças.
Administrar os bens do Conselho.
Lançar fintas, consultando o Corregedor da Comarca
(Ouvidor).
Taxar os ordenados dos oficiais mecânicos, jornaleiros,
moças e moças de soldada e determinar os preços de
louças, calçados e outras mercadorias.
Eleger a cada ano, juntamente com os Juízes e o Procu-
rador, os Recebedores das sizas.
Despachar na Câmara, com os Juízes, os feitos prove-
nientes dos Almotacés, de quantias entre seiscentos e
seis mil réis, sem apelação e agravo.
Participar da escolha do Juiz de Vintena.
De 1580 a 1640172
Manteve as mesmas atribuições da fase anterior, acres-
centando-se:
––––––––––
172
Alvarás de regimento do ouvidor-geral do Maranhão. In: Coleção cronológica da legis-
lação portuguesa, compilada e anotada desde 1603 [1603-1700]. Lisboa: Impressão de
J. J. A. Silva, 1854-1859, vol. 2, p. 387-389, e vol. 3, p. 116.

86
PODER E ESCRAVIDÃO

Servir de adjunto ao Ouvidor-geral, nos seguintes ca-


sos: quando este passar cartas de seguro e o parecer do
Governador for contrário; nas causas em que interpuse-
rem suspeição ao sobredito Ouvidor
De 1640 a 1808173
Manteve as atribuições da fase 1530-1580, acres-
centando-se:
Auxiliar o Governador-geral na resolução dos casos
não previstos no regimento de 14 de abril de 1655. Dar
parecer nos casos em que o Governador-geral man-
dar tirar devassa sobre o Provedor da Fazenda.

Procurador
Estabelecido em 1532, foi cunhado pelas Ordenações de
11.3.1521 e 11.1.1603. Eram, inicialmente, eleitos trienalmente
junto com os vereadores. Com o art. 80 da lei de primeiro de
outubro de 1828 esta função passa a ser nomeada para um exer-
cício nunca superior a quatro anos. A Câmara nomeava apenas
um Procurador, que seria afiançado por ela mesma debaixo de
sua responsabilidade ou por fiador idôneo. A ele competia:
De 1530 a 1580174
Demandar, para o Conselho, as penas ou coimas não
requeridas pelo rendeiro no devido tempo.
Cuidar dos reparos e consertos referentes a casas, fon-
tes, pontes, chafarizes, poços, calçadas, caminhos e
todos os outros bens do Conselho.
Requerer aos Vereadores e Oficiais responsáveis, atra-
vés do Escrivão da Câmara, o reparo dos bens não con-
sertados a contento.
––––––––––
173
Regimento de André Vidal de Negreiros, de 14.4.1655. In: MENDONÇA, Marcos Car-
neiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. 2, p. 699-714.
174
Ordenações Filipinas, Título LXIX, f. 378-379.
Regimento de Gaspar de Sousa, de 6.10.1612 (atribuição no 1). In: Raízes da For-
mação Administrativa do Brasil, vol. 2, vol. 1, p. 413-436.

87
Luciano R. Pinto

Fazer, ao fim de seu ofício, um levantamento do estado


dos bens do Conselho sob sua responsabilidade, en-
viando-o aos Vereadores.
Requerer e arrecadar a quantia estimada dos danos pro-
vocados por incêndios.
Servir de Tesoureiro do Conselho onde não houver este
ofício, guardando o seu requerimento.
OBS: Também teve o nome de síndico.

De 1580 a 1808175
Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1580,
acrescidas da seguinte:
Estar presente à posse e entrega do governo ao Chance-
ler e ao Provedor-mor que, por procuração do Gover-
nador, assumirem provisoriamente tal cargo.

2.2.2. Funções Camarárias


O art. 55 da lei de primeiro de outubro de 1828, deixa
claro ser de responsabilidade dos oficiais da Câmara nomear
funcionários segundo a necessidade da municipalidade. Cada
local possuía necessidades específicas e temos, portanto, um
número variado de funções entregues às câmaras. Estaremos,
no entanto, definindo aquelas ocupações presentes no Conse-
lho carioca em princípios dos oitocentos.

Juiz de Vintena
Estabelecido em 1532, tem por legislação as Ordena-
ções de 11.3.1521 e 11.1.1603. Tinha acesso ao cargo o
morador das localidades afastadas da sede do município, com
população de 20 a 50 habitantes. Era escolhido por eleição,
entre os homens bons da Aldeia, da qual participavam mem-
––––––––––
175
Regimento de Gaspar de Sousa, de 6.10.1612 (atribuição número 1). In: Raízes da For-
mação Administrativa do Brasil, vol. 2, vol. 1, p. 413-436.

88
PODER E ESCRAVIDÃO

bros da Câmara sob cuja jurisdição estava o povoado. Assim,


apesar de não atuar diretamente na Câmara, o Juiz de Vintena
pode ser visto como um agente judicial do Conselho para as
pequenas povoações. Eleito anualmente pelos Juízes da vila
ou cidade, pelos Vereadores e pelo Procurador, ao qual darão
juramento em câmara. Suas atribuições eram as seguintes:
De 1530 a 1808176
Conhecer e decidir verbalmente, das contendas entre os mo-
radores de sua jurisdição, até a quantia de no máximo
quatrocentos réis, sem apelação e agravo, nem abrir processo.
Não conhecer dos feitos sobre os bens de raiz.
Não conhecer dos feitos crimes.
Prender e entregar aos juízes ordinários do termo os
criminosos que praticarem delitos em sua jurisdição.
Determinar verbalmente as contendas que houver entre
os moradores da dita Aldeia, até a quantia de 100 réis. Se
a aldeia tiver entre 50 e 150 vizinhos, a quantia será de
até 300 réis. Se for de 100 vizinhos para cima, até 400
réis. Todas as quantias sem apelação nem agravo e ver-
balmente, sem sobre isso fazer processo.
Conhecerão as posturas dos Conselhos, das coimas e
danos e darão execução, com efeito, as ditas sentenças.
Não conhecerão de contenda alguma sobre bens de raiz.
Não conhecerão sobre crime algum. Poderão, entretanto,
prender os malfeitores que forem achados cometendo
crimes na Aldeia e seu limite, sendo-lhes mostrado man-
dado ou querelas. Os que forem presos deverão ser entre-
gues aos Juízes Ordinários de cujo termo for a dita Aldeia.
––––––––––
176
Primeiro livro das Ordenações, título 65. In: Código Filipino, p. 144.
Carta de poderes para o Capitão-mor criar tabeliães e mais oficiais de justiça de
20.11.1530. In: AVELLAR, Helio de Alcântara. História Administrativa do Brasil.
Brasília: FUNCEP / Ed. Universidade de Brasília, 1983, vol. 2, p. 177-178.

89
Luciano R. Pinto

Juiz Almotacé177
Regido pelas ordenações Filipinas e pela Provisão de
23 de março de 1568, atuava nas áreas da administração, jus-
tiça, policial e fazenda. O cargo foi abolido pelo Decreto de
26 de agosto de 1830. A ele competia:
Executar as posturas e vereações.
Fiscalizar a aferição dos pesos e medidas e o preço dos
comestíveis (mensalmente).
Executar as medidas fiscais do Conselho.
Tratar da limpeza da cidade ou vila.
Encarregar-se da polícia das povoações (fiscalização de
preços).
Fixar o abastecimento de gêneros, fiscalizando o seu
abastecimento para a localidade, incluindo a repartição
da carne entre os moradores.
Processar as penas pecuniárias impostas pela Câmara.
Fiscalizar o abastecimento dos gêneros alimentícios, os preços
de alguns deles, os salários dos oficiais ou pesos e medidas.
Evitar que os vendeiros fizessem avença com as partes
– por almotaçaria – no pescado chegado à praça; per-
correr a cidade ou vila, zelando pela sua limpeza.
Observação:
Constituíam a polícia do comércio interno dos Conselhos.
Dar apelação e agravo para os juízes de qualquer feito.
Cuidar para que os profissionais de ofício guardem as
determinações do Conselho.
Julgar as coimas do Conselho.
Impor penas com recursos para os juízes.
Julgar infrações de posturas.
Julgar causas de direito real relativa a obras e constru-
ções (fiscalizavam obras).
Observação:
Estavam sujeitos a jurisdição dos juízes ordinários, corregedores e
––––––––––
177
Ordenações Afonsinas (livro I, título XXVII).

90
PODER E ESCRAVIDÃO

provedores, sem apelação para o governador (assento de abril de


1751), o que significava subordinação destes funcionários fiscais
municipais às autoridades régias.

Almotacé
Criado em 1532, teve seu corpo legislativo segundo as
ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Eleitos mensalmente
pela Câmara, em número de dois. Foi extinto pelo art. 18 da
Disposição Transitória de 1832. A ele competia:

De 1530 a 1808178
Fiscalizar o abastecimento de víveres para a localidade,
fazendo cumprir as determinações do Conselho.
Processar as penas pecuniárias impostas pela Câmara
aos moradores.
Despachar rapidamente os feitos, sem grandes proces-
sos nem escrituras.
Dar apelação e agravo para os juízes de qualquer feito
que despachar.
Repartir as carnes dos açougues entre os moradores
do lugar.
Aferir mensalmente, com o Escrivão da Almotaçaria os
pesos e medidas.
Cuidar para que os profissionais de ofício guardem as
determinações do Conselho.
Zelar pela limpeza da vila ou cidade.
Fiscalizar as obras.
Dar cartas de privilégios.
Limpar e refazer caminhos, calçadas e pontes.
––––––––––
178
Primeiro livro das Ordenações, título 68. In: Código Filipino, p. 157-162.
Extinto pelo art. 18 da Disposição Transitória de 1832, como já se tornara inócuo em face
do art. 24 da Lei de 27.10.1827. Regimento das câmaras municipais do Império p. 131.

91
Luciano R. Pinto

Escrivão da Almotaçaria
A função foi criada em 1532 e tem sua legislação
segundo as Ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Era desig-
nado pela Câmara e competia-lhe:
De 1530 a 1808179
Escrever todas as achadas de gados e bestas, além de
todos os assentos de carniceiros, padeiros, regateiras
etc., que caírem em coima.
Escrever o nome de todas as pessoas que transgredirem
as posturas do Conselho.
Escrever todas as penas em que incorrerem os Almota-
cés não cumpridores de seu regimento, bem como apre-
sentá-los aos juízes no final de cada mês.

Escrivão da Câmara
Estabelecido em 1532, tem por legislação as Ordena-
ções de 11.3.1521 e 11.1.1603. Função designada pela Câma-
ra. Competia-lhe:

De 1530 a 1548180
Fazer anualmente um livro em que conste toda a receita
e despesa do Conselho.
Escrever em livro próprio os acordos dos Vereadores e
oficiais do Conselho sobre despesas deste.
Escrever nos feitos das injúrias verbais despachados na
Câmara por Juízes e Vereadores.
Escrever as cartas testemunháveis passadas pelos
Vereadores.
––––––––––
179
Primeiro livro das Ordenações, título 72. In: Código Filipino, p. 165-166.
180
Primeiro livro das Ordenações, título 71 (atribuições números 1-10). In: Código Filipi-
no, p. 164-165.
Carta de doação da Capitania de Pernambuco a Duarte Coelho, de 10.3.1534 (atri-
buição número 11). In: TAPAJÓS, Vicente. História Administrativa do Brasil, 2a ed.
DASP, 1965-1974, vol. 2, p. 193-202.

92
PODER E ESCRAVIDÃO

Escrever nas eleições dos Vereadores e oficiais da


Câmara.
Ter uma das chaves da arca da Câmara, onde se guar-
dam as escrituras deste.
Ler e publicar, na primeira sessão mensal da Câmara,
os regimentos dos oficiais e Almotacés do Conselho.
Escrever em livro próprio, os assentos de contas e
descargas de gado.
Escrever nas causas em que o Tabelião das Notas
for suspeito.
Auxiliar o ouvidor ou Juízes Ordinários nas funções de
Justiça.
De 1548 a 1580181
Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1548,
acrescidas das seguintes:
Fazer assento do juramento do Capitão-mor em livro
assinado e numerado pelo Corregedor (Ouvidor) ou
pelo Provedor da Comarca.
Fazer assento em livro dos habitantes do termo engaja-
dos nas ordenanças.
Fazer assento, no livro da Câmara, dos vigias indicados
pelo Capitão-mor e eleitos pela Câmara.
De 1580 a 1808182
Manteve as mesmas atribuições da fase 1548-1580,
acrescidas das seguintes:
––––––––––
181
Regimento dos capitães-mores de 10.12.1570 (atribuições números 1 a 3). In: Sistema ou
Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da
Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, vol. 5, p. 184-192.
182
Regimento de Francisco Giraldes, de 8.3.1588 (atribuição no 1). In: Raízes da Forma-
ção Administrativa do Brasil, vol. 1, p. 259-277.
Regimento dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e Ausentes,
de 10.12.1613 (atribuição no 2). In: Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. 2,
p. 481-492, e Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à
administração da Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, vol. 3, p. 142-160.

93
Luciano R. Pinto

Assentar, em livro próprio, a posse e entrega do gover-


no, com declaração do estado em que se encontram as
fortalezas, povoações, navios, artilharia, armas e muni-
ções existentes, com a assinatura de todos os presentes.
Fazer as execuções, penhoras e demais diligências ne-
cessárias à arrecadação da Fazenda dos Defuntos, caso o
Provedor dos Defuntos e Ausentes assim o determine.

Tesoureiro do Conselho
Estabelecido em 1532, tem por legislação as Ordena-
ções de 11.3.1521 e 11.1.1603, era eleito trienalmente e com-
petiam-lhe as seguintes atribuições:
De 1530 a 1548183
Receber, perante o Escrivão, as rendas da Câmara.
Arrecadar, de maneira a não se perder os Rendimentos
do Conselho não arrendados.
Arrecadar a terça pertencente ao rei, como a do Conselho.
De 1548 a 1808184
Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1548
acrescidas da seguinte:
Pagar, por mandado do Capitão-mor das Ordenanças, as
despesas com os exercícios militares e que lhe serão
levadas em conta.

Tabeliães das Notas


Criado em 20 de novembro de 1530, recebe legislação
das Ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Exercido por ofí-
cio, competia-lhe:
––––––––––
183
Primeiro livro das Ordenações, título 70. In: Código Filipino, p. 163-164.
184
Regimento dos Capitães-mores, de 10.12.1570. In: Sistema ou Coleção dos regimentos
reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazenda Real…, vol. 5.
Lisboa: 1718-1791, vol. 5, p. 190.

94
PODER E ESCRAVIDÃO

De 1530 a 1808185
Guardar os livros das notas até a sua morte.
Escrever, em livro próprio, todas as notas dos contratos
firmados.
Fazer todos os testamentos.
Fazer todos os inventários determinados por herdeiros e
testamenteiros dos defuntos, com exceção dos referen-
tes a órfãos, pródigos, ausentes e mortos sem herdeiros.
Fazer todos os instrumentos de posse das terras conce-
didas ou tomadas em virtude das escrituras das vendas,
escambos, aforamentos e outros contratos.
Escrever as receitas e despesas dos bens dos defuntos.
Fazer quaisquer cartas de compras, vendas, escam-
bos, aforamentos ou soldadas referentes que decor-
ridos três anos.

Alcaide Pequeno
Oficial de Justiça encarregado de defender a autoridade
judicial local, a função foi criada em 1532 e tem sua legisla-
ção segundo as Ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Aces-
savam ao cargo aqueles cidadãos escolhidos pela Câmara de
lista tríplice apresentada pelo Alcaide-mor.
De 1530 a 1548186
Policiar dia e noite as cidades e vilas que lhe coube
vigiar, acompanhado por um tabelião indicado pelo
Conselho.
Prender por mandado dos Juízes ou em flagrante delito.
Trazer os presos às audiências perante os Juízes.
Fiscalizar a atuação dos Almotacés com relação a car-
nes e pescados.
––––––––––
185
Primeiro livro das Ordenações, título 78. In: Código Filipino, p. 179-185.
186
Primeiro livro das Ordenações, título 75. In: Código Filipino, p. 172-176.

95
Luciano R. Pinto

De 1548 a 1750187
Manteve as mesmas atribuições de fase 1530-1548,
acrescidas da seguinte:
Fazer as execuções, penhoras e demais diligências
necessárias à arrecadação da fazenda dos defuntos, caso
assim o determine o Provedor dos Defuntos e Ausentes.

De 1750 a 1808188
Manteve as mesmas atribuições da fase 1548-1750,
acrescidas da seguinte:
Executar as diligências ordenadas pelos Intendentes do
ouro.

Porteiros
Estabelecido em 1532, tem por legislação as Orde-
nações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Função nomeada, con-
forme a lei de primeiro de outubro de 1828, podendo ter
um ou mais ajudantes, também nomeados conforme a
necessidade, e encarregados das execuções de suas ordens
com gratificação paga pelas rendas do Conselho. Suas
atribuições eram as seguintes:

De 1530 a 1580189
Fazer penhoras onde residirem e nos lugares próximos.
Apregoar as deliberações da Câmara.

––––––––––
187
Regimentos dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e Ausentes,
de 10.12.1613 (atribuição no 1). In: Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. 2,
p. 481-492; e Sistema ou Coleção dos Regimentos Reais: contém os regimentos perten-
centes à administração da Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa, 1718-1791, vol. 3, p. 142-160.
188
Regimento das intendências e casas de fundição, de 4.3.1751. In: Sistema ou Coleção
dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazen-
da Real…, vol. 4, p. 503-516.
189
Primeiro livro das Ordenações, título 87. In: Código Filipino, p. 205-206.

96
PODER E ESCRAVIDÃO

De 1580 a 1808190
Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1580,
acrescidas da seguinte:
Fazer as execuções, penhoras e demais diligências ne-
cessárias à arrecadação da Fazenda dos Defuntos, caso o
Provedor dos Defuntos e Ausentes assim o determine.

Provedor dos Registros


Criado pelo Regimento das Intendências e casa de fundi-
ção, de 4.3.1751. No regimento anterior de 3.12.1750. Até à sua
criação existia o Contratador das Entradas/Administrador dos
Contratos, suas atribuições, contudo, não são claras, assim, não
nos foi possível determinar se ambos são funções distintas ou
apenas nomenclaturas diferentes. Seja como for, ao cargo de
Provedor dos Registros cabia o seguinte:
De 1750 a 1808191
Remeter, mensalmente ao Intendente, lista dos comboiei-
ros e comerciantes que entrarem e saírem de suas respec-
tivas comarcas, declarando seus nomes, de onde vêm,
número de negros, cavalos, gados e cargas que carregam.

Carcereiros
Designado pelos Vereadores e Juízes Ordinários da
Câmara. Suas atribuições eram as seguintes:

––––––––––
190
Regimento dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e Ausen-
tes, de 10.12.1613 (atribuição número 1), em R. F. A., vol. 2, p. 481-492; e Sistema ou
Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da
Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, vol. 3, p. 142-160.
191
Regimento das Intendências e casa de fundição, de 4.3.1751. In: Sistema ou Coleção
dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazen-
da Real…, vol. 4, p. 503-516.
Regimento para a nova forma de cobrança do direito senhorial dos quintos dos mora-
dores das Minas Gerais, abolida a da capitação, que de antes se praticava, de 3.12.1750. In
Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à adminis-
tração da Fazenda Real.., vol. 6, p. 316-324.

97
Luciano R. Pinto

De 1530 a 1808192
Levar os presos às audiências com os juízes e soltá-los
quando estes o determinarem.
Impedir qualquer pessoa, que lhe for entregue presa, de
andar em liberdade.
Impedir que qualquer preso fosse solto sem mandado
da Justiça.

Evidente, que outras funções existiam, variando no tem-


po e no espaço, como Demarcador, Cobrador, Inspetor de
Quarteirão, Fiscal, Agente de Portuário, Fiscal Suplente, 193
Meirinho,194 Alealdador,195 Alferes,196 Escrivão dos Órfãos,197
Juiz dos Órfãos,198 Perito,199 e outros que neste estudo não nos
cabe aprofundar, uma vez que a Câmara Municipal não consti-
tui nosso objeto principal, mas, tão-somente, o ambiente em
que este se insere. As ocupações concelhias aqui exploradas
existiam por ocasião da chegada da família real ou foram pos-
teriormente criadas e, por isso, compõem aquela estrutura
administrativa do poder local, limitada pela centralização pós
1750. Cabe-nos agora a tarefa de precisar nosso objeto central
neste trabalho: o Avaliador de escravos.

––––––––––
192
Primeiro livro das Ordenações, título 77. In: Código Filipino, p. 178-179.
193
Arquivo Histórico da Cidade de Florianópolis, Caixa 11, livros 33 e 44.
194
Carta de doação da Capitania de Pernambuco a Duarte Coelho, de 10.3.1534. In História
Administrativa do Brasil, vol. 2, p. 193-202.
195
Regimento de Antônio Cardoso de Barros, Provedor-mor da Fazenda, de 17.12.1548.
196
Regimento dos Capitães-mores, de 10.12.1570. In: Sistema ou Coleção dos regimentos
reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazenda Real…, vol. 5,
p. 183-194.
197
Primeiro livro das Ordenações, título 89. In: Código Filipino, p. 220-222.
198
Primeiro livros das Ordenações, título 88. In: Código Filipino, p. 206-220.
199
Alvará regulando as minas de ouro e diamantes na América com diversas providências
e novos estabelecimentos, de 13.5.1803. In: Coleção cronológica da legislação portu-
guesa, compilada e anotada desde 1603 (1802-1810), p. 202-222.

98
PODER E ESCRAVIDÃO

99
Luciano R. Pinto

100
PODER E ESCRAVIDÃO

3
O AVALIADOR DE ESCRAVOS:
UM TIPO ESPECÍFICO DE PODER

3.1. A construção da realidade


A sociedade é um produto do ser humano que pensa,
relaciona-se, trabalha e dá significado. De forma que realida-
de é o reconhecido pelo entendimento e verdade o legitimado
por aqueles que devem, a todo o momento, estar ressignifi-
cando o real. O mundo, portanto, ganha sentido na represen-
tação que dele fazemos e é somente na relação entre o sujeito
pensante e o objeto pensado que se pode estabelecer a reali-
dade. Tudo o que existe está em função do pensamento ou
das representações que fazemos do mundo objetivo.
Mas o mundo não existe apenas como representação.
Para que determinada representatividade se efetive pela legi-
timação ela precisa habitar antes na vontade das individuali-
dades. Existe um mundo pensado, que, não necessariamente,
está em conformidade com o “real”, mas que existe enquanto
vontade e desejo.
O homem, portanto, vive intermediando as representa-
ções que faz do mundo e as vontades que alimenta. Como a
sociedade é anterior aos indivíduos, estes absorvem constru-
ções já cristalizadas e consentidas, o que não quer dizer que

101
Luciano R. Pinto

estes mesmos indivíduos não possam ressignificar a realida-


de, alterar ou mesmo substituir a representação social vigen-
te. A representação que temos da realidade, portanto, é fruto
de uma construção, resultado de uma vontade anterior, ou
vontades, cujos indivíduos nas suas relações sociais legitima-
ram, consentiram e estabeleceram um determinado regime de
verdades que norteia a vida social.
O século XIX carioca, em cerca de seu primeiro quar-
tel, possuía uma dada percepção da realidade, de forma que
todos os indivíduos aceitavam aquela estrutura que dava sig-
nificado ao mundo social, legitimando-o e tendo-o como
natural e espontâneo. Chamaremos de habitus200 esta incor-
poração das representações produzidas. Ele é a mediação do
indivíduo com a sociedade, o elo de coerência que envolve a
todos e garante a socialização através da incorporação das
diversas normas, crenças e valores produzidos pela socieda-
de, estruturando-se segundo aquele regime de verdades pro-
duzido, que passa agora a ser natural e espontâneo, habitual.
Neste sentido, o habitus herdado influencia diretamente na
maneira de pensar dos indivíduos, na estrutura da personali-
dade e na economia psíquica,201 de forma que cada sociedade,
e (ou) grupos que a compõe, possui formas diversas de rela-
cionar-se e dar significado à realidade.
Na primeira metade do século XIX, a sociedade da cor-
te luso-brasileira possuía um habitus baseado na ostentação, a
um só tempo, diferenciado e excludente. Na capital do Impé-
rio, não havia outro projeto político-social, que não o de con-
––––––––––
200
Habitus, corresponde à antiga noção aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em
habitus. Segundo Pierre Bourdieu, “é um conhecimento adquirido e também um haver,
um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a
disposição incorporada, quase postural.” (BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 61).
“O habitus é um conceito central da sociologia bourdieusiana. Ele garante a coerência entre
a concepção da sociedade e a ação do agente social individual; fornece a articulação, a mediação
entre o indivíduo e o coletivo (…) Esse conceito está na base da reprodução da ordem social.
Por isso, como princípio de conservação, ele também pode tornar-se um mecanismo de inven-
ção e, consequentemente, de mudança.” (BONNEWITZ, Patrice. Op. cit., p. 75).
201
Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol .1. Op. cit., p. 21.

102
PODER E ESCRAVIDÃO

servação das forças características da sociedade estamental,


visando à conservação do trabalho escravo, e, portanto, do
status quo dominante, que em torno de si garantia o funcio-
namento político, social e econômico do Brasil.
No jornal Aurora Fluminense, aos 18 de janeiro de
202
1828 a notícia da abolição do tráfico de escravos causava
alvoroço, uma vez que no ano anterior o império Brasileiro e
a Grã-Bretanha haviam assinado um tratado comercial visan-
do sua extinção. O curioso é perceber a perplexidade de
todos, preocupados com “o choque que este acontecimento
[iria] produzir”, pois, temiam que a “repentina penúria de
braços”, abalasse a sociedade brasileira de tal forma que difi-
cilmente se levantasse sem o trabalhador cativo.
Na lógica daquela sociedade era “natural” que o negro
trabalhasse. O espaço social constituído no século XIX na
cidade do Rio de Janeiro não previa dignidade no trabalho
braçal, coisa de escravo e de gente de segunda estirpe. A uti-
lização da mão de obra cativa estava em todos os setores da
sociedade, de forma que, possuí-los significava status, resul-
tado de um constructo que identificava o trabalho com a
escravidão. Neste sentido, valorizava-se o ócio. Unhas com-
pridas e desfiles de fim de tarde acompanhado de um cordel
de escravos demonstravam o orgulho da ostentação senhorial.
Era comum vislumbrar um escravo carregador, levando ape-
nas um lápis de cera para seu contratante203 ou mesmo mu-
lheres, que incapazes de carregar seu próprio lenço, confia-
vam-no às suas acompanhantes.204
O habitus, da primeira metade dos oitocentos, previa
que o homem de corte vivesse pelos privilégios e do trabalho
de seus escravos. De forma que o cativo, não era o grande
excluído no sistema compulsório, ele pertencia ao centro des-
––––––––––
202
Biblioteca Nacional, PS-SOR 36 (1).
203
DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 196.
204
Ibidem.

103
Luciano R. Pinto

te sistema e ao mundo da ordem. O escravo era a razão de


ser, o coração do espaço social constituído, a marca distintiva
e hierarquizante. O branco pobre e livre era o grande excluí-
do. Não tinha onde trabalhar e nem dinheiro para comprar um
escravo, então, vivia na marginalidade. Cidadão de segunda
categoria representava a desordem. Os negros faziam de tudo,
trabalhando em diversos setores da economia, enquanto o
branco pobre se via à margem da sociedade. Eis a razão de
ser da lusofobia, sentida por muitos brasileiros.
No entanto, aqueles indivíduos pertencentes ao mundo
da desordem desejavam inserir-se no mundo da ordem. Eles
legitimavam pela vontade a estrutura excludente. Quem não
possuía escravos, desejava-os e quem os possuía gozava de
seu senhorio. João Fragoso e Manolo Florentino, como vimos
anteriormente, ao analisarem inventários post-mortem entre
os anos de 1790 a 1830 no Rio de Janeiro, apresentam um
fato marcante relativo ao uso da mão de obra escrava. “Quase
todos os homens livres detentores de bens a legar possuíam
ao menos um escravo (…) Nunca menos de 2/3 dos mais
pobres inventariados do agro e da urbe carioca detinham
escravos”.205
A esmagadora maioria dos habitantes possuía pelo
menos um escravo, ou uma escrava, encarregada dos afaze-
res domésticos. Os que escapam a esses serviços são envia-
dos à rua pela manhã, para trabalharem por sua própria con-
ta e obterem o máximo de rendimento possível.206

Este testemunho de James Hardy Vaux, escritor inglês


que por estas bandas esteve em 1807, indica mais que apenas
o valor econômico que o escravo poderia gerar, mas o status
que adquiriam seus proprietários. “Pode-se argumentar que
os mais pobres (…) possuam escravos, menos em função de
seu baixo preço do que pela força simbólica do „ser senhor de
––––––––––
205
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.
206
VAUX, James Hardy. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 305.

104
PODER E ESCRAVIDÃO

escravos‟”.207 Não possuí-los significava estar fora daquilo


que se concebia por boa sociedade, correndo o risco de tor-
nar-se, portanto, indivíduo de segunda categoria.
A marcante dependência da escravidão reiterava, por-
tanto, uma hierarquia que se norteava à sombra do trabalho
compulsório, de forma que a ociosidade ganhava ares de
fidalguia e funcionava como instrumento de inclusão subor-
dinada da massa cativa, e, sobretudo, exclusão daqueles
homens livres pobres marginalizados.
Tudo isso, para dizer que o habitus, como sistema de
disposição duradouro, na sociedade de corte carioca, passava
pelo valor distintivo da hierarquização baseada na posse do
trabalhador cativo. No século XIX, não havia homem ou
mulher que pensasse a vida social sem o trabalhador escravo.
Todos buscavam os benefícios que a posse de escravos poderia
proporcionar, não apenas com fins pecuniários, mas, também,
simbólicos. Por isso, até os mais pobres os desejavam e mes-
mo o negro liberto, se o pudesse, adquiriria um cativo para si.
Esse modo de perceber a realidade, identificando o tra-
balho como coisa de escravo, levou muitos homens a lucra-
rem divisas e prestígio na lida com os cativos. O próprio
Estado beneficiava-se com o mercado de almas, daí o fim, de
fato, do tráfico atlântico apenas em 1850 e a existência de
alguém experimentado e nomeado oficialmente, para precisar
o valor dos escravos, engordar os cofres públicos e reintegrar
braços ao mundo do trabalho. Deve-se a isso, o fato de o
habitus constituir-se como estrutura estruturada e estrutu-
rante, por isso, seus valores tendem a perpetuar-se. Assim, a
ostentação ociosa do homem oitocentista, como estrutura es-
truturada, tende a condicionar o comportamento nos novos
membros estruturando-os segundo a construção legitimada
pelo consenso. As formas de percepção da realidade, seus
modos de ver, sentir e interagir no grupo social, devido ao
––––––––––
207
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.

105
Luciano R. Pinto

processo de socialização que torna natural o constructo, reite-


ra-se num sistema de disposições duradouras, que são interio-
rizadas, consentidas, reformuladas, ou não, e transmitidas.
Neste sentido, fica fácil compreender a indignação sen-
tida pela sociedade carioca depois do tratado versando sobre
o fim do tráfico de africanos, firmado entre Brasil e Inglaterra
em 23 de novembro de 1826 e ratificado aos 13 de março de
1827,208 que decerto, em 18 de janeiro de 1828, data de
publicação da notícia, alguma agitação já ocorria. Havia sim,
muita discussão sobre a validade de tal acordo. Muitos depu-
tados acreditavam em intromissão da política externa inglesa.
O General Cunha Mattos “considerava o ato como derrogató-
rio da honra do País, de seus interesses, dignidade, indepen-
dência e soberania”.209 O acordo estipulava um prazo de três
anos para que o tráfico se tornasse ilegal. A medida elevou as
importações de africanos de 28.750 cabeças em 1827, para
45.670, em 1828 e 47.630, em 1829.210 Na prática, não houve
muito abalo real, pois, em 7 de novembro de 1831, data do
decreto brasileiro definindo de uma vez por todas sua ilegali-
dade, os números retornaram à média normal das importações
antes do acordo com a Inglaterra, somando uma média de
28.500 africanos. No entanto, o medo de perder a mão de
obra escrava era constante.
Fazia parte do habitus, na primeira metade dos oitocen-
tos, a escravidão africana. Era “natural”, visto como legítimo
e consentido pelo acolhimento da estrutura construída, o apri-
sionamento do negro. Não faltavam, inclusive, hipóteses
científicas que justificassem o fenômeno. Decerto, muito
mais uma crença e por isso, parte integrante do habitus, de
––––––––––
208
CALÓGERAS, J. Pandiá. A Política Exterior do Império, vol. II – O Primeiro Reinado.
Brasília: Senado Federal, 1998, p. 500.
209
Ibidem, p. 501-502.
210
FORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico Atlântico
de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (Séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1995, p. 59.

106
PODER E ESCRAVIDÃO

então, era o fato de não se considerar o negro humano e o


mulato, como podemos ver no testemunho de Carl Seidler:
Apenas obra de remendo da natureza, por isso são
peritos remendões (…) No Brasil o negro verdadeira-
mente não é melhor que um irracional e não se deve tra-
tá-lo como homem, por mais que semelhante afirmação
pareça inumana. 211

Em Debret, vemos semelhante afirmação: “os sábios na-


turalistas concordam em que o negro é uma espécie à parte da
raça humana e destinada, pela sua apatia, à escravidão, mesmo
em sua pátria”.212 O habitus, portanto, enquanto sistema de dis-
posições estruturantes e duradouras, tende a promover um modo
de ser próprio, na qual os indivíduos adquirem esquemas de
percepção e de ação. As práticas são geradas pelo habitus, que
está na base da identidade coletiva, condicionando o comporta-
mento dos indivíduos, uma vez que a visão de mundo decorre
da formação do habitus transmitido. Pode haver mudança, no
entanto, o habitus é um forte fator de reprodução social, ten-
dendo a promoção reiterada do costumeiro, o que concorda
com o projeto arcaizante da aristocracia oitocentista, muito
preocupada com a preservação da sociedade estamental.
Traço marcante deste habitus arcaizante é o próprio
modo de ser hierárquico, baseado na posse de bens, pecuniá-
rios e “almas”. A estrutura vigente possuía um lócus de poder
emanador, a Câmara Municipal. A elite camarária, fundada
inicialmente no grande proprietário rural, estende à urbe seus
domínios e acumula o que há de comum em todas as aristo-
cracias: riqueza, poder e autoridade.213 Tem por característi-
cas essenciais o orgulho, a tradição familiar214 e religiosa.
Para exercer os ofícios de governança disponíveis nas respec-
––––––––––
211
SEIDLER, Carl. Op. cit., p. 47, 52.
212
DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 530.
213
PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 289.
214
FREIRE, Gilberto. Op. cit., p. 1043.

107
Luciano R. Pinto

tivas municipalidades, os indivíduos, desejosos de participa-


ção política, deveriam se mostrar aptos ao seu exercício. Esta
aptidão estava vinculada ao predicado da cidadania.
Como vimos anteriormente, “esperava-se que esses
homens bons fossem donos de propriedades, residentes na ci-
dade, incontaminados por origens artesãs ou por impureza
religiosa ou ética”.215 O indivíduo, considerado cidadão, de-
via ostentar um determinado modo de ser que tende a perpe-
tuar aquele constructo, ou regime de verdade, que lhe promo-
veu. A manutenção da ordem vigente é a garantia do bem-
-estar social de determinados sujeitos que se beneficiavam
com sua manutenção e preveem também a conservação da
desordem. Os considerados desqualificados deviam legitimar
a estrutura construída a fim de que eles pudessem perpetuar-
se temporalmente. Existem muitas formas de promoção, a
mais comum é a nomeação.
Mesmo que um determinado indivíduo não ocupasse
cargo de prestígio, dependendo de sua posição no espaço
social, a simples participação, mesmo que modesta, em de-
terminado grupo de poder, já seria o suficiente para promover
o consentimento do regime de verdade. O título é uma marca
distintiva “que recebe o seu valor da posição que ocupa num
sistema de títulos organizados hierarquicamente”.216 O título
contribui, portanto, para a percepção social pessoal e sua
localização hierárquica no grupo de poder nomeador e entre
seus pares.
A pura e simples associação a um determinado grupo, é
capaz promover ou excluir determinadas pessoas da luta de
todos contra todos. Se o poder se exerce em muitos sentidos e
em direções diversas, isso significa, enquanto possibilidade,
que um determinado agente, apenas pelo consentimento e
––––––––––
215
SCHWARTZ, Stuart B. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as
Periferias. Op. cit., p. 405.
216
BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 148.

108
PODER E ESCRAVIDÃO

reprodução, torna-se portador e representante de determinada


verdade, o que o distingue socialmente, promove e propicia,
entre seus pares, algum prestígio e status. Evidentemente, o
exercício do poder, seja ele qual for, restrito, parcial ou sim-
plesmente aparente, ainda assim, é uma forma de exercê-lo
em determinado sentido. O desejo estimula o interesse e pro-
move o consentimento, contribuindo, portanto, com a reitera-
ção do “regime de verdade” hegemônico. O poder se difunde
pela adesão e satisfação do desejo. Isso faz com que ele exista
não apenas nas camadas superiores e dominantes da sociedade,
mas também entre os mais simples e subordinados.
O discurso promove o desejo, envolve e condiciona
comportamento. Por isso, está fortemente alicerçado pelo po-
der e, também, pelo desejo. Ao mesmo tempo em que promo-
ve a uns, exclui a outros. Ele separa, seleciona e rejeita. Nas
sociedades “a produção do discurso é ao mesmo tempo con-
trolada, selecionada, organizada e redistribuída por certo nú-
mero de procedimentos que tem por função conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório (…)
e temível materialidade”217. No discurso encontram-se proce-
dimentos de exclusão e de promoção, que se materializam na
concretude individual cotidiana a partir de seu atingimento. O
discurso, portanto, não é algo aleatório, mas intencional, com
objetivos norteados pelo desejo de poder.
O desejo de poder promove verdades, como a um regi-
me, e por isso, traz à baila seu oposto. Caso contrário, como
poderia haver exclusão? Ao estabelecer verdades, o procedi-
mento de exclusão inerente ao discurso promove à categoria
de falso tudo aquilo que se oponha à “verdade” e impuro,
tudo o que se opõe ao “puro”. Um discurso legitimado ganha
ares de verdade. A partir daí estabelece o falso como aquele
não-adequado à verdade legitimada. Temos assim, especifi-
cado a dupla significação do discurso. O estabelecimento de
––––––––––
217
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 8-9.

109
Luciano R. Pinto

uma verdade, ou de um regime de verdades, estigmatiza a di-


ferença, e com ela o diferente, exercendo pressão coercitiva.
Daí resulta a adesão de uns pela legitimação induzida através
da força do discurso ou mesmo forçada pela hipótese de ex-
clusão e medo de suas consequências. Evidente, que o discur-
so promove, de fato, exclusão àqueles obstinados no conside-
rado “falso” e “errôneo”. A vontade de verdade, portanto, é
uma “prodigiosa máquina destinada a excluir todos aqueles
que, ponto por ponto, em nossa história, procuram contornar
essa vontade de verdade”218.
Assim, os membros daquela dita boa sociedade deve-
riam endossar o discurso que regulava o regime de verdades
ou a estrutura estruturada que representavam. Representar, é
tornar presente aquilo que o move e, também, apossar-se do
prestígio do discurso legitimado. Neste sentido, indivíduos
oficialmente e socialmente reconhecidos como portadores de
um determinado discurso, são ostentadores de signos distinti-
vos exclusivos aos considerados mais qualificados.
Na cidade do Rio de Janeiro, os qualificados aos cargos
do poder local oitocentista deveriam ostentar a distinção, a
diferença e a desigualdade. De modo geral, identificamos o
conceito de pureza como pré-requisito básico deste modo de
ser, acompanhado, evidentemente, do capital econômico. Ser
livre de impureza religiosa ou ética seria uma forma de
garantir a perpetuação da estrutura arcaica baseada no traba-
lho compulsório. Evidente que este ideal de pureza faz parte
daquele conjunto de regimes de verdade, da estrutura ideal
elaborada por determinada representação da realidade.
Só existe o puro se algo for considerado impuro. Puro
e impuro são conceitos aplicáveis conforme a representação
de realidade ostentada, notoriamente ligada à noção de or-
dem, colocando cada coisa no seu “justo lugar”. “O oposto
da „pureza‟ – o sujo, o imundo, os „agentes poluidores‟ – são
––––––––––
218
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 20.

110
PODER E ESCRAVIDÃO

coisas „fora do lugar‟”.219 Neste sentido, o branco pobre, o


negro forro ou o mestiço não poderiam jamais ocupar um
cargo junto à Câmara Municipal. Eles, como “corporificações
da sujeira” são um obstáculo à manutenção da ordem e à
organização do ambiente social. O mundo da desordem desa-
fia o mundo da ordem, mas seu sustento é essencial à sobre-
vivência do regime de verdade. Enquanto a estrutura é legi-
timada, o status quo de determinada elite se mantém na or-
dem das coisas verdadeiras.
O Avaliador de escravos é um caso típico de agente legi-
timador da estrutura e do regime de verdade. A gênese desta
funcionalidade pode estar ligada ao crescimento da importância
da cidade que entre os anos de 1790 e 1840 constituiu-se no
centro econômico e político do sudeste brasileiro.220 Dois fato-
res ocorridos nos setecentos contribuíram para a integração da
capitania no mercado atlântico: a descoberta do ouro na região
das minas e o açúcar fluminense. Em meados do século, 1/3 dos
escravos importados na colônia permaneciam no Rio de Janeiro.
Seu porto crescia em importância, conhecendo maior desenvol-
vimento após a chegada da família real em 1808.
A marcante dependência da mão de obra cativa, portan-
to, pode explicar-se, na própria razão de ser da colonização e,
mesmo, na condição social que tal domínio proporcionava.
Promover a manutenção da ordem, com o ingresso de novos
braços ao mundo do trabalho era necessário à conservação de
uma sociedade agrária e da elite dominante, cujo projeto
arcaizante, incluía estratégias de manutenção. Enquanto o
mercado Atlântico animava a sociedade com “novos braços”,
o Avaliador reintroduzia “braços já gastos”, mas ainda úteis.
Leilões de Ladinos (negros aculturados e, por vezes, conhe-
cedores de algum ofício), vendas informais, anúncios em jor-
––––––––––
219
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998, p. 14.
220
FRAGOSO, João Luís. Op. cit., p. 305.

111
Luciano R. Pinto

nais, aluguéis… animavam as praças da cidade. Mas onde


estava o Avaliador dos escravos?
O Avaliador de Escravos surge neste contexto de cres-
cimento econômico e maior utilização da mão de obra cativa.
Não estava a serviço de particulares, mas do próprio Estado.
Era a legalidade que tomava as ruas. O oficial da função,
licenciado por um ano gerava divisas aos cofres públicos, ao
apreçar o escravo para ser leiloado e, assim, mediava o rein-
gresso dos escravos ao mundo do trabalho, da mesma forma
que, reiterava em nome do Estado a hierarquia escravista e
seu status quo.
O primeiro sinal indicativo de sua presença estava nos
anúncios de jornal. O Diário do Rio de Janeiro, em maio de
1822, trouxe dois anúncios de arrematações. O primeiro ocor-
reria na Praça do Juízo da Conservatória dos Moedeiros, no
dia 9 daquele ano, onde se arrematou dois escravos. Nada
incomum, se não fosse as avaliações disponíveis no Cartório
da rua da Alfândega N. 252.221 O mesmo ocorreu com uma
arrematação de um sítio na Penha, feita no mês de maio do
mesmo ano. Leiloado de porteira fechada com diversos bens,
inclusive nove escravos. Tudo estava avaliado e disponível
em inventário na casa do Escrivão de Órfãos.222
A criação da função na cidade do Rio de Janeiro é, no
entanto, bem anterior ao anúncio das avaliações. Remonta à
lei de 20 de Junho e 25 de Agosto de 1774…
… por q. Sua Mage há por bem de promulgar em benefício
dos seos vaçalos para que os bens penhorados aos executa-
dos se não rematem em praça pública sem que primeiro
sejão avaliados por pessoas peritas e inteligentes que os
saibão avaliar, nomeados pelas câmaras dos seos respecti-
vos Districtos…223

––––––––––
221
BN: PR-SPR 5 (1): Diário do Rio de Janeiro, dia 7 de maio de 1822, no. 6, p. 22.
222
BN. PR-SPR 5 (1): Diário do Rio de Janeiro, dia 7 de maio de 1822, no. 6, p. 23.
223
AGCRJ, 6-1-10, f. 16.

112
PODER E ESCRAVIDÃO

Sabemos, contudo, que a gênese da função é da década


de trinta daquele século. Em julho de 1808, o Procurador da
Câmara pediu a Antônio Martins Pinto de Britto, Escrivão do
Senado, que lhe certificasse o teor da Provisão Régia de 22
de setembro de 1733 para certificar-se da instância nomeado-
ra da função. O resultado foi o seguinte:
Certifico que Revendo o Livro de Registros de Ordens
Reaes que no Senado da Camara servio, nelle a folhas trinta
e sette verso se acha o Registro da Provizam do theor, e
forma seguinte:
Registro de Provizam de Sua Magestade em que há por
bem que os oficiaes digo que os oficios, e provimentos dos
oficiaes da Ventesia, Capitam do Mato, e avaliadores, per-
tencem a câmara [grifo nosso], e não aos governadores.
Dom João por Graça de Deos, Reÿ de Portugal, e dos
Algarves da quem, e dalem mar em África Senhor de Guiné
&. 224

Consideramos, no entanto, que a efetivação do ofício na


cidade do Rio de Janeiro, apenas em 1774, tendo por primeiro
avaliador de escravos Jerônimo Pereira Guimarães, que atuou
entre os anos de 1775 e 1777,225 surgiu da necessidade de orga-
nizar a crescente utilização da mão de obra cativa e de promover
a manutenção do mundo da ordem. Não podemos perder de vis-
ta que a gênese do ofício, até aqui descrito, está fortemente
imbricada com comércio de escravos, que, no século XVIII, foi
atividade importante para o sudeste, tanto na extração de metais
preciosos como no cultivo da agricultura. Com a descoberta de
ouro na região das minas cresceu o número de importações com
vista na ocupação e exploração das datas.
Entre 1715 e 1727, do Rio de Janeiro para Minas
saíam anualmente cerca de 2.300 cativos. Pode-se pensar
que, nessa época, devido ao débil desenvolvimento da
agricultura fluminense e à espantosa alta dos preços dos

––––––––––
224
AGCRJ, 6-1-11, f. 45v.
225
AGCRJ, 6-1-10, f. 2.

113
Luciano R. Pinto

escravos ocasionada pela descoberta do ouro, a capitania do


Rio de Janeiro consumisse apenas 1.000 africanos por ano.
Importando, pois, 3.300 escravos/ano, o porto carioca reti-
nha cerca de um entre cada cinco escravos dos 15.000
anualmente recebidos pela colônia entre 1721 e 1730.226

Na década de 1730 a colônia importou cerca de 16.600


africanos/ano. Sendo que deste total 1/3 passou a permanecer
no Rio de Janeiro. Do porto de Luanda – maior exportador de
africanos ao sul do Equador – entre 1723 e 1771, 203.904
escravos deram saída, metade deles destinava-se ao Rio de
Janeiro. “Diante destes números, não seria de todo absurdo
pensar que o porto carioca tenha absorvido no mínimo 50%
do total de exportações de africanos para o Brasil durante o
século XVIII, ou seja, mais ou menos 850.000 africanos”227
Com a crise do ouro, ocorre “a reanimação da agricultu-
ra brasileira provocada pelas reformas pombalinas (…) [acom-
panhada pela] demanda por escravos na década de 1760 – pela
primeira vez desde o colapso do tráfico para Minas Gerais”228
A preocupação com a agricultura fomentou, principalmente a
partir das décadas de 1780 e 90, a busca por escravos na África
Central Ocidental por comerciantes do Rio de Janeiro.229
A cidade do Rio de Janeiro, portanto, concentrou de
maneira intensa e crescente uma população escrava que sem-
pre esteve sujeita as diversas negociações no mercado de
ladinos. A importação de escravos era constante e embora
suas motivações oscilassem no tempo é inegável o fato de
que já no século XVIII a população escrava no Rio de Janeiro
era maior que a livre. Conforme o Almanaque do Rio de
Janeiro, de 1779, mais da metade da população da cidade era
––––––––––
226
FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit., p. 45.
227
Ibidem, p. 46.
228
PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sombra. Angola e Brasil nas rotas do Atlân-
tico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 35.
229
Ibidem, p. 45.

114
PODER E ESCRAVIDÃO

escrava.230 As ruas do Rio “eram habitadas por soldados do


Regimento dos pretos forros, os capoeiras, negros escra-
vos, padres, mendigos e comerciantes a varejo. As ruelas
do Rio mostravam-se repletas de negros”.231 A presença do
negro nas diversas atividades da cidade é um fato marcante
para os viajantes estrangeiros, que muito se surpreendiam
com o “… número inacreditável de negros e mulatos”.232
Pierre Sonnerat, navegador francês, que escreveu este
comentário de 1748, nos fala de um “número inacreditá-
vel” e acrescenta: “o Rio de Janeiro é um verdadeiro for-
migueiro de negros”233.
Embora não exista precisão em sua fala, ela nos apre-
senta um forte vestígio da mão de obra cativa e urbana, cuja
presença não lhe passou despercebida. Esse fato fica evidente
no momento do seu desembarque, onde, segundo ele, “uma
prodigiosa multidão de mulatos e negros investiram contra
nós. Teríamos passado maus bocados se não estivéssemos
com um condutor, o qual, usando de sua autoridade, afastou a
população curiosa e nos livrou do incômodo”.234
O número de escravos nas freguesias urbanas crescia e
superava as freguesias rurais. O censo de 1821 nos mostra
claramente que nas freguesias urbanas (Candelária, S. José,
Santa Rita, Sacramento e Santana) o total de escravos era de
36.182, enquanto nas rurais (Engenho Velho, S. João da
Lagoa, Irajá, Jacarepaguá, Inhaúma, Guaratiba, Campo Gran-
de, Ilha do Governador, e Paquetá) a população escrava esta-
va reduzida a pouco mais da metade da população cativa nas
áreas comerciais: 18.908. 235
––––––––––
230
Almanaque do Rio de Janeiro (1779) In: PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio
Sombra. Op. cit., p. 103.
231
Ibidem, p. 104.
232
SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 211.
233
Ibidem, p. 212.
234
Ibidem., p. 192.
235
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit. p. 48.

115
Luciano R. Pinto

Marquês do Lavradio, em 1774, tratando do assunto


das enfermidades dos negros novos e do mercado do Valongo
confirma o grande número de escravos na cidade:
[Dos] imensos negros novos que vêm dos postos de
Guiné e Costa da África (…) se acham sempre cheias a
maior parte das ruas, e casas dos comerciantes, que os cos-
tumam vender, sem jamais se extinguirem os mesmos e
numerosos lotes (…) com a introdução de novo com os que
estão chegando daqueles mesmos portos e costa.236

“Podemos quantificar 37.114 escravos referentes aos


anos de 1731 a 1735; 281.323 escravos para o período de
1759 a 1792; e 28.385 escravos para os anos de 1799,1800 e
1801.”237 Esta gama de escravos, como propriedade de al-
guém, poderiam ser alienados como bem entendesse seu
proprietário. Um agitado comércio, com diversas formas de
alienação da “mercadoria” foi-se lapidando. De muitas for-
mas se poderia adquirir um escravo, seja no Valongo, mer-
cado de negros novos ou no de ladinos através de casas de
leilão, consignação e varejo; em anúncios de jornais, conta-
tos pessoais…
O uso de tão desejada mão de obra promoveu junto às
autoridades, que dela também se beneficiavam, algumas ini-
ciativas visando ordenar as diversas negociações e as relações
provenientes de tal comercialização. Identificamos, assim,
duas iniciativas que contribuíram para o ordenamento do
mercado de escravos. Uma delas é a mudança dos armazéns
de negros novos da Rua Direita e do Paço Imperial para o
Valongo em 1779. A partir de então, por determinação do
Marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, os escravos desem-
barcados na alfândega deveriam ser conduzidos, em botes, ao

––––––––––
236
AN, Códice 70, vol. 7, p. 231.
237
CAVALCANTI, Nireu Oliveira. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In:
FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos
XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 53.

116
PODER E ESCRAVIDÃO

lugar denominado Valongo, pois pareciam – segundo ele


– “animais selvagens, nus, cheios de moléstias (…) [ademais]
as pessoas honestas não se atreviam a chegar às janelas, e os
inocentes, vendo-os, aprendiam o que ignoravam”238.
Outra é a efetivação do ofício de Avaliador de escravos,
objetivando precisar o valor daqueles à disposição do Estado,
que os leiloava em praça pública e revertia esta importância
em benefício próprio. Desta forma, gerava divisas aos cofres
públicos, e garantia a legitimidade do ideário escravocrata, do
processo de hierarquização baseado na posse do trabalhador
cativo e o status quo da elite detentora de bens e “almas”.
Constituía-se, o trabalhador compulsório, em bem de
grande circularidade que com o tempo passou a ser penhora-
do juntamente com outros bens por dívidas contraídas, de
forma que era preciso que, assim como outras propriedades
que ficavam a cargo do Estado, fossem os escravos, da mes-
ma forma, avaliados antes de serem leiloados. Sabemos que
todos os aspectos da vida municipal estavam sob o controle
das câmaras municipais. A promoção de leilões dos bens con-
fiscados mediante o não resgate de hipotecas era comum.
Pessoas que não conseguiam resgatá-las, tinham seus bens
confiscados e arrematados em leilões públicos pelo porteiro
da Câmara.239
Hipotecava-se tudo, inclusive escravos. Podemos ver
isso em diversas escrituras de dívida, cuja garantia endereça-
va-se a pessoas, como foi o caso de João Baptista dos Santos,
que hipotecou seus escravos por dívida contraída a José Pe-
dro Pereira de Lima, em junho de 1846.240 O mesmo se fazia
––––––––––
238
GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro. Lacerda Editores. 2000, p. 150.
239
Primeiro livro das Ordenações, título 87. In: Código Filipino, p. 205-206.
Regimento dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e
Ausentes, de 10.12.1613 (atribuição número 1). In: Raízes da Formação Administrativa
do Brasil, vol. 2, p. 481-492; e Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os
regimentos pertencentes à administração da Fazenda Real…, vol. 3, p. 142-160.
240 AN: 10-13-79 – Microfilme. Livro de Escrituras no 199, 3o Ofício de Notas, f. 8v.

117
Luciano R. Pinto

com relação aos cofres públicos. Isso ocorreu no mesmo ano


com D. Cândida Gomes, que hipotecou seus bens ao Cofre de
Órfãos da Corte.241 O que importa aqui é perceber que os
bens apreendidos eram avaliados antes de irem a leilão públi-
co. Note-se que nos dois exemplos de arrematações, do Diá-
rio do Rio de Janeiro, havia avaliações em inventários. Estas,
por sua vez, não eram feitas de maneira descriteriosa. O
Senado da Câmara possuía à sua disposição diversos avalia-
dores, que apreçavam os bens penhorados. Desde avaliadores
de gêneros alimentícios242 e prédios urbanos243 a avaliadores
de bens móveis244 e escravos245, conforme a lei de 20 de
junho e 25 de agosto de 1774, na qual “os Officiaes das
câmaras são obrigados a nomear annoalme Avaliadores de
deversos Officios, e de differentes coizas para avaliarem os
bens penhorados pr execuçoens”.246
Quando vencia uma hipoteca, o Senado da Câmara
apreendia os bens penhorados e os avaliava mediante homens
encarregados deste ofício. Portanto, é a partir da documenta-
ção referente à Câmara que encontramos diversas pessoas
que concorriam a este ofício. Para ser Avaliador de escravos,
a pessoa deveria encaminhar ao Senado da Câmara uma peti-
ção e, se aprovado, receberia provisão de um ano para exer-
cer a função em nome de Sua Majestade Imperial. Aqueles
que se dedicavam a avaliar escravos não avaliavam outras
coisas, mas tão-somente escravos. Alguém que não fosse
“digno” do ofício de modo algum poderia exercê-lo.
O espaço social, caracterizado pelo conflito, produz, no
próprio relacionar-se a hierarquização decorrente do acúmulo

––––––––––
241
AN:10-13-79 – Microfilme. Livro de Escrituras no 195, 3o Ofício de Notas, f. 20.
242
AGCRJ: 40-1-27, f. 2.
243
AHCF: Cx. 11, lv. 33, f. 119–120.
244
AHCF: Cx. 11, lv. 33, f. 41v., 50 – 51.
245
AGCRJ: códices 6-1-10, 6-1-11 e 6-1-12, 40-1-27.
246
AGCRJ: 6-1-11, f. 41.

118
PODER E ESCRAVIDÃO

de capitais. O Avaliador, por sua vez, não se subtraía a este


processo. A obtenção da licença anual incluía uma rígida
seleção para o preenchimento de apenas duas vagas.247 Para
isso, o candidato deveria ser detentor de uma série de capitais
que o elevassem a tal posição. Vale lembrar, que para preen-
cher os quadros do Senado da Câmara o candidato já deveria
ser, a priori, portador de alguns signos que lhe garantissem o
predicado da “bondade”. A dignidade, aqui, passa pelo crivo
étnico. Assim, era a “boa sociedade” que endossava seu acei-
te ao ofício. Era importante certificar-se, caso não de sua for-
tuna, de sua idoneidade.
O espaço denominado Senado da Câmara estruturava-
se a partir de uma série de critérios para o preenchimento das
funções menores, que não são escolhidas por voto, mas por
meio de processos internos que selecionavam para os diver-
sos ofícios, a saber: Avaliador (de escravos, bens da Câmara,
prédios rurais, prédios urbanos e fazendas), Arruador, Capitão
do Mato, Demarcador, Cobrador, Alferes de ordenanças,
Tabelião, Solicitador, Capitão de ordenanças, Inspetor de
quarteirão, Fiscal, Agente Portuário, Administrador das obras
públicas, Fiscal suplente, Escrivão do juízo, Professor públi-
co.248 O preenchimento destes ofícios passava pela compro-
vação da posse de capitais exigidos.

3.2. Saber e poder


Os Avaliadores de escravos, de modo geral, possuíam
uma função primeira que lhes garantia certo capital econômi-
co, como a grande maioria daqueles que preenchiam os qua-
dros do Senado da Câmara. Na cidade do Rio de Janeiro, a
função estava, em grande parte, entregue àqueles que tinham
negócios com escravos. Em fevereiro de 1808, uma disputa foi
––––––––––
247
AGCRJ: 6-1-11, f. 47.
248
AHCF: Cx. 11, lv. 33 e 44.

119
Luciano R. Pinto

decidida em favor daquele que “negocea em escravos e sabe


pr esta razão o justo valor q‟ cada hum delles pode ter segun-
do as suas ides e configurações, rebustes, ou invalides”249.
A razão de ser explícita é, sem dúvida, o conhecimento
da função, evidente que isso interessava. No entanto, esta não
parece a causa determinante. No exemplo citado, o candidato
perdedor, segundo os autos, “não tem negocio de escravos,
nem outra algúa ocupação”250 (grifo nosso). Esta é uma
afirmação indiciante. Não ter ocupação porque sua posição
lhe proporciona que outros produzam é sinônimo de status.
Ocupo-me em nada fazer, pois há quem faça por mim, sob
meu comando e para proveito próprio. No entanto, estar sim-
plesmente desocupado e padecendo necessidade implica ou-
tra coisa. Era o capital econômico que determinava o lugar da
pessoa. Seria inadmissível alguém sem posses enfileirar-se
junto aos membros do Senado. Não ter ocupação, pois sua
posição lhe permite eximir-se do trabalho braçal, é sinal de
distinção. Ao contrário, estar simplesmente desempregado é
localizar-se ao lado da “desordem”. O vencedor da disputa,
Joaquim José Pereira do Amaral, por sua vez, tinha negócio
com escravos, setor que rendia a maior porcentagem de lu-
cros na primeira metade do século XIX. Não chega a ser um
nobre, pelo menos na antiga concepção de nobreza ligada a
terra, mas, era portador de algum capital distintivo.
Se fizermos uma rápida comparação do ofício na capi-
tal do Império e no município do Desterro (atual Florianópo-
lis) perceberemos que as funções primeiras dos requisitantes
são distintas, mas todas elas referem-se a certa posse de capi-
tal econômico. No registro de Patentes e nomeações da
Câmara Municipal de Desterro, entre os anos de 1811 e 1829,
encontramos apenas seis nomeações ao cargo de Avaliador.251
––––––––––
249
AGCRJ: 6-1-11, f. 7.
250
AGCRJ: 6-1-11, f. 7.
251
AHCF: Cx. 11, lv. 33, f. 41v., 42, 42v, 51, 51v., 53, 116v., 117.

120
PODER E ESCRAVIDÃO

Destes, dois são militares (tenentes) e um, denominado sim-


plesmente “Capitão”, se não militar, por nomeação honrosa,
dono de terras e “almas”.
Evidente que tais homens não se identificavam com a
nobreza, cuja ociosidade, como vimos, dava o tom do prestí-
gio, sem dúvida alguma, um dos símbolos de poder na socie-
dade de corte oitocentista. Trabalho era coisa de negro, ou de
necessitado. A estrutura que identificava trabalho manual
com indignidade (fruto do uso e abuso do braço escravo)
adquiriu legitimidade junto aos dominados. É bastante
conhecida a busca de escravos pelos mais pobres, em tempos
de farta oferta ou mesmo por ex-escravos. Embora, o fator
econômico influenciasse na qualidade do escravo adquirido,
secundarizava-se essa questão diante da força simbólica de
ser reconhecido como “senhor de escravos”. Fica claro, por-
tanto, a legitimação da dominação. No entanto, o acolhimento
desta se dá de modo diversificado, dependendo do lugar
social dos indivíduos.
Se os mais pobres almejavam os títulos e as honrarias
da nobreza, mesmo que apenas aparentemente, o mesmo
ocorria com aqueles que possuíam capital econômico, mas
não simbólico. Não eram duques, condes, senhores da cor-
te… Mas seus hábitos procuravam assemelhar-se àqueles,
cujo modo de ser e ver o mundo se impunha pela dominação
simbólica, mas também econômica. É impossível separar o
capital econômico da produção simbólica. Pessoas que con-
seguiram acumular algum capital pecuniário aplicavam-no
em outros capitais que lhe trouxessem maior prestígio e legi-
timidade, veja os pobres desejosos do “senhorio”, por mais
que continuassem pobres. Também, aqueles negociantes da
praça carioca, que já possuíam escravos e bens invejavam as
honrarias e um lugar no centro do poder local.
Caminho singular de aproximação do poder fornecia
alguns cargos menores do Senado da Câmara. Quem os pos-
suía não era detentor de vastos capitais, mas necessitava de

121
Luciano R. Pinto

alguma legitimidade, em geral garantida pelo econômico,


pelo menos no caso do Avaliador. É importante perceber no
processo de hierarquização sua dimensão vertical e hori-
zontal, que se dá na relação interpares e destes com outros.
Membros do mesmo grupo social, vistos de maneira seme-
lhante por outros grupos em escalas sociais mais elevadas,
verticalizam-se entre seus pares. Assim, nas ocupações meno-
res da Câmara ocorria a valorização de uns e a depreciação de
outros na luta simbólica por legitimação. Vale lembrar, que na
sociedade de corte, quanto menos esforço físico, mais nobre a
função. Não há como comparar, segundo a luta simbólica que
se estabelecia um Capitão do Mato ou um Arruador, com um
Fiscal, Escrivão ou, mesmo, um Avaliador.
O poder de nomeação promove mais facilmente o aco-
lhimento. Para a elite dominante, era interessante a manuten-
ção de um projeto que visasse à conservação da ordem esta-
mental em seu arcaísmo. É aqui que entra o poder de nomea-
ção. A ordem só consegue se manter na medida em que seja
consentida e legitimada. O acolhimento do corpo social, em
seus diversos níveis na sociedade patriarcal, era garantido
pela adesão voluntária daqueles cujo capital econômico ga-
rantia a dominação paternalista sobre determinada região e
pessoas. Ser portador de certa quantidade de bens materiais e
pecuniários era garantia de participação, mesmo que indireta,
no processo de dominação, amalgamando-se em sua estrutura
de maneira funcional. Neste sentido, a busca ao cargo de Ava-
liador, ganha sentido pelo valor simbólico que adquire o
nomeado. Estando junto ao Senado da Câmara, aproxima-se
do centro de decisões e ao mesmo tempo torna-se mediador
de tão procurada mercadoria: o escravo.
Outra forma de beneficiamento financeiro poderia con-
trair o Avaliador na formação de grupos que, supostamente,
se beneficiariam com os leilões públicos. A facilitação no
direcionamento da “mercadoria” poderia favorecer compra-
dores poderosos, beneficiando com algum capital econômico
e um estreitar-se de laços com homens de poder. Numa so-
122
PODER E ESCRAVIDÃO

ciedade de relações pessoais nada mais apropriado que a ma-


nutenção de bons relacionamentos. Ser Avaliador de escra-
vos era de alguma forma identificar-se com o poder. É esta a
razão de ser da procura que se estabelecia em torno de uma
função extremamente restrita, com apenas duas vagas252 para
a capital do Império. Status, na sociedade de corte, contudo,
se adquiria não apenas por razões econômicas. Outros tipos
de capitais faziam-se igualmente importantes.
O Avaliador de Escravos deveria ser detentor de um
capital cultural, que não era sistematizado, mas acumulado
e cultivado no cotidiano. Incorporado pela práxis da labuta
no negócio que lhe confere conhecimento sobre os demais
membros da sociedade, de forma que, o reconhecimento pelo
acúmulo deste capital socialmente sancionado, provém das
pessoas, compradores, negociantes… Mas também do Esta-
do, que lhe outorga um título.
Neste sentido, o Avaliador, por ser portador de um
conhecimento específico, é capaz de promover o devido valor
da “mercadoria humana”, hierarquizando-a mediante padrões,
culturalmente estabelecidos, que objetivavam sua qualidade.
Era comum avaliar, antes de comprar, parte corriqueira no
processo de comercialização. Nas aquisições particulares, era
costume levar um cirurgião “a fim de fazer passar o escra-
vo pelas provas e exames necessários”.253 Estas avaliações
tinham um objetivo bem específico: verificar a integridade
física do escravo. Era necessário certificar-se da saudável cor
da tez, a consistência das gengivas, a idade e a origem; “em
seguida fazem-nos saltar, gritar, levantar pesos, a fim de
apreciar o valor de suas forças e sua habilidade. As negras
são avaliadas de acordo com a idade e os encantos”.254 O
Avaliador, a serviço do Estado, fazia a vez dos cirurgiões a
serviço dos particulares.
––––––––––
252
AGCRJ: 6-1-11, f. 47.
253
DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 229.
254
Ibidem, p. 225.

123
Luciano R. Pinto

No entanto, não eram apenas as qualidades físicas que


estavam em jogo. Era preciso verificar o conhecimento que
aquele cativo possuía. Evidente que os negros novos, recém-
-chegados, eram avaliados pela aparência e pela força. Havia,
contudo, serviços que exigiam conhecimento e para isso o
negro ladino, conhecedor da língua e de um ofício valia mais.
Os escravos eram utilizados em todos os setores da vida
urbana: sapateiros, cirurgiões, mecânicos, balconistas… To-
das funções que exigiam inteligência e habilidade. Um cativo
que fosse oficial, sem dúvida, valia mais que o “boçal”. Tes-
temunha do primeiro quarto do século XIX, Eschewege, rela-
tava que por um escravo comum no ganho, se pagava 300
réis de diária “aos piores aprendizes 600 réis, aos mestres
1200 réis”.255 Sem entrarmos nos méritos dos valores, parece
correto afirmar que um bom escravo oficial fornecia a seu
senhor uma boa renda e seu valor para venda superava o
escravo novo ou o ladino sem habilidades.
Ao falarmos, portanto, de um capital cultural, da qual o
Avaliador é detentor, pensamos em todos estes fatores na qual
o encarregado da avaliação deve estar atento. Conhecer es-
cravos, não significava apenas averiguar sua força física, mas
sua adequação ao mundo da ordem. Ao deter um capital cul-
tural, o Avaliador devia promover a hierarquização do negro
no campo da escravaria. A exatidão que a posse de tal capital
lhe conferia, fazia dele alguém experimentado para julgar e
precisar o lugar específico da mercadoria humana, atribuin-
do-lhe valor. Por isso, como vimos, era importante que o Ava-
liador fosse também negociante de escravos, pois, “sabe pr
esta razão o justo valor q‟ cada hum delles pode ter segundo
as suas ides e configurações, rebustes, ou invalides”.256 Em
pedido encaminhado ao Senado da Câmara, pelo Capitão
Daniel Luiz Vianna, em 18 de outubro de 1824, por exemplo,
––––––––––
255
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 61.
256
AGCRJ: 6-1-11, f. 7.

124
PODER E ESCRAVIDÃO

havia um anexo comprovando seu conhecimento da função,


pois negociava escravos por vinte anos.257 Sua experiência no
trato com escravos garantiu-lhe acesso à Câmara. O poder
não apenas produz um determinado saber, mas exige que
outros o legitimem. A relação saber/poder produzia a reitera-
ção daquele modo de ser e hierarquizava os indivíduos
mediante a adequação ao esperado.
A importância que tinha o escravo para a economia e a
sociedade luso-brasileira, pode ser facilmente percebida pela
exigência conferida àquele que deveria ocupar o cargo de
Avaliador. Era necessário que ele fosse portador não apenas
de capital econômico. Para preencher os quadros do Senado
da Câmara, fazia-se necessário que, para seu justo exercício,
o candidato fosse portador de um conhecimento específico,
daquele conjunto de qualificações intelectuais exigidas para o
exercício do ofício. Qualificações estas que já as possui um
negociante de escravos.
Os dois capitais, econômico e cultural, “fornecem os
critérios de diferenciação mais pertinentes para construir o
espaço social”258, verticalizando os membros da sociedade e
promovendo a distinção entre os detentores do mesmo capi-
tal, respectivamente. Na primeira metade do século XIX, por-
tanto, ser Avaliador, licenciado pelo Senado da Câmara e
negociante de escravos, no maior “mercado de almas” das
Américas, sem dúvida alguma, representava, além de divisas,
status e poder.
Na indissociável relação entre os capitais econômico e
cultural, temos outros dois, que tornam a percepção social do
objeto em questão, ainda mais preciso. Licenciado para atuar
em conformidade com a legalidade, em benefício do próprio
Estado sobre a escravaria, o Avaliador passaria a gozar de um
conjunto de relações sociais, junto ao Senado e fora dele, que
––––––––––
257
AGCRJ: 6-1-12, f. 44.
258
BONNEWITZ, Patrice. Op. cit., p.54.

125
Luciano R. Pinto

garantiriam o endosso e a legitimação necessária à perma-


nência na função. Bourdieu denomina a instauração e a
manutenção das relações de capital social. Como parte deste
jogo de relações, existe o ritual: um conjunto de boas manei-
ras relacionado à honra e ao reconhecimento. O capital sim-
bólico, portanto, efetiva os demais capitais na própria relação
social, tendo por fim a legitimação pelo reconhecimento da
distinção.
As relações sociais derivam do acúmulo de diversos
capitais e, portanto, do lugar que o indivíduo ocupa. Preten-
der o cargo de Avaliador significava certificar-se desta ques-
tão. Sabemos que os membros do Senado zelavam pela com-
provação da honra de seus pares. Ninguém reconhecidamente
“bom”, conceito que implicava seu lugar social, poderia ocu-
par um posto no centro instituído do poder local. Neste senti-
do, uma das partes do processo de seleção ao ofício, consistia
em averiguar sua conduta. Para isso, consultavam-se os ve-
readores e demais nomes da praça carioca. Evidente, que o
sucesso, ou o fracasso, de tal acareação dependia bastante do
capital social do nome em questão.
Joaquim José Pereira do Amaral, em 4 de julho de
1807, apresentou anexa à petição, uma carta referendando-o
ao cargo. O autor, José da S. Loureiro Borges, foi Juiz de
Fora, ex-presidente do Senado e Auditor das Tropas de Mar e
Terra.259 Não resta a menor dúvida que a sociedade é um
espaço relacional, cujas posições estabelecem-se nas próprias
relações. Pereira do Amaral permaneceu por mais de vinte
anos no ofício de Avaliador. Sua primeira petição foi feita em
1805,260 encerrando furtivamente sua carreira, aos 18 de
outubro de 1827,261 onde embarcou para Portugal deixando
quatro filhos. Sua longa permanência em uma função que
––––––––––
259
AGCRJ: 6-1-11, f. 16.
260
AGCRJ: 6-1-10, f. 8.
261
AGCRJ: 6-1-12, f. 47.

126
PODER E ESCRAVIDÃO

pedia apenas dois membros e estimulava o desejo de tantos


outros, pela sua representatividade, devia-se não apenas à
sua competência, mas também à malha relacional que cons-
truiu e preservava.
Deliberar sobre mão de obra tão desejada, que movi-
mentava não apenas recursos, mas prestígio era desejo de
muitos indivíduos. A busca pela proximidade do poder criava
a interação entre partes afins, de forma que, a aquisição de
determinado lugar neste campo, e sua permanência, dependia,
em grande parte, da disposição relacional do indivíduo e de
sua capacidade de nomeação. O que levaria um ex-presidente
do Senado a indicar um nome ao cargo de Avaliador? Seria
apenas expressão de bondade e reconhecimento de um valor?
Aparentemente, Pereira do Amaral tinha mais a ganhar do
que o, então, Auditor das Tropas de Mar e Terra da Corte.
Mas o que poderia este auferir com a indicação?
Se há um local em que podemos situar como o lócus
privilegiado do poder no século XIX, em especial na sua pri-
meira metade, é a Câmara Municipal. A vida política centra-
va-se ali. Todos os aspectos da vida municipal eram cogitados
em suas dependências: saúde pública, impostos municipais,
contratos, organização de expedições de recaptura de escra-
vos… Tudo passava pela Câmara. Preencher seus quadros é
cercar-se do poder instituído, distinguir-se e dominar. O Ava-
liador de escravos, de modo especial, vivia esta relação no
cotidiano de sua práxis, pois, atuando nas praças,262 era a mão
do Estado, que em nome de Sua Majestade, a quem jurava
bem servir,263 versava sobre a escravaria. Seu reconhecimen-
to social, decerto, motivava outros à troca de favores recípro-
cos. Em dado momento, o Auditor das Tropas lhe presta um
favor, decerto, esperando o mesmo em tempos futuros, ou
agrados diversos, no que tange a ocupação do Avaliador.
––––––––––
262
AGCRJ: 6-1-11, f. 17.
263
AGCRJ: 6-1-12, f. 5-5v.

127
Luciano R. Pinto

Capital social era algo que realmente aparece nos autos de


Joaquim José Pereira do Amaral. Em 1817, ele recebe indica-
ção para permanecer na função do próprio D. João.264
Esta malha relacional, na qual os indivíduos interagem
num determinado campo específico, é vital no processo de
conservação-alteração das respectivas posições. O trabalho de
sociabilidade predispõe o grupo à influência mútua, cujas van-
tagens sociais são garantidas pela manutenção das mesmas
relações, que atuam segundo o aparato de capital, conferindo
ao agente crédito e autoridade, assim como reconhecimento e
posse. O Avaliador, em questão, jamais permaneceria tanto
tempo na função, se não pelo capital social que detinha.
Decerto, a nomeação concedia uma série de vantagens sociais,
cuja consequência imediata é o acumulo de capital simbólico.
Do ponto de vista da legitimidade, o porta-voz do Esta-
do está cercado de uma atmosfera, simbolismo, cuja oficiali-
dade garante o modo de ser do agente e seu trato pelos de-
mais. A nomeação tem a capacidade de “subtrair os seus
detentores à luta simbólica de todos contra todos, dando acer-
ca dos agentes sociais a perspectiva autorizada, reconhecida
de todos, universal”.265 Sobre o capital simbólico passamos a
tratar agora.
O Avaliador de escravos era portador de um capital
simbólico profundamente arraigado na cultura da socieda-
de oitocentista luso-brasileira. Entendemos cultura em seu
sentido amplo, um conjunto de normas, valores e práticas
que se adquiri e partilha no campo social. Neste sentido,
podemos pensar que a produção cultural do século XIX
engendrou uma lógica de distinção baseada no trabalho
compulsório, que predominava francamente no Rio de Ja-
neiro. Tudo aquilo que parecia desprezível ao homem
branco era função dos escravos.
––––––––––
264
AGCRJ: 6-1-10, f. 60.
265
BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 147.

128
PODER E ESCRAVIDÃO

A vida rentista que levavam aqueles que podiam adqui-


rir um escravo, muito surpreendia os viajantes estrangeiros.
“A ociosidade, a propósito – comenta Pierre Sonnerat, nave-
gador Francês que permaneceu no Rio de Janeiro por quase
dez meses (22 de abril – 10 de maio de 1748) – passa, entre
eles, por sinal de dignidade (…) Todos querem ser nobres
e (…) coisas simples como dar ordens aos escravos e fiscali-
zar o seu trabalho parecem-lhes contrárias à grandeza e à
opulência que ostentam.”266 Mas, não eram apenas os pobres
que desejavam o modus vivendi da elite dominante. Muitos
dos negros forros, como vimos, assim que podiam compra-
vam sapatos e escravos. Estas categorias de visão de mundo,
são próprias da legitimação da violência simbólica. Os axio-
mas são aceitos e vividos como óbvios. Em três séculos de
escravidão, nada mais óbvio que a acomodação das represen-
tações dominantes, cujo processo de condicionamento já
estava mais que legitimado no século XIX.
A institucionalização, muito contribui para a difusão de
valores e crenças. Ao instituir a realidade, materializando-a
num órgão específico, cria-se uma instância de socialização.
Socializar, nada mais é que incorporação de habitus, produzi-
dos, interiorizados e transmitidos, promovendo assim a inte-
ração do indivíduo com a sociedade. A concessão de crédito
às instâncias de poder, processo natural de acomodação e
legitimação promove ainda mais o uso da autoridade como
normalizador do real. Por que crer algo como natural? Parece
natural pelo consenso, que delega valor a determinada visão
da realidade. Assim, o Senado da Câmara, como centro de
irradiação do poder político, determinava e precisava a reali-
dade nas múltiplas instâncias da vida social. Isso, contudo, se
deve à capacidade de nomeação.
Atribuir títulos e rótulos oficiais é instituir a realidade.
A promoção de indivíduos tem em vista a distinção no campo
––––––––––
266
SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Op. cit., p. 211.

129
Luciano R. Pinto

social, a fim de garantir a representatividade da realidade ins-


tituída. Essa eficácia simbólica, na qual o agente sente-se
representante da instituição, só funciona devido o funciona-
mento do espaço social. O capital simbólico alcança sua ra-
zão de ser no crédito, naquilo que é visto como justo, digno e
que é consentido e percebido assim pelos demais membros da
sociedade. Existir socialmente é ser percebido e reconhecido.
De modo geral, o processo de representatividade passa por
este viés. A reputação e o prestígio de determinada institui-
ção, atravessa seu agente representante, de forma que este
passa a fazer às vezes da instituição apropriando-se de um
capital, da qual ele participa pelo simples fato de representar.
O nomeado oficialmente é reconhecido pelas demais pessoas
nas quais se relaciona. É a instituição que dá prestígio ao
indivíduo. Ocupar um determinado lugar e compartilhar de
seus direitos e reputação é antes de tudo adquirir um capital
distintivo. Assim, onde está o agente representante está, tam-
bém, a instituição que o nomeou.
Esta é a relação do Avaliador de escravos com o Senado
da Câmara. Funções representativas do poder político nos
oitocentos eram garantia de status e posição social, que esta-
belecia inevitáveis ligações na malha relacional do indivíduo
nomeado a outros indivíduos e grupos diversos. Principal-
mente, no que tange o “mercado de almas”, havia muito inte-
resse de pessoas variadas, empresas mercantis e casas comer-
ciais, que se acotovelavam neste campo. A empresa escravis-
ta, ao mesmo tempo em que garantia a reestruturação da mão
de obra pelo comércio transatlântico, com o tráfico de africa-
nos, promovia o reingresso de braços já cansados recomercia-
lizando-os em um mercado altamente diversificado.
Vendas informais e leilões estavam disponíveis nos jor-
nais, em placas pelas ruas e na boca das pessoas. Escravos de
diversos ofícios eram comercializados em distintas valoriza-
ções. O comércio da mão de obra escrava movia a economia
e a sociedade, implicando no processo de hierarquização,

130
PODER E ESCRAVIDÃO

donde as diferenciações sociais podem ser facilmente obser-


vadas nas transações comerciais de escravos novos e ladinos.
Enquanto o branco não abastado possuía um ou dois escra-
vos, colocados no ganho ou na sua pequena propriedade, os
mais enriquecidos regalavam-se em nada fazer, pois tinham
diversos cativos à disposição, servindo de portas à dentro e à
fora. É neste ambiente que se insere o Avaliador, versando
sobre os escravos hipotecados ao Estado.
O prestígio que gozava a função, sem dúvida alguma,
promovia a distinção social267 do agente nomeado para, em
nome de sua Majestade, promover o reingresso dos “bens
semoventes” apreendidos pelo não resgate da hipoteca. As
vendas ocorriam “sempre em leilão público, e a quem mais
der”,268 ritual que tem no centro negociável o Avaliador, re-
presentante da legalidade, a quem cabia o valor. O crédito
conferido à sua autoridade e a crença natural da realidade
dada promovia aquele que se identificava com este constructo
um capital, cujo simbolismo fomentava a dominação e a hie-
rarquização de pessoas e bens, mesmo que estes se confun-
dissem num bem pessoal: o escravo.
O simbolismo, inerente ao cargo, portanto, promovia a
personificação do poder. Numa sociedade de relações pes-
soais, onde o prestígio era fator de hierarquização, aquele no-
meado para exercer um determinado cargo de mando, vi-
venciava uma realidade na qual o reconhecimento adquiriu
fator fundamental. Neste sentido, era preciso, para não perder
o prestígio e, também, a legitimação, correspondendo ao con-
junto de rituais que o capital simbólico impunha, relativo a
boas maneiras, conduta e relação interpessoal. A efetivação
deste capital dependia da capacidade relacional do nomeado.
Este capital, na verdade, poderia ser considerado um bem,
––––––––––
267
Cf. ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e
da aristocracia de corte. Op. cit., p. 35 e 116.
268
AHCF: Cx. 11, lv. 54, f. 7.

131
Luciano R. Pinto

pois adquirir tal simbolismo, na sociedade de corte, significa-


va promover, há seu tempo, as três outras formas de capital.

3.3. O Caminho da Provisão


Para que alguém pudesse preencher uma das duas vagas
disponíveis à função de Avaliador de escravos, na cidade do
Rio de Janeiro, em primeiro lugar deveria fazer uma carta de
petição destinada ao Senado da Câmara. Assim o fez Joaquim
José Pereira do Amaral, aos 21 de agosto de 1805:
Diz Joaquim José Pera do Amaral, negociante de es-
cravos, q se acha próximo de acabar hum dos avaliadores
de escravos do Conselho, q servem homens de deferentes
ocupaçoens, e por q no Supe convem todas as sirconstancias
precisas recorre a V. Mces queirão provir ao Supe (…) o
emprego q suplica, o q justificará sendo necessário. 269

Sem dúvida era preciso justificar sua adequação ao ofí-


cio. Os candidatos, de modo geral, dependendo do capital
social que ostentavam, apressavam-se em comprovar sua ade-
quação aos princípios de idoneidade e conhecimento requerido
para acomodação na função, levando consigo carta comproba-
tória. Um bom exemplo por nós já citado é da carta de José da
S. Borges, auditor das Tropas de Mar e Terra do Brasil, que
endossava o acesso ao cargo de Joaquim José Pereira do Ama-
ral, como podemos ver em sua carta que se segue:
José da S. loureiro Borges, Juiz de fora, Crime Provedor
exprezidente do Senado, Auditor das Tropas de Mar Terra
deste Estado do Brazil pr S.A.R.
Atesto que Joaquim José Pereira do Amal servindo de
Avaliador de Escravos se portou de tal maneira que nunca
me constou Cometer crime que o mal conceituasse e por
esta me ser pedida lhe mandei passar que assignei.
Rio de Janro, 4 de Agosto de 1807.
José Loureiro Borges270
––––––––––
269
AGCRJ: 6-1-10, f. 45J.
270
AGCRJ: 6-1-11, f. 16.

132
PODER E ESCRAVIDÃO

O mesmo podemos ver com relação ao Capitão Daniel


Luiz Vianna:
Nós abaixo assignados attestamos e juramos, sendo
necessário em como o Capitão Daniel Luiz Vianna, tem
todo o conhecimento do negocio de Escr os pela grande prá-
tica que tem tido, e tem de os vender a mais de 20 annos, e
por nos ser esta pedida a mandam os passar & só a assig-
namos.
Rio de Janeiro 18 de Outbro 1824
Joze Alex Ferre Brandão
João Francisco Pera de Affoncas
Lourenço Anto de Rege…
Thomé Ribeiro
João Alz‟de Sza Guimes
Joaquim Antonio Ferra 271

No entanto, a própria Câmara se encarregava de averiguar


a idoneidade do pretendente. Após abrir o processo com pedido
formal ao Senado, um segundo momento consistia em fazer
Correr Folha. Era uma acareação pública nas quais os escrivães
atestavam, após consulta junto aos cidadãos, a idoneidade do
pretendente, ou seja, sua adequação ao regime de verdade,
necessário à manutenção e reiteração temporal do constructo e
do status quo dominante. Acarear a idoneidade nada mais é que
perceber seu lugar no campo social. Estamos falando, então, de
prestígio. Participar da Câmara, ser considerado cidadão era
uma honra devida a alguém reconhecido por seus pares. Afinal,
honradez neste caso significa existir socialmente, estar confor-
me a ordem e por ela constituído singularmente.
Esta parte do processo objetivava perceber o lugar
social do pretendente. Fazia-se preciso reconhecer sua distin-
ção e honradez, ou seja, sua diferenciação em relação à
desordem. Era comum tanto para o primeiro pedido de provi-
são, quanto para sua renovação, como podemos ver no exem-
plo a seguir:
––––––––––
271
AGCRJ: 6-1-12, f. 44.

133
Luciano R. Pinto

Diz Joaquim Je Pereira do Amaral Avaliador dos Escravos


desta corte que se lhe faz preciso correr folha pos Escrivains
que costumão responder as mesmas. Facão o Supte.
P. a V.As Seja Servido mandar paçar Alvara de folha
Corrida.272
O Dr Anto Corra Picanço, Fidalgo, Proffesso na Ordem
de Christo, Dezor da Caza da Suppam e nella Corregor da
Côrte, e Caza, &
Mando aos Escrivaens criminaes, q‟ nesta dicta Côrte
custumão responder as folhas dos culpados, respondão a do
Suppe com culpa ou sem-Na. Rio 10 de Dezbro de 1821.273

Vale notar a importância das titulações. Adequado per-


feitamente ao mundo da ordem, segundo o regime de verda-
des em vigor no século XIX luso-brasileiro. A resposta ao
Dr Antonio Correa Picanço não tardou, de modo geral não
demorava mais que uma semana:
Rio 15 de dezembro de 1821
Manoel Xavier de Barroz guarda Menor do Tribunal da
Caza da Supp. desta Corte &
Certifico que esta folha vai respondida por todos os
escrivaens criminaes que nesta dita corte custumão a res-
ponder em fé do que passeÿ a presente e assigneÿ.
Rio, 15 de Dezembro de 1821
Manoel Xavier de Barroz274

Como o desenrolar destes processos nem sempre se dava


com tranquilidade, era prudente fazer procuração a algum
Vereador a fim de garantir os fins desejados. Apenas duas va-
gas não eram suficientes para a satisfação do desejo daquela
gama de pretendentes, de forma que agravos e acordos diver-
sos faziam parte da rotina destes processos. Veremos isso deta-
lhadamente no próximo capítulo. Agora, nos basta perceber
––––––––––
272
AGCRJ: 6-1-12, f. 2.
273
AGCRJ: 6-1-12, f. 2v.
274
AGCRJ: 6-1-12, f. 3.

134
PODER E ESCRAVIDÃO

que era prudente cercar-se de precauções. Muitos candidatos,


então, concediam plenos poderes a um Procurador que deveria,
com a devida procuração lavrada em cartório fazer valer os
direitos do Suplicante, como fez Pereira do Amaral.
Aos seis de Fevereiro de mil oito centos e Oito annos,
nesta Cidade do Rio de Janeiro, em O meu escritório o…
[sic] Joaquim José da Rocha digo do Amaral e por elle me
foi dito que para esta cauza de agravo faria seus procura-
dores aos Senadores Jose de Oliveira Fagundes e Barilis
[sic] Ferreira Duarte e aos solicitadores Maximiliano
Alves de Araújo, e Antonio de Pires e Silva, aos quais
todos juntos, e a cada hum (…) dava todos os poderes que
em Dirto sejão concedidos de opitarem, agravarem, em-
bargarem e jurarem em Sua alma todo e qual quer licito
juramto e de calunia, e que So para Sy rezervava toda…
[sis] citação; e para Constar fiz este termo em que Me
assinou em Antonio Martins Pinto de Britto. Escrivão.
Joaqm Joze Pera do Amal 275

Uma vez admitido no ofício, o candidato recebia provi-


são para exercício de um ano na função, devendo jurar diante
do presidente do Senado bem servir ao emprego que recebia
em nome de sua Majestade Imperial, para o bem público,
atuando conforme as posturas do poder local, conforme
podemos conferir no exemplo descrito:
O Senado da Câmara desta Corte do Brazil &.
Fazemos saber aos que a presente Provizão virem que
Joaquim Jozé Pereira do Amaral nos requereo Provimento
para continuar a servir o emprego de Avaliador de Escravos
nesta Corte e Constando-nos que bem tem servido: em
attenção ao referido. Achamos por bem prover (como
por esta fazemos) ao dito Joaquim Jozé Pereira do Amaral
no emprego de Avaliador de Escravos desta Corte por tem-
po do futuro anno de 1823. Se tanto nos parecer conserval-
lo, ou S. Magestade Imperial não Mandar-o contrário: e
com a dita serventia ficará sugeito a alteração que houver, e
haverá os seus endumentos [sic] na forma do seu Regimen-

––––––––––
275
AGCRJ: 6-1-11, f. 6.

135
Luciano R. Pinto

to. E por firmeza de tudo jurará perante o Dezembargor Juiz


Presidente de que se fará termo nesta que vai por nós assig-
nada e com o sello do Senado. Dada em Vereação de 13 de
Novembro de 1822. Eu, Joze Martins Rocha, Subscrevi.
Jose Paulo Sigueira Nabuco Araújo
João Suares de Bulhoens
Domos Vma Gel do Amaral
Jozé Anto dos Santos Xavier
Provizão pela qual V.S. há por bem prover a Joaquim
José Pereira do Amaral no emprego de Avaliador de Escra-
vos desta Corte por hum anno na forma acima.
Para V.S. ver 276
Jurou perante o Dezembargador Juiz Presidente do Sena-
do de servir bem o Emprego de Avaliador na forma da Provi-
zão retro, guardando em tudo o serviço de Sua Magestade
Imperial, bens públicos e as Posturas do Senado. Rio aos 13
de Novembro de 1822. Eu José Martins Rocha a escrevo.277

Vale a nota na qual havia certa insegurança no exercício


do ofício. Era um direito de sua Majestade e/ou dos membros
da Câmara poder retirar o concedido. No mais, restava ao
recém-avaliador, após provisão, receber licença para exercer
o ofício junto à praça.
18 de Dezbro de 1824.
Diz Joze Antonio de Abreu Guimaraens, que para bem
de sua justiça se lhe faz preciso que o Escrivão do mmo
Senado lhe passe pr Certidão. Seo Supte jurou o projecto da
Constituição deste Império.
Pa V.V. SS. se dignem mandar-lhe passar a ditta Certi-
dão na forma requerida.278

Estes eram, portanto, os principais passos previstos


pela burocracia em sua legalidade operacional. Na prática as
coisas não eram tão simples ou mesmo tranquilas. Uma rede
relacional privilegiava poucos homens bem localizados no
––––––––––
276
AGCRJ: 6-1-12, f. 5.
277
AGCRJ: 6-1-12, f. 5v.
278
AGCRJ: 6-1-12, f. 16.

136
PODER E ESCRAVIDÃO

campo social, portadores de uma série de capitais que Va-


lendo-se do poder que exerciam junto à Câmara Municipal
beneficiavam-se mutuamente com um sistema de apadri-
nhamento e troca de favores que, inclusive, dificultava o
provimento de muitos pretendentes ao ofício. Passemos,
então, ao estudo de casos específicos e a precisão desta
malha relacional hierarquizante.

137
Luciano R. Pinto

138
PODER E ESCRAVIDÃO

4
PODER E HIERARQUIZAÇÃO

4.1. Status e Representatividade


Em 1775 toma posse o primeiro Avaliador de escravos
da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Jerônimo
Pereira Guimarães,279 é um caso bastante distinto daqueles
que veremos mais adiante. Estabelecida a primeira eleição
por Ordem Régia, recebeu o eleito sua provisão aos 22 de
março do citado ano. Curioso é que em primeiro de abril de
1778 o mesmo Jerônimo faz procuração a Francisco Xavier e
José Alberto Monteiro.280 Concedia-lhes amplos poderes para
apelar, agravar, embargar e jurar em seu nome, não para
assegurar-se de sua continuidade, mas, contrariando as inten-
cionalidades comuns de reiteração, preocupava-se em desli-
gar-se da ocupação. Tal questão podemos ver em seu agravo
exigindo sua saída da função:
Diz Jerônimo Pereira Guimaraenz, q estabelecendo por
Ordem Régia nesta cidade a elleição de Avaliadores pello
Senado da Câmara, foi o Supte nomeado pa Avaliador dos
Escravos no primeiro anno deste estabelecimento que foi o
de 1775, enq‟ serviu como… [sic] da sua Provizam inclusa e
não tendo… [sic] mais do q‟ dois annos… [sic] hé agora o
––––––––––
279
AGCRJ: 6-1-10, f. 2-8.
280
AGCRJ: 6-1-10, f. 4.

139
Luciano R. Pinto

Supe nomeado outra vez para o mesmo emprego, no prese


ano de 1778 e pedindo vista da elleição para mostrar que ella
não podia ter lugar na forma da Ley do Reino; pois os luga-
res, e empregos do Conselho dados pela Câmara, não se
devem dar a mesma pessoa sem terem passados três annos…
[sic] o Juiz pela Ley, que recorresse a Va Exca como consta
do seu despacho também incluso; mas porq tendo o supe ser-
vido este emprego sem ter ainda passados três annos depôs q
… [sic], e desobrigando-o a Ley em circunstancias taes de
servir; espera o Supe embaraçado para não poder cumprir
com este onuz, porq não só tem o Seu negócio q‟ acudir, mas
também encarregado das dependências da casa de seu irmão
o Alferes José Pereira Guimaraens, que passou a Lisboa a
estabelecer a correspondência de seu negócio e finalme tem a
Cidade muitas pessoas que estão desembaraçadas pa poder
servir o do emprego para o qual o Supe não foi nomeado,
mais do que pa satisfazer os empenhos de pessoas que quize-
rão livrar-se deste emprego: portanto.
Pa V. Exca se digne mandar q o Supe seja escuso do do
onuz, visto q a Ley escuza e q os officiais da Câmara pro-
sedão a nova elleição conforme a Ley e a Justiça de q‟ V.
Exa hé o mais fiel Observador.281

A função era temporária. Sua provisão possuía validade


de um ano, podendo a mesma pessoa assumir semelhante
função somente após três anos, conforme legislação cita-
da pelo agravante. Segundo seus autos, Jerônimo reclama
por estar sendo eleito para um terceiro mandato no ano de
1778. Estranho notar que se costumava eleger pessoas inte-
ressadas. Estas deveriam encaminhar petição, a Câmara ave-
riguava idoneidade junto à praça etc. Ou seja, havia toda uma
ritualização que vedava ou permitia o acesso à ocupação pre-
tendida. Parece-nos que isso não ocorreu nos primeiros tem-
pos em que a função tornou-se efetiva na cidade.
Reclamando de sua nomeação, Jerônimo apela à Lei
do Reino e justifica-se alegando não poder conciliar a fun-
ção com sua ocupação primeira. Possuindo um negócio pró-
––––––––––
281
AGCRJ: 6-1-10, f. 5.

140
PODER E ESCRAVIDÃO

prio e tendo de cuidar da casa de seu irmão, então em Lis-


boa, procurou esquivar-se de sua responsabilidade junto à
Câmara no que se refere às avaliações dos escravos. Como a
maioria dos Avaliadores não possuem inventários post mor-
tem ou qualquer outra fonte de pesquisa alheia à documen-
tação relativa à função, pouco podemos concluir de sua tra-
jetória extraoficial. As razões explícitas foram aqui elenca-
das, no entanto, não há como confirmar estas informações,
nem acrescentar algo novo, pois não há fontes disponíveis
para tanto. Fato é que o primeiro Avaliador não parecia mui-
to a vontade na função. Existe uma lacuna na documentação
e não há evidências de outro Avaliador no mesmo período,
nem se Jerônimo permaneceu no cargo. Apenas em 1797
encontramos nova petição.
José Roberto Pereira Lacerda 282, fazendo pedido à
Câmara candidatou-se à função de Avaliador de escravos e
foi provido aos 25 de janeiro de 1797. No entanto, diferente
de nosso primeiro Avaliador, alguns obstáculos se apresenta-
ram. José Antônio Teixeira de Carvalho283, aos 14 de dezem-
bro daquele ano entra com um agravo à sua continuidade. Se-
gundo ele, José Roberto estaria “impossibilitado por mo-
léstias”284 e, por isso, não poderia manter-se numa função iti-
nerante que deveria atender às diversas praças da cidade.
Como de costume, a Câmara passou a certificar-se da
conduta de seu, ainda, Avaliador e da procedência das novas
informações trazidas pelo agravante. Aos 16 de dezembro, o
Guarda Menor Manuel de Sá atesta estar o agravado sem cul-
pa e aos 23 de dezembro José Roberto consegue sua renova-
ção e permanência na função. Temos, então, a primeira dispu-
ta em torno da ocupação. Tal interesse aguça nossa curiosida-
de, pois, como veremos, nos diversos casos, as disputas eram
––––––––––
282
AGCRJ: 6-1-10, f. 9-25.
283
AGCRJ: 6-1-10, f. 12, 22-24.
284
AGCRJ: 6-1-10, f. 12.

141
Luciano R. Pinto

constantes e poucos permaneciam por muito tempo. Questão


evidente, pois, para manter determinado sistema de poder é
preciso despersonalizá-lo. Desvincular o poder de um sujeito,
mas enquadrar os sujeitos à instituição nomeadora, garantin-
do assim a reiteração do sistema. O poder político, portanto,
domina os saberes, submetendo os seus possuidores e garan-
tindo, assim, a durabilidade das práticas.285
Ao promover a rotatividade da função, o poder nomea-
dor pretende garantir a manutenção do status quo reafirman-
do seu poder através do custeamento da vontade e da repre-
sentatividade. Ou seja, mais interessante que manter uma de-
terminada ordem fixa – que com o tempo pode se desgastar e
caducar; ou mesmo organizar-se de forma a promover uma
subversão da ordem estabelecida – é promover o desejo dos
não-representantes, assegurando-lhes a possibilidades de uma
possível representação do sistema de verdade; certificando-
se, em contrapartida, do irrestrito condicionamento e respeito
às regras dos oficiais empossados, com pena de exclusão de-
corrente da não adequação, e, possível substituição. Mantêm-
se, desta forma, um campo conflituoso, mas, extremamente
útil à manutenção do regime, constantemente legitimado.
Validando o discurso, tanto seus representantes, quanto
seus desejosos por representatividade e distinção, contribuem
à reiteração temporal do constructo.
A única condição requerida é o reconhecimento
das mesmas verdades e a aceitação de certa regra –
mais ou menos flexível – de conformidade com os
discursos validados (…) A doutrina liga os indiví-
duos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, co n-
sequentemente, todos os outros; mas ela se serve, em
contrapartida, de certos tipos de enunciação para li -
gar indivíduos entre si e diferenciá -los, por isso mes-
mo, de todos os outros. 286
––––––––––
285
PEREIRA, Antônio. A analítica do poder. In: Michel Foucault. Belo Horizonte:
Autêntica; FUMEC, 2003, p. 92.
286
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 42-43.

142
PODER E ESCRAVIDÃO

Desta forma, a rotatividade na função, que a partir de


agora perceberemos como uma constante no decorrer de nos-
sa descrição a cerca das relações de poder tanto do acesso
quanto da permanência na ocupação de Avaliador de escra-
vos, corresponde à manutenção do poder e à estratégia de rei-
teração que inclui e exclui por meio de “sistemas de restri-
ção”287 que agrupam os indivíduos em torno de interesses
afins e, no entanto, sustenta suas diferenças e conflitos a fim
de garantir a manutenção da sociedade de discurso. Se o po-
der, de fato, não é algo nos quais os indivíduos possam arvo-
rar-se proprietários, ele é, sem dúvida alguma, uma necessi-
dade que dá existência social e distinção hierárquica. A todos
atinge, verticaliza, separa e promove num constante movi-
mento, pois, todos, em algum sentido ou direção o exercem e
sentem seus efeitos diversos, uns mais e outros menos, mas
todos conforme sua localização no campo social.
Em 1800, surge um novo Avaliador: Isidoro Pinto de
Vasconcellos.288 Este enfrentou em 1804 duradoura disputa
com Alexandre Pereira da Silva Xavier, que fez pedido à câ-
mara antes que findasse a provisão dos Avaliadores em exer-
cício. Estavam na função Isidoro e Manoel Correia Vasquez.
Este último foi mantido na função enquanto o primeiro foi
preterido a Alexandre. Este fato se repetirá. Não era inco-
mum que pretendentes fizessem pedido de provisão antes
mesmo de findar uma das duas vagas disponíveis na cidade.
Não nos parece algo impróprio, uma vez que as leis,
de 20 de junho e 25 de agosto de 1774, pedem provisões
anuais,289 não podendo dentro de um intervalo de três anos
reincidir na função.290 O comum não era o cumprimento da
norma, mas a reiteração de determinados indivíduos.
––––––––––
287
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit.,, p. 38.
288
AGCRJ: 6-1-10, f. 28.
289
AGCRJ: 6-1-11, f. 41.
290
AGCRJ: 6-1-10, f. 2.

143
Luciano R. Pinto

Mesmo apelando para a legislação e tendo feito o pedi-


do em tempo hábil, Alexandre Pereira da Silva Xavier não
recebeu provimento, efetivando-se o antigo Avaliador com os
seguintes argumentos retirados do agravo:
O agravante q bem tem servido aquelle emprego vem a ser
aquelle mesmo q o público interesse chama para a continuação
e serviço daquella ocupação; pois ao público não interessa
experimentar homens e sim servir-se daquelle já experimenta-
do nas circunstâncias em q está o mesmo agravante.
Se vê atacado com notável injúria vendosse com anteci-
pação ou antes de findar o seu tpo provido outro em seu
lugar, outro, torno a repetir, q havendo servido aquella ocu-
pação foi excluído della como elle mesmo confessa o que
não aconteceria se o seu comportamento fosse exemplar.
3 de julho de 1804291

Satisfação pública, experiência e idoneidade parecem


resumir o exposto na decisão em favor de Izidoro Vasconcel-
los. Embora uma antiga e mal sucedida participação na fun-
ção maculasse a imagem de Alexandre Xavier, este não desis-
tiu. Com novo agravo aparece novamente disputando a fun-
ção durante o ano de 1805. Vale notar que numa sociedade de
relações pessoais, por mais que a legislação regulasse deter-
minada conduta, a satisfação pessoal vigorava. Permanecen-
do desde 1800 na função, Izidoro deveria de alguma forma a
alguém favorecer e ser, reciprocamente, beneficiado por ocu-
par o lugar que destemidamente defendia.
Em 30 de junho de 1804 fez procuração a Francisco
Nunes Pereira e Manuel Antônio da Rocha Sampaio, a fim
de cuidarem de seu caso. A insistência de Alexandre arrasta
o processo por um ano, deixando vacante um dos cargos. A
falta de deferimento promoveu o acesso de outra pessoa na
disputa: Joaquim José Pereira do Amaral. A ele mandou-se
passar provisão292 em agosto de 1805, muito a contragosto
––––––––––
291
AGCRJ: 6-1-10, f. 39.
292
AGCRJ: 6-1-10, f. 45c.

144
PODER E ESCRAVIDÃO

de Izidoro que em seu agravo procura ferir a imagem do


novo oponente:
… O mesmo suplicante não cometeu erro, tem servido
com geral satisfação do público, não devendo ser prete-
rido pelo Sup. q he Sigano, he casado com sigana, vive
com elles nos mesmos…[sic] e negócios, como o Sup faz
ver pela att… [sic] inclusa e se procura o suplicado en-
trar para o dito emprego he para promover os seos e de
seos parentes illustres negócios de compras e vendas de
escravos, acompanhadas das subtilezas ordinárias daquella
qualidade de gente. 293

Essa “qualidade de gente”, de origem bastante incerta,


mas, tradicionalmente excluída e segregada, não poderia pre-
encher os quadros da Câmara Municipal. O olhar hostil este-
reotipado há muito os qualifica como “sujos”, “trapaceiros” e
“ladrões”. Os dados históricos sobre os ciganos são compro-
vadamente poucos, assim como as provas de sua conduta
amoral. Ao que parece, sua história no Brasil tem início em
1574, quando João Torres, sua mulher e filhos foram de-
gredados para o Brasil.294
A presença de ciganos no Rio de Janeiro é certa, desde
pelo menos o início do século XVIII. Primeiramente ocupa-
ram uns brejos, que pela dificuldade de edificar e pela insa-
lubridade, eram terrenos desvalorizados. Esta área viria a
ser o Campo de Sant'Ana, conhecido também por Campo
dos Ciganos. Posteriormente, a partir de 1821, viria a ser o
Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes).
Sobre os ciganos residentes no Rio de Janeiro, no
início do século XIX, sabemos que quatrocentos ciga-
nos formavam uma comunidade na periferia sul da
cidade e outro grupo vivia dentro da cidade em torno da
Rua dos Ciganos, Campo de Sant-'Anna e o mercado de
escravos da cidade. 295
––––––––––
293
AGCRJ: 6-1-10, f. 45c.
294
COELHO, F. A. Os ciganos de Portugal: com um estudo sobre o calão. Lisboa: Dom
Quixote, 1995 (Original: 1892). p. 199-200.
295
TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos
Ciganos, 2000. Livro Digital. Disponível na página: www . dhnet . org . br / direitos / sos /
ciganos/ciganos02html / acessado em: 14/02/2007.

145
Luciano R. Pinto

Aliás, a atividade econômica que recebeu maior aten-


ção dos cronistas com relação aos ciganos foi àquela ligada
ao comércio de escravos. No Rio de Janeiro, era grande o
número de ciganos que se dedicaram a esta ocupação.
Entre o final do século XVIII e o início do XIX, muitos
ciganos interessaram-se pelo comércio de escravos. Embora
não tenham deixado de negociar suas mercadorias tradicio-
nais (tecidos, roupas, jóias, quinquilharias, bestas, ca-
valos…), o comércio de cativos transformou, sensivelmen-
te, o papel dos ciganos na sociedade e na economia, sobre-
tudo nas primeiras décadas dos oitocentos.
Entre os comerciantes de escravos, quem mais desta-
cou-se foi José Rabelo, que acumulou grande fortuna, sen-
do, na época da Independência, um dos homens mais ricos
da cidade. Entre os ciganos que moravam na Rua dos Ciga-
nos, nenhum foi mais rico que José Rabelo, grande trafican-
te de escravos no Valongo no começo do Oitocentismo.
Mas era operando no mercado de escravos de segunda
mão que eles estiveram reconhecidamente mais presentes.
Nesse negócio a necessidade de capital era bem menor do
que no comércio de venda por atacado.
No início do século XIX, diversos viajantes estrangeiros
testemunharam a importância que os ciganos tinham no
comércio interprovincial de escravos, sobretudo na re -
gião centro-sul do país.
O francês Gendrin, que morou no Rio de Janeiro de
1816 a 1821, se refere a ciganas “vendedoras ambulantes de
escravos africanos, as quais percorriam as ruas da cidade,
tendo para vender quarenta e cinquenta negros, negras e
crianças de oito a quinze anos”. Seu companheiro Gabert
(1818) acrescenta que ricos traficantes vendiam “carrega-
ções inteiras de negros a ciganos revendedores que nego-
ciam os cativos com particulares”. 296

Pois bem, se rezava a lei que para o preenchimento dos


ofícios camarários seus membros deveriam estar reconheci-
damente conforme a tradição fundadora e ancestral branco-
-católica vemos mais uma subversão às regras anunciada.
––––––––––
296
TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. cit.

146
PODER E ESCRAVIDÃO

Lembremos que nos oitocentos uma nova elite se forma, ago-


ra não mais conforme a nobreza ligada a terra, que por vezes
carecia de capital econômico, predicado este de muitos novos
nobres que ascenderam nestes tempos às funções camarárias.
Assim, uma vez que muitos ciganos enriqueceram não seria
de surpreender que esta “qualidade de gente”, como referiu-
se Izidoro Pinto de Vasconcellos agravando-se de Joaquim
José Pereira do Amaral, viesse assumir funções na Câmara.
“O fato é que houve época em que quase todos os oficiais de
justiça do foro do Rio de Janeiro eram ciganos”.297
De fato, a acusação de pouco valeu. Ninguém perma-
neceu mais tempo na função que este cigano cuja última pro-
visão, que temos registro, foi transmitida em 11 de janeiro de
1826.298 No entanto, há indícios que também no ano de 1827
Pereira do Amaral estava entregue à função até partir para
Portugal no dia 18 de outubro daquele ano.299 Parece-nos que
na sociedade carioca dos oitocentos, como ainda hoje, as
regras eram facilmente “burladas” se isto beneficiasse a
alguém que bem localizado pudesse valer-se da autoridade
para efetivar sua vontade. Esta foi uma das reclamações feita
por Izidoro Pinto de Vasconcellos:
… Se faz ver q a mesma câmara se qr fazer independente
sobre o objeto de q se trata, chamando de sua regalia promo-
ver este ou aquelle nos cargos, como se a Lei lhe conferiu
authoridade para o fazer arbitrariamente, independente das
regras da justiça e do fim da pública utilidade…300

Tantas reclamações não impediram que a Câmara no-


measse Joaquim José Pereira do Amaral, Avaliador. Este ne-
gociante de escravos301 morava no campo da Lampadosa em
––––––––––
297
Cf. DORNAS FILHO, J., Os ciganos em Minas Gerais. In: Revista do Instituto Histó-
rico e Geográfico de Minas Gerais, ano III, vol. III. Belo Horizonte: 1948, p. 166.
298
AGCRJ: 6-1-12, f. 39.
299
AGCRJ: 6-1-12, f. 42, 43 e 47.
300
AGCRJ: 6-1-10, f. 45k e 45l.
301
AGCRJ: 6-1-11, f. 3.

147
Luciano R. Pinto

1805, ano de seu primeiro provimento. No final de sua carrei-


ra, quando partiu para Portugal, em 1827, residia no Valon-
go.302 Esta trajetória é bastante significativa, pois, Cam-po da
Lampadosa foi o nome empregado a partir de 1747 ao antigo
Campo do Róssio, depois chamado Campo dos Ciganos até
que em 1890 foi denominada Praça Tiradentes. Uma região
de brejos, como vimos anteriormente, bastante desvalorizada.
Mudar-se para o Valongo, por sua vez, parece indicar certa
prosperidade.
Era uma enseada espremida entre duas elevações cobertas
de verdura: o outeiro da Saúde de um lado e de outro o morro
do Livramento – eis como o descreve Luís Edmundo em O
Rio de Janeiro dos vice-reis. Lembra Robert Conrad: Os
armazéns normalmente ocupavam os andares inferiores dos
edifícios e frequentemente eram amplos o bastante para
acomodar 300 ou 400 escravos cada um (…) Era a maior fei-
ra de escravos de todo o Brasil.303

“Visitando o Rio em 1792, Lord Macartney calculava


em 5.000 os que eram vendidos anualmente, e só no Valongo,
ao preço médio de 28 esterlinos por cabeça”.304 Era uma rua
comprida e sinuosa que ia da beira-mar até o nordeste da
cidade. Quase todas as casas eram depósitos de escravos.305
Muitos que ali negociavam também moravam, como bem nos
lembra Debret, descrevendo um daqueles armazéns: “a porta
aberta dá para um pequeno pátio que separa o armazém da
moradia, onde se encontram a dona da casa, a cozinha e os
escravos domésticos”.306 Não era a região do Valongo o lócus
prioritário da elite carioca oitocentista. Longe disso. Antes,
––––––––––
302
AGCRJ: 6-1-12, f. 50.
303
SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Léo Christiano
Editorial, 1997, p. 323.
304
GERSON, Brasil. Op. cit., p. 150.
305
Cf. WALSH, Robert. Notícias do Brasil (1828-1829). Belo Horizonte – Itatiaia, São Pau-
lo: EDUSP, 1985. Vol. 2, p. 152.
306
DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 231.

148
PODER E ESCRAVIDÃO

estava marcado pela sua razão de ser principal: comércio de


escravos. Quem ali morava não pertencia às camadas mais
enriquecidas da população, no entanto, não se contava entre
as mais pobres.
O espaço urbano era então como hoje profundamente
marcado pelas diferenças sociais. Enquanto a aristocracia se
espraiava pelos novos subúrbios do Rio de Janeiro (Catete,
Botafogo, Lagoa Rodrigo de Freitas, estrada de S. Cristó-
vão), os comerciantes e os artesãos, tal como os empregados
públicos, concentravam-se no centro da cidade, e a gente
mais miserável morava na margem norte, para os lados do
Saco dos Alferes, Catumbi e Mataporcos, onde as casas não
passavam de choças aglomeradas entre os morros e o mar.307

Assim, pensamos que sua mudança do campo da Lam-


padosa para o Valongo, não deixa de indicar certa ascensão
econômico-social. Lembremos que na Lampadosa ou no Ve-
lho Rossio, como ficou depois conhecido, as “casas de mora-
dia eram pouquíssimas e de lamentável aspecto. Diante delas,
no largo propriamente dito, tudo não passava de charcos e
moitas de capim (…) onde estacionavam carruagens e des-
cansavam os animais que as puxavam”.308 Diferentemente do
Valongo, que mesmo na periferia da cidade, acomodava co-
merciantes, compradores, negócios e, quem sabe, alguma pe-
quena fortuna. Giro de capital havia, não resta a menor dúvi-
da. Pereira do Amaral ali morou até deixar o Brasil.
Duas indicações ao ofício podem nos ajudar a dimen-
sionar o prestígio que Pereira do Amaral gozava. A primeira é
uma indicação anexa ao pedido de renovação da provisão
assinada por um Juiz de Fora, ex-presidente do Senado e,
então, auditor das tropas de mar e terra do Estado do Brasil:
José da S. Loureiro Borges, Juiz de Fora, Crime Prove-
dor, expresidente do Senado, Auditor das Tropas de Mar e
Terra deste Estado do Brazil p. S.A.R.
––––––––––
307
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Op. cit., p. 213.
308
GERSON, Brasil. Op. cit., p. 113.

149
Luciano R. Pinto

Atesto que Joaquim José Pereira do Amaral servindo de


Avaliador de Escravos se portou de tal maneira que nunca
cometeu crime que o mal conceituasse e por esta me ser
pedida mandei passar que assignei.
Rio de Janeiro, 4 de Agosto de 1807.
José Loureiro Borges309

A segunda indicação foi feita pelo próprio D. João, em


1819, mantendo Pereira do Amaral no ofício de Avaliador de
escravos.
Dom João por graça de Deos rey do Reino Unido de
Portugal e do Brasil e Algarves, d‟aquem e d‟além mar em
África, sendo senhor de Guiné e da conquista navegação e
comércio da Ethiopia, Arábia, Pérsia e da Índia &. Faço
saber a vós Juiz de Fora, Vereadores e mais Oficiais do
Senado da câmara desta Cidade: Que sendo-Me presente
em consulta da mesa do Meu desembargo do Paço o reque-
rimento de Joaquim José Pereira do Amaral actual Avalia-
dor dos Escravos, em que me pedia providência para ser
conservado na serventia do mesmo officio, na foma das
Minhas Leis enquanto não commetter culpa, passando-se-
lhe por este Senado as Provisões do estilo sem se admitirem
requerimentos de outro para a exclusão do Supplicante,
afim de evitar os inconvenientes das contínuas oposições
suscitadas a esse respeito pelos seos emolumentos e em
attenção também á honra, promptidão e limpeza de mãos,
com que elle expunha haver sempre servido o dito Officio e
ao pleno conhecimento que tem do valor dos escravos, por
ser nestes em que gira o seu negócio: E tendo consideração
ao referido a informação que mandou tirar pelo Ouvidor
desta Comarca com audiência vossa, e aos mais que se Me
expôs na mencionada Consulta em que fui ouvido o
Desembargador Pronunciador de Minha Coroa e Fazenda, e
com o parecer da qual houve por bem conformar-me com
Minha Immediata Presolução de quatro do corrente mez e
anno: sou servido determinar-vos que conserveis ao Suppli-
cante na Serventia do referido Officio d‟ Avaliador de
Escravos sem que della possa ser removido e privado na
forma das Minhas Leis sem culpa formada; bem atendido
––––––––––
309
AGCRJ: 6-1-11, f. 16.

150
PODER E ESCRAVIDÃO

porém será o Supplicante obrigado a tirar em cada hum


anno nova Provisão por este Senado, o qual a não poderá
reformar em cada hum delles sem novamnete se informar
do procedimento que o Supplicante houver tido no tempo
da antecedente Provisão: Como expressamente se determi-
na no Paragrapho um décimo da Lei de 20 de Junho de Mil
setecentos e setenta e quatro. Cumpri-o assim.
El Rey Nosso Senhor mandou por Seo especial man-
dado pelos Ministros abaixo assignados de Seo Conselho e
Seos Desembargadores do Paço… [sic] que Anastácio de
Novaes a fez no Rio de Janeiro, sete de março de mil oito-
centos e dezenove. Bernardo José de Moura a fez escrever.
João Severino Marcielda Costa. Anto Felipe Soares. 310

Segundo a carta, Pereira do Amaral solicitou a inter-


venção de D. João. Era intensa a concorrência e uma lacuna
de dois anos na documentação nos impediu de identificar
quem disputava com Amaral. Seja como for, D. João assim se
referiu ao suplicante:
… E em atenção também a honra, promptidão e limpeza de
mãos com que elle expunha haver sempre servido o dito
offício e ao pleno conhecimento que tem do valor dos
escravos, por ser nestes em que gira o seu negócio (…) sou
servido determinar-vos que conserveis ao Supplicante na
Serventia do referido offício d‟Avaliador de Escravos sem
que della possa ser removido e privado na forma das Mi-
nhas Leis sem culpa formada. 311

Uma intervenção nos assuntos camarários permitiu a


continuidade de Amaral. Parece-nos que, de alguma forma,
D. João conhecia o, então, Avaliador. Seria, apenas, por meio
de uma audiência relativa à questão exposta ou, em algum
momento, Pereira do Amaral prestou ao rei algum tipo de ser-
viço relativo à sua ocupação? Seria isso possível? Pensamos
que sim. Havendo apenas dois Avaliadores de escravos para a
––––––––––
310
AGCRJ: 6-1-10, f. 60.
311
Idem.

151
Luciano R. Pinto

cidade do Rio de Janeiro, então, capital do Império, não seria


absurdo entrever alguma proximidade, mesmo que indireta.
Desde sua primeira provisão, contamos quatorze anos
que Pereira do Amaral exercia este ofício juntamente com sua
ocupação de negociante de escravos. Em algum momento,
mudou-se para o Valongo, ou seja, comercializava escravos
novos e avaliava os cativos em posse da câmara Municipal da
capital do Império. Em todo este tempo Pereira do Amaral
nunca prestou serviço ou fez algum agrado a D. João? Por
que motivos D. João interviria em favor de um negociante e
Avaliador de escravos? São questões difíceis de serem res-
pondidas, mas perfeitamente possíveis de alguma legitimida-
de. Pereira do Amaral parecia gozar de algum prestígio junto
à coroa e alguns oficiais da Câmara. Sua continuidade moti-
vava tanto o ex-presidente da Câmara, José da S. Loureiro
Borges, quanto àquele que jurava bem servir.
Vimos, anteriormente, a questão da descontinuidade e
da exclusão como formas de manutenção do poder. “O poder,
quanto mais exclui, mais se afirma”.312 No entanto, a conti-
nuidade é, também, uma outra forma de manutenção, desde
que bem situada a noção de disciplina e de penalidade.313
Uma vez certificada a adequação do indivíduo representante
com a sociedade de discurso nomeadora, não existe o porquê
da exclusão. Este é aplicável apenas àqueles não-adequados
ou não-conformados. O agente nomeado, reproduzindo o dis-
curso, legitima sua permanência. Daí podemos entender a
exacerbada preocupação com a idoneidade dos Avaliadores.
Ser idôneo, mais que possuir um determinado comportamen-
to esperado é, de fato, comprometer-se em representar, ou se-
ja, tornar presente, com sua presença, a sociedade de discurso
e seu regime de verdades.
Não ter “culpa formada”, 314 nem “crime algum”,315
são expressões que fazem parte dos autos dos Avaliadores e
––––––––––
312
PEREIRA, Antônio. Op. cit., p. 14.
313
Ibidem, p. 15.
314
AGCRJ: 6-1-10, f. 60.
315
AGCRJ: 6-1-11, f. 3.

152
PODER E ESCRAVIDÃO

que são aplicáveis à não contradição do esperado. E o que


se espera do agente representante? “Aparentemente, a úni-
ca condição requerida é o reconhecimento das mesmas ver-
dades e a aceitação de certa regra de conformidade com os
discursos validados”.316 Desta forma, as instituições criam
condições para a permanência de seus representantes ofi-
ciais impondo-lhes certo número de regras, 317 com pena de
exclusão daqueles que não correspondam ao esperado. Neste
sentido, a expressão “crime” referenda o ato de ferir a
regra estabelecida e a “culpa” alude-se àquele que praticou
o crime, ou seja, o culpado, pois agiu no exercício de sua
vontade contra o esperado.
Ao se nomear, portanto, existe uma cláusula condicio-
nal intrínseca à adequação do indivíduo à sociedade de dis-
curso. Esta, dando significado ao processo de hierarquização
tem em suas mãos o controle dos indivíduos, alicerçando a
vontade individual em favor do sentido da representação. Por
isso, nas cartas de provisão se lê após a nomeação: “…se tan-
to nos parecer conservá-lo, ou S. Majestade Imperial não
mandar o contrário”.318 Poder e disciplina caminham juntos,
estando a última comprometida com a primeira.
Pereira do Amaral parecia um homem comprometido
com a sociedade de discurso que lhe concedia existência
social ou, pelo menos, com alguns indivíduos bem localiza-
dos no campo político aos quais interessava sua permanência
na função. Se não fosse assim, seria difícil entender uma
estabilidade tão duradoura num ofício de tamanha rotativida-
de. Após a carta de D. João, Amaral não teve mais problemas
com disputas até que em 1827 partiu aos 18 de outubro no
bergantim Jordão com destino a Portugal.319
––––––––––
316
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 42.
317
Ibidem, p. 36.
318
AGCRJ: 6-1-12, f. 5.
319
AGCRJ: 6-1-12, f. 47.

153
Luciano R. Pinto

Em 1808, enquanto não se decidia uma questão envol-


vendo Pereira do Amaral e Tibúrcio Pamplona, que se arras-
tou por vários meses, foi provido na função Manoel Correa
Vasques.320 Evidente, que seu aceite não se deu sem a devida
acareação:
Diz o Procuror do Senado da Camra desta Cidade, e Cor-
te do Brasil, que elle preciza que o Escrivam do m mo
Senado lhe certifique ou atteste se antes de se nomear a
Manoel Corrêa Vasques para servir interinamente de Ava-
liador de Escravos, houve, ou não Requerimtos de Partes que
pedissem Avaliadores que fizessem varias avaliaçoesns, vis-
to que o Senado não tinha ainda provido um avaliador.
P. a V.M. seja servido mandar-lhe passar emforma que
passa fé. 321

Ao que parece, a Câmara não desejava entrar em novas


disputas que pudessem arrastar-se pela burocracia. Exigia-se
a certeza da não intencionalidade de outro suposto pretenden-
te. Ele, contudo existia. Clemente Jozé Ribeiro, não era o
único, embora, uma leitura mais atenta à documentação nos
permita algumas conclusões. Vejamos o resultado da pesquisa
assinada por Antônio Martins Pinto de Britto, secretário da
Câmara e Cavalheiro da Ordem de Cristo:
Antonio Martins Pinto de Britto, Cavalheiro da Ordem
de Christo Cidadão desta Corte do Brazil, e nella Secreta-
rio, e Escrivão proprietario do Senado da Camara por Sua
Alteza Real que Deos guarde &
Atesto e Artifico, que axandoce só provido pello Senado da
Camara hum dos Avaliadores de Escravos por pender Agravo
sobre nomeação do outro, e sendo certo que hum só não pode
fazer as funçoens do seu ofício por que estas dependem dos
Votos unânimes de ambos, a este Senado se deregirão por par-
tes diversas Requerimentos para se nomiar quem devesse fazer
avaliaçoens com o pretesto de que estavão as suas cauzas imó-
veis por esta falta, entre os quaes tão bem Requerem Clemente
Jozé Ribeiro, e a esta Petição acompanhava outra em que
Requerem ao Ilustríssimo Dezembargador Conselheiro Chan-
––––––––––
320
AGCRJ: 6-1-11, f. 31.
321
AGCRJ: 6-1-11, f. 47.

154
PODER E ESCRAVIDÃO

celler a nomeação deste oficial com o despacho do mesmo que


dizia Requerece ao Senado das Camara ; cuja petição, bem
como as outras entreguei aos Suplicantes; O referido hé verda-
de, e… [sic] aprezente em observacia do despacho… [sic] do
Dezembargador Juiz Prezidente, a qual vaÿ por mim assinada
aos vinte e nove de Julho de mil oito centos e oito annos. 322

Detalhe importante era a necessidade de dois avaliado-


res que deveriam concordar as respectivas avaliações. O que
nos importa agora é perceber que o documento aponta para
três ou mais pretendentes, no entanto, o único explícito é
Clemente Jozé Ribeiro. Junto a ele havia outro requerimento
equivocadamente, ou não, encaminhado ao Desembargador
Chanceler, enquanto deveria ser encaminhado ao Senado da
câmara; por fim o documento fala de “outras” petições. O
silêncio que a documentação impõe aos outros candidatos
parece apontar algo. Não eram dignos de citação? Talvez. No
entanto, o único aludido foi o empossado.
Veremos mais adiante ao tratar da vontade e da exclu-
são que muitos desejavam as funções camarárias, mas, não
eram descendentes da nobreza da terra e, tão pouco, pode-
riam, através do capital econômico, introduzir-se no espaço
político. Pardos, ciganos e demais pessoas consideradas indig-
nas ao habitus oitocentista, poderiam burlar normas exclu-
dentes pelo simples fato de possuírem capital econômico.
Vimos o exemplo de Joaquim José Pereira do Amaral. Ser
cigano, comprovadamente casado com cigana e morando em
lugar reconhecido como habitado normalmente por ciga-
nos,323 não o impediu de ocupar uma função nomeada pela
Câmara e nela permanecer por mais de vinte anos. O mesmo
não ocorreu com Jozé Soares Pinho, que aos 4 de novem-
––––––––––
322
AGCRJ: 6-1-11, f. 47v.
323
“… negociante de escravos hera, como dice o agr. Ser no seu requerimento f.9, p. q. se o
indagassem o acharão sigano, ou casado com sigana, vivendo entre essa qualidade de gen-
te, com mesmo tráfico, como se faz certo da atestação f.3 q. podia ser assinada p. inume-
ráveis pessoas se ouvesse tempo p. isso.” (AGCRJ: 6-1-12, f. 45L).

155
Luciano R. Pinto

bro de 1826 fez pedido para ocupar a função e não foi acei-
to.324 Era tão cigano quanto Pereira do Amaral, contudo, “se
achava reduzido ao estado de indigência”. Seu e outros casos
veremos a seu tempo.
Aos 23 de janeiro de 1813, o Capitão Bento José de
Magalhães, então Avaliador de escravos do Senado da Câmara,
achava-se de partida para Minas Gerais325 por “estar ele com
moléstias, [e por isso] precisando se retirar para o lugar de seu
domicílio, para „gozar de ares livres‟”.326 Atestou-se o fato pelo
médico indicado para avaliar o caso dias antes de sua partida:
Joaquim José Carvalho cirurgião-mor aprovado em
Cirurgia, Medicina e Anatomia conforme as Ordens do
Príncipe Regente Nosso Senhor, atesta que o dito Capitão
Bento José Mages tem sido atacado nesta Corte, de “obstru-
ções de baixo-ventre”, e que seu tratamento não tem obtido
resultados devido o clima da cidade. O médico recomenda
ao paciente mudança de “ares”.
20/12/1812.327

Estranho alguém ter domicílio em Minas e exercer fun-


ção no Rio de Janeiro. Embora não seja de todo improvável.
Os limites entre o campo e a cidade pareciam bastantes tê-
nues do ponto de vista político-social. Ademais, como para
determinadas funções uma boa indicação parecia resolver
bem os problemas, não podemos duvidar que, de alguma
forma, José de Magalhães deveria conhecer boas peças do
tabuleiro político. Afinal, o título que precede seu nome nos
indica algum prestígio.
Sucedeu-lhe Capitão Monoel José Per. da Silva, como
podemos conferir de seus autos:
Capitão José Per. Da Silva pede o cargo de Avaliador que
até então pertencia a Bento José de Mag. – 23/1/1813 328
––––––––––
324
AGCRJ: 6-1-12, f. 32.
325
AGCRJ: 6-1-10, f. 48.
326
AGCRJ: 6-1-10, f. 49.
327
AGCRJ: 6-1-10, f. 50.

156
PODER E ESCRAVIDÃO

Diz o Capitão Monoel José Per. Da Silva, q. tendo


regd. a este Senado Provizão de Avaliador de Escravos em
lugar do Capitão Bento José de Mag., que se acha de parti-
da p. Minas, forão V.SS. Servidos mandar p. seu respeitável
despacho (…) perante o Escrivão, cujo desp. se acha cum-
prido com a dita dezistência no respectivo cartório. –
3/2/1813 329

A partir de 1823 encontramos um nome que se repete


nos seguintes anos: Jozé Antonio de Abreu Guimaraens.
Antes de entrarmos propriamente neste caso, vale a nota refe-
rente aos processos que não estão completos e possuem lap-
sos de tempo consideráveis. Isso não nos permite nomear am-
bos Avaliadores que em conjunto apreçavam os escravos para
os leilões da Câmara. Vale ressaltar, contudo, que não es-
tamos, ao analisarmos os Autos de Abreu Guimaraens, cuja
da-ta inicial é de 1823, saltando uma década de outros pro-
cessos. Lembremos que um Avaliador, já visto, tinha “cadeira
cativa”: Joaquim José Pereira do Amaral. Este, de 1805 a
1827, ocupou uma das duas vagas disponíveis aos cargos de
Avaliador de escravos. Sendo assim, nosso quadro não está
tão defasado, pois, os casos que estamos vendo desde que
Amaral assumiu a função, dizem respeito a uma das duas Va-
gas, uma vez que a outra está reiterando-se no tempo.
O mesmo ocorre agora com Abreu Guimaraens. Da
mesma forma que Amaral, este novo Avaliador conseguiu
permanecer alguns anos no ofício. Como pudemos observar,
conservou-se até o último ano que temos registro: 1830. Con-
jecturamos, no entanto, que para o ano seguinte também
ocorreram avaliações, pois, o mesmo Avaliador em questão
pede em 17 de outubro de 1830 provisão para o ano seguin-
te.330 Dos seus autos, a primeira documentação refere-se à sua
provisão, datada de oito de fevereiro de 1823:
–––––––––––––––
328
AGCRJ: 6-1-10, f. 49.
329
AGCRJ: 6-1-10, f. 48.
330
AGCRJ: 40-1-27.

157
Luciano R. Pinto

O Senado da câmara da muito Leal e Heróica Cidade do


Rio de Janro e Corte do Império do Brasil &
Fazemos saber aos q a presente nossa Provizão virem
que José Antonio de Abreu Guimaraens nos requereo queria
continuar a servir o Emprego de Avaliador de Escravos des-
ta Corte; e constando-nos q bem tem servido: em atenção
ao referido. Havemos por bem prover como por esta faze-
mos ao dito Jose Antonio de Abreo Guimaraens no Empre-
go de Avaliador de Escravos desta Corte por tempo do cor-
rente anno, se tanto nos parecer conservallo, ou Sua Mages-
tade Imperial não mandar o contrário, ficando sugeito as
alteraçoens que houver; e com a dita serventia haverá os
emolumentos na forma do seu Regimento. E por firmeza de
tudo Jurará perante o Dezembargador Juiz Prezidente de q
se fará termo nesta q assignamos, e leva… [sic] e Senado.
Data em câmara de 8 de Fevereiro de 1823. Eu Antonio
Martins Pinto de Britto a escrevi. 331

Sendo sua provisão de fevereiro de 1823, destinada ao


exercício daquele ano e, como deixa claro, “queria continuar
a servir o Emprego de Avaliador de Escravos”, pois, “bem
tem servido”, significa que já o exercia no ano anterior. Foi,
então, provido para o dito ano, com a condição de continuar
bem servir o emprego se tanto parecer ao Conselho conservá-
lo ou “sua Majestade Imperial não mandar o contrário,
ficando sujeito as alterações que houver”.332 Não estamos
certos de que tipo de proveito financeiro tirava o Avaliador de
sua ocupação. Este é notório, existia, conforme a documenta-
ção nos aponta. A forma como isso se dava não é clara. Pare-
ce-nos certo afirmar que “emolumento” não sinonimiza com
salário, sendo uma espécie de gratificação ou retribuição,
algo como um lucro eventual.
O Avaliador de Escravos apreçava os cativos apreendi-
dos pela municipalidade pelo não resgate de dívidas ativas.
Uma vez estes escravos indo a leilão público a quem mais des-
––––––––––
331
AGCRJ: 6-1-12, f. 9.
332
Idem.

158
PODER E ESCRAVIDÃO

se, tarefa exercida pelo porteiro da Câmara, uma espécie de


porcentual era destinado aos seus envolvidos. Deveria o Ava-
liador receber algo referente ao preço final do leilão. Ele preci-
sava seu valor médio, segundo aparência e habilidades, atri-
buindo a este o valor mínimo da “mercadoria”. Do valor da
venda, uma porcentagem deveria ser destinada àquele que o
avaliou. Daí o termo emolumento, ou seja, lucro eventual
decorrente de um serviço prestado. Lembramos que a maioria
dos serviços disponíveis nas municipalidades não eram remu-
nerados e que o Avaliador de escravos não era um cargo, mas,
uma função licenciada pela Câmara que regula suas atribui-
ções e desempenho dos oficiais. Neste sentido, também o Ava-
liador de escravos não gozava de um salário fixo, mas de um
emolumento, uma gratificação eventual com valor proporcio-
nal, certamente precisado, conforme o preço final do leilão.
Jozé Antonio de Abreu Guimaraens em novembro
daquele ano recebe nova provisão para 1824:
Illmos Snres do Mto respeitável Semdo da câmara
22 de 9bro de 1823
Diz Jozé Antonio de Abreu Guimaraens, Actual Avalia-
dor dos Escravos desta muito Leal e Heroica Cidade e Cor-
te do Rio de Janeiro; que estando a findar o tempo da Pro-
vizão juncta com que o Supte serve o referido officio como
se vê da mesma; e dezeja continuar naquele emprego, sendo
do gosto de VVSS e mustrando-se mismo pela incluza folha
Corrida; livre de qual quer culpa.
P. a VV Ilmas; sejão servidos mandar passar sua ditta
nova provizão pr o ano de 1824. 333

O mesmo ocorreu para os anos de 1825,334 1826,335


336
1827, 1828,337 1829,338 1830339 e 1831.340 Todos estes
––––––––––
333
AGCRJ: 6-1-12, f. 8.
334
AGCRJ: 6-1-12, f. 12-13v.
335
AGCRJ: 6-1-12, f. 28-31.
336
AGCRJ: 6-1-12, f. 34-37.
337
AGCRJ: 6-1-12, f. 51-54.
338
AGCRJ: 6-1-12, f. 58-60.

159
Luciano R. Pinto

encaminhamentos ocorreram sem transtorno. Pereira do Ama-


ral e Guimarães são os Avaliadores de maior permanência na
função, pelo menos no que se refere à comprovação empírica
de sua continuidade. Conforme podemos perceber, outros não
tiveram a mesma sorte.
Pereira do Amaral, ao que parece, embora estivesse
com provisão regular para o ano de 1826, tudo indica que ele
já não exercia suas funções como deveria. Um pedido de pro-
visão encaminhado por Jozé Soares de Pinho, aos 4 de no-
vembro daquele ano, nos ajuda a entender o que possivel-
mente ocorria. Segundo ele, o oficial em questão estava
“impossibilitado de moléstias”.341 Situação não comprovada,
mas possível de ocorrer, não resta a menor dúvida. O que
causa estranheza é o suplicante possuir tal informação e a
Câmara não. Ao exposto insere-se a seguinte anotação res-
pondida dois dias depois de seu pedido: “O lugar que o Sup.
requer não consta estar vago, p r isso parece não dever ser
deferido”.342
Decerto, a Câmara não conhecia todos os passos de
seus Avaliadores uma vez que estes não permaneciam dia-
riamente dentro da instituição. Aliais, nem os vereadores
possuíam este costumeiro. Como função itinerante, mais
provável era desconhecimento de seu paradeiro. Somando-
se a isso, caso no período não houvesse previsões de venci-
mento de hipoteca de escravos, acarretando falta de leilões
previsíveis, como poderia a Câmara saber de seus avaliado-
res? Estariam entregues às suas ocupações primeiras decer-
to. Possivelmente, havia algum sistema de contato, que não
é claro na documentação. Um determinado controle por par-
te dos Avaliadores das hipotecas por vencer também deveria
–––––––––––––––
339
AGCRJ: 6-1-12, f. 65-67.
340
AGCRJ: 40-1-27.
341
AGCRJ, 6-1-12, f. 32.
342
Idem.

160
PODER E ESCRAVIDÃO

ocorrer. Assim, estariam atentos aos prazos e execuções de


seus serviços.
Para o lugar de Pereira do Amaral apresentaram-se três
pessoas. A primeira era a mesma que no ano anterior requereu
o lugar que agora estava disponível. Jozé Soares de Pinho,
era casado, maior de 50 anos de idade e que declara em seus
autos estar reduzido ao “estado de indigência (…) pela falta
de bens”.343 Em novembro de 1826 havia feito o pedido para
seu filho. Este foi negado por três motivos: era menor de 25
anos, cigano e estava reduzido ao estado de indigência.344 O
segundo, Capitão Daniel Luiz Viana, traficante de escravos a
mais de vinte anos, por sua vez, alegava estar “onerado de
grande família”.345 O último candidato ao ofício era tio
daquele que partiu. Antonio Jozé Pereira do Amaral alegava
ter que cuidar dos filhos que seu sobrinho deixou ao viajar
para Portugal. Vejamos parte de seus autos:
2 de 8bro de 1827
Antonio Jozé Pereira do Amaral, tio de Joaquim J. P. do
Amaral, pede o cargo do sobrinho que viajou e deixou seus
filhos menores com Antonio.
V.Sas fazem ao Suppte pa amparar seis filhos inocentes
com a espera da bondade de V.Sas portanto
Diz Antonio José Pereira do Amaral q elle Supp te he tio
de Joaquim José Pereira do Amaral, morador q era no
Valongo e avaliador de Escravos q era o qual se foi p a Por-
tugal e como deixou seus filhos menores q r o Suppte empa-
rallos como pede a V. Sas hajão de admetir ao Suppte, tio do
ditto na ocupação q elle servia q he huma grande esmolla q
V. Sas fazem ao Suppte pa emparar seus filhos innocentes,
como espera da bondade de V. Sa por tanto.
P. a V.Sas hajão de atender a Suplica do Suppte aten-
dendo ser hum Pobre Vellao de secenta e tantos Annos, e
querer emperar quatro inocentes como assim espera.346
––––––––––
343
AGCRJ: 6-1-12, f. 42.
344
AGCRJ: 6-1-12, f. 32.
345
AGCRJ: 6-1-12, f. 43.
346
AGCRJ: 6-1-12, f. 50.

161
Luciano R. Pinto

Pois bem, o tio de Joaquim José Pereira do Amaral não


parecia gozar dos mesmos predicados de seu sobrinho. Com
sessenta e tantos anos, idade bastante avançada para o trabalho
que desejava exercer, e claramente expondo suas misérias ficava
difícil convencer os vereadores de sua serventia. Não apresenta-
va nenhuma indicação, apenas os gastos extras com a família e
os filhos daquele que abandonou a função pretendida. O mesmo
podemos dizer de Jozé Soares de Pinho, com mais de cinqüenta
anos e declaradamente indigente. O caso particular destes dois
será analisado mais adiante. O Capitão Daniel Luiz Viana não
está de todo distante de seus companheiros na disputa, afinal,
ele mesmo afirma estar onerado de família. No entanto, ao que
parece, existe algo de distintivo: um título. Daniel Luiz Viana,
era “capitão”. Ademais, traficava escravos há vinte anos con-
forme consta de seu pedido de provisão e de carta indicativa:
Nós abaixo assignados attestamos e juramos, sendo ne-
cessário em como o Capitão Daniel Luiz Vianna, tem todo o
conhecimento do negocio de Escros pela grande prática que
tem tido, e tem de os vender a mais de 20 annos, e por nos
ser esta pedida a mandam os passar & só a assignamos.
Rio de Janeiro 18 de Outbro 1824
Joze Alex Ferre Brandão
João Francisco Pera de Affoncas
Lourenço Anto de Rege…
Thomé Ribeiro
João Alz‟de Sza Guimes
Joaquim Antonio Ferra 347

De todos, parecia aquele que melhor pudesse corres-


ponder ao esperado. Daniel Luiz Viana aparece em 1828
pedindo nova provisão para permanecer na função. 348 Em
outubro do ano seguinte novamente o vemos fazendo pedido
de renovação da função para o exercício de 1830.349
––––––––––
347
AGCRJ: 6-1-12, f. 44.
348
AGCRJ: 6-1-12, f. 55.
349
AGCRJ: 6-1-12, f. 62.

162
PODER E ESCRAVIDÃO

Diante das relações político-sociais apresentadas perce-


bemos que na Câmara Municipal carioca, no primeiro quartel
dos oitocentos, é forte o sistema de restrição da vontade indi-
vidual em favor do constructo elaborado, ou seja, aquele sis-
tema de verdades na qual o Avaliador de escravos devia legi-
timar com sua atuação no campo social. É por isso que no
juramento exigido diante do Desembargador atestavam guar-
dar “em tudo o serviço de Sua Majestade Imperial, Bem
público e as Posturas do mesmo Senado”.350
Todo sistema de restrição implica uma ritualização,
que, ao mesmo tempo em que qualifica o nomeado e confere-
lhe status e hierarquização, também, restringe seu comporta-
mento.351 O portador oficial de uma verdade é, por isso, obje-
to de uma série de cerceamentos. A reiteração temporal vin-
cula-se, portanto, à sua conformidade a esta mesma verdade
que lhe outorgou existência social e distinção, mas, que tam-
bém possui em si mesma a necessidade de reiterar-se. É o que
podemos chamar de sistematização da descontinuidade.
A conformidade dos indivíduos ao sistema de verdade é
uma exigência à permanência dos nomeados, com pena de
exclusão daqueles mais resistentes. A ideia de exclusão está
ligada à de reclusão.352 Esta, compreendida não como alicer-
çamento físico, mas, da vontade. O que importa é a legitima-
ção do sistema, os agentes nomeados existem para isso, sua
atuação deve ser de tal forma útil que possam conformar
outros indivíduos ao mesmo sistema, de forma que, represen-
tatividade e vontade possam contribuir com um único objeti-
vo: legitimar o sistema de verdade e sua sociedade de discur-
so reiterando-a temporalmente. Guardar o bem público, as
posturas e o serviço de sua Majestade é uma ritualização do
objetivo agora exposto.
––––––––––
350
AGCRJ: 6-1-12, f. 13v.
351
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 38-39.
352
PERERIRA, Antônio. Op. cit., p. 25.

163
Luciano R. Pinto

Como sistema de verdade estruturado, é a sociedade


produtora deste mesmo discurso que determina os critérios de
bondade. As posturas buscam a manutenção da ordem, ou
seja, daquilo que estaria bom e conforme o esperado e ordiná-
rio, enquanto sua Majestade, como grande pai, era o símbolo
do cuidado e da harmonização de seus súditos. Afinal, “uma
disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto
de métodos, um corpus de proposições consideradas verda-
deiras…”353 que tornam legítima, inclusive, a exclusão em
nome da ordem. A manutenção da ordem é a manutenção do
próprio poder que a criou. Visto isso, passaremos a analisar
alguns casos de exclusão. Quem são os rejeitados? Os sem
vez? Aqueles que tiveram o acesso negado. Por quê? Em
nome de que ou de quem? Representação e vontade, portanto,
se conformizam e legitimam o mesmo regime de verdade,
que prevê, para a manutenção do poder, um rigoroso aparelho
de restrição e a sistematização da descontinuidade.

4.2. Vontade e Exclusão


A “atribuição de valores está ligada à estrutura parti-
cular [das] sociedades, e, sobretudo à sua grande diferen-
ciação e individualização.”354 Sendo a consciência humana
caracteristicamente social, nada mais comum perceber que
os indivíduos de uma mesma época e de um mesmo lugar
tendem a demonstrar habitus semelhantes. Legitima-se,
portanto, determinada estrutura própria de cada época e,
junto com ela, seus sistemas de valorização e hierarquiza-
ção. O que parece identificar os indivíduos, de todos os
tempos, é o fato de “estimamos aquilo que pode ser reco-
nhecido de fato como diferenciador, como singular e úni-
co”.355 O desejo de poder e distinção transpassa as gera-
––––––––––
353
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 30.
354
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Op. cit., p. 35.
355
Ibidem, p. 35 e 36.

164
PODER E ESCRAVIDÃO

ções. Cada sociedade, no entanto, tem sua forma específica


de distinguir. A carioca do primeiro quartel dos oitocentos
possuía um mecanismo de diferenciação baseado na ocio-
sidade e na posse do trabalhador cativo.
Claro, que as coisas não eram tão simples. Não bastava
possuir um escravo, era preciso ser reconhecido pelos demais
no campo social. “A opinião social (…) funda a existência” e
cria uma “rede de interdependências humanas”.356 Participar
de determinados grupos de prestígio e poder, como a Câmara
Municipal, por exemplo, exigia um bom capital simbólico e
social. Não bastava “ter vontade de…” era preciso estar certo
de que o poder pode encontrar algum tipo de representativi-
dade em quem se candidatava à representante. Cícero357 há
muito tempo já refletia sobre as paixões humanas: “Cuidam
todos que as perturbações provêm do juízo e da imagina-
ção”.358 Ele não estava certo? “Todo sofrimento resulta de
uma desproporção entre aquilo que desejamos ou esperamos
e o que podemos obter.”359 Decerto, “quanto mais poderosa é
a vontade, mais estrepitosa é a manifestação da sua luta con-
sigo mesma, e, por consequência, maior é a dor”.360 Note-
se que aqueles que não entraram para a função de Avaliador
de escravos, de alguma forma, não tinham o que oferecer a
não ser mão de obra. Só isso não bastava. Era preciso mais,
como vimos anteriormente, uma série de capitais, em seu
conjunto se faziam importantes para que a vontade de alguém
pudesse torná-lo representante do regime de verdade e sua
representação da realidade.
––––––––––
356
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Op. cit., p. 161-162.
357
“Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) foi um dos grandes responsáveis pela difusão da filo-
sofia grega no mundo latino (…) Pode ser considerado um filósofo político por suas obras
De Legibus e De republica.” (JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário
Básico de Filosofia, 3a ed. Ver. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 42).
358
Cícero, Tusculanarum disputation, livro IV, 6.
359
SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 97.
360
Ibidem, p. 414.

165
Luciano R. Pinto

Acompanhamos, conforme os autos disponíveis, quinze


nomes que pretendiam ocupar-se com as avaliações dos es-
cravos em posse do poder público. Destes, dez ocuparam-se
na função, sendo que apenas dois deles tiveram permanência
significativa: Joaquim José Pereira do Amaral e José Antônio
de Abreu Guimarães. Cinco daquele total tiveram seu desejo
terminantemente frustrado. Apenas dois processos correram
sem agravos. Todos os outros sofreram disputas com um
ou mais de um pretendente. Assim, apenas a transição entre
Cap. Manoel José Pereira da Silva e Cap. Bento José Maga-
lhães (onde o segundo simplesmente substitui o primeiro que
voluntariamente, por motivo de doença, se afasta da função) e
José Antônio de Abreu Guimarães (que muito permaneceu na
função não havendo registros de contendas) encontram-se
sem agravos. Curiosamente, este avaliador possui o sobreno-
me de uma das famílias envolvidas com o tráfico de escravos
no século XIX. No entanto, não podemos afirmar que ele
pertencesse aos Pinheiro Guimarães.
Pois bem, passamos a tratar agora daqueles que deseja-
ram, mas, não conseguiram seu intento. A busca pelo ofício
de Avaliador de escravos deixou candidatos frustrados, pois
não possuíam as qualificações “necessárias” para ocupar a
função. O primeiro daqueles cinco preteridos, Jozé Antônio
Teixeira de Carvalho, segundo seus autos de 1797,361 aparece
agravando-se daquele que a Câmara havia escolhido para a
função. Pouco podemos falar das causas de sua não aceitação
pelos escassos dados disponíveis. O segundo, contudo já nos
traz algumas informações. Alexandre Pereira da Silva Xavier,
foi afastado em período anterior por não ter comportamento
exemplar.362 Esta razão impossibilitou-o de regressar em
1804. Estava marcado, estigmatizado. Quais as razões do
estigma não sabemos, fato é que, de alguma forma, ele não
––––––––––
361
AGCRJ: 6-1-10, f. 22-24.
362
AGCRJ: 6-1-10, f. 39.

166
PODER E ESCRAVIDÃO

correspondeu ao esperado para alguém que ocupava tal ofí-


cio. Como vimos anteriormente, a não adequação ao regime
de verdade pode engendrar exclusão, mesmo de alguém já
empossado. O constructo necessita de legitimação por parte
de seus representantes que, caso não correspondam põem em
risco a própria representatividade que ostentam.
Schopenhauer diria que “todo conceito existe e tem seu
valor apenas enquanto está em relação”.363 No campo social
ocorre o mesmo. Caso esta reciprocidade se rompa, necessa-
riamente o processo de representatividade também se rompe,
legitimando a exclusão. Não pode haver relação sustentável
na ausência de reciprocidade. O poder exige, de seus nomea-
dos, adequação ao regime de verdade. O emprego livre da
vontade implica num posterior alicerçamento, da mesma von-
tade, em favor do regime que o hierarquiza. Ademais, nem a
própria vontade pode ser concebida como um ato perfeita-
mente livre. Estamos longe dos pelagianos que submetiam a
vontade à servidão do mal. Pensamos que toda vontade é
expressão de um tempo, estando a ele submetida. Só deseja-
mos aquilo que em nossa sociedade é valorizado e tem a for-
ça de distinguir socialmente seus portadores. Portanto, a von-
tade, de alguma forma, também é um produto do regime de
verdade e é por isso que pelo simples fato de se desejar legi-
tima-se o constructo.
Vontade e representação se complementam e colaboram
com o mesmo fim: reiterar temporalmente uma determinada
construção social. Assim, todos os indivíduos cooperam para
a sobrevivência do regime de verdade. Enquanto alguns têm
seu desejo de poder satisfeito e tornam-se representantes,
outros veem sua vontade restringida, no entanto, pelo simples
fato de desejarem, legitimam o regime que os excluiu. Inclu-
são e exclusão são as duas faces da mesma moeda cunhada
pelo poder em suas representações.
––––––––––
363
SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 74.

167
Luciano R. Pinto

Diógenes Tibúrcio Pamplona é um caso interessante.


Disputando a função com Joaquim Pereira do Amaral em
1808, arrastou o processo por sete meses. No entanto, apenas
vontade não bastava a quem não tinha negócios com escravos
e, por isso, ignorava seus valores; não tinha nenhum tipo de
ocupação, batendo à porta da Câmara como quem buscasse
simplesmente um emprego e; por fim, padecendo de sur-
dez.364 Diferente de Pereira do Amaral que negociava escra-
vos, Tibúrcio Pamplona foi considerado pela Câmara “hum
individuo totalmte inhabil, pela sua imperícia, e pela sua sur-
des, de bem exercer o Offo de avaliador dos Escros”.365 Não
havia, portanto reciprocidade entre o desejo de poder e o
esperado para a representatividade.
Jozé Soares Pinho é outro caso típico de não adequa-
ção ao mundo da ordem. Em 4 de novembro de 1826 tentou
indicar seu filho na função de Avaliador de escravos. O
jovem, no entanto, não preenchia as exigências da Câmara.
Era menor de 25 anos, até aí nada de mais, porém, cigano.
Este fato dependeria dos demais capitais que o jovem fosse
capaz de ostentar. Contudo, “se achava reduzido ao estado
de indigência”.366 Ter menos de 25 anos pode resolver-se
com o tempo. Não conhecemos casos de alguém com esta
idade nas funções camarárias, mas, cremos que este é dos
males o menor. O mesmo podemos falar de ser cigano.
Vimos, anteriormente, que este fato não era decisivo para a
exclusão dos indivíduos. Gerava algum preconceito, mas,
plenamente vencível com o acúmulo de algum capital eco-
nômico. Estar, contudo, indigente, era demais. Esta infor-
mação vetou o acesso ao cargo de nosso jovem pretendente.
É adequação exacerbada ao concebido por desordem. Não
entrando o filho, tentou o pai.
––––––––––
364
AGCRJ: 6-1-11, f. 7.
365
AGCRJ: 6-1-11, f. 15.
366
AGCRJ: 6-1-12, f. 32.

168
PODER E ESCRAVIDÃO

24 de 8bro de 1827
Illmo Senado
Diz José Soares Pinho homem branco Cidadão Brazilei-
ro maior de 50 annos cazado, e onerado de 4 fos sem meios
para os manter pelo actual estado de indigência a que se
acha reduzido pela falta de bens, que a sua noticia chega, q
hum dos Avaliadores dos Escros do Conselho Joaqm José
Pera do Amaral se auzentara fugitivamte deste cide para fora
do Imperio deixando em abandono o exercicio do d o
empredo o qal não pode sufrer pelo prejuízo q resulta as par-
tes hum s[o momento de vagança sem haver quem o supra,
ao menos interinamte em qto se verifica a sua vagatura; e
como o Sppe se persuade concorrer nele os precizos conhe-
cimtos para bem poder servir pela muita pratica q tem tido
no giro do negócio de vender Escos em que se tem empre-
gado por mtos annos, recorre pois a VVSSas hajão de nomea-
rem para servir o do Emprego ao menos na auzencia do
Supde até que se realize a vagança do mmo por não sofrer o
publico impate nos seos negócios.
P. a VVSSas lhes facão a graça q suplica atento ao
exposto
Jozé Soares de Pinho [Ass.]367

Homem branco e maior de cinquenta anos podem até


dizer algo que possa promover. No que se refere ao ofício
pretendido, atestar experiência em negociar escravos mais
ainda. O grande problema de Soares Pinho, de seu filho e de
todos aqueles que não assumiram a função é a falta de capi-
tal econômico. Pereira do Amaral, por exemplo, era com-
provadamente cigano. O preconceito em torno da etnia
cedeu lugar ao acúmulo de capital econômico. No caso em
questão, é a falta deste capital que posiciona mal socialmen-
te e não lhe dá acesso à função. Sabemos que “os negocian-
tes, em seu intuito de ascender na sociedade de Corte, gas-
tavam boa parte de suas fortunas a fim de obterem (…) pres-
tígio social”.368 Diversos negociantes procuravam ocupar

––––––––––
367
AGCRJ: 6-1-12, f. 42.
368
GORENSTEIN, Riva . Comércio e Política: o enraizamento de interesses mercantis por-
tugueses no Rio de Janeiro (1808-1830). In: MARTINHO, Lenira Menezes; GORENS-

169
Luciano R. Pinto

funções que pudessem trazer algum reconhecimento social.369


Fica fácil entender, então, porque os negociantes de escravos
buscavam ocupar-se como avaliadores. O caminho inverso,
no entanto, não era tolerado. Um negociante arrasado finan-
ceiramente não poderia ascender aos ofícios municipais.
Aliais, todos aqueles que afirmaram ser negociante de escra-
vos e demonstraram localização no campo social receberam
provimento na função.
José Soares Pinho, por sua vez, não era portador de mui-
tos capitais. Em inventário aberto após a morte de sua mulher D.
Thereza Maria de Jesus, em 1833,370 o Juiz dizia não entender
por que tanta briga por uma escrava apenas.371 Nos pareceu,
segundo o inventário, que seu genro Bento estava obcecado no
único bem da família, sobre o qual pediu, inclusive, uma avalia-
ção.372 Definitivamente, Soares Pinho, não parecia ostentar
cabedal suficiente, segundo o esperado pelos homens bons do
termo, para assumir a função de Avaliador de escravos.
Antônio José Pereira do Amaral estava tentando a vaga
de seu sobrinho Joaquim José Pereira do Amaral. Este, como
vimos, foi para Portugal e deixou filhos pequenos. Este pre-
tendente, tio-avô das crianças por elas se responsabilizou e
tentou assumir as funções deixadas por seu sobrinho. Vale a
pena transcrever a documentação:
2 de 8bro de 1827
Antonio Jozé Pereira do Amaral, tio de Joaquim J. P. do
Amaral, pede o cargo do sobrinho que viajou e deixou seus
filhos menores com Antonio.
V.Sas fazem ao Suppte pa amparar seis filhos inocentes
com a espera da bondade de V.Sas portanto:
Diz Antonio José Pereira do Amaral q elle Supp te he tio
de Joaquim José Pereira do Amaral, morador q era no
–––––––––––––––
TEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro:
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e
Esportes – Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992, p. 191.
369
Ibidem, p. 193.
370
AN: Inventários post mortem da Vara Cível do RJ, no 882, cx. 301.
371
Idem, f. 12v.
372
Idem, f. 15.

170
PODER E ESCRAVIDÃO

Valongo e avaliador de Escravos q era o qual se foi p a Por-


tugal e como deixou seus filhos menores q r o Suppte empa-
rallos como pede a V. Sas hajão de admetir ao Suppte, tio do
ditto na ocupação q elle servia q he huma grande esmolla q
V. Sas fazem ao Suppte pa qmparar seus filhos innocentes,
como espera da bondade de V. Sa por tanto.
P. a V.Sas hajão de atender a Suplica do Suppte atenden-
do ser hum Pobre Velho de sessenta e tantos Annos, e que-
rer amparar quatro inocentes como assim espera. 373

Disputando a função com o Capitão Daniel Luiz Vianna


e José Soares Pinho, poucas chances couberam-lhe. Soares
Pinho já vimos sua situação. Luiz Viana, no entanto, era
“Capitão” e traficava escravos a mais de vinte anos.374 Levou
testemunho sobre seu trato com escravos e idoneidade.375
Antônio José Pereira do Amaral, por sua vez, apresentou ape-
nas a necessidade e o parentesco com alguém que abandonou
a função sem dar explicações.376 O que identifica nossos ex-
cluídos é, sem dúvida alguma, a necessidade, o caos e a legi-
timação do regime de verdade pela vontade.
Se levarmos em consideração que na sociedade de corte
os privilégios dão sentido à existência – melhor dizendo, a
criam – os indivíduos estavam a todo instante rivalizando-se
para melhor posicionarem-se no campo social, hierarquizan-
do-se mediante o acúmulo de benefícios simbólicos, porta
aberta a outras formas de beneficiamento. A busca por privi-
légios é sempre uma busca pelo poder e “nenhum poder, por
outro lado, se exerce sem a extração, a apropriação, a distri-
buição ou a retenção”,377 intervindo diretamente na distribui-
ção espacial dos indivíduos. O desejo de poder, portanto, cria
––––––––––
373
AGCRJ: 6-1-12, f. 50.
374
AGCRJ: 6-1-12, f. 43.
375
AGCRJ: 6-1-12, f. 44.
376
AGCRJ: 6-1-12, f. 47.
377
FOUCAULT, Michel. História dos sistemas e pensamento. Almada – Portugal – Edito-
rial Centelha Viva, s. d., p. 14.

171
Luciano R. Pinto

a vontade mediante aquilo que é valorizado em cada socieda-


de singularmente. Como já vimos, a vontade está sujeita
ao habitus socialmente constituído, de forma que deseja-
mos aquilo que está previsto como bom, singular, distinti-
vo e importante.
É muito pequena a probabilidade de que um indivíduo
consiga manter-se isolado, sem participar em sentido algum
da competição por oportunidades que ele sente e considera
como algo de valor para os outros, sem procurar a realiza-
ção de seus esforços de um modo que lhe assegure uma
comprovação de seus valores por parte de outras pessoas.378

É através da manutenção do desejo que o poder pode


garantir sua reiteração temporal de forma que mesmo o
excluído pode, pelo simples fato de desejar, garantir a sobre-
vivência do sistema que o excluiu.

––––––––––
378
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Op. cit., p. 94.

172
PODER E ESCRAVIDÃO

nalisamos como a cidade de São Sebastião do Rio


de Janeiro, em seu desenvolvimento histórico, cres-
ceu em importância no cenário imperial e como sua
Câmara Municipal, lócus do poder político, relacionava as
questões de representatividade do poder central com a pro-
moção das urgências do poder local. Vimos o quanto a ausên-
cia do poder central, devido aos limites administrativos de
seu tempo, promoveu o fortalecimento das elites locais, que
ao longo do tempo desenvolveram uma relação de autonomia
em constante contradição com o poder que representavam,
possuindo, em muitos aspectos até mesmo atribuições pró-
prias do rei, como, por exemplo, a faculdade de tributar.
A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro utilizando
o escravo em todos os setores da sociedade e estabelecendo
uma ordem baseada na posse do trabalhador cativo, estigma-
tizava aquele que não o possuísse. A incorporação do escravo
ao mercado de trabalho marginalizava os homens livres po-
bres, imbricados num processo de hierarquização que excluía
aqueles que não pudessem adquirir um trabalhador cativo
posicionando-os fora a ordem estabelecida. Indivíduos de
segunda estirpe representavam a desordem e não havia lugar
para eles, conforme a representação social estruturada. No

173
Luciano R. Pinto

entanto, também estes, os excluídos, contribuíam para a reite-


ração do regime de verdade, pois, desejavam possuir escravos
como todos os outros.
Neste sentido, a escravidão gerou muito mais que divi-
sas, promoveu, em torno de si, um processo de estratificação
social baseada na ociosidade, que acentuava ainda mais, a
marcante dependência da mão de obra cativa. Investimento e
acumulação, status e poder, binômios profundamente encar-
nados na sociedade carioca da primeira metade do século
XIX. A dependência do trabalho compulsório, portanto, é o
resultado da estruturação político-econômica e de um enrai-
zamento sociocultural que se engendrou no Brasil desde sua
colonização e reiterou-se até fins do século XIX, atuando em
todos os setores da sociedade e consolidando culturalmente a
marcante dependência.
Tendo em vista uma melhor localização das funções
camarárias, no contexto da administração colonial, mapea-
mos seus cargos e funções dando maior ênfase ao ofício de
Avaliador, mais precisamente, àquele dedicado à escravaria.
Vimos como estava inserido numa lógica que visava ordenar
as diversas negociações e relações que versavam sobre a mão
de obra cativa. Assim, a efetivação do ofício de Avaliador,
objetivava precisar o valor dos escravos sob a guarda do
Estado, que os leiloava e revertia esta importância em benefí-
cio próprio. Desta forma, a existência desta função tinha por
fim último gerar divisas aos cofres públicos, promover a ma-
nutenção do mundo da ordem e garantir a legitimidade do
ideário escravocrata, do processo de hierarquização baseado
na posse do trabalhador cativo e o status quo da elite detento-
ra de bens e “almas”.
Acertado o valor para o início do leilão, este oficial
receberia uma porcentagem do preço final pago. Contudo,
mais que propriamente um salário ou porcentual pelo traba-
lho, os pretendentes estavam interessados nas facilitações
que o ofício poderia proporcionar-lhes. Todos, sem exce-

174
PODER E ESCRAVIDÃO

ção, eram também negociantes de escravos, logo, mediar para


o Estado o reingresso do trabalhador cativo aos particulares
poderia trazer alguns benefícios pessoais. Contatos e possí-
veis “favorecimentos não contabilizáveis” deviam fazer par-
te deste mundo, ainda não completamente acessível. Regis-
tramos um caso de expulsão por má conduta. Permanências
exacerbadas foram da mesma forma indiciantes de possíveis
favorecimentos recíprocos.
Se pensarmos que o setor escravista esteve, na primeira
metade do século XIX, entre as atividades mais rentáveis da
praça carioca parece improvável que estes homens buscassem
apenas um porcentual por seus conhecimentos e serviços
sobre a escravaria. O simbolismo em torno da função poderia
ser um fator de estímulo que, posteriormente, facultaria aces-
so a outros capitais, também econômico, numa sociedade de
relações pessoais.
Licenciado para atuar em conformidade com a legali-
dade, em benefício do próprio Estado sobre a escravaria, o
Avaliador, como agente nomeado, passava a gozar de um
conjunto de relações sociais, junto ao Senado a quem jurava
bem servir em nome de sua Majestade para a satisfação pú-
blica. Mais que idoneidade, era preciso uma boa dose de
capital social. Vimos o quanto uma indicação era importante
para a permanência na função. Mais que isso, era preciso
reciprocidade com quem detinha o poder político num duplo
beneficiamento. Decerto, o Avaliador de escravos fazia mais
que apreçar, ele localizava socialmente o escravo a partir de
uma série de predicações, conformes o regime de verdade
estabelecido e segundo os quais, hierarquizava-o.
A documentação relativa ao nosso objeto poderia ter
sido um capítulo à parte. Na sua maioria, os processos estão
incompletos e as leis que regulavam sua atuação não foi por
nós encontrada. No entanto, como nunca tivemos a pretensão
de esgotar ou mesmo encerrar o tema em questão, se é que
isso é possível, damo-nos por satisfeitos, neste momento,

175
Luciano R. Pinto

com o que apresentamos. O assunto continua aberto a novas


abordagens e especulações diversas. Evidente que existe mui-
to mais a ser dito. Há um provérbio africano que diz assim: “a
sola do pé conhece toda a sujeira da estrada”.379 Este é, por-
tanto, o resultado de uma caminhada que se fez no próprio
exercício de caminhar. É um olhar sobre o caminho. Outros
olhares são bem-vindos.

––––––––––
379
Provérbio africano. Apud GONÇALVES, Ana Maria. Op. cit., p. 351.

176
PODER E ESCRAVIDÃO

FONTES E BIBLIOGRAFIA
Fontes manuscritas
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ)
Códice 6-1-10: Avaliadores de Escravos
Códice 6-1-11: Avaliadores de escravos
Códice 6-1-12: Avaliadores de escravos
Códice 6-1-28: Postura de Escravos
Códice 40 -1-27: Avaliadores

Arquivo Histórico da Cidade de Florianópolis (AHCF)


Caixa 11, livro 33 e 44: Registro de Patentes, nomeações e outros documentos da Câmara
Municipal de Desterro (1811-1829).
Caixa 11, livro 54: Registro de leis Imperiais para a Câmara Municipal.

Arquivo Nacional (AN)


10-13-79. Livro de Escrituras no 195 e 199, 3o Ofício de Notas.
10-6-79. Livro de Escrituras no 171, 3o Ofício de Notas.
10-8-79. Livro de Escrituras no 176, 3o Ofício de Notas
Inventários post mortem da Vara Cível do RJ, no 882, cx. 301.

Fontes Impressas
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Livro, s.d.
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textos – 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Brasília: Martins – MEC, 1976.
WALSH, Robert. Notícias do Brasil (1828-1829). Belo Horizonte – Itatiaia; São Paulo:
EDUSP, 1985. Vol. 2.
Biblioteca Nacional (BN)
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Referências Bibliográficas
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ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios
de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007

177
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ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico
Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ARENDT, Hannah. O que é política? 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
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