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Multideia Editora Ltda.

Alameda Princesa Izabel, 2215


8070-080 Curitiba – PR
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Conselho Editorial
André Viana Custódio (Unisc/Avantis) Marli Marlene M. da Costa (Unisc)
Carlos Lunelli (UCS) Neuro José Zambam (IMED)
Clovis Gorczevski (Unisc) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha)
Danielle Annoni (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC
Denise Fincato (PUC/RS) Sandra Negro (UBA/Argentina)
Fabiana Marion Spengler (Unisc) Salete Oro Boff (Unisc/IESA/IMED)
Liton Lanes Pilau (Univalli) Wilson Engelmann (Unisinos)
Luiz Otávio Pimentel (UFSC)

Coordenação Editorial: Fátima Beghetto


Capa: Sônia Maria Borba

Realização: Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ


Coordenação e Organização do Evento:
Coordenador Geral: Prof. Gilmar Antonio Bedin
Coordenadores Ajuntos: Prof. Doglas Cesar Lucas
Prof. Daniel Rubens Cenci
Profª. Fabiana Marion Spengler

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte


Seminário Internacinal de Direitos Humanos e Demoracia (1.:2013: Ijuí, RS)
S471 Os direitos humanos e a sua proteção / Gilmar Antonio
Bedin (Coord). - Curitiba: Multideia, 2013.
1.156p.
Versão digital
ISBN 978-85-86265-64-8
1 . Direitos humanos. 2. Democracia. I. Bedin, Gilmar Antonio
(coord.). II. Unijuí – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul. III. Título.
CDD 342(22.ed)
CDU 342.7

Distribuição gratuita - Uso não comercial


Permitida a reprodução de partes, desde que citada a fonte.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo brasileiro
voltada para a formação de recursos humanos.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos
e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 a 26 de abril de 2013

Anais do Evento

I Seminário Internacional de Direitos Humanos da UNIJUÍ

Os Direitos Humanos e a sua Proteção

Unijuí, RS

Curitiba

2013
O I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Demo-
cracia tem como proposta central transformar-se num espaço
institucional aberto para o debate sobre a luta pelo reconheci-
mento dos direitos humanos, seus fundamentos e sua efetivi-
dade nas sociedades democráticas. Na estrutura do Evento,
estão previstos um conjunto de palestras e debates que colo-
cam em destaque os problemas e desafios dos direitos huma-
nos na atualidade.

Objetivos:
a) Investigar os meios de garantir a aplicação eficaz dos
direitos humanos nas sociedades democráticas naci-
onal e internacional, como meio de assegurar o de-
senvolvimento seguro e adequado aos seus cidadãos,
promovendo reflexão, debates e apresentação de tra-
balhos de pesquisa em forma de palestras.
b) Delimitar os fundamentos e os meios de concretiza-
ção dos Direitos Humanos no Brasil e no mundo;
c) Investigar a internacionalização dos direitos humanos
e a sua contribuição para o estabelecimento de uma
sociedade mais democrática e equitativa;
d) Analisar a contribuição dos Direitos humanos como
suporte para a proteção ambiental e a garantia de um
desenvolvimento sustentável.

Prof. Gilmar Antonio Bedin


Coordenador Geral
I SEMINÁRIO INTERNACIONAL
DE DIREITOS HUMANOS E
DEMOCRACIA

Tema: Os Direitos Humanos e a sua Proteção


I MOSTRA DE TRABALHOS CIENTÍFICOS
Campus Ijuí - Salão de Atos da UNIJUÍ

Programação
25.04.2013 (quinta-feira) 08h30min - Abertura do evento

9h30min às 11h30min
Painel I - Direitos Humanos, Relações Internacionais e Desenvolvimento.

Palestra: "Direitos Humanos e Nova Conformação Política da Esfera Mundi-


al: Pensando desde o Sul".
Palestrante: Prof. Eduardo Devés - Doutor em filosofia pela Universidade de
Louvian/Bélgica e em Estudos Latinoamericanos pela Universidade de Pa-
ris III/França e pós-doutor pela Universidade de Louvain/Bélgica. É tam-
bém pesquisador do Instituto de Estudos Avançados - IDEA - da Universi-
dade de Santiago do Chile e professor do Curso de Doutorado em Estudos
Latinoamericanos da mesma universidade.

Palestra: "Direitos Humanos, Integração Regional e Desenvolvimento"


Palestrante: Profã. Gisele Ricobom - Doutora em Direitos Humanos e De-
senvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide e professora da Univer-
sidade Federal da Integração Latino-Americana -UNILA. Coordenadora do
Curso de Relações Internacionais e Integração da mesma Instituição.
Mediador: Prof. Gilmar Antonio Bedin (UNIJUÍ/Brasil)

Das 14 horas às 17h30min - Apresentação de Trabalhos


8

Painel II - Globalização e Sociedade Cosmopolita.

Das 19h30min às 22h30min


Palestra: "Estado, Globalização e Direitos Humanos"
Palestrante: Prof. Raimundo Baptista dos Santos Júnior - Doutor em Ciência
Política pela Universidade de Campinas - UNICAMP, professor da Universi-
dade Federal do Piauí e do Curso de Mestrado em Ciência Política da mes-
ma Universidade.

Palestra: "Direitos Humanos e Múltiplas Identidades"


Palestrante: Prof. Doglas Cesar Lucas - Doutor em Direito pela Universida-
de do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS - e Pós-Doutor pela Università degli
Studi di Roma Tre/Itália. Professor dos Cursos de Graduação em Direito e
do Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ e professor do Instituto Ce-
necista de Ensino Superior Santo Ângelo - IESA.

Palestra: "Os Direitos Humanos na sociedade cosmopolita"


Palestrante: Prof. Vicente de Paulo Barretto - Livre docente pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976). Professor visitante da Facul-
dade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor da
UNESA/RJ e professor colaborador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Foi professor visitante na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Mediador: Prof. Daniel Rubens Cenci (UNIJUÍ/Brasil)

26.04.2013 (sexta-feira) Das 08h30min às 11h30min

Painel III - Direitos Humanos e Meio Ambiente.

Palestra: "Direitos Humanos, Cidadania Ambiental e Desenvolvimento"


Palestrante - Profâ. Milena Petters Melo - Doutora em Direito, Università degli
Studi di Lecce (Itália, 2004) e professora da Universidade de Blumenau FURB.
Coordenadora da área lusófona e anglófona do Centro Didático Euro-
Americano sobre Políticas Constitucionais da Universidade do Salento Itália.

Palestra: "Direito da Sociobiodiversidade e Sustentabilidade"


Palestrante: Prof. Jerônimo Siqueira Tybusch - Doutor em Ciências Huma-
nas pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e professor da
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Integra o corpo docente do
Curso de Mestrado em Direito da mesma Universidade.

Palestra: "Ecologia Política, Direitos Humanos e Meio Ambiente"


Palestrante: Prof. Luiz Ernani de Bonesso de Araujo - Doutor em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor do Curso de Gra-
duação da Universidade Federal de Santa Maria -UFSM. Coordenador do
Curso de Mestrado em Direito da mesma Universidade.
9

Palestra: "Direitos Humanos, Política e Meio Ambiente no Mundo Globali-


zado"
Palestrante: Prof. Fernando Estenssoro Saavedra - Doctor en Estudios
Americanos pela Universidade de Santiago do Chile e professor do Curso
de Mestrado e de Doutorado em Estudos Americanos da mesma Universi-
dade. Integra o grupo de pesquisadores do Instituto de Estudos Avançados
-IDEA/Chile.
Mediadora: Profâ. Elenise Felzke Schonardie (UNIJUÍ/Brasil)

Das 14 horas às 17h30min - Apresentação de Trabalhos

26.04.2013 (sexta-feira)
Das 19h30min às 22h30min

Painel IV - Os Direitos Humanos na Atualidade: Brasil, América Latina e


Europa.

Palestra: "Direitos Humanos e o Neoliberalismo"


Palestrante: Prof. Alfredo Copetti Neto - Doutor em Teoria do Direito e da
Democracia pela Università degli Studi Roma Tre (UNIROMATRE, 2010
Revalidado UFPR). Professor Visitante na Universitá di Roma (La Sapienza)
e professor do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ.

Palestra: "Direitos Humanos e Violência na América Latina"


Palestrante: Prof. André Leonardo Copetti Santos - Doutor em Direito pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS e professor da Universi-
dade Regional Integrada - URI e da Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Professor do Curso de Mestrado em
Direitos Humanos e coordenador executivo do Curso de Mestrado em Direi-
to da URI.

Palestra: "Direitos Humanos na União Europeia"


Palestrante: Prof. Álvaro Sanchez Bravo - Doutor em direito pela Universi-
dade de Sevilha/Espanha e professor do Instituto Andaluz de Criminologia -
IAIC e da Universidade de Sevilha. Presidente da Associação Andaluza de
Direito, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.
Mediadora: Profâ. Fabiana Marion Spengler (UNIJUÍ/Brasil)
SUMÁRIO

Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil: Uma


análise a partir do âmbito escolar ....................................................... 17
Ademar Antunes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl
A democracia participativa na implementação das políticas
públicas de saúde no espaço local ...................................................... 35
Adriane Medianeira Toaldo & Ricardo Hermany
O sistema de justiça e os direitos humanos: O panprincipiologismo
como debilitador na aplicação dos direitos humanos........................ 49
Alessandra Liani Prates
A educação ambiental como meio para manutenção do meio
ambiente e sua sustentabilidade com base na Constituição Federal
de 1988 ................................................................................................... 63
Alessandra Staggemeir Londero & Deise Scheffer
Gestão pública e desenvolvimento sustentável: Considerações
sobre a racionalidade econômica como fator de insustentabilidade 77
Alexandre Nicoletti Hedlund
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de
direitos ................................................................................................... 95
Aline Andrighetto
O trabalho doméstico e a desigualdade: Avanços e desafios na
sociedade brasileira contemporânea................................................... 111
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos:


A democracia como regime dos direitos humanos ............................ 129
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin
O projeto VER-SUS e o debate à saúde pública ................................. 145
Andressa Carine Kretschmer & Liamara Denise Ubessi
A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil através da
esfera privada: Os planos de saúde como adimplemento ao artigo
12 do Pacto Internacional sobre os direitos economicos, sociais e
culturais de 1966 ................................................................................... 155
Angela Venturini Benedetti; Geanluca Lorenzon &
Isabel Christine Silva De Gregori
12

Adolescentes em conflito com a lei: Relatos de uma pesquisa ........ 173


Anna Paula Bagetti Zeifert; Camila Eichelberg Madruga &
Tatiele Camargo
Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de
substituição ........................................................................................... 187
Astrid Heringer & Adriane Damian Pereira
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro:
Um antigo instituto, um novo entendimento ..................................... 205
Camila Vicenci Fernandes
O novo plano diretor participativo do município de Santos:
As perspectivas lançadas para a garantia da qualidade de vida e
desenvolvimento sustentável ............................................................... 221
Cristiane Elias de Campos Pinto
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência
doméstica contra as mulheres: Uma análise a partir do município
de Santa Rosa/RS .................................................................................. 237
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe &
Lurdes Aparecida Grossmann
Veículos elétricos: Uma alternativa para a melhoria da mobilidade
urbana de forma sustentável ............................................................... 255
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo Loeblein dos Santos &
Luciano Bonato Baldissera
A questão indígena no Brasil e a relevância das previsões, insertas
nos documentos internacionais, no tocante à efetividade dos
direitos indigenistas ............................................................................. 273
Denise Tatiane Girardon dos Santos
A fundamentação dos direitos humanos ............................................ 291
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum
A Segunda Guerra Mundial e a memória internacional sobre
direitos humanos................................................................................... 309
Eliete Vanessa Schneider; Luís Carlos Schneider &
Priscila Gadea Lorenz
Direitos humanos e escola: Por uma política pública educacional
promotora da inclusão social ............................................................... 319
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl
Conflitos ético-jurídicos da reprodução assistida na terceira idade . 335
Fabiane da Silva Prestes & João Batista Monteiro Camargo
13

Delinquência juvenil e justiça restaurativa: Um olhar


interdisciplinar ...................................................................................... 347
Fabiano Rodrigo Dupont & Ana Paula Arrieira Simões
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na
escola ..................................................................................................... 359
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto
O enfrentamento do racismo ambiental em busca da justiça
ambiental ............................................................................................... 377
Francieli Formentini
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana:
Elementos e perspectivas de cidadania .............................................. 393
Francielli Silveira Fortes
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do
Estado: Uma análise da Lei Carolina Dieckmann sob a ótica do
Leviatã, de Thomas Hobbes ................................................................. 411
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques
Crianças e adolescentes: (Des)construções do sujeito através da
imagem .................................................................................................. 429
Gilberto Natal Maas
A contribuição das universidades na promoção do direito humano à
alimentação adequada ......................................................................... 441
Ivete Maria Kreutz
Direito humano à alimentação adequada, com segurança e
soberania alimentar .............................................................................. 455
Ivete Maria Kreutz
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas:
O Estado e sua necessidade de promover inclusão social ................ 473
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

A saúde e seus determinantes sociais: Um diálogo com a teoria do


direito fraterno ....................................................................................... 493
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin
O direito à identidade genética e a violação do sigilo de doador de
material genético na reprodução humana medicamente assistida . 513
Janaine Machado dos Santos Bertazo Vargas &
Taciana Marconatto Damo Cervi
Justiça restaurativa, redução de danos e reflexos sociais ................. 527
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes
14

Direitos humanos e a sociedade internacional: Uma abordagem


histórica sobre o direito internacional dos direitos humanos ........... 541
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin
Direitos humanos: A construção de valores universais direitos e
garantias das pessoas com deficiência ............................................... 561
Joyce Monique de Aguiar
A união homoafetiva como entidade familiar no ordenamento
jurídico brasileiro................................................................................... 579
Júlia Francieli Neves de Oliveira
A família em um (novo) cenário de mudanças ................................... 595
Laila Letícia Falcão Poppe
Homofobia: Um debate necessário aos direitos humanos ................ 609
Leonardo Silveira Farias da Silva & Lucineide Orsolin
Direitos humanos: O respeito ao outro em sua dignidade ................ 623
Letícia Rieger Duarte & Noli Bernardo Hahn
O direito humano a ter direitos fundamentais ................................... 645
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti
Desenvolvimento sustentável e função ambiental da propriedade
sob a perspectiva dos direitos humanos ............................................. 663
Letícia Thomasi Jahnke & Isabel Christine De Gregori
Bioética e o fim da vida: Em busca de uma morte digna .................. 675
Liana Maria Feix Suski; Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi
Hannah Arendt: Direitos humanos e cidadania em tempos de
ausência de mundo............................................................................... 689
Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade............................... 703
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin
A flexibilização dos direitos trabalhistas no contexto da efetivação
dos direitos humanos ............................................................................ 725
Lucena Cavalheiro Pletsch & Iásin Schäffer Stahlhöfer
A cidade como instrumento para a formação de uma cidadania
participativa .......................................................................................... 741
Luciana Borella Camara & Elenise Felzke Schonardie
Um estudo das relações entre a pobreza e a globalização ................ 755
Luiz Fernando Fritz Filho; Karen Beltrame Becker Fritz &
Elenise Felzke Schonardie
15

Aspectos do terceiro setor frente ao estado democrático de direito . 771


Luiz Raul Sartori & Francisco Luis Rui Júnior
Comissão da Verdade: Um local de memória da verdade factual da
violação dos direitos humanos no Brasil ............................................. 783
Maisa Machado Saldanha
O acesso ao meio ambiente equilibrado e a àgua enquanto recurso
natural como direitos fundamentais ................................................... 799
Elenise Felzke Schonardie & Marcos Paulo Scherer
O Estado brasileiro e a cidadania: Contradições paradigmáticas na
construção dos Direitos Humanos. ...................................................... 815
Mariane D. Martins
Educação ambiental: Um estudo a partir das políticas públicas
concretizadoras do meio ambiente como um direito humano .......... 835
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl
Projeto Rondon: Uma experiência além da universidade .................. 853
Moisés dos Santos Dutra; Isaque dos Santos Dutra &
Jonatas Medeiros Soares
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas
latino-americanos ................................................................................. 863
Monia Peripolli Dias
O instituto mediação como política pública de inclusão social e
facilitadora do acesso à justiça ............................................................ 881
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins
Uma análise da sociedade de risco e do meio ambiente frente a
questão da proteção das águas subterrâneas .................................... 897
Natacha John; Rachel Cardone & Sergionei Correa

As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos


esportivos em países periféricos: Apontamentos desde a
colonialidade do poder ......................................................................... 915
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho
Os custos humanos da pirataria marítima.......................................... 935
Nelson Speranza Filho
O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional ........ 953
Patricia Grazziotin Noschang
16

A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, como instrumento para a


regularização fundiária sustentável em áreas de proteção
permanente ........................................................................................... 969
Patrícia Andreola & Iásin Schäffer Stahlhöfer
Memória e tempo: A razoável duração do processo pós-Emenda
Constitucional nº 45/2004 .................................................................... 987
Queli Cristiane Schiefelbein da Silva & Fabiana Marion Spengler
A participação democrática pelo voto nas Constituições federais
brasileiras .............................................................................................. 1013
Renê Carlos Schubert Junior
Perfil socieconômico e educacional das mulheres do Programa
Mulheres Mil do IF Farroupilha – campus Panambi ......................... 1027
Rogéria Fatima Madaloz
Mediação como qualidade de vida: Democratização e autonomia
para tratar dos conflitos judiciais e extrajudiciais sob a luz da teoria
do discurso ............................................................................................. 1043
Sheila Marine Uhlmann Willani & Ana Paula Cacenotti
Controle da informação: Uma ameaça à democracia na Argentina,
no Brasil e na Venezuela ...................................................................... 1061
Talita Mazzola & Vera Raddatz
Democracia e participação como meio de concretizar o direito à
cidade sustentável ................................................................................ 1075
Tatiane Kessler Burmann & Daniel Rubens Cenci
Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão da
diversidade cultural nas relações familiares ...................................... 1093
Thaís Kerber De Marco & Júlia Francieli Neves de Oliveira
Entre a anemia estatal e a anomia política: Ensaio sobre as
ressignificações do Estado e do sujeito face os desafios à
conformação dos discursos em torno de uma sociedade [que se
pretende] cosmopolita e democrática ................................................. 1109
Thaisy Perotto Fernandes
A origem das penas restritivas de liberdade há prestação de
serviços à comunidade ......................................................................... 1145
Vagner Poerschke
POLÍTICAS PÚBLICAS DE
ENFRENTAMENTO À DELINQUÊNCIA
JUVENIL : UMA ANÁLISE A
PARTIR DO ÂMBITO ESCOLAR

Ademar Antunes da Costa


Advogado. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS.
Professor em Direito Civil e Introdução ao Estudo do Direito pela Universi-
dade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisa: “Di-
reito, Cidadania e Políticas Públicas” do Programa de Pós-Graduação em
Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC, certificado pelo CNPq, coorde-
nado pela professora Pós-Doutora Marli Marlene Moraes da Costa.
(aac.adv@gmail.com)
Rodrigo Cristiano Diehl
Acadêmico do curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC. Integrante dos grupos de pesquisa: “Direito, Cidadania e Políticas
Públicas”, coordenado pela professora Pós-Doutora Marli Marlene Moraes
da Costa; “Direitos Humanos”, coordenado pelo professor Pós-Doutor
Clovis Gorczevski e; “Teorias do Direito”, coordenado pela professora
Doutora Caroline Mueller Bitencourt, ambos do Programa de Pós-
Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC e certificados
pelo CNPq. Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio
Grande do Sul – FAPERGS no projeto de pesquisa “O direito de proteção
contra a exploração do trabalho infantil e as políticas públicas de saúde no
Brasil”, coordenado pela Pós-Doutora. Marli Marlene Moraes da Costa.
(rodrigocristianodiehl@live.com)

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo central analisar as políticas públicas desde a
percepção do problema na sociedade, seguindo pela sua elaboração, passando pela
concepção e implementação, até chegar a sua etapa final que seria a avaliação de
sua eficácia e o próprio controle. Após esta profunda análise, pretende-se levar o
leitor a uma profunda reflexão sobre a necessidade urgente de se trabalhar, de for-
ma preventiva, os aspectos referentes à delinquência juvenil. Sendo assim, preferiu-
se trabalhar este problema dentro do âmbito escolar, visto que, o ser humano não
pode ser considerado um ser isolado, pois vive, cresce e se desenvolve a partir de
um contexto interativo e dinâmico. E por fim, de forma sucinta, analisou-se a eficácia
das políticas públicas existentes e os desafios que deverão ser encarados devido a
globalização principalmente da juventude.
Palavras-chave: Delinquência. Escola. Juventude. Políticas Públicas.
18
Ademar Antunes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

Abstract
The present study is aimed to analyze public policy from the perception of the prob-
lem in society by following its development, through conception and implementa-
tion, until reach the final step that would be to evaluate their own effectiveness and
control. After this profound analysis, it is intended to lead the reader to a deeper
reflection on the urgent need to work in a preventive manner, aspects related to
juvenile delinquency. Therefore, was preferred to work this problem within the
school, since human beings can not be considered an isolated being, because he
lives, grows and develops from an interactive and dynamic context. And finally, suc-
cinctly analyzed the effectiveness of existing policies and the challenges that must be
faced due to globalization mainly youth.
Keywords: Delinquency; Public Policy; School; Youth.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A proposta de pensar os fatores determinantes da delin-
quência e da criminalidade em nosso país na atualidade, leva-
nos a refletir sobre uma série de fatos que denunciam haver
uma falha no laço social. Partindo do pressuposto de que o
Brasil possui uma das maiores populações carcerárias jovens
do mundo segundo dados do Departamento Penitenciário Na-
cional (DEPEN), tendo como determinantes do crescimento dos
índices que refletem a violência, o desemprego, sobretudo en-
tre os jovens, o apelo ao consumismo, a ética do imediatismo, o
aumento do tráfico de drogas e do uso de armas pela popula-
ção, a maioria delas aliadas à corrupção, à impunidade e à fal-
ta de políticas públicas estruturais de prevenção.
Neste sentido, o presente trabalho visa, em um primeiro
momento, contribuir com o desenvolvimento e a concretização
de políticas públicas de combate à delinquência juvenil. Para
isso, fez-se necessária toda uma análise de conceitos que en-
volvam essas ações, desde a identificação do problema, pas-
sando por toda a elaboração e execução, até desembocar no
controle, tanto administrativo quanto judicial, destas políticas
públicas.
Considerando, a visão acadêmica de que o Estado Con-
temporâneo passa por uma série de transformações e evolução
a proposta é desafiar estas situações trazendo elementos para
fundamentar e argumentar, junto ao poder público e a socie-
dade civil, sobre possibilidades e/ou alternativas concretas e

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
19
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

fundamentais de garantia e aplicação de princípios constituci-


onais, bem como conceitos do Direito. Busca-se demonstrar
que políticas públicas efetivas de combate à delinquência ju-
venil implementadas no seio de uma comunidade, restabele-
cem e fortalecem os direitos básicos para o exercício de uma
juventude plena.

POLÍTICAS PÚBLICAS: CONCEITOS GERAIS


A Constituição Federal de 1988 representou o início da re-
forma Estatal, para colocar em prática a democratização do
acesso à serviços e à participação cidadã. Assim, ocorreu nes-
se período, um deslocamento para o foco das políticas públicas
no Brasil, partindo-se para a produção de políticas que se des-
tinassem a examinar as verdadeiras necessidades sociais. E,
nesse sentido, a capacidade delas acabarem afetando as estra-
tégias dos gestores públicos na tomada de decisões1.
Nesta perspectiva, Hochman, Arretche e Marques desta-
cam que essa forma “mais inclusiva” de participação social
levaram a uma agenda de pesquisa que buscou, dentre outras
coisas, “interpretar as políticas estatais sob a ótica de seu po-
tencial de transformação da cultura política e das relações en-
tre o Estado e os cidadãos”. Aduzem os autores que, no Brasil,
os estudos voltaram-se, principalmente, para as transforma-
ções que vinham ocorrendo, dentre elas a descentralização, a
reforma política e a emergência de novos formatos de partici-
pação política2.
Com o avanço do processo democrático e a redefinição
das políticas públicas no país, tornou-se imprescindível uma
melhor compreensão sobre a temática, especialmente por par-
te dos agentes políticos, dos grupos de interesse e dos cida-
dãos de maneira geral, que são os indiscutíveis destinatários
dos serviços públicos. No mesmo sentido, Schmidt ensina que:

1
HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orgs.) Políticas Públi-
cas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007, p. 15.
2
Idem.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
20
Ademar Antunes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

Para o cidadão, é muito relevante que conheça e entenda


o que está previsto nas políticas que o afetam, quem a
estabeleceu, de que modo foram estabelecidas, como es-
tão sendo implementadas, quais são os interesses que
estão em jogo, quais são as principais forças envolvidas,
quais são os espaços de participação existentes, os pos-
síveis aliados e os adversários, entre outros elementos.3

Em razão dessa nova conjuntura, a compreensão de al-


guns conceitos que perfazem o universo das políticas públicas
revela-se a chave-mestra para a promoção e efetivação de di-
reitos e garantias sociais, especialmente por parte dos gesto-
res públicos e das organizações estaduais. Ademais o estudo
sobre as políticas públicas deve ser feito de forma integrada
com a compreensão do papel do Estado e da própria socieda-
de, nos dias atuais.
Diante disso, de maneira objetiva, Schmidt destaca que o
termo “políticas públicas” é utilizado com diferentes significa-
dos, ora indicando uma determinada atividade, ora um “propó-
sito político”, e em outras vezes “um programa de ação ou os
resultados obtidos por um programa”. Assim, para entender as
políticas públicas, o autor, utilizando-se de conceitos de estu-
diosos da área, ensina que as políticas públicas são um con-
junto de ações adotadas pelo governo, a fim de produzir efeitos
específicos, ou de modo mais claro, a soma de atividades do
governo que acabam influenciando a vida dos cidadãos4.
A doutrina, por sua vez, é responsável por diferenciar os
distintos modelos de políticas, assim, de modo geral, os estu-
diosos da temática seguem a classificação de Theodore Lowy,
qual se utiliza de quatro tipos distintos de políticas públicas:
as distributivas, as redistributivas, as regulatórias e as consti-
tutivas ou estruturadas.

3
SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos
conceituais e metodológicos. In.: REIS, Jorge R.; LEAL, Rogério G. Direi-
tos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. San-
ta Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2308.
4
SCHMIDT, et al. op. cit., p. 2311.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
21
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

As políticas distributivas são aquelas responsáveis pela


distribuição de recursos para a sociedade, regiões ou segmen-
tos específicos. Normalmente são “fragmentadas, pontuais e
de caráter clientelista”, portanto é imprescindível o controle
das mesmas através de conselhos/espaços de participação
popular5.
Ainda, de acordo com Bryner, esse tipo de política inclui
determinados subsídios capazes de conferir proteção a certos
interesses, assegurando determinados benefícios. As “deci-
sões-chaves”, ou seja, os critérios para definir quem deve re-
ceber o benefício e quando devem receber, ficam a cargo dos
legisladores, que têm um certo interesse em deixar claro aos
receptores as origens dos benefícios concedidos6.
Por outro lado, as políticas redistributivas deslocam re-
cursos das camadas sociais mais abastadas para as menos
privilegiadas, são as chamadas políticas “Robin Hood”, ou
ainda, políticas sociais universais, como a seguridade social.
As regulatórias assumem a tarefa de regulamentar e
normatizar o funcionamento de serviços públicos, nas palavras
de Schmidt, elas:
[...] regulam e ordenam, mediante ordens, proibições, de-
cretos, portarias. Criam normas para funcionamento de
serviço e instalação de equipamentos públicos. Podem
tanto distribuir benefícios de forma equilibrada entre
grupos e setores sociais, como atender a interesses par-
ticulares. Em geral, seus efeitos são de longo prazo, sen-
do por isso difícil conseguir a mobilização e a organiza-
ção dos cidadãos no processo de formulação e implemen-
tação. Às vezes atingem interesses localizados, provo-
cando reações.7

Bryner ensina que essa modalidade de política tem por fi-


nalidade “alterar diretamente o comportamento individual im-
pondo padrões às atividades reguladas”, em razão dessa ca-
5
Ibidem, p. 2314.
6
BRYNER, et al. Op.cit, p. 320.
7
SCHMIDT, et al. op. cit., p. 2314.

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22
Ademar Antunes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

racterística é possível que gerem mais controvérsias. Nas pa-


lavras do autor, “ações reguladoras podem restringir significa-
tivamente interesses particulares e impor-lhes custos de acei-
tação”8.
Por fim, as constitutivas ou estruturadas definem proce-
dimentos gerais de uma determinada política; de modo geral, é
possível afirmar que elas “determinam as regras do jogo, as
estruturas e os processos da política”, afetando as condições
com as quais são negociadas as demais políticas. Para melhor
compreensão dessa modalidade, Schmidt traz como exemplo
de política constitutiva “a definição do sistema do governo, do
sistema eleitora; as reformas políticas e administrativas”9.
Torna-se evidente que as políticas são o meio de ação do
Estado, através delas, a União, os Estados e os Municípios
conseguem concretizar direitos e garantias fundamentais, por
isso saber diferenciar esses aspectos metodológicos é impres-
cindível para a compreensão da dimensão e importância das
fases que definem uma política, desde a sua criação até a ava-
liação de seus resultados.
Nessa conjuntura, o processo de elaboração de uma polí-
tica inicia-se com a “percepção e definição de problemas”, sem
essa avaliação inicial a política não adquire nenhuma razão de
existir, conforme destaca Schmidt, não basta apenas o reco-
nhecimento de uma dificuldade ou situação problemática é
preciso transformá-la em um problema político10. É preciso
também que tal questão desperte o interesse não só do gover-
no, mas principalmente da sociedade, e como geralmente a
comoção dessa acontece primeiro, ela acaba se tornando o ór-
gão propulsor para que determinada situação ocupe o rol de
prioridades do governo.
Após a identificação do problema, faz-se necessária a in-
serção de sua demanda na agenda política. Isso significa que
determinado assunto chama a atenção não só dos cidadãos

8
BRYNER, et al. op. cit., p. 321.
9
SCHMIDT, et al. Op.cit., p. 2314.
10
SCHMIDT, et al. op. cit., p. 2314.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
23
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

como, especialmente, do governo. Nas palavras de Schmidt,


trata-se de um “rol das questões relevantes debatidas pelos
agentes públicos e sociais, com forte repercussão na opinião
pública”. A construção de uma agenda envolve discussão
permanente e uma forte disputa política, vez que a “influência
política” também adquire a capacidade de “controlar a agen-
da” de acordo com os interesses daqueles que a manipulam11.
Destaca-se, para melhor compreensão desse processo, os
apontamentos de Schmidt:
Entre os agentes que influenciam a construção da agen-
da governamental destacam-se os atores governamentais
e não governamentais. Esses atores podem ser visíveis
(políticos, mídia, partidos) ou invisíveis (pesquisadores,
consultores, funcionários). São os guardiões da agenda
pública (agenda setters), e outros não o sejam, bem como
para que nela se mantenham ou não.12

Em seguida, deve iniciar o processo de formulação da po-


lítica pública, nesse momento define-se a maneira como o pro-
blema será solucionado, quais os elementos e alternativas que
serão adotadas. Trata-se de uma fase de negociações e confli-
tos entre os agentes públicos e os grupos sociais interessados.
Segundo Schmidt, “a formulação de uma política nunca é pu-
ramente técnica. É sempre política, ou seja, orientada por inte-
resses, valores e preferências, apenas parcialmente orientada
por critérios técnicos. Cada um dos atores exibe sua preferên-
cia e recursos de poder”13.
A implementação compreende a quarta fase de uma polí-
tica, trata-se da concretização da formulação, é o momento de
executar aquilo que foi planejado. Nesse instante, geralmente
acabam acontecendo adaptações e adequações, por isso um
elemento imprescindível é a articulação entre o momento de
formulação e de implantação de uma política, os agentes res-

11
Ibidem, p. 2316.
12
Ibidem, p. 2317.
13
Ibidem, p. 2318.

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24
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ponsáveis por essas duas fases devem estar entrosados, com-


partilhar informações e participar ativamente desses processos.
De acordo com os estudiosos, a implementação é um pro-
cesso difícil, pois muitas vezes essa fase não chega a alcançar
seus objetivos em função da falta de vontade ou de acordo po-
lítico. Do mesmo modo, Bryner enfatiza que “a implementação
é a continuação da formulação de políticas, mas com novos
atores, procedimentos e ambientes institucionais”14. Assim, o
posicionamento que está ganhando força nos dias de hoje é a
“noção de redes”, por isso é importante a integração dos dife-
rentes organismos envolvidos em uma determinada política, e
nesse caso, mais uma vez, o papel fundamental dos gestores
públicos para o incentivo a essa aproximação, vez que, não
obstante, o comum é o distanciamento e um espírito de com-
petição presente também nos organismos governamentais.
Por último, e quem sabe a fase mais importante, tem-se a
avaliação de uma política, não basta apenas criá-la, implemen-
tá-la, sem se estar disposto a fazer uma análise minuciosa dos
seus resultados obtidos, dos êxitos e das dificuldades apresen-
tadas, do estudo de sua efetividade e eficiência. O ideal, nesse
processo de avaliação, é justamente delinear se a política atin-
giu aos objetivos ao qual se propôs, assim como determinar se
é conveniente que determinada política se mantenha ou se
modifique.
No Brasil, ainda é muito frágil o processo de avaliação de
uma política, geralmente esse momento se resume em massa
de manobra para políticos utilizarem-se de pseudo-resultados
com o propósito de campanha para novas eleições a fim de se
manterem no poder. Por isso que muitas vezes os processos
avaliativos atuais acabam tendo pouca credibilidade junto a
sociedade. Importante trazer à baila o posicionamento de Sch-
midt:
Um governante que não tem mecanismos apropriados de
acompanhamento das ações do seu governo, capazes de
detectar até que ponto o governo está conectado com as

14
BRYNER, et al. Op.cit., p. 319.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
25
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

expectativas dos cidadãos e até que ponto sua energia


política está sendo canalizada para a resolução de pro-
blemas importantes da sociedade, está fechada ao fra-
casso. Na eleição seguinte, os eleitores entusiasmados
de ontem levarão apoio a outro candidato, que aponte
perspectivas de mudanças.15

Diante do exposto, a compreensão sobre o tema políticas


públicas, torna-se mais contundente quando aliada ao cenário
da administração pública. Vislumbra-se, no contexto atual, que
à medida que as políticas públicas são direcionadas a progra-
mas sociais, de modo a garantir direitos, especialmente das
classes menos privilegiadas, os desafios à gestão das organi-
zações públicas aumentam. Sendo assim, uma das principais
linhas de atuação das políticas públicas na garantia de direitos
é na área da segurança pública, e principalmente, do objeto de
estudo deste trabalho, no que diz respeito à delinquência ju-
venil, o que será abordado na sequencia.

PREVENÇÃO DA DELINQÜÊNCIA JUVENIL A PARTIR DA ESCOLA


Historicamente, as políticas públicas preventivas sobre
delinquência, estão embasadas em diferentes abordagens: as
dirigidas diretamente aos indivíduos considerados em risco de
serem delinquentes, e as que buscam modificar as condições
sociais que envolvem estes jovens. Nos últimos anos esta dife-
renciação tem se mostrado muito mais evidente ao situar-se no
mesmo centro de atuação político-social, a discussão a cerca
da efetividade de uma ou de outra16.
A prevenção estrutural fundamenta as causas da delin-
quência no mau funcionamento das instituições sociais (famí-
lia, escola, o mercado de trabalho, etc.). A obtenção de condi-
ções favoráveis no sentido de o jovem agir de forma madura e

15
SCHMIDT, et al. Op.cit., p. 2320.
16
FARRINGTON, D. P. Contribuições psicológicas para la exlicación,
prevención e tratamento de la delinqcuencia. n. 1/12, 5-34 – 1998, p.
17.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
26
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equilibrada, passa pela implementação de políticas públicas


preventivas e pelo exercício contínuo de climas positivos no
contexto de todas as instituições envolvidas no processo de
desenvolvimento.
A obtenção destes ambientes estimulantes e criativos se
consegue criando atmosferas motivadoras em sala de aula e
conseguindo escolas que não sejam estigmatizantes e impes-
soais, que mantenham uma direção efetiva, que plantem alter-
nativas estimulantes em cada disciplina, que envolva os alu-
nos em atividades curriculares e extracurriculares, e que en-
volvam a família na política escolar. Junto a este clima geral, é
de extrema importância que os professores apesar de terem a
difícil tarefa de ensinar trabalhando também os limites, gostem
daquilo que fazem, sejam simpáticos, compreensivos, respon-
sáveis e respeitosos, e adaptem seus métodos as necessidades
e interesses de seus alunos. Para isso, deve reduzir-se o stress
dos professores que trabalham com crianças e adolescentes de
alto risco, diminuindo suas turmas, para que o profissional
possa compreender como funcionam mentalmente os infantes
de risco que estão sob sua responsabilidade17.
Num contexto educativo, estimulante e atrativo tanto pa-
ra os professores como para os alunos, os mesmos podem ob-
servar as distorções de seu sistema de funcionamento e atua-
rem com mais simetria de forma a obter melhores resultados
para todos.
Por sua vez, a prevenção individual não nega que os fato-
res ecológicos podem afetar negativamente a todos os sujeitos,
porém reconhece que alguns jovens tem uma maior probabili-
dade de tornarem-se delinquentes do que outros. Isso se deve
as características dos indivíduos e do desenvolvimento de su-
as capacidades e habilidades que resultam necessárias para
uma adequada integração social. A prevenção individual cen-
tra-se, portanto, naqueles jovens que apresentam dificuldades
de adaptação social, com tendências a delinquir, geralmente
17
MILLIS, R. G. P. Working with highrisk youth in prevention and early
intervention programas: Toward a comprehensive wellness model.
Adolescence. Vol. XXIII, n. 91, 643-660.1997, p. 654.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
27
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

como consequência de ter crescido em ambientes sociais de


miséria, hostilidade e maus tratos.18
Fica evidente que os dois tipos de prevenção, longe de
ser excludentes, se complementam. Os programas de inter-
venção podem modificar a organização e funcionamento insti-
tucional e, ao mesmo tempo, centrar-se mais naqueles alunos
com alto risco de cometer delitos.
Sendo assim, de acordo com Costa19, têm demonstrado
que a grande maioria dos delinquentes juvenis são fracassados
escolares. Outro dado consistente é que as condutas perturba-
doras na escola se relacionam com uma conduta delitiva poste-
rior. Não resulta claro, no entanto, se o fracasso escolar é uma
das causas da delinquência, se a conduta perturbadora em
sala de aula é a que provoca o fracasso escolar, ou se ambos
são manifestações de um padrão desviante anterior20.
Estas dúvidas continuam suscitando reflexões e discus-
sões sobre o papel que diferentes teorias outorgam para a es-
cola em sua relação com a delinquência juvenil. Uma das mais
relevantes teorias é a da tensão e frustração de Cloward21 a
referida teoria contempla a escola como uma instituição de
classe média em que as crianças e adolescentes de classe bai-
xa possuem menos oportunidades de competir com êxito. Por
não poder dispor de uma das grandes vias legítimas de acesso
as metas culturalmente estabelecidas, estes jovens cometeriam
delitos para compensar suas frustrações e elevar sua autoes-
tima.

18
NOVAIS, Maria H. O “maior interesse” da criança e do adolescente face
às suas necessidades biopsicossociais: uma questão psicológica. In:
PEREIRA. Tânia da S.. O Melhor Interesse da Criança: um debate Inter-
disciplinar. Renovar. Rio de Janeiro: 2001, p. 24.
19
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Infância, Juventude e política social
no Brasil. Brasil criança urgente. A lei 8.069/90. Coleção Pedagogia So-
cial. São Paulo: Columbus Cultural. 1990, p. 87.
20
GUIMARÃES, Aurea Maria. Vigilância, punição e depredação escolar.
Papirus, Campinas: 2003, p. 96.
21
CLOWARD, R. Ohlin, L. Delinquency and oppotunity. N.Y. Free
Press.1997, p. 145.

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28
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Temos a teoria do etiquetado, que segundo Bernfeld22, a


etiqueta que se impõe a crianças e adolescentes de difícil
comportamento propicia que o sistema escolar lhes trate de
um modo hostil, sem importar a realidade objetiva de suas
ações, contribuindo para que os jovens assumam tal etiqueta
e, consequentemente, a que se impliquem em atividades an-
tissociais e posteriormente delitivas.
Segundo Hawkins23 a explicação mais interessante seria
aquela que se refere a teoria do desenvolvimento social. Esta
teoria identifica a família, a escola e o grupo de pares como as
unidades mais importantes no desenvolvimento do ser huma-
no, de modo que quanto maior for o grau de envolvimento que
a criança e o adolescente mantenha com elas, mais possibili-
dades existirão para prevenir o surgimento da delinquência
juvenil.
No que se refere a escola, a teoria do desenvolvimento
social define três condições necessárias para formar e reforçar
o vínculo social entre o infante e a instituição socializadora. A
primeira condição se refere ao fato de que o jovem deve expe-
rimentar as oportunidades para envolver-se na vida da escola.
A segunda é quando o jovem tem habilidades sociais, cogniti-
vas e de conduta necessárias para atuar de forma equilibrada
e dinâmica nas atividades e interações sociais. E por fim,
quando os jovens são reconhecidos e elogiados consistente-
mente por seu desempenho correto, assim, desenvolvem uma
relação positiva e frutífera com a escola, o que dificultará sua
participação em atos delitivos24.
Considerando que o ser humano não pode ser considera-
do como algo isolado, pois vive, cresce e se desenvolve dentro
de um contexto interativo e dinâmico, é aí que a escola assume

22
BERNFELD, S. Psicoanálisis Y educación antiautoritária. Barral, Barce-
lona: 1983, p. 123.
23
HAWKINS, Y Weis, Delinquency e Prevention. J. Of. Primary Preven-
tion, 6:73-1997, p. 61
24
ZIGLER, E; TAUSSIG, C. y Black, Early Childhood Intervention. A
Promising Preventative for Juvenile Delinquency. American Psycholo-
gist, Vol. 47, n. 8,997-1006 – 1997, p. 653.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
29
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

papel importante, devendo ser mais uma das unidades que


formam o processo de socialização, devendo levar em conta as
outras unidades como a família, o grupo de pares e a comuni-
dade. Estas instituições acabam fazendo um trabalho interli-
gado e de extrema importância no desenvolvimento do ser
humano, lembrando que, as influências de cada uma delas não
tem o mesmo peso em todas as etapas do desenvolvimento
social, seguindo a teoria de Hawkins25, deve-se desenvolver
técnicas de intervenções específicas através de políticas pú-
blicas eficazes juntamente com aquela unidade socializadora
que está afetada.

A BUSCA POR UMA EFETIVA CONSOLIDAÇÃO DE DIREITOS ATRAVÉS


DE POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS À JUVENTUDE
Tratando de política pública, esta “faz parte do conheci-
mento denominado policy science”. Conhecimento este que
vai além de governo, “visto que, para sua existência, a socie-
dade também exerce papel ativo e decisivo”. Assim, entende-
se por política pública a “ação pública, na qual, além do Esta-
do, a sociedade se faz presente, ganhando representatividade,
poder de decisão e condições de exercer o controle sobre a sua
própria reprodução e sobre os atos e decisões do governo”26.
No entanto, a existência da política pública implica na
existência de direitos sociais, pois, se a política deve atender
as necessidades dos cidadãos, é preciso saber quais são essas
necessidades e declará-las em forma de lei. Porém, “assegurar
direitos, implica ir além da legislação. As leis são as ferramen-
tas de exigibilidade e, ao mesmo tempo, resultam da articula-
ção e lutas sociais”27. Assim, é possível definir que o Estado
tem o papel de executar as políticas públicas, ou seja, presta

25
HAWKINS. Op.cit., p. 48.
26
PEREIRA, T. D. Política nacional de assistência social e território: um
estudo à luz de David Harvey. Tese (Doutorado) - Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2009, p. 14.
27
TEJADAS, Silvia da Silva. Juventude e ato infracional: as múltiplas
determinações da reincidência. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2007, p. 19.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
30
Ademar Antunes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

um serviço à sociedade, e os cidadãos exercem a função de


recomendá-las e acompanhá-las em sua construção, execução
e avaliação.
Para o Serviço Social, as necessidades sociais são com-
preendidas como questão social, a qual é resultado do embate
político entre capital e trabalho, originando assim contradições
– necessidades sociais. Em outras palavras, “a questão social
diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades
sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impen-
sáveis sem a intermediação do Estado”28. Nesses termos a polí-
tica pública exerce a importante função de defesa, proteção
dos direitos sociais, tendo em vista a justiça social.
Todavia, os jovens também são sujeitos de direitos, bem
como as crianças, adolescentes, mulheres, idosos, pessoas
portadoras de necessidades especiais, enfim, todos os cida-
dãos. A propósito, é importante mencionar as políticas públi-
cas para as crianças, adolescentes (e jovens) enquanto garan-
tia de seus direitos através do Estatuto da Criança e do Ado-
lescente.
Em 1990, designadamente em 13 de julho, é criado o Es-
tatuto da Criança e do Adolescente – ECA, o qual protege in-
tegralmente a criança até doze anos de idade incompletos, e o
adolescente entre doze e dezoito anos de idade. O ECA consti-
tui uma política importante, onde a família, o governo e a soci-
edade tornam-se legalmente responsáveis por esta faixa etária
de zero a dezoito anos, tendo o dever de assegurar-lhe seus
direitos. Neste contexto, vale reportar à Constituição Federal
de 1988, a qual, como eixo norteador das políticas públicas, é
que primeiro veio a garantir os direitos das crianças e dos ado-
lescentes. Contudo, a juventude em si, como faixa etária pró-
pria e demandante, não estava sendo atendida nestas políti-
cas. Corroborando, Cury registra que:
Até pouco tempo a juventude era vista, no Brasil, apenas
como uma fase de transição da adolescência para a vida

28
IAMAMOTO, Marilda Vilela. A questão social no capitalismo. In. Revis-
ta Temporalis. n. 03 Jan-Jun. 2001. Brasília. 2001, p. 16.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
31
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

adulta. Em função do próprio Estatuto da Criança e do


Adolescente (ECA) as políticas para o segmento estavam
restritas ao universo de jovens com idade até dezoito
anos29

Se a maioridade (após completar 18 anos) significa “li-


berdade” para muitos jovens, não é em vão, pois de fato a pro-
teção social e a garantia de direitos tendo como base o Estatu-
to da Criança e do Adolescente só ampara até esta idade, dei-
xando a outra parcela da juventude a mercê da sociedade. Por
outro lado, completar 18 anos para os jovens das gerações an-
teriores, significava estar livre de “um período de privações,
com pouca autonomia e constrangidos pelas convenções soci-
ais”30. As razões a estas mudanças de comportamentos e tam-
bém a necessidade de colocar em pauta na agenda pública a
faixa etária de jovens (15 a 29 anos) está atrelada às transfor-
mações sociais.
Neste sentido, existe, em fase final, no Congresso Nacio-
nal um projeto de lei que cria o Estatuto da Juventude, que
basicamente servirá como um norte para as políticas públicas
de Juventude. Pois, o mesmo proporcionará uma série de bene-
fícios à jovens de 15 a 29 anos, entre os quais, estão meia pas-
sagem nos transportes interestaduais e intermunicipais,
transporte público gratuito, além de descontos em ingressos
para eventos culturais.
Sendo assim, para o pesquisador José Jair Ribeiro,
a aprovação do Estatuto da Juventude é um passo muito
importante para olhar as juventudes como sujeito de di-
reitos e não mais como problema, como portadora de uma
pauta de políticas públicas próprias e não mais a mercê

29
CURY, Beto. Os muitos desafios da política nacional de juventude. In:
AVRITZER, Leonardo (Org.). Experiências nacionais de participação
social. São Paulo. Cortez, 2009, p. 90.
30
ABAD, Miguel. Crítica Política das Políticas de Juventude. In: FREITAS,
Maria V.; PAPA, Fernanda de. Políticas Públicas: Juventude em Pauta.
São Paulo: Cortez. 2003, p. 25.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
32
Ademar Antunes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

de decisões somente partidárias. Enfim, é um marco de-


cisório para todas as juventudes do Brasil31.

A partir desta análise, verifica-se que existe uma defici-


ência das políticas públicas no Brasil, as quais decorrem desde
a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, na me-
dida em que durante este período (1988 e 2000) pouco se dis-
cutiu a questão da delinquência juvenil na agenda pública32.
Entretanto, mesmo deficientes diante das transformações so-
ciais, fruto do fenômeno da globalização, da revolução tecnoló-
gica, etc. é imprescindível o debate, construção e implementa-
ção de políticas públicas eficazes ao jovem no Brasil contem-
porâneo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se desenvolveu ao longo do presente trabalho, fora
uma reflexão bem pontual a respeito da necessidade de políti-
cas públicas para a juventude, em especial aquelas voltadas
para a não inserção do jovem no mundo da criminalidade. O
que se percebe sobre o tema que isso representa um dos
grandes desafios da sociedade contemporânea, pois é signifi-
cativo e fundamental que os atores sociais (a comunidade, a
sociedade civil e o Estado) se articulem, de maneira a propor
que políticas para essa parcela populacional sejam elaboradas
e efetivadas.
Considerando outro ponto tratado no texto, é que a au-
sência de políticas públicas para juventude pode estimulá-lo à
criminalidade. Portanto, repensar com mais afinco e responsa-
bilidade a importância do jovem para a sua comunidade repre-
senta considerá-lo prioridade absoluta, tratando da sua condi-
ção de sujeito de direitos, logo, do seu melhor interesse. Sendo
assim, a fomentação de políticas públicas que afastem o jovem

31
RIBEIRO, José J. Observatório Juventudes. Disponível em:
<http://maristas.org.br/institucional/rede-marista-apoia-aprovacao-do-
estatuto-da-juventude> Acesso em 08 abril 2013.
32
Idem.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
33
Políticas públicas de enfrentamento à delinquência juvenil

da delinquência, sem sombra de dúvida, considerada uma polí-


tica de prevenção à criminalidade adulta.

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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA
IMPLEMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
DE SAÚDE NO ESPAÇO LOCAL

Adriane Medianeira Toaldo


Doutoranda e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul,
RS, UNISC. Professora na Universidade Luterana do Brasil, ULBRA – Cam-
pus Santa Maria. Advogada. Integrante do grupo de pesquisa Gestão Local
e Políticas Públicas, coordenado pelo professor Pós-Doutor Ricardo Her-
many do Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado/Doutorado
da UNISC. (adrianetoaldo@terra.com.br.)
Ricardo Hermany
Pós-Doutorado em Direito Administrativo Municipal pela Universidade de
Lisboa/Portugal. Chefe do Departamento de Direito da Universidade de
Santa Cruz do Sul – UNISC. Advogado. (hermany@unisc.br.)

Resumo
Em nível local, a população sofre com a precariedade dos serviços de saúde ofereci-
dos, resultado da falta de investimentos e de uma organização que não atende às
suas necessidades e direitos, previstos na Constituição. O presente artigo apresenta
uma análise do problema da saúde a partir da ideia de empoderamento local em
uma sociedade que vivencia o Estado Democrático de Direito e as possíveis soluções
baseadas na ideia de subsidiariedade e solidariedade. Nesta perspectiva, o empode-
ramento local aliado à solidariedade irão fortalecer a gestão pública no segmento de
saúde. A articulação dos atores sociais no espaço local também contribui para a
formação da cidadania e, sem dúvida, para a descentralização do serviço de saúde
consolidado no princípio da subsidiariedade.
Palavras-chave: Democracia participativa. Empoderamento local. Políticas Públicas.
Sistemas de saúde.

Abstract
At the local level, the population suffers from poor quality of health services offered
as a result of lack of investment and an organization that does not meet their needs
and rights provided for in the Constitution. This article presents an analysis of the
problem of health from the idea of local empowerment in a society that experiences
the democratic rule of law and possible solutions based on the idea of subsidiarity
and solidarity. In this perspective, local empowerment allied solidarity will strength-
en public management in the healthcare segment. The articulation of social actors in
the local space also contributes to the formation of citizenship and, undoubtedly, to
the decentralization of health services consolidated on the principle of subsidiarity.
36
Adriane Medianeira Toaldo & Ricardo Hermany

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quando o cidadão se dirige a uma instituição pública de
saúde, deseja ver o seu problema solucionado de maneira rá-
pida e eficaz, não importando qual unidade da federação ou
que parcerias o agente estatal firmou para resolver sua de-
manda. Ao ficar horas em uma fila ou esperar semanas e me-
ses pelo atendimento, culpa a corrupção dos políticos pelo não
atendimento.
No entanto, não é somente do desvio de verbas que de-
corre a falta de atenção à saúde necessária. Muitos dos pro-
blemas têm origem na estrutura de saúde que é dividida entre
a União, os Estados e os municípios, que poderiam ser resolvi-
das se houvesse uma maior descentralização. Também há
maior possibilidade de eficácia de houver uma relação de soli-
dariedade entre o poder público e a sociedade civil.
O presente artigo procura encaminhar reflexões neste
sentido, observando os princípios de subsidiariedade e solida-
riedade como propostas para melhorar o atendimento de saúde
no município.

O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NA ATUALIDADE


Antes de entrar na esfera da questão democrática e da
formação de um capital social que promova a implantação de
políticas de saúde locais, é necessário que se entenda as
transformações pelas quais passaram o Estado na atualidade.
Diversas formas de organização deste Estado, como o Liberal,
o Estado de Bem-Estar Social e o Estado Neoliberal não conse-
guiram responder aos anseios de uma sociedade democrática,
seja por uma questão de princípios, seja por uma questão social
e real de interesses que demonstraram sua ineficiência.
Resulta disso que se apresenta, para o presente século a
ideia de um Estado Democrático de Direito, pautado na legiti-
midade de sua atuação, garantidor da ordem constitucional e
propenso a estabelecer políticas públicas que estão direta-
mente ligadas à atuação da sociedade, estabelecendo elos co-
muns com esta, rumo à democratização de todas as suas
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
37
Democracia participativa e políticas públicas de saúde no espaço local

ações. É o que postula José Luiz Bolzan de Morais1, para quem


o Estado, na atualidade, não constitui apenas um dispositivo
técnico de poder, mas uma concepção de organização social
que cria liberdades públicas, zela pela democracia e atribui ao
Estado um conteúdo. Continua sendo um Estado naturalmente
intervencionista, afirma o autor, fruto do desenvolvimento eco-
nômico e técnico-científico, aumento dos centros urbanos e
surgimento de diversos estamentos sociais. Este intervencio-
nismo, na visão de Dalmo de Abreu Dallari2, constitui função do
Estado, dada pela sociedade civil e que deriva de necessida-
des sociais, pois o poder público se assume como garantidor
das condições mínimas de existência para as pessoas. Estas
condições, no Estado Brasileiro, tem origem constitucional no
princípio da dignidade humana e se estende a toda uma gama
de direitos humanos que inclui, no caso do tema aqui proposto,
a assistência à saúde de forma integral e com qualidade. No
entanto, compreende-se que a garantia destes direitos somen-
te será possível mediante o aperfeiçoamento dos mecanismos
de cidadania.
A democracia, a partir desta ótica, constituiria uma situa-
ção de constante aperfeiçoamento, pois o Estado Democrático
de Direito possui como fundamento a participação efetiva e
operante do povo na coisa pública, indo muito além da simples
formação de instituições representativas. Traduzindo este en-
tendimento, afirma-se um dos objetivos primordiais do Estado
consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e
instaurar um regime democrático que realize a justiça social,
fundamentado no constitucionalismo, democracia, sistema de
direitos fundamentais, justiça social, divisão dos poderes, lega-
lidade e segurança jurídica.
Esta opinião é compartilha por Perry Anderson3, que con-
sidera que o Estado atual, classificado pelo autor como pós-

1
MORAIS, José Luís Bolzan de et al. O Estado e suas crises. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005. p. 71.
2
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São
Paulo: Saraiva, 1989. p.54.
3
ANDERSON, Perry. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado
democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 62.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
38
Adriane Medianeira Toaldo & Ricardo Hermany

neoliberal, tem a obrigação de garantir valores como a propri-


edade e a democracia, procurando fornecer a cada cidadão
uma vida de forma plena segundo o padrão de sua escolha, o
que pressupõe uma igualdade baseada na diversidade, como
paradigma de uma sociedade verdadeiramente livre. A propri-
edade, neste sentido, deve ter uma função social e promover
maior inclusão social. Perry Anderson também defende um
reposicionamento da democracia representativa, interligando
atores sociais e criando uma sociedade que priorize o bem-
estar de todos.
Este pensamento caminha em direção a uma maior parti-
cipação social, que deve ser entendida pela sociedade civil
como necessária e deve ser estimulada pelo Estado, que se
tornará corresponsável pela gestão da coisa pública. Pierre
Rosanvalon4 chama esta nova situação de crise do Estado Pro-
vidência, que está dando lugar a um novo Tipo de Estado, que
se pauta por uma combinação de elementos articulada na so-
cialização, descentralização e transferência. No entender deste
autor, três palavras-chaves identificam as novas funções do
Estado: desburocratização, remodelação e transferência. A
desburocratização racionaliza a gestão das grandes estruturas
e funções coletivas. A remodelação prepara os serviços públi-
cos para torná-los mais próximos dos usuários através da des-
centralização. A transferência implica em delegar poder e as
tarefas inerentes a este para organizações da sociedade civil,
constituindo a via da autonomização. Esta nova realidade, po-
rém, só pode ser efetivada em nível local, pois é neste patamar
que o poder público tem mais condições de se aproximar da
população.

POLÍTICAS PÚBLICAS E CAPITAL SOCIAL


O debate em torno da efetivação da democracia leva ao
conceito de políticas públicas, que constitui o instrumento pelo
qual o Estado age em favor da cidadania. Maria Paula Dallari

4
ROSANVALLON, Pierre. A crise do estado providência. Goiânia: UFG;
Brasília: UnB, 1997. p. 23.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
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Democracia participativa e políticas públicas de saúde no espaço local

Bucci5 entende que as políticas públicas constituem um pro-


grama ou quadro de ação governamental compostas por um
conjunto de medidas articuladas, cujo escopo consiste em mo-
vimentar a máquina estatal no sentido de realizar algum obje-
tivo de ordem pública ou concretização de direitos. Entende-
se, interpretando esta autora, que o público assume uma di-
mensão mais ampla do que o Estado, em um patamar que su-
pera as simples decisões dos governos, envolvendo também as
ações dos sujeitos individuais ou coletivos e as influências de-
correntes dos movimentos sociais na definição destas políti-
cas. Ou seja, as políticas públicas não constituem apenas uma
decorrência da intervenção do Estado, mas de uma atuação
conjunta de todo o corpo social, que promove a afirmação dos
direitos humanos, a defesa do meio ambiente, a erradicação da
pobreza e ampliação da liberdade, em direção a uma socieda-
de mais justa e equilibrada, entre outras ideias.
Estas ideias constituem, como foi dito anteriormente, em
um novo patamar de entendimento, no qual o desenvolvimento
econômico caminha lado a lado com o desenvolvimento social.
Desta forma, as políticas públicas e sociais assumem uma po-
sição determinante no conjunto de atuação estatal e não-
estatal, o que gera a necessidade de uma intervenção conjunta
de todas as instituições públicas no sentido de aprimorar os
índices de desenvolvimento humano em áreas cruciais como
saúde e educação.
Tal postulado encontra ressonância nas palavras de João
Pedro Schmidt6, o qual afirma que, após a febre do neolibera-
lismo, há um relativo consenso de que as perspectivas de de-
senvolvimento passam pela inclusão social e pelo fortaleci-
mento da atuação do Estado em favor da igualdade, com maior

5
BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In:
_____. (Org.) Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São
Paulo: Saraiva, 2006. p. 38.
6
SCHMIDT, João Pedro. Gestão de políticas públicas: elementos de um
modelo pós-burocrático e pós-gerencialista. In: REIS, J. R.; LEAL, R. G.
Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa
Cruz do Sul, Edunisc, 2007. p.76.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
40
Adriane Medianeira Toaldo & Ricardo Hermany

participação popular e combate à corrupção. Para tanto, se-


gundo este autor, o Estado deve incorporar uma alta capaci-
dade gerencial, aos moldes dos administradores privados, que
incorpora um novo estilo gerencial público, que se relaciona
ativamente com todos os atores que estão envolvidos no pro-
cesso, devendo possuir maior autonomia e flexibilidade, sendo
capaz de assumir metas e atingir resultados. Naturalmente
que a sociedade civil deve compreender os novos valores que
estão sendo disseminados constituindo o que o autor chama
de capital social.
O capital social pode ser entendido como a contrapartida
da população, ou seja, o conjunto dos elementos culturais e
sociais que, como afirma João Pedro Schmidt, atua em deter-
minado meio incluindo atitudes, normas, costumes, organiza-
ções, redes sociais e relações informais. A atuação do capital
social melhora o desempenho da gestão pública e possibilita
maiores perspectivas de crescimento. Ou seja, a participação
no processo deliberativo e na organização das tarefas de inte-
resse público enriquece a cidadania.
A importância do capital social está no fato de, como res-
salta Robert Putnam7, haver uma mobilização da capacidade
cooperativa das pessoas que possibilita que as habilidades
econômicas sejam desenvolvidas, centrada na valorização da
confiança interpessoal. Este autor observou, na Itália, um mai-
or desenvolvimento de algumas regiões em detrimento de ou-
tras, cujos governos estavam mais próximos da população, po-
dendo atender melhor suas demandas. Robert Putnam também
enfatiza que um dos elementos essenciais para o fortalecimen-
to do capital social é a confiança social, pois “quanto mais ele-
vado o nível de confiança numa comunidade, maior é a proba-
bilidade de haver cooperação”. Ressalta-se, porém, que a con-
fiança social exige uma regra de reciprocidade, em que Estado
e sociedade se comprometem, mutuamente, a cumprir deter-

7
PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália
Moderna. Tradução de Luiz Alberto Monjardin. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2000. p. 173.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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41
Democracia participativa e políticas públicas de saúde no espaço local

minadas tarefas que sejam fundamentais para o desenvolvi-


mento social e econômico.
Reforçando esta ideia, Maria Celina Soares Araújo8 enfati-
za que o capital social define-se por três fatores interrelacio-
nados: confiança, normas e cadeias de reciprocidade e siste-
mas de participação cívica, que permitem que as pessoas coo-
perem, ajudem-se mutuamente, zelem pelo bem público e
promovam a prosperidade.
Do que foi dito acima, depreende-se que o capital social
constitui uma mudança de paradigma da cultura instituída,
pois até então havia uma dependência e uma acomodação por
parte da população em relação ao Estado, esperando-se que
este providenciasse seus direitos. O Brasil constitui um caso
típico de gestão paternalista do Estado, em que o sujeito esta-
belece com o poder uma relação de troca de favores, fruto da
herança portuguesa, na qual o clientelismo tornou o ente esta-
tal ativo e a população passiva.
No entanto, ao ampliar consideravelmente os direitos, a
Constituição Federal de 1988 também abriu a possibilidade da
administração conjunta do que é bem público, através da par-
ticipação da população e dos instrumentos de controle social.
Também é importante afirmar que a ampliação dos direitos
sociais criou um problema para o Estado, que se viu diminuído
diante da atuação neoliberal, pois não há uma estrutural esta-
tal suficiente, nem administrativa nem financeiramente, para
atender a todas as demandas da população.
Assim, compreende-se que o capital social é muito mais
do que uma política pública coerente com o processo de demo-
cratização do Estado, pois constitui uma necessidade imperio-
sa para que as políticas públicas tenham efeito, tanto no as-
pecto cultural quanto operacional da sua execução. O Estado
depende da sociedade para que as politicas públicas sejam
eficazes no seu intento. Assim, reforça-se o sentimento de per-
tencimento que é necessário para que as soluções sejam corre-

8
ARAÚJO, Maria Celina Soares D´. Capital Social. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed, 2003. p. 19-20.

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Adriane Medianeira Toaldo & Ricardo Hermany

tamente implantadas. E nada melhor para a confiança social


do que saber que é a população a corresponsável pelo sucesso
da melhoria social.

CAPITAL SOCIAL NO EMPODERAMENTO LOCAL


E NA PROMOÇÃO DA SAÚDE
O capital social ressignificou a noção de cidadania, fa-
zendo com que, como afirmam Ricardo Hermany e Claudine
Freire Rodembusch9, os agentes sociais passem a participar de
forma atuante na busca de soluções para os problemas sociais,
aumentando o seu espaço discursivo e participando das trans-
formações sociais.
O espaço adequado para a concretização do capital social
está no plano local, que oferece maior aproximação entre o go-
vernante e a população. Este entendimento decorre do princí-
pio da subsidiariedade, que contribui para a definição das
competências de cada ente da federação, além de modificar as
relações da sociedade com o Estado. De acordo com Ricardo
Hermany e Diogo Frantz10, o incremento da competência das
esferas locais determina, também, segundo estes autores, uma
nova lógica relacional no próprio espaço local, a partir da in-
serção dos atores sociais como autores do processo de cons-
trução das decisões públicas, através da cooperação entre Es-
tado e Sociedade, visando ao atendimento de ambos interesses.
Martonio Mont´Alvern e Barreto Lima Lima11 explicam
que o fortalecimento das competências do governo local não

9
HERMANY, Ricardo; RODEMBUSCH, Claudine Freire Rodembusch. O
empoderamento dos setores da sociedade brasileira no plano local na
busca da implementação de políticas públicas sociais. In: HERMANY,
Ricardo (Org.). Empoderamento social local. Santa Cruz do Sul: Editora
IPR, 2010. p. 79.
10
HERMANY, Ricardo; FRANTZ, Diogo. As políticas públicas na perspec-
tiva do princípio da subsdiariedade: uma abordagem municipalista. In:
HERMANY, Ricardo (Org.). Gestão local e políticas públicas. Santa Cruz
do Sul, IPR, 2010. pp. 191-201.
11
LIMA, Martonio Mont´Alverne Barreto Lima. Autonomia do município e
cultura sobre o poder local. In: HERMANY, Ricardo (Org.). Gestão local e
políticas públicas. Santa Cruz do Sul, IPR, 2010. p. 73.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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43
Democracia participativa e políticas públicas de saúde no espaço local

significa, como muitos poderiam pensar, o enfraquecimento do


Estado, mas justamente o seu oposto, pois a atuação da auto-
ridade dirigente e democrática chegará a todos os cantos do
país por meio do governo local, o que confirma a chega da
Constituição também nos espaço municipais, por mais distan-
tes que se localizem. Segundo este autor, a utilização e a acei-
tação da plenitude do município como entidade da federação
representa fonte de fortalecimento da Constituição dirigente e
não de sua fraqueza.
Para Ricardo Hermany e Claudine Freire Rodembusch12, a
descentralização e a municipalização são estratégias de pro-
moção da democracia, mostrando que a participação local
constitui a força do município, pois é nele que o cidadão nasce,
constrói a sua história, fiscaliza e exercita o controle social.
Segundo estes autores, o município é, de fato, a entidade polí-
tico-administrativa que oferece as melhores condições para a
prática da participação popular na gestão da vida pública, pois
a proximidade possibilita maior comunicação e interação, ao
mesmo tempo em que as ações e intenções do governo são
acompanhadas diretamente pela população.
Quanto ao espaço local, é fundamental destacar a relação
entre a idéia de subsidiariedade13 e a noção de autonomia. Isso
porque, conforme Martins14, tal princípio “é incompatível com
uma administração centralizada ou com autarquias não autô-
nomas, pois, na sua essência, pressupõe que a atuação caiba a
entidades distintas, capazes e eficazes, sendo a medida da
capacidade e eficácia de cada entidade verificada a nível das
possibilidades da sua atuação.
12
HERMANY, Ricardo; RODEMBUSCH, Claudine Freire Rodembusch. Op.
cit. p. 86.
13
“[...] princípio pelo qual as decisões, legislativas ou administrativas,
devem ser tomadas no nível político mais baixo possível, isto é, por
aquelas que estão o mais próximo possível das decisões que são defini-
das, efetuadas e executadas.” BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O
princípio da subsidiariedade. Conceito e evolução. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 1996. p. 92.
14
MARTINS, Maria Margarida do Rego Costa Salema D’ Oliveira. O princí-
pio da solidariedade em perspectiva jurídico política. Tese (Doutorado)
– Universidade de Lisboa, Lisboa, v. 2, 2001. p. 617.

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Adriane Medianeira Toaldo & Ricardo Hermany

Nesta ótica, a idéia de subsidiariedade mostra-se absolu-


tamente incompatível com a centralização, haja vista que um
poder centralizado atua sempre a título principal, não garan-
tindo a autonomia para as demais esferas.
No espaço local a sociedade exerce poder fundamental
para corporificar o direito social a partir do momento que ocor-
re “[...] a articulação dos atores sociais com uma ordem estatal
democrática.”15
Um dos gargalos que asfixia o município na sua gestão
das políticas públicas locais é a questão da saúde. Decorre da
nova ordem constitucional estabelecida em 1988 o fato de saú-
de tem alcançado o patamar de direitos fundamentais, fazendo
com que o Estado tenha a obrigação de garanti-la, conferindo
competências ao poder público para legislar, administrar e
atuar diretamente aos cidadãos para obter receitas e imple-
mentar uma política pública de saúde.
Diversos artigos da Carta Magna impõe ao Estado esta
obrigação. Entre estes, pode-se citar o art. 6º, que prevê ser a
saúde um direito social e o art. 196, que preceitua ser a saúde
um direito de todos e dever do Estado. Relativamente às com-
petências para cuidar da saúde, deve-se ressaltar que tanto a
União como o Estado e o Município possuem competências
comuns e concorrentes para cuidar da saúde (arts. 23 e 24).
Ainda é necessário citar o art. 227, que determina ser dever da
família, da sociedade e do Estado, assegurar, por exemplo, o
direito à saúde das crianças e adolescentes.
Interpretando estes dispositivos da Constituição Federal
de 1988, verifica-se que, de uma forma geral, todos os entes da
federação e mais a sociedade são responsáveis pela promoção
da saúde, resultado da aplicação dos princípios da subsidiari-
edade e da solidariedade. O primeiro princípio, já explicado
acima, impõe que o poder local seja autônomo para definir su-
as políticas, notadamente as de saúde. O princípio da solidari-
edade, por sua vez, conforme explicam Grace Kellen de Freitas
15
HERMANY, Ricardo. (RE)Discutindo o espaço local: uma abordagem a
partir do direito social de Gurvich. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2007. p.
363.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
45
Democracia participativa e políticas públicas de saúde no espaço local

Pellegrini e Júlia Bagatini16, surgiu pela necessidade de sociali-


zar as relações e vincular a sociedade a um dever de ajuda mú-
tua, pois sendo o homem um ser social, a consciência de uma
sociabilidade sempre esteve presente, pois o homem depende
da sociedade e esta desse. Aplicando o princípio aos desafios
enfrentados pelo município em suas demandas, notadamente a
da saúde, percebe-se, como enfatizam as autoras acima, que a
solidariedade implica em um meio de conceder igual dignida-
de para todos os membros da sociedade, permitindo que direi-
tos intrínsecos, irrenunciáveis e inalienáveis possam ser real-
mente alcançados, pois a dignidade “implica em uma obriga-
ção geral de respeito pela pessoa, traduzida num feixe de de-
veres e direitos correlativos”, que proporciona a todos o mes-
mo nível de igualdade e direito.
Resta, então, definir que ações e políticas públicas podem
ser implementadas a partir da noção de subsidiariedade e so-
lidariedade no quesito saúde. Com relação ao primeiro princí-
pio, a lógica seria a de que os serviços públicos passem intei-
ramente a serem realizados pelo município, deixando de haver
a concorrência com o Estado e a União.
O que se vê é justamente o contrário. Nos municípios, os
serviços de saúde, dependendo do porte e das instituições fi-
nanciadores, são realizados concomitantemente pela União,
estados e municípios, através de estruturas diferentes que plu-
ralizam o atendimento, geram gastos excessivos e ainda con-
fundem a população em suas demandas. Esta estrutura é he-
rança de uma centralização excessiva que existiu no Brasil a
partir do Estado e Novo e se confirmou com os regimes milita-
res. Desta forma, as competências comuns e concorrentes, que
ainda foram preservadas na Constituição Federal de 1988,
acabam sendo prejudiciais ao atendimento do cidadão, pois
todas as despesas e esforços poderiam ser concentrados na
16
PELLEGRINI, Grace Kellen de Freitas; BAGATINI, Júlia. A solidariedade
como um elemento fundamental para o conceito de serviço público no
constitucionalismo contemporâneo: uma abordagem inicial e reflexiva a
partir da teoria pragmático-sistêmica. In: GORCZEVSKI, Clovis (Org.).
Constitucionalismo contemporâneo: novos desafios. Curitiba: Multi-
deia, 2012. p. 202.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
46
Adriane Medianeira Toaldo & Ricardo Hermany

esfera local, possibilitando maior planejamento e economia de


esforços.
A solidariedade, por seu turno, viria complementar esta
descentralização, na medida em que possibilitaria ao cidadão
participar mais efetivamente das políticas públicas em nível
local, através da incorporação das organizações da sociedade
civil no planejamento e nas ações de saúde. Deve-se salientar
que estas organizações de caráter não-governamental surgi-
ram exatamente para suprir lacunas de ineficiência do Estado,
quando do surgimento de governos neoliberais. Muitas destas
entidades se qualificaram no atendimento e estão aptas a par-
ticipar de governos que tenham sua perspectiva democrática.
Assim, desta forma, com a descentralização e a participação
das ONGs, é possível haver um empoderamento local que irá
fortalecer a atuação em prol da saúde local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado Democrático de Direito é uma construção per-
manente, que se renova em cada eleição, nas diretrizes públi-
cas, na participação das entidades civis e no compartilhamen-
to das responsabilidades entre o Estado e a Sociedade. A me-
lhor forma de fortalecer este tipo de Estado é a descentraliza-
ção combinada com decisões compartilhadas com os muníci-
pes, os verdadeiros interessados no assunto. Para isto, é ne-
cessário romper com uma herança centralizadora e com uma
cultura de acomodação, que espera do Estado que a solução
venha em uma bandeja, pronta para ser degustada.
A cidadania prevê justamente o contrário, a participação
ativa do cidadão nas decisões que afetam o seu dia a dia, pas-
sando a democracia de representativa para participativa.

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SCHMIDT, João Pedro. Gestão de políticas públicas: elementos de
um modelo pós-burocrático e pós-gerencialista. In: REIS, J. R.; LEAL,
R. G. Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2007. p. 1988-2032.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
O SISTEMA DE JUSTIÇA
E OS DIREITOS HUMANOS :
O PANPRINCIPIOLOGISMO COMO
DEBILITADOR NA APLICAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS

Alessandra Liani Prates


Mosaico teórico sobre os princípios jurídicos. Trabalho de conclusão de
curso de graduação em direito - UDC – União Dinâmica de Faculdades Ca-
taratas - Foz do Iguaçu – PR- 2012 (alessandrali28@hotmail.com)

Resumo
Este ensaio aborda os novos princípios jurídicos no ramo do Constitucionalismo
brasileiro, desde sua concepção e atual aplicação no ordenamento jurídico. Perpas-
sa, assim, pela origem de tais institutos, a inclusão pela comunidade jurídica e sua
influência na doutrina e jurisprudência. Trata de questões sobre a interpretação e
aplicação do Direito, e a contemporânea forma de pensar, decodificar e construir
doutrina no cenário das leis. Esclarece, através de análise, a vulgarização dos princí-
pios criados de forma exacerbada, de cunho recorrente e nada inovadores quando
empregados. Apresenta breve histórico sobre a revolução nos paradigmas ocorridos
no século XX, a influência filosófica e linguística, o neoconstitucionalismo e sucintos
exemplos do fenômeno denominado panprincipiologismo. Por derradeiro, em apre-
ciação crítica salienta o decisionismo judicial e as conseqüências danosas culminan-
do na debilidade no instante da efetivação dos direitos humanos.
Palavras-chave: princípios – panprincipiologismo – direitos humanos – decisionismo
judicial.

Abstract
This essay discusses the new legal principles in the Brazilian branch of Constitucion-
alism, since its designd and implementation in current Law. Permeates thus the
origin of such institutes, including the legal community and its influence on doctrine
and jurisprudence. It addresses issues concerning the interpretation an application
of law, and contemporary thinking, decode and build doctrine in legal scenario. Clari-
fies, through analysis, the vulgarization of principles created so exacerbated die
when appellant and nothing innovate employees. Presents brief history of the revo-
lution in paradigms occurred in the twenthieth century, the philosophical and lin-
guistic influence, the neoconstitucionalism and succinct examples of the phenome-
non called panprincípiologism. For the ultimate in assessing the critical stresses deci-
sionism judicial and harmful consequences culminating in the weakness at the mo-
ment of realization of human rights.
Keywords: principles – panprincipiologism – human rights – decisionism court.
50
Alessandra Liani Prates

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Com o surgimento do Constitucionalismo moderno, e a
inclusão de princípios constitucionais, o Direito sofreu algumas
influências da filosofia e da linguagem. Contudo, não foi sufici-
ente para revolucionar de forma relevante o mundo jurídico.
Nesse sentido, é analisada de forma sucinta a interpretação e
aplicação do Direito, desde as transformações que o século
antecessor provocou no mundo, embora no Direito pouco se
notou em termos inovadores. Haja vista, a extraordinária quan-
tidade de princípios com caráter recorrente e inúteis, criados
por juristas desatualizados. Abordar-se-á, como a concepção
exorbitante de princípios afeta a efetivação dos direitos huma-
nos, tendo como pano de fundo a tese do panprincipiologismo
de Lênio Streck. E para encerrar, como o panprincipiologismo
pode ser fatal quando manipulado por operadores do Poder
Judiciário.

O PANPRINCIPIOLOGISMO: AVANÇO OU RETROCESSO


A cadeia de neoprincípios constitucionais, mencionados
no Direito atual brasileiro, é pauta de diversas teses e interpre-
tações pela comunidade jurídica. Conforme, Lênio Streck1 ex-
põe, os princípios são despidos de normatividade, a menos que
estejamos descompromissados com a deontologia do Direito.
Tais espécies de princípios foram erigidos por juristas des-
comprometidos, com o escopo de facilitar réplicas e ampliar
horizontes na seara jurídica. O que se verifica, porém, é que
estes novos recursos “filosófico-linguísticos” carecem de den-
sidade normativa.
O sistema de justiça brasileiro traz em si, velhas formas
de interpretar e aplicar o direito. Isto se deve também ao fato
de o ensino jurídico arraigado em leituras superficiais, cultura
parca e desinteresse de aprofundamento tanto das instituições

1
STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, Hermenêutica
e Teorias Discursivas. Da Possibilidade à necessidade de respostas em
Direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.475.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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O sistema de justiça e os direitos humanos

de ensino, como dos que recebem a carga conteudística. O que


se presencia é que o ensino jurídico não seguiu a guinada pro-
vocada pela Constituição de 1988, tanto que a doutrina nacio-
nal permaneceu reproduzindo a dogmática jurídica tradicional,
assinalada pela herança dos paradigmas liberal-individualista-
normativista e da filosofia da consciência, impedindo, o pro-
cesso de filtragem e de constitucionalização do direito. Nesse
ínterim, em uma das fases do constitucionalismo, Streck ex-
plana:
A fase da ressaca pode ser caracterizada como o período
sucessivo à promulgação da Constituição – em que a cri-
se do direito é resultado desta dificuldade de se compre-
ender o novo paradigma que institui o estado democráti-
co de direito, de maneira que grande parte das inovações
trazidas pela Constituição restaram encobertas, especi-
almente no que diz respeito aos mecanismos de controle
de constitucionalidade e ao catálogo de direitos funda-
mentais.2

Com a introdução do constitucionalismo contemporâneo,


em meados da década de 90 no século XX, que trouxe novos
paradigmas, ou uma esperança de estes fossem estabelecidos,
é de se espantar que parcela considerável de juristas perma-
neça ainda, nos modelos arcaicos de interpretação e aplicação
do direito. Assombra a quantidade excessiva de sinopses, ma-
nuais e teorias esquematizadas, como se o direito fosse uma
fórmula das ciências exatas, encontradas em livrarias, bancas
de jornal e pasmem, em bibliotecas. O moderno constituciona-
lismo promove um retorno aos valores, reaproximando ética e
Direito, iniciando sua trilha com deferência ao ordenamento
positivo, mas reinserindo ideias de justiça e legitimidade.
A fim de beneficiarem-se do vasto instrumental do Direi-
to, saindo da filosofia para o mundo jurídico, tais valores com-
partilhados consubstanciam-se em princípios que passam a
estar amparados na Constituição de forma explícita ou implíci-
ta. Uns já se inseriam nela, como por exemplo, o da liberdade e
2
STRECK, Lênio Luís. Op. cit., p. 216.

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52
Alessandra Liani Prates

o da igualdade, outros clássicos sofreram reformulações como


a separação dos poderes e o estado democrático de direito.
A justiça prêt-à-porter é disseminada de forma natural e
sem questionamento, em parte, pela sociedade jurídica. Aliado
a isso, os novos princípios jurídicos constitucionais, que fazem
parte de uma dogmática de baixa densidade científica, que
apresentados com nova roupagem, soam como perspectiva,
para alguns, de que se está pensando o Direito de forma revo-
lucionária e consistente. Esta visão embaçada revela idéias
arcaicas, com o intuito de facilitar a solução de casos comple-
xos ou mesmo prosaicos, sendo coadjuvante no enfraqueci-
mento no momento instrumental do Direito e, por conseguinte
e não menos importante, os direitos humanos. A celeuma con-
siste em que, tais standarts são genuínos opositores da auto-
nomia do Direito e da democracia, sendo idealizados em cará-
ter ilimitado e sem sentido.
Esse fenômeno, alvo deste trabalho, denominado por
Streck de panprincipiologismo, constitui um conjunto de crité-
rios aplicativos, que os juristas nomearam de “princípios”, que
em grande parte possuem inequívocas aspirações de meta-
regras, além da descomunal prolixidade. A intenção do reno-
mado autor é de que não olvidemos que princípios e leis se
tem em abundante arcabouço em nosso ordenamento, portanto
que se interprete e aplique estes de forma eficaz, sem disper-
sões com neoestatutos de cunho performático, aparência mo-
derna, mas que em suma, são meros embustes e deixam de ser
um avanço para a doutrina.

NEOPRINCÍPIOS OU NEOFALÁCIAS
As revoluções que o século XX trouxe e a conseqüente
guinada no Direito Constitucional, decorrente de diversas
constituições, produziram um grau superior de autonomia do
Direito. Com a incursão da filosofia pela linguagem, ocasio-
nando um novo modo de compreender o mundo, o pensamento
metafísico é superado, e os sentidos que se relacionavam às
coisas, passam a interagir na e pela linguagem. Como Streck
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
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O sistema de justiça e os direitos humanos

bem reporta: “As conseqüências dessa revolucionária viragem-


linguístico-ontológica são incomensuráveis para a interpreta-
ção do direito.”3
Desse modo, a linguagem passa à condição de possibili-
dade e a hermenêutica filosófica abre caminho para se com-
preender o direito e o novo constitucionalismo, ultrapassando
objetivismos e subjetivismos, trazendo a concretude ou a pro-
babilidade desta, evoluindo da fundamentação para a compre-
ensão.
O Direito como sistema intricado que representa, é vulga-
rizado pela doutrina e jurisprudência brasileira, que insistem
em torná-lo de fácil acesso e entendimento, por meio de racio-
cínio do senso comum, não com a finalidade de favorecer a
aplicação dos direitos humanos, e sim de privilegiar àqueles
que detêm o poder na sociedade.
Apesar das transformações do século passado, o Direito
ficou imune às modificações de suma relevância, resultado da
doutrina que se apegou a conceitos senis no tocante à herme-
nêutica e aplicação, mesmo com a novidade princípiológica,
nada de novo trouxe a este.
Outra falsidade percebida é a respeito da palavra “consti-
tucional” no Brasil, em que a própria etimologia é aviltada,
pois se constitucional é depreendido como algo que constitui,
o que se tem observado é que está mais para ser constituído
do que constituir. Por certo que não se pode congelar no tempo
e estagnar os ideais, mas a Constituição no Brasil é vítima de
toda e qualquer mudança a favor de uma elite política e pode-
rosa que manipula ao bel-prazer, quando na realidade o objeti-
vo seria beneficiar a coletividade, ou seja, promover os direitos
humanos com objetividade e de maneira eficaz. Enquanto hou-
ver a cultura do “jeitinho brasileiro”, a banalização do sistema
jurídico, da Constituição Federal e dos direitos humanos, esta-

3
STRECK, Lênio Luiz. O direito de obter respostas constitucionalmente
adequadas em tempos de crise do direito: a necessária concretização
dos direitos humanos. p. 94. Disponível em: http://www.periodicos.
ufpa.br/index.php/hendu/article/viewFile/374/603. Acesso em 09 abr.
2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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Alessandra Liani Prates

rá nosso país longe de ser uma nação. Quanto à efetivação dos


direitos humanos, José Luiz Bolzan de Morais, infere:
[...] A implementação dos conteúdos de direitos huma-
nos, em particular os positivos, implicam a necessária
compreensão da ação jurídica fundamentada em uma
prática comprometida e assente em uma teoria engajada,
onde a constituição não seja percebida como uma folha
de papel. De outro lado, é preciso, ainda que se pense na
concretização dos direitos humanos a partir do prisma da
jurisdição, atribuindo-lhe expressão fundamental quando
estejamos frente aos direitos de terceira geração, o que
não afasta da problemática ora enfrentada.4

A partir da promulgação da Constituição de 1988, houve o


chamado constitucionalismo democrático brasileiro. A Consti-
tuição brasileira, ao seguir a mesma trilha das demais consti-
tuições do segundo pós-guerra, é um marco, pois ela pode ser
vista como o resultado de um processo lento e gradual que se-
pulta a ditadura, com a abertura à redemocratização, contan-
do, inclusive, com expressiva participação popular em sua ela-
boração, bem como, inaugura um novo modelo de Estado. Em-
bora a Constituição de 1988, tenha adquirido a supremacia
formal, material e axiológica, sendo inválida toda e qualquer
disposição contrária a ela, com a introdução dos neoprincípios
aqui já tão criticados, colidem estes com os já existentes.
A utilização extensa de enunciados normativos, enrusti-
dos sob a carapaça de princípios com o fim de juridicizar alter-
nativas valorativas políticas e de viés ideológico. De forma cor-
riqueira, se depara na CF de 88, preceitos estabelecendo pro-
teção à pessoa humana, como no princípio da dignidade da
pessoa humana, sendo uma das pilastras inserido no art. 1º,
inciso III da CF. Ao revés disso, o que verifica é a exacerbada
valoração ao patrimônio, ao poder e a política e não à vida, dos
quais fazem parte os direitos humanos. Tendo em vista que a

4
MORAIS, José Luiz Bolzan de. Direitos humanos, globalização econô-
mica e integração regional. Direitos humanos “globais (universais)” de
todos, em todos os lugares, São Paulo: Max limonada, 2002, p.528.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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O sistema de justiça e os direitos humanos

experiência de um ser humano não se resume em apenas exis-


tir, mas diversos fatores que compõe e promovem a preserva-
ção do cidadão de forma básica: alimentação, saúde, moradia,
educação, bem como os direitos civis, políticos, sociais, cultu-
rais, ambientais, etc., reconhecidos na atualidade.
Os direitos humanos foram concebidos com o intento de
garantir uma sociedade livre, justa e solidária, uma sociedade
onde as pessoas desfrutem das liberdades com justiça e equi-
líbrio. Outro alvo dos direitos humanos é o desenvolvimento
social com melhora qualitativa na atividade estatal e na vida
das pessoas. Para tanto, é necessário que a sociedade seja de-
senvolvida e viva com dignidade, onde os direitos fundamen-
tais sejam garantidos e as desigualdades sociais atenuadas.
Assim sendo, o objetivo do Estado é o da promoção do bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer discriminação, assegurada a dignidade da pessoa
através de sua simples condição humana. Os direitos humanos
são foco essencial de toda e qualquer ordem jurídica, a razão
de ser do Direito, não podendo ser acolhido um estado demo-
crático de direito sem que haja o reconhecimento de direitos
básicos à sociedade.
E conforme assevera, Rodrigo César Rebello Pinho os di-
reitos humanos como o próprio nome sugere:
[...] São considerados indispensáveis à pessoa humana,
necessários para assegurar a todos uma existência dig-
na, livre e igual. Não basta ao Estado reconhecê-los for-
malmente; deve buscar concretizá-los, incorporá-los no
dia-a-dia dos cidadãos e de seus agentes.5

O que se deseja arrazoar é que se o Estado não possibili-


ta os direitos básicos para uma vida digna à população, não
pode se desenvolver de forma eficaz, pois do Estado depende o
povo e vice-versa. E nas palavras de Bobbio:

5
PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da constituição e direitos
fundamentais, v.17. São Paulo, Saraiva, 2002, p.65.

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Alessandra Liani Prates

Os direitos humanos, por mais fundamentais que sejam,


são direitos históricos, ou seja, nascem de certas circuns-
tâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas li-
berdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, ou seja, a cada luta. Nascem quando devem
nascer.6

Paralelo a isto, surge à questão do decisionismo judicial,


que se valendo de suas prerrogativas inseridas pelos princí-
pios em seu Código de Ética, decidem os hard-cases ou até
uma causa mais trivial, de acordo com sua conveniência.
De forma irracional, a Reforma no Judiciário e a EC nº
45/2004 os princípios auferidos pelo rol da magistratura, repre-
sentam outras ferramentas que colaboram para o enfraqueci-
mento na consagração dos direitos humanos. Consoante o
princípio da persuasão racional do juiz, que se traduz no livre
convencimento do magistrado, mesmo ele devendo vincular-se
à lei e as provas do processo, ele não encontra óbice para de-
cidir conforme seu entendimento. Diante da carga numerosa
de processos que abarrotam os tribunais diariamente, a moro-
sidade do sistema jurídico, a preguiça mental e institucional
generalizada de juristas e juízes e todo corpo de funcionários
públicos envolvidos, aliado aos neoprincípios prolixos que
mais se assemelham a frases de livros de auto-ajuda, tudo co-
labora para a debilidade na interpretação e aplicação dos direi-
tos humanos. E que não se olvide, os interesses políticos estão
intimamente ligados ao cerne da questão.
Canotilho, na revisão das constituições expressou: de
quantas Constituições é composta a Constituição?7 E o que se
deve indagar é simples: de quantos princípios é formada a
Constituição de 88? E quantos ainda serão inventados indis-
criminadamente, a fim de satisfazer pretensões meramente
retóricas?

6
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Campus, 1992, p.5.
7
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 207.
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O sistema de justiça e os direitos humanos

Pois bem, no Direito hodierno e com o advento dos princí-


pios constitucionais, os novos textos constitucionais e o boom
paradigmático ocorrido no mundo das leis, grande parte da
sociedade jurídica, assentiu em considerar os princípios cons-
titucionais como substitutos dos princípios gerais do Direito e
até como lastro dos valores sociais. Com a proclamação dos
princípios constitucionais como meio de positivação de valo-
res, que deu azo a invenção de toda espécie de princípio, sen-
do o modelo de estado democrático de direito, o legitimador
princípiológico e do qual seria possível retirar tantos princípios
fossem necessários para solucionar demandas complicadas ou
somente dirimir ambigüidades na compreensão do texto de
uma norma. O que se pretende evocar é que tais neoprincípios,
constituem nítida ambição retórico-corretiva, se prestando
apenas ao papel de apoio para os que se veem carentes de ar-
gumentos para fundamentar respostas, tanto nos tribunais
como na doutrina.
Não se exporá todos os princípios aqui, apenas alguns
como os da efetividade e outros a seguir, que demonstra clara
redundância: no modelo de constitucionalismo contemporâneo,
a efetividade das normas constitucionais, a hermenêutica já
acolhe como proposição fundamental, pois não há norma cons-
titucional sem expectativa de efeito. Portanto, verifica-se a au-
sência de novidade em um “neoprincípio”. Outros exemplos de
neoprincípios:
 princípio da precaução: tem sido usado pelos Tribunais
para se exigir precaução na tomada de decisões que
sejam capazes de gerar danos graves ou irreversíveis
sem a constatação cientifica irrestrita dos seus resul-
tados. A crítica aqui reside em que tal princípio é ape-
nas e tão somente uma reafirmação de que se deve ter
prudência no instante de decidir uma questão jurídica.
 princípio da não surpresa: consoante a doutrina e a ju-
risprudência tal princípio afirmaria a segurança do ci-
dadão contra uma surpresa inesperada. Princípio far-
tamente utilizado em Tribunais brasileiros. Mas a dú-
vida que surge é: por qual motivo fundamentar uma

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decisão com fulcro em princípio como esse? Pois, antes


da infração de tal princípio, não teria ocorrido a trans-
gressão de uma determinada regra processual?
 princípio da confiança: traduz-se no poder-dever de vi-
giar o equilíbrio decorrente de uma relação de confian-
ça mútua no plano institucional. Mas a repreensão que
se faz neste, é que o caráter histórico do Direito já traz
essa compreensão ao intérprete, não necessitando pa-
ra isso a criação de tal princípio. Ocupa nada mais que
um espaço no estrado performático de argüição jurídi-
ca.
 princípio do processo tempestivo: este prenuncia a ga-
rantia de uma tutela jurisdicional dentro de um prazo
sem dilações indevidas, isto é, aceitáveis. Princípio em
conflito com o disposto art. 5°, inciso LXXVIII da Cons-
tituição Federal, o qual dispõe:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direi-
to à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
priedade, nos termos seguintes:
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído
pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

Este princípio institui a garantia de que os processos ju-


diciais devam ser julgados dentro de um prazo razoável. Trata-
se de mais uma amostra de uma princípiologia ad hoc e sem
limites que embaraça meros argumentos com princípios jurídi-
cos ou constitucionais. O que prevê tal princípio, não proporci-
ona per si, a extensão concreta do que seja tempestividade.
Inegavelmente, o jurista posto à prova para dar uma res-
posta nova e/ou convincente elabora princípios interpretativos
assemelhados a topoi com almejo dedutivista, isto é, nada
mais são em grande parte construções pragmatistas e de apli-
cação genérica.
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O sistema de justiça e os direitos humanos

A heterogeneidade de tais princípios e insuficiência de


parâmetros para oferecer-lhes sentido, esclarece a dimensão
da crise que a doutrina enfrenta. Enfim, a banalização dos
princípios é oriunda da crise paradigmática, que representada
pelos “neoprincípios” constitui uma velha falácia com aspecto
enganoso de modernidade doutrinária.

O PANPRINCIPIOLOGISMO SOB A ÉGIDE DOS MAGISTRADOS


O juiz, com o poder que lhe é conferido, no ato decisório, é
posto a prova quando tem de solucionar uma contenda judicial.
A dúvida de estar agindo de forma certa ou errada paira em
todo ato de julgamento, e é neste momento que ele pode se
valer da utilização dos neoprincípios (panprincipiologismo).
Por mais complicado que seja a opção de um “sim” ou um
“não”, sua apreciação, convencimento e motivação não deve
ser fulcrada em princípios tão banais como os expostos de mo-
do breve neste esboço.
Os moldes do processo no ordenamento jurídico brasileiro
possuem o caráter do perde-ganha, onde a decisão do magis-
trado se dá por sua inclinação para um dos lados da lide, me-
diante os argumentos fáticos, jurídicos e o seu convencimento
desprovido de amarras. E no último requisito para decidir é
que reside o perigo. Pois, se ele decide segundo sua noção de
razão, a fragilidade em que os direitos humanos repousa é as-
sustadora. Assim sendo, se os juízes fundamentam embasados
em critérios superficiais, pleonásticos e sem amparo legal, po-
de se considerar que o Direito beira o caos paradigmático. Em
indignação, Bobbio expõe junto ao dito popular:
De boas intenções, o inferno está cheio, na defesa da va-
lidação dos direitos humanos, é o foco da discussão nos
dias atuais. A exigibilidade dos direitos humanos através
do Poder Judiciário é hoje um imperativo na teoria e na
prática dos direitos humanos. Ele ainda questiona: um di-
reito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são
adiados sine die, além de confinados à vontade de sujei-
tos cuja obrigação de executar o “programa” é apenas

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60
Alessandra Liani Prates

uma obrigação moral ou, no máximo política, pode ainda


ser chamando corretamente de “direito”? [...] a figura do
direito tem como correlato a figura da obrigação.8

À guisa de cerrar o tema, encontra-se em Dworkin9, co-


mento perfeito sobre a influência política nas decisões dos
magistrados: segundo ele, toda decisão seja judicial ou não irá
calhar no cunho político. Ele parte da hipótese que o magistra-
do, igualmente a qualquer pessoa é constituída por uma série
de pré-conceitos, pré-compreensões e visões do mundo. Sendo
assim, não há decisão indiferente ou justa e ao enunciar uma
sentença e em decorrência eleger uma das partes, estará cum-
prindo uma decisão política.
Desta maneira, desejando ou não, deve ele se posicionar
e fundamentar sua posição, sendo que esta concerne à lógica
binária do certo ou errado é formada por uma bagagem de pré-
conceitos próprios de todas as pessoas. Segundo Dworkin,
existe uma zona cinzenta de imprecisão no sistema de normas
que possibilita ao juiz uma margem ao uso do poder discricio-
nário, vácuo que ocorre no instante em que a lei silencia sobre
determinado fato.
E ainda, como preleciona Canotilho aludido por Rafael
Oliveira:
O Direito do Estado de Direito do século XIX e da primei-
ra metade do século XX, é o direito das regras dos códi-
gos; o Direito do Estado constitucional e democrático de
Direito leva a sério os princípios. O tomar a sério implica
uma mudança profunda na metódica de concretização do
Direito e, por conseguinte na atividade jurisdicional dos
juízes.10

8
BOBBIO, Norberto. Op. cit., p.64.
9
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2001.p.105.
10
CANOTILHO, José Joaquim Gomes citado por OLIVEIRA, Rafael Tomaz.
O conceito de princípio entre a otimização e a resposta correta: apro-
ximações sobre o problema da fundamentação e da discricionariedade
das decisões judiciais a partir da fenomenologia hermenêutica. Disser-
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O sistema de justiça e os direitos humanos

No que concerne o panprincipilogismo sob a toga dos juí-


zes, observa-se que estes em sua grande maioria, se defendem
com o argumento de que, se é permitido o amplo uso de dou-
trina, lei, jurisprudência, suas experiências como ser humano
que é, e os ditos neoprincípios, nada de errado se encontra em
suas ações. Ficando os direitos humanos a cargo de suas apre-
ciações, ao sabor da política e do poder que a lei lhes atribuiu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das mutações na história mundial e no cenário ju-
rídico, não foram satisfatórias para acarretar combustões signi-
ficativas no sistema de normas brasileiro. Pouca variação se
notou, embora com alguns pensadores importantes que se
destacam, o Brasil tem muito a trilhar na seara do Direito.
Mesmo com a reviravolta das Eleições Diretas e a Constituição
de 1988, dentre outras alterações que o limite de conteúdo im-
pede de citar, nosso país engatinha em vários sentidos e no
Direito não é diverso. Os novos princípios ou “neoprincípios”
que culminaram no panprincipiologismo de Streck, demonstra
claramente isso, pois ao invés de se criar algo novo, relevante,
mascara-se velhos conceitos com títulos diversos. Não será
revisitando conceitos arcaicos que a evolução surgirá. É la-
mentável que o retrocesso esteja presente em outros setores,
como a educação, as relações humanas e a condição humana
no que tange ao respeito e bem viver. O panprincipiologismo
debilita a efetiva concretude dos direitos humanos, pois con-
funde, inibe a realização destes em prol da sociedade. E quan-
do os neoprincípios são utilizados por aqueles que deveriam
defender a aplicação destes direitos, afasta-se cada vez mais o
ideal que outrora foi tão cobiçado, que corresponde à liberda-
de, igualdade e fraternidade da era iluminista.

tação (mestrado). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de


Pós-Graduação em Direito, São Leopoldo, 2007. p. 50.

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REFERÊNCIAS
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1997.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins
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MORAIS, José Luiz Bolzan de. Direitos humanos, globalização eco-
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sais)” de todos, em todos os lugares, São Paulo: Max Limonada,
2002.
OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O conceito de princípio entre a otimiza-
ção e a resposta correta: aproximações sobre o problema da funda-
mentação e da discricionariedade das decisões judiciais a partir da
fenomenologia hermenêutica. Dissertação (mestrado). Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Direito,
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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO MEIO
PARA MANUTENÇÃO DO MEIO AMBIENTE E
SUA SUSTENTABILIDADE COM BASE NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Alessandra Staggemeir Londero


Pós-graduanda em Perícia, Auditoria e Gestão Ambiental – IMBEC;
Graduada em Direito UNIFRA (alessandraslondero@gmail.com)
Deise Scheffer
Pós-graduanda em Gestão Pública – UFSM; Graduada em Ciências Econô-
micas UFSM. Scheffer (deise@gmail.com)

Resumo
O direito ambiental vem se tornando um direito do mundo, com a propriedade de
ser por si só o berço de esperança das futuras gerações, tendo como aliado nesta
insistente guerra de preservação, a educação ambiental. A Constituição Federal de
1988 tutela um meio ambiente ecologicamente equilibrado e preservado, sugerindo
um desenvolvimento sustentável, crescimento econômico e utilização dos recursos
naturais de forma consciente. É de fundamental importância um investimento pesa-
do na formação de cidadãos fiscalizadores e conscientes, a fim de colaborar com a
harmonização entre preservação e sustentabilidade. O presente estudo foi embasa-
do em uma metodologia bibliográfica, onde através de livros, artigos e revistas bus-
cou aprofundar a pesquisa. Desta forma, conclui-se que, o direito de um meio ambi-
ente ecologicamente equilibrado surge como direito essencial de todo cidadão, logo,
um direito que necessita ter uma base forte de consciência ambiental que passa por
uma educação.
Palavras-chave: Meio ambiente; Direitos Humanos; Constituição Federal; Políticas
Públicas.

Abstract
Environmental law is becoming a law in the world, with the property of being itself
the cradle of hope for. The 1988 Federal Constitution tutelage one ecologically bal-
anced environment and preserved, suggesting sustainable development, economic
growth and natural resource use consciously. It is vital a heavy investment in the
training of enforcers and citizens aware in order to collaborate with the harmoniza-
tion between future generations, and as an ally in this war insistent preservation,
environmental education preservation and sustainability. This study was based on a
methodology literature, where through books, articles and journals sought further
research. Thus, we conclude that the right of an ecologically balanced environment
emerges as essential right of every citizen, so a right that needs to have a strong
base of environmental consciousness that passes for an education.
Keywords: Environment, Human Rights, Constitution, Public Policy.
64
Alessandra Staggemeir Londero & Deise Scheffer

INTRODUÇÃO
No mundo atual faz-se presente a preocupação com os di-
reitos humanos que todos têm direito. Ademais no âmbito na-
cional, a Constituição garante nos seus dispositivos os direitos
fundamentais, com suas garantias e deveres. Conforme o arti-
go 225 da Constituição Federal brasileira assegura a todos os
humanos o direito e proteção ao meio ambiente ecologicamen-
te equilibrado como bem coletivo, indicando ainda o dever de
defesa deste meio para as presentes e futuras gerações.
O direito ambiental devido a sua importância no mundo
aparece com um direito fundamental na vida das pessoas, au-
mentando seu nível de esclarecimento e propagação. Sendo
assim, surge um meio muito eficaz de divulgação das necessi-
dades do ecossistema para a nossa sustentabilidade, a educa-
ção ambiental, que se apresenta de várias formas e com dife-
rentes métodos, disposto em leis específicas e sob garantia de
política pública.
Salienta-se a importância da educação ambiental para o
desenvolvimento do Brasil e do mundo. Pois é considerado um
artifício pródigo e muito importante, já que alimenta a consci-
entização das pessoas. Ainda se relata as competências ambi-
entais, que dizem respeito aos poderes e limites dos entes fe-
derados.
Contudo faz-se necessário e análise subjetiva do que o
curso de direito implica no fato de exercer a sua educação am-
biental, pois além de ser um formador de pessoas, forma pen-
samentos e também maneiras de sobrevivência, principalmen-
te no que envolve a sociedade que vai se utilizar dos acadêmi-
cos formados e suas prestações para desenvolver suas teses
em casos e processos. Fazendo do advogado uma peça para a
proteção dos direitos do homem, entre eles o direito ao meio
ambiente e à sua sustentabilidade.
Para este trabalho o método aplicado é o indutivo, partin-
do do pensamento particular para o âmbito geral, colocando o
conhecimento de educação ambiental sobre o patamar da
Constituição Federal e os demais feitos legais, tanto os nacio-

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
65
A educação ambiental e sua sustentabilidade

nais, quanto os mundiais. Além disso, o método histórico traz


um relato da evolução dos direitos humanos, e o comparativo
colocando a eficiência da educação ambiental sob os dispositi-
vos legais.

METODOLOGIA
O método utilizado neste trabalho foi a fundamentação
teórica que tem uma grande importância para um trabalho
acadêmico.
A fundamentação teórica possui três funções principais.
Em primeiro, ajuda a sustentar o problema de pesquisa,
ou seja, demonstra que o problema faz sentido e que as
variáveis que se pretende de alguma forma arrolar são
passíveis de relacionamento. Em segundo lugar, consti-
tui-se na opção teórica do autor e, portanto, não pode ser
uma mera revisão de literatura [...]. Em outras palavras, a
fundamentação teórica representa o argumento do autor
sobre o tema que resolveu pesquisar. Sua terceira função
é dar sustentação à análise de dados, ou seja, permitir
sua interpretação.1

Dessa forma, desenvolveu-se um estudo bibliográfico


através de livros, revistas e artigos, a fim de coletar informa-
ções a cerca do tema. Uma pesquisa bibliográfica remete às
contribuições de diferentes autores sobre um determinado as-
sunto, atentando para fontes secundárias, ou seja, represen-
tando quaisquer dados que já foram coletados para outros fins.
Enquanto que a pesquisa documental recorre a materiais que
ainda não receberam tratamento analítico e publicação, isto é,
são as fontes primárias2.

1
VIEIRA, M. M. F.; ZOUAIN, D. M. Pesquisa qualitativa em administração
- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p.19.
2
JUNG, C. F. Metodologia para pesquisa e desenvolvimento: aplicada a
novas tecnologias, produtos e processos. Rio de Janeiro: Axcel Books,
2004.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
66
Alessandra Staggemeir Londero & Deise Scheffer

Baseado nestes métodos buscou-se aprofundar como a


educação ambiental é importante para e necessária para o
meio ambiente e para a sustentabilidade, baseado na Consti-
tuição Federal de 1988.

REFERENCIAL TEÓRICO
Conforme o objetivo escolhido, o estudo teórico busca
demonstrar o quanto a educação ambiental é eficaz para o
meio ambiente e para a sustentabilidade baseado na Carta
Magna de 1988.

O DIREITO AMBIENTAL COMO DIREITO HUMANO


O direito humano e/ou fundamental trata-se do direito
dos homens, que rege sobre as garantias que lhes são devidas,
como a dignidade, a vida, inclusive o direito ao meio ambiente.
O direito do homem num contexto histórico deriva do Direito
de Deus, que permeia de um modo geral que tudo que é retira-
do da natureza deve ter um meio de recompensa para a garan-
tia da sustentabilidade. Para tanto nesse contexto entra um
jogo de regras, que tem origem em costumes da sociedade, e
também são oriundas de pactos e tratados internacionais, mas
em âmbito nacional principalmente da Constituição Federal de
1988.
Não há que se falar somente em regra geral e punição aos
maus seguidores, precisaram ser específicos nos pontos de
abrangência e a sua competência. Já que esse direito traz con-
sigo garantias, que devem ser cobradas e prestadas, que estão
expressas nas normas, e dizem respeito principalmente ao di-
reito à vida e sua manutenção saudável. E, está previsto na
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 4º, inciso II3.

3
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações in-
ternacionais pelos seguintes princípios: [...]
II – prevalência dos direitos humanos; [...]
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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67
A educação ambiental e sua sustentabilidade

Portanto, como conceito subjetivo entende-se por Direitos


Humanos, os direitos ligados à pessoa humana, com intuito de
proporcionar garantias físicas e psicológicas, para assim man-
ter a qualidade de vida e os meios para proporcionar tal quali-
dade. Destarte se faz a importância do equilíbrio ecológico pa-
ra a manutenção da sustentabilidade. Então há que se falar do
meio ambiente, sob o aspecto de que para manter a qualidade
de vida ele se torna o fator principal, pois está ligada à saúde,
e à sustentabilidade das pessoas. Fazendo assim o direito am-
biental como um direito humano. Assim, baseados em uma
educação ambiental consistente, os membros desta sociedade
devem entender que o Direito do amanhã deve ser ético e le-
galmente protegido sendo um direito fundamental para as pró-
ximas gerações. Destarte os Direitos Humanos começam a se
aliar com a ecologia4.

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


A constituição da República refere em seus dispositivos
que o cidadão na constância dos seus deveres, é parte legítima
para propor ação em defesa do meio ambiente, assim tem-se o
nexo dos deveres sociais com a Carta Magna Brasileira. O de-
ver social começa no pensamento individual, para depois for-
mar ideais com grupos de pessoas que cultivam o mesmo pen-
samento, e no contexto do trabalho está a preservação ecológi-
ca do meio e a garantia da sustentabilidade.
Para tanto o fator mais relevante para a realização dos
deveres sociais está na educação ambiental, das crianças e
dos adultos. Implantar o pensamento de responsabilidade so-
bre o meio ambiente é a forma mais eficaz, pois não se trata só
do presente, mas também do futuro, ensinar a respeitar os re-
cursos naturais, usufruir da água com mais responsabilidade,
controlar os gastos com energia, não incentivar o desmata-
mento, não poluir o solo perto dos aqüíferos, isto não está es-
crito em nenhum artigo da Constituição, mas não precisar ser

4
WARAT, L. A. Por quem cantam as sereias. Porto Alegre: Síntese, 2000,
p.8.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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Alessandra Staggemeir Londero & Deise Scheffer

expresso, quando a mídia retrata cada vez mais a situação na-


cional e mundial do meio ambiente. E parte do dever do indiví-
duo com ele mesmo para viver num mundo melhor e ter uma
vida mais saudável.
A importância da educação ambiental possui muitos ar-
gumentos além da preservação da natureza, e muitos ligados
com o direito e com a legislação em si. Como por exemplo, a
fiscalização pessoal dos recursos naturais, a preocupação com
a sustentabilidade das gerações futuras e as sanções aplica-
das às empresas poluidoras.
Mas a educação nesse caso é diferenciada do preceito
que temos de educação sinônimo de ensino. O ensino é com-
preendido como aquilo que aprendemos no âmbito de escola-
ridade, de profissionalização. E como educação faz entender o
que se aprende com a sociedade, sendo essa sociedade o meio
familiar, escolar, do trabalho, etc. É o aprendizado que mobili-
za o bem estar entre as pessoas, são os modos, os costumes, o
que realmente forma a essência do ser humano. Portanto é al-
go que não é esquecido, e se transpõem nas atitudes e nas
habilidades das pessoas, dela com a sociedade e com o meio
que vive, inclusive o meio ambiente.
A Constituição Federal traz medidas protetivas para pu-
nir empresas e consumidores, mas não populariza um interes-
se em soluções que previnam o desgaste ambiental. Posto que
a educação ambiental se propagada, o papel de regradora-
fiscal teria origem cultural da sociedade, enfatizando o que é
prejudicial para a sustentabilidade e para a menutenção da
vida. A prática tem demonstrado que na guerra pelo meio am-
biente ecologicamente equilibrado – direito disposto na Cons-
tituição Federal – as armas mais efetivas não serão encontra-
das no Direito e sim na Educação (TESSMANN E SANGOI,
2007, p.156).
Para tanto, cabe aos educadores demonstrar a razão de
se propagar à sustentabilidade. E a manutenção dos recursos
naturais pode ser uma tarefa que transmite característica pro-
tetiva, mas, além disso, de caráter prazeroso, pois tudo aquilo
que se aprende e que na hora da prática nos proporciona lazer
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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A educação ambiental e sua sustentabilidade

tem a maior tendência de ser cultivado e melhor ainda de ser


disseminado. E isso é o que mais importa quando estamos
numa fase de tanta urgência em se retratar com o meio ambien-
te. A educação ambiental está estritamente conectada ao saber
ambiental, que por sua vez baseia em um referencial empírico
que é a realidade social, a qual é construída com base em juízos
de valores e na interdisciplinaridade do conhecimento5.
Em conformidade com o aprendizado para a progressão
do meio ambiente, existem no país projetos de cooperativas,
ou grupos comunitários que realizam trabalho de reciclagem,
tirando deste seu sustento, assim como são movidos projetos
de preservação das zonas marginais aos rios, também se tem
uma política dos poderes públicos de realizarem tratamentos
de água e esgoto, difundindo a higiene e evitando o desperdí-
cio de água e a despoluição do esgoto que volta à rios e mares.
E assim por diante, mostrando que é possível o desenvolvi-
mento inteligente, que consegue dar às pessoas uma qualida-
de de vida e à devida importância ao meio ambiente.
O grande obstáculo de se implantar meios de cuidado com
a natureza é a política econômica dos países. Esta política nutre
uma falsa impressão de que tudo pode ser remediado, passando
uma visão de que o caos pertence ao futuro, quando na verdade
já é um colapso atual e mundial. Já se conhecem leis, pactos, e
tratados internacionais que versam sobre a preservação do meio
e a divulgação da educação ambiental. Em âmbito nacional, te-
mos o início de uma nova forma de pensar e agir, que foi a
Agenda 21, realizada durante a ECO92 no Rio de Janeiro, que
consiste em diretrizes com base nos textos da ONU, mas ampa-
radas no direito, trazendo capítulos que versam sobre desenvol-
vimento econômico, desenvolvimento sustentável e demais dis-
positivos sobre a qualidade do ecossistema.
Através destes argumentos se torna possível a aplicação
da educação ambiental, pois, além da acessibilidade popular
5
HAMMARSTRON ; CENCI, D. R. . DIREITOS HUMANOS E MEIO
AMBIENTE: a educação ambiental como forma de fortalecer a interrela-
ção. Revista Eletrônica em Gestão, Educação e Tecnologia Ambiental, v.
5, p. 825-834, 2012.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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que se tem, mais o poder público construindo regramentos e


propondo políticas educativas à crianças e adultos deve se
chegar à um resultado positivo, portanto vale ressaltar a im-
portância da educação ambiental, para a sustentabilidade, pa-
ra a sobrevivência , e os demais desenvolvimentos, como eco-
nômico, social e cultural.
A educação ambiental se torna realmente eficaz com a
sua propagação, pois quanto mais gente conseguir alcançar,
melhor será o seu resultado, tendo a garantia de que se um
grupo de pessoas tomarem sentido o bem da educação ambi-
ental e possibilidade de se espalhar é muito melhor. Claro que
os recursos de mídia fazem uso de energia elétrica, de papel
no caso de impresso e precisam de muitas propagandas para
poder se manter, mas o que conta é tirar a diferença do que é
utilizado para tal propagação e o quanto as pessoas aprende-
ram para usufruir no dia a dia, como a separação do lixo, o con-
trole da água, o uso da coletivização do transporte e demais
institutos dotáveis de grande eficiência na manutenção da na-
tureza. Sendo que um pequeno gesto praticado por muitos
causa grande efeito além de aprendizado pode significar a
chance que o mundo está pedindo de poder se reconstruir com
a ajuda do homem.
Pois além da teoria, a prática acontece já nos dias de hoje
e além da punição pelo dano causado, mas na possibilidade de
não deixá-lo acontecer, o que serve de motivo para a amplia-
ção da aplicabilidade da educação focada na preservação do
ecossistema mundial, pois se mostra como previsto, de forma
efetiva e de simples aplicação. E sua eficácia não vem somente
dos projetos das políticas públicas, mas dos cidadãos, que
conscientizados passam a proteger, fiscalizar e manter o meio
ambiente para uma vida saudável e um ecossistema equilibrado.

FISCALIZAÇÃO COMO FORMA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL


A fiscalização não se trata apenas do serviço prestado pe-
los fiscais admitidos somente para esse serviço, se trata do
objetivo de cuidar, proteger, manter, que é realizado por todos
na sociedade e pelas entidades públicas administrativas.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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71
A educação ambiental e sua sustentabilidade

Fiscalizar tem a finalidade de proteger, sob a forma de


outros atos. Qualquer pessoa pode participar disso, não preci-
sa ser alguém delegado para tanto, isto claro se levado em
conta o ato de fiscalizar como um ato de proteção, não somente
o auto realizado pelo servidor responsável. Como exemplo de
uma fiscalização não formal, é a atitude de uma pessoa defen-
der a fauna, quando denuncia uma caça ilegal, o objetivo de
proteção, o interesse social sobressalta o interesse individual
da prática esportiva, isso é claro salvaguardando as hipóteses
onde a lei permite tal prática. O ato fiscal não é somente a di-
lação da pessoa feita ao ato de outrem, mas a finalidade de
proteção que se encontra no momento.
Mas além do ato cívico, vai para o lado moral e ético, pois
é de todos o meio ambiente que garante a sustentabilidade e a
sobrevivência, portanto cabe à todos a sua manutenção. Por
isto faz-se tão importante a realização dos projetos de educa-
ção ambiental, para colocar em alerta para a população o quão
importante é a preservação da natureza, e a fiscalização moral,
vem destas mentes orientadas para tanto.
A fiscalização feita pelo Poder Público tem sua compe-
tência nos entes administrativos, a União, os Estados, o Distri-
to Federal e os Municípios. Cada um com sua devida finalidade
e também em setores compartilhados, onde os dois entes
exercem juntos o poder de policiamento e de segurança. Essa
divisão de competência está disposta nos artigos 25 6 e 307, e

6
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e lei
que adotarem, observados os princípios desta Constituição. § 1º São re-
servados aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por
esta Constituição. § 2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou medi-
ante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei,
vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.
§ 3º Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por
agrupamentos de Municípios limítrofes, para integrar a organização, o
planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.
7
Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interes-
se local; II – suplementar a legislação federal e a estadual no que cou-
ber; VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do
Estado, serviços de atendimento à saúde da população; [...]

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seus parágrafos, da Constituição Federal. O disposto nos arti-


gos referidos sobre as instituições federadas para com o ecos-
sistema faz parte da educação ambiental politicamente correta
e com base na legislação nacional.
Sendo assim, as competências são classificadas em duas
formas distintas, a natureza e a extensão, e dentro desta clas-
sificação existe uma subclassificação. Em se tratando da refe-
rência da natureza, as outras classes são, a executiva, a admi-
nistrativa e a legislativa.
A primeira refere-se ao poder de formar diretrizes, e políti-
cas ligadas ao ecossistema, a segunda classe remete ao poder
de polícia com o objetivo de preservação ambiental, e a última
classe menciona o poder de legislar sobre questões ambientais.
Agora quanto à classe da extensão, a subdivisão tem a classe
das exclusivas, que exclui os demais entes federativos, a classe
das privativas, que apesar de ser federativa admite delegação e
suplementação dos outros entes, também tem a classe dos co-
muns, onde o poder é distribuído de forma igualitária a todos,
também se faz presente a classe dos concorrentes, onde mais
de um ente federativo pode ter disposição diversa sobre deter-
minado assunto, e por último a classe dos suplementares, que
possibilita a edição das diretrizes existentes, ou suplementar a
ausência ou omissão de uma delas. 8
É importante constar que uma diferenciação não anula a
outra. Isto significa, dizer que a compreensão se uma não vai
fazer a outra competência não surtir o efeito esperado, ainda
mais quando as duas realizarão algo que vai melhorar o quadro
da situação. E com esta organização expressa fica obstinado
além dos controles, os deveres e obrigações, a fiscalização que
é implementada para o controle de preservação do ecossiste-
ma. Fiscais estes que além dos profissionais, tem como parti-
cipantes pessoas que queiram contribuir para a qualidade de
vida, própria e alheia.

8
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orga-
nizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Sarai-
va, 2007, p 215.
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73
A educação ambiental e sua sustentabilidade

SUSTENTABILIDADE
O termo sustentabilidade ou desenvolvimento sustentá-
vel, podemos mencionar o conceito trazido por Barral e Ferrei-
ra: “Desde já, pode-se definir desenvolvimento sustentável
como o desenvolvimento que responde às necessidades do
presente sem comprometer as possibilidades das gerações
futuras de satisfazer suas próprias necessidades.”9
No Direito do Ambiente, como também na gestão ambi-
ental, a sustentabilidade deve ser abordada sob vários pris-
mas:o econômico, o social, o cultural, o político, o tecnológico,
o jurídico e outros. Na realidade, o que se busca, consciente-
mente ou não, é um novo paradigma ou modelo de sustentabi-
lidade, que supõe estratégias bem diferentes daquelas que
têm sido adotadas no processo de desenvolvimento, sob a égi-
de de ideologias reinantes desde o início da Revolução Indus-
trial, estratégias estas que são responsáveis pela insustentabi-
lidade do mundo de hoje, tanto no que se refere ao planeta
Terra quanto no que interessa à família humana em particular.
Em última análise, vivemos e protagonizamos um modelo de
desenvolvimento autofágico que, ao devorar os recursos finitos
do ecossistema planetário, acaba por devorar-se a si mesmo10.
A sustentabilidade possui relação com diversas ciências.
Sem dúvida, uma das mais importantes é o Direito Ambiental.
Por meio de uma visão sistêmica e globalizante, o meio ambi-
ente deve ser interpretado como um bem jurídico unitário,
abarcando os elementos naturais, o ambiente artificial (meio
ambiente construído) e o patrimônio histórico-cultural, pressu-
pondo-se uma interdependência entre todos os elementos que
integram o conceito, inclusive o homem11.

9
BARRAL, Welber; FERREIRA, Gustavo A. Direito ambiental e desenvol-
vimento. In. BARRAL, Weber; PIMENTEL, Luiz Otávio (Org.). Direito
ambiental e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, p. 13.
10
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário.
5. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.70.
11
MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro;
CAPPELLI, Sílvia. Direito Ambiental. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídi-
co, 2007.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
74
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CONCLUSÃO
Posto que então para a sobrevivência é necessário colocar
em prática deveres sociais. Mas não somente em escala de
grandes acontecimentos em massa, mas na individualização
da conscientização, para logo se alastrar, vigorar como deve.
Com este fator entra a questão mais importante para tal efeito,
a educação ambiental.
E se tratando de educação faz-se posto do que seja tal
instituto, tão presente na vida de qualquer pessoa. Então além
da sua pessoalidade, entende-se por tal, aquilo que oferece o
aprendizado, conhecimento, sendo utilizado e adquirido nas
suas diversas formas, trazendo além do ensino, o modo de lidar
com os acontecimentos nos dia a dia de qualquer um. Com os
seus objetivos, de alcançar um desenvolvimento da personali-
dade das pessoas, de desenvolvimento econômico, cultural e
de tamanha importância o desenvolvimento do meio ambiente.
Com isto chega-se a importância de se educar com a fina-
lidade de preservação ambiental, da importância desta atitude
na sobrevivência da espécie humana, e das demais espécies-
vítimas habitantes do mundo. Como se torna simples a divul-
gação do instituto que se torna bem para a humanidade, como
seus meio de propagação podem tornar fácil a conscientização
dos cidadãos, indiferente de idade, credo, cor e religião, aces-
sível à qualquer um que queria contribuir para a propagação
do bem estar e da sustentabilidade do ecossistema, sendo es-
tes, gestos pessoais, sem incluir ainda as políticas governa-
mentais específicas para tanto. Mesmo que tão importantes e
constantes na Constituição Federal de 1988.
Portanto conclui-se que no quadro dos direitos humanos e
fundamentais, o direito ambiental evolui à medida que é mais
visível a necessidade e a facilidade para a ação deste. Além
dos poderes públicos, acreditamos que a grande engrenagem
da sociedade é a pessoa que se empenha em preservar os re-
cursos naturais e fazer pelo coletivo o possível para que cada
vez mais a educação se torne humana e ambiental num mesmo
contexto.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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75
A educação ambiental e sua sustentabilidade

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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
76
Alessandra Staggemeir Londero & Deise Scheffer

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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
GESTÃO PÚBLICA E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL : CONSIDERAÇÕES SOBRE
A RACIONALIDADE ECONÔMICA COMO
FATOR DE INSUSTENTABILIDADE

Alexandre Nicoletti Hedlund


Mestre em Desenvolvimento – UNIJUÍ, Advogado, Coordenador do curso
de Direito da UNIGUAÇU – União da Vitória – Paraná
(hedlund81@gmail.com)

Resumo
O presente trabalho versa sobre a gestão pública e as perspectivas de sua atuação,
assim como o panorama do desenvolvimento no século XX e XXI, principalmente a
partir da abordagem do caráter econômico do desenvolvimento na elaboração e
instauração de uma hegemonia econômica global, denominada de racionalidade
econômica. Essa configuração aumenta os riscos ambientais e sociais operando basi-
camente em nome do crescimento econômico, desconhecendo muitas vezes os
efeitos locais e limitando a capacidade de solução dos problemas por parte da ges-
tão pública. A partir disso, aponta-se para a racionalidade mercadológica econômica
como o fator preponderante na dificuldade de alcançar os patamares de sustentabi-
lidade que se espera do desenvolvimento no século XXI.
Palavras-chave: Desenvolvimento – Gestão pública – Racionalidade econômica –
Sustentabilidade;

Abstract
This paper focuses on the governance and the prospects for its operations, as well as
the development landscape in XX and XXI century and mainly from the approach of
an economic development in the design and establishment of a global economic
hegemony, called economic rationality. This configuration increases the environ-
mental and social risks operating primarily in the name of economic growth, often
ignoring the local effects and limiting the ability to solve problems on the part of
public management. From this, pointing to the market economic rationality as the
most important factor in the difficulty of achieving the levels expected sustainability
of development in the XXI century.
78
Alexandre Nicoletti Hedlund

INTRODUÇÃO
As mudanças ocorridas ao longo do último século confi-
guram um cenário preocupante e complexo que resume em si
as contradições da sociedade contemporânea, desde a organi-
cidade de suas instituições até as relações interindividuais
que determinam novos espaços públicos e privados de convi-
vência. Essas contradições podem ser compreendidas como a
síntese decorrente das transformações produzidas ao longo
dos últimos três séculos que o precederam, provocando uma
complexa gama de fragmentações e rupturas internas que de-
notam a crise do paradigma civilizatório moderno.
A crise que se instala na sociedade contemporânea tem
como principal característica a complexidade com que se vin-
cula a diversos campos de atuação do ser humano, na dimen-
são política, econômica e social, além da dimensão ambiental
que, ao contrário das demais, não consegue ser limitada a um
determinado espaço geográfico. Apesar da relevância que a
crise ambiental apresenta, as proposições dos projetos de de-
senvolvimento baseiam-se nas concepções da economia capi-
talista que passa a determinar todos os âmbitos da existência
humana. A partir disso, este pequeno trabalho pretende anali-
sar a consolidação do desenvolvimento como projeto sustentá-
vel e ao mesmo tempo apresentar alguns aspectos que indi-
cam a insustentabilidade destes projetos diante da hegemonia
da racionalidade econômica global.
O século XX sinalizou avanços tecnológicos incomensurá-
veis, mas, foi marcado também pelos níveis de desigualdade1,
uma vez que muita riqueza foi gerada, mas persistem elevados
níveis de pobreza e desigualdade social, evidenciando-se o
desiquilíbrio entre transformação produtiva e equidade social,
competitividade e coesão social, eficiência e solidariedade,
crescimento e distribuição de resultados.

1
SCHOMMER, P. C. Investimento social das empresas: cooperação orga-
nizacional num espaço compartilhado. In: FISCHER, T. (Org.) Gestão do
Desenvolvimento e Poderes Locais: marcos teóricos e avaliação. Salva-
dor, BA: Casa da Qualidade, 2002.p. 91.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
79
Gestão pública e desenvolvimento sustentável

APONTAMENTOS SOBRE A GESTÃO PÚBLICA E A GESTÃO SOCIAL2


A Reforma do Aparelho do Estado, iniciada no Brasil na
década de 903, teve como objetivos principais: a) diminuir o
nível de intervenção do Estado na atividade econômica, como
produtor de bens para o consumo, e aumentar o seu papel de
formulador e implementador de políticas públicas e de regula-
dor das relações entre os agentes econômicos; e b) aumentar
os níveis de eficiência e de eficácia da administração pública.
No entendimento de Tenório e Saraiva4, deve-se reconhe-
cer que, apesar das reformas e modernizações, das “reformas
do Estado”, dos inúmeros seminários e treinamentos sobre a
temática, as prestações do Estado não ocorrem na quantidade
e qualidade que permitiriam atender as inúmeras carências
suportadas por grande parte da população do país.
No que diz respeito à concepção de gestão, pode-se com-
preender, conforme Fischer5, como um ato relacional que se
estabelece entre pessoas, em espaços e tempos relativamente
delimitados, objetivando realizações e expressando interesses
de indivíduos, grupos e coletividades. Ainda, Fischer destaca
que a gestão adjetivada como social, orienta-se para a mudan-
ça e pela mudança, seja de microunidades organizacionais,
seja de organizações com alto grau de hibridização, como são
as interorganizações atuantes em espaços territoriais micro ou
macro escalares.

2
Nesse sentido, Tenório e Saraiva (2006) defendem que o importante não
é diferenciar gestão pública de gestão social, mas resgatar a função bá-
sica da administração pública, que é atender os interesses da sociedade
como um todo. Gestão social seria uma adjetivação da gestão pública,
não um substituto.
3
BRASIL. Ministério da Administração e Reforma do Estado. Plano Diretor
da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Ministério da Administra-
ção e Reforma do Estado, 1995 a.
4
TENÓRIO, F. G.; SARAIVA, E. J. Escorços sobre gestão pública e gestão
social. In. MARTINS, Paulo Emílio Matos; PIERANTI, Octávio Penna
(Orgs.) Estado e Gestão Pública: visões do Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006.
5
FISCHER, T. (Org.) Gestão do desenvolvimento e poderes locais: marcos
teóricos e avaliação. Salvador, BA: Casa da Qualidade, 2002.p. 29.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
80
Alexandre Nicoletti Hedlund

O campo da gestão social ou de gestão do desenvolvi-


mento social é reflexivo das práticas e do conhecimento cons-
truído por múltiplas disciplinas, delineando-se uma proposta
paradigmática, que está sendo formulada como agenda de
pesquisa e ação por muitos grupos e centros de pesquisa no
Brasil e no exterior, bem como por instituições de diferentes
naturezas6 que atuam no desenvolvimento local.
Porém, como bem sinaliza Tenório7, a ineficiência do apa-
relho burocrático brasileiro não será resolvida só por meio de
modernizações, reformas ou de adjetivações, como a de gestão
social idealizada a partir dos anos 1990, mas sim pela redefini-
ção da importância da administração pública como vetor ne-
cessário ao desenvolvimento nacional e à equitativa redistri-
buição – social e regional – da renda.
Na visão de Bresser Pereira8, reformar a administração
pública não significa apenas transformar subsistemas organi-
zacionais técnicos, o que requer, fundamentalmente, um plane-
jamento adequado de modernização tecnológica e disponibili-
dade financeira. A transformação organizacional só se efetiva
quando se consegue mudar seus padrões de comportamento,
ou seja, seu subsistema social, o que torna a mudança um pro-
cesso muito mais cultural do que tecnológico ou mecânico.
Nessa mesma linha de raciocínio, Motta9 entende que, mesmo
que as dimensões técnicas e organizacionais – produtos, servi-
ços, protótipos, análises, estruturas, sistemas e métodos este-

6
Destacam-se as organizações filantrópicas, as ONG’s (Organizações
Não-Governamentais) e as fundações de cunho social, principalmente
como resultantes do crescimento da consciência de cidadania e, muitas
vezes, por consequência de crises dos governos.
7
TENÓRIO, F. G.; SARAIVA, E. J. Escorços sobre gestão pública e gestão
social. In. MARTINS, Paulo Emílio Matos; PIERANTI, Octávio Penna
(Orgs.) Estado e Gestão Pública: visões do Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006.p. 122.
8
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Gestão do setor público: estratégia e
estrutura para um novo Estado. In: Bresser Pereira, Luiz Carlos & Spink,
Peter K. (orgs.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. 2.
ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 21-38.
9
MOTTA, Paulo Roberto. Gestão Contemporânea: a ciência e a arte de ser
dirigente. Rio de Janeiro: Record, 1995.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
81
Gestão pública e desenvolvimento sustentável

jam preparadas para a mudança, esta resultará em fracasso se


os valores da mesma não estiverem contidos na perspectiva
gerencial e a cultura organizacional não for propensa à mu-
dança.
A gestão pública deve ser praticada como originalmente
foi tencionada: voltada para a res publica10. Para tanto, é indis-
pensável que o Estado, através do governo em seus diferentes
níveis decisórios (federal, estadual ou municipal), atue como
sujeito do desenvolvimento socioeconômico, por um lado, e, de
outro, que o servidor público seja valorizado por meio de con-
dições de trabalho e salariais que lhe deem condições de exer-
cer uma gestão pública coerente com o seu desígnio original, a
prática de um conceito substantivo do Estado.
Assim, a gestão social11 não deve ser apenas a prática de
uma gestão pública voltada para a solução de problemas soci-
ais, como muitos idealizam, mas uma prática gerencial que
incorpore a participação da sociedade no processo de plane-
jamento e implementação de políticas públicas. Não basta agir
para o social, mas agir com o social, podendo-se afirmar que a
gestão social é o meio para qual a gestão pública é o fim.

PANORAMA DO DESENVOLVIMENTO
A organização da sociedade político-jurídica moderna é
marcada por um movimento de ruptura com as tradições, com
a história e com a estagnação medieval em favor de novas tra-
dições e de sua própria história em constante reconstrução,
ocorrendo em todos os campos da atividade humana.
Nesse sentido, o crescimento econômico assume lugar de
destaque na sociedade moderna, principalmente em decorrên-
cia do papel que a classe burguesa – em ascensão – passa a
ocupar, fortalecendo uma nova economia, não mais baseada na
10
TENÓRIO, F. G.; SARAIVA, E. J. Escorços sobre gestão pública e gestão
social. In. MARTINS, Paulo Emílio Matos; PIERANTI, Octávio Penna
(Orgs.) Estado e Gestão Pública: visões do Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006.p. 126.
11
Idem, Ibidem.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
82
Alexandre Nicoletti Hedlund

agricultura de troca e subsistência, mas nas relações de mer-


cado. As bases da economia de mercado passam a ser deter-
minadas por uma nova atitude12 em relação à atividade econô-
mica, na qual os indivíduos gozam de liberdade para buscar o
lucro.
Capella13 aponta para a crença do progresso iluminista e
do crescimento econômico como expressões da nova realidade
que utiliza como combustível a soma do conhecimento e a ca-
pacidade de inovação. O quadro geral dessa nova sociabilida-
de será o avanço dos meios de produção, o crescimento eco-
nômico impulsionado fortemente pela industrialização e uma
considerável mudança na vida de grande parte da população.
Por conseguinte, o “desenvolvimento” passará a ser sinônimo
de crescimento econômico.
Porém, é necessário compreender que o período pós-
revolução industrial é marcado, do mesmo modo, pela pobreza
e pela escassez, fatores que determinam a impossibilidade de
se aumentar a produção a ponto de contemplar a todos. Esse
impasse, segundo Heilbroner14, só é resolúvel pelo acúmulo de
capital através da exploração da mão-de-obra, das inovações
tecnológicas constantes e principalmente pelo investimento
dado a esse capital na obtenção de mais capital, razão pela
qual o capitalismo se afirma como peça fundamental.
A partir do exame destas características que afirmam os
avanços econômicos de um Estado é possível determinar seu
desenvolvimento, e, além disso, identificar um conjunto de pa-
íses que não conseguem alcançar os patamares de evolução
tecnológica, industrial, econômica e política, sendo relegados a
condição de “subdesenvolvimento” em razão de seu posicio-
namento marginal no sistema capitalista. Constata-se, a partir

12
Como bem lembra Heilbroner “os homens devem cumprir suas tarefas
não por serem obrigados a elas, mas porque nelas ganharão dinheiro.”
(1972. p.61).
13
CAPELLA, Juan Ramón. Fruta Prohibida: una aproximación histórico-
teorética al estudio del derecho y del estado. Madrid: Trotta, 1997.
14
(HEILBRONER, Robert L. A Formação da Sociedade Econômica. 2. ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
83
Gestão pública e desenvolvimento sustentável

disso, que o capitalismo promove-se como o único15 elemento


capaz de melhorar a vida dos indivíduos, seja pelo esforço in-
dividual ou através da atuação do Estado. Essa identificação é
tão marcante no discurso capitalista que o desenvolvimento
social, político e cultural são referenciados apenas enquanto
reflexos do desenvolvimento econômico.
Assim, o processo de modernização confunde-se com o
processo de crescimento econômico que alude a nova roupa-
gem do “desenvolvimento”, ou seja, o desenvolvimento distin-
gue e determina a condição daqueles países que ainda não
alcançaram os patamares de modernidade e industrialização16.
Os processos17 que se seguem após 1945 confirmam-se
pela reafirmação do progresso e do Desenvolvimento econômi-
co a qualquer custo. Desta vez, trata-se de um novo fortaleci-
mento do capitalismo que passa a utilizar os recursos estatais
para financiar as novas estruturas de poder. Tal processo con-
solida na década de 1970 a inserção de políticas neoliberais de
não intervenção estatal, que sustentará um novo processo de
homogeneização mundial – denominado globalização da eco-
nomia e de afirmação da superioridade da racionalidade eco-
nômica.
No mesmo contexto, a ciência começa a questionar a fini-
tude dos recursos naturais como pedra angular da discussão

15
RIVERO, Oswaldo de. O mito do desenvolvimento: os países inviáveis no
século XXI. Trad. de Ricardo Aníbal Rosenbusch. Petrópolis, RJ: Vozes,
2002.
16
Nesse sentido, as representações teóricas sobre o desenvolvimento ten-
dem a compreender o fenômeno como sendo um conjunto de estágios
evolutivos sobre os quais os países transitariam de uma condição pré-
moderna (subdesenvolvida) para a Era Industrial (desenvolvida).
17
Sachs, em referência às transformações da sociedade contemporânea do
século XX, refere que “graças ao poderio tecnológico multiplicado ao
longo do século, a economia mundial conheceu crescimento sem prece-
dentes, alcançando elevados níveis de produção de bens materiais. Po-
rém, a parte maldita do produto não para de crescer, engolida pelo au-
mento dos custos das transações e dos custos embutidos para o funcio-
namento do capitalismo e esterilizada nos circuitos de especulação fi-
nanceira, gerando uma riqueza virtual, sem esquecer as despesas béli-
cas.” (1998, p.2-3, grifo do autor).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
84
Alexandre Nicoletti Hedlund

sobre os limites do desenvolvimento e as finalidades do cres-


cimento econômico desregulado. Os desastres ambientais ob-
servados ao longo do século XX e a fragilidade da questão
atômica proporcionam a inversão de perspectivas necessária
para que se abandone a lógica meramente interna dos Esta-
dos, para uma conscientização regional e global sobre os pro-
blemas.
Conforme o entendimento de Morin & Wulf18, o que ocorre
na metade do século XX é que, pela primeira vez, os mais di-
versos segmentos da humanidade encontram-se vivendo um
destino comum19, caracterizado por uma ameaça de destruição
da biosfera, pela proliferação atômica, pelas catástrofes eco-
nômicas ou demográficas.
É nesse cenário que surgirá a Conferência de Estocolmo
em 1972, firmando as bases para o entendimento a respeito
das relações entre o meio ambiente e o desenvolvimento. Do
conflito existente entre os partidários do crescimento selva-
gem e dos vitimados pela absolutização dos critérios ecológi-
cos que defendiam o crescimento zero surge uma nova con-
cepção de desenvolvimento – o ecodesenvolvimento20.
A proposta do ecodesenvolvimento, por seu turno, pre-
tende uma nova modalidade de desenvolvimento, tanto em
relação aos seus fins, quanto aos seus instrumentos, tendo
como compromisso básico valorizar as contribuições locais nas
transformações dos recursos do seu meio. O avanço dessa dis-

18
MORIN, Edgar; WULF, Christoph. Planeta: a aventura desconhecida. São
Paulo: Editora UNESP, 2003.
19
Parece correto afirmar que essa mudança de paradigmas tenha ocorrido
pelo temor da autodestruição provoca a discussão de um novo projeto
de Desenvolvimento que além do aspecto econômico começa a trabalhar
com outras categorias como a política, a religião, a cultura, a sociologia,
a filosofia, sendo que a centralidade da discussão passa a ser em torno
da questão ambiental.
20
É importante compreender que a posição de muitos países periféricos,
naquele momento histórico, não afirmava ainda a defesa do meio ambi-
ente, mas, pelo contrário, defendia o direito de aceleração industrial que
promovesse nestes países os avanços alcançados pelas economias cen-
trais.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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85
Gestão pública e desenvolvimento sustentável

cussão dará força, para na década de 1980, o surgimento do


termo “desenvolvimento sustentável” no documento chamado
de Estratégia de Conservação Mundial, produzido pela UICN e
World Wildlife Fund (hoje World Wide Fund for Nature) por
solicitação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambi-
ente – PNUMA.
Conforme o relatório, uma estratégia mundial para a con-
servação da natureza deve alcançar os seguintes objetivos: 1)
manter os processos ecológicos essenciais e os sistemas natu-
rais vitais necessários à sobrevivência e ao desenvolvimento
do Ser Humano; 2) preservar a diversidade genética; e 3) asse-
gurar o aproveitamento sustentável das espécies e dos ecos-
sistemas que constituem a base da vida humana.
Como conseqüência dessas proposições, a Assembléia
Geral da ONU constitui em 1983 a Comissão Brundtland que
objetiva: a) propor estratégias ambientais de longo prazo para
obter um desenvolvimento sustentável por volta do ano 2000 e
daí em diante; b) recomendar maneiras para que a preocupa-
ção com o meio ambiente se traduza em maior cooperação en-
tre os países em desenvolvimento e entre países em estágios
diferentes de desenvolvimento econômico e social e leve à
consecução de objetivos comuns e interligados que conside-
rem as inter-relações de pessoas, recursos, meio ambiente e
desenvolvimento; c) considerar meios e maneiras pelos quais a
comunidade internacional possa lidar mais eficientemente com
as preocupações de cunho ambiental; d) ajudar a definir no-
ções comuns relativas a questões ambientais de longo prazo e
os esforços necessários para tratar com êxito os problemas da
proteção e da melhoria do meio ambiente21.
Os resultados dessa Comissão são expressos em 1987
com o relatório denominado Nosso Futuro Comum, confirman-
do o desenvolvimento sustentável como um processo de trans-
formação no qual a exploração dos recursos, a direção dos in-
vestimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a

21
LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental: a reapropriação social da natu-
reza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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86
Alexandre Nicoletti Hedlund

mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial


presente e futuro, a fim de atender às necessidades e aspira-
ções humanas. Muito além da questão ambiental, o objetivo do
relatório é recomendar políticas de erradicação da pobreza,
melhorando a qualidade do crescimento, tornando-o mais jus-
to, eqüitativo e menos intensivo em matérias-primas e energia,
atendendo as necessidades humanas essenciais de emprego,
de alimentação, de energia, de água e de saneamento, além de
manter um nível populacional sustentável; conservar e melho-
rar a base de recursos; reorientar a tecnologia e administrar os
riscos e incluir o meio ambiente e a economia no processo de-
cisório.
A proposta de desenvolvimento sustentável sugere um
legado ético e político permanente de uma geração a outra,
para que todas possam prover suas necessidades, e, por esse
motivo, a qualidade daquilo que é considerado “sustentável”
incorpora o significado de manutenção e conservação eterna
dos recursos naturais. Para isto, conforme enuncia Sen22 neces-
sita-se de avanços tecnológicos e científicos que ampliem
permanentemente a capacidade de utilizar, recuperar e con-
servar esses recursos, bem como novos conceitos de necessi-
dades humanas para aliviar as pressões da sociedade sobre
eles.

A RACIONALIDADE ECONÔMICA COMO FATOR DE


(IN)SUSTENTABILIDADE
A homogeneização da racionalidade econômica pode ser
compreendida como decorrente da nova fase do capitalismo ao
longo do século XX, estimulada principalmente pela inserção
de políticas neoliberais a partir da década de 1970 e pela glo-
balização que promove uma economia e um mercado consumi-
dor globais.

22
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia
das letras, 2000, 411p.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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25 e 26 de abril de 2013
87
Gestão pública e desenvolvimento sustentável

A racionalidade mercadológica23 expande-se de forma


global e procura homogeneizar tudo a partir de um ponto de
vista econômico, não respeitando nem mesmo os limites ambi-
entais, sendo que os grandes desastres ambientais do século
XX apenas servem para frear por um tempo a corrida rumo ao
crescimento econômico.
O que ocorre é que existe uma crise de percepção que
não consegue visualizar nada além das questões meramente
econômicas, ou seja, uma percepção fragmentada das relações
existentes na sociedade e que por falta de amplitude não con-
segue dar respostas eficientes para os problemas apresenta-
dos. Capra24 defende que existe solução para grande parte dos
problemas presentes na atualidade, mas a resolução destes
exige uma mudança radical de concepções, pensamento e va-
lores.
Ao mesmo tempo, a focalização da racionalidade econô-
mica procura atacar a consolidação de valores e de necessida-
des dos indivíduos, promovendo constantemente novos valo-
res e novas necessidades, todas disponíveis a serem adquiri-
das. Assim, inova-se tudo a procura de novos consumidores,
mas principalmente, a inovação procura criar necessidades ao
público consumidor. Bauman25 muito bem indica que os “cida-
dãos do Estado” deram lugar aos “consumidores do mercado”

23
Concorda-se com Faria ao identificar algumas ações dessa racionalida-
de, como sendo: “a desregulação dos capitais, a geração de formas coo-
perativas de interdependência econômica, a unificação monetária, a fle-
xibilização dos sistemas de produção, a padronização e a homogeneiza-
ção dos mercados, criação de grandes blocos comerciais, a emergência
do Leste Europeu como novo mercado consumidor e a defesa dos cortes
drásticos nos gastos públicos dos Estados nacionais, acompanhado da
desformalização de muitas de suas obrigações funcionais, e da privati-
zação de determinados serviços públicos essenciais, como estratégia de
neutralização da crise fiscal e restauração das condições ‘mínimas’ de
governabilidade.” FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Globalização
Econômica: implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1996.
p.134.
24
Capra, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix. 1996.
25
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 145 p.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
88
Alexandre Nicoletti Hedlund

que, ao contrário dos primeiros, estabelecem relações basea-


das em poder de compra das mercadorias oferecidas26.
Essa diretriz proporciona uma decisão privatizada e des-
politizada que não necessita de legitimação por parte dos ci-
dadãos por não haver vínculos entre as carências, os direitos
almejados e as leis estabelecidas. As fronteiras27 de um espaço
monetário parecem ser mais importantes do que as fronteiras
territoriais da unidade política.
Leff28 lembra que essa racionalidade encontra-se infiltra-
da até mesmo no discurso do desenvolvimento sustentável,
sendo difícil se desvincular da ideologia salvacionista aprego-
ada pelo mercado. Essa perspectiva está presente em algumas
teorias que pretendem suavizar os efeitos maléficos causados
pela industrialização e pelo crescimento econômico desmedi-
dos através de tecnologias “verdes” ou “mais limpas”.
Lustosa29 muito bem assinala que a tecnologia em si não
é a causadora dos males ambientais, mas sim os efeitos da
tecnologia produzida em escala, a partir de uma lógica de ex-
propriação dos elementos da natureza, visto que o aumento da

26
Conforme Faria, o Estado perde a centralidade do poder para os meca-
nismos de auto-regulação da economia, o que torna as decisões políticas
condicionadas por equilíbrios macroeconômicos que representam “um
verdadeiro princípio normativo responsável pela fixação de rigorosos li-
mites às intervenções reguladoras dos Estados nacionais.” (FARIA,
1996.p.142).
27
ALTVATER, Elmar. Os desafios da globalização e da crise ecológica. In.:
Crise dos paradigmas em estudos sociais e os desafios para o século
XXI. HELLER, Agnes. et al., 1a. reimpressão. Rio de Janeiro: Contrapon-
to, 2000. p.109 –125.
28
“a teoria e as políticas econômicas procuram eludir o limite e acelerar o
processo de crescimento, montando um dispositivo ideológico e uma es-
tratégia de poder para capitalizar a natureza. Daí emergem o discurso
neoliberal e a geopolítica do desenvolvimento sustentável, reafirmando
o livre mercado como mecanismo mais clarividente e eficaz para ajustar
os desequilíbrios ecológicos e as desigualdades sociais”Leff.(2006,
p.225).
29
LUSTOSA, Maria Cecília. Industrialização, Meio Ambiente, Inovação e
competitividade. In: MAY, Peter; LUSTOSA, Maria Cecília; VINHA, Valé-
ria da. (orgs). Economia do meio ambiente. Rio de Janeiro: Elsevier,
2003.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Gestão pública e desenvolvimento sustentável

população provoca o aumento da demanda por bens, que por


sua vez faz aumentar a produção que requer então uma maior
quantidade de recursos naturais e joga mais dejetos no meio
ambiente. Ou seja, a organização voraz da racionalidade eco-
nômica compromete os elementos naturais seja por seus me-
canismos de produção, seja por suas estratégias de propaga-
ção de bens a serem consumidos por novos mercados.
Nesse sentido, Capella30 lembra que ao mesmo tempo em
que o processo de mundialização materializou um cenário eco-
nômico mundial, rompendo fronteiras e fomentando fluxos fi-
nanceiros, de bens e serviços de forma incessante, fomentou
por outro, o estabelecimento de relações de interdependência
entre todos os países, através da qual se reitera uma dispari-
dade entre economias avançadas e periféricas e uma relação
de dependência de instâncias transnacionais como o FMI, por
exemplo.
Os reflexos da desigualdade econômica expressam os ín-
dices crescentes de desemprego estrutural, de pobreza, de
violência e de miséria, todos relegados a externalidade do sis-
tema capitalista, ou seja, como elementos necessários a reali-
zação do desenvolvimento. Mais que isso, a análise é fragmen-
tada e ineficaz, pois a pobreza e a miséria são avaliadas me-
ramente como um índice econômico que constata o baixo nível
de renda e de consumo31.
Acompanhando essa lógica, identifica-se o problema
crescente do desemprego estrutural que se relaciona direta-
mente com a terceira revolução industrial – através do empre-
go de novos materiais químicos, bioquímicos e genéticos, além
da produção generalizada da informática e de novas formas de
organização dos processos de gestão32.

30
CAPELLA, Juan Ramón. Fruta Prohibida: una aproximación histórico-
teorética al estudio del derecho y del estado. Madrid: Trotta, 1997.
31
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia
das letras, 2000, 411p.
32
CAPELLA, Juan Ramón. Fruta Prohibida: una aproximación histórico-
teorética al estudio del derecho y del estado. Madrid: Trotta, 1997.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
90
Alexandre Nicoletti Hedlund

As inovações tecnológicas constantes subtraem o indiví-


duo do processo produtivo a ponto de torná-lo parte insignifi-
cante deste processo do qual é criador, o que provoca uma no-
va relação de dependência que o instrumentaliza e, por conse-
guinte, o condiciona a um quadro de incerteza de continuar no
mercado de trabalho e na sociedade de consumo. Em outras
palavras, estabelece-se um cenário no qual a única certeza é
de que tudo é transitório, e as certezas, as regras e os valores
de hoje podem ser substituídos a qualquer tempo pelas deci-
sões e interesses econômicos transnacionais.
O que se comprova é que o mercado e a racionalidade
econômica podem permear todos os aspectos da vida humana,
tanto em condições presentes como em eventos futuros, ou
como sinaliza Forrester33, é uma questão de acomodar-se a um
regime planetário permanentemente organizado em torno des-
se lucro que é oficialmente lícito e prioritário.
Sachs34 identifica nesse aspecto a produção de arquipéla-
gos industriais de alta produtividade nas economias periféri-
cas, imersas em verdadeiros oceanos de atividades de produ-
tividade baixa ou muito baixa. Aponta que a maioria das pes-
soas tenta sobreviver nadando em torno desses arquipélagos
na esperança de salvação.
Essa nova geografia permite a coerção econômica que, ao
menor movimento, coloca em xeque-mate um rol de direitos
adquiridos em épocas anteriores.
Com efeito, Bonavides35 assinala que esse conjunto de
ações pautadas por essa racionalidade poderá significar nova
servidão, fundada no colonialismo tecnológico e informático,
que fará os fortes mais fortes e os fracos mais fracos.

33
FORRESTER, Viviane. Uma estranha ditadura. São Paulo: editora
UNESP, 2001. p.27.
34
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável e sustentado.
Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
35
BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta: temas políticos e constituci-
onais da atualidade, com ênfase no Federalismo das regiões. 2. ed., São
Paulo: Malheiros, 1996. p. 283.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
91
Gestão pública e desenvolvimento sustentável

O que se pretende afirmar é a necessidade de construção


de uma agenda alternativa que não se paute exclusivamente
pela racionalidade econômica, mas que utilize a razão – o co-
nhecimento adquirido – para reverter os processos de escravi-
dão existentes e para focalizar novamente o homem como cen-
tro da existência, principalmente diante do fato de que a glo-
balização econômica não compensa a destruição dos ecossis-
temas e a possibilidade cada vez mais concreta de destruição
do próprio ser humano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposição da gestão pública decorre da vontade de
cuidado com a res publica e com os interesses dos cidadãos,
principalmente quando se afirma o caráter democrático de um
Estado. Não se trata de exigir que o aparelho burocrático esta-
tal se atualize e se modernize, mas, antes disso, que a agenda
de discussão seja focada em temas como a saúde, o combate a
fome e a redistribuição de renda.
É nesse contexto que a gestão deve acompanhar as pro-
posições de um do desenvolvimento, justamente em função do
compromisso ético e político permanente deste, o que eviden-
cia que a racionalidade econômica constitui-se como um en-
trave a tais processos de desenvolvimento. Por isso, a proposi-
ção de um projeto sustentável deve ser avaliada com muita
cautela, para que não se confirme como apenas outra estraté-
gia de apropriação dos recursos naturais direcionadas para o
fortalecimento da globalização econômica, pois sob a bandeira
do desenvolvimento sustentável pode haver inscritas diretrizes
de exploração da natureza e acumulação desmedida de recur-
sos que não guardam sentido com qualquer necessidade de
sobrevivência da humanidade, mas apenas de acumulação de
riqueza.
O cenário que se apresenta, de grandes dificuldades de
sustentabilidade diante das forças do mercado global é, acima
de tudo, um cenário a ser modificado, requerendo a sensibili-
dade na identificação das necessidades humanas, dos limites

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
92
Alexandre Nicoletti Hedlund

que o meio ambiente oferece, acompanhados de uma análise


crítica sobre os processos estabelecidos historicamente pelo
paradigma moderno de civilização que tem se pautado por
uma racionalidade que desvincula o sentido humano das cons-
truções políticas e sociais produzidas.
Nesse sentido resta clara a incapacidade dessa racionali-
dade em gerenciar as políticas de desenvolvimento em conso-
nância com a preservação dos recursos naturais em busca de
padrões sustentáveis que proporcionem condições de sobrevi-
vência para as gerações futuras. Necessita-se reafirmar o com-
promisso ético da economia, procurando proporcionar a orga-
nização social sem a necessidade de privação de condições
matérias para grande parte da população. A racionalidade
econômica, promovida pelas políticas neoliberais, acelera um
processo que deveria ter sido interrompido a partir das crises
ambientais, mas que hoje se soma aos grandes problemas que
a modernidade não conseguiu superar, como a fome, a pobre-
za, a violência e a escravidão, conformando assim o cenário de
dificuldades para a sustentabilidade do planeta.
Há, portanto, um descompasso entre o crescimento eco-
nômico e a preservação do meio ambiente, colocando de um
lado a melhoria das condições de vida pela aquisição de novos
bens e serviços e de outro os problemas ambientais que reque-
rem soluções imediatas, sob pena de serem irreversíveis. Esse
descompasso não permite a sustentabilidade do desenvolvi-
mento, por direcionar os avanços da ciência visando o lucro e
fortalecer a desigualdade atual, além de comprovar a ineficácia
da racionalidade econômica em gerir os complexos assuntos
da existência humana.

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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
O RECONHECIMENTO DE IDENTIDADES
CULTURAIS PARA A
EFETIVAÇÃO DE DIREITOS

Aline Andrighetto
Bacharel em Direito e pós-graduada em Direito Ambiental pela Universi-
dade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí); Mes-
tre em Direito e Multiculturalismo pela Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e das Missões (URI) Santo Ângelo.
(alineandrighetto@gmail.com)

Resumo
A identidade cultural, assim como o multiculturalismo, as nacionalidades e a cidada-
nia transformam-se em objeto de análise não apenas por sua relevância, mas pela
necessidade de estudo e abordagem dos fenômenos políticos e históricos nos quais
atuam. Entendida como valores, representações, símbolos e patrimônio, assimilados
e compartilhados por comunidades, a identidade se encontra no centro dos questio-
namentos das ciências humanas. Noções de cultura, tradicionalmente, aplicam-se a
realidades específicas. Há necessidade de identificar a cultura como parte importan-
te do reconhecimento humano e da luta pela identidade do ser como pessoa para a
efetivação de seus direitos.
Palavras-chave: Identidade. Cultura. Reconhecimento. Diferenças.

Abstract
Cultural identity, and multiculturalism, nationality and citizenship become the object
of analysis not only for its relevance, but by the need to study and address the politi-
cal and historical phenomena in which they operate. Understood as values, repre-
sentations, symbols and heritage, assimilated and shared by communities, identity is
at the heart of questions of the human sciences. Notions of culture traditionally
apply to specific circumstances. There is need to identify the culture as an important
part of human recognition and the struggle for identity as a person for the realiza-
tion of their rights.
Keywords: Identity. Culture. Recognizing. Differences.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os recentes debates intelectuais sobre o multiculturalis-
mo e sobre o direito à diferença expressam um caráter polêmi-
co porque remetem à noção de integração de várias culturas.
Ou seja, duas concepções se encontram em jogo com a ideia
de universalismo e de tolerância à diversidade. Para que se
96
Aline Andrighetto

possa realizar um estudo sobre as diferenças e fazer algumas


considerações faz-se necessário o estudo de alguns pontos
primordiais sobre cultura, no sentido de identidade, de identi-
ficação da pessoa para que possa verificar suas qualidades
dentro de determinado grupo social.
A identidade cultural, assim como o multiculturalismo, as
nacionalidades e a cidadania transformam-se em objeto de
análise não apenas por sua relevância, mas pela necessidade
de estudo e abordagem. Entendida como valores, representa-
ções, símbolos e patrimônio, assimilados e compartilhados por
comunidades, a identidade se encontra no centro dos questio-
namentos das ciências humanas. Noções de cultura, tradicio-
nalmente, aplicam-se a realidades específicas. Há necessidade
de identificar a cultura como parte importante do reconheci-
mento humano e da luta pela identidade do ser como pessoa.
Busca-se desvendar estilos de vida que remetam à noção
de cultura de minorias, como: grupos étnicos, religiosos e tam-
bém de identidades. Hall afirma que “a identidade somente se
torna uma questão quando existe crise, quando algo que se
supõe fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da
dúvida e da incerteza”1.
O aparecimento da cultura opera uma mudança de órbita
na evolução. “São as culturas que se tornam evolutivas, por
inovações, absorção do aprendido, reorganizações; são as téc-
nicas que se desenvolvem; são as crenças e os mitos que mu-
dam [...]”2. A cultura seria, pois, a maneira como se manifestam
saberes.

SOBRE O TEMA “CULTURA”


A cultura é constituída pelo conjunto de hábitos, costu-
mes, práticas, saberes, normas, interditos, estratégias, cren-
1
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Trad.
de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A,
2006. p. 9.
2
MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Trad. de
Juremir Machado da Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 35.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
97
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de direitos

ças, ideias, valores, mitos que perpetuam de geração em gera-


ção, se reproduzindo em cada indivíduo e gerando uma com-
plexidade social. Martinazzo menciona que “o homem consti-
tui-se na complexidade da organização biológica e da integra-
ção sociocultural onde as instâncias biológica, cerebral, indivi-
dual, social, cultural, ecológica e política estão em contínua
interação”3. A cultura acumula o que é conservado, transmitin-
do o aprendido e comportando vários princípios de aquisição e
programas de ação. Em cada sociedade a cultura é protegida e
mantida para que possa haver o reconhecimento da identidade
do grupo. Neste sentido menciona Taylor:
[...] a importância do reconhecimento foi-se modificando
e aumentando com a nova compreensão da identidade
individual que surgiu no final do século XVIII. Podemos
falar de uma identidade individualizada, ou seja, aquela
que é especificamente minha, aquela que eu descubro
em mim. Esta noção surge juntamente com um ideal: o de
ser verdadeiro para comigo mesmo e para com a minha
maneira própria de ser.4

A necessidade de reconhecimento das identidades faz


com que a pessoa descubra o seu próprio ser. O termo “identi-
dade” foi promovido a um dos conceitos-chave das ciências
humanas dos últimos tempos, e um número considerável de
estudos em ciências políticas consagrou-se à questão das
identidades comunitárias ou nacionais.
Taylor menciona ainda que:
Consideremos o significado de identidade: é aquilo que
nós somos, de onde nós provimos. Assim definido, é o
ambiente no qual os nossos gostos, desejos, opiniões e
aspirações fazem sentido. Se algumas das coisas a que
eu dou mais valor estão ao meu alcance apenas por cau-

3
MARTINAZZO, Celso José. A utopia de Edgar Morin: da complexidade
à concidadania planetária. 2. ed. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2004. p. 76 (Coleção
Educação).
4
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Trad. de Marta Machado. Lisboa:
Instituto Piaget, 1994. p. 48.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
98
Aline Andrighetto

sa da pessoa que eu amo, então ela passa a fazer parte


da minha identidade.5

Fala-se então que identidade, em seu conceito de dife-


rença, contém elementos inclusivos e excludentes, pois ao
mesmo tempo em que integra um indivíduo a um grupo, ela o
exclui em razão da provável diferença entre as pessoas de uma
comunidade. A reivindicação da identidade pode exprimir um
sentimento de ser, de saber diferente.
Na atualidade, a cultura pode traduzir uma resposta ao
sentimento de perda de identidade do homem, assim como
uma nova função atribuída à noção da cultura implica em ou-
tras abordagens e novos deslocamentos. Ela não pode mais
definir-se como um domínio exclusivamente estético, intelec-
tual e antropológico, pois sua concepção se expande vindo a
designar, igualmente, saber, escolha de existência, domínio de
análise, prática de comunicação e de interação, por isso a bus-
ca pela identidade. Segundo menciona Bertaso:
[...] a problemática que o multiculturalismo nos coloca
envolve a necessidade de redefinição e de reinterpreta-
ção da cidadania na sua ambivalência e complexidade
para que possa sustentar a convivência humana, respei-
tando as diferenças próprias de cada cultura, sem prejuí-
zo da manutenção da ideia de igualdade que encerra um
avanço social e político, e que revestiu a todos de uma
couraça de direitos gerais, independentemente das con-
dições étnicas de cada cidadão.6

A história cultural substitui a ambígua história das men-


talidades. Pode-se dizer que os conceitos de cidadania trouxe-
ram realidades diferentes à pessoa que preza muito mais pelos
ideais de igualdade e interessa-se por outros níveis de análise,
como algumas noções de comunicação distintas que implicam:

5
Id., ibid., p. 54.
6
BERTASO, João Martins (Org). Cidadania e interculturalidade: produ-
ção associada ao projeto de pesquisa “Cidadania e interculturalidade”.
Santo Ângelo: FURI, 2010. p. 58.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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99
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de direitos

a transmissão, a aquisição, o dito, o pensado, o imaginado e o


criado.
Taylor afirma nesse sentido que:
[...] todas as culturas humanas que dinamizaram socie-
dades inteiras, durante um considerável espaço de tem-
po, têm algo de importante a dizer sobre todos os seres
humanos. Exprimo-me desta maneira para excluir contex-
tos culturais parciais no seio de uma sociedade, assim
como pequenas fases de uma grande cultura.7

O reconhecimento da existência de exclusões de minorias


étnicas no seio das democracias ocidentais é a grande razão
do aparecimento do multiculturalismo. A correção de injustiças
pressupõe uma definição dos meios que permitem a coexistên-
cia de culturas diferentes dentro de uma sociedade democráti-
ca. Na perspectiva dos multiculturalistas, a concepção liberal
de cidadania não passa de uma ficção, uma vez que o universa-
lismo, reivindicado por ela, não seria senão um etnocentrismo
camuflado. Assim, longe de pretender enfraquecer a democra-
cia, o reconhecimento das minorias seria a legitimidade social.
No que concerne ao contexto brasileiro, à questão cultural
e às interrogações inerentes aos efeitos da globalização, tem-
se que o fenômeno da globalização acentua o sentimento de
perda de identidade, ou seja, em um mundo de metamorfoses,
se a globalização proporciona novas solidariedades planetá-
rias, como ecologia e direitos humanos, elas devem reforçar as
necessidades de reconhecimento das diferenças. Num mundo
sem fronteiras e sem referências, a busca por identidades se
acelera, favorecendo múltiplas solidariedades, portadoras de
identidades de substituição, em níveis nacional, local e indivi-
dual, podendo modificar os modos de vida das pessoas e a
própria cultura, ou seja, a globalização provoca uma fragmen-
tação e uma uniformização. Deste sentimento de instabilidade,
que conduz o indivíduo a incessantes tomadas de riscos, resul-

7
TAYLOR, Charles. Op. cit., 1994, p. 87.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
100
Aline Andrighetto

tam os “mal-estares” da identidade contemporânea, como bem


constata Giddens8.

VALORIZAÇÃO DAS IDENTIDADES CULTURAIS


No sentido de verificar identidades culturais há de se fa-
lar em nacionalismo, que aparece como revelador de tempos
de crises e de imprevisibilidades. Sem dúvida, o nacionalismo
e suas variantes, como racismos, canalizam reações e senti-
mentos distintos. O retorno às origens culturais e suas reações
por parte das nações podem traduzir a perda das certezas na
ideia de progresso, ou seja, o sentimento de perda de um futu-
ro. Hall expressa:
As identidades nacionais, como vimos, representam vín-
culos a lugares, eventos, símbolos, histórias particulares.
Elas representam o que algumas vezes é chamado de
uma forma particularista de vínculo ou pertencimento.
Sempre houve uma tensão entre essas identificações e
identificações mais universalistas – por exemplo, uma
identificação maior com a “humanidade” do que com a
“inglesidade” (english-ness).9

O estudo sobre o passado das origens das nações e o re-


torno às reivindicações culturais dos povos tiveram por conse-
quência junto às ciências humanas, a revalorização do para-
digma das identidades. O culto do passado predispôs a própria
disciplina história a se mobilizar na construção de memórias e
de identidades particulares. Esse fato adquiriu uma dimensão
inédita no mundo onde se inventam entidades nacionais que
encontram na construção de um passado.
Neste sentido menciona Caldera:
A identidade, por outra parte, é condição da universali-
dade. Identidade e universalidade são termos indissociá-

8
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed.
Unesp, 1991.
9
HALL, Stuart. Op. cit., 2006, p. 76.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
101
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de direitos

veis. Somente se tem identidade na medida em que as


expressões particulares se integram na universalidade
das culturas. Somente se alcança a universalidade quan-
do esta se forma pela convergência de múltiplas deter-
minações, pelo que chamamos de unidade na diversida-
de.10

A identidade cultural é uma construção ou uma recons-


trução feita a partir de elementos e tem uma finalidade eviden-
te: é uma máquina de sobrevivência, que utiliza o passado e o
futuro para reconfortar o presente, a partir de questões vincu-
ladas à ideia de soberania e de diversidade cultural. “A desco-
berta da minha identidade não significa que eu me dedique a
ela sozinho, mas, sim, que eu negocie, em parte, abertamente,
em parte, interiormente, com os outros”11
Não há como refrear a suposta homogeneidade cultural
construída ao longo do desenvolvimento da humanidade pelos
diversos grupos étnicos e, neste sentido, a heterogeneidade
tem se constituído predominante da sociedade contemporâ-
nea. Por isso há que se reconhecer que muitas são as dificul-
dades que se verificam perante essa realidade irrevogável e
irreversível.
Um dos obstáculos percebidos na busca pela convivência
pacífica e tolerante relaciona-se à visão de que, não raro, a di-
ferença é associada à inferioridade e desigualdade, e o outro
se torna inferior e passa a representar uma ameaça aos pa-
drões de determinados grupos. Padrões fixados nas culturas
ocidentais brancas, letradas, masculinas, heterossexuais e
cristãs, estão arraigados no imaginário social e naturalizados
cotidianamente nos diversos espaços de convivência humana,
afetando tanto os grupos minoritários como os pertencentes a
grupos diferentes. São padrões culturais definidos e impostos
a grupos ocidentais brancos que se dizem mais capazes e me-

10
CALDERA, Alejandro Serrano. A ética entre a mundialização e a identi-
dade. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí,
RS: Ed. Unijuí, 2003. p. 355.
11
TAYLOR, Charles. Op. cit, 1994, p. 54.

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102
Aline Andrighetto

lhores que os demais existentes, tornando os diferentes alvos


de exclusão, discriminação e preconceito.
Segundo Canclini:
As teorias do étnico e do nacional são, em geral, teorias
das diferenças. Por outro lado, o marxismo e outras cor-
rentes macrossociológicas (tais como as que se ocupam
do imperialismo e da dependência) dedicam-se à desi-
gualdade. Em alguns autores encontram-se combinações
de ambos os enfoques, como certos enfoques do nacional
em estudos sobre o imperialismo ou contribuições à
compreensão do capitalismo em especialistas da questão
indígena. Quanto aos estudos sobre conectividade e des-
conexão, concentram-se nos campos comunicacional e in-
formático, com escasso impacto nas teorias sociocultu-
rais.12

Algumas ideologias, como a do branqueamento, estão


centradas numa visão etnocêntrica de mundo, isto é, na cultu-
ra do próprio grupo como a única aceitável e correta, conforme
as identidades projetadas de si mesmos e reproduzidas como
uma espécie de repressão, afetando a vivência social de todos
os grupos culturais, sejam os ditos superiores ou inferiores.
Por isso, torna-se difícil, muitas vezes, situar quem é
quem no jogo das diferenças, nas relações de poder desiguais,
de quem se posiciona na condição de dominante ou de domi-
nado, uma vez que em todos os grupos culturais existem aque-
les que são discriminados e discriminadores.
Cabe aqui mencionar o exemplo de um sujeito negro que
é discriminado por outro branco, mas que maltrata a mulher
em casa; ou de um praticante do candomblé que é alvo de pre-
conceito dos católicos, porém combate os evangélicos ou a
união estável entre pessoas do mesmo sexo; ou mesmo o caso
de um gay ou lésbica que sofre na pele o preconceito pela sua
condição sexual, mas que não deixa de assumir posição racista
diante de uma pessoa negra. Percebem-se muitos atos discri-
12
CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados: ma-
pas da interculturalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2009. p. 55.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
103
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de direitos

minatórios que não são bem reproduzidos devido ao desco-


nhecimento cultural ou uma não aceitação. No entendimento
de McLaren:
As primeiras tendências do multiculturalismo conserva-
dor podem ser encontradas naquelas visões coloniais em
que as pessoas afro-americanas são representadas como
escravos e escravas, como serviçais e como aqueles que
divertem os outros, visões que estiveram fundamentadas
nas atitudes profundamente autoelogiosas, autojustifica-
tórias e profundamente imperialistas dos europeus e nor-
te-americanos [...] as pessoas africanas eram compara-
das, pela sociedade branca, aos animais selvagens ou às
crianças cantantes e dançantes de corações dóceis.13

Nas sociedades contemporâneas ocidentais as lutas pelo


poder não se desenrolam somente no espaço político e econô-
mico, mas ampliam-se para o terreno cultural e, também, para
um cenário de interdependência global e de intercâmbios cul-
turais, contribuindo para promover discriminações, atingindo
grupos economicamente mais fragilizados. Assim, a mobiliza-
ção de esforços vai se tornando urgente e inadiável no sentido
de solucionar e combater a opressão ou, em última instância,
aliviar as tensões, conter a propagação dos racismos, bem co-
mo reafirmar os direitos humanos, garantindo o direito à plura-
lidade e às diferenças culturais a fim de evitar abalos mais pro-
fundos nos alicerces da ordem vigente.
Em virtude de tantas mudanças que vêm acontecendo
com a globalização mundial, as agências internacionais como a
Organização das Nações Unidas (ONU), via Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), juntamente com o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF) e o Banco Mundial acionaram seus países-
membros para que fossem intensificadas as discussões sobre

13
McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. Prefácio de Paulo Freire.
Apresentação de Moacir Gadotti. Trad. de Bebel Orofino Schaefer. 3. ed.
São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2000 (Coleção Prospectiva, v. 3).
p. 111.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
104
Aline Andrighetto

educação, tolerância e respeito à diversidade cultural, já que


este representa um problema indistinto para pobres e ricos,
negros e brancos, mulheres e homens, independente de classe
ou grupo social14.
Nesse sentido são traçadas metas, definidas propostas e
promovidos eventos como conferências para manter o controle
dos antagonismos sociais e culturais. Por meio desses eventos
o Brasil pode assumir o compromisso de reformular os discur-
sos e implementar reformas nos sistemas educacionais e curri-
culares oficiais, articulando princípios de educação para a tole-
rância, cultura e respeito às diferenças culturais entre povos,
etnias, nações.
Touraine menciona sobre este tema:
Os direitos culturais não visam apenas à proteção de
uma herança ou da diversidade das práticas sociais;
obrigam a reconhecer, contra o universalismo abstrato
das luzes e da democracia política, que cada um indivi-
dual ou coletivamente pode construir condições de vida e
transformar a vida em social ou coletivamente, pode
construir condições de vida e transformar a vida social
em função de sua maneira de harmonizar os princípios
gerais da modernização com as ‘identidades’ particula-
res.15

Levar em conta culturas simples e de educação implica


repensar formas de reconhecer, valorizar e incorporar as iden-
tidades plurais em políticas e práticas curriculares. É estimular
na educação práticas sobre respeito e igualdade as quais le-
vam à civilidade. Refletir sobre mecanismos discriminatórios
que tanto negam voz a diferentes identidades culturais, silen-
ciando manifestações e conflitos culturais, bem como buscan-

14
SILVA, Maria José Albuquerque da; BRANDIM, Maria Rejane Lima. Mul-
ticulturalismo e educação: em defesa da diversidade cultural. Disponí-
vel em: <http://www.fit.br/home/ link/texto/Multiculturalismo.pdf >.
Acesso em: 01 abr. 2012.
15
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo
hoje. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. p. 171.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
105
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de direitos

do homogeneizá-las. Tais reflexões constituem o alicerce para


se situar o multiculturalismo no terreno educacional.

GLOBALIZAÇÃO E CULTURALISMOS
A globalização se faz pelos modos de comportamento e
se coloca como reivindicação de diferentes tipos de identida-
des: nacional, étnica e religiosa. Na realidade, a globalização
dissolve as fidelidades cívicas e nacionais, enquanto as rela-
ções transnacionais, das quais ela se alimenta, favorecem as
múltiplas solidariedades portadoras de identidades de substi-
tuição. Castells fala que “[...] em um mundo cada vez mais sa-
turado de informações, as mensagens mais eficientes são tam-
bém as mais simples e mais ambivalentes, de modo a permitir
que as pessoas arrisquem suas próprias projeções”16. Desse
modo, as forças de protesto em novas identidades insurgem
contra uma ordem internacional que elas não conseguem do-
minar, mediante múltiplas engrenagens, frustração e ressen-
timento, contribuindo para que o espectro dos fantasmas do
passado se erga contra esse movimento.
Com tantos estudos sobre fatores interligados à identida-
de cultural, tão importante quanto a identidade vinculada ao
passado é aquela que se projeta para o futuro: é dela que pro-
vavelmente virão as respostas aos novos desafios e é ela quem
deve merecer particular atenção. No tocante ao pensamento de
evolução de conceitos pode-se mencionar os museus como
exemplos de memorização de culturas. É preciso levar em con-
ta que os museus são por excelência os depositários da identi-
dade que já se cristalizou, que goza de um consenso forjado
nas instituições culturais do país.
O amparo às identidades culturais nos novos meios ele-
trônicos tem como resultado benefícios evidentes já configura-
dos em países que avançaram nesse campo, na forma de ativi-
dade econômica em geral, pois geram novos empregos, maior

16
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. de Klaus Brandini
Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 370.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
106
Aline Andrighetto

arrecadação de impostos e ainda o desenvolvimento da cida-


dania. Estes são componentes da capacidade de governo de
forma geral, meta por excelência da consciência política de um
povo. Segundo Morin:
[...] o conhecimento pertinente é o que é capaz de situar
qualquer informação em seu contexto e, se possível, no
conjunto em que está inscrita. Podemos dizer até que o
conhecimento progride não tanto por sofisticação, forma-
lização e abstração, mas, principalmente, pela capacida-
de de contextualizar e englobar.17

O conhecimento é que leva o homem a crescer dentro de


seu grupo, o que de certo modo faz com que se crie uma inte-
gração cultural, melhorando as relações e buscando sanar dife-
renças com respeito às exigências e potencialidades de um
povo.

MULTICULTURALISMO E RECONHECIMENTO
O multiculturalismo tem se constituído num movimento
de afirmação e resistência de identidades culturais, situando-
se na dinâmica dos acontecimentos mundiais a partir de mo-
vimentos sociais. Tem sido alvo de análise de formas diferen-
tes, resultando em múltiplas tentativas de mapeamento do
campo cultural, por meio do qual a diferença é tanto construída
como negada.
A noção de identidade e de autenticidade introduziu uma
nova dimensão na política de reconhecimento igualitário, que
agora funciona como algo parecido a um conceito próprio de
autenticidade. Deve-se pensar que as pessoas são reconheci-
das pelas identidades únicas.
Segundo Taylor:

17
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pen-
samento. Trad. de Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003. p. 15.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
107
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de direitos

Em relação à política de igual dignidade, aquilo que se


estabelece visa à igualdade universal, um cabaz idêntico
de direitos e imunidades; quanto à política de diferença,
exige-se o reconhecimento da identidade única deste ou
daquele indivíduo ou grupo, do caráter singular de cada
um.18

Nas discussões acerca do multiculturalismo torna-se pri-


mordial mencionar o reconhecimento como arma para a busca
das igualdades. O reconhecimento se faz necessário no sentido
de identificar cada cultura como diferença humana para que
todos tenham direitos fundamentais legalmente reconhecidos.
Algumas posições multiculturalistas existentes indicam
vertentes conservadoras, as quais sustentam a ideia de que o
déficit cultural dos grupos não brancos pode ser superado com
a ajuda dos grupos culturais brancos, em prol de uma cultura
comum, padronizada. Tal postura acaba contribuindo para a
desmobilização dos grupos dominados em suas lutas pela
afirmação do seu capital cultural19. A pluralidade de ideias
acerca do multiculturalismo só adquire significado quando in-
serida numa política de justiça e de transformação social. De
nada adianta realizar estudos, intensificar a consciência global
advinda com o fenômeno da globalização e realizar mudanças
na esfera legislativa educacional se não forem mudadas as
concepções de cultura impostas à sociedade. As compreen-
sões neste sentido são facilmente demonstradas com os frutos
de lutas históricas e sociais, sendo definidas mediante as
transformações nas relações sociais, culturais e institucionais,
no interior das quais os significados são gerados. A grande
meta a ser atingida é a equidade.
O reconhecimento de culturas diferentes é visto como um
fator de integração e, dentro desta perspectiva, uma democra-
cia para ser reconhecida deve se transformar em cultural, a fim
de garantir os direitos universais e a diversidade das identida-
des individuais.

18
TAYLOR, Charles. Op. cit., 1994, p. 58.
19
McLAREN, Peter.Op. cit., 2000.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
108
Aline Andrighetto

Pode-se afirmar então que o paradoxo das identidades


culturais reside na própria indeterminação de suas acepções e
na fragilidade de suas construções. Uma identidade cultural
constitui um coeficiente de crenças e necessita que estas per-
tençam a um povo, a um sistema de valor, a uma instituição
que a submeterá à ideologia. A globalização parece ter produ-
zido efeito – o chamado de mundialização –, que fortaleceu o
sentimento de uma identidade entre os homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diferenças e as desigualdades deixam de ser fraturas
a serem superadas. O Humanismo menciona hoje que muitos
fatores vêm contribuindo para que o reconhecimento de cultu-
ras seja cada vez mais trabalhado de maneira intensa no mun-
do. A unificação globalizada dos mercados não se sente per-
turbada pela existência de diferentes e desiguais, o que é mais
uma prova de que o multiculturalismo tem tomado proporções
no sentido de melhorar as relações entre as pessoas e busca
dirimir os conflitos. A sociedade, antes concebida em termos
de estratos e níveis, ou distinguindo-se segundo identidades
étnicas ou nacionais, agora é pensada como uma sociedade de
rede, onde as culturas são exploradas e cuidadosamente re-
descobertas. A identidade cultural, assim como o multicultura-
lismo, as nacionalidades e a cidadania transformam-se em ob-
jeto de análise não apenas por sua relevância, mas pela neces-
sidade de estudo e abordagem dos fenômenos políticos e his-
tóricos nos quais atua.
Algumas noções de cultura, tradicionalmente, aplicam-se
a realidades específicas, e ainda à necessidade de identificar a
cultura como parte importante do reconhecimento humano e
da luta pela identidade do ser como pessoa. Assim, pode-se
afirmar que o intenso estudo sobre as culturas é de suma im-
portância para se chegar à identificação de um Estado iguali-
tário que busca dirimir desigualdades e sabe lutar pelas dife-
renças de maneira a proteger aqueles que fazem parte de um
grupo minoritário da sociedade.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
109
O reconhecimento de identidades culturais para a efetivação de direitos

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dução associada ao projeto de pesquisa “Cidadania e interculturali-
dade”. Santo Ângelo: FURI, 2010.
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identidade. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multicultura-
lismo. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2003. p. 355.
CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados:
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2009.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. de Klaus Brandini
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GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo:
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dade à concidadania planetária. 2. ed. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2004. 112
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McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. Prefácio de Paulo Frei-
re. Apresentação de Moacir Gadotti. Trad. de Bebel Orofino Schaefer.
3. ed. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2000 (Coleção Pros-
pectiva, v. 3).
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pensamento. Trad. de Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
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______. O método 5: a humanidade da humanidade. Trad. de Juremir
Machado da Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. 309 p.
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Trad. de Marta Machado. Ins-
tituto Piaget: Lisboa, 1994.
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mun-
do hoje. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. 261 p.
SILVA, Maria José Albuquerque da; BRANDIM, Maria Rejane Lima.
Multiculturalismo e educação: em defesa da diversidade cultural.
Disponível em: <http://www.fit.br/home/link/texto/Multiculturalis
mo.pdf >. Acesso em: 01 abr. 2012.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
O TRABALHO DOMÉSTICO E A
DESIGUALDADE : AVANÇOS E DESAFIOS NA
SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Aline Damian Marques


Advogada. Especialista em Direito do Tributário e Mestranda em Direitos
Humanos pela UNIJUÍ. Bolsista FAPERGS (alined.marques@terra.com.br)
Roberta da Silva
Bacharela em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo
Ângelo – IESA. Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ. Bolsista
CAPES (roberta.h.s_@hotmail.com)

Resumo
Falar em igualdade em relação ao empregado doméstico na sociedade brasileira
contemporânea supõe enfrentar desafios que não se cansam de acentuar. A promo-
ção da igualdade e a eliminação de toda forma de preconceito, discriminação e abu-
so na relação de trabalho doméstico são primordiais ao desenvolvimento, à inclusão
social e à redução das desigualdades, tendo em vista que ao longo da história foram
precariamente protegidas pela legislação. Dessa forma, torna-se imperioso a dimi-
nuição das distâncias entre as classes sociais, por meio da valorização social do tra-
balho e do respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo isso o que se
propõe a PEC 72/2013, apesar de haver muito ainda a ser feito para a superação das
desigualdades.
Palavras-chave: Trabalho doméstico. Desigualdade social. Alterações legislativas.

Abstract
Speaking of equality in relation to domestic workers in Brazilian society contempo-
rary means facing challenges never tire of emphasizing. The promotion of equality
and elimination of all forms of prejudice, discrimination and abuse in relation to
domestic work are paramount to the development , social inclusion and reducing
inequalities, considering that throughout history were poorly protected by law. Thus,
it is imperative to decrease the distances between the social class, through the social
valorization of work the respect to the principle of human dignity, and what it
intends to PEC 72/2013 , although there is still much to be done to overcome
inequalities.
Keywords: Domestic work. Social inequality. Legislative changes.
112
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As relações históricas, sociais e culturais que envolveram
o direito dos empregados domésticos constantemente foram
marcadas por injustiças sociais, discriminações e abusos de
poder, fazendo com esses profissionais estivessem pratica-
mente às margens do Direito, em situação de absoluta desi-
gualdade frente aos demais trabalhadores, sendo violado o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Com as recentes alterações legislativas as distorções his-
tóricas dos direitos desses profissionais são corrigidas, porém
às visões pessimistas, isso já gera muita preocupação em rela-
ção ao futuro dessa categoria, tudo isso devido a maneira como
essa ocupação é preconceituosamente percebida na sociedade
brasileira.
Sabe-se que essa é uma exigência civilizatória, tendo em
vista que o trabalho doméstico, no Brasil, também se confunde
com a própria história da escravidão. Dessa forma, a expectati-
va é de significativos avanços e desafios com a valorização do
trabalho doméstico. Este quadro parece desesperador para
alguns, mas essa mudança já era esperada.
Essa mudança tornou-se uma demonstração de evolução
para uma sociedade mais justa e mais equilibrada, ao contrário
do caos anunciado aos quatro ventos pelos pessimistas. Dessa
forma, considerando tais aspectos, o presente artigo pretende
trazer uma compreensão melhor das condições de existência
dessa categoria na sociedade brasileira, bem como as altera-
ções legislativas quanto a sua proteção, a qual é de extrema
importância quando se pretende reduzir as desigualdades so-
ciais, a busca pela valorização da dignidade da pessoa huma-
na e de uma sociedade mais humana e democrática.

OS EMPREGADOS DOMÉSTICOS E A EXCLUSÃO SOCIAL: PERSPECTIVA


HISTÓRICA, SOCIAL E CULTURAL
Para que seja possível falar com legitimidade acerca de
trabalho doméstico, é imprescindível que se faça uma breve

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
113
O trabalho doméstico e a desigualdade

retrospectiva histórica acerca do trabalho humano, bem como


um estudo um pouco mais aprofundado acerca da construção
social e cultural desse ramo de atividade da seara trabalhista,
para a compreensão do tratamento discriminatório dispensado
a ela e as constantes violações a dignidade da pessoa humana.
Inicialmente é importante situar que a palavra “trabalho”
tem sua origem num instrumento de tortura utilizado, como um
chicote, com três astes de couro, contendo nas pontas das tiras
espinhos, com o qual eram chicoteados os escravos para que
trabalhassem ou então fossem punidos ao tentarem fugir. Era o
“tripalium”, do latim, significando “três paus”, ou seja, o “tri-
paliare” era o ato de impor castigo físico aos escravos com o
“tripalium”. Daí derivou a palavra trabalho.
Ainda hoje os dicionários registram o significado da pala-
vra trabalho, traz palavras como esforço, fadiga, inquietação,
aflições sendo sinônimas de trabalho1. Alguns estudiosos, em
especial os do Direito do Trabalho, entendem que o trabalho
humano se originou na própria entidade familiar, com a coope-
ração entre os membros da família. Mas, com a movimentação
das pessoas pelos lugares habitados do planeta, em busca de
melhorias de vida, muitos invadiam as propriedades dos se-
nhores feudais e eram aprisionados, mortos, devorados ou fei-
tos escravos e postos a trabalhar no campo, na agricultura ou
na pecuária.
Nesse viés, a origem do trabalho doméstico é bastante
controvertida. Há duas principais teses tratando desse tema,
possuindo direcionamento absolutamente contrário. A primeira
alude que o trabalhador doméstico provém de uma circunstân-
cia em que era exaltado por seus senhores com honrarias e
privilégios; já a segunda, o que parece numa análise criteriosa,
mais sensata, identifica seu aparecimento com a prática escra-
vocrata, dessa forma explicaria os abusos sofridos pelos traba-
lhadores domésticos ao longo da história.

1
BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa.
11. ed. Rio de Janeiro: FAE, 1991.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
114
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

Imprescindível se faz observar que a escravidão já che-


gou a ser justificada e aceita, a ponto do filósofo Aristóteles
afirmar que, para adquirir cultura era imperativo ser rico e oci-
oso à custa da escravidão dos incautos2. Nesses termos, na
atualidade, quer dizer que se não fossem os empregados do-
mésticos, as classes mais privilegiadas teriam que se privar de
alguns privilégios, mas com os empregados domésticos traba-
lhando em suas casas, ganham tempo para se ocupar com tra-
balho produtivo, estudo, preparação, lazer, em busca da reali-
zação de seus mais diversos projetos pessoais. Dessa forma, a
otimização do tempo torna-se, numa sociedade desigual, chave
para os índices de sucesso e fracasso.
Ao longo da história, foi realmente essa uma das finalida-
des do trabalho escravo. Foram usados nos trabalhos do cam-
po, igualmente destacados para realizar trabalhos ligados ao
ambiente familiar dos senhores feudais, em suas residências,
para que estes pudessem se ocupar com trabalhos intelectuais
como administração de seus bens. Nas residências a mão-de-
obra era composta praticamente por mulheres, a maioria ne-
gra, recebendo diversos nomes como mucama, criada, serva.
Nesse mesmo sentido, entende Melo3:
O trabalho doméstico é uma responsabilidade da mulher,
culturalmente definida do ponto de vista social como do-
na de casa, mãe ou esposa. Esse trabalho dirigido para
as atividades de consumo familiar é um serviço pessoal
para o qual cada mulher internaliza a ideologia de servir
aos outros, maridos e filhos. O trabalho realizado para a
sua própria família é visto pela sociedade como uma si-
tuação natural, pois não tem remuneração e é condicio-
nado por relações afetivas entre a mulher e os demais
membros familiares, gratuito e fora do mercado. Quando
uma mulher contrata uma terceira para executar essas
tarefas, isto é, prestar tais serviços para uma família dife-

2
ARISTÓTELES. A política. Tradução de Therezinha Monteiro Deustch.
São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 148-149
3
MELO, Hildete Pereira de. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de
criadas a trabalhadoras. Rio de Janeiro, junho de 1998, p. 2-3.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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115
O trabalho doméstico e a desigualdade

rente da sua, esse trabalho doméstico converte-se em


serviço doméstico remunerado.

Nesse viés, o fato é que o trabalho doméstico é uma ativi-


dade estigmatizada em nossa sociedade, além de herdar o
anátema da escravidão, em sua maioria, compunham-se de
mulheres, o que inelutavelmente colabora para o seu esqueci-
mento. Pois, se as mulheres sempre foram discriminadas por
uma sociedade eminentemente machista, muito mais facilmen-
te se discriminaria contra as empregadas domésticas, que
além de mulheres, a maioria ainda é negra.
A luta pelos direitos da mulher vem sendo travada há
tempos, de um passado em que elas não eram respeitadas,
chega-se a um presente de garantias e novos direitos, sendo
possível vislumbrar-se um futuro de igualdade de direitos en-
tre homens e mulheres. Mas a evolução dos direitos femininos
vem galgando degraus dia após dia, concretizando-se em um
vasto trabalho realizado por elas na busca de igualdade e dig-
nidade. A partir do momento que as mulheres foram adquirin-
do espaço por força dos movimentos feministas é que as em-
pregadas domésticas teriam conquistado pelo menos uma par-
cela de seus anseios de alforria e de dignidade da pessoa hu-
mana.
Nesse viés, a dignidade humana é um direito fundamen-
tal de todos, inclusive das mulheres e dos negros, já que todos
são iguais, sem distinção de qualquer natureza, e é um dever
do Estado, do Direito, da sociedade assegurar uma vida digna
a todas as pessoas. Sendo a dignidade algo irrenunciável e
inalienável que qualifica a pessoa humana. Dallari 4 discorre
que:
O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir
sempre, em todos os lugares e de maneira igual para to-
dos. O crescimento econômico e o progresso material de
um povo têm valor negativo se forem conseguidos à cus-

4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo:
Moderna, 1998, p. 09.

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116
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

ta de ofensas à dignidade de seres humanos. O sucesso


político ou militar de uma pessoa ou de um povo, bm co-
mo o prestígio social ou a conquista de riquezas, nada
disso é válido ou merecedor de respeito se for consegui-
do mediante ofensas à dignidade e aos direitos funda-
mentais dos seres humanos [...]
[...] Se houver respeito aos direitos humanos de todos e
se houver solidariedade, mais do que egoísmo, no relaci-
onamento entre as pessoas, as injustiças sociais serão
eliminadas e a humanidade poderá viver em paz.

Assim sendo, a dignidade da pessoa humana é um direito


fundamental inerente a toda a pessoa, inclusive para a mulher
e trabalhadora doméstica devendo ser respeitada e exigida, a
fim de que a humanidade tenha as mínimas condições de so-
breviver em paz, inclusive com a valorização social do traba-
lho. Brandt acredita que o emprego não é intrinsecamente de-
gradante, mas assume esse caráter devido à divisão sexual do
trabalho e à ideologia do gênero (como as mulheres são inferio-
rizadas em nossa sociedade, o trabalho que elas executam,
remunerado ou não, é desvalorizado) e pela construção históri-
ca da relação entre empregada e empregador que é baseada
na hierarquia (criado e senhor) 5. Denota-se, portanto, que o
surgimento do trabalho doméstico identifica-se com a própria
origem do trabalho humano e com a sociedade escravocrata.
Nesse sentido, o campo do Direito sempre se interessou
pelas relações humanas, ao serem criadas regras de condutas,
permitindo uma convivência harmônica e pacífica entre os in-
divíduos. Sendo assim, o trabalho humano não poderia ficar
alheio ao Direito, tendo em vista que nas relações trabalhistas
há constantemente conflitos de interesses e estando o trabalho
doméstico inserido na seara trabalhista, exige que o Direito
venha tutelar-lhe as relações.

5
BRANDT, Maria Elisa A. O emprego doméstico na cidade de São Paulo:
como é vivido e representado. 2002. 203 fl. Tese (Doutorado em Sociolo-
gia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002, p. 3.
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117
O trabalho doméstico e a desigualdade

Porém, no contexto do direito trabalhista houve esse apa-


rente relegar do trabalho doméstico a segundo plano, sendo
justificado por visões discriminatórias, pelo fato da prestação
de serviço doméstico não fazer parte da seara do interesse
econômico, das atividades produtivas a que pertencem o tra-
balhador comum, mas sim, por pertencer ao âmbito íntimo das
famílias, em suas residências. É com se a esse trabalhador não
fosse dado direitos em razão de estar excluído da seara eco-
nômica, essa sendo uma justificativa para discriminações soci-
ais e abusos.
Nesse ínterim, o espaço social do trabalho doméstico po-
de ser visto como o lugar por excelência da desigualdade, pois
nele é encontrado a fusão das diversas opressões, desigualda-
des e discriminações sociais, violador do princípio da dignida-
de da pessoa humana. As hierarquias e preconceitos de gêne-
ro, raça, classe, se sobrepõem entre si fazendo o empregado
vivenciar visceralmente no local de trabalho, nas relações so-
ciais estabelecidas entre empregados e empregadores. Ainda,
esse espaço é definido e definidor da feminilidade, o doméstico
é o espaço também onde mulheres se diferenciam, em sua de-
sigualdade, como patroas e empregadas domésticas.
Devido à tamanha força da subalternidade que a condição
de empregado doméstico impõe, é possível identificar alguns
aspectos perversos dessa relação, visto que as denúncias con-
tra os empregadores não se resumem tão somente ao descum-
primento da legislação trabalhista, mas elas envolvem também
a questão do reconhecimento, pois, ainda que em menor nú-
mero e frequência, há por parte dos empregados acusações de
assédio moral e de exposição à situações humilhantes
e vexatórias, restando claro o reflexo da herança escravista e
da desigualdade social.
Para Hegel há a afirmação de que o trabalho é uma forma
de se obter reconhecimento: no universo das relações de troca,
mediado pelo mercado, os sujeitos se reconhecem reciproca-
mente como seres privados e autônomos, que estão ativos uns

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
118
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

para os outros, mantendo suas vidas por meio das contribui-


ções sócias de seu trabalho6.
O conflito cultural vivido nas relações de trabalho, ou se-
ja, a vivência tensa, em certos momentos, estabelecida com
um meio cultural e social diferente do de origem do emprega-
do, além do caráter fatigante, aprisionante e a vida controlada
são dificuldades físicas e emocionais vivenciadas pelo empre-
gado doméstico. Mas, é de se ressaltar, que esse conflito traz
não só malefícios, como também benefícios ao retirar a profis-
sional da zona de conforto, tornando-se mediadora entre dois
mundos opostos.
É fato, que as diferenças culturais são estímulos para no-
vas aprendizagens e desafios, não seria diferente com os em-
pregados domésticos. Estes convivem e participam de um
mundo onde valores e organização doméstica são outros dos
de onde provém, sofrendo influências dessas situações no per-
curso de suas vidas, essas diferenças implicam necessaria-
mente em mudança dos horizontes, dos sonhos, das perspecti-
vas de vida, como por exemplo a possibilidade de busca do
emprego desejado.
Ao se falar em emprego desejado torna-se imperioso
mencionar que por falta de qualificação profissional, geralmen-
te por ausência de oportunidade, muitos profissionais são
obrigados a recorrer ao serviço doméstico como única alterna-
tiva de trabalho, não como uma vontade individual, mas exclu-
sivamente por falta de escolha. Tanto isso ocorre na prática,
que não é incomum os empregados domésticos desejarem a
seus filhos outra ocupação, é a chamada inserção no mercado
de trabalho por necessidade. E isso acaba trazendo para a re-
lação de emprego doméstica ainda mais obstáculos, dificul-
tando a convivência harmoniosa, já que há insatisfação de uma
das partes.
Como já trazido há o viés cultural oriundo da época da
escravidão quanto ao trabalho doméstico. Dessa forma, outro

6
HEGEL; Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 167-185.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
119
O trabalho doméstico e a desigualdade

fato que merece ser levado em consideração é de que até mui-


to pouco tempo os projetos arquitetônicos das casas e aparta-
mentos da classe mais favorecida economicamente eram cons-
truídos com o famigerado “quartinho da empregada”, eram
quase celas escondidas nos confins da casa ou do apartamen-
to, podendo ser consideradas modernamente como senzalas
ajustadas numa sociedade pós-abolicionista.
Nesse sentido, tendo em vista o caráter histórico, cultural
e social que sempre acompanhou o trabalho doméstico e con-
siderando todos os avanços, não só da legislação, que já houve
e ainda há de se ter, torna-se imperioso considerar a possibili-
dade de o mercado se reinventar frente às mudanças, adap-
tando-se as novas realidades, sendo que as questões que en-
volvem o mundo do trabalho devem ser entendidas a partir de
uma noção ampliada de justiça social, a ser efetivadas por ati-
tudes de reconhecimento7 Já que modernamente, recorrer ao
serviço de um empregado doméstico, é mais uma necessidade
prática do que um sinal de status ou capricho. Agora, com as
alterações legislativas esse profissional terá pelo menos um
pouco de visibilidade social, de reconhecimento e de respeito a
sua dignidade.

O RECONHECIMENTO DO TRABALHO DOMÉSTICO E AS ALTERAÇÕES


LEGISLATIVAS – PEC 72/2013
Os direitos trabalhistas das empregadas domésticas po-
dem ser vistos como uma leve e lenta forma de evolução até o
século passado. A CLT (Consolidação das leis Trabalhistas),
instituída em 1942 no Brasil, ignorava até então, as emprega-
das domésticas, alegando de que elas não constituíam uma
categoria profissional, desrespeitando o princípio da dignidade
da pessoa humana.

7
ARCANJO. Aline Soares; Reconhecimento e trabalho: a teoria do reco-
nhecimento de Axel Honneth no âmbito do trabalho. In: BARZOTTO, Lu-
ciane Cardoso; Trabalho e igualdade: tipos de discriminação no ambien-
te de trabalho, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 78.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
120
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

Contudo, em 1972 através da Lei 5.859, o Brasil reconhece


e regulamenta a profissão em condições ainda bem diferentes
e desproporcionais dos trabalhadores em geral. A lei previa a
assinatura da carteira de trabalho e férias de 20 dias, mas era
omissa com relação a jornada de trabalho, fundo de garantia
por tempo de serviço, férias, seguro-desemprego e tantos ou-
tros benefícios. Mesmo assim, a legislação brasileira era con-
siderada uma das mais avançadas da América Latina ficando
atrás do Uruguai, o qual desde 2006 já equiparou os direitos
das domésticas aos dos demais trabalhadores.
Neste sentido é de extrema relevância o objeto de estudo
deste trabalho, partindo do pressuposto que o trabalho domés-
tico é uma das atividades/profissões mais antigas em diversos
países, como já abordado na parte histórica acima, caracteri-
zando-se como uma significativa fonte de ocupação para mui-
tas mulheres no mundo, e também uma forma de acesso no
mercado de trabalho para as mulheres mais pobres, tornando-
se uma atividade laboral essencial não apenas para o funcio-
namento dos lares, como também para as economias estatais.
Entretanto, a insuficiência de políticas públicas eficazes
as quais poderiam gerar uma relação de equilíbrio entre em-
pregado e empregador e assim então proporcionar conciliações
entre o trabalho e a vida familiar, trouxeram grande crise do
modelo tradicional desta relação de trabalho, tornando-se as-
pecto fundamental marcante dessa mudança significativa da
recente alteração legislativa, marcada pela valorização dos
desiguais e da dignidade da pessoa humana.
Com o escopo de conservar a ordem social, a igualdade é
segundo Bobbio um valor que tem por base o tratamento igual
entre os iguais e desigual entre os desiguais, sendo que o pro-
pósito da doutrina igualitária não é somente estabelecer quan-
do duas coisas devem ser consideradas equivalentes, mas sim
promover a justiça entre os indivíduos8. Já que o trabalho do-

8
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 20.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
121
O trabalho doméstico e a desigualdade

méstico é caracterizado por extremas desigualdades de gêne-


ro, raça e situações de precariedade e informalidade.
As novas regras, de extrema importância conquistada
neste momento da história pela classe dos trabalhadores do-
mésticos, tem a intenção de fornecer subsídios para os avan-
ços necessários à superação das desigualdades e ao fortaleci-
mento do trabalhador doméstico, possibilitando, assim, o exer-
cício dessa importante atividade profissional em condições
dignas, justas e humanitárias.
Mas ao se falar em recentes alterações, é importante es-
clarecer alguns aspectos históricos e objetivos fundamentais
da OIT (Organização Internacional do Trabalho) como forma de
introdução a recente Convenção nº 189 que deu origem aos
novos direitos dos empregados domésticos. A OIT foi criada
em 1919, é a única das agências do órgão das Nações Unidas
que é composta por representantes do governo, de organiza-
ções de empregados e também de trabalhadores, e sobre a
convicção primordial de que a paz universal e permanente so-
mente pode estar baseada na justiça social. Sua principal res-
ponsabilidade e objetivos é a formulação e aplicação das nor-
mas internacionais do trabalho, dentre elas as convenções, que
uma vez ratificadas por decisão soberana de um país passam a
fazer parte do ordenamento deste9.
No cenário atual mundial, onde direitos fundamentais in-
dividuais são violados diariamente, principalmente em face da
precarização das relações de trabalho, um dado nos difere dos
demais países. O Brasil está entre os membros fundadores da
OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho des-
de sua primeira reunião.
Cumpre ainda esclarecer que a OIT é a agência das Na-
ções Unidas que tem por missão promover oportunidades para
que homens e mulheres possam ter acesso a um trabalho ca-
racterizado como decente e produtivo, em condições de liber-
dade, equidade, segurança e dignidade humana, sendo consi-

9
Disponível em http://www.oit.org.br/content/hist%C3%B3ria. Acesso em
09 de abril de 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
122
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

deradas condições fundamentais para a erradicação da pobre-


za e a consequente redução das desigualdades sociais, assim
como desenvolver um governo democrático e desenvolvimento
sustentável.
Assim, surgem os novos direitos aos trabalhadores do-
mésticos, em Genebra, pela OIT. A Conferência Internacional
do Trabalho da OIT adotou, em 17 de junho de 2011, a Conven-
ção nº 189 e a Recomendação nº 201 sobre as trabalhadoras e
trabalhadores domésticos, que estabelecem direitos e princí-
pios básicos para essa categoria e exigem que os Estados to-
mem uma série de medidas com a finalidade de tornar o traba-
lho decente para as trabalhadoras e trabalhadores domésticos.
Entre os novos direitos assegurados pela recente legisla-
ção destacam-se a limitação da duração do trabalho a 8 horas
diárias e 44 horas semanais, equiparando-se às demais catego-
rias, com possibilidade de pagamento e compensação de horas
extras, garantia de intervalos diários e semanais, redução da
hora noturna e pagamento de adicional noturno. Os domésti-
cos passam também a ter direito à organização sindical e à
celebração de acordos e convenções coletivas, importante
meio de articulação por melhores condições de trabalho.
A Convenção contém normas de proteção à saúde e segu-
rança do trabalhador, com possibilidade de pagamento de adi-
cionais de insalubridade e periculosidade, o que demandará
trabalho legislativo e superação de resistências culturais, se
ocupou também de estabelecer normas para o trabalhador
doméstico migrante, realidade que já começa a mostrar sua
face perversa no País. Foi ratificada pelo Brasil, com a finalida-
de de afastar as desigualdades históricas e garantir a efetivi-
dade dos direitos. O tratado constitui importante passo na luta
por reconhecimento de direitos dos trabalhadores domésticos
na busca da vida digna. Importante referir a justificativa da
proposta apresentada de Emenda a Constituição do Deputado
Carlos Bezerra10, no ano de 2010:

10
Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetra
mitacao?idProposicao=473496. Acesso em 09 de abril de 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
123
O trabalho doméstico e a desigualdade

Desde 2008, está sendo elaborada, no âmbito no Poder


Executivo, uma Proposta de Emenda à Constituição para
estabelecer um tratamento isonômico entre os trabalha-
dores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e
rurais brasileiros. A tarefa foi entregue a um grupo multi-
disciplinar que envolveu a Casa Civil e os Ministérios do
Trabalho e Emprego, da Previdência Social, da Fazenda e
do Planejamento, Orçamento e gestão.
As mudanças pretendidas no regime jurídico dos domés-
ticos beneficiarão 6,8 milhões de trabalhadores, permi-
tindo-lhes acesso ao FGTS, ao Seguro desemprego, ao
pagamento de horas extras e ao benefício previdenciário
por acidente de trabalho, prerrogativas que estão excluí-
das do rol dos direitos a eles assegurados no parágrafo
único do art. 7º da Constituição Federal.
Infelizmente, os trabalhos iniciados em 2008, no Governo
Federal, foram interrompidos e permanecem inconclusos.
A principal dificuldade encontrada pelos técnicos para a
conclusão dos trabalhos é o aumento dos encargos finan-
ceiros para os empregadores domésticos. Sabemos que,
seguramente, equalizar o tratamento jurídico entre os
empregados domésticos e os demais trabalhadores ele-
vará os encargos sociais e trabalhistas.
Todavia, o sistema hoje em vigor, que permite a existên-
cia de trabalhadores de segunda categoria, é uma verda-
deira nódoa na Constituição democrática de 1988 e deve
ser extinto, pois não há justificativa ética para que pos-
samos conviver por mais tempo com essa iniquidade.
A limitação dos direitos dos empregados domésticos,
permitida pelo já citado parágrafo único do art. 7º, é uma
excrescência e deve ser extirpada.
Nesse sentido, apresentamos esta Proposta de Emenda à
Constituição e pedimos o necessário apoio para a sua
aprovação.

Dessa forma, passamos a análise prática da recente alte-


ração legislativa a Emenda Constitucional 77, que iguala os
direitos trabalhistas dos trabalhadores domésticos com os dos

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124
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

outros trabalhadores: sendo publicada na quarta-feira, dia 03


de abril de 2013, no Diário Oficial da União11.
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 72, DE 2 DE ABRIL DE 2013
Altera a redação do parágrafo único do art. 7º da Consti-
tuição Federal para estabelecer a igualdade de direitos
trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os de-
mais trabalhadores urbanos e rurais.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Fede-
ral, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal,
promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:
Artigo único. O parágrafo único do art. 7º da Constituição
Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 7º. [...]
Parágrafo único. São assegurados à categoria dos traba-
lhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV,
VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII,
XXIV, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e, atendidas as condi-
ções estabelecidas em lei e observada a simplificação do
cumprimento das obrigações tributárias, principais e
acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas pe-
culiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV
e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social.”
(NR)
Brasília, em 2 de abril de 2013.

Com a publicação da emenda, os trabalhadores domésti-


cos, empregadas, babás, motoristas, caseiros, passam a ter os
seguintes direitos já regulamentados e em vigor: garantia de
salário, nunca inferior ao mínimo; proteção do salário na forma
da lei, constituindo crime sua retenção; jornada de trabalho de
até oito horas diárias e 44 semanais; hora extra de, no mínimo,
50% acima da hora normal; redução dos riscos inerentes ao
trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;
reconhecimento dos acordos coletivos de trabalho; proibição
de diferença de salários, de exercício de funções e de critério

11
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emen
das/Emc/emc72.htm. Acesso em 09 de abril de 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
125
O trabalho doméstico e a desigualdade

de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; pro-


ibição de qualquer discriminação do trabalhador deficiente;
proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a meno-
res de 18 anos e de qualquer trabalho e a menores de 16 anos,
exceto aprendizes com idade de 14 anos.
Algumas das novas regras, porém, não vão vigorar de
imediato porque ainda precisam de regulamentação dos Minis-
térios do Trabalho e da Previdência Social. Segundo o ministro
do Trabalho Manoel Dias, direitos como o recolhimento de
FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), adicional no-
turno, auxílio-creche e auxílio família só vão vigorar depois da
regulamentação12.
Em síntese, independente das alterações que ainda de-
pendem de regulamentação, abre-se para o Brasil uma oportu-
nidade histórica de resgate dos direitos do trabalhador domés-
tico que, dado o contingente de mulheres trabalhadoras, as-
sume também o significado de afirmação de igualdade de gê-
nero que colocam a dignidade da pessoa humana como tema
central na garantia de direitos humanos e direitos trabalhistas
fundamentais aos trabalhadores domésticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa delineou um breve estudo sobre a origem e a
evolução do trabalho doméstico, conectando a atual discrimi-
nação social desse labor com o processo de evolução histórico
e cultural, que identificou o labor doméstico com o trabalho
escravo e feminino. O ano de 2013 será considerado um marco
para essa categoria, apesar de alguns críticos considerarem
aparentemente a existência desse serviço fadada ao fim. A
emenda é a reparação de uma “injustiça histórica” e o fim de
um resquício escravagista. Inicialmente, será natural haver
certo desconforto e muitas dúvidas, mas as partes deverão

12
Disponível em http://www12.senado.gov.br/noticias/infograficos/2013
/03/info-entenda-o-que-muda-com-a-pec-das-domesticas. Acessado em
09 de abril de 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
126
Aline Damian Marques & Roberta da Silva

chegar a um consenso sobre a melhor forma de se adaptar às


mudanças legais.
Com isso, é possível acreditar numa mudança cultural na
relação entre empregados e empregadores na medida em que
se igualam os direitos dos empregados domésticos aos demais
trabalhadores comuns. Esse, apesar das fortes críticas, é um
momento histórico, que o povo brasileiro vai reconhecer como
um momento necessário para o país, representando a conquis-
ta efetiva de direitos que já eram concedidos aos demais traba-
lhadores e, injustamente, não o eram aos trabalhadores do-
mésticos.
A promoção da igualdade de oportunidades e a elimina-
ção de toda forma de discriminação nas relações de trabalho
são primordiais ao desenvolvimento e inclusão social, cum-
prindo-se os preceitos da nossa Carta Magna fundada na valo-
rização social do trabalho e na dignidade da pessoa humana,
objetivos esses alcançados pela PEC 72/2013, garantindo a
inclusão social e o reconhecimento dos trabalhadores domésti-
cos. Este é o objetivo do presente artigo: investigar, refletir e
lançar luzes sobre o problema da discriminação no trabalho
que, no fundo, é uma questão de desvio do princípio da igual-
dade e, por consequência, um desafio ao Estado Democrático e
de Direito.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A política. Tradução de Therezinha Monteiro Deus-
tch. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
ARCANJO. Aline Soares; Reconhecimento e trabalho: a teoria do
reconhecimento de Axel Honneth no âmbito do trabalho. In:
BARZOTTO, Luciane Cardoso; Trabalho e igualdade: tipos de dis-
criminação no ambiente de trabalho, Porto Alegre: Livraria do Advo-
gado, 2012.
BRANDT, Maria Elisa A. O emprego doméstico na cidade de São
Paulo: como é vivido e representado. 2002. 203 fl. Tese (Doutorado
em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portu-
guesa. 11. ed. Rio de Janeiro: FAE, 1991.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
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O trabalho doméstico e a desigualdade

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Pau-


lo: Moderna, 1998.
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2013/03/info-entenda-o-que-muda-com-a-pec-das-domesticas. Aces-
sado em 09 de abril de 2013.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
Emendas/Emc/emc72.htm. Acesso em 09 de abril de 2013.
Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichade
tramitacao?idProposicao=473496. Acesso em 09 de abril de 2013.
Disponível em http://www.oit.org.br/content/hist%C3%B3ria. Acesso
em 09 de abril de 2013.
HEGEL; Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MELO, Hildete Pereira de. O serviço doméstico remunerado no
Brasil: de criadas a trabalhadoras. Rio de Janeiro, junho de 1998.
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de Carlos Nel-
son Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
PARA ALÉM DA LIBERDADE DOS ANTIGOS
E DA LIBERDADE DOS MODERNOS :
A DEMOCRACIA COMO REGIME
DOS DIREITOS HUMANOS

Ana Righi Cenci


Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e em Sociologia. Mestranda em
Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul – UNIJUI, vinculada à Linha de Pesquisa “Direitos Hu-
manos, Relações Internacionais e Equidade”. Bolsista do Programa de
Apoio à Pós-Graduação – PROAP – da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior – CAPES. (anarc1@gmail.com)
Gilmar Antônio Bedin
Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina
– UFSC. Professor permanente do Curso de Mestrado em Direito Humanos
da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUÍ – e professor colaborador do Curso de Mestrado em Direito da
Universidade Regional Integrada – URI. É autor, entre outras obras, de Os
Direitos do Homem e o Neoliberalismo e A Idade Média e o Nascimento
do Estado Moderno. (gilmarb@unijui.edu.br)

Resumo
A democracia é um tema frequentemente discutido pelas ciências sociais. Entre suas
diferentes dimensões, o Direito comumente privilegia o aspecto institucional, anali-
sando a organização do poder estatal sob a forma democrática de governo. Nesse
sentido, costuma-se distinguir entre a democracia antiga, marcada pela participação
direta dos cidadãos e a democracia moderna, caracterizada pela participação social
mediante mecanismos de representação. Tais paradigmas apresentam, atualmente,
importantes limitações, o que conduz alguns autores a apontarem para uma “crise
de representação”. O significado da democracia, no entanto, extrapola a dimensão
institucional, implicando, também, uma dimensão simbólica e social. O presente
artigo pretende lembrar que a democracia, mais do que um regime de governo, é
condição imprescindível para a garantia de direitos humanos.
Palavras Chave: Direitos humanos. Participação. Representação.

Abstract
The democracy is a subject frequently discussed by social sciences. Between its dif-
ferent dimensions, the Law usually privileges the institutional aspect, analyzing the
state power organization in the democratic form of government. In this sense, we
accustom to discern between antique democracy, marked by direct participation of
130
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

the citizens and the modern democracy, characterized by social participation


through representative mechanisms. These paradigms present, nowadays, important
limitations, what conduce some authors to identify a “representation crisis”. The
meaning of democracy, however, extrapolates the institutional dimension, involving
also a symbolical and social dimension. This article pretends to remember that the
democracy, more than a regime of government, is an indispensable condition to
safeguard human rights.
Keywords: Human rights. Participation. Representation.

INTRODUÇÃO
A democracia é um conceito que possui uma trajetória de
aproximadamente 2.500 anos. Apesar do longo período, sua
história está marcada por diversos períodos de interrupção e,
principalmente, por importantes revisões conceituais, de modo
que o significado da democracia na Antiguidade (especifica-
mente na Grécia, embora também existam importantes contri-
buições da civilização romana) e na modernidade possuem
dimensões bastante distintas.
Comumente, a democracia clássica é vinculada à noção
de participação direta, enquanto a democracia moderna é sin-
tetizada pela ideia de representação. O contexto político atual,
no entanto, põe em xeque a eficácia da representatividade pa-
ra garantir o governo das leis e assegurar o exercício da liber-
dade pelos indivíduos – cabendo questionar, inclusive, sobre o
significado desse conceito na atualidade.
A democracia deve ser pensada, contudo, a partir de um
viés não exclusivamente institucional, pois “parte significativa
da vida política” é constituída por “ações que escapam aos
contornos da legalidade formal”, como destaca Newton Big-
notto1. Tal destaque vale, sobretudo, para sociedades periféri-
cas, cuja trajetória institucional é de pouca estabilidade em
termos de regras de conduta e o avanço em termos de liberda-
des individuais ainda é tímido. A análise da liberdade política
– conceito que justifica, inclusive, a discussão sobre a demo-

1
BIGNOTTO, Newton. Problemas atuais da teoria republicana. In:
CARDOSO, Sérgio (org.). Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004, p. 17-43, p. 28.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
131
Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos

cracia – exige, portanto, que se leve em conta elementos não


institucionais.
No que tange à relação entre democracia e direitos hu-
manos, não há dúvida quanto ao fato de que os direitos associ-
ados à geração de direitos políticos (sintetizados nos direitos
de participar e de ser votado) garantem o acesso do cidadão ao
poder público. Tal movimento, por sua vez, é fundamental para
reforçar a institucionalização de direitos humanos, bem como
para a garantia dos mesmos. Ocorre que, para além disso, a
democracia deve ser vista, hoje, em si mesma, como um valor
universal, tendo em vista que é somente numa organização
política que asseguradora da liberdade que os seres humanos
podem se desenvolver plenamente.
Com a finalidade de contribuir para esse debate, o pre-
sente trabalho retoma, de forma breve, as duas principais di-
mensões da democracia institucional (direta e indireta) e tece
alguns comentários sobre as importantes relações construídas,
na contemporaneidade, entre o sistema democrático e os direi-
tos humanos.

A DEMOCRACIA ATENIENSE
Etimologicamente, o significado de democracia remete às
expressões gregas demos (povo) + kratein (governar), corres-
pondendo, portanto, à ideia de “governo do povo”. Historica-
mente, a democracia esteve associada à igualdade de partici-
pação, no sentido de que todos os cidadãos de um determina-
do Estado possuiriam o mesmo direito de participar de deci-
sões relativas a questões da coletividade, sendo que o voto de
cada um teria o mesmo peso. Tal lógica, embora com importan-
tes ressalvas, é válida para todos os períodos históricos em
que a democracia vigeu como regime político2.
A experiência democrática de Atenas, na Grécia, nos sé-
culos V e IV a.C., primeiro regime democrático de que se tem

2
OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento
Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
132
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

notícia, assegurava que todos os cidadãos atenienses pudes-


sem votar nos fóruns locais as questões relativas à cidade a
que pertenciam. A participação, nesse caso, era direta – e não
mediante representação-, havendo, contudo, significativas res-
trições ao conceito de cidadania, já que entre os cidadãos ate-
nienses não se incluíam, por exemplo, as mulheres e as crian-
ças. Logo, pessoa e cidadão não eram condições equivalentes,
sendo esta, segundo Outhwaite e Bottomore3, prerrogativa de
aproximadamente 6 mil pessoas apenas, entre uma população
de 30.000 a 40.000 habitantes.
A filósofa Marilena Chauí4 destaca que o surgimento da
própria política deve ser atribuído à civilização grega – e tam-
bém à romana -, pelo fato de que aí se produz a separação dos
elementos de poder da esfera privada com relação ao âmbito
das decisões políticas. Para a filósofa,
[...] o nascimento da política – a “invenção da política”,
como escreveu Moses Finley – foi um acontecimento que
distinguiu para sempre a Grécia e Roma em face dos
grandes impérios antigos. A política nasceu ou foi inven-
tada quando o poder público, por meio da invenção do di-
reito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da cria-
ção de instituições públicas de deliberação e decisão (is-
to é, as assembleias e os senados), foi separado de três
autoridades tradicionais: a do poder privado ou econômi-
co do chefe de família, a do chefe militar e a do chefe re-
ligioso (figuras que, nos impérios antigos estavam unifi-
cadas numa chefia única, a do rei ou imperador). A políti-
ca nasceu, portanto, quando a esfera privada da econo-
mia, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber
foram separadas e o poder político, na expressão de
Claude Lefort, foi desincorporado, isto é, deixou de iden-
tificar-se com o corpo místico do governante como pai,

3
Idem.
4
CHAUÍ, Marilena. Retorno do teológico-político. In: CARDOSO, Sérgio
(org.). Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004,
p. 93-133.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
133
Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos

comandante e sacerdote, representante humano de po-


deres divinos transcendentes. (grifo nosso).5

A fundamentação teórica da democracia clássica reside,


sobretudo, nas obras de Platão e Aristóteles. No entanto, ne-
nhum dos filósofos atenienses defendeu o regime democrático.
Platão, por entender que o povo não está suficientemente pre-
parado para tomar decisões políticas (tarefa que deve ser atri-
buída exclusivamente aos “reis filósofos”), e Aristóteles por
definir a democracia como a forma corrompida da politeia – ou
seja, a forma tirana do “governo dos muitos”.
Platão inaugura a discussão sobre o vínculo entre poder e
saber, que é materializada na concepção de organização social
adotada em Atenas. Para o filósofo, a política precisa estar
respaldada pelo conhecimento exato das coisas, razão pela
qual a cidade deveria dividir-se em três grupos distintos, que
integrariam a Callipolis – a “cidade bela”, por ele idealizada. O
primeiro grupo seria responsável por satisfazer as necessida-
des materiais da coletividade, tendo em vista que a “virtude”
de seus integrantes, para Platão, era trabalhar (materialmente)
e obedecer. A segunda classe seria responsável pela defesa do
território e por garantir a segurança interna, eis que caracteri-
zada pela disciplina, impetuosidade e coragem. O terceiro gru-
po, por sua vez, seria formado por filósofos, aptos a comandar
os demais, em decorrência do seu acúmulo de saber. A um fi-
lósofo-rei incumbiria, finalmente, selecionar os cidadãos de
acordo com suas características, destinando-os a uma das três
classes.
Aristóteles assume uma postura mais pragmática diante
da política grega, no sentido de que, ao invés de idealizar um
modelo de cidade, trabalha com os elementos práticos da rea-
lidade social ateniense – o que o leva, inclusive, a admitir a
escravidão, devido a contingências do momento histórico. Nem
mesmo a lei, que é o único “senhor dos cidadãos”, segundo o
filósofo grego – ou seja, a referência à qual todos devem obedi-

5
Idem, p. 113.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
134
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

ência – pode ser conceituada como construção artificial, tam-


pouco como um dado estritamente racional, uma vez que é a
“expressão política da ordem natural”, ilustrando, portanto, a
situação da cidade e a sua história, bem como a composição da
sociedade6.
Outro importante elemento da democracia grega é a in-
fluência dos sofistas, professores de retórica que ensinaram
aos gregos a arte do discurso, mediante técnicas de persua-
são. Diferentemente de Platão e Aristóteles, os sofistas parti-
am do pressuposto de que os indivíduos eram iguais, inclusive
na capacidade de julgar o bem comum, de modo que todos po-
deriam fazê-lo. Se todos estavam aptos a pensar e construir
opiniões sobre os assuntos coletivos, as decisões – a serem
tomadas pela maioria – dependeriam exclusivamente da capa-
cidade de persuasão de seus pares. Nesse sentido, a oratória e
a utilização de bons argumentos são capazes de conduzir à
vitória em um debate político cuja decisão depende do con-
vencimento da maioria. Não há, portanto, “um conhecimento
exato das coisas” a ser atingido, cabendo ao homem a argu-
mentação e a construção de motivações. A conhecida declara-
ção de Protágoras – um dos mais reconhecidos sofistas – de
que “o homem é a medida de todas as coisas” bem ilustra a
lógica segundo a qual a argumentação pode conduzir ao con-
vencimento da maioria e à tomada de decisões.
A organização política ateniense confere à democracia,
portanto, uma conotação participativa. O cidadão ateniense
livre é aquele que pode participar dos negócios da cidade. Daí
a explicação formulada por Benjamin Constant de que a “liber-
dade dos antigos” correspondia à “liberdade de participar co-
letivamente do governo e da soberania, era a liberdade de de-
cidir na praça pública os negócios da República: era a liberda-
de do homem público”7.

6
CHÂTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KUOCHNER, Evelyne.
História das Ideias Políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 2 ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
7
CARVALHO, José Murilo de. Entre a liberdade dos antigos e a dos mo-
dernos: a república no Brasil. In: CARVALHO, José Murilo de. Pontos e
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
135
Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos

Após seu surgimento, em Atenas, “la palabra ‘democra-


cia’ adquirió una mala reputación y ya en Roma desapareció
del uso”, como destaca Adam Przeworski8. Durante o longo
período medieval, o termo desapareceu do cenário político,
sendo retomado apenas na modernidade – onde, conforme
lembra o mesmo autor, “seguía teniendo una connotación ne-
gativa, de manera que tanto en Estados Unidos como en Fran-
cia el nuevo sistema se caracterizaba como ‘gobierno repre-
sentativo’ o ‘república’”. Somente na metade do século XIX é
que a democracia retoma uma conotação positiva.

A DEMOCRACIA MODERNA
Embora a modernidade tenha retomado, no cenário políti-
co, a ideia de democracia, deve-se ter cuidado ao compará-la
com o funcionamento político das sociedades antigas, por-
quanto estes guardam poucas semelhanças. Agora, há igual-
dade formal entre os indivíduos, mas a participação política
não mais ocorre se forma direta. A democracia moderna não
refuta a dimensão da participação política, mas a concretiza
mediante mecanismos de representação. Norberto Bobbio9, ao
analisar o surgimento da democracia moderna destaca a con-
cepção individualista de sociedade que a fundamenta – a qual
contraria diametralmente a “concepção orgânica, dominante
na idade antiga e na idade média, segundo a qual o todo pre-
cede as partes”. A sociedade política, com a modernidade,
passa a ser um “produto artificial da vontade dos indivíduos”.
Tal concepção fundamenta todas as teorias contratualistas
modernas, independente das importantes diferenças que estas
guardam entre si. A noção de que os indivíduos contratam a

bordados: escritos de história e política. Col. Humanitas. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 1999.
8
PRZEWORSKI, Adam. Qué esperar de la democracia: límites e posibili-
dades del autogobierno. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010, p.
37.
9
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do
jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.
22).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
136
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

formação da sociedade é comum à Hobbes, Locke e Rousseau


(ainda que os mesmos divirjam sobre as razões que conduzem
os sujeitos a fazê-lo, bem como sobre os efeitos que tal “con-
trato” repercute sobre o poder do Estado soberano após sua
constituição).
A modernidade implica, de acordo com Bobbio, um pro-
cesso de submissão do poder político ao direito (daí adviria,
inclusive, a ideia de “estado de direito”, cujo princípio inspira-
dor é justamente a submissão de qualquer poder – indepen-
dente da intensidade – à regulamentação e à decisão jurídica).
A vantagem do sistema democrático é, portanto, a regulação
do poder, impedindo – ou, ao menos, dificultando – a instaura-
ção de formas políticas arbitrárias. Para Bobbio, a democracia
pode ser compreendida como um conjunto de “regras do jogo”
para o exercício do poder político em um estado democrático.
Tal concepção fica evidente a partir da seguinte conclusão do
autor:
O governo das leis celebra hoje o próprio triunfo da de-
mocracia. E o que é a democracia se não um conjunto de
regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos
conflitos sem derramamento de sangue? e em que con-
siste o bom governo democrático se não, acima de tudo,
no rigoroso respeito a essas regras? Pessoalmente, não
tenho dúvidas sobre a resposta a essas questões. E exa-
tamente porque não tenho dúvidas, posso concluir tran-
quilamente que a democracia é o governo das leis por
excelência. 10

A ideia de governo do povo parece ser substituída pela


noção de governo das leis – cuja elaboração, é verdade, é feita
em nome do povo e, portanto, indiretamente, também conduz a
uma ideia de vontade geral. A mais importante ideia que per-
meia a democracia moderna é, contudo, a noção de representa-
ção, a qual tem como objetivo concretizar a liberdade moderna
– que não se confunde com a liberdade de participação grega.
De acordo com Carvalho, para Constant, a liberdade dos mo-
10
Idem, p. 171, grifo nosso.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
137
Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos

dernos não é a liberdade do homem público, mas a “liberdade


do homem privado, a liberdade dos direitos de ir e vir, de pro-
priedade, de opinião, de religião11“ – cuja concretização se via-
bilizaria simplesmente pela observância das leis e pela não
intervenção estatal sobre a esfera privada. É importante des-
tacar que o instituto da representação não possui apenas um
significado, sendo possível distinguir ao menos dois sentidos
relevantes para a presente análise.
De acordo com Dominique Leydet12, diferenciam-se, na
modernidade, duas formas de representação política, quais
sejam, a representação-eminente e a representação mandato.
Analisando principalmente a realidade política francesa, a au-
tora entende que a noção de representação eminente estaria
carregada de uma conotação republicana, uma vez que, nesse
paradigma, os representantes seriam representantes da nação,
como um todo. Isso repercute no fato de que a assembleia na-
cional não representa, em tese, qualquer tipo de interesse par-
ticular, ocorrendo, assim, uma ruptura entre a esfera política e
a sociedade civil – sendo a primeira caracterizada como lugar
do público, do interesse geral, e a segunda como espaço do
interesse particular. É como se a representação ocorresse,
aqui, pela inviabilidade material da participação direta de to-
dos os cidadãos. Leydet explica:
[...] o representante não representa os interesses, prefe-
rências ou convicções de seus comitentes, não recebe de-
les um mandato específico; ele os representa mais no
sentido de estar presente no lugar deles, para debater
em seu nome grandes questões que interessam ao con-
junto da nação porque todos não poderiam estar presen-
tes à Assembleia.13

11
CARVALHO, 1999, p. 83.
12
LEYDET, Dominique. Crise da representação: o modelo republicano em
questão. In: CARDOSO, Sérgio (org.). Retorno ao republicanismo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 67-92.
13
Idem, p. 71, grifo nosso.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
138
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

A ideia de representação-mandato, por outro lado, é pró-


pria da concepção liberal, que, em oposição à republicana,
aceita que os interesses particulares estejam representados na
esfera pública. Não aqui, portanto, uma dimensão de ruptura
das esferas pública e privada, mas sim uma ideia de continui-
dade. O constitucionalismo liberal somente concebe os repre-
sentantes como representantes da nação como um todo, no
momento fundador do Estado, ou seja, quando se estabelece
uma nova política constitucional. No “tempo ordinário da polí-
tica”, contudo, quando “as regras fundamentais” já foram
promulgadas, “os homens políticos não podem mais se vanglo-
riar do estatuto de representantes no sentido eminente”, de-
vendo “se satisfazer com o papel de delegados14“.
Cada um desses paradigmas de representação possui, de
acordo com a mesma autora, uma vantagem diferente. A re-
presentação-eminente, na qual o sujeito representado é a na-
ção como um todo, confere uma importante solidez à ideia de
autogoverno, ao passo que a representação-mandato constrói
uma conotação relevante de sociedade civil participante, cien-
te de seus direitos, etc. Por outro lado, a representação emi-
nente tem como déficit o fato de não deixar espaço para um
contrapoder legítimo, capaz de conter abusividades por parte
dos representantes, enquanto a representação-mandato possui
como desvantagem uma noção extremamente fraca da ideia de
autogoverno.
A noção de representação, base da democracia moderna,
sofre hoje, conforme Leydet, uma dupla crise, porquanto tanto
a representação-eminente quanto a representação-mandato.
Isso porque os sujeitos representados não se sentem nessa
condição, seja na figura de “povo”, seja no sentido de ter seus
interesses privados representados no parlamento. A “radicali-
zação da exigência de presença/de identidade”, característica
da “democracia contemporânea, conduz ao questionamento da

14
LEYDET, Dominique. Crise da representação: o modelo republicano em
questão. In: CARDOSO, Sérgio (org.). Retorno ao republicanismo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 75.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
139
Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos

capacidade dos parlamentos para assegurar adequadamente


essa segunda forma de representatividade15“.
Isso decorre do fato de que, contemporaneamente, o sen-
tido da representação democrática é, mais fortemente, o senti-
do de representação-mandato. A reivindicação constante por
presença das pessoas, dos representados, nos sistemas repre-
sentativos contém não só uma demanda por poder, mas tam-
bém – ou sobretudo – uma demanda por reconhecimento, re-
sultante de uma juridicização das lutas políticas (as lutas soci-
ais não visam mais somente espaços de poder, mas também
reconhecimento legal).
A crise da representação num duplo sentido, somada a
outros elementos disfuncionais do regime democrático indicam
a existência de importantes limitações, e exige uma maior re-
flexão sobre as razões pelas quais devemos apostar neste co-
mo sendo o melhor regime de governo.

DEMOCRACIA COMO REGIME DOS DIREITOS HUMANOS


O contexto de crise da representação – sintetizado na au-
sência de identificação entre representantes e representados –
somado a um contexto físico que inviabiliza a participação po-
lítica direta (considerando-se o tamanho das populações que
compõe os Estados atuais), leva ao questionamento sobre
quais as formas mais adequadas de organização do poder polí-
tico. A democracia, apesar dessas disfunções, parece ter se
tornado a forma de governo por excelência do mundo ociden-
tal, constituindo-se um elemento imprescindível para a institu-
cionalização e, principalmente, para a concretização de direi-
tos humanos.
O cenário político atual incorpora à democracia uma outra
dimensão – rompendo, num certo sentido, com a polarização
existente entre participação e representação ou, noutros ter-

15
LEYDET, Dominique. Crise da representação: o modelo republicano em
questão. In: CARDOSO, Sérgio (org.). Retorno ao republicanismo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 81.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
140
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

mos, entre democracia direta e indireta/formal. A contempora-


neidade atribui à democracia, para além de um viés instrumen-
tal, uma dimensão constitutiva, que a torna, por si só, um valor
relevante – ou, como aqui se pretende defender, um direito
humano.
Amartya Sen destaca que a democracia deve ser compre-
endida atualmente como um “valor universal” (o que não equi-
vale, nas palavras do autor, a um valor consensual), por ter se
estabelecido, ao longo do século XX, como a “única forma de
governo aceitável16“. A democracia, no entanto, para Sen, não
corresponde exclusivamente à forma de governo da maioria
(que o autor compara a uma simples operação mecânica), im-
plicando operações complexas que, para além do voto e do
respeito ao resultado das eleições, “implica la protección de
las libertades, el respeto a los derechos legales y la garantía de
la libre expresión y distribución de información y crítica17“.
Sen atribui à democracia três valores distintos: um valor
instrumental, um valor intrínseco e um valor construtivo. À
primeira dimensão o autor relaciona a expressão das deman-
das políticas no cenário institucional, ou seja, a participação
política em si, enquanto meio para a conquista de determinada
finalidade. Ao valor intrínseco da democracia, Sen vincula a
dimensão da liberdade humana, por entender que “la libertad
política se inscribe dentro de la libertad humana en general, y
el ejercicio de los derechos civiles y políticos es una parte cru-
cial de la vida de los individuos”, razão pela qual qualquer ten-
tativa “de impedir la participación en la vida política de la co-
munidad constituye una privación capital18“. Finalmente, o va-
lor construtivo atribuído à democracia diz respeito ao diálogo
entre os cidadãos, que contribui para a formação dos valores e
prioridades da sociedade (é a partir dessa interação, por

16
SEN, Amartya. La democracia como valor universal. Disponível em:
<http://www.istor.cide.edu/archivos/num_4/dossier1.pdf.>. Acesso em
6 abr 2013, p. 11.
17
Idem, p. 19.
18
Idem, p. 19-20
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
141
Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos

exemplo, que as sociedades determinam o que compreendem


como “necessidade” econômica, etc.).
Nesse sentido, Sen destaca que, em que pese a impor-
tância das instituições democráticas, elas não podem ser vis-
tas como dispositivos mecânicos para o desenvolvimento – de
modo que não são, portanto, suficientes para tanto. O uso das
instituições é condicionado pelos valores e prioridades, bem
como pelo aproveitamento, ou não, das oportunidades de arti-
culação e participação social19. À concretização da justiça soci-
al não são suficientes, portanto, apenas bons desenhos institu-
cionais, sendo imprescindível a efetivação dos direitos e o de-
senvolvimento de uma forte virtude cívica, nas palavras do ex-
presidente filipino Fidel Valdez Ramos, citado por Amartya
Sen20. O mesmo político afirmou, em 1988, referindo-se à dita-
dur ocorrida em seu País, que, em um regime ditatorial, as
pessoas não precisam pensar, não precisam escolher, tomar
decisões ou consentir com atos políticos: precisam apenas
obedecer. Na democracia, por outro lado, os indivíduos preci-
sam agir – razão pela qual o desafio mundial seria, mais do que
substituir regimes autoritários por regimes democráticos, “fa-
zer a democracia funcionar para as pessoas comuns”.
Outra questão pertinente refere-se ao fato de que, por ter
ressurgido, na modernidade, através da teoria política liberal –
com o intuito de pôr fim aos Estados absolutistas-, a democra-
cia é muitas vezes associada ao liberalismo econômico, enten-
dendo-se que estaria, portanto, na contramão de qualquer pro-
posta de igualdade econômica. Nesse sentido, frequentemente
liberdade e igualdade são apresentadas como valores opostos,
entre os quais se deve escolher um, em detrimento do outro. É
como se os Estados precisassem escolher entre investir em
políticas que ataquem a desigualdade econômica ou, por outro
lado, adotar uma postura de maior abstenção, deixando aos
indivíduos uma maior margem de liberdade. Evidentemente,

19
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira
Motta. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2000, p. 186.
20
Idem.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
142
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

tal discussão pressupõe um debate prévio sobre a própria con-


cepção de liberdade.
Nesse sentido, Sen adota uma concepção de liberdade
substantiva, vinculando tal conceito à ideia de capacidade
“para escolher a vida que se tem razão para valorizar21“. A
concretização desse tipo de liberdade exige, contudo, condi-
ções políticas, econômicas e sociais favoráveis e, nesse caso, a
não intervenção do Estado, por exemplo, seria totalmente insu-
ficiente para garanti-la. Assim, a conquista de da liberdade
individual é também uma questão coletiva e caminha, neces-
sariamente, ao lado da superação das necessidades econômi-
cas. Sen22 exemplifica que “nossa conceituação de necessida-
des econômicas depende crucialmente de discussões e deba-
tes públicos abertos, cuja garantia requer que se faça questão
da liberdade política e de direitos civis básicos”. Logo, somen-
te indivíduos livres podem opinar politicamente sobre a resolu-
ção de problemas coletivos (dentre os quais os econômicos), ao
mesmo tempo em que somente com a superação das desigual-
dades coletivas é que se pode formar indivíduos efetivamente
livres.
Em sentido semelhante, Luis Eduardo Hoyos articula a
ideia de direitos socioeconômicos e a ideia de liberdade nega-
tiva típica do liberalismo clássico (ou a “liberdade dos moder-
nos”, como afirmou Constant):
[...] la defensa de las llamadas libertades básicas, asocia-
das al concepto de derechos humanos fundamentales, no
puede oponerse a la defensa de la libertad negativa del
liberalismo clásico. Libertades básicas y derechos hu-
manos fundamentales –entre los cuales han de ser in-
cluidos los derechos socioeconómicos- amplían, extien-
den y no niegan los ideales –presuntamente formales-
del liberalismo clásico. La libertad individual –
presuntamente formal- del liberalismo clásico, asociada
conceptualmente a la idea de derechos humanos uni-
versales – también presuntamente formales- es una base
21
Idem, p. 94-95.
22
Idem, p. 175.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
143
Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos

normativa indispensable para pensar el sistema políti-


co democrático como adecuado a la búsqueda humana
del bienestar y del mayor florecimiento social.23

A democracia exige, portanto, não uma escolha entre li-


berdade e igualdade, e sim uma postura que não abdique de
nenhuma delas, compreendendo-as como elementos indissoci-
áveis. A liberdade dos sujeitos (bem supremo nas sociedades
modernas), frise-se, só pode ser efetivamente alcançada medi-
ante a superação, por exemplo, de condições degradantes de
pobreza.
Assim, a democracia emerge como o sistema político que
permite a concretização dos direitos humanos e, nesse sentido,
possui um valor em si mesma. Alain Touraine24 destaca o forte
vínculo existente entre a democracia e os direitos humanos.
Para o sociólogo francês, a solução da “crise social” atual de-
pende de um “caminho, que se estende do princípio dos direi-
tos fundamentais às instituições e às leis” e
[...] passa essencialmente pela democracia, cujas condi-
ções de existência são da mesma natureza – mas sob ou-
tra forma – do respeito prioritário aos direitos fundamen-
tais. Se não reconhecemos para cada indivíduo os direi-
tos de origem não sociais, já que eles são universais, não
podemos garantir nem o respeito às leis nem à democra-
cia.

Os direitos humanos – sejam eles civis, políticos, sociais


ou culturais – não podem ser exigidos em um Estado no qual –
utilizando-se novamente dos termos de Sen- as pessoas não
estejam em primeiro lugar e não tenham a possibilidade de
interferir, institucionalmente e socialmente, de forma geral,

23
HOYOS, Luis Eduardo. Dos conceptos de libertad, dos conceptos de
democracia. In: ARANGO, Rodolfo. (editor acad.) Filosofía de la demo-
cracia: fundamentos conceptuales. Bogotá: Siglo del Hombre Editores,
Universidad de los Andes, 2007.
24
TOURAINE, Alain. Após a crise: a decomposição da vida social e o sur-
gimento de atores não sociais. Trad. Francisco Morás. Petrópolis/RJ: Vo-
zes, 2011, p. 161.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
144
Ana Righi Cenci & Gilmar Antônio Bedin

nas decisões coletivas. A única organização política que pode,


se bem constituída, permitir que os sujeitos sejam livres para
escolher aquilo que desejam fazer, é a democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ideias apresentadas neste trabalho conduzem a uma
postura de defesa da democracia como valor universal. Não só
em termos jurídicos e políticos a democracia merece ser de-
fendida – mas, também, em função de seus valores sociais,
culturais e simbólicos.
Embora seja relevante reconhecer a necessidade de re-
pensar alguns elementos da racionalidade política democráti-
ca, tal fato não conduz à conclusão de que não se deve apostar
no bom funcionamento desse regime. A democracia é, sem dú-
vidas, o regime de governo que, na história da humanidade,
garantiu o exercício da liberdade de forma mais eficaz – ainda
que conviva com importantes contextos de desigualdade social,
sobretudo em países periféricos no cenário econômico global.
O potencial dos sistemas democráticos para se consolida-
rem como espaços de efetivação da liberdade humana merece
ser considerado. Isso não significa ignorar a dimensão institu-
cional característica dos Estados democráticos. Muito pelo
contrário, significa assumir uma postura que reforce essa di-
mensão, mas que a ela não se restrinja. Um governo que segue
“as regras do jogo”, por melhor que o faça, não consegue, ex-
clusivamente por esse fato, garantir que os sujeitos que dele
fazem parte sejam realmente livres.
A conquista da liberdade só é possível em lugares nos
quais a democracia é, por si só, um valor importante, e onde se
constitui como um aparelho apto a capacitar os sujeitos para
fazerem aquelas que consideram ser as melhores escolhas.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
O PROJETO VER-SUS E O
DEBATE À SAÚDE PÚBLICA

Andressa Carine Kretschmer


Estudante de Nutrição, Departamento de Ciências da Saúde do Centro de
Educação Superior Norte do Rio Grande do Sul da Universidade Federal de
Santa Maria – CESNORS/Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, in-
tegrante do Coletivo Social de Mudanças em Saúde – COSMUS.
Liamara Denise Ubessi
Psicóloga, Enfermeira, mestre em Educação nas Ciências pela Universida-
de Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, douto-
randa em Enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel, pro-
fessora na educação à distância em curso de Pós-Graduação Lato sensu
em Gestão de Organização Pública em Saúde, Departamento de Ciências
da Saúde do Centro de Educação Superior Norte do Rio Grande do Sul da
Universidade Federal de Santa Maria – CESNORS/Universidade Federal de
Santa Maria – UFSM, integrante do Coletivo Social de Mudanças em Saúde
– COSMUS.

Resumo
O Ministério da Saúde resolveu retomar as atividades do VER-SUS/BRASIL (Vivências
e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde do Brasil), no ano de 2012. O
programa visa promover o contato dos acadêmicos na realidade dos serviços da rede
pública de saúde. O presente relato refere-se à turma de estudantes que participou
do VER-SUS entre os dias 13/01 e 23/01/2013 na área programática da 6ª coordena-
doria de saúde, o grupo durante o decorrer dos dias passou a compreender o pro-
cesso de trabalho dentro dos municípios correspondentes a 6ª coordenadoria e das
unidades visitadas, houve assim a liberdade para realizar observações nos sistemas,
com o intuito de realizar reflexões do papel do estudante na realidade social, estimu-
lar discussões, práticas de educação permanente e interações entre educação, e
trabalho. A maior parte dos graduandos relatou a busca pelo projeto devido ao inte-
resse em utilizá-lo como subsídio para a formação acadêmica complementar no que
se refere a SUS, uma vez que poucos são os currículos que trabalham de maneira
satisfatória o tema. Conforme os alunos participantes, o SUS é um sistema que tem
muito a melhorar, no sentido de que na teoria o mesmo é ideal, mas que na prática
as coisas não funcionam tão bem. Quanto as dificuldades houve; cansaço para a
realização das atividades propostas, falta de contato com os hospitais e unidades de
saúde desde o início da vivência, quantidade insuficiente de profissionais do NASF
(Núcleo de Apoio a Saúde da Família). O grupo acredita que a vivência atingiu seus
objetivos, deu aos estudantes que não teriam suas trajetórias acadêmicas nenhum
contato com o SUS a oportunidade de conhecê-lo, além de ter confirmado e alguns e
despertado em outros o interesse de direcionar o seus estudos para a Saúde Coletiva.
Palavras-chave: Estágios, Formação Complementar, Sistema Único de Saúde.
146
Andressa Carine Kretschmer & Liamara Denise Ubessi

Abstract
The Ministry of Health decided to resume activities VER-SUS/BRASIL (Internship
Experiences and Reality of Health System of Brazil), in 2012. The program aims to
promote contact of academics in reality the services of public health. This report
refers to the class of students who attended the SEE-SUS between 13/01 and
23/01/2013 in the program area of 6th of the health, group during the course of the
days started to understand the process of work within municipalities corresponding
to 6th coordinating body and the units visited, there was therefore free to make
observations on the systems, in order to perform reflections of the role of student in
social reality, stimulating discussions, permanent education practices and interac-
tions between education and work. Most undergraduates reported on the search for
the project due to the interest in using it as a resource for academic supplement
regarding the SUS, since there are few curricula that work satisfactorily theme. As
students participating the NHS is a system that has a lot to improve, in the sense that
in theory it is ideal, but in practice things do not work so well. As there were difficul-
ties; fatigue to carry out the proposed activities, lack of contact with hospitals and
healthcare facilities since the beginning of the experience, insufficient professional
NASF (Center of Support for Family Health). The group believes that the experience
achieved its objectives, given to students who would not have their academic trajec-
tories no contact with the SUS the opportunity to know him, and have confirmed
and some and aroused the interest of other direct their studies to health.
Keywords: Internship, Complementary Training, Unified Health System.

INTRODUÇÃO
As atividades do VER-SUS Brasil(Vivências e Estágios na
Realidade do Sistema Único de Saúde do Brasil) foram retoma-
das no ano de 2012 pelo Ministério da Saúde. A finalidade do
programa é promover o contato e aproximar os acadêmicos da
realidade nos serviços da rede pública de saúde. Ao estimular
a participação dos alunos no programa, o Ministério da Saúde
pretende garantir uma experiência integrada dos diversos se-
tores do SUS, fugindo do isolamento de estágios restritos às
áreas vinculadas ao exercício de cada profissão, é uma iniciati-
va que aumenta os espaços de contato e provoca o crescimen-
to contínuo. A vivência visa provocar mudanças nas gradua-
ções, estimular um maior apoio à extensão. Ministério da Saú-
de (2004).
Este relato refere-se à experiência da turma de estudan-
tes que participou do VER-SUS entre os dias 13/01 e
23/01/2013 na área programática da 6ª coordenadoria do mu-
nicípio do Passo Fundo. A turma foi composta por 21 graduan-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
147
O projeto VER-SUS e o debate à saúde pública

dos(as) de 9 diferentes cursos de graduação(biomedicina, bio-


logia, nutrição, fonoaudiologia, psicologia, odontologia, medi-
cina, direito, enfermagem) em 4 diferentes Instituições de En-
sino Superior, Universidade Federal de Santa Maria(UFSM),
Universidade Luterana Brasileira(ULBRA), UPF(Universidade
de Passo Fundo e Faculdade Especializada na área da Saúde
do Rio Grande do Sul(FASURGS), todos durante a vivência fo-
ram abrigados no ginásio de esportes da Universidade de Pas-
so Fundo Campus São José.
Durante as vivências, o grupo procurou compreender os
processos de trabalho dentro dos municípios que correspon-
dem a 6ª coordenadoria de Saúde representada pela cidade
polo de Passo Fundo, e das unidades visitadas, e também, as
conjecturas políticas e econômicas que influenciam nos pro-
cessos de gestão. Assim, houve a liberdade para realizar as
observações a partir das vivências, tendo orientação pelos ei-
xos temáticos Gestão, Educação em Saúde, Controle Social e
Atenção Básica. A partir da vivência obtém-se embasamento
para participar da construção do mesmo e questionar sua efi-
ciência que para muitos futuramente fará parte do cotidiano.

OBJETIVOS
Realizar reflexões acerca do papel do estudante como
agente transformador da realidade social; Sensibilizar gesto-
res, trabalhadores e formadores da área da saúde, estimulando
discussões e práticas relativas à educação permanente e às
interações entre educação, trabalho e práticas sociais, utilizar
o projeto como subsídio para a formação acadêmica uma vez
que poucos são os currículos que trabalham de maneira satis-
fatória o ensino de saúde pública.

MÉTODO
O Projeto VER-SUS/BRASIL destina-se aos estudantes
universitários brasileiros dos cursos da área da saúde e demais
áreas que visam obter uma formação complementar em saúde

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
148
Andressa Carine Kretschmer & Liamara Denise Ubessi

coletiva. Realizam-se dias de vivência multiprofissional em um


sistema de saúde municipal ou estadual. Trata-se da interação
dos estudantes entre si, com gestores, trabalhadores da saúde,
usuários e instituições de Ensino Superior. Uma interação que
propicia o debate e o conhecimento sobre aspectos de gestão
do sistema, as estratégias de atenção, o exercício do controle
social e os processos de educação na saúde. Durante o período
da vivência, os estudantes têm suporte pedagógico e suas
despesas de alimentação, hospedagem e transporte custeadas
pelo Ministério da Saúde. Secretarias Municipais de Saúde,
Secretarias Estaduais de Saúde e Instituições de Ensino Supe-
rior são parceiras do projeto. Para participar da construção do
VER-SUS/BRASIL em determinada localidade, o estudante uni-
versitário deve procurar o seu diretório acadêmico ou o centro
acadêmico mais próximo. As executivas Nacionais de Estudan-
tes das profissões da área da saúde que compõem a Coorde-
nação Nacional do VER-SUS/BRASIL também estão à disposi-
ção para colaborar nesse processo descentralizado de constru-
ção. O VER-SUS realizado na região programática correspon-
dente a 6a coordenadoria, foi organizado pelos alunos integran-
tes do coletivo COESA(Coletivo dos Estudantes pela Saúde).
As imersões pelas quais o grupo passou incluíram rodas
de conversa com gestores e profissionais locais; visitas a di-
versas unidades de saúde da região; debate e atividades de
Práticas Integrativas e Complementares à Saúde; Visita Domi-
ciliar para cadastramento de famílias cobertas pela Saúde da
Família; Roda de Terapia Comunitária; Rede de Vigilância em
saúde.

RESULTADOS
Os resultados se reportaram à desinibição do grupo para
questionamentos, posicionamentos, e opiniões, impactou-se
para a real importância da observação e anotação daquilo que
foi representado na vivencia para assim compor o relato. Con-
forme os alunos participantes o SUS é um sistema que tem
muito para melhorar, os sentidos atribuídos a ele e que per-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
149
O projeto VER-SUS e o debate à saúde pública

meiam a população e muitos dos profissionais de saúde atre-


lam-se para a ideia de que na teoria este sistema é o ideal, mas
que na prática as coisas não funcionam tão bem quanto deve-
riam funcionar, um sistema enfraquecido, que não possui re-
cursos suficientes para atender toda a demanda da população.
Quanto às dificuldades houve; Cansaço para a realização das
atividades propostas; Identificação precária: Crachá e Trans-
porte; Tempo insuficiente para apresentação de uma vivência
de 10 dias; O modo como a pobreza é vista pelos atores do sis-
tema; A ineficiência da intersetorialidade; Informações inade-
quadas do papel dos Apoiadores e Facilitadores; Falta de in-
tercâmbio com os Hospitais desde o início do VER-SUS; Falta
de tempo para articulação junto a rede privada, Estrutura La-
boratorial; Referência e Contra Referência; Quantidade insufi-
ciente de Profissionais do NASF(Núcleo de apoia a saúde da
família); Infraestrutura; Papel regulador da população e do ges-
tor municipal em relação as Organizações Sociais; Precarização
do Trabalho. Potencialidades indicadas pelos versusianos.
O grupo acredita que a vivência atingiu seus objetivos.
Deu a estudantes que não teriam em suas trajetórias acadêmi-
cas nenhum contato com uma formação voltada para o SUS a
oportunidade de conhecerem, interessarem-se e engajarem-se
na luta em defesa de uma Saúde Pública de qualidade para
todos. Além disso, confirmou em alguns (as) e despertou em
outros (as) o interesse em direcionar estudos e profissão para o
campo da Saúde Coletiva. Por fim, deve-se citar ainda quebrou
preconceitos frente à Saúde Pública.

DISCUSSÃO
O Sistema Único de Saúde, apoiado no princípio geral de
que saúde é direito do cidadão e dever do Estado, foi instituído
pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado por leis
ordinárias de 1990 (BARROS, 1995).
Além desse aparato jurídico-institucional, indispensável à
sua concretização e à direção única do sistema pelo Ministério
da Saúde, concretamente, o SUS corresponde a uma organiza-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
150
Andressa Carine Kretschmer & Liamara Denise Ubessi

ção dos serviços de saúde de forma hierarquizada, de acordo


com os graus de complexidade, pressupondo uma destinação
constante e sistemática de verbas federais, estaduais e muni-
cipais, definidas por leis. Pretende-se que todo o atendimento
prestado aos usuários seja de caráter universal, gratuito, de
qualidade, resolutivo e sob o controle da população. Na pers-
pectiva do Sistema Único de Saúde, os serviços privados de
atendimento à saúde teriam um caráter apenas complementar.
(L’ABBATE,S et al. 1995).
A maior parte dos graduandos relatou que buscou parti-
cipar do projeto, para utiliza-lo como subsídio para a formação
acadêmica complementar no que diz a respeito do SUS, uma
vez que a maior parte dos currículos não contemplava de ma-
neira satisfatória a abordagem do eixo saúde coletiva.
Os projetos que tem a finalidade de complementar a for-
mação através de estágios de vivência não são recentes, nem
mesmo exclusivos da área da saúde, o Ver-Sus possui influên-
cia de outros estágios realizados anteriormente como exemplo
pode-se citar os estágios de vivência realizados nos assenta-
mentos rurais que foram a princípio organizados pela
FEAB(Federação dos Estudantes de Agronomia) no final dos
anos 80, (Ceccim & Bilibio, 2004).
O projeto Ver-Sus surgiu no Rio Grande do Sul, em julho
de 2002, agregando os cursos da área da saúde, mantendo a
característica da interdisciplinaridade, em 2003 houve o apoio
do Ministério da Saúde e do movimento estudantil e planejou-
se a realização do projeto em todos os estados brasileiros com
a implantação do projeto VER–SUS/BRASIL.
Os objetivos propostos do Ver-Sus, tem por base as mu-
danças sociais e produzir reflexões na mudança dos currículos
dos futuros profissionais da saúde e das formas de ensino-
aprendizagem, o projeto apresenta-se como possibilidade de
ampliar a formação por favorecer a unidade do que foi apreen-
dido em sala de aula com a experimentação do cotidiano de
trabalho no SUS.
O grande desafio dos estudantes da área da saúde que
visam atuar no SUS, tem sido os currículos das universidades
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
151
O projeto VER-SUS e o debate à saúde pública

elaborados pelos docentes que instrumentalizam a técnica, a


ciência e a política. Experiências como a do VER-SUS podem
desencadear o processo de mudança de mentalidade nos ato-
res sociais das universidades, com consequente mudança de
atitude profissional. CANONICO, (2008).
A formação de profissionais competentes para atuar no
SUS implica em um processo de revisão paradigmática, pauta-
do no compromisso com a saúde enquanto direito de todos e
dever do Estado. As universidades com cursos na área da saú-
de devem adequar a realidade a prática do ensino, poucos são
os currículos que trabalham de maneira satisfatória o ensino
de saúde pública.
A vivência é uma alternativa viável para contribuir com o
processo de formação, mesmo não sendo a única que incorpora
questões em torno do eixo SUS, a mesma aproxima o acadêmi-
co com a realidade da saúde da região abordada, para que
quando profissionais formados possam compreendê-lo e, as-
sim, colaborar para seu desenvolvimento. É preciso ter em
mente que a formação na área da saúde é, antes de tudo, um
instrumento para transformações no setor saúde.
As vivências que foram realizadas, antes do período de
abandono do projeto VER-SUS, principalmente as ocorridas em
2002 (Rio Grande do Sul), 2004/2005 (nacional) e 2008 (Espírito
Santo), resultaram na publicação de materiais nas mais distin-
tas áreas. Nestas publicações discute-se a mudança de postu-
ras, olhares, concepções e práticas sobre o SUS.(Mendes et al.,
2008; Riquinho & Capoane, 2002)
Em cada encontro, foram apresentados e discutidos os
conteúdos por professores e profissionais da área da saúde
que militam no SUS e que se engajaram na construção do Pro-
jeto VER–SUS em outros lugares do país, por exemplo; gesto-
res e trabalhadores da saúde e da assistência social. Durante
as discussões que ocorriam a noite havia a exposição dos pon-
tos de vista dos participantes, após realizava-se a elaboração
do relatório do dia.
Entre os versusianos participantes desta edição do proje-
to VER-SUS realizado na 6ª coordenadoria de saúde em 2013,
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
152
Andressa Carine Kretschmer & Liamara Denise Ubessi

foi unânime constatação de que houve mais sentido na forma-


ção acadêmica, novas reuniões do grupo estão sendo progra-
madas, na busca de problematizar e manter a continuação do
projeto para outros alunos.

CONCLUSÃO
Houve a desmistificação de que o SUS é apenas um sis-
tema de baixa qualidade, ocorreu a possibilidade de diferentes
olhares partindo do ponto da multidisciplinariedade, a experi-
ência foi uma troca de saberes entre os versusianos, e também
com os profissionais, gerando um olhar mais amplo das políti-
cas de saúde. Considerando alguns aspectos inerentes à orga-
nização, aponta-se: logística, informação, intercomunicação e
informática. Sugere-se uma melhor distribuição do tempo de
forma a possibilitar uma execução mais eficiente do projeto,
uma divulgação mais eficaz do VER-SUS nos locais de ensino e
o site da OTICS mais objetivo, prático e acessível, os alunos
participantes relatam seu interesse no programa devido carên-
cia existente no ensino de saúde pública e coletiva nos seus
respectivos programas pedagógicos de graduação, muitos dos
participantes obtiveram grande interesse pela área manifes-
tando interesse em buscar posteriormente a graduação uma
formação complementar em saúde coletiva.

REFERÊNCIAS
CANONICO, Rhavana Pilz; BRETAS, Ana Cristina Passarella. Signifi-
cado do Programa Vivência e Estágios na Realidade do Sistema Úni-
co de Saúde para formação profissional na área de saúde. Acta paul.
enferm., São Paulo, v. 21, n. 2, 2008 . A
Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educa-
ção na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde.
(2004b). Política de educação e desenvolvimento para o SUS: cami-
nhos para a Educação Permanente em saúde: pólos de Educação
Permanente em saúde. Brasília, DF: Autor.
MENDES, Flavio Martins de Souza et al . Ver-Sus: relato de vivências
na formação de Psicologia. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 32, n. 1,

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
153
O projeto VER-SUS e o debate à saúde pública

2012 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=


sciarttext&pid=S1414-98932012000100013&lng=en&nrm=iso>.
Access on 30 Jan. 2013.
http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932012000100013.
RIQUINHO, D. L., & Capoane, D. S. (2002). VER-SUS/RS: um olhar de
estudantes universitárias sobre o Sistema Único de Saúde no Rio
Grande do Sul. Boletim da Saúde, 16(1), 147-152.
CECCIM, R. B., & Bilibio, L. F. S. (2004). Articulação com o segmento
estudantil da área de saúde: uma estratégia de inovação na forma-
ção de recursos humanos para o SUS. In Ministério da Saúde
(Org.), VER-SUS/BRASIL: Cadernos de Textos (pp. 4-19). Brasília, DF:
Gráfica Universitária.
BARROS, E. Política de Saúde: a complexa tarefa de enxergar a mu-
dança onde tudo parece permanência. Curitiba,1995. [Texto prepa-
rado para o Iº Congresso Brasileiro de Ciências Sociais em Saúde.]
L’ABBATE,S. Agentes de trabalho/Sujeitos? Repensando a capacita-
ção de Recursos Humanos em Saúde Coletiva. In: CANESQUI.
A.M.(0rg.) Dilemas e desafios das Ciências Sociais na Saúde Coleti-
va. São Paulo: Hucitec,1995 a, p. 141/61.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO DOS
IDOSOS À SAUDE NO B RASIL ATRAVÉS DA
ESFERA PRIVADA : OS PLANOS DE SAÚDE
COMO ADIMPLEMENTO AO ARTIGO 12
DO P ACTO I NTERNACIONAL SOBRE OS
DIREITOS ECONOMICOS , SOCIAIS E
CULTURAIS DE 1966

Angela Venturini Benedetti


Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria
(angelavbenedetti@gmail.com)
Geanluca Lorenzon
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria
(gean.lorenzon@gmail.com)
Isabel Christine Silva De Gregori
Professora Doutora do Curso de Graduação e Mestrado de Direito da Uni-
versidade Federal de Santa Maria (isabelcsdg@gmail.com)

Resumo
O idoso, principal cidadão no atual cenário econômico, e a saúde, direito garantido
pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e pela legisla-
ção pátria, devem ser aliados no plano material, frente à uma perspectiva de equilí-
brio contratual, no que se refere aos planos de saúde. A diminuição ou perda de
determinadas aptidões físicas ou intelectuais, necessidade e catividade em relação a
determinados produtos ou serviços, coloca o consumidor idoso em uma posição
contratualmente mais vulnerável e este deve ser protegido de forma especial pelo
Poder Público. O presente trabalho vislumbra as normas aplicáveis, e analisa se a
legislação e resoluções normativas conseguem regular possíveis situações contratu-
almente abusivas, que são reforçadas pela vulnerabilidade potencializada do idoso.
Palavras-chave: direito à saúde; hipervulnerabilidade; idosos; planos de saúde;

Abstract
The elderly, main citizen in the current economic scenario, and health, right guaran-
teed by the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights and by
national legislation shall be allied in the material plan towards a perspective of con-
tractual balance, in which concerns health care insurances. A decrease or loss of
certain physical or intellectual abilities, necessity and captivity in relation to certain
products or services, puts the elder consumer in a contractually more vulnerable
156
Angela Venturini Benedetti; Geanluca Lorenzon & Isabel C. Silva De Gregori

position, and they shall be specially protected by the State. This essay aims to ana-
lyse if law and normative resolutions have been able to regulate possible abusive
contractual situations which are reinforced by the hypervulnerability of the elderly.
Keywords: elderly; health care insurances; hypervulnerability; right to health;

INTRODUÇÃO
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais estabelece que seus estados-membros reconhecem o
direito de toda a pessoa desfrutar o mais elevado nível possível
de saúde física e mental, devendo ser consideradas as pré-
condições biológicas e socioeconômicas dos indivíduos. Para o
adimplemento da referida norma, devem ser considerados qua-
tro pontos: a disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e
qualidade, pontos os quais vão ao encontro direto do trabalho
desenvolvido pela ANS e pelo Congresso Nacional.
Devido às vulnerabilidades e transformações decorrentes
do processo de envelhecimento, o crescimento populacional
dos idosos no Brasil, a deficiência do Sistema Único de Saúde,
muitos idosos recorrem a planos privados de assistência à sa-
úde. A diminuição ou perda de determinadas aptidões físicas
ou intelectuais e necessidade e catividade em relação a deter-
minados produtos ou serviços, coloca o consumidor idoso em
uma relação de dependência em relação aos seus fornecedo-
res, logo, esse necessita de maior apoio e assistência do Poder
Público, para garantir o conhecimento de seus direitos, evitar
abusividades contratuais, adimplir efetivamente do que foi
contratado e efetivar sua cidadania.

O PACTO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS DE


1966
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)1
trouxe ao ambiente jurídico internacional um novo paradigma
de proteção individual entre os países envolvidos. A concreti-
1
UN. Declaração Universal dos Direitos Humanos, The Universal Decla-
ration of Human Rights. Paris, 1948. Disponível em: <http://www.un.
org/en/documents/udhr/>. Acesso em: 11 mar. 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
157
A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil...

zação através das Covenants vinculantes que seguiram, ICCPR


(Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos)2 e ICESCR
(Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Cultu-
rais)3, trouxeram determinadas obrigações aos Estados, e tam-
bém resultantes conflitos em relação a suas respectivas apli-
cações.
Especificamente, o artigo 12 do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (doravante denomina-
do ‘ICESCR’)4 estabeleceu que “Os Estados Partes do presente
Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais
elevado nível possível de saúde física e mental.”
De acordo com o Committee on Economic, Social and Cul-
tural Rights (doravante simplesmente denominado ‘Conselho’),
estabelecido sob a exegese do ICESCR, expressou através de
seu General Comment on Article 12,5 emitido em 11 de Agosto
de 2000, a noção do referido “mais elevado nível de saúde”,
mencionado no artigo 12.1, o qual, segundo o Conselho, deve
considerar ambas as pré-condições biológicas e socioe
Em um estado em que o setor privado cumpre essencial
papel para a saúde dos indivíduos, em que se ache considera-
do uma necessidade de small budget6, necessariamente se tem
uma modificação estrita no papel do governo, resultando em
uma noção diferente da aplicação do referido direito à saúde.
De fato, consoante se denota das crises financeiras atu-
ais, o excessivo papel do estado na economia resultou em con-
sideráveis modificações nas condições de vida de seus habi-

2
Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992.
3
Decreto n° 591, de 6 de julho de 1992.
4
Em vigor no Brasil desde 24 de abril de 1992.
5
COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS. Subs-
tantive issues arising in the implementation of the International Cove-
nant on Economic, Social and Cultural Rights, General Comment No. 14
(2000). Geneva: PUBLICAÇÃO?, 2000.
6
Salientam-se as limitações orçamentarias dos países Europeus no atual
quadro mundial, o que leva a um aumento da importância do setor pri-
vado, resultando na diminuição de preços e maior acessibilidade.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
158
Angela Venturini Benedetti; Geanluca Lorenzon & Isabel C. Silva De Gregori

tantes7, passo em que um Estado menor passou a ser preferível


como prevenção à manipulação do mercado financeiro, feita
pelos governos, motivados tradicionalmente por valores sociais.
Através de seu dever estabelecido pelo expressamente
pelo ICESCR, o Conselho apontou que para o adimplemento do
artigo 12, quatro pontos devem ser considerados, os quais ser-
vem como orientação na aplicação, quais sejam de disponibili-
dade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade.
Especificamente, o ponto de acessibilidade engloba não-
discriminação, acessibilidade física, econômica e informacio-
nal. Estes, consoante será abordado, vão ao encontro direto do
trabalho desenvolvido pela ANS e pelo Congresso Nacional,
com relação ao desempenho do setor privado.
A saber, o Judiciário brasileiro tem exercido um impor-
tante papel no que se refere ao fator de acessibilidade de in-
formação, apontado pelo Conselho. De fato, a interpretação da
Covenant inclui o direito a buscar, receber e estar ciente de in-
formações e idéias concernentes a assuntos de saúde8. Soma-se
a isso o importante papel do princípio da informação, forjado
no Código de Defesa do Consumidor de 1990.
No que concerne a natureza das obrigações, tem-se que o
Estados-partes devem, inter alia, dar reconhecimento suficien-
te ao direito à saúde em suas políticas nacionais e seus siste-
mas legais, o que parece ser concretizado no Brasil, consoante
expresso no art. 183 da Constituição Federal.

7
O Reino Unido parece ser um exemplo interessante, passo em que o
National Health Service (NHS) está sofrendo consideráveis cortes orça-
mentários pela Câmara dos Comuns (House of Commons). Os anos em
que o partido trabalhista britânico (Labour Party) ficou à frente do cabi-
net, parece ter destoado da estabilidade que o Governo Thatcher deu à
saúde no Reino Unido.
8
Ipsis litteris: “[A]ccessibility includes the right to seek, receive and im-
part information and ideas concerning health issues. However, accessibil-
ity of information should not impair the right to have personal health da-
ta treated with confidentiality.” Ademais, o referido General Comment
menciona ao final, expressamente, que o mesmo “gives particular em-
phasis to access to information because of the special importance of this
issue in relation to health”.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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159
A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil...

Assim sendo, uma vez que o setor privado passa a ter


fundamental importância para a concretização do direito à sa-
úde, e o consequente adimplemento do Brasil à ICESCR, pas-
sa-se a analisar as medidas adotadas pelas instituições oficiais
brasileiras.

O DIREITO E GARANTIA À SAÚDE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A


HIPERVULNERABILIDADE DOS IDOSOS.
Direito fundamental à pessoa humana presente no artigo
5º da Constituição Federal de 1988, o direito a saúde revela-se
obrigação do Estado, e a promoção desta deve ocorrer, em to-
dos os seus níveis, pouco importando a condição econômico-
financeira do cidadão.
Outrossim, no que se refere à saúde, o Estatuto do Idoso
tem a intenção de garantir o cuidado e a atenção integral pelo
Sistema Único de Saúde – SUS -, ou seja, a função do Estado
brasileiro tem um caráter prestativo, no sentido de agir para se
evitar e combater enfermidades9, como se vê no art. 15, caput
do Estatuto do Idoso que garante o acesso universal e igualitá-
rio ao Sistema Único de Saúde “para a prevenção, promoção,
proteção e recuperação da saúde”.
Contudo, muitos ainda não têm acesso integral aos servi-
ços de saúde, e o atendimento pelo Sistema Único de Saúde
mostra-se deficiente, pois há um número insuficiente de agen-
tes domiciliares voltados exclusivamente para idosos, de equi-
pes multiprofissionais e interdisciplinares com conhecimento
especializado no envelhecimento e saúde da pessoa idosa e,
principalmente, de leitos hospitalares10.

9
PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. Cuidado e Vulnera-
bilidade. Rio de Janeiro: Atlas, 2009.
10
FALTA de leitos e de estrutura de atendimento agravam crise na rede
pública. Conselho Federal de Medicina, Brasília, 24 de outubro de 2011.
Disponível em:
<http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article
&id=22337:falta-de-leitos-e-de-estrutura-de-atendimento-agravam-
crise-na-rede-publica&catid=3>. Acesso em: 9 abr. 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
160
Angela Venturini Benedetti; Geanluca Lorenzon & Isabel C. Silva De Gregori

Essa deficiência leva os idosos a recorrerem, muitas ve-


zes, a planos privados de saúde e, considerando às debilida-
des naturais que a idade causa ao organismo do ser humano,
os mesmos possuem maiores necessidades de utilização dos
serviços prestados por esses entes privados, sendo que do
uso, percebem-se várias abusividades contratuais, não sendo
exclusividade da presente espécie.
Inicialmente, faz-se necessário definir o conceito de plano
de saúde, a fim de que seja possível avaliar suas consequên-
cias e implicações no presente plano. Para o espectro legal,
insere-se como o negócio jurídico derivado de qualquer contra-
to que envolva a prestação de serviços de saúde, ou a cobertu-
ra dos custos desses serviços, através do qual se paga uma
mensalidade.
Ademais, confirma-se a aplicação do Código de Defesa do
Consumidor aos contratos de plano de saúde, com a Súmula
469 editada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no ano de 201011.
A promoção da defesa do consumidor pelo Estado tem
por fim coibir abusos e/ou excessos praticados pelos fornece-
dores contra os consumidores em decorrência do desequilíbrio
da relação consumerista. Logo, o meio jurídico tem consolida-
do uma interpretação uníssona de que o idoso é, por suas ca-
racterísticas frente ao cenário atual, um consumidor vulnerável.
Devido a essas características, mostrou-se de interesse
ao ordenamento jurídico oferecer a esse grupo uma tutela es-
pecial, concretizando os princípios norteadores da relação de
consumo estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor
(CDC).
Apesar de não haver menção expressa sobre os idosos no
CDC, o art. 39, IV refere-se a “fraqueza” relacionada à idade,
de forma semelhante ao que ocorre ao mencionar as crianças
como um consumidor especial no art. 37. A jurisprudência bra-
sileira já identificou que a igualdade teórica de direitos e de

11
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 469. Aplica-se o Código
de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde. In: ______.
Súmulas. Brasília: RSTJ vol. 220 p. 727.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
161
A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil...

chances, quando consumidores “jovens” ou consumidores


“idosos”, não estaria sendo realmente alcançada na contrata-
ção e na execução de contratos de consumo, surge assim a
preocupação em proteger de forma especial este grupo ‘hiper-
vulnerável” ou de “vulnerabilidade potencializada”12.
O consumidor idoso, considerado para todos os efeitos le-
gais qualquer pessoa com 60 anos ou mais (art. 1° do Estatuto do
Idoso), possui vulnerabilidade fática e técnica potencializada,
pois se supõe leigo frente a um sistema de fornecimento de ser-
viços, não compreendendo a complexidade desses contratos
cativos de longa duração. Para Bruno Miragem, a vulnerabilida-
de do consumidor idoso demonstra-se a partir de dois aspectos
principais: a diminuição ou perda de determinadas aptidões físi-
cas ou intelectuais; e a necessidade e catividade em relação a
determinados produtos ou serviços que o coloca em uma relação
de dependência em relação aos seus fornecedores.
Assim, conclui-se que a hipervulnerabilidade revela-se
um critério jurídico a ser utilizado no exame das relações de
consumo dos idosos no compromisso de tutela da dignidade
da pessoa humana, conforme a Constituição Federal. Ante a
fragilidade pressuposta em razão da idade, considera-se o ido-
so, se comparado às demais pessoas, ainda mais vulnerável
porque não se mostra raro este ser atingido por práticas co-
merciais abusivas, que, em muitos casos, causam lesões que
superam a esfera patrimonial.
Por fim, conforme o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça13, o Código de Defesa do Consumidor protege todos os
consumidores, contudo não é insensível à realidade da vida e
do mercado. Logo, não se homogeniza o tratamento e desco-

12
MARQUES, Claudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a
necessidade de “ações afirmativas” em contratos de planos de saúde e
de planos funerários frente ao consumidor idoso. In: Constituição, direi-
tos fundamentais e direito privado. Organização de Ingo Sarlet. Porto
Alegre: Livraria do advogado, 2003, p. 194.
13
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 586.316/MG,
da 4ª Turma do Supremo Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 4 de junho de
2009. Diário da Justiça Eletrônico: 20 ago. 2009.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
162
Angela Venturini Benedetti; Geanluca Lorenzon & Isabel C. Silva De Gregori

nhece-se que existem consumidores que possuem uma vulne-


rabilidade potencializada, como as crianças, os idosos, os por-
tadores de deficiência e os analfabetos, que necessitam de
maior apoio e assistência para garantir o conhecimento e a efe-
tivação de seus direitos.

PLANOS DE SAÚDE E O PODER REGULADOR DA ANS


Historicamente, os planos de saúde surgiram na década
de 60. Entretanto, somente no início dos anos 80 houve sua
consolidação no mercado como alternativa de assistência a
saúde, junto com uma tendência mundial econômica, que pos-
sibilitou que países que tinham sua economia estagnada pelo
excesso de regulação do mercado pudessem criar empregos e
gerar renda.
O desenvolvimento desse setor infelizmente não foi
acompanhado pelo Poder Público brasileiro e, sem fiscalização
no âmbito contratual, as empresas consolidadas previamente
atuavam “livremente” (dentro de um Estado altamente buro-
crático e economicamente restritivo), impondo uma série de
restrições e aumentos injustificáveis aos consumidores, sem
que houvesse uma verdade concorrência.
Nem a Constituição Federal de 1988, nem o Código de
Defesa do Consumidor de 1991 conseguiram frear os abusos
cometidos, o que gerou uma enorme quantidade de ações judi-
ciais questionando tais excessos contratuais. Antes da Lei no
9.656/98, não havia cobertura mínima obrigatória definida e
tratamentos de alto custo, doenças crônico-degenerativas, do-
enças infecciosas, dentre outras, eram excluídas dos contratos
pelas operadoras.
Contudo, embora tenha gerado grandes esperanças, a Lei
dos Planos de Saúde avançou muito pouco na proteção dos
consumidores, sendo que as frequentes críticas das entidades
de defesa dos usuários e dos profissionais de saúde não foram
ouvidas e manteve-se o desequilíbrio contratual.
Atualmente, o órgão normatizador, regulador, controlador
e fiscalizador de planos privados de saúde é a Agência Nacio-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
163
A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil...

nal de Saúde Suplementar. Prerrogativa essencial atribuída às


Agências Reguladoras para o atendimento de seus fins regula-
tórios, pois lhes garantem autonomia para disciplinar as ações
de seu mercado regulado de maneira ágil e eficiente, sem a
necessidade de aguardar a normatização legislativa. Desta
forma, a ANS adotou diversas Resoluções Normativas, em vista
da regulação do mercado de saúde suplementar, consta garan-
tir, a população coberta por planos de saúde, cobertura assis-
tencial integral e regular as condições de acesso.

COBERTURA ASSISTENCIAL MÍNIMA OBRIGATÓRIA


Desde 1998, a Agência Nacional de Saúde Suplementar
define um “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde”14 atua-
lizado que visa garantir e tornar pública a cobertura assisten-
cial mínima obrigatória. Este rol, revisado a cada dois anos,
constitui a referência básica para cobertura assistencial nos
planos privados de assistência à saúde, contratados a partir de
1º de janeiro de 1999. Em 2011 houve nova atualização que en-
trou em vigor a partir do dia 01/01/2012 e incluiu a cobertura
para cerca de 60 novos procedimentos15.
As revisões promovem a discussão técnica sobre o rol e
conta com a participação de órgãos de defesa do consumidor,
representantes de operadoras e de conselhos profissionais e
sociedade em geral. Em 2011, por exemplo, 70% das contribui-
ções foram feitas diretamente pelos consumidores16.

14
O primeiro rol de procedimentos estabelecido pela ANS foi o definido
pela Resolução de Conselho de Saúde Suplementar - Consu 10/98, atua-
lizado em 2001 pela Resolução de Diretoria Colegiada – RDC 67/2001, e
novamente revisto nos anos de 2004, 2008, 2010 e 2011, pelas Resolu-
ções Normativas 82, 167, 211 e 262, respectivamente.
15
ANS. Resolução Normativa nº 262. Rio de Janeiro, 1 de Agosto de 2011.
16
ROL de Procedimentos e Eventos em Saúde: o que seu plano deve co-
brir. Agência Nacional de Saúde Suplementar, Rio de Janeiro. Disponí-
vel em: <http://www.ans.gov.br//index.php/aans/central-de-atendimen
to/index.php/750-central-de-atendimento-o-que-o-seu-plano-deve-
cobrir>. Acesso em: 7 abr. 2013.

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Ademais, em 27 de fevereiro de 2013, houve um processo


de revisão do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, reali-
zando-se a primeira reunião do Grupo Técnico a fim de debater
o tema e formular uma proposta de Resolução Normativa, que
será submetida a consulta pública ainda no ano de 201317.

PRAZOS PARA SERVIÇOS E PROCEDIMENTOS TRATADOS


Embora, a ANS tenha publicado, no dia 20 de junho de
2011, uma resolução normativa18 que garante ao beneficiário de
convênio médico o atendimento com prazos máximos para o
acesso a serviços e procedimentos contratados que deviam
variar entre três e vinte dias úteis no máximo, dependendo da
especialidade e de recomendações médicas, diversas operado-
ras de planos de saúde não vem seguindo essas normas, ou
burlando-a através do oferecimento de médicos disponíveis a
uma distância absurda.
Devido à excessiva dificuldade do beneficiário ao adim-
plemento eficaz do contratado, no dia 10 de julho de 2012, a
Agência Nacional de Saúde Suplementar, suspendeu a venda
de 268 planos de saúde de 37 operadoras, as quais tiveram
três meses para se adequarem aos prazos, que variam confor-
me a especialidade médica19. Novamente, em 11 de janeiro de
2013, a ANS puniu 225 planos de saúde de 28 operadoras por
descumprimento das regras de atendimento aos usuários. Es-

17
ANS realiza primeira reunião do GT do Rol de Procedimentos e Eventos
em Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar, Rio de Janeiro, 28
de fevereiro de 2013. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/a-
ans/sala-de-noticias-ans/participacao-da-sociedade/1942-ans-realiza-
primeira-reuniao-do-gt-do-rol-de-procedimentos-e-eventos-em-saude>.
Acesso em: 7 abr. 2013.
18
ANS. Resolução Normativa nº 259. Rio de Janeiro, 11 de Junho de 2011.
19
THOMÉ, Clarissa. ANS suspende venda de 268 planos de saúde de 37
operadoras; veja lista completa. Estadão, Rio de Janeiro, jul. 2011. Seção
Saúde. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,ans-
suspende-venda-de-268-planos-de-saude-de-37-operadoras-veja-lista-
completa,898388,0.htm>. Acesso em: 08 abr. 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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165
A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil...

tas estiveram impedidas de comercializar esses planos até


março de 201320.
Essa resolução e medida punitiva posterior visam estimu-
lar as operadoras de planos de saúde a promover o credencia-
mento de prestadores de serviços nos municípios que sejam
integrantes da área geográfica de abrangência e de atuação do
plano. As operadoras devem oferecer pelo menos um serviço
ou profissional em cada área contratada, contudo, destaca-se
que, estas não garantem que a alternativa para atendimento
seja a de escolha do beneficiário, pois por vezes o profissional
já está em sua capacidade máxima. Os médicos, hospitais, la-
boratórios e clínicas não são obrigados a obedecer os prazos
para atendimento estabelecidos, logo, se o contratante desejar
ser atendido exclusivamente por um destes de sua preferência,
deverá aguardar o período determinado.
Outrossim, frisa-se que em casos de urgência e emergên-
cia a operadora deve oferecer o atendimento no município on-
de foi demandado ou se responsabilizar pelo transporte do be-
neficiário idoso, e seu possível acompanhante, até o seu cre-
denciado.
Por fim, caso não haja alternativas para o atendimento,
deve haver o reembolso dos custos assumidos pelo beneficiá-
rio em até 30 (trinta) dias.
Igualmente, insta constar que – no que diz respeito aos
procedimentos tratados – tem-se diversas intervenções reali-
zadas pelo Poder Judiciário, no sentido de garantir extensões
em relação aos tratamentos cobertos.
Um dos litígios mais comuns, presentes no Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, diz respeito à pretensão de reali-
zar a cirurgia de redução de estômago por videolaparoscopia,
em detrimento da previsão de cirurgia mais incisiva prevista
originariamente (única existente há alguns anos), tendo em
vista que aquele método oferece menos riscos ao paciente. As-
sim, a mais alta Corte gaúcha tem entendido que, independen-

20
ANS proíbe 28 operadoras de comercializar 225 planos de saúde até
março de 2013. Jornal do Commercio, Amazonas, p. 7, 21 jan. 2013.

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temente do previsto, o novo procedimento deve ser coberto


pelo plano de saúde, se assim houver recomendação médica.

REAJUSTE DE MENSALIDADE
Destaca-se, inicialmente, que a ANS não estipula preços
a serem praticados pelas operadoras, apenas estabelece limi-
tes, e o reajuste de mensalidade do plano de saúde depende
do tempo em que se contratou o serviço.
Em relação ao reajuste anual, os planos de saúde contra-
tados antes da vigência da Lei dos Planos de Saúde (1999),
desde agosto de 2003, com o acolhimento de uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade pelo STF, passaram a ser considera-
dos atos jurídicos perfeitos. Logo, os reajustes de mensalidade
determinados nos contratos, variados pela irrestrição legal na
formação do contrato, possuem validade, desde que não ex-
cessivamente onerosos a parte21.
Quando contratados após a vigência da Lei 9.626, os pla-
nos têm reajuste anual aprovado pela Agência Nacional de
Saúde Suplementar. Esta determina um índice máximo de rea-
juste desses planos, logo, se houver aumento, não poderá ser
superior ao índice divulgado.
Em relação ao reajuste por faixa etária, o Estatuto do Ido-
so (2004) prevê que não poderá haver um aumento das mensa-
lidades em razão da idade após serem atingidos 60 anos de
idade. Ademais, a ANS determina que o valor fixado para a
última faixa etária (59 anos ou mais) não pode ser superior a
seis vezes o valor da primeira faixa (0 a 18 anos). Contudo, isso
apenas se aplica aos contratos firmados após a entrada em
vigor do Estatuto, ou seja, dia 1 de janeiro de 2004.
Nos contratos concluídos entre 2 de janeiro de 1999, en-
trada em vigor da Lei dos Planos de Saúde, e 1 de janeiro de
2004, somente os consumidores com 60 anos ou mais que pos-

21
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fun-
damentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 82.
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A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil...

suem o plano há dez anos ou mais não sofreram alteração na


mensalidade por mudança de faixa etária. E nos contratos fir-
mados antes de 2 de janeiro de 1999, o aumento deverá seguir
a estipulação contratual.

ACESSO DE IDOSOS
A liberdade de escolha de planos fica restrita em razão da
idade e, se portadores de doenças crônicas preexistentes, jus-
tifica-se a ausência de cobertura por abrangência por carência.
O Código de Defesa do Consumidor justifica a limitação de rea-
justes para idosos, baseado nas maiores dificuldades na troca
de planos ou a recusa da operadora de contratar planos novos
com idosos. No entanto, segundo a ANS, a aquisição e o aces-
so aos serviços dos planos de saúde não podem ser dificulta-
dos ou impedidos em razão da idade ou condição de saúde do
consumidor22. Essa restrição ao acesso dos idosos vai de en-
contra ao Estatuto do Idoso, ao Código de Defesa do Consumi-
dor, a Lei dos Planos de Saúde e a Súmula Normativa n° 19, de
28 de julho de 2011, da ANS, podendo a operadora ser multada
em cinquenta mil reais, por cada infração verificada.

RESPONSABILIDADE PELOS SERVIÇOS PRESTADOS PELOS


PROFISSIONAIS CREDENCIADOS
O Recurso Especial 866.371-RS julgado em 27 de março
de 2012 pelo Superior Tribunal de Justiça23, reiterou o entendi-
mento de que a operadora de plano de saúde é solidariamente
responsável pela sua rede de serviços médico-hospitalar cre-

22
OPERADORAS de planos de saúde não podem impedir ou dificultar
acesso de idosos. Agência Nacional de Saúde Suplementar, Rio de Ja-
neiro. Disponível em: <http://www.ans.gov.br//index.php/aans/central-
de-atendimento/index.php/1396-operadoras-de-planos-de-saude-nao-
podem-impedir-ou-dificultar-acesso-de-idosos>. Acesso em: 08 abr.
2013.
23
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 866.371/RS, da
2ª Turma do Supremo Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 27 de março de
2012. Diário da Justiça Eletrônico: 04 jun. 2012.

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denciada; e, logo, possui legitimidade passiva para figurar na


ação indenizatória movida por segurado. Assim, ao selecionar
médicos para prestar assistência em seu nome, o plano de sa-
úde se compromete com o serviço, assumindo a obrigação e,
por isso, possui responsabilidade objetiva, podendo em ação
regressiva averiguar a culpa do médico ou do hospital.

ENCERRAMENTO DO CONTRATO
Existem certas hipóteses em que poderá ocorrer a resci-
são ou suspensão do contrato, quais sejam, por fraude com-
provada por parte do consumidor ou por não pagamento da
mensalidade por mais de sessenta dias, consecutivos ou não,
durante os últimos doze meses de vigência do contrato, desde
que o consumidor tenha sido comprovadamente notificado até
o 50º dia do atraso. Contudo, segundo o Recurso Especial
958.900-SP, julgado em 17 de novembro de 201124, comprovado
o atraso superior a 60 dias e feita a notificação do consumidor,
é permitida a rescisão unilateral do contrato de plano de saúde
nos termos do art. 13, parágrafo único, II, da Lei n. 9.656/1998.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na tentativa de concretizar o direito humano à saúde, o
Estado brasileiro acaba impondo uma complexa série de regu-
lações em relação aos planos de saúde privados, muitas vezes
almejando consertar mazelas que não existem em ambientes
de livre-mercado.
De todo o exposto, conclui-se que os planos de saúde na
federação brasileira vivem um momento regulatório e prestati-
vo, no sentido de alcance à demanda qualitativa, o que é so-
bretudo influenciado pelo cenário econômico positivo dos últi-
mos anos. Com a atual crise mundial, questiona-se se a saúde
deveria ser considerada como um direito, ou como um bem.
24
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 957.900/SP, da
4ª Turma do Supremo Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 17 de novembro
de 2011. Diário da Justiça Eletrônico: 25 nov. 2012.
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A concretização do direito dos idosos à saude no Brasil...

Independente da discussão, no Brasil tem-se uma crescente


tendência de responsabilização do Estado pelas escolhas dos
indivíduos, o que é resultado direto de políticas reguladoras
mascaradas em todos os pequenos detalhes da prestação do
serviço.
Se aceitarmos que vivemos em um Estado de Direito, em
que as pessoas são livres para estabelecer e forçar o adimple-
mento de obrigações voluntariamente contraídas, é imperioso
que – em razão da natureza humana – tenha-se uma diferente
consideração quanto ao aspecto civil de capacidade fática das
pessoas idosas, que possuem vulnerabilidades biológicas para
exercer suas liberdades negociais, daí a justificativa político-
filosófica do conceito de hipervulnerabilidade apresentado, a
qual aparece estar mais relacionada com uma capacidade civil
humana, do que com um “direito especial”.
Trata-se de uma defesa da liberdade, já que não se pode
considerar os idosos como minoria, uma vez que todos os cida-
dãos eventualmente chegarão à terceira idade. O presente arti-
go buscou demonstrar a visão regulatória e prática do assunto,
a qual deve ser indubitavelmente considerada na avaliação que
o Brasil deve fazer, de suas obrigações internacionais.

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Nacional de Saúde Suplementar. Brasília: 2005. Disponível em: <
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI :
RELATOS DE UMA PESQUISA

Anna Paula Bagetti Zeifert


Mestre em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania pela Universidade Re-
gional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora do Depar-
tamento de Ciências Jurídicas e Sociais. UNIJUÍ.
(annazeifert@yahoo.com.br)
Camila Eichelberg Madruga
Bolsista PIBIC/Unijuí. Acadêmica do Curso de Serviço Social da Universida-
de Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
(Camila.madruga@hotmail.com)
Tatiele Camargo
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Regional do Noroeste do Es-
tado do Rio Grande do Sul. (tathydsc@hotmail.com)

Resumo
O presente artigo apresenta um relato das atividades desenvolvidas a partir do pro-
jeto de pesquisa “As políticas sociais de atendimento ao adolescente autor de ato
infracional e as condições de execução das medidas socioeducativas, em meio aber-
to, no município de Ijuí/RS”, bem como, os dados coletados no período de 2011 a
Março de 2013. Com o intutito de oferecer uma melhor compreensão acerca dessa
temática, faz-se, inicialmente, um estudo sobre o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente e as medidas socioeducativas em meio aberto – prestação de serviço à comu-
nidade (PSC) e liberdade assistida (LA) – disciplinadas na referida legislação. Será
objeto de analise, ainda, a pesquisa de campo realizada no Centro de Referência
Especializado em Assistência Social, local responsável pela aplicação das medidas
socioeducativas no município de Ijuí/RS, através do Serviço de Atendimento a Medi-
das Socioeducativas. A metodologia proposta está alicerçada na articulação entre a
abordagem quantitativa e qualitativa, construídas a partir da aplicação de questioná-
rios e, também, da coleta de informações em banco de dados.
Palavras-chave: Adolescente. Ato Infracional. Medida Socioeducativa. Políticas
Sociais.

Abstract
This paper presents an account of the activities developed from the research project
“Social policies attendance adolescent author of offense and the conditions of im-
plementation of educational measures, in an open environment, in the municipality
of Ijuí / RS”, as well as the data collected from 2011 to March 2013. With intutito to
offer a better understanding of this issue, it is an initial study on the Status of Chil-
dren and Adolescents and educational measures in an open environment – providing
service to the community (PSC) and probation (LA) – governed by that legislation. It
will be the object of analysis, yet, the field research conducted at the Reference
174
Anna Paula Bagetti Zeifert; Camila Eichelberg Madruga & Tatiele Camargo

Center Specializing in Social Welfare, responsible for the local implementation of


educational measures in the municipality of Ijuí / RS through the Service Measures
Socioeducational. The proposed methodology is based on the relationship between
the quantitative and qualitative approach, built from the questionnaires and also the
collection of information in the database.
Keywords: Adolescents. Offense. Socio measure. Social Policies.

INTRODUÇÃO
Objetivando identificar, compreender e analisar as condi-
ções concretas de execução das medidas socioeducativas em
meio aberto, notadamente as de prestação de serviço à comu-
nidade e de liberdade assistida, bem como, os programas de
atendimento aos jovens infratores, este artigo volta-se para a
apresentação dos dados coletados no período de 2011 a Março
de 2013 no município de Ijuí/RS.
Nesse sentido, o estudo busca compreender as transfor-
mações em curso na sociedade contemporânea e as políticas
públicas como lócus privilegiado de ação do Estado e da soci-
edade civil, com atenção especial para as políticas de atendi-
mentos na área da infância e da juventude.
A temática em análise ganha destaque quando se obser-
va um amplo debate sobre as formas de violência presentes na
sociedade. Tais discussões colaboram para uma tentativa de
compreensão da violência como um ato de excesso, que se ve-
rifica no exercício do poder presente nas relações sociais de
produção social.
Sabe-se que a maioria dos conflitos existentes não neces-
sitaria chegar à alçada jurídica, ou mesmo estando neste espa-
ço, poderiam ser tratados com estratégia de informalização em
que as intervenções podem ser através da mediação, concilia-
ção, entre alternativas de resolução de conflitos, criando as
condições de diálogo entre os sujeitos, de forma a expressarem
seus interesses, procurando entendimento para chegar a uma
decisão equitativamente.
No entanto o que se verifica é que na atualidade para di-
minuir e até mesmo coibir a violência muitas ações partem da
ordem jurídico-estatal, outras das iniciativas das políticas pú-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
175
Adolescentes em conflito com a lei

blicas do Estado e por fim de organizações da sociedade civil.


No entanto, persistem dúvidas sobre a legitimidade, a efetivi-
dade, os critérios aplicáveis, a natureza alternativa das san-
ções e da justiça informal diante dos papéis do Estado e das
relações Estado e sociedade.
A violência, no Brasil, ainda é tratada sob a ótica puniti-
va. E no que se refere à adolescência, tal situação agrava-se
ainda mais. Os adolescentes que praticam atos infracionais, de
forma geral, são estigmatizados, vistos como delinquentes,
trombadinhas e menores infratores. Representam uma parcela
da sociedade exposta às violações de direito tanto pela família,
como pelo Estado e pela sociedade. A criança e o adolescente
são concebidos como pessoas em peculiar situação de desen-
volvimento, sujeitos de direitos e destinatários da proteção
integral.
Essa condição peculiar do adolescente, de ser pessoa em
desenvolvimento, coloca aos agentes envolvidos na operacio-
nalização das medidas de proteção e socioeducativas na mis-
são de proteger, no sentido de garantir o conjunto de direitos e
educar oportunizando a inserção do adolescente na vida social.
É responsabilidade do Estado, da sociedade e da família ga-
rantir o desenvolvimento integral da criança e do adolescente.
Estas medidas constituem-se em condição especial de acesso
aos direitos sociais, políticos e civis e assim devem estar arti-
culadas em rede, assegurando a atenção integral aos direitos
e, ao mesmo tempo, o cumprimento de seu papel específico.
O trabalho educativo deve visar à educação para o exer-
cício da cidadania, trabalhando os eventos da transgressão às
normas legais contribuindo para a sua inclusão social. Sabe-se
que as medidas socioeducativas têm se mostrado eficazes
quando adequadamente aplicadas e supervisionadas.
Nesse sentido, tendo em vista a pouca produção sobre as
políticas de medidas socioeducativas em meio aberto e a mu-
nicipalização do atendimento, por ser este um processo ainda
recente, é relevante que sejam desenvolvidos estudos sobre
essa temática a fim de colaborar para a qualificação da rede de
atendimento das políticas sociais da infância e juventude. Ou

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
176
Anna Paula Bagetti Zeifert; Camila Eichelberg Madruga & Tatiele Camargo

seja, analisar se as medidas de proteção e as práticas socioe-


ducativas emancipam, garantem direitos e preservam a cida-
dania dos envolvidos, informações trazidas pelo presente tra-
balho.

O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS MEDIDAS


SOCIOEDUCATIVAS EM MEIO ABERTO
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990,
trouxe importantes avanços em relação ao atendimento à po-
pulação infanto-juvenil. Dentre estes avanços, destaca-se “a
mudança do enfoque doutrinário da ‘situação irregular’ para o
da ‘proteção integral’ à criança e ao adolescente”1, trazendo a
perspectiva da criança e do adolescente como pessoas em de-
senvolvimento e sujeitos de direitos, sendo sua efetivação um
dever da família, da sociedade e do poder público.
Em seu texto estão previstos, além dos direitos funda-
mentais, a colocação em família substituta, a adoção nacional
e internacional, a rede de proteção, as medidas protetivas, a
prática do ato infracional, dentre outros, e os procedimentos
legais que regem estes processos.
Conforme o Art. 103 do Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, “considera-se ato infracional a conduta descrita como
crime ou contravenção penal”2 praticado por sujeito com idade
inferior a dezoito (18) anos. De acordo com o Art. 1123, com a
constatação da prática do ato infracional poderão ser aplicadas
ao adolescente as medidas socioeducativas, entre elas: adver-
tência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à
comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi-
liberdade e internação.

1
VOLPI, Mário (Org.). O adolescente e o ato infracional. 6 ed. São Paulo:
Cortez, 2006, p. 48.
2
BRASIL. Lei N° 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 20
Mar. 2013. p. 27.
3
Id. 2013, p.28.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
177
Adolescentes em conflito com a lei

Ressalta-se que, para a determinação das medidas socio-


educativas devem ser consideradas a gravidade da infração e
a capacidade do adolescente para realizar seu cumprimento.
Dar-se-á ênfase as medidas socioeducativas em meio aberto: a
prestação de serviços à comunidade (PSC) e a liberdade assis-
tida (LA).
Compreende-se que o objetivo principal das medidas so-
cioeducativas em meio aberto, além da responsabilização, é a
manutenção do adolescente em seu meio, uma vez que a rein-
serção social do adolescente ocorre a partir da convivência fa-
miliar e comunitária e do acesso à educação e à profissionali-
zação.
Dessa forma, a medida socioeducativa de internação
(meio fechado) assume uma característica temporária e excep-
cional, aplicada em decorrência da gravidade do ato infracio-
nal. A lei reitera ainda que, havendo outra medida adequada,
não será aplicada a internação.
Conforme o Art. 117 do Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, a medida socioeducativa de prestação de serviços à co-
munidade consiste na realização de atividades de interesse
geral, de maneira gratuita, por um período de até seis (06) me-
ses. A lei prevê ainda que o desenvolvimento dessas ativida-
des deve considerar as aptidões do adolescente, além de não
prejudicar a frequência escolar do mesmo, fixando um limite
máximo de oito (08) horas semanais.
Em relação à liberdade assistida, o adolescente terá o
acompanhamento de um orientador pelo período mínimo de
seis (06) meses. De acordo com o ECA, compete ao orientador
de LA: orientar o adolescente e sua família, supervisionar a
frequência e aproveitamento escolar do adolescente, apoiar e
contribuir para a profissionalização e inserção no mercado de
trabalho e apresentar relatórios deste acompanhamento.
Considera-se que a aplicação de medida socioeducativa
em meio aberto “tem maior potencial para “ressocializar” a
criança e/ou adolescente autor de ato infracional”4, uma vez

4
CAMARGO, Tatiele. As políticas sociais de atendimento ao adolescen-
te autor de ato infracional e as condições de execução das medidas

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
178
Anna Paula Bagetti Zeifert; Camila Eichelberg Madruga & Tatiele Camargo

que além da responsabilização, estas medidas possuem aspec-


tos educativos. O viés educativo deve ter prevalência, propor-
cionando as condições necessárias para que o adolescente te-
nha acesso aos seus direitos tais como saúde, educação e pro-
fissionalização.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: INSTRUMENTOS DE PESQUISA


A metodologia proposta está alicerçada na articulação
entre a abordagem quantitativa e qualitativa. Quantitativa, ao
trabalhar com dados primários e secundários obtidos a partir
da pesquisa de amostragem que se pretende realizar, de in-
formações coletadas na secretaria municipal responsável pelas
políticas públicas da infância e juventude. Qualitativa, ao ma-
nusear documentos e referenciais bibliográficos já produzidos
a respeito da temática, procurando entender o contexto, com-
preender as diversas abordagens e construir um referencial
para a análise dos dados e fenômenos constatados.
Utiliza-se como método de abordagem o dialético crítico,
que permite captar a materialidade e a historicidade dos fe-
nômenos na constante tensão entre continuidade e mudança, o
conflito de interesses entre os atores, a contradição interna e
externa. Essa compreensão é essencial no momento em que se
busca conhecer quais são as práticas socioeducativas demo-
cráticas desenvolvidas pela rede de atendimento das políticas
públicas da infância e juventude do município de Ijuí, RS, vi-
sando identificar suas possibilidades e limites enquanto me-
canismos de garantia de direitos e preservação da condição de
cidadania destes sujeitos.
A pesquisa tem como local de estudo o Centro de Refe-
rência Especializado de Assistência Social – CREAS – da cida-
de de Ijuí, unidade pública e estatal, que oferta serviços espe-
cializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de
ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica,

socioeducativas, em meio aberto, em Ijuí, RS. 2012, 89 p. Trabalho de


Conclusão de Curso. Curso de Graduação em Serviço Social. Universida-
de Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2012.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
179
Adolescentes em conflito com a lei

sexual, tráfico de pessoas, cumprimento de medidas socioedu-


cativas em meio aberto, etc.). Essa atenção especializada tem
como foco o acesso da família a direitos socioassistenciais, por
meio da potencialização de recursos e capacidade de proteção.
Os sujeitos do estudo são adolescentes em conflito com a
lei submetidos a medidas socioeducativas em meio aberto –
prestação de serviços à comunidade (PSC) e a liberdade assis-
tida (LA) – no período de 2011 a Março de 2013.
O instrumento de coleta dos dados é composto por um
questionário quali-quantitativo com perguntas fechadas que
possibilitam respostas objetivas, e abertas, com uma aborda-
gem mais ampla dos resultados, direcionado aos adolescentes
infratores atendidos pela rede e preenchidos pelos pesquisa-
dores de acordo com as respostas dos entrevistados. Salienta-
se, ainda que a coleta de dados só teve inicio após a aprovação
do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, seguin-
do o que preconiza a Resolução 196/1996 do Conselho Nacional
de Saúde5, quando a pesquisa é desenvolvida com seres hu-
manos.

A PESQUISA DE CAMPO: APRESENTAÇÃO DOS DADOS


Tendo em vista colocar em prática os objetivos do projeto
de pesquisa, o qual é base desse artigo, iniciou-se a pesquisa
documental e de campo no primeiro semestre de 2012. O lócus
de realização do referido estudo vem sendo o SAMSE – Serviço
de Atendimento às Medidas Socioeducativas, responsável pela
coordenação, atendimento e execução das medidas socioedu-
cativas em meio aberto no município de Ijuí/RS, estando este
serviço localizado junto ao CREAS – Centro de Referência Es-
pecializado de Assistência Social. A seguir, são apresentadas

5
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.
196 de 10 de outubro de 1996.Diretrizes e normas regulamentadoras
sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: Conselho Nacional
de Saúde, 1996. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/comissao
/conep/resolucao.html>. Acesso em: 20 Mar. 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
180
Anna Paula Bagetti Zeifert; Camila Eichelberg Madruga & Tatiele Camargo

as principais informações coletadas até o momento, as quais


compreendem o período de 2011 a Março de 2013.
Em relação ao número e gênero dos adolescentes em con-
flito com a lei, foram atendidos aproximadamente 57 adoles-
centes, sendo 36 no período de 2011 ao primeiro semestre de
2012. Ao longo do segundo semestre de 2012 e início de 2013,
mais 21 adolescentes foram encaminhados para cumprimento
de medida socioeducativa. Do total, a maioria (48 adolescen-
tes) pertence ao gênero masculino. No que diz respeito à faixa
etária dos adolescentes, a maioria possui entre 16 e 18 anos
em ambos os gêneros. O gráfico 1 apresenta as informações
coletadas em relação ao número e ao gênero dos adolescentes
em conflito com a lei de acordo com os períodos de coleta de
dados.

GRÁFICO 1: COMPARATIVO EM RELAÇÃO AO GÊNERO DOS


ADOLESCENTES

28

20 Ano de 2011 à Junho


de 2012
Agosto de 2012 à
8 Março de 2013

Meninos Meninas

Na variável escolaridade, em ambos os períodos de coleta


de dados (2011/1º-2012 e 2°-2012/março-2013), nota-se que a
grande parte dos adolescentes frequenta o ensino fundamen-
tal. Nesse sentido, destaca-se os diversos casos de evasão es-

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
181
Adolescentes em conflito com a lei

colar e de repetência, o que leva alguns adolescentes a opta-


rem pelo EJA – Educação de Jovens e Adultos.
Em relação à situação de drogadição, há uma visível mu-
dança entre os períodos de coleta de dados. Entre o ano de
2011 e o primeiro semestre de 2012, a maioria dos adolescen-
tes declarou fazer uso de algum tipo de substância química
ou etílica, enquanto no segundo semestre de 2012 e início de
2013, a grande parte dos adolescentes se declararam não
usuários.
No que diz respeito à espécie de infração praticada, os
danos ao patrimônio (no qual se enquadram os furtos, destrui-
ções e estragos de bens) foi a principal infração praticada pe-
los adolescentes no período de 2011/1º-2012, enquanto infra-
ções de trânsito (geralmente, a condução de veículo sem pos-
suir a habilitação, havendo ainda casos de acidentes de trânsi-
to), foram os principais atos infracionais praticados no período
de 2°-2012/março-2013.
A medida socioeducativa mais aplicada em ambos os pe-
ríodos é a prestação de serviços à comunidade (PSC), seguida
pela liberdade assistida (LA). Destaca-se também que há ado-
lescentes que recebem ambas as medidas (PSC e LA), o que
reforça a perspectiva do Estatuto da Criança e do Adolescente
de proporcionar a inserção social dos adolescentes em conflito
com a lei.
Outra informação importante diz respeito ao cumprimento
das medidas socioeducativas. No período de 2011/1º-2012, a
maioria dos adolescentes não cumpria a medida, enquanto no
período de 2°-2012/março-2013, 17 dos 21 adolescentes que
iniciaram a medida socioeducativa concluíram ou estão cum-
prindo a medida. Ressalta-se que estes números são aproxi-
mados, uma vez que há adolescentes que cumprem parcial-
mente a carga horária determinada ou deixam de cumprir por
algum período, concluindo-a posteriormente. Abaixo, o gráfico
2 ilustra os dados coletados em relação ao cumprimento das
medidas socioeducativas.

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182
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GRÁFICO 2: CUMPRIMENTO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM


MEIO ABERTO

Em relação aos dados coletados na pesquisa de campo


qualitativa, foi realizada a aplicação de nove (09) formulários
com adolescentes atendidos pelo SAMSE, mediante o conhe-
cimento e assinatura do TCLE – Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido. Os questionamentos buscam conhecer a com-
preensão dos adolescentes sobre a finalidade das medidas so-
cioeducativas (MSE) e como analisam a aplicação destas me-
didas no município de Ijuí/RS.
Com base nos formulários, pode-se afirmar que, entre os
adolescentes entrevistados, há a compreensão de que a medi-
da socioeducativa é uma consequência de seus atos e objetiva
evitar que este venha a cometer novas infrações. Ressalta-se,
ainda, que alguns adolescentes demonstram desconhecer os
objetivos da medida socioeducativa.
Em relação à aplicação das medidas socioeducativas, a
análise dos adolescentes é geralmente relacionada às ativida-
des (“trabalho”) realizadas durante o cumprimento da medida
(PSC). Nesse sentido, alguns adolescentes utilizam a expres-
são “trabalho leve” ou “pesado” referindo-se ao tipo de traba-
lho, o que pode estar relacionado ao fato de diversos adoles-
centes terem desempenhado ou ainda desempenharem ativi-
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
183
Adolescentes em conflito com a lei

dades laborativas, estando inseridos no mercado de trabalho


através de atividades como servente de obras e ajudante.
Apenas um adolescente se referiu ao envolvimento de várias
instituições (rede) no atendimento ao adolescente e às medi-
das socioeducativas, durante a entrevista.
Outro importante dado coletado através da pesquisa de
campo é sobre os locais de cumprimento da medida socioedu-
cativa de prestação de serviços à comunidade (PSC). Na gran-
de maioria, os locais que acolhem os adolescentes são espaços
públicos, como secretarias e coordenadorias municipais, Corpo
de Bombeiros e escolas estaduais. No que diz respeito à liber-
dade assistida (LA), constata-se que há um número reduzido
de orientadores.
Assim, ao decorrer desta pesquisa fica a certeza de que
para além das inovações e dos avanços no sentido da proteção
e da garantia de direitos (principalmente quanto à garantia
dos direitos fundamentais), afirmados pela Constituição Fede-
ral de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, per-
siste ainda uma estigmatização por grande parte da sociedade
em relação ao adolescente em conflito com a lei, bem como,
prossegue a retrógrada compreensão de que as medidas socio-
educativas deveriam ter viés punitivo; o que contribui no posici-
onamento de muitos a favor da redução da maioridade penal.
Tais fatos, muitas vezes, dificultam a materialização do
cumprimento da medida socioeducativa, o acompanhamento
dos adolescentes autores de atos infracionais pela equipe téc-
nica municipalizada, a concretização das políticas sociais de
atendimento, etc., ou seja, há muito ainda para ser feito, prin-
cipalmente no que diz respeito à concretização dos direitos e
deveres estabelecidos nessas legislações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo como principal objetivo evidenciar as políticas so-
ciais de atendimento desenvolvidas aos adolescentes autores
de atos infracionais e as condições de execução das medidas
socioeducativas, em meio aberto, no município de Ijuí/RS, a ida

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184
Anna Paula Bagetti Zeifert; Camila Eichelberg Madruga & Tatiele Camargo

a campo, possibilitou o diagnóstico dos seguintes problemas:


a) os sujeitos de direitos, em peculiar situação de desenvolvi-
mento, não têm seus direitos assegurados e/ou tem seus direi-
tos violados quando a instituição responsável pela aplicação
das medidas, que também deveria lhe acompanhar, e ser o
meio para a inserção desses jovens em políticas publicas e so-
ciais objetivando a prevenção e a não reincidência, acaba não
o fazendo, por falta de espaço físico e equipe técnica limitada.
B) contatou-se o fato de que a maioria dos adolescentes, no
município de Ijuí/RS, acaba não cumprindo a medida socioe-
ducativa aplicada.
Assim sendo, percebe-se que a garantia dos direito fun-
damentais – à vida, à liberdade, à igualdade, à educação, ao
lazer, à cultura, ao respeito, à profissionalização, à dignidade,
ao respeito, à atenção integral e a convivência familiar e co-
munitária, estabelecidos em lei, bem como, a materialização do
cumprimento da medida socioeducativa, do acompanhamento
dos adolescentes autores de atos infracionais pela equipe téc-
nica, das políticas sociais de atendimento à esses adolescen-
tes e a melhora nas condições de execução das medidas socio-
educativas, continuam sendo um desfio aos profissionais.
Com a pesquisa, desenvolvida junto ao Centro de Refe-
rência Especializado em Assistência Social (CREAS) de Ijuí/RS
foi possível conhecer mais aprofundadamente a realidade local
dos adolescentes em conflito com a lei, as principais práticas
infracionais cometidas por estes e as condições de execução
das medidas socioeducativas nesse município.
Assim, a título de considerações, fica a certeza de que pa-
ra além das inovações trazidas pela Constituição Federal de
1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, faz-se ne-
cessário a qualificação da rede de atendimento aos adolescen-
tes infratores e do local de cumprimento das medidas, com
vistas a contemplar um dos objetivos principais da aplicação
das medidas socioeducativas em meio aberto que é a reinser-
ção social do adolescente a partir da convivência familiar e
comunitária, possibilitando o acesso à educação e à profissio-
nalização, para um pelo exercício da cidadania.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
185
Adolescentes em conflito com a lei

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei N° 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatu-
to da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponí-
vel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>.
Acesso em: 20 Mar. 2013.
______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução
n. 196 de 10 de outubro de 1996.Diretrizes e normas regulamenta-
doras sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: Conselho
Nacional de Saúde, 1996. Disponível em: <http://conselho.saude.
gov.br/comissao/conep/resolucao.html>. Acesso em: 20 Mar. 2013.
CAMARGO, Tatiele. As políticas sociais de atendimento ao adoles-
cente autor de ato infracional e as condições de execução das me-
didas socioeducativas, em meio aberto, em Ijuí, RS. 2012. 89 p.
Trabalho de Conclusão de Curso. Curso de Graduação em Serviço
Social. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul, Ijuí, 2012.
SILVA, Enio. Sociologia da Violência. Ijuí: Unijuí, 2010.
VOLPI, Mário (Org.). O adolescente e o ato infracional. 6 ed. São
Paulo: Cortez, 2006.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
DIGNIDADE HUMANA DA CRIANÇA
NASCIDA A PARTIR DO
ÚTERO DE SUBSTITUIÇÃO 1

Astrid Heringer
Mestre em Integração Latino-americana (UFSM). Pesquisadora do grupo
de Pesquisa Cidadania e Novas Formas de Solução de Conflitos, do curso
de Direto da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Mis-
sões, campus de Santiago, RS. Lattes: http://lattes.cnpq.br/368151950
7518562. (astrid.heringer@gmail.com.)
Adriane Damian Pereira
Mestre em Direito (UNISC). Professora do curso de Direito da Universida-
de Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus de Santiago,
RS. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8665180185269267.
(adriane@urisantiago.br)

Resumo
O artigo tem por finalidade conhecer a figura do útero de substituição, verificando a
sua possibilidade jurídica no Brasil e em alguns outros países, notadamente daqueles
que mais registram a prática, tais como Estados Unidos e Índia. O interesse na abor-
dagem aprofunda-se pelo fato de que a criança que nasce através deste processo
inicia a vida com um intrincado ramo de parentesco, que pode decorrer de raízes
biológicas ou não, bem como poderá ser de nacionalidade diversa, uma vez que é
cada vez mais frequente a busca de tal procedimento em outros países. Diante de
toda essa gama de relações complexas, questiona-se sobre a real proteção da digni-
dade humana da criança nascida em tais circunstâncias. Em que pese a escassa bibli-
ografia, o texto foi realizado a partir de fontes atuais e renomadas.
Palavras-chave: bioética, dignidade humana, direito internacional, mãe de substitui-
ção.

Abstract
This article aims to know the figure of the replacement uterus and the multiple rela-
tionships that are present in this type of assisted human reproduction. The interest
in the approach gets deeper by the fact that the child born through this process
begins life with an intricate branch of kinship, which may be due to biological roots
or not, and he/she may be of different nationality, since the search for such proce-
dure is increasingly common in other countries. Faced with this whole range of com-
plex relations, it is asked about the real protection of human dignity of the child born
in such circumstances. Despite the scarce biography, the text was conducted from
current and reputable sources.

1
Artigo científico resultante do Projeto de Iniciação Científica Mães de
substituição no Direito Internacional, coordenado pelas autoras, na Uni-
versidade Regional Integrada, campus de Santiago, RS.
188
Astrid Heringer & Adriane Damian Pereira

INTRODUÇÃO
O útero de substituição, ou mãe de substituição, vem
sendo difundida ao longo dos tempos, acompanhando o avan-
ço da medicina e das novas técnicas de reprodução assistida,
pois é lançada como a saída para aqueles pais que não têm
condições biológicas para gerar um filho apenas com o mero
processo de reprodução natural.
O tema da mãe substituta é permeado de contornos que
merecem, cada um por si só, larga observação jurídica. Em que
pese o ato de uma criança ser gerada no ventre de outra mãe,
e de que o próprio nascimento, em si mesmo, representar um
momento esplêndido de vida, há rechaços éticos, jurídicos e
também religiosos.
No que tange ao aspecto psicológico, não há como negar
a dificuldade de explicação dos pais, bem como de compreen-
são, para os filhos que nascem a partir de um útero que não
seja da sua verdadeira mãe2. Do ponto de vista social, restam
dúvidas sobre a aceitação de uma criança que, a princípio, po-
de ter duas mães (aquela que tem a intenção de ter um filho
com o seu marido ou companheiro, e aquela que efetivamente
carrega a criança durante o período de gestação).
Será de todo muito complexo para uma criança adminis-
trar psicologicamente esta intrincada rede de relações que a
cerca. Se para os pais o útero de substituição pode ser a solu-
ção para a impossibilidade biológica da reprodução, o mesmo
não se pode dizer em relação ao filho gerado que, no futuro,
poderá apresentar dificuldades de entender e conviver com
esta situação. Infelizmente, os futuros pais e mães não medem
esforços para atingir a finalidade almejada: ter um filho seu. No
entanto, não se questiona as consequências deste processo,
em chegando ao conhecimento da criança, adolescente ou
adulto, gerará na sua formação e em possíveis abalos psicoló-
gicos que ferem a dignidade humana.

2
Caberá análise sobre o que se entende por mãe, uma vez que a mãe
biológica pode ser a doadora do óvulo, ou então aquela que empresta o
útero para a fertilização.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
189
Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de substituição

QUEM SÃO AS MÃES?


A questão da mãe de substituição tem trazido inúmeras
indagações quanto a quem é a mãe, quais são os seus direitos,
se existentes, e também quanto aos direitos do nascituro.
Afinal, quem é a mãe? Desde os tempos bíblicos o tema já
suscitava discussões. Em Gênesis 16, Sara, mulher de Abrão,
não tendo condições de procriar, pede a Abrão que lhe propor-
cione a maternidade por meio de sua escrava Agar. Em Gêne-
sis 30, Raquel, esposa de Jacó, suplica a este que, por inter-
médio de sua serva Bala, realize seu desejo de maternidade3.
A princípio, entre nós, mãe é aquela que dá a luz, confor-
me preconiza o aforisma latino “mater semper certa est”4, do
qual deriva que a filiação é sempre determinada pelo parto.
Este conceito, no entanto, tem se transformado, em virtude das
modernas técnicas de engenharia genética, que embala os do-
ces sonhos de futuros “pais” e “mães” constituírem uma ver-
dadeira família.
O empréstimo do útero ocorre em situações bem determi-
nadas: quando há uma má formação do útero da pretensa mãe
ou esta não possui útero, ou ainda quando a gravidez implica
em risco de vida para a mulher5. Nestas situações, para levar a
cabo o desejo de ter um filho, a mulher poderá recorrer ao
chamado útero de substituição.
O procedimento para a realização da técnica de fertiliza-
ção é bastante simplificado, consistindo na implantação de
embriões, resultantes da fecundação entre a união do óvulo
com o espermatozóide, no útero emprestado6. Embora, a prin-
cípio, a técnica seja bastante simples, as suas consequências
3
OTERO, Marcelo Truzzi. Contratação da barriga de aluguel gratuita e
onerosa – legalidade, efeitos e o melhor interesse da criança. In: Revista
Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister; Be-
lo Horizonte: IBDFAM, 2007. p. 21.
4
A mãe é sempre certa.
5
MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida: controvérsias
éticas e jurídicas. Curitiba: Juruá, 2006.
6
GONÇALVES, Fernando David de Melo. Novos métodos de reprodução
assistida e conseqüências jurídicas. Curitiba: Juruá, 2011. p. 24.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
190
Astrid Heringer & Adriane Damian Pereira

são devastadoras, pois não são raras as vezes em que a mulher


que se submeteu ao tratamento resolve não entregar a criança
à família que a encomendou, seus pais genéticos7. Não é difícil
prever, também, que nem a gestante, nem os pais biológicos,
tenham interesse em ficar com a criança após o nascimento,
pelo fato de esta apresentar alguma anomalia. Ou se se verifi-
car, antes do parto, alguma anomalia, como a anencefalia, que
levem seus pais biológicos a solicitar o aborto terapêutico e
este ser negado pela gestante. Ou, então, que o casal solicitan-
te se divorcie durante o período de gestação. Por último, a mor-
te da gestante, por consequência do parto, poderá gerar uma
situação difícil de reparar8.
Contudo, nem sempre é assim: a mulher que encomenda
o procedimento pode ser a doadora genética, o que não gera
maiores transtornos; há situações em que a mãe de substitui-
ção também é a mãe genética, caso ela venha a fornecer tam-
bém o óvulo. Nesta última hipótese a mãe de substituição é
também a mãe genética e geradora da criança. Ainda, pode
ocorrer concomitantemente o fato de que o pai não seja o ma-
rido ou companheiro da mulher solicitante, e sim um doador
anônimo, situação que gera o aparecimento de criança com
laços biológicos totalmente distintos dos pais solicitantes.
Se no aspecto da engenharia genética a prática da mãe
de substituição não traz grandes dificuldades, o mesmo não se
pode afirmar no que tange ao seu reconhecimento e conse-
quências jurídicas, bem como a sua compreensão ética e moral.

7
Para exemplificar esta situação, é bastante utilizado pela doutrina o
caso Baby M, no qual um casal contratou uma mãe de substituição atra-
vés do “Infertility Center for New York”, cuja mulher também era casa-
da. Depois de três dias do nascimento, o casal Stern, que havia contra-
tado a barriga de aluguel, busca a filha. No entanto, dias depois, a filha é
reavida pela mãe de aluguel. CARCABA FERNÁNDEZ, María. Problemas
jurídicos planteados por las técnicas de procreación humana. Barcelona:
J. M. Bosche Editor S.A., 1995. p. 167.
8
CARCABA FERNÁNDEZ, María. Problemas jurídicos planteados por
las técnicas de procreación humana. Barcelona: J. M. Bosche Editor
S.A., 1995. p. 167-168.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
191
Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de substituição

DAS RELAÇÕES EXISTENTES NESTA MATERNIDADE ESPECIAL


Como o processo de geração da criança se inviabiliza pelo
processo natural, ou seja, que deveria contar com a participa-
ção do pai e da mãe biológicos, há a necessidade de interven-
ção de outras pessoas.
Assim, em primeiro plano, tem-se a participação da mu-
lher que deverá ceder o óvulo, pelo fato de a mãe solicitante
estar impedida, por problemas biológicos ou de saúde, de ge-
rá-lo. Esta mulher será inseminada com o espermatozóide do
marido ou companheiro da solicitante, ou, ainda, de doador
anônimo ou voluntário, na ausência ou impossibilidade daque-
le. Ao final do período gestacional, a mulher que empresta o
útero terá, como compromisso em relação à mãe ou casal soli-
citante, de entregar a criança gerada. Portanto, além de doar o
óvulo, a mãe substituta deverá desenvolver o período gestaci-
onal de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo “contra-
to”, no qual se pode prever uma série de cuidados médicos,
como abstenção de consumo de bebidas alcoólicas ou tabaco.
Lembra Maria Helena Machado que a mãe substituta di-
verge da mãe portadora. A primeira deve doar o óvulo e de-
senvolver a gravidez, ou seja, “a criança é filha do seu óvulo e
do seu útero”. “Reúne-se na mãe substituta a derivação bioló-
gica e a gestação, sendo essa mulher a mãe.”9 Já a mãe porta-
dora receberá de antemão o óvulo fecundado.
Nesse segundo caso, a pessoa interveniente é aquela que
desenvolverá a gestação, recebendo, para isto, o embrião fe-
cundado in vitro e implantado em seu útero. O embrião, por-
tanto, não tem qualquer ligação genética com a portadora, mas
tão somente do casal ou mulher interessada que realizaram o
processo de fertilização em laboratório, cujo material genético,
o embrião, foi implantado no útero da mulher portadora. Aqui
emerge a difícil questão a ser respondida pelos juristas: afinal,
quem é a mãe? Aquela que produz o embrião ou a que gesta?
A biológica ou a portadora? Ou ambas devem ser consideradas
9
MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida: controvér-
sias éticas e jurídicas. Curitiba: Juruá, 2006. p. 53.

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192
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mães e a partir daí o direito deve criar outra categoria para


regular essas relações?
Apesar de o tema abrigar diversos contornos, a melhor in-
terpretação é que estabelece a maternidade para aquelas mu-
lheres que estiveram envolvidas no processo de criação e nas-
cimento da criança, o que compreende tanto a mãe ovular
quanto a mãe uterina. Seria até mesmo imoral e antiético não
reconhecer a participação de cada uma delas nesse processo:
de um lado aquela que possui a iniciativa de ter um bebê, mas
que não pode realizá-lo sem a participação de outra, daquela
que cederá seu útero para a consecução do nascimento. A mãe
ovular contribui com a carga genética, enquanto que a mãe
portadora é responsável por todas as formações nervosas,
hormonais e psíquicas desenvolvidas durante o período da
gestação, e também importantíssimas para a formação e equi-
líbrio da criança por toda a sua vida.
Porém, a situação de maior complexidade surge quando o
embrião é implantado em uma terceira mulher. Assim, se há a
mãe solicitante, aquela que doa o material genético, e ainda
uma terceira, que deverá desenvolver a gestação, que relações
surgem a partir daí? Quem é aquela que melhor assume a con-
dição de mãe? A social, a biológica ou a portadora?
Levando-se em conta a máxima “mater semper certa est”,
ou seja, de que a mãe é aquela que dá a luz a criança, pode-se
afirmar que somente há uma mãe, a que gestou e que pôs a
criança no mundo. Embora muito paradoxal, há interpretações
tanto no sentido de as três mulheres serem consideradas mãe,
porque qualquer uma delas teve participação na “produção”
da criança, ou de que nenhuma delas reúne todas as condições
para ser considerada como mãe, na verdadeira acepção da pa-
lavra. Neste compasso, segundo Maria Helena Machado,
Poderão existir também seres sem mãe, visto que a mãe
social não é a mãe por não se beneficiar de nenhum crité-
rio de atribuição de maternidade; a mãe biológica não é
mãe, porque se constitui em mera doadora de gametas; e

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
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Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de substituição

a mãe portadora não é mãe, visto não se constituir a ges-


tação em título de atribuição de maternidade.10

Situações como essas são de difícil solução para o jurista.


Bastante complicada será também a situação de “pais” e filhos
advindos desse tipo de reprodução, que deverão lidar com as
mais difíceis situações psicológicas e éticas. Quanto a este
último aspecto, Eduardo de Oliveira Leite ressalta que “o pro-
cesso cria um problema ético desde a sua origem: a reprodu-
ção fica, aqui, completamente dissociada da gestação e do
nascimento”11. O que é certo em todo esse processo de repro-
dução é a existência de muitas perguntas sem respostas, tais
como: quem é a mãe ou pai? Qual a responsabilidade de cada
um deles diante da criança? E há mesmo responsabilidade?
Quais os direitos da criança em relação à mãe de substituição
ou até mesmo em relação ao pai doador?
Essas dúvidas podem ser diluídas pela superação do con-
ceito de família como instituição, conforme entende Marcelo
Truzzi Otero. Embora essa ideia ainda estivesse presente na
Constituição Federal de 1988, as transformações na engenha-
ria genética e todas as novidades surgidas por novos proces-
sos, exigem uma leitura a partir do conceito de família-
instrumento. Esse novo paradigma objetiva a valorização do
conceito de filiação, voltado para tutelar a dignidade da pessoa
humana, a solidariedade, a afetividade e a proteção integral,
valores estes que superam a mera preservação dos traços bio-
lógicos12.
No mesmo passo dos princípios que regem a adoção, as
novas formas de filiação visam valorizar o querer daqueles que

10
MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida: controvér-
sias éticas e jurídicas. Curitiba: Juruá, 2006. p. 54.
11
LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o Direito. Aspectos
médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1995. p. 188.
12
OTERO, Marcelo Truzzi. Contratação da barriga de aluguel gratuita e
onerosa – legalidade, efeitos e o melhor interesse da criança. In: Revista
Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister;
Belo Horizonte: IBDFAM, 2007. p. 20.

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194
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pretendem conviver com a criança, que se preparam afetiva-


mente para a vinda daqueles que escolheram amar como filho,
mesmo que isso signifique a valoração menor daqueles que
doam o material genético ou que contribuem com o útero de
aluguel. Na família-instrumento, a verdade biológica será des-
considerada em proveito da verdade afetiva.
Esse entendimento é reforçado por Maria Berenice Dias:
A identificação dos vínculos de parentalidade não pode
mais se buscar exclusivamente no campo genético, pois
situações fáticas idênticas ensejam soluções substanci-
almente diferentes. As facilidades que os métodos de re-
produção assistida trouxeram permitem a qualquer um
realizar o sonho de ter um filho. Para isso não precisa ser
casado, ter um par ou mesmo manter uma relação sexual.
Assim, não há como identificar o pai com o cedente do
espermatozóide. Também não dá para dizer se a mãe é a
que doa o óvulo, a que cede o útero ou aquela que faz uso
do óvulo de uma mulher e do útero de outra para gestar
um filho, sem fazer parte do processo procriativo. Subme-
tendo-se a mulher a qualquer desses procedimentos tor-
na-se mãe, o que acaba com a presunção de que a ma-
ternidade é sempre certa.13

Esse entendimento é bastante presente na doutrina bra-


sileira, embora não se possa falar em unanimidade, e tem como
objetivo, sobretudo, a preservação dos direitos da criança e
seu bem-estar. No que tange ao direito comparado, contudo,
vê-se uma diversidade de entendimentos, conforme se verá a
seguir.

NOTAS SOBRE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Brasil não há uma regulação satisfatória da gestação


de substituição. Aliás, existe apenas a Resolução n. 1.358, de
19 de novembro de 1992, do Conselho Federal de Medicina,

13
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revis-
ta dos Tribunais, 2007. p. 321.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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195
Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de substituição

que dispõe, de maneira bem sucinta, sobre o assunto. A reso-


lução em si trata de aspectos da Reprodução Humana Assisti-
da, dispondo sobre “Normas éticas para a utilização das técni-
cas de reprodução assistida”, tratando de princípios gerais,
dos usuários das técnicas, aos procedimentos de clínicas e
centros que utilizem a RA, doação de gametas ou pré-embriões
e sua criopreservação, diagnóstico e tratamento de pré-
embriões e, por fim, na seção VII, sobre a gestação de substi-
tuição ou empréstimo temporário de útero. Essa última seção
enuncia que:
As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana
podem usar técnicas de RA para criarem a situação iden-
tificada como gestação de substituição, desde que exista
um problema médico que impeça ou contraindique a ges-
tação na doadora genética.
1. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à
família da doadora genética, num parentesco até o se-
gundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autoriza-
ção do Conselho Regional de Medicina.
2. A doação temporária do útero não poderá ter caráter
lucrativo ou comercial.14

Vale destacar que as únicas limitações impostas pela re-


solução é a existência de grau de parentesco entre a doadora e
a mãe de substituição, até o segundo grau, e, também, a ine-
xistência de qualquer exigência econômica por parte desta
última. Dessa forma exige-se a gratuidade do ato.
Apesar de a resolução ter quase 20 anos, ainda são pou-
cos os registros dessa modalidade de reprodução assistida no
Brasil. Um desses casos envolveu o casal Veridiana e Fabiano.
Em virtude da impossibilidade de a mulher engravidar, a su-
gestão médica foi no sentido de que optassem pela mãe de
substituição. A equipe médica realizou a fertilização in vitro

14
Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.358/92. Disponível em:
http://www.ghente.org/doc_juridicos/resol1358.htm. Acesso em: 02
maio 2012.

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196
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(FIV) e implantou o embrião no útero de Elisabeth, mãe de Fa-


biano. A criança, de nome Bianca, nasceu e foi entregue aos
pais15. Outro registro de mãe de substituição resultou no julga-
do da 2ª Vara de Registro Público de São Paulo (n. 66/00) que
determinou o registro de trigêmeos nascidos por via de gesta-
ção de substituição em nome da doadora do óvulo. O proces-
so ocorreu de forma não contenciosa já que a portadora era
sobrinha doadora, suscitado pelo Cartório de Registro de Nas-
cimento, uma vez que o oficial não sabia em nome de quem
registrar as crianças, visto que a mãe genética requeria o re-
gistro como tal e o documento da maternidade apontava a so-
brinha como mãe. O juiz entendeu tratar-se de paternidade de
intenção e não “comércio carnal”. Lima Neto chama essa pater-
nidade de intenção como adoção brasileira por via judicial16.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, § 7º,
contempla como direito exclusivo do casal o planejamento fa-
miliar para compor a família da forma que melhor convier, com
ou sem filhos. Para tanto, o Estado se obriga, conforme se pode
interpretar do texto do parágrafo, a dar suporte aos recursos
educacionais e científicos para que essa autodeterminação do
casal seja respeitada.
O texto da norma constitucional está regulamentado pela
Lei n. 9.263/96, no art. 9º, que reforça a subjetividade da deci-
são quanto ao planejamento familiar, definindo que “para o
exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos
todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção
cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a
saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”. Dessa
forma, a legislação nacional alberga o direito do casal de optar
por uma gestação de substituição, se esta também for a indi-
cação médica prescrita.

15
Fantástico, Avó-mãe, 06.06.2004, apud CRUZ, Ivelise Fonseca da. Efei-
tos da Reprodução Humana Assistida. São Paulo: SRS Editora, 2008. p.
36-37.
16
KRELL, Olga Jubert Gouveia. Reprodução humana assistida e filiação
civil: princípios éticos e jurídicos. Curitiba: Juruá, 2006. p. 195.
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197
Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de substituição

Diante desses preceitos legais, a doutrina brasileira é


concorde quanto à licitude da opção dos pais de eleger a bar-
riga de substituição, desde que presentes o consentimento e a
informação, o interesse legítimo, a gratuidade e o anonimato17.
Importante ainda destacar no caso brasileiro, a valoriza-
ção da afetividade e da intenção para criar o vínculo de filia-
ção. Esta presunção é referida no art. 1.597, V, do Código Civil
de 2002, ao prever os filhos havidos pela utilização das técni-
cas de inseminação artificial heteróloga, desde que com prévia
autorização do marido. Dessa maneira, conforme Ana Carolina
Brochado Teixeira, “abre espaço para vínculos socioafetivos,
desvinculando-se do liame eminentemente biológico”18.
Essas novas interpretações, que conduzem a aceitar os
vínculos familiares de criança concebida mesmo sem qualquer
vínculo biológico com os pais afetivos, constituem-se em ver-
dadeira novidade e inovação presente no direito brasileiro e
ausente, quando não atos criminalizados, na legislação de ou-
tros países.

17
Neste sentido, LIMA, Taísa Maria Macera de. Filiação e biodireito: uma
análise das presunções em matéria de filiação em face da evolução das
ciências biogenéticas. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto
Alegre: IBDFAM, Síntese, v. 13, n. 4, abr./jun. 2002. p. 147; OTERO, Mar-
celo Truzzi. Contratação da barriga de aluguel gratuita e onerosa – lega-
lidade, efeitos e o melhor interesse da criança. In: Revista Brasileira de
Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte:
IBDFAM, 2007. p. 27-28; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito po-
sitivo de maternidade e a utilização de útero de substituição. In: ROMEO
CASABONA, Carlos María; QUEIROZ, Juliane Fernandes (coord). Bio-
tecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey,
2004. p. 313; DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 321. Estes autores, dentre outros,
acreditam que a maternidade de substituição só é lícita se presente a
gratuidade do ato da gestante.
18
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito positivo de maternidade e a
utilização de útero de substituição. In: ROMEO CASABONA, Carlos Ma-
ría; QUEIROZ, Juliane Fernandes (coord). Biotecnologia e suas implica-
ções ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 318.

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198
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O OLHAR DA DIGNIDADE HUMANA SOBRE A CRIANÇA NASCIDA DE


ÚTERO DE SUBSTITUIÇÃO
O ser humano, detendo a qualidade de pessoa, é portador
de dignidade ética e titular de direitos inatos, inalienáveis e
imprescritíveis, a que o Estado e a comunicada científica de-
vem respeito, por serem os meios naturais para o reto cumpri-
mento de seus fins comuns. A dignidade é reconhecida a todo
o ser humano na medida em que ele é um sujeito individual,
isto é, um ser que possui a potencialidade de determinar-se,
por intermédio da razão, para a ação em liberdade.
Segundo Maria Celina Bodin de Moraes19, a raiz etimoló-
gica da palavra dignidade provém do latim: dignus é “aquele
que merece estima e honra, aquele que é importante.”
A vida humana, mesmo a vida em gestação, é um bem de
primeira ordem cuja defesa se impõe originariamente à consci-
ência de toda a pessoa responsável, independentemente das
suas convicções éticas ou religiosas. O respeito à vida é o fun-
damento de todos os demais direitos humanos, já que se consti-
tui em pré-requisito à existência e exercícios de todos os demais
direitos. A vida humana, que é o objeto do direito assegurado
no art. 5º, caput, da Constituição Federal, integra-se de elemen-
tos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais).
Hoje muitas técnicas inovadoras no campo das manipula-
ções genéticas estão surgindo. Os avanços biotecnológicos
estão, cada vez mais, integrando a nossa vida, seja por meio
da prevenção de doenças, novas formas de tratamento, novos
medicamentos, clonagem humana, utilização de embriões ex-
cedentes, aborto eugênico, genética molecular, células tronco,
dentre outros. Mas, no que tange ao útero de substituição,
qual a preocupação que os pais e o direito possuem em relação
a criança nascida deste processo, notadamente quando a
“mãe” é contratada para gerar a criança? Assim, o princípio da

19
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana:
substrato axiológico e conteúdo normativo. In: COUTINHO, Adalcy Ra-
chid, et al. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Org.
Ingo Wolgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.110.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
199
Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de substituição

dignidade humana, tem que se fazer presente para que a vida


do ser humano seja respeitada, para que se garanta a existên-
cia digna do ser humano.
Embora não suficiente, a legislação brasileira, neste as-
pecto, se manifesta através da Resolução n. 1.358, de 19 de
novembro de 1992, do Conselho Federal de Medicina que ad-
mite a prática desta técnica de reprodução assistida somente
entre parentes até o segundo grau. Mesmo que as intenções
desta resolução sejam elogiáveis, ela ainda é insatisfatória,
uma vez que é omissa no que se refere a filho havido através
de mãe substituta fora do que prevê em seu texto, e mais ain-
da, no que tange aos filhos havidos por mãe contratada em
país estrangeiro.
É tarefa do biodireito manifestar-se sobre as técnicas que
possam vir a causar limitações ou danos à dignidade humana.
Nesse sentido, Andréia Haas20 advoga que, “[...] o princípio da
dignidade humana é a base ou o fundamento de todo o pen-
samento, no que diz respeito aos direitos humanos tutelados,
constituindo o ponto de partida para a formulação das ideias
de Biodireito, Bioética, direito de morrer e viver dignamente”.
María Clemencia Ramírez, in Boaventura De Souza San-
tos,21 aduz que a luta pelo “direito a terem direitos” se refere
como os direitos deixam de ser uma condição dada e começam
a ser solicitados. São os cidadãos que têm que defender os
seus direitos e, nomeadamente, o direito a não serem excluí-
dos dos direitos que lhes são outorgados pela comunidade, e,
sobretudo, pela cidadania.
O dano à dignidade humana se reveste de gravidade
maior quando se direciona a um ser que ainda não nasceu e,
quando nascer, poderá sofrer consequências nefastas no seu

20
HAAS, Andréia. O princípio da dignidade humana como máxima do di-
reito fundamental à vida e da dignidade de morrer. In: Direito, cidada-
nia e políticas públicas. Org. Marli M. M. da Costa. Porto Alegre: Im-
prensa Livre, 2006. p.179.
21
SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia: os caminhos
da democracia participativa. Organizador. 2 ed. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2003. p.199.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
200
Astrid Heringer & Adriane Damian Pereira

direito de viver dignamente. Nesse contexto social e cultural,


em que o avanço da engenharia genética necessita urgente-
mente de regulamentação jurídica, é que o Estado tem elevada
importância, através de seus diversos mecanismos, em seus
diferentes níveis e poderes, para não permitir que os cidadãos
tenham restringido, devido àquelas práticas inovadoras, seus
direitos básicos outorgados pela Constituição e que lhe pro-
porcionam uma vida digna.
Como menciona Marli Marlene M. da Costa,22 uma socie-
dade de democracia aparente não garante a todos o pleno
acesso a seus direitos. O Estado deve atender aos cidadãos de
forma igualitária, permitindo que todos tenham acesso aos os
direitos que lhes são garantidos. E, através das práticas de
engenharia genética, a maior preocupação deverá ser a de ga-
rantir o direito constitucional à dignidade humana a todos,
sem distinção, priorizando o bem comum e a harmonia da so-
ciedade. Por isso, deverá o Estado, por meio do Direito e numa
visão de universalização de direito sociais, administrar e im-
plementar políticas públicas eficazes que garantam o verda-
deiro e digno direito à vida, limitando práticas de reprodução
assistida que ameacem este princípio fundamental.

CONCLUSÃO
O tema da mãe de substituição pode ser colocado ao lado
de outros grandes temas que dividem opiniões ao longo dos
tempos, tais como morte digna, aborto, pena de morte, provo-
cando discussões acaloradas e apaixonadas, pela sua permis-
são ou proibição. Essa, contudo, não foi a nossa intenção neste
trabalho. Objetivou-se conhecer o instituto e relacioná-lo à pre-
servação da dignidade humana da criança que nascerá a partir
deste processo.

22
COSTA, Marli Marlene M. da. Políticas Públicas e Violência Estrutural.
In: Direitos sociais e políticas públicas. Desafios Contemporâneos.
LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato. Tomo 5. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2005. p. 1263.
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201
Dignidade humana da criança nascida a partir do útero de substituição

As legislações do mundo globalizado, dentro dos parâme-


tros do Estado Democrático de Direito, deverão oferecer res-
postas às demandas desta técnica de reprodução assistida,
baseados no valor da dignidade da pessoa humana, atendendo
aos direitos e proporcionando o bem-estar das crianças nasci-
das a partir de mães de substituição.
As novas práticas de engenharia genética devem estar
alicerçadas nos direitos fundamentais da dignidade da pessoa
humana e na inviolabilidade do direito à vida, devendo as con-
dutas eticamente incompatíveis com a condição humana se-
rem descartadas, lembrando que um dos fundamentos básicos
da bioética é a prudência e a responsabilidade diante das ino-
vações.
Nesse contexto, uma normatização mínima faz-se neces-
sária, tendo em vista a urgência da proteção do ser humano
nos seus aspectos mais caros de dignidade humana, para que
a geração de bebês não se transforme apenas em uma questão
de necessidades e possibilidades, notadamente econômicas,
mas sim de atos de amor e solidariedade.

REFERÊNCIAS
ABELLÁN, Fernando; SÁNCHES-CARO, Javier. Bioética y ley en
reprodución humana asistida: manual de casos clínicos. Granada:
2009. p. 215.
ALKORTA IDIAKEZ, Itziar. Regulación jurídica de la medicina re-
productiva. Derecho español y comparado. Madrid: Aranzadi, 2003.
BERIAIN, Íñigo de Miguel. El embrión y la biotecnologia: un análi-
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
DIREITOS HUMANOS E IMUNIDADE DE
JURISDIÇÃO DO E STADO ESTRANGEIRO :
UM ANTIGO INSTITUTO ,
UM NOVO ENTENDIMENTO

Camila Vicenci Fernandes


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Dou-
toranda da Università degli Studi di Milano (Renato Treves International
PhD Program in Law and Society). (camila.vicenci@yahoo.com.br)

Resumo
O presente trabalho busca analisar um dos temas de maior relevância no âmbito do
direito internacional na atualidade: o conflito entre a necessidade de proteção dos
direitos humanos e a impossibilidade das vítimas lograrem reparações cíveis em
casos envolvendo Estados estrangeiros em razão da imunidade de jurisdição dos
mesmos. Assim, na primeira parte deste artigo, examinar-se-á inicialmente a confi-
guração do instituto da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, os princípios
que a sustentam e sua evolução histórica, para, na segunda parte, analisar as teorias
mais importantes acerca da prevalência dos direitos humanos sobre imunidade de
jurisdição do Estado estrangeiro perante os tribunais nacionais.
Palavras-chave: Direitos Humanos – Direito Internacional- Imunidade – Reparações.

Abstract
This paper aims to analyze one of the most relevant topics in international law to-
day: the conflict between the need to protect human rights and the impossibility of
victims to obtain civil redress in cases involving foreign states on grounds of their
immunity from adjudication. Thus, the first part of this article will examine the initial
configuration of the institute of state immunity, the principles sustaining it and its
historical evolution. In the second part, this paper shall address the most important
theories regarding the prevalence of human rights over state immunity before do-
mestic courts.
Keywords: Human Rights – International Law-Immunity – Redress.

INTRODUÇÃO
A importância conferida ao papel do indivíduo no cenário
no Direito Internacional Público, especialmente após a Segun-
da Guerra Mundial, e a consequente ênfase concedida à prote-
ção dos direitos humanos hoje em dia tem uma forte influência
sobre muitos institutos tradicionais desta área, e, neste senti-
206
Camila Vicenci Fernandes

do, os últimos anos testemunharam o nascimento de muitas


teorias que defendem a restrição ou mitigação da imunidade
de jurisdição do Estado estrangeiro perante os tribunais do-
mésticos do Estado-fórum quando as reivindicações envolvem
violações aos direitos humanos. Países de todo o mundo estão
atualmente lidando com a questão da imunidade do Estado
estrangeiro em violações de direitos humanos diante de suas
cortes domésticas, e a importância e atualidade do tema po-
dem ser constatadas na decisão de 2012 da Corte Internacio-
nal de Justiça no caso Jurisdictional Immunities (Alemanha
versus Itália, com intervenção da Grécia), no qual discutiu-se
precisamente tal tema1. Desta forma, é importante não só en-
tender o instituto da imunidade de jurisdição do Estado es-
trangeiro2, mas também as teorias que advogam pela sua miti-
gação em favor da proteção dos direitos humanos. Este artigo,
portanto, abordará tais questões, explicando inicialmente a con-
figuração do instituto da imunidade de jurisdição do Estado es-
trangeiro, os princípios que a sustentam e sua evolução históri-
ca, para depois examinar as teorias mais importantes acerca da
prevalência dos direitos humanos sobre imunidade de jurisdição
do Estado estrangeiro perante os tribunais nacionais.

IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO: PRINCÍPIOS


E DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
De acordo com Bröhmer, a imunidade de jurisdição teria o
poder de evitar que os tribunais do Estado-fórum pudessem
determinar a responsabilidade dos Estados estrangeiros por
suas ações3, ou seja, considerando que a jurisdição de um Es-
tado é, inicialmente, ilimitada, e que a competência é a medida
de este poder, a imunidade seria capaz de excluir a jurisdição,
operando como uma exceção. O autor complementa sua expli-

1
Disponível em: http://www.icj-cij.org/.
2
Para os fins deste trabalho, abordar-se-á somente a imunidade de juris-
dição, e não a de execução.
3
BROHMER, Jurgen. State Immunity and the Violation of Human Rights.
Amsterdã: Martinus Nijhoff, 1997.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
207
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro

cação, dizendo que a imunidade constitui um conjunto negati-


vo de regras que estabelece quando um tribunal não pode jul-
gar um caso4, e, nesse sentido, a próxima parte deste trabalho
examinará os princípios que sustentam o instituto da imunida-
de de jurisdição do Estado estrangeiro e seu desenvolvimento
histórico.

SOBERANIA5
Cassese lista, entre os poderes e deveres inerentes à so-
berania, o direito de imunidade do Estado estrangeiro perante
os tribunais internos de outros países por atos praticados no
exercício de sua capacidade soberana6. A imunidade é, para o
renomado autor, uma obrigação que deve ser respeitada pelo
Estado-fórum e um direito do Estado estrangeiro a não ser
submetido a julgamento em um tribunal de outro país, sendo
ao mesmo tempo a expressão e limitação da soberania7. A re-
lação entre a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro e
a soberania é, portanto, de um caráter muito íntimo, e pode-se
4
BROHMER, Jurgen. Op. cit.
5
Jean Bodin é considerado o pensador responsável pela primeira siste-
matização da soberania, vista em sua obra “Seis Livros da República”
como o sumo poder do rei sobre seus súditos, prerrogativa a ser exerci-
da de forma livre dos limites estabelecidos pelas leis. No contexto de
grande instabilidade da França do século XVII, Bodin acreditava que
somente um poder forte e de caráter centralizado e ilimitado evitaria
tragédias como a fatídica Noite de São Bartolomeu. A visão absolutista
de Bodin cedeu lugar, no transcorrer da História, a uma concepção de
soberania não mais irrestrita e una, e sim de um instituto multifacetado,
que possui vários aspectos. Assim, Bröhmer afirma que, de uma maneira
extrínseca, a soberania descreve a relação entre Estados como sujeitos
principais do direito internacional, e a relação entre os Estados e o pró-
prio direito internacional, enquanto seu viés intrínseco diz respeito à
habilidade dos Estados, enquanto entidades organizadas de indivíduos,
de cumprir seus propósitos e objetivos.
6
CASSESE, Antonio. International Law. New York: Oxford Press, 2005.
7
Cassese afirma: “A soberania estatal não é ilimitada. Muitas regras in-
ternacionais a restringem. Além das normas de tratados, que obviamen-
te variam de Estado para Estado, normas costumeiras impõem limita-
ções sobre a soberania estatal. Elas são a conseqüência legal natural da
obrigação de respeitar a soberania de outros Estados”. Ibidem, p. 98.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
208
Camila Vicenci Fernandes

dizer que “a imunidade estaria estritamente ligada a este valor


substantivo, sendo sua operação necessária para adequar a
conduta dos Estados e de seus órgãos para a independência
dos Estados em suas relações internacionais”8.

INDEPENDÊNCIA
De acordo com Brownlie, outro princípio em que se baseia
a imunidade é precisamente aquele da não-interferência nos
assuntos internos de outros Estados, nomeadamente o princí-
pio da independência9. O respeito a este princípio prevê que os
Estados não devem intervir nos atos, negócios, no governo e
em outras expressões de outro Estado, e, portanto, devem abs-
ter-se de submeter tais atos à análise de seu sistema judiciá-
rio. A imunidade de jurisdição, portanto, também deriva deste
princípio, inicialmente refletido no fato de que os Estados não
podem interferir nos atos públicos de Estados estrangeiros em
razão do respeito à sua independência10 e, também, que os tri-

8
MASSICCI, Carlos. Inmunidad del estado y derechos humanos. Navarra:
Civitas, 2007, p.55.
9
BROWNLIE, IAN. Principles of international public law. Londres: Oxford,
2008.
10
O princípio da independência foi consagrado em duas importantes deci-
sões: o caso Underhill v. Hernandez nos Estados Unidos da América, e a
decisão The Parlement Belge, da House of Lords inglesa. Na primeira de-
cisão – um caso que buscava reparação por prejuízos morais e materiais
alegadamente causados pelo comandante das forças revolucionárias da
Venezuela, Hernandez, a Underhill, um engenheiro contratado para
construir o sistema hidráulico de uma cidade do país -, a opinião do juiz
Fuller consagrou a posição de que “todo o Estado soberano é obrigado a
respeitar a independência de todos os outros Estados soberanos, e as
cortes de um não julgarão os atos do governo de outro realizados em seu
próprio território. Reparações por danos ocorridos em função de tais atos
devem ser obtidas pelos meios abertos a serem auxiliados pelos poderes
soberanos entre eles.” ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Cor-
te. Underhill v. Hernandez, 168 U.S. 250 (1897). Disponível em:
<http://supreme.justia.com/us/168/250/in
dex.html>. Acesso em 02.04.2013. O segundo caso é The Parlement Bel-
ge que, na Inglaterra, consolidou o princípio da independência como
uma das bases da imunidade soberana. O caso era relativo a um navio
de correspondência possuído e controlado pelo rei da Bélgica e tripulado
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
209
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro

bunais nacionais não devem interferir na condução da política


externa nacional ou estrangeira, em razão do o princípio da
separação de poderes11. Assim, a “independência implica que
os Estados têm direitos exclusivos para determinar sua própria
política e decidir a forma mais adequada para gerenciá-lo pu-
blicamente”12.

IGUALDADE
Este princípio é cristalizado na máxima latina par in pa-
rem non habet imperium, afirmando a impossibilidade de que
um Estado seja julgado por um sujeito de direito internacional
da mesma posição hierárquica. De acordo com Massicci, apoiar
a imunidade soberana sob a base do princípio da igualdade é
“uma justificação muito forte, que busca o respeito dos Esta-
dos como sujeitos de direito internacional, a segurança jurídi-
ca, pois cria um mínimo de previsibilidade na alocação de po-
der jurisdicional entre os Estados”13. A influência do princípio
da igualdade14 na instituição da imunidade de jurisdição do

pela Marinha Real Belga, no qual a Corte de Apelação sustentou não


possuir jurisdição “sobre a pessoa do soberano de qualquer outro Esta-
do, ou sobre a propriedade pública de qualquer Estado que seja desti-
nada a uso público”. HILLIER, Tim. Sourcebook on public international
Law. Londres: Cavendish, 1998. p. 289-290.
11
CASSESE, Antônio. Op.Cit.
12
MASSICI, Carlos. Op.Cit. p. 49.
13
MASSICI, Carlos. Op.Cit. p. 49.
14
Já em 1812, ao julgar o caso Escuna Exchange v. McFaddon, o juiz
Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, afirma:
“esta perfeita igualdade e absoluta independência dos soberanos, e este
interesse comum os impelindo a um relacionamento mútuo, e um inter-
câmbio de bons ofícios uns com os outros, fez surgir uma classe de ca-
sos nos quais entende-se que todo o soberano deve renunciar ao exercí-
cio de parte daquela jurisdição territorial completa e exclusiva, que se
diz ser o atributo de toda nação.[...]. Não se entende que um soberano
estrangeiro pretenda submeter-se a uma jurisdição incompatível com
sua dignidade e com a dignidade de sua nação, e para evitar esta subje-
ção é que a licença é obtida. AMERICAN SOCIETY OF
INTERNATIONAL LAW. The Schooner “Exchange” v. M'Faddon et al.
The American Journal of International Law, Washington DC, v. 3, n. 1, p.
227-237, jan. 1909, p. 229.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
210
Camila Vicenci Fernandes

Estado estrangeiro torna-se evidente quando se considera a


possibilidade de um Estado para manifestar a sua aquiescência
em ser processado perante os tribunais de outro país. Portanto,
de acordo com Brownlie, o consentimento dado reafirma o sta-
tus da igualdade e a paridade hierárquica dos Estados permite
que um voluntariamente submeta-se à jurisdição de outro15.

DIGNIDADE
A evolução histórica da imunidade de jurisdição, em ge-
ral, está intrinsecamente ligada ao princípio da dignidade que,
ao estabelecer o reconhecimento da alta distinção para os che-
fes de Estados estrangeiros, os seus agentes diplomáticos e
outros representantes, levou à concessão da imunidade de ju-
risdição, um privilégio posteriormente estendido para a nação
como uma entidade estatal. Assim, a fim de não interferir no
desempenho das atividades conduzidas por um Estado es-
trangeiro, o Estado-fórum se abstém de julgar tais atos16. É cla-
ro, portanto, que “o fundamento de imunidade de jurisdição
também é baseado na dignidade de uma nação estrangeira,
seus órgãos e representantes, e na necessidade funcional de
não impedir a prossecução da sua missão”17.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A imunidade do Estado estrangeiro foi concedida por um
longo tempo de maneira similar à imunidade uma vez concedi-

15
É importante referir aqui a consagração jurisprudencial de tal princípio
no notório caso I Congresso del Partido, no qual a House of Lords afirmou
que “a base sobre a qual um Estado é considerado imune à jurisdição
territorial das cortes de outro Estado é aquela do “par in parem”, que
efetivamente significa que os atos soberanos ou governamentais de um
Estado não são matérias sobre as quais as cortes de outro Estado pos-
sam julgar”. REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO
NORTE. House of Lords. I Congreso del Partido, 1983. Disponível em:
<http://www.i-law.com/ilaw/doc/view.htm?id=148441>. Acesso em:
02/04/2013.p. 262.
16
BROWLIE, Ian. Op.Cit.
17
BROWNLIE, Ian. Op.Cit. p 247.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
211
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro

da à pessoa do soberano, ou seja, de forma absoluta e pratica-


mente irrestrita, o que significa que os atos praticados por um
Estado não poderiam, portanto, ser submetido à apreciação
dos tribunais internos de outros países18. Assim, a chamada
“regra de imunidade” foi baseada puramente no status, sendo
suficiente para o réu provar sua condição de Estado ou de go-
verno para que sua imunidade fosse concedida. No entanto, as
mudanças ocorridas no papel do Estado também levaram a
uma mudança na concepção de imunidade jurisdicional. Ao
longo do século XIX, os Estados também apresentaram-se co-
mo grandes empresários comerciais19 e, além das ações tradi-
cionais de governo, executadas em suas prerrogativas sobera-
nas, os Estados cada vez mais praticavam atos de natureza
comercial, os quais foram realizadas com base em sua capaci-
dade privada, como pessoas jurídicas de direito privado20. Este
novo papel dos Estados no cenário internacional então levou à
necessidade de um tratamento jurídico diferente para os atos
praticados por estas entidades. Assim, surge a distinção entre
atos de jure imperii e atos de iure gestionis ou privatorum, que
foi registrada inicialmente, de acordo com Cassese, na juris-
prudência dos tribunais italianos e belgas, que começaram a
se recusar a concessão de imunidade soberana por atos come-
tidos por Estados estrangeiros em sua capacidade privada,
inaugurando uma nova tendência no direito internacional21.

18
Segundo Arroyo, “A imunidade de jurisdição foi estabelecida na época
das monarquias absolutas, quando a pessoa do soberano se confundia e
identificava com o Estado mesmo, critério que reinou pacificamente em
todo o mundo e foi mantido em virtude do princípio de DIP par in parem
non habet imperium, sustentando-se na igualdade e soberania própria
dos Estados” ARROYO, Diego Fernández. Derecho internacional privado
de los estados del Mercosur : Argentina, Brasil, Paraguay, Uruguay. Bue-
nos Aires: Zavalia, 2003, p. 143).
19
BROWNLIE, Ian. Op.Cit
20
CASSESE, Antonio. Op.Cit.
21
BELSKY, Adam; MERVA, Mark; ROHT-ARRIANZA, Naomi. Implied
Waiver under the FSIA: A Proposed Exception to Immunity for Violations
of Peremptory Norms of International Law. California Law Review, v. 77,
1989.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
212
Camila Vicenci Fernandes

Assim, pouco a pouco a idéia de que os Estados gozava de


imunidade absoluta começou a dar lugar a uma visão mais res-
tritiva do instituto. No entanto, apesar do progresso evidente
sobre a questão em direção a uma perspectiva restritiva da
imunidade soberana no cenário internacional, deve-se notar que
este processo não foi concluído e, de acordo com Karagiannakis,
apesar da existência de um consenso de que uma norma inter-
nacional de imunidade absoluta não existe mais, esta afirmação
não conduz necessariamente à suposição de que há uma regra
de imunidade restritiva de direito internacional22.
Se no passado foi possível identificar uma “regra” de
concessão de imunidade ao Estado estrangeiro perante os tri-
bunais do Estado-fórum, hoje o quadro é bastante diferente, e
existem muitas vozes que agora defendem uma mitigação des-
se chamada “regra”, particularmente para ações relacionadas
a violações de direitos humanos. Esta tendência no direito in-
ternacional, que vem ganhando crescente relevância, tanto na
doutrina e na jurisprudência, será o assunto da próxima parte
deste trabalho.

TEORIAS SOBRE VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS E A


IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO
A dinâmica do direito internacional faz novas tendências
surgirem no horizonte ao lado das visões tradicionais, privile-
giando-se cada vez mais o papel do indivíduo dentro do con-
texto do cenário internacional. Neste sentido, são muitos os
que defendem uma nova transição baseada na dignidade hu-
mana e na proteção dos Direitos Humanos, o que permitiria um
avanço na teoria da imunidade do Estado estrangeiro que seria
condizente com a importância dada pelo Direito para a prote-
ção desses valores. A recusa em conceder imunidade aos Es-
tados em casos de violações aos direitos humanos perante as
cortes domésticas do Estado-fórum é uma tendência que está
ganhando força e que conta com várias teorias para justificá-la,

22
Ibidem.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
213
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro

além de se manifestar nas decisões de tribunais nacionais com


freqüência cada vez maior. Assim, este novo conceito no cam-
po da imunidade soberana é o objeto de estudo neste ponto,
que irá abordar as principais teorias sobre o assunto.

A TEORIA DA RENÚNCIA IMPLÍCITA


Esta teoria é uma proposta de Belsky, Merva e Roht-
Arrianza23 de uma interpretação evolutiva do artigo 1.605 (a)
(1)24 da Lei de Imunidade Soberana Estrangeira de 1976, o es-
tatuto dos Estados Unidos da América sobre o assunto
(Foreign Sovereign Immunities Act ou FSIA). Segundo os auto-
res, os Direitos Humanos alcançaram o status de normas de jus
cogens25, e sua violação constitui uma renúncia implícita do

23
KARAGIANNAKIS, Magdalini. State Immunity and Fundamental Human
Rights. Leiden Journal of International Law, Holanda, v. 11, p. 9-43, 1998.
24
Article 1605. General exceptions to the jurisdictional immunity of a for-
eign State (a) A foreign State shall not be immune from the jurisdiction
of courts of the United States or of the States in any case – (1) in which
the foreign State has waived its immunity either explicitly or by implica-
tion, notwithstanding any withdrawal of the waiver which the foreign
State may purport to effect except in accordance with the terms of the
waiver;
25
As normas de jus cogens, também conhecidas como normas peremptó-
rias de Direito Internacional, foram previstas pela Convenção de Viena
de 1969 sobre Direito dos Tratados, que determina: Artigo 53-Tratado
em Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral
(jus cogens):
É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma
norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente
Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma
norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados
como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e
que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional
geral da mesma natureza.
Artigo 64 Superveniência de uma Nova Norma Imperativa de Direito In-
ternacional Geral (jus cogens):
Se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional geral,
qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma tor-
na-se nulo e extingue-se.
A dificuldade de utilização prática desde conceito é muito bem explica-
da por Dinah Shelton:

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
214
Camila Vicenci Fernandes

Estado violador a sua imunidade de jurisdição, configurando,


portanto uma exceção presente no referido artigo do FSIA26. A
teoria da renúncia implícita é criticada por muitos autores por-
que presume uma renúncia, ou seja, uma expressão de vonta-
de de ser julgado, em situações onde não há nenhuma, e em
muitas ocasiões o Estado violador chega mesmo a declarar a
sua vontade de usar o privilégio da imunidade soberana.
Jurisprudencialmente, esta teoria apareceu pela primeira
vez no voto dissidente da juíza Patricia Wald no caso Princz
versus Alemanha, nos Estados Unidos da América (a demanda
referia-se a um pedido de indenização por Hugo Princz, judeu
americano, em função de ter sido vítima do regime nazista),
mas sua consagração deu-se, de fato, nas cortes gregas, no
caso Prefeitura de Voiotia e outros versus Alemanha, no qual
vítimas de um massacre perpetrado pelas forças alemãs na
vila grega de Distomo buscavam reparações pelos danos sofri-
dos27.

“Neither the International Law Commission nor the Vienna Conference


on the Law of Treaties developed an accepted list of peremptory norms,
although both made reference in commentaries and discussion to the
norms against genocide, slave trading, and use of force other than in
self-defense.[...]. The different theories as to the source of peremptory
norms affect the contents; those who adhere to the voluntarist approach
generally see the content as limited to a few rules that states have rec-
ognized as not being subject to derogation, reservation, or denunciation.
Natural law proponents would subscribe to an even stricter list of immu-
table principles of justice. In contrast, theories based on community val-
ues result in a longer list of evolving norms.[...] Proponents have argued
for the inclusion of all human rights, all humanitarian norms (human
rights and the laws of war), or singly, the duty not to cause transbound-
ary environmental harm, freedom from torture, the duty to assassinate
dictators, the right to life of animals, self-determination, the right to de-
velopment, free trade, and territorial sovereignty (despite legions of
treaties transferring territory from one state to another)”. SHELTON, Di-
nah. Normative Hierarchy in International Law. The American Journal of
International Law, Washington DC, v. 100, n. 2, abr. 2006. p.302-303.
26
BELSKY, Adam; MERVA, Mark; ROHT-ARRIANZA, Naomi. Op.Cit.
27
Os principais argumentos da Corte grega para descartar a imunidade de
jurisdição da Alemanha são trazidos por Batenkas: a) Quando um Esta-
do viola normas de jus cogens, ele não pode esperar de boa-fé a conces-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
215
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro

TEORIA DA HIERARQUIA NORMATIVA


Desenvolvida por Mathias Reimann28 com base na decisão
Princz contra Alemanha (Estados Unidos da América), esta
teoria parte de uma visão sistemática da ordem jurídica inter-
nacional, em que as normas de jus cogens (e os Direitos Hu-
manos assim considerados) estariam no topo de uma pirâmide
hierárquica, e poderiam, portanto, derrogar as normas inferio-
res que se opõem a elas, incluindo a regra de imunidade sobe-
rana, que tem apenas um caráter costumeiro29. Os críticos a

são do privilégio da imunidade. Portanto, assume-se que ele tacitamente


renuncia ao privilégio (renúncia construtiva por operação do direito in-
ternacional)
b) Os atos de um Estado que violam normas de jus cogens não possuem
caráter soberano. Nestes casos considera-se que o Estado acusado não
agiu dentro do âmbito de sua capacidade como soberano.
c) Atos contrários ao jus cogens são nulos, e não podem constituir uma
fonte de direitos ou privilégios legais, tais quais pedidos de imunidade,
em respeito ao princípio ex injuria non oritur jus.
d) O reconhecimento da imunidade por uma corte nacional a um ato que
é contrário ao jus cogens seria o equivalente a colaborar com um ato que
é fortemente condenado pela comunidade internacional.
e) A invocação da imunidade para atos ilegais perpetrados em violação
às normas de jus cogens constituiria um abuso deste direito.
f) Como o princípio da soberania territorial é superior ao princípio da imu-
nidade estatal, um Estado que viola o primeiro ao ocupar ilegalmente
um território não pode invocar o princípio da imunidade soberana para
atos cometidos durante a ocupação ilegal. BATENKAS, Ilias. Prefecture
of Voiotia v. Federal Republic of Germany. Case No. 137/1997. The
American Journal of International Law, Washington DC, v. 92, n. 4,out.
1998, p. 769 e 770).
28
REIMANN,Mathias. A Human Rights Exception to Sovereign Immunity-
Some Thoughts on Princz v. Federal Republic of Germany. Michigan
Journal of International Law, St. Anne Arbor, MI, v.16, p. 403-432, 1994.
29
No âmbito jurisprudencial, a teoria da hierarquia normativa foi utilizada
no pleito de Al-Adsani v. Government of Kuwait, que buscava repara-
ções no Reino Unido por tortura e outras violações realizadas pelo go-
verno do Kuwait. Tendo sua demanda indeferida pela corte inglesa, Al-
Adsani ingressou perante a Corte Européia de Direitos Humanos, agora
contra o Reino Unido, sob o artigo 6º da Convenção (direito a um proces-
so equitativo ou acesso à justiça), e mais uma vez utilizou o argumento
de que a superioridade hierárquica do jus cogens significa a sua preva-
lência sobre as regras “inferiores”, tais como a imunidade de jurisdição

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
216
Camila Vicenci Fernandes

esta teoria indicam que ela atribui funções e poderes às nor-


mas jus cogens que vão muito além do âmbito da Convenção
de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969. Além disso,
esta teoria foi elaborada com base na decisão Princz contra
Alemanha, que lida com um fato que ocorreu muitos anos an-
tes da previsão normativa do jus cogens.

JURISDIÇÃO UNIVERSAL
Esta teoria foi formulada pela primeira vez no campo do
direito penal, em uma tentativa de julgar os crimes de pirata-
ria, que, devido ao seu caráter extraterritorial, são muito difí-
ceis serem julgados. Mais tarde, essa teoria começou também
a ser aplicada a processos cíveis, e seus defensores afirmam
que, devido à natureza das violações dos Direitos Humanos, e
considerando que toda a humanidade tem interesse em punir
tais delitos, cada Estado teria jurisdição para se pronunciar
sobre violações a tais direitos e, portanto, as cortes domésticas
do Estado-fórum poderiam ultrapassar o escudo da imunidade
de jurisdição do Estado estrangeiro em tais casos. A aplicação
desta teoria é, no entanto, é bastante controversa, e críticos
discutem não só a pertinência de sua aplicação no âmbito da
reparação civil, mas também a possibilidade de tal prerrogati-
va para ser usada para fins políticos pelos Estados30.

do Estado estrangeiro (norma costumeira). Analisando o pleito, a Corte


Européia de Direitos Humanos decidiu, por 9 votos a 8, que o Reino Uni-
do não violara os diretos do autor sob o artigo 6º da Convenção, mas a
pouca diferença de votos e as opiniões expressas nos votos divergentes
sinalizam um certo reconhecimento da teoria da hierarquia normativa.
30
Conforme explica Carlo Focarelli, o caso Ferrini versus Alemanha (Corte
di Cassazione da Itália), envolvendo o pedido de indenização de um ju-
deu italiano vítima no nazismo, notabilizou a utilização da jurisdição
universal para justificar a não outorga de imunidade de jurisdição de um
Estado estrangeiro violador de Direitos Humanos. Entre os diversos ar-
gumentos utilizados pela Corte di Cassazione, merece destaque a men-
ção da jurisdição universal como mecanismo para estabelecer a jurisdi-
ção das cortes domésticas em casos de graves violações aos Direitos
Humanos, afastando-se, conseqüentemente, a imunidade de jurisdição
do Estado estrangeiro em demandas que buscam reparações cíveis.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
217
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro

TEORIA DA OPÇÃO E DA CALCULABILIDADE DO RISCO


Criada por Jürgen Bröhmer, esta teoria inicialmente afir-
ma que o Estado tem sempre a opção de não violar os direitos
humanos (ao contrário de outras situações de responsabiliza-
ção, como nas transações comerciais, em que o Estado poderia
ser “forçado” a agir de uma forma prejudicial, como celebrar
um contrato para a compra de grãos para evitar a fome de seus
nacionais), mas, por outro lado, ao contrário da maioria das
atividades privadas, o risco da responsabilização do Estado
não pode ser precisamente calculado em casos de violações
dos direitos humanos e, portanto, coberto por seguro, por
exemplo31. Assim, um critério simplesmente “compensa” o ou-
tro, equilibrando a equação “opção versus calculabilidade do
risco” de violações dos direitos humanos para a mesma soma
resultante de outras atividades comerciais do Estado, exceção
já consagrada, o que justificaria a negativa da imunidade so-
berana também nestes casos.
A aplicação desta teoria seria mitigada pela natureza das
violações, já que o autor argumenta que apenas as violações
de caráter individual e pessoal – e não as que ocorrem em um
contexto geral, como uma guerra ou o extermínio étnico – seri-
am susceptíveis de tornar responsável o Estado agressor sem
comprometer a sua soberania funcional com o valor total das
reparações, ou até mesmo abrir a porta para a questão das
possíveis reconvenções32. Em relação a violações localizadas
em uma zona intermediária entre as individuais e as de caráter
geral, a teoria de Bröhmer argumenta que o Estado que desejar
fazer uso do privilégio da imunidade de jurisdição deve demos-
trar que a responsabilidade por tais violações implicaria um
encargo financeiro que seria quase insuportável para o Estado
violador33. A crítica mais óbvia a esta teoria reside em sua dis-

FOCARELLI, Carlo. The Ferrini Decision. International and Comparative


Law Quarterly, n. 54, p. 951-958, 2005.
31
BRÖHMER,Jurgen. Op.Cit.
32
Ibidem.
33
Ibidem.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
218
Camila Vicenci Fernandes

tinção artificial entre as violações de caráter individual ou ge-


ral, uma vez que ambas implicam conseqüências semelhantes
para os indivíduos, e não há evidências de que determinar a
responsabilização do Estado violador nestes casos pudesse
levar à sua “falência”.

TEORIA DO BENEFÍCIO COLETIVO


O autor desta teoria, Lee Caplan, afirma que a imunidade
é o resultado do embate entre o princípio da jurisdição territo-
rial exclusiva do Estado no seu território e a igualdade sobera-
na dos Estados, cada um embasando uma visão diferente so-
bre a imunidade de jurisdição34. Segundo esta teoria, a imuni-
dade é entendida hoje de maneira errônea, sendo vista como
um “direito fundamental” do Estado, quando na verdade ela é
uma exceção ao princípio da jurisdição territorial exclusiva, e
não a regra35. A igualdade soberana dos Estados significa, de
fato, que eles possuem uma igual capacidade de desfrutar de
certos direitos, e a mera condição de Estado não concede o
direito à imunidade de jurisdição, porque a regra é o monopólio
jurisdicional do Estado-fórum. Essa competência, no entanto,
limita-se à presença de elementos de conexão para justificar o
seu exercício de forma razoável. A teoria afirma que a conces-
são de imunidade é a conseqüência de um acordo que resulta
no benefício coletivo dos Estados envolvidos, o que permite o
exercício eficiente das suas funções públicas, garantindo que
as relações internacionais sejam conduzidas corretamente, o
que não acontece, por exemplo, quando um Estado viola os
direitos humanos de cidadãos de outro Estado36. A crítica a
esta teoria reside na questão da prevalência dos interesses
dos Estados sobre os dos indivíduos, e também na evasão da
definição do âmbito de aplicação das normas de jus cogens.

34
CAPLAN, Lee. State Immunity, Human Rights, and Jus Cogens: A Cri-
tique of the Normative Hierarchy Theory. The American Journal of Inter-
national Law, Washington DC, v. 97, n. 4, p. 741-781, out. 2003.
35
CAPLAN, Lee. Op.Cit.
36
Ibidem.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
219
Direitos humanos e imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro

CONCLUSÃO
O estudo das teorias acima leva à formulação de uma
perspectiva capaz de reafirmar a primazia da jurisdição do-
méstica e a proteção jurídica dos Direitos Humanos. O exercí-
cio da jurisdição do Estado pode ser vista como a regra, a ser
excetuada através da concessão de imunidade apenas de
acordo com os interesses do Estado-fórum. Neste sentido, é
importante que os tribunais domésticos ao redor do mundo
percebam que a promoção e proteção dos Direitos Humanos é
um dos mais altos valores da comunidade internacional – algo
que todas as nações possuem interesse em preservar, e que
permitir às vítimas acesso aos tribunais nacionais em busca de
reparações é um passo necessário a fim de tornar a proteção
dos Direitos Humanos realmente efetiva.
A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro tem sido
atenuada em muitos casos nos últimos anos, tais como em atos
comerciais ou ações trabalhistas, e é chegada a hora do Direito
Internacional, mais uma vez, reformular a perspectiva sobre
este campo, desta vez em favor das vítimas de violações aos
Direitos Humanos em todo o mundo.

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Camila Vicenci Fernandes

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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
O NOVO PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO
DO MUNICÍPIO DE SANTOS :
AS PERSPECTIVAS LANÇADAS
PARA A GARANTIA DA QUALIDADE
DE VIDA E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL

Cristiane Elias de Campos Pinto


Advogada e Professora Universitária. Pós-graduada em Direito pela Uni-
versidade Católica de Santos e pela Pontifícia Universidade Católica de Be-
lo Horizonte. Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade Católica
de Santos. (cristiane.e.c.pinto@gmail.com)

Resumo
Os planos diretores municipais aprovados após o advento do Estatuto da Cidade
receberam maior importância na medida em que foi estabelecida a participação
popular como requisito da elaboração do referido instrumento. Os princípios inseri-
dos nas normas municipais atendem as diretrizes gerais da lei federal, muito embora
na prática não haja a efetiva garantia da consecução de tais objetivos. O artigo trata
do caso do município de Santos, que não é muito diferente da maior parte dos mu-
nicípios brasileiros em se tratando do processo de revisão e aprovação do plano
diretor, ainda que se considere a existência de um verdadeiro incremento na partici-
pação social especialmente representada pelos conselhos municipais e entidades de
classe. A análise feita dos planos anteriores é interessante para se estabelecer e
refletir sobre o avanço do comportamento legislativo municipal nessa matéria. O
fato revelado pelo presente artigo é que o atual plano, ainda que tenha contempla-
do diferentes e abrangentes diretrizes, ainda não garante a efetiva adoção de políti-
cas públicas tendentes a melhorar a qualidade de vida das pessoas no município
tampouco o pretendido desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave: plano diretor; planejamento; desenvolvimento sustentável.

Abstract
The municipal master plans approved after the advent of the City Statute received
greater importance in that popular participation was established as a requirement of
the development of this instrument. The principles embedded in municipal stand-
ards meet the general guidelines of federal law, although in practice there is no
guarantee of the effective achievement of such goals. The article discusses the case
of Santos, which is not much different from most of the municipalities in the case of
the review process and approval of the master plan, even if it was the existence of a
real increase in social participation especially represented by municipal councils and
associations. The analysis of previous plans is interesting to settle down and reflect
222
Cristiane Elias de Campos Pinto

on the progress of municipal legislative behavior in this matter. The fact revealed by
this article is that the current plan, although it contemplated different guidelines and
comprehensive, yet ensures the effective implementation of public policies aimed at
improving the quality of life of people in the municipality nor the desired sustainable
development.
Keywords: master plan, planning, sustainable development.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende demonstrar através da análi-
se dos conceitos doutrinários sobre plano diretor e da fundamen-
tação legal do mesmo no contexto da atual política urbana naci-
onal, a relevância do tema para o planejamento das cidades.
O estudo do processo de revisão do plano diretor nos mu-
nicípios pode subsidiar a análise dos futuros gestores públicos
na condução das políticas e metas de desenvolvimento eco-
nômico e social a garantir a desejada qualidade de vida das
pessoas e o desenvolvimento sustentável.
Sendo assim, pretende-se estudar a fundamentação legal
do plano diretor baseada também nos conceitos doutrinários
sobre o tema e para tanto, vamos mencionar os princípios nor-
teadores do atual plano diretor, para entender como se deu o
referido processo de revisão e elaboração, comparando-o com
os planos diretores anteriores.
Com essa análise, será possível verificar se de fato, os
princípios adotados pela norma em comento foram incorpora-
dos no texto, especialmente no tocante aos planos e vetores de
desenvolvimento, a permitir que o texto final seja o resultado
do planejamento negociado com a sociedade e que cumpra
finalidade social.

FUNDAMENTAÇÃO LEGAL DOS PLANOS DIRETORES NA POLÍTICA


URBANA NACIONAL
O plano diretor encontra respaldo em nosso ordenamento
jurídico no parágrafo 1º do artigo 182 da Constituição Federal
de 1988 no capítulo que trata da política urbana.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
223
O novo plano diretor participativo do município de Santos

Sendo assim, o legislador fez previsão sobre o conteúdo


mínimo do referido instrumento, especialmente para discipli-
nar a obrigatoriedade em municípios com mais de 20 mil habi-
tantes, tratando inclusive de mencionar sua finalidade de or-
denar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e garantia do bem-estar de seus habitantes.
O Estatuto da Cidade também fez previsão expressa so-
bre o plano diretor no artigo 41 e ampliou o rol da obrigatorie-
dade do plano, nos incisos I, II, III, IV e V, o que desde logo,
suscitou a discussão sobre sua constitucionalidade.
A alegação de inconstitucionalidade trazida pela inter-
pretação de tais dispositivos teve como premissa, na opinião
Eremberg1 a seguinte questão:
Seria essa ampliação inconstitucional, à luz do princípio
da autonomia dos municípios, configurando indevida in-
vasão de competência, por parte da União ou dos Esta-
dos, ao impor a tais entes federados uma exigência que
desborda o quanto determinado de forma expressa na
Constituição Federal?

A discussão sobre a inconstitucionalidade do dispositivo


41 do Estatuto da Cidade assim como da Constituição Estadu-
al de outros estados, com disposições ainda mais abrangentes
sobre o tema, chegaram ao Supremo Tribunal Federal que de-
cidiu em Ação Direta de Inconstitucionalidade especialmente
no caso da Constituição Estadual do Amapá que segue:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO.
MUNICÍPIOS COM MAIS DE 5 MIL HABITANTES:
PLANO DIREITOR. ART. 195, “CAPUT”, DO ESTADO DO
AMAPÁ. ARTIGOS 25, 29, 30, I E VIII, 182 parágrafo 1.o,
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E 11 DO A.D.C.T. 1. O
“caput” do art. 195 da Constituição Estadual do Amapá
estabelece que “o plano diretor, instrumento básico da
política de desenvolvimento econômico e social e de ex-

1
EREMBERG, Jean Jacques. Função Social da Propriedade Urbana.
Municípios sem plano diretor.São Paulo: Letras Jurídicas, 2008, p.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
224
Cristiane Elias de Campos Pinto

pansão urbana, aprovado pela Câmara Municipal, é obri-


gatório para os Municípios com mais de 5 mil habitan-
tes”.2. Essa norma constitucional estendeu, aos municí-
pios com número de habitantes superior a cinco mil, a
imposição que a Constituição Federal só fez àqueles com
mais de vinte mil (art. 182, p.1.o). 3. Desse modo, violou o
princípio da autonomia dos municípios com mais de cin-
co mil e até vinte mil habitantes, em face do que dispõem
os artigos 25, 29, 30, I e VIIII da C.F. e 11 do A.D.C. T. 4.
Ação Direita de Inconstitucionalidade julgada proceden-
te, nos termos do voto do Relator. 5. Plenário: decisão
unânime. STF, ADIn n. 826/9, AP, Rel. Min. Sydney San-
ches, j. em 17.09.1998,DJ de 12.03.1999.

Contudo e como obtempera o mesmo autor, sobre a com-


petência da União em estabelecer normas gerais sobre a atua-
ção dos municípios em matéria urbanística, a lei federal pode
ampliar o rol de municípios sujeitos ao plano diretor, senão
vejamos:
Nessa ordem de ideias, a rigor não se aplica às disposi-
ções do artigo 41 do Estatuto da Cidade a postura adota-
da pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal no sentido da
inconstitucionalidade da ampliação do rol de município
sujeitos à obrigatoriedade de edição de plano diretor. Em
outras palavras, não há inconstitucionalidade na previsão
legal do artigo 41 do Estatuto da Cidade.

Dito isto, entendemos que os municípios podem dispor da


utilização de planos diretores como meio de ordenamento e
planejamento urbano, em razão de competência municipal,
tendo em vista que o mandamento constitucional prevê ape-
nas as regras e diretrizes gerais.
Considerando o aparato legal do referido instrumento, fa-
remos na próxima seção a análise conceitual do plano diretor.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
225
O novo plano diretor participativo do município de Santos

ANÁLISE CONCEITUAL DO INSTRUMENTO DO PLANO DIRETOR


Ressaltada, pois, a importância do plano diretor para as
cidades, cumpre-nos destacar algumas definições sobre esse
instrumento.
Segundo Granziera2,
[...] o plano diretor é o instrumento catalizador das condi-
ções de vida desejadas pelos habitantes. Trata-se do
produto de uma negociação pública, em que os habitan-
tes definem o que desejam para a cidade. Deve, pois, o
Plano Diretor ser entendido não apenas como um instru-
mento de gestão urbana e ambiental, mas sobretudo co-
mo o processo compreensivo e participativo no qual pode
se dar o enfrentamento dos diversos conflitos existentes
acerca do uso e ocupação do solo urbano e de seus recur-
sos

A nosso ver, essa é a melhor definição doutrinária sob o


tema, tendo em vista que analisa o instrumento sob o ponto de
vista social e ambiental, levando em conta ainda o próprio pro-
cesso de implementação e aprovação, na medida em que refor-
ça vários aspectos da produção do instrumento, em especial, a
participação popular para a construção de uma política pública
para o planejamento municipal.
Desse modo, o plano diretor elaborado sob essa premissa,
ou seja, plano diretor construído com a real participação dos
maiores interessados terá maior chance de garantia de sua
efetividade.
Outras definições doutrinárias devem ser mencionadas
tendo em vista a possibilidade de diferentes abordagens sobre
o mesmo instrumento, de forma que, o plano diretor também
pode ser definido sob o aspecto relacionado com o crescimento
e o funcionamento da cidade e nesse ponto define SILVA3 :

2
85GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. São Paulo:
Atlas, 2009, p. 469.
3
SILVA, Carlos Henrique Dantas. Plano Diretor. Teoria e Prática. São
Paulo: SARAIVA, 2008.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
226
Cristiane Elias de Campos Pinto

Segundo a Constituição de 1988, o plano diretor é o ins-


trumento básico da política de desenvolvimento e de ex-
pansão urbana. Sendo instituído na forma de lei comple-
mentar, dispõe sobre a política urbana do município, or-
ganizando o funcionamento e o crescimento da cidade”

Nessa linha Machado4 destaca o plano diretor sob o ponto


de vista de normativa municipal levando em considerando a
regra de competência legislativa:
[...] conjunto de normas obrigatórias, elaborado por lei
municipal específica, integrando o processo de planeja-
mento municipal, que regula as atividades e os empre-
endimentos do próprio Poder Público Municipal e das
pessoas físicas ou jurídicas, de Direito Privado ou Públi-
co, a serem levados a efeito no território municipal.

Por fim, a definição legal do plano diretor inserida no arti-


go 40 do Estatuto da Cidade, que dispõe o mesmo como ins-
trumento básico da política de desenvolvimento e expansão
urbana.
As definições apresentadas acima, denotam a relevância
e complexidade do planejamento urbano, tendo como base a
aprovação desse conjunto de normas inseridas em um único
instrumento jurídico.
Destarte, e diante das conceituações doutrinárias acima
apontadas, veremos a seguir, os princípios inseridos no atual
plano diretor e a respectiva relação do mesmo com diversas
normativas internacionais, para melhor compreender seu pro-
cesso de revisão e elaboração.

DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO ATUAL PLANO DIRETOR


Os princípios informados no artigo 1º da Lei.731 de 2011,
que instituiu o atual plano diretor do município, são referenci-
ados em diversos diplomas internacionais e nacionais e por

4
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São
Paulo: SARAIVA, 2008.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
227
O novo plano diretor participativo do município de Santos

isso vale destacar o referido dispositivo nesse momento do


trabalho:
Art. 1.º Fica instituído o Plano Diretor de Desenvolvimen-
to e Expansão Urbana do Município de Santos, cujos
princípios básicos são a melhoria da qualidade de vida
da população e o pleno desenvolvimento das funções so-
cial e econômica do Município, conforme determina a Lei
Orgânica.

Vale destacar algumas normativas internacionais que tra-


tam do assunto, dentre elas, pode-se dizer que o grande marco
de proteção ambiental, nesta considerando-se a preservação
do bem estar humano e da sadia qualidade de vida foi a Confe-
rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente em Estocol-
mo em 1972, que preconizou no Princípio Primeiro:
O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio
ambiente, que lhe dá sustento físico e lhe oferece a opor-
tunidade de desenvolver-se intelectual, moral, social e
espiritualmente. A longa e difícil evolução da raça huma-
na no planeta levou-a a um estágio em que, com o rápido
progresso da Ciência e da Tecnologia, conquistou o po-
der de transformar de inúmeras maneiras e em escala
sem precedentes o meio ambiente. Natural ou criado pelo
homem, é o meio ambiente essencial para o bem-estar e
para gozo dos direitos humanos fundamentais, até mes-
mo o direito à própria vida.

O princípio segundo da referida Conferência aduz que a


proteção e melhoria do meio ambiente devem constituir a preo-
cupação de todos os Governos por afetar o bem estar dos povos.
Ainda na esfera internacional, a Declaração sobre o Direi-
to ao Desenvolvimento adotada pela Resolução nº. 41/128 da
Assembléia Geral das Nações Unidas de 4 de dezembro de
19865, reafirma em seu texto o ser humano como objeto e des-
tinatário principal de proteção das normas para o desenvolvi-
mento, que deve ter como baliza o respeito aos direitos huma-

5
Resolução 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
228
Cristiane Elias de Campos Pinto

nos, e ainda que os Estados têm o dever de formular políticas


objetivando o bem estar de toda a população.
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento na Declaração Rio de Janeiro de 1992, adotou
no princípio 1 que os seres humanos têm direito a vida saudável.
Diante desse panorama, há que se refletir sobre o signifi-
cado de bem estar social e qualidade de vida no contexto das
cidades brasileiras, na que medida os planos municipais ten-
dem a alcançar tal objetivo, visto como um dos princípios nor-
teadores do plano, considerando o estado de bem estar como
atributo da qualidade de vida e meta do Poder Estatal.
Segundo Daniela Di Sarno6,
[...] qualidade de vida engloba muito mais que a mera
sobrevivência da espécie. Refere-se à vivência em sua
plenitude, na qual o ser usufrua de tudo o que for neces-
sário para, além da sobrevivência física, obter a realiza-
ção de suas finalidades

A Constituição Federal de 1988 também consagrou o di-


reito à qualidade de vida no artigo 225 com um atributo antes
não mencionado, qual seja – direito à sadia qualidade de vida.
Verifica-se, pois, do texto legal que a diretiva municipal
atende, pelo menos sob o ponto de vista conceitual, as diretri-
zes do Estatuto da Cidade para elaboração dos planos munici-
pais, de sorte que cabe agora, verificar como se deu o processo
de elaboração dos planos diretores anteriores apenas para tra-
çar a respectiva relação com o atual.

DO PROCESSO DE ELABORAÇÃO E APROVAÇÃO DOS PLANOS


DIRETORES DE 1968 A 2011
Para Gonçalves7, três momentos foram importantes para
estudo desse período: em 1968 quando da promulgação da Lei
6
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanístico.
São Paulo: Manole, 2004.
7
GONÇALVES, Alcindo. Plano Diretor. Planejamento e Legislação Ur-
bana.Santos: Revista da Procuradoria Geral do Município de Santos,
2009, p. 26-37
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
229
O novo plano diretor participativo do município de Santos

3.529, que institui o Plano Diretor Físico do Município de San-


tos, em 1998, para o processo de revisão dessa lei para dar ori-
gem a Lei Complementar nº. 311, que instituiu o Plano Diretor
Desenvolvimento e Expansão Urbana do Município de Santos e
em 2009 quando começa novo processo de revisão dando ori-
gem ao atual plano diretor.
Ademais e como bem assevera Nunes8 “a participação da
sociedade civil se retraiu e os espaços democráticos para o
debate sobre o desenvolvimento urbano se reduziram”, levan-
do em conta o momento político nacional a partir de 1964.
Em relação ao plano de 1998, houve diferença no que se
refere à participação popular e quanto à elaboração do plano,
com a participação de entidades de classe e elaboração do
plano por técnicos municipais.
No processo de revisão do plano de 2009, pode-se dizer que
houve grande participação popular, notadamente pelos órgãos
de classe e setores da construção civil, por conta dos fatores de
desenvolvimento previstos para a região e do mesmo modo, a
elaboração do plano foi feita pelas secretarias municipais.

DO PROCESSO DE REVISÃO E APROVAÇÃO DO ATUAL PLANO


DIRETOR DE SANTOS
Os processos de revisão e aprovação dos planos diretores
são antecedidos pela coleta de dados sócio-econômicos da ci-
dade, a subsidiar as propostas de revisão de qualquer plano.
Com esse levantamento será possível estabelecer prioridades
e metas com base em um sistema de planejamento municipal
devidamente articulado além da necessária comunicação com
os seguimentos sociais.
O processo de revisão e aprovação do atual plano diretor
teve início em novembro de 2008 e término em junho de 2009,
cujo cronograma apresentamos na figura abaixo, sendo mar-
cado notadamente pela realização de oito audiências públicas
e com a apresentação de 508 propostas.

8
NUNES, Luiz Antonio de Paula. Tese de Doutorado. São Paulo: Universi-
dade de São Paulo, 2005, p.62.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
230
Cristiane Elias de Campos Pinto

PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTOS

Cronograma prévio da revisão de 10 anos


Plano Diretor , Uso e Ocupação do Solo – Áreas Insular e Continental

2009

11/03 - CDES / CMDU - Apresentação e discussão das propostas consolidadas


25/03 - Deliberação da pré proposta a ser encaminhada para as Audiências Setoriais
08/04 - Audiência Pública Zona Leste
15/04 - Audiência Pública Zona Noroeste
22/04 - Audiência Pública Morros
29/04 - Audiência Pública Área Continental
13/05 - CDES / CMDU - Análise e discussão das propostas apresentadas nas Audiências
...............Públicas
27/05 – Audiência Pública Geral
24/06 - CMDU - Deliberação das minutas dos projetos a serem encaminhadas ao Executivo

As propostas encaminhadas pelos diversos seguimentos sociais fo-


ram resumidas no quadro abaixo para melhor sistematização, tendo sido
elaborada pela Secretaria de Planejamento Urbano9.

Resumo das propostas encami- REPRESENTANTE‐CON- INCLUSÃO


nhadas ao processo de Revisão do SELHO/ÓRGÃO
Plano Diretor PROPOSTA
Reconhecimento da Ilha Diana CDES/SEAS A ser tratado na revisão
como bairro da Lei de Uso e Ocupa-
ção do solo

9
Disponível em: <www.santos.sp.gov.br/planejamento/planodir/apres/re
s_pro.pdf>. Acesso em 10.02.13
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
231
O novo plano diretor participativo do município de Santos

Criação de um oitavo eixo (vetor) ‐CDES/UNISANTOS Incluído em todos os


com o objetivo de “Busca de uma Planos de Ação Integra-
Cidade Justa” da como Diretriz “Pro-
mover a Inclusão Social”,
além da inclusão no
calendário de revisão do
Plano, as capacitações
setoriais
Criação do vetor Inclusão Social Comitê do Plano Diretor Incluído em todos os
Participativo do Fórum Planos de Ação Integra-
da Cidadania de Santos da como Diretriz “Pro-
mover a Inclusão Social”
Inclusão de Audiência Pública na Comitê do Plano Diretor Inseridos no calendário a
Região do Centro Participativo do Fórum Capacitação e Audiência
da Cidadania de Santos Pública da Zona Central
Separação da Audiência Pública da Comitê do Plano Diretor Inseridos no calendário a
Zona Leste em: Zona da Orla e Zona Participativo do Fórum Capacitação e Audiência
Intermediária da Cidadania de Santos Pública das Zonas da
Orla e Intermediária
Que às diretrizes e objetivos que Comitê do Plano Diretor Serão definidas após a
forem definidos ao final desse Participativo do Fórum conclusão das ações de
processo de revisão do Plano Dire- da Cidadania de Santos cada Programa.
tor sejam associadas a respectivas
e indispensáveis Metas e Indicado-
res
Que sejam incorporados a este Comitê do Plano Diretor Além das audiências
processo de revisão do Plano Dire- Participativo do Fórum públicas, estão sendo
tor as orientações e parâmetros da Cidadania de Santos propostas (GT Unisan-
metodológicos recomendados pelo tos) oficinas de capacita-
Ministério da Cidade, no que se ção e diagnóstico.
refere à efetiva participação da
Sociedade
Que os Conselhos Municipais, o Comitê do Plano Diretor Além das audiências
Poder Público e a Câmara Munici- Participativo do Fórum públicas, estão sendo
pal assumam a responsabilidade de da Cidadania de Santos propostas (GT Unisan-
ampliar o debate sobre a revisão tos) oficinas de capacita-
do Plano Diretor, envolvendo, ção e diagnóstico.
mobilizando e estendendo o pro-
cesso participativo ao conjunto dos
Conselhos Municipais, Sociedades
de Bairros, Associações Civis, Meios
de Comunicação e outras instâncias
interessadas

Estabeleceram-se os setores prioritários, em relação os


quais os planos de desenvolvimento foram traçados, conforme
figura a seguir:

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
232
Cristiane Elias de Campos Pinto

Uso e Ocupação do Solo


E Porto
Circulação e Transporte
S Comércio e Serviço
SETORES
DIRETRIZES Econômica Social
T
PRIORITÁRIOS
Turismo
Ambientais
R Pesca
Habitação
U
T Gestão Ambiental SEPLAN
Desenvolvimento Turístico
U Demanda Habitacional
CMDU

R
PLANOS DE SISTEMA DE Audiências Públicas
AÇÃO PLANEJAMENTO
Trânsito e Transporte
A
INTEGRADA
Fundo de Desenv. Urbano
Sist. Integr. da Informação
Fundo p/ Pres. e Recuperação
Integração Porto x Cidade do Meio Ambiente

Sendo assim, porto, comércio e serviço, turismo e pesca


foram eleitos como setores prioritários, assim como se fixou as
diretrizes gerais baseadas nas questões relativas ao uso e
ocupação do solo, circulação e transporte, economia social,
questões ambientais e habitação.
Consta no plano diretor, a previsão de implementação dos
seguintes planos de desenvolvimento:
I - Plano de Sustentabilidade Ambiental;
II -Plano de Desenvolvimento Urbano;
III - Plano de Desenvolvimento Turístico;
IV - Plano de Pesquisa e Desenvolvimento;
V - Plano de Desenvolvimento Energético;
VI - Plano de Desenvolvimento Portuário, Retroportuário e
de Logística;
VII - Plano de Desenvolvimento de Pesca e da Aquicultura.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
233
O novo plano diretor participativo do município de Santos

A sistematização das propostas foi feita pelo Sistema de


Planejamento Municipal composto pela articulação dos seguin-
tes órgãos e conselhos municipais: Secretaria de Planejamento
Urbano, Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano –
CMDU e também pelo Conselho de Desenvolvimento de San-
tos, local onde as propostas foram apresentadas e discutidas.
Segundo dados disponíveis no site da Prefeitura Munici-
pal de Santos10 sobre os órgãos de planejamento, composição e
competências, o CMDU foi criado através da Lei nº. 1776/1999
e realizou discussões importantes sobre vários setores relacio-
nados ao desenvolvimento urbano da cidade e tem como com-
petência a articulação dos diversos setores da sociedade na
participação das políticas de planejamento urbano em especial
das que foram destinadas à discussão do atual plano diretor
santista.
O texto final foi aprovado no mês de julho de 2011, sem
que de fato as principais questões sociais tenham merecido
maior ênfase, ao contrário das questões relativas ao desenvol-
vimento econômico do município.
Sendo assim, não é possível afirmar que houve de fato
acolhimento das propostas apresentadas, considerando que o
atual plano diretor tem diretrizes bastante genéricas, especi-
almente se levarmos em conta o atual estágio de desenvolvi-
mento econômico do município evidenciado pelas perspectivas
lançadas pela exploração do pré-sal e dos investimentos no
porto santista.
Não nos parece assim, muito favorável o estabelecimento
de planos e vetores de desenvolvimento sem metas específicas
e prazos definidos de execução, ademais é importante asseve-
rar que os planos de desenvolvimento não foram efetivamente
implementados até o momento deste artigo.
Para o município de Santos que aguarda as projeções e
perspectivas de desenvolvimento econômico capitaneadas pe-
la exploração do pré-sal, a falta ou demora na execução de pro-
jetos a nosso ver, em especial a falta de execução de projetos

10
Disponível em: <www.santos-sp.gov>. Acesso em 10.02.13.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
234
Cristiane Elias de Campos Pinto

relativos à mobilidade urbana, poderá causar o agravamento


das questões urbanas que a cidade precisa solucionar, afinal
esse deveria ser o objetivo do plano diretor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente artigo, demonstramos que os pla-
nos diretores municipais ainda que tenham o devido aparato
legal e doutrinário para sua consecução, ainda guardam relati-
vo distanciamento com as reais necessidades dos municípios.
A análise do processo de revisão e aprovação do atual
plano diretor de Santos revelou a maior preocupação da gestão
municipal com aspectos relativos ao desenvolvimento econô-
mico na contramão com a preocupação sócio-ambiental.
Por outro lado, verificou-se um incremento na participa-
ção popular, especialmente representada por entidades de
classe e pelos Fóruns de Cidadania do município, o que revela
uma mudança de paradigma em relação aos planos anteriores.
É inegável também que o atual plano diretor, do mesmo
modo como ocorreu com os anteriores, preocupou-se mais com
as questões de ordem urbanísticas, o que por si só, prejudica a
efetiva participação popular no processo de revisão, maior in-
teressada no debate de questões sociais, ou seja, interessada
em discutir o planejamento de forma mais ampla.
Dessa forma, a pretendida garantia da qualidade vida das
pessoas nas cidades pelo estabelecimento de planos e metas
para o desenvolvimento sustentável, objetivo da construção do
referido instrumento de política urbana, recebeu mais uma vez
conotação de menor importância.

REFERÊNCIAS
EREMBERG, Jean Jacques. Função Social da Propriedade Urbana.
Municípios sem plano diretor. São Paulo: Letras Jurídicas, 2008
GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. São Paulo:
Atlas, 2009

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
235
O novo plano diretor participativo do município de Santos

SILVA, Carlos Henrique Dantas. Plano Diretor. Teoria e Prática. São


Paulo: SARAIVA, 2008
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São
Paulo: SARAIVA, 2008
Assembléia Geral das Nações Unidas. Resolução 41/128
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanís-
tico. São Paulo: Manole, 2004
GONÇALVES, Alcindo. Plano Diretor. Planejamento e Legislação
Urbana.Santos: Revista da Procuradoria Geral do Município de San-
tos, 2009.
NUNES, Luiz Antonio de Paula. Tese de Doutorado. A construção da
esfera pública no planejamento urbano. Um percurso histórico: San-
tos, 1945-2000. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005
SANTOS, Prefeitura Municipal de Santos. Disponível em: <www.
santos-sp.gov>. Acesso em 10.02.13.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
DIREITOS HUMANOS ,
POLÍTICAS PÚBLICAS E ERRADICAÇÃO
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS
MULHERES : UMA ANÁLISE A PARTIR DO
MUNICÍPIO DE SANTA ROSA/RS

Daniel Rubens Cenci


Professor, Mestre em Direito, Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento, Atua junto ao Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUI URI. Co-
ordenador da Linha de Pesquisa Direitos Humanos, Meio Ambiente e No-
vos Direitos, e o projeto de pesquisa junto ao CNPq, com o mesmo nome.
(danielr@unijui.edu.br)
Laila Letícia Falcão Poppe
Bacharel em Direito, Especialista em Direito do Trabalho, Mestranda em
Direitos Humanos na UNIJUI, Pesquisadora do grupo de pesquisa Direitos
Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos. Bolsista CAPES.
(lailapoppe@hotmail.com)
Lurdes Aparecida Grossmann
Professora, Mestre em Direito, atua na área do Direito Penal na UNIJUI.
Participante do conselho de políticas para Mulheres do Município de San-
ta Rosa. (lurdesgrossmann@unijui.edu.br.)

Resumo
A discussão referente a discriminação e a violência de gênero é das mais candentes
quando referimos aos direitos humanos. Tal ênfase decorre da persistente situação
de segregação da mulher ao longo da história, mas também como realidade que
revela grandes diferenças, nas relações sociais, especialmente, nas relações familia-
res e que prolongam-se nos diferentes espaços sociais. A temática de gênero e direi-
tos humanos nos remete a problemas como a discriminação, a violência e a opressão
contra as mulheres, presentes no dia a dia de diferentes maneiras, desde a violência
física e moral, até as situações de dificuldades de acesso ao trabalho, à educação, a
cargos e funções políticas, entre outras, sempre situações reveladoras da exclusão
de gênero. Será este um tema apenas para o direito? As respostas buscadas da expe-
riência do município de Santa Rosa, aqui analisadas, apontam para a necessidade de
construir e fortalecer redes de proteção às mulheres, como efetivação de seus direi-
tos humanos fundamentais e a defesa de sua dignidade.
Palavras-chave: Cidadania. Direitos humanos. Igualdade de gênero. Violência de
gênero.
238
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

Abstract
The discussion regarding discrimination and gender-based violence is the hottest
when referring to human rights. This emphasis stems from the persistent situation of
segregation of women throughout history, but as a reality that reveals large differ-
ences in social relationships, especially family relationships and extend in different
social spaces. The theme of gender and human rights leads us to problems such as
discrimination, violence and oppression against women, present in life everyday in
different ways, from the physical and moral violence, until the situations of difficult
access to employment, education, jobs and political functions, and others, always
revealing situations of exclusion of gender. Is this a just theme to the right? Answers
sought the experience of Santa Rosa city, analyzed here, point to the need to build
and strengthen safety necessity for women, as realization of their fundamental hu-
man rights and the defense of their dignity.
Keywords: Citizenship. Human rights. Gender equality. Gender violence.

INTRODUÇÃO
O desafio de desenvolver o tema dos Direitos humanos na
perspectiva de gênero nos coloca a repensar o lugar da mulher
na sociedade, seu espaço na família, no trabalho doméstico e
no mercado, seu papel de mãe, de educadora, de provedora, de
esposa, enfim da cidadã que ao longo da história acumulou em
seu entorno papéis fundamentais para a sociedade e que, ain-
da assim, é segregada e alvo de violência. Neste trabalho se
priorizará a temática da violência doméstica.
Nesta perspectiva, a questão de gênero, que expõe as di-
ferenças construídas social e culturalmente entre sexo mascu-
lino e feminino, mas que são apresentadas como se fossem
meras apresentações das estruturas biológicas, conduziram a
uma naturalização dos papeis exercidos por homens e mulhe-
res na sociedade, sendo, inclusive, internalizadas pelas mulhe-
res que em alguns casos de violência domésticas aceitam o
papel de agentes causadoras da agressão e no da sociedade
que rotineiramente julga e condena severamente a mulher vi-
timada, em comparação com seu agressor, na maioria das ve-
zes o próprio companheiro.
O estudo busca assim estabelecer uma análise das políti-
cas públicas para mulheres ao longo da história e concomitan-
temente, analisar a efetividade das mesmas. A temática da
violência doméstica não é isolada dos demais campos da vio-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
239
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

lência contra a mulher, entretanto, neste artigo reflete-se críti-


ca e teoricamente sobre o tema, e na sequência, aproxima-se a
metodologia de estudo de caso, porquanto as análises refletem
a caminhada, as estruturas, as políticas desenvolvidas no mu-
nicípio de Santa Rosa – Rio Grande do Sul, no âmbito da prote-
ção a mulher. Busca-se descrever a caminhada da luta por di-
reitos, sintetizada na busca da igualdade de gênero, enten-
dendo o papel do movimento social, dos poderes públicos, nas
diferentes estruturas do Estado, o papel do direito, especial-
mente após a publicação da Lei Maria da Penha.
Por derradeiro, alguns apontamentos e considerações que
se nos apresentam importantes para a emancipação da mu-
lher, especialmente a partir da experiência analisada.

DIREITO HUMANOS E CIDADANIA NA PERSPECTIVA DE GÊNERO


O debate referente à temática de gênero e direitos huma-
nos nos remete a graves problemas na sociedade atual, como a
discriminação, a violência e a opressão contra as mulheres,
sendo que os mesmos se manifestam no dia a dia de diferentes
maneiras, desde a violência física e moral, até as situações de
dificuldades de acesso ao trabalho, à educação, a cargos e fun-
ções políticas, entre outras, sempre situações reveladoras da
exclusão de gênero. Embora as duas últimas décadas nos reve-
lem que as mulheres venham exercendo influência sem prece-
dentes na família e na sociedade, conseguindo espaços no
campo profissional e na política, na maioria dos países elas
ainda não desfrutam de igualdade de direitos com os homens,
no aceso à educação, no preparo profissional, nos salários, nas
oportunidades de trabalho e nos postos de destaque. No Brasil
particularmente, há uma disparidade entre os Direitos Huma-
nos que as mulheres possuem perante a lei e a possibilidade
real de desfrutá-los.
Por questões estruturais, o presente trabalho faz um re-
corte priorizando o enfoque da violência contra a mulher, ainda
que os diferentes campos da exclusão e discriminação sejam
sempre conexos.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
240
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

A discussão referente ao tema de gênero é das mais can-


dentes quando referimos aos direitos humanos. Tal ênfase de-
corre da persistente situação de segregação da mulher ao longo
da história, mas também como realidade que revela grandes
diferenças, nas relações sociais, especialmente, nas relações
familiares e que prolongam-se nos diferentes espaços sociais.
Debater Direitos Humanos na perspectiva de gênero signi-
fica muito mais que um recorte teórico, mas exige compromisso
e reflexão capazes de propor e articular políticas públicas de
enfrentamento da discriminação social vivida pelas mulheres
em pleno século XXI. Por seu turno a perspectiva de gênero não
significa dividir a questão humana, mas sim, redefinir o espaço
enquanto seres humanos com direitos iguais, fortalecendo a
feminilidade e a masculinidade promovendo a igualdade.
Direitos humanos na perspectiva de gênero nos coloca
como desafio repensar o lugar da mulher na sociedade, seu
espaço na família, no trabalho doméstico e no mercado, seu
papel de mãe, de educadora, de provedora, de esposa, enfim
da cidadã que ao longo da história acumulou em seu entorno
papéis fundamentais para a sociedade e que, ainda assim, é
segregada e alvo de violência.
Quando Chauí1, define a violência como “processo de re-
dução de um sujeito à condição de coisa” estabelece um crité-
rio universal aplicável a situações particulares. A coisificação
de uma pessoa sempre é resultado de uma conjugação de fato-
res e, via de regra, da imposição da força. A violência pode ser
física ou moral, ou andarem juntas, como se revela com fre-
quência. O entendimento do tema da violência passa, pois por
compreender o estilo de violência a que está sendo submetida,
sobre o qual desenvolvem-se as políticas públicas em busca de
cidadania, porquanto esta é totalmente incompatível com o
tema da violência.
Conforme recomenda Santos2, trata-se de democratizar os
direitos, através da participação, da presença de cada sujeito,

1
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
2
SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.) Reconhecer para libertar. Os Ca-
minhos do cosmopolitismo cultural. Porto: Afrontamento, 2004.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
241
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

pois a participação é interação, e interação é agir na alterida-


de, é emancipar, é permitir que cada ser humano seja humano
com os demais humanos. Participação é democracia e integra-
ção, pois o ser humano se faz com os humanos, e é a forma his-
tórica mais adequada para tornar a democracia efetiva.
Enquanto persistirem violência e discriminação, e en-
quanto estas não forem abolidas e condenadas, permanecerá a
necessidade de organizações que trabalhem para esclarecer e
orientar a população nessa direção.
Como desafio cabe resgatar a construção de relações so-
lidárias que tornem efetiva a proclamação da solene Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos, de que todos nascem li-
vres em dignidade e direitos. Tal enunciado torna-se mais en-
fático na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, reali-
zada em Viena, no ano de 1993, foi reafirmada a igualdade de
direitos de direitos de homens e mulheres considerando qual-
quer forma de discriminação sexual como ação criminosa.
A educação para os direitos humanos e a igualdade de
gênero, exige mudanças profundas. A desinformação sobre os
direitos da mulher se soma à falta de orientação de como pro-
ceder e de como denunciar casos de violação de seus direitos
básicos, temas que hoje dispõem de previsão legal e de políti-
cas próprias, exigindo também uma forma mais incisiva e de-
cidida no agir do conjunto da sociedade, constituindo verda-
deiras redes de proteção da mulher e da defesa da igualdade e
dos seus direitos.
Ao longo da história das políticas para mulheres, identifi-
cam-se diferentes fases, sendo até recentemente caracteriza-
das por ações isoladas e pontuais, hoje compreendidas como
insuficientes para o desenvolvimento de políticas públicas ca-
pazes de proteger a sociedade e construir novos contextos so-
ciais. Assim a política de combate a violência contra as mulhe-
res apresenta-se como desafio para a democracia e a cidada-
nia. Há, todavia experiências alentadores que permitem vis-
lumbrar processos sociais mais integradores e emancipatórios
para as mulheres, como é o caso de Santa Rosa/RS que se ana-
lisa a seguir.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
242
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

REFLEXÕES E APRENDIZADOS A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO


MUNICÍPIO DE SANTA ROSA/RS
A violência contra as mulheres constitui-se em uma das
principais formas de violação dos seus direitos humanos, atin-
gindo-as em seus direitos à vida, a saúde e à integridade3.
A Constituição Federal4 determinou no § 8º do art. 226, a
criação de uma legislação que erradicasse a violência domésti-
ca, mas, apesar desta previsão e do fato do Brasil ser signatá-
rio de Convenções internacionais sobre o tema, como a de Bei-
jin e a de Belém do Pará, somente em 2006 foi criada uma le-
gislação específica para enfrentar a violência doméstica.
A Lei nº 11.340/06, Lei Maria da Penha, se caracteriza por
trazer um arcabouço normativo que procura não somente en-
frentar a violência, mas prevenir sua ocorrência através de uma
série de ações que passam desde medidas protetivas à mulher
vitimada, mas também tratam de questões relevantes como a
educação, fundamental para mudar a matriz patriarcal que
ainda é o paradigma de nossa sociedade e a principal razão da
violência praticada contra a mulher.
Para dar eficácia a este objetivo de prevenir e erradicar a
violência doméstica, a Lei Maria da Penha traz diversos dispo-
sitivos que determinam a criação de políticas públicas direcio-
nadas a violência, saúde, educação, geração de renda e outras.
Nesse contexto, para Dias
Necessária a existência órgãos, instrumentos e procedi-
mentos capazes de fazer com que as normas jurídicas se
transformem de exigências abstratas à vontade humana
em ações concretas. Assim, indispensável a implementa-
ção de uma Ação de Políticas Públicas voltada a alcançar
os direitos sociais fundamentais de todos os cidadãos,

3
BRASIL, Presidêcia da República. Secretaria Especial de Políticas para
as Mulheres. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2008. 236 p. 1.
4
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 45.ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
243
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

incluindo, em especial, as mulheres vítimas de violência


doméstica...5

Até o advento da Constituição de 88 e da Lei Maria da


Penha, as Políticas Públicas que envolviam as mulheres, mui-
tas vezes não tinham como finalidade o seu protagonismo ou a
proteção de seus interesses, mas as tinham apenas como obje-
to de determinada política governamental, como por exemplo,
a questão do controle da natalidade. Além disso, não aborda-
vam a questão de gênero, fundamental para a alteração do pa-
radigma machista que ainda orienta culturalmente toda a nos-
sa sociedade e que está no cerne da violência doméstica.
Nesta perspectiva, a questão de gênero, que expõe estas
diferenças construídas social e culturalmente entre os sexos e
que são apresentadas como se fossem biológicas, conduziram
a uma naturalização dos papeis exercidos por homens e mu-
lheres na sociedade, sendo, inclusive, internalizadas pelas mu-
lheres que em alguns casos de violência domésticas se colo-
cam de no papel de agentes causadoras da agressão e no da
sociedade que rotineiramente julga mais severamente a mu-
lher vitimada do que o homem agressor. Baratta, alerta que:
Como escreveu Simone de Beauvoir,”não se nasce mu-
lher, torna-se. A mesma regra vale para o gênero mascu-
lino. É a construção social do gênero, e não a diferença
biológica do sexo, o ponto de partida para a análise críti-
ca da divisão social do trabalho entre mulheres e homens
na sociedade moderna, vale dizer, da atribuição aos dois
gêneros de papeis diferenciados (sobre ou subordinado)
nas esferas de produção, da reprodução e da política e,
também, através da separação entre o público e o priva-
do. A própria percepção da diferença biológica no senso
comum e no discurso científico depende, essencialmente,
das qualidades que, em uma determinada cultura e soci-

5
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade
da Lei 11.340-006 de combate à violência doméstica e familiar contra a
mulher/ Maria Berenice Dias – 2 ed. rev. atual e ampl. – São Paulo: Edito-
ra dos Tribunais, 2010, P. 197.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
244
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

edade, são atribuídas aos dois gêneros, e não ao contrá-


rio.6

A questão de gênero somente será ressignificada através


de políticas públicas que assegurem ações afirmativas que
efetivem uma igualdade material entre homens e mulheres.
Neste sentido, Dias, pondera que
O modelo conservador da sociedade, que coloca a mulher
em situação de inferioridade e submissão, é que a torna
vítima da violência masculina. A lei atenta para esta rea-
lidade. Ainda que homens possam ser vítimas de violên-
cia doméstica, tais fatos não decorrem de razões de or-
dem social e cultural. Aliás, é exatamente para dar efeti-
vidade ao princípio da igualdade que se fazem necessá-
rias equalizações por meio de ações afirmativas. Daí o
significado da lei: assegurar à mulher o direito à sua in-
tegridade física, psíquica, sexual, moral e patrimonial.7

Para Luiz8 é necessário saber como homens e mulheres se


relacionam enxergam a si mesmos e ao outro na relação, e as
relações de poder aí envolvidas, a fim de compreender as cau-
sas, os processos, as conseqüências e, ainda, as resistências
em questão.
Desta Perspectiva da desconstrução dos papeis sociais
atribuídos aos homens e as mulheres, vislumbram-se as razões
que levam as mulheres a ser a maioria esmagadora das vítimas
dos casos de violência doméstica no país e no mundo e a ne-
cessidade de transformação destes papeis para erradicar esta

6
BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à
questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein (Org.) Criminologia e Fe-
minismo. Porto Alegre: Editora Sulina, 1999, p. 21.
7
DIAS, Maria Berenice. A efetividade da Lei Maria da Penha. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, RBCCRIM. Nº 64 – 2007. São Paulo: RT,
p. 298.
8
LUIZ, Cristiana dos Santos. et al. Santa Rosa e Região por Uma Rede de
Proteção á Mulher. 172, p.: 15x22cm. 1. Santa Rosa e Região por Uma
Rede de Proteção à Mulher. I. Título. Dinâmicos Desenvolvimento Sus-
tentável, 2012, p. 25.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
245
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

forma de violência. A necessidade da criação deste novo para-


digma igualitário passa, necessariamente, pela educação.
A mudança do papel exercido pela mulher na sociedade
transformou-se ao longo dos anos, mas, apesar desta evolução,
ainda temos muito que avançar. Apesar de termos uma Presi-
denta da República, a participação das mulheres no parlamen-
to brasileiro é uma das baixas do mundo. Segundo PINHEIRO
No cenário internacional, o Brasil, se foi um dos primeiros
países a garantir os direitos políticos às mulheres, atual-
mente integra o grupo de 60 países com o pior desempe-
nho quanto a presença das mulheres no Parlamento: 8,8%
na Câmara dos Deputados e 12,3% no Senado Federal.9

Ainda, no mesmo contexto


O resultado mais concreto da assinatura da Plataforma
de Beijing foi a instituição de um sistema de cotas para
as eleições proporcionais brasileiras, por meio de legisla-
ção específica.10

A participação nas instâncias de poder ainda é pequena


também na esfera privada. Apesar de muitas empresas possuí-
rem um número maior de mulheres em seus quadros gerais,
poucas estão em cargos de gerência ou presidência. Além dis-
so, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística11, o salário médio das mulheres é em média 28% in-
ferior ao dos homens nos mesmos cargos.
Estas desigualdades de representatividade nas instân-
cias de poder pública e privada refletem uma sociedade em

9
PINHEIRO, Luana Simões. Vozes femininas na política: uma análise
sobre as mulheres parlamentares no pós-Constituinte. Brasília: Secreta-
ria Especial de Políticas para as Mulheres, 2007. (Série Documento). 224
p. 1. Política. 2. Mulheres na Política. 3. Congresso Nacional. I. Título,
p.66.
10
Idem, p. 67.
11
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Salário das mulheres per-
manece 28% inferior aos dos homens nos últimos três anos. Disponível
em < http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&
busca=1&idnoticia=2096> Data de acesso 07/04/2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
246
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

que as mulheres ainda são colocadas em um papel de inferio-


ridade em relação aos homens e esta submissão está na base
da violência doméstica que as atinge.
Entende-se por violência doméstica aquelas condutas
ofensivas realizadas nas relações de afetividade ou conjugali-
dade hierarquizadas entre os sexos, cujo objetivo é a submis-
são ou subjugação, impedindo o outro do livre exercício da ci-
dadania12.
Para prevenir e erradicar esta forma de violência, a Lei
Maria da Penha prevê uma atuação conjunta e articulada de
órgãos governamentais, não-governamentais e da comunidade
no enfrentamento à violência doméstica, prevendo uma atua-
ção em Rede.
Neste sentido, o Município de Santa Rosa conta com di-
versos órgãos previstos na Lei Maria da Penha e que compõe a
Rede de Proteção à Mulher municipal.
No ano de 2007 foi criado pela Lei Municipal nº 4.308, o
Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, CONDIM, compos-
to de uma série de entidades governamentais e não-
governamentais, dos mais diversos setores da comunidade,
como Universidade, Sindicatos, Clubes de Mães, Cooperativas,
Conselho Tutelar, Fundação Municipal da Saúde, etc.
O CONDIM tem atribuição fiscalizadora, deliberativa e
propositiva nas questões ligadas às mulheres no Município de
Santa Rosa e acompanha as políticas públicas destinas a elas
no Município, seja pelo poder municipal, estadual ou federal,
fiscalizando e propondo ações que implementam os direitos
previstos na Lei Maria da Penha e na Constituição Federal pa-
ra as mulheres.
Além disso, o CONDIM atua na divulgação dos direitos
das mulheres através de reuniões itinerantes em escolas, sin-
dicatos, encontros de trabalhadoras rurais e outros e pela rea-
lização de palestras e oficinas em diversos locais da cidade e
da região, informando os direitos contidos na Constituição Fe-

12
CAMPOS, Carmen Hein, org. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre:
Sulina, 1999, p. 57.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
247
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

deral e na Lei Maria da Penha em relação às mulheres, a evo-


lução da cidadania feminina e a necessidade de empodera-
mento das mulheres, bem como os locais de atendimento da
Rede de Proteção à Mulher do Município.
Dentro da Rede criada no Município, uma das mais impor-
tantes conquistas foi a criação, 2011, do Centro de Referência
Regional à Mulher Dirce Grosz, CRRM13. Neste local as mulhe-
res possuem atendimento psicológico, social e jurídico gratuito
e recebem informações e orientações sobre seus direitos. O
Centro também acompanha as mulheres em relação a questões
como recolocação no mercado de trabalho, necessidade de en-
caminhamento para a Casa Abrigo, situação escolar dos filhos,
etc.
Dos atendimentos realizados pelo CRRM (2013), desde a
sua criação, foi identificado que 46% das mulheres sofreram
violência psicológica, 32% violência física, 15% violência patri-
monial, 6% violência sexual e 1% outros tipos de violência.
O maior número de mulheres vitimadas está na faixa etá-
ria dos 30 a 40 anos, cerca de 53% dos casos. Em relação as
profissões das mulheres vitimadas atendidas, 26% trabalham
em serviços gerais, 16% são aposentadas e pensionistas, 14%
são do setor de comércio, 10% são do lar, 8% são desemprega-
das, 8% são do setor da saúde, 8% são da agricultura, 5% são
servidoras pública e 5% são estudantes. Além disso, 14% delas
são da cidade de Santa Rosa e 86% são do interior do município.
Em relação a renda das mulheres atendidas em 2012, 59%
das vítimas arrecadam 1 salário mínimo mensal, 15% arreca-
dam R$ 1.000,00 por mês, 10% arrecadam R$ 300,00, 5% arreca-
dam 10% arrecadam R$ 300,00, 5% arrecadam R% 2.000,00, 3%
13
A denominação do CRRM, Dirce Grosz, é uma homenagem a profissional
e militante das políticas de igualdade de gênero Dirce Margarete Grosz,
que contribuiu decisivamente para as políticas de Gênero da região de
Santa Rosa. Natural de Boa Vista do Buricá/RS, dedicou-se de 2003 a
2008, as políticas nacionais de igualdade de gênero na Secretaria Espe-
cial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Dirce era
Mestre em Educação pela UnB e faleceu em 2008 em acidente de trânsi-
to, quando retornava da região de Santa Rosa, para seu trabalho em
Brasília.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
248
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

arrecadam R$ 500,00, 3% arrecadam R$ 3.000,00, 4% arrecadam


R$ 150,00 e 1% arrecada R$ 5.000,00. Quanto ao nível de esco-
laridade, em 2012, o maior número de mulheres vitimadas
atendidas estava principalmente entre aquelas com fundamen-
tal incompleto (44%), médio completo (24%), fundamental com-
pleto (17%), médio incompleto (6%), superior incompleto (4%),
semi analfabeto (2%), técnico (1%), pós-graduação (1%) e mes-
trado (1%).
Também foi verificado que em 2012, 38% das mulheres
chegaram de forma espontânea ao CRRM e 62% das mulheres
chegaram de forma encaminhada. Do total de mulheres rece-
bidas, 33% foram encaminhadas para a Delegacia Especializa-
da de Atendimento a Mulher e 67% foram encaminhadas para
outros órgãos.
A procura espontânea das mulheres pelo Centro de Refe-
rência é fruto do trabalho desencadeado pelas entidades que
compõem a Rede de Proteção no sentido de divulgar a atuação
do CRRM. De igual forma, o encaminhamento das mulheres
vitimadas pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mu-
lher e outros órgãos também resulta desta atuação articulada
da Rede no Município, em que as mulheres que procuram auxí-
lio em diversos locais como postos de saúde, hospitais, esco-
las, sindicatos e empresas são informadas deste trabalho de-
senvolvido pelo Centro de Referência e orientadas a procurar
este local.
Constatou-se que havia no Município e região diversas
mulheres em situação de perigo de vida ou risco quanto a sua
integridade física em função da violência doméstica a que
eram submetidas. Por esta razão, foi criado no ano de 2012, a
Casa de Passagem/Casa Abrigo, local destinado a abrigar es-
tas mulheres e também seus filhos, quando constatada a situ-
ação de risco. A casa fica em local sigiloso da cidade e conta
com serviço de vigilância, apoio psicológico, jurídico e social.
A Rede de Proteção é composta ainda de órgãos de ou-
tras esferas, como as do Estado. Dentre eles, um dos mais sig-
nificativos é a Delegacia de Atendimento às Mulheres. Em

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
249
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

Santa Rosa, a Delegacia especializada foi implantada em junho


de 2011.
No que tange as estatísticas da Delegacia Estadual de
Atendimento às Mulheres (2013) verifica-se também um núme-
ro elevado de ocorrências desde a sua abertura. Denota-se que
a ameaça é o crime de maior incidência visto que englobam
um total de 373 registros, no período compreendido de junho
de 2011 até março de 2013. Em seguida, aparecem outros cri-
mes diversos, como, por exemplo, vias de fato, apresentando
um total de 296 casos. Logo, segue o crime de lesão corporal
com um total de 285 registros. De março de 2011 até o presen-
te ano foram registradas 306 solicitações de medidas proteti-
vas por parte das mulheres atendidas por este órgão.
Nos vários aspectos em que a violência traz conseqüên-
cias severas às mulheres vitimadas, um dos mais relevantes
são as questões que afetam a saúde da mulher.
Atualmente esta questão aparece de forma clara na dis-
cussão sobre a descriminalização do aborto consentido em que
é ignorado o direito da mulher sobre seu corpo e as discussões
sobre o tema pautam-se por questões religiosas numa clara
ofensa a uma Constituição Federal de um estado laico e que
traz como uma das suas diretrizes a promoção da dignidade da
pessoa humana.
A formação de profissionais que atuam na área da saúde
para atender as mulheres vítimas de violência é fundamental
para a prevenção e erradicação da violência doméstica. Por
todas as questões culturais e sociais envolvidas muitas vezes
a mulher vitimada tem vergonha em procurar auxílio ou em
verbalizar para terceiros o que está acontecendo com ela. Mas,
em virtude da sistematização e continuidade das diferentes
formas de violência a que é submetida, esta mulher normal-
mente apresenta, além dos sinais físicos da violência, a sinto-
matização das agressões sofridas, as quais podem ser detec-
tadas por profissionais treinados.
Neste sentido, Dominguez e Machado apontam que:

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
250
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

Além de causar lesões, traumas e, em último caso, morte,


a violência está associada a muitas doenças. Minayo se
apoia em estudos para afirmar que 35% das queixas das
mulheres aos serviços de saúde estão associadas a al-
gum tipo de agressão. Pesquisa com 100 mulheres nas
clínicas de Dor da Uerj e da UFRJ, procuradas quando a
dor não tem causa palpável, detectou que mais de 90%
das atendidas tinham sofrido ou continuavam sofrendo
violência dentro de casa; 43% tinham sofrido ou sofriam
violência sexual. Os profissionais de saúde, diz a sanita-
rista, precisam ser preparadas para atender pessoas
agredidas, de modo a associar sinais e sintomas.14

Alertam, ainda que, esta dificuldade de diagnosticar a vi-


olência doméstica como causa dessas doenças pode levar a
atenuação dos sintomas, mas que estes se manifestaram pos-
teriormente porque ainda estarão latentes.
Williams e Pinheiro apontam que dentre as principais
conseqüências à saúde física e mental das mulheres vítimas
de violência, encontram-se:
Doenças sexualmente transmissíveis, lesões, inflama-
ções, pélvicas, gravidez não desejada, aborto espontâ-
neo, dor pélvica crônica, dores de cabeça, problemas gi-
necológicos, abuso de drogas/álcool, asma, síndrome do
intestino irritável, condutas nocivas à saúde (fumar, sexo
inseguro), deficiência física permanente ou parcial. A sa-
úde mental poderia ser prejudicada pro desordens como:
o transtorno do estresse pós-traumático, depressão, an-
siedade, disfunção sexual, desordens de alimentação, en-
tre outros problemas. Há, também, para os autores, evi-
dências que sugerem que a violência pode estar associa-
da a efeitos físicos tardios, em especial, artrite, hiperten-
são e doenças cardiovasculares.15

14
DOMINGUEZ, Bruno e MACHADO, Katia. Lei Maria da Penha: limites
ou possibilidades? Revista Radis. Fundação Oswaldo Cruz. Nº 92.
Abril/2010. Ediouro: São Paulo, p. 12.
15
PINHEIRO, Luana Simões. Vozes femininas na política: uma análise
sobre as mulheres parlamentares no pós-Constituinte. Brasília: Secreta-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
251
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

Por todo este contexto, a criação de políticas públicas es-


pecíficas para a capacitação dos profissionais de saúde tam-
bém foi elencada como uma das metas para o ano de 2013, pe-
lo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Santa Rosa,
CONDIM (Ata nº 01/2013). Nos debates realizados pelo
CONDIM verificou-se que os agentes municipais de saúde, que
visitam e acompanham as famílias de determinada localidade
semanalmente, reportavam casos freqüentes de indícios de
violência doméstica.
Além disso, esta proximidade destes profissionais com as
conseqüências da violência, fez com que no mês de março de
2013, por iniciativa do Hospital Vida e Saúde do Município de
Santa Rosa, fosse convocada uma reunião com diversos seg-
mentos da comunidade e proposta a criação de um Comitê de
Enfrentamento à Violência na cidade.
Nesta reunião foram apresentados dados oriundos de no-
tificações do Sistema de Informações de Agravos de Notifica-
ção, SINAN, do Município, que apontam um crescimento dos
números de violência detectados. Em 2010 foram 58 casos, em
2011 aumentou para 236 casos e em 2012 cresceu novamente,
foram 238 casos. Deste total de casos do último ano citado re-
gistrou que 75% das notificações foram referentes à violência
doméstica, ou seja, 178 casos vitimaram mulheres.
A partir destes dados, houve o indicativo da instalação do
Comitê de Enfrentamento à Violência do Município de Santa
Rosa, que deverá ser composto de entidades governamentais,
não-governamentais e representantes da comunidade para
articular ações de enfrentamento para esta questão. Em virtu-
de da maioria das vítimas ser de mulheres, várias entidades
que compõem a Rede de Proteção do Município, como o Conse-
lho Municipal dos Direitos da Mulher, Delegacia Especializada
no Atendimento à Mulher, por exemplo, irão integrar o Comitê
(Ata nº 01/2013).

ria Especial de Políticas para as Mulheres, 2007. (Série Documento). 224


p. 1. Política. 2. Mulheres na Política. 3. Congresso Nacional, p. 311.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
252
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Direitos Humanos pela perspectiva de gênero significam
ações políticas para exterminar a discriminação, a violência e a
opressão de mulheres. Não se pode conceber mecanismos de
direitos humanos que excluam as mulheres, da mesma forma
que gênero não significa dividir a questão humana, mas sim
redefinir esse ser humano, estudando o desenvolvimento só-
cio-cultural da feminilidade e da masculinidade.
Conclui-se que as desigualdades não acontecem por aca-
so ou pela natureza humana, e sim são construídas pela socie-
dade com o objetivo de atender interesses de determinados
grupos.
Ao longo da história das políticas para mulheres, identifi-
cam-se diferentes fases, sendo até recentemente caracterizadas
por ações isoladas e pontuais, hoje compreendidas como insufi-
cientes para o desenvolvimento de políticas públicas capazes
de proteger a sociedade e construir novos contextos sociais.
Pelo exposto, verifica-se que o Município de Santa Rosa
avançou muito em termos da implantação da Rede de Proteção
à Mulher, bem como na criação de políticas públicas específicas
para as mulheres, em especial as que tratam do enfrentamento
à violência doméstica. Mas muito ainda deve ser feito para que
se erradique esta forma de violência em nossa comunidade.
Somente com os esforços de todos os segmentos da soci-
edade e da compreensão que violar os direitos das mulheres é
a violar os direitos humanos e por, conseqüência, de todos, é
que avançaremos rumo a uma cultura de paz. Não é possível a
concepção de uma sociedade não violenta quando esta violên-
cia inicia dentro dos lares e se naturaliza como algo aceitável.
Mudarmos de um paradigma da supremacia patriarcal
para uma sociedade igualitária é fundamental para a concreti-
zação do Estado Democrático Direito preconizado pela nossa
Constituição Federal, em que a dignidade da pessoa humana
seja uma realidade para todos, independentemente de raça,
religião, faixa etária ou de gênero.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
253
Direitos humanos, políticas públicas e erradicação da violência doméstica...

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Paulo: Editora dos Tribunais, 2010.
DIAS, Maria Berenice. A efetividade da Lei Maria da Penha. Revista
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DOMINGUEZ, Bruno e MACHADO, Katia. Lei Maria da Penha: limi-
tes ou possibilidades? Revista Radis. Fundação Oswaldo Cruz. Nº
92. Abril/2010. Ediouro: São Paulo.
DOURADOS, Agora. Feministas apóiam decisão do CFM pela des-
criminalização do aborto. Disponível <http://www.douradosagora.
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m-pela-descriminalizacao-do-aborto> Data de acesso em 7 de abril
de 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
254
Daniel Rubens Cenci; Laila Letícia Falcão Poppe & Lurdes A. Grossmann

HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher:


considerações à Lei nº 11.340/06: contra a violência doméstica e fa-
miliar, incluindo comentários artigo por artigo/ Leda Maria Hermann
– Campinas, SP: Servanda Editora, 2008.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Salário das mulheres
permanece 28% inferior aos dos homens nos últimos três anos. Dis-
ponível em < http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noti
cia&id=1&busca=1&idnoticia=2096> Data de acesso 07/04/2013.
LUIZ, Cristiana dos Santos. et al. Santa Rosa e Região por Uma Re-
de de Proteção á Mulher. 172, p.: 15x22cm. 1. Santa Rosa e Região
por Uma Rede de Proteção à Mulher. I. Título. Dinâmicos Desenvol-
vimento Sustentável, 2012.
PIMENTAL, Sílvia. Experiências e Desafios: Comitê sobre a Elimina-
ção de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW/ONU) – relatório bienal de minha participação. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2008 (série docu-
mentos).
PINHEIRO, Luana Simões. Vozes femininas na política: uma análise
sobre as mulheres parlamentares no pós-Constituinte. Brasília: Se-
cretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2007. (Série Docu-
mento). 224 p. 1. Política. 2. Mulheres na Política. 3. Congresso Naci-
onal. I. Título.
WILLIANS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque. PINHEIRO, Fernanda
Martins França. Efeitos da denúncia da mulher na reincidência da
violência física do parceiro. Revista Brasileira de Ciências Crimi-
nais. Nº 63. Novembro-dezembro, 2006. São Paulo: RT.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
VEÍCULOS ELÉTRICOS :
UMA ALTERNATIVA PARA A
MELHORIA DA MOBILIDADE URBANA
DE FORMA SUSTENTÁVEL

Daniel Corrente de Moraes


Acadêmico do Curso de Direito da Unijuí – Universidade Regional do No-
roeste do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Ciências Jurídi-
cas e Sociais. (daniel.corrente@bol.com.br)
Marcelo Loeblein dos Santos
Mestre em Direito pela UCS – Universidade de Caxiais do Sul, Graduado
em Direito e Letras pela Unijuí – Universidade Regional do Noroeste do Es-
tado do Rio Grande do Sul. Professor do Curso de Direito da Unijuí.
(marceloloeblein@yahoo.com.br)
Luciano Bonato Baldissera
Graduado em Engenharia Elétrica pela Unijuí – Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Mestrando pela UFSM – Uni-
versidade Federal de Santa Maria. Professor do Curso de Eletrotécnica na
Escola Técnica Estadual 25 de Julho. (lucianobonato@bol.com.br)

Resumo
O crescimento populacional das cidades aliado ao uso de meios de transporte inade-
quados, que poluem em demasia, tem direcionado a mobilidade urbana em sentido
oposto ao da busca por cidades sustentáveis. Assim, o presente estudo destina-se a
apresentar os veículos elétricos como uma alternativa para a implementação de uma
mobilidade urbana de forma sustentável. Desta forma, apresenta a concepção e
evolução do conceito de desenvolvimento sustentável, passando pela abordagem
histórica da invenção dos veículos elétricos, para, desta forma, chegar à problemáti-
ca atual da mobilidade urbana, para a qual é sugerida a utilização de veículos elétri-
cos como forma de atenuar tais problemas. Deste modo, é sugerido o fomento a
fabricação de tais veículos, para que, de forma gradativa, sejam colocados no mer-
cado.
Palavras-chave:Mobilidade urbana, sustentabilidade, veículos elétricos.

Abstract
The high growth of the world population allied with the use of inappropriate means
of transportation which pollute a lot the environment has directed the urban mobili-
ty in an opposite way when talking about sustainable cities. The following study
shows how electrical vehicles can be an alternative to introduce a urban mobility in a
sustainable way. Like this it presents the conception and evolution of the sustainable
256
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

development passing through the history of the creation of the electrical vehicles,
then finally to get to the urban mobility problem, which is the main suggestion for
using electrical vehicles as a way to reduce that kind of problem. For all it is suggest-
ed to encourage the development and production of this kind of vehicle and put
them in the market.

INTRODUÇÃO
O crescimento desordenado das cidades é um problema
que afeta toda a sociedade, uma vez que esta falta de plane-
jamento acaba por interferir na forma como vivem os indiví-
duos que compõe tal grupo. Deste modo, o estudo destes pro-
blemas, bem como a busca por soluções para os mesmos, têm
grande relevância, pois a manutenção de um meio ambiente
saudável e equilibrado1, só será possível com a resolução de
tais questões.
Neste contexto, um dos aspectos mais pertinentes a ser
abordado quanto à problemática que envolve o planejamento
das cidades diz respeito à mobilidade urbana. Muito se tem
discutido sobre as forma de se proporcionar meios para que as
pessoas possam se locomover dentro das cidades sem que pa-
ra isso sejam formados grandes congestionamentos, com veí-
culos que emitem grande quantidade de gases prejudiciais a
natureza.
Assim, surgem inovações como a utilização de veículos
elétricos, a fim de amenizar os problemas supracitados. Neste
sentido, ganha força a ideia da fabricação de carros elétricos
de pequeno porte, que gradativamente substituiriam os carros
atualmente utilizados, que poluem em demasia além de ter um
tamanho exagerado com relação à finalidade a qual são desti-
nados, que é, na maioria das vezes, o transporte de uma única
pessoa. Salienta-se que a finalidade do estudo não é a de pro-
por a utilização do transporte individual em detrimento ao
transporte coletivo, mas sim oferecer a alternativa do carro elé-
trico em substituição aos modelos atuais.

1
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Dispo-
nível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm>. Acesso em 12 mar. 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
257
Veículos elétricos

Deste modo, o presente estudo busca demostrar como es-


tes veículos podem funcionar como um meio de promoção de
uma mobilidade urbana ecologicamente sustentável, utilizan-
do uma fonte de energia limpa e ao mesmo tempo viável do
ponto de vista técnico. Para tanto foi realizada uma análise
crítica da doutrinária relacionada ao tema, abordando o histó-
rico dos veículos elétricos, bem como a concepção do conceito
de desenvolvimento sustentável, para posteriormente dissertar
sobre a utilização dos veículos supramencionados como alter-
nativa para promover a mobilidade urbana de forma sustentá-
vel e, desta forma, apresentar as conclusões sobre a temática
ora discutida.

A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


A discussão em torno dos problemas ambientais ganha a
cada dia um contorno mais alarmante. Esta preocupação se
deve às consequencias da degradação ambieltal, que aos pou-
cos começam a surtir efeito sobre a vida do ser humano, cau-
sando impacto na saúde e bem estar dos indivíduos, fazendo
com que gradativamente às atitudes humanas tenham resquí-
cios de uma conduta ambientalmente correta.
Contudo, as questões ambientais já são alvo da preocu-
pação da comunidade internacional há algumas décadas. Em
1972, era realizada em Estocolmo na Suíça, a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano que, segundo
a ONU Brasil, tinha como finalidade discutir temas vinculados
ao desenvolvimento e o meio ambiente2. Assim, de acordo com
Guerra, foram abordadas questões fundamentais na evolução
do entendimento sobre o tema ambiental no plano internacio-
nal, bem como no âmbito interno dos países participantes3.

2
ONU Brasil. A ONU e o meio ambiente. 2010. Disponível em: <http://
www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-o-meio-ambiente>. Acesso em:
29 jan. 2013.
3
GUERRA, Sidney. Desenvolvimento sustentável nas três grandes confe-
rências internacionais de ambiente da ONU In: GOMES, Eduardo B.;

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
258
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

Alguns anos após a Conferência de Estocolmo surge o


conceito de desenvolvimento sustentável, elaborado por meio
do “Programa das Nações Unidas para o meio ambiente”, que
criou a Comissão Brundtland, chefiada pela então primeira-
ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland. De acordo com a
ONU Brasil, tal programa visava discutir meios alternativos de
desenvolvimento4 e deste modo, no ano de 1987, divulgou o
relatório “Nosso futuro comum”, o qual traz a seguinte concei-
tuação: “Desenvolvimento sustentável é atender às necessida-
des do presente sem comprometer a possibilidade de as gera-
ções futuras atenderem as suas próprias necessidades”5.
(COMISSÃO…).
Posteriormente, no ano de 1992, a “Conferência das Na-
ções Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento”, a
ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, que, segundo Nusdeo,
introduziu o conceito de desenvolvimento sustentável no âmbi-
to do direito internacional, pois na oportunidade foram estabe-
lecidos direitos e obrigações individuais e coletivos, no tocante
ao meio ambiente e ao desenvolvimento, os quais integraram a
“Declaração do Rio de Janeiro sobre meio ambiente e desen-
volvimento”6.
Anos mais tarde, em dezembro de 1997, ocorreu assinatu-
ra do Protocolo de Quioto, outro evento histórico na busca pelo
desenvolvimento sustentável. Conforme Milaré, os países sig-
natários do referido protocolo se comprometem a reduzir gra-
dativamente a emissão dos gases causadores do efeito estufa.
No entanto, o tratado passou a vigorar somente em 16 de feve-
reiro de 2005, após a ratificação da Rússia. Cabe salientar que

BULZICO, Betina (org). Sustentabilidade, desenvolvimento e democra-


cia. Ijuí: Unijuí, 2010.
4
ONU Brasil, op. cit.
5
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVI-
MENTO. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Editora da Fundação
Getúlio Vargas, 1991. p. 7.
6
NUSDEO, Ana Maria de Oliveira; Desenvolvimento sustentável do Brasil
e o Protocolo de Quioto In: MILARÉ, Édis; BENJAMIN, Antônio Herman
V. (org) Revista de direito ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
259
Veículos elétricos

os Estados Unidos, maior emissor de gazes poluentes na épo-


ca, não ratificou o Protocolo7.
Já em junho de 2012, foi realizada, tendo mais uma vez o
Rio de Janeiro como sede, a Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável, a qual ficou conhecida
como “Rio+20”. Conforme a ONU Brasil, o evento objetivou a
reafirmação do comprometimento político por um desenvolvi-
mento sustentável, avaliando o progresso já alcançado, sem
esquecer, contudo, dos problemas surgidos com o passar dos
anos8.
Tais eventos não tinham o objetivo de solucionar os pro-
blemas ambientais do planeta com atitudes radicais, no entan-
to serviram para delinear as estratégias utilizadas pela maioria
das nações em busca da manutenção do equilíbrio ambiental
do planeta, fator este indispensável para que o ser humano
viva de forma saudável. Assim, apesar da relutância de alguns
países em aceitar as limitações impostas em nome da susten-
tabilidade, houve avanços neste sentido.
A partir das discussões supracitadas surgiram novos
conceitos e ideias explicitados nos compromissos firmados
entre diversos países do globo terrestre. Tais resultados vão
aos poucos sendo postos em prática, exemplo disto é a legisla-
ção brasileira, que muito embora tenha sinais claros da in-
fluência de certos grupos com interesse exclusivamente eco-
nômico, caminha, aos poucos em direção das práticas susten-
táveis, como é o caso de dispositivos como o Estatuto da Cida-
de, que estabelece explicitamente em seu texto a garantia a
cidades sustentáveis.
Desta forma, o legislador busca promover iniciativas sus-
tentáveis no meio urbano, as quais possam proporcionar o de-
senvolvimento da cidade de forma que promover a inclusão

7
MILARÉ, Édis. Direito ambiental: a gestão ambiental em foco. 7. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
8
ONU Brasil. Rio+20: Conferência das Nações Unidas sobre desenvolvi-
mento sustentável. 2012. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20
/sobre/>. Acesso em: 10 fev. 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
260
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

social sem que para isto ocorra a degradação dos recursos na-
turais. Neste contexto, um grande paradoxo a ser enfrentado
diz respeito a mobilidade urbana, pois de um lado há o desafio
de transportar de maneira rápida e eficiente uma grande quan-
tidade de pessoas e de outro, a imensa quantidade de poluição
e os congestionamentos causados pelo aumento da frota de
veículos com motor de combustão interna.

PROBLEMÁTICA RELACIONADA A MOBILIDADE URBANA

As preocupações em relação a mobilidade urbana ga-


nham a cada dia mais atenção, este fato se deve em muito a
dificuldade que o poder público tem de equacionar o aumento
da frota de veículos, com a manutenção de um meio ambiente
saudável. Neste contexto, o direito a uma cidade sustentável
está diretamente relacionado com a capacidade de desenvol-
vimento de um sistema de mobilidade urbana amparado em
iniciativas ecologicamente limpas.
Porém, caos é a palavra que melhor descreve o trânsito
de uma metrópole brasileira. Esta é uma realidade cada vez
mais comum nas grandes cidades e, devido ao aumento da
frota automotiva, é um problema que passa a ser conhecido
também pelas cidades de menor porte. As mazelas do trans-
porte urbano não se limitam apenas ao trânsito caótico, pas-
sam também pela forma como este foi concebido e como é
mantido, uma vez que dá preferência a veículos com enorme
potência e peso, que em geral carregam uma única pessoa.
Neste sentido, é fator relevante na questão abordada os
altos custos do transporte. Segundo Larica, as famílias de clas-
se média acabam por gastar cerca de 15% a 20% de toda a sua
renda em transporte, seja em passagens ou em combustíveis.
Desta forma, considerando a utilização dos automóveis por
apenas um ou dois indivíduos, situação que abrange a maioria
absoluta dos casos, o rendimento do automóvel fica em torno
de 40%, verificando-se, assim, que ocorre um enorme desperdí-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
261
Veículos elétricos

cio de recursos energéticos e financeiros no tocante ao trans-


porte urbano9.
Porém o maior problema proveniente deste uso abusivo
de recursos energéticos de fontes não renováveis não é o mero
desperdício e sim a degradação ambiental, já que os veículos
utilizados atualmente são, em sua absoluta maioria, equipados
com motor a combustão interna, tendo como característica a
grande quantidade de poluentes que produzem, trazendo ain-
da mais malefícios ao meio urbano onde trafegam. Assim, as
grandes quantidades de monóxido de carbono lançadas na
atmosfera acabam por provocar sérias consequências ao meio
ambiente.
Considerando a ineficiência dos transportes públicos no
Brasil, uma alternativa ecologicamente sustentável para os
problemas da mobilidade urbana seria a utilização de carros
elétricos. No entanto, há um grande entrave na utilização des-
ta tecnologia, pois existe uma grande variedade de tecnologias
relacionadas aos modelos elétricos sem, contudo, haver uma
padronização de modelos, potências, capacidades e métodos
de abastecimento, o que contribui para a falta de regulamen-
tação para estes veículos.
Ocorre que na maioria das vezes se dá a fabricação isola-
da de veículos com características ímpares, com o objetivo de
sua utilização em uma finalidade específica, ou mesmo na ela-
boração de um veículo conceito, servindo apenas de vitrine
para certas empresas. Contudo, o que pode ser dito com toda a
certeza é que o uso de veículos elétricos é uma das melhores
opções de transporte limpo, sendo viável de maneira técnica e
econômica, faltando somente incentivos e normas que estabe-
leçam critérios para sua fabricação e utilização.
Outro fator a ser analisado quando se pensa na utilização
maciça de veículos elétricos diz respeito ao suprimento de
energia pois, a substituição de toda uma frota em determinada

9
LARICA; Neville Jordan. Design de transportes: arte em função da mo-
bilidade. Rio de Janeiro: 2AB editora, 2003.

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262
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

região geraria um grande impacto no na demanda elétrica, so-


brecarregando alimentadores e sistemas de distribuição e,
desta forma, sendo inviável tecnicamente. Deste modo, seria
oportuna a inserção de tais veículos no mercado de modo gra-
dativo, por meio de incentivos a fabricação e a comercialização
dos mesmos paralelamente aos veículos a combustão, possibi-
litando, desta maneira, a adaptação do sistema elétrico em
longo prazo.
Existem várias empresas interessadas em fabricar veícu-
los elétricos, sendo que a opção mais viável para o Brasil, se-
gundo Bueno, são os veículos elétricos convencionais. Estes
últimos são a base para a fabricação de veículos híbridos, os
que operam com células a combustível. Assim, com a grande
oferta de energia elétrica limpa que há no Brasil, aparece um
grande nicho de mercado a ser explorado10. No entanto, a ten-
tativa de utilizar carros elétricos ao invés dos modelos conven-
cionais, já é conhecida há muito tempo, sem contudo ter acei-
tação dos consumidores.

HISTÓRICO DOS VEÍCULOS ELÉTRICOS

Não há certeza sobre o inventor do primeiro carro elétrico,


de acordo com Bellis, no ano de 1828, Anyos Jedlik fabricou um
veículo de pequeno porte o qual era tracionado por um motor
elétrico, já em 1832, Robert Anderson criou um veículo elétrico
que era movido por meio de baterias de ferro-zinco. Posterior-
mente, em 1835, um ferreiro chamado Thomas Davenport pro-
jetou uma locomotiva elétrica, sendo o primeiro americano a
construir um motor elétrico de corrente contínua11.
Verifica-se que a fabricação de veículos elétricos vem de
longa data, sendo que, conforme Goldemberg, Lebensztajn e
Lorenzetti Pellini, no ano de 1900 foram produzidos 1575 veícu-

10
BUENO, Alexandre Garcia. A tração elétrica como alternativa para o
transporte urbano. 2004. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183
/5689>. Acesso em: 25 mar. 2013.
11
BELLIS, Mary. History of Electric Vehicles. [S.l.: s.n.], 2009.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
263
Veículos elétricos

los elétricos contra apenas 936 a gasolina12. De acordo com o


documentário Who killed the electric car, até então os veículos
elétricos eram mais populares que os veículos movidos com
motores a combustão interna, pois não emitiam ruídos, nem
possuíam a necessidade de uma manivela de arranque, bem
como em sua utilização não se necessitava a troca de marchas13.
Porém esta tendência se inverteu, de acordo com Legey e
Baran, já em 1903 havia mais de quatro mil veículos registra-
dos na cidade de Nova York, destes 53% eram a vapor, 27%
eram a gasolina e apenas 20% elétricos14. De acordo com Gol-
demberg, Lebensztajn e Lorenzetti Pellini, o aumento da oferta
de petróleo barateou o custo da gasolina, fazendo com que os
carros movidos com este combustível passassem a ser mais
atrativos15.
Posteriormente, em 1913, conforme relata Trinakria, a fá-
brica de veículos Ford começa a produzir carros movidos a ga-
solina utilizando uma linha de montagem industrial em série,
fator este que aliado a invenção do motor elétrico de arranque
alavancou o uso de veículos movidos com motores à combus-
tão16. Desta forma, gradativamente os carros movidos a gasoli-
na dominaram o mercado automotivo, enquanto os veículos
elétricos foram largados ao ostracismo, em razão de sua baixa
autonomia quando comparados aos movidos a gasolina, bem
como seu investimento inicial e o seu custo operacional maior.

12
GOLDEMBERG, Clovis; LEBENSZTAJN, Luiz; PELLINI, Eduardo Loren-
zetti. A evolução do carro elétrico. 2005. Disponível em:
<http://www.lps.usp.br/lps/arquivos/conteudo/grad/dwnld/CarroEletri
co2005.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2013.
13
WHO killed the electric car? Direção: Chris Paine. [S.l.]: Sony Pictures,
2006.
14
BARAN, Renato; LEGEY, Luiz Fernando Loureiro. Veículos elétricos:
história e perspectivas no Brasil. 2010. Disponível em: <http://www.ab
ve.org.br/downloads/Veiculos_eletricos_perspectivas_Brasil_BNDES.pdf>.
Acesso em: 10 mar. 2013.
15
GOLDEMBERG; LEBENSZTAJN; PELLINI, op. cit.
16
TRINAKRIA, Mario. Carros elétricos ou não? 2012. Disponível em:
<http://topartigos.com/?p=29980>. Acesso em: 3 abr. 2013.

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264
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

Goldemberg, Lebensztajn e Lorenzetti Pellini, relatam


que após um longo período de esquecimento, os carros elétri-
cos voltam a ser alvo de interesse do mercado, em razão da
preocupação com poluição produzida pelos automóveis nas
áreas urbanas. Neste contexto, em 1967, o governo dos EUA
elabora regulamentação no sentido de impor restrições a polu-
ição automobilística17. No entanto, mais uma vez a autonomia
reduzida e a baixa velocidade afastaram os consumidores, que
mantiveram a preferência pelos veículos convencionais, fazendo
com que a utilização dos automóveis a gasolina prevalecesse.
De acordo com Trinakria, em 1997, surgem novas tecno-
logias que são utilizadas em carros como a Ford Ranger elétri-
ca, a RAV4 da Toyota, o EV1 da GM, dentre outros veículos18.
Da mesma forma são desenvolvidos veículos híbridos, que
unem o motor a combustão com o motor elétrico, em razão da
deficiência existente nas baterias dos veículos elétricos que
em relação a outras fontes combustíveis, possuem densidade
de energia com valor muito baixo se comparados a densidade
energética de combustíveis como a gasolina, por exemplo.
Mais recentemente, no ano de 2010, quase 50 anos após o
lançamento do Comuta e do GM512, Oliveira relata que Ford e
a General Motors voltaram a lançar veículos com tecnologia
elétrica, os quais, se comparados aos modelos de 1960, obtive-
ram uma considerável evolução19. Conforme descreve Baldisse-
ra, agregaram novas tecnologias, como freios regenerativos,
controle eletrônico de tração e baterias de lítio, que atuam em
conjunto com sistemas que operam buscando o melhor de-
sempenho possível, elevando de modo significativo a sua au-
tonomia20.
17
GOLDEMBERG; LEBENSZTAJN; PELLINI, op. cit.
18
TRINAKRIA, op. cit.
19
OLIVEIRA, Jáder de. Energia renovável, coragem escassa. 2011. Dispo-
nível em: <http://jornambientalunifor.blogspot.com.br/2011/11/e
nergia-renovavel-coragem-escassa.html>. Acesso em: 27 mar. 2013.
20
BALDISSERA, Luciano Bonato. Desenvolvimento de um protótipo de
um veículo elétrico. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Engenharia Elétrica)–Departamento de Ciências Exatas e Engenharias,
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
265
Veículos elétricos

No momento em que as atenções do mundo se voltam pa-


ra as questões ambientais, mais uma vez os carros elétricos
começam a aparecer, porém desta vez com mais força, utili-
zando tecnologias de ponta que amenizam os problemas de
autonomia e velocidade, começam a ser uma maneira de pro-
mover a mobilidade urbana de uma forma sustentável. Junta-
mente com os fatores ambientais, a opção por carros elétricos
aparece como alternativa ao uso de combustíveis fósseis.

MOBILIDADE URBANA DE FORMA SUSTENTÁVEL


Durante o século XX, houve no Brasil um grande fluxo de
pessoas que deixaram o campo e passaram a residir no meio
urbano, em busca de prosperidade e melhoraria nas condições
de vida até então enfrentadas. Este êxodo rural, acompanhado
do aumento populacional ao longo dos anos, culminou com o
crescimento de forma desordenada da maioria das cidades
brasileiras.
Esta realidade trouxe consequências sociais nefastas,
pois a falta de planejamento propiciou problemas em razão da
indisponibilidade de meios estruturais adequados para aten-
der as necessidades básicas dos indivíduos. Assim, boa parte
da população do meio urbano foi submetida a condições soci-
ais precárias. Neste sentido, Sparemberger, Santos e Noll afir-
mam o seguinte:
Observa-se que, diante do crescimento desordenado dos
espaços urbanos, surgiram inúmeros problemas e riscos
para a própria sociedade. Os mais evidentes concentram-
se na degradação dos espaços verdes, poluição das
águas, do ar, do solo, as inundações, deslizamentos, den-
tre outros [...] Essa perspectiva ocasionou nas últimas
décadas a crise das cidades, sede de crime, violência,
degradação paisagística e ambiental, decadência de in-
fraestruturas, carência habitacional declínio do emprego

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí,


2012.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
266
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

formal, estrangulamento da mobilidade e poluição atmos-


férica.21

Tal problemática fez surgir à necessidade da concepção


de políticas públicas voltadas para o planejamento urbano.
Desta forma, o Estatuto da Cidade – Lei Federal 10.257, de 10
de julho de 2001 – surge, tendo como foco a acessibilidade ur-
bana, a sustentabilidade ambiental e a inclusão social, estabe-
lecendo as diretrizes gerais da política de desenvolvimento
urbano, conforme destaca Guimaraens22.
Assim, o Estatuto da Cidade tem em seu texto a previsão
legal do direito a cidades sustentáveis23, garantia esta que se
coloca como um direito coletivo, uma vez que busca fugir do
processo de urbanização capitalista, poluidor e desordenado,
enfrentado até então pelas cidades brasileiras, partindo em
direção ao atendimento das funções sociais que devem ser ofe-
recidas aos cidadãos, conforme destaca Alfonsin. Dentre tais
funções está inserida a mobilidade urbana, que tem papel fun-
damental no desenvolvimento urbano.
A Lei 12.587 de 2012 instituiu as Diretrizes da Politica
Nacional de Mobilidade Urbana, trazendo em seu Art. 4º, II, a
definição do que seria mobilidade urbana, descrevendo esta
como a “condição em que se realizam os deslocamentos de
pessoas e cargas no espaço urbano” 24, trazendo como um de

21
SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes; SANTOS, Marcelo Loeblein
dos; NOLL, Patrícia. Risco urbano: cidadania e sustentabilidade na ci-
dade dos homens In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes;
AUGUSTIN, Sérgio (Org.). O direito na sociedade de risco: dilemas e
desafios socioambientais. Caxias do Sul: Plenum, 2009. p. 232
22
GUIMARAENS, Maria Etelvina Bargamaschi. O Estatuto da Cidade apli-
cado: diretrizes gerais de mobilidade urbana e o plano diretor de Porto
Alegre In: SULZBACH, César Emílio et al. (Org.). Congresso de direito
urbano ambiental, 1., 2006. Anais.. Porto Alegre: ESDM, 2006.
23
BRASIL. Estatuto da Cidade. Lei n. 10.275, de 10 de julho de 2001. Esta-
belece diretrizes gerais da política urbana. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>.
Acesso em: 2 abr. 2013.
24
BRASIL. Lei n. 12.587, de 3 de janeiro de 2012. Institui as diretrizes da
política nacional de mobilidade urbana. Disponível em: <http://www.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
267
Veículos elétricos

seus fundamentos o desenvolvimento sustentável das cidades,


abrangendo as dimensões socioeconômicas e ambientais. As-
sim, há a intenção de conciliar estas condições de deslocamen-
to com a proteção ambiental.
Seguindo este raciocínio logicamente o transporte coleti-
vo tem prioridade no que diz respeito aos investimentos feitos
pelo poder público, no entanto a rede de mobilidade de uma
cidade é muito complexa, exigindo uma diversidade de alter-
nativas.Neste sentido Silveira e Balassiano afirmam que a “re-
de integrada em um sistema de mobilidade organizado e hie-
rarquizado onde cada modo desempenha uma função específi-
ca é determinante para que o usuário disponha de boas alter-
nativas”. 25
Assim, devem ser oferecidas alternativas para que se
atendam as diversas demandas por transporte. Deste modo, a
necessidade de utilização de veículos não desaparecerá repen-
tinamente, ocorrendo à possibilidade de substituir os modelos
de veículos com motores convencionais por outros, com moto-
res elétricos, uma vez que estes, em seu funcionamento, não
emitem qualquer tipo de poluição. Neste sentido, Campos
afirma que existe a preocupação quanto ao tipo de combustível
a ser utilizado nos meios de transporte, visando a redução no
consumo de combustíveis fósseis que provocam a emissão de
dióxido de carbono (CO2)26.
Com isso, apesar de limitados pela autonomia e potencia,
a utilização de motores elétricos surge como alternativa inclu-
sive para veículos utilizados no transporte público coletivo.

planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm>. Acesso
em: 4 abr. 2013.
25
SILVEIRA, Mariana Oliveira da; BALASSIANO, Ronaldo. A bicicleta e a
redução de consumo de energia no setor de transportes. 2009. Dispo-
nível em: <http://redpgv.coppe.ufrj.br/arquivos/bicicleta%20e%20ener
gia_mariana_oliveira_rona.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2013. p. 9.
26
CAMPOS, Vânia Barcellos Gouvêa. Uma visão da mobilidade urbana
sustentável. 2009. Diponível em: <http://portal.ime.eb.br/~webde2/
prof/vania/pubs/(3)UMAVISAODAMOBILIDADE.pdf>. Acesso em: 20
mar. 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
268
Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

Esta prática já existe, sendo exemplificada por Goldemberg,


Lebensztajn e Lorenzetti Pellini, que citam as locomotivas hí-
bridas, com motores diesel-elétricos e os metrôs urbanos, que
utilizam tão somente a energia elétrica27.
O fato é que o atual estágio de degradação do meio ambi-
ente exige o uso de energias mais limpa, isto é facilmente per-
cebido nas cidades, nas quais um dos grandes vilões da quali-
dade do ar é a queima de combustíveis fósseis pelos veículos.
Contudo, a produção de energia elétrica também deve obede-
cer às práticas sustentáveis, pois de nada adiantará deixar de
poluir com os veículos e passar a poluir com a queima de com-
bustíveis fósseis em termelétricas.
Outro aspecto a ser abordado diz respeito ao tamanho
dos veículos. Atualmente, ocorre a utilização de carros dema-
siadamente grandes para sua finalidade. Não há a real neces-
sidade de fabricar veículos com espaço interno para cinco pes-
soas, quando este leva, na maioria absoluta dos casos, um úni-
co indivíduo. Na verdade, só que ganha com este conceito de
veículo é a indústria automobilística, que atribui preços em
proporção ao tamanho do veículo, auferindo grandes lucros e
ignorando os problemas ambientais e de mobilidade enfrenta-
dos pelas cidades.
Verifica-se que outro o problema em relação a esta tecno-
logia está nas baterias, as quais que possuem uma capacidade
de armazenamento limitada e um tempo de recarga elevado.
Baldissera afirma que mesmo com o desenvolvimento de bate-
rias com elevadas densidades energéticas como as de íons de
lítio, o custo destas ainda é um fator limitador na sua utilização
em veículos elétricos, pois sistemas que possuem este tipo de
tecnologia são muito mais caros quando comparados com o
custo benefício de motores a combustão, fazendo com que os
consumidores optem pelos veículos tradicionais, mesmo sendo
estes extremamente poluentes28.

27
GOLDEMBERG; LEBENSZTAJN; PELLINI, op. cit.
28
BALDISSERA, op. cit.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
269
Veículos elétricos

CONCLUSÃO
A tentativa de implementar uma cidade sustentável é
bastante complexa, sendo uma das práticas que necessaria-
mente precisam estar presentes na consolidação da mesma, é
a mobilidade urbana de forma sustentável. Para tanto, a elimi-
nação da poluição produzida pelos veículos que trafegam nas
vias urbanas se torna fundamental. Assim, a alternativa de
motores elétricos para estes veículos mostra-se uma alternati-
va viável, devendo receber incentivos de políticas públicas que
fomentem sua fabricação, para que não sejam esquecidos, co-
mo foram no passado.
Verifica-se também, que há a necessidade da mudança
dos padrões de tamanho dos veículos convencionais individu-
ais, que devem ser adaptados a sua finalidade. A diminuição
do tamanho dos veículos só tem a contribuir com a trafegabili-
dade nas cidades, bem como na utilização otimizada dos espa-
ços destinados a estacionamentos, o que por si só já acarreta-
ria uma melhora significativa na mobilidade urbana.
Apesar dos consumidores possuírem interesse em adqui-
rir um veículo elétrico pelo fato destes não serem poluentes,
acabam por rejeitá-los quando percebem as limitações impos-
tas em relação à potência, autonomia, velocidade e tempo de
carga que possuem estes veículos acabam desistindo da com-
pra e adquirem veículos a combustão. Com isso, a opção criada
pelas montadoras objetivando a inserção dos veículos elétricos
no mercado foi à tecnologia dos veículos híbridos, que combi-
nam veículos elétricos puros com veículos movidos com moto-
res à combustão, atingindo assim, elevadas autonomias e po-
tências consideráveis, além de proporcionarem uma menor
emissão de poluentes.
Contudo, salienta-se que não há como substituir a frota
automotiva brasileira em curto prazo, em razão do aumento de
demanda elétrica para a qual o sistema elétrico brasileiro não
está preparado. Sendo assim, a solução para este problema
seria uma inserção destes veículos no mercado de modo gra-
dativo, por meio de incentivos à fabricação e a comercialização

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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Daniel Corrente de Moraes; Marcelo L. dos Santos & Luciano B. Baldissera

dos mesmos paralelamente aos veículos a combustão, possibi-


litando a adaptação do sistema elétrico em longo prazo.

REFERÊNCIAS
BARAN, Renato; LEGEY, Luiz Fernando Loureiro. Veículos elétricos:
história e perspectivas no Brasil. 2010. Disponível em:
<http://www.abve.org.br/downloads/Veiculos_eletricos_perspectiv
as_Brasil_BNDES.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2013.
BELLIS, Mary. History of Electric Vehicles. [S.l.: s.n.], 2009.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Dis-
ponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui
cao.htm>. Acesso em 12 mar. 2013.
BRASIL. Estatuto da Cidade. Lei n. 10.275, de 10 de julho de 2001.
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL E
A RELEVÂNCIA DAS PREVISÕES , INSERTAS
NOS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS , NO
TOCANTE À EFETIVIDADE
DOS DIREITOS INDIGENISTAS

Denise Tatiane Girardon dos Santos


Advogada. Mestranda no Curso de Mestrado em Direitos Humanos,
UNIJUÍ – Bolsista CAPES (girardon_15@hotmail.com)

Resumo
O Direito Indigenista, historicamente, apresentou vários pontos polêmicos, mormen-
te, em relação a temas como ocupação, pelos índios, das terras, destinadas para
esse fim, reconhecimento da autonomia da cultura indígena, discriminação racial e
de gênero, autonomia econômica, social e cultural, saúde, dentre tantas outras
questões, todas com importância incomensurável, se revelando como problemáticas
que clamam por soluções efetivas, a fim de que os Direitos Indígenas sejam, efeti-
vamente, assegurados. Ressalta-se que essas problemáticas são globais, haja vista a
existência de aborígenes em um número considerável de países, de modo que o
Direito Indigenista se insere no rol de direitos coletivos e universais; logo, verifica-se
a premente necessidade de se promover o estudo das previsões legais de caráter
internacional, como Tratados, Acordos e Atos – mormente, os ratificados pelo Brasil
-, a fim de se identificar as previsões legais dedicadas à tutela dos cidadãos brasilei-
ros de origem indígena, o efetivo respeito à dignidade da pessoa humana, haja vista
que os índios brasileiros são cidadãos, e, portanto, todos os Tratados e demais Do-
cumentos, de natureza semelhante, que foram ratificados pelo Brasil, devem ser
observados também na defesa de seus direitos.
Palavras-Chave: Proteção. Índio. Tratados Internacionais. Efetividade. Direito.

Abstract
The Indian law has historically presented several controversial points, particularly in
relation to issues such as occupation by Indians of lands intended for this purpose,
recognition of the autonomy of indigenous culture, gender and racial discrimination,
economic independence, social and cultural , health, among many other issues, all
with immeasurable importance, as if revealing problems that call for effective solu-
tions, so that the Indigenous rights are effectively guaranteed. It is emphasized that
these problems are global, given the existence of Aborigines in a considerable num-
ber of countries, so that the Indian law falls on the list of collective rights and univer-
sal, therefore there is the urgent need to promote the study of the legal provisions
of international character, as Treaties, Agreements and Acts – especially, those rati-
fied by Brazil – in order to identify the legal provisions dedicated to the protection of
Brazilian citizens of Indian origin, the effective respect for human dignity, consider-
ing that the Brazilian Indians are citizens, and therefore all treaties and other docu-
274
Denise Tatiane Girardon dos Santos

ments of a similar nature, which have been ratified by Brazil, should be observed
also in defense of their rights.
Keywords: Protection. Indian. International Treaties. Effectiveness. Right.

INTRODUÇÃO
Em razão da premente necessidade de se tutelar os direi-
tos das minorias sociais, dentre elas, as tribos indígenas, este
trabalho visa a promover uma abordagem em relação às previ-
sões, contidas nos Documentos Internacionais, ratificados pelo
Brasil, no sentido de buscar a proteção e a preservação dos
aborígenes, tendo em vista que o Direito Indígena possui natu-
reza de direito coletivo, tutelado internacionalmente.
Tal estudo se revela crucial para a melhor compreensão
dos direitos e garantias assegurados aos povos indígenas, de
modo que as normatizações internacionais, que influenciam,
de alguma forma, sobre o direito indigenista pátrio, asseguram
a presciência de direitos protetivos indigenistas no âmbito na-
cional, e legitimam os povos indígenas e re3ivindicarem pela
efetividade de seus direitos.
Delimitado o assunto, acredita-se que o estudo sobre as
previsões legais, com viés protetivo ao Direito Indigenista,
possa contribuir, de modo significativo, para a compreensão
desse tema relevante, e, com isso, favorecendo a eficácia das
medidas protetivas indigenistas.

A ESSENCIALIDADE DO RECONHECIMENTO DOS DIREITOS NATURAIS


DO HOMEM PARA A EFETIVAÇÃO DE SEUS DIREITOS NATURAIS
Destaca-se, inicialmente, que é uma característica constan-
te, na História da humanidade, as lutas e as conquistas em rela-
ção ao reconhecimento e à efetivação dos direitos naturais, com
o efetivo respeito à dignidade da pessoa humana e a pretensão
da abolição das várias formas de discriminação e atos reprová-
veis. Insta resslatar, nesse ínterim, que os índios brasileiros são
cidadãos, e, portanto, todos os Tratados e demais Documentos,
de natureza semelhante, que foram ratificados pelo Brasil, de-
vem ser observados também na defesa de seus direitos.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
275
A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

Coletivamente, o ser humano buscou, durante muitos sé-


culos, a proteção e o respeito dos seus direitos, tendo sido a
Inglaterra a precursora na edição de documentos constitucio-
nais que possuíam natureza de declaração de direitos, tais
como a Magna Carta, de 1215, o Ato de Habeas Corpus, de
1679 e a Petição de Direitos, de 16881.
Tais manifestações levaram à elaboração das primeiras
Declarações de Direitos firmadas, que foram a Declaração da
Virgínia, de 1776 (que precedeu e, fortemente, influenciou a De-
claração de Independência do Estados Unidos da América) e a
Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão, de 1789, essas
que deram azo à assinatura de outras, não menos importantes2.
O que se buscou, principalmente, foi proteger, nessas du-
as Declarações (e nas seguintes) os direitos naturais que toda
pessoa humana possui, estes que antecedem, inclusive, ao
Estado. De acordo com Teixeira3 “os direitos naturais são inali-
enáveis da pessoa humana preexistem ao Estado e a este se
sobrepõe, corolários que são, como vimos, dos próprios atribu-
tos da pessoa humana, da natureza essencial desta”.
Logo, de acordo com o mencionado autor, tais Declara-
ções se constituíram em verdadeiras afirmações da liberdade
como direito dos cidadãos, oponíveis erga omnes, pelo seu pro-
fundo espírito filosófico, político, e, ainda, pelas excepcionais
circunstâncias históricas a que ditaram.
O resultado de tais Declarações foi a criação, ou a organi-
zação, de algumas garantias, que se constituíram em remédios
jurídicos, gerais ou específicos, com a finalidade de proporcio-
nar adequada proteção de tais liberdades, protetivas ou repa-
radoras, sendo que, até os dias atuais, essas Declarações in-
fluenciam os sistemas constitucionais dos modernos Estados
Democráticos4.

1
TEIXEIRA, 1991, p. 683.
2
JÚNIOR, 2007, p. 370.
3
Op. Cit. p. 681.
4
Ibidem. pp. 681, 683, 684 e 688.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
276
Denise Tatiane Girardon dos Santos

Dessa forma, nasce o conceito de Direitos Humanos, que,


segundo Yamada5, “são os direitos fundamentais inerentes a
todos os seres humanos independentemente de sua nacionali-
dade, sexo, origem étnica ou nacional, cor, religião, ou qual-
quer outro status”.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Ci-
dadão, de 1789, foi a precursora da Declaração Universal de
Direitos Humanos, de 1948, sendo que aquela previa princípios
de respeito, igualdade, liberdade, fraternidade e dignidade.
Nas palavras de Almeida e Perrone-Moisés6:
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Ci-
dadão, de 1789, criou o moderno conceito decidadão: a
Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, ao
declarar que todas as pessoas nascem livres e iguais,
preserva esse conceito e amplia-o. Essa ampliação reali-
za-se por meio do reconhecimento da inerente dignidade
do ser humano, o que significa dizer que o reconhecimen-
to da dignidade surge com o fato do nascimento de um
ser humano. Esse imanente respeito – sinônimo de dig-
nidade – propicia-lhe o exercício dos direitos de liberda-
de, igualdade e fraternidade e acompanha-o, de modo in-
separável e incondicional, no decorrer de sua existência.
[...].

De acordo com os mencionados autores, a Declaração


Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, objeti-
vava instaurar uma ordem pública mundial fundada no respeito
à igualdade humana, pois a condição de pessoa era o requisito
único e exclusivo para a titularidade de direitos7. Logo, tal Do-
cumento se constituiu em um marco histórico, representando
as conquitas da humanidade para assegurar a previsão, obser-
vância e efetividade dos direitos naturais, inerentes a todos os
seres humanos, e, nesse ínterim, igualmente, aos índios.
5
Disponível em http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/ju-
risprudencia-1/crimes/trf-3/RC%202002.03.99.016415-4%20-%20MS.pdf.
Acesso no dia 03.10.2011, as 11h30min.
6
2002, p. 16.
7
Op. Cit. p. 131.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
277
A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS E A AQUIESCÊNCIA, DE SUAS PREVISÕES, PELO BRASIL
No tocante às Cartas Magnas brasileiras, todas elas, de
um modo ou outro, trouxeram previsões de direitos humanos de
ordem natural, consoante a enumeração, elencada por Teixeira8:
As Constituições brasileiras, desde a Carta de 1824, vêm
contento, invariavelmente, uma Declaração de Direitos,
embora sob denominações levemente diversas: “Garanti-
as dos Direitos Civis e políticos dos Cidadãos Brasilei-
ros”, na Carta de 1824 (arts. 173 e segs.); “Declaração de
Direitos” 9arts. 72 e segs.), na Constituição de 1891; “Da
Declaração de Direitos”, na Constituição de 1934 (arts.
106 e segs.); “Dos Direitos da Garantias Individuais, na
Carta de 1937 (arts. 122 e segs.); “Dos Direitos e Garanti-
as Individuais” (arts. 141 e 144), na Constituição de 1946
[...].

Yamada destaca que, devido à vital importância dos Direi-


tos Humanos, eles são parte integrante de inúmeras normas,
nacionais e internacionais, constituindo os princípios que as re-
gem. Com isso, houve a criação do Direito Internacional dos Di-
reitos Humanos, que visa a orientar os Estados a promoverem a
observância e o respeito aos direitos fundamentais de todos9.
Dada a relevância e universalidade dos direitos humanos,
eles são mencionados com frequência e garantidos por
leis na forma de tratados, direito costumeiro internacio-
nal, princípios e outras fontes de direito internacional.
Assim, o Direito Internacional dos Direitos Humanos es-
tabelece deveres aos Estados para agirem de maneira a
respeitar, promover e proteger os direitos humanos e as
liberdades fundamentais de indivíduos e coletividades.

8
1991, p. 689.
9
Disponível em http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/ju
risprudencia-1/crimes/trf-3/RC%202002.03.99.016415-4%20-%20MS.pdf.
Acesso no dia 03.10.2011, as 11h30min

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
278
Denise Tatiane Girardon dos Santos

A Autora mencionada destaca que todos os cidadãos são


detentores de direitos, sem nenhuma distinção, e que são inti-
tulados de direitos humanos os direitos voltados à garantia da
dignidade humana, sendo universais, inalienáveis, interde-
pendentes e indivisíveis, eis que a melhora de um direito eclo-
de no avanço de outros, e, por outro lado, a privação de um
direito afeta e, consequentemente, viola todo o conjunto dos
direitos humanos10.
Atualmente, consoante lecionam Bastos e Martins, os
Tratados internacionais se constituem em um “acordo de von-
tades celebrado entre dois ou mais Estados a fim de criar, mo-
dificar, resguardar ou extinguir entre eles uma relação de direi-
to”11. Portanto, tais nações devem possuir um interesse em
comum, que possa ser regularizado por intermédio de um
acordo, qual seja, o Tratado.
A Constituição de 1988, conforme discorre Satilli, “é a
primeira Constituição brasileira a elencar o princípio da preva-
lência dos direitos humanos, como o princípio fundamenta a
reger o Estado nas relações internacionais”12. Os Direitos Hu-
manos se aplicam aos povos indígenas da mesma forma como
se aplicam a todos os cidadãos, com a indivisibilidade de seus
direitos como meio de garantir a continuidade de suas tradi-
ções, e autodeterminação. Yamada destaca que13:
No caso dos povos indígenas, como em qualquer outro, a
interdependência e a indivisibilidade entre os diretos
fundamentais se mantêm. Por exemplo, não é possível
garantir o desenvolvimento dos povos indígenas sem
lhes garantir o direito à autodeterminação ou o direito à
manutenção de suas culturas e tradições. Embora o reco-
nhecimento aos direitos indígenas sejam competência
dos Estados-Nação, um discreto conjunto de leis e pa-

10
Op. cit. 2010.
11
2002, p. 106.
12
2005, p. 37.
13
Disponível em http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/ju
risprudencia-1/crimes/trf-3/RC%202002.03.99.016415-4%20-%20MS.pdf.
Acesso no dia 03.10.2011, as 11h30min.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
279
A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

drões internacionais relativos aos direitos humanos têm


se desenvolvido rapidamente nos últimos tempos ofere-
cendo um novo norte ao tratamento dos direitos dos po-
vos indígenas.

Sendo assim, o desenvolvimento, a evolução dos povos


indígenas, somente pode se concretizar com o respeito às suas
particularidades, o que se consegue a partir do momento em
que os Estados passarem a assegurar a observência de todos
os seus direitos, sendo que, quanto a essa questão, os Trata-
dos e Acordos Internacionais são documentos relevantes para
se alcançar tal proteção.
A autora menciona que o Direito Internacional sempre vi-
sou à normatização das relações entre diferentes povos, inici-
almente, com viés colonialista, com fins de legitimar as ações
de apossamento dos colonizadores sobre as terras dos habi-
tantes originais. Entretanto, com a evolução, o Direito Interna-
cional passou a atender às demandas dos povos indígenas a
partir do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do prin-
cípio da não discriminação, garantindo o respeito e a preserva-
ção de suas culturas, terras tradicionais e auto-governo indí-
genas, incorporando no modelo político dos Estados soberanos
tais, com natureza de direitos humanos14.

OS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS, QUE TRATAM DE QUESTÕES


RELACIONADAS AO DIREITO INDÍGENA, RATIFICADOS PELO BRASIL
As principais Declarações e Pactos Internacionais que o
Brasil ratificou, e que possuem implicância direta na questão
indigenista (até mesmo pelo fato de os indígenas serem consi-
derados cidadãos brasileiros, iguais perante a lei em relação
ao restante da sociedade, de acordo com a deteminação do
artigo 5º, caput, da Carta Magna), serão discorridos adiante.
Entretanto, importante destacar que os instrumentos ratifica-
dos pelo Brasil, assim como pelos demais Membros, possuem
caráter obrigacional no tocante à garantia dos direitos reco-

14
Op. Cit. 2010.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
280
Denise Tatiane Girardon dos Santos

nhecidos, por todos os níveis e Entes da Federação. Yamada


pontua que15:
Cada instrumento ratificado estabelece obrigações de di-
reito internacional ao Estado brasileiro para garantir os
direitos declarados e reconhecidos, sem usurpar os dis-
positivos e obrigações do direito doméstico. Estes deve-
res e obrigações internacionais pertencem aos Estados e
se direcionam a todos os níveis de governo: federal, esta-
dual e municipal; e a todas as esferas de Poderes: execu-
tivo, judiciário e legislativo.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de


Discriminação Racial (CERD), em seu artigo 1º, parágrafo 1º,
delimita os sujeitos a que pretente tutelar, ou seja, aqueles que
sofrem preconceito devido à sua raça, cor ou etnia16. Em seu
artigo 1º, consta que:
Para fins da presente Convenção, a expressão 'discrimi-
nação racial' significará toda distinção, exclusão, restri-
ção ou preferência baseada em raça, cor, descendência
ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou re-
sultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício em um mesmo plano (em igualdade de condi-
ção) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos político, econômico, social, cultural ou em qual-
quer outro campo da vida pública.

Denota-se, pela leitura do artigo retro transcrito, que o su-


jeito tutelado por essa Convenção é descrito, objetivamente,
considerando o sentido originário do preconceito repudiado, ou
seja, a fobia à outra etnia. Almeida e Perrone-Moisés17 desta-
cam que:
Com base nessa definição, é possível identificar alguns
elementos que remetem aos valores e forma de percep-

15
Ibidem, 2010.
16
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/. Acesso no dia 05.11.2011,
as 16h30min.
17
2002, p. 29.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
281
A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

ção do problema que permeiam esse documento. Em


primeiro, lugar, fica claro que o sujeito da convenção está
especificamente em seu sentido estrito e originário, ou
seja, relaciona-se à fobia àquele que percente á outra et-
nia. [...]

Após delimitar o sujeito a ser tutelado, a Convenção so-


bre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
buscou adotar medidas repressivas e punir as violações a seus
preceitos, devendo os Estados-Membros praticarem atos de
erradicação das formas de racismo. Nas palavras dos mencio-
nados autores18:
Entre as medidas repressivas estão os compromissos de
não promover e legalizar a discriminação racial, bem co-
mo de punir as violações dos direitos previstos pela Con-
venção. Assim, o Estado, além de condenar a segregação
e abster-se de validar uma legislação discriminatória ou
apoiar movimentos racistas deve também proibir propa-
gandas e organizações dessa natureza, declarando-as
ilegais, a fim de evitar a disseminação de idéias basea-
das na superioridade racial, bem como os atos de violên-
cia e de incitação à intolerância étnica. Ao lado disso, o
Estado compromete-se a garantir uma resposta jurídica
ao racismo por meio de seu judiciário, que deve ser
igualmente acessível a toda a população.

Quanto a essa Convenção, em relação às medidas prote-


tivas nele contidas, voltadas aos povos indígenas, Yamada19
destaca os principais tópicos:
[...] o respeito às culturas, histórias, línguas e modos de
vida indígenas como forma de enriquecer a identidade
cultural dos Estados e promover sua preservação; que os
membros dos povos indígenas sejam livres e iguais em
dignidade e direitos e estejam livres de qualquer discri-
minação, em especial da discriminação fundada na sua
origem ou identidade indígena; a garantia aos povos in-
18
Op. Cit. 2002, p. 30.
19
Op. Cit. 2010.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
282
Denise Tatiane Girardon dos Santos

dígenas das condições que permitam o desenvolvimento


econômico e social sustentável e compatível com suas
características culturais; que os membros dos povos in-
dígenas tenham direitos iguais no tocante à efetiva parti-
cipação na vida pública e que nenhuma decisão relacio-
nada a seus direitos e interesses seja tomada sem o seu
consentimento informado; que as comunidades indígenas
exercitem seu direito de praticar e revitalizar suas tradi-
ções culturais e costumes, e preservem e usem suas lín-
guas.

Denota-se, assim, que a CERD visou a proteger vários as-


pectos importantes para a preservação das tradições, usos e
costumes dos indígenas, de uma forma em geral, como, por
exemplo, assegurou o direito à dignidade, liberdade e igualda-
de, condições que propiciem o seu natural e saudável desen-
volvimento, a participação na vida pública e social de sua na-
ção, além de garantir a manutenção de suas línguas.
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, do ano de 16.12.1966, por sua vez, é um documento
que já instituiu regras obrigacionais de políticas públicas para
os Estados-Membros, sendo que estes deveriam efetivá-los.
Assim, sua previsões atingem o plano interno de cada Estado,
de acordo com as nuances de cada um, estas que possuem
influência direta na consecução de suas previsões20.
Os direitos assegurados por esse Pacto são a autodeter-
minação dos povos e liberdade de cada Estado de dispor, li-
vremente, de suas riquezas naturais; igualdade entre homens
e mulheres; trabalho livremente escolhido e capacidade para
exercê-lo; direitos trabalhistas condições justas de tabalho;
sindicalização; previdência e seguro social; alimentação, ves-
timenta e moradia; saúde física e mental; educação e cultura21.
A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher, de 18.12.1979, visou a tutelar

20
ALMEIDA e PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 47.
21
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/. Acesso no dia 05.11.2011,
as 16h30min.
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A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

as mulheres vítimas de discriminação baseada pelo fator sexu-


al, visando à igualdade de direitos entre o homem e a mulher,
em todas as esferas e campos sociais22.
Por intermédio dessa Convenção, que, diga-se de passa-
gem, foi uma conquista das mulheres, que lutavam pelo reco-
nhecimento de seus direitos desde a Idade Moderna, restou
estabelecido que os direitos das mulheres estariam posiciona-
dos no mesmo patamar que os dos homens, o que, consequen-
temente, afasta a ideia de exclusão de inferiorização do sexo
feminino. Nas palavras de Almeida e Perrone-Moisés23:
Considerar os direitos das mulheres como categoria indi-
visível aos direitos humanos é uma atitude recente, que
evidencia uma evolução, em face de uma realidade de
exclusão e postergação da mulher, historicamente mar-
cada. Essa situação de postergação da mulher tem mu-
dado, produto das lutas reivindicatórias que diversas mu-
lheres empreenderam no decorrer da história da humani-
dade. Estas adquirem considerável força na Idade Mo-
derna, atingindo conquistas estruturais somente durante
o século XX.

Souza24 destaca o trabalho que o Comitê da Convenção


Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Con-
tra a Mulher (ou CEDAW, em inglês) vem desempenhado no
sentido de fiscalizar a aplicação das previsões de tal documen-
to no Brasil, com destaque à insistente desigualdade de direi-
tos entre homens e mulheres, entre elas, as índias; bem como,
a pobreza, que as marginaliza da sociedade.
Na data de 1989 foi aprovada a Convenção Nº 169 sobre
Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes, da Or-
ganização Internacional do Trabalho (OIT), estabelecendo que
os povos indígenas possuem o direito de serem consultados
pelos Poderes Executivo e Legislativo acerca de questões, te-
mas, projetos e programas que lhes dizem respeito ou ao que

22
Op. Cit, 2011.
23
2002, p. 52.
24
2009, pp. 16 e 22. OBRA - BRASIL, 2010, pp.17 e 18.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
284
Denise Tatiane Girardon dos Santos

possam vir a lhes causar quaisquer inteferências, afetando su-


as vidas, terras e as culturas25.
A Convenção nº 169 da OIT, apresenta avanços importan-
tes no tocante ao reconhecimento dos direitos indígenas cole-
tivos, significativamente, aspectos de direitos econômicos, so-
ciais e culturais, sendo tal Convenção, atualmente, o instru-
mento internacional, de caráter vinculante, mais atualizado e
abrangente em se tratando de condições de vida e trabalho
dos índios26.
Os artigos 14 e 15 da Convenção nº 169, da OIT, prescre-
vem que os índios possuem direito de consulta e participação,
tanto no uso, gestão, controle de acesso e conservação de seus
territórios; bem como, o direito à indenização por eventuais
danos, além de proteção contra despejos e remoções de suas
terras tradicionais27.
Já a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tra-
tamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, entrou em vigor
em 26 de junho de 1987, visou a restringir, em sua área de ju-
risdição, práticas cometidas por funcionários públicos ou outra
pessoa no exercício de funções públicas que violem a integri-
dade física e a dignidade daqueles sob custódia do Poder Pú-
blico28.
Os autores mencionados afirmam que tal Convenção visa
que os Estados-Partes passem a adotar medidas de fiscaliza-
ção e de criminalização dos atos de tortura, desde que cometi-
dos em seu território, contra seus nacionais, por estrangeiros
em seu território. Também, tratam da extradição dos agentes
praticantes de atos considerados tortura, determinando a sua
25
Disponível em http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/ju
risprudencia-1/crimes/trf-3/RC%202002.03.99.016415-4%20-%20MS.pdf.
Acesso no dia 03.10.2011, as 11h30min.
26
OBRA - BRASIL, 2010, pp.17 e 18.
26
Disponível em http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/ju
risprudencia-1/crimes/trf-3/RC%202002.03.99.016415-4%20-%20MS.pdf.
Acesso no dia 03.10.2011, as 11h30min.
27
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/. Acesso no dia 05.11.2011,
as 16h30min.
28
ALMEIDA e PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 65.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
285
A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

extradição, salvo quando haver riscos de ele ser submetido à


tortura no País extraditando29.
Inicialmente, estabelece que os Estados deverão adotar
medidas eficazes para impedir o uso da tortura, não po-
dendo invocar situações excepcionais. Uma dessas me-
dias, explicitadas pela Convenção, consiste na criminali-
zação da tortura. Os crimes de tortura podem, de acordo
com a Convenção, ser processados e julgados por um Es-
tado-parte: (i) quando cometidos em qualquer território
sob sua jurisdição ou a bordo de navio ou aeronave regis-
trada no Estado em questão; (ii) quando supostamente
cometidos por ou contra nacionais desse Estado; (iii)
quando cometidos por pessoa que se encontre em qual-
quer território sob jurisdição desse Estado, caso esse Es-
tado não a extradite para os Estados indicados em (i) ou
em (ii). Desse modo, tanto o Estadeo onde foi cometido o
crime, quanto os Estados da nacionalidade do autor ou
da vítima poderão pedir a extradição do suspeito. Entre-
tanto, a convenção determna que não poderá haver a ex-
pulsão, a extradição ou a devolução de uma pessoa a um
Estado onde haja motivos substanciais para acreditar
que ela estará em perigo de ser submetida á tortura.

Outrossim, no ano de 1989, houve a assinatura da Con-


venção dos Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989,
este que, de acordo com os autores aludidos acima, “é o mais
importante instrumento internacional cujo objeto é a proteção
dos Dieitos Humanos Infantis.”30
Para fins de aplicabilidade da Convenção, são considera-
das crianças todas as pessoas com idade inferior a dezoito
anos, salvo se o sistema legal do País em que a criança esteja
preveja uma idade distinta; bem como, resta proibido o recru-
tamento nas Forças Armadas ou a participação direta em con-
flitos armados a menores de quinze anos31.

29
Op. Cit. 2002, pp. 66 e 67.
30
Ibidem, 2002, p. 76.
31
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/. Acesso no dia 05.11.2011,
as 16h30min

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
286
Denise Tatiane Girardon dos Santos

Tal Convenção procura tutelar quatro questões basilares,


a fim de buscar a efetivação da proteção do Estado às crianças
(inclusive, às indígenas), quais sejam, a não discriminação, e,
com isso, a garantia de ela desenvolver, amplamente, seu po-
tencial; a sua proteção como questão priotorária; o desenvol-
vimento pleno, por intermédio da igualdade entre as crianças e
a garantia delas aos serviços básicos, além de assegurar suas
opiniões. Consoante disposição no site da Unicef32:
[...] a não discriminação, que significa que todas as crian-
ças têm o direito de desenvolver todo o seu potencial –
todas as crianças, em todas as circunstâncias, em qual-
quer momento, em qualquer parte do mundo. o interesse
superior da criança deve ser uma consideração prioritária
em todas as acções e decisões que lhe digam respeito. a
sobrevivência e desenvolvimento sublinha a importância
vital da garantia de acesso a serviços básicos e à igual-
dade de oportunidades para que as crianças possam de-
senvolver-se plenamente. a opinião da criança que signi-
fica que a voz das crianças deve ser ouvida e tida em
conta em todos os assuntos que se relacionem com os
seus direitos.

Em 1993, a ONU proclamou o Ano Internacional das Po-


pulações Indígenas do Mundo, cogitando a criação de um Fó-
rum Permanente encarregado das questões relacionadas aos
povos indígenas. Em 2002, houve a inauguração do primeiro
período de sessões do Fórum Permanente da ONU para Assun-
tos Indígenas. Atualmente, um dos mandatos do Fórum Per-
manente é subsidiar o trabalho do Relator Especial da ONU
sobre direitos humanos e liberdades fundamentais indígenas,
além de monitorar a implementação da Declaração sobre os
direitos dos povos indígenas no mundo33.

32
Disponível em: http://www.unicef.org.br/. Acesso no dia 23.10.2011, as
10h30min.
33
Disponível em http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/
jurisprudencia-1/crimes/trf-3/RC%202002.03.99.016415-4%20-%20MS.pdf.
Acesso no dia 03.10.2011, as 11h30min.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
287
A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

No ano de 2007, a Assembléia Geral da ONU promulgou a


Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indí-
genas no mundo todo, esta que reconhece os direitos territori-
ais, culturais e a diversidade étnica dos povos e enfatiza que
os Estados-Membros respeitem as diferenças e se constituam
em estdos pluriculturais ou pluriétnicos34.
Tal Declaração trouxe à apreciação das nações as princi-
pais reivindicações dos povos indígenas, mormente no tocante
à sua relação com o Estado latu sensu, a fim de torná-la mais
proveitosa e promissora; bem como, ressaltou os princípio da
igualdade e autodeterminaçãoe indo de encontro à discrimina-
ção, vinculando, com isso, demais normatizações nacionais e
estragneiras. Nesse sentido, Yamada (2010) destaca que:
O texto, extremamente avançado, reflete o conjunto das
reivindicações atuais dos povos indígenas em todo o
mundo acerca da melhoria de suas relações com os Esta-
dos nacionais e serve para estabelecer parâmetros míni-
mos para outros instrumentos internacionais e leis nacio-
nais. Na declaração constam princípios como a igualdade
de direitos e a proibição de discriminação, o direito à au-
todeterminação e a necessidade de fazer do consenti-
mento e do acordo de vontades o referencial de todo o re-
lacionamento entre povos indígenas e Estados [...].

Assim, restou determinado que os índios possuem direito


de poder determinar status político em relação à nação onde se
encontrem, a fim de preservarem a forma como desenvolvem
sua sociedade, em respeito a sua cultura; que o Estado deve
questioná-los sobre normas, em geral, que inclua eles, ou os
recursos por eles usufruidos; que o Estado tem obrigação de
ressarci-los no caso de subtração de qualquer propriedade,
material ou imaterial. Com isso, o direito em manter sua cultu-
ra, sendo ela reconhecida nos procedimentos adotados pelo
Estado, além de garantir aos indígenas a comunicação entre
eles, com suas línguas e meios próprios, bem como, de acessar

34
OBRA - BRASIL, 2010, p.14.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
288
Denise Tatiane Girardon dos Santos

tais meios não indígenas, que também devem conter material


democrático, tratando de questões relacionadas ao índio.
Também, a Convenção da Diversidade Biológica reconhe-
ce, em seu preâmbulo, a estreita e tradicional dependência de
recursos biológicos de muitas comunidades locais e popula-
ções indígenas com estilos de vidas tradicionais, e, no artigo
8º, alíena “j”, estabelece a necessidade de perservação da di-
versidade biológica dos territórios ocupados pelos indígenas35.
Reconhecendo a estreita e tradicional dependência de
recursos biológicos de muitas comunidades locais e po-
pulações indígenas com estilos de vida tradicionais, e
que é desejável repartir eqùitativamente os benefícios
derivados da utilização do conhecimento [...] Em confor-
midade com sua legislação nacional, respeitar, preservar
e manter o conhecimento, inovações e práticas das co-
munidades locais e populações indígenas com estilo de
vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização
sustentável da diversidade biológica e incentivar sua
mais ampla aplicação com a aprovação e a participação
dos detentores desse conhecimento, inovações e práti-
cas; e encorajar a repartição eqùitativa dos benefícios
oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e
práticas [...]

No tocante à observância dos Tratados e Convenções re-


tro referidos, em relação aos indígenas, estas normas já estão
expressas na Constituição Federal Brasileira, como por exem-
plo, a previsão para a demarcação e proteção das terras, a pro-
teção das identidades culturais, as políticas de assistência di-
ferenciada, a preservação do meio ambiente, entre outros,
sendo que as normas ratificadas coexisem, em harmonia, com
as leis internas36.

35
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/. Acesso no dia 05.11.2011,
as 16h30min.
36
OBRA - BRASIL, 2010, p.19. Mestranda em direitos humanos. UNIJUI-
Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; es-
mel29@yahoo.com.br
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
289
A questão indígena no brasil e a relevância das previsões, insertas...

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consoante acima discorrido, verificou-se o quão impor-
tante são as normas legais de abrangência internacional, tanto
voltadas à proteção dos direitos do cidadão, quanto as que tra-
tam, especificamente, do Direito Indigenista, posto que, ao
mesmo tempo em que tutelam, efetivamente, também, os direi-
tos concernentes aos índios, ainda influenciaram o Direito Bra-
sileiro dedicado às questões aborígenes, dispostos na Carta
Magna Brasileira.
Tais disposições, ao preverem, principalmente, que a cul-
tura indígena deve ser preservada, com a oportunidade de
crescimento e evolução, asseguram, legalmente, a defesa des-
ses direitos, mormente, quando constatadas violações, inclusi-
ve, com a possibilidade de as comunidades indígenas pleitea-
rem seus direitos. Contudo, para a completa efetivação dessa
previsões, imprescindível que a sociedade não indígena reco-
nheça os índios como cidadãos brasileiros dotados de cultura
diversa, e que sejam respeitados pelas suas particularidades,
mesmo que, naturalmente, sua cultura evolua e transcenda,
misturando-se à comunhão nacional, gradativa e naturalmente.
A ratificação, pelo Brasil, desses documentos internacionais
possibilitam aos indígenas, face a não observância das normas
destacadas, postularem em juízo a tutela de seus direitos, a
fim de preservá-los.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Guilherme de Assis de; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (co-
ordenadores). Direito Internacional dos Direitos Humanos: Instru-
mentos Básicos. Ed. Atlas. São Paulo – SP, 2002.
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à
Constituição do Brasil: Promulgada em 05 de Outrubro de 1988.
Vol 4, Ed. Saraiva. São Paulo – SP, 2002.
Comissão de Cidadania e Direitos Humanos. Coletivos Guarani no
Rio Grande do Sul – Terrotorialidade, Interetnicidade, Sobreposi-
ções e Direitos Específicos. Porto Alegre – RS, 2010.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
290
Denise Tatiane Girardon dos Santos

SATILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos: Proteção


Jurídica à Diversidade Biológia e Cultural. Ed. Peirópolis. Peirópolis
– SP, 2005.
SOUZA, Mércia Cardo de. Artigo “A Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres e suas
Implicações para o Direito Brasileiro”. Revista Eletrônica de Direito
Internacional, Vol. 5, 2005.
TEIXEIRA, Gil Ulhôa (coordenador editorial). Missões: Passado –
Presente – Futuro. Ed. Talento Editorial Ltda. Porto Alegre –
RS,1990.
YAMADA, Érica M. O Que são Direitos Humanos? Texto publicado
em http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/jurispru
dencia-1/crimes/trf-3/RC%202002.03.99.016415-4%20-%20MS.pdf.
Acesso no dia 03.10.2011, as 11h30min.
http://www.funai.gov.br/. Acesso no dia 01.10.2011, as 19h30min.
http://www.onu-brasil.org.br/. Acesso no dia 05.11.2011, as
16h30min.
http://www.unicef.org.br/. Acesso no dia 23.10.2011, as 10h30min.
http://www4.planalto.gov.br/legislacao. Acesso no dia 28.10.2011,
as 09h00min.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A FUNDAMENTAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS

Eliane Spacil de Mello


Mestranda em direitos humanos. UNIJUI- Universidade do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul. (esmel29@yahoo.com.br)
Argemiro Luis Brum
Orientador. Doutor em Economia. UNIJUI- Universidade do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul. (argelbrum@unijui.edu.br)

Resumo
Este trabalho visa tratar da questão da fundamentação dos Direitos Humanos, defi-
nindo a sua origem no tempo e no espaço, sua implantação e seu desenvolvimento,
bem como seus elementos de estruturação. Além disso, trata das liberdades funda-
mentais e da democracia. Nesse sentido, discute possíveis soluções para o Estado
Democrático, como alternativas que possam garantir a dignidade da pessoa humana
através de uma análise dos Direitos Humanos no Brasil e finaliza com um breve co-
mentário sobre o seu processo de internacionalização, demonstrando a obrigação de
cada Estado com a proteção e efetivação dos mesmos.
Palavras-chave: Direitos Humanos; efetivação; fundamentação; liberdades e prote
ção.

Abstract
This paper aims to address the issue of justification of Human Rights, in order to
define its origin in time and space, its development and its implementation, as well
as its structuring elements. Moreover, these fundamental freedoms and democracy.
Accordingly, discusses possible solutions for the state Democratic alternatives that
ensure the dignity of the human person through an analysis of human rights in Brazil
and ends with a brief commentary on its internationalization process, demonstrating
the obligation of each State with the protection and enforcement of same.
Keywords: Enforcement, freedoms, Human Rights; reasons and protection.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho trata da fundamentação dos direitos
humanos, situando-os na história, comentando o seu desenvol-
vimento, que, aos poucos foi delineando os direitos e deveres
que, apesar de serem inerentes à pessoa, não encontrava res-
paldo nas regras de convivência social, até se transformarem
em normas codificadas.
292
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

Além disso, trata os direitos humanos como liberdades


fundamentais, faz uma relação com a democracia, definindo
conceitos e demonstrando como se instaurou o Estado Demo-
crático. Faz um fecho com uma breve análise do processo de
internacionalização dos Direitos Humanos, destacando como
deve ser realizada sua proteção e efetivação, traduzida em tra-
tados e convenções internacionais bem como na legislação
ordinária dos Estados.
Além disso, cabe enfatizar o respeito aos direitos huma-
nos para que se possa alcançar uma soberania universal, a
qual permita que todos os povos possam interagir entre si ten-
do em mente as questões mundiais como um todo. Assim, pre-
tende-se alcançar a total garantia e proteção dos direitos hu-
manos, os quais ainda têm um longo caminho a seguir para
atingir esse objetivo.

ORIGEM DOS DIREITOS HUMANOS


Raramente se percebe, mas a ideia de que os homens
possuem direitos é uma invenção da modernidade, a qual sur-
giu e se institucionalizou no decorrer do século XVIII. Além do
que, se faz necessário destacar que o seu surgimento na histó-
ria representa uma verdadeira ruptura com o passado. (BEDIN,
2002, p.19).
Nesse sentido, afirma Bedin
O caráter de ruptura com o passado presente na emer-
gência da ideia de direitos do homem, deve-se ao fato de
que a figura deôntica originária é o dever e não o direito.
Com efeito, conforme nos dizem Celso Lafer (1991) e Nor-
berto Bobbio (1992), os grandes monumentos legislativos
da Antiguidade, como as Leis Eschunna, o Código de
Hamurabi, os Dez Mandamentos e a Lei das XII Tá-
buas,estabelecem deveres e não direitos.1

1
BEDIN, Gilmar Antonio. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo. 3.
ed. Ver. E ampl. Ijuí: Ed. Unijui, 2002, p.19.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
293
A fundamentação dos direitos humanos

Para marcar a inversão da perspectiva de deveres para


direitos, ou melhor, essa “revolução copernicana”, pode-se ci-
tar como marcos as declarações de direitos, quais sejam, De-
claração da Virgínia em 1776 e Declaração da França em 1789.
Conforme Bedin :
(...) o centro do mundo político a partir dos séculos XVII e
XVIII não é mais o Estado (o todo), como fora durante vá-
rios séculos, mas sim os indivíduos (as partes). [...] essa
“revolução copernicana”entre o Estado e os indivíduos
traz consigo a ideia de desigualdade e a ideia da igual-
dade entre os homens.[...] a inversão entre o Estado e os
indivíduos conduz também ao câmbio entre a crença na
origem natural do Estado e a crença na sua origem con-
tratual. O Estado passa a ser compreendido não mais
como sendo o resultado do desdobramento de comuni-
dades menores, mas sim de um acordo entre os indiví-
duos [...]a inversão entre o Estado e os indivíduos deslo-
ca ainda o fundamento do poder. Até os séculos XVII e
XVIII o fundamento do poder residia em Deus ou na tra-
dição. A partir desse período passa a ser alicerçado no
consenso dos indivíduos, ou seja, o poder somente será
legitimo quando oriundo da nação. [...] todas essas inver-
sões na representação do mundo político conduzem a
uma profunda mudança no mundo jurídico. Deixa-se, a
partir desse momento, de privilegiar os deveres para de-
clarar os direitos. Daí, portanto, o surgimento das Decla-
rações de Direitos. 2

Quanto à concepção contemporânea dos direitos indivi-


duais, percebe-se um desenvolvimento histórico muito marca-
do pela influência do cristianismo e consagrado pelas revolu-
ções liberais dos séculos XVIII, alcançando o mundo globaliza-
do da atualidade pela efetivação dos direitos sociais como
primazia ao bem comum. Moraes apud, Ribeiro (2007, p.14,).
Porém, conforme já afirmava Kant não existe uma origem
exata da conjuntura jurídica em algum momento específico
2
BEDIN, Gilmar Antonio. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo. 3.
ed. Ver. E ampl. Ijuí: Ed. Unijui, 2002, p. 20-21.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
294
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

dentro da história. Documentos históricos como a Virginia Bill


of Rights de 1776, a Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos, das Nações Unidas, de 1948, possuem importância como
pontos de referência histórica a cerca de Direitos Humanos,
que sem esses momentos ficaria solto e sem sentido, porém,
não pode sustentar-se na história e em seus feitos, pois a his-
tória humana, assim como todas as ações humanas, sempre
está permeada de contradições. (BIELEFELDT, 2000, p. 101).
O processo de fundamentação dos direitos humanos, con-
forme Bobbio apud Bertaso (2003, p. 19), “tem início com as
Declarações da Virginia em 1776 e a Francesa de 1789”, onde
os direitos civis estabeleceram a base sobre a qual os demais
direitos foram se afirmando e o indivíduo passou a ser conside-
rado pela norma como sujeito de direitos.
Assim, os direitos civis, emanados das Revoluções Ame-
ricana e Francesa nos anos 1776 e 1789, trouxeram a afirmação
das liberdades, o que marcou o século XVIII. Primeiramente os
direitos civis foram contra o Estado, determinando que este
não poderia intervir no âmbito das liberdades individuais.
No século XIX, surgiram os direitos considerados políticos
ou “de liberdades públicas”, momento em que não se conce-
beu a liberdade apenas negativamente, mas de forma positiva,
possibilitando, inclusive, a transformação do individuo em ci-
dadão. Posteriormente, os direitos políticos permitiram a parti-
cipação dos cidadãos no poder, estabelecendo as condições
para isso.
Além disso, deu-se o surgimento do direito social, eco-
nômico e cultural que, de acordo com Bobbio apud Berta-
so,(2003, p.19), “são direitos de liberdade através ou por meio
do Estado, direitos da coletividade ou dos grupos sociais.” A
partir daí pode-se dizer que o indivíduo se insere concretamen-
te na sociedade, “indo para além das garantias individuais
fundamentais, reconhecendo-o como sujeito coletivo de direi-
tos”.
Os direitos solidários surgiram com a Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos de 1948 e as posteriores. Entre eles
pode-se citar: o direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
295
A fundamentação dos direitos humanos

sadio, à paz universal e à autodeterminação dos povos que


considera os direitos do homem no âmbito internacional e bus-
ca sua proteção efetiva, destinando-se principalmente à prote-
ção dos grupos humanos como as famílias, os povos, as na-
ções.”. Ademais, os direitos humanos de solidariedade tam-
bém buscam a segurança da coletividade.
Porém, atualmente se observa uma lacuna deixada nessa
classificação, que é a respeito de não ter abrangido, e nem po-
deria, pela época em que foi sistematizada, os direitos do ho-
mem no aspecto internacional. (BEDIN, 2002, p.42).
Assim, teríamos além desses, os direitos de solidariedade
ocupando a quarta geração.
Bedin parafraseando Bonavides, afirma a respeito dos di-
reitos do homem no âmbito internacional, que:
Não se destinam especificamente à proteção dos interes-
ses de um individuo, de um grupo ou de um grupo ou de
um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o
gênero humano mesmo num momento expressivo de sua
afirmação como valor supremo em termos de existencia-
lidade concreta. 3

Assim, pode-se dizer que se tratam de direitos “sobre o


Estado”, o que demonstra uma profunda mutação quanto ao
conceito de soberania, a qual, conforme Bedin (2002, p.73):
“deixa der compreendida de forma absoluta, como fora desde o
inicio da Idade Moderna, para ser pensada de forma integrada
e coordenada em um sistema de jurisdição internacional”.
Outra questão que merece destaque é que somente um
século e meio depois da primeira declaração de direitos huma-
nos foi possível alcançar a igualdade dos direitos civis das mu-
lheres e homens: na Inglaterra e na Alemanha, após a Primeira
Guerra Mundial; na França, Bélgica e Itália, somente após a
Segunda guerra. (BIELEFELDT, 2000, p.106).
Na sequência desses direitos, Bertaso comenta:

3
BEDIN, Gilmar Antonio. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo. 3.
ed. Ver. E ampl. Ijuí: Ed. Unijui, 2002, p.73.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
296
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

Obedecendo a uma ordem histórica, surgiram os direitos


de manipulação genética que são relacionados à biotec-
nologia e à bioengenharia. Esses direitos tratam da vida
e da morte, da questão da cópia de seres humanos e re-
querem uma discussão ética prévia para se efetivarem.
Já os direitos que tratam da realidade virtual, aparece-
ram a partir do desenvolvimento da cibernética e abrem
uma problemática a respeito da desconsideração das
fronteiras tradicionais dos Estados e geram conflitos en-
tre países de realidades diferentes, como por exemplo
ocorre com a comunicação e as relações via satélite e in-
ternet. 4

Essa quarta geração se refere aos direitos à democracia


direta, à informação e ao direito ao pluralismo.
Em vista disso, pode-se afirmar que historicamente, os di-
reitos civis surgiram no século XVIII, os direitos políticos no
século XIX e os direitos sociais no século XX e, conforme aduz
Bertaso, (2003,p.22,). “Surgiram a favor e contra os avanços do
Estado e do mercado”.
Com a globalização, o mundo vem se transformando fa-
zendo surgir os chamados “novos direitos”, principalmente no
que se refere ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cul-
tural e ao consumidor. Conforme Bertaso, (2003, p.45): “Essas
novas realidades acabam sendo juridicizadas, constituindo um
novo rol de direitos, que se colocam no contexto de avanço dos
direitos sociais e até mesmo dos ecológicos, tratando-se assim,
de interesses transindividuais”.
Nesse sentido, Morais apud, Bertaso enfatiza que:
Da confluência de fatores próprios à sociedade contem-
porânea emergem interesses que, além de escaparem à
tradição individualística, se põe como indispensáveis à
vida das pessoas. São interesses que atinam a toda a co-
letividade, são interesses ditos transindividuais, pois não

4
BERTASO, Candice Nunes. A Cidadania no Âmbito dos Novos Direitos
Sociais. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade de Cruz alta -
Cruz Alta – RS, 2003, p.21.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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25 e 26 de abril de 2013
297
A fundamentação dos direitos humanos

estão acima ou além dos indivíduos, mas perpassam a


coletividade de indivíduos e estes isoladamente. São in-
teresses que se referem a categorias inteiras de indiví-
duos e exigem uma intervenção ativa, não somente uma
negação, um impedimento de violação – exigem uma ati-
vidade. 5

Assim, percebe-se o predomínio do coletivo e do difuso,


de forma a inserir o indivíduo em uma dimensão global.

O DESENVOLVIMENTO E A FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS
Analisando os direitos humanos quanto ao seu desenvol-
vimento, constata-se que se tratam de direitos históricos em
duplo sentido, ou seja, de um lado estão condicionados e ex-
postos de muitas maneiras à crítica, por outro, seu conteúdo
altera-se através dessa crítica bem como pelas alterações so-
ciais, econômicas e políticas. Como causa de novas reivindica-
ções no campo desses direitos pode-se citar várias, de acordo
com Bielefeldt (2000, p.107 a 109):

a) Novas e diferentes formas de repressão e discrimina-


ção tornam necessária a diferenciação da proteção aos
direitos humanos. Também direitos culturais de mino-
rias estão contemplados naquela Constituição pela
primeira vez Alterações no campo socioeconômico das
condições de vida podem trazer novas formas de ame-
aça à vida condigna que devem ser suplantadas atra-
vés de mecanismos jurídicos e políticos e que podem
ter, como consequência, o deslocamento do foco em
assuntos ligados aos direitos humanos.
b) A crítica universalista aos direitos humanos também
apresenta conseqüências na estrutura dos mesmos.

5
BERTASO, Candice Nunes. A Cidadania no Âmbito dos Novos Direitos
Sociais. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade de Cruz alta
Cruz Alta -Cruz Alta – RS, 2003, p.45-46.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
298
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

O processo de crescente globalização traz alterações no


debate sobre direitos humanos. Levando-se em conta as alte-
rações ocorridas nos direitos humanos, pressupõe-se que nun-
ca haverá um rol completo e imutável de direitos. Os direitos
humanos somente se desenvolvem e se tornam legítimos por
meio do debate publico de opiniões divergentes. Torna-se im-
portante garantir de forma critica a reivindicação normativa
dos direitos humanos a fim de que eles não se percam numa
retórica difusa e passem a ser aplicados arbitrariamente con-
forme a vontade de cada um.
De acordo com Bielefeldt, (2000,p.110), os direitos huma-
nos têm o perfil normativo de reivindicar sua universalidade e
tornar suas metas jurídicas. A isso se liga o lema da revolução
de 1789: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, o que se re-
torna sempre que se quer dar conteúdo aos direitos humanos,
porém, o elemento fraternidade, atualmente deveria ser substi-
tuído por solidariedade (no sentido de partilha, participação ou
co-determinação). Ao se usar os elementos liberdade, igualda-
de e solidariedade para a estruturação dos direitos humanos,
surge a hipótese de que se estão definindo três tipos diferen-
tes de direitos .
Quanto aos direitos à solidariedade, foi dada maior cono-
tação na declaração da conferência sobre direitos humanos da
Federação Luterana Mundial, realizada em Dar-es-Salam em
1977. Esta declaração defendeu a unificação desses diferentes
tipos de direitos, porém, não esclareceu como se daria a inter-
ligação interna dos mesmos. (BIELEFELDT, 2000, p.111).
No decorrer do desenvolvimento histórico atingiu-se gra-
dativo equilíbrio entre os três tipos de direitos, talvez por
conscientização ou pelo reconhecimento de injustiças pratica-
das. Combinando esses direitos com as três gerações de direi-
tos humanos, poder-se-ia dizer que a primeira geração definiu
os direitos civis e políticos da liberdade no século XVIII; no
decorrer do século XIX, a segunda geração englobou os direi-
tos sociais e econômicos da igualdade, e que, no final do sécu-
lo XX esta em pauta o alcance dos direitos à solidariedade pa-
ra a terceira geração. Salienta-se que Bielefeldt apud Brugger,
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
299
A fundamentação dos direitos humanos

(2000, p.112), em seu ensaio “A Figura Humana dos Direitos


Humanos”de 1995, afirma que o ser humano ideal seria aquele
que “tem conduta de vida independente, consciente e respon-
sável”.
De acordo com a filosofia jurídica de Kant, liberdade e
igualdade somente adquirem força crítica e sistemática se não
forem apenas consideradas aditivas ou contrapostas entre si,
mas de forma unida a ponto de se explicarem reciprocamente,
ou seja, deve haver um acordo de equilíbrio entre elas
(BIELEFELDT, 2000, p.114).
Assim, a tríade liberdade, igualdade e solidariedade for-
ma uma estrutura onde os três componentes não estão apenas
juntos aditivamente ou, até, em contraposição, mas esclare-
cem-se reciprocamente.
Como garantia política e jurídica das condições básicas
de um agir livre solidário e com direitos iguais, todos os direi-
tos humanos são, em sentido próprio, liberdades básicas. Por
caber à política a configuração concreta da livre convivência, a
liberdade à manifestação de opinião política “é, em certo sen-
tido, a base de toda a liberdade”, como destaca a Suprema
Corte Constitucional. Os direitos humanos básicos podem ser
enumerados continuamente sem nunca formar uma lista com-
pleta dentro de uma perspectiva histórica evolutiva.
(BIELEFELDT, 2000, p.118).
Considerando-se que os diferentes tipos de direitos pos-
suem suas respectivas áreas de proteção, eles não podem ser
simplesmente sobrepostos. Mesmo assim, possuem uma uni-
dade normativa interna que faz com que sirvam como conjunto
de liberdades básicas para a concretização de uma ordem de
liberdade nos direitos humanos que remete à dignidade igual
de cada ser humano como sujeito moral autônomo.
Nem todos os direitos humanos adquirem força jurídica
positiva. Os direitos civis, políticos, sociais e econômicos arro-
lados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
foram, posteriormente, normatizados nas seguintes conven-
ções: Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e no
pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Cultu-
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
300
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

rais, ambos aprovados em 1966 e em vigência desde 1976. Po-


rém, a listagem de direitos básicos da Lei Fundamental não
reconhece os direitos sociais, sua normatização concreta cabe
ao legislador que, concomitantemente, deve se pronunciar
quanto à forma de implementação de padrões sociais dos direi-
tos constitucionais.
Muitos Estados Constitucionais modernos fazem diferen-
ciação entre direitos fundamentais garantidos constitucional-
mente (primeira geração de direitos – direitos liberais e políti-
cos) e os direitos sociais e econômicos (segunda geração de
direitos) simplesmente normatizados por meio de legislação.
De acordo com Bielefeldt apud Rawls, (2000, p.122) essa dife-
renciação consiste em dois níveis hierárquicos de justiça, onde
o primeiro corresponde a um sistema de máxima liberdade
fundamental para todos, e o segundo regulamenta questões
básicas da justiça social, limitando desigualdades sociais e
econômicas, o que somente se justifica se na impedirem a ho-
nesta igualdade de chances na disputa por cargos e posições e
se oferecerem vantagens aos menos favorecidos dentro da so-
ciedade.
Assim, tudo o que for estabelecido para cada Estado in-
dividualmente, vale, por analogia, no plano internacional. Para
que se garanta a unidade de conteúdo dos diversos instrumen-
tos como elementos de uma ordem pacífica nos direitos huma-
nos, seria razoável positivá-los também internacionalmente,
através de diferentes modos políticos e jurídicos de garantia
de entendê-los concomitantemente dentro da tradição da De-
claração Universal de 1948.

A FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E A DEMOCRACIA


Constata-se que o ponto de partida da ideia moderna de
Estado Democrático teve suas raízes no século XVIII, através
da afirmação de determinados valores fundamentais do ho-
mem e da exigência de organização e funcionamento dos
mesmos bem como a busca de sua proteção.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
301
A fundamentação dos direitos humanos

Quanto à relação existente entre direitos humanos e de-


mocracia, surge a questão de que estando os direitos humanos
ancorados em direitos fundamentais constitucionais pode re-
presentar uma restrição à democracia, bem como a expressão
“todo o poder do estado emana do povo” não é ilusória.
Bielefeldt apud Schmitt (2000, p.128), define a democracia
como “expressão da ilimitada soberania coletiva”. Considera
também que a capacidade de ação do soberano democrático
depende de substancial homogeneidade do sujeito coletivo
político, que ele observa estar ameaçado de duas formas pela
universalidade dos direitos humanos: enquanto o individua-
lismo e o privatismo de reivindicações libertarias liberais re-
presentam interna ameaça à coesão política do todo, o univer-
salismo dos direitos humanos questiona, externamente a uni-
dade de um grupo popular em particular.
Ainda Bielefeldt apud Schmitt, comenta da formulação de
um conceito de democracia, ao mesmo tempo, antiliberal e an-
tiuniversalista, cujo principio não é a liberdade geral, mas
apenas a igualdade dentro de um coletivo particular:
[...] como princípios democráticos, igualdade e liberdade
são frequentemente arrolados lado a lado, quando na
verdade são diferentes e muitas vezes antagônicos em
seus pressupostos, seu conteúdo e em sua eficácia. Cor-
retamente, apenas a igualdade pode vigorar como prin-
cipio democrático, com eficácia interna. 6

Bielefeldt apud Schmitt faz uma analogia entre a sobera-


nia popular democrática e a soberania da nobreza absolutista
ao afirmar que:
[...] o povo é soberano em uma democracia, pode desfazer
todo o sistema de normas constitucionais e decidir em
um processo, como o rei fazia através de processos na

6
BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos; tradução de
Dankuart Bernsmuller. São Leopoldo. UNISINOS, 2000, p. 129.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
302
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

monarquia absoluta. O povo é juiz supremo, como o é o


supremo legislador. 7

Ainda segundo Bielefeldt apud Schmitt, (2000, p.130)


quando a política se subordina às ligações jurídicas, perde a
qualidade de autêntica democracia, numa estrutura de divisão
de poderes onde instituições e procedimentos controlam-se e
equilibram-se mutuamente.
De acordo com Bielefeldt apud Kaltenbrunner (2000,
p.131), democracia significa domínio do povo, ou melhor: do-
mínio da maioria com base em igualdade de direitos civis. Ela
determina que quem deverá dominar é a maioria dos cidadãos
politicamente iguais, seja pessoalmente ou através de repre-
sentante eleito por determinado período.
Portanto, não se pode ter liberdade sem correr seus ris-
cos, pois apesar de todas as garantias institucionais, direitos
humanos e democracia, dependem, em ultima analise, da li-
berdade e do engajamento democrático das pessoas.

A FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL


O Brasil foi o primeiro país a concretizar juridicamente os
direitos do homem através de suas Constituições, desde a do
Império em 1824, posteriormente na de 1891, depois na de
1934, sendo que na de 1937 teve um capitulo destinado aos
Direitos e Garantias individuais, porém com muitas restrições
e desrespeito aos direitos do homem por ser do período ditato-
rial.
Posteriormente, na Constituição de 1946 vieram algumas
inovações, visto que já possuía um conjunto de direitos e ga-
rantias individuais.
Já a Constituição de 1967, a qual foi marcada pelo ato ins-
titucional n. 5, elencava medidas severas, tendo sido conside-
rado o período em que ocorreram diversos casos de tortura a
agentes políticos, os quais eram muitas vezes presos de forma

7
Idem, p. 130.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
303
A fundamentação dos direitos humanos

arbitrária e ilegal, que, conforme aduz Alvarenga apud Ribeiro,


(2007, p.14). “vindo a culminar na Emenda de 1969, que apesar
de sua extensão foi frustrada, pois jamais conseguiu alcançar a
efetividade de seu vasto elenco de direitos e garantias indivi-
duais”.
Em 1988, com a atual Constituição Federal, composta de
245 artigos se estabeleceu o Estado Democrático de Direito, de
forma a confirmar o conteúdo estabelecido pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Nesse sentido, Mazzuoli apud Ribeiro, destaca que:
A Constituição de 1988 foi o marco fundamental para o
processo da institucionalização dos direitos humanos no
Brasil. Erigindo a dignidade da pessoa humana a princi-
pio fundamental, pelo qual a República Federativa do
Brasil deve se reger no cenário internacional instituiu a
Carta de 1988 um novo valor que confere suporte axioló-
gico a todo sistema jurídico brasileiro e que deve ser
sempre levado em conta quando se trata de interpretar
qualquer das normas constantes do ordenamento jurídico
pátrio. [...] a Carta da República de 1988, veio ampliar
significativamente o elenco dos direitos e garantias fun-
damentais estabelecido pelas anteriores Constituições
brasileiras,inovando o preceito com a referência aos Tra-
tados Internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte [...]. 8

Assim, se pode observar que a Constituição Federal de


1988 estabeleceu os princípios destinados a concretizar seus
objetivos dando garantias para a consolidação do Estado De-
mocrático.
Constata-se que o autoritarismo estatal esteve quase
sempre presente na sociedade brasileira, o que se confirma
diante do fato de que o povo, na maioria das vezes, foi manipu-

8
RIBEIRO, Valdir. Igualdade e Dignidade nos Direitos Humanos. Traba-
lho de Conclusão de Curso. Universidade de Cruz alta- Cruz Alta- RS,
2007, p. 15.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
304
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

lado pela elite nacional quanto aos processos políticos decisó-


rios na história do país.
Como no Brasil houve desde o início uma divisão de clas-
ses entre pobres e ricos, estes, como classe dominante, sempre
conseguiram impor seus interesses de forma a manipular o
poder econômico, sendo que para isso, faziam uso inclusive, da
violência institucional, trazendo como consequência que os
direitos de cidadania fossem deixados de lado, em um plano
secundário. Por isso que a igualdade prevista na Constituição,
na prática, não iguala os cidadãos, visto que não tem como
haver igualdade diante de condições financeiras desproporcio-
nais.
Apesar de a democracia perdurar até os dias atuais, ain-
da se vive uma desestruturação econômica no país onde os
ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais po-
bres, o que fere um dos princípios constitucionais que é o da
igualdade democrática.
Todavia, a sociedade deve manter firme seus propósitos
da busca de direitos, para que assim possa construir um Esta-
do Democrático de Direito que consiga concretizar e vigorar os
direitos Fundamentais, podendo ser através de políticas públi-
cas eficientes que possibilitem essa realização. (GELLER
2003,p.28-29)

A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


Pode ser considerado como o antecedente que mais con-
tribuiu para a formação do Direito Internacional dos Direitos
Humanos: a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a
qual foi criada pra estabelecer critérios de proteção ao traba-
lhador, desde a determinação de sua condição no plano inter-
nacional, objetivando garantir melhores condições de dignida-
de e de bem estar social.
Conforme estabelece Pereira, (2005, p.6-7): “o Direito In-
ternacional dos Direitos Humanos, a Liga das Nações Unidas e
a Organização Internacional do Trabalho, contribuíram para o

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
305
A fundamentação dos direitos humanos

processo de internacionalização dos direitos humanos, cada


qual a seu modo”.
Foi justamente com o objetivo de construir uma normati-
vidade internacional que proporcionasse eficácia e proteção
efetiva aos direitos humanos que os Estados se viram obriga-
dos a desenvolver essa ideia tendo se tornado um dos princi-
pais objetivos da comunidade internacional.
Após o surgimento da organização das Nações Unidas em
1945 e, posteriormente, da aprovação da Declaração Universal
dos Direitos Humanos em 1948, O Direito Internacional dos
Direitos Humanos se solidifica definitivamente, ocasionando a
adoção de diversos tratados internacionais destinados a pro-
teger os direitos fundamentais. Anteriormente, a proteção dos
direitos do homem encontrava-se restritamente a algumas le-
gislações internas dos países, tais como comenta Pereira,
(2005, p.9) “a inglesa de 1648, a americana de 1778 e a france-
sa de 1789.” Fora isso, apenas se suscitava as questões huma-
nitárias quando ocorria alguma guerra, porém, com aquiescên-
cia dos Estados houve a normatização internacional da maté-
ria, de forma que, conforme aduz Pereira, (2005, p.10) “locali-
zou-se o ser humano num dos pilares até então reservados aos
Estados, alcançando-o à categoria de sujeito de direito inter-
nacional”.
Nesse viés, manifesta-se Mazzuoli apud Pereira:
Paralelamente o direito internacional feito pelos Estados
e para os Estados começou a tratar da proteção interna-
cional dos direitos humanos contra o próprio Estado. As-
sim, o cidadão, antes vinculado à sua Nação, passa a tor-
nar-se, lenta e gradativamente, verdadeiro “cidadão do
mundo”. 9

Portanto, constata-se que é dever do Estado proteger os


direitos humanos internacionalmente reconhecidos, visto que
9
PEREIRA, Daiana Vargas. O Processo de Internacionalização dos Direi-
tos Humanos e a Incorporação das Normas de Proteção do Ordena-
mento Jurídico Brasileiro. Trabalho de Conclusão de Curso. Universi-
dade de Cruz alta. Cruz Alta- RS, 2005.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
306
Eliane Spacil de Mello & Argemiro Luis Brum

as violações aos direitos das pessoas ocorrem dentro do Esta-


do e não fora dele, de forma que as instâncias internacionais
sirvam como meios auxiliares para a efetivação da proteção
dos mesmos.

CONCLUSÃO
Tendo em vista os estudos feitos, bem como as leituras
realizadas sobre os Direitos Humanos, ficou bastante clara sua
importância para a sociedade. Também pode-se constatar que
os mesmos necessitam de proteção por parte dos Estados, das
Nações e da sociedade como um todo.
Constatou-se também, que, apesar de que a dignidade
humana seja um dos princípios previstos pela nossa Constitui-
ção Federal, assim como a igualdade seja um direito funda-
mental, não vem tendo efetividade prática, devido a vários fa-
tores, dentre eles, as injustiças derivadas do atual contexto
político em que vivemos e, como não poderia deixar de menci-
onar, pelas profundas diferenças econômicas, e demais pro-
blemas sociais. Temos que trabalhar em prol da distribuição
justa de renda, por uma maior democratização do sistema polí-
tico, entre outras políticas públicas para solucionar a questão.
Além disso, pode-se concluir que para haver a verdadeira
concretização da democracia precisamos ter uma mentalidade
social aberta e voltada para os valores de liberdade, igualdade
e fraternidade, além de manobras políticas que tornem o Esta-
do ainda mais democrático. Todavia, de nada adianta uma
Constituição repleta de princípios composta por inúmeros di-
reitos se a sociedade os desconhecer.
Por outro lado, ao analisar o processo de internacionaliza-
ção dos direitos humanos, observou-se que apesar do Brasil ter
ratificado vários tratados, no âmbito da proteção dos direitos
humanos, ainda temos um longo caminho até a completa efeti-
vidade dos mesmos.
Portanto, para resolver o problema da fundamentação dos
direitos humanos de forma que os direitos mínimos do ser hu-
mano sejam garantidos e respeitados, além da conscientização
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
307
A fundamentação dos direitos humanos

da sociedade, deve haver a implantação de políticas públicas


eficientes, conforme já mencionado, que permitam que os Di-
reitos Humanos saiam da mistificação para o mundo real. As-
sim, havendo o respeito para com a dignidade da pessoa hu-
mana, poderá se verificar a grandiosidade dos benefícios que
uma democracia é capaz de trazer.

REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Lucia Barros Freitas. Direitos Humanos, Dignidade e
Erradicação da Pobreza: uma Dimensão Hermenêutica para a Reali-
zação Constitucional. Brasília. Brasília Jurídica, 1998.
BEDIN, Gilmar Antonio. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo.
3. ed. Ver. E ampl. Ijuí: Ed. Unijui, 2002.
BERTASO, Candice Nunes. A Cidadania no Âmbito dos Novos Di-
reitos Sociais. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade de
Cruz Alta -Cruz Alta – RS, 2003.
BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos; tradução de
Dankuart Bernsmuller. São Leopoldo. UNISINOS, 2000.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campos, 1992.
MORAIS, José Luis Bolzan. Do Direito Social aos Interesses Tran-
sindividuais: O Estado e Direito na Ordem Contemporânea. Porto
Alegre. Livraria do Advogado, 1996.
PEREIRA, Daiana Vargas. O Processo de Internacionalização dos
Direitos Humanos e a Incorporação das Normas de Proteção do
Ordenamento Jurídico Brasileiro. Trabalho de Conclusão de Curso.
Universidade de Cruz alta. Cruz Alta- RS, 2005.
RIBEIRO, Valdir. Igualdade e Dignidade nos Direitos Humanos.
Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade de Cruz alta- Cruz
Alta- RS, 2007.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A SEGUNDA G UERRA MUNDIAL
E A MEMÓRIA INTERNACIONAL SOBRE
DIREITOS HUMANOS

Eliete Vanessa Schneider


Bacharel em Direito pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul, e Mestranda em Direitos Humanos pela
mesma instituição. Advogada. (elieteadvogada@yahoo.com.br)
Luís Carlos Schneider
Ms. Em desenvolvimento Unijuí – Docente do Curso de Administração Se-
trem – Sociedade Educacional Três de Maio.
(luis@proempreendedor.com.br)
Priscila Gadea Lorenz
Ms. Em Desenvolvimento Unijuí – Docente do Curso de Pedagogia Setrem
– Sociedade Educacional Três de Maio (priscilalorenz@gmail.com)

Resumo
O presente trabalho resgata a trajetória histórica de proteção dos direitos do ho-
mem na sociedade internacional a partir da Segunda Guerra Mundial, enfatizando a
contribuição de fatos ocorridos durante esse importante marco, que auxiliaram na
configuração da memória coletiva internacional sobre esses direitos. Além disso,
trata de alguns documentos internacionais publicados após e por influência dos fatos
marcantes da Segunda Guerra Mundial, como a Declaração dos Direitos do Homem
e após a sua publicação, da formação de um sistema internacional de proteção, que
foram o resultado do anseio da comunidade internacional pela garantia dos direitos
humanos, evidenciando a importante contribuição que tiveram a história e a memó-
ria coletiva neste processo.
Palavras-chave: História, Internacionalização dos Direitos Humanos, Memória, Se-
gunda Guerra Mundial.

Abstract
This work captures the historical trajectory of protection of human rights in interna-
tional society since the Second World War, emphasizing the contribution of events
during this important milestone, which helped in shaping collective memory about
international human rights. Moreover, this is some international documents pub-
lished after and influence of the striking facts of World War II, as the Declaration of
the Rights of Man and after its publication, the formation of an international sys-
tem of protection, which were the result of the desire of international community
for ensuring human rights, highlighting the important contribution that had history
and collective memory in this process.
Keywords: History, Internationalization of Human Rights, Memory, World War II.
310
Eliete Vanessa Schneider; Luís Carlos Schneider & Priscila Gadea Lorenz

A Segunda Guerra Mundial, sem questionamentos ou


contradições, é o marco histórico mais valoroso no que tange à
história, e pode-se dizer, à memória dos direitos humanos. Um
acontecimento ímpar, ápice da desconsideração da dignidade
da vida humana que culminou com a morte de milhões de pes-
soas. Verdadeiras atrocidades cometidas, fatos que se tornam
incrédulos aos olhos do bom senso, pela frieza e maldade com
que foram premeditados e realizados:
“A doutrina racista sobre a “pureza ariana” serviu de jus-
tificativa para perseguições, cárceres e execuções em massa
de judeus, eslavos e outras populações pelo exército de Hitler,
resultando no extermínio de milhões de pessoas”1. Alguns de-
cretos e Leis publicados na “era Hitler”, como a proibição de
casamentos entre judeus e alemães2, a proibição dos judeus de
embandeirar com as cores de Reich seus estabelecimentos3, e
de, a partir dos 7 anos de idade aparecerem publicamente sem
a estrela judaica4, trazem à baila a discussão e a constatação
de que realmente, quando se caracteriza este período da histó-
ria como “obscuro”, “degradante”, “desumano”, “de atrocida-
des”, não se está utilizando força de expressão, por conta de
que se trata de uma dura realidade pela qual milhares de pes-
soas de outras gerações passaram, sendo que o eco pedagógi-
co de situações experimentadas restará transpassado a muitas
gerações futuras pela história5.
O sadismo nazista atingiu mesmo o seu clímax com as
experiências médicas realizadas com as cobaias humanas. A
relação dos absurdos realizados incluía enxertos de ossos, inje-
tar doses mortais de bacilos de icterícia e tifo, praticar esterili-
zação, retirar pele de prisioneiros para fazer cúpulas de abajur:
1
GUERRA, Sidney, Direitos Humanos na Ordem Jurídica Internacional
e Reflexões na Ordem Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
2
Lei para proteção do sangue e da honra alemãs, 15 de dezembro de
1935, Op cit, p. 39.
3
Lei da Cidadania do Reich, 15 de setembro de 1935, Op Cit, p. 39.
4
Parágrafo 1º do Decreto Policial de 1º e setembro de 1941, sobre a identi-
ficação dos Judeus na Alemanha.
5
História, considerada em seu sentido científico, do Estudo da História.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
311
A Segunda Guerra Mundial e a memória internacional sobre direitos

As experiências eram variadas. Colocavam-se os prisio-


neiros em câmaras de pressão, onde eram submetidos a
testes de grande altitude. Muitos eram vítimas de gás
mostarda e de balas envenenadas, além de serem sub-
metidos a baixas temperaturas para testar a sua resis-
tência. Um dos experimentos, praticado em polonesas
conhecidas como coelhinhas, consistia em provocar gan-
grena com gás. Em outras cobaias, eram feitos enxertos
de ossos. Nos campos de Dachau e Buchenwald, ciganas
tomavam água salgada com o objetivo de avaliar quanto
tempo conseguiam viver sob semelhante dieta. A esteri-
lização foi largamente praticada, tanto em homens como
mulheres.6
A Guerra de Hitler não era travada apenas no campo de
batalha. Era uma luta em que ele atacava os inimigos
onde quer que os encontrasse. Sendo uma ideologia tota-
litarista, o nazismo tinha qualquer um na mira, e seus
oponentes mais óbvios e ameaçadores não estavam se-
não em sua própria casa. Se a Alemanha deveria ser re-
novada, como acreditava Hitler, ele deveria eliminar pri-
meiro as forças internas que culpava pela catastrófica
derrota da nação em 1918.7

Isto significava, acima de tudo, judeus, bolcheviques, so-


cialistas, liberais, democratas. Estes, que foram atores neste
triste cenário, viram suas famílias sendo separadas, mortas...
países inteiros destruídos, pessoas desoladas, desamparadas,
sem perspectivas de sobrevivência. Sentimentos de mágoa,
dor, sofrimento, medo... Até onde chegariam os atos de barbá-
rie? Qual seria o valor da vida humana?
O mundo, perplexo com os acontecimentos, estava ansio-
so por respostas. A Segunda Guerra havia deixado um rastro
incomensurável de destruição, tanto física, quanto psicológica.

6
Experiências Médicas. II Guerra Mundial – 60 anos. Coleção Almanaque
Abril, volume 2, São Paulo, 2005, p. 38-39, IN Direitos Humanos na Or-
dem Jurídica Internacional e reflexos na Ordem Constitucional Brasilei-
ra, Sidney Guerra, Lumen Iuris, Rio de Janeiro, 2008, p. 40.
7
STAFFORD, David. Fim de Jogo, 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.
55.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
312
Eliete Vanessa Schneider; Luís Carlos Schneider & Priscila Gadea Lorenz

Horrores inimagináveis praticados levaram à reflexão e à ne-


cessidade de resgate de valores essenciais ao ser humano que
haviam sido afrontados. Sem dúvida, os engendros bárbaros
cometidos na Segunda Guerra Mundial, foram o estopim para
que mudanças ocorressem. Assim, o movimento de internacio-
nalização dos direitos humanos desenvolveu-se extraordinari-
amente depois da segunda guerra mundial, em resposta às
atrocidades cometidas ao longo do Nazismo8. Com esse pro-
cesso, a pessoa passou a ser o foco da atenção internacional e
a dignidade da pessoa humana, até certo ponto, tornou-se um
princípio universal e absoluto9.
O convívio dos Estados em uma comunidade juridicamen-
te organizada e a intensificação das relações entre os povos
deu vida a um ordenamento jurídico internacional preocupado
com os direitos da pessoa humana10. Verifica-se então que, a
partir da segunda metade do Século XX, a análise da dignida-
de humana ganha âmbito internacional, consolidando a idéia
de limitação da soberania nacional e reconhecendo que os in-
divíduos possuem direitos inerentes à sua existência que de-
vem ser protegidos11.
Nesse sentido, as atrocidades cometidas contra a huma-
nidade fizeram nascer a consciência da necessidade de impe-
dir novas crueldades, resgatando os valores humanitários abo-
lidos com a guerra. Acredita-se que, nessa mudança de para-
digma, teve influência, a memória coletiva que, nas palavras
de Silva12 é “composta pelas lembranças vividas pelo indivíduo

8
GOMES, Luiz Flávio. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direi-
tos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tri-
bunais, 2000, p. 63;
9
Sidnei Guerra. Direitos Humanos na Ordem Jurídica Internacional e
Reflexões na Ordem Constitucional Brasileira. Editora Lumen Juris,
2008, Rio de Janeiro, p. 40.
10
REZEK, Francisco. Direito Público Internacional. São Paulo: Editora
Saraiva, 2010, p. 32;
11
MÉNDEZ, Isel Rivero. Las Naciones Unidas Y Los Derechos Humanos.
50 aniversario de La declaracion Universal de Derechos Humanos;
12
SILVA, kalinda Vanderlei e Silva, Maciel Henrique. Dicionários de con-
ceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 276.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
313
A Segunda Guerra Mundial e a memória internacional sobre direitos

ou que lhe foram repassadas, mas que não lhe pertencem so-
mente, e são entendidas como propriedade de uma comunida-
de, um grupo.”
A memória coletiva faz parte das grandes questões das
sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desen-
volvimento, das classes dominantes e das classes dominadas,
lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e
pela promoção13. Através da memória, é que sobrevivem certos
acontecimentos, repassados de uma geração à outra. E quando
se fala na Segunda Guerra Mundial, embora não sejam aconte-
cimentos agradáveis, muito pelo contrário, onde certamente
milhares de pessoas viveram as situações mais dolorosas, hor-
ríveis de suas vidas, há que se concordar que a memória teve
papel fundamental. Tanto no plano individual, embora se acre-
dite que somente quem viveu naquele cenário pode ter a exata
compreensão de sua gravidade, como no plano da memória
coletiva, uma vez que até hoje, esse triste acontecimento é
lembrado, e, muito provavelmente, por várias centenas de
anos, ainda o será.
Neste ponto, tem destaque a contribuição da história, por
meio de seus vários mecanismos, como documentos, monu-
mentos entre outros, que possibilitam a construção e recons-
trução do conhecimento, do estudo acerca do tema, utilizado
por todos nós para a vida comum, e no qual operamos com a
“memória” – construção individual realizada a partir de refe-
rências culturais coletivas14.
Dessa maneira, entende-se que tanto a história, quanto à
memória, ambas com suas particularidades e nuances, têm
papel fundamental na construção do conhecimento e reflexão
acerca do acontecimento que foi a Segunda Guerra Mundial.

13
GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, São Paulo: Editora da
Unicamp, 1996, p. 474.
14
NORA, P. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto
História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História
do Departamento de História, São Paulo: n.10. 1993,p. 53;

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
314
Eliete Vanessa Schneider; Luís Carlos Schneider & Priscila Gadea Lorenz

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido


no eterno o presente; a história, uma representação do
passado. A história, porque operação intelectual e laici-
zante demanda análise e discurso crítico. A memória ins-
tala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna
sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que
ela une, o que quer dizer como Halbwachs o fez, que há
tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por
natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e indi-
vidualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a
ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A
memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A me-
mória é um absoluto e a história só conhece o relativo.15

Ademais, se o tema direitos humanos atualmente é um


dos aspectos jurídicos que mais se desenvolve, trazendo in-
fluência sobre os mais variados aspectos da vida humana, so-
mente o é em função da necessidade que foi perceptível após
esta triste era, a era “Hitler”. A necessidade de preservação da
dignidade humana, e de instituição de valores éticos mínimos,
direcionados a todas as pessoas, pelo cunho humano de sua
existência. Neste sentido, lembra Flávia Piovesan16 que se a
segunda guerra significou a ruptura com os direitos humanos,
o pós – guerra deveria significar a reconstrução desses direi-
tos. Sob esse prisma, a violação dos direitos humanos não po-
de ser concebida como questão doméstica do estado, e sim
como problema de relevância internacional como legítima pre-
ocupação da comunidade internacional.
Dessa maneira, esta “consciência” coletiva por parte dos
Estados, fez surgir ao longo dos anos, alguns documentos que
hoje são a base, o norte no que diz respeito à proteção dos Di-

15
MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de História: entre história e memória.
RJ: Editora da UFRJ, 2010, p. 11.
16
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Inter-
nacional. São Paulo: Max Limonad, 2004, p. 118;
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
315
A Segunda Guerra Mundial e a memória internacional sobre direitos

reitos Humanos. Afirma Comparato17 que o horror engendrado


pelo surgimento de Estados totalitários, verdadeiras máquinas
de destruição de povos inteiros, suscitou em toda parte a
consciência de que, sem o respeito aos Direitos Humanos, a
convivência pacífica das nações tornava-se impossível.
Iniciou-se então, uma maratona de criação de documen-
tos históricos internacionais, que fizeram com que várias mu-
danças ocorressem na legislação nacional dos países que os
ratificaram. Através do acordo de Londres, em 1945, por exem-
plo, instituiu-se o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg,
responsável pelo julgamento dos crimes de guerra contra a
humanidade cometidos pelas autoridades políticas e alemãs
da Alemanha Nazista. Com este Tribunal, a comunidade inter-
nacional passou a conhecer crimes de direito, que até então
eram conhecidos apenas de fato: o crime que lesa a humani-
dade, os crimes de guerra e os crimes de agressão18.
Além deste Tribunal, houve a publicação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que é o marco mais
lembrado até hoje no que tange à proteção internacional des-
ses direitos. A importância da Declaração Universal dos Direi-
tos do Homem ultrapassa em muito os direitos que protege,
uma vez que possui uma dimensão simbólica extraordinária: é
uma espécie de pacto jurídico-político global. Esta é a sua di-
mensão mais importante e mais duradora.
Adotada e proclamada na terceira sessão da Assembléia
Geral das Nações Unidas, realizada em Paris, em 10 de de-
zembro de 1948, a Declaração Universal estabelece, em seus
trinta artigos, os direitos essenciais de todos os seres humanos.
Por isso, a Declaração se alicerça na busca da justiça e da paz no
mundo, e cristaliza 150 anos de luta pelos Direitos Humanos19.

17
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Hu-
manos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 215;
18
GUERRA, Sidney. Direitos Humanos na Ordem Jurídica Internacional
e Reflexos na Ordem Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2008, p. 86;
19
HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, p. 45;

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
316
Eliete Vanessa Schneider; Luís Carlos Schneider & Priscila Gadea Lorenz

Após a Declaração, diversos outros documentos, tratados


internacionais foram firmados, com o objetivo de promover a
proteção internacional dos Direitos Humanos. Portanto, o cená-
rio internacional de proteção desses direitos, começou a ser
construído após os horrores mencionados, ocorridos durante a
Segunda Guerra Mundial. Formou-se então um sistema norma-
tivo global de proteção dos direitos humanos, no âmbito das
nações Unidas. Este sistema normativo, segundo Gomes20 é
integrado por normas de alcance geral (como os Pactos Inter-
nacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos
Sociais e Culturais, de 1966), e por instrumentos de alcance
específico, como as grandes convenções internacionais que
protegem contra a tortura, a discriminação racial, a discrimina-
ção contra as mulheres, a violação dos direitos das crianças.
Estas convenções formam um sistema de proteção específica.
Ao lado do sistema normativo global, surgiu também um
conjunto de sistema regional de proteção aos direitos humanos
(europeu, americano, africano). Cada um dos sistemas regio-
nais possui peculiaridades próprias e mecanismos jurídicos
específicos. O Sistema Europeu conta com a Convenção Euro-
péia de Direitos Humanos, de 1950, que estabelece a Corte Eu-
ropéia de Direitos Humanos. Já o Sistema Africano apresenta
como principal instrumento a Carta Africana de Direitos Hu-
manos, de 1981. Finalmente, o Sistema Americano tem como
principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Hu-
manos de 1969.
Além destes, diversos outros documentos internacionais
foram criados com o objetivo de garantir a proteção dos direi-
tos humanos, no âmbito externo às jurisdições nacionais. Mas
o que se busca com o presente trabalho, não é uma caracteri-
zação de cada documento publicado21, mas sim, evidenciar a
importância que tiveram a história e a memória neste proces-

20
GOMES, Luiz Flávio. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direi-
tos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tri-
bunais, 2000, p. 45;
21
Obviamente não está se buscando com esta afirmação, menosprezar ou
desconsiderar a importância de cada um destes documentos.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
317
A Segunda Guerra Mundial e a memória internacional sobre direitos

so, bem como a importância da existência de um sistema in-


ternacional de proteção aos Direitos humanos.
Sem dúvida, o avanço no reconhecimento e na proteção
dos direitos humanos tem sido significativo nas últimas déca-
das, apesar de ainda muitas violações ocorrerem nas diversas
regiões do mundo. Por isso, a existência de um sistema inter-
nacional de proteção dos direitos humanos é fundamental: seja
na proteção do ser humano em sua universalidade ou em sua
especificidade. E esse sistema, como foi possível demonstrar
com as reflexões presentes, foi construído com a influência das
lembranças trazidas pela Segunda Guerra Mundial. A memória
coletiva fez nascer a consciência de que mudanças deveriam
ocorrer, para que os mesmos erros praticados durante este
triste acontecimento mundial, não fossem repetidos.
Assim, a proteção dos direitos humanos foi se consoli-
dando no interior dos Estados e na sociedade internacional
(mesmo com as violações que muitas vezes verificamos no dia
a dia da vida). O importante, contudo, é não perder a esperan-
ça e continuar a lutar pela proteção dos direitos humanos. Isto
permitirá a construção de uma cultura da paz e da busca de
solução pacífica dos conflitos. Neste sentido, o respeito e a
proteção dos direitos humanos representam uma conquista
civilizatória e estabelecem um patamar diferenciado para a
evolução humana. E as conquistas no que diz respeito aos di-
reitos humanos, uma vez documentados, por meio dos diversos
documentos internacionais, deverá ser gravado na história pe-
las próximas centenas de anos.
Nesse sentido, é que o presente trabalho se propôs a ana-
lisar a contribuição dada pela memória coletiva no processo de
internacionalização dos direitos humanos. Conclui-se que, tan-
to a memória, quanto a história, como já citado, levando em
consideração as particularidades de cada uma, tiveram papel
fundamental nesta construção. E certamente, continuam re-
produzindo conhecimento e lembranças deste período de pe-
numbra sob o qual viveu a humanidade. Que a Segunda Guerra
Mundial, transpassada às novas gerações pela história e pela
memória, sirva de eco pedagógico, para que situações de des-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
318
Eliete Vanessa Schneider; Luís Carlos Schneider & Priscila Gadea Lorenz

respeito à dignidade e à vida humana, não tornem a ocorrer. E


que sejam respeitados e garantidos, os Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS
GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, São Paulo: Editora
da Unicamp, 1996;
GOMES, Luiz Flávio. O Sistema Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2000;
GUERRA, Sidney. Direitos Humanos na Ordem Jurídica Internaci-
onal e Reflexos na Ordem Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2008;
HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2009.
NORA, P. Entre memória e história. A problemática dos lugares.
Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História do Departamento de História, São Paulo: n.10. 1993.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2004;
REZEK, Francisco. Direito Público Internacional. São Paulo: Editora
Saraiva, 2010, p. 32;
SILVA, Kalinda Vanerlei & Silva, Maciel Henrique. Dicionário de
conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005;
STAFFORD, David. Fim de Jogo, 1945. Rio de Janeiro: Objetiva,
2012, p. 55;

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
DIREITOS HUMANOS E ESCOLA :
POR UMA POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL
PROMOTORA DA INCLUSÃO SOCIAL 1

Elisa Mainardi
Doutor em Educação; professor do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo.
(eldon@upf.br)
Eldon Henrique Mühl
Doutoranda em Educação nas Ciências pela Unijuí, professora da Faculda-
de de Educação da Universidade de Passo Fundo. (emainardi@upf.br)

Resumo
A educação têm sido desafiada a promover a cidadania, o que requer, não somente
o domínio de conceitos ou de técnicas pedagógicas, mas um repertório de saberes
que nos permita perceber e compreender a realidade de violação de direitos, a ne-
cessidade de sensibilizar-se e de agir-se na defesa e na promoção dos direitos dos
indivíduos e o desenvolvimento de práticas sociais realizadoras de tais direitos. Nes-
se sentido o texto aponta para a importância e a necessidade da constituição de uma
cultura em e para os direitos humanos na escola. Para tanto, vale-se do estudo dos
registros sistematizados em discussões pedagógicas construídas por professores
envolvidos na elaboração do projeto político pedagógico escolar, no qual foi possível
observar as concepções e práticas em educação em direitos humanos e a importân-
cia das políticas públicas educacionais na orientação e animação deste processo.
Palavras Chave: direitos humanos; escola; política pública educacional.

Abstract
the school has been challenged to promote citizenship, which requires not only the
domain of concepts or pedagogical techniques, but a repertoire of knowledge that
allows us to perceive and understand the reality of violation of rights, the need to
raise awareness and to act in the defence and promotion of the rights of individuals
and the development of enterprising social practices of such rights. In this sense the
text points to the importance and the need for the establishment of a culture in and
for human rights in school. For this, it is used of organized records in pedagogical
discussions built by teachers involved in preparing the school pedagogical political
project, in which it was possible to observe the conceptions and practices in human
rights education and the importance of public educational policies in the guidance
and animation of this process.
Keywords: human rights; school; public educational policy.

1
Artigo de sistematização de pesquisa.
320
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl

INTRODUÇÃO
A escola de hoje está sendo desafiada a promover a inte-
gração social pelo desenvolvimento de uma cultura centrada
no respeito e na vivência dos direitos humanos. Tal desafio
encontra-se expresso em diversos documentos e, de forma ex-
plícita, na Resolução Nº 1 de 30 de maio de 2012, que estabele-
ce as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Huma-
nos. O documento propõe como principal diretriz o desenvol-
vimento de “concepções e práticas educativas fundadas nos
Direitos Humanos e em seus processos de promoção, proteção,
defesa e aplicações na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de
direitos e de responsabilidades individuais e coletivas.” 2 Cabe
destacar que embora as diretrizes tenham sido publicadas re-
centemente, o tema vem preocupando educadores, militantes
e autoridades mundiais há muitos anos. No Brasil, no entanto,
percebe-se que ainda é um tema pouco debatido e os professo-
res, em geral, continuam mostrando-se indiferentes ou resis-
tentes a tal desafio, não conseguindo perceber a importância
da educação em direitos humanos para a sociedade atual. Nes-
te sentido, nos indagamos: o que tem provocado a resistência
da escola e de seus professores na implementação das políti-
cas e diretrizes do Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos? Quais as limitações e as possibilidades que per-
meiam o processo de construção da prática pedagógica em
direitos humanos nas escolas? Que iniciativas devem ser to-
madas pelas escolas para desenvolver o comprometimento dos
professores com a educação em e para os direitos humanos? É
possível pensar a introdução de tal discussão no contexto es-
colar sem que os cursos de formação de professores insiram
esta discussão em seus currículos?
Motivados por tais inquietações, valemo-nos da investi-
gação dos registros sistematizados das discussões pedagógi-
cas construídas pelos professores envolvidos na elaboração do
projeto político pedagógico, bem como, nas concepções e prá-
ticas em educação em direitos humanos, destacando o papel
2
BRASIL, CNE, 2012, Art. 2º
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
321
Direitos humanos e escola

da escola na implementação de um projeto voltado aos diretos


humanos3.
Cabe destacar que a investigação constitui-se num des-
velamento dos desafios da escola na condução e promoção do
processo dialógico acerca dos direitos humanos em um contex-
to social marcado pelo preconceito, pela exclusão, desigualda-
de social e muitas resistências em relação à educação em di-
reitos humanos. O objetivo é trazer a discussão alguns fatores
que se apresentam como limitadores da ação educativa volta-
da à construção de uma cultura em direitos humanos e apontar
para possíveis alternativas de enfrentamento destes desafios.
Afinal, a educação em direitos humanos implica na transfor-
mação de uma cultura que tradicionalmente vem marcada pelo
preconceito e pelo desrespeito aos direitos humanos.

CONTEXTUALIZANDO OS DIREITOS HUMANOS


Destacamos, inicialmente, que nossa compreensão de di-
reitos humanos aproxima-se à concepção que o Plano Nacional
de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) de 2008 apresenta:
[...] direitos humanos incorpora os conceitos de cidadania
democrática, cidadania ativa e cidadania planetária, por
sua vez inspiradas nos valores humanistas e embasadas
nos princípios da liberdade, da igualdade, da equidade e
da diversidade, afirmando sua universalidade, indivisibi-
lidade e interdependência.4

A história dos direitos humanos vem marcada por inúme-


ras conquistas, mas que só foram possíveis graças às lutas
sustentadas por homens e mulheres que tiveram a coragem de
3
A pesquisa centrou-se na observação dos registros sistematizadores das
discussões pedagógicas realizadas com um grupo de professores da re-
de municipal de ensino, de um município de abrangência da Universi-
dade de Passo Fundo, no período de 2008-2009. As discussões que se
estabeleceram foram fruto do processo de construção de um Projeto Po-
lítico Pedagógico para as escolas, tendo por princípio fundamental a
constituição de uma escola para a cidadania.
4
PNEDH, 2008:23.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
322
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl

defender os seus direitos e os direitos dos outros. Desde a an-


tiguidade, passando pela idade média e pela modernidade,
encontramos iniciativas de lutas em prol dos direitos humanos.
A luta contra a discriminação dos estrangeiros, a luta contra o
trabalho servil, a luta contra os governos despóticos, a luta
contra a discriminação religiosa, a luta pela democracia e pelo
direito a liberdade, são algumas manifestações que deram ori-
gem ao que hoje constituem os direitos humanos.
Nos tempos contemporâneos, identificamos outras inicia-
tivas que vão dar sustentação para reconhecimento internaci-
onal dos direitos humanos: a luta contra os domínios do impe-
rialismo, a luta contra a barbárie nazista e de outros regimes
autoritários, a luta pelos direitos das mulheres, a luta contra a
discriminação racial, a luta pela regulamentação das relações
de trabalho, a luta contra a exploração indiscriminada do capi-
talismo, a luta pelos direitos das crianças e dos idosos, a luta
contra a escravidão, e muitas outras.
Nestes últimos anos, vivemos assombrados pelo neolibe-
ralismo, pela globalização mundial, que nos inseriu num con-
texto de conquistas tecnológicas, como a cibernética, a robóti-
ca, a clonagem de seres vivos, as estações espaciais, o trans-
porte supersônico, o transplante de órgãos humanos, a fibra
ótica que conecta ao mundo todo, a genética que promete mu-
dar a vida no planeta e criar um novo parque humano. Ao
mesmo tempo, continuamos convivendo com a fome, a miséria,
a poluição descontrolada, o desequilíbrio ambiental, as doen-
ças cujas curas são de fácil solução, a escassez da água potá-
vel, o desenvolvimento de novas armas químicas, biológicas e
nucleares, com muitas pessoas jogadas nas ruas, sem casa e
sem destino.
Vivemos num tempo e num espaço marcado por grandes,
rápidas e avançadas transformações no campo tecnológico
que, por mais paradoxal que pareça, não consegue reverter a
situação da grande desigualdade social e violação de direitos
em que estamos imersos. É impossível contabilizar em núme-
ros a quantidade de pessoas que continuam morrendo em ra-
zão da pobreza e da violência causada pelas mais diferentes

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
323
Direitos humanos e escola

formas de intolerância: ideológica, étnica, racial, sexual e reli-


giosa. Ainda existem muitos homens, mulheres e crianças que
continuam não podem exercer seu direito fundamental do di-
reito a vida. Os genocídios de diferentes matizes continuam
sendo fenômenos normais em nossa sociedade moderna. No
Brasil essa situação não é diferente. Mesmo já distantes 40
anos dos denominados “anos de chumbo” da ditadura militar e
a 22 anos da Constituição Federal de 1988 que restabeleceu os
direitos civis e sociais do povo brasileiro, continuamos presen-
ciando diariamente situações de violações graves dos mais
elementares direitos dos cidadãos. Se de um lado, comemora-
mos a conquista da liberdade de expressão, a possibilidade de
livre organização dos grupos e movimentos sociais, o direito de
expressão sem qualquer tipo de censura, a retomada da esco-
lha democrática de nossos dirigentes pela eleição direta, a al-
ternância do poder, do outro lado, convivemos, ainda, com os
extermínios de líderes sindicais e de organizações sociais legí-
timas, com a exploração do trabalho escravo e do trabalho in-
fantil, com a exploração da prostituição, com muitos casos de
violência contra a mulher e a criança, com situações de abuso
de poder nas prisões, com tortura, com homofobias, com o cri-
me organizado que se propaga e se mantêm de forma endêmi-
ca nas cidades e no campo. Embora vivendo num estado de
direito democrático, no qual a idéia de participação é impor-
tante, a democracia ainda permanece, em grande parte, no
plano formal, visto que, por si só, não assegura que os direitos
sejam, de fato, uma realidade e a participação um direito de
todos. Ao contrário do que muitos esperam e desejam, as vio-
lações dos direitos humanos continuam presentes no nosso
cotidiano.
A violência contra o homem do campo, violência contra
indígenas, crianças, adolescentes e mulheres (incluindo vio-
lência doméstica e prostituição forçada), situações de trabalho
forçado e de escravatura, condições degradantes e perigosas
das prisões (inclusive os massacres nelas cometidos por forças
policiais), a demora ou a ausência de justiça no atendimento
das populações mais carentes, revelam algumas situações de
violação dos direitos humanos no Brasil.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
324
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl

Dados apresentados no relatório de 2007 do Human


Rights Watch indicam que o Brasil continua sendo um país em
que ocorrem muitas situações de violação dos direitos huma-
nos, como é caso de assassinatos que chegam a cerca de 500
casos por ano5. Mesmo diante deste quadro, o tema dos direi-
tos humanos raramente faz parte da pauta das escolas ou cur-
sos de formação docente. Os debates e analises pontuais que
eventualmente acontecem são, em geral, preconceituosos e,
pior, em muitas análises e ponderações os próprios direitos
humanos são apontados como causas da violência. Além disso,
os fatos históricos da violação dos direitos humanos, quando
tratados em disciplinas, são abordados, de maneira geral, co-
mo “fatos históricos”, sem que se reflita sobre seus atores e as
circunstâncias de sua realização.
A história da humanidade revela que foram variadas às
formas do homem compreender e produzir sua existência e,
consequentemente, variadas foram as relações sociais que se
estabeleceram. As relações sociais que se estabelecem de-
pendem da compreensão do passado e da interpretação dos
acontecimentos que marcaram a história de cada indivíduo e
de cada sociedade. Disso surge a necessidade da reconstrução
da memória dos fatos e dos processos de cada povo, de cada
cultura, de cada grupo e de cada indivíduo. É preciso recons-
truir nossa memória para não esquecermos as razões que têm
causado a violência e o desrespeito à vida dos seres humanos.
Este é um dos principais papéis da educação para a cidadania
e para os direitos humanos.
Queremos dizer com isso que os acontecimentos passa-
dos nos servem de experiências para o presente e base para a
construção do futuro. Acreditamos que a reconstrução da
consciência histórica da violação dos direitos humanos possi-
bilita evitar malogros futuros e reinventar nossas ações e in-
tenções, de modo consciente, tendo como cenário o contexto
real e concreto do hoje.
Conforme afirma Bittar “a consciência histórica é aquela
que aponta que o passado retorna, e que, sem consciência do

5
Dimenstein, 1996:51.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
325
Direitos humanos e escola

passado, se torna impossível agir no presente com vistas à


mudança no futuro.”6 Esta concepção histórico-crítica do co-
nhecimento nos leva considerar que para uma educação em
direitos humanos possa ocorrer, não basta a escola acenar pa-
ra dados, datas e fatos que marcaram a trajetória da conquista
dos direitos humanos. Para tal, é preciso criar uma cultura dos
direitos humanos pelo desenvolvimento da nossa consciência
histórica, em que os fatos e os acontecimentos mais importantes
de nossas conquistas e tragédias são registradas como referên-
cias para o desenvolvimento de uma educação humanizadora.

EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: A CARÊNCIA DE


POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS
Ao abordar esta temática nos fundamentamos no Plano
Nacional de Educação e Direitos Humanos que conceitua edu-
cação em direitos humanos “como processo sistemático e mul-
tidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos
[...].”7 Segundo Candau (2003), a discussão acerca de educação
e direitos humanos é recente no Brasil. Ela surge no período
pós-ditadura militar, em meados dos anos de 1980, no proces-
so de redemocratização do país, impulsionado pelo desejo e
necessidade da mobilização e afirmação da social civil que
procura neste momento assegurar a construção de um Estado
e um sujeito de direitos. O final da década de 80 e o inicio dos
anos de 90 são marcados por duas conquistas fundamentais: a
Constituição Brasileira de 1988, a “Constituição Cidadã” – co-
mo a definia Ulisses Guimarães- e o Estatuto da Criança e
Adolescente (ECA) de 1990.
Mais especificamente, podemos pontuar como marco de
referência o Curso Interdisciplinar de Direitos Humanos, ocor-
rido na Costa Rica em 1985, promovido pelo Instituto Interame-
ricano de Direitos Humanos, no qual o Brasil teve representati-
vidade de diversas áreas do país. A partir deste evento cria-
ram-se no Brasil três pólos de referência na discussão acerca

6
Bittar, 2003:321.
7
BRASIL, 2008:25.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
326
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl

deste tema, localizados no nordeste, sob a coordenação da


Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Gabinete de Asses-
soria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), outro no
Rio de Janeiro, coordenado pela Pontifícia Universidade Cató-
lica (PUC) e, outra em São Paulo sob a coordenação da Comis-
são de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Os primei-
ros eventos, ocorridos em Recife e Petrópolis, procuraram pon-
tuar indicadores de atuação para o Brasil que pudessem orien-
tar especialmente as secretarias de educação. Em 1994, ocorre
no Rio de Janeiro o Seminário sobre Direitos Humanos onde se
fortifica e consolida o propósito de construir a Rede Brasileira
de Educação em Direitos Humanos, a qual promoveu ativida-
des importantes neste tema.
A década de 1990 é marcada por outros movimentos im-
portantes, valendo destacar o 1º Congresso Brasileiro de Edu-
cação em Direitos Humanos e Cidadania, em 1997, a elabora-
ção de documentos sistematizadores de conceitos e fundamen-
tação histórica e teórica e referencial metodológico sobre o te-
ma educação e direitos humanos, a elaboração do Programa
nacional de direitos humanos que, entre outras propostas,
aponta para a necessidade de criar e fortalecer na escola o
respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, os Parâmetros
curriculares nacionais para o Ensino Fundamental, propõe os
temas transversais na estruturação, organização e desenvol-
vimento curricular. A lei federal 9394/96, de 1996, também as-
sinala para indicadores importantes dos direitos humanos, rea-
firmando o princípio da base nacional comum a ser comple-
mentada por uma parte diversificada e assegura também a
possibilidade da escola organizar-se por ciclos.
Enquanto experiências decorrentes desses movimentos,
podemos citar a Escola cidadã (Secretaria Municipal de Porto
Alegre-RS), a Escola Plural (Belo Horizonte – MG) e, a proposta
de Freire em integrar as questões referentes aos direitos hu-
manos como conteúdos indispensáveis à elaboração de um
novo currículo, antecipando-se a Lei Federal 9394/96 (LDB) e
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Neste campo
tivemos também a contribuição de Ongs, como a Novamérica,

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
327
Direitos humanos e escola

que promove um programa intitulado Direitos Humanos, Edu-


cação e Cidadania, o qual promove formação, e as experiências
em ensino superior, destacando, especificamente, a Universi-
dade Federal da Paraíba, que cria em 1995, o curso latu-sensu
em Direitos Humanos, a criação da Cátedra UNESCO de Edu-
cação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância,
em 1997 pela Universidade de São Paulo (USP) e disciplinas
sobre direitos humanos que foram inseridas em cursos de gra-
duação em diversas universidades. Em 2003, teve início a ela-
boração do Plano Nacional de Educação e Direitos Humanos
(PNEDH), divulgado e debatido no ano seguinte e concluído
em 2006. O PNEDH “está apoiado em documentos internacio-
nais e nacionais, demarcando a inserção do Estado brasileiro na
história da afirmação dos direitos humanos e na Década da
Educação em Direitos Humanos”8. Esta discussão vem sendo
intensificada e fortalecida, tímida e gradativamente, nos mo-
vimentos sociais, nas ongs, nas universidades, nas instituições
de ensino em geral, sendo pauta de discussão em eventos im-
portantes de educação e pesquisa, como o ocorrido em 2008,
na 31ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (Anped), que abordou o tema Consti-
tuição Brasileira, Direitos Humanos e Educação, e em 2009, no
XXIV Simpósio Brasileiro e III Congresso Interamericano de
Políticas e Administração na Educação (ANPAE) que discutiu
o tema Direitos Humanos e Cidadania: desafios para a política e
a gestão democrática de educação. O debate acerca da educa-
ção para os direitos humanos vêm se destacando no cenário
das pesquisas educacionais, como potencial relevante e signi-
ficativo, produzindo referenciais que fundamentam e propõe
ações de educação em direitos humanos. É possível perceber
neste contexto propostas pedagógicas que asseguram o res-
peito e consideração à diferenças e á dignidade humana e é
possível constatar também experiências escolares que materi-
alizam situações de exclusão encortinando a realidade social
com propostas conteudistas.

8
PNDEH,2008:24.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
328
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl

O DESAFIO: TORNAR A ESCOLA LUGAR DE PROMOÇÃO DA CULTURA


EM DIREITOS HUMANOS
A tarefa de educar em direitos humanos tem ocupado
muitos educadores e pesquisadores do campo educacional. O
desafio que se coloca transcende em muito a simples concep-
ção de transmissão de certos conhecimentos e informações
sobre a questão dos direitos humanos, e envolve uma dimen-
são de formação que implica na construção de uma nova forma
de ser, pensar e agir do ser humano em relação a si mesmo e
em relação aos outros. Segundo Emir Sader
[...] educar é um ato de formação da consciência – com
conhecimentos, valores, com capacidade de compreen-
são. Nesse sentido, o processo educacional é muito mais
amplo do que a chamada educação formal, que se dá no
âmbito dos espaços escolares. Educar é assumir a com-
preensão do mundo, de si mesmo, da inter-relação entre
os dois.9

Embora a educação aconteça em todos os espaços e a to-


dos os momentos (Brandão, 1988), é a escola enquanto espaço
formal e oficial que, tendo a responsabilidade de promover a
construção do conhecimento sistematizado pela humanidade,
carrega a grande possibilidade de contribuir na formação de
sujeitos sensíveis e atuantes ao que se refere a questões soci-
ais, a intervenção consciente na realidade. Nesse sentido Frei
Betto faz referência ao método de Paulo Freire, salientando que
“Graças ao seu método de alfabetização, eles aprenderam que
“Ivo viu a uva” e que a uva que Ivo viu e não comprou é cara
porque o país não dispõe de política agrícola adequada e nem
permite que todos tenham acesso à alimentação básica.”10 Este
indicativo reforça a ideia de que, essencialmente no que se
refere aos direitos humanos a educação não pode se limitar aos
manuais escolares. Na perspectiva de educação em direitos
humanos não se trata apenas de compreender conceitos, mas

9
SADER (2003:80)
10
Contra capa de FREIRE, 2006.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
329
Direitos humanos e escola

assumir opções e desenvolver ações em defesa dos direitos


humanos.
Se por um lado, hoje temos uma considerável experiência
na fundamentação da educação em direitos humanos, por ou-
tro, está fortemente presente na escola e em muitos centros
acadêmicos, a ideia de que tal temática não cabe no currículo
escolar. os documentos analisados nos possibilitaram perceber
as limitações acerca das concepções e das representações de
direitos humanos na formação do educador e no desenvolvi-
mento do trabalho docente e, consequentemente, na constitui-
ção do contexto escolar, bem como, a importância da gestão na
condução do processo de planejamento democrático e reflexi-
vo, pensado na perspectiva da promoção dos direitos huma-
nos. Nesse sentido, é oportuno e necessário destacarmos o
papel da escola como lugar fundamental na perspectiva de
constituir uma cultura em e para os direitos humanos. Para
tanto é preciso identificar e analisar as dificuldades, limitações
e resistências que a escola e seu quadro docente e administra-
tivo vêm apresentando. Das observações e análises que reali-
zamos, podemos destacar três aspectos fundamentais que têm
implicado na discussão e implementação do tema direitos hu-
manos na escola, conforme indica as Diretrizes Nacionais para
os Direitos Humanos:

FALTA DE CONHECIMENTO SOBRE O TEMA:


Grande parte dos professores manifestam uma visão pre-
conceituosa sobre o tema dos direitos humanos e revelam, em
suas muitas de suas falas a idéia de que direitos humanos é
“diretos de bandido”, que “a escola têm que promover cidada-
nia, mas direitos humanos fica sob responsabilidade de outros
setores”, ou ainda, “direitos humanos é coisa do direito” ou “é
coisa de partido político e a escola não deve abordar proposta
de nenhum partido.”
O que se pode constatar, de outra parte, é que nenhum
processo de planejamento escolar nega a perspectiva de edu-
car em direitos humanos. No entanto, a representação que a

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
330
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl

maioria do professores possui de direitos humanos é que se


trata de direito dos bandidos e dos marginais. Percebe-se que
mesmo aqueles profissionais que vivem sobre a opressão, que
possui seus direitos negados, manifestam preconceito a esta
temática. Neste sentido, evidenciaram-se também, as dificul-
dades de organização de grupos que se ocupem deste tema e
procurem dar sustentação a práticas fundamentadas no traba-
lho coletivo, na contextualização e no desenvolvimento de co-
nhecimentos e sensibilização sobre os direitos humanos. Fato
decorrente, na maioria das vezes, pela falta de conhecimento
teórico e metodológico, mas apresenta-se também a falta de
propostas pedagógicas nesta perspectiva por opção teórica.

OPÇÃO TEÓRICA:
Outro indicador de relevância pode ser percebido nas fa-
las que expressam a idéia que “sei o que é direitos humanos,
mas acredito que a escola não deva se envolver com isso. O
papel da escola é ensinar conteúdos.” “Se a escola se preocu-
par em trabalhar direitos humanos e até outros temas da mo-
da, quem ensina ler e escrever?”, “ O ensino no Brasil sempre
é mal classificado por que a escola é sobrecarregada naquilo
que deve ensinar e deixa de ensinar o que é importante.” “Es-
cola é lugar de aprender a ciência.”
Há quem acredita que a escola deve se ocupar da cons-
trução do conhecimento que instrumentalize o sujeito a se in-
serir no mercado de trabalho e que questões sociais fogem a
temáticas que a escola deve e precisa desenvolver. Assim, a
constituição de grupos que organizam, definem, e sustentam
práticas fundadas numa perspectiva transformadora, na maio-
ria dos casos, passam a ser assumido como posições pessoais
e não como proposta de escola. É visível que a escola que te-
mos está ainda muito enraizada numa perspectiva conservado-
ra de educação, onde se acredita que o sujeito só será capaz
de compreender a realidade social a partir da apreensão de
alguns instrumentos como a leitura, a escrita, as operações
matemáticas, etc., sem os quais se torna impossível ler o mun-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
331
Direitos humanos e escola

do. Temáticas de relevância social, como a escravidão no Brasil


no passado e no presente, é tema secundário, restrito a um
grupo e a um momento e, para estes, o tema dos direitos hu-
manos tornar-se-ia impossível de ser discutido na educação
infantil, ideia que discordamos.

FALTA DE REFERENCIAL METODOLÓGICO PARA ABORDAR O TEMA:


Muitos professores, em experiências isoladas, tentam rea-
lizar alguma prática na perspectiva da promoção dos direitos
humanos. Há falas que registram a preocupação em como
construir esse processo pedagógico já que não há muitas ex-
periências registradas. Falas como:
“Eu tento fazer do meu jeito por que eu acho importante.
Acho que não dá pra falar em cidadania sem falar em di-
reitos humanos.”, “ a gente busca um pouco de cada his-
tória de outras escolas e vai tentando...mas não tem muita
coisa que explicite como é possível fazer!”

Evidenciamos também iniciativas significativas de elabo-


ração do Projeto Pedagógico escolar e do trabalho docente,
que se estabeleceram enquanto processo, não se apresentan-
do como prática concluída. Neste caso, com o tempo, foram
construindo-se elaborações que apresentam a escola que que-
remos e que é possível. Uma escola onde o aprendizado deve
estar ligado à vivência do valor da igualdade em dignidade e
direitos para todos e deve propiciar o desenvolvimento de sen-
timentos e atitudes de solidariedade e cooperação. Um apren-
dizado de possibilite perceber as consequências pessoais e
sociais de cada escolha, que leve á formação do sujeito de di-
reitos consciente desta condição e que possa exercer sua ci-
dadania de forma comprometida com a mudança de práticas
da sociedade onde os direitos humanos são negados ou viola-
dos; sujeitos que possam lutar não só por seus direitos, mas
pelos direitos dos outros. Os professores, neste sentido, apon-
tam para a necessidade de assumir práticas pedagógicas vin-
culadas á realidade concreta dos sujeitos. Para que a prática

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
332
Elisa Mainardi & Eldon Henrique Mühl

em educação para os direitos humanos seja construída na es-


cola, é preciso compreender que as relações que se estabele-
cem no seu cotidiano, formam a base cultural que necessita
atenção na organização da ação pedagógica. Nesse sentido, a
educação em direitos humanos não pode ser um tema episódi-
co e articulado, apenas, a algumas disciplinas ou atividades.
Para se incorporar como uma prática constante de formação é
fundamental constituí-la como de eixo gerador e como prática
articuladora da ação pedagógica, o que demanda, necessaria-
mente, a opção teórico-metodológica por uma prática baseada
no princípio da dialogicidade e da formação de coletivos com-
prometidos com a educação em direitos humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As experiências de educação em direitos humanos têm
apresentado alguns avanços e revelado muitos problemas. Os
avanços indicam para as conquistas de um progressivo reco-
nhecimento de diferentes esferas e instâncias sociais que já
admitem que a solução de muitos problemas sociais e as pers-
pectivas futuras de uma sociedade melhor depende de uma
educação orientada pelos princípios da educação em direitos
humanos. Do ponto de vista dos desafios, um dos problemas a
ser enfrentado diz respeito aos procedimentos que devem ser
desenvolvidos para se possa implementar uma prática de edu-
cação que promova a formação de uma nova concepção sobre
a condição humana, orientada pelos princípios que fundamen-
tam a educação em direitos humanos. a educação em direitos
humanos não pode implicar apenas no acúmulo de algumas
informações, mas deve promover efetivamente a vivência diá-
ria dos direitos humanos, o que implica na construção de uma
sociedade orientada por uma nova cultura: a cultura dos direi-
tos humanos. Entendemos, contudo, que as lacunas deixadas
pelos cursos de formação de professores, no que se refere a
educação em direitos humanos, têm contribuído para o distan-
ciamento e a indiferença da escola com referência a esta temá-
tica. Se de fato é este o cenário escolar que se efetiva, temos

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
333
Direitos humanos e escola

que repensar a escola que queremos e a formação de professo-


res que necessitamos para tanto. Ficarmos apáticos frente a
esta temática é negar o compromisso que a escola tem com a
humanização do homem.

REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria Lúcia Arruda. História da educação. São Paulo:
Moderna, 1996.
BITTAR. Eduardo C. B. Educação e metodologia para os direitos hu-
manos: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico. In:
SILVEIRA. Rosa Maria Godoy. (Org.) Educação em Direitos Huma-
nos: Fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Uni-
versitária, 2007.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? São Paulo: Cortez,
1988
BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano
Nacional de Educação e Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Es-
pecial de Direitos Humanos, Ministério da Educação/Ministério da
Justiça e Unesco, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.
Resolução Nº 1/2012. Estabelece Diretrizes Nacionais para Educação
em Direitos Humanos. Diário Oficial da União. Brasília-DF,
30/05/2012.
CANDAU. Vera Maria. Educação em direitos Humanos no Brasil:
realidades e perspectivas. In: CANDAU, Vera Maria; SACAVINO,
Suzana. (Orgs.) Educar em Direitos Humanos: construir democracia.
2 ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
DIMENSTEIN. Gilberto. Democracia em Pedaços: Direitos Humanos
no Brasil. 2 ed., São Paulo: Companhia da Letras,1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra,
2006.
SADER, Emir. Contexto histórico e educação em direitos humanos no
Brasil: da ditadura à atualidade. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy.
(Org.) Educação em Direitos Humanos: Fundamentos teórico- me-
todológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
CONFLITOS ÉTICO - JURÍDICOS DA
REPRODUÇÃO ASSISTIDA NA
TERCEIRA IDADE

Fabiane da Silva Prestes


A autora é bacharel em Direito e especialista em Direito Civil e Processual
Civil pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões.
Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul e bolsista da Capes.
(fabianeprestes@gmail.com)
João Batista Monteiro Camargo
O co-autor é bacharel em Direito pela Universidade Regional da Campa-
nha, e Mestrando em Direitos Humanos na Universidade Regional do No-
roeste do Estado do Rio Grande do Sul e bolsista da FIDENE/UNIJUÍ.
(camargojoao@hotmail.com)

Resumo
O presente artigo destina-se a analisar as questões éticas e jurídicas da reprodução
assistida no Brasil frente à Dignidade da pessoa humana, desde a ausência de legis-
lação específica até os argumentos contrários e favoráveis a limitação de idade para
uma mulher engravidar por intermédio da medicina, com forma de analisar o impac-
to das novas tecnologias no direito de família.
Palavras-chave: Dignidade humana, novas tecnologias, bioética.

Abstract
The present article aims to analyze the ethical and legal issues of assisted reproduc-
tion in Brazil against the Dignity of the human person, since the absence of specific
legislation to arguments against and in favor of limiting age for a woman to become
pregnant through medicine, with a way to analyse the impacto f new technologies
on family law.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quase trinta anos após o nascimento do primeiro bebê
brasileiro, concebido por meio da medicina, a falta de discipli-
na e tutela legal dos conflitos e conseqüências da utilização de
tais técnicas pode ser sentida em diversas áreas do direito.
Hodiernamente, a gravidez de mulheres sexagenárias re-
ascendeu o debate ético sobre fertilização, em 2012, pelo me-
336
Fabiane da Silva Prestes & João Batista Monteiro Camargo

nos três idosas geraram e deram a luz após serem submetidas


a procedimentos de reprodução assistida.
Sobre a matéria há apenas duas resoluções do Conselho
Federal de Medicina, as quais representam a forma de controle
de tais métodos de reprodução, entretanto, no que tange a
idade da mulher, a única restrição é em relação ao número de
embriões a serem transferidos para a receptora.

BIOÉTICA E REPRODUÇÃO ASSISTIDA


Os avanços da medicina, biologia e genética permitiram o
surgimento da Bioética, a qual traz novos antagonismos entre
imperativos e incoerências éticas. Este ramo do conhecimento
surgiu na década de 1970, com a publicação de obras do pes-
quisador e professor Van Rensselaer Potter, o qual proporcio-
nou um pensar sobre as implicações positivas e negativas dos
avanços da medicina, e seu reflexo, em especial na vida humana.
Neste alinhamento, Leone1 conceitua a bioética como a
ciência:
[...] que tem como objetivo indicar os limites e as finali-
dades da intervenção do homem sobre a vida, identificar
os valores de referência racionalmente proponíveis, de-
nunciar os riscos das possíveis aplicações.

No mesmo sentido Screccia2 considera:


A bioética ai está como tentativa de reflexão sistemática
a respeito de todas as intervenções do homem sobre os
seres vivos, uma reflexão que se propõe um objeto espe-
cífico e árduo: o de identificar valores e normas sobre a
própria vida e sobre a biosfera.

1
LEONE, S.; PRIVITERA, S.; CUNHA, J.T. (Coordenadores.). Dicionário de
bioética. Aparecida: Editorial Perpétuo Socorro/Santuário, 2001.
2
SGRECCIA, Elio. Manual de bioética I: fundamentos e ética biomédica.
Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 1996, p.57.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
337
Conflitos ético-jurídicos da reprodução assistida na terceira idade

Assim sendo, percebe-se que a bioética representa o limi-


te entre os avanços da ciência e as finalidades de intervenção
na vida humana, já que, o conhecimento científico desenvol-
veu-se rapidamente, distanciando-se da subjetividade humana.
No que tange as contradições éticas no campo da tecno-
logia, Maturana3, acrescenta que:
Penso que a questão que nós seres humanos devemos
enfrentar é sobre o que queremos que nos aconteça, não
uma questão sobre o conhecimento ou o progresso. A
questão que devemos enfrentar não é sobre a relação en-
tre a biologia e a tecnologia, ou sobre a relação entre a
arte e a tecnologia, nem sobre a relação entre o conheci-
mento e a realidade, nem mesmo sobre se ao metadesing
molda ou não nosso cérebro. Penso que a questão que
precisamos enfrentar nesse momento de nossa história é
sobre nossos desejos e sobre se queremos ou não sermos
responsáveis por nossos desejos.

Nesse sentido, nota-se que o progresso da medicina trou-


xe os problemas da bioética que revelaram novos antagonis-
mos, representando um paradoxo entre os avanços científicos
e a subjetividade humana. Dessa forma, qualquer ação huma-
na que tenha algum reflexo sobre as pessoas deve aludir o re-
conhecimento de valores e uma estimativa de como estes po-
derão ser afetados.
Ademais, os avanços tecnológicos, bem como o progresso
apresentaram novas possibilidades de interferência na vida
humana. Neste contexto, sabe-se que o desejo de ter filhos é
um sentimento primitivo, estando estritamente relacionado
com a realização pessoal.
Dessa forma, a Reprodução Assistida é um conjunto de
técnicas laboratoriais que visa obter a gestação substituindo
ou facilitando uma etapa deficiente do processo reprodutivo.
De acordo com Maria Helena Diniz4:
3
MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organiza-
ção e tradução de Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte:
UFMG, 2001, p. 173.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
338
Fabiane da Silva Prestes & João Batista Monteiro Camargo

Essa nova técnica para criação de ser humano em labora-


tório, mediante a manipulação dos componentes genéri-
cos da fecundação, com o escopo de satisfazer o desejo
de procriar de determinados casais estéreis e a vontade
de fazer nascer homens no momento em que se quiser e
com os caracteres que se pretender, entusiasmou a Em-
briologia e a Engenharia Genética, constituindo um
grande desafio para o Direito e para a Ciência Jurídica
pelos graves problemas jurídicos que gera; sendo im-
prescindível não só impor limitações legais às clínicas
médicas que se ocupam da reprodução humana assisti-
da, mas também estabelecer normas sobre responsabili-
dade civil por dano moral e patrimonial, que venha cau-
sar.

A possível solução às criticas quanto às técnicas de re-


produção assistida é essencialmente norteada por quatro prin-
cípios éticos, quais sejam: não maleficência, consentimento,
justiça e dignidade da pessoa humana.

A AUSÊNCIA DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PARA REGULAR A MATÉRIA


No Brasil não existe uma legislação que regulamente, de
modo especifico, a reprodução assistida. O Código Civil de
2002 limita-se a regular os efeitos da inseminação artificial
(homóloga, heteróloga e post mortem) no reconhecimento da
paternidade (art. 1.597) e de efeitos sucessórios (art. 1.799).
A única lei que traz a baila o assunto, ainda que de forma
superficial, é a Lei da Biossegurança, de 2005. Criada para
normatizar as atividades que envolvem organismos genetica-
mente modificados e a pesquisa com células-tronco embrioná-
rias, a referida lei menciona a prática da medicina reprodutiva
ao dispor sobre a doação para pesquisas clínicas dos embriões
gerados pela fertilização in vitro – quando o óvulo é fecundado
em laboratório.

4
DINIZ, Maria Helena. A ectogênese e seus problemas jurídicos. Dispo-
nível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/
7225-7224-1-PB.pdf. Acesso em 30 de outubro de 2012.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
339
Conflitos ético-jurídicos da reprodução assistida na terceira idade

Em 2006, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, cri-


ou uma resolução a fim de estabelecer as condições técnicas
de funcionamento de bancos de sêmen, óvulos e embriões.
Atualmente, no Brasil, encontram-se vigentes as Resolu-
ções nº. 1.931/2009 e 1.597/2010, ambas do Conselho Federal
de Medicina (CFM), nº. 196/1996, 246/1997 e 303/2000, todas
do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Em que pese à resolução do Conselho Federal de Medici-
na considere que todas as pessoas capazes5, que tenham soli-
citado o tratamento, podem ser receptoras de reprodução as-
sistida, diante, da ausência de especificação quanto a idade e
do silêncio do ordenamento jurídico, quanto essas técnicas,
novos questionamentos passam a ser levantados, já que, no
que tange a idade da mulher, a única restrição é em relação ao
número de embriões a serem transferidos para a receptora.
Reitera-se que as técnicas de biotecnologia desenvolve-
ram-se rapidamente nos últimos anos, entretanto, grande par-
te destes avanços científicos, não foram regulamentados, ou
foram de forma deficiente, por um lado, pela imprevisibilidade
das descobertas científicas, e por outro, pelo entendimento de
que a legalização da matéria, não será medida suficiente para
a pacificação dos conflitos.
Existem diferentes tipos de normativas legais vigentes
em diversos países, em especial nos países europeus, que pos-
suem decretos, normativas e recomendações médico-éticas. Os
países desenvolvidos colocam a reprodução assistida entre os
tratamentos com amparo governamental. Na America Latina
dois países já o fazem, Chile e Argentina6.

5
Dispõe a Resolução CFM nº 1.957/2010: “As técnicas de RA podem ser
utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se in-
corra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente”
(art. I, inc. 2º).
6
BUSSO, Newton Eduardo. Reprodução Assistida: como ampliar o aces-
so? Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/13447241/1440041270
/name/Dossi%C3%AA+Reprodu%C3%A7%C3%A3o+Assistida.pdf aces-
so em 30 de março de 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
340
Fabiane da Silva Prestes & João Batista Monteiro Camargo

A Espanha foi pioneira na promulgação de lei específica,


aprovando em 1988, a Lei 35/1988, e mais tarde insere em seu
ordenamento jurídico a Lei 14/2006, a qual revoga a lei anteri-
or, devido aos avanços das técnicas de reprodução.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


A dignidade da pessoa humana foi reconhecida pela De-
claração Universal dos Direitos dos Direitos Humanos, em 10
de dezembro de 1948.
Nesse sentido Dallari7 considera que as pessoas que re-
digiram a nova Declaração de Direitos estavam:
Preocupados não somente com a afirmação dos Direitos,
como também com a sua aplicação prática, os autores da
Declaração não se limitaram a fazer a enumeração desses
Direitos. Indicaram, com pormenores, algumas exigên-
cias que devem ser atendidas para que a dignidade hu-
mana seja respeitada, para que as pessoas convivam em
harmonia, para que uns homens não sejam explorados e
humilhados por outros, para que nas relações entre as
pessoas exista justiça, sem a qual não poderá haver paz.

Assim sendo, percebe-se que a Declaração Universal dos


Direitos Humanos, aprovada pela Organização das Nações
Unidas, foi um documento escrito por estudiosos do mundo
inteiro, e que teve como objetivo proclamar direitos fundamen-
tais da pessoa humana.
A dignidade é um direito personalíssimo da pessoa hu-
mana e Sarlet8 faz referencia que:
A dignidade vem sendo considerada (pelo menos para
muitos e mesmo que não exclusivamente) qualidade in-
trínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e

7
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo:
Moderna, 1998, p 72.
8
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fun-
damentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001, p.27
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
341
Conflitos ético-jurídicos da reprodução assistida na terceira idade

certos de que a destruição de um implicaria a destruição


do outro, é que o respeito e a proteção da dignidade da
pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-
se (ou, ao menos, assim o deveriam) em meta permanen-
te da humanidade, do Estado e do Direito.

Assim sendo, verifica-se que a dignidade humana é um


direito fundamental de todos, já que todos são iguais, sem dis-
tinção de qualquer natureza, e é um dever do Estado, do Direi-
to, da sociedade assegurar uma vida digna a todas as pessoas.
Sendo a dignidade algo irrenunciável e inalienável que qualifi-
ca a pessoa humana.
Nesse sentido, verifica-se que a dignidade da pessoa
humana é um direito personalíssimo e fundamental, que afasta
a concepção transpessoalista, por se tratar de um princípio
absoluto que deve prevalecer sobre qualquer outro princípio, já
que a pessoa humana tem valor em si mesma, sendo titular de
direito, reconhecidos e respeitados

DIREITO FUNDAMENTAL À REPRODUÇÃO ASSISTIDA


A pessoa humana tem liberdade na sua decisão de ter um
filho, ademais, sabe-se que a infertilidade é um problema de
saúde, com reflexos psicológicos, e que é legitimo o anseio de
superá-la, já que os avanços do conhecimento científico permi-
tem solucionar vários problemas de reprodução humana.
Percebe-se que, o acesso à reprodução assistida localiza-
se na categoria dos direitos fundamentais que não possuem
previsão no ordenamento jurídico, ou seja, aqueles que decor-
rem do regime e dos princípios adotados pelo texto constituci-
onal.
A outorga do caráter de direito fundamental à reprodução
assistida, encontra suporte em princípios e valores constituci-
onais, entre os quais, pode-se destacar: liberdade, tutela cons-
titucional a entidade familiar, direito à saúde.
Dessa forma, por meio de uma leitura sistemática, perce-
be-se a existência de um direito fundamental à reprodução as-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
342
Fabiane da Silva Prestes & João Batista Monteiro Camargo

sistida, o qual não possui caráter absoluto, devendo ser relati-


vizado frente aos princípios da dignidade da pessoa humana,
melhor interesse da criança, e paternidade responsável.

ARGUMENTOS CONTRÁRIOS E FAVORÁVEIS A LIMITAÇÃO DE IDADE


PARA UMA MULHER ENGRAVIDAR POR INTERMÉDIO DA MEDICINA
Os novos recursos científicos disponíveis são capazes de
transcender os limites temporais da biologia, enquanto que no
passado a capacidade de gestação se encerrava com a meno-
pausa, atualmente pode ser estendida por muitos anos após.
Ademais, destaca-se que a reprodução não se exaure na
satisfação do desejo de ter filhos, mas constitui sinônimo de
um projeto paternal responsável, situação que demanda a con-
sideração dos interesses daquele que irá nascer, inclusive em
momento anterior à sua concepção.
Neste campo de considerações Pegoraro9 traz as seguin-
tes indagações:
[...] continuaremos a transmitir a vida por via natural ou
poderemos, livremente, substituí-la por técnicas de re-
produção in vitro, barriga de aluguel, clonagem etc? Ha-
verá órgãos tão importantes – o cérebro – cujo transplan-
te mudaria a identidade do sujeito? O transplante de vá-
rios órgãos poderia reduzir as pessoas a um corpo meca-
nizado? As técnicas estão disponíveis. Por que usá-las?
Por que não usá-las? Ou em que circunstância usá-las?
Que destino daremos ao lixo atômico? Devemos parar
com a produção de energia nuclear? São problemas que
extrapolam a competência da tecnociência e se tornam
problemas éticos globais. Todas estas questões são
questões de ética; não visam combater a tecnologia, mas
definir a melhor maneira de viver com os outros no ambi-
ente tecnológico.

9
PEGORARO, Olinto A. Ética e bioética: da subsistência à existência.
Petrópolis , RJ: Vozes, 2002, p. 24.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
343
Conflitos ético-jurídicos da reprodução assistida na terceira idade

Nesse sentido, nota-se que, a existência humana está


vinculada ciência e esta, por sua vez, deve ser pautada sob o
ponto de vista ético. Assim, questiona-se quais as implicações
de uma pessoa idosa ser submetida as técnicas de reprodução
assistida, já que, se tais técnicas estão disponíveis, quais os
argumentos para usá-las ou não.
Enfatiza-se que, somente no ano de 2012, três idosas brasi-
leiras deram a luz por meio da reprodução assistida, o fato ex-
traordinário já ocorreu em outros países, reascendendo o amplo
debate sobre os limites éticos do emprego de tais técnicas.
Nota-se que as opiniões se dividem quanto à gravidez de
idosas por intermédio da medicina, destacando-se que ter um
filho com essa idade pode ser visto como a realização de um
sonho, ou por outro lado, como um ato de egoísmo.
No que tange aos argumentos favoráveis a limitação de
idade, percebe-se a mulher idosa submetida à Reprodução As-
sistida corre riscos de parto prematuro, hipertensão, diabetes.
É de bom alvitre destacar que devido à expectativa de vida da
mãe, ou dos pais, a relação familiar será limitada, estar-se-ia
planejando a gestação de um órfão em potencial.
Por outro lado, percebe-se como argumentos contrários a
limitação de idade, pelo fato de que, o impedimento jurídico de
uma mulher ser mãe após os sessenta anos de idade é uma
forma de violar os direitos especiais assegurados pelo femi-
nismo, além de reascender a distinção de gênero, é uma práti-
ca discriminatória contra a mulher, no que concerne a sua de-
cisão de ser mãe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, percebe-se, contudo que a questão está
longe de ser considerada pacífica há, pois, um longo caminho a
ser percorrido, desde a criação de legislação sobre a matéria,
até o rompimento de barreiras morais, éticas e culturais. Em-
bora se tenha percorrido um grande caminho em direção ao
progresso, sabe-se que o mesmo, não eliminou as indagações
transcendentais e morais, muito menos produziu harmonia.
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
344
Fabiane da Silva Prestes & João Batista Monteiro Camargo

Destaca-se a necessidade de uma analise mais refletida,


a qual revela que é necessário construir soluções jurídicas vol-
tadas a justa satisfação dos interesses humanos, a partir de
uma visão objetivada fundamentalmente na salvaguarda da
dignidade da pessoa humana, e a efetivação da mais legítima
escala de valores.

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de outubro de 2012.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
DELINQUÊNCIA JUVENIL E
JUSTIÇA RESTAURATIVA :
UM OLHAR INTERDISCIPLINAR 1

Fabiano Rodrigo Dupont


Graduando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Ana Paula Arrieira Simões
Graduanda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC,
Bolsista PUIC e integrante dos grupos de pesquisa: “Direito, Cidadania e
Políticas públicas”, coordenado pela professora Pós-Doutora Marli Marle-
ne Moraes da Costa e “Teorias do Direito” coordenado pela professora
Doutora Caroline Müller Bitencourt.

Resumo
Em face ao crescente e alarmante número de crianças e adolescentes que são inicia-
dos no mundo do crime e da consequente necessidade de encontrar uma diretriz
dentro do Direito contemporâneo para sua diminuição – e, quiçá, sua erradicação -,
este trabalho vem como uma proposta para permitir à Justiça Restaurativa a oportu-
nidade de, quando cometido o ato infracional, dar ao jovem infrator a chance de se
ver através dos olhos da sociedade – tendo uma maior compreensão da repercussão
de seus atos -, de receber orientação e a atenção de que fora privado durante seu
desenvolvimento e de, então, restaurar laços que o ajudarão a criar uma identidade
saudável com a qual atuará no mundo legal. Uma vez entendido que para que tal
metamorfose ocorra deve-se poder trabalhar através da implementação de políticas
públicas na área da educação e da segurança, este estudo analisará as características
da delinquência juvenil e as peculiaridades e práticas restaurativas procurando, as-
sim, expor as consequências de se levar essa teoria à prática através de uma aborda-
gem interdisciplinar.
Palavras-chave: Delinquência juvenil; Justiça Restaurativa; Interdisciplinaridade.

Abstract
Due to the growing and alarming number of children and youth who are initiated
into the world of crime and the consequence need to find a guideline within the Law
to this contemporary decline – and perhaps its eradication – this paper is a proposal
to allow Restorative Justice at the opportunity when committing the offense, to give
young offenders a chance to see through the eyes of society -having a greater un-
derstanding of the impact of their actions – to receive guidance and attention that
had been deprived during his development and then restore ties that will help to

1
Este artigo é resultado dos estudos realizados pelo grupo de pesquisa:
Direito, Cidadania e Políticas Públicas, sob a coordenação da professora
Pós-Doutora Marli Marlene Moraes da Costa.
348
Fabiano Rodrigo Dupont & Ana Paula Arrieira Simões

create a healthy identity with which will act in the legal world. Once it's understood
that for such a metamorphosis occurs must be able to works through the implemen-
tation of public policies in education and security, this study will examine the charac-
teristics of juvenile delinquency and the peculiarities and restorative practices seek-
ing, thereby, expose the possibilities to bring this theory into a practice through an
interdisciplinary approach.
Keyboards: Juvenile delinquency; Restorative Justice; Interdisciplinarity.

NOTAS INTRODUTÓRIAS
A delinquência juvenil é um fenômeno estudado por di-
versas áreas, entre as quais, cite-se a Criminologia. Com a
abertura do pensamento criminológico para as ciências huma-
nas, ficou claro compreender o sentido do delito e o contexto
que se encontra o sujeito (seja adolescente ou adulto) como
aquele que rompe com a norma social e jurídica. O criminólogo
Edwin Sutherland, como um dos precursores sobre a delin-
quência com a teoria da associação diferencial, identificou que
as gangues juvenis constituem um sistema hierárquico, de
chefia e de territorialidade. Observa-se com isso que, mesmo
dentro do espaço de marginalização e de transgressão, novas
regras surgem com o propósito de manter o grupo como uni-
dade e do processo de dominação se fazer presente.
Ao relacionar com a realidade brasileira, desloca-se para
o foco do presente trabalho o problema social dos inúmeros
adolescentes que, cada vez mais cedo, ingressam na crimina-
lidade, por diversos fatores – sendo o mais presente deles a
drogadição -, fomentando um fenômeno que pode ser compre-
endido como a busca pela sua sobrevivência e inclusão social.
Para chegar a tal entendimento, necessita-se ter flexibilidade
para reorganizar os conceitos e preconceitos a respeito do te-
ma, pois o adolescente que comete um ato infracional não cria
o ato delinquencial, ele aprende a prática criminosa.
Partindo desses pressupostos, o que se propõe com o
presente artigo é refletir sobre a metodologia dos círculos de
diálogo da justiça restaurativa com adolescentes autores de
ato infracional. Ao encontro disso, questiona-se: a justiça res-
taurativa é eficiente no tratamento de adolescentes enquanto
alternativa de tratamento de conflitos?
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
349
Delinquência juvenil e justiça restaurativa

Abordar-se-á, em um primeiro momento, o enfoque da


criminologia sobre a delinquência juvenil, tratando de suas
causas e vinculações, percebidas por seus estudiosos, e, em
um segundo instante, explorar-se-á as características da Justi-
ça Restaurativa que a levam a ser cotada como uma resposta
viável à reintegração do, ainda passível de regeneração, jovem
delinquente.

ENFOQUES CRIMINOLÓGICOS SOBRE A DELINQUÊNCIA JUVENIL

Existem várias escolas e teorias criminológicas elabora-


das com o fito de explicar os comportamentos delituosos e al-
gumas possibilidades de prevenção, porém, apenas utilizar-se-
á de três delas: a teoria de Chicago, a teoria das subculturas e
a teoria da associação diferencial.
Edwin Sutherland foi um dos grandes criminólogos do sé-
culo XX. Para esse pensador os delitos não estavam somente
relacionados com as classes mais pobres, o que demonstrava
que a tendência delituosa estava presente em grande escala
nas classes mais altas. Sua teoria das associações diferenciais
revelava que o individuo somente se associa ao crime a partir
do momento em que em seu meio há mais definições para in-
fringir a lei. E isso também acontecia entre as classes de maior
vulnerabilidade social. Os criminosos da classe alta formam os
chamados de criminosos de colarinho branco2.
A delinquência juvenil passou a ser estudada, observan-
do-se atentamente as características do jovem criminoso e as
inúmeras influências que pudessem levá-lo ao mundo do cri-
me. Os jovens delinquentes eram indisciplinados, componen-
tes de gangues que buscavam o crime pelo prazer, tentando,
dessa forma, buscar uma válvula de escape que os fizessem
ser ouvidos, ou seja, queriam chamar à atenção da sociedade,

2
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos.
Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de
Criminologia, 2008, p. 397.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
350
Fabiano Rodrigo Dupont & Ana Paula Arrieira Simões

essa mesma sociedade que os havia excluído e da qual se re-


cusavam a fazer parte3.
A teoria da associação diferencial, apesar de ser utilizada
para explicar os chamados “crimes de colarinho branco”, con-
tribui significativamente com seus conceitos para o estudo da
delinquência juvenil. A primeira e mais importante delas vem
de Gabriel Tarde ao afirmar que o criminoso ou o delinquente
aprende a prática criminosa ou o ato delinquente e não o cria,
necessitando de um substrato social que lhe dê base para a
prática do delito, como exemplo disso se tem os crimes juvenis
relacionados ao tráfico de drogas e a organizações criminosas
tais como PCC ou Comando Vermelho4.
A criminologia é uma ciência transdisciplinar que tem por
finalidade estudar o delito e o delituoso, bem como o espaço
social que se desenvolvem os fatos que implicam no compor-
tamento do indivíduo em romper com as regras sociais e tam-
bém as normas sociais. Depois do século XVIII, a criminologia
abriu espaço para as outras ciências humanas, rompendo com
a visão exclusiva e tradicional de Cesare Lombroso, Ferri e Ra-
fale Garfalo. Esses criminólogos contribuíram muito com a
concepção contemporânea que se tem do sujeito que comete
delitos, mas quanto à forma de pensamento que tinham enten-
de-se que está apenas parcialmente superada.
Logo, com a abertura de outras interpretações sobre o de-
lito e o delinquente, por meio da Criminologia crítica, que tam-
bém recebeu influência da Escola de Chicago, pode-se consta-
tar que a delinquência não se opera de forma isolada e nem é
criação do indivíduo. Ela decorre das implicações do capita-
lismo na vida das pessoas. Para ilustrar, basta lembrar a déca-
da de 1960, quando se deu, nos Estados Unidos da América, o
movimento fordista. Com o avanço das fábricas de automóveis

3
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos.
Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de
Criminologia, 2008.
4
LIMA, Cauê Nogueira de. A delinqüência juvenil sob o enfoque crimino-
lógico. In: SHECAIRA, Salomão; DE SÁ, Alvino Augusto (Orgs.). Crimino-
logia e os problemas da atualidade. São Paulo: Atlas, 2008, p. 13.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
351
Delinquência juvenil e justiça restaurativa

em cidades americanas como Detroit, ocorreu o desenvolvi-


mento das cidades, mas em contrapartida aumentaram os ín-
dices de exclusão social, imigração e formação de guetos. O
que levou aos estudiosos e sociólogos da Escola de Chicago a
estudar a degeneração do controle social informal dessas
grandes cidades5. Percebe-se até hoje as consequências ocasi-
onadas pelo capitalismo, quando no entorno das cidades se
visualizam cinturões de pobreza.
Vinculada a isso, está a exclusão social. Conceituada pelo
sociólogo francês Robert Castel6, a exclusão social foi definida
como o ponto máximo atingível no decurso da marginalização,
sendo este, um processo no qual o indivíduo se vai progressi-
vamente afastando da sociedade através de rupturas consecu-
tivas com a mesma. Essas rupturas podem se dar em diferen-
tes níveis e por diferentes fatores tais como raça, credo, orien-
tação sexual, poder aquisitivo.
A delinquência juvenil pode, então, ser reconhecida como
uma inadaptação social, cujos representantes – que, como já
fora dito, não estão agrupados em uma única camada da soci-
edade – são aqueles que não atuam de forma respeitosa para
com as normas acordadas para a garantia da boa convivência
social. O motivo de seu afastamento dos parâmetros definidos
se dá por não terem se identificado e socializado, substituindo
normas e valores por regras próprias, que estão manifestada-
mente contra o estabelecido nas leis7.

5
BRAGA, Ana Gabriela Mendes; BRETAN, Maria Emília Accioli Nobre.
Teoria e Prática da Reintegração Social: o relato de um trabalho crítico no
âmbito da execução penal. In: SHECAIRA, Salomão; DE SÁ, Alvino Au-
gusto (Orgs.). Criminologia e os problemas da atualidade. São Paulo: A-
tlas, 2008, p. 13.
6
CASTEL, Robert (1990). Extreme Cases of Marginalisation, from Vulnera-
bility to Desaffiliation, comunicação apresentada no European Seminar
on Social Exclusion, realizado em Alghero (Itália), em Abril de 1990, p.
42.
7
TRINDADE, Jorge - Delinqüência juvenil: uma abordagem transdiscipli-
nar/Jorge Trindade. 2.Ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p.
40.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
352
Fabiano Rodrigo Dupont & Ana Paula Arrieira Simões

JUSTIÇA RESTAURATIVA
Ao falar em delinquência está-se falando de desamparo
do ser humano, das crianças, dos jovens, dos pais e da socie-
dade como um todo e, principalmente, da família. Diante dessa
realidade, é visível como a descrença nas instituições e a intro-
jeção de valores distorcidos se mostraram muito mais eficazes
do que os padrões morais de direito e respeito por si mesmos e
pelos outros. Torna-se imprescindível, então, encontrar meios
de religar os laços com criança e adolescente, contribuindo
para a construção de um futuro que lhes seja adequado, se não
ideal.
Pensando-se em alcançar os problemas internos, de re-
percussão externa, com o qual as crianças e adolescentes en-
volvidas com a prática de ato infracional convivem diariamen-
te, onde quer que elas estejam, e suplantá-los, chegou-se à
ideia da aplicação de práticas restaurativas, em especial a do
Círculo de Construção de Paz, devido à sua composição estru-
tural, que visa o empoderamento do indivíduo e sua relação
com o meio comum.
Seguindo essa linha, diz-se do Círculo de Construção de
Paz que este é nada menos que um processo que busca a iden-
tificação e compreensão das causas e necessidades subjacen-
tes aos conflitos através do diálogo e que, em meio a um local
cuja atmosfera seja de segurança e respeito, criada e mantida
tanto pelos conciliadores quanto pelos indivíduos participan-
tes, objetiva a transformação desses mesmos conflitos em
ações positivas mediante soluções criativas. Assim, com a
promoção da fala e da escuta qualificada, seu método vem
sendo utilizado nos mais variados espaços de convivência so-
cial, ajudando tanto adultos quanto crianças e adolescentes.
As aplicações de Justiça Restaurativa são perceptivas no que
diz respeito ao favorecimento do senso de pertencimento e de
autorresponsabilização, além do fortalecimento do senso de
comunidade e promoção da Cultura de Paz.
Portanto, para a sua aplicabilidade às crianças e aos ado-
lescentes infratores, esta prática – que se apresenta com pou-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
353
Delinquência juvenil e justiça restaurativa

ca formalidade -, mostra-se útil na medida em que dá a esses o


espaço e a atenção que necessitam para que haja uma desin-
toxicação mental – originada do contato com ambientes noci-
vos que esses frequentem ou com personalidades problemáti-
cas que os cerquem – e a troca de percepções que forem errô-
neas por valores necessários à edificação de uma identidade
saudável, ou seja, habilitada a reconhecer a importância conti-
da em conceitos como diálogo, respeito, responsabilidade,
obrigação, direito, solidariedade, empatia, individualidade,
atenção e cooperação. Valores capazes de dar o sentido e o
rumo extremamente necessários à vida desses indivíduos fren-
te sua condição de ser em pleno desenvolvimento.
A credibilidade dada à prática restaurativa, nesse caso,
justifica-se, segundo Kay Pranis, pela sua própria essência,
uma vez que:
Os Círculos partem do pressuposto de que existe um de-
sejo humano universal de estar ligado aos outros de for-
ma positiva. Os valores do Círculo advêm desse impulso
humano básico. Portanto, valores que nutrem e promo-
vem vínculos benéficos com os outros são o fundamento
do Círculo.8

Ao fim, por tratar-se de uma ação que denota grande


aprofundamento e envolvimento de diversas ciências, chama-
se a atenção para a necessidade, e por que não falar em van-
tagem, de se superar a fragmentação do conhecimento acumu-
lado em diversas áreas de estudo e pesquisa, posto que tal
medida traria a otimização das práticas restaurativas e, assim,
alcançaria maior número de indivíduos cujas chances de se
voltarem para o caminho do que é direito, diminuem a cada
instante a mais que permanecem em meio aos estímulos nega-
tivos do mundo do crime.

8
PRANIS, Kay. Processos Circulares/ Kay Pranis; tradução de Tônia Van
Acker. - São Paulo: Palas Athena, 2010, p. 39.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
354
Fabiano Rodrigo Dupont & Ana Paula Arrieira Simões

A INTERDISCIPLINARIDADE EM QUESTÃO
Desde o começo do séc. XX, a comunicação aberta entre
as matérias está sendo cada vez mais defendida, dada sua
qualidade potencializadora e elucidativa sobre questões que
antes continham um grande abismo entre suas origens e suas
consequências. Distanciando a questão da teoria, sua evolução
natural. A interdisciplinaridade, assim sendo, constrói a ponte
que revela o nexo necessário a toda teoria, acabando com os
vácuos do saber e aumentando a amplitude e profundidade do
conhecimento humano sobre tudo aquilo que o cerca.
No contexto em questão, envolvendo delinquência juvenil
e Justiça Restaurativa, a interdisciplinaridade se faz presente
na troca de informações entre os ramos da ciência como Socio-
logia, Antropologia, Psicologia, Criminologia, Direito, cuja coo-
peração na difusão de pesquisas e ideias acarreta numa maior
assertividade na procura das causas desses fenômenos, suas
características, consequências, atores envolvidos e, seguindo
essa linha de raciocínio, dando vez ao encontro de suas formas
de prevenção e/ou erradicação.
De maneira mais específica, no que se refere à delinquên-
cia, a interdisciplinaridade atua, primeiramente, de forma a
permitir uma visão do ato infracional muito mais ampla do que
seria possível, rompendo, assim, com preconceitos acerca do
jovem transgressor, refutando e evitando sua estigmatização
na sociedade. Seu “etiquetamento”, segundo conceito trazido
pela Criminologia. Posteriormente, ao tratar mais especifica-
mente da definição de círculos restaurativos, cuja filosofia cer-
ne é difundida de forma mais célere e eficaz por esse movi-
mento, tal como é observado por Raffaella da Porciuncula Pal-
lamolla quando declara que:
Esta concepção, de certa forma, afasta-se das demais,
pois concebe a justiça restaurativa como uma forma de
vida a ser adotada e rejeita qualquer hierarquia entre os
seres humanos (ou entre os outros elementos do meio
ambiente): “para viver um estilo de vida de justiça res-
taurativa, devemos abolir o eu (como é convencionalmen-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
355
Delinquência juvenil e justiça restaurativa

te compreendido na sociedade contemporânea) e ao in-


vés, entender a nós mesmos como intrinsecamente co-
nectados e identificados com outros seres e mundo 'ex-
terno'.9

Tendo em vista a vasta gama de estudos reunidos poten-


cialmente compatíveis com os temas aqui tratados, a interdis-
ciplinaridade é, portanto, a ferramenta necessária para aquisi-
ção de reconhecimento da necessidade de que haja a imple-
mentação de política pública eficaz ao tratamento aos casos já
abordados, devido à possibilidade de uma ação incisiva na raiz
destes. Lembra-se aqui que a aprovação de tal medida deve
ser tratada com urgência, uma vez que a implementação des-
tas políticas públicas ainda pode modificar, de forma positiva,
o futuro de todos pela mera apreciação da necessidade do res-
gate de valores morais e sociais, tão injustamente postos em
desuso pela sociedade.

NOTAS CONCLUSIVAS
A criminologia destaca-se como uma disciplina, uma ci-
ência, que se aplica na conceituação de infração, delinquência,
crime, posto que o fenômeno da delinquência juvenil reclama
uma visualização estendida do pensamento. A conduta huma-
na é algo de grande complexidade e por isso não pode ser ana-
lisada de forma unilateral, focada por apenas um ângulo. É
preciso reconhecer que cada ação individual possui uma rea-
ção que afeta o todo, razão explicada devido ao fato de estar-
mos todos interligados, componentes que somos de um todo
comum, a sociedade.
Uma vez tratadas as distorções entre os pesquisadores e
a sociedade, traz a Justiça Restaurativa, com o Círculo de
construção de Paz, o meio propício para que os jovens tenham
contato com outras formas de percepção da realidade, de suas

9
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula, 1982 - Justiça restaurativa: da
teoria à prática / Raffaella da Porciuncula Pallamolla - 1. ed. - São Paulo :
IBCCRIM, 2009, p. 59.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
356
Fabiano Rodrigo Dupont & Ana Paula Arrieira Simões

ações, novas ideias e experiências que lhes propiciem os estí-


mulos positivos que lhes faltavam durante seu amadurecimen-
to emocional e psíquico para encontrar sua voz, seu lugar no
mundo e explorar seu potencial para o que é verdadeiramente
humano.
Assim, se não se souber reconhecer o valor do outro, res-
peitá-lo e se colocar em seu lugar, permitindo uma aproxima-
ção livre de parcialidades, pouco se poderá fazer a respeito dos
problemas que, em um momento ou outro, a todos atingem.
Em outras palavras, é preciso ser capaz de abrir a mente para
o aprendizado puro, venha ele de uma ou de mais ciências,
para que crianças e adolescentes, que foram privados de um
futuro a que teriam direito, por motivos que não lhes cabia de-
finir, possam escolher um estilo de vida adequado à sua condi-
ção de ser em pleno desenvolvimento, podendo e sabendo es-
colher o que lhes é benéfico, construir uma identidade forte e
ter relacionamentos saudáveis, que mais tarde, serão caracte-
rísticas que iremos apreciar observar em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS
ACHUTTI, Daniel. Modelos contemporâneos de justiça criminal:
justiça terapêutica, instantânea restaurativa. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2009.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológi-
cos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008.
BRAGA, Ana Gabriela Mendes; BRETAN, Maria Emília Accioli No-
bre. Teoria e Prática da Reintegração Social: o relato de um trabalho
crítico no âmbito da execução penal. In: SHECAIRA, Salomão; DE
SÁ, Alvino Augusto (Orgs.). Criminologia e os problemas da atuali-
dade. São Paulo: Atlas, 2008. LIMA, Cauê Nogueira de. A delinqüên-
cia juvenil sob o enfoque criminológico. In: SHECAIRA, Salomão; DE
SÁ, Alvino Augusto (Orgs.). Criminologia e os problemas da atuali-
dade. São Paulo: Atlas, 2008.
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula, 1982 – Justiça restaurati-
va: da teoria à prática / Raffaella da Porciuncula Pallamolla – 1. ed. –
São Paulo : IBCCRIM, 2009.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
357
Delinquência juvenil e justiça restaurativa

PRANIS, Kay. Processos Circulares/ Kay Pranis; tradução de Tônia


Van Acker.
São Paulo: Palas Athena, 2010.
ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado/ Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore, Rogério
Sanches Cunha. -2.ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revis-
ta dos Tribunais, 2011. SANTANA, Selma Pereira de – Justiça Res-
taurativa: a reparação como consequência jurídico-penal autônoma
do delito/ Selma Pereira de Santana -Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010. TRINDADE, Jorge – Delinqüência juvenil: uma abordagem
transdisciplinar/Jorge Trindade. 2.Ed. – Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1996.
ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa/Howard Zehr; tradução Tônia
Van Acker.
São Paulo: Palas Athena, 2012. Título original: The Little Book os
Restorative Justice.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A JUSTIÇA RESTAURATIVA
COMO POLÍTICA DE PREVENÇÃO
À VIOLÊNCIA NA ESCOLA

Fernando Oliveira Piedade


Mestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Bacharel em Direito. Especialista em Linguística e Língua Portuguesa pela
Faculdade Evangélica do Meio Norte e Metodologia do Ensino da Língua
Espanhola pela Faculdade Santa Fé. Licenciado em Letras Portu-
guês/Espanhol pela Faculdade Santa Fé. (nandooliver27@hotmail.com)
Cristiano Cuoso Marconatto
Mestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Especialista em Políticas e Gestão da Segurança Pública pela Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professor de Direito Penal e Processual Pe-
nal da UNISC. Capitão da Brigada Militar. (marconatto@unisc.br)

Resumo
Este artigo foi construído tem por finalidade diminuir ou até mesmo eliminar a vio-
lência do espaço escolar através da justiça restaurativa enquanto abordagem alter-
nativa de solução de conflitos alicerçada no diálogo, na culpa compartilhada, na
reparação de danos e no envolvimento de todos os atores sociais para se busque a
transformação do aluno e, por conseguinte, a promoção da cultura da paz. Pois a
escola em tese deveria ser o espaço onde alunos, professores e coordenação escolar
juntamente com a comunidade teriam por finalidade não apenas a transformação do
aspecto cógnito, mas a transformação do homem enquanto cidadãos responsáveis e
conscientes para com o exercício da cidadania, imbuídos de valores sociais, éticos e
morais em busca de uma sociedade justa e igualitária. Entretanto como a cada dia
violência vem crescendo no espaço educacional, a escola se vê em crise de identida-
de, sendo obrigada a conviver com a cultura do medo do medo e da insegurança
devido aos altos índices de criminalidades.
Palavras-chave: Cultura da Paz. Diálogo. Justiça Restaurativa. Violência.

Abstract
This article was built aims to reduce or even eliminate the violence of the school
through the restorative justice as an alternative approach to conflict resolution
founded on dialogue, shared the blame, the repair of damage and the involvement
of all social actors to seeks to transform the student and therefore, promoting the
culture of peace. For the school in theory should be the place where students,
teachers and school coordination with the community would have intended not only
to transform the appearance Cognito, but the transformation of man as responsible
citizens and conscientious toward citizenship, imbued with social values, ethical and
moral in search of a just and egalitarian society. But as each day has increased vio-
lence in educational space, the school is seen in identity crisis, being forced to live
with the fear of the culture of fear and insecurity due to high rates of criminalities.
Keywords: Culture of Peace. Dialogue. Restorative Justice. Violence.
360
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade a redução da vio-
lência no ambiente escolar através da justiça restaurativa en-
quanto política preventiva. Pois, na atual conjectura social a
violência vem assumindo dimensões cada vez maiores, tor-
nando-se cada vez mais presente na sociedade.
Entendida como fenômeno social, a violência é caracteri-
zada desde uma agressão seja ela física ou verbal a uma sim-
ples conduta omissiva, manifestando-se de diversas maneiras,
tais como: torturas, discriminação de gênero, de raça e dogmas
religiosos, violência sexual, entre outros.
Diante desse cenário, o ambiente escolar, espaço garan-
tidor do ensino e aprendizagem, da liberdade de aprender, en-
sinar, pesquisar e divulgar a cultura, espaço propício para a
realização da arte, das práticas desportivas e do teatro, mas
principalmente, espaço da transformação social do indivíduo,
sente-se obrigado a conviver com as mais diversas práticas de
violência praticadas pelos atores da comunidade escolar.
Nesse contexto, o artigo em questão pretende oferecer a
sociedade em geral, principalmente a escola que não podemos
perder o respeito entre os homens, deixando de lado o respeito
à liberdade e o apreço à tolerância. Dessa maneira, o objetivo
da escola não deve se resumir meramente em formar cidadãos
aptos para atender ao mercado trabalho, deixando de lado va-
lores calcados em ensinamentos éticos, pois ela é parte inte-
grante do contexto histórico, social, político e econômico.
Nessa linha de raciocínio entender o ambiente escolar
como uma ferramenta propícia para a cultura da paz exigirá
muito mais que normas de comportamentos baseadas em de-
cisões unilaterais e autoritárias tomadas unicamente pela pró-
pria direção escolar, mas meios alternativos de solução de con-
flitos. Dessa forma assim como a sociedade evolui e se trans-
forma a escola também se transforma sendo necessária uma
constante adaptação diante das constantes transformações do
homem e da sociedade.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
361
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

A violência é um desafio a ser superado pelas instituições


de ensino, haja vista vários professores ficam sem saber o que
fazer e como agir para resolver e prevenir os múltiplos conflitos
que surgem no cotidiano escolar.
Com base nessas reflexões, o objetivo deste trabalho é
apresentar uma política de enfrentamento no combate à pre-
venção da violência no contexto escolar através da justiça res-
taurativa baseada numa linguagem não violenta, de modo a
propiciar ao práticas educativas que favoreçam a interação
social dos alunos, professores e coordenação em geral, bem
como da própria comunidade fundamentado em um compro-
misso ético a fim de que seja eliminada ou diminuída a violên-
cia escolar.

ENTENDENDO A VIOLÊNCIA
Observa-se atualmente o aumento progressivo da violên-
cia no espaço escolar. Diante dessa realidade, pergunta-se: o
que é violência? Quais os tipos mais comuns de violência pra-
ticadas na escola? Quais os fatores que contribuem para o au-
mento da violência na escola? Que providências devem ser
adotadas?
A violência é um fenômeno social que acontece em todo o
mundo. É possível vê-la, sentir, praticar, sofrê-la, e tam-
bém não percebê-la, pois a sujeição do indivíduo ou a fal-
ta de autonomia do sujeito, o coloca dentro desse quadro
avassalador.1

O pensamento acima é sedutor e nos convida a fazermos


uma reflexão de que a palavra violência não se resume mera-
mente a um ato violento que juridicamente ocasiona em uso da
força. Além do mais, é importante ressaltar que a violência não
é caracterizada unicamente por uma ação agressiva, seja ela

1
COSTA, Marli Marlene Moraes da; LEAL, Monia Clarissa Hennig. Direi-
tos sociais e políticas públicas. Desafios contemporâneos. Santa Cruz do
Su:. Edunisc, 2012. p. 07

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
362
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

verbal ou física. Nesse contexto é importante frisar que muitas


vezes é justamente uma conduta omissiva que ocasiona a vio-
lência, pois quando um professor percebe que a criança ou
adolescente é maltratada pelos pais ou cuidadores e não os
denuncia, esta conduta é passível de punição, visto que de
acordo com o art.18 ECA “é dever de todos velar pela dignida-
de da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer
tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor”.
Dessa forma, acredita-se que a violência enquanto fenô-
meno social é um fator característico da exclusão social, uma
vez que diversas crianças e adolescentes de todo Brasil, víti-
mas da violência doméstica, abuso e exploração sexual, dis-
criminação, negligência, maus-tratos, castigos corporais, entre
outros, acreditam ter encontrado nas ruas, mais precisamente
nas drogas e na prostituição uma maneira de fugirem da vio-
lência em que eram submetidas. Ou seja, uma pseudo solução
para continuarem sobrevivendo no meio social. O que estas
crianças e adolescentes nos pedem, ainda que não expressem
verbalmente é que acreditemos nelas, em seus medos, suas
contradições e certezas.
Sendo assim, pode-se afirmar que as consequências dos
sonhos usurpados são fortes argumentos para a crescente on-
da de criminalidade, basta citarmos as formações de gangs e
da organização do poder paralelo nas favelas, morros e bairros
periféricos.
Nesse diapasão retomaremos o conceito acima citado,
pois se torna perceptível em relação ao vocábulo violência as
expressões linguísticas vê-la, sentir, praticar, sofrê-la. No en-
tanto, podemos não percebê-la quando utilizamos formas im-
positivas e autoritárias em nossos discursos, invertendo as
palavras autoridade e autoritarismo no ambiente escolar como
forma de manutenção da ordem, visto que a linguagem, nesse
contexto, é instrumento de poder a serviço da dominação.
Pode-se caracterizar ainda a violência como sendo um ato
indisciplinar, ou seja, contrário a disciplina acarretando em

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
363
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

desordem, celeuma, perturbação. De acordo com Camacho2, “a


violência é a qualidade daquilo ou daquele que é violento, isto
é, ação e efeito de violentar outrem ou violentar-se”. O violen-
to, por sua vez, é aquele que está fora do seu natural estado,
situação ou modo; executado com força, ímpeto ou brutalidade;
ou que o faz contra o gosto ou a sua própria vontade.
Nesse cenário vale apontar que, segundo Tigre3, “a vio-
lência é portanto um comportamento deliberado que pode cau-
sar danos físicos ou psíquicos ao próximo”. É importante ter
em conta que, para além da agressão física, a violência pode
ser emocional através de ofensas ou ameaças. Como tal, a vio-
lência pode causar tanto sequelas físicas como psicológica.
Na esteira desse raciocínio vale destacar que as princi-
pais ações violentas que aparecem frequentemente no ambien-
te escolar sao as agressões verbais que assumem uma nova
configuração na modernidade denominada de bullying. Embo-
ra as agressões físicas, sobretudo de brigas entre os meninos,
mas também entre meninas venham tomando dimensões
alarmantes.
Vale mencionar que o espaço escolar deve promover não
apenas o aspecto cognitivo do aluno, mas sobretudo um ambi-
ente saudável e equilibrado onde seja importante para o mer-
cado de trabalho um homem competente intelectualmente,
mas também crítico e reflexivo. A escola precisa repensar suas
ações pedagógicas, reestruturando suas ações enquanto ga-
rantidora de direitos/deveres de cidadania. Para tanto é preci-
so participação dos atores sociais diretamente envolvidos e
interessados como alunos, professores, coordenação pedagó-
gica, direção, funcionários, os pais, além da participação ativa
da sociedade civil mobilizada em busca de compromisso e
(re)inserção social.
2
CAMACHO, L. M. Y. Violência e indisciplina nas práticas escolares de
adolescentes. Um estudo das realidades de duas escolas semelhantes e
diferentes entre si. Tese (doutorado). Faculdade de Educação da USP,
São Paulo, 2000. p.57
3
TIGRE, Mª das Graças do E. S. Violência na escola: análise da influência
das mudanças socioculturais. In: Anais da 26ª Reunião Anual da An-
ped. Caxambu, 2003. p.18

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
364
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

Pretende-se ter uma escola capaz de trabalhar um currí-


culo significativo, para que o ensino e a aprendizagem de fato
se efetivem, para tanto é de suma importância a participação
da comunidade para que se consiga concretizar uma proposta
de cunho pedagógico-político alicerçada a uma pedagogia crí-
tica, reflexiva e consciente capaz de estimular o discente a
pensar criticamente sobre a realidade social, política e históri-
ca frente ao mundo globalizado.
Numa sociedade justa, igualitária e democrática de direi-
tos é de suma importância que a escola possa assumir uma
postura pedagógica comprometida com as mudanças de com-
portamentos, comportamentos estes baseados em uma condu-
ta ética e moral, oferecendo ao alunado, sem distinção de clas-
se social, raça, religião, orientação sexual, sem distinção ainda
de padrões estetizantes, bairro, rua ou comunidade a capaci-
dade de agir, refletir e atuar sobre a realidade social.
Nas palavras de Paulo Freire4: “a escola deve ser um lu-
gar de trabalho, de ensino, de aprendizagem. Um lugar em que
a convivência permita estar continuamente se superando, por-
que a escola e o espaço privilegiado para pensar”.
Outro passo importante é reconhecer a presença do opri-
mido e do opressor no cenário escolar para que se possa traba-
lhar em coletividade visando à libertação. Assim sendo, não se
pode criar perfis para que se aponte quem são os proliferado-
res da violência, visto que em diversas situações os papeis de
vitima e opressor são confundidos. Não pretendo assim criar
paradigmas, ao afirmar, por exemplo, que os opressores são
em sua maioria homens, oriundos de periferia, que trajam cal-
ças folgadas, usam bonés com sua frente voltada para trás e
sobre o pescoço cordões de aço, além de portadores de uma
linguagem cheia de gírias e códigos.
Este não é o objetivo deste trabalho, uma vez que a pró-
pria sociedade já convencionou padrões estetizantes comu-
mente aceitos, tornando bonito o cidadão ainda que portador
dos atributos descritos acima que tenha fama e dinheiro.
4
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 5. ed. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra. 1975. p.30
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
365
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

Dessa maneira, este trabalho convida a sociedade em ge-


ral a refletir sobre o fenômeno da violência na comunidade es-
colar, não para que encontremos os culpados, mas para repen-
sarmos na dupla vitimização das crianças e adolescentes, em
busca da restauração psicológica, emocional, social e afetiva
da vítima, mas também do ofensor, através da justiça restaura-
tiva tomando por base o diálogo.
Nesse contexto, Guimarães5 observa que, entre os fatores
que contribuem para o aumento da violência na escola:
As regras do mundo da rua se intrometem na vida esco-
lar de forma direta, não mais como resultado de esforços
de adaptação à cultura do aluno, mas em função da ne-
cessidade de buscar, nas regras de convivência com o
meio imediato, sua própria condição de sobrevivência.

Para Candau, Lucinda e Nascimento6:


Quando a escola incorpora na ação dos sujeitos elemen-
tos da cultura da violência, cultura essa que se desenvol-
ve em articulação com o crescimento das ações violentas
na sociedade: Uma cultura do medo, da desconfiança, da
competitividade, da insegurança, da representação do
outro como inimigo, particularmente se pertence a um di-
ferente universo social e cultural, permeia as relações in-
terpessoais e sociais cada vez com maior força, especi-
almente nas grandes cidades.

Em conformidade com as ideias de Guimarães, verifica-se


frequentemente que se tornou comum os jovens agirem com
atos violência como forma de demonstrar um poder hierarqui-
zado, ou seja, como representatividade do discurso enquanto
instrumento de poder e dominação, sendo que o outro ame-
drontado tende quase sempre não apenas otimir condutas ina-
propriadas que o cerca, mas também omitir a si mesmo como

5
GUIMARÃES, Eloísa. Escola, galeras e narcotráfico. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ, 1998. p.133
6
CANDAU, Vera Mª; LUCINDA, Mª da Consolação; NASCIMENTO, Mª
das Graças. Escola e violência. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 25

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
366
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

forma de submissão devido o aumento da cultura do medo, da


desconfiança, da seletividade e da competitividade que vê o
outro ora como inimigo, ora como protetor.
Acredita-se que não existam medidas prontas a serem
tomadas, uma vez que se deve analisar cada caso em sua par-
ticularidade, daí a importância de efetiva implementação de
políticas públicas eficientes e comprometidas em transformar
ou pelo menos amenizar a proliferação da violência na escola.
Diante de tal conjuntura, torna-se fundamental a recons-
trução do tecido social em rede, pelo meio da inserção do
princípio da solidariedade no espaço publico, a partir de
uma redefinição do papel social da escola, da família e do
Estado, tendo como objetivo a consolidação da gestão
social como processo solidário de mecanismo de integra-
ção e cooperação social.7

Seguindo o posicionamento ilustrado acima é fundamen-


tal para o desenvolvimento da escola preservar formas de ci-
dadania baseadas no caráter democrático, vinculando direitos
e deveres do discente a uma participação ativa nas tomadas
de decisões para melhoria de uma convivência harmônica.
Além do mais, devemos reconhecer no outro a sua complexi-
dade, valorizando a sua diversidade para que consigamos vi-
ver de maneira solidária. É abandonando nossas perspectivas
egocêntricas que conseguiremos enxergar no “estranho” sua
importância social.
Acredita-se que a escola não deve tomar decisões basea-
das unicamente na hierarquia como forma de controle e de re-
presentação do poder. Pois, enrijecendo suas decisões sem a
participação da comunidade e dos alunos, principalmente na
aplicabilidade das mesmas regras para todas as situações há
uma desestruturação do coletivo, visto que se quebra o vínculo
social.

7
COSTA, Marli Marlene Moraes da; LEAL, Monia Clarissa Hennig. Direi-
tos sociais e políticas publicas. Desafios contemporâneos. Santa Cruz
do Sul:. Edunisc, 2012. p. 11
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367
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

A SISTEMATIZAÇÃO DA JR NO CONTEXTO BRASILEIRO


O Estado contemporâneo vive atualmente uma crise de
legitimidade devido a uma enorme quantidade de demandas.
Nesse contexto, surge à necessidade de implementação de
políticas públicas, além da participação dos atores sociais que
fomentem a necessidade de superação ante essa crise.
Esta crise assola diretamente o poder judiciário, visto que
a cada dia surgem mais processos para serem resolvidos oca-
sionando diretamente a morosidade da prestação da tutela
jurisdicional, além de que no campo penal os presídios encon-
tram-se superlotados. Na esteira desse raciocínio, vale menci-
onar que o movimento de acesso à justiça não é um problema
vivenciados apenas pelos brasileiros, mas em escala global.
Sendo assim, na busca de facilitar o acesso a uma ordem juri-
dicamente democrática é que surgiu o movimento da justiça
restaurativa enquanto método alternativo de solução de conflito.
Este movimento tem escopo na década de 90 no Brasil,
todavia vale ressaltar que as práticas restaurativas já existiam
há muito tempo, mas somente a partir dessa década que a te-
mática ganha repercussão social. A justiça restaurativa a prin-
cípio começou como uma tentativa de repensar as necessida-
des que o crime gera e, ainda, seu papel inerente à lesão, am-
pliando através dos círculos restaurativos a participação direta
da vítima, do ofensor e da comunidade, através do diálogo.
Apesar de não haver legislação específica regulando a
justiça restaurativa, o Poder Judiciário vem se utilizando cada
vez mais desta abordagem como meio alternativo de resolu-
ções de conflito em que pese o sucesso de alguns desses pro-
jetos em crimes de menor potencial ofensivo.
Vale ressaltar que justiça restaurativa não é mediação, is-
to porque a primeira baseia-se no encontro facilitado na vítima
e do ofensor e, possivelmente, a comunidade, todavia nem
sempre o encontro entre ofendido e ofensor é salutar, ou seja,
proveitoso. Além do mais é muito importante para o projeto
restaurativo quando o ofensor não foi pego e, sobretudo, quan-
do nenhuma das partes se indispõe para participar do encon-

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
368
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

tro. Mais uma coisa é certa as práticas restaurativas não se


limitam ao encontro.
Na mediação presume-se que as partes devem agir no
mesmo nível ético, sendo que é de suma importância que as
partes compartilhem responsabilidades. Nas palavras de Car-
los Eduardo de Vasconcelos8:
A Mediação é um meio alternativo de solução de contro-
vérsias, litígios e impasses, onde um terceiro, neu-
tro/imparcial, de confiança das partes (pessoas físicas ou
jurídicas), por elas livre e voluntariamente escolhido, in-
tervém entre elas (partes) agindo como um ‘facilitador’,
um catalisador, que usando de habilidade e arte, leva as
partes a encontrarem a solução para as suas pendências.
Portanto, o Mediador não decide; quem decide são as
partes. O Mediador utilizando habilidade e as técnicas da
‘arte de mediar’, leva as partes a decidirem.

Da passagem acima se observa que o mediador é o facili-


tador da situação. Ou seja, é um profissional que possui uma
formação no campo da mediação, visando um bom diálogo en-
tre os envolvidos. O mediador é escolhido pelas partes e deve
ser imparcial. Para Howard Zehr (2012), a linguagem neutra
ponto característico da mediação às vezes configura-se um
insulto em determinadas situações.
A justiça restaurativa também se difere da justiça crimi-
nal, uma vez que para a primeira o crime é uma violação de
pessoas e de relacionamentos, sendo que as violações geram
uma obrigação. Faz-se necessário ressaltar que o envolvimento
da vítima, ofensor e comunidade tem como fundamento a co-
municação não-violenta, sendo o foco central as necessidades
da vítima e, por conseguinte, a responsabilidade do ofensor em
reparar o dano. Sendo proveitoso o ofensor admitir certo grau
de responsabilidade, reconhecendo-se como autor do dano.
Na área penal o crime é sempre uma violação da lei e do
Estado, gerando, por conseguinte, em culpa. A justiça exige
8
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e praticas
testaurativas. São Paulo: método, 2008. p. 89.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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369
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

que o Estado determine a culpa e apresente punição. O foco


central aqui é no ofensor.
Ainda que a JR reconheça a importância de autoridades
externas ao processo, ocorrendo em algumas situações deci-
sões cogentes, dar-se-á sempre que possível preferência para
um processo colaborativo e inclusivo através de decisões al-
cançadas consensualmente. Outras indagações que merecem
destaque é que as possíveis perguntas na justiça criminal são:
que leis foram infringidas? Quem fez isso? O que o ofensor me-
rece? Ao passo que na JR parte-se do seguinte pressuposto,
Quem sofreu os danos? Quais suas necessidades? De quem é a
obrigação de suprir os danos?
Nas palavras de Howard Zehr9:
A JR é um processo para envolver, tanto quanto possível,
todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa,
num processo que coletivamente identifica e trata os da-
nos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a
fim de promover o restabelecimento das pessoas e endi-
reitar as coisas, na medida do possível.

Assim é suma importância para a JR por as decisões em


mãos daqueles que foram afetados, fazendo a justiça mais jus-
ta e democrática em meio a um processo curativo e transfor-
mador, além de tentar minimizar futuras ofensas.

O AMBIENTE ESCOLAR À LUZ DA JR ENQUANTO POLÍTICA DE


PREVENÇÃO A VIOLÊNCIA: IMPORTÂNCIA DA LEI DE DIRETRIZES E
BASE 9394/96
O Estado enquanto garantidor da educação básica não
pode eximir-se do cumprimento de sua responsabilidade no
que tange oferta de escolas públicas (sejam elas estaduais ou
municipais), visto que do contrário seria contribuir para o au-
mento direto do analfabetismo, ensejando em desemprego,
fome, miséria e violência.

9
ZEHR, Howard. Teoria e prática: justiça restaurativa. São Paulo: Palas
Athena, 2012.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
370
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

Deve ser respeitada às condições mínimas para o direito


a educação prevista pela Constituição Federal de 1988, estabe-
lecendo objetivos e diretrizes educacionais, visto que todo ci-
dadão tem a direito à educação, cabendo à família, à sociedade
e ao Estado promovê-la e incentivá-la. A efetivação do direito
fundamental à educação é um instrumento de transformação
social essencial à vida digna.
Responsável pela transformação social do aluno a escola
deve sempre se basear no princípio da vinculação entre a edu-
cação escolar, o trabalho e as práticas sociais previstas no
art.3 da lei 9394/96. Tomando por base a ideia de que o pleno
exercício de uma prática social serve como instrumento para o
exercício da cidadania, a escola em conjunto com a comunida-
de e o próprio Estado deve promover meios para que o aluno,
excluído das relações sociais sinta-se capaz de ser um cidadão
ativo, crítico, reflexivo e consciente de seus direitos e obriga-
ções.
Na visão de Fábio de S. Nunes da Silva10:
Numa concepção jurídica, torna-se passível de conceitu-
armos educação como um direito social público subjetivo,
devendo ser materializado através de políticas sociais
básicas, porquanto indiscutivelmente relacionado a fun-
damentos constitucionais de nossa República, bem como
se relaciona aos objetivos primordiais e permanentes de
nosso Estado, em especial, quando buscamos a necessá-
ria erradicação da exclusão social imposta aos brasileiros
em decorrência de todo um período histórico de opressão
exercido pelos dominantes dos fatores reais de poder, ga-
rantindo, assim, a formação de um país livre, justo e soli-
dário.

O trabalho em tela foi construído dentro da linha de pes-


quisa de políticas públicas de inclusão social, direcionando

10
SILVA, Fábio de Sousa Nunes da. Análise crítica quanto efetivação do
direito fundamental à educação no Brasil como instrumento de trans-
formação social. Disponível em: <http://www.lfg.com.br >. Acesso em:
24 jun. 2008.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
371
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

seus estudos para o Direito, Estado e Sociedade, sugerindo-


nos uma reflexão acerca da violência enquanto fenômeno soci-
al, atingindo dimensões outrora inalcançáveis, derrubando mu-
ros intransponíveis e chegando à escola.
Nesse contexto, torna-se importante a LDB 9394/96 no
sentido de garantir ao ambiente escolar as diretrizes, direitos e
deveres do aluno na promoção da cultura da paz. De acordo
com o art. 2º da referida lei temos:
A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade hu-
mana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.

Dessa maneira, fica claro que o Estado juntamente com a


família é incumbido pelo pleno desenvolvimento intelectual e
para o livre exercício da cidadania e do trabalho do alunado.
Isto em observância dos princípios da dignidade e da solidari-
edade. Pois, quando a escola visa apenas à capacidade inte-
lectual, o aluno perde valores pautados em princípios éticos e
morais, baseando-se única e exclusivamente numa concepção
egocêntrica e individualista.
Posto isso é que o ensino e a aprendizagem devem ter
como foco os seguintes princípios:
Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios:
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a
cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

A escola deve ter como pressuposto os princípios acima


citados para a garantia da efetivação da transformação social
do discente. Quando renegados tais princípios perde-se o res-
peito entre os atores da comunidade escolar, haja vista como já
exposto no corpo trabalho a violência é um fenômeno social

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
372
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

que ocorre em larga escala e em muitos casos são trazidos do


ambiente externo e incorporados na escola.
Ainda de acordo com a LDB em seu art. 12 os estabeleci-
mentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu
sistema de ensino, terão a incumbência de:
VI - articular-se com as famílias e a comunidade, criando
processos de integração da sociedade com a escola;

O artigo anterior permite que analisemos a relação entre


escola e justiça restaurativa, visto que a escola não é imper-
meável aos fenômenos sociais, de forma que a violência, inde-
pendente de suas causas atingem diretamente os atores en-
volvidos na prática docente educativa, prejudicando a quali-
dade do ensino, transformando o ambiente escolar espaço de
indisciplina, lutas e guerras.
De acordo com Zehr11, “a violência em meio escolar recla-
ma forma eficaz de enfrentamento, para além de experiências
individuais e fragmentadas, mas como objeto de princípios e
diretrizes traçadas em políticas públicas”. Nesse sentido o
presente estudo ao perceber de forma significativa o aumento
da violência no cenário escolar, sugere como meio preventivo a
utilização da chamada Justiça Restaurativa como esforço al-
ternativo de resolução conflitos.
O processo restaurativo envolve diversos atores, tais co-
mo ofendido, ofensor e a até mesmo a comunidade. Neste caso,
além dos alunos e dos respectivos responsáveis envolvidos no
conflito, a direção escolar e terceiros interessados na resolução
do conflito litígio usam o diálogo na busca da reconstrução das
relações sociais e no restabelecimento da cultura da paz.
Na esteira desse raciocínio, o Projeto Justiça para o Sécu-
lo XXI aplica a justiça restaurativa ao adolescente em conflito
aludindo o seguinte:

11
ZEHR, Howard. Teoria e prática: justiça restaurativa. São Paulo: Palas
Athena, 2012.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
373
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

A Justiça Restaurativa é um novo modelo de Justiça vol-


tado para as relações prejudicadas por situações de vio-
lência. Valoriza a autonomia e o diálogo, criando oportu-
nidades para que as pessoas envolvidas no conflito (au-
tor e receptor do fato, familiares e comunidade) possam
conversar e entender a causa real do conflito, a fim de
restaurar a harmonia e o equilíbrio entre todos. A ética
restaurativa é de inclusão e de responsabilidade social e
promove o conceito de responsabilidade ativa. É essenci-
al à aprendizagem da democracia participativa, ao forta-
lecer indivíduos e comunidades para que assumam o pa-
pel de pacificar seus próprios conflitos e interromper as
cadeias de reverberação da violência.12

Essa abordagem procura pacificar o clima pesado entre


as partes, restabelecendo o equilíbrio e a paz social através da
comunicação, priorizando as necessidades da vítima e da co-
munidade com a necessidade de reintegração do agressor à
sociedade.
Diante de tudo isto, observa-se que objeto de trabalho da
justiça restaurativa não é o delito, mas sim o conflito conse-
quente ao delito. Quem direciona o conflito não é a pena, mas a
oportunidade de a vítima expor seus sentimentos em relação
ao dano sofrido, momento de perguntas e questionamentos e
de dizer o impacto que o trauma causou em sua vida.
Acreditamos que a efetiva inclusão de políticas públicas
educacionais envolvendo os diversos atores sociais do contex-
to escolar, além do Estado e sociedade civil mobilizada como
forma eficaz de diminuição da violência, permitindo aos alunos
além de um ensino de qualidade, um ensino alicerçado na
transformação social e no comprometimento de valores éticos
e morais, bem como no respeito ao próximo.

12
SANTANA, Clovis da Silva. Justiça Restaurativa na Escola: reflexos
sobre a prevenção da violência e indisciplina grave e na promoção da
cultura de paz . 2011. Dissertação (Mestrado em Direito) – UNESP, 2011.
Disponível em: <http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/
bpp/33004129044P6/2011/santana_cs_me_prud.pdf>. Acesso em: 28
mar. 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
374
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

Nesse diapasão, a justiça restaurativa oferece a escola o


diálogo para que se restabeleça o clima de paz. Não procuran-
do apontar quem foi o culpado pela infração, mas em saber
como resolver o problema. As medidas adotadas não devem
basear-se unicamente em um caráter punitivo, mas verificar
qual a proporção atingida pelo ato infracional. Deve-se questi-
onar o seguinte: você errou o que você pode fazer para reparar,
ou até mesmo diminuir seu erro.
Dessa forma, o aluno deve entender que seu erro trouxe
consequências negativas para a comunidade, para a escola e,
principalmente, para a vítima. Portanto, deve ele tomar consci-
ência de seu feito, livremente sentir-se culpado e precisamente
reparar o dano cometido. E um ponto importante seria o pedi-
do de desculpas.
A vítima poderá aceitar ou não o encontro facilitado com
o ofensor, bem como o próprio pedido de desculpas. Sendo im-
portante além do acompanhamento psicossocial a vítima ao
ofensor, procurar entender as necessidades da vítima. Nesse
cenário a escola deve estar preparada para lidar com conflitos
futuros e um ponto preponderante é a horizontalidade e a in-
clusão e voz de todos. Pois não há figura do mediador, mas dos
atores sociais envolvidos e interessados na promoção da paz.
Outro ponto interessante é a participação direta e indire-
ta dos envolvidos no conflito para que haja uma responsabili-
zação coletiva focada na reparação do dano e no atendimento
das necessidades de todos. É importante durante construção
de projeto político pedagógico um plano de ação interessado
na melhoria do ensino e aprendizagem, bem como na prática
docente educativa.
A justiça restaurativa fundamentada nos seguintes prin-
cípios empoderamento, participação, autonomia, respeito,
busca de sentido e de pertencimento na responsabilização pe-
los danos causados, mas também na satisfação das necessi-
dades evidenciadas a partir da situação de conflito tem por
finalidade levar toda a comunidade escolar a fazer a reflexão a
respeito de como devemos aprender a fazer, a conhecer, a ser e
a viver juntos a fim de que diminuamos ou eliminemos a vio-
lência no ambiente escolar.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
375
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da construção do texto tivemos como finalidade
oferecer ao ambiente escolar uma abordagem baseada na valo-
rização do diálogo e do respeito entre os atores sociais que
compunha a estrutura escolar.
Dessa forma a utilizamos a justiça restaurativa como polí-
tica preventiva no combate a violência. Para tanto, o trabalho
em questão fundamentou-se em uma metodologia que visa o
restabelecimento da cultura paz na escola através de procedi-
mentos que visam tão somente à diminuição ou até mesmo a
eliminação da violência no ambiente escolar.
Embora tenhamos a consciência de que novas investiga-
ções precisam ser feitas e de que novos métodos precisam ser
utilizados como mecanismo de enfretamento a violência acre-
dita-se na valorização de todos aqueles envolvidos direta e
indiretamente na tessitura escolar. Pois, o engajamento da
comunidade e da sociedade civil são peças fundamentais para
o desenvolvimento das práticas de justiça mais democrática e
igualitária.
O que se propõe neste trabalho acadêmico é uma abor-
dagem diferenciada de implantação da justiça restaurativa a
fim de dirimir a violência na comunidade escolar. Para tanto é
importante que sejam promovidos diversos debates entre os
atores sociais ligados a escola, com participação ativa da soci-
edade civil mobilizada.
Faz-se necessário ressaltar que a justiça restaurativa em-
bora seja um instituto de acesso à justiça presente na esfera
criminal, onde tem como principal finalidade o encontro facili-
tado das partes, o uso do diálogo, a reparação do dano e aten-
ção especial a vítima. Essa abordagem vem tomando dimensão
cada vez maior, sendo utilizada na comunidade e na escola,
apresentando como uma de suas finalidades a diminuição sis-
temática da criminalidade.
Através deste instrumento pretende-se promover a co-
municação entre os indivíduos utilizando a comunicação, as-
sim sendo é importante mencionar que não apenas as pessoas
envolvidas no local da infração penal, mas todos os integrantes
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
376
Fernando Oliveira Piedade & Cristiano Cuoso Marconatto

derredores são alvo dessa política que visa o exercício da ci-


dadania e da inclusão social.

REFERÊNCIAS
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de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002.
______. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional: nº 9394/96. Brasília, 1996.
CAMACHO, L. M. Y. Violência e indisciplina nas práticas escolares
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lhantes e diferentes entre si. Tese (doutorado). Faculdade de Educa-
ção da USP, São Paulo, 2000.
CANDAU, Vera Mª; LUCINDA, Mª da Consolação; NASCIMENTO,
Mª das Graças. Escola e violência. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
COSTA, Marli Marlene Moraes da; LEAL, Monia Clarissa Hennig.
Direitos sociais e políticas publicas. Desafios contemporâneos.
Santa Cruz do Su:. Edunisc, 2012.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 5. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1975.
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SANTANA, Clovis da Silva. Justiça Restaurativa na Escola: reflexos
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TIGRE, Mª das Graças do E. S. Violência na escola: análise da in-
fluência das mudanças socioculturais. In: Anais da 26ª Reunião
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VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e prati-
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ZEHR, Howard. Teoria e prática: justiça restaurativa. São Paulo: Pa-
las Athena, 2012.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
O ENFRENTAMENTO DO
RACISMO AMBIENTAL EM BUSCA DA
JUSTIÇA AMBIENTAL 1

Francieli Formentini
Mestre em Desenvolvimento pela Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul. Professora do curso de direito da Universi-
dade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
(francieli.formentini@unijui.edu.br)

Resumo
O presente artigo tem como objetivo estudar a problemática ambiental atual, bem
como analisar o movimento por justiça ambiental, o qual visa permitir que os indiví-
duos discriminados ambientalmente, em face de questões econômicas, de raça ou
qualquer outra razão, possam exercer seus direitos de cidadãos, tendo atendidas
com eficiência suas necessidades socioambientais básicas, as quais se constituem
como um direito fundamental a partir da Constituição Federal de 1988. Nessa pers-
pectiva será abordada a questão do racismo ambiental e as consequências primárias
e secundárias de tal prática, que afeta grupos vulneráveis, destruindo valores e cul-
turas em prol de crescimento econômico, tecnológico e industrial. Ainda, será abor-
dada a questão do racismo ambiental no Brasil e os desafios a serem enfrentados
para a efetivação da justiça ambiental.
Palavras-chave: Conflitos Ecológicos. Justiça Ambiental. Racismo Ambiental. Desafios.

Abstract
This paper has an objective to study the environmental actual problem, as well to
analyze the movement by environmental justice, that aims to permit the people
discriminate against environmental, in face to economic issues, race or whatever
other reasons, could exercise their rights as citizens, being efficient attended their
social environmental basic necessities, which are constituted as a fundamental right
from the Federal Constitution of 1988. In this perspective it will be approached the
questions of environment racism and the primary consequences and the secondary
of that practice, that affects the vulnerable groups, destroying values and cultures in
pro of economic development, technologic and industrial. And on the top of every-
thing, it will be approached the environmental racism issue in Brazil and the chal-
lenges to be faced in effective environment justice.
Keywords: Ecological Conflicts. Environmetal Justice. Environmental Racism. Chal-
lenges.

1
Este texto é fruto da Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento,
intitulada como: Ação Civil Pública e Tutelas de Urgência como alterna-
tiva de combate às injustiças ambientais e como instrumento de prote-
ção ao meio ambiente.
378
Francieli Formentini

INTRODUÇÃO
Inúmeros problemas assolam a sociedade atual, dentre
eles os sociais, referentes à moradia, saneamento básico, edu-
cação, violência e saúde e os envolvendo o meio ambiente, o
qual deixa de ser coadjuvante para se tornar um dos temas
mais discutidos e de maior relevância no cenário atual, como
um problema a ser sanado.
No Brasil, a problemática envolvendo o meio ambiente
ganhou destaque e importância nas últimas décadas em razão
da necessidade do enfrentamento dos desafios atinentes ao
meio ambiente e em decorrência do agravamento dos conflitos
ambientais, da degradação e da insaciável utilização dos re-
cursos naturais, a qual muitas vezes ocorre de forma inade-
quada, irresponsável e predatória.
Como uma reação ao crescimento econômico, Joan Martí-
nez Alier2 assevera que o ambientalismo ou ecologismo se di-
fundiu, existindo atualmente três correntes principais perten-
centes ao movimento ambientalista, sendo elas: o culto ao sil-
vestre, o evangelho da ecoeficiência e o ecologismo dos pobres.
O culto ao silvestre3 tem como objetivo preservar e man-
ter intactos os espaços originais da natureza. Tal corrente está
pautada na adoração e amor aos ambientes naturais e em valo-
res éticos, não tendo como foco direto o crescimento econômico.
O evangelho da ecoeficiência4, segunda corrente do mo-
vimento ambientalista, direciona sua atenção para os riscos à
saúde e impactos ao ambiente, oriundos do desenvolvimento,

2
ALIER, Joan Martínez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e
linguagens de valoração. Tradução de Maurício Waldman. São Paulo:
Contexto, 2007.
3
Alier (2007, p. 22) destaca que essa corrente “surge do amor às belas
paisagens e de valores profundos, jamais para os interesses materiais. A
biologia da conservação, que se desenvolve desde 1960, fornece a base
científica que respalda essa primeira corrente ambientalista.”
4
O nome “evangelho da ecoeficiência” foi escolhido, segundo Hays (1959)
em “homenagem à descrição de Samuel Hays a respeito do “Movimento
Progressista pela Conservação” dos Estados Unidos, atuante entre os
anos de 1890 e 1920, enquanto um “evangelho da eficiência” (ALIER,
2007, p. 27).
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
379
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

incluindo-se a atividade industrial, evolução tecnológica, urba-


nização e agricultura5. Tal corrente defende que os recursos
naturais devem ser utilizados de uma boa forma para a promo-
ção do crescimento econômico a partir do desenvolvimento
sustentável.
A terceira corrente denominada por Alier6 de ecologismo
dos pobres, ecologismo popular ou movimento por justiça am-
biental, expressão que será utilizada no presente, sustenta que
em decorrência do crescimento econômico, o meio ambiente
vem sofrendo maiores impactos. Ademais, Alier destaca que
os impactos negativos decorrentes das políticas econômicas e
das inovações tecnológicas despreocupadas com a questão
ambiental atingem e ameaçam determinados grupos sociais
específicos desproporcionalmente e que o movimento por jus-
tiça ambiental está crescendo mundialmente7 em razão do au-
mento dos conflitos ecológicos distributivos decorrentes da
geração de maior quantidade de resíduos comprometendo os
elementos naturais.

CONFLITOS ECOLÓGICOS E JUSTIÇA AMBIENTAL


O primeiro acontecimento em que houve clamor por justi-
ça ambiental ocorreu no ano de 1978, no Estado de Nova York,
na cidade de Niagara Fallls, ocasião em que moradores de um
conjunto habitacional descobriram que suas residências havi-
am sido construídas em um canal aterrado com produtos quí-
micos em razão da contaminação química em Love Canal, ten-
do, após batalha pública, suas casas compradas pelo governo8.
5
ALIER, 2007, p. 26.
6
Alier (2007, p. 33) acrescenta que essa corrente também tem sido deno-
minada de “ecologismo da livelihood, do sustento, da sobrevivência hu-
mana (Gari, 2000) e, inclusive, como ecologia da libertação (Peet e
Watts, 1996)”, destacando em nota de rodapé que a expressão livelihood
em inglés significa subsistência ou ganha-pão.
7
Alier (2007) afirma que o movimento da justiça ambiental contra o “ra-
cismo ambiental” pode ser identificado nos EUA, no Brasil, na África do
Sul e no resto do mundo.
8
LEVINE, Adeline. Campanhas por justiça ambiental e cidadania: o caso
de Love Canal. In: ACSELRAD, Henri; HERCULADO, Selene; PÁDUA,

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
380
Francieli Formentini

No entanto, o termo racismo ambiental só foi utilizado no


movimento que ocorreu no Estado da Carolina do Norte, nos
Estados Unidos na década de 80, precisamente no ano de
1982, na cidade de Warren Couty, quando um grupo de indiví-
duos negros protestou contra a instalação de um aterro con-
tendo resíduos de policlorobifenilos (PCB)9 , na comunidade em
que residiam.
A partir desse fato, o movimento e a luta contra o racismo
ambiental cresceu muito se espalhando por outros estados dos
Estados Unidos bem como, em outros países desenvolvidos e
subdesenvolvidos10, a exemplo do Brasil. Alier11 destaca que os
primeiros discursos acadêmicos acerca dessa temática ocorre-
ram no início da década de 1990.
Nessa localidade, escolhida por Hump, governador da
época, para alocação dos resíduos do PCB, a população conta-
va com 16 mil habitantes, sendo 60% deles composta por indi-
víduos afro-americanos que viviam abaixo da linha de pobre-
za12. Mais tarde, foram descobertos nos EUA, outros quatro
aterros com produtos e resíduos químicos nocivos à saúde, dos
quais três desses locais estavam instalados em comunidades
de afro-americanas e latinos, a demonstrar a intencionalidade
de os aterros estarem localizados em comunidades com o
mesmo perfil.

José Augusto (Orgs.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro:


Relume Dumará: Fundação Ford, 2004.
9
“Os policlorobifenilos integram um grupo de produtos químicos larga-
mente utilizados em equipamentos elétricos como transformadores e
condensadores. No entanto, suas características de periculosidade para
a saúde humana e para o ambiente os incluem entre os Poluentes Per-
sistentes (POP) listados no Protocolo de Estocolmo em maio de 2001,
implicando a necessidade de uma estratégia de descarte adequado pro-
tegendo o meio natural e a saúde humana.” (ALIER, 2007, p. 231).
10
BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In:
ACSELRAD, Henri; HERCULADO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Orgs.).
Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Funda-
ção Ford, 2004.
11
Op. cit.
12
Op.cit.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
381
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

Para Alier justiça ambiental é o movimento contra o ra-


cismo ambiental, o qual se configura pela distribuição desigual
e nada proporcional de resquícios tóxicos e contaminados, em
comunidades dos Estados Unidos cujos habitantes são, na
maioria, afro-americanos e latinos13.
Henri Acserlrad, Selene Herculano e José Augusto Pá-
dua14 conceituam justiça ambiental como sendo o conjunto de
práticas e princípios consignados na Declaração de Princípios
da Rede Brasileira por Justiça ambienta15.
Para que a justiça ambiental seja realizada e concretiza-
da, há necessidade de que vários fatores sejam respeitados e
observados, primeiramente o processo deve iniciar na base da
estratificação social com o fortalecimento das comunidades
mais vulneráveis, para que estas empurrem a degradação am-
biental também para outros segmentos sociais16.

13
Alier (2007, p. 229) assevera que sob a rubrica de justiça ambiental o
catálogo da biblioteca da Universidade de Yale (1992-2000) relaciona as
obras ligadas “com a igualdade da proteção para todos diante de amea-
ças de cunho ambiental e à saúde, sem discriminar raça, nível de renda,
cultura ou classe.”
14
ACSELRAD, Henri; HERCULADO, Selene; PÁDUA, José Augusto (orgs.)
In: Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará:
Fundação Ford, 2004, p. 15.
15
“a) asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de
classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambi-
entais negativas de operações econômicas, de decisões políticas e de
programas federais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais
políticas; b) asseguram acesso justo e eqüitativo, direto ou indireto, aos
recursos ambientais do país; c) asseguram amplo acesso às informações
relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejei-
tos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos
democráticos e participativos na definição de políticas, planos, progra-
mas e projetos que lhe dizem respeito; d) favorecem a constituição de
sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações popu-
lares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos
de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos re-
cursos ambientais e a sustentabilidade do seu voto.” (ACSERLRAD,
HERCULANO; PÁDUA, 2004, p. 15).
16
Nesse sentido GOULD (2004, p. 78) afirma que os malefícios ambientais
devem ser conduzidos “para os segmentos superiores do sistema de es-
tratificação, movendo-a dos menos responsáveis pelo dano ecológico em
direção aos mais responsáveis”.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
382
Francieli Formentini

A contraposto, injustiça ambiental é compreendida como


o meio pelo qual as sociedades desiguais econômica e social-
mente, ou até mesmo determinados grupos sociais com baixo
poder aquisitivo, recebem maior carga dos danos e malefícios
ambientais, e consequentemente todos os demais resultados
negativos decorrentes do convívio íntimo e diário com esses
perigos ambientais, como doenças das mais diversas espécies,
fome, condições precárias de vida, dentre outros tantos males17.
Portanto, injustiça ambiental consiste em destinar uma
carga desproporcional de riscos ambientais e demais conse-
quências dos projetos desenvolvimentistas a grupos vulnerá-
veis e fragilizados, aos quais não é oferecida qualquer oportu-
nidade de optar, tampouco de manifestarem suas opiniões so-
bre os seus destinos, tendo que “engolir” as decisões tomadas
pelos governantes e pela elite dominante, pois, em decorrência
da vulnerabilidade em que se encontram não possuem condi-
ções para agirem de outra forma.
Pretende-se com esse movimento por justiça ambiental
permitir que os indivíduos discriminados ambientalmente, em
face de questões econômicas, de raça ou qualquer outra razão,
possam exercer seus direitos de cidadãos, tendo atendidas
com eficiência suas necessidades socioambientais.
Assim, o movimento por justiça ambiental é considerado
como um movimento em várias instituições, grupos, e organi-
zações comunitárias, que unem forças, compartilham conheci-
mentos e experiências pelo objetivo comum de viver em um
ambiente ecologicamente equilibrado e no qual sejam respei-
tados os direitos sociais e individuais dos cidadãos indepen-
dentemente de raça, condição social e etnia.
Especificamente no Brasil foi realizado o Colóquio Inter-
nacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania reali-
zado nos dias 24 a 27 de setembro de 2001 na cidade de Nite-
17
Conceito extraído da Declaração de princípios da Rede Brasileira de
Justiça Ambiental.
PRINCÍPIOS da Justiça Ambiental. 2001. Disponível em: <http://www.
justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=229>.Acesso
em: 24 jan. 2010.
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25 e 26 de abril de 2013
383
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

rói, Estado do Rio de Janeiro, no qual foi criada com o auxílio


de Robert Bullard e outros pesquisadores e ativistas a Rede
Brasileira de Justiça Ambiental, que agrupa diversos movi-
mentos urbanos e rurais, sindicalistas e o próprio GT contra o
Racismo Ambiental.
Está relacionada à ideia de Justiça Ambiental a visão
transdisciplinar do direito ambiental, na medida em que para a
sua compreensão e para se buscar soluções mais adequadas e
que tenham mais efetividade em casos que envolvem o meio
ambiente é preciso que diversos campos do conhecimento co-
mo a biologia, a sociologia e a bioética se conectem ao direito18.
Como uma medida de longo prazo, Kenneth Gould 19 en-
tende que através da distribuição dos malefícios ambientais
também aos aqueles que diretamente são responsáveis pela
criação e expansão dos instrumentos (indústrias, fazendas de
monoculturas, hidrelétricas para gerar energia para grandes
consumidoras, dentre outros) de aceleração dos resultados ne-
gativos ambientais, ou seja, os integrantes das elites dominan-
tes, indivíduos que tomam as decisões referentes aos grandes
investimentos em construções, grandes projetos e demais em-
preendimentos, será despertada uma conscientização.
E ao que tudo indica não está longe dessas ameaças ao
meio ambiente e à saúde coletiva atingirem de forma mais
constante essa parcela da sociedade, fazendo com que essa
comece então a se preocupar também com as consequências
de suas opções e não somente com os resultados positivos,
como tem ocorrido nas últimas décadas.

RACISMO AMBIENTAL
A preocupação do constituinte de 1988 com a existência
do direito ao meio ambiente a todos os seres humanos, inclusi-

18
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Direito ambien-
tal na sociedade de risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
19
GOULD, Kenneth A. Classe social, justiça ambiental e conflito político
In: ACSELRAD, Henri; HERCULADO, Selene; PÁDUA, José Augusto
(Orgs.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará:
Fundação Ford, 2004.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
384
Francieli Formentini

ve aqueles ainda por nascer, está nitidamente expressa no ca-


put do artigo 225 da Constituição Federal20.
Na medida em que axiologicamente o Direito Ambiental
implica numa ética e, teleologicamente, numa obrigação de
resultado, é possível identificar que sua primordial função é
proteger a natureza e os seus recursos, lutar contra a poluição
e os contra os danos ambientais, e buscar a melhoria da quali-
dade de vida e da saúde pública.
Michel Prieur21 ao buscar a finalidade do Direito Ambien-
tal lista uma série de elementos que podem ser integrados na
seguinte assertiva: o Direito Ambiental almeja suprimir ou li-
mitar o impacto das atividades humanas sobre os elementos
ou meios naturais; regulamentar as instalações e as atividades
potencialmente agressoras do meio ambiente; realizar uma
política de preservação e de gestão coletiva dos seres vivos,
dos meios e dos recursos naturais com o objetivo de garantir
um meio ambiente sadio e equilibrado aos cidadãos.
Quando o autor se refere aos cidadãos, ele engloba todos,
inclusive aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade,
que residem em periferias, em locais isolados, em grandes cen-
tros urbanos, enfim, todos os indivíduos independentemente
de qualquer característica social ou individual que possua.
Todavia, nem todos os cidadãos têm acesso a esse meio
ambiente sadio e equilibrado, pois o que se percebe no Brasil é
uma intensa limitação de acessibilidade a esse direito funda-
mental, uma vez que a gestão das cidades é precária, os inves-
timentos dos poderes públicos são limitados e inúmeras pes-
soas são excluídas de determinados espaços, nos quais tinham
acesso a uma qualidade de vida22, gerando, com isso discrimi-
nação e injustiça ambiental.

20
Art. 225. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vi-
da, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
21
PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. 5. ed. Paris: Dalloz, 2004.
22
Nesse sentido, importante mencionar os casos dos grupos de pessoas
que são retirados dos locais em que residiam para que fossem construí-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
385
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

O termo racismo é proveniente da junção dos termos “ra-


ça” e “ismo”, sendo que raça tem com origem a palavra latina
ratio, que significa espécie. Assim, racismo é uma atitude dis-
criminatória contra determinados indivíduos pertencentes a
uma determinada raça, etnia ou espécie.
Porém, a expressão racismo ambiental não está restrita
as ações que venham a causar impacto racial, não obstante
sua origem esteja vinculada a manifestação do grupo de afro-
americanos em Warren Couty, estando seu conceito vinculado
às injustiças ambientais e sociais que tratam de modo desigual
grupos étnicos vulneráveis, distribuindo uma maior carga dos
riscos e malefícios ambientais23.
Selene Herculado24 ressalta que a prática do racismo am-
biental se refere a um tipo muito específico de injustiça ambi-
ental e desigualdade, em seus mais diversos aspectos25.

das obras direcionadas ao desenvolvimento econômico e tecnológico,


como por exemplo, construções de barragens.
23
HERCULANO, Selene. Lá como cá: conflito, injustiça e racismo ambien-
tal. Disponível em: <http://www.professores.uff.br/seleneherculano/pu
blicacoes/la-comoca.pdf. 2006>. Acesso em: 20 ago. 2009.
24
“(...) a um tipo de desigualdade e de injustiça ambiental muito específi-
co: o que recai sobre suas etnias, bem como sobre todo grupo de popu-
lações ditas tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, geraizeiros, pesca-
dores, pantaneiros, caiçaras, vazanteiros, ciganos, pomeranos, comuni-
dades de terreiro, faxinais, quilombolas, etc. - que têm se defrontado
com a 'chegada do estranho', isto é, de grandes empreendimentos de-
senvolvimentistas – barragens, projetos de monocultura, carcinicultura,
maricultura, hidrovias e rodovias – que os expelem de seus territórios e
desorganizam suas culturas, seja empurrando-os para as favelas das pe-
riferias urbanas, seja forçando-os a conviver com um cotidiano de enve-
nenamento e degradação de seus ambientes de vida.” Herculado, Se-
lene. O Clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Re-
vista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v. 3,
n. 1, jan./abr. 2008, p. 16.
25
Para Bullard (2004, p. 41) racismo ambiental “é um potente fator de dis-
tribuição seletiva das pessoas no seu ambiente físico; influencia o uso
do solo, os padrões de habitação e o desenvolvimento da infra-estrutura.
Esse é especialmente o caso das favelas no Brasil, nos subúrbios da
África do Sul e dos guetos nos EUA. O racismo dá privilégios aos bran-
cos em detrimento dos negros. O racismo é ainda um importante fator
para explicar a iniqüidade social, a exploração política, o isolamento so-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
386
Francieli Formentini

O racismo ambiental apesar de estar vinculado as ques-


tões racial e étnica decorrente do nome “racismo”, não se res-
tringe à raça negra como muitos imaginam, mas também a di-
versas etnias e grupos de pessoas vulneráveis, como é o caso
dos pequenos agricultores, dos índios, pescadores, ribeirinhos,
quilombolas e outros.
Nesse sentido, Gould26 salienta que a ração é um dos in-
dicadores mais eficientes para localização de depósitos e fá-
bricas perigosos sobre o ponto de vista ambiental.
Atualmente muitos movimentos apresentam característi-
cas semelhantes às do movimento ocorrido em Warren Couty,
mas, via de regra, não são conceituados ou ao menos denomi-
nados dessa forma em razão de o termo racismo ambiental ser
relativamente recente em campos diversos do acadêmico e
fora dos Estados Unidos.
Como racismo ambiental Alier elenca o envenenamento
de trabalhadores de minas de prata com mercúrio, a questão
envolvendo as terras indígenas, dentre outras27.
O GT de Combate ao Racismo Ambiental Brasileiro foi
criado em 2005 com a missão de coletar denúncias, gerar deba-
tes, criar campanhas e estratégias de ação para lutar contra as
injustiças ambientais voltadas sobre grupos vulneráveis28. Pelo
GT já foram organizados seminários nacionais contra o racismo
ambiental, nos quais foram discutidos temas relacionados à prá-
tica de racismo ambiental, inclusive com o depoimento de ativis-
tas, representantes de movimentos e comunidades.
Como anteriormente referido, é possível constatar diversos
casos de racismo ambiental ao nosso redor, basta voltar aos

cial, a falta de saúde e bem-estar de negros seja no Brasil, na África do


Sul ou nos EUA.”
26
Nesse sentido Gould (2004, p. 69) afirma que “raça, mais que classe, é o
melhor indicador de onde fábricas e depósitos ambientalmente perigo-
sos estão localizados.”
27
Conceito extraído da Declaração de princípios da Rede Brasileira de
Justiça Ambiental. Op. cit.
28
Objetivos extraídos do site: http://racismoambiental.net.br. Acesso em:
09 jan. 2010.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
387
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

olhos aos diversos grupos vulneráveis e menos favorecidos inse-


ridos na sociedade brasileira, compondo, na verdade, uma gran-
de parte da sociedade. Os conflitos ambientais dos quais decor-
re o racismo ambiental são encontrados em todos os Estados e
na maioria das regiões brasileiras; alguns são de fácil constata-
ção, outros, porém, são mais difíceis de serem identificados.
Em Mapa de Conflitos Causados por Racismo Ambiental
no Brasil, cuja pesquisa foi realizada por Tereza Ribeiro e coor-
denada por Tania Pacheco, com levantamento inicial em junho
de 2007 em 26 estados brasileiros, muitos conflitos foram cons-
tatados29.
Especificamente no Rio Grande do Sul foram constatados
dois casos de racismo ambiental quando da realização da pes-
quisa. Um deles está relacionado aos Índios Guarani, sendo
objeto do conflito o reconhecimento e ampliação das terras dos
índios guaranis, bem como a manutenção de suas tradições
culturais. Os agressores no caso seriam o Estado e a Sociedade
como um todo, considerando que uma das insurgências desse
grupo é a degradação ambiental e a “subtração” de suas ter-
ras, as quais foram demasiadamente reduzidas pela ganância
dos “não-índios”, de modo que, seria necessária a demarcação
de suas terras.
O outro caso registrado na pesquisa acima referida se re-
fere à atividade de silvicultura30 e aos projetos de ampliação do
29
PACHECO, Tânia; RIBEIRO, Tereza. Mapa de conflitos causados por
racismo ambiental no Brasil: levantamento inicial junho de 2007. Dis-
ponível em: <http://www.fase.org.br/projetos/clientes/noar/noar/User
Files/17/File/Microsoft%20Word%20-%20MAPA_DO_RACISMO_AMBIEN
TAL_NO_BRASIL.pdf>. Acesso em: 20 out. 2009.
30
“Entende-se por silvicultura, o ato de criar e desenvolver povoamentos
florestais, satisfazendo as necessidades de mercado. A silvicultura bra-
sileira pode ser considerada uma das mais ricas em todo o planeta, ten-
do em vista a biodiversidade encontrada, as variações dos fatores edafo-
climáticos e a boa adaptação de materiais genéticos introduzidos. Entre-
tanto, todas estas vantagens podem também se manifestar como verda-
deiras armadilhas, quando o conjunto destes fatores não são devida-
mente analisados na tomada de decisão.” (SIVILCULTURA. Disponível
em: <http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./flores
tal/index.html&conteudo=/florestal/silvicultura.html>. Acesso em: 20
nov. 2009).

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
388
Francieli Formentini

agronegócio e expansão da economia do Estado do Rio Grande


do Sul.

CONSTATAÇÃO DE INJUSTIÇA AMBIENTAL E RACISMO AMBIENTAL:


DESAFIOS SOCIAIS, POLÍTICOS E JURÍDICOS
No Brasil, há grupos de pessoas que de alguma forma
tem como objetivo a busca por Justiça Ambiental, mesmo que
não utilizando essa nomenclatura ou não agregados à Rede
Brasileira de Justiça Ambiental, dentre eles o grupo dos atin-
gidos por barragens, dos extrativistas que resistem ao avanço
da exploração das florestas por fazendeiros e empresas, dentre
outros inúmeros casos31.
A organização desses grupos é necessária para o resgate
da cidadania, considerando que o Estado e as políticas públi-
cas não fornecem os elementos, tampouco as condições neces-
sárias para o exercício da cidadania pelos grupos que são víti-
mas de racismo ambiental.
A prática do racismo ambiental nada mais é do que um ca-
so de injustiça, quando determinadas comunidades e grupos
ficam sujeitos às decisões de pessoas, organizações e empresas
poderosas que em prol do desenvolvimento e do progresso eco-
nômico afastam os seus olhares das pessoas, dos indivíduos.
A justiça ambiental é, portanto, condição essencial para
que os grupos e indivíduos afetados diretamente pelo racismo
ambiental e distribuição desproporcional dos danos ambientais
resgate ou conquiste a condição de cidadão, para o que é essen-
cial a observância de direitos constitucionalmente tutelados.
Quando essa condição não for alcançada voluntariamen-
te ou por pedidos requeridos no âmbito administrativo é pos-

31
Segundo consta no site do GT de Combate ao Racismo Ambiental
(2010), dentre os grupos ativistas no combate ao racismo ambiental es-
tão os seguintes: Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental (Depar-
tamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del-
Rei; Associação Nacional de Ação Indigenista; Associação de Aritaguá;
Associação de Moradores de Porto das Caxias (vítimas do derramamen-
to de óleo da ferrovia centro Atlântica – RJ); Central Única das favelas.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
389
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

sível buscá-los judicialmente por meio de ações judiciais, ins-


trumentos disponibilizados no sistema jurídico brasileiro, os
quais inclusive foram objetos de estudo no primeiro capítulo
do presente.
Frente às situações de racismo ambiental são diversos e
complexos os desafios a serem enfrentados, principalmente no
que tange aos âmbitos social, político e jurídico.
A primeira atitude necessária é a implementação de polí-
ticas públicas, que objetivam adequar às comunidades discri-
minadas, promovendo e criando programas que afastam essas
pessoas das situações marginalizadoras e desumanas. Para
isso, importante será realizar contato direto com as comunida-
des afetadas, a fim de descobrir suas necessidades e suas
perspectivas.
No que tange aos desafios políticos, cabe a administração
pública tomar ciência da gravidade dos problemas decorrentes
do desenvolvimento tecnológico irresponsável e despreocupa-
do com os efeitos por ele provocados aos mais diversos e indi-
víduos e grupos, diretamente ou indiretamente, em menor ou
maior grau.
Na verdade, é preciso que o poder público redimensione
os seus objetivos primordiais, pois nas últimas décadas tem
demonstrado maior preocupação com o crescimento econômico
do que com a questão ambiental e grupos marginalizados e
vulneráveis que estão à mercê das decisões e atitudes adota-
das para privilegiar os interesses econômicos. Não há dúvidas
de que o progresso econômico seja importante para o desen-
volvimento do país, no entanto, há que observar que tal pro-
gresso, em muitos momentos, está sendo alcançados às custas
da parcela marginalizada da população, a qual sequer usufrui-
rá das consequências positivas alcançadas.
Nesse sentido, Acselrad32 afirma que atualmente empre-
sas e governos tem optado por ações da modernização ecoló-
gica, a qual tem como fim promover vantagens de eficiência e
ativar mercados com tecnologias denominadas como “limpas”.

32
Op. cit. p. 23.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
390
Francieli Formentini

Já no plano jurídico é preciso que os legitimados ativos a


ingressar judicialmente com medidas protetivas, tenham cons-
ciência do seu importante papel como agentes ativos na mu-
dança social, pois, os instrumentos jurídicos disponíveis, via
de regra, podem contribuir para que o cessar ou até mesmo
para evitar, no caso dos pedidos liminares, a ocorrência dos
atos e fatos geradores do racismo ambiental.
Além disso, um dos desafios a serem enfrentados é a cri-
ação de um Ministério Público especializado para trabalhar
com as questões ambientais, tendo mais poder investigativo
para evidenciar os casos de conflitos ambientais, bem como
para voltar o olhar para tais questões que não podem ser se-
cundariamente analisadas e observadas, mas sim, como obje-
tivo principal das promotorias destinadas exclusivamente a
tratar de tais questões.

CONCLUSÃO
Não é prática recente o direcionamento desigual de male-
fícios ambientais para determinados grupos vulneráveis, que
em decorrência da baixa situação econômica, bem como de
outros elementos como a questão étnica e a cor tem seus inte-
resses e direitos violados em prol de um crescimento econômi-
co e desenvolvimento tecnológico que privilegia interesses de
poucos indivíduos.
Ademais, o racismo ambiental não é prática isolada de
determinadas comunidades, mas sim se trata de conduta pra-
ticada nos mais diversos ambientes, sendo manifestada de
inúmeras formas, as quais muitas vezes são maculadas por
outros interesses.
É preciso, portanto, atenção e cuidado, para evitar a pro-
pagação dessa conduta que se enquadra como uma forma de
injustiça ambiental. Para isso, diversas ações, no âmbito jurí-
dico, social e político devem ser adotadas, no intuito de pro-
mover e efetivar a justiça ambiental, preservando os interesses
das minorias desprotegidas que, na verdade, não se tratam de
minorias mas de grande parcela da população, no intuito de
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
391
A justiça restaurativa como política de prevenção à violência na escola

resgatar a cidadania desses indivíduos, proporcionando uma


ambiente ecologicamente equilibrado em todos os seus aspec-
tos, como consagrado na Constituição Federal.

REFERÊNCIAS
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In: ACSELRAD, Henri; HERCULADO, Selene; PÁDUA, José Augusto
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
392
Francieli Formentini

PACHECO, Tania. Racismo ambiental urbano: a violência da desi-


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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A UNIVERSALIDADE DOS
DIREITOS HUMANOS E A
DIGNIDADE HUMANA : ELEMENTOS E
PERSPECTIVAS DE CIDADANIA

Francielli Silveira Fortes


Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC/RS.
(franciellifortes@hotmail.com)

Resumo
A temática deste trabalho abordará sobre a importância da universalidade dos Direi-
tos Humanos na afirmação da dignidade humana para os povos. Sendo que a expres-
são textual no reconhecimento da cidadania pelos Estados aos indivíduos, foi a partir
do marco evolucionista da Declaração Universal dos Direitos Humanos no qual, con-
solidou um parâmetro internacional para a proteção desses direitos, vez que são
frutos que se sedimentaram na evolução e nas contradições da sociedade. O presen-
te ensaio tem intuito de trazer algumas considerações acerca da influência da Decla-
ração dos Direitos Humanos, partindo do plano internacional para as positivações
dos Estados. Considerando-se para tanto, os disponíveis contributos instrumentais
jurídicos de proteção aos Direitos Humanos – analisando-se o processo de internaci-
onalização desses direitos, em que a finalidade precípua dos direitos humanos é a
proteção efetiva da dignidade da pessoa humana como valor supremo. Assim, ne-
cessário é a busca de um paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável em
termos de dignidade humana, combinando o discurso da cidadania com o discurso
social, tarefa de vezes complexa e intermitentemente incansável nessa direção;
sendo emblemático o seu reconhecimento e sua consequente positivação, pois se
trata da difícil tarefa da comunhão entre as expressões teóricas e a efetiva concreti-
zação no mundo da vida. Longe de serem conclusivos, estes são alguns elementos
que pretendem servir para motivar a discussão e o intercâmbio no diálogo acerca da
temática da universalidade dos Direitos humanos.
Palavras-chave: Cidadania – Dignidade – Direitos Humanos – Universalidade.

Abstract
The theme of this paper will address the importance of the universality of human
rights in the affirmation of human dignity for the people. Since the textual expres-
sion recognition by States citizenship to individuals, was from evolutionary land-
mark Universal Declaration of Human Rights in which consolidated a parameter for
the international protection of those rights, as they are fruits that are sedimented
in evolution and in contradictions of society. This test is intended to bring some
considerations about the influence of the Declaration of Human Rights, based on
the international level for the United affirmations. Considering both for the inputs
available legal instruments for the protection of Human Rights – analyzing the
394
Francielli Silveira Fortes

process of internationalization of these rights, in which the main purpose of human


rights is the effective protection of human dignity as a supreme value. Thus, it is
necessary to search for an ethical paradigm able to restore the logic of reasonable
in terms of human dignity, combining the discourse of citizenship in social dis-
course, and sometimes complex task intermittently tireless in that direction; being
emblematic its recognition and its consequent positivization because it is the diffi-
cult task of communion between the theoretical expressions and the effective
realization of life in the world. Far from conclusive, these are some elements who
want to serve to motivate the discussion and exchange dialogue about the theme
of the universality of human rights.
Keywords: Citizenship – Dignity – Human Rights – Universality.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A influência da Declaração dos Direitos Humanos deve
ser entendida, a partir da compreensão da pessoa humana,
enquanto sujeito de direito internacional. Sendo a partir da
criação de novas possibilidades de defesa dos direitos das
pessoas, grupos sociais, ou diante da opressão que é muitas
vezes promovida por grupos que assumem o poder do Estado
para a defesa de seus interesses das mais variadas ordens. Ou
seja, o processo de internacionalização dos direitos humanos
ganha impulso e contornos legais após a Segunda Guerra
Mundial – com acordos que visam resguardar e proteger os
direitos da pessoa humana em resposta às atrocidades come-
tidas – tendo como marco fundamental a Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948 – temática
de grande relevância que será abordada a partir de algumas
considerações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos
foi proclamada pela Assembléia Geral da ONU, está composta
de trinta artigos com as mais diversas significações e surgiu
como um ideal comum através do qual todos os povos ou na-
ções devem se pautar. Atualmente, a efetivação dos Direitos
humanos é um processo de reconhecimento das novas neces-
sidades e dos novos direitos, pois os Direitos Humanos são
conquistas históricas, mas de urgências atuais e dinâmicas da
sociedade; devendo estar pautados em patamares mínimos
que respeite a dignidade humana e o reconhecimento da cida-
dania.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
395
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

OS DIREITOS HUMANOS E SUAS CONCEPÇÕES


Muitos são os conceitos agregados aos direitos humanos
diante da história, na qual se fundamentam diante de suas
respectivas perspectivas nas quais se inserem. Dentro de uma
perspectiva jusnaturalista, os direitos humanos são direitos
naturais, inerentes à pessoa humana em qualquer tempo e lu-
gar. Pode-se dizer que, a naturalização dos direitos humanos é
algo arriscado, uma vez que dá ao grupo que detém o poder a
legitimidade de dizer o que é natural. Sendo os direitos huma-
nos históricos, e não naturais, o homem é o autor da história,
responsável pela construção do conteúdo desses direitos de
acordo com suas lutas sociais.
Considerando uma perspectiva universalista, os direitos
humanos são direitos de todas as pessoas em qualquer lugar,
presentes em tratados, pactos ou convenções, para legitimar
sua proteção. Em uma perspectiva constitucionalista: direitos
humanos são direitos reconhecidos em um determinado terri-
tório estatal, são direitos positivados nas Constituições com
status de direitos fundamentais. Suas características em ambi-
ência internacional é a universalidade, ou seja, o reconheci-
mento da indivisibilidade ocorre em qualquer perspectiva que
se estude estes direitos; são universais porque basta ser pes-
soa para ser titular desses direitos. São indivisíveis porque os
direitos civis e políticos hão de ser somados aos direitos
econômicos, sociais e culturais, compreendidos como meios
para o exercício das liberdades individuais e políticas; ou seja,
para que a pessoa possa exercer suas liberdades é necessário
que elas disponham de meios, e estes meios são os direitos
sociais e econômicos.
Uma discussão contemporânea importante diz respeito ao
relativismo cultural posto pela maioria dos autores em oposi-
ção ao universalismo, já que o culturalismo não pode ser usado
para justificar as violações aos direitos humanos. Sendo fun-
damental que a compreensão destes direitos leve em conside-
ração as complexidades de cada situação histórica, buscando
com isto um ponto de equilíbrio onde se evite que uma univer-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
396
Francielli Silveira Fortes

salização apressada e descontextualizada leve a violação de


direitos culturais com conseqüências muito graves para a vida
das pessoas.
A classificação dos direitos humanos em dimensões de
direitos é apontada por muitos como incompatível com a teoria
da indivisibilidade. Não se trata tanto de incompatibilidade,
mas de um cuidado que se deve ter em evitar uma compreen-
são bastante equivocada que esta classificação pode gerar. Se
de um lado, a classificação nos permite enxergar a cronologia
histórica de surgimento destes direitos, de outro lado pode
fazer que as pessoas compreendam estes direitos como que
estanques e atemporais.
Se os direitos individuais surgiram em primeiro lugar, no
momento em que surgiram a sua compreensão era completa-
mente diferente da que se tem hoje. Naquela época estes direi-
tos eram vistos como direitos negativos, que pediam um não
fazer do estado. As pessoas eram livres pelo simples fato do
Estado nada fazer. Esta era uma compreensão liberal comple-
tamente superada. Hoje os direitos individuais são vistos como
direitos que pedem um agir estatal ou pedem condições sócio-
econômicas para que se efetivem. Portanto os direitos de pri-
meira geração, aqueles direitos individuais, não são os mesmo
direitos de hoje. Seu conceito e sua compreensão dentro do
sistema de direitos mudaram bastante.
Conforme muitos doutrinadores os direitos humanos se
dividem em dimensões1 e no âmbito internacional são a inte-
1
Nas quais a classificação que se verifica são os de primeira dimensão, os
direitos individuais, direitos de liberdade, resultado das teorias filosófi-
cas do Iluminismo e liberais e das lutas da burguesia contra o absolu-
tismo, contra o poder arbitrário do Estado; é a afirmação dos direitos do
homem em face do Estado. São os direitos civis e políticos. Alguns auto-
res classificam os direitos individuais (civis) como de primeira geração e
os direitos políticos (o voto e a participação política) como de segunda
geração. A segunda dimensão é uma complementação aos direitos hu-
manos de primeira geração; são os direitos coletivos ou sociais, inspira-
dos pelo socialismo. O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Soci-
ais e Culturais foi o primeiro e único instrumento jurídico que conferiu a
obrigação de proteger os direitos dessa geração. A terceira dimensão
diz respeito à proteção da dignidade da pessoa humana; surgiu devido
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
397
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

gração do conjunto de normas subjetivas e adjetivas do Direito


Internacional que visam assegurar ao indivíduo, de qualquer
nacionalidade, os instrumentos e mecanismos de defesa contra
os abusos de poder de um Estado, e não apenas Estados, mas,
outras formas variadas de poder que oprimem, excluem, dis-
criminam e matam.

A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


O processo de internacionalização dos direitos humanos
consiste no reconhecimento e na proteção dos direitos huma-
nos pela ordem internacional. A tutela destes direitos não é
mais uma questão de competência exclusiva dos Estados, mas
sim, passa a ser um problema da comunidade internacional. O
processo de internacionalização desses direitos resulta na cri-
ação de sistemas de proteção internacional, em que é possível
a própria responsabilização de um Estado2.
Para Comparato3 esse processo divide-se em duas fases:
sendo que a primeira fase se inicia na metade do Séc. XIX e
perdura até a 2ª Guerra Mundial, onde houve avanços e reco-
nhecimento na seara dos direitos humanitários – Convenção de
Genebra de 1864 e de 1929, Comissão Internacional da Cruz
Vermelha de 1880 – na luta contra a escravidão – Convenção
de Bruxelas de 1890 e Liga das Nações de 1926 – e no reconhe-
cimento dos direitos dos trabalhadores – criação da Organiza-
ção Internacional do Trabalho, em 1919.
Por sua vez, a segunda fase na internacionalização dos
direitos humanos se inicia a partir de 1945, onde a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 marca o aprofunda-
mento e a definitiva internacionalização dos direitos humanos.
A partir daí afirmou-se o reconhecimento de novos direitos,

às graves atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial; e a


quarta dimensão são os biodireitos.
2
GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos: dos primórdios da humani-
dade ao Brasil. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005. p. 84.
3
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Hu-
manos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 54-57.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
398
Francielli Silveira Fortes

como os direitos dos povos e da humanidade – Pacto Interna-


cional da ONU de 1966 e Carta Africana de Direitos Humanos
de 1981 – a autodeterminação dos povos, a livre disposição de
suas riquezas e recursos naturais, o desenvolvimento econô-
mico, social e cultural, a paz e a segurança.
Os elementos de sustentação da arquitetura internacional
de proteção dos direitos humanos4 são: a Declaração Universal
de 1948; o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos
(art. 3º até o art. 21); o Pacto Internacional Sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (art.22 ao art.28). E, com a as-
sinatura da Carta das Nações Unidas, em São Francisco, em 26
de junho de 1945, a comunidade internacional nela organizada,
se comprometeu, desde então, a implementar o propósito de
promover e encorajar o respeito aos direitos humanos e liber-
dades fundamentais de todos, sem distinção de raça, sexo,
língua ou religião. Para esse fim, a Comissão dos Direitos Hu-
manos (CDH), principal órgão das Nações Unidas sobre a ma-
téria, recebeu a incumbência de elaborar uma Carta Internaci-
onal de Direitos.
O primeiro passo nesse sentido foi a preparação de uma
Declaração. Proclamada pela Assembléia Geral em 10 de de-
zembro de 1948, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos definiu, pela primeira vez em nível internacional,
como um “padrão comum de realização para todos os povos e
nações”, os direitos humanos e liberdades fundamentais – no-
ções até então difusas, tratadas apenas, de maneira não – uni-
forme, em declarações e legislações nacionais5.
A classificação dos direitos na declaração universal dos
direitos humanos6 está dividida em direitos pessoais, judiciais,
4
ALVES, José Augusto Lindgren. A Arquitetura Internacional dos Direi-
tos Humanos. São Paulo: FTD, 1997. p. 24.
5
A exceção que confirma a regra é a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem, no âmbito da OEA, que foi adotada sete meses an-
tes. Sua elaboração, contudo, foi influenciada pelos trabalhos preparató-
rios da Declaração Universal.
6
Classificação feita por Jack Donnelly In: ALVES, José Augusto Lindgren.
A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: FTD,
1997. p. 46-47. A classificação: (1) Direitos Pessoais: nas quais inclui os
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
399
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

liberdades civis, direitos de subsistência, direitos econômicos,


sociais e políticos; nos quais as críticas recebidas7 são no sen-
tido de que não tinha sentido revolucionário bradaram os soci-
alistas do leste; que direitos econômicos e sociais não são fun-
damentais – clamaram os liberais do oeste. Cada setor ideoló-
gico, filosófico, religioso e político manifestou seu particular
descontentamento8.
A mais séria discussão deu-se sobre a natureza jurídica
ou o valor jurídico da Declaração, na verdade, a Declaração, por
si só, não tem força cogente, pois que adotada através de uma
Resolução da Assembléia Geral, que nos termos do artigo 13
da Carta das Nações Unidas, possui competência para fazer
recomendações, pois nos termos do artigo 13, I, da Carta da
ONU, a Assembléia Geral tem competência para iniciar estu-
dos e fazer recomendações destinados a favorecer o pleno go-
zo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

direitos à vida, a nacionalidade, ao reconhecimento perante a lei, à pro-


teção contra tratamento ou punições cruéis, degradantes ou desumanas,
e à proteção contra a discriminação racial, étnica, sexual ou religiosa (ar-
tigos 2° a 7° e 15); (2) Direitos Judiciais: incluindo o acesso a remédios
por violações dos direitos básicos, a presunção de inocência, a garantia
de processo público e imparcial, a irretroatividade das leis penais, a pro-
teção contra a prisão, detenção ou exílio arbitrários e contra a interfe-
rência na família, no lar e na reputação (artigos 8° a 12); (3) Liberdades
Civis: especialmente as liberdades de pensamento, consciência e reli-
gião, de opinião e expressão, de movimento e residência, e de reunião e
associação pacífica (artigos 13 e de 18 a 20); (4) Direitos de subsistência:
particularmente os direitos à alimentação e a um padrão de vida ade-
quado à saúde e ao bem estar próprio e da família (artigo 25); (5) Direitos
Econômicos: incluindo principalmente os direitos ao trabalho, ao repou-
so e ao lazer, e à segurança social (artigos 22 a 26, lembra Alves que
proposital ou acidentalmente foi omitido o artigo 17 sobre o direito de
propriedade, que mais tarde acabaria excluído dos pactos); (6) Direitos
Sociais: especialmente os direitos à instrução e a participação da vida
cultural da comunidade (artigos 26 a 28); e (7) Direitos Políticos: princi-
palmente os direitos de tomar parte no governo e a eleições legítimas
com sufrágio universal e igual (artigo 21).
7
GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos: dos primórdios da humanida-
de ao Brasil. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005. p. 88-89.
8
Crítica sustentada por Almir De Oliveira In: GORCZEVSKI, Clovis. Direi-
tos humanos: dos primórdios da humanidade ao Brasil. Porto Alegre:
Imprensa Livre, 2005. p. 88-89.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
400
Francielli Silveira Fortes

Vale lembrar que a Declaração não foi aprovada nem rati-


ficada como tratado internacional pelos distintos Estados, de
acordo com seus mecanismos constitucionais, pelo qual se
obrigariam legalmente. Por isso muitos doutrinadores encaram
a Declaração como uma interpretação autorizada dos artigos
da Carta das Nações Unidas relativos aos direitos humanos, e
que teria, portanto, efeitos legais de um tratado internacional.
Para Sefton de Azevedo, ainda é possível reconhecer for-
ça cogente à Declaração, na medida em que ela se apresenta
como a explicitação dos direitos humanos a que a própria Car-
ta da ONU se refere: na medida em que se puder aceitar a co-
gência das próprias disposições da Carta da ONU sobre os di-
reitos humanos, então será possível aceitar a cogência da pró-
pria Declaração Universal enquanto extensão ou desdobra-
mento da Carta da ONU, explicitadora dos direitos humanos
consagrados em seu texto. É significativo também, mas não
vinculativo – que o texto tenha sido publicado como se fosse
uma lei no Journal Officiel da França. Conforme Lindgren j. A.
Alves, independente da posição seguida, o que se verifica na
prática é uma invocação generalizada da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, como regra dotada de jus cogens, in-
vocação esta que não tem sido contestada sequer pelos Esta-
dos mais acusados de violações de seus dispositivos.
Em suma, aqueles que defendem que a Declaração possui
força vinculante possuem fortes argumentos de que (a) a De-
claração é apenas uma explicitação dos direitos humanos pre-
vistos na Carta das Nações Unidas, ou seja, é uma extensão da
Carta; (b) a incorporação de sua idéia básica nas Constituições
nacionais; (c) sua constante invocação e referências da própria
ONU quanto a obrigação legal de todos Estados em observá-la,
sem contestações, e (d) sua constante invocação como fonte do
direito, realizada por incontáveis tribunais nacionais.
Enquanto a Declaração Universal dos Direitos do Homem
era uma declaração, sem meio de torná-la exigível, a Comissão
de Direitos Humanos iniciou ainda em 1949 a apresentação de
Pactos, a serem elaborados em forma de Convenções Interna-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
401
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

cionais9. Em 1954 a Comissão apresentou dois anteprojetos de


Pactos: um Pacto contendo os direitos civis e políticos e outro
com os direitos econômicos, sociais e culturais.

O SURGIMENTO DA TUTELA PROTETIVA DOS DIREITOS HUMANOS


A solidariedade humana exerce influência tanto dentro de
cada grupo social quanto no relacionamento externo entre os
grupos, povos e nações e entre as sucessivas gerações da his-
tória. A consciência histórica acerca do reconhecimento e tute-
la dos direitos humanos gira em torno da limitação ao poder
político, isto é, de um poder de Estado – que tutele e garanta
os direitos de seus cidadãos – e não um poder do Estado, que
atue na opressão do povo, em favor da manutenção dos deten-
tores de tal poder10.

9
GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos: dos primórdios da humani-
dade ao Brasil. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005.p.92
10
Segundo o autor, “deve-se reconhecer que a proto-história dos direitos
humanos começa nos séculos XI e X a. C., quando se institui, sob Davi, o
reino unificado de Israel, tendo como capital Jerusalém”, o que é consi-
derado “o embrião daquilo que, muitos séculos depois, passou a ser de-
signado como Estado de Direito, isto é, uma organização política em que
os governantes não criam o direito para justificar o seu poder, mas sub-
metem-se aos princípios e normas editados por uma autoridade superi-
or”. A mesma experiência dos séculos XI e X a. C. foi repetida no século
VI, a. C., com a instituição da democracia grega, onde o povo, pela pri-
meira vez na história, governou-se a si mesmo, através de instituições
de cidadania, bem como na república romana. A democracia Grega de
Clístenes (508, a. C.), posteriormente reforçada por Péricles (451, a. C.),
foi a mais evoluída que se tem notícia na época, lançando mão de meca-
nismos que permitiam a efetiva participação dos cidadãos na vida polí-
tica da polis, sendo que as principais instituições eram o Tribunal dos
Heliastas, o Conselho dos Quinhentos e a Assembléia do Povo. Dentro
de tal sistema todos os cidadãos eram chamados a participar ativamen-
te dos rumos da Cidade-Estado, constituído o sistema grego a principal
noção de democracia que se tem notícia na história da humanidade. Por
sua vez, “na república romana, a limitação do poder políticos foi alcan-
çada, não pela soberania popular ativa, mas graças à instituição de um
complexo sistema de controles recíprocos entre os diferentes órgãos po-
líticos”. Dentre as espécies de regime político reconhecidas pelos gre-
gos – monarquia, aristocracia e democracia – “o gênio inventivo romano
consistiu em combinar esses três regimes numa mesma constituição, de

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
402
Francielli Silveira Fortes

O processo de positivação dos direitos humanos deve ser


entendido sob dois aspectos: doutrinal e institucional (técnico-
jurídico). Do ponto de vista doutrinal Pérez Luño identifica que
é secular o dilema de optar entre uma justificação e esses di-
reitos oriundos de uma ordem natural e a simples adaptação
do caráter positivo e empírico de qualquer declaração de direi-
tos ao passo que do ponto de vista institucional deve ser en-
tendido como positivação das instituições jurídico-políticas11.
O processo de positivação dos direitos humanos surgiu
ainda na Idade Média, onde se encontram os primeiros docu-
mentos jurídicos nos quais, ainda de forma fragmentada e am-
bígua, aparecem reconhecidos alguns direitos fundamentais.
Desta forma, a Idade Média, identificando a passagem do sé-
culo XI ao século XVII, onde, superado o sistema de produção
feudal, volta a tomar corpo a ideia de limitação ao poder dos
governantes, como a reconstrução da noção de unidade de po-
der, marca o surgimento as primeiras manifestações, consa-
gradas nas Declarações das Cortes de Leão de 1188 e na Mag-
na Carta de 121512.

natureza mista”. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica


dos Direitos Humanos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 40-43.
11
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Dere-
cho y Constitución. 9. Ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 55. Assim, entende o
autor que “Si la lucha por el reconocimiento de la dignidad de la persona
humana puede considerarse como una constante en la evolución de la fi-
losofía jurídica y política humanista, la tendencia a la positivación de las
facultades que tal dignidad entraña se puede considerar como una in-
quietud estrechamente ligada a los planteamientos doctrinales de la hora
presente”.
12
A comunidade política medieval do Séc. XIII passou a questionar as
regras que marcavam a relação entre o Príncipe e a comunidade, bus-
cando identificar os limites dos seus direitos e quais as garantias que
possuía. Essa evolução acabou implicando o surgimento de várias fontes
escritas, notadamente destinadas a limitar o poder monárquico, entre as
quais se destaca a Magna Carta do Rei João Sem Terra de 1215. A Mag-
na Carta do Rei João Sem Terra era um contrato firmando entre o rei to-
dos os magnatas, laicos e eclesiásticos, buscando proteger os direitos
do clero, dos vassalos, mercadores e todos os homens livres da cidade
de Londres. Além disso, a Carta identifica a existência de um ordena-
mento comum. Em verdade, a maioria dos documentos constantes na
Carta simplesmente amarravam o Rei com relação a suas obrigações
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
403
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

A reflexão sobre o ordenamento político e jurídico da Ida-


de Média se torna efetivo a partir da metade do Séc. XI, quan-
do começam a surgir os ordenamentos das cidades, formando
as classes profissionais e de mercadores, superando a questão
fundiária, retornando a idéia de unidade, de centro de poder. O
povo passa a ser mais bem reconhecido com a ascensão social
dos comerciantes, em razão deste processo de mercantiliza-
ção, onde os burgos tornam-se os locais de concentração das
relações de capital e de riquezas. Esse mesmo período é mar-
cado pelo surgimento das grandes inovações de ordem técni-
ca, no setor agrícola, de navegação e jurídico-comercial.
Os séculos XVI à XVII vêm marcados, notadamente na
França, pelas guerras religiosas entre católicos e protestantes,
mas marcam também o período de declínio da ideia de Consti-
tuição do Medievo13, em face da destruição de seu caráter plu-
ral, pelo intenso poder de normatização dos soberanos, decor-
rente dos ideais absolutistas. Tendo em vista essa noção, ain-
da viva, de Constituição como ponto de equilíbrio, o povo pas-
sa a atuar como sujeito dotado originariamente de poder, pois

feudais. FIORAVANTI, Maurizio. Constitución. De la Antigüidad a


nuestros días. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta,
2001, p. 47-48. Ainda, destaca Pérez-Luño que esse pacto entre o rei e a
nobreza – frequente no regime feudal – tinha o condão de consagras os
privilégios dos senhores feudais e, do ponto de vista político, era consi-
derado na época uma involução, sendo que posteriormente tal documen-
to teve papel decisivo no desenvolvimento das liberdades públicas na
Inglaterra. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado
de Derecho y Constitución. 9ª Ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 114.
13
Sobre as Guerras Religiosas que marcaram a França no período, segun-
do Mateucci perduraram por quase meio século - de 1559-1560 até 1594,
com a entrada de Enrique IV em Paris – sendo que a complexidade do
conflito se deve notadamente ao fato de que, juntamente ao conflito reli-
gioso existe outro conflito, de natureza política. “La lógica de la lucha
política resulta con frecuencia distinta de la dinámica de las fuerzas reli-
giosas, y los distintos credos católicos y calvinistas vistos con coherencia
e intransigencia no dejaban mucho espacio a las reivindicaciones políti-
cas y constitucionales, ya que para ambas el poder del rey era de institu-
ción divina” MATEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad.
História del Constitucionalismo Moderno. Trad. Francisco Javier Ansu-
átegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p.
45.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
404
Francielli Silveira Fortes

se não é possível um rei justo, o povo está legitimado a reto-


mar um poder que era seu por origem14.
O sentimento de liberdade, enquanto mecanismo de re-
sistência à tirania, fez surgir declarações, a partir do que co-
meça a formar-se a ideia de um governo representativo – ainda
que não de todo o povo – como garantia institucional indispen-
sável das liberdades civis15. Ressalte-se que foi na Inglaterra
que essa evolução – a partir da Carta Magna de 1215 – se deu
de forma mais nítida e clara. Foram vários os documentos ela-
borados na tentativa de adaptar os textos tradicionais às no-
vas circunstâncias, podendo-se destacar entre esses documen-
tos a Petition of Rights de 1628, construída à luz do artigo 39
da Carta Magna, a lei do Habeas Corpus de 1679 e o Bill of
Rights de 168916.
A referida evolução inaugura uma nova etapa no processo
de positivação dos direitos fundamentais, com a elaboração de
documentos e lei que tienen a consagrar unos princípios que se
considera preceden al propio ordenamiento positivo del Estado,
y que, antes que creados, son reconocidos por el poder constitu-
yente17, ou seja, tais direitos devem estar plasmados em uma
Constituição, enquanto instrumento fundamental da convivên-
cia política de um povo. Esta declaração constitui o que Com-
14
Porém, esse povo não pode ser a “bestia de un millón de cabezas”, no
sentido de que não são os indivíduos em si os detentores desse poder,
mas sim o conjunto destes, considerado como corpo, o que configura a
possibilidade de exercitar o seu poder de resistência contra um rei con-
vertido em tirano ou que está prestes a converter-se. FIORAVANTI,
Maurizio. Constitución. De la Antigüidad a nuestros días. Trad. Manuel
Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 59-60.
15
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Hu-
manos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 48.
16
A Declaração Norte-Americana de 1776, em seu artigo I garante que [...]
Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e in-
dependentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem
no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou
despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liber-
dade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem
como de procurar e obter a felicidade e a segurança.
17
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Dere-
cho y Constitución. 9. Ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 116.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
405
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

parato denota como o registro de nascimento dos direitos hu-


manos na História18.
De sua parte, fruto da Revolução Francesa, a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, traz em seu ar-
tigo I que os homens nascem e permanecem livres e iguais em
direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade
comum. Notadamente, a consequência imediata da proclama-
ção de que todos os seres humanos são essencialmente iguais,
em dignidade e direitos, foi uma mudança radical nos funda-
mentos da legitimidade política, isto é, o reconhecimento de
que todo o poder emana do povo e é exercido pelos seus repre-
sentantes legais. Diferentemente da democracia grega – onde
o poder era exercido diretamente pelo povo e não por repre-
sentantes – a democracia moderna.
Da mesma forma, enquanto os americanos objetivaram
unicamente a sua independência dos britânicos, os franceses
buscaram uma ação universal de libertação dos povos, por isso
a maior influência, em nível internacional, dos postulados fran-
ceses. Esse campo fértil trilhado pelas revoluções foi prepara-
do dois séculos antes pelo Renascimento e pela Reforma Pro-
testante19. A constitucionalização dos direitos fundamentais,
principalmente a partir do século XVIII, faz com que a funda-
mentação destes direitos passe de uma justificação consuetu-
dinária para uma justificação racional, baseada na razão hu-
mana, ao mesmo tempo em que se reforça a tradição jusnatu-
ralista. Ainda, destaca-se, com relação à titularidade, que os
direitos fundamentais passam a ser direitos inerentes a todos
os homens, pelo simples fato de sê-lo20. Ao final do século XVI
e, mais precisamente no século XVII, a concepção dos direitos
naturais se perfila claramente na transposição ao plano da
18
A busca da felicidade tornou-se uma razão universal, como a própria
condição de ser humano inerente à concepção de dignidade humana.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Hu-
manos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 49.
19
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Hu-
manos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 51-53.
20
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Dere-
cho y Constitución. 9ª Ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 117.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
406
Francielli Silveira Fortes

subjetividade, dos postulados da lei natural21. A Declaração


Americana de 1776 contiene una proposición única en la que es
evidente la impronta iusnaturalista y marca una pauta para las
sucesivas declaraciones de los Estados22.

A POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O


RECONHECIMENTO DA CIDADANIA
A partir do momento em que o conteúdo das declarações
de direitos passa a fazer parte da história do constitucionalis-
mo, com a positivação dos direitos fundamentais que encer-
ram, verifica-se um processo de relativização do conteúdo jus-
naturalista dos direitos fundamentais, os quais, de direitos na-
turais do homem, passam a ser entendidos como direitos pú-
blicos dos cidadãos23. O reconhecimento dos direitos individu-
ais e da igualdade de todos perante a lei revelou-se insuficien-

21
Nesta transposição tiveram papel importante e determinante os teólo-
gos e juristas espanhóis, entre os quais se destacam Francisco de Vitó-
ria e Bartolomeu de Las Casas, os quais, ao defenderem os direitos pes-
soais dos cidadãos habitantes dos novos territórios recém conquistados
pela Coroa espanhola, contribuíram para o reconhecimento da liberdade
e da dignidade de todos os homens. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. De-
rechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9ª Ed. Madrid:
Tecnos, 2005, p. 118.
22
Da mesma forma, a Declaração Francesa de 1789, sendo que essas de-
clarações se incorporam na história do constitucionalismo, servindo de
fundamento para rupturas revolucionárias e fixação de novas ordens po-
líticas, estabelecidas sob os auspícios do liberalismo moderno. Ainda
que a Declaração Americana formalmente tenha semelhança às declara-
ções inglesas, onde buscou inspiração, traz consigo um significado jurí-
dico novo, pois se apresentam como fundamento constitucional de no-
vos Estado que estão se tornando independentes, onde se consagram os
postulados jusnaturalistas de ordem individual e liberal. Ainda, ressalta
o autor que o pensamento jusnaturalista de Suarez Y Gabriel Vazquez
influenciou o racionalismo humanista de Hugo Grócio, incorporando ao
esquema do jusnaturalismo europeu do século XVII, que teve papel de-
cisivo na evolução dos direitos humanos. PÉREZ LUÑO, Antonio Enri-
que. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9ª Ed.
Madrid: Tecnos, 2005, p. 118.
23
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Dere-
cho y Constitución. 9ª Ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 121.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
407
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

te para atender às demandas do povo, notadamente nas rela-


ções de trabalho, onde o proletariado se viu assolado pela bur-
guesia, gerando a necessidade do reconhecimento de novos
direitos humanos, agora de caráter econômico e social. Esse
reconhecimento se deu através de lutas e revoluções em favor
de sua afirmação, sendo consagrados, primeiramente, nas
Constituições Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919. A titula-
ridade de tais direitos não é mais do ser humano abstrato, mas
sim de grupos sociais e classes de trabalhadores assolados pelo
capitalismo24. Neste sentido, ao lado do discurso liberal, toma
corpo o discurso acerca dos direitos sociais inerentes à cidada-
nia, o que ocorre especialmente após a 1ª Guerra Mundial.
O que se objetiva, a partir da incorporação destes novos
direitos é garantir a igualdade. O que se reivindica nesta fase é
o fundamento social de todos os direitos humanos e a impossi-
bilidade de seu exercício à margem das relações sociais. Os
direitos deixam de serem somente liberdades de ação para
converter-se em liberdades de participação e prestações esta-
tais. Opera-se uma mudança na ótica, ou seja, da supremacia
da liberdade à supremacia da igualdade, exigindo do Estado,
até então necessariamente absenteísta, a atuação positiva,
notadamente no tocante à implementação material dos direitos
econômicos, sociais e culturais. Ao longo do século XIX os con-
flitos sociais foram se traduzindo em exigências de caráter
econômico e social, que representavam a insuficiência dos di-
reitos individuais e a necessária conversão da democracia polí-
tica em democracia social, sendo que estas reivindicações re-
presentaram uma mudança na postura do Estado25.
É evidente que entre os direitos de liberdade e a catego-
ria dos direitos sociais há grandes diferenças, tanto no que se
24
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Hu-
manos. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 53, onde “Os direitos huma-
nos de proteção do trabalhador são, portanto, fundamentalmente anti-
capitalistas e, por isso mesmo, só puderam prosperar a partir do mo-
mento histórico em que os donos do capital foram obrigados a se com-
por com os trabalhadores”.
25
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Dere-
cho y Constitución. 9ª Ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 85.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
408
Francielli Silveira Fortes

refere à sua significação, quanto com relação aos meios jurídi-


cos empregados para sua tutela e proteção. Entretanto, desta-
ca-se que essa diferença não pode conduzir à desconsideração
da complementaridade que marca as duas categorias, tam-
pouco pode significar a negação da positividade dos direitos
sociais26. Os direitos sociais, por sua vez, estão em constante
transformação, na medida em que variam as condições socioe-
conômicas sobre as quais se assentam. Neste contexto, impor-
tante trazer a contribuição de Ramírez, ao tratar da dignidade
da pessoa humana e sua necessária vinculação aos direitos
humanos e ao direito natural, levando-se em conta toda a car-
ga cultural que envolve a positivação de tais direitos27.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi a partir da Declaração Universal de Direitos do Ho-
mem de 1948 que começou a ser delineado o chamado Direito
Internacional dos Direitos Humanos – na qual enseja ampla
difusão de instrumentos internacionais de proteção aos DH –
mediante a adoção de importantes tratados de proteção dos
direitos humanos, de alcance global (emanados da ONU) e re-
gional (emanados dos sistemas europeu, interamericano e afri-
cano), nas quais foram inspirados pelos valores e princípios da
Declaração Universal. Todos estes instrumentos internacionais
de proteção aos Direitos Humanos são de inegável importân-
cia, diante deste complexo aparato normativo. Assim, os diver-
sos sistemas de proteção de direitos humanos se apresentam
em benefício dos indivíduos; garantindo (ou devendo garantir)
meta valores na primazia da condição de pessoa humana, en-
quanto valor maior, proporcionando e dando efetividade na
tutela e promoção de direitos fundamentais.
26
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Dere-
cho y Constitución. 9ª Ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 89.
27
Éstos, en efecto, que tienen rosto humano, reclaman una nueva manera
de ser designados; especialmente, en las nuevas circunstancias sociocul-
turales, en las que ha sido reconocida la primacía del valor de la persona
sobre todos los demás. RAMÍREZ, Salvador Vergés. Derechos Humanos:
Fundamentación. Madrid: Tecnos, 1997, p. 78.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
409
A universalidade dos direitos humanos e a dignidade humana

Considerando que a tarefa de legislação internacional


nesta esfera se apresenta bastante avançada; de fato, cumpre
agora dar maior efetividade aos diversos instrumentos interna-
cionais coexistentes no plano do direito interno. Com o passar
dos anos, houve um avanço, no sentido de, ao menos, distin-
guir entre os países em que certas normas dos instrumentos
internacionais de direitos humanos passaram a ter aplicabili-
dade direta, e os países em que necessitavam elas ser trans-
formadas em leis ou disposições de direito interno para ser
aplicadas pelos tribunais e autoridades administrativas. É ine-
gável que os direitos humanos são promessas da humanidade,
é a busca de um paradigma ético capaz de restaurar a lógica
do razoável em termos de dignidade humana; e o marco, em
vias expressas desta tentativa, foi a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Assim, o grande papel histórico da Declara-
ção buscou combinar o discurso da cidadania com o discurso
social, reflexo do momento histórico-social pela qual o mundo
passava. Ou seja, trata-se de um código de conduta para os
Estados Internacionais atuarem frente as suas codificações
internas.
Atualmente, o grande enfrentamento que assistimos é a
tentativa de conjugar o respeito integral aos direitos humanos
e a força econômica do poderio financeiro-ditatorial de nações,
que muitas vezes, burla qualquer respeito aos seus cidadãos.
O cenário mundial, no plano da internacionalização de direitos
humanos, ainda não é o ideal em perspectivas de solidarieda-
de ética, vislumbra-se uma civilização atenta e retraída ao
princípio da dignidade humana como um todo. Necessário en-
tão é a locução dialógica de uma sociedade aberta e democrá-
tica atenta as novas demandas sociais propagadas em direitos
humanos que respeite a dignidade humana de cada cidadão e
que se cumpram as conquistas históricas carreadas ao longo
da história dos povos.

REFERÊNCIAS
ALVES, José Augusto Lindgren. A Arquitetura Internacional dos
Direitos Humanos. São Paulo: FTD, 1997.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
410
Francielli Silveira Fortes

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos


Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
FIORAVANTI, Maurizio. Constitución. De la Antigüidad a nuestros
días. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 2001.
GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos: dos primórdios da huma-
nidade ao Brasil. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005.
MATEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. História del
Constitucionalismo Moderno. Trad. Francisco Javier Ansuátegui
Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 1998.
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de De-
recho y Constitución. 9. ed. Madrid: Tecnos, 2005.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
RAMÍREZ, Salvador Vergés. Derechos Humanos: Fundamentación.
Madrid: Tecnos, 1997.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
O DIREITO FUNDAMENTAL À PRIVACIDADE
NA INTERNET SOB A TUTELA DO E STADO :
UMA ANÁLISE DA LEI CAROLINA
DIECKMANN SOB A ÓTICA DO LEVIATÃ , DE
THOMAS HOBBES 1

Giancarlo Montagner Copelli


Bacharel em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina –
UNISUL. Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Bolsista Unijuí.
(giancarlocopelli@yahoo.com.br).
Marcelo Dias Jaques
Bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Espe-
cialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Esco-
la de Ensino Superior Verbo Jurídico. Mestrando em Direitos Humanos pe-
la Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul -
UNIJUÍ. Bolsista Fapergs. (marcelo.jaques@hotmail.com).

Resumo
Ao analisarmos o desenvolvimento social da humanidade e seus direitos fundamen-
tais, conquistados ao longo da história, podemos dizer que os mesmos foram for-
malmente alçados à categoria de Direitos Humanos em 1948 através da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Dentre eles, destacamos o Direito à Privacidade,
objeto de análise no presente estudo. Contudo, a evolução do ser humano é proces-
so infindável, e as formas de sociedade seguem em constante transformação. Nas
últimas duas décadas, os avanços tecnológicos efetivamente alteraram quase que
por completo a vida no planeta. Fenômenos, como a Globalização, acarretaram não
apenas a queda de barreiras comerciais, mas principalmente sociais, interligando
cidadãos a nível mundial. Concomitantemente, vivemos a expansão do acesso à rede
mundial de computadores que, diariamente, abrange uma parcela cada vez maior da
população planetária. Em decorrência desta evolução social, passamos a verificar
novos delitos, os chamados crimes virtuais. Diante disto, a sociedade brasileira per-
cebeu o descompasso existente entre a legislação pátria vigente – defasada e até
mesmo arcaica frente a tais condutas delituosas ainda não tipificadas –, clamando
por providências do Estado no sentido de pôr fim à vulnerabilidade a qual estavam
submetidos os cidadãos. Indubitável o dever do Estado de cumprir com sua finalida-
de de efetiva proteção social, evitando que a sociedade permanecesse suscetível aos
delitos informáticos. Em vigor desde 02 de abril de 2012, a Lei 12.737, chamada

1
Eixo Temático “Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos”.
412
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

informalmente “Lei Carolina Dieckmann”, surgiu como pioneira na tipificação dos


crimes virtuais, contudo há grande discussão quanto a sua real efetividade. A análise
do presente estudo abordará a brandura da referida lei sob a ótica do Leviatã, de
Thomas Hobbes, para o qual a punição exerce função angular: desencorajar as con-
dutas contrárias à lei.
Palavras-chave: Direito. Estado. Internet. Punição. Vulnerabilidade.

Abstract
By analyzing the social development of mankind and their fundamental rights, won
through history, we can say that they were formally raised to the category of Human
Rights in 1948 by the Universal Declaration of Human Rights. Among them, the Right
to Privacy, analyzed in the present study. However, the evolution of human beings is
endless process, and follow the ways of society in constant transformation. In the
last two decades, technological advances effectively changed almost completely life
on the planet. Phenomena such as globalization, not only led to the fall of trade
barriers, but mainly social, connecting citizens worldwide. Concomitantly, we live
expanding access to the worldwide network of computers that daily cover a growing
share of the planetary population. As a result of this social evolution, we now check
for new offenses, so-called crimes. Given this, the Brazilian society realized the mis-
match between existing legislation homeland - outdated and archaic even in the face
of such criminal conduct have not typed - calling for state action to bring an end to
the vulnerability to which they were subjected citizens. Undoubtedly the duty of the
State to fulfill its purpose of effective social protection, preventing the company
remained susceptible to computer crimes. In force since April 2, 2012, Law 12.737,
informally called “Carolina Dieckmann Law”, has emerged as a pioneer in the virtual
definition of crimes, yet there is much discussion as to its real effectiveness. The
analysis of this study will address the mildness of the law from the perspective of
Leviathan, by Thomas Hobbes, for which the punishment carries angular function:
deterring conduct contrary to the law.
Keywords: Right. State. Internet. Punishment. Vulnerability.

INTRODUÇÃO
A privacidade é um dos direitos fundamentais dos seres
humanos e integra a Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos. No Brasil, o reflexo deste princípio filosófico liberal, que
passa a enxergar o indivíduo, é positivado tanto na Constitui-
ção Federal quanto no Código Civil.
Com o advento da Lei 12.737 de 30 de novembro de 2012,
informalmente chamada de Lei Carolina Dieckmann, que cri-
minaliza a invasão de dispositivos eletrônicos conectados ou
não à internet, o Brasil conta com mais um instrumento que
visa garantir esse direito.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
413
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

Para quem obtiver informações sigilosas ou violar comu-


nicações eletrônicas privadas ou segredos comerciais, como
senhas ou conteúdos de e-mails, a pena prevista, de acordo
com a Lei Carolina Dieckmann, varia de seis meses a dois anos
de prisão, podendo ser aumentada de 1/3 a 2/3, se houver di-
vulgação ou comercialização dos dados obtidos.
Tais penas, contudo, não devem ser entendidas como
uma espécie de vingança, mas como um mecanismo que ga-
ranta o cumprimento da norma, recaindo indistintamente a
todos.
Ocorre, entretanto, que a brandura da lei, cuja pena má-
xima configura um crime de menor potencial ofensivo, pode
impor uma lacuna em que a norma não encontra consequência
frente a seu desvio, configurando, portanto, uma espécie de
boicote do Estado enquanto garantidor de direitos, já que, na
lição de Hobbes2, “a pena deve ser aplicada de tal forma que
desencoraje as condutas contrárias à lei, por terem menos van-
tagens com a prática do crime do que com o mal sofrido pela
punição”.

O DIREITO À PRIVACIDADE ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL


A privacidade consiste em um dos direitos fundamentais
dos seres humanos, previstos no artigo XII da Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos3. A legislação pátria traz em seu
bojo a tutela da privacidade no artigo 5°, inciso X, da Consti-
tuição Federal4 brasileira e no artigo 21 do Código Civil5:

2
Apud OLIVEIRA, Fernando Antônio Sodré. O Direito de Punir em Tho-
mas Hobbes. Ijuí: Unijuí. 2012, p.154.
3
Artigo XII. Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na
sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua
honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assem-
bleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível
na Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Pau-
lo: www.direitoshumanos.usp.br
4
BRASIL, Constituição Federal de 1988.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
414
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

Art. 5º [...]
[...]
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e
a imagem das pessoas, assegurado o direito a indeniza-
ção pelo dano material ou moral decorrente de sua viola-
ção;
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o
juiz, a requerimento do interessado, adotará as providên-
cias necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrá-
rio a esta norma.

Como se pode verificar, a Constituição Federal de 1988 e


o Código Civil de 2002 não utilizam literalmente a expressão
privacidade, desdobrando-a em honra, imagem, intimidade e
vida privada, e assegurando o direito à indenização em face
dos danos decorrentes de sua violação.
Na realidade o termo privacidade, por sua amplidão, aca-
ba se tornando de difícil conceituação, sendo utilizado para se
referir a uma ampla gama de interesses, muitas vezes até
mesmo distintos entre si. A doutrina de Marcel Leonardi6 ensi-
na que:
A falta de clareza a respeito do que é privacidade cria
complicações para definir políticas públicas e para resol-
ver casos práticos, pois se torna muito complexo enunci-
ar os danos ocorridos em uma situação fática, podendo
dificultar ou mesmo inviabilizar sua tutela, principalmen-
te diante da necessidade de seu sopesamento em face de
interesses conflitantes, tais como a liberdade de manifes-
tação de pensamento, a segurança pública e a eficiência
de transações comerciais.

Diversos autores propõem conceitos unitários para a ex-


pressão privacidade. Contudo, ora são muito abrangentes, ora
muito restritivos.

5
BRASIL, Código Civil de 2002.
6
LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Sarai-
va, 2012, p. 47.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
415
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

O que pretendemos na presente pesquisa é abordar a pri-


vacidade em um conceito plural, amplo, muito embora nossa
intenção consista especialmente em traçar uma análise deste
direito constitucional no tocante à internet e aos delitos infor-
máticos - mais especificamente a Lei 12.737 de 30 de novembro
de 20127, informalmente chamada “Lei Carolina Dieckmann”8.
Destarte, utilizaremos a abordagem conceitual proposta
por Daniel Justin Solove9, que trata o direito à privacidade como
um conjunto de proteções contra uma pluralidade de problemas
distintos, embora relacionados entre si. Com isso não estamos
afirmando que tais ideias possam ser tidas como verdades ab-
solutas, como conceitos estanques. O que se pretende é que,
muito embora a doutrina de Solove deva ser vista com reservas,
eis que concebida para um sistema de commom law, tal propos-
ta atende à necessidade desta pesquisa quanto à utilização de
um conceito latu sensu que facilite a compreensão.

O ADVENTO DA LEI 12.737/2012 E O CASO “CAROLINA DIECKMANN”


A Lei 12.737/2012, que passou a vigorar no dia 02 de abril
de 2013 e que, para muitos, é considerada um marco na inter-
net brasileira, dispõe sobre a tipificação criminal de delitos
informáticos, imputando a responsabilização penal dos infrato-
res, vez que, até então, o Código Penal não continha artigos
que abordassem especificamente a questão dos chamados
crimes eletrônicos.
Além de toda a polêmica que envolve os temas inerentes
ao descompasso existente entre a legislação brasileira e as
novas tecnologias, a referida Lei, igualmente, foi questionada
sob o aspecto do “populismo penal”, justamente pelo fato de

7
BRASIL, Lei 12.797 de 30 de novembro de 2012..
8
A Lei 12.797/2012, sancionada no final do ano de 2012 ficou nacional-
mente conhecida como Lei Carolina Dieckmann, após a polêmica envol-
vendo fotos íntimas da atriz que foram divulgadas na internet em maio
de 2012
9
SOLOVE, Daniel Justin apud LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade
na internet. São Paulo: Saraiva, 2012.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
416
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

que, durante a tramitação da proposta na Câmara dos Deputa-


dos, ocorreu a divulgação de fotos íntimas da atriz Carolina
Dieckmann, caso amplamente noticiado pela mídia brasileira.
Para que possamos recordar, ou mesmo entender melhor
os detalhes envolvendo o caso, em meados de maio de 2012 a
referida atriz da Rede Globo de Comunicações teve a caixa de
e-mails de seu equipamento eletrônico invadido por hackers10,
que se apropriaram e divulgaram na rede mundial de compu-
tadores (world wide web) mais de trinta imagens íntimas da
atriz. Previamente à publicação das imagens, ela teria recebido
ameaças de extorsão para que pagasse aproximadamente
R$10 mil para que as fotos não viessem a público.
Diante disso, destaca-se:
A Lei 12.797/2012 acrescentou ao Código Penal11 os arti-
gos 154-A e 154-B, ocasionando igualmente a alteração dos
artigos 266 e 298.
O artigo 154-A tipifica o crime de invasão de dispositivo
informático, conectado ou não à rede de computadores, medi-
ante violação de segurança e com o intuito de obter, adulterar
ou destruir dados ou informações sem autorização do titular do
dispositivo.
A pena prevista para a conduta trazida no caput, como
também para aquele que comercializar o dispositivo ou o pro-
grama cuja finalidade seja permitir a prática da referida condu-
ta, é de três meses a um ano de detenção e multa. Ademais, se
da invasão resultar prejuízo econômico a pena pode ser au-
mentada de 1/6 a 1/3.

10
O termo hacker pode ser definido como um indivíduo que se dedica, com
intensidade incomum, a conhecer e modificar os aspectos mais internos
de dispositivos, programas e redes de computadores. Graças a esses
conhecimentos, um hacker frequentemente consegue obter soluções e
efeitos que extrapolam os limites do funcionamento normal dos sistemas
como previstos pelos seus criadores; incluindo, por exemplo, contornar
as barreiras que supostamente deveriam impedir o controle de certos
sistemas e acesso a certos dados.
11
BRASIL, Código Penal de 1940.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
417
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

Para os casos em que haja invasão para obtenção de con-


teúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comer-
ciais ou industriais ou informações sigilosas, a pena - caso a
conduta não constitua crime mais grave – pode variar de seis
meses a dois anos de reclusão, além de multa.
Igualmente, há previsão para majoração de pena, como,
por exemplo, se o crime for praticado contra as autoridades
elencadas no parágrafo 5º do mesmo artigo.
Já o artigo 154-B estabelece que a Ação Penal cabível pa-
ra as condutas tipificadas pelo artigo anterior se procede obri-
gatoriamente mediante representação do ofendido, salvo se o
crime for cometido contra a administração direta ou indireta de
qualquer dos poderes da União, estados, Distrito Federal ou
municípios ou, ainda, contra empresas concessionárias de ser-
viços públicos.
Vejamos:
Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conec-
tado ou não à rede de computadores, mediante violação
indevida de mecanismo de segurança e com o fim de ob-
ter, adulterar ou destruir dados ou informações sem auto-
rização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou ins-
talar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa
§ 1º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, dis-
tribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de
computador com o intuito de permitir a prática da condu-
ta definida no caput.
§ 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da in-
vasão resulta prejuízo econômico.
§ 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de
comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais
ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em
lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo in-
vadido:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e mul-
ta, se a conduta não constitui crime mais grave.

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418
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

§ 4º Na hipótese do § 3º, aumenta-se a pena de um a dois


terços se houver divulgação, comercialização ou trans-
missão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou infor-
mações obtidos.
§ 5º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime
for praticado contra:
I - Presidente da República, governadores e prefeitos;
II - Presidente do Supremo Tribunal Federal;
III - Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado
Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câma-
ra Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Munici-
pal; ou
IV - dirigente máximo da administração direta e indireta
federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal.
Art. 154-B. Nos crimes definidos no art. 154-A, somente
se procede mediante representação, salvo se o crime é
cometido contra a administração pública direta ou indire-
ta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito
Federal ou Municípios ou contra empresas concessioná-
rias de serviços públicos.

Ao artigo 266 do Código Penal foram acrescentados dois


parágrafos. O primeiro adiciona ao tipo penal já existente a
interrupção de serviço telemático ou informação de utilidade
pública, e o segundo prevendo a aplicação de pena em dobro
se o crime for cometido por ocasião de calamidade pública.
Art. 266. Interromper ou perturbar serviço telegráfico, ra-
diotelegráfico ou telefônico, impedir ou dificultar-lhe o
restabelecimento:
§ 1º Incorre na mesma pena quem interrompe serviço te-
lemático ou de informação de utilidade pública, ou impe-
de ou dificulta-lhe o restabelecimento.
§ 2º Aplicam-se as penas em dobro se o crime é cometido
por ocasião de calamidade pública.

Já a alteração trazida no artigo 298 do Código Penal é a


inserção do seu parágrafo único, equiparando a documento

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
419
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

particular o cartão de crédito ou débito para fins de tipificação


do crime de falsificação do mesmo. Contudo estes dois últimos
dispositivos não se constituem objeto de análise no presente
estudo.
Art. 298. Falsificar, no todo ou em parte, documento par-
ticular ou alterar documento particular verdadeiro:
Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, equipa-
ra-se a documento particular o cartão de crédito ou débito.

É incontestável que tal diploma legal certamente traz


inovações relevantes ao cenário legislativo brasileiro. Na mes-
ma senda, é impossível negar que ainda deva haver uma gran-
de discussão doutrinária e jurisprudencial acerca dos mais va-
riados aspectos. Noutras palavras, poderíamos considerar que
a lei possui aspectos positivos, muito embora traga em seu
bojo lacunas e uma brandura que carecem de um criterioso
debate.
Imperioso destacar que a pressão da mídia e da socieda-
de – principalmente envolvendo o caso Carolina Dieckmann,
além de outros casos internacionais – fez com que o código
fosse aprovado sem um estudo mais profundo. Houve uma mo-
bilização popular para que essa lei fosse implantada rapida-
mente, deixando assim de verificar algumas possibilidades e
sanar a totalidade das lacunas, utilizando alguns termos que
propiciam interpretação ampla.
Neste mesmo diapasão, em reportagem veiculada pelo
IDGNOW12, Armando de Vilhena Moraes Nogueira - Diretor
Executivo da empresa de segurança TIX 11 – afirma13:

12
O International Data Group (IDG) é uma das principais empresas mundi-
ais de mídia no segmento de publicações, eventos e pesquisas sobre TI
e Internet. No Brasil, o IDG foi fundado em 1976 e em 2007 suas marcas
passaram a ser representadas no País exclusivamente pela empresa
Now Digital Business. Atualmente, o Now!Digital Business contabiliza
mais de 14 milhões de leitores únicos ao ano, editando as revistas Com-
puterworld e CIO e seus respectivos websites; o site de notícias ID-
GNow! e as versões online da PC World e da MacWorld.
13
IDGNOW (2013), Lei Carolina Dieckmann não irá intimidar cibercrimi-
nosos, diz expert. Página consultada em 09/04/2013. <http://idgnow.

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420
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

Com certeza ainda há muito a ser feito. Por conta da ex-


posição da mídia do caso Dieckmann e outros internacio-
nais, houve uma mobilização popular para que essa lei
fosse implantada rapidamente. Por conta disso, ela apre-
senta falhas e pontos não muito bem resolvidos. Não dei-
xa de ser um marco importante na lei brasileira, mas en-
contrará muitas dificuldades para ser aplicada.

Na concepção de Nogueira, o principal problema reside


no fato de que a lei restringe o ato criminoso ao considerar
crime apenas se o dispositivo - conectado ou não a uma rede
de computadores - for invadido por meio de quebra de senha
ou de outros mecanismos de proteção. Para o especialista, a lei
está muito vinculada a uma quebra explícita de mecanismo de
segurança, e isso poderia gerar problemas, ao passo que usuá-
rios domésticos não costumam utilizar senhas em seus dispo-
sitivos.

A EFETIVIDADE DA LEI 12.737/2012 SOB A ANÁLISE DE ESPECIALISTAS


E é nesse ponto que chegamos ao epicentro da discussão
a que se propõe o presente estudo: a necessidade do Estado
em fazer observar o Direito à Privacidade, aplicando a devida e
proporcional punição quando o mesmo restar violado pelos
delitos informáticos e, em especial, a real efetividade da Lei
Carolina Dieckmann diante da brandura das penas que a
mesma impõe.
Não passaria apenas de uma lei natimorta à medida que
possa ser ineficaz no cumprimento de sua finalidade, conclu-
são que poderá se chegar apenas com o passar do tempo, já
que tal dispositivo é, ainda, muito recente?
O professor de Direito Digital da Universidade Mackenzie,
Rony Vainzof, antecipa a discussão, afirmando que as punições
poderiam ser maiores. Contudo, em se tratando de uma lei pi-
oneira neste segmento, reconhece o avanço, eis que agora res-

uol.com.br/internet/2013/04/03/lei-carolina-dieckmann-nao-ira-
intimidar-cibercriminosos-diz-expert/
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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421
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

ta tipificada a conduta delituosa. “As punições até poderiam


ser maiores para evitar que os criminosos tivessem o benefício
do juizado especial criminal”14, pondera Vainzof, em entrevista
ao portal Terra.
Ao ser julgado em um juizado especial criminal, cumpri-
dos certos requisitos, como não ter sido condenado anterior-
mente, ou não ter usado tal juizado durante cinco anos, caso a
pena maior do crime não ultrapasse dois anos, o réu teria o
direito de converter a pena pela prestação de serviços comuni-
tários ou mesmo realizar o pagamento de cestas básicas, evi-
tando assim punição mais severa, como também a discussão
do mérito da questão.
Apesar de inquestionáveis os avanços trazidos pela Lei
12.797/2012, eis que casos como o da atriz Carolina Dieckmann
eram decididos com adaptações de artigos que já constavam
no Código Penal brasileiro, inclusive em algumas situações
sendo enquadrados no artigo 65 da Lei das Contravenções Pe-
nais15, conforme segue abaixo, cuja pena é de prisão simples,
de quinze dias a dois meses ou multa. Entendemos, assim, que
ainda há muito a ser discutido para que tal diploma legal não
se torne um incentivador dos crimes virtuais.
Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilida-
de, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou
multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

A punição branda também foi criticada por Renato Opice


Blum, especialista em direito digital e presidente do Conselho
de Tecnologia da Informação da Fecomercio-SP (Federação dos
Comércios de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Pau-
lo).

14
TERRA (2013), Punições da Lei Carolina Dieckmann poderiam ser
maiores, diz especialista. Página acessada em 09/04/2013. <http:
//tecnologia.terra.com.br/internet/punicoes-da-lei-carolina-dieckmann-
poderiam-ser-maiores-diz-especialista,28c08d2fb41dd310VgnVCM500
0009ccceb0aRCRD.html>
15
BRASIL, Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
422
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

Para Blum, a pena para os que cometem crimes cibernéti-


cos - que prevê de três meses a dois anos, além de multa – te-
ria de ser mais severa. “Em 90% dos casos de pessoas sem ante-
cedentes criminais, a pena pode ser revertida em doação de ces-
tas básicas” 16, disse o advogado.
Isso poderia criar uma situação desastrosa – à medida
que institui uma pena branda demais, a nova lei pode vir a es-
timular o delito, em vez de coibi-lo. “Tem muito computador
por aí com informação que vale muito mais do que uma cesta
básica” 17, diz Opice Blum.
Já em países da Europa e nos Estados Unidos, além das
leis estabelecerem penalidades mais duras e rigorosas – nos
EUA, por exemplo, em casos de invasão as penas começam em
dez anos –, há inúmeros e grandiosos investimentos em infra-
estrutura para coibir e apurar os crimes digitais. Não é o caso
por aqui.

CONCLUSÃO
O professor Machado Pauperio18, em sua Introdução à ci-
ência do Direito, destaca que as normas, positivadas como re-
gras de comportamento, devem estabelecer sanções capazes
de garantir a observação das mesmas. Estas, portanto, não
devem ser entendidas como uma espécie de vingança, como se
concluirá adiante, mas como um mecanismo que garanta o
cumprimento de determinada norma, recaindo indistintamente
a todos.

16
UOL Notícias, 'Lei Carolina Dieckmann' sobre crimes na internet entra
em vigor nesta terça. Página acessada em 09/04/2013. <http:
//tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2013/04/02/lei-carolina-dieck
mann-sobre-crimes-na-internet-entra-em-vigor.htm>
17
IstoÉ Independente (2013), Lei Carolina Dieckmann: apenas o primeiro
passo. Página acessada em 09/04/2013.<http://www.istoe.com.br/
reportagens/288575_LEI+CAROLINA+DIECKMANN+APENAS+O+
PRIMEIRO+PASSO?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage>
18
PAUPERIO, A. Machado. Introdução à ciência do Direito. 3.ed. São Pau-
lo: Forense, 1974, p. 83.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
423
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

Ocorre, entretanto, que inúmeros são os casos em que a


norma pactuada em forma de lei não encontra consequência
frente a seu desvio, abrindo uma lacuna que faculta certa faci-
lidade à promoção do ilícito ou do injusto. Tal condição, assim,
revela-se como uma espécie de boicote do Estado enquanto
garantidor de direitos. Essa característica, ou esse efeito, pre-
sente em outras searas da legislação brasileira, pode ser pre-
visto, também, na chamada “Lei Carolina Dieckmann”, positi-
vada, como destacado anteriormente, em clima de “populismo
penal”, fator determinante para acelerar as discussões doutri-
nárias e barreira a uma melhor análise do tema.
Contudo, se o Caso Dieckmann trouxe a prática invasiva
ao conhecimento da sociedade através da mídia, acelerando a
discussão do tema, é forçoso destacar que as práticas delitivas
na rede mundial de computadores não são exclusividade de
“celebridades”, como a referida atriz. Ao contrário. Conforme o
sítio eletrônico G1, ataques semelhantes ao sofrido pela atriz
cresceram 287% entre o ano anterior à proposta da lei e 2010 19,
apontando a vulnerabilidade de uma massa anônima de indi-
víduos e uma prática que, de fato, nada tem de recente.
Bom exemplo é a coluna “Tira Dúvidas de Tecnologia”20,
do sítio eletrônico G1, assinada por Ronaldo Prass em 12 de
julho de 2012. Chama a atenção, nesse caso, que a coluna, ao
informar sobre “como denunciar fotos postadas e perfis falsos”
em conhecida rede social na internet, recebe inúmeros comen-
tários, todos tratando sobre a violação da privacidade dos usu-
ários da rede, de modo que, por dedução, podemos compreen-
der tal prática como corriqueira.

19
G1. Número de ataques na internet brasileira dispara no 2º trimestre.
Página acessada em: 10/04/2013. http://g1.globo.com/tecnologia/noticia
/2011/07/numero-de-ataques-na-internet-brasileira-dispara-no-2o-
tri.html
20
G1.Tira dúvidas de tecnologia: como denunciar fotos postadas e perfis
falsos. Página acessada em 10/04/2013. http://g1.globo.com/platb/tira-
duvidas-de-tecnologia/2013/03/25/como-denunciar-fotos-postadas-e-
perfis-falsos/

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
424
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

Adotando a perspectiva de Thomas Hobbes21, “pensador


inglês considerado como um dos primeiros modernos”, é pos-
sível classificar a relação de conflito, apontada acima, como o
que o autor de Leviatã entende por estado de natureza, ou seja,
aquele estado primitivo em que os homens, hedonistas, vivem
supostamente à mercê de suas vontades, sem uma autoridade
soberana, mas apenas estabelecendo relações sociais naturais
em condição de igualdade. Assim, é possível concluir, de acor-
do com o pensamento hobbesiano, que a invasão de privaci-
dade na internet é corriqueira, entre outros motivos, porque
não há regulação. Ou, ainda, não há regulação eficaz.
Na solução do pensador inglês, o Estado só se sustenta
através do uso da força, segundo Carl Schmidt22. Ocorre que,
no Brasil, as lacunas punitivas são palco para inúmeras situa-
ções em que o indivíduo delinque, mas não presta contas ao
Leviatã. Parece ser o caso da privacidade e da intimidade na
internet, cuja punição imposta pela lei tende a concorrer, con-
forme apontaram o professor da Universidade Mackenzie e o
presidente do Conselho de Tecnologia da Fecomercio-SP ante-
riormente, para enfraquecê-la enquanto mecanismo eficaz ao
propor defender o cidadão. E, se assim for, a rede mundial de
computadores pode ser comparada ao estado de natureza
hobbesiano, de modo que, na “na internet, cada um faz o que
quer” porque, diferente da lição de Pauperio, analisada ao
abrir esta conclusão, a sanção, neste caso, concorre para que a
norma não seja respeitada.
Antes de prosseguirmos, é prudente salientar que tais
apontamentos são, por enquanto, tendências embasadas nos
postulados hobbesianos. Afinal, o advento da lei, recente que
é, impede que tais afirmativas possam ser, estatisticamente,
comprovadas, avaliando se a lei – relacionada à punição – é, de
fato, eficaz.

21
Para Thomas Hobbes, a lei deve impedir que qualquer indivíduo, por
interesse individual, resolva modificar unilateralmente as estruturas
pactuadas.
22
DIEHL, Frederico. É melhor viver sem a tutela de um Estado de Segu-
rança? Revista Filosofia: Ciência & Vida, n. 36, 2009. p. 34.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
425
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

Contudo, avaliando a questão no rol das possibilidades,


contextualizando a opinião de especialistas sobre o tema à fi-
losofia de Hobbes, é possível entender que a sociedade digital,
assim, tende a ficar diante de um Estado que não é capaz de,
com eficácia, garantir direitos. A sociedade digital pode, então,
tornar-se um espelho do estado natural vislumbrado por
Hobbes, de modo que o núcleo duro desta discussão é, inega-
velmente, a punição.
É o que entende Hobbes, que preceitua que a vida em so-
ciedade e a eficiência de seus mecanismos, com todas as obri-
gações atinentes ao Estado enquanto garantidor de direitos,
dependem da punição, conforme destaca Oliveira23: “Ele
(Hobbes) afirma que o castigo deve ser aplicado de tal forma
que desencoraje as condutas contrárias às leis, por terem menos
vantagens com a prática do crime do que com o mal sofrido pela
punição”.
A necessidade da punição, assim, é o instrumento não
apenas para coibir o comportamento do próprio homem em
estado puramente natural, ou seja, aquele em que a humani-
dade, “sem compromisso algum com qualquer tipo de conven-
ção, percebia como lícito fazer o que quisesse, e contra quem
julgasse cabível, desfrutando de tudo o que quisesse ou pudesse
obter”24, mas também para inseri-lo em uma sociedade segura,
voltada a atender às necessidades do bem coletivo, por meio
do trabalho e da paz.
Portanto, adotando como premissa válida o entendimento
hobbesiano acerca do homem em seu estado natural, compre-
ender o papel da punição, de modo isonômico, como garantia a
direitos positivados, parece ser uma conclusão inevitável. Por
esse prisma – e contrariamente a esta proposta –, a lacuna
aqui descrita, entre o ilícito/injusto frente a consequências ori-
undas de punição, desnudam-se como um boicote indireto do
Estado nessa direção. Por isso, o que prega o artigo primeiro
23
OLIVEIRA, Fernando Antônio Sodré. O Direito de Punir em Thomas
Hobbes. Ijuí: Unijuí, 2012, p.154.
24
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 32-
33.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
426
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao afirmar que


os homens devem agir em espírito de fraternidade, é propor
uma condição artificial, a despeito dos pressupostos aristotéli-
cos25. Não é natural em sociedade e, por consequência, não é
natural na internet. Entretanto, não é, por outro lado, impossí-
vel que assim seja. A garantia de sua efetividade depende da
submissão às leis, diante da
[...] punição adequada através do Estado, não como um
castigo, no sentido de mero revide, mas como um meca-
nismo capaz de inibir o ilícito, garantindo um convívio de
paz e segurança [...] para que a liberdade efetiva possa
acontecer.

É na lição de Oliveira26 acerca da punição em Hobbes,


destacada acima, que se desenha o preenchimento das lacu-
nas que boicotam o direito à privacidade e à intimidade na in-
ternet: não como mero revide, menos ainda como instrumento
voltado “à contenção de determinados grupos humanos”, con-
forme ensina o professor Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth27.
O que se projeta, acima de tudo, é que tais lacunas sejam
preenchidas com equidade e justiça, afinal, de acordo com An-
gelita Maria Maders28, “para dar efetividade real aos direitos
humanos não basta a existência de leis. É necessária a institui-

25
Aristóteles parte da ideia de que o homem é naturalmente sociável,
sendo a vida na polis a busca por uma vida boa e virtuosa. Além de ser
natural, a polis representava a capacidade de diferenciar o bem do mal,
o justo do injusto. Já Hobbes parte da ideia de que o ser humano não
tem as características de que a tradição filosófica grega atribuía-lhe, de
modo que este vive em sociedade apenas por sua essência utilitarista e
autointeressada. O convívio social não é, portanto, natural, mas uma
forma para atingir seus fins de interesse próprio.
26
OLIVEIRA, Fernando Antônio Sodré. O Direito de Punir em Thomas
Hobbes. 2012, p.153-155.
27
WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. O Brasil e a criminalização da po-
breza. In: BEDIN, Gilmar Antonio (Org.). Cidadania, Direitos Humanos e
Equidade. Ijuí: Unijuí, 2012. p. 236.
28
MADERS, Angelita Maria. O acesso à Justiça e a proteção dos Direitos
Humanos no Brasil. In: BEDIN, Gilmar Antonio (Org.). Cidadania, Direi-
tos Humanos e Equidade. Ijuí: Unijuí, 2012., p. 223.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
427
O direito fundamental à privacidade na internet sob a tutela do Estado

ção de meios criativos para torná-los exequíveis, o que compete


não somente ao Estado [...], mas a toda a sociedade”.
Concluindo, o que se espera, portanto, é que o Caso Di-
eckmann, ao trazer à luz dos fatos a invasão à privacidade e à
intimidade de milhares de anônimos, ofereça não apenas uma
legislação enraizada no que antes classificamos como “popu-
lismo penal”, cuja iminente necessidade de respostas através
do poder público possa ter boicotado seu próprio objetivo, qual
seja, a garantia à privacidade e à intimidade digitais. Por outro
lado, admitimos como inegável a inovação nesta seara, através
da lei que, popularmente, leva o nome da atriz, esperando que
as futuras discussões doutrinárias possam, através dos primei-
ros efeitos da legislação, preencher as lacunas por ora aponta-
das enquanto tendência.

REFERÊNCIAS
BRASIL, Código Civil de 2002.
BRASIL, Código Penal de 1940.
BRASIL, Constituição Federal de 1988.
BRASIL, Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941.
BRASIL, Lei 12.797 de 30 de novembro de 2012.
DIEHL, Frederico. É melhor viver sem a tutela de um Estado de Se-
gurança? Revista Filosofia: Ciência & Vida, n. 36, 2009.
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
IDGNOW (2013), Lei Carolina Dieckmann não irá intimidar ci-
bercriminosos, diz expert. Disponível em: http://idgnow.uol.com.
br/internet/2013/04/03/lei-carolina-dieckmann-nao-ira-intimidar-
cibercriminosos-diz-expert/> data de acesso 09/04/2013
IstoÉ Independente (2013), Lei Carolina Dieckmann: apenas o pri-
meiro passo. Disponível em: http://www.istoe.com.br/reportagens/
288575_LEI+CAROLINA+DIECKMANN+APENAS+O+PRIMEIRO+
PASSO?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage. Data de
acesso 09/04/2013.
LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo:
Saraiva, 2012.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
428
Giancarlo Montagner Copelli & Marcelo Dias Jaques

MADERS, Angelita Maria. O acesso à Justiça e a proteção dos Direi-


tos Humanos no Brasil. In: BEDIN, Gilmar Antonio (Org.). Cidadania,
Direitos Humanos e Equidade. Ijuí: Unijuí, 2012.
OLIVEIRA, Fernando Antônio Sodré de. O direito de punir em Tho-
mas Hobbes. Ijuí: Unijuí, 2012.
PAUPERIO, A. Machado. Introdução à ciência do Direito. 3.ed. São
Paulo: Forense, 1974.
TERRA (2013), Punições da Lei Carolina Dieckmann poderiam ser
maiores, diz especialista. Disponível em: http://tecnologia.terra.
com.br/internet/punicoes-da-lei-carolina-dieckmann-poderiam-ser-
maiores-diz-especialista,28c08d2fb41dd310VgnVCM5000009ccceb
0aRCRD.html> data de acesso: 09/04/2013.
UOL Notícias, ‘Lei Carolina Dieckmann' sobre crimes na internet
entra em vigor nesta terça. Disponível em: http://tecnologia.uol.
com.br/noticias/redacao/2013/04/02/lei-carolina-dieckmann-sobre-
crimes-na-internet-entra-em-vigor.htm. Data de acesso: 09/04/2013.
WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. O Brasil e a criminalização da
pobreza. In: BEDIN, Gilmar Antonio (Org.). Cidadania, Direitos Hu-
manos e Equidade. Ijuí: Unijuí, 2012.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
CRIANÇAS E ADOLESCENTES:
(DES)CONSTRUÇÕES DO SUJEITO
ATRAVÉS DA IMAGEM 1

Gilberto Natal Maas


Graduado em Estudos Sociais e História, acadêmico de Direito e mestran-
do em Direitos Humanos na UNIJUÍ (gilbertomaas@hotmail.com)

Resumo
As Crianças e os adolescentes passam por um processo complexo no decorrer do
tempo e espaço. Os conceitos de imagens dos mesmos passam a ser alterados con-
forme os aspectos históricos, culturais, econômicos, políticos, religioso e social na
sociedade. A influência dos meios de comunicações sociais, o modo de pensar, agir e
ver das crianças e dos adolescentes, bem como dos próprios adultos em relação aos
mesmos, são atravessado por ideologias e interesses dominantes que cada vez mais
determina a constituição da construção e descontração de novos sujeitos. Novos
paradigmas são construídos há todos os instantes na sociedade, direitos são incluí-
dos no rol das normas jurídicas, legislações de proteção, segurança e assistência às
crianças e aos adolescentes são instituídos na sociedade. Portanto, a inclusão social
e a garantia dos direitos humanos aos menores, são ações que ocorrem permanen-
temente na garantia de vida digna e no desenvolvimento humano.
Palavras-chave: Criança e adolescente; sociedade; meios de comunicações sociais.

Abstract
Children and teenagers go through a complex process in the course of time and
space, the images of the same concepts, they become changed as the historical,
cultural, economic, political, religious and social society. The influence of the means
of social communications, how to think, act and see children and teenagers as well
as adults themselves in relation to them, are crossed by dominant ideologies and
interests that increasingly determines the constitution of construction and relaxation
of new subjects. New paradigms are constructed every moment in society, rights are
included in the list of legal norms, laws for protection, security and assistance to
children and adolescents are instituted in society. Therefore, social inclusion and
human rights guarantees to minors, are actions that occur permanently in ensuring
dignified life and human development.
Keywords: Child and adolescent; society, means of social communications.

1
Trabalho solicitado pelo professor Dr. Ivo dos Santos Canabarro na dis-
ciplina de História, memória e direitos Humanos, no curso de Mestrado
em Direitos Humanos da UNIJUÌ.
430
Gilberto Natal Maas

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As formas de olhar, de construir conceitos de imagens de
crianças e dos adolescentes em um determinado espaço e
tempo vêm sofrendo alterações culturais, históricas econômi-
cas sociais e religiosas, tanto pelos próprios adolescentes, bem
como a imagem construída pelos adultos e pela sociedade.
Neste sentido, o passado serve para refletir no presente e pre-
parar uma nova etapa no futuro da sociedade com um novo
conceito, novo olhar e novo paradigma em relação a construção
e uma nova imagem de crianças e adolescentes, bem como
desconstruir conceitos que até então estão postos na sociedade.
No que ser refere ao objetivo deste texto é fazer uma aná-
lise e buscar compreender a construção e desconstrução da
identidade dos sujeitos crianças e adolescentes em diferentes
períodos da história. Qual a imagem que a sociedade tem da
criança e do adolescente?
Diante de uma realidade construída por um longo período
da história, onde as crianças e adolescentes eram sujeitos de
deveres e ao passar dos tempos esses sujeitos constitui-se ci-
dadãos de direitos fez com que a sociedade obrigasse a se re-
lacionar diferente, abandonando velhas práticas que não mais
eram concebidas nas relações sociais na sociedade com as cri-
anças e os adolescentes.
Em um primeiro momento trabalharei as “crianças e ado-
lescentes na sociedade”, buscando contextualizar baseado em
autores que trabalham com esse tema, pois, a imagem de cri-
anças e dos adolescentes como sujeitos de direitos é muito
recente na história da humanidade bem como a origem desses
conceitos. Segundo o dicionário Aurélio criança é um ser hu-
mano de pouca idade, enquanto adolescente é a idade da vida
compreendida entre a puberdade e idade adulta.
Por fim trabalharei, o sub tema “crianças e adolescentes e
o meios de comunicação sociais”, sendo que o papel dos meios
de comunicação tem uma importância fundamental na forma-
ção da imagem e uma grande capacidade de romper velhos e
impor novos paradigmas na sociedade, a cultura, a história, os

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
431
Crianças e adolescentes: (des)construções do sujeito através da imagem

costumes, a religiosidade tornam-se reféns dos meios de co-


municações sociais, bem como esses recursos tecnológicos
devem estar imbuídos de responsabilidade e éticas.

CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA SOCIEDADE


Segundo Philippe Ariés, historiador francês, a ideia do
que chamamos hoje de adolescência é apenas pressentida a
partir do século XVIII. Na idade medieval, a consciência das
particularidades da infância não existia; não havia distinção de
crianças e adultos. A ideia de infância relacionava-se exclusi-
vamente com a noção de dependência; quando a criança ad-
quire a condição de viver sem o auxilio da mãe ou da ama, in-
gressava plenamente ao mundo do adulto, participando de
todas as atividades sociais.
No livro “História social da criança e da família”, do autor
Philippe Ariés, é bem contundente a imagem da criança duran-
te a idade média. Não consideravam um ser de sentimentos e
não se respeitava essa etapa, quando sobreviviam eram provi-
denciado um nome e tratavam igualmente aos adultos, não se
limitavam a impedir promiscuidade e desrespeito. Assim, a
sociedade passou a evoluir em relação à imagem da criança,
constituindo um indivíduo de direitos no atual estágio social
que nos encontramos.
Um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com
as exigências de identidade civil a que nós submetemos
com naturalidade. Assim que nossas crianças começam a
falar, ensinamos-lhes seu nome, o nome de seus pais e
sua idade (ARIÉS, 1981, p. 1).

O desinteresse pela história da infância, e seu registro


historiográfico tardio, é indício da incapacidade por parte do
adulto de lidar com as limitações do ser humano e ver a crian-
ça em uma perspectiva histórica. Somente nos últimos anos o
campo historiográfico rompeu com as rígidas regras da inves-
tigação tradicional e política, para abordar e problematizar a
história social da infância.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
432
Gilberto Natal Maas

Deste modo, no século XVI ou XVII as crianças eram vis-


tas pelos adultos como um animalzinho de estimação. Se ela
morresse, como acontecia na maioria das vezes, era regra não
ficar desolado, pois logo a criança morta seria substituída por
outra. Por esse motivo, os adultos não se apegavam às crian-
ças e não as paparicavam para evitar sofrimento, bem como
não buscavam uma identidade as mesmas. Quando passavam
do “perigo de morrer”, daí passavam a ser tratadas como adul-
tas e não viviam com a própria família.
A adolescência é reconhecidamente uma fase do desen-
volvimento humano de desconstrução e reconstrução da pró-
pria identidade, da visão de mundo, das relações sociais e fa-
miliares. Durante a adolescência se iniciam as grandes e pro-
fundas mudanças, que culminam um ideal de adulto com sua
identidade pessoal e sexualidade definida, este adolescente
inserido na sociedade, com seus papéis sociais adequados e
formatados. As transformações psíquicas e físicas acontecem
sem que o adolescente tenha controle sobre elas.
É universal a preocupação dos jovens com sua aparência
física. A percepção das constantes mudanças m seu cor-
po muitas às vezes ocasiona sentimentos de estranheza
ou despersonalização, que na adolescência não podem
ser considerados patológicos, mas sim elementos da cri-
se puberal. As vestimentas, concebidas como extensões
ou prolongamentos do próprio corpo, adquirem, então,
uma importância muito particular. A moda unissex traduz
de certa forma, os conflitos dos jovens contemporâneos
quanto à definição de seus papéis sexuais (OSÓRIO,
1982, p.79).

As mudanças físicas e hormonais são universais, ou seja,


não dependem da cultura ou do lugar onde o adolescente vive.
Entretanto, as mudanças psíquicas são influenciáveis. As mu-
danças físicas acontecem rapidamente e desordenadamente,
mudando o corpo e a imagem corporal de forma confusa e
drástica. Há alterações em todo o corpo e na massa muscular,
muitas vezes não aceita pelo adolescente, devido à cultura da

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
433
Crianças e adolescentes: (des)construções do sujeito através da imagem

estética que formata o adolescente ideal conforme padrões que


sociedade impõe.
Assim sendo, a institucionalização da infância e da ado-
lescência é algo muito contemporâneo. Romper com a cultura
do acoitamento, da desconsideração das fases que o ser hu-
mano percorre é cultural, que está inserida no seio das famílias
e da sociedade, que desconsideram tais fases. Por isso que a
forma como as famílias lidam com a infância e a adolescência
e, ao mesmo tempo, as demais instituições sociais apregoando
a violência, a disciplina e as leis rígidas semelhantes aos adul-
tos mantém a cultura da violência que não traz bons resulta-
dos à sociedade.
Desconstruir é um movimento que pretende sucumbir es-
se paradigma cultural “adultrocêntrico”, instituído na socieda-
de em relação à infância e à adolescência. Buscar inverter esse
sistema a partir da desconstrução e reconstrução de um novo.
Reconstruir novos paradigmas, novos conceitos de infância e
adolescência, obedecendo a critérios de identidade, de diver-
sidade, de estudos e de respeito a esse grupo que, cultural-
mente, não possui voz e nem vez. São imbuídos na ideia de
incapazes e a normatização jurídica é elaborada por adultos
sem a participação da infância e da adolescência.
A história da disciplina do século XIV ao XVII permite-
nos fazer duas observações importantes. Em primeiro lu-
gar, uma disciplina humilhante o chicote ao critério do
mestre e a espionagem mútua em beneficio do mestre,
substituiu um modo de associação corporativa que era o
mesmo tanto para jovens escolares como para os outros
adultos (ARIÉS, 1981, p. 117).

Conceder à infância e à adolescência sujeitos de direitos,


pautados na universalização emancipatória que possibilita a
reconstrução social de uma nova identidade, rompendo com o
paradigma atual da infância e da adolescência que está pau-
tada a sociedade. Assim, as convenções internacionais de di-
reitos humanos e do direito da criança, orientam um novo tra-
tamento, um novo olhar, que “ranços” culturais instituídos pe-

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434
Gilberto Natal Maas

los adultos deixam de existir como pedofilia, exploração do


trabalho infantil, tráfico de drogas, tráfico de órgãos e de cri-
anças tenta-se buscar dignidade humana e sujeitos de direitos.
Deste modo, o amparo da criança e do adolescente pelos
direitos humanos tem um vasto campo de atuação, asseguran-
do os direitos fundamentais de dignidade à vida, proteção e
segurança, sendo que os mesmos necessitam de bem estar,
saúde, cuidado e educação, para futuramente serem adultos
cidadãos sem máculas de um desenvolvimento amplo, onde
fases do desenvolvimento foram ceifadas e que trarão sequelas
ao ser humano e por extensão à sociedade.

CRIANÇA E ADOLESCENTES E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAIS


Porém, a sociedade capitalista consumista está fazendo
das crianças e dos adolescentes vítimas do próprio sistema, no
qual desde muito cedo são vestidos como “homenzinhos e mu-
lherzinhas de miniaturas”, onde meninas usam kit de maquia-
gens e ambos exibem uma grande publicidade de produtos
globais que estão presentes na mídia. Consequentemente,
desde muito cedo nos tempos atuais às crianças deixam de
serem crianças e os adolescentes deixam de ser adolescentes
“adultizando” precocemente.
As exigências que o “mundo do consumo” impõe às cri-
anças e aos adolescentes, não atendem ao “mundo das neces-
sidades básicas,” fazendo com que se consomem de acordo
com a política do capitalismo e não as necessidades básicas.
Não interessa as condições financeiras das famílias, todos con-
somem, segundo a tendência do mundo do mercado, sendo
que os pais tornam se escravos do consumo e das tendências
de mercado.
Ainda há quem justifique a pobreza alegando que as
pessoas compram televisores, videocassetes e carros en-
quanto lhes falta casa própria. Como se explica que famí-
lias que não têm o que comer e vestir durante o ano,
quando chega o Natal dissipem o pouco a mais que ga-
nharam em festas e presentes? Será que os adeptos da
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
435
Crianças e adolescentes: (des)construções do sujeito através da imagem

comunicação de massa não e dão conta de que os notici-


ários mentem e as telenovelas distorcem a vida real
(CANCLINI. 2005. P.59).

A família tão pouco percebe a ação da mídia, que cada


vez mais está presente na sociedade, principalmente a televi-
são que formata opiniões das crianças e dos adolescentes. A
televisão convence a mudar de hábitos, valores culturais e his-
tóricos a partir de apelos consumistas, tanto alimentícios, de
vestuários e linguagens. É comum crianças vestirem roupas de
modelos anunciados na televisão, comendo determinados
chips que seus ídolos consomem, utilizando termos de lingua-
gens, “gírias”, que atores e atrizes usam em telenovelas e em
determinados programas, e até mesmo são comuns crianças
usarem produtos de beleza como cremes, esmaltes, brilhos,
batons, pulseiras corrente, brincos sapatos de salto e cabelos
tingidos, para imitar os ídolos que admiram.
Também podemos perceber que a música é outro canal
de influência midiática que invade o mundo social da criança e
do adolescente, criando uma identidade atravessada de valo-
res alheios e paradigmáticos, danças que dão ênfase à sexua-
lidade, músicas não elaboradas, onde letras não trazem ne-
nhuma mensagem. Enfim, há uma infinidade de lançamentos
que passam como um tsunami, deixando um rastro de conse-
quências na sociedade, destruindo e reconstruindo novos pa-
radigmas.
Percebe-se também que a criança e o adolescente estão
sem iniciativa criadora. Não conseguem criar ou improvisar
brinquedos e brincadeiras, pois a influência externa determina
os mesmos, fazendo com que cada vez mais exista o apelo
propagandístico para consumir brinquedos eletrônicos, digita-
lizados e as “barbi da vida” que aniquilam a capacidade da
criança de criar, dando condições de incapazes, impondo uma
cultura de interesses, no primeiro momento a criança que futu-
ramente será o adolescente e posteriormente o adulto forma-
tado por este sistema.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
436
Gilberto Natal Maas

Dentro do acesso tecnológico, não podemos deixar de


mencionar o desvirtuamento de valores e a influência de mode-
los de sociedade, imposições de ideologias que vêm embutidas
e carregadas de preconceitos nos filmes e joguinhos eletrôni-
cos que estão à disposição na sociedade, contribuindo direta-
mente na descontração, reconstrução da identidade da criança
e do adolescente.
No livro “O Retrato da Juventude Brasileira: Análise de
uma pesquisa nacional”, organizado pela Helena Wendel
Abramo e Pedro Paulo Martoni Branco traz a seguinte afirma-
ção:
Os jovens brasileiros, nascidos no final da década de
1970 para cá, encontram um mundo mudado. Eles fazem
parte de uma geração pós-industrial, pós - guerra Fria e
pós-descoberta da ecologia. Vivem as tensões e os misté-
rios do emprego, da violência urbana e do avanço tecno-
lógico. Em um contexto de intensificação da difusão de
informações, a cultura midiática também oferece espiri-
tualidade. Para os jovens de hoje, multiplicam igrejas e
grupos de várias tradições religiosas. Para eles também
existem possibilidades de combinar elementos de dife-
rentes espiritualidades um síntese “pessoal e intransferí-
vel”. Em síntese: nos dias atuais, surgem constantemen-
te novas possibilidades sincréticas que, ao mesmo tem-
po, (re) produzem identidades institucionais e até novos
fundamentalismos (ABRAMO, 2011, p. 264,265).

Cabe à família ensinar a criança e o adolescente a cuidar


da higiene do corpo, respeitar normas, princípios e valores so-
ciais, distinguir o bom do mal, o certo do errado, socializar e
cultuar a religiosidade da qual o núcleo familiar é adepto, pois
a família é a base para a criança e o adolescente se tornarem
cidadãos, se configurando de modo mais afetuoso possível. Os
pais devem expor a sua autoridade com amor, fazendo com
que a criança cresça e se prepare para ser um adulto feliz e
afetivo com seus descendentes. Temos que romper a cultura
da violência de tratar as crianças e os adolescentes como adul-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
437
Crianças e adolescentes: (des)construções do sujeito através da imagem

tos em miniaturas, um ser acabado, pronto este pode ser o


grande equivoco da sociedade.
A família e a escola retiraram junta a criança da socieda-
de dos adultos. A escola confinou uma infância outrora li-
vre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que
nos séculos XVIII e XIX resultou no enclausuramento to-
tal do internato. A solicitude da família, da igreja, dos
moralistas e dos administradores privou a criança da li-
berdade de que ela gosava entre os adultos. Infringiu o
chicote, a prisão, em suma, as correções reservadas aos
condenados das condições mais baixas. Mas esse rigor
traduzia um sentimento muito diferente da antiga indife-
rença: o amor obsessivo que deveria dominar a sociedade
a partir do século XVIII. É fácil compreender que essa in-
vasão das sensibilidades pela infância tenha resultado
nos fenômenos hoje mais conhecidos do malthusianismo
ou do controle de natalidade. Esse último surgiu no sécu-
lo XVIII, no momento em que a família acabava de se re-
organizar em torno da criança e erguia entre ela mesma e
a sociedade o muro da vida privada (ARIÉS, 1981 p. 95).

Percebemos que as condições sociais das crianças e dos


adolescentes foram tratadas de forma desigual, com oportuni-
dades diferençadas, gerando muitas injustiças sociais, as
quais a sociedade brasileira tenta atenuar com programas so-
ciais de inclusão, dando a essas crianças e adolescentes uma
oportunidade social, profissional e econômica que no passado
foram excluídas. Também o papel preponderante da escola,
que é um instrumento formatador e reprodutor de desigualda-
des sociais que por muito tempo era oferecida somente aos
filhos da elite brasileira.
A constituição da imagem das crianças e dos adolescen-
tes passa pela profunda reestruturação familiar que a socieda-
de atravessa neste momento contemporâneo. A diversidade
cultural e de gênero ocorre que a mulher sai da condição de
dona de casa e engessa no mercado de trabalho, isto se confi-
gurou de forma radicalmente oposta tingindo a estrutura fami-
liar, muitas dessas crianças são criadas fora da família, não

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
438
Gilberto Natal Maas

mais em internatos, mas em escolas infantis, que muitas vezes


não contemplam a necessidade afetiva e amorosa que o filho
necessita de seus pais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção e desconstrução da imagem do sujeito cri-
ança e adolescente, no decorrer da história, os quais foram tra-
tados de forma não digna, perpassando por gerações e cultu-
ras diferentes, umas mais violentas e outras nem tanto, mas
que toda a sociedade age de maneira inadequada em relação
aos direitos, necessidade, segurança e respeito humano. A
agressão, a violência física e psicológica marca presença nas
relações sócio afetiva neste núcleo social.
Apesar dos direitos humanos estarem atuando de forma
efetiva, em certos casos não consegue ultrapassar a cultura de
determinados povos que usam certas práticas que não condi-
zem ao respeito, à dignidade e a vida das crianças e dos ado-
lescentes.
Na atualidade, as crianças e os adolescentes são indiví-
duos, sujeitos de direitos universais, sendo respeitados na di-
versidade, sociais, econômica, sexual, étnica e religiosa, sendo
que o estado possui um aparato de normas jurídicas internas
para que ocorra a proteção desses direitos, como também exis-
tem uma legislação internacional e órgãos que dão apoio e
sustentabilidade a esse processo que deve ser contínuo e vigi-
lantemente acompanhado para que não caia no esquecimento
e possa ocorrer um retrocesso.
Por fim, as crianças e os adolescentes na contemporanei-
dade são influenciados pelas ações das famílias, da sociedade
e dos meios de comunicações sociais, sendo que o processo
histórico, social, econômico e cultural interfere nessas influen-
cias bem como as políticas ideológicas do capitalismo que de-
termina as mudanças de novos paradigmas, (Re)construindo
novos imagens de sujeitos.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
439
Crianças e adolescentes: (des)construções do sujeito através da imagem

REFERÊNCIAS
ABRAMO, Helena Wendel.e BRANCO, Pedro Paulo Martoni. Retra-
tos da Juventude Brasileira: Analise de uma Pesquisa Nacional.
2.ed. São Paulo. Editora fundação Persu Abramo. 2011.
ARIÉS, Philippe. Trad. Dora Flaksman. História social da criança e
da família 2. ed. Rio de Janeiro. Livraria LTC. 1981.
OSÓRIO, Luis Carlos (org). Medicina do Adolescente. Porto Alegre.
Editoras Artes Médicas 1982.
Canclini, Nestor Garcia. Trad. Mauricio Santana Dias. Consumidores
e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 5ª Ed. RJ. Edito-
ra UFRJ. 2005.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A CONTRIBUIÇÃO DAS UNIVERSIDADES NA
PROMOÇÃO DO DIREITO HUMANO À
ALIMENTAÇÃO ADEQUADA

Ivete Maria Kreutz


Nutricionista, Sanitarista, Mestre em Educação nas Ciências pela Universi-
dade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) – Dis-
sertação: Desafios Educacionais no Contexto das Políticas Públicas de Se-
gurança Alimentar e Nutricional. Servidora da Secretaria de Estado da
Saúde - RS.(ivete-kreutz@saude.rs.gov.br)

Resumo
O presente estudo trata da contribuição das Universidades na promoção do Direito
Humano à Alimentação Adequada. Objetivou-se, no âmbito desta discussão, fazer
uma análise reflexiva do papel das Universidades na promoção deste direito. O estu-
do foi realizado a partir de pesquisa bibliográfica em livros, documentos, artigos e
revistas. Os resultados mostram que, sendo a educação estratégia central para o
desenvolvimento dos povos, a segurança alimentar e nutricional/o direito humano à
alimentação adequada e a busca da construção de um sistema alimentar soberano e
sustentável poderão integrar as atividades fins das instituições de ensino e, também,
da educação informal. Na Universidade, a segurança alimentar e nutricional/o direito
humano à alimentação adequada, poderá ser trabalhada de forma regular e de mo-
do contextualizado, em atividades de pesquisa, atividades teórico-práticas, temas
transversais, disciplinas e ou tema geradores. Importante que as intervenções per-
passem as atividades de ensino, pesquisa e extensão, num processo de interlocução
e complementaridade com as diferentes áreas do saber e fazer pedagógicos.
Palavras-chave: Direito Humano à Alimentação Adequada, Rede, Segurança Alimen-
tar e Nutricional, Soberania Alimentar, Universidades.

Abstract
This study addresses the contribution of universities in promoting the Human Right
to Adequate Food. The objective of the scope of this discussion, makes a reflective
analysis of the role of universities in promoting this right. The study was conducted
from literature in books, documents, papers and magazines. The results show that,
with education being a central strategy for the development of people, food security
and nutrition/human right to adequate food and the pursuit of building a sustainable
food system and sovereign purposes can integrate the activities of educational insti-
tutions and also, informal education. At the University, food security and nutrition /
human right to adequate food, can be worked on a regular and contextualized way
in research, theoretical and practical activities, cross-cutting themes, subjects and or
theme generators. Important interventions that pervade the activities of teaching,
research and extension studies in a process of dialogue and complementarities with
the different areas of knowledge and teaching practice.
Keywords: Human Right to Adequate Food, Network, Food Security, Food Sovereign-
ty, Universities.
442
Ivete Maria Kreutz

INTRODUÇÃO
Na sociedade contemporânea, o dinamismo das ciências
se encontra em todos os setores da vida humana. Nesse con-
texto, esforços institucionais das Universidades nas suas ati-
vidades-fins, qualificando programas de ensino, pesquisa e
extensão de forma homogênea, se tornam emergentes.
Os investimentos em programas de ensino são fundamen-
tais, pois
[...] a educação se transforma, de transmissão de saberes
acabados, em inserção no movimento pelo qual as ciên-
cias se transformam de contínuo e logo se inserem no
mundo da vida (MARQUES, 2001, p. 25).

Ainda conforme o autor,


[...] participa da constituição do mundo contemporâneo
um triplo movimento em que se encurtam as distâncias
entre os avanços das ciências e a penetração deles na vi-
da cotidiana das populações [...]; as ciências se requerem
mais específicas e sempre mais interdependentes e com-
plementares na interlocução de seus saberes e em pro-
cessos de crescente complexidade (2001, p. 23).

Com base em Morin (2003, p. 38), entende-se a complexi-


dade – complexus - como o que foi tecido junto; há complexi-
dade quando elementos diferentes são inseparáveis constituti-
vos do todo: como o econômico, o político, o sociológico, o psi-
cológico, o afetivo, o mitológico; e há um tecido interdependen-
te, interativo, e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento
e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes
entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a
multiplicidade.
Pela incidência dos dinamismos das ciências provocados
de contínuo por todos os setores da vida humana em socieda-
de, a educação se transforma de transmissão de saberes aca-
bados, em movimento de constituição das ciências, onde não
se descolam a pedagogia do fazer científico e a pedagogia dos

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
443
A contribuição das universidades na promoção do direito humano à ...

usos dele na vida cotidiana (MARQUES, 2001). Nesse sentido,


a educação promove o conhecimento capaz de apreender pro-
blemas globais, independente do nível de complexidade e ne-
les insere os conhecimentos parciais e locais.
Este texto reflete sobre o papel das Universidades na
promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada, atra-
vés de políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricio-
nal. É resultado de pesquisa realizada ao longo dos anos de
2005 e 2006 (KREUTZ, 2007).

MÉTODO
O estudo foi realizado a partir de pesquisa bibliográfica
em livros, documentos, artigos e revistas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Em muitas Universidades, o tirocínio acadêmico tende a
ser apenas teórico afastado da capacidade reconstrutiva. O
desafio da educação na sociedade contemporânea é a produ-
ção de conhecimento próprio com qualidade formal e política,
capaz de postá-la na vanguarda do desenvolvimento. A essên-
cia acadêmica deverá ser constituída pela pesquisa.
Sobre a pesquisa como princípio norteador e constitutivo
da ação universitária, Demo (2002) compreende que:
Ensinar continua função importante da universidade,
mas não se pode mais tomar como ação auto-suficiente.
Quem pesquisa, tem que ensinar; deve pois, ensinar,
porque “ensina” a produzir, não a copiar. Quem não pes-
quisa, nada tem a ensinar, pois apenas ensina a copiar
(p. 128).

A pesquisa poderá envolver um diálogo crítico e criativo


com a realidade, culminando na elaboração própria e na capa-
cidade de intervenção, é o “aprender a aprender”. Como tal,
fará parte de todo o processo educativo e emancipatório.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
444
Ivete Maria Kreutz

Nas Universidades, geralmente associado à cópia, está o


professor que nunca produziu conhecimento próprio, o profes-
sor que, conforme Vasconcellos (1998) cultiva postura educaci-
onal reprodutiva porque imagina que a nova geração repete a
outra.
Demo (1998, p. 55) define assim o professor:
O professor deve ser orientador do processo de questio-
namento reconstrutivo no aluno. A aula é apenas suporte
secundário deste processo. O perfil do cidadão e do pro-
fissional moderno, de quem se espera competência ques-
tionadora reconstrutiva, não a simples reprodução de sa-
beres e fazeres incorpora precisamente o desafio de edu-
car pela pesquisa (p. 55).

O professor pesquisador acolhe, com a mesma dignidade,


teoria e prática, e dialoga com a realidade. Toda teoria precisa
confrontar-se com a prática, e toda prática precisa retornar à
teoria. A Universidade como espaço privilegiado de educação,
deve servir de fomento à cidadania. Ter compromisso com a
transformação e a consequente organização e ação de inter-
venção na realidade.
Num país onde cerca de 22 milhões de pessoas passam
fome (IPEA, 2002) e outros milhões vivem em situação de inse-
gurança alimentar, é inadmissível que a discussão da Segu-
rança Alimentar e Nutricional/O Direito Humano à Alimenta-
ção Adequada e a busca da construção de um Sistema Alimen-
tar Soberano e Sustentável não façam parte das discus-
sões/ações do cotidiano nos diferentes cursos de graduação e
pós-graduação das Universidades, seja na forma temas trans-
versais, seja nas disciplinas curriculares, pois a Universidade
tem um papel social a cumprir, que é o da promoção da cida-
dania e inclusão social (KREUTZ, 2010).
No entanto, a abordagem da Segurança Alimentar e Nu-
tricional necessita de um enfoque sistêmico (integral), requer-
se uma atenção especial para que as disciplinas não impeçam
o vínculo entre as partes e a totalidade (reducionismo discipli-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
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A contribuição das universidades na promoção do direito humano à ...

nar), pois é necessário apreender os objetivos em seu contexto,


na sua complexidade, em seu conjunto.
Sobre isso, manifesta-se D’Ambrósio (2001, p.111):
O currículo do futuro não se mostrará organizado em dis-
ciplinas, mas sim, através de grandes temas. Os temas
que deverão estar presente nas novas propostas curricu-
lares deverão reconhecer o que é essencial no conheci-
mento e no comportamento humano, que estão explícitos
no triângulo da vida e no triângulo das intermediações,
indivíduo - outro/sociedade - natureza.

O fomento das discussões poderá envolver o enfoque na


compreensão da insegurança alimentar e nutricional como re-
sultado da dinâmica de forças que se estabelece no âmbito das
relações de poder, que mantém grande parte da população na
exclusão social, relegada à fome, à miséria, à pobreza, a modos
de vida não saudáveis, à falta de oportunidades e à desigual-
dade social.
Frantz (2006, p.7) reconhece que, “A Universidade será
um pouco daquilo que as pessoas souberem ou conseguirem
fazer como projeto de sociedade”.
A educação e o saber social precisam andar juntos.
Frigotto (1996, p. 26) compreende o saber social como:
[...] o conjunto de conhecimentos e habilidades, atitudes
e valores que são produzidos pelas classes em uma situ-
ação histórica dada de relações para dar conta de seus
interesses e necessidades.

Cursos de graduação e pós-graduação de áreas como a


Nutrição, a Geografia, a História, a Medicina, a Química, a Bio-
logia, a Economia, a Medicina Veterinária, a Agronomia, as
Ciências Sociais, a Pedagogia, o Direito, entre outros, necessi-
tam um aprofundamento teórico e prático muito maior em Se-
gurança Alimentar e Nutricional, visto que, as condições histó-
ricas para a constituição da maior parte desses campos cientí-
ficos trazem no bojo estudos e pesquisas que levaram aos cur-
sos de formação de profissionais e à intervenção, em Nutrição;
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
446
Ivete Maria Kreutz

o envolvimento dos demais campos científicos justifica-se pela


interdependência e complementaridade com a questão do Di-
reito Humano à Alimentação Adequada. (KREUTZ, 2010).
No Brasil, a perspectiva social da Nutrição começou a ser
desenvolvida entre a decada dos ano 1930 e 1940. A preocupa-
ção central era com os aspectos relacionados à produção, à
distribuição e ao consumo de alimentos para a população bra-
sileira, principalmente, pelas concepções do pioneiro da Nutri-
ção na América Latina, Pedro Escudero.
Entre os integrantes do núcleo inicial da perspectiva so-
cial da Nutrição, cuja atuação era voltada para o coletivo, a
população, a sociedade, a economia e a disponibilidade de
alimentos, destacam-se Josué de Castro, Heitor Annes Dias,
Dante Costa, Thales de Azevedo, Peregrino Júnior, Seabra Vel-
loso, Silva Telles, Gilberto Freire, Jamesson Ferreira Lima, Na-
íde Regueira Teodósio, Nelson Chaves, Orlando Parahym e Ruy
Coutinho.
Em 1932, sob a influência de Escudero, Josué de Castro
realizava a pesquisa “As Condições de Vida das Classes Ope-
rárias no Recife”, uma investigação baseada na metodologia
de orçamento e padrão de consumo alimentar entre quinhen-
tas famílias de três bairros operários daquela cidade. Os resul-
tados desse trabalho, considerado o primeiro inquérito dietéti-
co-nutricional do Brasil, tiveram ampla divulgação nacional,
estimulando inclusive estudos similares. O sociólogo Gilberto
Freyre, em 1933, publicava o seu clássico Casa - Grande &
Senzala, até então, o primeiro e mais completo ensaio socioló-
gico sobre o padrão e os hábitos alimentares da sociedade
brasileira (VASCONCELOS, 2002). Nelson Chaves publicava
seus artigos científicos nos campos da Endocrinologia e Fisio-
logia Nutricional (1932). A totalidade integradora (visão sistê-
mica/ecológica) com que esses autores produziam precisa ser
resgatada e ressignificada na universidade contemporânea.
O papel central das Universidades é a produção de co-
nhecimento. Para Favero (1989), essa produção deverá se dar
com qualidade formal (inovação pelo conhecimento) e política
(intervenção ética e cidadania), capaz de postá-la na vanguar-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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A contribuição das universidades na promoção do direito humano à ...

da do desenvolvimento. A pesquisa deve ser compreendida


como princípio científico e educativo, ou seja, como estratégia
de geração de conhecimento e de promoção da cidadania. A
pesquisa significa diálogo crítico com a realidade, culminando
na elaboração própria e na capacidade de intervenção e pro-
dução de redes de atenção entrelaçadas ao desenvolvimento.
Em tese, pesquisa é a atitude de “aprender a aprender”
e, como tal, faz parte de todo processo educativo e emancipa-
tório. Cabe - deve caber –, portanto, no pré-escolar e na pós-
graduação. No caso do pré-escolar e escolar, a pesquisa enfoca
o princípio educativo (questionar e construir alternativas), já
na graduação e pós-graduação aparece mais como princípio
científico.
Demo (2002) compreende que, “a pesquisa, tanto como
princípio científico, quanto educativo, exige profunda compe-
tência e renovação incessante”.
Ainda conforme o autor,
[...] só aprende quem aprende a aprender. Quando a pes-
quisa dialoga com a realidade, ela acolhe com a mesma
dignidade a teoria e a prática. Toda teoria precisa con-
frontar-se com a prática, e toda a prática precisa retornar
à teoria.

Para compor os métodos que permitam estabelecer as re-


lações mútuas e as influências recíprocas entre as partes e o
todo em um mundo complexo, a Universidade deverá “confir-
mar papel imprescindível e gerador frente ao desenvolvimento
humano, desde que se fizer o signo exemplar da formação da
competência, indicando a gestação do cidadão capaz de inter-
vir eticamente na sociedade e na economia” (DEMO, 1998, p.
55). Por competência compreende-se a capacidade de fazer e
fazer-se oportunidade; refere-se, sempre, ao desafio da quali-
dade formal e política, ao processo de formação do sujeito his-
tórico capaz de inovar, mas, sobretudo de humanizar a inovação.
Conforme o relatório da “Comissão Internacional sobre a
Educação para o Século Vinte e Um”, ligada a UNESCO

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
448
Ivete Maria Kreutz

(NICOLESCU, 1999, p. 132), quatro pilares compõem o novo


tipo de educação:
o Aprender a conhecer: ser capaz de estabelecer pontes
– entre os diferentes saberes, entre os saberes e seus
significados para nossa vida cotidiana; entre estes sa-
beres e significados e nossas capacidades interiores.
o Aprender a fazer: refere-se à aquisição de uma profis-
são e dos conhecimentos e práticas que lhe estão as-
sociados; toda profissão no futuro deveria ser uma ver-
dadeira profissão a ser tecida, uma profissão que esta-
ria ligada, no interior do ser humano, aos fios que a li-
gam a outras profissões. Não se trata, de adquirir vá-
rias profissões ao mesmo tempo, mas de construir inte-
riormente um núcleo flexível que rapidamente daria
acesso a outra profissão; “aprender a fazer” é um
aprendizado da criatividade – fazer o novo, criar, trazer
suas potencialidades criativas à luz; construir uma
pessoa verdadeira significa assegurar-lhe as condições
de realização máxima de suas potencialidades criadoras.
o Aprender a viver em conjunto: significa, o respeito pe-
las normas que regem as relações entre os seres que
compõem uma coletividade. No entanto, para que as
normas de uma coletividade sejam respeitadas, elas
devem ser validadas pela experiência interior de cada
ser, “reconhecer-se a si mesmo na face do outro”. Tra-
ta-se de um aprendizado permanente, que deve come-
çar na mais tenra infância e continuar ao longo da vida.
o Aprender a ser: é um aprendizado permanente no qual
o educador informa o educando tanto quanto o edu-
cando informa o educador; “aprender a ser” também é
aprender conhecer e respeitar aquilo que liga o sujeito
e o objeto; o outro e eu construímos juntos o sujeito li-
gado ao objeto.

Conforme o Papa João Paulo II e o Secretário Geral da Or-


ganização das Nações Unidas, Annan: “o século XXI abre-se
com uma exigência fundamental: compatibilizar globalização
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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A contribuição das universidades na promoção do direito humano à ...

econômica e crescimento tecnológico com equidade e desen-


volvimento humano para todos” (KLISBERG, 2003, p. 69). A
Universidade, por ser um local privilegiado de formação, preci-
sa estar adaptada às exigências de nosso tempo, pois é o eixo
da educação dirigida aos adultos que acaba alcançando tam-
bém as crianças e adolescentes, tem um papel fundamental
em trabalhar interna e externamente o desenvolvimento, com a
revalorização do capital humano e o capital social em detri-
mento da racionalidade instrumental (produzir e consumir) que
vem da lógica do capital.
Para Demo (2002, p. 129), “o compromisso educativo da
Universidade não pode ser resgatado pela extensão, porque
deveria ser intrínseco à pesquisa como tal”. Sobre este aspec-
to, Marques (2001) salienta que se impõe a necessidade de que
os currículos sejam continuamente revistos sob o princípio
educativo da pesquisa, atendendo às condições e os objetivos
que se colocam para cada etapa de formação. Já Gurgel (1986)
ressalta que a prática tem que ser curricular, como qualquer
matéria, e sempre volta à teoria. E vice-versa. Em relação à
questão, Morin (2003, p.14) destaca que a supremacia do co-
nhecimento fragmentado de acordo com as disciplinas impede
frequentemente de operar o vínculo entre as partes e a totali-
dade, e deve ser substituído por um modo de conhecimento
capaz de aprender os objetivos em seu contexto, sua comple-
xidade, seu conjunto. O que pressupõe um entrelaçamento
constante entre teoria e prática.
Em relação à Segurança Alimentar e Nutricional, as pes-
quisas são emergentes e devem ser facilitadas visando à me-
lhoria da qualidade de vida da população. O desenvolvimento
de pesquisas é importante porque os resultados poderão servir
como instrumentos de planejamento, gestão e avaliação de
políticas públicas e poderão envolver os diversos cursos de
graduação e pós-graduação que tenham intercomplementari-
dade com a segurança alimentar e nutricional e/ou com a con-
quista deste direito.
Para Morin (2003), as realidades ou problemas são cada
vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais,

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
450
Ivete Maria Kreutz

transnacionais, globais e planetárias. Por isso, o exercício da


visão sobre os processos deverá ser sistêmico; quanto mais
sistêmica for a visão sobre os processos, maior a integralidade
da compreensão e intervenção sobre os mesmos.
Dada a diversidade de áreas abrangidas pela pesquisa
científica e tecnológica e o fato de a maior parte das Universi-
dades atuarem por meio de campi avançados, o apoio prioritá-
rio deverá ser dado a pesquisas e projetos de combate à inse-
gurança alimentar e nutricional e de promoção da qualidade de
vida da população nos seus territórios de inserção, locais e re-
gionais.
Mesmo que o tema da pesquisa seja aparentemente local,
é necessária a conexão entre o micro e o macro, o local e o glo-
bal. Através de núcleos de estudo e grupos de pesquisa, a in-
tervenção poderá também ser desenvolvida em locais e regi-
ões onde as carências são maiores.
As atividades de extensão são de uma importância ímpar,
podendo, inclusive, visar à integração com outras universida-
des tanto no âmbito regional, estadual e nacional, quanto in-
ternacional. Porém, a atuação prioritária poderá ser voltada
aos territórios regionais de inserção das universidades, estabe-
lecendo parcerias, num processo de assessoramento a entida-
des da sociedade civil, iniciativas autogestionárias (cooperati-
vas, associações), movimentos sociais, conselhos munici-
pais/regionais, inclusive conselhos regionais de desenvolvi-
mento e aos diversos níveis de governo (federal, estadual e
municipal).
Uma ênfase especial poderá ser dada ao setor produtivo,
visando a qualificar os sistemas locais de produção e a geração
de alternativas de trabalho e renda. O estabelecimento de par-
cerias, num processo de co-produção, fomenta a interlocução
entre os diversos atores, disparando processos de movimento,
através da discussão dos nós críticos, buscando a ampliação
da visão sobre os sistemas e estimulando a co-gestão como for-
ma de acolhimento e inserção nas diferentes redes de atenção.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
451
A contribuição das universidades na promoção do direito humano à ...

A intervenção da Universidade não pode mais ser limita-


da no tempo, deve ser permanente, educador e educando de-
vem estar inseridos neste contexto.
Para Demo (1998, p. 36)
[...] é preciso situar as informações e os dados em seu
contexto para que adquiram sentido. Para ter sentido, a
palavra necessita do texto, que é o próprio contexto, e o
texto necessita do contexto no qual se enuncia.

As Universidades têm um papel fundamental nas políti-


cas de inclusão social baseadas, principalmente, na inclusão
cultural. Para Kliksberg (2003, p. 122), “a cultura engloba valo-
res, percepções, imagens, formas de expressão e comunicação
e muitos outros aspectos que definem a identidade das pesso-
as e das nações”.
Na luta contra a pobreza e a exclusão social, a cultura é
um elemento chave.

CONCLUSÃO
Os projetos das Universidades poderão estar em sintonia
com as demandas sociais, possibilitando que o conhecimento
produzido pela academia possa ser compartilhado e submetido
à crítica, por meio de debate qualificado. Somente assim, a
Universidade estará tecendo profissionais com capacidade de
inserção social: conscientes, críticos, reconstrutivos, humani-
zadores, cidadãos, com intervenção inovadora e ética na soci-
edade como um todo.
As atividades de ensino, pesquisa e extensão que com-
põem o todo da Universidade poderão ser planejadas, imple-
mentadas e avaliadas de forma sistêmica, homogênea, com
todas as complexidades que lhe são inerentes, inclusive medi-
ante avaliações externas.
As desigualdades sociais e regionais, no Brasil, são imen-
sas, torna-se imprescindível, portanto, um modelo de atenção
às políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional,

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
452
Ivete Maria Kreutz

que sejam comprometidas com as reais necessidades da popu-


lação e integre as duas faces da insegurança alimentar e nutri-
cional da população: a desnutrição e outras doenças carên-
ciais; o sobrepeso, a obesidade e outras Doenças Crônicas Não
Transmissíveis (DCNT) como as doenças cardiovasculares, o
diabete mellitus, as neoplasias. A articulação das políticas es-
pecíficas e emergenciais, com as políticas estruturantes, é
fundamental para que se possa efetivamente romper com o
ciclo da insegurança alimentar e nutricional.
Ampliando-se a atuação, torna-se necessária a formação
de meta redes que integrem Universidades, Escolas, Movimen-
tos Sociais, Fóruns, Conselhos, Organismos Públicos, Organi-
zações Não Governamentais, entre outros, colocando a insegu-
rança alimentar e nutricional na ótica da cidadania, no centro
do cenário político, como uma questão ética, que diz respeito
às regras de eqüidade nas relações sociais, que garantam ao
cidadão uma vida digna, com capacidade de autogestão, sen-
tindo-se um cidadão com iniciativa, invenção e criatividade.
O objetivo dos espaços institucionais de participação das
redes e organizações da sociedade civil, poderá ser o de dispor
de instâncias e instrumentos que permitam articular as dife-
rentes redes sociais e entidades visando a permitir que a soci-
edade participe, efetivamente, da formulação e implementação
de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional,
bem como, os titulares de direitos devem ter a possibilidade de
exigir a realização de seus direitos e reclamar sobre a existên-
cia de violação ao direito humano à alimentação adequada,
junto ao Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, por meio de
instrumentos de exigibilidade administrativos, políticos, quase
judiciais e judiciais.
Os mecanismos de controle social são importantes e são
condição necessária para se atingir, plenamente, os objetivos
de uma política pública de segurança alimentar e nutricional.
A mobilização social deverá visar à construção de um modelo
de sociedade mais eqüitativo, ambientalmente sustentável e
que tenha a segurança alimentar e nutricional/o direito huma-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
453
A contribuição das universidades na promoção do direito humano à ...

no à alimentação adequada, como eixos estratégicos de de-


senvolvimento.
No entanto, para garantir um desenvolvimento integral e
sustentável, o grave problema da desigualdade poderá fazer
parte da agenda política nacional, numa discussão de um mo-
delo de desenvolvimento que valorize o capital humano, com
investimentos sistemáticos e contínuos em educação, saúde,
nutrição e outras áreas, e valorize o capital social, os valores
compartilhados, a cultura, a capacidade para agir sinergica-
mente e produzir redes de acordos voltados para o interior da
sociedade.
Na Universidade, a Segurança Alimentar e Nutricional/O
Direito Humano à Alimentação Adequada, poderá ser traba-
lhada de forma regular e de modo contextualizado, em ativida-
des de pesquisa, atividades teórico-práticas, temas transver-
sais, disciplinas e ou tema geradores. Importante que as inter-
venções perpassem as atividades de ensino, pesquisa e exten-
são, num processo de interlocução e complementaridade com
as diferentes áreas do saber e fazer pedagógicos.

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454
Ivete Maria Kreutz

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO
ADEQUADA, COM SEGURANÇA E
SOBERANIA ALIMENTAR

Ivete Maria Kreutz


Nutricionista, Sanitarista, Mestre em Educação nas Ciências pela Universi-
dade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) – Dis-
sertação: Desafios Educacionais no Contexto das Políticas Públicas de Se-
gurança Alimentar e Nutricional. Servidora da Secretaria de Estado da
Saúde - RS. (ivete-kreutz@saude.rs.gov.br)

Resumo
O presente estudo trata do Direito Humano à Alimentação Adequada, com Seguran-
ça e Soberania Alimentar. Objetivou-se, no âmbito desta discussão, fazer uma análi-
se histórica e levantamento das interfaces entre o Direito Humano à Alimentação
Adequada, a Segurança e a Soberania Alimentar. O estudo foi realizado a partir de
pesquisa bibliográfica em livros, documentos, artigos e revistas. Os resultados mos-
tram que, nacional e internacionalmente tivemos muitos avanços na conquista deste
direito. No entanto, necessitamos de uma rede de conexões de entidades governa-
mentais, não-governamentais e sociedade civil com relações de interdependência e
intercomplementaridade e com vontade política de implementar Políticas Públicas
de Segurança Alimentar e Nutricional que sejam soberanas, inclusivas, democráticas,
educativas e ecologicamente sustentáveis.
Palavras-chave: Direito Humano à Alimentação Adequada, Segurança Alimentar e
Nutricional, Soberania Alimentar, Rede.

Abstract
This study addresses the Human Right to Adequate Food, Food Sovereignty and with
Security. The objective of the scope of this discussion, is to do a survey and historical
analysis of interfaces between the Human Right to Adequate Food, Security and
Food Sovereignty. The study was conducted from literature in books, documents,
papers and magazines. The results show that the international and national
standards recognize the right of everyone to adequate food as a prerequisite for the
realization of other human rights. However, despite the advances and the existence
of a set of standards in innovative Brazilian legal system, which turns out, in fact, is
the failure of these advancements to ensure the practical realization of the Human
Right to Adequate Food. We need a network of connections to government
agencies, non-governmental and civil society relations and interdependence
intercomplementarity and political to implement public policies on food and
nutrition security to be sovereign, inclusive, democratic, educational and ecologically
sustainable.
Keywords: Human Right to Adequate Food, Food Security, Food Sovereignty
Network.
456
Ivete Maria Kreutz

INTRODUÇÃO
Na sociedade contemporânea, dada à complementarida-
de das ciências, diversos desafios se apresentam no contexto
das políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional/O
Direito Humano à Alimentação Adequada com Soberania Ali-
mentar. Atualmente, mais da metade da população mundial
sofre de algum tipo de problema de nutrição, seja por deficiên-
cia, seja por excesso.
De acordo com dados do Wolfensohn (2002), 1,3 bilhões
de habitantes do planeta recebem uma renda menor do que
um dólar por dia, encontrando-se, por conseguinte, em situa-
ção de pobreza aguda. Dois quintos da população mundial não
dispõem de serviços sanitários adequados e de eletricidade.
(KLIKSBERG, 2002).
Nesse contexto mundial, encontram-se tendências clara-
mente opostas. De um lado, progressos potencialmente impor-
tantes em certas direções, como o desenvolvimento explosivo
das comunicações e, ao mesmo tempo, dificuldades de fundo
em continentes inteiros, como na América Latina, na África e
em grandes regiões da Ásia; sérios problemas na transição das
economias da Europa Oriental rumo a novos modelos econômi-
cos; crescimentos econômicos limitados ou recessão, no mun-
do desenvolvido. E tudo isso num contexto de iniqüidade em
termos econômicos e políticos.
Nesse cenário, torna-se fundamental a busca pela formu-
lação e implementação de políticas públicas inclusivas e de-
mocráticas, com o Estado voltado ao desenvolvimento social.
Conforme o Sistema Internacional de Direitos Humanos, origi-
nalmente previstos pelas Nações Unidas (Comentário Geral
Nº12), o papel do Estado na questão das políticas sociais é o
de Respeitar, Proteger, Promover e Prover. Somente assim, o
Estado estará voltado ao desenvolvimento integral e sustentá-
vel do seu território e de sua população.
Este texto reflete sobre o Direito Humano à Alimentação
Adequada, com Segurança e Soberania Alimentar, visando à
promoção de políticas públicas de Segurança Alimentar e Nu-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
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Direito humano à alimentação adequada...

tricional. É resultado de pesquisa realizada ao longo dos anos


de 2005 e 2006 (KREUTZ, 2007).

MÉTODO
O estudo foi realizado a partir de pesquisa bibliográfica
em livros, documentos, artigos e revistas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
O Direito Humano à Alimentação Adequada se constitui
em um dos pilares mais importantes da Segurança Alimentar e
Nutricional, aliado à Soberania Alimentar.

O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA


O Direito Humano à Alimentação tem merecido tratamen-
to e destaque em diversas instâncias e ocasiões, em eventos
internacionais ou em documentos provenientes deles, ele está
contemplado de forma especial no artigo 25 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948; no Pacto Internacio-
nal sobre Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais
de 1966, onde a definição foi ampliada e a alimentação é reco-
nhecida como Direito Humano; no Comitê dos Direitos Econô-
micos e Sociais da Organização das Nações Unidas (ONU,
1999) “Comentário Geral 12”, onde a definição dos direitos re-
lacionados à alimentação é mais detalhada.
O Direito Humano à Alimentação Adequada adquiriu re-
levância no âmbito dos Estados e nos espaços da sociedade
civil, especialmente a partir das Cúpulas Mundias de Alimen-
tação (ROMA, 1996 e 2002). Nelas, os Estados membros apro-
vam um Plano de Ação que estabelece uma série de compro-
missos, dentre os quais o de atingir segurança alimentar para
todos e reduzir pela metade o número de pessoas que passam
fome no mundo até 2015. Esta meta já foi alcançada por países
latinos como Chile, México, Equador e Brasil, mas está muito
aquém de sua realização, em alguns países da América Latina

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
458
Ivete Maria Kreutz

e no Caribe. A Cúpula Mundial de Segurança Alimentar


(ROMA, 2009), foi amplamente criticada por sua falta de subs-
tância, diante da urgência do contexto de crise do sistema ali-
mentar mundial que intensificou o número de pessoas em es-
tado de fome no mundo.
No Brasil, diversas conquistas relativas aos Direitos Hu-
manos já são reconhecidas atualmente, nas áreas da Educa-
ção, Saúde, Propriedade, Direitos da Criança e do Adolescente,
Direitos da Mulher etc. e recentemente, o Direito Humano à
Alimentação. A partir da realização da Conferência Nacional
de Alimentação e Nutrição (1986) e das Conferências Nacio-
nais de Segurança Alimentar e Nutricional (II CNSAN 2004 e III
CNSAN 2007), fortaleceu-se o princípio da alimentação como
um direito de cidadania, no horizonte dos desdobramentos es-
pecíficos da Constituição Federal de 1988. Um marco impor-
tante na legislação brasileira foi a sanção da Lei da Renda de
Cidadania (Lei 10.835, de 08/01/2004). Outro passo importante
foi a sanção da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutri-
cional (LOSAN, Lei 11.346/2006), que incorpora os princípios
dos instrumentos internacionais sobre o Direito Humano à
Alimentação Adequada e cria o Sistema Nacional de Seguran-
ça Alimentar e Nutricional (SISAN), visando assegurar o Direito
Humano à Alimentação Adequada e estabelecer um conjunto
de definições com diretrizes, princípios, objetivos e a própria
composição do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional
(SISAN).
Conforme a LOSAN:
A alimentação adequada é um direito fundamental do ser
humano, inerente à dignidade da pessoa humana e in-
dispensável à realização dos direitos consagrados na
Constituição Federal, devendo o poder público adotar as
políticas e ações que se façam necessárias para promo-
ver e garantir a segurança alimentar e nutricional da po-
pulação. (LOSAN, art. 2º)

Neste contexto, o Brasil passa progressivamente a incor-


porar a dimensão dos Direitos Humanos em seu ordenamento

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Direito humano à alimentação adequada...

legal, particularmente o Direito Humano à Alimentação Ade-


quada. Recentemente o Estado brasileiro incorporou a Emenda
Constitucional nº 64/2010, que inclui o direito à alimentação no
artigo 6º da Constituição Federal, pondo este direito em condi-
ção de igualdade jurídica com os demais direitos fundamentais
como a educação, a saúde, o trabalho, a segurança e a habita-
ção. Portanto, se a alimentação é um direito humano funda-
mental e constitucional, o desafio deste momento é garantir a
sua efetivação em todo território nacional para que ele, de fato,
se torne um direito de todos e todas.
Sob a ótica do Direito, princípios da Universalidade, asso-
ciados ao da Indivisibilidade, da Interdependência e do Res-
peito à Diversidade servem para analisar tanto os produtos da
ação ou da falta de ação (omissão) pública quanto os próprios
processos pelos quais essas ações se realizam. É inaceitável
que determinada necessidade seja suprida por meio de ações
que envolvam algum tipo de discriminação, humilhação, de-
pendência etc.
Após a sanção da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e
Nutricional (LOSAN, Lei 11.346/2006), diversos Estados (AP,
BA, DF, MA, MG, PB, PE, PI, PR, RJ e RS) já possuem sua legis-
lação específica (LOSAN estadual), que facilita a exigibilidade
do direito humano à alimentação adequada no âmbito estadual.
Ao longo da história da humanidade, têm sido raras as si-
tuações em que sociedades humanas conseguiram garantir
uma alimentação de qualidade a todos. Sobre isso, Valente
(2002, p. 39) ressalta que:
Nenhum dos paradigmas de desenvolvimento adotados
nos últimos séculos possibilitou a superação da fome, da
desnutrição e de outras doenças carenciais relacionadas
à alimentação, de forma sustentável. Cerca de um quinto
da humanidade ainda padece destes flagelos. Esta situa-
ção reflete a exploração, a negação do direito à partilha
da riqueza produzida e mesmo a exclusão social e eco-
nômica de parcelas significativas da humanidade.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
460
Ivete Maria Kreutz

As novas práticas agropecuárias, com a utilização maciça


de insumos químicos, a monocultura e as mudanças de hábitos
alimentares, principalmente na zona urbana, têm contribuído
para o aumento da insegurança alimentar. Com essa realidade,
agravam-se cada vez mais as condições epidemiológicas, di-
minuindo a qualidade de vida da população, aumentando a
massa dos miseráveis e excluídos e, conseqüentemente, os
indicadores da insegurança alimentar. Por outro lado, crescem
também na população as Doenças Crônicas Não Transmissí-
veis (DCNT), derivadas de uma alimentação excessiva e ou
inadequada.
Para Valente (2002), o distanciamento, a falta de informa-
ção e a perda de controle dos seres humanos sobre o processo
de produção, seleção, preparo e consumo dos alimentos é par-
te central deste processo.
Os Direitos Humanos ainda necessitam de melhores en-
tendimentos e aceitação, como é o caso do direito humano à
alimentação, que ainda é pouco reconhecido pela sociedade,
embora já venha sendo trabalhado há muitos anos no campo
da segurança alimentar e nutricional.
Importante é que a luta pelo direito humano à alimenta-
ção adequada se apóie na característica de direito natural ao
alimento, pois a alimentação é essencial para o crescimento,
desenvolvimento, manutenção e perpetuação das espécies.
Tartaglia (1996, p. 123) compreende que:
No passado remoto o ato de se alimentar era um ato na-
tural, ou seja, o homem trabalhava algumas horas para
conseguir os alimentos necessários à sua alimentação. A
evolução trouxe a divisão do trabalho e a troca entre pro-
dutores, o que começou a transformar o ato natural da
alimentação. Esse aspecto se aprofundou com o capita-
lismo através da mercantilização e com isso não basta ao
homem trabalhar para comer. O trabalho significa salário
e este é transformado em produtos do mercado, onde os
preços, qualidade e quantidade de mercadorias disponí-
veis sofrem processos complexos de determinação. O ato

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Direito humano à alimentação adequada...

de alimentar-se, portanto, não é mais um ato natural e is-


so talvez seja irreversível.

A busca da garantia do direito à alimentação adequada à


todos os brasileiros passa pela construção de um novo para-
digma de sociedade, que privilegie as políticas sociais e a qua-
lidade de vida da população. É inaceitável que o Brasil, um dos
maiores produtores de alimentos do mundo, ainda conviva com
a situação de milhões de brasileiros excluídos da cidadania e
do mais básico dos direitos humanos, que é a alimentação.
Chegar ao reconhecimento do Direito Humano à Alimen-
tação implicou um longo caminho; chegar à concretização des-
se direito dependerá de uma rede de conexões de entidades
governamentais, não-governamentais e sociedade civil com
relações de interdependência e intercomplementaridade e com
vontade política de realmente erradicar a fome e a miséria e de
implementar Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nu-
tricional que sejam inclusivas, democráticas, educativas e eco-
logicamente sustentáveis (KREUTZ, 2010).

SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL


O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional evolui
na medida em que avança a história da humanidade e alteram-
se a organização social e as relações de poder, ele ainda hoje,
é um conceito em construção. A questão alimentar está relaci-
onada com os mais diferentes tipos de interesses e essa con-
cepção, na realidade, ainda é palco de grandes disputas.
O primeiro entendimento sobre segurança alimentar (ain-
da que não fosse este o nome utilizado) já surgiu nos indiví-
duos do início da humanidade, compreendido como a necessi-
dade de garantir o alimento de cada dia para si e para os seus.
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) o termo
Segurança Alimentar passou a ser utilizado na Europa. Nessa
época, o seu conceito tinha estreita ligação com o conceito de
Segurança Nacional e com a capacidade de cada país produzir
sua própria alimentação, de forma a não ficar vulnerável a pos-

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
462
Ivete Maria Kreutz

síveis embargos, cercos ou boicotes devido a razões políticas


ou militares.
Para Valente, o conceito de Segurança Alimentar ganha
força a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e, em
especial, a partir da constituição da Organização das Nações
Unidas (ONU), em 1945. No seio das recém-criadas organiza-
ções intergovernamentais já se podia observar a tensão políti-
ca entre os organismos que entendiam o acesso ao alimento de
qualidade como um direito humano (FAO e outros), e alguns
que entendiam que a segurança alimentar seria garantida por
mecanismos de mercado (Instituições de Bretton Woods, tais
como o Fundo Monetário Internacional - FMI e o Banco Mundi-
al, dentre outros). Essa tensão era um reflexo da disputa políti-
ca entre os principais blocos em busca da hegemonia.
(VALENTE, 2002).
Após a Segunda Guerra, a Segurança Alimentar foi he-
gemonicamente tratada como uma questão de insuficiente
disponibilidade de alimentos. Em resposta, foram instituídas
iniciativas de promoção de assistência alimentar, que eram
feitas em especial, a partir dos excedentes de produção dos
países ricos.
Nessa época, ocorreu um retrocesso considerável em re-
lação à compreensão de segurança alimentar. Isso porque, de
um lado, diminuiu-se a influência anterior do direito humano à
alimentação e, de outro, deu-se forte apoio à “Revolução Ver-
de”, que propunha o aumento mundial da produção de alimen-
tos através de uma nova tecnologia baseada na utilização ma-
ciça de produtos químicos no solo e nas plantas e na mecani-
zação intensiva do trabalho agrícola.
Conforme Brum (1988, p. 44),
[...] a chamada “Revolução Verde” foi um programa que
tinha como objetivo explícito contribuir para o aumento
da produção e produtividade agrícolas no mundo, através
do desenvolvimento de experiências no campo da gené-
tica vegetal para a criação e multiplicação de sementes
adequadas às condições dos diferentes tipos de solos e
climas e resistentes às doenças e pragas, bem como o da
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
463
Direito humano à alimentação adequada...

descoberta e aplicação de técnicas agrícolas ou tratos


culturais mais modernos e eficientes.

Por trás dessa imagem humanitária da “Revolução Ver-


de”, ocultavam-se poderosos interesses econômicos e políticos
ligados à expansão e fortalecimento das grandes corporações a
caminho da transnacionalização. Na opinião de Valente, a Se-
gurança Alimentar afastava-se, então, do pano de fundo origi-
nal dos Direitos Humanos. A questão central passava a ser de
produção de alimentos, e não de Direito Humano aos Alimen-
tos. A ênfase estava na comida, e não no ser humano
(VALENTE, 2002).
A partir da Revolução Verde, iniciou-se uma recuperação
da produção mundial de alimentos. No entanto, verificou-se
que a Segurança Alimentar não dependia somente da quanti-
dade de alimentos produzidos, pois, apesar de existirem ali-
mentos em quantidade suficiente, o número de pessoas que
não dispunha deles também aumentava. Assim, a noção de
acesso aos alimentos foi ganhando força como elemento impor-
tante e central da Segurança Alimentar.
No início da década dos anos 1970, a crise mundial de
produção de alimentos levou a Conferência Mundial de Ali-
mentação, de 1974, a identificar que a garantia da Segurança
Alimentar teria que passar por uma política de armazenamento
estratégico e de oferta de alimentos, associada à proposta de
aumento da produção de alimentos. Ou seja, não era suficiente
só produzir alimentos, mas também garantir a regularidade do
abastecimento. Foi neste contexto que a Revolução Verde foi
intensificada, inclusive no Brasil, com um enorme impulso na
produção de soja. Essa estratégia aumentou a produção de
alimentos, mas, paradoxalmente, fez crescer o número de fa-
mintos e de excluídos, pois o aumento da produção não impli-
cou aumento da garantia de acesso aos alimentos.
A partir dos anos 1980, os ganhos contínuos de produti-
vidade na agricultura continuaram gerando excedentes de
produção e aumento de estoques, resultando na queda dos
preços dos alimentos. Estes excedentes alimentares passaram

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
464
Ivete Maria Kreutz

a ser colocados no mercado sob a forma de alimentos industria-


lizados, sem que houvesse a eliminação da fome e da miséria.
Nessa década, reconhece-se que uma das principais causas da
insegurança alimentar da população era a falta de garantia de
acesso físico e econômico aos alimentos, em decorrência da
pobreza e da falta de acesso aos recursos necessários para a
aquisição de alimentos, principalmente acesso a renda e a terra.
Assim, o conceito de Segurança Alimentar passou a ser relacio-
nado com a garantia de acesso físico e econômico de todos, de
forma permanente, a quantidades suficientes de alimentos.
Durante a década dos anos 1990, aprofundaram-se as
discussões mundiais a respeito do entendimento sobre Segu-
rança Alimentar e outros elementos foram incorporados, com-
preendidos como importantes, dentre eles: a noção de quali-
dade dos alimentos; a valorização das opções culturais em
termos de tradições e hábitos alimentares das pessoas ou po-
pulações; o direito à informação sobre os alimentos; a inclusão
da sustentabilidade; a eqüidade; a justiça e as relações éticas
entre as gerações humanas atuais e futuras.
No final da década dos anos 1980 e início da década dos
anos 1990, o conceito de Segurança Alimentar passou a incorpo-
rar também a noção de acesso a alimentos seguros (não conta-
minados biológica ou quimicamente); de qualidade (nutricional,
biológica, sanitária e tecnológica), produzidos de forma susten-
tável, equilibrada, culturalmente aceitáveis e também incorpo-
rando a ideia de acesso à informação. Essa visão foi consolidada
nas Declarações da Conferência Internacional de Nutrição
(ROMA, 1992) realizada pela Organização da Nações Unidas
para a Agricultura e Alimentação (FAO) e pela Organização
Mundial da Saúde (OMS). Neste contexto, agrega-se definitiva-
mente o aspecto nutricional e sanitário ao conceito, que passa a
ser denominado Segurança Alimentar e Nutricional.
A partir do início da década dos anos 1990, consolida-se
um forte movimento em direção à reafirmação do Direito Hu-
mano à Alimentação Adequada, conforme previsto na Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos (1948) e no Pacto Interna-
cional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC,
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
465
Direito humano à alimentação adequada...

1966). Um passo importante para isto foi a realização da Confe-


rência Internacional de Direitos Humanos (VIENA, 1993), que
reafirmou a indivisibilidade dos Direitos Humanos. Também a
Cúpula Mundial da Alimentação (ROMA, 1996) organizada pe-
la Organização da Nações Unidas para a Agricultura e Alimen-
tação (FAO), associou definitivamente o papel fundamental do
Direito Humano à Alimentação Adequada à garantia da Segu-
rança Alimentar e Nutricional. A partir de então, de forma pro-
gressiva, a Segurança Alimentar e Nutricional começa a ser
entendida como uma possível estratégia para garantir a todos
o Direito Humano à Alimentação Adequada.
No Brasil, o conceito vem sendo debatido há pelo menos
vinte anos e da mesma forma sofre alterações em função da
própria história do homem e das sociedades. O entendimento
de Segurança Alimentar como sendo “a garantia, a todos, de
condições de acesso a alimentos básicos de qualidade, em
quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprome-
ter o acesso a outras necessidades básicas, com base em prá-
ticas alimentares que possibilitem a saudável reprodução do
organismo humano, contribuindo, assim, para uma existência
digna” foi proposto em 1986, na I Conferência Nacional de
Alimentação e Nutrição e consolidado na I Conferência Nacio-
nal de Segurança Alimentar, em 1994.
Esse entendimento articula duas dimensões bem defini-
das: a alimentar e a nutricional. A primeira se refere aos pro-
cessos de disponibilidade (produção, comercialização e acesso
ao alimento) e a segunda diz respeito mais diretamente à esco-
lha, ao preparo e consumo alimentar e sua relação com a saúde
e a utilização biológica do alimento. No entanto, o termo Segu-
rança Alimentar e Nutricional somente passou a ser divulgado
com mais ênfase no Brasil após o processo preparatório para a
Cúpula Mundial de Alimentação, de 1996, e com a criação do
Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional
(FBSAN), em 1998.
Recentemente outras dimensões vêm sendo associadas
ao termo. Considera-se que os países devam ser soberanos
para garantir a Segurança Alimentar e Nutricional de seus po-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
466
Ivete Maria Kreutz

vos (Soberania Alimentar), respeitando suas múltiplas caracte-


rísticas culturais, manifestadas no ato de se alimentar.
As dimensões de Segurança Alimentar e Nutricional e
Soberania Alimentar são incorporadas por ocasião da II Confe-
rência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional realiza-
da em Olinda-PE, em março de 2004. Este entendimento foi
reafirmado na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricio-
nal aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Pre-
sidente da República em 15 de setembro de 2006:
[...] a Segurança Alimentar e Nutricional consiste na rea-
lização do direito de todos ao acesso regular e permanen-
te a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente,
sem comprometer o acesso a outras necessidades essen-
ciais, tendo como base práticas alimentares promotoras
de saúde que respeitem a diversidade cultural e que se-
jam ambiental, cultural, econômica e socialmente susten-
táveis. (LOSAN, art. 3º)

Na III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e


Nutricional (FORTALEZA/CE, 2007) o foco das deliberações foi
a construção do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional e o estabelecimento de uma Política Nacional nesta
temática.
O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional:
2012/2015 veio a ser aprovado no Brasil, em 2011 (CAISAN,
2011), e é um dos ganhos mais expressivos nas políticas sociais
brasileiras dos últimos anos.

SOBERANIA ALIMENTAR
A noção de Soberania Alimentar surge como uma respos-
ta dos movimentos sociais à perda da capacidade dos gover-
nos nacionais de elaborar e promover um conjunto de políticas
públicas capazes de garantirem a Segurança Alimentar e Nu-
tricional de suas populações, no contexto da progressiva inter-
nacionalização da economia imposta pelo processo de globali-
zação (MENEZES, 2001).

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
467
Direito humano à alimentação adequada...

O conceito de Soberania Alimentar é discutido pela pri-


meira vez no Fórum Nacional sobre Soberania Alimentar, no
México, em 1996. No mesmo ano, na Cúpula Mundial de Ali-
mentação (ROMA, 1996), promovida pela Organização das Na-
ções Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), emergiu
com força a ideia da Soberania Alimentar. A mais ativa repre-
sentação internacional, a Via Campesina1, reivindicou a Sobe-
rania Alimentar como “o direito de cada nação manter e de-
senvolver sua própria capacidade de produzir os alimentos
básicos dos povos, respeitando a diversidade produtiva e cul-
tural” (VALENTE, 2002, p. 116).
No Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar (Havana,
Cuba, em 07 de setembro de 2001), a Soberania Alimentar é
compreendida como “o direito dos povos de definir suas pró-
prias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distri-
buição e consumo de alimentos, as quais garantem o Direito à
Alimentação a toda a população, com base na pequena e na
média produção, respeitando suas próprias culturas e a diver-
sidade dos modos de vida camponeses, pesqueiros ou indíge-
nas de produção agropecuária, de comercialização e de gestão
dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel
fundamental” (COSTA, TAKAHASHAHI, MOREIRA, 2002, p.
47).
Com base nessa contextualização, a Soberania Alimentar
é compreendida como o direito de um povo e de uma nação
decidir sobre suas políticas estratégicas, bem como sobre suas
formas de produzir, comercializar e consumir seus alimentos. A
vitalidade dessa concepção vai afirmando-se a partir de então,
da mesma maneira, rechaça-se a utilização dos alimentos co-
mo instrumento de barganha política e econômica, por meio de
embargos e bloqueios. No mundo globalizado, quer se fazer do
alimento mera mercadoria.

1
Movimento internacional que coordena organizações camponesas de
pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres ru-
rais e comunidades indígenas e negras na Ásia, África, América e Europa.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
468
Ivete Maria Kreutz

INTERFACES ENTRE O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO


ADEQUADA, A SEGURANÇA E A SOBERANIA ALIMENTAR
O Direito Humano à Alimentação Adequada, a Segurança
Alimentar e Nutricional e a Soberania Alimentar tem, cada um
sua própria especificidade, mas existe uma relação de interde-
pendência entre eles.
O Direito Humano à Alimentação Adequada implica a
compreensão do acesso ao alimento como um direito humano
fundamental para garantir a dignidade humana; a Segurança
Alimentar e Nutricional traduz um conjunto de condições e es-
tratégias que precisam ser garantidas para que haja uma ali-
mentação adequada, ela incorpora os princípios do Direito
Humano à Alimentação Adequada e da Soberania Alimentar,
enfatiza o acesso regular e permanente a alimentos de quali-
dade e em quantidade suficiente e realiza-se através de políti-
cas públicas inclusivas e democráticas; A Soberania Alimentar
destaca a importância da decisão política e econômica de cada
país, na definição soberana de seus sistemas alimentares, res-
peitando os hábitos e a tradições culturais do seu povo. Quan-
do associamos esses três elementos, emergem outros fatores
importantes, como a sustentabilidade econômica, social e am-
biental da produção, não reprodução de sistemas que gerem
assimetrias e violações de direitos, entre outros.

CONCLUSÃO
No Brasil, ao mesmo tempo em que se avança no arca-
bouço legal da Segurança Alimentar e Nutricional/O Direito
Humano à Alimentação Adequada é preciso continuar avan-
çando no fortalecimento das organizações e movimentos sociais,
que são instrumentos de mobilização e pressão política rele-
vante pela realização e efetivação do Direito Humano à Ali-
mentação Adequada, sem os quais esta efetivação tende a se
tornar lenta e burocrática, sem força de efetividade universal.
Vencer a insegurança alimentar e nutricional implica atin-
gir no cerne suas causas geradoras, que são as mesmas que fa-
zem com que o sistema alimentar brasileiro permaneça insus-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
469
Direito humano à alimentação adequada...

tentável, fortemente centrado nos níveis de produção e de dis-


tribuição e cada vez mais distante das culturas daqui oriundas.
Ampliando-se a atuação, torna-se necessária a formação de
Meta Redes que integrem Universidades, Escolas, Movimentos
Sociais, Fóruns, Conselhos, Organismos Públicos, Organizações
Não Governamentais, entre outros, colocando a insegurança
alimentar e nutricional na ótica da cidadania, no centro do cená-
rio político, como uma questão ética, que diz respeito às regras
de equidade nas relações sociais, que garantam ao cidadão uma
vida digna, com capacidade de autogestão, sentindo-se um ci-
dadão com iniciativa, invenção e criatividade.
Os Estados são os principais responsáveis pelo seu de-
senvolvimento econômico e social, inclusive a realização pro-
gressiva do Direito Humano à Alimentação e Adequada no
contexto da Segurança Alimentar Nacional.
No Brasil, onde as desigualdades sociais e regionais são
imensas, torna-se indispensável um modelo de atenção às polí-
ticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional, que se-
jam comprometidas com as reais necessidades da população e
integre as duas faces da insegurança alimentar e nutricional
da população: a desnutrição e outras doenças carênciais; o so-
brepeso, a obesidade e outras Doenças Crônicas Não Trans-
missíveis (DCNT) como as doenças cardiovasculares, o diabete
mellitus, as neoplasias. A articulação das políticas específicas
e emergenciais, com as políticas estruturantes, é fundamental
para que se possa efetivamente romper com o ciclo da insegu-
rança alimentar e nutricional.
Nos espaços institucionais de participação das redes e
organizações da sociedade civil, o objetivo poderá ser o de
dispor de instâncias e instrumentos que permitam articular as
diferentes redes sociais e entidades visando a permitir que a
sociedade participe, efetivamente, da formulação e implementa-
ção de políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional,
bem como os titulares de direitos devem ter a possibilidade de
exigir a realização de seus direitos e reclamar sobre a existên-
cia de violação ao Direito Humano à Alimentação Adequada,
junto ao Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, por meio de

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
470
Ivete Maria Kreutz

instrumentos de exigibilidade administrativos, políticos, quase


judiciais e judiciais.
Importante é que se estabeleçam mecanismos de controle
social, condição necessária para se atingir, plenamente, os ob-
jetivos de uma política pública de Segurança Alimentar e Nu-
tricional. A mobilização social deverá visar à construção de um
modelo de sociedade mais eqüitativo, ambientalmente susten-
tável e que tenha a Segurança Alimentar e Nutricional/O Direi-
to Humano à Alimentação Adequada, como eixos estratégicos
de desenvolvimento.
No entanto, para garantir um desenvolvimento integral e
sustentável, o grave problema da desigualdade poderá fazer
parte da agenda política nacional, numa discussão de um mo-
delo de desenvolvimento que valorize o capital humano, com
investimentos sistemáticos e contínuos em educação, saúde,
nutrição e outras áreas, e valorize o capital social, os valores
compartilhados, a cultura, a capacidade para agir sinergica-
mente e produzir redes de acordos voltados para o interior da
sociedade.

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dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br>.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Direito humano à alimentação adequada...

CÂMARA Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional.


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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
O SÉCULO XXI E O DESAFIO DE
REPENSAR AS POLÍTICAS PÚBLICAS :
O ESTADO E SUA NECESSIDADE DE
PROMOVER INCLUSÃO SOCIAL

Janaína Machado Sturza


Advogada, Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas, Mestre
em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC e Doutora em
Direito pela Universidade de Roma Tre/Itália. Professora na graduação em
Direito e no Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado da
UNIJUÍ, professora na graduação em Direito do Centro Universitário Fran-
ciscano – UNIFRA e da Faculdade Dom Alberto. Integrante do Grupo de
Pesquisa “Teoria Jurídica no Novo Milênio”, da UNIFRA e do Grupo de Es-
tudos “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, da UNISC.
(janasturza@hotmail.com)
Taise Rabelo Dutra Trentin
Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC, Pós-
graduada em direito empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul – PUCRS, Pós-graduada em Direito e Processo do Traba-
lho pela Universidade Anhanguera – UNIDERP, Advogada e Professora de
Direito Processual Civil na Faculdade Palotina de Santa Maria-FAPAS. Par-
ticipou como integrante do Grupo de Pesquisas Políticas Públicas no tra-
tamento dos conflitos, coordenado pela Prof. Pós-Dra. Fabiana Marion
Spengler e do Grupo de estudos de Políticas Públicas para a Inovação e a
Proteção Jurídica da Tecnologia, coordenado pela Profª. Pós-Drª. Salete
Oro Boff. Integrante do Grupo de Pesquisa: Direito, Cidadania e Políticas
Públicas, coordenado pela Profª. Pós-Drª. Marli Marlene Moraes da Costa,
vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Douto-
rado da UNISC, e certificado pelo CNPQ. (taise@dutratrentin.adv.br).

Resumo
Este artigo tem como pretensão propor uma reflexão acerca do século XXI e o fenô-
meno da globalização na sociedade contemporânea, tendo como escopo as políticas
públicas e a necessidade do Estado em promover a inclusão social. Neste contexto,
então, alude-se ao fato de que os processos de industrialização e urbanização há
décadas vêm distanciando diversos países em termos de desenvolvimento e, dessa
maneira, o crescimento de países emergentes – como é o caso brasileiro –, especi-
almente em termos de produção, de emprego e de sustentabilidade. Para reverter
474
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

este quadro, é preciso ampliar práticas includentes, através da criação e execução de


políticas públicas de inclusão social, as quais exigem a mobilização da sociedade civil
e do Governo. Assim, tem-se que políticas públicas de inclusão social caracterizam-se
pela capacidade de operar incremento na renda da parcela da população menos
favorecida economicamente e, também, de propiciarem acesso aos bens e serviços
públicos, que devem ser ofertados à população pelos Governos. Logo, as reflexões e
o entendimento acerca da necessidade de tais políticas públicas, especialmente
àquelas promotoras de inclusão social devem figurar com destaque na agenda de
prioridades do Estado.
Palavras chave: Estado, Globalização; políticas públicas, inclusão social.

Abstract
This article has the intention to propose a reflection on the twenty-first century and
the globalization phenomenon in contemporary society, with the scope of the public
policy of the State and the need to promote social inclusion. In this context, then,
alludes to the fact that the processes of industrialization and urbanization for dec-
ades come away various countries in terms of development and, thus, the growth of
emerging countries - such as Brazil - especially in terms of production, employment
and sustainability. To reverse this situation, it is necessary to expand inclusive prac-
tices through the creation and implementation of public policies for social inclusion,
which require the mobilization of civil society and government. Thus, we have that
public policies for social inclusion are characterized by the ability to increase operat-
ing income in the share of poor population and also to propitiate access to public
goods and services that must be offered to the public by Governments. Soon, reflec-
tions and understanding about the need for such policies, especially those that pro-
mote social inclusion should figure prominently on the agenda of priorities of the
state.
Keywords: State, Globalization, public policy, social inclusion.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O início do século XXI trouxe consigo o desafio de repen-
sar as políticas de inclusão social, para que as mesmas se coa-
dunem com a realidade de um mundo globalizado, não apenas
economicamente, mas, também, no âmbito social. Esse novo
desafio representa, para o Estado, a adoção de uma nova pos-
tura frente aos problemas e as situações que surgem nesse
novo contexto, especialmente em relação à globalização e seus
reflexos nos Estados nacionais. A análise do fenômeno da glo-
balização apenas sob o prisma econômico é uma abordagem
demasiadamente simplista.
É certo dizer que é no campo econômico que surgem as
manifestações mais perceptíveis da globalização, mas a ques-
tão pode ser percebida e estudada em outras esferas da socie-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
475
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

dade, pois mudanças importantes ocorreram também nos


campos social, cultural, político e espacial. Assim, é possível
afirmar que a globalização é dotada de várias dimensões, a
saber: espacial, cultural, socioeconômica e política, sendo que
a análise das três últimas dimensões está sempre permeada
pela dimensão espacial.
Analisar os fenômenos sociais tendo-se presente a idéia
da globalização significa aceitar que esse processo modifica
substancialmente o alcance dos instrumentos político-jurídicos
tradicionais na persecução da inclusão social, na medida em
que a complexidade das relações na contemporaneidade1 mo-
dificaram até mesmo a noção tradicional de Estado, cujo modelo
deve ser repensado, em prol da sobrevivência da humanidade.

O ESTADO CONTEMPORÂNEO E SUAS MUTAÇÕES POLÍTICAS


Até o início do século XX, preponderavam, no mundo, as
idéias liberais de um Estado mínimo, que apenas mantinha a
ordem e a propriedade e agia como regulador natural das rela-
ções sociais, sendo que os indivíduos eram percebidos e pos-
suíam suas relações na sociedade de acordo com sua inserção
no mercado. Nesta época, a questão social decorrente do pro-

1
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Estado do Futuro. In: ______ (Coord.).
O Estado do Futuro. São Paulo: Editora Pioneira, 1998, p. 24: “A globali-
zação da Economia, que favorece os Estados mais desenvolvidos e com
maior tecnologia e capitais a dominar o mercado mundial, a tecnologia
substitutiva do homem pela máquina, o desemprego estrutural, além do
conjuntural tópico, a conscientização da sociedade quanto aos seus di-
reitos, com pequena percepção de seus deveres, a multiplicação das mi-
norias que desejam impor seu estilo de vida, o narcotráfico, com seu po-
der destrutivo dos valores da sociedade, a falência do Estado e a obso-
lescência do Direito, a corrupção endêmica entre políticos e burocratas,
a falta de estadistas universais, os conflitos regionais e os de caráter re-
ligioso, a ruptura do direito dos grupos, como os sem-terra no Brasil, a
perda de valores por parte da sociedade e a falta de esperança de uma
solução a curto prazo, a longevidade sem horizontes e o fracasso do Es-
tado Previdência, com seu potencial desconsertador, desequilibrador
dos orçamentos fiscais de todos os países, os desequilíbrios ambientais
e muitos outros fatores, estão a exigir um repensar do modelo do Estado
futuro para a sobrevivência da humanidade no século XXI.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
476
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

cesso produtivo se expressava na exclusão de pessoas, tanto


da produção como da fruição dos bens e serviços necessários.
Após a crise de 1929, que levou o mundo a um grande colapso,
intensificou-se a discussão das questões sociais. O desenvol-
vimento do capitalismo do tipo monopolista delimitou uma no-
va vinculação entre o capital e o trabalho, e entre estes e o Es-
tado, “[...] fazendo com que as elites econômicas admitissem
os limites do mercado como regulador natural e resgatassem o
papel do Estado como mediador civilizador, ou seja, com pode-
res políticos de interferência nas relações sociais [...]”2.
Assim, o Estado avocou para si a responsabilidade de
formular e executar políticas públicas econômicas e sociais, ou
seja, passou a ser o principal responsável pelas respostas às
demandas sociais, tornando-se “[...] arena de lutas para o
acesso à riqueza social [...]”3, porquanto as políticas públicas
envolvem conflitos de interesses entre classes sociais, na me-
dida em que as respostas dadas pelo Estado às demandas so-
ciais podem beneficiar alguns, em prejuízo de outros4. Esta
possibilidade deu margem às políticas assistencialistas, muito
praticadas na América-latina por um longo período do século
passado. O Estado passou a ser alcunhado de Estado Previ-
dência, cabendo-lhe a execução de políticas públicas que des-
sem conta das mais variadas necessidades de uma sociedade
cada vez mais complexa, necessitando, com isso, maiores in-
vestimentos. Ainda, a problemática social foi agravada por fa-
tores como o desemprego estrutural, a precarização das rela-
ções de trabalho, alterações na estrutura familiar, modificações
no ciclo de vida e aprofundamento das desigualdades sociais,
gerando exclusão e simultânea inclusão marginal de um gran-
de contingente populacional5.
Passou-se, assim, do paradigma liberal ao que se conven-
cionou chamar de neoliberal, no qual a sociedade civil é convo-

2
SILVA, Ademir. A política social e a política econômica. Revista Serviço
Social e Sociedade, São Paulo, n. 53, 1997, p. 190.
3
Ibid, p. 189.
4
CUNHA; CUNHA, op. cit., p. 11-12.
5
Ibid., p. 12-13.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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25 e 26 de abril de 2013
477
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

cada, cada vez mais, a assumir tarefas e responsabilidades


sociais que antes cabiam exclusivamente ao Estado, agora in-
capaz, estrutural e economicamente, de sozinho, atender a to-
das as demandas da complexa sociedade contemporânea,
imensamente influenciada, e mesmo modificada, pela globali-
zação e pela explosão populacional6 nos países mais pobres.
Dessa forma, acompanhando uma tendência também interna-
cionalizada, organizações e movimento social transformam-se
em prestadores de serviços sociais das mais variadas nature-
zas, com recursos externos ou em parceria com o Governo,7 ou
seja, passaram a executar políticas públicas, as quais podem
ser definidas como
[...] um conjunto interrelacionado de decisões e não-
decisões, tendo como foco uma área determinada de con-
flito ou tensão social. Trata-se de decisões adotadas for-
malmente pelas instituições públicas – as quais conferem
a capacidade de obrigar -, porém que são partes de um
processo de elaboração, do qual participaram uma plura-
lidade de atores públicos e privados [tradução livre do
Espanhol].8

Vallès9 esclarece, com o conceito citado, que políticas pú-


blicas possuem a qualidade de obrigar seus destinatários, pois
não versam sobre acordos ou pactuações voluntárias entre
aquele(s) que decide(m) e aqueles aos quais se destinam as
políticas, mas de imposições que se aplicam à comunidade,
com base na legitimidade política daqueles. Isso, porém, não
significa que políticas públicas resultam de ações unilaterais
do Estado, mas, cada vez mais, implicam em uma efetiva par-

6
CAMPOS, Roberto. A prepotência do Estado. In: MARTINS, Ives Gandra
da Silva (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 117.
7
OLIVEIRA, Maria Coleta; PINTO, Luzia Guedes. Exclusão Social e De-
mografia: elemento para uma agenda. In: OLIVEIRA, Maria Coleta
(Org.). Demografia da Exclusão Social. Campinas: UNICAMP, 2001, p.
17.
8
VALLÈS, Josep M. Las políticas públicas. In: Ciencia política: una intro-
ducción. Barcelona: Ariel, 2002, p. 377.
9
Ibid., p. 377.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
478
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

ticipação da sociedade civil. Ainda, não são atividades realiza-


das de forma gratuita e estéril, ao acaso, mas atividades que
objetivam produzir resultados.
Assim, o final do século XX e o início do XXI, no Brasil, é
uma época marcada pelos esforços da sociedade em regula-
mentar e implementar os direitos sociais garantidos na Consti-
tuição, e caracterizada pelo conflito entre a “[...] expectativa da
implementação de políticas públicas que concretizassem os
direitos conquistados, assegurados em lei, e as restrições polí-
ticas e econômicas impostas para sua implementação [...]”10.
Essa nova postura social e a crise do Estado contemporâneo,
ou seja, deste novo Estado que, gradativamente, se modifica e
se conforma, implicou em novos paradigmas de gestão públi-
ca: o empreendedorismo público surgiu como uma alternativa
à administração burocrática; o conceito de governança passou
a ser associado à capacidade do Estado em formular e imple-
mentar políticas públicas efetivas, em parceria com a socieda-
de civil; a ênfase em resultados, a orientação para o cidadão e
a competição administrada tornaram-se princípios da reinven-
ção do Estado.
Quanto ao prognóstico em relação à modalidade de Esta-
do, as previsões são muitas: a universalização do Estado, na
medida em que a correção das desigualdades somente seria
possível em um Estado Universal, que deteria o poder decisó-
rio e preservaria a autonomia dos Estados locais, os quais seri-
am mínimos em razão da universalização dos espaços locais11;
a evolução dos Estados-nação em direção à criação de uma
Confederação de Estados, também denominada de Estado
Transnacional, com território determinado pela fusão daqueles,
e com um colegiado, formado pelos chefes dos Estados confe-
derados, responsável pelas decisões econômicas e políticas
entre estes e entre estes e o restante do mundo, pois há ques-
tões, as mais variadas, desde a seara econômica até a ecológi-
ca, que não podem ser resolvidas na individualidade de cada

10
CUNHA; CUNHA, op. cit., p. 15.
11
MARTINS, op. cit., p. 26-28.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
479
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

país, senão em escala global, através da adoção de políticas


comuns a todos. Outra projeção é do surgimento de uma espé-
cie de Governo mundial, praticado por aqueles que detiverem
a informação e a informática, com caráter representativo, vol-
tado à resolução de questões comuns a toda a humanidade12.
Há, ainda, a colaboração de Resta, ao pregar uma Comu-
nidade sem Estados, pois se estes são exemplos de luta inter-
na e inimizade, quase sempre em razão da defesa da sobera-
nia13, a pacificação viria justamente desta união comunitária, a
qual basear-se-ia não na soberania, mas no respeito e na defe-
sa dos direitos humanos, direitos estes que dependem essen-
cialmente daquilo que “[...] queremos que sejam a humanidade
e os nossos direitos [...]”14.
Entendimento semelhante é encontrado em Ferrajoli, que
manifesta sua crença de, em longo prazo, instituir-se um cons-
titucionalismo mundial, que teria embasamento na Carta da
Organização das Nações Unidas e nas muitas Declarações e
Convenções Internacionais de direitos humanos. Essa neces-
sidade é premente, na medida em que aumentam as desigual-
dades, que é escancarado o esvaziamento do direito público,
em decorrência da globalização, e que a solução dos conflitos
internacionais é buscada pelos recursos bélicos. Somente com
uma referência mundial destinada à paz e à garantia dos direi-
tos fundamentais seria possível reverter o quadro atual e sal-
var a tão ameaçada democracia15.
Adepto de uma Constituição Global, Canotilho apregoa a
necessidade de se manter como centro de todas as expectati-
vas, tanto no plano nacional quanto no internacional, “[...] a

12
BASTOS, Celso Ribeiro. Estado do Futuro. In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 172-173.
13
RESTA, Eligio. O direito fraterno. Tradução de Sandra Regina Martini
Vial (Coord.). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p. 82.
14
Ibid., p. 82.
15
FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro Del Estado de Derecho. Tradução de
Pilar Allegue. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalis-
mo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 27.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
480
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

democracia e o caminho para a democracia [...]”16, por ser a


promotora da paz e por necessitar-se de uma interpretação, em
relação ao princípio da autodeterminação, que fuja à tradicio-
nal idéia de soberania, mas que encontre guarida em outras e
diferentes noções de social e político. O direito internacional,
em tempos globais, deve ir além do jus cogens, integrando-o à
elevação dos direitos humanos17.

O NOVO CENÁRIO PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS DE


INCLUSÃO SOCIAL
As políticas assistencialistas e paternalistas são resquí-
cios da era Vargas e do Coronelismo, quando eram utilizadas,
principalmente, como força de domínio político e, embora te-
nham sofrido algumas alterações, principalmente em relação à
sua motivação, ainda persistem. Essas políticas, desde sem-
pre, dificultaram ações de desenvolvimento social, pois, con-
sistindo em uma espécie de “caridade social”, acabam distor-
cidas e resultando em ações políticas sociais paliativas, o que,
efetivamente, dificulta uma emancipação cidadã.
No Brasil, em decorrência do déficit democrático, é o
exercício do poder, pelas elites políticas e econômicas, que
determinam os rumos do País, acima de qualquer outra in-
fluência social. E isso facilita a prática assistencialista, em de-
trimento das políticas públicas includentes, já que “[...] existe
uma inter-relação entre a percepção de uma ‘policy’ por parte
das pessoas afetadas e a estrutura da arena política. Esse fato,
por sua vez, se baseia no pressuposto de que as pessoas afe-
tadas associam custos ou benefícios às respectivas medidas”18.

16
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Consti-
tuição. 4. ed. Coimbra: Almeida, 2000, p. 1317.
17
Ibid., p. 1317-1318.
18
FREY, Klaus. Políticas Públicas: um debate conceitual e reflexões da
análise de políticas públicas no Brasil. In: Planejamento e Políticas Pú-
blicas, Brasília, n.21, p. 226-249, passim, jun. 2000. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/pub/ppp/ppp21/Partes5.pdf>. Acesso em 25
jan. 2006.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
481
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

Ainda, desde a era Vargas a real preocupação do Governo


era com o desenvolvimento industrial e econômico, e o Estado
atuava diretamente do setor produtivo primário, até o advento
da era das privatizações, a partir da década de 1990, sob a óti-
ca da ideologia neoliberal de que “[...] quanto menos Estado e
quanto mais mercado, melhor; quanto mais individualidade e
quanto menos coletividade, melhor [...]”19. Assim, diminuiu o
poder regulatório do Estado e ampliou-se a autonomia do mer-
cado, com a conseqüente inibição das políticas públicas que,
por aqui, sempre foram tímidas, e mesmo assistiu-se à negli-
gência do Estado para com suas obrigações em relação aos
cidadãos, na medida em que, por meio das privatizações, dis-
farçou parcerias com a sociedade civil. Até mesmo a educação
passou a ser mercadoria, acessível a poucos20.
Para que um país possa desenvolver-se de maneira sus-
tentável, é preciso que existam políticas públicas com este ob-
jetivo, estendidas a todo o território nacional, bem como é ne-
cessária a parceria entre o Estado e a sociedade civil, e, tam-
bém importante, é mudar-se o foco dessas políticas, ou seja,
“[...] faz-se necessário dar-se um basta à visão de que o impor-
tante é somente produzir, crescer economicamente e que o
investimento na área social deve ser aquele que responde às
exigências do mercado [...]”21. Isso significa que
[...] o investimento na área social não deve ter por base o
fato de que as empresas irão funcionar melhor com uma
população mais educada e mais saudável, mas, ao con-
trário, as políticas públicas, ao serem formuladas, devem
levar em consideração que a educação, o lazer, a saúde e
o emprego constituem-se nos objetivos da sociedade e,
assim, do Estado, e não um mero instrumento de desen-

19
BACCELAR, Tânia. As políticas públicas no Brasil: heranças, tendências
e desafios. In: SANTOS JR., Orlando A. et. al. (Org.). Políticas públicas e
gestão local. Rio de Janeiro: Fase, 2003, p. 23.
20
DAGNINO, Renato. et. al. Gestão estratégica de inovação: metodologias
para análise e implementação. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Uni-
versitária, 2002, p. 115.
21
Ibid., p. 121.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
482
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

volvimento econômico, pois a finalidade é o bem-estar


social, enquanto a atividade econômica deve ser vista
como meio. E, para que se alcance este fim, desenvolvi-
mento econômico com efetivo desenvolvimento social, é
preciso saber produzir, mas, acima de tudo, saber distri-
buir.22

Se, por um lado, o Estado necessita de políticas macroe-


conômicas que lhe dêem sustentabilidade financeira, por outro
não pode negligenciar em relação às políticas internas de
combate às desigualdades regionais e sociais, pois, apesar de
estar passando por transformações, ainda é o modelo de con-
vivência social de que se dispõe, isto é, ainda é um meio cujo
fim é a busca da convivência pacífica, nunca um fim em si
mesmo23. E é assim que o Estado deve intervir na economia e
mediar a ampla gama de organizações que exercem função
pública (cooperativas empresariais, organizações não gover-
namentais, organizações religiosas e mesmo organizações de
vizinhos, ecologistas e voluntariado em geral), para que se
consiga melhorar a distribuição de renda, uma vez que o mer-
cado, por si só, não possui preocupação com esta questão, e
que a redução das desigualdades passa, necessariamente, pe-
la igualdade de oportunidades e recursos24.

AS DIMENSÕES DO FENÔMENO DA GOVERNANÇA


Em razão dos avanços tecnológicos das últimas décadas,
cuja influência fez-se sentir em vários âmbitos, dentre eles, no
político e no jurídico, ocorreu uma grande transformação no
papel desempenhado pelos Estados-nação, por força mesmo
das alterações em seus elementos constitutivos: povo, territó-
rio e ordenamento jurídico. Pela facilidade da comunicação
global, não só lingüística como em relação a todas as ciências,
22
Ibid., p. 121.
23
Ibid., p. 122.
24
KLIKSBERG, Bernardo. Repensando o Estado para o desenvolvimento
social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 43-45 – Coleção Questões da
Nossa Época, v. 64.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
483
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

e pela possibilidade de deslocamento entre os mais longínquos


territórios, o povo passou, rapidamente, a perder a caracterís-
tica de ser composto pelos mesmos fundamentos religiosos,
lingüísticos e étnicos que definiam uma nação, e o território
passou a sofrer direta e intensa interferência de organismos
supranacionais e multinacionais25.
Em decorrência desta interferência, que também é senti-
da no Brasil, o ordenamento jurídico deixou de ser a expressão
da vontade soberana de um povo, atingindo-se até mesmo as
instituições democráticas, na medida em que a legitimidade
com base na representatividade é substituída pela governan-
ça26, e que nem mesmo as conquistas sociais, políticas e jurídi-
cas mais importantes, como é o caso dos direitos humanos, são
poupados27.
A Governança é, então, a capacidade para determinar
que as coisas sejam feitas sem, contudo, necessitar-se de
competência legal para isto, ou seja, é um modo de distribuí-
rem-se valores, tal como o faz o Estado, através de sua legiti-
mação para tal, mas sem utilizar-se do autoritarismo para is-
to28. Portanto, Governo e governança não se confundem, como
observa Rosenau29, pois embora ambos tenham o objetivo de
realizar atividades orientadas para metas, aquele necessita de

25
AMIRANTE, Carlo. Uniões supranacionais e reorganização constituci-
onal do Estado. Tradução de Luisa Rabolini. São Leopoldo: Editora Uni-
sinos, 2003, p. 12.
26
Ibid., p. 12-13.
27
Ibid., p. 13: Amirante define a governança como “[...] um instrumental
que se aplica ao exercício do poder numa variedade de contextos insti-
tucionais, cuja finalidade é dirigir, controlar e regular atividades no inte-
resse de pessoas como os cidadãos, os eleitores e os trabalhadores. Es-
sa nova tipologia social é empregada [...] para identificar o governo da
sociedade complexa. [...].
28
CZEMPIEL, Ernst-Otto. Governança e Democratização. In: ROSENAU,
James; CZEMPIEL, Ernst-Otto. Governança sem Governo: ordem e
transformação na política mundial. Brasília: UNB, 2000, p. 335.
29
ROSENAU, James. Governança, ordem e transformação na política mun-
dial. In: ROSENAU, James; CZEMPIEL, Ernst-Otto. Governança sem
Governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: UNB,
2000, p. 15-16.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
484
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

uma autoridade formal, enquanto esta, não. Isto é, a governan-


ça possui maiores dimensões do que o governo, pois, mesmo
abrangendo as instituições governamentais, tem mecanismos
que também possibilitam a atuação não-governamental, pos-
sibilitando que as pessoas satisfaçam suas necessidades e
respondam às suas demandas de uma maneira mais efetiva.
A velocidade das mudanças e o surgimento de inovações
nas últimas décadas do Século XX trouxeram inúmeras possi-
bilidades para modernizar a função gerencial, e a Administra-
ção Pública não ficou imune a essas influências, sofrendo mu-
danças preponderantemente associadas às transformações
mais amplas que ocorreram no papel do Estado e nas relações
deste com a sociedade. Isso se deu, com mais intensidade, a
partir das décadas de 70 e 80 e, neste sentido, pode-se afirmar
que governança é um processo contínuo, dinâmico e complexo,
um novo modelo institucional que se forma da rede de relações
interinstitucionais, ou seja, de poderes institucionais e não-
institucionais com mesma força negocial e cultural do exercício
do poder, tendo na desregulação a chave de sua implantação.
Pela governança convivem normas institucionais e não-
institucionais, ao lado da privatização e da descentralização.
Assim, a subsidiariedade pode exprimir o conceito de gover-
nança, o que leva à conclusão de que foi a partir destas mu-
danças que a sociedade civil passou a ter a possibilidade de
não apenas criticar orientações políticas do governo, mas tam-
bém de participar ativamente da eleição, desenvolvimento e
execução das políticas públicas.
Se por um lado a globalização alterou substancialmente o
conceito tradicional de Estado-nação e suplantou o Estado-
social, a governança estabeleceu uma nova forma de implanta-
ção de normas que, embora não tenham o poder coercitivo es-
tatal - pois são normas contratuais, negociadas, uma espécie
de lei contratual com duração mais prolongada no tempo -, são
determinantes às novas orientações econômicas, sociais, cul-
turais e jurídicas. Enquanto a globalização foi determinante à
desregulamentação, à falta de normatização estatal para mui-
tas questões, em razão da transnacionalidade das questões
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
485
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

modernas, a governança trouxe uma criação normativa diferen-


te, em substituição e complementação à estatal, mas resulta,
igualmente, em uma prática obrigatória.

AS AÇÕES LOCAIS FRENTE ÀS REFERÊNCIAS DE ÂMBITO GLOBAL


O Espaço Local é um processo maior de comunicação e
controle social, que surge após avaliações, discussões e articu-
lações em âmbito global. Essa redefinição do espaço local en-
quanto esfera de menor complexidade contribui para retornar a
centralidade ao cidadão, muitas vezes contraposto ao distan-
ciamento da globalização-excludente. Espaço local é um meio
de concretização dos princípios constitucionais, porém tam-
bém com limitações e restrições constitucionais, uma vez que
o fortalecimento do poder local pode ser contraditório, mas é,
sem dúvida alguma, estratégia de cidadania, manutenção do
controle social sobre decisões públicas e concretização da CF.
Entretanto, inicialmente, pode-se dizer que o conceito de
espaço no nosso desenvolvimento atual está gerando interesse
crescente, mas também crescente confusão. Afinal, para onde
vão as macrotendências: globalização, blocos, poder local? En-
tre o “Small is Beautiful” e a “aldeia global”, há razões de so-
bra para discutir-se de forma mais aprofundada ou mais siste-
matizada o conceito de espaço e a importância que assume no
cotidiano da sociedade contemporânea. Nesse sentido:30
Referimo-nos aqui aos espaços da reprodução social. Na
realidade, a simples reprodução do capital, ou reprodu-
ção econômica, já não é suficientemente abrangente para
refletir os problemas que vivemos, inclusive para enten-
der a própria reprodução do capital. Na linha imprimida
pelos sucessivos relatórios sobre Desenvolvimento Hu-
mano das Nações Unidas, o objetivo central do desenvol-
vimento é o homem, a economia é apenas um meio. Nin-
guém mais se impressiona com o simples crescimento do

30
DOWBOR, Ladislau. Da globalização ao poder local: a nova hierarquia
dos espaços. São Paulo: 1995.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
486
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

PIB, e tornou-se cada vez mais difícil identificar bem es-


tar humano com o bem estar das empresas.

O processo de globalização e a informatização dos pro-


cessos de produção, distribuição e gestão, modificam profun-
damente a estrutura espacial e social dos espaços locais em
todo o planeta. Este é o sentido mais direto da articulação en-
tre o global e o local. Os efeitos sócio-espaciais desta articula-
ção variam segundo níveis de desenvolvimento dos países, sua
história urbana, sua cultura e suas instituições31.
Nesta abordagem, a globalização traz uma visão simplifi-
cada de abertura e unificação dos espaços da reprodução social.
Ocorre uma nova hierarquização dos espaços, segundo as dife-
rentes atividades, envolvendo tanto globalização como forma-
ção de blocos, fragilização do Estado-nação e surgimento de
espaços sub-nacionais fracionados de diversas formas. A globa-
lização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante
neste fim de século, além de uma dinâmica diferenciada na
articulação para solucionar problemas contemporâneos32.
Na formulação de Santos, “o que globaliza separa; é o lo-
cal que permite a união”. Assim, em uma dimensão extrema-
mente prática deste processo, o exemplo cotidiano do dilema
da solidariedade é o mais comum na sociedade contemporâ-
nea. Não que o ser humano seja menos solidário na atualidade,
mas a humanização do desenvolvimento, ou a sua re-
humanização, passa pela reconstituição dos espaços comuni-
tários. A própria recuperação dos valores e a reconstituição da
dimensão ética do desenvolvimento exigem que para o ser
humano o outro volte a ser um ser humano, um indivíduo, uma
pessoa com os seus sorrisos e suas lágrimas. Este processo de
reconhecimento do outro não se dá no anonimato e o anonima-
to se ultrapassa no circuito de conhecidos, na comunidade, no
espaço local33.

31
BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local e global – a gestão das cida-
des na era da informação. Madrid: Santillana, 1997.
32
DOWBOR, op. cit.
33
DOWBOR, 1995.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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487
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

Contudo, não é suficiente o alargamento das competên-


cias do poder local para que se construa um direito social que
permita uma nova e qualificada relação entre o Poder Público e
a sociedade. É preciso uma modificação estrutural nas próprias
estratégias de gestão do espaço local, a fim de que uma nova
interpretação da repartição de competências esteja agregada a
um processo de democratização das decisões públicas, evitan-
do-se, com isso, que o espaço local seja apenas a repetição, em
escala menor, dos processos de legitimação próprios da socie-
dade de massas, cujas críticas devem ser consideradas nesta
(re)ordenação do espaço público34.
Os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade
para a sociedade retomar as rédeas do seu próprio desenvol-
vimento. Todavia, não somente as iniciativas locais são sufici-
entes, pois sem sólidas estruturas locais participativas e de-
mocratizadas, não há financiamentos externos ou de institui-
ções centrais que produzam resultados. De certa forma, o es-
paço local está recuperando gradualmente um espaço de deci-
são direta sobre a “polis”, recuperando a dimensão mais ex-
pressiva da política e da democracia35.
Ultrapassando a tradicional dicotomia entre o Estado e a
empresa, o público e o privado, surge assim com força o espa-
ço público comunitário, enriquecendo as opções de resolução
de problemas. Em outros termos, o espaço local aparece hoje
como foco de uma profunda reformulação política no sentido
mais amplo, já que o nível local de organização política não
substitui transformações nas formas de gestão política que
têm de ser levadas a efeito nos níveis do Estado-nação e mun-
dial, mas comunidades fortemente estruturadas podem consti-
tuir um lastro de sociedade organizada capaz de viabilizar as
transformações necessárias nos níveis mais amplos36. Nesta
conjuntura:

34
HERMANY, Ricardo. (Re)discutindo o espaço local: uma abordagem a
partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007.
35
DOWBOR, op. cit.
36
DOWBOR, 1995.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
488
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

A abordagem do poder local, como espaço privilegiado


para a articulação dos atores sociais, também deve ser
inserida no contexto da globalização, no qual se devem
destacar as questões inerentes à potencialidade do es-
paço local no exercício do controle social sobre a dinâmi-
ca das relações socioeconômicas.37

Ao mesmo tempo em que os problemas locais são decor-


rentes da estrutura da modernidade do espaço global, devem
também integrar-se a estruturas em suas sociedades locais.
Nesse sentido, o local e o global se complementam e não são
antagônicos. Essa integração social requer mecanismos políti-
cos democratizados, baseados na descentralização administra-
tiva e na participação cidadã.
Em verdade, o espaço local pode ser considerado como
um importante elemento de garantia da atuação da sociedade
civil no contexto de crise do Estado Nacional e de construção
de uma economia globalizada capaz de impulsionar ações ca-
pazes de sanar dificuldades na resolução dos problemas decor-
rentes da complexidade e da contemporaneidade da sociedade.
Diante disto, o poder local torna-se fundamental para que
o novo contexto global coexista com instrumentos de controle
social, uma vez que amplia as garantias sociais no paradigma
transnacional. Logo, cabe destacar que:
São justamente os governos locais os responsáveis pela
execução de políticas públicas adequadas para o fortale-
cimento da qualidade de vida, seja em função da (re) de-
finição de competências constitucionais, seja em virtude
da crise de financiamento do Estado Nacional, que o in-
capacita de atender com efetividade às demandas da
população. Tais razões justificam a importância, até pa-
radoxal, do poder local para o desenvolvimento econômi-
co na sociedade globalizada, vinculado ao conceito de
qualidade de vida como fator de produtividade e, por
conseguinte, de eficiência do sistema produtivo.38

37
HERMANY, 2007, p. 262.
38
Ibidem, p. 263.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
489
O século XXI e o desafio de repensar as políticas públicas

Portanto, é necessário que os governos locais assumam


seu poder e sejam capazes de firmar sua comunidade e seus
interesses acima de suas diferenças de partidos e ideologias.
Devem ser capazes de defender seus interesses específicos em
relação aos seus respectivos estados nacionais, sem separa-
tismos destrutivos, mas aceitando a necessidade de conflito
negociado como forma normal de existência política em um
sistema institucional plural39.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento sustentável de qualquer país exige a
adoção de políticas públicas que tenham como objetivo a in-
clusão social e a erradicação das desigualdades. A abrangên-
cia das mesmas também não pode ser restrita a este ou aquele
espaço determinado, pois quanto maior for a sua abrangência,
maiores serão as chances de as mesmas alcançarem resulta-
dos positivos. Outro fator a ser considerado, é que o processo
político de decisão e de implementação das políticas públicas
é consideravelmente influenciado pela percepção que os seus
destinatários possuem em relação ao custo-benefício advindos
de tais políticas, fundamentados em sua própria cultura políti-
ca. Para a superação dessa visão um tanto assistencialista, faz-
se necessária a participação da sociedade civil em todos os
momentos do processo de formulação e elaboração das políti-
cas públicas.
Não é mais possível dar-se continuidade à distribuição da
miséria. Faz-se necessária a distribuição de renda, através da
atuação estatal, com políticas públicas eficientes e comprome-
tidas com o desenvolvimento econômico sustentável e com o
desenvolvimento social. Neste sentido, o espaço local configu-
ra-se como o lócus para a realização das mesmas. É no espaço
local que se pode discutir e participar ativamente, como cida-

39
BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local e global – a gestão das cida-
des na era da informação. Madrid: Santillana, 1997.

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490
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

dão, dos processos decisórios, em razão da proximidade com


os centros decisórios.

REFERÊNCIAS
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A SAÚDE E SEUS DETERMINANTES
SOCIAIS : UM DIÁLOGO COM A TEORIA
DO DIREITO FRATERNO

Janaína Machado Sturza


Advogada, Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas, Mestre
em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC e Doutora em
Direito pela Universidade de Roma Tre/Itália. Professora na graduação em
Direito e no Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado da
UNIJUÍ, professora na graduação em Direito do Centro Universitário Fran-
ciscano – UNIFRA e da Faculdade Dom Alberto. Integrante do Grupo de
Pesquisa “Teoria Jurídica no Novo Milênio”, da UNIFRA e do Grupo de Es-
tudos “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, da UNISC.
(janasturza@hotmail.com)
Taise Rabelo Dutra Trentin
Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC, Pós-
graduada em direito empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul – PUCRS, Pós-graduada em Direito e Processo do Traba-
lho pela Universidade Anhanguera – UNIDERP, Advogada e Professora de
Direito Processual Civil na Faculdade Palotina de Santa Maria-FAPAS. Par-
ticipou como integrante do Grupo de Pesquisas Políticas Públicas no tra-
tamento dos conflitos, coordenado pela Prof. Pós-Dra. Fabiana Marion
Spengler e do Grupo de estudos de Políticas Públicas para a Inovação e a
Proteção Jurídica da Tecnologia, coordenado pela Profª. Pós-Drª. Salete
Oro Boff. Integrante do Grupo de Pesquisa: Direito, Cidadania e Políticas
Públicas, coordenado pela Profª. Pós-Drª. Marli Marlene Moraes da Costa,
vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Douto-
rado da UNISC, e certificado pelo CNPQ. (taise@dutratrentin.adv.br)

Resumo
Ao refletir-se acerca do direito à saúde, tendo como referencial o Direito Fraterno,
pode-se verificar que a ideia de ausência de soberania nacional, a utilização pacífica
dos recursos e a gestão em comum são pressupostos nele presentes. Quando se
trata de uma sociedade cosmopolita pressupõe-se que o bem saúde também seja
comum, quando se trata da Constituição sem Estado fala-se em ultrapassar os limi-
tes ditados por qualquer “soberano”, e, ainda, quando se afirma a importância do
pacto entre iguais - onde o soberano não é eliminado, mas aparece como um igual -
possibilitando pensar-se numa idéia da não-violência, permite-se falar em efetiva
preservação do direito à saúde, o qual abrange toda a coletividade e está inserido no
rol dos direitos sociais, relacionando-se à questão de o cidadão ter direito a uma vida
saudável, a qual resultará em sua qualidade de vida. Esta, por sua vez, deve primar
494
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

pelos benefícios para o desenvolvimento do homem e sua existência, constituindo-


se como o centro de irradiação por excelência de todos os bens ou interesses jurídi-
cos protegidos.
Palavras-chave: Direito à saúde; Direito Fraterno.

Abstract
Reflecting is about the right to health, referencing the Fraternal Law, it can be seen
that the idea of the absence of national sovereignty, the peaceful use of resources
and joint management assumptions are present in it. When it comes to a cosmopoli-
tan society assumes that good health is also common when it comes to the Constitu-
tion without State speech on overcoming the limits dictated by any “sovereign”, and
yet, when it affirms the importance of the covenant among equals - where the sov-
ereign is not eliminated, but appears as an equal - enabling think up an idea of non-
violence, is allowed to speak on effective preservation of the right to health, which
encompasses the entire community and is inserted in the rights social, relating to the
question of the citizen have the right to a healthy life, which results in their quality of
life. This, in turn, should excel the benefits to the development of man and his exist-
ence, establishing itself as the center of excellence for irradiation of all property or
legal interests protected.
Keywords: Right to Health; Fraternal Law.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na sociedade contemporânea, a saúde vem sendo consi-
derada como um bem de todos, como um direito social neces-
sário à manutenção da vida. Entretanto, o reconhecimento de
sua eficácia é um forte argumento colocado em discussão nos
dias atuais, principalmente em relação aos “direitos sociais e
as externalidades que não podem ser internalizadas na avalia-
ção da saúde enquanto bem econômico.”1
A saúde, então, que notadamente vem sendo analisada
através de teorias tradicionais, pode também ser examinada
por novas teorias, e é neste sentido que veremos a saúde atra-
vés da meta-teoria do direito fraterno. Mais do que uma análise
do direito à saúde, apresentaremos, neste artigo, os dados e
análises da CNDSS, utilizando como documento- base o Relató-
rio da Comissão Nacional Sobre Determinantes Sociais da Saú-
de - CNDSS2.
1
DALLARI, Sueli Gandolfi. A saúde do brasileiro. São Paulo Paulo: Edito-
ra Moderna, 1987, p. 15.
2
Para a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde
(CNDSS), os determinantes sociais em saúde - DSS - são os fatores soci-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
495
A saúde e seus determinantes sociais

A CNDSS foi instituída por Decreto Presidencial em 13 de


março de 2006 e tem, entre outros objetivos, o de gerar informa-
ções e conhecimentos sobre determinantes sociais da saúde no
Brasil, contribuir para a formulação de políticas que promovam
a eqüidade em saúde e mobilizar diferentes instâncias do go-
verno e da sociedade civil sobre o tema. Destaca-se o fato de ser
o Brasil o primeiro país a criar uma CNDSS, e os aspectos que
constam neste relatório nos fazem perceber, entre outras coisas,
a necessidade de vermos o direito à saúde sob a perspectiva de
pactos, de compartilhamentos, de fraternidade.
É nesta perspectiva, em conjunto com as mais diversas
áreas do conhecimento que o direito moderno deve ser estu-
dado, aplicado e refletido, e não apenas como tradicionalmente
vem ocorrendo, a partir da ótica dogmática e formalista. Estu-
dar o direito a partir de uma visão fraterna importa em construir
um novo referencial para a própria ciência do direito, o qual de-
ve se fundamentar em outras áreas de estudos que estão intrin-
secamente ligadas “com” e “nos” fenômenos sociojurídicos.

A SAÚDE E SEUS DETERMINANTES SOCIAIS


É preciso entender que a sociedade não é simplesmente
um todo orgânico integrado por partes, mas que é uma socie-
dade sem fronteiras, na qual os limites territoriais acabam
sendo desvalorizados; é altamente complexa, contingente e
paradoxal, ou, ainda, seguindo as observações de Rudolf von
Jhering,3 a sociedade é uma organização efetiva de vida para e
através dos outros. Na medida em que a vida em sociedade só
é possível através do reconhecimento do outro, é necessário
entender as novas implicações sociais disto. Hoje, por exem-
plo, temos o dever de doar órgãos, mas quais os limites do de-
ver doar?

ais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamen-


tais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores
de risco na população.
3
JHERING, Rudolf von. A finalidade do Direito. Campinas: Bookseller,
2002, p.71.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
496
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

Não é difícil identificar que, nesta sociedade, todos temos


muito mais direitos do que podemos efetivamente gozar. A era
da inclusão universal já existe, mas sua existência está funda-
da em situações paradoxais nas quais, muitas vezes, a inclu-
são se dá pela exclusão; a possibilidade de acesso ao direito
de ter direito à saúde se dá, muitas vezes, não através do sis-
tema de saúde, mas pelo sistema judiciário, ou, ainda pior, por
favores políticos ou de amizade.
São estes aspectos citados que pretendemos desvelar
através da análise do direito à saúde na perspectiva do direito
fraterno. Assim, Il diritto fraterno, dunque, mette in evidenza
tutta la determinatezza storica del diritto chiuso nell’angustia
dei confini statalie e coincide con lo spazio riflezione legato al
tema dei diritti umani.”4
Revisitar as teorias tem fundamental importância em face
da complexidade que atualmente se experimenta no mundo.
De acordo com Eligio Resta5, é possível se aproximar deste
mundo apenas por meio da solidariedade, uma vez que a soli-
dão vive de separação e distância. Dessa forma, a construção
de um novo mundo inserido neste já existente só é possível se
buscarmos outros pilares de sustentação, que devem estar
fundados na fraternidade, na solidariedade e na paz. Sem isto,
a vida no mundo perde o sentido. O que é, então, este mundo
4
RESTA, Eligio. Diritti umani. Torino: UTET. 2006, Inédito. “O direito
fraterno, então, coloca em evidência toda a determinação histórica do di-
reito fechado na angústia dos confins estatais e coincide com o espaço
de reflexão legado ao tema dos direitos humanos”. Tradução livre.
5
RESTA, Eligio. Il Diritto fraterno. Roma: Laterza, 2002. “La solidarietà
avvicina mondi mentre la solitudine vive di separazione e di distanze. Il
movimento apparentemente si svolge a senso unico, se non cifossero
spinte contraddittorie e ambivalenti; cerchiamo distanze e
differenziazioni ma Le revochiamo propotentemente cercando e dando
solidarietà, recongiugendo le nostre solitudine attraverso processi non
soltanto simbolici che “uniscono”agli altri.” A solidariedade aproxima os
mundos, enquanto a solidão vive de separações e de distâncias. O mo-
vimento aparentemente desenvolve-se em sentido único, isso se não
existem empurrões contraditórios e ambivalentes; procuramos distân-
cias e diferenciações, mas as revogamos prepotentemente procurando e
dando solidariedade, restabelecendo as nossas “solidões” através de
processos não somente simbólicos que “unem” os outros. Tradução livre.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
497
A saúde e seus determinantes sociais

ou esta sociedade na qual exploramos, matamos, desrespeita-


mos, criamos guerras? É o mundo não-mundo, mas é o que te-
mos. A pergunta seguinte é, pois: como mudar o que está da-
do? Como fazer com que o direito a ter direitos seja efetivado
não pela via da exclusão? Esta reflexão pode ser aprofundada
através da função e dos limites do direito na sociedade atual,
como nos diz Stefano Rodotà6:
Viviamo ormai in una law-saturated society, in una
società strapiena di diritto, di regole giuridiche dalle
provenzione più diverse, imposte da poteri pubblici o da
potenze private, con una intensità che fa pensare, più che
una necessità, a una inarrestabile deriva. La
consapevolezza sociale non è sempre adeguata alla
complessità di questo fenomeno, che rivela anche
assimetrie e scompensi fortissimi, vouti e pieni, com um
diritto invadente in troppi settori e tuttavia assente là
dove più se ne avverebbe bisogno. Sostenuto da spinte di-
verse, e persino contraddittorie.7

Rodotà tem razão quando diz do excesso e da ausência


do direito onde ele deve existir. Mais do que isso, da diversi-
dade de regras que, ao mesmo tempo, autorizam e proíbem,
assinalando, com isso, uma nova questão a ser enfrentada pelo
direito a ter direito: a ambivalência da técnica, do direito. Eli-
gio Resta vai trazer para o debate a idéia do pharmacon, ou
seja, aquilo que fazemos pode tanto, e concomitantemente,
servir como remédio ou como veneno, não faltando Leis e Tra-
tados para dizer que tudo é legal!

6
RODOTÀ,Stefano. La vita e le regole – Tra diritto e non diritto. Milano,
Feltrinelli, 2006, p. 10.
7
Vivemos em uma Law-satured society, em uma sociedade mais que
cheia de direitos, de regras jurídicas de origens mais diversas, impostos
pelos poderes públicos ou potências privadas com uma intensidade que
faz do pensar, mais que uma necessidade, uma inalcançável corrente. A
sabedoria social não é sempre adequada à complexidade deste fenôme-
no, que revela mesmo assimétrias e descompensamentos fortíssimos,
vazios e cheios, com um direito que invade muitos setores e todavia não
chega lá onde mais seria necessário. Sustentado por impulsos diferentes
e até contraditórios. Tradução livre.

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Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

O DIREITO À SAÚDE SOB O OLHAR DO DIREITO FRATERNO


O direito fraterno se apresenta como uma aposta, onde o
outro é um outro-eu, meu irmão, é alguém com quem faço pac-
tos. Não é por acaso que hoje falamos no Pacto pela Saúde,
como observamos pelo próprio enunciado de tal documento,
que afirma ser um compromisso público dos setores do SUS
com base nos princípios constitucionais.
Para que todos tenham direito à saúde, é necessário efe-
tivar o pacto pela vida, a defesa do sistema único de saúde e a
gestão deste mesmo sistema. Ora, sem compartilhar com o
outro como um outro-eu, é impossível pensar na vida, até por-
que é difícil definir seu início ou seu fim, vide, como exemplo,
as grandes discussões atuais a respeito das células-tronco.
Além desta discussão, retornando a Rodotà,8 outras questões
ainda podem ser apresentadas:
Di chi è il corpo? Della persona interessata, della sua
cerchia familiare, di un Dio che l´há donato, di una natura
che lo vuole inviolabile, di un potere sociale che in mille
modi se ne impadronisce, di un medico o di un magistrato
che ne stabiliscono il destino? E di quale corpo stiamo
parlando?
Queste domande rimandano ad antichi intrecci, che
tuttavia continuamente si rinnovano, com soggetti vecchi
e nuovi che di quel corpo quasi si contendono le spoglie.
Intanto l´oggetto della contesta si moltiplica e si
compone, cerca unità e conosce divisioni. In vertiginosi
giochi di specchi si fronteggiano corpo fisico e corpo
elettronico, corpo materiale e corpo virtuale, corpo
biologico e corpo politico. Um corpo sempre più inteso
come insieme di parti separate ripropone l´ipotesi
dell`homme machine.9

8
RODOTÀ,Stefano. La vita e le regole – Tra diritto e non diritto. Milano,
Feltrinelli, 2006, p. 72.
9
De quem é o corpo? Da pessoa interessada ou da sua família, de um
Deus que o doou, de uma natureza que o quer inviolável, de um poder
social que de mil formas se padroniza, de um médico ou de um magis-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
499
A saúde e seus determinantes sociais

As novas políticas de saúde não podem ignorar este tipo


de questionamento. É preciso apresentar respostas para estas
novas-velhas questões: de quem é o corpo?; quem cuida deste
corpo?, ou teremos de pensar na hipótese discutida com pro-
fundidade por A. Puni sobre o Homem Máquina10. Ora, se vejo o
outro através de mim, temos novos pactos a fazer pela saúde e
não poderemos mais aceitar que os níveis de saúde sejam dife-
rentes conforme a renda ou escolaridade, por exemplo. É o que
nos alerta o relatório da CNDSS - Comissão Nacional Sobre De-
terminantes Sociais da Saúde:
A Região Nordeste, como esperado, apresenta as maiores
taxas de mortalidade na infância em todos os quintis de
renda, particularmente no primeiro quinto, embora a ten-
dência histórica seja também de queda no decorrer dos
anos. Se, em 1990, a taxa era de 95,7%, declina para 64%
em 2000 e 56,4%, em 2005. Importante destacar que,
quando esse estrato é comparado com o das demais re-
giões do Centro-Sul, constata-se diminuição nos diferen-
ciais, no decorrer dos anos.

Diante disso, podemos retornar com os questionamentos


apontados por Rodotà, quais sejam: a quem pertence o corpo
das crianças nascidas nos nordestes do mundo? De que modo
consideraremos estas crianças desde a perspectiva do pressu-
posto da fraternidade, da solidariedade? Que regras mínimas
de convivência estamos estabelecendo? Que juramentos con-
juntos fazemos? Estas respostas certamente podem e devem
ser dadas pelas políticas sociais, que de algum modo devem

trado que estabelece o destino? E de que corpo estamos falando? Estas


perguntas remetem a antigos questionamentos que continuamente re-
novam-se com sujeitos velhos e novos que daquele corpo quase se con-
tém ao espoliar. No entanto, o objetivo da cortesia se multiplica e se
compõe, procura unidade e conhece divisões. Em vertiginosos jogos de
espelhos se confrontam corpo físico e eletrônico, corpo material e virtual,
corpo biológico e político. Um corpo sempre mais entendido. Como
agrupamento de partes separadas, repropõe a hipótese “homem máqui-
na”. Tradução Livre.
10
Sobre isso ver: PUNZI, A. L’ordine giuridici delle macchine.
Gianppichelli, Torino, 2003.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
500
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

ter em conta populações – como esperado – tradicionalmente


mais vulneráveis. O direito fraterno nos faz ver a necessidade
não mais de um soberano que explora, mas de um soberano
que, perdendo sua posição superior, é um irmão, um outro-eu.
Ainda seguindo as reflexões de Rodotà, podemos pensar
na questão da morte, da apropriação do corpo, na cura das do-
enças. Quando observamos diferenças tão significativas com
relação à mortalidade infantil, vemos que os determinantes
sociais, aliados à ineficácia das políticas públicas, agravam a
situação. “A dignidade de morrer remete a dinâmicas sociais
sempre mais intricadas, e revela uma inalienável raiz tecnoló-
gica.” “Quem morre? Essa é uma reflexão sobre o mundo em
que vivemos, que pode produzir morte mesmo onde seria evi-
tável.”11
Pode-se também vincular as idéias de pactuação e acordo
através da proposta recente contida no Pacto pela Saúde,12 no
qual aparece claramente a necessidade de diálogo entre os
mais diversos níveis. Todos os artigos de tal Pacto nos levam a
esta reflexão da continuidade, como podemos observar desde
o primeiro artigo até os finais.
Art. 1º. Instituir um único processo de pactuação, unifi-
cando o Pacto da Atenção Básica, o pacto de indicadores
da Programação Pactuada e Integrada da Vigilância em
Saúde - PPIVS e os indicadores propostos no Pacto pela
Saúde. [...]
Art. 5º. As metas pactuadas pelos municípios, os esta-
dos, o Distrito Federal e a União deverão passar por
aprovação dos respectivos Conselhos de Saúde.

11
RODOTÀ,Stefano. La vita e le regole – Tra diritto e non diritto. Milano,
Feltrinelli, 2006, p. 249. “La dignità del morire rimanda così a dinamiche
sociali sempre più intricate, e rivela una ormai ineliminabile radici
tecnologica.” “A dignidade de morrer remete a dinâmicas sociais sem-
pre mais intricadas, e revela uma inalienável raiz tecnológica.” Tradução
Livre.
12
PORTARIA Nº 91/GM DE 10 DE JANEIRO DE 2007. Regulamenta a uni-
ficação do processo de pactuação de indicadores e estabelece os indica-
dores do Pacto pela Saúde, a serem pactuados por municípios, estados e
Distrito Federal.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
501
A saúde e seus determinantes sociais

Art. 6º. A Secretaria Estadual de Saúde deve pactuar as


metas estaduais e municipais na Comissão Intergestores
Bipartite (CIB) e encaminhar à Comissão Intergestores
Tripartite (CIT) as metas estaduais para homologação,
até 30 de março de cada ano.
Parágrafo único. O Distrito Federal encaminhará suas
metas à Comissão Intergestores Tripartite para homolo-
gação.

Para efetivar uma política de saúde adequada, é necessá-


rio que os atores envolvidos nela participem do processo desde
sua gestão até sua implementação. É neste sentido que o di-
reito à saúde pode ser resgatado e efetivado, pois não basta
dizer que saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado,
é preciso criar condições para que este direito seja efetivado, e
isso se dará somente através de políticas públicas que respei-
tem as diferenças loco-regionais e que apresentem uma estru-
tura global, pois os problemas de saúde não são territorialmen-
te limitados.
Com os aspectos levantados no texto “Direito Fraterno”,
observa-se uma contínua reflexão sobre o novo papel dos sis-
temas sociais em uma sociedade globalizada, onde o ciúme
deve ser imediatamente substituído por colaboração, pelo pac-
to entre iguais, pois somente por meio deste será possível
construir novas formas constitucionais que sejam, efetivamen-
te, fraternas e inclusivas. Acerca disso, o mesmo autor apre-
senta, no texto “La certezza e la speranza”, publicado em
1992, alguns aspectos sobre a soberania dos Estados e sua
superação:
Senza il superamento del dogma della sovranità degli
stati, non si potrá mai seriamente porre il problema del
pacifismo. Solo per um certo periodo di tempo, più o meno
lungo, l’umanità, dice Kelsen, si divide in stati: e non é
detto che lo debba fare per sempre. Lo stato appare come
um prodoto relativo di un tempo storico bem definito, che
coincide com questo tempo convenzionalmente chiamato
“modernità”. Superare il dogma della sovranità deve

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
502
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

essere allora il “compito infinito” che una cultura


giuridico-politica deve faticosamente portare avanti.13

Seguindo os pressupostos do direito fraterno, nos depara-


remos com a idéia da não limitação geográfica e/ou política
para o respeito aos direitos. Assim, o direito à saúde deve ser
um direito universalmente reconhecido; não deveria se limitar
aos contornos do Estado-Nação, pois nele mesmo observamos
diferenças significativas, como apresenta o Relatório de De-
terminantes Sociais em Saúde na sua página 25, no qual os
indicadores sociais revelam grande disparidade:
[...] dados atualizados que mostram as grandes dispari-
dades ainda existentes em indicadores de emprego e dis-
tribuição de renda por região e por cor da pele. Vale notar
que em 2006 cerca de 23% das famílias na região nordes-
te tinham uma renda per cápita inferior a até ¼ do salário
mínimo, enquanto esse percentual era de 5,5% na região
sul. Da mesma forma, a proporção de pobres na popula-
ção nordestina em 2005 era cerca de três vezes maior que
a do Sul.

Note-se que, em alguns países da Europa, o direito à sa-


úde é assegurado independente da cidadania européia. O
complicador é que, após o atendimento, os serviços públicos
de saúde acabam informando atendimentos para extra-
comunitários e aí se coloca em pauta não os pressupostos do
direito fraterno, mas os do direito paterno, do direito de um
soberano. Sobre esta questão, Eligio Resta14 faz um importante
crítica:

13
RESTA, Eligio. La certezza e la speranza. 2 ed. Roma-Bari,1996, p. 09.
Tradução livre: “Sem a superação do dogma da soberania dos estados,
não se poderá nunca colocar o problema do pacifismo. Só por um certo
período de tempo, mais ou menos longo, a humanidade, disse Kelsen, se
divide em Estados: e não dito que o deva fazer para sempre. O Estado
aparece como um produto relativo de um tempo histórico bem definido,
que coincide com esse tempo convencionalmente chamado “moderni-
dade”. Superar o dogma da soberania deve ser então a “tarefa infinita”
que uma cultura jurídico-política deve com fadiga levar adiante.”
14
RESTA, Elígio. Il Diritto fraterno. Roma: Laterza, 2002, p. 53-54.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
503
A saúde e seus determinantes sociais

[...] Del resto si parla molto dell’esperienza europeia come


erede della tradizione del cosmopolitismo e di quel
singolare illuminismo che se ne faceva portavoce; e sono
proprio alcune delle sue più significative caratteristiche
che tornano oggi in questo presente costituzionale. Vale
per questo presente costituzionale quello che è il
paradosso dei diritti umani: essi possono esser presi sul
serio soltanto a patto che si svouti l’umanità di qualsiai
senso teologico e ci si renda conto que tutto dipende da
quello che noi vogliamoche siano l´umanità e i nostri
diritti.15

Mais do que esta discussão sobre o direito de ser cidadão,


é preciso notar que Constituições, Leis e Acordos Internacionais
já definem, desde muito, a necessidade da universalização do
direito a condições básicas de vida e, portanto, condições para
que a população mundial tenha acesso a bens que determinem
boa qualidade de saúde. Podemos pensar na questão da água,
pois sem ela é impossível falar em saúde. Os estudos de Riccar-
do Petrella16 revelam a contínua tentativa de privatização da
água e os problemas decorrentes desse processo:
Il nostro futuro – quello delle nostre famiglie, degli
abitanti di Roma e di Osaka, come delle populazioni
indigene dell’Ecuador, dei popoli usbechi, tagicchi e
turcomanni dell’Asia centrale o degli americani di
California – risiede non tanto nello sviluppo tecnologico ed
economico quanto nella capacità delle società umane a
darsi regole, istituizioni e mezzi d’azione comuni, definiti e
gestiti in comune ai varie levelli dell’organizzazione
sociale, per “vivere insieme” in un mondo divenuto

15
De resto, se fala muito da experiência européia como hereditária da tra-
dição do cosmopolitismo e daquele singular iluminismo que se faz a por-
ta-voz e são propriamente algumas das suas mais significativas caracte-
rísticas que se tornam hoje este presente constitucional. Vale para este
presente constitucional aquele que é o paradoxo dos direitos humanos:
esses podem ser levados a sério somente quando a humanidade se es-
vaziar de sentido teológico. Tradução Livre.
16
PETRELLA, Riccardo. Il manifesto dell’acqua: Il diritto alla vita per tutti.
Torino: Edizioni Gruppo Abele, 2005a.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
504
Janaína Machado Sturza & Taise Rabelo Dutra Trentin

complesso, interdipendente, “mondiale” ma caracterizzato


da nouvi rapporti di dominazione/dipendenza e, di
conseguenza, violento, fragile.17

Em outros ensaios, o autor questiona se ainda é possível


fazer sociedade diante da realidade de desrespeito aos bens
comuns da humanidade. Alerta, ainda, para a crescente priva-
tização dos meios úteis para a vida na terra, não somente da
água, mas inclusive da vecchiaia, na qual cada um deve ter um
plano privado para garantir a vida depois dos sessenta e cinco
anos. Afirma Pretella18 que parece que o homem não é mais
gestor nem proprietário de nenhum bem de interesse geral,
tendo perdido todos os vínculos pelo fato de não ter mais nada
em comum com os outros homens. Ora, não ter nada mais em
comum significa perder o sentido da própria comunidade, mas
o sentido da comunidade ultrapassa a questão da soberania
dos Estados.
Assim, os pressupostos da meta-teoria do Direito Frater-
no são interligados e torna-se difícil separá-los em alguns mo-
mentos. Entretanto, fazemos isso apenas para poder analisá-
los com maior atenção. É assim que se apresenta outro pres-
suposto do direito fraterno, que trata de dar uma nova dimen-
são para o entendimento dos direitos humanos, e portanto do
direito à saúde:
Senza il superamento del dogma della sovranità degli
stati, non si potrá mai seriamente porre il problema del

17
“O nosso futuro – aquele das nossas famílias, dos habitantes de Roma e
de Osaka, assim como o das populações indígenas do Equador, dos po-
vos uzbeques, tadjiques e turcomenos da Ásia Central ou dos america-
nos da Califórnia – reside não tanto no desenvolvimento tecnológico e
econômico quanto na capacidade das sociedades humanas de se darem
regras, instituições e meios de ações comuns, definidos e gestados em
conjunto pelos vários níveis de organizações sociais para ‘viver junto’
em um mundo que virou complexo, interdependente, ‘mundial’, mas ca-
racterizado pelas novas relações de dominação/dependência e, por con-
seqüência, violento, frágil” Tradução livre.
18
PETRELLA, Riccardo Distruzione della convivenza sociale. In:
RICOVERI, Giovanna (org.). Beni comuni fra tradizione e futuro.
Bologna: Editrice Missionária Italiana, 2005b.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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A saúde e seus determinantes sociais

pacifismo. Solo per um certo periodo di tempo, più o meno


lungo, l’umanità, dice Kelsen, si divide in stati: e non è
detto che lo debba fare per sempre. Lo stato appare come
um prodotto relativo di un tempo storico ben definito, che
coincide com questo tempo convenzionalmente chiamato
“modernità”. Superare il dogma della sovranità deve
essere allora il “compito infinito” che una cultura
giuridico-politica deve faticosamente portare avanti.19

Estas reflexões levaram o autor a pensar em um outro tipo


de direito, fundamentado na obrigatoriedade universalista de
respeitar os direitos humanos. Vislumbra-se que o Direito Fra-
terno está no âmbito dos temas referentes aos Direitos Huma-
nos e da necessidade de sua universalização. Estes se desti-
nam a todo e qualquer ser humano, não porque pertença a um
ou outro território, siga esta ou aquela cultura ou, ainda, tenha
uma descendência determinada, mas tão somente porque tem
humanidade. É um direito que tem como fundamento a huma-
nidade, o “ter humanidade”, uma humanidade repleta de dife-
renças compartilhadas e de uma comunhão de juramentos, de
comprometimentos, de responsabilidades.
A sociedade atual é o locus tanto do respeito como do
desrespeito aos e com os direitos humanos. Uma das tarefas do
Direito Fraterno é justamente atentar para esta responsabili-
dade de cada um de nós, de cada homem e mulher, de cada
criança e idoso, enfim, de cada um que compartilha o caráter
de humanidade. Para isto, no entanto, o código amigo/inimigo,

19
RESTA, Elígio. La certezza e la speranza. 2 ed. Roma:Bari, 1992.”Sem a
superação do dogma da soberania dos Estados, não se poderá nunca
abordar o problema do pacifismo. Seriamente, só por um certo período
de tempo, mais ou menos longo, a humanidade, disse Kelsen, se divide
em Estados, e não foi dito que deva ser assim para sempre. O Estado
aparece como um produto relativo de um tempo histórico bem definido,
que coincide com esse tempo convencionalmente chamado “moderni-
dade”. Superar o dogma da soberania deve ser então a “tarefa infinita”
que uma cultura jurídico-política deve, com fadiga, levar adiante” Tra-
dução livre.

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ou, nas palavras de Resta20, a rivalidade do “modelo dos ir-


mãos-inimigos”, estimulada pelos limites territoriais e pelas
diferenças de identidade, não podem mais ser mantidos21.
Sobre o mesmo argumento, Ulrich Beck22:
Il regime dei diritti umani è l’esempio centrale di come
viene superta la distinzione tra nazionale e internazionale
dando impulso allá cosmopolitizzazione delle società
nazionali, cioè di come viene descritta la grammatica del
sociale e del político [...] L’interiorizzazione globale dei
diritti umani destabilizza i regimi dispotici, e lo fa sia
dall’interno che dall’esterno. L’universalizzazione dei
diritti umani non crea soltanto un vuoto di legittimazione
nazionale, ma anche un vuoto di domínio, perchè il
domínio dispotico non può più perfezionare indisturbato il
suo sistema repressivo dietro sicuri confini della sovranità
nazionale. [...] I diritti umani scardinano e cancellano
confini apparentemente eterni e impongono la definizione
di nouvi confini, nuove selettività, che però non
ubbidiscono alla logica del diritto, bensì allá logica del
potere.23

20
RESTA, Eligio. Per un Diritto Fraterno. In: FINELLI, R. (et. al). Globaliz-
zazione e Diritti Futuri. Roma: Manif, 2004, p. 25.
21
Nessa análise, Resta retoma o debate entre Freud e Einstein, nos anos
30, sobre o tema da guerra e da paz relacionados com a força do direito e
com o significado de amigo da humanidade.
22
BECK, Ulrich. Lo Sguardo Cosmopolita. Carocci: Roma, 2005, p. 66.
23
Tradução livre: “O regime dos direitos humanos é o exemplo central de
como é superada a distinção entre nacional e internacional dando im-
pulso à cosmopolitização da sociedade nacional, isto é, de como vem
descrita a gramática do social e do político… a interiorização global dos
direitos humanos desestabiliza os regimes despóticos, e o faz seja pelo
interno como pelo externo. A universalização dos direitos humanos não
cria apenas um voto de legitimação nacional, mas também um voto de
domínio, porque o domínio despótico não pode mais perfeccionalizar de-
sencomodado o seu sistema repressivo frente seguros limites da sobe-
rania nacional… Os direitos humanos anulam os limites aparentemente
eternos e impõem a definição de novos confins, novas seletividade, que,
no entanto, não obedecem à lógica direitos, mas sim à lógica do poder”
(BECK, 2005. p. 66).
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A saúde e seus determinantes sociais

Interessante o vínculo da superação dos confins com as


observações que faz Resta sobre a amizade e assevera que no
mundo moderno nada mais se faz do que acelerar o processo
ambivalente da amizade. Esta ambivalência está representada
pelo paradoxo da inclusão/exclusão. Nunca, em uma sociedade
como a hodierna, houve tantas possibilidades de inclusão;
nunca, como hoje, houve tanto “direito a ter direitos”. Porém, o
acesso efetivo a estes mecanismos inclusivos, muitas vezes, se
dá pela exclusão e/ou pelo não-acesso.
Nos pontos anteriores, já refletimos sobre a dificuldade
de superar a barreira da soberania; porém, quando pensamos a
respeito da efetividade do direito à saúde, esta questão preci-
sa ser revista, pois não podemos pensar que as doenças e seus
agentes transmissores respeitem os limites territoriais. As
grandes epidemias, modernas e antigas, já sinalizam para esta
questão desde muito tempo; basta pensar nas grandes pestes
que acometeram a Humanidade.
Eligio Resta nos faz ver que a fraternidade, que somente
agora se aproxima das discussões científicas, vem para de-
marcar o que não queremos ver, vem para dizer que todas as
evidências históricas nos levam a buscar alternativas em rela-
ção aos direitos fechados nos limites do Estado-Nação:
Il diritto fraterno, dunque, mette in evidenza tutta la
determinatezza storica del diritto chiuso nell’angustia dei
confini statali e coincide con lo spazio di riflessione legato
al tema dei diritti umani, con una consapevolezza in più:
che l’umanità è simplicemente luogo comune, solo
all’interno del quale si può pensare rinonoscimento e
tutela.24

24
RESTA, Eligio. Il Diritto fraterno. Roma: Laterza, 2002, p. 8. “O direito
fraterno, então, coloca em evidência toda a determinação histórica do di-
reito fechado na angústia dos confins estatais e coincide com o espaço
de reflexão legado ao tema dos direitos humanos com um entendimento
a mais: que a humanidade é simplesmente o lugar comum somente no
interior do que se pode pensar reconhecimento e tutela.” Tradução livre.

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Portanto, o estudo do Direito Fraterno não é algo simples,


pois não é simples colocar em questionamento “verdades”.
Resta questiona, propõe, ousa. Por isso, a leitura de seus tex-
tos e o estudo de suas idéias é algo provocativo, aventura
permitida somente àquelas pessoas verdadeiramente dispos-
tas a refletir sobre a possibilidade de novas abordagens para o
atual sistema jurídico. O que demonstra o autor é a urgência
de um direito fundamentado no pacto entre irmãos, no cosmo-
politismo, na humanidade como fundamento de qualquer códi-
go. É, portanto, um direito inclusivo, que propõe a ruptura com
os modelos tradicionais.
O convite de Resta é para apostar. Não uma aposta para
amanhã, mas para um futuro que começa “agora”, neste mo-
mento. A fraternidade é um tema que Resta encontrou na sea-
ra jurídica, no campo dos magistrados, da solução de conflitos,
da aplicação da lei. É uma aposta em outras formas de solução
de conflitos, cuja linguagem não seja propriedade apenas da-
quele que diz o direito, mas seja uma linguagem de todos, de
irmãos, de iguais. É uma aposta fundamentada, também, na
idéia de que o direito diz o sentido e o valor da vida em socie-
dade, como expressa François Ost25: “[...] mais do que interdi-
tos e sanções, como outrora se pensava, ou cálculo e gestão,
como freqüentemente se acredita hoje, o direito é um discurso
performativo, um tecido de ficções operatórias que exprimem o
sentido e o valor da vida em sociedade”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não podemos falar em direito à saúde sob a perspectiva
da meta-teoria do direito fraterno se não considerarmos os
mais variados fatores, especialmente, neste caso, o acesso aos
serviços de saúde como bem comum a toda humanidade. Nes-
se sentido, vislumbra-se que a fraternidade refere-se ao bom e
harmônico convívio com os outros, à união de idéias e de
ações, ao viver em comunidade. Daí, uma das idéias do que

25
OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa : Instituto Piaget, 1999, p. 13.
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venha a ser o Direito Fraterno: é um direito que é para todos e


que é aceito e/ou proposto por todos.
Diante destes aspectos do direito fraterno, poder-se-ia
pensar que a sua aplicabilidade é utópica, no sentido de ser
irrealizável. Não o é. Acreditar no cosmopolitismo como a for-
ma de vida em que o respeito aos direitos fundamentais é as-
sumido por todos não é acreditar em ilusões: é apostar na pró-
pria humanidade, como ressaltou Eros Roberto Grau no prefá-
cio do livro O Direito Fraterno26 “esta será uma tarefa difícil so-
mente para quem não quiser ver.”
Todavia, falar em respeito aos direitos fundamentais nos
remete a idéia de que a população deve estar empoderada de
suas condições de vida e de seu direito a ter direitos. A frater-
nidade que ficou escondida nas masmorras da Revolução
Francesa reaparece justamente para desvelar paradoxos. As-
sim, ao mesmo tempo em que vivemos na Era da Informação e
na Era da Inclusão Universal, conhecemos pouco sobre nossas
condições de vida, dos efeitos dos agrotóxicos nos nossos ali-
mentos, dos efeitos da poluição... é a tal inclusão que muitas
vezes se dá pela exclusão.
Os processos de exclusão se fortalecem justamente
quando a população não tem acesso à informação, conheci-
mento e educação. Novamente, podemos nos reportar ao Rela-
tório, que informa que níveis baixos de educação e falta de sa-
úde andam em conjunto. Além disso, outro dado deve ser con-
siderado quando pensamos na análise do direito à saúde a
partir do direito fraterno: trata-se das diferenças referentes à
cor da pele. Sabe-se que a maior parte dos analfabetos brasi-
leiros é negra, que o número de anos freqüentado nas escolas
é maior entre os brancos do que entre os negros e que a taxa
de analfabetismo, aliada a falta de condições de saúde, no
Nordeste é quatro vezes maior do que no Sul.
Entender o direito à saúde como direito fundamental im-
plica em pactos, acordos, co-divisões; mais do que isso, é pre-

26
RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Trad. Sandra Regina Martini Vial
(coordenação). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004.

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ciso retomar as reflexões de Montesquieu, no Espírito das Leis,


no qual ele afirma que não basta dar esmolas para um homem
nu que encontramos na rua, pois esse ato não exime o Estado
de suas obrigações com as políticas sociais, uma vez que é sua
função assegurar a todos os cidadãos as condições mínimas de
sobrevivência. Montesquieu também assevera que o Estado
deve garantir um modo de vida que não contraste com a sua
saúde, o que significa dizer que os determinantes sociais já
eram motivo de preocupação desde o século XVIII. A impor-
tância da discussão atual sobre os determinantes sociais em
saúde é oportuna, embora já venha com alguns séculos de
atraso.
Nesta sociedade, em que temos acesso a todos os bens e
serviços, na qual todos somos universalmente incluídos, temos
ainda que refletir, seguindo as sugestões do Rodotà: quem
morre?, pois esta pergunta impõe novas-velhas reflexões, so-
bre como vivemos esta artificial inclusão, que pode promover a
morte (nas suas várias acepções) também onde poderia ser
evitada.

REFERÊNCIAS
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sicurezza sociale nel settore dell’assistenza e della sanità. Rimini:
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1987.
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JHERING, Rudolf von. A finalidade do Direito. Campinas: Bookseller,
2002.
MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses tran-
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A saúde e seus determinantes sociais

PETRELLA, Riccardo. Il manifesto dell’acqua: Il diritto alla vita per


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SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública.
Porto Alegre: L&PM, 1987.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
O DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA
E A VIOLAÇÃO DO SIGILO DE DOADOR
DE MATERIAL GENÉTICO NA
REPRODUÇÃO HUMANA
MEDICAMENTE ASSISTIDA

Janaine Machado dos Santos Bertazo Vargas


Mestra em Direito. Professora universitária. Professora titular da cátedra
de Biodireito na URI Santo Ângelo. Coordenadora do projeto de pesquisa
Biodireito e Antropologia. Assessora técnica do Comitê de Ética em Pes-
quisa na URI- Santo Ângelo.
Taciana Marconatto Damo Cervi
Mestranda em Direito e Multiculturalismo na URI Santo Ângelo, Pós –
Graduanda em Filosofia e Direitos Humanos pela Universidade Cândido
Mendes- Brasília. (janainemsout@hotmail.com.br).

Resumo
A pesquisa investiga a reprodução humana medicamente assistida especialmente
quanto à técnica de substituição, quando a concepção é promovida mediante a doa-
ção de esperma. Trata-se de reflexão sobre o direito à ascendência biológica da
criança concebida por este método de reprodução com a violação do anonimato do
doador de material genético.
Palavras-chave: Ascendência biológica,Direito, Reprodução Humana, Dignidade da
Pessoa Humana.

Abstract
The research investigates medically assisted human reproduction especially the
replacement technique, when the design is further promoted through sperm dona-
tion. It is reflection on the ascendancy right to biological child conceived by this
method of breeding with a violation of the anonymity of the donor genetic material.
Keywords: Biological Ancestry, Law, Human Reproduction, Human Dignity.

A evolução das manipulações genéticas modificou a ideia


que até pouco tempo tinha-se de maternidade e paternidade.
Assim como os progressos científicos que envolvem a manipu-
lação de material genético humano, as técnicas de reprodução
assistidas instigaram inúmeras discussões não só no campo
das ciências biológicas, como também no campo jurídico.
514
Janaine M. dos Santos Bertazo Vargas & Taciana Marconatto Damo Cervi

A vontade de ter filhos é inerente ao ser humano. Desde


os tempos mais remotos a maternidade e a paternidade são
valorizadas pela sociedade. Entretanto, devido a problemas de
diversas origens, o desejo de ter um filho nem sempre pode ser
realizado de forma natural.
As técnicas de reprodução humana assistida trouxeram a
possibilidade de obter por modos diversos crianças saudáveis.
De acordo com o ensinamento de Barros :
As técnicas de reprodução humana assistida que hoje ten-
tam concretizar o projeto de inúmeras famílias são objeto
de estudo científico há muito tempo. Todas as técnicas
podem ser realizadas tanto com os gametas daqueles
que desejam a criança quanto com gametas de doadores.
No caso da reprodução assistida ser realizada com game-
tas do casal ela é chamada homóloga, caso seja realizada
com gametas de terceiros ela é chamada heteróloga.1

No caso específico da inseminação artificial, apenas o es-


permatozóide pode ser de doador, enquanto nas outras técni-
cas podemos ter o óvulo também doado, por isso divide-se a
técnica em inseminação artificial com esperma do cônjuge,
inseminação artificial com esperma de doador.
O desenvolvimento de técnicas de reprodução medica-
mente assistida trouxe grandes contentamentos, uma vez que
muitos pais que desejam constituir uma família, mas que por
diversos motivos não podiam gerá-los. Entretanto, o desenvol-
vimento científico que possibilitou esses “milagres” não pode-
ria deixar de estar acompanhado por diversos questionamen-
tos de ordem psicológica, moral, religiosa, científica e jurídica,
uma vez que as técnicas de reprodução assistida envolvem
vidas, tanto daqueles que desejam ser pais quanto daqueles
que virão a ser filhos. Segundo Belmiro Pedro Welter (2003,
p.209):

1
BARROS, Fernanda Otoni. Do direito ao pai. 2 ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2005.
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515
O direito à identidade genética e a violação do sigilo de doador

[...] é preciso transnacionalizar a ética universal na re-


produção humana medicamenteassistida, que reclama o
cumprimento de alguns princípios para garantir o bem
estar das pessoas que são os destinatários ou os partici-
pantes das pesquisas genéticas: o princípio da benefi-
cência, da autonomia, da justiça e da dignidade da pes-
soa humana.2

Os princípios citados por Welter são os princípios da


Bioética, considerada a ética das ciências da vida,Diniz reforça
que (2001, p.6):
Um novo domínio da reflexão que considera o ser humano
em sua dignidade e condições éticas para uma vida hu-
mana digna, alertando a todos sobre as conseqüências
nefastas de um avanço incontrolado da biotecnologia e
sobre a necessidade de uma tomada de consciência dos
desafios trazidos pelas ciências da vida.3

No que compete ao princípio da dignidade da pessoa


humana deve-se ressaltar a importância da bioética para o Di-
reito, pois o Direito mostra-se como um sistema de resolução
de conflitos, ou, diferentemente, pode apresentar-se como um
sistema de preservação de direitos, Dotti refere: ( 2008, p. 260).
[...] dentre os quais o princípio da dignidade da pessoa
humana, que é reconhecido como fundamental e como
base para todo o ordenamento jurídico. O biodireito sur-
ge, então, dessa relação entre bioética e Direito, sendo,
para Maria Helena Diniz “o estudo jurídico que, tomando
por fontes imediatas à bioética e à biogenética, teria a
vida por objeto principal”.4

2
WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socio-
afetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
3
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva,
2011.
4
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informa-
ção: possibilidades e lmites. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2008

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Janaine M. dos Santos Bertazo Vargas & Taciana Marconatto Damo Cervi

O biodireito e a bioética invadiram a vida dos casais infér-


teis que um filho ou, até mesmo, o direito a um filho, no enten-
dimento de alguns. Essa invasão ganha relevância quando se
fala do biodireito em relação ao vínculo parental, conforme Se-
mião:
[...] a procriação humana assistida perturba valores,
crenças e representações que se julgavam intocáveis. Ela
divorcia a sexualidade da reprodução, a concepção da fi-
liação, a filiação biológica dos laços afetivos e educativos,
a mãe biológica da mãe substituta. (SEMIÃO, 2000, p.
168)5

Observam-se discussões especialmente nos casos de re-


produção medicamente assistida heteróloga, tanto quanto à
determinação do vínculo parental, já que na reprodução assis-
tida homóloga as filiações afetivas e biológicas se confundem,
quanto em relação ao anonimato do doador, que gera colisão
de direitos.
A pessoa concebida artificialmente tem direitos a serem
tutelados, os chamados direitos da personalidade e surgem
como prerrogativas individuais a partir do nascimento com
vida, uma vez que ordenamento jurídico adota a teoria natalis-
ta de aquisição da personalidade civil.
Compreender que o nascimento seja o marco para a aqui-
sição da personalidade com a repercussão prática do reconhe-
cimento de direitos e no cumprimento de deveres para com
essa pessoa, não significa que o nascituro não seja alvo de pro-
teção por parte do Estado. Aquele que está por nascer tem
seus direitos resguardados de modo que até mesmo a prática
do abortamento é tida como criminosa, ressalvadas apenas as
hipóteses de gravidez resultante de estupro e de perigo de
morte para a mãe.
De acordo com Gonçalves, “antes do nascimento não há
personalidade. Ressalvam-se, contudo, os direitos do nascituro

5
SEMIÃO, Sergio Abdalla. Os direitos do nascituro: aspectos cíveis, cri-
minais e do biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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O direito à identidade genética e a violação do sigilo de doador

desde a concepção. Nascendo com vida, a sua existência, no


tocante aos seus interesses, retroage ao momento de sua con-
cepção.”6
Então, a partir do nascimento com vida a pessoa é inves-
tida de direitos e por isso, são referidos os direitos da persona-
lidade tidos como prerrogativas individuais intransmissí-
veis,irrenunciáveis e inalienáveis pois estão fora do comércio.
Encontram-se elencados do artigo 11 ao 21 do Código Civil,
como o direito à vida, à liberdade, à identidade, ao nome, ao
próprio corpo, à imagem e à honra.
De acordo com Maria Helena Diniz:
[...] a vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez
que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada
terá sentido. Consequentemente, o direito à vida preva-
lecerá sobre qualquer outro, seja ele o de liberdade reli-
giosa, de integridade física ou mental, etc...Havendo con-
flito entre dois direitos, incidirá o princípio do primado do
mais relevante. Assim, por exemplo, se precisar mutilar
alguém para salvar a sua vida, ofendendo sua integrida-
de física, mesmo que não haja seu consenso, não haverá
ilícito, nem responsabilidade penal médica.7

Mas juntamente ao primado do direito à vida, está inti-


mamente ligada a grande importância do princípio da digni-
dade da pessoa humana, como norteador de solução das inú-
meras questões bioéticas.
Nota- se que abioética vem para mostrar que o ser huma-
no precisa ser visto como um todo e no ambiente em que vive,
além disso, trouxe à discussão a importância de refletir sobre
os princípios éticos que se quer para a sociedade atual e futura.
Para humanizar as decisões utilizando os princípios da
Bioética paraconseguir harmonizar os avanços científicos com
os direitos fundamentais é uma necessidade urgente para o

6
Idem, p. 104.
7
DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do Biodireito.São Paulo: Saraiva,
2009.p.25.

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uso correto do princípio da proporcionalidade como parâmetro


fiscalizador do controle de constitucionalidade.
Segundo Sarlet, a dignidade da pessoa humana deve ser
vista como o primeiro princípio, devendo com isso as escolhas
observar aunidade e legitimidade, para que os demais princí-
pios tenham por base o da dignidade humana;
[...] o princípio da dignidade da pessoa humana constitui,
em verdade uma norma legitimadora de toda a ordem es-
tatal e comunitária, demonstrando em última análise que
a nossa Constituição é, acima de tudo, a Constituição da
pessoa humana por excelência . Nesse sentido, costuma-
se afirmar-se que o exercício do poder e a ordem estatal
em seu todo apenas serão legítimos caso se pautarem
pelo respeito e proteção da dignidade da pessoa huma-
na.8

O entendimento de dignidade da pessoa humana para


Sarlet, consiste na qualidade que distinguecada ser humano e
lhe faz merecedor de respeito tanto do Estado quanto de seus
cidadãos, implicando num conjunto onde direitos e deveres
asseguram tratamento digno ; garantindo assim as condições
existenciais mínimas e a participação da determinação não
apenas do seu destino, mas de toda a sua comunidade.
Também podemos dizer que, um dos maiores reconheci-
mentos da dignidade da pessoa humana implica em que os
direitos da personalidade, que devem ser respeitados inde-
pendentemente de formalismo ou qualquer positividade e tipi-
cidade.
Na realidade, sendo assim, a qualificação dos direitos da
personalidade como subjetivos apenas se completa se for
acrescentado os “ofendidos por fato ou ato ilícito”, os direitos
de personalidade são inerentes ao ser humano, sendo total-
mente intransmissível e irrenunciável.
O papel da tutela inibitória poderá ser necessária quando
no caso concreto ocorre a colisão com outros direitos funda-

8
Op. Cit. SARLET, Ingo Wolfgan. Revista Direito e Justiça, 2009.p.113.
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mentais; são direitos subjetivos da pessoa de defender o que


lhe é próprio, ou seja, à vida, a integridade, a liberdade e por
sua subjetividade exigem um comportamento negativo dos
Um contexto outros com isso protege-a bens inatos, va-
lendo de ação judicial. teórico sobre os direitos da personalida-
de pode ser utilizadosegundo Miranda: “dentre os direitos da
personalidade, caracteriza-se como direito básico do ser (paci-
ente) o de não ser constrangido a submeter-se com risco de
vida, a terapia, cirurgia e ainda, o de não aceitar a continuida-
de terapêutica”9 consequentemente fundamento constitutivo
na autonomia, na dignidade e na alteridade, normas que con-
trariem esses valores são a princípio, atentatórios à dignidade
da pessoa humana.
Todavia, os direitos pessoais10 por sua vez, não pode ser
confundidos com os direitos da personalidade, pois, são estes,
os direitos da pessoa, mas nem todos os direitos pessoais são
direitos da personalidade, e de uma essência ampla, vaga e
também negativa os que se contrapõe muitas vezes sem um
fundamento moral que é um viés necessário, são eles os direi-
tos patrimoniais,mas uma vez que os direitos da personalidade
estejam em conflitos com os direitos patrimoniais, os direitos
da personalidade sempre irão prevalecer sobre estes.direitos
pessoais, explica mais e fonte também
Cada vez mais consagrado a partir do momento em que a
sociedade buscou no mundo jurídico sua dignidade que estava
sendo ceifada11, o princípio da dignidade da pessoa humana
como hoje, seja pelos avanços científicos, legais e jurispruden-
ciais. Atualmente, com os avanços tecnológicos, o ser humano
tem a possibilidade de intervir, modificar, não apenas a natu-
reza, mas ele próprio.

9
DINIZ, Maria Helena, Apud. MIRANDA, Maria Bernadete,Curso de Di-
reito Civil Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2007.p.34.
10
Apud CAHALI, Yussef Said; CAHALI, Francisco José (Orgs.). Famílias e
Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. v. I, p 88.
11
WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socio-
afetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003 p.76.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
520
Janaine M. dos Santos Bertazo Vargas & Taciana Marconatto Damo Cervi

A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 1º, inciso III,


fundamentou o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
como norteador dos limites a serem impostos no que abrange
os estudos e seus avanços biotecnológicos em relação aos hu-
manos;Segundo Ferraz diz que:
[...] o reconhecimento e a afirmação da dignidade da pes-
soa humana, conquanto seja esta um direito fundamen-
tal, sofre o impacto diário das contingências dos apetites
espúrios ou das degradações culturais. Em verdade, tem
– se aqui uma luta permanente, que perpassa toda a His-
tória da humanidade e que registra ora animadores pro-
gressos, ora dolorosos recuos.12

É muito importante para a efetivação da Bioética, a fun-


damentação sob os princípios constitucionais que protegem o
ser humano juntamente com as biodiversidades e também ve-
tam o comércio de órgãos do corpo humano e com isso, garan-
te-se a proteção à vida e principalmente à liberdade de cada
ser.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana diz respeito
também, à liberdade que as pessoas têm de conduzir sua vida
desde que não prejudique terceiros; dignidade da pessoa hu-
mana significa saúde, vida, e o conceito de vida não se resume
apenas no completo bem estar tanto físico, mental ou social e
também não na ausência de doenças ou outras limitações.
Como Cahali exemplifica, “saúde e vida” , ainda é vista
pelo prisma, como uma condição dos indivíduos de poderem
lutar por seus direitos13.
A dignidade, para ser completa, deve levar em conta que
o ser humano tem o direito fundamental à vida digna. Em nos-
so País, temos que ampliar os conceitos de Bioética, pois pre-
cisamos acrescentar os problemas de exclusão social, fome, e
acesso difícil à educação. A principal função do Biodireito é dar

12
FERRAZ, Sérgio.Manipulações biológicas e princípios constitucionais:
uma introdução. Porto Alegre: Fabris, 1991.p.20.
13
Apud CAHALI, Yussef Said; CAHALI, Francisco José (Orgs.). Famílias e
Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. v. I, p. 1403.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
521
O direito à identidade genética e a violação do sigilo de doador

o limite necessário as inovações biotecnológicas no ramos do


Direito, sem prejudicar os avanços e pesquisas científicas, mas
proteger os valores da humanidade como pessoa de direitos e
valores que deverão sempre serem assegurados e respeitados.
A sustentação do princípio da dignidade da pessoa hu-
mana e os princípios bioéticos, como a autonomia e justiça , é
viabilizada no ordenamento jurídico, no momento em que se
reconhece que o ser humano é titular de uma personalidade, e
que seus direitos são intransmissíveis, irrenunciáveis e nunca
poderão sofrer limitações e vedações em seu exercícios, para a
consolidação desses direitos fundamentais.
Com os avanços dos estudos acerca da reprodução hu-
mana, conforme já foi exposto neste trabalho, sobre os tantos
meios de promover as técnicas de reprodução heteróloga,. Mas
investigando a relação quanto ao vínculo biológico, o Conselho
Federal de Medicina em sua resolução denº 1.957/2010 asse-
gura ao doador o direito de sigilo.
“Doação de Gametas e embriões”, assim determina:
2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos re-
ceptores e vice-versa.
3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a iden-
tidade dos doadores de gametas e embriões, bem como
dos receptores. Em situações especiais, as informações
sobre doadores, por motivação médica, podem ser forne-
cidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a
identidade civil do doador.14

Portanto, com isso, os pais socioafetivos não poderão ter


acesso à identidade civil do doador, segundo o Conselho Fede-
ral de Medicina, os pais somente terão acesso apenas em rela-
ção à dados importantes como características somente no que
tange a concepção.
Assim, questiona-se quanto a possibilidade ou impossibi-
lidade da criança gerada por meio de reprodução heteróloga
ter acesso à identidade civil do doador de material genético.
14
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n. 1.957/2010.
Diário Oficial da União, Brasília, 6 jan. 2011, p. 1.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
522
Janaine M. dos Santos Bertazo Vargas & Taciana Marconatto Damo Cervi

A violação do sigilo no banco de dados para que ocorra o


conhecimento da identidade civil do doador pretende garantir
o direito depersonalidade e historicidade, prevenir moléstias
congênitas com o fito de assegurar o direitoà saúde e ter ciên-
cia dos impedimentos matrimoniais futuros, como forma de
evitar-se tragicamente o crime de incesto15.
Contudo, as consequências da quebra deste sigilo atingi-
rãoa vida privada daquele doador. Mas contrária a esta afirma-
ção e por defender que os direitos do nascituro se sobrepõeao
do doador, Fujita discorre que:
[...] o filho originário de reprodução assistida heteróloga
tem o direito de conhecer o doador anônimo do sêmen ou
a doadora anônima doóvulo, sem que isso prejudique a
relação com seus pais socioafetivos, porquanto talhada
essa convivência diuturnamente no respeito, no amor e
no afeto72. Não haveria, portanto, temor por parte dos
pais socioafetivos em revelar que se submeteram à re-
produção heteróloga, tampouco em pensar que o acesso
à identidade civil do doador comprometeria o papel de
pai ou mãe desenvolvido desde a gestação.
Uma das razões da doutrina que visa a quebra do anoni-
mato é preocupação com o direito à saúde da prole. Afir-
mam que excluir o passado genético de uma pessoa pode
parecer irrelevante enquanto esta cresce saudável. No
entanto, é possível que esta criança venha a se deparar
com uma doença genética, situação em que a prévia ci-
ência dos médicos faria toda diferença no atendimento e
no tratamento, o qual poderia ter sido preventivo.16

Quando se fala em reprodução humana deve-se ter em


mente que se está lidando com direitos de um nascituro e/ou
uma criança que tem seus direitos fundamentais e direitos de
personalidade assegurados. Costa explana que:

15
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência Doméstica e Familiar Contra
a Mulher. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.p.68
16
FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2009. Pg 73
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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25 e 26 de abril de 2013
523
O direito à identidade genética e a violação do sigilo de doador

[...] com direitos de um nascituro e, posteriormente, uma


criança, sendo ambos protegidos pelo princípio constitu-
cional do melhor interesse da criança. Este princípio im-
põe aos hermeneutas a necessidade de se interpretar os
direitos e as necessidades das crianças e dos adolescen-
tes superiores aos dos adultos. Assim, garantir a uma
criança que deseja conhecer o indivíduo que possibilitou
sua existência, e que é biologicamente parecido com ela,
a possibiidade de fazê-lo, mostra-se, até agora, a melhor
solução, porquanto não há como se negar a essas pesso-
as o direito fundamental ao conhecimento da sua identi-
dade genética. Este direito baseado no princípio consti-
tucional da dignidade da pessoa humana é reconhecido
desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
após 1948. Assim, negar o acesso a origem genética é
negar às crianças e aos adolescentes sua dignidade co-
mo pessoas humanas que são. Quanto à repercussão pa-
ra a criança do conhecimento do ascendente biológico,
pudesses apontar seu direito à saúde que será garantido
em plenitude, viabilizando tratamento preventivo, os im-
pedimentos matrimoniais, que auxiliarão a eventualidade
de ocorrer um incesto, e, principalmente, o gozo do direi-
to de (criar, construir e conhecer) sua personalidade e
historicidade.17

Contudo, é o direito à identidade enquanto direito da per-


sonalidade que autoriza a violação do sigilo em nome do inte-
resse do menor. Enquanto direito imprescritível, inalienável e
irrenunciável pode ser exercido a qualquer tempo.
Porém, os efeitos deste conhecimento não se estendem
quanto ao uso do nome, direito de alimentos e sucessão here-
ditária, pois ao doador não acarretará nenhum vínculo judicial
com o nascituro.
Por este motivo o mesmo não poderá futuramente vir a
sofrer algum dano patrimonial e também fica assegurado ao

17
COSTA, Rachel. Elas querem saber quem são seus pais: jovens gerados
com doação anônima de óvulos e esperma iniciam movimento pelo direi-
to de conhecer seus pais biológicos. São Paulo: Cultura, 2008.p. 63.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
524
Janaine M. dos Santos Bertazo Vargas & Taciana Marconatto Damo Cervi

doador que não será responsabilizado por ter dever de guar-


dar, cuidar e educar este novo ser, pois estes são deveres e
valores impostos ao verdadeiro pai, ou seja, aquele que con-
sentiu no procedimento e se tornou pai socioafetivo devido ao
relacionamento firmado dia após dia com seu filho desejado e
esperado18.
Todavia, a possibilidade de às pessoas oriundas de re-
produção assistida heterólogaobterem o direito de ter acesso a
origem biológica, tornar-se-á possível juridicamente se for ob-
servado como requisito deste novo direito, a maioridade civil19.
Entende-se que o Princípio do Melhor Interesse da Crian-
ça e do Adolescente também deve ser o norteador das deci-
sões que possibilitam ou não a busca da identidade biológica.
Em casos de conflito, deve prevalecer a decisão mais benéfica
para a criança ou o adolescente, o que, para fins de permissão
da busca da identidade biológica na reprodução assistida, vai
exigir uma análise aprofundada para cada caso em particular.
O que se busca com este trabalho é investigar os limites e os
rumos da interpretação do direito que necessariamente devem
ser aperfeiçoados no contexto de complexidade em que se in-
serem as novas tecnologias reprodutivas e as consequências
na vida das pessoas.

REFERÊNCIAS
ALVES, João Evangelista dos Santos. Direitos humanos, sexualidade
e integridade na transmissão da vida. In: BRANDÃO, Dernival da
Silva et al. A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica.
Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1999.
BARROS, Fernanda Otoni. Do direito ao pai. 2 ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2005.

18
FERRAZ, Ana Cláudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana
assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a
origem genética sob a perspectiva da repersonalização. Curitiba: Juruá,
2009. Pg 63.
19
FERREIRA, Aline Damásio Damasceno. A Bioética e a filiação: o direito
de conhecer a origem genética. São Paulo: Modelo, 2011. Pg 45.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
525
O direito à identidade genética e a violação do sigilo de doador

CAHALI, Francisco José (Orgs.). Famílias e Sucessões. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2011. v. I.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n. 1.957/2010.
Diário Oficial daUnião, Brasília, 6 jan. 2011, p. 1.
COSTA, Rachel. Elas querem saber quem são seus pais: jovens ge-
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DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo:
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DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de infor-
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FERRAZ, Ana Cláudia Brandão de Barros Correia. Reprodução hu-
mana assistida e suasconsequências nas relações de família: a fili-
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ritiba: Juruá, 2009.
FERREIRA, Aline Damásio Damasceno. A Bioética e a filiação: o
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FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2009.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da.A nova filiação: o biodireito
e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade e os
efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência Doméstica e Familiar
Contra a Mulher. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007
SEMIÃO, Sergio Abdalla. Os direitos do nascituro: aspectos cíveis,
criminais e do biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e
socioafetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
JUSTIÇA RESTAURATIVA ,
REDUÇÃO DE DANOS E
REFLEXOS SOCIAIS

João Batista Monteiro Camargo


O autor é bacharel em Direito pela Universidade da Região da Campanha,
Mestrando em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul e bolsista da FIDENE/UNIJUÍ.
(camargojoao@hotmail.com)
Fabiane da Silva Prestes
A co-autora é bacharel em Direito e especialista em Direito Civil e Proces-
sual Civil pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Mis-
sões, Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noro-
este do Estado do Rio Grande do Sul e bolsista da Capes.
(fabianeprestes@gmail.com)

Resumo
O presente trabalho objetiva a análise do uso da justiça restaurativa como estratégia
de redução de danos em substituição à justiça retributiva, que anteriormente era
aplicada. Como problema de pesquisa tem-se o seguinte questionamento: é possível
a ressocialização do menor com a aplicação da justiça restaurativa? Os reflexos ad-
vindos do uso de entorpecentes, criminalidade e marginalização dos menores ultra-
passaram o universo jurídico, deixando de ser uma preocupação unicamente do
Judiciário e passando a ser um problema social. O menor marginalizado não está
somente cometendo ilícitos penais, mas também prejudicando sua integridade física
e psicológica, financiando as mais diversas formas de criminalidade e, quase que em
regra, desestruturando lugares que frequenta, como o seu lar, escola e trabalho.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa, Menores, Redução de Danos.

Abstract
This study aims to analyze the use of restorative justice as a harm reduction strategy
to replace retributive justice, which was previously applied. The research problem
has been the question: Can the rehabilitation of minor with the application of re-
storative justice? The consequences of drug use, crime and marginalization of chil-
dren exceeded the legal universe, no longer a concern only of the judiciary becoming
a social issue. The smallest marginalized not only commit crimes, but also harm your
physical and psychological integrity, funding from various forms of crime and, almost
as a rule, destructuring that frequents places like your home, school and work.
Keywords: Restorative Justice, Minor, Damage Reduction.
528
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Por muito tempo a criança e o adolescente foram insigni-
ficantes, sendo considerados inexistentes para a história, que
apenas trazia a sociedade dos adultos. O sentimento de insig-
nificância era demonstrado quando se tratava a criança, como
um homem em miniatura, que vestia trajes de época e traba-
lhava como um adulto1.
Desde o descobrimento do Brasil até meados do século
XIX, vigeram as Ordenações Filipinas que fixavam que com
sete anos a criança já era capaz de entender seus atos.
Quanto à punição dos menores pelos delitos que fizes-
sem, as Ordenações estabeleciam as mesmas penas de Direito
Comum, apenas resguardando os menores de dezessete anos
de idade da pena de morte.
Segundo João Batista da Costa Saraiva2,
No final do século XIX, quando Dom João VI aportou no
Brasil, a imputabilidade penal iniciava-se aos sete anos,
eximindo-se o menor da pena de morte e concedendo-lhe
redução da pena. Entre dezessete e vinte e um anos ha-
via um sistema de “jovem adulto”, o qual poderia ser até
mesmo condenado à morte, ou, dependendo de certas
circunstâncias, ter sua pena diminuída. A imputabilidade
penal plena ficava para os maiores de vinte e um anos, a
quem se cominava, inclusive, a morte em certos delitos.

Percebe-se que a grande preocupação da época era com a


punição da criança: a igreja fixava uma idade que considerava
como marco do início da capacidade penal, e a partir dessa
fixação, aplicava as penas.
Por influência da Proclamação da Independência, em
1822, foi elaborado o primeiro Código Penal Brasileiro, que en-

1
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1981. p. 55.
2
SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente em Conflito com a Lei –
da indiferença à proteção integral uma abordagem sobre a responsa-
bilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 21.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
529
Justiça restaurativa, redução de danos e reflexos sociais

trou em vigor em 1830 instituindo o sistema biopsicológico,


fixando a imputabilidade entre sete e quatorze anos, ficando a
critério do juiz a decisão.
O Decreto nº. 874, de 11 de outubro de 1890, institui o
Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, aplicando o sistema
biopsicológico para crianças entre nove e quatorze anos, as
quais eram submetidas à avaliação do juiz, que os classificava
como imputáveis ou não, a partir da capacidade de distinguir o
certo do errado. Convém observar que, na época, não existiam
instituições especializadas para atender os jovens considerados
culpados, que eram misturadas com os adultos nas prisões3.
Em 1896, o Caso Marie Anne chegou ao conhecimento
público, proporcionando um repensar acerca dos castigos físi-
cos impostos pelos pais, que consideravam os filhos um objeto
de sua propriedade, e entendiam que podiam educá-los como
quisessem. A situação chegou ao conhecimento dos tribunais:
a menina de nove anos era vítima de agressões, oportunidade
em que se descobriu que não havia uma legislação especiali-
zada em defender os interesses de crianças e adolescentes, de
modo que a Sociedade Protetora dos Animais4 ingressou em
juízo para defender a menina5.
No ano de 1911, foi realizado em Paris o Congresso Inter-
nacional de Menores, ocasião em que surgiu a preocupação de
reformar a justiça de menores, uma vez que não havia um es-
tabelecimento especializado em atender infratores. Nasce,
pois, o caráter tutelar da norma, que dá origem à Doutrina da
Situação Irregular.
A partir do século XX, a criança e o adolescente passaram
a ser vistos como instrumentos a serem moldados, e com o qual
seria possível transformar a realidade atual do país com o obje-
tivo de colocar a nação a salvo de todo o tipo de criminalidade.

3
Ibidem, p 24.
4
O argumento utilizado pela associação foi que se aquela criança fosse
um animal que estivesse submetido àquele tratamento, teria ela legiti-
midade para agir, e com maior interesse, tratando-se de um ser humano.
Ibidem, p.25
5
Ibidem, p 25.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
530
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes

A Lei 4.242 de 1921 abandona o caráter biopsicológico


adotando um critério objetivo de imputabilidade penal. Nesse
mesmo sentido, a Consolidação das Leis Penais mantém a im-
putabilidade, considerando que não são criminosos os que não
tiverem quatorze anos completos.
O ano de 1927 é marcado pela criação do primeiro Código
de Menores: essa era uma lei extremamente minuciosa com-
posta por 231 artigos, onde se determinava nos mínimos deta-
lhes o exercício da vigilância sobre os menores. Observa-se
que, em vista disso, surgiu uma nova categoria jurídica e social
para designar a infância pobre e/ou infratora: o menor.
Conforme ilustra Marta Toledo Machado6,
E assim historicamente se construiu a categoria criança
não-escola, não-família, criança desviante, criança em si-
tuação irregular, enfim, carente/delinqüente, que passa a
receber um mesmo tratamento – e a se distinguir de nos-
sos filhos, que sempre foram vistos simplesmente como
crianças e jovens-, compondo uma nova categoria, os
menores.
[...]
E a nova categoria expressa no binômio carên-
cia/delinqüência, aliada à distinção que se fez entre a in-
fância ali inserida e as boas crianças, vai conformar todo
o direito material da Infância e da Juventude e as instân-
cias judiciais criadas para aplicação desse direito especi-
al, que,ele sim, já nasceu menor.

Observa-se que, pela determinação do código, qualquer


um com idade maior de 14 anos e inferior a 18 anos, por sua
simples condição de pobreza, abandono ou delinqüência, esta-
va sujeito a ser enquadrado na ação do juizado de menores.

6
MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Constitucional de Crianças
e Adolescentes e os Direitos Humanos. Barueri, SP: Manole, 2003.
p. 33.
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531
Justiça restaurativa, redução de danos e reflexos sociais

EVOLUÇÃO DAS PERSPECTIVAS DAS PENALIZAÇÕES E PEDAGOGIA


RESTAURATIVA
Em 1940 entrou em vigor o Código Penal Brasileiro, que
fixou a imputabilidade penal em dezoito anos. Ele fundamenta-
se na condição de imaturidade do menor, que está sujeito ape-
nas à pedagogia corretiva da legislação especial.
Em 1964 a Lei 4.513 cria a Fundação do Bem Estar do
Menor, objetivando-se a realização de atendimento por meio
de políticas básicas de prevenção centradas em atividades
fora de internatos e medidas sócio-terapêuticas, aos menores
internados.
Saraiva7 considera a institucionalização desse período
como:
[...] grandes institutos para menores, até hoje presentes
em alguns setores da cultura nacional, onde muitas vezes
misturavam-se infratores e abandonados, vitimizados por
abandono e maus-tratos com autores de conduta infraci-
onal, partindo do pressuposto de que todos estariam na
mesma condição, em “situação irregular”.

Em 1979, foi instituído o segundo Código de Menores8,


tendo como fundamentação a Doutrina da Situação Irregular e
como objetivo apenas reprimir crianças e adolescentes em si-
tuações patológicas9, sendo marcado por políticas assistencia-
listas fundadas na proteção da criança e do adolescente aban-
donado ou infrator.

7
SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil. Adolescente e Ato
Infracional. Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. 2 ed. re
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 14.
8
Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6697.htm.
9
VOLPI, Mário. O compromisso de todos com a proteção integral da crian-
ça e do adolescente. In:ZILOTTO, M,C GUARÁ; SPOSATTI, et.
al,Caderno Prefeito Criança. Políticas Públicas Municipais de Proteção
Integral a Crianças e Adolescentes. Fundação ABRINQ UNICEF, p.21-36,
1999. p.

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532
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes

Apesar de a Declaração Universal dos Direitos da Criança


ser de 1959, o Brasil só efetivou a Doutrina da Proteção Integral
em 1988 com o surgimento da Constituição Federal, que trouxe
pela primeira vez um dispositivo que dá direitos às crianças e
adolescentes. Além disso, em 13 de julho de 1990, foram aben-
çoados por uma lei específica: o Estatuto da Criança e do Ado-
lescente que estabeleceu normas protetivas que ganharam
destaque em função da “condição peculiar de desenvolvimen-
to”, alicerçadas pelo princípio do melhor interesse da criança.
Assegurando à criança e ao adolescente todas as oportunida-
des, a fim de proporcionar um desenvolvimento físico, mental,
moral, social e espiritual com liberdade e dignidade.
Nesse sentido Mário Volpi10 afirma:
A doutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao
tratamento que historicamente reforçou a exclusão social,
apresenta-nos um conjunto conceitual, metodológico e ju-
rídico que nos permite compreender e abordar as ques-
tões relativas à crianças e aos adolescentes sob a ótica
dos direitos humanos, dando-lhes a dignidade e o respei-
to do qual são merecedores.

Compreende-se que os instrumentos protetivos (em qual-


quer âmbito), por meio da Constituição Cidadã e do Estatuto
da Criança e do Adolescente, propiciaram um repensar acerca
da adolescência e de como o rumo de suas vidas pode afetar
uma sociedade e tratando a tão bem empregada idéia de ser
em desenvolvimento.
Não obstante, o que se apresenta como imperativo de lei
tarda a mudar as práticas repressivas históricas introduzidas
por considerável parte do corpo social. A questão do adoles-
cente em conflito com a lei e o sistema socioeducativo demons-
tra os resquícios da doutrina da situação irregular, ainda vi-
gente na proteção integral. A atribuição da autoria do ato in-

10
21VOLPI, Mário. “A proteção integral como contraposição à exclusão
social de crianças e adolescentes”. Prefácio ao livro Adolescente e Ato
Infracional: Garantias Processuais e Medidas Socioeducaticas, de João
Batista da Costa Saraiva.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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533
Justiça restaurativa, redução de danos e reflexos sociais

fracional gera freqüentemente a desqualificação dos adoles-


centes, como se estes deixassem de ser sujeitos de direitos e
perdessem o estatuto de cidadania, levando-os a condição de
assujeitamento, coisificação.
Como demonstra Vezzula11,
A todo momento, o adolescente é discriminado, contrari-
ando o Art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente,
pois desde o primeiro momento na delegacia ele é bati-
zado com o concludente e acusatório nome de adolescen-
te infrator, ainda que a lei não utilize nunca este nome,
somente “ato infracional praticado ou ato infracional
atribuído” e até “adolescente a quem se atribui autoria
de ato infracional”. Não há consciência de que é o siste-
ma judicial que lhe atribui o ato infracional. Eles são ado-
lescentes, somente essa é sua identidade, a de infrator
lhe é dada erroneamente.

Nesse sentido, vê-se que os adolescentes em conflito com


a lei, os quais integram a categoria chamada de adolescente
infrator, provocam reações e sentimentos hostis de grupos so-
ciais que não analisam o contexto sócio-econômico, político e
cultural em que vivem, tais atitudes imediatistas propagam o
anseio de excluir, ainda mais, esta camada da população.
Conforme Xaud12,
[...] não é rara a crença de que os adolescentes que che-
gam ao sistema são desviados pela “própria natureza”,
são de índole má, ou seja, eles “não têm jeito” e, por isto,
não são confiáveis. Essa crença é “corroborada” pelas
evidencias diárias das atitudes de revolta, indisciplina,

11
VEZZULA, Juan Carlos. A mediação de conflitos com adolescentes
autores de ato infracional. Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, do Centro sócio-
Econômico da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2004. p.56.
12
XAUD, Geysa Maria Brasil. Os desafios da intervenção psicológica na
promoção de uma nova cultura de atendimento do adolescente em con-
flito com a lei. Temas de psicologia jurídica/organização Leila Maria
Torraca de Brito. Rio de Janeiro: Relume Duramá, 1999. p. 95.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
534
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes

má educação etc. destes adolescentes, o que justifica


uma intervenção apenas superficial e muitas vezes sem
compromisso. Envoltos na crença do “não tem jeito”, que
impede de ultrapassar o perigoso limite das aparências,
deixa-se de contextualizar tanto o adolescente, quanto o
delito por ele cometido. É importante lembrar que está ali
não um infrator adolescente e sim um adolescente, eu por
diferentes motivações cometeu um ato infracional.

Enfatiza-se que a adolescência é um processo de desen-


volvimento, caracterizado por veementes conflitos e constan-
tes sentimentos de auto-afirmação, é momento em que são ali-
cerçados os projetos de integração social, período em que a
pessoa sente a necessidade de formular um projeto de vida e
estruturar sua identidade pessoal.
Ressalta-se que antes de serem autores de ato infracio-
nal, são adolescentes, com necessidades, conflitos, aspirações
e desejos típicos da fase em que vivem.
Segundo Ranña13:
Todas as dificuldades que envolvem a passagem da in-
fância para a vida adulta terão de ser vividas pelo jovem
solitariamente. Com as transformações físicas e psicoló-
gicas, o adolescente e quem compartilha de sua vida vê-
em-se mobilizados a criar formas de se estabelecer na vi-
da adulta. Sem rituais, cada um vai viver esse processo
de forma única.

Vê-se, pois, que a adolescência em que pese seja uma in-


venção relativamente nova, não é um período de fácil compre-
ensão, marcada pela vulnerabilidade emocional, não pode mais
ser definida por critérios biológicos, jurídicos e psicológicos, já
que varia em cada conjuntura.
Sabe-se que a colisão com a lei, ou com o poder, pode ser
uma das facetas deste processo de conflitos e de vulnerabili-
dade por onde transitam os adolescentes.

13
RANÑA, Wagner. A travessia da adolescência. Viver Mente e Cérebro.
São Paulo, 2005. p.42.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
535
Justiça restaurativa, redução de danos e reflexos sociais

Ademais a sociedade hodierna é pautada pelas leis de


consumo, onde tem valor quem pode ter objetos valorizados,
sendo atribuído a esse objeto um valor transferível ao sujeito.
Bauman14 salienta que: todo mundo pode ser lançado na moda
do consumo; todo mundo pode desejar ser um consumidor e
aproveitar as oportunidades que esse modo de vida oferece.
Mas nem todo mundo pode ser um consumidor.
E essa impossibilidade de ser consumidor, gera senti-
mento de frustração, que pode ser traduzido pela violência e
pela prática de atos contrários a lei, atingindo de forma mais
severa os adolescentes, por estarem vivendo uma fase peculi-
ar. E esse consumismo desenfreado torna o adolescente que
não consome um sujeito descartável15.
Saraiva16 considera,
[...] as repercussões da globalização, quando tudo se in-
tegra, e noções de longe e perto se confundem, ante a ve-
locidade da informação e do transporte, suscitando que a
“aldeia global” projetada na metade do século XX está
definitivamente instalada, impõe que se avalie qual é a
percepção disso por parte do adolescente que é excluído
da sociedade de consumo e que resulta rejeitado e rejei-
tante do modelo que se busca incluí-lo.

Observa-se que a situação de exclusão a que está subme-


tida parcela da população juvenil atingida pelo apelo da mídia,
produz revolta e delinqüência, já que, a sociedade de consumo
os insulta oferecendo o que nega17.

14
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 94
15
CANHONI, Vera. O olhar adolescente. Uma questão de imagem. Viver
Mente e Cérebro. São Paulo, 2007. p.46.
16
SARAIVA, Liliane Gonçalves. Na educação o tempo é o agora e o lugar
é o aqui. Práticas da medida sócio-educativa em meio aberto. Centro de
defesa dos direitos da criança e do adolescente – CEDEDICA, Santo Ân-
gelo, p. 153.
17
GALENO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo às avessas.
Porto Alegre: L&PM, 1999. p. 19.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
536
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes

Assim, percebe-se a maior valorização de quem possui


mais informações, é mais célere e possui maior capacidade de
consumir, principalmente de adquirir objetos de marca, nesse
contexto, jovens provenientes de camadas mais humildes, so-
frem por serem excluídos do acesso ao mundo do consumo, e
pela deficiência de políticas públicas, adequadas, ao menos, a
dar-lhes expectativa de inclusão. Dessa forma, a violência pode
ser entendida como uma estratégia de afrontar injustiças alme-
jando a inclusão no mercado do consumo.
Pode-se considerar que a violência é uma forma de auto-
afirmação, de sair da invisibilidade produzida por padrões so-
ciais, e muitas vezes o ato infracional parece demonstrar uma
tentativa de existir, de pertencer, ou mesmo de ser acolhido,
mesmo que esse acolhimento se dê pelo sistema jurídico.
Verifica-se que os adolescentes em conflito com a lei têm
uma trajetória de vida marcada por uma sucessão de faltas e
exclusões, fragilidade das referencias familiares, uso de dro-
gas, maus-tratos, e convivência com pais que não conseguem
encaminhar seus filhos, já que há muito tempo perderam o ru-
mo de suas próprias vidas.
Costa18 considera que:
[...] a violência não é um fenômeno isolado, uniforme, que
se abate sobre a sociedade como algo que lhe é exterior e
pode ser explicado através de relações do tipo cau-
sa/efeito como, por exemplo,”pobreza gera violência” ou
“o aumento do aparato repressivo acabará com a violên-
cia”. Assim sendo, estamos lidando apenas com os efei-
tos da violência e não com suas causas. A violência mul-
tifacetada,encontrando-se diluída na sociedade sob as
mais diversas formas que se interligam, interagem, (re)
alimentam-se e se fortalecem.

Assim sendo, faz-se necessária a compreensão sobre es-


sa violência responsável pela seleção de quais indivíduos irão

18
COSTA, Marli M.M. Políticas públicas e violência estrutural. In: LEAL,
G.; REIS J. R (Org.) Direitos sociais e políticas públicas: desafios con-
temporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t.5 p. 1261.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
537
Justiça restaurativa, redução de danos e reflexos sociais

desfrutar de uma vida digna e de quais, serão postos à mar-


gem. Trata-se, pois, da violência estrutural, construída histori-
camente, tendo raízes nas relações de poder, fomentando as
desigualdades, agravando problemas sociais e potencializando
atos infracionais.
Destaca-se que a violência e a criminalidade assumem
proporções alarmantes, e a participação de jovens, somada a
ênfase que a mídia dá em especial a esses atos infracionais,
coloca em pauta a necessidade de maior rigor na “punição” de
adolescentes, ignorando-se a existência de um Direito Penal
Juvenil, baseado em uma pedagogia rigorosa e garantista.
Os mais diversos, ainda que repetitivos discursos sobre
impunidade e violência dos adolescentes tomam a cena na
atualidade tendo com ponto comum de entendimento o afas-
tamento do adolescente a quem se atribui a autoria de ato in-
fracional do convívio social, produzindo talvez corpos dóceis19
que ocupam estes estabelecimentos, ignorando-se sua história
de vida, e os danos que a privação de liberdade pode causar
em um adolescente em condição peculiar de desenvolvimento.
Segundo Foucault20:
A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justi-
ça, é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se
exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente
um campo de objetividade em que o castigo poderá fun-
cionar em plena luz como terapêutica e a sentença se
inscrever entre os discursos do saber. Compreende-se
que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão
que não fora, entretanto filha de seus pensamentos. Ela
lhe era agradecida por isso.

Vê-se, pois, que as instituições de internação retiram os


indivíduos das suas famílias, do seu local de convívio, e os in-
ternam durante um período de tempo, para moldar suas con-

19
Michel Foucault, aventa a noção de “docilidade” como a junção do corpo
analisável ao corpo manipulável. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir:
história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1997.
20
FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p.214.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
538
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes

dutas, utilizando a disciplina como forma de docilização dos


corpos, a fim de que possam voltar a sociedade, de forma útil.
Observa-se que, em algumas práticas, persiste ainda o
caráter prisional, em contrariedade o que estabelece o Estatu-
to da Criança e do Adolescente, que prioriza um atendimento
pedagógico e garantista.
De acordo com Carvalho Porto21,
A institucionalização do adolescente tem força negativa e
carga violenta de estigma, pois em um ambiente que cer-
ceia a liberdade desse indivíduo sem uma proposta pe-
dagógica e planejamento de inserção após o término do
cumprimento da medida não consegue assegurar a sua
conscientização sobre o ato cometido. Nesse espaço de
esvaziamento e de dissolução do sujeito por estigmas, ro-
tulações ou etiquetamentos, a convivência com outros
indivíduos projeta na sua estrutura em formação mais va-
lores que não condizem com a realidade social.

Vê-se, pois, que esse ambiente cercado por irregularida-


des, ociosidade, e privações, nada mais é do que um ambiente
estigmatizante e reprodutor de violência, que desrespeita a
condição especial do adolescente, deixando a duvidar se ga-
rante ou não o mínimo existencial.
No que tange a redução de danos causados pela privação
de liberdade Carvalho22 leciona que:
Uma atividade pautada em programas humanistas de re-
dução de danos possibilitaria construir com o apenado
técnicas que possibilitassem a minimização do efeito de-
letério do cárcere (clinica da vulnerabilidade). Constata-

21
PORTO, Rosane Teresinha Carvalho. A justiça restaurativa e as políti-
cas públicas de atendimento a criança e ao adolescente no Brasil: uma
análise a partir da experiência da 3ª Vara do Juizado Regional da Infân-
cia e da Juventude de Porto Alegre Dissertação apresentada ao Progra-
ma de Pós-Graduação em Direito – Mestrado, Área de Concentração em
Direitos Sociais e Políticas Públicas, Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC, 2008.p. 92.
22
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. p. 202.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
539
Justiça restaurativa, redução de danos e reflexos sociais

dos problemas de ordem pessoal (uso de drogas e alcoo-


lismo, por exemplo) ou familiar, deveria o técnico, junto
com o apenado, e tendo como imprescindível sua anuên-
cia, colocar em pratica um processo de resolução do pro-
blema, ou seja, fornecer elementos para a superação da
crise e não estigmatizá-lo, potencializando-a.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em assim sendo, percebe-se a incongruência entre o edu-
car o adolescente privado de liberdade, tirando-lhe o seu bem
maior: a dignidade, potencializando sua vulnerabilidade, enfa-
tizando o comportamento no confinamento, como condição pa-
ra convivência e sobrevivência após o cumprimento da medi-
da. Os conflitos nas unidades de internação demonstram irre-
gularidades dos programas de atendimento caracterizadas
pela superlotação, e pela distância entre o local do cumprimen-
to da medida e os lares dos adolescentes, são evidencias da
violação de direitos fundamentais de quem está cumprindo
medida socioeducativa justamente para aprender a respeitá-
los pagando-se o mau com o mau e perfazendo a mesma justi-
ça retributiva sem dar espaço à justiça restaurativa que visa
bem mais que coagir o menor, visa, o ressocializar e o colocar
em condições de viver em sociedade.

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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
540
João Batista Monteiro Camargo & Fabiane da Silva Prestes

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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
DIREITOS HUMANOS E A
SOCIEDADE INTERNACIONAL :
UMA ABORDAGEM HISTÓRICA
SOBRE O DIREITO INTERNACIONAL
DOS DIREITOS HUMANOS

Joice Graciele Nielsson


Advogada. Mestre em Desenvolvimento UNIJUI/RS. Doutoranda em Direi-
to UNISINOS/FURB. (joice.gn@gmail.com)
Gilmar Antonio Bedin
Professor permanente do Curso de Mestrado em Desenvolvimento da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUÍ – e professor colaborador do Curso de Mestrado em Direito da
Universidade Regional Integrada – URI. (gilmarb@unijui.edu.br).

Resumo
O presente artigo realiza um resgate histórico do processo de formação, evolução e
consolidação do direito internacional dos direitos humanos, na esteira das transfor-
mações ocorridas na sociedade internacional durante o século passado. Neste senti-
do, busca os seus principais antecedentes históricos, e os principais marcos históri-
cos e legais de sua instituição, evidenciando as disputas político-ideológicas que
sempre estiveram presentes no processo. Dessa forma, pretende-se evidenciar que
o desenvolvimento do sistema internacional de direitos humanos ocorreu na esteira
das mudanças ideológicas, políticas e sociais ocorridas no mundo, e da reconfigura-
ção geopolítica que este veio sofrendo ao longo do século passado, se constituindo
em um instrumento cada dia mais imprescindível na sociedade globalizada, multiplu-
ral e complexa que vivenciamos atualmente.
Palavras-chave: Direitos humanos, soberania, sociedade internacional, universalismo.

Abstract
This article provides a historical process of the formation, evolution and consolida-
tion of the international law of human rights, in the wake of the changes occurring in
international society during the last century. In this sense, seeking its main historical
background, and the main landmarks and their legal institution, highlighting the
political and ideological disputes that have always been present and guided this
process. Thus, we intend to demonstrate that the development of the international
human rights occurred in the wake of ideological changes, political and social chang-
es in the world, and reconfiguration of geopolitics that has undergone over the past
century, constituting one instrument each day more essential in a globalized society,
and complex multiplural we experience today.
Keywords: Human rights, sovereignty, international society, universalism.
542
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

INTRODUÇÃO
Os direitos humanos se constituíram, ao longo do tempo,
em um dos temas centrais da agenda política mundial. Em sua
caminhada histórica, foram se expandindo e adquirindo cada
vez mais relevância na proteção da dignidade humana, chegan-
do à atual configuração do sistema internacional de proteção.
Neste sentido, pretende-se neste estudo realizar um res-
gate histórico do processo de formação, evolução e consolida-
ção do direito internacional dos direitos humanos, na esteira
das transformações ocorridas na sociedade internacional du-
rante o século passado, o século que Hobsbawm1 chamou de
era dos extremos.
Para tanto, parte-se da busca e análise dos seus princi-
pais antecedentes históricos, e dos marcos de sua criação, que
se referem às Guerras Mundiais e seus devastadores efeitos
humanos e sua consequência na reorganização geopolítica do
mundo, que resultou na criação da ONU e da Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos.
Evidencia-se durante este processo, que as disputas polí-
tico-ideológicas que estiveram presente e tiveram grande im-
portância nos rumos traçados e alcançados pelos direitos hu-
manos na esfera internacional. Disto, resulta que o sistema
internacional de direitos humanos foi se constituindo em um
instrumento cada dia mais imprescindível na luta pela prote-
ção da pessoa humana na sociedade globalizada, multiplural e
complexa que vivenciamos atualmente.

OS DIREITOS HUMANOS E A SOCIEDADE INTERNACIONAL


O moderno conceito de Direitos Humanos evoluiu a partir
das revoluções burguesas do final do século XVIII chegando
nos dias atuais, ao que podemos denominar de concepção con-
temporânea, introduzida pela Declaração Universal de 1948 e

1
HOBSBAWM, Eric A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo,
Companhia das Letras, 1995.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
543
Direitos humanos e a sociedade internacional

reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, de


19932. Tal concepção está diretamente vinculada ao processo
de nascimento dos direitos de quarta geração e de internacio-
nalização e universalização dos direitos humanos, surgidos no
segundo pós-guerra, com o consequente desenvolvimento do
Direito Internacional dos Direitos Humanos3.
Neste sentido, é importante destacar que da origem his-
tórica da ideia direitos iluministas até os nossos dias, a inte-
gração entre os países se tornou tal que, atualmente, a digni-
dade de cada indivíduo encontra, em geral, três esferas de pro-
teção. Primeiramente, quase todos os Estados têm suas nor-
mas protetoras, que norteiam o chamado sistema local. Além
disso, há os diversos sistemas regionais e o sistema global. Em
cada esfera, há diferentes mecanismos de proteção, bem como
diferentes declarações de direitos.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos está conso-
lidado como disciplina jurídica autônoma, que busca promover
e proteger a dignidade da pessoa humana e os direitos huma-
nos em âmbito mundial. Assim, consiste em um complexo de
normas que regulam a proteção universal da dignidade da
pessoa humana.
O processo de internacionalização dos direitos humanos
tem diversas fontes históricas, sendo que as principais, con-
forme define Flávia Piovesan4 são as oriundas do Direito Hu-
manitário, os tratados celebrados durante a Liga das Nações e
ainda as convenções e tratados da Organização Internacional
do Trabalho. Tais institutos promoveram o inicio da redefinição
do âmbito e alcance do tradicional conceito de soberania esta-
tal, a fim de que se permitisse o advento dos direitos humanos
como questão de interesse internacional, bem como a redefini-

2
PIOVESAN, Flávia. Direitos sociais, econômicos e culturais e direitos
civis e políticos. In SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos.
Ano 1, n. 1. 2004.
3
Para denominar Direito Internacional de Direitos Humanos, utilizaremos,
neste trabalho, a sigla DIDH.
4
Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4. ed. São
Paulo: Max Limonad, 1997.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
544
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

ção do status do indivíduo, que passou a ser sujeito de direito


internacional, indicado um caminho por onde os direitos hu-
manos, mais tarde, também deveriam trilhar, alcançando am-
plitude universal.
O Direito Internacional Humanitário, criado no século XIX,
desenvolveu-se com o objetivo de limitar a atuação do Estado
e assegurar a observância dos direitos fundamentais, colocan-
do sob sua tutela militares fora de combate (por ferimentos,
doença, naufrágio ou prisão) e populações civis5. Elevou ao sta-
tus internacional a proteção humanitária em casos de guerra,
regulamentando juridicamente, em âmbito internacional, pro-
teções aos feridos e aos civis. O Direito Humanitário foi assim
“a primeira expressão de que, no plano internacional, há limi-
tes à liberdade e à autonomia dos Estados”6.
A Convenção da Liga das Nações, de 1920, segundo a au-
tora, tinha como finalidade promover a cooperação, paz e segu-
rança internacional, condenando agressões externas contra a
integridade territorial e a independência política de seus
membros. A Convenção da Liga das Nações ainda estabelecia
sanções econômicas e militares a serem impostas pela comu-
nidade internacional contra os Estados que violassem suas
obrigações, o que representou uma redefinição do conceito de
soberania estatal absoluta.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada
finda a Primeira Guerra Mundial foi, de acordo com Valério de
Oliveira Mazzuoli7, o antecedente que mais contribuiu para a
formação do DIDH, com o objetivo de estabelecer critérios bá-
sicos de proteção ao trabalhador, regulando sua condição no
plano internacional, tendo em vista assegurar padrões mais
condizentes de dignidade e de bem estar social.

5
Ibidem.
6
Ibidem, p. 134.
7
Gênese e princípiologia dos tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos: O legado da declaração universal de 1948. Disponí-
vel em: <http://www.mt.trf1.gov.br/judice/jud10/genese_princípiolo
gia.htm>. Acesso em 13 jan 2012.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
545
Direitos humanos e a sociedade internacional

A sua importância está no fato de que “através desses


institutos começou-se a proteger direitos de cidadãos de vários
Estados no plano internacional, transcendendo os limites dos
Estados e passando a tornar os direitos humanos como tema
de legítimo interesse internacional”8. Em face deste breve
apanhado histórico, pode-se concluir, nas palavras da Flávia
Piovesan9, que estes três institutos, cada qual ao seu modo,
contribuíram para o processo de internacionalização dos direi-
tos humanos, uma vez que todos se assemelhavam na busca
da proteção dos direitos humanos na ordem internacional.
Seguindo-se tais antecedentes históricos e os novos
acontecimentos mundiais, aos poucos, passou a emergir a
ideia de que o indivíduo é não apenas objeto, mas também su-
jeito de direito internacional, bem como começou a se consoli-
dar a capacidade processual internacional, de forma que a
concepção de direitos humanos não mais se limitava à exclusi-
va jurisdição doméstica, mas constituem matéria de legítimo
interesse internacional.
A questão mais importante, nesse momento, passou a ser
dotar a pessoa humana de capacidade jurídica internacional,
uma vez que não se pode falar em direitos do homem garanti-
dos pela ordem jurídica internacional se o homem não for efeti-
vamente considerado um sujeito do direito internacional. É o
que Cançado Trindade10 chama de “humanização” do direito
internacional. Um passo nesse caminho foi dado com os Tribu-
nais de Nuremberg e de Tóquio, que são duplamente impor-
tantes, pois consolidam a ideia de que é necessário limitar a
soberania estatal, bem como reconhece aos indivíduos uma
série de direitos na esfera internacional11.
Tendo tais elementos constitutivos, a verdadeira consoli-
dação do Direito Internacional dos Direitos Humanos “surge

8
Ibidem p. 38.
9
Idem.
10
O Acesso Direto dos Indivíduos à Justiça Internacional. In: Manual de
direitos humanos internacionais: acesso aos sistemas global e regional
de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Loyola, 2002, p. 18.
11
Idem.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
546
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra


Mundial”12. É neste momento histórico que observamos uma
ruptura com a ordem até então estabelecida, ruptura esta re-
presentada pelo evento do totalitarismo ao desconsiderar a
dignidade da pessoa humana e criar uma forma até então iné-
dita de governo13.
Tal afirmação se deve ao fato de que o totalitarismo rom-
peu com o paradigma dos direitos humanos, ao negar o valor
da pessoa humana como fonte de direito. Deste processo,
emergiu a necessidade de reconstruir os direitos humanos,
como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da
moral, ou seja, o direito a ter direitos, ou ainda, o direito a ser
sujeito de direitos, segundo Hannah Arendt na leitura de Flá-
via Piovesan14. Dessa maneira, é possível sustentar que a Se-
gunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos e o
pós-guerra deveria significar sua reconstrução.
O campo de concentração é o fato histórico chave para a
compreensão do fenômeno totalitário. A transformação concre-
ta dos seres humanos em objetos descartáveis visa a elimina-
ção completa dos direitos de cidadania. Não existe mais a
clássica divisão entre governantes e governados, governantes
com deveres em relação aos governados e governados com
direitos em relação aos governantes. O que há é uma “máqui-
na de terror que elimina homens, mulheres e crianças como se
fossem coisas, objetos descartáveis”15. O legado do nazismo
assim foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a con-
dição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça –
a raça pura ariana.
Ao produzir tal cenário e apresentar o Estado como o
grande violador de direitos humanos, a era Hitler foi marcada
pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa hu-

12
Idem, p. 139.
13
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
p. 80.
14
Idem, p. 116.
15
Celso Lafer, Idem, p. 103.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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547
Direitos humanos e a sociedade internacional

mana – que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a cam-


pos de concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 mi-
lhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, cigano.
Este genocídio durante o Estado Nazista foi uma experiência
de guerra total, ou seja a solução do conflito de interesses pela
completa eliminação daquele que é considerado como inimigo-
objetivo16. Foi a partir de tal quadro, que a concepção contem-
porânea de direitos humanos e o DIDH configuraram-se,
[...] como a primeira resposta jurídica da comunidade in-
ternacional ao fato de que o direito ex parte populi de to-
do ser humano à hospitalidade universal só começaria a
viabilizar-se se o direito a ter direitos, para falar com
Hannah Arendt, tivesse uma tutela internacional, homo-
logada do ponto de vista da humanidade. Foi assim que
começou efetivamente a ser delimitada a “razão de esta-
do” e corroída a competência reservada da soberania dos
governantes, em matéria de direitos humanos, encetan-
do-se a sua vinculação aos temas da democracia e da
paz17.

Nesse sentindo, Fábio Konder Comparato sustenta que


[...] após três lustros de massacres e atrocidades de toda
sorte, iniciados com o fortalecimento do totalitarismo es-
tatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do
que em qualquer outra época da história, o valor supremo
da dignidade humana. O sofrimento como matriz da
compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição
luminosa da sabedoria grega, veio a aprofundar a afirma-
ção histórica dos direitos humanos18.

16
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Rapo-
so. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
17
LAFER, prefácio livro de LINDGREN ALVES. José Augusto. Os direitos
humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. XXVI.
18
A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed., rev., e atual. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 54.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
548
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

Mazzuoli19 leciona que o “direito a ter direitos”, segundo a


terminologia de Hannah Arendt, passou, então, a ser o referen-
cial primeiro do processo nascente de internacionalização dos
direitos humanos, com a criação de uma sistemática internaci-
onal de proteção, mediante a qual se torna possível a respon-
sabilização do Estado no plano externo, quando, internamente,
os órgãos competentes não apresentarem respostas satisfató-
rias na proteção dos direitos humanos.
Dessa maneira, é essa conjuntura de terror que fornece o
alicerce fático, no âmbito do Direito Internacional, para que se
esboce um sistema normativo internacional de proteção aos
direitos humanos. Tal processo de internacionalização possui
uma base dual, tendo em vista a restrição da soberania estatal,
considerando que é justamente o Estado que passa a ser um
dos principais violadores de direitos humanos e pela concep-
ção universal acerca desses direitos que deveriam ser estendi-
do a todos.
Nesse sentido, conforme bem delimita Flávia Piovesan 20
esta concepção é inovadora uma vez que aponta para duas
importantes consequências: a) a revisão da noção tradicional
de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um pro-
cesso de relativização; b) a cristalização da ideia de que o in-
divíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na
condição de sujeito de direito.

A ONU E A IMPLANTAÇÃO DE UM SISTEMA INTERNACIONAL DE


PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
Assim, a partir da primeira metade do século XX, inicia-se
a progressiva construção de um arcabouço internacional de
proteção dos direitos humanos, formado por um conjunto de
declarações, pactos, convenções e órgãos especializados da
Organização das Nações Unidas (ONU). O regime global de
direitos humanos, que vai além do domínio reservado das ju-

19
Idem, p. 44.
20
Op. Cit. 2004.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
549
Direitos humanos e a sociedade internacional

risdições nacionais, procura fornecer parâmetros para a atua-


ção dos atores estatais no que diz respeito aos direitos huma-
nos.
O complexo de normas que integra o Direito internacional
dos Direitos humanos é composto, principalmente, pela Carta
das Nações Unidas (ou Carta da ONU / Carta de São Francis-
co), pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pac-
to Internacional dos Direitos Civis e Políticos, pelo Pacto Inter-
nacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, bem co-
mo por diversas convenções internacionais, estes assinados a
partir dos anos 60.
Assinada em São Francisco, em 26 de junho de 1945, a
Carta das Nações Unidas ou Carta da ONU foi o documento
fundante da Organização das Nações Unidas – ONU e consti-
tui-se no primeiro instrumento normativo do DIDH. Foi a Carta
que iniciou o processo da proteção universal desses direitos,
ao dispor em seu art. 55 que a ONU: “Promoverá o respeito
universal aos direitos humanos e às liberdades fundamentais
de todos, sem fazer distinção por motivos de raça, sexo, idioma
ou religião, e a efetividade de tais direitos e liberdades”.
E, embora a Carta não tenha conceituado o que vem a ser
“direitos humanos e liberdades fundamentais”, provocou nos
Estados o reconhecimento de que a proteção e a promoção dos
direitos humanos deixaram de ser questão de exclusivo inte-
resse interno, mas, desde então, pauta que interessa a toda a
comunidade internacional. Na explicação de Lindgren Alves
Com a assinatura da Carta das Nações Unidas, em São
Francisco, em 26 de junho de 1945, a comunidade inter-
nacional nela organizada se comprometeu, desde então,
a implementar o propósito de “promover e encorajar o
respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais
de todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”.
Para esse fim, a Comissão de Direitos Humanos (CDH),
principal órgão das Nações Unidas sobre a matéria, rece-
beu a incumbência de elaborar uma Carta Internacional

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
550
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

de Direitos. O primeiro passo neste sentido foi a prepara-


ção de uma Declaração21.

Dessa forma, embora tenha sido enfática em determinar a


importância de se defender, promover e respeitar os direitos
humanos e as liberdades fundamentais, principalmente em seu
artigo 55, a Carta não definiu precisamente o conteúdo dessas
expressões, deixando-as em aberto. Foi somente três anos
após seu advento, com a promulgação da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, que se definiu o elenco dos direitos
humanos e liberdades fundamentais, dando um significando
“um código e uma plataforma comum de ação”, e consolidando
a afirmação de “uma ética universal” baseada no valor e no
conteúdo dos direitos humanos22.
Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Na-
ções Unidas aprovou, com 48 votos a favor, nenhum contra e
oito abstenções23, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Este documento adquire fundamental importância na medida
que define, pela primeira vez, “um padrão comum de realiza-
ção para todos os povos e nações” no âmbito dos direitos e
liberdades fundamentais - noções até então difusas e tratadas
sem uniformidade no meio internacional24. A Declaração foi o
primeiro passo no sentido de apresentar à comunidade inter-
nacional um corpo de princípios e diretivas concernente à pro-
teção internacional dos direitos humanos.
A Declaração estabelece duas categorias de direitos: a)
os direitos civis e políticos, e b) os direitos econômicos, sociais
e culturais. Combina, assim, o discurso liberal e o discurso so-
cial da cidadania, unindo os valores da liberdade aos da igual-
dade. Os direitos humanos, definidos nas categorias de direi-
tos civis e políticos (art. 3 ao 21) e direitos econômicos, sociais
e culturais (art. 22 ao 28), são considerados pela Declaração

21
Idem, p. 88.
22
Piovesan, F. opus citatum, 1997, p. 155.
23
Os oito Estados que se abstiveram foram Bielorussia, Checoslováquia,
Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, URSS, África do Sul e Iugoslávia.
24
Lindgren Alves, Idem.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
551
Direitos humanos e a sociedade internacional

interdependentes, indivisíveis e inerentes à condição humana


em qualquer parte do globo. De acordo com Flávia Piovesan25
“Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, a
Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos
humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos
como uma unidade interdependente e indivisível”.
Norberto Bobbio26 confirma que com a Declaração, “um
sistema de valores é – pela primeira vez na história – universal,
não em princípio, mas de fato”, na medida em que o consenso
sobre sua validade e sua capacidade para reger os destinos da
comunidade futura de todos os homens foi explicitamente de-
clarado. Somente depois dela é que podemos ter a certeza his-
tórica de que a humanidade – toda a humanidade – partilha
alguns valores comuns; e podemos, finalmente, crer na univer-
salidade dos valores, no único sentido em que tal crença é his-
toricamente legítima, ou seja, no sentido em que universal sig-
nifica não algo dado objetivamente, mas subjetivamente aco-
lhido pelo universo dos homens.
Além disso, com a nova fase inaugurada pela Declaração
Universal,
[...] tem início a uma terceira e última fase, na qual a
afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e
positiva: universal no sentido de que os destinatários dos
princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos
deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva
no sentido de que põe em movimento um processo em
cujo final os direitos do homem deverão ser não mais
apenas proclamados ou idealmente reconhecidos, porém
efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Es-
tado que os tenha violado27.

Vale salientar que este processo de universalização dos


direitos humanos permitiu a formação de um sistema interna-

25
Idem, p. 159.
26
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11 ed. Trad. de Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 28.
27
Ibidem, p. 28.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
552
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

cional de proteção destes direitos, o qual é composto por tra-


tados internacionais de proteção que refletem a consciência
ética contemporânea compartilhada pelos Estados. Tais trata-
dos e declarações instituem um consenso internacional acerca
de temas centrais de direitos humanos com o objetivo de sal-
vaguardar parâmetros protetivos mínimos, o chamado “mínimo
ético irredutível”28.
Pode-se afirmar, portanto, que num contexto global, a
proteção dos direitos humanos torna-se essencial para a con-
vivência dos povos na comunidade internacional, a qual é al-
cançada pela sua afirmação como agenda comum mundial,
levando os Estados a estabelecerem projetos comuns, e, assim,
poderem superar as animosidades geradas pelas crises políti-
cas e econômicas.
Dessa maneira, os Estados têm a obrigação legal de pro-
mover e respeitar os direitos e liberdades fundamentais, não
se limitando à sua jurisdição reservada. A intervenção da co-
munidade internacional deve ser aceita de forma subsidiária
em face da emergência de uma cultura global que objetiva fi-
xar padrões mínimos de proteção dos direitos humanos.
A Declaração de 1948 confere, lastro axiológico e unidade
valorativa a esse campo do direito, com ênfase na universali-
dade, na indivisibilidade e na interdependência dos direitos
humanos. Como afirma Norberto Bobbio29, os direitos humanos
nascem como direitos naturais universais e desenvolvem-se
como direitos positivos particulares (quando cada constituição
incorpora declarações de direito), para finalmente encontrarem
sua plena realização como direitos positivos universais. Para
este autor,
[...] o caminho contínuo, ainda que várias vezes interrom-
pido, da concepção individualista da sociedade procede
lentamente, indo do reconhecimento dos direitos do ci-
dadão de cada Estado até o reconhecimento dos direitos

28
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos: desafios da ordem internacional
contemporânea. Curitiba, Juruá, 2006, p. 19.
29
Idem, p. 30.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
553
Direitos humanos e a sociedade internacional

do cidadão do mundo, cujo primeiro anúncio foi a Decla-


ração Universal dos Direitos Humanos30.

Com relação à Declaração Universal, resta ainda abor-


darmos a questão de seu valor jurídico e sua força normativa.
Na tradição do direito internacional, as declarações não possu-
em força jurídica compulsória (ao contrário das convenções e
pactos) e são vistas apenas como normas de caráter moral. A
Declaração de 1948 não é um tratado, foi adotada sob a forma
de resolução que, por sua vez, não apresenta força de lei. No
entanto, apesar de possuir a natureza jurídica de uma lei pro-
clamatória de normas, obteve uma repercussão internacional
fenomenal, sendo a principal referência normativa no discurso
dos direitos humanos.
O argumento de alguns intérpretes é que a Declaração te-
ria efeitos legais de um tratado internacional, pois é conside-
rada uma interpretação autorizada dos artigos da Carta das
Nações Unidas (esta de cunho obrigatório) referentes aos direi-
tos humanos31. Todavia, para a maioria dos estudiosos, confor-
me Lindgren Alves32 a força da Declaração advém da sua con-
versão gradativa em norma consuetudinária. O que é de co-
mum acordo, no entanto, é o reconhecimento da supremacia da
Declaração, como dotada de jus congens, perante outros do-
cumentos da matéria, elaborados com base nos princípios
emanados por esta33.

POSITIVAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO: A FORÇA JURÍDICA DO DIDH


O processo de globalização dos direitos humanos traz,
além da necessidade de positivação e declaração, a necessi-
dade de implementação desses direitos, mediante a criação de
uma sistemática internacional de monitoramento e controle.
Dessa forma, logo após a publicação da Declaração, iniciou-se

30
Ibidem, p. 5.
31
LINDGREN ALVES, Idem.
32
Ibidem.
33
PIOVESAN, F. op. cit., 1997.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
554
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

um processo de juridicização dos dispositivos constantes na


Declaração, processo este que se concluiu em 1966, com a ela-
boração de dois tratados internacionais distintos, o Pacto In-
ternacional dos Direitos Civis e Políticos, e o Pacto Internacio-
nal dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que passa-
vam a incorporar os direitos constantes na Declaração, confe-
rindo-lhes efetividade e normatividade jurídica.
Formou-se assim a Carta internacional dos Direitos, nome
dado ao conjunto dos três principais documentos que dão sus-
tentação ao mecanismo de proteção internacional dos direitos
humanos, quais sejam, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e por mais outros dois documentos: o Pacto Interna-
cional sobre os Direitos Políticos e Civis e o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos dotados e
abertos à assinatura e ratificação em 1966, entrando em vigor
somente em 1976. Enquanto a Declaração possui uma natureza
bem mais orientadora e referencial ao comportamento dos Es-
tados no âmbito dos direitos humanos, os dois Pactos vem
preencher sua lacuna compulsória, tendo os mesmos efeitos
legislativos internacionais e nacionais que exigem os tratados
e convenções, como a assinatura e a ratificação por parte dos
Estados34.
É importante ressaltar que a presença de dois Pactos,
frente à até então propalada indivisibilidade dos direitos hu-
manos deve-se ao contexto geopolítico da época, marcado pela
bipolaridade nas relações internacionais. A intenção inicial da
ONU era incluir em um único Pacto os direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais; entretanto, a existência de
conflitos ideológicos próprios da época da Guerra Fria estabe-
leceu as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos.
Como bem sistematiza Flávia Piovesan35, os países oci-
dentais utilizavam, em defesa da elaboração de dois pactos, o
argumento de que enquanto os direitos civis e políticos eram
autoaplicáveis e passíveis de cobrança imediata, os direitos

34
LINDGREN ALVES, Idem.
35
Op. Cit. 1997.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
555
Direitos humanos e a sociedade internacional

sociais, econômicos e culturais eram programáticos, e deman-


davam realização progressiva. A exigência de diferentes pro-
cedimentos de implementação viria assim a justificar a formu-
lação de dois Pactos diferentes.
Os países socialistas, por sua vez, como segue lembrando
a autora, responderam alegando que não era em todos os paí-
ses que os direitos civis e políticos faziam-se autoaplicáveis, e
os direitos sociais, econômicos e culturais não autoaplicáveis.
Segundo sua alegação, a utilização de dois instrumentos dis-
tintos poderia significar uma diminuição da importância dos
direitos sociais, econômicos e culturais. Ao final, como a histó-
ria nos mostra, a posição ocidental prevaleceu, ficando decidi-
do pela elaboração de dois pactos distintos, cada qual perti-
nente a uma categoria específica de direitos36.
Atualmente esta dicotomia está superada, ao menos no
plano teórico e considera-se que os direitos das duas gerações
possuem uma relação de complementaridade e, por isso, se
afirma a indivisibilidade e interdependência dos direitos hu-
manos. Flávia Piovesan avança identificando que,
[...] ante a indivisibilidade dos direitos humanos, há de
ser definitivamente afastada a equivocada noção de que
uma classe de direitos (a dos direitos civis e políticos)
merece inteiro reconhecimento e respeito e outra (a dos
direitos sociais, econômicos e culturais), ao contrário,
não. Sob a ótica normativa internacional, está definitiva-
mente superada a concepção de que os direitos sociais,
econômicos e culturais não são direitos legais. A ideia da
não acionabilidade dos direitos sociais é meramente ide-
ológica, e não científica. São eles autênticos e verdadei-
ros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis, e de-
mandam séria e responsável observância. Por isso, de-
vem ser reivindicados como direitos, e não como carida-
de, generosidade ou compaixão37.

36
Esta disputa refletiu a ascensão das ideias neoliberais que aconteceu a
partir da década de 1970, que pregavam o Estado mínimo e sua não in-
terferência na vida da sociedade.
37
Op. Cit. 2004, p. 26.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
556
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

No entanto, cabe destacar, até mesmo pela temática a ser


desenvolvida neste trabalho, que a comunidade internacional
continua a tolerar frequentes violações aos direitos sociais e
econômicos, que causariam imediata reação internacional se
fossem verificadas contra direitos civis e políticos. Apesar da
retórica, continuamos a vivenciar as mais sérias e intoleráveis
negações à um mínimo de dignidade e condições de vida, com
resultado da parcial ou completa ausência de presença gover-
namental e de políticas públicas capazes de responder à gra-
ves problemas sociais38.
Apesar das dificuldades quanto à implementação, há que
se destacar que com a adoção do Pacto Internacional de Direi-
tos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1966, dois elementos
importantes sobre o desenvolvimento passaram a abranger o
âmbito dos direitos humanos: a) o direito à autodeterminação
dos povos, traduzido na concessão aos povos da liberdade de
determinação de seu estatuto político e da liberdade para a
promoção de seu desenvolvimento econômico, social e cultural;
e b) o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado a si
próprio e à sua família, incluindo-se alimentação, vestuário e
moradia, assim como a melhoria contínua de suas condições
de vida. O Pacto atribui o dever aos Estados-parte de tomarem
medidas apropriadas para assegurar a consecução desses di-
reitos.
Seguindo a trajetória expansiva e o processo de interna-
cionalização dos direitos humanos, quase quarenta anos após
a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948 foi realizada em Viena, no ano de 1993, a II Conferên-
cia Mundial sobre Direitos Humanos, sob o sistema da Organi-
zação das Nações Unidas, na qual mais de 180 dos Estados-
membros presentes reafirmaram os termos universais da De-
claração dos Direitos do Homem. A Conferência de Viena veio
consagrar e reafirmar o compromisso universal firmado em
1948.
38
BEDIN, Gilmar Antonio. Direitos Humanos e desenvolvimento: algu-
mas reflexões sobre a constituição do direito ao desenvolvimento. Revis-
ta Desenvolvimento em Questão, Ijuí, n.1, jan/março de 2002.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
557
Direitos humanos e a sociedade internacional

Passou-se a reconhecer que o tema de direitos humanos


diz respeito a todos os seres humanos e permeia todas as esfe-
ras da atividade humana. A Conferência de Viena pôde contar
com a experiência acumulada nos últimos anos na operação
dos órgãos de supervisão internacionais, a qual teve como fi-
nalidade avaliar esta experiência, examinar os problemas de
coordenação dos múltiplos instrumentos de proteção e os mei-
os de aprimorá-los e dotá-los de maior eficácia. Neste sentido,
Flávia Piovesan lembra um aspecto importante e que merece
ser destacado:
[...] a Declaração Universal, de 1948, foi adotada por voto,
com abstenções, num foro então composto por apenas 56
países, e se levarmos em conta que a Declaração de Vie-
na é consensual, envolvendo 171 Estados, a maioria dos
quais eram colônias no final dos anos 40, entenderemos
que foi em Viena, em 1993, que se logrou conferir caráter
efetivamente universal àquele primeiro grande documen-
to internacional definidor dos direitos humanos39.

Logo, como bem define a autora, a Declaração de Viena,


subscrita por 171 Estados, endossa a universalidade e a indivi-
sibilidade dos direitos humanos, revigorando o lastro de legi-
timidade da chamada concepção contemporânea de direitos
humanos introduzida pela Declaração de 1948. Assim, estende,
renova e amplia o consenso sobre a universalidade e a indivi-
sibilidade dos direitos humanos, e afirma, o que consideramos
ser de extrema relevância, a importância e a interdependência
entre os valores dos direitos humanos, da democracia e do de-
senvolvimento.

CONCLUSÃO
Direitos humanos tiveram um processo expansivo e vito-
rioso na moderna história humana. Apesar de sempre marcado
por violações, tem se constituído em um importante referencial

39
PIOVESAN, Op. Cit. 2006, p. 106.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
558
Joice Graciele Nielsson & Gilmar Antonio Bedin

de proteção da pessoa humana. Durante o século passado, foi


a conjuntura de horror da destruição provocada pelas Guerras
Mundiais que fez despertar a necessidade de proteção dos di-
reitos humanos para além da esfera do estado nação. Desen-
volveu-se assim o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Pode-se concluir então, que o desenvolvimento do siste-
ma internacional de direitos humanos ocorreu na esteira das
mudanças ideológicas, políticas e sociais ocorridas no mundo,
e da reconfiguração geopolítica que este veio sofrendo ao lon-
go do século passado. Tais mudanças não são neutras, refle-
tindo as posições e disputas ideológicas que marcaram o
mundo no século passado. Os direitos humanos, por adquiri-
rem cada vez mais relevância, tanto teórica, moral, ética e prá-
tica nas relações internacionais, também são alvo de tais dis-
putas.
Desta forma, o presente trabalho pretende enfatizar que a
consolidação do DIDH é fundamental para que se possa garan-
tir a proteção da pessoa humana em um cenário mundial cada
vez mais globalizado, complexo e multiplural, ressaltando
sempre sua condição de universalidade. Neste sentido, im-
prescindível também referenciar e os direitos humanos como
um horizonte de sentido moral e ético para todas as práticas
humanas, e um referencial ético-político para todas as socie-
dades.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. de Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BEDIN, Gilmar Antonio. Direitos Humanos e desenvolvimento: al-
gumas reflexões sobre a constituição do direito ao desenvolvimento.
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Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Prefácio: O Acesso Direto
dos Indivíduos à Justiça Internacional. In: Manual de direitos hu-
manos internacionais: acesso aos sistemas global e regional de
proteção dos direitos humanos. São Paulo: Loyola, 2002.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos


humanos. 4. ed., rev., e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Pau-
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MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Gênese e princípiologia dos trata-
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declaração universal de 1948. Disponível em: <http://www.mt.trf1.
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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional
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PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Democracia e Integração Re-
gional: os desafios da globalização. Revista da Procuradoria Geral
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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos: desafios da ordem internacio-
nal contemporânea. In: _____. (Coord.). Direitos humanos. Curitiba,
Juruá, 2006.
PIOVESAN, Flávia. Proteção dos direitos sociais: desafios do ius
commune sul-americano1. In: Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 3(2): 206-226 julho-
dezembro 2011. Disponível em: http://www.rechtd.unisinos.br
/pdf/122.pdf. Acesso em 21 fev 2012.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
DIREITOS HUMANOS :
A CONSTRUÇÃO DE VALORES UNIVERSAIS
DIREITOS E GARANTIAS DAS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA

Joyce Monique de Aguiar


Acadêmica de direito do 6º semestre na FISJT – Faculdades Integradas São
Judas Tadeu - Porto Alegre - RS. (joycemonique@gmail.com).

Resumo
O objetivo deste estudo é a explanação sobre as dificuldades e os obstáculos encon-
trados pelas pessoas com deficiência em fazer valer seus direitos e garantias de for-
ma a ajudar na sua divulgação e orientação amparadas por lei. Assim como o concei-
to de direitos humanos, direitos fundamentais, garantias, e pessoas com deficiência;
O estudo aborda também a importância de se respeitar os direitos e garantias das
pessoas com deficiência elucidando os principais problemas sofridos pela inobser-
vância destes direitos como violação e discriminação, invisibilidade social e estigma,
e por fim; também se propõe demonstrar a relevância de se respeitar os direitos dos
deficientes como componentes do direito à vida e à subsistência da pessoa humana
em condições de dignidade.
Palavras-chave: Direitos e Garantias. Direitos fundamentais. Direitos Humanos.
Inclusão Social. Pessoas com deficiência.

Resume:
The objective of this study is the explanation of the difficulties and obstacles en-
countered by persons with disabilities in asserting their rights and guarantees in
order to assist in its dissemination and guidance backed by law. Just as the concept
of human rights, fundamental rights, guarantees, and people with disabilities; The
study also addresses the importance of respecting the rights and interests of persons
with disabilities elucidating the main problems suffered by the breach as a violation
of these rights and discrimination, invisibility and social stigma, and finally, it is also
proposed to demonstrate the importance of respecting the rights of the disabled as
a component of the right to life and livelihood of human beings in dignity.
Keywords: Fundamental rights. Human Rights. People with disabilities. Rights and
Guarantees. Social Inclusion.

INTRODUÇÃO
A Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida em 3 de
dezembro de 1982, mediante a Resolução n. 37/52, aprovou o
562
Joyce Monique de Aguiar

programa de Ação Mundial para as pessoas com deficiência


(PAM – World Programme of Actin Concerning Disabled Per-
sons). O programa de Ação Mundial das Nações Unidas reflete
uma tendência da segunda metade do século XX que se con-
centram na luta pelos Direitos Humanos. Vale dizer, a produ-
ção de conjuntos normativos para garantir, ainda que formal-
mente, os direitos elementares da pessoa com deficiência é um
fenômeno recente, que, como visto só inicia de forma cabal
após a Segunda Guerra Mundial, muito embora a luta pela
conquista desses direitos reporte-se ao século XVIII, pelas
obras de Thomas More, Montesquieu e Karl Marx.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, anunciada
em 1948 e a Constituição Federal de 1988 asseguram os direi-
tos da pessoa humana. A grande dificuldade encontrada é que
nem sempre estes direitos estão claros e ao alcance de todos.
Em virtude da desinformação, criam-se brechas para a violação
dessas posições jurídicas. Os direitos não têm a intenção de
igualá-los, mas sim requerer e incentivar a aceitação da dife-
rença, adequando as pessoas com deficiência aos demais,
oportunizando a vida em sociedade e vencendo obstáculos.
A sociedade como um todo deve estar ciente que as dife-
renças não nos afastam e, sim, nos aproximam. Dentro deste
contexto, a necessidade de incluir, no meio social as pessoas
com deficiências surge de um clamor de humanidade e da von-
tade que todos possam gozar de sua vida da melhor maneira
possível, tendo condições de ultrapassar seus limites e barrei-
ras ao longo do caminho. O exercício da cidadania é uma forma
de vencer a barreira do preconceito e a exclusão, evitando bre-
chas para a violação destes direitos específicos.
No primeiro momento o artigo discorrerá sobre os direitos
humanos e direitos fundamentais reconhecendo quais são eles
nos aspectos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais,
etc., sua evolução na história trazendo à tona a trajetória e a
luta para garantir esses direitos, combatendo o abuso de poder
sobre os mais fracos, reconhecidos em um Estado Democrático
de Direito. No decorrer do estudo serão relatados quais são
esses direitos e garantias, onde os encontrar; uma análise na-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
563
Direitos humanos

cional e internacional desses direitos, órgãos e entidades de


apoio a estas pessoas. Estes tratados internacionais sobre os
direitos humanos encontram apoio pela maioria absoluta dos
países, que conseguem detectar o sofrimento com a discrimi-
nação, invisibilidade social, o estigma, a hipervulnerabilidade
e a violação desrespeitosa com as diferenças.

DIREITOS HUMANOS
Para tratar de direitos humanos é imprescindível verificar
a origem e significado da palavra Humano (Do latim humanus)
homem ou mulher; uma pessoa. Já direito, termo multimilená-
rio refere-se àquilo que é permitido; liberdades que são garan-
tidas. Direitos humanos são direitos que as pessoas têm pelo
simples fato de ser humano1.
Direitos humanos é um conjunto de leis que devem ser
reconhecidas por todas as pessoas para que estes possam ter
uma vida digna sem preconceito ou discriminação, estabele-
cendo a liberdade e igualdade de todos perante a lei. Todos
nascem livres e iguais em dignidade e direito, essa deveria ser
a realidade, mas infelizmente esses direitos não eram reconhe-
cidos, por isso tiveram que se fazer valer em forma de lei, qua-
se que uma obrigação para frear o abuso de poder.
No Brasil o direito natural2 começa a perder força a partir
dos pareceres de Rui Barbosa sobre o ensino em geral, em que
realça a importância da ciência e do método experimental e

1
Conceito de direitos humanos. http://www.significados.com.br/direitos-
humanos/ Acesso em 01/03/2012.
2
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito.
São Paulo: Ícone, 2006. P.22-23. O direito natural tem como pontos prin-
cipais em sua doutrina a ideia de que existe um direito comum a todos
os homens e que o mesmo é universal. Este direito é anterior ao direito
positivo, que é aquele fixado pelo Estado, e todos os homens o recebem
de forma racional. Suas principais características, segundo Norberto
Bobbio, são a universalidade, a imutabilidade e o seu conhecimento
através da própria razão do homem. Segundo, ainda o mesmo autor, os
comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
564
Joyce Monique de Aguiar

propõe a substituição da cadeira de Direito natural, com subs-


tituição da cátedra de Direito natural pela Filosofia do Direito3.
Para Dallari4 direitos humanos “é uma forma abreviada de
mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana”, ainda
ressaltam que esses direitos “são considerados fundamentais
porque sem eles a pessoa humana não consegue existir”. Ele
acredita que esses direitos devem ser assegurados desde o
nascimento proporcionando a ele os benefícios que a vida em
sociedade traz.
Como diz Joaquim Herrera Flores5 “os direitos humanos
compõem a nossa racionalidade de resistência, na medida em
que traduzem processos que abrem e consolidam espaços na
luta pela dignidade humana”.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA
No início dos tempos não havia direitos humanos, existia
apenas o poder, e o direito era de quem o detinha, por outro
lado as pessoas apenas obedeciam a ordens. Em uma época de
escravidões um homem mudou a história no Oriente médio,
Ciro O Grande, foi rei da Pérsia em 559 e 530 a.C. suas ações
deixaram uma influencia politica e uma herança cultural muito
forte para os séculos seguintes. Um dos documentos mais an-
tigos que vinculou os direitos humanos é o Cilindro de Ciro,
que contêm uma declaração do rei da Persa depois de sua
conquista da Babilônia em 539 a.C.. Foi descoberto em 1879 e
a ONU o traduziu em 1971 a todos seus idiomas oficiais6.

3
POZZOLI, Lafayette. Reflexos das legislações internacionais nas políti-
cas públicas de inclusão no Brasil. Revista @mbienteeducação, São
Paulo, v. 1, n. 2, ago./dez. 2008, p. 09-20.
4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo:
Moderna, 1998, p.7.
5
FLORES. Joaquin Herrera, Direitos Humanos, Inter culturalidade e
Racionalidade de Resistência, mimeo, p.7.
6
Cilindro de Ciro. Um trecho dos escritos no cilindro de Ciro, “… As mi-
nhas numerosas tropas passaram por Babilonia em paz; não permitirei
que ninguém espalhe o terror no país da Suméria e Acad. Esforcei-me
pela paz em Babilonia e em todas as suas cidades sagradas. Quanto os
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
565
Direitos humanos

Em 1215 o rei João Sem-Terra foi obrigado a assinar


a Magna Carta pelos nobres britânicos, ela limitava o poder do
rei sobre o seu povo. A Petition of Rights (1628) requeria o re-
conhecimento de direitos e liberdades para os súditos do Rei.
A Declaração de Virgínia, feita em junho de 1776, proclamou o
direito à vida, à liberdade e à propriedade, além de outros co-
mo o princípio da legalidade, liberdade de imprensa e liberda-
de religiosa. Depois de muitos anos de guerras e declarações,
a independência dos Estados Unidos em julho de 1776 teve
ênfase predominante na limitação do poder estatal valorizando
a liberdade individual, esse documento foi de grande impor-
tância na história influenciando a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão na França em 1789, servindo de inspira-
ção e exemplos para outras colônias americanas. A constitui-
ção dos Estados Unidos embora promulgada em 1787 somente
em 1791 recepcionasse artigos que explicitavam direitos indi-
viduais.
Os direitos humanos surgiram com o clamor do povo so-
frido pelo autoritarismo do governo no pós-guerra, eles luta-
vam contra a opressão, pela liberdade, igualdade, dignidade e
principalmente a vida. Alguns autores dividem esses grupos
em três gerações: A primeira geração lutou pela liberdade, de-
fendendo seus direitos civis e políticos, a segunda geração lu-
tou pelos direitos sociais e econômicos, a terceira geração era
inspirada num ideal de fraternidade ou solidariedade revendo
os valores defendidos pelas gerações anteriores.
Rousseau7 foi um dos filósofos que teve uma imensa in-
fluência nos movimentos sociais, políticos e econômicos sete-
centistas que culminaram na Revolução Francesa. A obra Do

habitantes de Babilonia que, contra vontade dos deuses tinham... eu


aboli o jugo que era contrário à sua condição. Trouxe melhoria às suas
degradadas condições de habitação, acabando com as suas razões de
queixa…”.
7
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) filósofo de primeira grandeza para o
pensamento político ocidental. Acreditava que a liberdade, a segurança
e o bem estar da vida seriam assegurados através do contrato social.

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566
Joyce Monique de Aguiar

Contrato Social8, que estabelece a razão da sociedade em um


pacto social, foi de vital influência para a Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1789. Nela, se encontrava a ideia de
liberdade e igualdade como direitos naturais que o homem go-
zava no estado de natureza. Sua obra influenciou e ainda influ-
encia nos rumos da democracia e dos direitos humanos, o con-
trato social foi um texto incentivador na defesa da liberdade e
da igualdade para todos os cidadãos (Soberania dos povos).
A revolução Francesa foi um evento político extraordiná-
rio que pôs fim a uma época e deu inicio a outra, dois momen-
tos marcaram este evento; 4 de agosto de 1789 houve o fim do
regime feudal onde os nobres renunciaram seu privilégio; e 26
de agosto ocorre a Declaração dos Direitos do Homem cele-
brando o inicio de uma nova fase.
Norberto Bobbio9 afirma que:
Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam,
são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas cir-
cunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por to-
das.

DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais são normas constitucionais po-
sitivadas que foram instituídas com o objetivo de proteger a

8
“Se eu considerasse tão-somente a força e o efeito que dela deriva, diria:
Enquanto um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem; tão
logo ele possa sacudir o jugo e o sacode, faz ainda melhor; porque, reco-
brando a liberdade graças ao mesmo direito com o qual lhe arrebataram,
ou este lhe serve de base para retomá-la ou não se prestava em absoluto
para subtraí-la. Mas a ordem social é um direito sagrado que serve de
alicerce a todos os outros. Esse direito, todavia, não vem da Natureza;
está, pois, fundamentado sobre convenções. Mas antes de chegar aí,
devo estabelecer o que venho de avançar. ROUSSEAU, Jean Jacques. Do
Contrato Social. Livro I,parte I. E-book. 2001.
9
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 1 ed. 12. tir. Rio de Janeiro: Cam-
pus, 1992, p. 5.
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567
Direitos humanos

dignidade, a liberdade e a igualdade humana em todas as di-


mensões.
O direito positivado viabiliza a exigência do direito adqui-
rido, amparando os direitos coletivos e os individuais e prote-
gendo sua eficácia. Os direitos declarados universais são co-
nhecidos mundialmente, entre eles está o direito: à vida, à li-
berdade, à igualdade jurídica, ao trabalho, entre muitos outros.
Com a globalização política, percebe-se a necessidade de im-
plementações de novos movimentos para a adequação e prote-
ção deste grupo de pessoas que parte do princípio norteador
de todo ordenamento jurídico: a dignidade humana.
De acordo com a precisa lição de Ingo Wolfgang Sarlet10:
Os direitos fundamentais, como resultado da personali-
zação e positivação constitucional de determinados valo-
res básicos (daí seu conteúdo axiológico), integram, ao
lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim
denominada parte orgânica ou organizatória da Consti-
tuição).

Os direitos fundamentais têm por finalidade a proteção e


a dignidade humana em todas as dimensões conforme o posi-
cionamento de Araújo e Nunes Júnior11: “Os direitos fundamen-
tais podem ser conceituados como a categoria jurídica instituí-
da com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas
as dimensões”. Esses direitos estão ligados à evolução filosófi-
ca dos direitos humanos e direitos de liberdades, ligados à na-
tureza humana diminuindo o poder Estatal formado pelo cons-
titucionalismo. Os direitos humanos são de âmbito internacio-
nal e é possível exigi-los em qualquer parte do mundo, já os
direitos fundamentais podem ser exigidos no plano interno,
tem validade jurídica dentro do país de origem.

10
SARLET. Ingo Wolfgang. “Os Direitos Fundamentais Sociais na Consti-
tuição de 88”. In: Ingo Wolfgang Sarlet: O Direito Público em Tempos
de Crise: Estudos em Homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999, p. 129-173.
11
ARAUJO, Luis Alberto David. NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de
Direito Constitucional. 9. Ed. São Paulo Saraiva, p. 109-110.

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568
Joyce Monique de Aguiar

Os princípios do Direito natural são hoje, denominados


princípios constitucionais porque geralmente aparecem na
constituição; além disso, em uma estrutura hierárquica de
normas jurídicas, os princípios são considerados normas de
grau mais elevado nas quais todas as demais encontram o seu
fundamento de validade. São denominadas clausulas pétrea
porque não podem ser suprimidos do ordenamento jurídico em
nenhuma hipótese12.
Sua perspectiva histórica segue algumas dimensões, na
primeira dimensão está o Estado liberal, Liberdade, Individua-
lismo, alguns o chamam de direitos individuais negativos, são
chamados assim porque são considerados direitos de resistên-
cia ou oposição ao Estado exigindo deste uma conduta de abs-
tenção. Na segunda dimensão estão os direitos prestacionais
(sociais), é uma dimensão positiva, pois não evita a interven-
ção do Estado na esfera da liberdade individual e sim propicia
o direito ao bem estar social, igualdade material durante o pe-
ríodo da revolução industrial e do Estado intervencionista. A
terceira dimensão traz os direitos difusos, coletivos e individu-
ais homogêneos como a fraternidade e solidariedade. A essên-
cia desses direitos se encontra em sentimentos como a solida-
riedade e a fraternidade, constituindo mais uma conquista da
humanidade no sentido de ampliar os horizontes de proteção e
emancipação dos cidadãos.
Outro modo de proteção são as garantias que são os mei-
os, as formas que certificam a eficácia aos direitos fundamen-
tais; são direitos de ordem processual, permissões para in-
gressar em juízo para obter uma medida judicial com uma for-
ça específica ou com uma celeridade. A Constituição Federati-
va do Brasil de 1988 em seu Capitulo II - Dos Direitos e Garan-
tias Fundamentais13 que assegura o reconhecimento e a garan-

12
ASSIS, Olney Queiroz. Pessoa Portadora de deficiência. Direitos e Ga-
rantias. São Paulo. 2005.
13
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natu-
reza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: BRASIL. Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
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569
Direitos humanos

tia dos direitos fundamentais por parte do Estado e seus pode-


res e que assim sejam respeitados por todos, incluindo as pes-
soas jurídicas (público e privado) e os particulares. Protegendo-
os também em caso de violação desses direitos. A constituição
garante meios chamados de remédios constitucionais para cau-
sa de violação do direito, recuperando o direito violado. São
eles: habeas corpus, habeas data e mandato de segurança.

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


A terminologia sobre a pessoa com deficiência não era
clara, pois havia vários nomes que se referiam a essas pessoas,
por isso a dificuldade em se obter um conceito e termo correto
para identificá-las, na Resolução da ONU 2.542/75 que trata da
Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência
nos diz o seguinte:
[...] 1) O termo pessoa portadora de deficiência identifica
aquele indivíduo que, devido a seus “déficits” físicos ou
mentais, não está em pleno gozo da capacidade de satis-
fazer, por si mesmo, de forma total ou parcial, suas ne-
cessidades vitais e sociais, como faria um ser humano
normal.

No Brasil o Decreto Lei 3.298/1999, artigo 4º em sua defi-


nição de pessoa com deficiência acabou por não abranger to-
das as deficiências, tendo assim o seu parágrafo 4º alterado
pelo Decreto Lei 5.296/2004, passando a alcançar, de forma
mais correta às deficiências, contudo não o mais eficaz.
Mas para evitar o preconceito, a discriminação e o uso de
termos pejorativos a portaria da Presidência a República – Se-
cretaria de Direitos Humanos, nº 2.344 de 3 de novembro de
2010 adotou o termo “Pessoa com Deficiência” utilizando um
termo único usado mundialmente.

DIREITOS E GARANTIAS
Conforme Norberto Bobbio, os direitos humanos e as li-
berdades fundamentais são globalmente respeitados a partir

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
570
Joyce Monique de Aguiar

do momento em que seus fundamentos são reconhecidos uni-


versalmente. Por isso, a universalização dos direitos humanos
baseia-se na perspectiva contemplativa de que todos os ho-
mens estão prontos a pactuar, uma concepção acerca dos
princípios da justiça e da dignidade da pessoa humana, en-
tendimento esse firmado com a Declaração Universal de 1948,
quando a assembléia Geral das Nações Unidas, em discurso
vitorioso após a segunda Guerra Mundial, adotou a concepção
de que medidas de proteção e alargamento dos direitos civis,
políticos, sociais, econômicos e culturais se faziam necessárias
para a melhoria das condições de vida no mundo14.
No país da diversidade, muito se ouve falar em inclusão
social, inclusão esta que se preocupa em adaptar as diferenças
no meio social respeitando os direitos e limitações dos outros.
As pessoas com deficiência lutam para que esses direitos se-
jam respeitados. Suas limitações não excluem seus direitos,
pelo contrário acrescentam alguns direitos próprios amparados
em lei atendendo ao princípio da dignidade humana15, os quais
estão sendo desrespeitados pela dificuldade no seu reconhe-
cimento. As leis específicas se fazem necessárias para evitar o
preconceito, a desigualdade, o descaso e a discriminação.
As pessoas com deficiência possuem todos os direitos de
uma pessoa normal e alguns específicos em cada caso concre-
to. Direitos específicos como Direito a Benefícios, Direito aos
Benefícios do Instituto Nacional de Seguridade Social, inclusão
social, Acessibilidade, Transportes, Isenções de Impostos e
Taxas, Trabalho, Educação, Saúde, Cultura e Lazer, Prioridade
de Atendimento, Prioridade em Processos Judiciais, Cão-guia

14
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7. Impressão. Tradução de Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, p.21.
15
Art 1°, III da CF/88. O conceito de dignidade da pessoa humana não
surge na Grécia e sim posteriormente com o cristianismo, onde irá nas-
cer o conceito de pessoa que os gregos e os romanos desconheciam. A
filosofia do direito medieval movida precipuamente pelo cristianismo foi
muito influenciada por Paulo de Tarso (São Paulo) onde surge o conceito
de vontade. São Paulo admitiu a existência de um direito natural inscrito
no coração das pessoas (NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Ja-
neiro: Forense, 2000, p.121.)
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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571
Direitos humanos

e Direito à Comunicação da Pessoa com Deficiência Auditiva,


dentre outros.
Através do decreto 6215/0716 estabelece um compromisso
em promover a inclusão das pessoas com deficiência ao meio
social. A inclusão social os torna participantes ativos na socie-
dade assegurando o respeito aos seus direitos, podendo assim
dizer que essa orientação ajuda na luta contra a discriminação
e o preconceito sofrido pelas pessoas com deficiência em seu
dia a dia, lhe proporcionando dignidade, o seu principal direito.
Juntamente com a inclusão social temos também a lei17
de acessibilidade18 que propõe medidas de identificação e ex-
clusão de quaisquer obstáculos e barreiras que possam preju-
dicar ou impedir o acesso destas pessoas em determinados
lugares.

ANÁLISE DA LEGISAÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL


São inúmeras as legislações especificas que tratam sobre
direitos das pessoas com deficiência no Brasil, essas leis po-
dem ser encontradas na esfera Internacional, Nacional, Esta-
dual e Municipal. No Âmbito internacional temos o pacto de
San José da Costa Rica de uma forma implícita, o decreto de
Salamanca que retratam alguns direitos da pessoa com defici-
ência, e um documento muito importante que é a Convenção
Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 1975, adota-

16
Decreto nº 6.215, de 26 de setembro de 2007. “Estabelece o Compromis-
so pela Inclusão das Pessoas com Deficiência com vista à implementa-
ção de ações de inclusão das pessoas com deficiência por parte da Uni-
ão Federal, em regime de cooperação com municípios, Estados e Distrito
federal, institui o comitê Gestor de Políticas de Inclusão das Pessoas
com Deficiência – CGPD, e dá outras providencias.”
17
Lei nº 10.098/00 que estabelece normas e critérios básicos de acessibili-
dade.
18
Disponível em http://www.brasil.gov.br/menu-de-apoio/sobre-o-
site/acessibilidade-1 - Acessibilidade significa permitir que pessoas
com deficiências ou mobilidade reduzida participassem de atividades
que incluem o uso de produtos, serviços e informação, além de permitir
o uso destes por todas as parcelas da população. Acesso em 20/01/2013.

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572
Joyce Monique de Aguiar

da pela ONU (Organização das Nações Unidas) e também seu


protocolo Facultativo em 2006 e foi assinado em 2008 pelo Bra-
sil. O documento foi equiparado à emenda constitucional, as-
sim defendendo e garantindo condições de vida digna a todas
as pessoas que apresentam alguma deficiência. É o primeiro
tratado internacional de direitos humanos que vai de acordo
com o artigo 5º, § 3º, da Constituição da República19.
Além da convenção Sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência existem outros, como tratados, convenções e decla-
rações que tratam sobre o assunto das pessoas com deficiên-
cia e resguardam seus direitos. Podemos citar também O Pro-
grama de Ação Mundial (PAM) para as pessoas com Deficiên-
cia que foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em seu trigésimo sétimo período de sessões, pela Resolução
37/52, de 3 de dezembro de 1982. O PAM em sua edição brasi-
leira trouxe aos profissionais da área, autoridades e pessoas
com deficiência um documento de grande importância na luta
pelos direitos.
No Brasil criou-se o Ministério das Cidades em janeiro de
2003, através da SeMob (Secretaria Nacional de Transporte e
da Mobilidade Urbana) tem como uma de suas funções estabe-
lecer diretrizes da política nacional de transporte publico e da
mobilidade Urbana. Em junho de 2004 foi desenvolvido o Pro-
grama Brasileiro de Acessibilidade Urbana – Brasil Acessível20
que tem como objetivo estimular e apoiar os governos munici-
pais e estaduais no desenvolvimento de ações que possibili-
19
Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, § 3º “Os tratados
e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprova-
dos, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais”.
20
Brasil Acessível caderno 1 O Programa Brasileiro de Acessibilidade Ur-
bana - Brasil Acessível - lançado no dia 2 de junho de 2004, tem o objeti-
vo de incluir uma nova visão no processo de construção das cidades que
considere o acesso universal ao espaço público por todas as pessoas e
suas diferentes necessidades. “Um dos desafios colocados para todos os
municípios brasileiros é a inclusão de parcelas especiais da população
no cotidiano das cidades”. Ministério das cidades, Coordenador Augus-
to Valiengo Valeri, ano 2004, p.3, Brasília.
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573
Direitos humanos

tem a acessibilidade para as pessoas com restrições de mobi-


lidade e deficiência aos sistemas de transportes, equipamen-
tos urbanos e a circulação em áreas públicas. Há ainda Conse-
lhos específicos estaduais e municipais que zelam pelos direi-
tos dos deficientes assim como Ministério da Educação
(MEC)21, Conselho Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência
(CONADE), Coordenadoria Nacional para o Integração da Pes-
soa com Deficiência (CORDE)22, Sistema de Informações sobre
deficiência da CORDE (SICORDE)23.

PROBLEMÁTICA
Para que as pessoas com deficiência possam se utilizar
de uma convivência igualitária e digna é preciso que a socie-
dade compreenda as desigualdades de forma a respeitar os
direitos como nas palavras de ARISTÓTELES: “A igualdade
consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais”. Princípios como a igualdade e dignidade que estão
explícitos na Constituição Federal de 1988 são norteadores das
políticas públicas. Como consta na CF em seu art. 5º “Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda-
de…”. Apesar de estarem positivados estes direitos são cons-
tantemente violados.

21
O MEC é responsável pela implementação de programas sobre educa-
ção, destaca-se o programa de educação inclusiva voltado a formação de
educadores e gestores para um sistema educacional inclusivo. por-
tal.mec.gov.br/index.php...mec...deficiencia. Acessado em 27/02/2013.
22
É um órgão Vinculado à Secretaria da Justiça e da Cidadania, responsá-
vel pela gestão de políticas voltadas para a inclusão da Pessoa com De-
ficiência, em Todas as esferas que compõe a sociedade. Tem como obje-
tivo apoiar e promover o desenvolvimento de programas que levem em
conta a participação social e política da Pessoa com Deficiência, através
de suas organizações representativas e de iniciativas comunitárias.
23
O SICORDE assume, após o Decreto nº 3.298/99, Capítulo X, Art. 55, o
papel catalisador e disseminador de informações sobre políticas e ações
na área da deficiência.

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574
Joyce Monique de Aguiar

Por desinformação das autoridades públicas criam-se


brechas para que o direito seja violado e haja uma discrimina-
ção em relação a esse grupo de pessoas. Exercer a cidadania é
respeitar os direitos do próximo. As pessoas com deficiência e
suas famílias estão em constante batalha pelo reconhecimento
de seus direitos como cidadãos24.
Maria de Lourdes Canziani25define cidadania como:
A cidadania é uma conquista construída pela educação,
pela participação, pela emancipação. É o exercício dos
direitos individuais e coletivos; acesso igualitário aos
bens e serviços públicos. É a operacionalização da inclu-
são. E a maior pressão social pela inclusão surge de pro-
posta de caráter sócio-politico (eliminação de toda práti-
ca discriminatória) e da ética (movimento em favor dos
direitos civis).

Um dos maiores obstáculos enfrentado pelas pessoas


com deficiência é o preconceito seguido da acessibilidade em
todos os setores. A invisibilidade também é um grande pro-
blema, há uma desinformação por parte dos gestores munici-
pais que os tornam invisíveis. Uma pesquisa feita pela profes-
sora Idília Fernandes responsável pela pesquisa na Faculdade
de Serviço Social (FSS) juntamente com a FADERS26 relata que
apenas 9% das prefeituras no estado do RS possuem um ma-
peamento dessas pessoas, a pesquisa constata a existência de

24
Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiências – Direitos
humanos e os novos paradigmas das pessoas com deficiência.
CANZIANI. Maria de Lourdes, São Paulo: Editora dos tribunais, 2006.
25
Pedagoga pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. É especializada
em programa de atendimento a pessoas com deficiência em curso no
Brasil e no exterior. Como coordenadora da Coordenadoria Nacional para
a Integração da Pessoa com Deficiência – Corde (Ministério da Justiça)
contribuiu para o desenvolvimento das políticas brasileiras na área de
atenção às pessoas com deficiência. Em continuidade à experiência pro-
fissional iniciada em universidades e instituições especializadas do Bra-
sil, Estados Unidos, Europa e América do Sul, elaborou diretrizes, proje-
tos e programas de atendimento às pessoas com deficiência.
26
FADERS - Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Pú-
blicas para Pessoas com Deficiência com Altas Habilidades.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
575
Direitos humanos

aproximadamente um milhão e meio de pessoas com deficiên-


cia no Estado o que mostra que as pessoas com deficiência
vivem uma invisibilidade social.
Esta invisibilidade desencadeia uma crise de identidade
por parte do indivíduo que se sente estigmatizado, inabilitado
para a vida social. O estigma gerado pela diferença é um meio
de categorizar as pessoas. Goffman27 afirma que: “Os ambien-
tes sociais estabelecem as categorias de pessoas que tem pro-
babilidade de serem neles encontradas”. A sociedade pós-
moderna é caracterizada por muitas mudanças globalizadas de
rápida aceitação que influenciam e ditam padrões de identida-
des, os que não conseguem se identificar ou se adaptar com as
mudanças se sentem deslocados e como citados acima inabili-
tados para a sociedade. A identidade para Charles Taylor
(apud Alexandre Garrido) é designada como “algo como uma
compreensão de quem somos de nossas características defini-
tórias fundamentais como seres humanos28“. O modo como a
sociedade trata essa diferença reafirma o estigma já sentido
pelo deficiente que se vê frente à exclusão do meio comum.
Erving Goffman29 assim nos diz:
[...] Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e
total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída.
Tal característica é um estigma, especialmente quando o
seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes
ele também é considerado um defeito, uma fraqueza,
uma desvantagem - e constitui uma discrepância especí-

27
GOFFMAN, Erving. Estigma – Notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada Tradução: Mathias Lambert Data da Digitalização: 2004. Da-
ta da Publicação Original: 1891. P.5.
28
Estado e conflito social: entre a luta por igualdade ... - ANPUH-RJ. Dis-
ponível em: www.rj.anpuh.org/.../rj/.../Alexandre%20Garrido%20da%20
Silva.do... Formato do arquivo: Microsoft Word - Visualização rápida de
AG da Silva - Artigos relacionados. LACLAU, Ernesto. Os novos movi-
mentos sociais e a pluralidade do social. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 41-47, out. 1986. Acessado em
27/02/2013.
29
Íbis idem p.12.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
576
Joyce Monique de Aguiar

fica entre a identidade social virtual e a identidade social


real.

Hipervulnerabilidade, (hyper, vem de origem grega, que


significa agravamento, acima do normal; vulnerabilidade é es-
tar exposta a um perigo ou a sofrer danos, vulnerabilidade 30
deriva do latim vulnus, que significa ferida.) Este conceito en-
contra-se nas explicações de Claudia Lima Marques. Então
podemos dizer que a hipervulnerabilidade representa, portan-
to, uma situação concreta em que há excessiva debilidade de
determinada pessoa, acima do comum.
Pessoas com deficiência são mais vulneráveis a serem vi-
timas de violências, abusos e estupros com pouca chance de
obterem a ajuda da policia ou cuidados preventivos por se en-
contrarem em uma situação de vulnerabilidade, pois depen-
dem de outras pessoas na maioria dos casos. A situação eco-
nômica é um fator de agravamento para esse tipo de ocorrên-
cia e a falta de informação ou de conhecimento também cola-
bora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo, portanto, procurou demonstrar a relevância
de se respeitar os direitos das pessoas com deficiência como
componentes do direito à vida e à subsistência da pessoa hu-
mana em condições de dignidade, cumprindo-se o dever de
cidadania e de inclusão na tentativa de eliminar todas as for-
mas de discriminação contra este grupo de pessoas.
No decorrer do trabalho abordou-se sobre os direitos hu-
manos, conceito, história e evolução e sua fundamental impor-
tância para a subsistência das pessoas com dignidade. Abor-
daram-se ainda os direitos e garantias das pessoas com defici-
ência como uma forma de reconhecer estes direitos e adaptar a
sociedade ao diferente na aceitação das diferenças no meio

30
MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O Novo Direito Privado e
a Proteção dos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.
184.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
577
Direitos humanos

social, assegurando a identificação de órgãos de apoio para a


exclusão de qualquer violação e discriminação aos direitos a
eles garantidos na tentativa de eliminar os problemas causa-
dos com, a violação e discriminação, invisibilidade social e es-
tigma e hipervulnerabilidade relatados no trabalho como pro-
blemas sofridos pelas pessoas com deficiência.
Desta forma tenta-se demonstrar a importância de políti-
cas públicas, que realizem um trabalho de inclusão social das
pessoas com deficiências nas atividades do dia a dia, e na cri-
ação de cartilhas cujo seu conteúdo seja de fácil leitura e com-
preensão (menos termos técnicos) para que facilitem o reco-
nhecimento dos seus direitos, e assim possam reivindicar seus
direitos como cidadãos. A formulação de estratégias por parte
dos agentes públicos tem como dever do Estado conceder
ações que valorizem a diversidade humana e viabilize efetiva-
mente o envolvimento da sociedade nas políticas sociais em
favor as pessoas com deficiência.

REFERÊNCIAS
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as portadoras de deficiência. 3. Ed. Brasília: CORDE, 2001.
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de Direito Constitucional. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
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sobre pessoas portadoras de deficiência. 5. Ed. Brasília (DF): Câmara
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mentais. 10. Ed. São Paulo: Saraiva 2008.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
578
Joyce Monique de Aguiar

GOFFMAN, Erving. Estigma – Notas sobre a manipulação da identi-


dade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert Data da Digitalização:
2004. Data da Publicação Original: 1891.
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Brasileira de 1988. Revista da Academia Brasileira de Direito Cons-
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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A UNIÃO HOMOAFETIVA COMO
ENTIDADE FAMILIAR NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO

Júlia Francieli Neves de Oliveira


Mestranda em Direito pela Universidade Regional do Alto Uruguai e das
Missões - URI- Santo Ângelo, bolsista CAPES e pós-graduanda em Direito
civil e processo civil – LFG (Luis Flavio Gomes).
(julianeves15@hotmail.com).

Resumo
O presente artigo tem por objetivo apresentar o importante momento de transição
que a sociedade contemporânea esta passando, cheio de diversidades, onde pessoas
de culturas, etnias, orientações sexuais, valores diferentes, mas que convivem em
um mesmo espaço, mas para que essa convivência seja harmônica, é preciso que
haja reflexão sobre o nossas diferenças e semelhanças. Certamente as relações soci-
ais pautadas pelo respeito ao outro sem preconceitos geram um grande avanço no
mundo globalizado, o qual ainda se encontra em adaptação com relação a essa te-
mática. Com esse entendimento, observam-se no presente texto, exemplos de lití-
gios e soluções encontradas no poder judiciário, visando os direitos humanos para
que esta nova entidade familiar possam conquistar o reconhecimento da sociedade
e a proteção jurídica do estado, um direito que garanta a não discriminação dos
direitos sexuais.
Palavras-chave: Homossexualidade. Dignidade da pessoa humana. Direito a sexuali-
dade.

Abstract
This paper aims to present the important moment of transition that contemporary
society is passing, full of diversity, where people of different cultures, ethnicities,
sexual orientations, different values, but living in the same space, but that this coex-
istence is harmonic, there must be reflection about our differences and similarities.
Certainly social relations based on respect each other without prejudices generate a
breakthrough in the globalized world, which is still in adjustment with respect to this
issue. With this understanding, we can observe in this text, examples and solutions
of disputes in the judiciary, human rights aiming for this new family entity can gain
recognition and protection of the company's legal status, which guarantees a right to
non-discrimination sexual rights.
Keywords: Homosexuality. Human dignity. Right sexuality.
580
Júlia Francieli Neves de Oliveira

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Percebe-se que em todas as sociedades ao longo de toda
a história desde da humanidade a relação homoafetiva esteve
presente, variando, conforme o nível de aceitação social do
ponto de vista da cultura, pois os valores são construídos his-
tórica e socialmente, e que por isso se a homossexualidade
sempre existiu, por outro lado nem sempre foi tratada da
mesma forma.
Desde o início do século XXI vem ocorrendo progressos
em relação à defesa da integridade humana, a questão da tole-
rância com relação às minorias mulheres, negros, homossexuais,
entre outros grupos parece não estar resolvida, fato que se
comprova nas ocorrências relatas pelo noticiário, como as
agressões contra homossexuais em locais públicos.
Percebe-se, de forma ampla, as questões envolvendo o
tratamento da homossexualidade no ordenamento jurídico bra-
sileiro, porém o preconceito ainda é gritante em uma socieda-
de que esta repleta de contradições, não se poderia esperar
outra situação do que uma forte divisão entre opiniões “con-
tra” ou a “favor” da discussão suscitada pelo STF. Tal temática
associa-se à complexidades dos problemas e obstáculos ao
acesso à justiça ensejando um olhar amplo, sistêmico e com-
plexo no âmbito da administração da justiça.
A partir dessas questões sociais recentemente no Brasil,
o Supremo Tribunal Federal aprovou a união civil entre pesso-
as do mesmo sexo. Afinal de contas, cabe ao sistema jurídico,
pelo menos em tese, garantir a igualdade de direitos entre os
cidadãos sem fazer acepção de quaisquer características ou
peculiaridades existentes e, neste caso, sem se considerar a
sexualidade.
Considerando-se o estigma que a homossexualidade carre-
ga na sociedade brasileira, não houve consenso na opinião pú-
blica e várias polêmicas vieram à tona transcendendo a discus-
são sobre casamento homossexual e preconceito, convidando
também à reflexão sobre liberdade de expressão religiosa.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
581
A união homoafetiva como entidade familiar...

Tratar destes temas em nosso universo jurídico, portanto,


é muito mais que advogar a instituição de diplomas legais es-
pecíficos. Requer a superação de uma mentalidade heterosse-
xista que discrimina sem fundamentação jurídica. É preciso
superar os limites de uma tradição de exclusão onde prevalece
a lógica da segregação social e jurídica das minorias, que esta
sendo aos poucos respeitados seus direitos de reconhecimen-
tos. O reconhecimento formal por parte da legislação, da juris-
prudência ou da doutrina de certos direitos homossexuais tem
desempenhado importante papel na busca pela igualdade de
direitos de hetero e homossexuais. Uma coleção de sentenças,
algumas ainda em grau de recurso refletem a clara disposição
da nossa sociedade laica em estabelecer uma cultura solidaria
e baseada nos direitos universais do homem.
Tendo em vista o reconhecimento da decisão do Supremo
Tribunal Federal da união homoafetiva como união estável
constitucionalmente protegida, garantindo quase completa-
mente a isonomia de direitos entre casais homoafetivos. Ob-
serva-se uma conquista importante no sentido de ampliar as
garantias patrimoniais entre os homossexuais que vivem em
união estável, os quais, em caso de morte do companheiro ou
companheira, poderão, com a aprovação desta lei, usufruir le-
galmente de sua herança, assim como já ocorre com todos os
casais heterossexuais. Dessa forma, mesmo a constituição des-
tas uniões já existirem, esta decisão do poder judiciário não
traz a união homoafetiva como algo novo, mas sim garante sua
legalização e direitos aos casais homossexuais brasileiros. Ve-
jamos a seguir um breve delineamento histórico sobre o ho-
mossexualismo.

BREVE DELINEAMENTO HISTÓRICO


Quanto à sexualidade humana, o traço especial de com-
plexidade conferido pelo afeto, seja qual for sua natureza, esta-
rá onipresente, sejam as consideradas normais ou as declara-
das proscritas, em sociedades antigas e modernas1.
1
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: O preconceito & a justiça. 2
ed. Ver. Atual. Porto Alegre livraria do advogado, 2001, p. 27.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
582
Júlia Francieli Neves de Oliveira

A homossexualidade acompanha a historia da humanida-


de, e representa um estágio de evolução da sexualidade, po-
rém nunca foi aceita, sempre foi tolerada. É uma realidade
existente, em toda parte desde as origens da história humana,
é diversamente interpretada e explicada2.
Na Grécia clássica, o exercício da sexualidade, verdadeiro
privilégio dos bens - nascidos, fazia parte do cotidiano de Deu-
ses, reis e heróis. O mais famoso casal masculino da mitologia
grega era formado por Zeus e Gamimede. Lendas falam dos
amores de Aquiles com patroclo e dos constantes raptos de
jovens por Apolo. Indaga Souza que a importância de tais pra-
ticas, se perversão admitida, instituição pedagógica ou ritual
iniciatório e questiona se tais hipóteses seriam excludentes
entre si3.
Nas olimpíadas, os atletas competiam nus, exibindo sua
beleza física, e vedada era a presença das mulheres na arena,
também nas representações teatrais, os papeis femininos eram
desempenhados por homens, travestidos, com manifestações
homossexuais4.
Em Roma, o homossexualismo era visto como de proce-
dência natural, isto é, era natural as relações de homossexuais
tanto quanto de as relações de cais, entre amantes e de senhor
e escravo5.
Atualmente segundo dados do IBGE, no Brasil existem
mais de 60 mil casais homossexuais, número este considerável
e que pode ser muito maior ao se considerar aqueles que omi-
tiram sua orientação sexual em razão do preconceito que en-
frentam no dia a dia. Dessa forma, do ponto de vista jurídico,
esta lei vem ao encontro dos interesses de um grupo social, o
qual tem sua representatividade na sociedade e por isso deve
ter suas demandas e direitos assegurados pela lei.

2
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p.30.
3
DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p.30.
4
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p.30.
5
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p.30.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
583
A união homoafetiva como entidade familiar...

Após um breve resumo histórico da homossexualidade,


pode-se passar à exposição das concepções a respeito desta,
para melhor compreensão diante das questões jurídicas ob-
tendo diversas visões sobre a homossexualidade6.

AS DIFERENTES CONCEPÇÕES SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE


O estudo será realizado a partir de três concepções, em
cada uma destas concepções será analisado um escorço histó-
rico sobre homossexualidade, o primeiro será sobre a homos-
sexualidade e o papel das religiões, sobre a evolução do ho-
mossexualismo e o terceiro a homossexualidade como constru-
ção social.
A primeira concepção é referente o homossexualismo e o
papel das religiões, pois os maiores preconceitos provem das
religiões contra o homossexualismo, isto porque a concepção
bíblica busca a preservação da história de Adão e Eva, de que
a essência da vida é o homem, a mulher e sua família. Segundo
Dias muitas igrejas consideram o homossexualismo uma ver-
dadeira perversão, uma aberração da natureza”7.
Neste contexto, toda prática sexual não-reprodutiva é
qualificada negativamente, a censura decorrente de atos ho-
mossexuais é de todo lógica, pois esses carecem de finalidade
reprodutiva e são havidos fora do espaço matrimonial, sendo
consideradas ofensas ao criador e a natureza, decorrentes da
luxúria8.
Mesmo com a inclusão dos atos homossexuais na catego-
ria maior dos pecados pela prática sexual fora do casamento e
da finalidade reprodutiva, este pensamento evoluiu com as
mudanças advindas da sociedade.
Surgindo a segunda concepção a evolução do homosse-
xualismo, fruto do predomínio da mentalidade científica sobre

6
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Li-
vraria do Advogado, Esmafe, 2001. p. 31
7
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p.30.
8
RIOS, Roger Raupp. op.cit. p. 34.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
584
Júlia Francieli Neves de Oliveira

a religiosa, os atos homossexuais eram vistos como sintoma de


uma doença, que se identifica como “homossexual” com diag-
nóstico de perversão sexual. A origem desta “ciência do sexo”,
começou no século XIX, diante do temor de epidemias e da
necessidade da imposição de disciplina às classes trabalhado-
ras, desta forma tudo que era visto como imoralidade sexual
passou a ser tratado como doença9. Com efeito, a abordagem
clínica contemporânea, tanto medica como psicológica, este
tipo de doença passou a inexistir, dado relevância para a con-
cretização do princípio da igualdade, como a seguir será exa-
minado10.
Após significativas mudanças sociais, a partir da metade
do século XX, surgiu uma sociedade menos preconceituosa
quanto ao homossexualismo, devido ao afrouxamento dos la-
ços entre o Estado e a igreja, esta que fez diminuir o sentimen-
to de culpa, e o prazer sexual deixou de ser criminoso, e novas
estruturas de união emergiram, não mais sendo alvo de repú-
dio social, desta forma a orientação sexual passou a caracteri-
zar como uma opção livre e não como um ilícito ou uma culpa11.
A terceira concepção expõe sobre a homossexualidade
como construção social, a partir da década de 60 e início dos
anos 70 do século recém-findo, o movimento de liberação, bus-
caram mudar o conceito das relações homoafetivas, aumen-
tando a visibilidade das mais diversas expressões da sexuali-
dade12.
Nos Estados Unidos, os homossexuais – sob o slogam
“saindo do armário”, vem a público, passando a reclamar o
direito à vida e aos seus sentimentos. No Brasil, realiza-se em
várias capitais a Parada do Orgulho Gay13. Como cenário da
contemporaneidade apresenta-se a busca pela despatologiza-
ção da homossexualidade, visando uma maneira de viver dife-
rente, desta forma foi surgindo a proliferação dos chamados
9
RIOS, Roger Raupp. op.cit. p. 38.
10
RIOS, Roger Raupp. op.cit. p. 47.
11
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p.33.
12
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p.33.
13
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p.34.
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A união homoafetiva como entidade familiar...

movimentos libertários como o nuances grupo construído pela


livre expressão sexual, é uma ONG que trabalha na defesa dos
direitos humanos dos homossexuais desde 1991 que atua na
cidade de Porto Alegre/RS desde 1991, a mais de 11 anos, na
defesa dos direitos de travestis, lésbicas e gays, defendendo
igualdade entre os cidadãos (ãs)14.
Desta forma começa-se a estudar a eficácia do direito de
igualdade e a proteção constitucional da dignidade da pessoa
humana em face da homossexualidade exigindo que se escla-
reça, previamente, a concepção adotada acerca deste direito
fundamental e o conceito de orientação sexual ora utilizado.

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL


A partir deste estudo, deve-se enfatizar o princípio cons-
titucional fundamental da proteção da dignidade da pessoa
humana, conforme demonstra o artigo I, inciso III da CF/88
como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito,
visando à igualdade como um princípio jurídico15.
O princípio jurídico da proteção da dignidade da pessoa
humana, versando sobre a união de pessoas do mesmo sexo
implica verificar os diversos tratamentos jurídicos devendo-se
prosseguir investigando sua abrangência no que respeita a ori-
entação sexual, esta que é entendida como a identidade atribu-
ída a alguém em função da direção das suas condutas sexuais,
seja para outra pessoa do mesmo sexo (homossexuais), seja pa-
ra pessoa do sexo oposto (heterossexuais) ou de ambos os se-
xos (bissexuais). Observam-se a importância da orientação se-
xual ao âmbito de proteção da dignidade humana, condições
esta indispensável para a construção de uma pessoa possibili-
tando o livre desenvolvimento da personalidade16.

14
SOUZA, Francisco Loyola, José Reinaldo de Lima Lopes, Paulo Gilberto
Cogo Leivas, Roger Raupp Rios. A Justiça e o Direito de gays e lésbi-
cas: jurisprudência comentada. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 7.
15
RIOS, Roger Raupp. op.cit. p.89.
16
RIOS, Roger Raupp. op.cit. p. 90, 91.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
586
Júlia Francieli Neves de Oliveira

Neste contexto o direito brasileiro, enraizado na tradição


jurídica continental, compreende o princípio da igualdade, que
se apresentam, em nosso direito constitucional através da
afirmação “igualdade perante a lei” e da “igualdade na lei”,
expressões que compreendem o direito de igualdade17.
Principalmente no direito brasileiro, constata-se a evolu-
ção da jurisprudência e da legislação, que recentemente vem
reconhecendo esta concretização do princípio isonômico, rela-
tiva à proibição de discriminação por orientação sexual18. Como
exemplo jurisprudencial temos o Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul :
Agravo de instrumento nº 599075496, Relator Desembar-
gador Breno Moreira Mussi, j. 17.06.1999.
Reza a ementa: “RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPE-
TENCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SO-
CIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR
PESSOAS DO MESMO SEXO. Em tratando de situações
que envolvem relações de afeto, mostra-se competente
para o julgamento da causa uma das varas de família, à
semelhança das separações ocorridas entre casais hete-
rossexuais.”

A partir desta ementa, observa-se a aplicação do princí-


pio da igualdade, que proferiu acórdão definindo a competên-
cia das Varas Especializadas de Família da Comarca de Porto
Alegre julgando a demanda discutindo a partilha de bens de-
vido a dissolução dos vínculos de afeto havido entre duas mu-
lheres.
Apesar de haver em nossa realidade muita discriminação
fundadas na orientação sexual, através do preconceito e in-
compreensão, atitudes nestas bases, não podem violar o prin-
cípio isonômico, pois este é a proteção para a dignidade hu-
mana, um dos direitos fundamentais essencial ao Estado De-
mocrático de Direito19.
17
SOUZA, Francisco Loyola, op. Cit. p. 45.
18
SOUZA, Francisco Loyola, op. Cit. p. 52.
19
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 53, 54.
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587
A união homoafetiva como entidade familiar...

A seguir será analisado o direito a sexualidade e a igual-


dade de tratamento social, pois mesmo observando o princípio
constitucional deve prevalecer é o da igualdade cumulada com
o da liberdade individual, ambos resultando do preceito maior
da isonomia.

DIREITO A SEXUALIDADE E IGUALDADE DE TRATAMENTO SOCIAL


Através do processo de evolução dos valores históricos
do direito, no sec.XX está marcado pelo reconhecimento da
eficácia dos direitos fundamentais e pelo reconhecimento da
garantia do livre exercício da sexualidade, esta que integra as
três gerações de direitos, que são a liberdade individual, a
igualdade social e a solidariedade humana, amparadas pelo
princípio fundamental a isonomia, visando a proibição de dis-
criminações injustas, isto é, impositiva a inclusão das relações
dos homossexuais no rol dos direitos humanos20.
O princípio da igualdade, exposto no artigo 5º da nossa
magna carta, “todos são iguais perante a lei”, devendo ser ob-
servado tanto “pelos órgãos que aplicam o direito” como tam-
bém para o legislador. Segundo o autor, o enunciado deve-se
“tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais”
não deve ser considerado no seu sentido formal, mas sim no
seu sentido material, como também as situações fáticas exis-
tentes em cada individuo ou situação pessoal21.
Destarte, cita-se o artigo 5º inc.1 CF-88 (homens e mulhe-
res são iguais em direitos e obrigações), deste modo, o sexo é
uma característica não essencial, sendo vedada toda discrimi-
nação por motivo de sexo, do mesmo modo o artigo 4º, inc. IV
CF-88 constituem objetivos fundamentais, promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, sexo, cor, idade e quais
quer outras formas de discriminação, isto é, vedando inclusive
discriminação por orientação sexual. Veja como exemplo a ju-

20
DIAS, Maria Berenice. op. cit. p. 74.
21
SOUZA, Francisco Loyola,... A Justiça e o Direito de gays e lésbicas:
jurisprudência comentada. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 116.

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588
Júlia Francieli Neves de Oliveira

risprudência do Superior Tribunal de Justiça que reconhece o


direito fundamental a igualdade dos homossexuais, que tinha
por objeto a admissão de companheiro homossexual como be-
neficiário do Plano de Assistência Médica da Caixa Econômica
Federal: 22
EMENTA: RESP.-PROCESSO PENAL-TESTEMUNHA-
HOMOSSEXUAL. A história das provas orais evidencia
evolução, no sentido de superar preconceito com algu-
mas pessoas. Durante muito tempo recusou-se credibili-
dade ao escravo, estrangeiro, preso, prostituta. Projeção,
sem duvida, de distinção social. Os romanos distinguiam
patrícios e plebeus. A economia rural entre o senhor de
engenho e o cortador da cana, o proprietário da fazenda
de café e quem se encarrega-se da colheita. Os direitos
humanos buscam afastar distinção. O poder judiciário
precisa ficar atento para não transformar essas distin-
ções em coisa julgada. O requisito moderno para uma
pessoa ser testemunha é não evidenciar interesse no
desfecho do processo. Isenção pois, homossexual, nessa
linha não pode receber restrições. Tem o direito – dever
de ser testemunha. E mais: sua palavra merecer o mesmo
credito do heterossexual. Assim se concretiza o princípio
da igualdade registrado na Constituição da Republica e
no Pacto de São José de Costa Rica”23.

A partir, desta jurisprudência observa-se as questões re-


lativas aos direitos dos homossexuais, este que tinha plasma-
do o princípio da isonomia, no âmbito da sexualidade por obje-
to a proteção mediante a proibição de qualquer discriminação
sexual, conforme o inciso xxx do artigo 7º (proibição de dife-
rença de salários, exercícios de funções e critérios de admissão
por motivo de sexo)24.
Quando a igualdade no tratamento social discute-se tam-
bém a criminalização da homofobia, isto é, tornar-se crime a

22
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 119.
23
“RESP. 154, 857, STJ, 6º TURMA, Relator MIN. LUIS VICENTE
CERNICCHIARO, Data da decisão 26/05/1998, DJU 26/10/1998, P.169”.
24
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 120.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
589
A união homoafetiva como entidade familiar...

manifestação de preconceito contra homossexual, em nome da


defesa da diversidade sexual, cogita-se em tornar crime, por
exemplo, a fala e a manifestação pública de religiosos que pre-
gam a inconformidade do homossexualismo com suas convic-
ções religiosas e doutrinárias. Em outras palavras, religiões
como o cristianismo (evangélicos, católicos, entre outros) teri-
am seus líderes e fiéis cometendo crime ao mencionarem que
reprovam a homossexualidade e atos como casamentos homo-
afetivos conforme suas fundamentações, que consideram sa-
gradas.
Neste contesto de promoção de igualdade nas relações
de gênero por meio dos direitos fundamentais, constata-se que
a discriminação em virtude da sua orientação sexual constitui,
precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de
discriminação sexual, tendo em vista a promoção da existência
digna de que todos devem ter direito a sua afirmação de uma
identidade pessoal, cuja conduta sexual direcionam-se para
alguém de mesmo sexo (homossexualismo), sexo oposto (hete-
rossexualismo), ambos os sexos (bissexuais) ou a ninguém
(abstinência sexual)25.

O RECONHECIMENTO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS COMO FAMÍLIA E


POSTURAS JURISPRUDENCIAIS
A temática relativa à homossexualidade tem merecido
muita reflexão, quanto ao tratamento jurídico em torno da ho-
mossexualidade e da possibilidade de registro civil de eventu-
al vida à dois, toma relevo incomparavelmente superior o exa-
me da eficácia dos direitos fundamentais quando se trata das
vivências homossexuais, reflexões estas que se conduzem di-
ante das uniões homossexuais26.
Dentro de um contexto democrático o Supremo Tribunal
Federal reconheceu a união homoafetiva como união estável
constitucionalmente protegida, porem o casamento civil homo-

25
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 120.
26
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 178.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
590
Júlia Francieli Neves de Oliveira

afetivo deve ser reconhecido porque a Constituição obriga o


reconhecimento da possibilidade de conversão da união está-
vel em casamento civil, sendo a família conjugal o objeto de
proteção do casamento civil e da união estável, o reconheci-
mento do status jurídico-familiar da união homoafetiva exige
que a ela seja reconhecido o direito tanto ao casamento civil
quanto à união estável27.
Desse modo, os Tribunais e a doutrina estão apenas an-
tecipando o que se discute no âmbito do Projeto de Lei nº
2285/07, o Estatuto das Famílias, que dispõe28:
Art. 68. É reconhecida como entidade familiar a união en-
tre duas pessoas de mesmo sexo, que mantenham convi-
vência pública, contínua, duradoura, com objetivo de
constituição de família, aplicando-se, no que couber, as
regras concernentes à união estável.
Parágrafo único. Dentre os direitos assegurados, inclu-
em-se:
I - guarda e convivência com os filhos;
II - a adoção de filhos;
III - direito previdenciário;
IV - direito à herança.

Sendo assim, não pode haver democracia onde não haja


homens e mulheres autônomos e independentes, para tanto, é
fundamental o resguardo de uma esfera da vida em que a auto-
determinação e a possibilidade de construir-se como pessoa
livre sejam concretamente efetivos, numa realidade que, inclu-
sive, abre as portas para a diversidade e o pluralismo. Veja
abaixo as decisões jurisprudenciais a cerca do reconhecimento
da União Estável entre homossexuais:
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul declarou ex-
tinto o processo por perda de objeto, destacou a importância
da discussão sobre o reconhecimento das uniões estáveis ho-

27
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 179.
28
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 179.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
591
A união homoafetiva como entidade familiar...

moafetivas como entidade familiar, na forma definida pelo arti-


go 1.723 do Código Civil:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIE-
DADE DE FATO. UNIÃO HOMOAFETIVA. RESSARCI-
MENTO. NECESSIDADE DE PROVA INEQUÍVOCA DE
APORTES FINANCEIROS DIRETOS. PEDIDO ALTERA-
DO. UNIÃO ESTÁVEL. DESCABIMENTO. 1. O direito
brasileiro não veda a sociedade de fato entre pessoas do
mesmo sexo, sendo necessário, entretanto, que aquele
que busca o ressarcimento sobre possível participação
na aquisição do patrimônio amealhado na constância da
sociedade fática, demonstre, através de prova inequívo-
ca, sua participação efetiva na construção do patrimônio
através de aportes financeiros diretos.[...]. Recurso provi-
do, em parte, por maioria, vencido o Relator29.

No mesmo sentido, recentemente, o Tribunal de Justiça


do Estado de São Paulo, também tem admitido a hipótese da
pensão por morte devida a companheiros de mesmo sexo na
constância união homoafetiva:
PREVIDÊNCIA SOCIAL – Pensão. – A pensão por morte é
devida a companheiros de mesmo sexo na constância da
união homoafetiva em face do princípio constitucional
da igualdade (art. 5º, caput, I, CF). – O benefício da pen-
são por morte deve corresponder à totalidade dos venci-
mentos ou proventos do servidor falecido. – Inteligência
do art. 40, § 5º, CF. 2. Os juros de mora incidem a partir
da citação (art. 405 CC e art. 219 CPC) à razão de 6º ao
ano, pois se trata de verba de caráter remuneratório (art.
1º-F da Lei nº 9.494/97. – Precedentes do STF. – Sentença
reformada. – Recurso provido.30

29
Apelação Cível Nº 70024543951, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justi-
ça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em
05/11/2008.
30
Ap. Cível. 726.939.5/7-00. Apelante: Antônio de Pádua Carneiro. Apelado:
IPESP. Rel. Rebouças de Carvalho. Julgamento: 17.12.2008.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
592
Júlia Francieli Neves de Oliveira

Veja também a Jurisprudência STJ - Civil – que reconhece


a relação homossexual como união estável – através do em-
prego da analogia:
EMENTA CIVIL. RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. UNIÃO
ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. EMPREGO DA ANALO-
GIA. 1. “A regra do art. 226, § 3º da Constituição, que se
refere ao reconhecimento da união estável entre homem
e mulher, representou a superação da distinção que se
fazia anteriormente entre o casamento e as relações de
companheirismo. Trata-se de norma inclusiva, de inspi-
ração anti-discriminatória, que não deve ser interpretada
como norma excludente e discriminatória, voltada a im-
pedir a aplicação do regime da união estável às relações
homoafetivas. [...] Recurso especial desprovido.31

Nesse sentido, observa-se a importância do papel da ju-


risprudência, pois este antecipou o entendimento a ser trans-
formado em Lei pelo Congresso Nacional. Evidente que o con-
ceito de união estável às uniões homoafetivas, os Tribunais
interpretam de forma coerente a Constituição Federal, visando
a efetividade dos princípios da igualdade e dignidade da pes-
soa humana32.
Este aspecto é importante falar também sobre a adoção
conjunta, ela também deve ser reconhecida pois, a legislação
admite a adoção conjunta pelo casal que se encontra em união
estável, tendo em vista que o princípio da integral proteção da
criança e do adolescente (art. 227 da CF/88) não se encontra
prejudicado nesta hipótese logo, há permissão explícita à ado-
ção conjunta pelo casal homoafetivo que se encontre em união
estável. Ademais, diversas pesquisas psicossociais já demons-
traram que, tem-se por inexistente qualquer prejuízo a crianças
e adolescentes pelo simples fato de serem criados (as) por um

31
STJ – REsp nº 827.962 – RS – 4ª Turma – Rel. Min. João Otávio de Noro-
nha – DJ 08.08.2011.
32
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 183.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
593
A união homoafetiva como entidade familiar...

casal homoafetivo pela mera homoafetividade conjugal de dito


casal33.
Importa destacar que admitir a existência de comunida-
des familiares é respeitar os valores constitucionais da demo-
cracia, do estado democrático de direito e a eficácia dos direi-
tos fundamentais, importando que a realidade concretize o di-
reito vigente, de molde a considerar os princípios democráti-
cos, e inegável pluralidade de formas de vida amorosa, esta
que já abriu espaço para a caracterização das uniões homos-
sexuais como comunidades familiares34.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste Contexto, esta claro que a sexualidade é elemento
constituinte da plenitude da vida humana, e neste sentido as
manifestações doutrinarias as decisões judiciais, quanto à
existência das uniões homoafetivas lançam mão de argumen-
tos preconceituosos em favor dos homossexuais, adequando os
costumes e os valores aos moldes da sociedade multicultural,
avançando com a inserção de políticas publicas e leis voltadas
a atender essas reivindicações visando o reconhecimento das
diferenças. Se a liberdade à escolha da sexualidade, bem como
a integridade daquele que se reconhece como homossexual,
devem ser garantidas, da mesma forma as liberdades de ex-
pressão e de religião devem ser asseguradas por lei.
Neste sentido é preciso levar em conta que existe um
grande preconceito social que se afloram com as expressões
da homofobia, a apologia à agressão física ou psicológica as-
sim como ao preconceito por si só, devem ser expressamente
repudiados. É preciso considerar que a própria essência de
religiões como o cristianismo parte do princípio da defesa da
vida, do homem, do acolhimento, da tolerância e da paz e, des-
sa forma, aquele que se considera cristão estaria em contradi-
ção com sua própria fé ao defender a violência contra o homos-

33
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 184.
34
SOUZA, Francisco Loyola, op. cit. p. 181.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
594
Júlia Francieli Neves de Oliveira

sexual. Sendo assim, seria preciso deixar clara a fronteira entre


discursos homofóbicos que defendam a violência (física ou
psíquica) e outros que apenas desconsideram, embasados em
sua religião, a naturalidade da homossexualidade.
Dessa forma, mesmo com a aprovação da união civil entre
pessoas do mesmo sexo, união homoafetiva, sendo uma con-
quista importante no sentido de ampliar as garantias patrimo-
niais entre os homossexuais que vivem em união estável, uma
vez que cabe ao sistema jurídico garantir a igualdade de direi-
tos entre os cidadãos, sem fazer discriminações. A polêmica e
o debate fazem parte da vida em sociedade, porém, ainda exis-
te imposição de ideias e posicionamentos, ainda que sejam em
nome de uma “causa nobre”, seguem na contramão das liber-
dades e da construção de um tecido social democrático e tole-
rante com as diversidades, sejam sexual ou religiosa.

REFERÊNCIAS
AEZEVEDO, Álvaro Villaça, União homoafetiva - Contratos garan-
tem direitos de homossexuais, Revista Consultor Jurídico, 5 de abril
de 2004.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: O preconceito & a justi-
ça. 2 ed. Ver. Atual. Porto Alegre livraria do advogado, 2001.
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, Esmafe, 2001.
SOUZA, Francisco Loyola, José Reinaldo de Lima Lopes, Paulo Gil-
berto Cogo Leivas, Roger Raupp Rios. A Justiça e o Direito de gays
e lésbicas: jurisprudência comentada. Porto Alegre: Sulina, 2003.
SOUZA, Ivone Coelho D. Homossexualismo, uma instituição reco-
nhecida em duas grandes civilizações. Homossexualismo: Discus-
sões Jurídicas e psicológica. Curitiba: Juruá, 2001.
VIEIRA DE CARVALHO, Luiz Paulo. Direito Civil: Questões Fun-
damentais e Controvérsias na Parte Geral, no Direito de Família e
no Direito das Sucessões, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A FAMÍLIA EM UM (NOVO )
CENÁRIO DE MUDANÇAS

Laila Letícia Falcão Poppe


Bacharel em Direito pela Unijui. Especialista em Direito Trabalhista pela
Uninter. Mestranda em Direitos Humanos pela Unijui. Bolsista CAPES.
(lailapoppe@hotmail.com)

Resumo
Atualmente o conceito de família está atrelado a preconceitos e tantos outros obstá-
culos; a sociedade, a legislação pátria e a consciência das pessoas devem compreen-
der que a evolução da família é uma realidade, de forma que existe um novo cenário
social em que estão inseridas novas configurações de famílias. Dessa forma, o ele-
mento caracterizador da família atual não está mais intrinsecamente relacionado ao
casamento, às relações de sangue, e muito menos na diferença de sexo do par, mas
sim na comunhão espiritual e de vida, que une as pessoas com mesmos objetivos e
comprometimento mútuo. Essas mudanças têm origem em diversos fatores e faz
com que levantemos o debate sobre o espaço e forma dessas novas famílias frente
ao reconhecimento legal e social das mesmas para a efetivação desse direito funda-
mental. Assim, o presente artigo objetiva sintetizar a evolução e transformação da
família no decorrer dos anos, bem como elencar esse novo cenário em que ela está
posta, trazendo a tona essas novas estruturas de família.
Palavras-chave: direitos fundamentais; família; sociedade.

Abstract
Currently the concept of family is linked to so many other obstacles and prejudices;
society, legislation and awareness of country people should understand that evolu-
tion is a reality of the family, so that there is a new social setting in which they oper-
ate new settings families. Thus, the element that characterizes the current family is
no longer intrinsically related to marriage, blood relations, and much less in the sex
difference of the pair, but the fellowship and spiritual life which unites people with
the same goals and commitment mutual. These changes stem from several factors
and causes that we raise the debate about space and shape these new families
across the social and legal recognition of same for the realization of this fundamental
right.
Keywords: fundamental rights, family, society.

INTRODUÇÃO
No movimento constante a que submetida à vida, depara-
se o estudioso com situações e circunstancia de ordem varia-
596
Laila Leticía Falcão Poppe
da, fazendo-o refletir e rever pontos de vista antes adotados,
frente à necessidade de encarar o novo e buscar as soluções
possíveis, conforme cada momento e especialmente, como
forma de não se deixar no vácuo questões que, ontem sequer
imaginadas, hoje apresentam-se em uma realidade de forma
concreta e a demandar a procura do posicionamento adequado.
O comportamento social e a vida familiar evoluíram. As
relações de convivência familiar e social já não são mais as
rigidamente estabelecidas anteriormente, em que o modelo
único de família, fundado na desigualdade e sustentado pelo
patriarcado, tinha na figura do homem a concentração do po-
der econômico e social da família. A família contemporânea
não se conforma mais com as atribuições rigidamente estabe-
lecidas pela qualidade de ser um homem ou mulher. Ser filho
não significa mais estar sujeito ao desígnio do pai, a família
contemporânea não é mais o lugar da perpetuação dos laços
de sangue e da preservação do nome e patrimônio dos ante-
passados, finalidades estas que se constituíam na razão de se
nascer e permanecer em família.
Como efeito das mudanças ocorridas na sociedade, há
uma modificação nos valores que esta trás consigo, prescin-
dindo que a consciência das pessoas e a legislação reconhe-
çam a necessidade premente de legitimação destas mudanças
para o pleno atendimento das muitas questões e anseios sur-
gidas na atualidade no tocante a mais primordial forma de
convivência humana.
De extrema relevância estudar esse novo perfil familiar,
que segue em direção a uma nova interpretação, a qual objeti-
va através do uso da reflexão acerca dos novos valores e an-
seios sociais desmistificar verdades tidas como absolutas e
imutáveis presentes no ordenamento jurídico no tocante ao
Direito de Família, que tanto obstaculiza a resolução e esclare-
cimento destas questões polêmicas.
Faz-se necessário, e é exatamente o que se pretende com
esse artigo, compreender a família contemporânea a partir de
uma visão pluralista, aberta e multifacetária, na qual esta insti-
tuição não pode ser compreendida como um fim em si mesmo,
sendo, ao contrário, um instrumento que prima pelo desenvol-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
597
A família em um (novo) cenário de mudanças

vimento pleno de seus membros e que implica respeito pelo


exercício da autonomia destes na ingerência da suas vidas,
bem como o reconhecimento do novo modelo familiar escolhi-
do, desde que este seja pautado na afetividade, respeito e
comprometimento mútuo dos conviventes.

A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS E A FAMÍLIA COMO DIREITO


FUNDAMENTAL
Estudar a percepção e a evolução dos direitos fundamen-
tais, entre eles o de família, é o caminho para se aprofundar a
compreensão das relações entre justiça e cidadania e, a partir
disso, entendendo sua trajetória evolutiva, não mais conceituá-
los como apenas direitos dos cidadão, mas como direitos hu-
manos anteriores ao Estado e inerentes a todo ser humano.
Essa analise faz menção a idéia, popularizada a partir da
obra de Bobbio1, de que os direitos humanos só poderiam ser
definidos uma vez contextualizados histórica e culturalmente,
ou seja, considerando-se o período histórico e o nível de de-
senvolvimento cultural e, consequentemente, jurídico, de de-
terminado povo, a definição para direitos fundamentais pode-
ria resultar em diferenças de abrangência, importância, sujei-
tos e regulação, como pode-se perceber no que condiz as con-
formações da estrutura familiar no decorrer dos anos.
A era dos direitos ainda não acabou, este processo ainda
vai perdurar por muitas décadas e novos direitos, bem como
novos conceitos sobre velhos temas, ainda vão fomentar estu-
dos e embates nos mais diversos ramos da ciência e dos sabe-
res. As décadas de 70 e 80 consolidaram a força dos movimen-
tos sociais, e novos sujeitos de direitos foram incorporados ao
rol dos instrumentos regulatórios. Tanto no plano interno como
no âmbito internacional, mulheres, crianças e até mesmo ani-
mais passaram a figurar entre objetos de tutela jurídica, insur-
gindo assim, numa mudança também no âmbito familiar.

1
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio
de Janeiro: Campus, 1992.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
598
Laila Leticía Falcão Poppe
Esses novos direitos ampliam o conceito de direitos fun-
damentais, internacionalizando-os e concebendo-os com o di-
reito essencial a manutenção e Barretto retrata muito bem a
mutação por que passa o direito, afirmando que
O desenvolvimento das ciências e das técnicas nos dois
últimos séculos trouxe consigo desafios, que tem haver
como surgimento de novos tipos de relações sociais no
quadro cultural da tecno-civilização. O renascimento do
debate ético em todos os domínios da atividade humana
talvez encontre a sua explicação final na necessidade da
consciência do homem contemporâneo em situar-se face
ao fato de que, o paradigma cientifico domina cada vez
mais as forças da natureza e, ao mesmo tempo, interfere
de forma crescente no mundo natural, suscitando pro-
blemas que não encontram respostas no quadro da pró-
pria cultura, onde surgiram e desenvolveram-se por lidar
com esse novo tipo de conhecimento. O homem contem-
porâneo interroga-se de forma crescente sobre as dimen-
sões, as repercussões e as perspectivas das novas des-
cobertas cientificas e de suas aplicações tecnológicas.2

Sensível a configuração dos novos direitos, BOBBIO3 fun-


damentou uma proposta de formulação conceitual. Para ele, os
novos direitos resultam de uma multliplicação do direito decor-
rentes de três fatores primordiais, quais sejam, o aumento da
quantidade de bens merecedores de tutelas jurídicas, a expan-
são de certos direitos atribuídos num primeiro plano apenas ao
homem para outros sujeitos dele diversos e a compreensão do
homem não como um ser genérico ou abstratamente conside-
rado, mas sim, visto sob o prisma da concretude do ser na so-
ciedade, ou seja, resgatando dentro de conceitos como criança,
velho, mulheres, o que faz com que também a estrutura de fa-
mília siga essa tendência e a partir daí passe por uma evolu-
ção, acompanhando essa nova estrutural social em que esta
permeada.

2
BARRETTO, Vicente de Paulo. Bioética, biodireito e direitos humanos.
Disponível em: <http://www.dhnet.com.br> Acesso em: 1 dez. 2012.
3
BOBBIO. Op. Cit., p. 104.
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25 e 26 de abril de 2013
599
A família em um (novo) cenário de mudanças

AS TRANSFORMAÇÕES DA FAMÍLIA NO DECORRER DOS TEMPOS


A família ao longo da história vai transformar não só a sua
morfologia, a sua escala de grandeza, mas vamos deslocar de
uma família destensa para uma família nuclear, para uma famí-
lia monoparental, a morfologia da família se transforma radi-
calmente, assim como os problemas presentes na família tam-
bém mudam, mudando os personagens ou a valência deles na
família. Um exemplo é a transformação da figura da criança, do
pai e da mulher na ordem familiar, desencadeando transforma-
ções na problemática da família e em sua estrutura, captando
as descontinuidades históricas da família e assim suas trans-
formações. O que estará presente será uma articulação entre o
que se passa a nível da intimidade moral ou psicológica dos
laços familiares com o que se passa a partir de relações mais
amplas com o espaço social, Farias e Rosenvald asseveram
que
[...] também é a família o terreno fecundo para fenômenos
culturais, tais como as escolhas profissionais e afetivas,
além da vivência dos problemas e sucessos. Nota-se, as-
sim, que é nesta ambientação primária que o homem se
distingue dos demais animais, pela susceptibilidade de
escolha de seus caminhos e orientações, formando gru-
pos onde desenvolverá sua personalidade, na busca da
felicidade – aliás, não só pela fisiologia, como, igualmen-
te, pela psicologia, pode-se afirmar que o homem nasce
para ser feliz.4

O modelo tradicional da família sempre foi a união aben-


çoada pelos sagrados laços do matrimônio entre um homem e
um a mulher. O modelo de família, imposto pela igreja, não foi
obedecido sequer pelo casal mais famoso do mundo, Dias sati-
riza de maneira subliminar tal acontecimento
[...] Maria, ao casar, estava grávida de um filho que não
era do marido. Também entre eles não havia o débito

4
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famí-
lias. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 213.

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600
Laila Leticía Falcão Poppe
conjugal, pois haviam feito voto de castidade. Ao depois,
como Jesus não era filho de José, é o primeiro caso que
se tem notícia de adoção à brasileira, pois foi o recense-
amento que fez o casal ir para Belém. Assim, casar grávi-
da, decidir o casal por não ter filhos e marido perfilhar o
filho da mulher são arranjos familiares que já se conhece
há, no mínimo, 2 mil anos.5

Fazendo um resgate histórico, na pré-modernidade tem-


se uma família em que coabitavam em um mesmo espaço vá-
rias gerações, pai, mãe, avós, em torno de uma unidade de tra-
balho, com algumas características importantes entre gêneros:
uma família patriarcal, o pai detém o poder absoluto e a figura
da mãe é como uma reprodutora, tem na ordem da família e
também no social um lugar desprivilegiado e submissa ao po-
der masculina, sendo que a ordem da família traduz o que se
passa no espaço político e religioso, o pai é visto como o Deus
ou Rei, ou seja, o sexo feminino não tem nenhum valor e as cri-
anças eram concebidas como adultos em miniatura e a figura
dos idosos eram importantes na medida em que eram os guar-
diões da memória e da genealogia. Observa Castelo, que
[...] ao longo de vários séculos solidificou-se o conceito da
família patriarcal, a partir de suas raízes romanas, repre-
sentadas em sua essência pelo poder paterno, em razão
do qual se atribuía o papel de chefe e senhor das deci-
sões da sociedade familiar, não admitindo qualquer con-
testação. Nesse contexto, a história mostra que as mu-
lheres sempre foram inferiorizadas.6

Na sociedade tradicional, a família constituía um grupo


importante movido pela necessidade de enfrentar uma econo-
mia rude. A união da família em torno do pai, chefe incontestá-
vel, estava centrada no esforço de cada membro por um objeti-
vo comum: a subsistência de um bem, a exploração de uma
propriedade ou a manutenção de um nível social. A união de
5
DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. 8. ed. Porto Ale-
gre: Revista dos Tribunais, 2011, p. 415.
6
BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São
Paulo: Editora Método, 2006, p. 213.
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601
A família em um (novo) cenário de mudanças

dois indivíduos não só implicava no acesso a vida adulta, soci-


almente falando, mas permitia-lhes o ingresso também na vida
civil, com todos os direitos e obrigações daí decorrentes. Aque-
les que se afastavam desse esquema tradicional se confronta-
vam com a reprovação pública e se expunham irremediavel-
mente a uma vida marginal.
No interior dessa família, perfeitamente estratificada e
engessada, no sentido de que cada membro ocupe um lugar
especifico e desempenhe um papel previamente determinado,
a criança nada mais era que um objeto, ou um utensílio, vincu-
lado a um grupo de filhos, garantidor dos valores familiares.
Nesse pensar, observa Farias que
[...] a família era uma concepção compreendida na unida-
de de produção e patrimônio, pouco importava os laços
afetivos, impossibilitando a dissolução do vínculo matri-
monial, pois corresponderia a desorganização da própria
sociedade. Pode se comentar que, com o declínio do pa-
triarcalismo, um novo processo ideológico de família se
iniciou, ligando-se em particular ao desenvolvimento do
individualismo moderno do século XIX, em um imenso
desejo de felicidade.7

A família moderna, constituída após a revolução francesa,


é caracteriza pelo fato de que os pressupostos políticos e mo-
rais da revolução francesa tinham como premissa a igualdade
de direitos entre os cidadãos, ou seja, homem e mulher não
poderia mais ser estabelecido como uma hierarquia, ou seja, a
saída de uma teoria do sexo único para uma teoria moderna, a
qual incorporamos desde então, ou seja, da diferença sexual,
que implicava uma diferença moral entre os sexos, mas que
conferiu as mulheres um papel fundamental enquanto figura
de mãe e não mais de mera reprodutora, adquirindo certos po-
deres que ela não tinha, cabendo a ela gerir o espaço domésti-
co e ao homem gerir o espaço público.

7
FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de Direito de Família. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 254.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
602
Laila Leticía Falcão Poppe
O surgimento da família moderna vai criar um novo tipo
de família, célula ou nuclear, centrada sobre ela própria e sobre
a criança. O casamento, ate então rigidamente controlado,
desvincula-se das amarras jurídicas e se faz cada vez mais li-
vre para os jovens, tornando-se a união de dois indivíduos e
não mais de duas famílias.Nesse sentido, afirma Farias que
[...] a família esta em constante mutação decorrente das
novas conquistas da humanidade e através dessas mu-
danças pôde perceber-se, que no início do século XIX,
surgiu uma maior preocupação legislativa com a relação
concubinária, ajudando, por conseguinte, no reconheci-
mento de direitos advindos desta relação. E, com a filoso-
fia individualista e igualitária da Revolução Francesa,
contribuiu-se energicamente para o enfraquecimento do
dogma religioso, quanto à família formada apenas pelo
matrimônio.8

A partir do século XIX há uma nova concepção acerca da


riqueza de uma nação, uma preocupação com a qualidade de
vida, fazendo com que apareçam dois critérios de qualificação:
boas condições de saúde e educação. Isso ira implicar em uma
investidura na população desde o inicio da vida, ou seja, as
crianças serão objetos de investimento, trazendo a idéia da
criança como representação do futuro, passando a criança a
ganhar, inclusive, um estatuto especial e o poder da mulher
enquanto mãe está conferido a partir do momento em que ela
ira se encarregar dos filhos e fazer a mediação entre família,
educação, saúde. Toda a ideologia familiarista é constituída a
partir dessa família nuclear burguesa, sendo que a família pas-
sa a se condensar em torno dos pais e dos filhos, há uma redu-
ção da extensão da família.
Há uma ruptura da família nuclear burguesa, sendo que a
mulher sai desse lugar exclusivamente maternal, quer mais do
que ser mãe, não participando da governabilidade privada,
mas também da governabilidade pública, reorganizando assim
a família contemporânea, trazendo novos problemas e novos
personagens que não estavam presentes na família moderna: a
8
FARIAS. Op. Cit., p. 431.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
603
A família em um (novo) cenário de mudanças

dissolução da eternidade do casamento, reorganização dos


planos de autoridade. Assim Pereira afirma que
[...] é notável que, quando a sociedade começou a aceitar
as relações pessoais como sendo uniões sentimentais, o
legislador não podia mais negar efeitos a essas relações
concubinárias, deixando-as à margem do Direito. Inician-
do assim, a mudança nos costumes, à formação de uma
ideologia voltada ao ser humano e não mais ao seu pa-
trimônio.9

Na contemporaneidade, há uma institucionalização da


maternagem, de forma que as crianças vão cada vez mais cedo
para as escolas, por conta de que a mãe passou a ter lugares
de expansão existencial, mas os homens “não voltaram ao lar”,
deslocando a família para instituições privadas. Na nossa soci-
edade contemporânea ocidental, a família é percebida como a
mais “natural” das instituições, o núcleo organizador a partir
do qual irão estruturar-se e serão transmitidos os valores mais
importantes da nossa cultura.
No Ocidente ainda prevalece o modelo familiar corres-
ponde ao da “família nuclear”: um pai, uma mãe e filhos, mui-
tas vezes tal fato se impõe como uma verdade incontestável. A
partir disso e desse modelo fica mais “fácil” considerá-la como
sendo a unidade fundadora da sociedade e seu próprio suporte
para evolução da mesma. Porém, as coisas são um pouco mais
complicadas.
O processo que surgiu no terreno sociológico e tende a se
fazer acompanhar de uma evolução jurídica. Qualquer que seja
a postura adotada pela doutrina, relativamente a previsão
constitucional, ficou suficientemente claro que o surgimento da
noção de entidade familiar ao lado da família tradicional ou das
novas estruturas familiares, abandona o vocabulário moraliza-
dor que qualificava situações relativamente atípicas para reco-
nhecer sem vacilações, a existência de um fenômeno social,

9
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma abordagem psi-
canalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 452.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
604
Laila Leticía Falcão Poppe
uma nova forma familiar, com a qual será necessário, bom ou
mal grado, conviver e legislar daqui para o futuro.

A FAMÍLIA EM UM (NOVO) CENÁRIO DE MUDANÇAS


O direito enquanto ciência que visa a regular os compor-
tamentos sociais, precisa investigar essa nova realidade de
família. Ainda que tenha o Estado o dever de regular as rela-
ções das pessoas, não pode deixar de respeitar o direito a li-
berdade e garantir o direito a vida, não só vida como mero
substantivo, mas vida de forma adjetiva: vida digna e feliz.
Nesse sentido Dias leciona que
A norma escrita não tem o dom de aprisionar e conter os
desejos, as angustias, as emoções, as realidades e as in-
quietações do ser humano. Daí o surgimento de normas
que não criam deveres, mas simplesmente descrevem va-
lores, tendo os direitos humanos se tornado a espinha
dorsal da produção normativa contemporânea.10

Assim, mesmo sendo a vida aos pares um fato natural,


em que os indivíduos se unem por uma química biológica, a
família é um agrupamento informal, de formação espontânea
no meio social, cuja estruturação se dá através do direito. Co-
mo a lei vem sempre depois do fato, congela uma realidade
dada. As modificações da realidade acabam se refletindo na
lei, que cumprem sua vocação conservadora. A família juridi-
camente regulada nunca é multifacetada, como a família natu-
ral. Essa existe antes do Estado e está acima do Direito, a fa-
mília é uma construção cultural. Dispõe de estruturação psí-
quica na qual todos ocupam um lugar, possuem uma função,
sem estarem necessariamente ligados biologicamente. É essa
estrutura familiar que interessa investigar e trazer para o direi-
to, é a preservação do lar no seu aspecto mais significativo:
lugar de afeto e respeito. A autora supracitada coloca que

10
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre o direito das famílias. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004, p. 562.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
605
A família em um (novo) cenário de mudanças

Pensar em família ainda trás a mente o modelo convenci-


onal: um homem e uma mulher unidos pelo casamento e
cercados de filhos, mas essa realidade mudou, hoje todos
já estão acostumados com famílias que se distanciam do
perfil tradicional.11

A convivência com famílias recompostas, monoparentais,


homoafetivas... permite reconhecer que ela se pluralizou, daí a
necessidade de flexionar o termo que a identifica, de modo a
agregar todas as suas conformações, despontam novos mode-
los de família, mais igualitárias nas relações de sexo e idade,
flexíveis na temporalidade e em seus componentes, menos su-
jeitas a regras e mais ao desejo.
A mudança das estruturas políticas, econômicas e sociais
produziu reflexos nas relações jurídico-familiares. Os ideiais de
pluralismo, solidariedade, democracia, igualdade, liberdade e
humanismo voltaram-se a proteção da pessoa humana, a famí-
lia adquiriu função instrumental para melhor realização dos
interesses afetivos e existências de seus componentes. Nesse
contexto de extrema mobilidade das configurações familiares,
novas formas de convívio vem sendo improvisadas em torno da
necessidade de criar os filhos, frutos de uniões amorosas tem-
porárias, que nenhuma lei, de Deus ou dos homens, consegue
mais obrigar a que se eternizem. No contexto do mundo globa-
lizado, ainda que continue a família a ser essencial para a pró-
pria existência da sociedade e do Estado, houve uma completa
reformulação do conceito de família. Ainda de acordo com a
autora
Nos dias de hoje, o que identifica a família não é a cele-
bração do casamento, a diferença do sexo do par ou o en-
volvimento de caráter sexual, mas sim a presença de um
vinculo afetivo a unir as pessoas com a identidade de
projetos de vida e propósitos comuns, gerando compro-
metimento mutuo. Cada vez mais a idéia de família afas-

11
DIAS. Op. Cit., p. 322.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
606
Laila Leticía Falcão Poppe
ta-se da estrutura do casamento. A família de hoje já não
se condiciona aos paradigmas originários.12

O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da


responsabilização, da afetividade, da pluralidade e do eude-
monismo. A teoria e a pratica das instituições de família de-
pendem da competência em dar e receber amor, a família con-
tinua mais empenhada em ser feliz, a manutenção da família
visa, sobretudo, buscar a felicidade. Não é mais obrigatório
manter a família, ela só sobrevive quando vale a pena e existe
afeto.
Além disso, a Constituição esgarçou o conceito de família,
concedendo especial proteção à entidade familiar, como base
da sociedade, acabando com a idéia sacralizada da família,
constituída exclusivamente pelo matrimônio, para procriação e
eternidade.
Esse afastamento entre estado e igreja, fenômeno o qual
recebe o nome de laicização, tirou do matrimônio ou da própria
entidade familiar essa idéia de sacralidalde, também o movi-
mento feminista tirou o “véu de pureza” da mulher, a qual ti-
nha como finalidade dar certeza da legitimidade da filiação.
O avançar dos direitos humanos colocou o indivíduo como
sujeito de direito e a dignidade humana tornou-se o valor mai-
or. Com todos estes ingredientes a sociedade mudou, o que
acabou trazendo reflexos nas estruturas de convívio, materiali-
zada pela família. Assim, todas as conformações que têm como
elemento identificador o comprometimento mútuo decorrente
do laço da afetividade merece ser considerada uma família,
independente dos sujeitos que vão a compor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A família é um conceito que estrapola a esfera juridica, e
muito antes de ser legal, é, sobretudo, sociológico, um produto
da nossa evolução social, sendo sua concepção jurídica altera-
da no decorrer dos tempos, reconhecendo-a no mundo fático e

12
Idem, Ibidem.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
607
A família em um (novo) cenário de mudanças

atribuindo-lhe uma relevância no mundo jurídico antes desco-


nhecida.
Essa instituição possui uma vinculação direta e imediata
com os valores vigentes e aceitos por uma determinada socie-
dade em um determinado momentos histórico. Talvez por essa
característica peculiar, seja a família tendenciosa a sofrer
pressões e a sentir a tensão existente entre fato social, sua
conformação e norma jurídica. A sociedade foi aos mudando
conceitos e adquirindo novos valores, e a família como fruto da
sociedade que é, a cada mudança social, seja econômica, reli-
giosa ou cultural, foi adequando-se, ganhando novos contornos
em sua estrutura.
Com as constantes alterações nas estruturas familiares, a
família patriarcal foi aos poucos perdendo forças e novos mo-
delos de famílias começaram a se formar, buscando agora no-
vos objetivos, mais ligados a felicidade do que puramente la-
ços consangüíneos e estereótipos.
Houve uma democratização da família e a essas novas
conformações familiares que a Constituição Federal há de con-
ceder (e acredita-se que está concedendo) também proteção
do Estado, as famílias plurais de fato desempenham sua fun-
ção de direito fundamental e todos os dele decorrentes, não
necessariamente precisando possuir um modelo pré-moldado,
com fórmulas certas e estruturas definidas, uma vez que sendo
matrimonial, monoparetal ou homoafetiva, todas são dignas de
serem denominadas família.
O fato é que o alargamento conceitual da entidade famili-
ar acabou ensejando o florescimento da toda uma nova con-
cepção da família com seus diversos matizes. Ainda não temos
elementos suficientes, já que trata-se de conformações novas,
para dizer que a família está em crise, pelo contrário, dedutível
que crise havia com a mantença de um casamento estereoti-
pado e infeliz, o qual era chamado de família, e em que o afeto
não tinha qualquer relevância jurídica ou social.
Assim, pode-se dizer que tem-se um novo conceito de
família, não prevalecendo um modelo único e imutável, mas
com a preocupação de predominar muito mais à natureza do
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
608
Laila Leticía Falcão Poppe
vínculo que une seus integrantes do que ao seu formato ou
modo de constituição.

REFERÊNCIAS
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nos. Disponível em: <http://www.dhnet.com.br> Acesso em: 1 dez.
2012.
BERNSTEIN, A. Reconstruyendo a los hermanos Grimm: nuevas na-
rraciones para la vida de las familias ensambladas. In: Revista Sis-
temas Familiares. Año 16, N°1. Págs. 23-37, 2000.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho.
Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 45.ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a Justiça! Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
_____. União Homossexual: o preconceito e a justiça, Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2ª edição, 2003.
_____. Conversando sobre o direito das famílias. Porto Alegre: Edi-
tora Livraria do Advogado, 2004.
_____. Manual do Direito das Famílias. 8. ed. Porto Alegre: Revista
dos Tribunais, 2011.
FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de Direito de Família. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das
famílias. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma abordagem
psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
SINGLY, François de. Sociologie de la Famille Contemporaine. Pa-
ris, Nathan: 1993.
TURKENICZ, Abraham. Organizações Familiares: contextualização
histórica da Família Ocidental. Curitiba: Juruá, 2002

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
HOMOFOBIA :
UM DEBATE NECESSÁRIO
AOS DIREITOS HUMANOS 1

Leonardo Silveira Farias da Silva


Acadêmico do 9º semestre do Curso de Serviço Social da Universidade Re-
gional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – São Luiz Gonzaga.
(farias_slg@hotmail.com)
Lucineide Orsolin
Professora orientadora, Coordenadora do Curso de Serviço Social da Uni-
versidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – São
Luiz Gonzaga. Mestranda na Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e De-
senvolvimento, pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento,
Gestão e Cidadania da Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul (Unijuí). (lucineide.orsolin@bol.com.br)

Resumo
Vivemos em uma sociedade pragmatizada pela cultura heteronormativa, que não
aceita a homossexualidade no meio social. Diariamente pessoas são vítimas de ata-
ques físicos, verbais, sofrem as mais variadas formas de humilhações, tem seus sen-
timentos aniquilados, por uma atitude preconceituosa e segregadora. Tais fatos
ferem não somente os Direitos Humanos, mas sim anulam a dignidade da pessoa
humana. Nesta perspectiva, propomos aqui, uma reflexão crítica acerca da questão
da Homossexualidade, tendo em vista as relações que ela apresenta na conjuntura
social que estamos inseridos. Entendemos que quanto mais se problematizar a ques-
tão da Homossexualidade, mais irá se desmistificar as relações que envolvem as
pessoas que sentem atração por sujeitos do mesmo sexo. Compreendendo assim,
que antes das pessoas serem heterossexuais, homossexuais, bissexuais ou transexu-
ais, somos todos Seres Humanos.
Palavras-chave: direitos humanos. homofobia. homossexualidade. reflexão.

Abstract
We live in a pragmatic society for the heteronormative culture that doesn’t accept
the homosexuality in the society. Daily, people are victims by physical attacks, verbal
attacks, they suffer all the ways of humiliation, and they have their feelings annihi-
lated by an attitude prejudiced and segregated. Such facts hurt not only the Human
Rights, but cancel the dignity of human people. In this perspective, we purpose here,

1
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Serviço Social
da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões –
URI – São Luiz Gonzaga. Eixo Temático I – Fundamentos e Concretiza-
ção dos Direitos Humanos.
610
Leonardo Silveira Farías da Silva & Lucineide Orsolín
a critical reflection about the question of homosexuality, in a view of the relation
that it presents in a social conjuncture that we are in. We know that how much we
problematize the question of homosexuality, more will demystify the relations that
involves people that feel attraction for other people that have the same gender.
Comprising that even though people are heterosexual, homosexual, bisexual or
transsexual, we all are human beings.
Keywords: homophobia. Homosexuality. Human rights. Reflection

Aos quatro dias do mês de janeiro do corrente ano, Ban


Ki-moon, diplomata sul-coreano, e Secretário-Geral da ONU,
teve um artigo publicado em um jornal de grande circulação, e
disse que:
Acabamos de comemorar os 64 anos de um documento
que nasceu em dezembro de 1948 e mudou para sempre
a visão de como tratamos os membros da família humana.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos provocou
uma mudança fundamental no pensamento global, afir-
mando que todos os seres humanos, não alguns, não a
maioria, mas todos nascem livres e iguais em dignidade
e direitos.

Como sabemos a Declaração Universal dos Direitos Hu-


manos, foi criada a fim de promover a humanização das atitu-
des humanas, neste sentido para iniciarmos essa reflexão pro-
pomos alguns questionamentos acerca da Declaração Univer-
sal de 1948. Será que todas as pessoas têm conhecimento de
tal declaração? As pessoas que conhecem, será que compre-
endem a proposta que a declaração apresenta? Se as pessoas
conhecem e compreendem a Declaração dos Direitos Huma-
nos, por qual motivo será que vivemos em uma realidade tão
desumana?
Não é de hoje que vivenciamos, em nível mundial, situa-
ções que violam a integridade das pessoas. Há casos de fome,
há casos de trabalho escravo, casos de abuso sexual de crian-
ças e adolescentes, há casos de tráfico de pessoas e, há casos
de discriminação.
Nesta perspectiva, poderíamos elencar diversas formas
de discriminação tais como a religiosa, a étnica, a de gênero,

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
611
Homofobia

mas iremos nos ater a uma questão específica, a discriminação


contra pessoas que amam outras do mesmo sexo.
A relação homossexual é complexa, alguns consideram
que se trata de uma “opção” outros defendem a questão da
“orientação”, há também a questão biológica de fundamenta-
ção genética.
Para Sprinthall & Collins (2003)
Dar uma explicação para as causas do desenvolvimento
da homossexualidade na vida adulta é ainda uma tarefa
difícil. No entanto, com base em investigações já realiza-
das, duas possibilidades têm recebido a máxima atenção.
Uma delas remete-nos para factores de ordem biológica.
Nos estudos que a defendem têm sido pesquisadas dife-
renças celulares ou hormonais entre homossexuais e he-
terossexuais. [...]
A segunda explicação possível envolve factores sociais.
Numa tentativa de explicar as diferenças entre homosse-
xuais e heterossexuais, foram analisados vários factores
deste tipo. A maior parte da atenção foi dedicada à natu-
reza das relações entre pais e filhos. Em algumas dessas
investigações, os resultados indicaram que os rapazes
homossexuais sentiam-se menos ligados ao pai e identi-
ficavam-se mais intensamente com a mãe do que os he-
terossexuais. [...]

Como se pode observar, diversos estudos, debates e pes-


quisas são realizados a fim de identificar uma possível defini-
ção para a homossexualidade.
Segundo o artigo III da Declaração: “toda pessoa tem di-
reito à vida, à liberdade e a segurança pessoal”. Este princípio
nos desafia a refletir sobre a realidade que vivemos, onde pes-
soas são brutalmente agredidas, sadicamente ofendidas, fe-
rozmente humilhadas.
Segundo Mello2 2012:

2
Eduardo Piza Gomes de Mello é advogado, especialista em Direito Pú-
blico, diretor do Sindicato dos Advogados de São Paulo (Sasp), diretor do
Gadvs (Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual), membro do IEN

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
612
Leonardo Silveira Farías da Silva & Lucineide Orsolín
A violência crônica que atinge a comunidade LGBT (lés-
bicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) brasileira
aumenta as estatísticas de homicídios e de agressões fí-
sicas, psíquicas e morais. Uma realidade que mancha de
sangue e de impunidade a sociedade e o Estado brasilei-
ro, mas que não é capaz de sensibilizar nem de provocar
reações de entes públicos ou privados para mudar o res-
pectivo comportamento coletivo.
Os números dos precários levantamentos realizados
comprovam essas afirmações.
Em 2011, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do go-
verno federal fez um levantamento que registrou cerca de
6.809 denúncias de violações aos direitos humanos de
homossexuais, com 278 assassinatos relacionados à ho-
mofobia.

Frente a tais dados, indagamos: onde está o direito à vi-


da? À liberdade? À segurança pessoal? Pessoas são impedidas
de circular livremente em diversos espaços, em função de não
seguirem a denominada “heteronormatividade”.
Fernando Silva Teixeira Filho3 argumenta que:
[...] existe uma heteronormatividade constitutiva das re-
lações de gênero que nos molda os processos de subjeti-
vação. Todos nós fomos moldados por ela. É inexorável.
Assim, a heteronormatividade em nós acompanha nossas
práticas cotidianas e profissionais.

O modelo vigente é considerado heteronormativo. Sendo


assim, o mesmo é caracterizado pelo relacionamento entre gê-

(Instituto Edson Neris) e assessor jurídico do Grupo pela Vidda de São


Paulo.
3
Graduado em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP); mestre e
doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de SP
(PUC-SP); pós-doutorado em Psicologia nas Universidades de Lille 3,
França (2003) e Georgetown University (2010). Atualmente é professor
assistente doutor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador
da pós-graduação em Psicologia da UNESP de Assis, SP. Trabalha com
os seguintes temas: Educação e Diversidade Sexual; Adoção; Prevenção
às DST e HIV/Aids; Psicanálise e estudos queer; Minimização da homo-
fobia,Promoção da cidadania e Direitos humanos e sexuais.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
613
Homofobia

neros sexuais distintos, e qualquer expressão diferente desta


não se enquadra no paradigma atual. Nesta conjuntura a rela-
ção afetivo-sexual entre pessoas do mesmo sexo é compreen-
dida como uma patologia.
Essa rejeição dos sujeitos frente à relação homossexual
não é caracterizada como um simples não gostar. Observa-se a
discriminação para com aqueles que não se adéquam ao pa-
drão heteronormativo, isso se corporifica em atitudes denomi-
nadas “homofóbicas”.
Segundo o Relatório Sobre Violência Homofóbica no Bra-
sil, publicado no ano de 2011, a homofobia caracteriza-se “co-
mo sendo o medo, a aversão, ou a discriminação contra a ho-
mossexualidade ou os homossexuais, bem como o ódio, a hos-
tilidade ou a reprovação dos homossexuais”.
Borillo (2009) aponta a homofobia como fenômeno social e
manifestação do sexismo, traduzindo-se em hostilidade a com-
portamentos desviantes dos papéis sócio-sexuais estabeleci-
dos e guardando íntima relação com violência de gênero. Ins-
piradas pelo mesmo autor, Vianna e Diniz (2008) caracterizam
homofobia como o conjunto de atitudes de hostilidade à diver-
sidade sexual, que carregam consigo a exclusão de um outro
considerado inferior ou anormal (MOTT, 2000). Prado e Jun-
queira (2011) apontam que, paulatinamente, o termo homofo-
bia perde seu caráter meramente psicologizante e passa a ser
utilizado para descrever preconceitos, discriminações e demais
violências cometidas contra a comunidade LGBT por causa de
sua orientação sexual e/ou identidade de gênero.
De acordo com os posicionamentos supracitados, a atitu-
de homofóbica caracteriza-se por um ato violento, que pode ser
expresso por agressões físicas e/ou psicológicas.
Rambo4 (2012) afirma que a violência psicológica “é o tipo
menos reconhecido de violência, porque o “corpo” não fica

4
Artigo “O serviço social frente à questão da violência” apresentado e
publicado nos Anais da XVI Jornada Nacional da Educação, realizada de
20 a 23 de agosto de 2012 no Centro Universitário Franciscano – UNIFRA
– Santa Maria (RS).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
614
Leonardo Silveira Farías da Silva & Lucineide Orsolín
marcado e nenhum osso é fraturado”. É a pior forma de agres-
são, um sentimento ferido, uma vida anulada.
Assim, torna-se imprescindível ampliar nossas compre-
ensões acerca da violência, percebendo que esse fenômeno
perpassa as relações interpessoais e produz marcas comple-
xas, atingindo grande número de pessoas e configurando um
contexto violento, em que muitos direitos são desconsiderados
e a dignidade humana é desrespeitada.
Tal constatação aponta para o que Odalia (1991) denomi-
na de “democracia na violência”, posto que há uma massifica-
ção das relações violentas e as atitudes homofóbicas estão
presentes em todos os segmentos societários.
Mesmo centrando nossa análise ao contexto brasileiro,
estamos cientes de que as discussões sobre homofobia ultra-
passam as barreiras do território nacional. Há países em que a
homossexualidade é considerada um crime sendo duramente
punida, como por exemplo, o caso do Irã que criminaliza a re-
lação homoafetiva, onde um ser humano pode ser condenado à
morte.
Quase que diariamente informações são veiculadas, por
meio de sites de notícias e, principalmente, das redes sociais,
sobre homossexuais que foram assassinados, agredidos e/ou
humilhados. Estas atitudes vão a desencontro aos direitos de
liberdade assegurados pela Declaração Universal dos Diretos
Humanos.
Espera-se a efetivação urgente de medidas punitivas de
enfrentamento aos crimes de violência homofóbica, a luta que
se afirma atualmente é pela efetivação do PLC 122/06 que:
Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, o Decreto-
Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) e o
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolida-
ção das Leis do Trabalho – CLT) para definir os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de gênero,
sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Estabe-
lece as tipificações e delimita as responsabilidades do
ato e dos agentes.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
615
Homofobia

O presente Projeto de Lei Constitucional visa criminalizar


a violência homofóbica. Muito se debate acerca do PLC, os
contrários defendem que não poderão mais expressar publi-
camente que não concordam com a união homoafetiva. No en-
tanto, o que se pretende com a efetivação do PLC 122/06 é
acabar com os crimes de violência.
A liberdade de pensamento e de expressão é característi-
ca da sociedade humana. Dentro dessa diversidade, deve ser
considerada a posição das pessoas que discordam da relação
homossexual. Entretanto, tais pessoas têm direito a posicio-
nar-se contrariamente, desde que, esta posição seja defendida
no plano das ideias e da argumentação, sem atos agressivos e
violentos. Ou seja, agir de forma agressiva e ferir as pessoas
em função da orientação sexual é inadmissível.
A defesa do respeito e da convivência não-violenta entre
as pessoas de distintas orientações sexuais deve estar acom-
panhada da garantia de oportunidades para o exercício da ci-
dadania, com programas e políticas específicas.
De acordo com o IBGE:
Em 2011, somente 14,0% (383) dos órgãos gestores de po-
líticas de direitos humanos declararam ter programas pa-
ra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
(LGBT). Do total de municípios, independentemente da
existência de órgão de direitos humanos, 486 (8,7%) pos-
suíam programas ou ações para o enfrentamento da vio-
lência contra LGBT, 79 (1,4%) possuíam legislação sobre
discriminação LGBT, 99 (1,8%) sobre reconhecimento dos
direitos LGBT e 54 (1,0%) sobre reconhecimento do nome
social adotado por travestis e transexuais.

Os dados apresentados mostram que no Brasil já se esta-


beleceram diversas conquistas, como a Carteira de Nome Soci-
al para as pessoas travestis e transexuais, bem como a regu-
lamentação no que tange a união civil entre homossexuais, tais
medidas ainda não foram adotas por todos os Estados, mas
espera-se que em breve o País regulamente estas questões.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
616
Leonardo Silveira Farías da Silva & Lucineide Orsolín
Neste sentido, cabe ressaltar o Programa Nacional de Di-
reitos Humanos (PNDH). O presente Programa já conta com
três versões, na primeira versão, de 1996, já apresentava, de
forma mais discreta que se deveria:
Propor legislação proibindo todo tipo de discriminação,
com base em origem, raça, etnia, sexo, idade, credo reli-
gioso, convicção política ou orientação sexual5, e revo-
gando normas discriminatórias na legislação infra-
constitucional, de forma a reforçar e consolidar a proibi-
ção de práticas discriminatórias existente na legislação
constitucional.

Já em 2002, na segunda versão do Programa, deu-se am-


pliação às propostas relacionadas à população homossexual
colocando que se deveria:
Promover a coleta e a divulgação de informações estatís-
ticas sobre a situação sócio-demográfica dos GLTTB, as-
sim como pesquisas que tenham como objeto as situa-
ções de violência e discriminação praticadas em razão de
orientação sexual.
Implementar programas de prevenção e combate à vio-
lência contra os GLTTB, incluindo campanhas de esclare-
cimento e divulgação de informações relativas à legisla-
ção que garante seus direitos.
Apoiar programas de capacitação de profissionais de
educação, policiais, juízes e operadores do direto em ge-
ral para promover a compreensão e a consciência ética
sobre as diferenças individuais e a eliminação dos este-
reótipos depreciativos com relação aos GLTTB.
Inserir, nos programas de formação de agentes de segu-
rança pública e operadores do direito, o tema da livre ori-
entação sexual.
Apoiar a criação de instâncias especializadas de atendi-
mento a casos de discriminação e violência contra GLTTB
no Poder Judiciário, no Ministério Público e no sistema
de segurança pública.

5
Grifo meu.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
617
Homofobia

Estimular a formulação, implementação e avaliação de


políticas públicas para a promoção social e econômica da
comunidade GLTTB.
Incentivar programas de orientação familiar e escolar pa-
ra a resolução de conflitos relacionados à livre orientação
sexual, com o objetivo de prevenir atitudes hostis e vio-
lentas.
Estimular a inclusão, em programas de direitos humanos
estaduais e municipais, da defesa da livre orientação se-
xual e da cidadania dos GLTTB.
Promover campanha junto aos profissionais da saúde e
do direito para o esclarecimento de conceitos científicos
e éticos relacionados à comunidade GLTTB.
Promover a sensibilização dos profissionais de comunica-
ção para a questão dos direitos dos GLTTB.

E em 2010, foi lançada a terceira versão do Programa,


considerada pela população mais conservadora, como a mais
polêmica, visto que esta apresenta, entre outras ações, o apoio
à união civil entre pessoas do mesmo sexo e a garantia do di-
reito de adoção por casais homoafetivo.
Com base no exposto, verificamos que a questão dos Di-
reitos Humanos é, por isso, um tema complexo e desafiador. E,
quando esta questão está relacionada com as relações homoa-
fetivas, a complexidade é ampliada, uma vez que nossa socie-
dade, em pleno Século XXI, precisa evoluir muito até que pos-
samos nos considerar uma sociedade efetivamente solidária e
fraterna.
Cabe ressaltar também, que vivemos sob um regime de-
mocrático que tem como princípio a laicidade, que prima pela
não intervenção da religiosidade nas decisões do Estado.
Quando debatemos acerca da união de pessoas do mesmo se-
xo, há quem argumente que, em função de preceitos religiosos,
um casal homoafetivo não constitui uma unidade familiar,
principalmente pelo fato de não haver geração de descenden-
tes, e assim promover a perpetuação da espécie. No entanto,
deve-se entender que o que os homossexuais desejam é aces-
sar os mesmos direitos civis que um casal heterossexual acessa.
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
618
Leonardo Silveira Farías da Silva & Lucineide Orsolín
Neste sentido, é interessante lembrarmos que segundo a
Constituição Federal de 1988, em seu Art. 5º, inciso X, “são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas [...]”, ao analisarmos este artigo, fica a indagação:
onde fica a privacidade dos casais homossexuais? De certa
forma a sociedade está abertamente invadindo a intimidade
das pessoas, o que caracteriza uma violação constitucional,
bem como também caracteriza uma violação ao direito humano
presente no Art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos.
Outra questão interessante de ser articulada diz respeito
aos homossexuais enquanto sujeitos que, assim como os hete-
rossexuais, fazem parte do processo de produção e reprodução
capitalista. Assim como os heterossexuais, os homossexuais
produzem e consomem bens e serviços, pagam impostos, sen-
do assim não é justo, com esta parte da população, ter mais
deveres do que direitos.
Ao abordar a questão de direitos, Iasi (2013) diz que,
[...] no próprio caso do Código Civil reformado que segue
imaginando que a união conjugal tenha que se dar ne-
cessariamente entre um homem e uma mulher, ignorando
a união homoafetiva que segue existindo no real neste
campo cinzento que escapa da jurisdicialização, assim
como um dia foi a união estável.

Nesta perspectiva, percebemos a importância do debate


acerca da temática, visto que esta interfere essencialmente na
vida social dos sujeitos.
Ao discorrer sobre as atitudes humanas Bauman (2004)
faz uma reflexão acerca das relações interpessoais, e apresen-
ta um pensamento de Hannah Arendt que diz:
[...] Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós
mesmos apenas falando sobre isso, e no curso desse ato
aprendemos a ser humanos.
Esse humanitarismo a que se chega no discurso da ami-
zade era chamado pelos gregos de filantropia, o “amor do
homem”, já que se manifesta na presteza em comparti-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
619
Homofobia

lhar o mundo com outros homens. (ARENDT apud


BAUMAN, 2004)

Ao analisar o pensamento de Arendt percebemos que a


humanização não se faz presente nas relações interpessoais
estabelecidas na contemporaneidade, principalmente no to-
cante as vivenciadas no cenário homoafetivo. Um grande gru-
po de pessoas, infelizmente, não quer “compartilhar o mundo”
com os homossexuais.
Nesta perspectiva é preciso travar uma luta, não em seu
sentido literal, mas sim de ordem subjetiva, devemos lutar pa-
ra que esse pré-conceito seja eliminado, devemos lutar para
que as pessoas compartilhem o mundo, se tornem sujeitos
humanizados e que não haja a segregação, que só traz dor,
angústia e sofrimento.
Se faz mister recordar o pensamento de Iamamoto (2000)
quando ela diz que,
[...] o momento que vivemos é um momento pleno de de-
safios. Mais do que nunca é preciso ter coragem, é preci-
so ter esperanças para enfrentar o presente. É preciso re-
sistir e sonhar. É necessário alimentar os sonhos e con-
cretizá-los dia-a-dia no horizonte de novos tempos mais
humanos, mais justos, mais solidários. (IAMAMOTO,
2000, p. 16).

A autora reforça o pensamento de que é possível conquis-


tarmos uma vida digna, sem discriminação, sem medo, sem
mortes, sem violência. Para tanto, é necessário que a humani-
dade compreenda que não existe somente o homem ou a mu-
lher, o que existe é um SER HUMANO, e este deve ser respei-
tado independente da classe social, da cor da pele, da orienta-
ção sexual, independente de nada.
Maldonado (1997) diz que
[...] as dificuldades estão aí para serem superadas, que
os obstáculos fazem parte do caminho e que é preciso
manter a disposição para encontrar saídas. Os construto-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
620
Leonardo Silveira Farías da Silva & Lucineide Orsolín
res da paz conseguem manter a esperança porque acre-
ditam na força do amor.

Em 1971 John Lennon escreveu “Imagine”, uma música


que faz sucesso até os dias atuais, a letra desta música ex-
pressa exatamente o que nos propomos a refletir, bem como
vai de encontro ao pensamento da autora referenciada, isto é,
devemos ter a esperança de que um dia o mundo será como
um só, sem discriminações, sem violência, um mundo mais
humano e solidário, onde haja igualdade e respeito à todas as
formas de vida.

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In: Jornada Nacional de Educação 16ª: 2012: Santa Maria, RS – Edu-
cação: território de saberes. Anais. Santa Maria, 2012. Disponível
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BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.
Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zaha-
rEd., 2004
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) Bra-
sília : SEDH/PR,
BRASILIA. 2009
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de 2011. Brasilia, DF, Julho de 2012.
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sociedade de direitos. Pág. 49. – Brasília: Conselho Federal de Psico-
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IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na Contemporaneidade Traba-
lho e Formação Profissional, 3. Ed. São Paulo: Cortez, 2000.
IASI, M. L. O direito e a luta pela emancipação humana. In: BRITES,
C. M. FORTI, V. (orgs.) Direitos humanos e serviço social: polêmi-
cas, debates e embates. – 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
621
Homofobia

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bra Vieira. 3ª ed. – Lisboa – Serviço de Educação e Bolsas Fundação
Calouste Gulbenkian. 2003

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
DIREITOS HUMANOS : O RESPEITO AO
OUTRO EM SUA DIGNIDADE

Letícia Rieger Duarte


Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI),
Campus Santo Ângelo-RS. Graduada em Direito e Especialista em Direito
Civil e Processo Civil pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Mem-
bro do Grupo de pesquisa de Direito e Sociobiodiversidade - GPDS, da
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
(leticia.thomasi@hotmail.com).
Noli Bernardo Hahn
Professor do Departamento de Ciências Humanas da URI, Campus de San-
to Ângelo. Integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação Mes-
trado em Direito. (nolihahn@urisan.tche.br)

Resumo
Neste artigo, parte-se do pressuposto de que a dignidade é o fundamento dos direi-
tos humanos. Entende-se dignidade como valor moral subjetivo o que se mostra
como imperativo para respeitar o outro em sua alteridade. Sob este viés, os direitos
humanos podem ser concebidos como direitos universais, pois sendo a dignidade o
fundamento desses direitos, esta não se reduz e não se inscreve a partir e em de-
terminados contextos e culturas. O artigo divide-se em cinco partes. Na primeira
desenvolve-se a ideia da alteridade e o respeito ao diferente. Em um segundo mo-
mento, reflete-se como historicamente ocorreu a defesa de direitos para a humani-
dade. Em seguida, teoriza-se a dignidade inerente a cada ser humano que o torna
um ser de direitos. Em um quarto momento, visualiza-se o outro como um ser de
dignidade. Por fim, apresenta-se a ideia do respeito à dignidade inerente à subjetivi-
dade do outro. Trata-se de entender o outro como um ser de dignidade e, portanto,
de direitos para fazer valer os direitos humanos na sociedade.
Palavras-chaves: Alteridade. Dignidade. Direitos humanos. Respeito ao outro.

Abstract
This article presupposes dignity is the foundation of human rights. It is understood
dignity is a subjective moral value that shows it as imperative to respect others on
their alterity. Human rights can be designed as universal rights under this concep-
tion, inasmuch as a dignity the foundation of this rights, it is not reduced or inscribed
from a determined cultural context. This article is divided in five parts. First it is de-
veloped idea of alteriry and respect to the difference. Second, it is thought how
happened human rights defense on history. Third, bibliography about dignity every-
one owns that become each one in a dignity human been. Finely, it is shown the idea
of respect to the other dignity. Seeking understand others as dignity, and so, people
of rights to make human rights become truth.
Keywords: alterity, dignity, human rights, respect to each other.
624
Letícia Rieger Duarte & Noli Bernardo Hahn

Se a noção de direitos humanos nasce em um


contexto de transformações sociais, [...] não
podemos também nos furtar ao trabalho emi-
nentemente filosófico de buscar as bases raci-
onais da afirmação de direitos universais para
toda a espécie humana.1

INTRODUÇÃO
A Segunda Guerra Mundial é símbolo de diversas atroci-
dades que, após declarado seu fim, consolidaram-se direitos
inerentes a todos os seres humanos. São direitos baseados no
pressuposto de que todo ser humano tem valor moral2.
Entendendo todo ser humano como portador de dignida-
de, identifica-se a esfera do respeito como potencializadora de
relações mais humanas, já que todo ser humano, por ter um
valor moral, é diferente na sua subjetividade que transcende
para suas ações diante do mundo. O valor moral é, justamente,
incalculável, portanto não há como igualar seres subjetivos.
Na tentativa de explicitar esse tema, o artigo compõe-se
de cinco partes, quais sejam: o respeito ético ao outro; a Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) como um passo
para a consolidação de direitos de todos; o tema da dignidade
como fundamento da DUDH; o outro e sua dignidade e o res-
peito à dignidade que o outro possui. De forma geral, o texto
trata da fundamentação filosófica da existência de direitos co-
muns a todos, explicitados na DUDH.

O RESPEITO ÉTICO AO OUTRO


A construção de uma consciência ética não é individual,
mas pertence a uma história vivida por determinada sociedade
em um determinado lugar. Falar em eticidade implica uma éti-
ca específica vivenciada numa determinada cultura. Dessa es-
1
SECCO, Márcio. Introdução. In: Fundamentação filosófica dos direitos
humanos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2010, p. 18.
2
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e
outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2004.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
625
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

pecificidade ética situada numa cultura surgem problemas na


designação de justiça.
A definição de ser humano dentro de um espaço histórico
não é algo estático e pré-definido, mas uma relação dinâmica
que vai sendo construída na medida em que se estabelecem
leis simbólicas referentes à convivência. De acordo com Ruiz,
Não existe um caminho universal para ser pessoa, não há
um padrão único para se viver a existência humana nem
existe um único modo de realizar a dignidade humana, a
alteridade se abre à pluralidade de formas de existência
humana. O humano tem de ser reinventado a cada dia e
em cada sujeito, porém existe um limite e uma referência
para a prática humana; esse limite é a destruição do
mundo, a degradação ou aniquilamento da vida e a ne-
gação do outro ser humano.3

O limite colocado pelo autor diz respeito ao outro: nature-


za, vida, ser humano. A particularidade de uma determinada
cultura não pode ficar desvinculada da consciência da diferen-
ça e do respeito ético ao outro. O desenvolvimento da indivi-
dualidade deve contribuir para a afirmação do Eu, seja coletivo
ou não, para, assim, poder conviver com a outra pessoa, ou
cultura vivenciada na outra pessoa.
Sidekum enfatiza a importância de “observarmos que a
ética, sendo normativa da práxis humana, não pode ser enten-
dida como uma descrição do modo de agir dos homens em
épocas e sociedades diferentes”4, portanto, ultrapassa o limite
de tempo e espaço das diferentes culturas. A ética, nesse sen-
tido, é uma só no sentido de ter alcance e sentido universais.
Para Belato, “é necessário fazer experiências que possam
encontrar o Outro como outro”5. Trata-se de um encontro ético

3
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Autonomia e alteridade, possibilidades e
fragilidades da ética como prática de subjetivação. In: PIZZI, Jovino;
PIRES, Cecília (orgs.). Desafios éticos e políticos da cidadania: ensaios
de Ética e Filosofia Política II. Ijuí: Editora Unijuí, 2006, p. 28.
4
SIDEKUM, Antonio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. São Leo-
poldo: Editora Unisinos, 2002, p. 21.
5
BELATO, Dinarte. A Democratização dos Direitos dos Povos. IV
FÓRUM SOCIAL MISSÕES: Todos os direitos para todos e todas. Univer-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
626
Letícia Rieger Duarte & Noli Bernardo Hahn

na medida em que se respeita o outro em sua outridade. Eis aí


uma necessidade atual, encontrar o outro e respeitá-lo como
outro.
Como bem explana Costa,
[...] ao contrário do ódio, da rivalidade explícita ou do te-
mor diante do adversário que ameaça privar-nos do que
julgamos fundamental em nossas vidas, o alheamento
consiste numa atitude de distanciamento, na qual a hos-
tilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela
desqualificação do sujeito como ser moral. Desqualificar
moralmente o outro significa não vê-lo como um agente
autônomo e criador potencial de normas éticas, ou como
um parceiro na obediência a leis partilhadas e consenti-
das, ou, por fim, como alguém que deve ser respeitado
em sua integridade física e moral.6

O olhar que não se volta para o outro enquanto outro, não


o acolhe, mas o trata com hostilidade e não o insere na dinâmi-
ca social vivida. Na relação com outrem, o eu se depara com a
fala do outro que se dirige ao eu em diferentes contextos e
momentos. Essa relação deve ser vivida com o diferente, o es-
tranho à realidade conhecida, para, assim, construir novas
ideias até então não concebidas.
Na contemporaneidade, vive-se constantemente o encon-
tro com o outro dentro da mesma sociedade. O sistema capita-
lista, na medida em que privilegia quem possui capital em de-
trimento de quem não tem, forma excluídos7 do contexto con-
sumista. Essa faixa de pessoas que vive em situação de pobre-

sidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI - Cam-


pus de Santo Ângelo. Santo Ângelo, RS, 29 de março de 2012 (Palestra
não publicada).
6
COSTA, Jurandir F. A ética democrática e seus inimigos - o lado privado
da violência pública. In: NASCIMENTO, Elimar P. (org.). Ética. Brasília-
Rio de Janeiro, Codeplan-Garamond, 1997, p. 69.
7
De um ponto de vista, o sistema capitalista não forma excluídos, mas
marginalizados do centro do sistema. Os bolsões de pobreza fazem par-
te do sistema na medida em que ele só sobrevive frente à desigualdade.
Marx já chamava os desfavorecidos desse sistema de “massa de
manobra”.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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627
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

za identifica o indivíduo de classe média e alta como Outro e


vice-versa. Diariamente diretores e funcionários de limpeza da
mesma empresa passam pelos corredores internos e não se
encontram, não se permitem encontrar a outridade no outro.
Com o desenvolvimento da globalização econômica e po-
lítica ocorre, ao mesmo tempo, a emergência de uma
consciência da exclusão social e do clamor para uma par-
ticipação real e efetiva na mesa das negociações de to-
dos nas mesmas e iguais condições.8

A participação no contexto e nas decisões sociais é a efe-


tivação desse respeito ao outro. Um respeito ético de busca de
leis que garantam a igualdade de direitos, que contribuam pa-
ra que a pessoa humana seja respeitada por aquilo que se é e
não pelo papel social que ocupa ou pelo grupo ao qual pertence.
Ao longo da história, muitas foram as manifestações e
práticas de desrespeito e tentativa de dominação sem garantia
de direitos a todos os seres humanos. Hoje se vive um período
em que esses direitos foram proclamados e ainda buscam ser
completamente efetivados.

UM PASSO PARA A CONSOLIDAÇÃO DE DIREITOS DE TODOS


No período pós-guerra surge a urgência de se estabelecer
direitos comuns a todos os seres humanos partindo da certeza
de que todas as pessoas, independente de suas diferenças,
possuem dignidade.
Ao longo da história da humanidade, muitas foram as
formas de se estabelecer direitos. Entre elas, podemos citar o
Código de Hamurábi, no século XVIII a.C., e as ideias de Marx
que se caracterizaram pela crítica à burguesia e em busca da
efetivação de direitos, especialmente sociais, para os oprimi-
dos9. Além disso, vale destacar que a efetivação de direitos
8
SIDEKUM, Antonio. Op. Cit., p. 195.
9
COSTA, Marli M. M. da; PORTO, Rosane, T. C. Novas perspectivas e
desafios para promover a educação em direitos humanos: contributo es-
sencial para a redução das desigualdades sociais. In: SILVA, Jacqueline

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
628
Letícia Rieger Duarte & Noli Bernardo Hahn

tem se constituído pela necessidade e luta das maiorias opri-


midas em detrimento dos privilégios da elite dominante.
As diversas atrocidades humanas que ocorreram no sécu-
lo XX e tiveram seu ápice na II Guerra Mundial10 levaram à
“criação da Organização das Nações Unidas11, órgão internaci-
onal voltado à promoção da paz e à conciliação dos interesses
e conflitos entre os diferentes países e povos”12, em 1945.
Em 1948, após dois anos de estudo e estruturação, nas-
ceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos13 com o intui-
to de fortalecer o respeito aos direitos de cada ser humano.
Os direitos humanos, muito mais que uma declaração de
princípios, são uma cosmovisão. A adoção da perspectiva
dos direitos humanos implica num modo especial de ver,
entender, agir e reagir diante do mundo. Um entendi-
mento que tem como centro a noção de pessoa, em toda
sua inteireza e irredutibilidade.14

Trata-se de um meio de valorizar a pessoa humana em


seus direitos inerentes. De certa forma, essa Declaração é uma
releitura, necessária à época, de outras que já vinham sendo
delineadas ao longo do tempo, como é o exemplo da Carta
Magna de 1215 na Inglaterra, a Constituição Americana de
1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
178915. Ao mesmo tempo, a DUDH é uma tentativa de cessar a

Silva da; LOPES, Maria Isabel (orgs.). Disciplina: relações de poder na


escola. Lajeado: Ed. UNIVATES, 2009, p. 73-100.
10
1939-1945
11
ONU
12
ARAÚJO, Ulisses F. AQUINO, Júlio Groppa. Os direitos humanos na
sala de aula: a ética como tema transversal. São Paulo: Moderna, 2001,
p. 21-22.
13
DUDH, resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em
10 de dezembro de 1948.
14
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Cidadania e Direitos Humanos: um
sentido para a educação. Passo Fundo, RS: CAPEC - Pater Editora, [s.a.],
p. 9.
15
KARASIN, Samuel. Sistema de justiça e os Direitos Humanos. In: PINI,
Francisca Rodrigues de Oliveira; MORAES, Célio Vanderlei (orgs.). Edu-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
629
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

concepção de degradação humana que se instaurou após a


Segunda Guerra Mundial.
De acordo com Fischmann,
De fato, a elaboração de direitos com sentido universal
vinha desde a Revolução Francesa, mas a Declaração
Universal dos Direitos Humanos foi elaborada e procla-
mada como retorno a uma pauta da humanidade que fora
interrompida pela ruptura que o totalitarismo nazista re-
presentou. Dessa forma, a Declaração Universal significa
o momento fundador da reconstrução dos direitos huma-
nos.16

Mais do que proclamar direitos, a DUDH tinha por objeti-


vo findar as atrocidades e a lógica de dominação de uma raça
sobre outra que tinha se instaurado com o nazismo instaurador
do medo no período anterior. Porém, a declaração em si não foi
e não é o suficiente para a efetivação desses valores.
Até hoje ainda vemos várias lutas por efetivação de direi-
tos. Aragão afirma que
A luta por Direitos Humanos traz em seu bojo o processo
de humanizar-se, de reconhecer que a condição de ser
humano precisa ser respeitada, favorecendo a proteção e
afirmação de direitos para todos aqueles que se veem em
situação degradante diante de sua humanidade.17

O ser humano, em busca de sua humanização, isto é, dos


direitos inerentes ao seu valor moral, cria meios de manifestar
a falta desses direitos e reivindicá-los. Somente há leis de pro-

cação, Participação Política e Direitos Humanos. São Paulo: Editora e


Livraria Instituto Paulo Freire, 2011, p. 155-162.
16
FISCHMANN, Roseli. Constituição Brasileira, Direitos Humanos e Edu-
cação. In: Revista Brasileira de Educação. v. 14. n. 40. jan/abr 2009, p.
157.
17
ARAGÃO, Daniel Maurício Cavalcanti de. Subjetividade do Outro,
processo de libertação e construção de direitos no contexto latino-
americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Direitos Humanos e
Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2004, p. 223.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
630
Letícia Rieger Duarte & Noli Bernardo Hahn

teção a grupos humanos quando esses se manifestam em bus-


ca da concretização de sua humanidade.
Uma lei só entra em vigor na medida em que é internali-
zada pela população de abrangência seja pela cultura ou pela
repressão. Isso não é diferente com os direitos humanos, sua
efetivação depende da criação de uma cultura desses direitos.
Para Piovesan,
O “Direito Internacional dos Direitos Humanos” surge,
assim, em meados do século XX, em decorrência da Se-
gunda Guerra Mundial, e seu desenvolvimento pode ser
atribuído às monstruosas violações de direitos humanos
da era Hitler e à crença de que parte dessas violações
poderia ser prevenida, se um efetivo sistema de proteção
internacional de direitos humanos existisse.18

Trata-se de uma medida para que se assegure os direitos


declarados na DUDH de 1948. De acordo com Sturza e Rosa, “a
Declaração Universal das Nações Unidas tem por objetivo
enaltecer o valor e as formas de proteção quanto ao tratamento
que deve ser dispensado a todo ser humano [...]”19.
Cada país possui leis próprias, porém, todas elas devem
ser atreladas às prerrogativas dos direitos humanos, isto é, “a
legitimidade de uma ordem jurídica pode ser averiguada na
medida em que ela garanta e respeite tais direitos”20 e, caso
isso não ocorra em algum lugar, pode-se recorrer a esse órgão
internacional de proteção aos direitos humanos, o Direito In-
ternacional dos Direitos Humanos.

18
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Sarai-
va, 2009, p. 4.
19
STURZA, Janaína Machado; ROSA, Marizélia Peglow da. A educação
para pessoas com necessidades educativas especiais no Brasil: reflexos
trazidos pela declaração universal dos direitos humanos e pela emenda
constitucional 45. In: GORCZEVSKI, Clovis (org.). Direitos humanos,
educação e sociedade. Porto Alegre: Gráfica UFRGS, 2009, p. 116.
20
PINZANI, Alessandro. A cara de Janus dos direitos humanos: os direitos
humanos entre política e moral. In: LUNARDI, Giovani; SECCO, Márcio
(orgs.). Fundamentação filosófica dos direitos humanos. Florianópolis:
Editora da UFSC, 2010, p. 44.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
631
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

De acordo com Colpani,


[...] a positivação dos direitos humanos não é suficiente,
faz-se necessária a efetivação dos mesmos. A interpreta-
ção ocupa um papel de muita importância no trabalho de
efetivação dos direitos humanos, pois trabalha justamen-
te com a questão dos fundamentos; contudo, deve ser
uma interpretação voltada para as diversas realidades, e
não para os interesses dos países ricos ou de grandes
corporações do mercado.21

É nesse viés que algumas nações dão margem à não efe-


tivação dos Direitos Humanos. Entendido como direitos formu-
lados para poucos, eles não abrangem a população empobre-
cida, ou à margem das decisões do Estado e não cumprem seu
principal papel, de garantir direitos a todas as pessoas.
Para Araújo e Aquino,

[...] a construção de relações sociais mais justas, solidá-


rias e democráticas, que respeitem as diferenças físicas,
psíquicas, ideológicas, culturais e socioeconômicas de
seus membros, não passa pelo “resgate” de valores pas-
sados tradicionais, pelas razões já enunciadas. Outros-
sim, ela passa necessariamente pela incorporação, nas
práticas cotidianas, de princípios e valores já conhecidos
mas que nunca foram de fato consolidados por nenhuma
cultura, como os que foram consagrados em 1948 na De-
claração Universal dos Direitos Humano.22

Para que se efetive a prática dos direitos fundamentais


dos seres humanos, presentes em parte importante na DUDH,
é necessário que o meio cultural agregue esses direitos à for-
mação humana.

21
COLPANI, Clóvis Lopes. Teologia da Libertação e Teoria dos Direitos
Humanos. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Direitos Humanos e
Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2004, p. 193.
22
ARAÚJO, Ulisses F. AQUINO, Júlio Groppa. Op. Cit., p. 11.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
632
Letícia Rieger Duarte & Noli Bernardo Hahn

Como comenta Belato, “100 milhões de pessoas mortas


produziram um impacto coletivo”23. Foi necessário (!) que ocor-
resse tamanho impacto para que se pudesse delinear direitos
de todos. Contudo, apesar de ter sido um importante marco
para a consolidação de direitos garantidos a todos, não se po-
de atribuir a efetivação de uma norma a sua legitimação. Ain-
da depois da DUDH, e até hoje, muitas pessoas não possuem
os Direitos Humanos garantidos.
Na história da humanidade nunca os Direitos Humanos
foram respeitados e implementados socialmente só por-
que tinham sido previamente afirmados por uma Decla-
ração. O processo de conquista dos Direitos Humanos es-
tá intimamente relacionado com as lutas de libertação de
determinados grupos sociais que vivenciam na pele a
violação de seus direitos.24

A constituição efetiva de direitos tem sido construída


através da luta de grupos minoritários que buscam o respeito,
o acesso e a participação. A efetivação não é dado através da
lei, mas de quem luta para que ela vigore.
Para Pinzani, uma das ideias essenciais dos Direitos Hu-
manos é “o fato de eles serem direitos que pertencem aos se-
res humanos como tais, independentemente de qualquer cál-
culo ou raciocínio prudencial”25. Busca-se a efetivação de uma
realidade em que todos e todas sejam reconhecidos/as em
seus direitos. Constrói-se aí, no fundamento da DUDH, o prin-
cípio da dignidade humana.

A DIGNIDADE COMO FUNDAMENTO DOS DIREITOS HUMANOS


Ao falar em direitos fundamentais e, mais precisamente,
em DUDH, fica inerente ao assunto o porquê a tentativa de as-
segurar direitos a todos e todas e o que corrobora a afirmação

23
BELATO, Dinarte. Op. Cit.
24
CANDAU, Vera Maria et al. Oficinas pedagógicas de direitos humanos.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 99.
25
PINZANI, Alessandro. Op. Cit., p. 38.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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633
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

de que todos e todas possuem direitos, independente da posi-


ção social, independente dos atos infracionais praticados em
uma determinada sociedade, entre outras tantas contingências
e diversidades.
O ser humano existe para além de suas ações. Ele é, em
si, um ser de valor moral. Por isso mesmo, não é passível de ser
usado como meio, ainda que muitas vezes suas ações não con-
digam com essa afirmação. Mesmo quando há tentativa de ne-
gar o direito de ser fim em si mesmo, usando-o como meio, o
ser humano não deixa de ser um fim em si mesmo porque ele
possui em sua essência humana a dignidade. Para Kant,
[...] alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem
simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor in-
terno, e isso quer dizer dignidade [...].
Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de
um ser racional um fim em si mesmo. [...] a moralidade e
a humanidade enquanto capaz de moralidade são as úni-
cas coisas providas de dignidade.
[...] conhecer como dignidade o valor de uma tal disposi-
ção de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o
preço, com o qual não pode se pôr em confronto nem em
cálculo comparativo sem de um modo ou de outro ferir a
sua santidade.26

Nesse sentido, falar em dignidade é falar no valor moral


inerente a cada ser humano. Sendo assim, adentramos nova-
mente o campo ético do respeito ao outro, isto é, todas as pes-
soas devem ser respeitadas em sua cultura e em sua indivi-
dualidade. Isso exclui qualquer violência possível e abre mar-
gem a um novo sentido às relações humanas.
De acordo com Kant,
[...] o homem não é uma coisa; não é, portanto, um objeto
passível de ser utilizado como simples meio, mas, pelo
contrário, deve ser considerado sempre em todas as suas
ações como fim em si mesmo. Não posso, pois, dispor do

26
KANT, Immanuel. Op. Cit., 2004, p. 65-66.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
634
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homem em minha pessoa para o mutilar, degradar ou


matar.27

Dessa forma, não se justifica a morte de pessoas por uma


causa, pois a vida humana não deve ser um meio para se atin-
gir determinado objetivo. O fim em si mesmo, deve ser o pró-
prio ser humano. Poderíamos citar as mortes em guerra justifi-
cadas pelo “bem” de uma nação, ou melhor, para colaborar
com os interesses de quem está no poder do Estado.
Para Lunardi, “[...] porque o ser humano é sujeito da ra-
zão que ele tem dignidade e não um preço, seu valor é absolu-
to e não relativo como tudo o que tem um preço”28. A dignidade
humana consiste em algo próprio que diz respeito à condição
moral que cada ser humano tem em si independente de toda e
qualquer situação que ocorra. Para isso, Kant delinea a capaci-
dade humana de assumir seu valor moral entendendo ser essa
uma obrigação humana para ser consigo e com o outro no
mundo. Diz ele: “[...] age como se a máxima da tua ação deves-
se se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza”29 e
complementa, “[...] age de tal maneira que possas usar a hu-
manidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simples-
mente como meio”30.
O ser humano, enquanto fim em si mesmo, confronta-se
com o respeito ético frente à dignidade de outrem. Trata-se de
aprender a conviver com a pessoa como um fim e não como um
meio para a minha felicidade.
A pessoa humana é um ser digno de respeito. Os outros
elementos da natureza ou objetos construídos
[...] têm, contudo, se são seres irracionais, um valor me-
ramente relativo, como meios, e por isso denominam-se

27
KANT, Immanuel. Op. Cit., p. 60.
28
LUNARDI, Giovani. A ética dos direitos humanos. In: LUNARDI, Giovani;
SECCO, Márcio (orgs.). Fundamentação filosófica dos direitos
humanos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2010, p. 108.
29
KANT, Immanuel. Op. Cit., p. 52.
30
KANT, Immanuel. Op. Cit., p. 59.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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635
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se


pessoas, porque a natureza os distingue já como fins em
si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empre-
gado como simples meio e que, portanto, nessa medida,
limita todo arbítrio (e é um objeto de respeito).31

Daí que, para falar em dignidade humana tenha que se


compreender o respeito ético do eu com outrem. Somente na
medida em que se compreende a dimensão de que todo ser
humano, inclusive aquele que é completamente outro para o
eu, possui dignidade, pode-se pensar em seus direitos funda-
mentais e com ele/a lutar para que vigorem seus direitos.

O OUTRO E SUA DIGNIDADE


O respeito ético à pessoa de outrem se constrói desde a in-
fância. É na relação com o outro que essa aprendizagem acon-
tece. A subjetividade humana se constrói através do olhar do
outro e do olhar do eu ao outro, o que viabiliza a comunicação.
O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um
imperativo ético e não um favor que podemos ou não
conceder uns aos outros. [...] Saber que devo respeito à
autonomia e à identidade do educando exige de mim
uma prática em tudo coerente com este saber.32

A dignidade exige essa postura ética diante da pessoa de


outrem. Trata-se de um valor moral único em que não há a
construção de leis de imposição desse respeito para que se
firme seu valor, mas o valor existe e se alguma lei a seu respei-
to é construída, como é o caso da DUDH, a declaração cumpre
apenas o papel de tornar a dignidade pública.
A dignidade é inerente à condição humana. É na pessoa
do outro que se sente a existência humana em sua dignidade.
Nessa compreensão, afirma Sidekum:

31
KANT, Immanuel. Op. Cit., p. 59.
32
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 66-67.

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636
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[...] a minha subjetividade realiza-se concretamente na


história através da relação com o outro, que se manifesta
através de seu rosto, cujo olhar é uma constante interpe-
lação de justiça: “Tu não matarás”. A subjetividade acon-
tece na existência humana através da relação intersubje-
tiva e na exigência infinita de justiça para com o outro.33

É no rosto do outro que se manifesta a interpelação de


justiça. Somente na medida em que se percebe a outridade,
entende-se a condição ética de uma relação autêntica. O outro
deixa de ser uma ameaça e passa a ser um ser a quem o eu se
comunica e se deixa comunicar.
Para Rubio, “a vida não se dá espontaneamente, também
se nos impõe como uma obrigação e como uma responsabili-
dade para conservá-la e desenvolvê-la [...]. A própria necessi-
dade de viver provoca a responsabilidade para que a vida con-
tinue”34. Trata-se do cuidado com a vida que impulsiona a cria-
ção de direitos de proteção.
O outro, antes de ser reconhecido como ser comunicante,
é aquele que diverge das opiniões do eu, de suas crenças, de
seus valores. É aquele que desacomoda da condição de ser-no-
mundo. O outro é o diferente. Segundo Balestreri,
[...] uma verdadeira sociedade democrática faz mais do
que aceitar a diferença: celebra-a com verdadeira admi-
ração e reverência, sabendo que ela é a responsável pela
maturidade, nos planos pessoal e coletivo, pela riqueza
econômica e estética e também pela graça da vida!35

Envolver a diferença no plano do respeito condiz com o


entendimento de que em uma sociedade que se diga democrá-
tica, é necessário garantir os direitos inclusive daqueles a
quem se encontra como diferente, como outro. É nesse encon-
33
SIDEKUM, Antonio. Op. Cit., p. 149.
34
RUBIO, David Sánchez. Direitos Humanos, Ética da Vida Humana e Tra-
balho Vivo. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Direitos Humanos e
Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2004, p. 157.
35
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Op. Cit., p. 79.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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637
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

tro em que ocorre o diálogo com o diferente, que deve ser ético,
na medida em que há respeito.
A relação eu-outro não se dá sem fundamentos sólidos.
Estes são dois sujeitos comunicantes que partem de seu uni-
verso vivido para argumentar. Nesse sentido, Rubio afirma que
“[...] a obrigação moral de argumentar fundamenta-se no reco-
nhecimento do outro como um sujeito autônomo e de igual
dignidade, ato que se leva a cabo pela racionalidade ética-
originária”36.
Dois sujeitos comunicantes somente se respeitam e, ao
mesmo tempo, crescem através do diálogo, se a relação é au-
tenticamente vivida na alteridade. A condição da alteridade é
respeitar e deixar-se respeitar, portar direitos e não negar o
direito ao/à diferente. “Temos na alteridade um critério de dis-
cernimento ético a partir do qual deve pautar-se toda prática
humana”37.

O RESPEITO À DIGNIDADE DO OUTRO


Como aprender a respeitar a condição existencial do ou-
tro sem primeiro conhecer o eu que habita no próprio ser? Co-
mo construir sua subjetividade pautando-se na existência do
outro se não o vê como fim em si mesmo, como ser subjetivo
que também se forma e se alicerça em sua própria existência?
Levinas compreende a subjetividade como vivência da
interioridade. A subjetividade é essencialmente uma ex-
periência e consciência do gozo interior, e ela se caracte-
riza pela unicidade. O eu quer viver. E viver na subjetivi-
dade significa experienciar a separação. A separação
significa que a subjetividade plenifica-se no egoísmo e no
ateísmo. É, antes de tudo, a experiência da solidão inco-
mensurável da criatura face ao ato criador, a vivência da
separação do criador do mundo e do outro. Entrementes,
na subjetividade, essa separação supera-se pela trans-

36
RUBIO, David Sánchez. Op. Cit., p. 158.
37
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Op. Cit., p. 27-28.

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638
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cendência e pela infinita relação com a absoluta alterida-


de do outro.38

Deparar-se com a essência própria é o primeiro passo pa-


ra chegar ao outro. A solidão aí colocada é o reconhecimento
de que o eu é completamente outro a qualquer pessoa que o
interpele. Esse é um caminho de distanciamento da subjetivi-
dade alheia na tentativa da não dominação, na medida em que
a relação com uma pessoa torna-se concisa, pode haver a ten-
tativa de apreender a pessoa, não reconhecê-la enquanto outro
na medida em que se acredita compreendê-la como um todo.
Algo que já ficou evidente ser impossível.
A apreensão do outro é uma ilusão perigosa na medida
em que pode levar o ser humano a cometer catástrofes na ten-
tativa de dominação que será frustrada. O ser humano não é
possível de compreensão. Na tentativa de tentar controlar se-
res humanos, muitas foram e ainda são as atrocidades cometi-
das pelo próprio ser humano. Atrocidades que conseguem des-
truir o outro, mas nunca possuí-lo.
As últimas décadas do século XX confirmaram que vive-
mos uma era dos extremos. Esses extremos mergulham o
ser humano de maneira desesperada e indefesa numa era
de incertezas lúgubres no que se refere à defesa da de-
mocracia e dos direitos humanos. Assistimos ao mergu-
lho da humanidade toda em totalitarismos extremados e
fundamentalismos sanguinários. Observamos que a hu-
manidade nunca foi coetânea de tanto progresso científi-
co e tecnológico quanto nesse século. Somos contempo-
râneos da maioria absoluta dos cientistas de toda a histó-
ria. O século XX experimentou a mais profunda tragédia
da concepção do progresso. A tecnologia alcançou domí-
nios sobre a natureza que anteriormente pareciam utopi-
as e algo jamais imaginável pelo ser humano. O poder
que o ser humano assume como traço de sua personali-
dade torna-se um poder que foge das raias do equilíbrio e
da harmonia da relação da vida humana com a natureza

38
SIDEKUM, Antonio. Op. Cit., p. 150-151.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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639
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

da qual faz parte. Em nome do progresso, a natureza


passa a ser violentada, espoliada e massacrada, tornan-
do-se, assim, um mundo hostil ao próprio ser humano.
Essa mesma concepção do poder violento da biotec-
nocultura expande-se sob as mais diversas formas de
ideologias totalitárias, que grassam nas concepções polí-
ticas em todo o mundo, defendendo a verdade absoluta,
mesmo que essa venha a massacrar multidões de seres
humanos sob o ferro incandescente da destruição, pela
morte e pela negação absoluta e irrestrita dos direitos
humanos mais fundamentais.39

É diante de tamanha contradição que surge a indignação


frente aos direitos dos seres humanos. Onde está a capacidade
de assombrar-se diante das injustiças sociais? Onde está a
indignação diante do massacre humano, da perda de seus di-
reitos fundamentais, da não consideração de sua dignidade?
A capacidade de escandalizar-se diante de uma situação
de injustiça se esvai no ser humano a cada vez que ocorre ou-
tra barbárie. Está se naturalizando a violência e a injustiça
frente à vida humana como se fosse algo pré-dado, ou uma
consequência justa na vida de determinados seres humanos.
Diante de um ato de violência muitas pessoas procuram
não se envolver a fim de não sair da situação cômoda em que
se encontram. Não podemos pensar em um futuro diferente se
não pensarmos em ensinar novos modos de ser gente às nos-
sas crianças e, “lamentavelmente, nós, adultos, só podemos
oferecer o que somos. Se não participarmos, será difícil esperar
que os jovens participem”40.
Ao se referir à efetivação de direitos até agora não vigo-
rados, está se pondo em questão uma cultura dos direitos hu-
manos. Não basta ter uma DUDH sem que todas as pessoas
compreendam-na como um avanço, como algo de valor e real-
mente satisfatório a ser cumprido. Como pondera Viola:

39
SIDEKUM, Antonio. Op. Cit., p. 181-182.
40
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Op. Cit., p. 27.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
640
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Mais do que no século XX, e ao contrário dele, não será


suficiente a ação do movimento social, mas será preciso
construir uma cultura em defesa da vida. Uma consciên-
cia que, defendendo a liberdade, entenda que ela só po-
de ser preservada nos limites da igualdade. Uma cultura
política de defesa dos direitos humanos e da democracia
baseada na participação.41

Isso só ocorrerá se houver consciência da necessidade de


direitos fundamentais e se todas as pessoas reconhecerem o
outro como um ser de dignidade. Trata-se de uma mudança de
postura frente o dado da diferença, da estranheza.
O que inquieta diante de tudo isso, é como ir construindo
essa mudança de postura frente ao mundo. E a pergunta que
perpassa é: como formar uma cultura dos direitos humanos
sem pensar em uma educação para os direitos humanos? Tal-
vez esse seja o maior desafio do século.
De acordo com Ruiz,
Existe uma relatividade no mundo dos valores e na práti-
ca humana, mas essa relatividade diz respeito à relação
intersubjetiva e ao pluralismo possível em que se dão os
diversos estilos de vida. [...] A alteridade relativiza o rela-
tivismo, contudo também confirma que toda prática hu-
mana é historicamente relativa a seu contexto social e
cultural de valores.42

Não há como construir um novo modo de relacionar-se com


o outro senão através da educação. Construir uma nova cultura
de valores, fundados na dignidade humana como princípio e o
respeito ético a esse outro, é algo que não se dá no vazio, mas na
educação das crianças e jovens através das gerações.
Para isso, é necessário iniciar uma cultura colaborativa
entre aqueles que acreditam que essa é uma utopia possível. É

41
VIOLA, Solon. Prefácio. In: LUNARDI, Giovani; SECCO, Márcio (orgs.).
Fundamentação filosófica dos direitos humanos. Florianópolis: Editora
da UFSC, 2010, p. 15.
42
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Op. Cit., p. 29.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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641
Direitos humanos: o respeito ao outro em sua dignidade

necessário participar, envolver-se, adentrar a dinâmica do res-


peito ético e ser mudança em seu contexto.
Dizendo de outra forma: há algo errado, muito errado, se
nossos filhos e alunos estão saindo de nossos lares e es-
colas descomprometidos com a comunidade, alienados,
voltados exclusivamente a objetivos identificados com o
consumo, desinteressados de participar de ações volun-
tárias.43

A educação não se dá no vazio. É nas práticas cotidianas


que a criança se educa em sociedade. Quando familiares, pro-
fessores/as e demais educadores assumirem esse compromisso
com a educação para os direitos humanos, aí sim, estaremos
falando em uma nova cultura, uma cultura dos direitos humanos.

CONCLUSÃO
O fundamento básico dos Direitos Humanos é de que to-
dos e todas possuem dignidade. Assim, cada pessoa possui
esse valor moral e inquestionável inerente em si que lhe garan-
te direitos. Os direitos humanos são uma luta histórica de di-
reito à alteridade ainda não vivenciados concretamente por
todos/as.
A luta por direitos só ocorre em uma sociedade que acre-
dita que esses direitos são reais e necessários. A educação
para os direitos humanos, nesse contexto, é tão necessária
quanto a proclamação de direitos, pois a efetivação deles de-
pende da ação de todos e todas e não apenas de sua promul-
gação.

REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Daniel Maurício Cavalcanti de. Subjetividade do Outro,
processo de libertação e construção de direitos no contexto latino-
americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Direitos Humanos

43
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Op. Cit., p. 27.

Programa de Pós-graduação em Direito


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para pessoas com necessidades educativas especiais no Brasil: re-
flexos trazidos pela declaração universal dos direitos humanos e
pela emenda constitucional 45. In: GORCZEVSKI, Clovis (org.). Direi-
tos humanos, educação e sociedade. Porto Alegre: Gráfica UFRGS,
2009.
VIOLA, Solon. Prefácio. In: LUNARDI, Giovani; SECCO, Márcio
(orgs.). Fundamentação filosófica dos direitos humanos. Florianó-
polis: Editora da UFSC, 2010.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
O DIREITO HUMANO
A TER DIREITOS FUNDAMENTAIS

LetíciaThomasi Jahnke
Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI),
Campus Santo Ângelo-RS. Graduada em Direito e Especialista em Direito
Civil e Processo Civil pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Mem-
bro do Grupo de pesquisa de Direito e Sociobiodiversidade - GPDS, da
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
(leticia.thomasi@hotmail.com)
Mauro Gaglietti
Professor e Pesquisador do Mestrado em Direito da URI (Santo Ângelo,
Rio Grande - Brasil). Professor e Pesquisador da Faculdade IMED (Passo
Fundo, Rio Grande do Sul - Brasil). Coordenador do Curso de Pós-
Graduação em Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa. Coordenador
do LAW - Núcleo de Estudos e Pesquisas Luis Alberto Warat. Mestre em
Ciência Política/UFRGS e Doutor em História/PUCRS. Pesquisador Associa-
do ao grupo de estudo e pesquisa ética e direitos humanos na PUCRS (Por-
to Alegre, Rio Grande do Sul - Brasil), voltado à pesquisa da socioeduca-
ção, mediação e justiça restaurativa, registrado no diretório d o CNPq e
coordenado pela Profa. Dra. Beatriz Gershenson Aguinsky.
(maurogaglietti@bol.com.br)

Abstract
The Enlightenment ideals consolidated from a social pact in the form of a state of
law. A political and social pact that redounded in a National State, drawing upon
Kantian practical reason. In the XIX century, expanded as politically right proposition,
and located, in territorial sphere, universal values that effected a form of society
with well defined cultural dimensions. Producing significances and consensuses
around certain values, the liberal focus amalgamated, without cracks, the common
good and the good of all, equality, culture, identity and citizenship, ie, a variety of
concepts that became inextricably entwined, mixed up and energized in one time:
the singular and the universal; the otherness and the equal; the plurality and the
diversity, the status and the identity.
Palavras-chave: direitos humanos – multiculturalismo – identidade – democracia.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Concomitante, mas não linear, os direitos civis e políticos
fizeram parte dos movimentos sociais no século XVIII, e fize-
646
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

ram a base sobre a qual o estado dos deveres deu lugar aos
direitos do homem, ao estado dos direitos. Ainda no século
XIX, os movimentos da classe operária deram a partida para os
direitos sociais e econômicos, embora só com a ascensão das
políticas sociais, após a II Guerra Mundial o Estado de Bem
Estar Social alcanço êxito. O século XX, por seu turno, fez ber-
ço para os movimentos feministas, de gênero, de etnias; as
demandas de igualdade jurídica às minorias de todas as cores.
O século XXI iniciou refletindo a problemática da visibilidade
política e pública para todos e a cada um dos grupos minoritá-
rios, étnicos e culturais, e tendo que fazer valer a pluralidade
das representações políticas que repercutem na esfera pública.
Na atual forma de sociedade e no presente período de tempo,
os desafios são localizados e expandidos, de uma só vez; a
unidade e a diversidade demandam entendimento por meio do
diálogo entre os iguais e entre os diferentes grupos. O reco-
nhecimento de que vivemos em sociedades multiculturais,
composta de uma pluralidade de identidades, instiga a refle-
xão a respeito das dificuldades de sustentar a ideia de cidada-
nia e de identidade comuns, sem o devido reconhecimento das
culturas excluídas ou esquecidas, não reconhecidas, desde o
projeto moderno. São demandas de direito as diferenças e a
diversidade. De um lado a igualdade e a questão política de-
corrente da unidade da cidadania e dos direitos políticos e, de
outro, o reconhecimento da diferença e dos bens culturais es-
pecíficos de segmentos e grupos distintos. O fato é que se vive
o período de demandas culturais, como uma etapa a mais, pró-
pria da dinâmica dos direitos humanos,1 servindo de base à
reflexão a respeito da representatividade das particularidades
culturais na esfera pública, enquanto novas demandas coleti-
vas, não necessariamente universais. De modo que certas ca-
tegorias passam a ganhar sentido e significado se refletidas de
forma não isoladas, mas articuladas e associadas a um deter-
minado contexto histórico. O multiculturalismo, o reconheci-
mento e a cidadania, indicam para a inclusão dos indivíduos e
dos grupos sociais e de um pacto de reconhecimento cultural.
1
É provável que o século XXI seja aquele da consolidação das garantias
dos direitos sociais.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
647
O direito humano a ter direitos fundamentais

DIREITOS HUMANOS E A MULTICULTURALIDADE


Os direitos humanos fundamentais se relacionam ao re-
conhecimento do multiculturalismo, enquanto cenário social
atual, e a problemática do reconhecimento público das diver-
sas culturas que foram apagadas/marginalizadas/desconside-
radas, para viabilizar o projeto do poder político moderno. É
dessa maneira, pelo visto, que as demandas políticas de reco-
nhecimento das particularidades culturais repercutem em rei-
vindicações de direitos coletivos de culturas e de grupos que
compõem a atual cartografia social. A pressão maior é direcio-
nada aos estados nacionais, que se fizeram a partir de consen-
sos políticos de cunho universalista e de unidade da cidadania,
e o conseqüente apagamento da pluralidade das identidades
que compunham a sociedade, amalgamando cidadania e iden-
tidade.
Nas sociedades atuais, no qual os direitos humanos de-
terminam o contorno e os limites do exercício do poder e da
autoridade constituída, os modelos de estados nacionais, con-
solidados no século XIX e XX, vão sendo substituídos por um
modelo de Estado, em fase de consolidação, que é o Estado
constitucional cooperativo2, próprio para uma organização so-
cial que demanda poder e autoridade, compartilhados, e que
requer subsidiaridade e proporcionalidade para reconhecer as
autonomias inerentes à pluralidade das fontes políticas, e, ao
mesmo tempo, da diversidade da rede social que a compõe.
A complexa rede que materializa a representatividade
social é a mesma que expressa a dinâmica de sua normatiza-
ção, desenhando a configuração multicultural atual. Tal concei-
to visando, principalmente, descrever a necessidade dos Esta-
dos/nação, diante de problemas comuns, relativizarem o con-
ceito clássico de soberania criando meios de cooperação mú-
tua capazes de apresentar soluções efetivas a questões sensí-

2
O Estado cooperativo constitucional é uma proposta desenvolvida por
Peter Häberle já na década de 70, do século XX. Cf, HÄBERLE, P. Estado
Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Mar-
cos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
648
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

veis, como a preservação do meio ambiente, que transcendem


as fronteiras dos Estados.
Visa-se, assim, chamar a atenção para a mudança de pa-
radigma à medida que a complexidade do mundo instalada
pela modernidade, aliada à certeza de que todos compartilham
o mesmo mundo natural, não permite que os Estados/nação,
frente a problemas ambientais de cunho global ou regional,
venham a se fechar e, de modo equivocado, acreditar que
ações isoladas (com base numa soberania que se quer o poder
de autodeterminação intra-territorial) possam, efetivamente,
solucionar questões de agressão ao meio ambiente que a todos
atinge na medida em que o meio ambiente não conhece ou
respeita fronteiras. Neste quadro, pode-se perceber que o con-
ceito clássico da soberania, que trabalha quase que com o pa-
radigma outro/inimigo, em que o outro, por estranho, gera me-
do e desconfiança e inimizade, derivando dai o segredo e a
falta de cooperação já não pode, principalmente no campo da
preservação do meio ambiente, ser o orientador das políticas
dos Estados Democráticos de Direito modernos. Estes, ao con-
trário, devem ter a noção de que todos os seres humanos são
uma unidade contida na ideia de gênero humano, raça huma-
na, humanidade. Nossos destinos e futuro dentro do planeta
são comuns. Somos um “Eu que é um Nós, e um Nós que é um
Eu”, para falar como Hegel, donde, por conseguinte, ser impe-
rioso que todos os Estados se abram à reflexão e implementem
em suas ordens jurídicas o paradigma do Estado constitucional
cooperativo de maneira a permitir que, da união de esforços, os
danos ao meio ambiente sejam minorados ou quiçá extintos.
No mundo acadêmico são largamente utilizadas as ex-
pressões equivalentes, tais como “direitos do homem”, “direi-
tos fundamentais”, “direitos humanos fundamentais” para ex-
pressar a mesma categoria, mas há que se considerar as am-
bigüidades das expressões e a falta de consenso terminológico
e conceitual que também valem para o conteúdo das expres-
sões utilizadas. Neste trabalho utiliza-se a expressão “direitos
do homem” àqueles oriundos da Declaração de 1789, e a ex-
pressão “direitos humanos” refere-se àqueles oriundos da De-
claração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e seguintes.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
649
O direito humano a ter direitos fundamentais

Adota-se uma abordagem menos particularista, optando


pela expressão “direitos humanos”, fazendo a distinção com a
de “direitos fundamentais”, pelo fato de que a expressão “di-
reitos fundamentais” é usual àqueles direitos, reconhecidos e
positivados constitucionalmente como fundamentais por um
determinado Estado Constitucional Democrático. Porém, a
ideia de “direitos humanos” vai se afirmando como sendo
aqueles direitos pertencentes a todo o gênero humano, inde-
pendentemente de serem postos por uma determinada ordem
jurídica estatal. Entende-se que a idéia de direitos humanos,
ainda que sejam produtos históricos, transcendem um deter-
minado momento histórico. E tem, por um lado, servido de
fundamento ao Direito dos Estados nacionais quanto interna-
cional ou supranacional, como é o caso do Direito Comunitário
Europeu. Desconsidera-se o fato da natureza histórica da ex-
pressão “direitos humanos” ter tido origem e/ou ser ainda
considerado como um direito natural. Ainda que os direitos
humanos tenham servido de referencial internacional, é fato
que nem todos os Estados possuem uma uniformização quanto
aos “direitos fundamentais”, empiricamente se vê que os Es-
tados tem atendido suas tradições, história e valores para con-
siderar quais os direitos a proteger. É pertinente a distinção
sob pena de se estabelecer uma confusão metodológica e didá-
tica no trabalho.
As diversas declarações ou dimensões de direitos servem
para demonstrar as condições históricas embrionárias e as
condições de possibilidades da diversidade das comunidades
humanas de se organizarem juridicamente. Ainda que recen-
temente os direitos humanos tenham sido tomados em seu
conjunto e na sua integralidade, a temática dos direitos huma-
nos foi convertida, desde a Declaração de 1789, em matéria de
institucionalização e de positivação direcionada as condições
dadas de liberdade e de igualdade pelo poder e pelo direito
estatal.
O cunho democrático da organização da sociedade ficou
dependente da dimensão ideológica e da compartimentação
dada aos direitos humanos, vindo a plasmar seu entendimento

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
650
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

a partir de sua origem legislativa e institucional. Esse fato re-


sultou em prejuízo da efetivação dos direitos humanos na sua
integralidade. Historicamente os direitos humanos foram
agrupados em duas categorias de direitos, “o ‘grupo ocidental’
enfatizava os direitos civis e políticos, ao passo que o ‘bloco
socialista’ privilegiava os direitos econômicos, sociais e cultu-
rais”3. Fato que alimentou, no ocidente, a hermenêutica e a
aplicação dos direitos, resultando numa efetivação maior dos
direitos civis e políticos e em dificuldades de assegurar a apli-
cação dos direitos econômicos, sociais e culturais, com perdas
efetivas a construção da igualdade e a realização da cidadania.

OS DIREITOS HUMANOS: UMA GARANTIA INSTRUMENTAL


A questão que se levanta na perspectiva da cidadania
remete à necessidade da ampliação e proteção dos direitos
humanos num mundo globalizado e de escassos recursos dis-
tribuídos. Através da obra A Era dos Direitos, Norberto Bobbio
comenta o Presente e Futuro dos Direitos do Homem e acentua
a importância de construir modos seguros de garanti-los aos
indivíduos. De forma que não se pode pensar em democracia e
em cidadania para todos os homens, sem a perspectiva de os
direitos humanos virem pautar a organização da sociedade
humana, dado que os direitos não se encontram necessaria-
mente vinculados e restritos a uma nacionalidade (de perten-
ce) e por isso mesmo não ficam sujeitados a um território deli-
mitado. A “natureza” que dá vida aos direitos humanos haverá
de viabilizar os vínculos pelos quais a cidadania e a democra-
cia se consolidarão. E mais, a vinculação “histórica e teórica
com a figura do Estado-nação”4 vai se fragilizando e perdendo
sentido, à medida que essa instituição histórica, guardiã dos

3
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Relatório da IV Conferência
Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Centro de Documentação e In-
formação – Coordenação de Publicidade, 2000. In: Conferência proferida
na Câmara dos Deputados, cf. p. 26.
4
VIEIRA, Liszt. Os Argonautas da Cidadania: a sociedade civil na globa-
lização. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 245.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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O direito humano a ter direitos fundamentais

direitos da cidadania, pretende se transformar em potência


política, e relativiza/escapole de suas obrigações sociais, polí-
ticas e jurídicas.
Por outro lado, a consciência dos direitos humanos verifi-
cou-se de forma mais intensa e recente em períodos após as
duas grandes guerras no século XX5. A tentativa de impor limi-
tes aos poderes bélico-militares, em nível mundial, como pre-
venção a futuros massacres, surgiu após períodos de profun-
das atrocidades contra a humanidade. Foi o caso da criação da
Organização das Nações Unidas e das Declarações Universais
dos Direitos do Homem de 1948 e seqüentes, que propiciou a
retomada do direito internacional, ao mesmo tempo em que
estabeleceram uma espécie de parâmetro e graduação às hos-
tilidades entre os diversos Estados, com o intuito de preservar
as liberdades individuais e coletivas. Tratava-se de estabele-
cer limites ao poder de Estado e a sua pretensa legalidade. E
apesar das dificuldades, nesse âmbito, quanto à universaliza-
ção dessas declarações e as medidas que delas decorrem, ba-
sicamente em relação à “eficácia processual [...], ainda que
débeis têm o efeito de privar de legitimidade certas práticas do
poder”6.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em
1789, proporcionou, num primeiro momento, a formação da
consciência dos direitos de cunho individualista, noutro, con-
solidou os ideais iluministas da universalidade racional e da
multiplicação daqueles valores, abrindo condições de possibi-

5
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991.
Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. para o
autor “o século XX foi breve e extremado: sua história e suas possibili-
dades edificaram-se sobre catástrofe, incertezas e crises, decompondo o
construído ao longo século XIX”. Ressaltando o período de 1914 até de-
pois da segunda guerra, como aquele com efeitos dramáticos sobre os
direitos do homem, que tiveram alguns avanços durante o século XIX.
6
CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Tradução: Lédio Rosa de
Andrade e Têmis Correia Soares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2002, p. 172. O autor afirma que se essas Declarações fossem dotadas de
eficácia processual em nível internacional, “a maioria dos governantes
do planeta estariam no cárcere”.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
652
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

lidades para a proteção jurídica efetiva no âmbito das relações


entre governantes e governados. Ou seja, a evolução a respeito
do exercício do poder social, jurídico e político, transitou – na
dinâmica da associação/subordinação – dos deveres dos súdi-
tos perante o príncipe soberano, para os deveres do príncipe
perante o povo soberano, da evolução dos deveres aos direitos
humanos, que por fim formou a complexa relação jurídica mo-
derna.
Verifica-se que os direitos humanos foram surgindo em
oposição aos poderes sociais e políticos, numa tensa relação
que radica em torno das relações de opressão, sobre uma dada
sociedade de indivíduos num determinado momento histórico.
Essa evolução/trajetória é que proporcionou a transição do en-
foque exclusivo sobre os deveres da população, para a prima-
zia dos direitos, ou seja, possibilitou a evolução de um estágio
do exercício do poder social calcado nos deveres para com o
soberano, para um estágio em que o exercício do poder social e
político se consolidou e se compôs a partir dos direitos huma-
nos (atendendo agendas variadas, dependendo de cada socie-
dade nacional, como fundamentais) e constituiu-se, em nível
jurídico e político, em poderes-deveres, tanto na dimensão sub-
jetiva quanto da objetiva, dos cidadãos – sujeitos de direitos e
realizou, de alguma forma, o Estado de cidadania7.
O significado mais evidente da categoria direitos huma-
nos é o de que os direitos humanos são antes, uma garantia

7
É um poder que nasce de uma convenção, afirma Bobbio. Diferentemen-
te da forma como se via a relação entre governos e governados. “Esse
ponto de vista representa a inversão radical do ponto de vista tradicio-
nal do pensamento político, seja do pensamento clássico, no qual as du-
as metáforas predominantes para representar o poder são a do pastor (e
o povo é o rebanho) e a do timoneiro, do gubernator (e o povo é a chus-
ma), seja no pensamento medieval (omnis potestas nisi a Deo). Dessa in-
versão nasce o Estado moderno: primeiro liberal, no qual os indivíduos
que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade;
depois democrático, no qual são potencialmente todos a fazer tal reivin-
dicação; e, finalmente, social, no qual os indivíduos, todos transforma-
dos em soberanos sem distinções de classe, reivindicam – além dos di-
reitos de liberdade – também os direitos sociais, que são igualmente di-
reitos do indivíduo”. Op. cit., 1992, p. 100.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
653
O direito humano a ter direitos fundamentais

instrumental de defesa da condição humana, da pessoa huma-


na, frente aos poderes do Estado quanto da sociedade, antes
que de um indivíduo em particular. Os direitos humanos se
referem “aos conflitos entre indivíduos e grupos, e o Estado ou
capital obedecem à lógica e à forma das organizações burocrá-
ticas impessoais”8.
Assim sendo, os direitos humanos não se tornam eficazes
apenas por integrarem um sistema de regras coerente, em
termos lógico-formais, sustentado pelo monopólio da força le-
gítima de um Estado, mas mantêm um quantum de efetividade
enquanto a sociedade de cidadãos mantiver a consciência de
que os direitos positivados, na forma de regras jurídicas, de-
vem ser efetivados/cumpridos enquanto vigorarem.
Dessa maneira, pode-se entender a preocupação de Nor-
berto Bobbio quando se refere às Declarações de Direitos, es-
pecialmente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948, acolhida como “a maior prova histórica até hoje dada do
consensus omniun gentium sobre um determinado sistema de
valores”. A referida Declaração, depois de aprovada pelas Na-
ções Unidas, constitui-se em um marco referencial mundial de
liberdade e de igualdade efetivas para inúmeros países. E,
consequentemente,
[...] a partir de então, foi acolhido como inspiração e ori-
entação no processo de crescimento de toda a comuni-
dade internacional no sentido de uma comunidade não só
de Estados, mas de indivíduos livres e iguais. Não se tem
consciência de até que ponto a Declaração Universal re-
presenta um fato novo na história, na medida em que, pe-
la primeira vez, um sistema de princípios fundamentais

8
Segundo Lopes, p. 43, “há sempre, quando se invoca a proteção dos
direitos humanos, uma situação de desiquilíbrio estrutural de forças: de-
siquilíbrio estrutural e não conjuntural, essencial e não contingente ou
acidental, por essência e não per accidens. A vítima da violação, seja um
indivíduo ou um grupo, é permanente e estruturante subordinada ao au-
tor da violação, visto que a violação parte de uma organização que reúne
meios de forma permanente, capazes de violar de contínuo a dignidade
da mesma vítima ou de outras em posição semelhante”.

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654
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

da conduta humana foi livre e expressamente aceito,


através de seus respectivos governos, pela maioria dos
homens que vivem na Terra. Com essa declaração, um
sistema de valores é – pela primeira vez na história – uni-
versal, não em princípio, mas de fato, na medida em que
o consenso sobre sua validade e sua capacidade para re-
ger os destinos da comunidade futura de todos os ho-
mens foi explicitamente declarado.9

Esse acolhimento, na forma de direitos fundamentais ou de


referencial para o sistema interno dos países democráticos, tem
sido responsável pelo alargamento e profundidade da democra-
cia no âmbito internacional, tornando-se, esses direitos, os pila-
res fundamentais na preservação dos fatos e dos valores que
norteiam as liberdades, a igualdade e a dignidade dos seres
humanos, e são, pode-se dizer, as condições de possibilidades e
de sustentabilidade nas relações intra e inter populações.
Para Bobbio a evolução dos direitos obedeceu basicamen-
te três fases distintas: Nasceram como “teorias filosóficas”,
sendo num primeiro momento, originadas da idéia de uma so-
ciedade universal (estóica) dos “homens racionais – o sábio é o
cidadão não desta ou daquela pátria, mas do mundo”, e fun-
dada na concepção de que o homem possui direitos por natu-
reza10. Idéias essas defendidas por Locke e Rousseau, que os
homens nascem livres e que essas qualidades são anteriores
ao Estado, justificando este para garantir aqueles direitos na-
turais. Sabe-se que, no direito moderno e na moderna concep-
ção de cidadão, a igualdade provém de uma ficção, de um rela-
to do qual surge o cidadão: essa parcela da população ou “po-
vo” juridicamente qualificado que exerce os direitos em igual-
dade de condições, ainda que, segundo Bobbio, a igualdade
não obedece rigorosamente a “uma existência, mas um valor,
um dever-ser”11.

9
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson Couti-
nho. Editora Campus. Rio de Janeiro, 1992.p. 28.
10
Idem, ibidem.
11
BOBBIO, op. cit., 1992, p. 29.
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O direito humano a ter direitos fundamentais

Em dado momento, essas teorias impulsionaram os prin-


cipais movimentos políticos do século XVII e XVIII, 12 deram-
lhe consistências e as tornaram fontes inspiradoras das decla-
rações e das legislações que foram formatando o modelo de
Estado contemporâneo. Como decorrência, aqueles direitos
declarados com um patamar de naturais foram, num segundo
momento, sendo positivados, ainda que circunscritos a Estados
nacionais que, para Bobbio, nesse estágio, perderam sua di-
mensão universal e adquiriram um caráter de direitos do ho-
mem enquanto cidadãos de Estados particulares e protegidos
nessas condições. Um terceiro momento se evidencia com a De-
claração Universal dos Direitos do Homem de 1948, “na qual a
afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva:
universal no sentido de que os destinatários [...] são [...] todos
os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um
processo em cujo final os direitos do homem deverão ser [...]
efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Esta-
do...”13. Retornam, assim, as possibilidades de serem, os “direi-
tos do cidadão enquanto direitos do cidadão do mundo”14.
A evolução15 dos direitos, no pensamento de Norberto
Bobbio, obedece a uma distinção entre universalização e mul-
tiplicação. E é na esfera da multiplicação que o autor elabora a
tese do nascimento dos direitos e das condições sociais, cultu-
rais e econômicas em dado momento histórico, ou seja, “sobre
a estreita conexão existente entre mudança social e nascimen-
to de novos direitos”16. Com a complexificação e com o aumen-
12
Como foi o caso das Revoluções Americana e Francesa, com suas decla-
rações de direitos.
13
BOBBIO, op. cit., 1992, p. 30.
14
Idem, ibidem.
15
Não se trabalha com a idéia de uma evolução sempre crescente em nível
de amplitude espacial e profundidade substancial, mas de um processo
que pontilhado de avanços e recuos, muito característico de um proces-
so em construção, onde os fundamentos filosóficos foram tecendo as teo-
rias libertárias e democráticas que possibilitaram politicamente a positi-
vação, na forma jurídica, daqueles direitos.
16
BOBBIO, op. cit., 1992, p. 68. E teria ocorrido, essa multiplicação, de três
modos: “a) porque aumentou a quantidade de bens considerados mere-
cedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direi-

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LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

to dos bens a serem tutelados, foi aumentando também o nú-


mero de sujeitos e o status de indivíduos, numa estreita rela-
ção e interdependência entre os direitos de indivíduos e de
grupos, por exemplo, e os direitos a novos e determinados ob-
jetos juridicamente valiosos.
Assim, se deu “a passagem dos direitos de liberdade [...]
para os direitos políticos e sociais”; do dever do Estado de se
abster para viabilizar as liberdades negativas, a obrigação de
intervir, atendendo à obrigação de realizar os direitos sociais.
O segundo movimento viabilizou a passagem do sujeito indivi-
dual, compreendido como tendo direitos naturais (da pessoa),
para “sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as mino-
rias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto”.
E em relação ao “terceiro processo, a passagem ocorreu do
homem genérico [...] para o homem específico, ou tomado na
diversidade de seus diversos status sociais”, como é o caso do
direito das crianças, do velho e do doente17.
Surgido a partir das declarações de Virginia (1776) e
Francesa (1789), os direitos civis formaram a base sobre a qual
os demais direitos foram se afirmando. Esses direitos civis in-
dividuais consideram o sujeito de direitos abstratamente18.
Nessa “primeira fase afirmaram-se os direitos de liberdade [...]
direitos que tendem limitar o Estado e reservar para o indiví-
duo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade
em relação ao Estado”19.
São direitos contra o Estado: o Estado não pode intervir,
no âmbito das liberdades individuais que são liberdades de
proteção. Já os direitos que surgiram no decorrer do século
XIX, podem ser considerados como direitos políticos ou de li-

tos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não


é mais considerado como ente genérico, ou homem abstrato, mas é visto
na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser
em sociedade, como criança, velho, doente, etc.”
17
BOBBIO, op. cit., 1992, p. 69.
18
Pode-se elencar os direitos de liberdades de expressão, as liberdades
físicas, de consciência e de acesso à propriedade entre outros.
19
BOBBIO, op. cit., 1992, p. 32.
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O direito humano a ter direitos fundamentais

berdades públicas20. E, ambos concorreram na transformação


do indivíduo em cidadão; dos deveres para com o soberano aos
deveres para com a lei; na transformação do homem desigual
dada sua natureza social, econômica e cultural, por convenção
positivista, em sujeito de direitos iguais; na passagem da con-
dição de indivíduo na esfera privada para a de cidadão na esfe-
ra pública. Nesse segundo momento, enfatiza Bobbio, a pro-
pugnação dos direitos políticos, “conseguem as liberdades
como autonomia”, e ensejaram a participação mais acentuada
“dos membros de uma comunidade no poder político (ou liber-
dade no Estado)”21. Esses direitos representam uma primeira
fase do contratualismo e se referem à titularidade individual,
possuem caráter de defesa e refletem a separação entre socie-
dade civil e Estado.
Com o surgimento do direito social, econômico e cultural,
garantiram-se novos valores sociais, como é o caso “do bem-
estar e da igualdade não apenas formal” que o autor chama de
“liberdade através ou por meio do Estado”, e se afirma o direito
de coletividades ou de grupos sociais. Âmbito onde o sujeito
de direitos é considerado inserido concretamente no contexto
social e histórico, na perspectiva de que as garantias individu-
ais fundamentais (liberdades de religião opinião etc...), foram
além do âmbito individual – do sujeito de direitos –, para os
sujeitos coletivos de direitos. É o direito de participar no Esta-
do, no poder político que deslocou sua tutela, como se vê, da
proteção negativa para garantir a autonomia política. E foi
também o primeiro momento da formação dos direitos coleti-
vos que se consolidaram na primeira metade do século XX, da-
da a estrutura industrial iniciada já no século XIX, irradiados
que foram pela Constituição Mexicana de 1917 e pela Consti-
tuição de Weimar de 1919.
Ao se efetivarem através do Estado, a garantia desses di-
reitos se dá pela ação positiva deste por meio, basicamente, de

20
Entre esses direitos destaca-se o direito ao sufrágio universal, o de fun-
dar partidos políticos e aquelas garantias/direitos plebicitários, referen-
dários e de iniciativa da população.
21
BOBBIO, op. cit., 1992, p. 32-33.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
658
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

uma rede serviços públicos e do desenvolvimento da produção


interna dos Estados. Visam atingir a questão da igualdade22 e
são direitos próprios de coletividades e garantidos para se rea-
lizar o bem-estar social para a maioria dos cidadãos. Porém,
esses direitos foram, e ainda são, negligenciados quanto a sua
implementação e garantias pelas instituições estatais e inter-
nacionais. Mas, somente em 1988 que a comunidade latino-
americana, envidou procedimentos protetivos dos direitos
econômicos, sociais e culturais, através do Protocolo de San
Salvador. Uma outra dimensão dos direitos que se pode cha-
mar de solidários surgiu com a Declaração Universal dos Direi-
tos do Homem de 1948 e subseqüentes23. Os direitos solidá-
rios24, que considera os direitos do homem em nível internacio-
nal, para proteção efetiva dos seres humanos, constituem-se
em direitos que se garantem sobre o Estado. Por um lado, es-
ses direitos dão efetividade à soberania popular em nível in-
ternacional, uma vez que desloca do âmbito jurisdicional dos
Estados em particular, para espaços supranacionais, constitu-
ídos por blocos específicos de Estados e/ou Estados pactuados
e integrantes de organizações internacionais como é o caso da
Organização das Nações Unidas – ONU, como condição de ga-
rantia e tutela desses direitos; de outra parte, relativiza o con-
ceito de nacionalidade que se construiu sobre a exclusão do
estrangeiro, devendo o cidadão ser protegido independente-
22
ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no estado democrá-
tico de direito. Frederico Westphalem: URI, 1988. Sobre a igualdade o
autor assim se refere: Valor fundamental da pessoa humana, a preserva-
ção da igualdade visa a impedir a discriminação dos cidadãos, evitando
que alguns recebam melhor tratamento em relação aos outros, ou, me-
lhor, que não haja uma relação em que alguns sejam mais cidadãos que
outros”. p. 41.
23
Como é o caso das declarações e convenções que se seguiram a partir
da metade do século XX: “em 1952, a Convenção sobre os Direitos Políti-
cos das Mulheres; em 1959, a Declaração da Criança; em 1971, a Decla-
ração dos Direitos do Deficiente Mental; em 1975, a Declaração dos Di-
reitos dos Deficientes Físicos; em 1982, a primeira Assembléia Mundial,
em Viena, sobre os direitos dos anciãos”..., entre outras.
24
Entre os direitos solidários pode-se declinar o direito ao desenvolvimen-
to, ao meio ambiente sadio, à paz universal e à autodeterminação dos
povos.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
659
O direito humano a ter direitos fundamentais

mente de estar no âmbito da circunscrição de seu Estado de


origem.
Seguindo o processo histórico, surgiram os direitos de
manipulação genética, relacionados à biotecnologia e bioen-
genharia, que tratam das questões sobre a vida e a morte, so-
bre a cópia de seres humanos, que requerem uma discussão
ética prévia; os direitos que tratam da realidade virtual, que
apareceram a partir do desenvolvimento da cibernética e im-
plicam a desconsideração das fronteiras tradicionais entre os
Estados e blocos de Estados, gerando conflitos entre países de
realidades distintas, como é o caso das relações via satélite e
da Internet, por exemplo.
A afirmação das diversas dimensões de direitos humanos,
ainda que concebidas de forma segmentadas, ampliaram, por
um lado, as concepções teóricas sobre democracia e geram
permanentemente demandas sobre as práticas no campo da
política, tanto em nível de Estados particulares, quanto nas
relações entre estes em nível internacional. Por outro lado, vem
qualificando a realização da cidadania dentro dos Estados na-
cionais, em tensão com os valores nacionalistas, e constrói as
condições concretas para viabilizar o cidadão universal. A res-
peito da democracia declina Touraine: “Coloca-se em evidên-
cia que, sendo realmente um tipo de sistema político e não um
tipo geral de sociedade, a democracia define-se não somente
por determinadas instituições e modos de funcionamento, mas
pelas relações que estabelece entre os indivíduos, a organiza-
ção social e o poder político”. 25 É nesse sentido que se pode
falar em conquista trazida para a humanidade pelos direitos do
homem em relação ao exercício do poder político e social.
Nesse ponto se propõe incidir, desde o início, os direitos
humanos, sobre os processos políticos, a reversão nas relações
do exercício do poder instituído, ou a relação de governança no
interior dos/e entre os Estados nacionais. Considera-se que os
direitos humanos deram as bases das democracias mais aper-
feiçoadas até então alcançadas, de onde decorrem as eleições

25
TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis: Vozes, 1996. p. 105.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
660
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

e as (possíveis) liberdades de escolha pelas populações, e se


possibilitam as livres manifestações e opiniões sobre os go-
vernos e sobre os governantes que são colocados, ainda que
periodicamente, à disposição das condições de avaliação da
cidadania, impedindo o estabelecimento de governos ad infi-
nutum por vitaliciedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, a fomentação de núcleos de poderes arbitrários,
contribuindo definitivamente para marcar a função impessoal
da autoridade (o poder por autorização), estabelecendo limites
aos governantes e seus interesses particulares, em benefício
da coletividade. Esses interesses, vontades humanas que osci-
lam num paralelo justaposto entre a racionalidade e a irracio-
nalidade, ficam sujeitados ao Direito posto para dar funcionali-
dade e finalidade ao Estado, com suas respectivas instâncias
de poderes, competências e legitimidades. Mas em nível inter-
nacional os direitos humanos não se tornaram ainda um roteiro
emancipatório, um referencial de civilização humanizada para
todos. A esse respeito, Santos se refere que os direitos huma-
nos são tomados a partir de vários critérios: como critério para
“avaliação das violações dos direitos humanos, complacência
para os ditadores amigos do Ocidente, defesa do sacrifício dos
direitos humanos em nome dos objetivos do desenvolvimento –
tudo isso tornou os direitos humanos suspeitos como roteiro
emancipatório”26.
Já em oposição ao mercado capitalista que visa a homo-
geinização dos comportamentos e das culturas, expropriadora
da humanidade dos grupos étnicos em particular, há pressu-
posição de que “o princípio da igualdade seja atualizado de
par com o princípio do reconhecimento da diferença”27, a fim de
que, os direitos humanos, possam servir como patamar de dig-

26
SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Reconhecer para libertar: os ca-
minhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2003. p. 429.
27
Idem, p. 458.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
661
O direito humano a ter direitos fundamentais

nidade as diferentes culturas particularmente concebidas. To-


mados tanto como fundamentos quanto como prática para o
reconhecimento da dignidade humana, conforme apregoa o
preâmbulo da Declaração Universal de 194828. Desse modo, os
Estados e os mercados de modo geral haverão de estarem a
serviço da efetivação dos direitos humanos e da realização da
cidadania, como resgate da versão horizontal do contrato soci-
al, comentado por Arendt29, a respeito do consentimento e da
legitimidade viabilizados pela cidadania no âmbito de uma
sociedade política, conforme se verificará no capítulo a seguir.

REFERÊNCIAS
ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no estado de-
mocrático de direito. Frederico Westphalem: URI, 1988.
ARENDT, Hannah. Crise da República. São Paulo: Perspectiva, 1973.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson Cou-
tinho. Editora Campus. Rio de Janeiro, 1992.
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Relatório da IV Confe-
rência Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Centro de Documen-
tação e Informação – Coordenação de Publicidade. In: Conferência
proferida na Câmara dos Deputados, 2000.
CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Tradução: Lédio Rosa
de Andrade e Têmis Correia Soares. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 2002.

28
ONU. Organização das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.
ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por>. Acesso em
08 de abr. de 2013.
29
ARENDT, Hannah. Crise da República. São Paulo: Perspectiva, 1973.
Dando sentido latino a palavra societas, “uma ‘aliança’ entre todos os
indivíduos membros que depois de estarem mutuamente comprometi-
dos fazem um contrato de governo”. Diz Arendt: “Eu chamo isto de ver-
são horizontal do contrato Social. Tal contrato limita o poder de cada in-
divíduo membro mas deixa intacto o poder da sociedade; a sociedade
então estabelece um governo ‘sobre o firme terreno de um contrato ori-
ginal entre indivíduos independentes’. Todos os contratos, convênios e
acordos se apóiam na reciprocidade, e a grande vantagem da versão ho-
rizontal do contrato social é que esta reciprocidade liga cada um dos
membros a seus colegas cidadãos”. p. 77-78.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
662
LetíciaThomasi Jahnke & Mauro Gaglietti

HÄBERLE, P. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do ori-


ginal em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk.
Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991.
Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os
caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2003.
TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
VIEIRA, Liszt. Os Argonautas da Cidadania: a sociedade civil na
globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001. VIEIRA, Liszt. Os Argo-
nautas da Cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Ja-
neiro: Record, 2001.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
E FUNÇÃO AMBIENTAL DA
PROPRIEDADE SOB A PERSPECTIVA
DOS DIREITOS HUMANOS

Letícia Thomasi Jahnke


Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI),
Campus Santo Ângelo-RS. Graduada em Direito e Especialista em Direito
Civil e Processo Civil pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Mem-
bro do Grupo de pesquisa de Direito e Sociobiodiversidade - GPDS, da
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
(leticia.thomasi@hotmail.com)

Isabel Christine De Gregori


Doutora em Desenvolvimento regional pela Universidade de Santa Cruz do
Sul - UNISC (2007), mestre em Integração Latino-Americana pela Universi-
dade Federal de Santa Maria - UFSM (1999). Graduada em Direito pela
Universidade Federal de Santa Maria- UFSM (1985). Atualmente é profes-
sora adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de San-
ta Maria. Membro do Grupo de pesquisa de Direito e Sociobiodiversidade
- GPDS, da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.

Abstract
This present study aims to show possible perspectives for the effective conservation
of protection of the urban environment. There for, situates the Municipality in the
juridical context, acknowledging juridical competency designated to it by the Federal
Constitution of 1988. With basis in the analysis of its economical, social, cultural and
environmental development aims to preserve the right to a health environment. By
the finalities of constitutional economic order, glimpses the reach of sustainability,
trough the acting of Municipal Government in determinations and guidelines that
will integrate public planning, in regard of the environmental sphere, through the
Director Plan, specified in the 10.257/01 Law, the Cities Status. Starting from this
premise, brings to the discussion the Human Rights in order to credit if there is any
parallels between the quality of the environment and human rights.

Palavras-chave: direitos humanos – meio ambiente - plano diretor – sustentabilidade.


664
LetíciaThomasi Jahnke & Isabel Christine de Gregori

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Através deste trabalho pretende-se expor a ligação e a
necessidade do equilíbrio entre meio ambiente e meio social
com os direitos humanos. Deste modo traz a voga o artigo 182
da Constituição Federal, que traz a política de desenvolvimen-
to urbano, a ser desenvolvida pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei tem por objetivo or-
denar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e garantir o bem-estar de seus habitantes.
A efetivação do artigo 182 da Constituição Federal de
1988 se encontra na Lei Federal 10.257/01, o Estatuto das Ci-
dades. Já nos seus primeiros artigos nota-se um olhar diferen-
ciado em relação a busca de um meio ambiente equilibrado,
preconizando uma melhor qualidade de vida, através do plano
diretor.
Neste sentido, analisa-se a questão ambiental concomi-
tantemente com os direitos humanos. Em razão da busca pela
sustentabilidade, o plano diretor deve ter diretrizes objetivas e
com reais chances de efetividade. Deste modo, proporcionará
uma vida digna aos seres humanos, ou seja, nota-se que os
direitos humanos operam na esfera social, mas também podem
ser associados ao contexto ambiental.

O MUNICÍPIO NA ESFERA JURÍDICA


A matéria relacionada ao meio ambiente não tinha texto
constitucional específico nas Constituições antecedentes a
Constituição Federal de 1988, pois a matriz do desenvolvimen-
to constituía-se no “crescimento a qualquer custo”, ficando
estabelecido nas Constituições anteriores, juntamente com a
Emenda Constitucional n°1, de 1969, que a competência para
legislar sobre mineração, águas, florestas por exemplo, era fe-
deral.
Em 1988, a Constituição Federal, além de artigos distribuí-
dos em seu inteiro teor, designa capítulo próprio (Capítulo VI

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
665
Desenvolvimento sustentável e função ambiental da propriedade...

do Título VIII), à demanda ambiental. Discorre José Afonso da


Silva que:
[...] a Constituição de 1988 foi, portanto, a primeira a tra-
tar deliberadamente da questão ambiental. Pode-se até
dizer que ela é uma constituição eminentemente ambien-
talista. Assumiu o tratamento da matéria em termos am-
plos e modernos. Traz um capítulo específico sobre meio
ambiente, inserido na Ordem Social. Mas a questão per-
meia todo o se texto, correlacionada com os temas fun-
damentais da ordem constitucional. (SILVA, 1994, p. 26)

Os problemas ambientais estão cada vez mais presentes


no cotidiano da sociedade, deste modo é necessário especifi-
car, primeiramente, se o Município possui, ou não, competên-
cia para exercer atos independentemente da esfera Federal.
Elencado no caput do artigo 1°, a Constituição Federal de
1988 reconhece o município como entidade estatal, integrando
o sistema federal nacional, com autonomia para conduzir e
administrar assuntos de seu interesse, observando a juridici-
dade e territorialidade, ambos determinados pelo poder sobe-
rano.
O Município tem seu domicílio civil na sede, ou seja, a ci-
dade. É autônomo em seus atos observando a territorialidade e
a esfera jurídica, com previsão legal delimitando os limites ter-
ritoriais da jurisdição.
Segundo Juliana Pita Guimarães1:
[...] o Município é o centro de poder mais próximo do ci-
dadão, constituindo entidade natural e anterior ao pró-
prio Estado, originando-se por imposição da natureza so-
cial do homem. Naturalmente, como titular das compe-
tências locais, o Município constitui o nível de governo
mais apto a compreender as necessidades de seus cida-

1
GUIMARÃES, Juliana Pita. Competência constitucional dos Municípios
em matéria ambiental. COUTINHO, Ronaldo. ROCCO, Ronaldo. (orgs.).
In: O Direito Ambiental das Cidades. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
666
LetíciaThomasi Jahnke & Isabel Christine de Gregori

dãos e a prover de forma mais eficaz e responsável suas


carências, [...].

Deste modo é possível traçar um paralelo entre a partici-


pação efetiva dos poderes locais, baseados no plano de desen-
volvimento do Município em relação aos direitos difusos, como
o direito a um meio ambiente saudável, observando o reconhe-
cimento da competência do Município em dispor e salvaguar-
dar esse direito.
O desenvolvimento econômico, social, cultural do Municí-
pio deve estar atrelado à políticas públicas relacionadas à pro-
teção do Meio Ambiente, pois além do crescimento se dar de
forma sustentável, os indivíduos possuem a garantia ao bem-
estar e a sadia qualidade de vida, essa advinda também do
direito fundamental2 ao meio ambiente, fazendo com que a ci-
dade cumpra com sua função social. “Busca-se, na verdade, a
coexistência, sem que a ordem econômica inviabilize um meio
ambiente ecologicamente equilibrado e sem que este obste i
desenvolvimento econômico”3.
No que tange a política de desenvolvimento urbano, o ar-
tigo 182, explicita que “a política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei tem por objetivo ordenar o pleno desen-
volvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-
estar de seus habitantes”. (BRASIL, 1988)
Conforme Linda Stake:
[...] para ser sustentável, o desenvolvimento precisa levar
em consideração fatores sociais, ecológicos, assim como
econômicos; as bases dos recursos vivos e não vivos; as

2
“O direito fundamental reconhecido no art. 225 da CF, de que todos têm
direito a uma ‘sadia qualidade de vida e meio ambiente ecologicamente
equilibrado’, trouxe à tona uma análise mais extensiva da expressão
Meio Ambiente.” SEGUIN, Elida. Direito Ambiental: nossa casa plane-
tária. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 17.
3
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental. São
Paulo: Saraiva, 2010. p. 86.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
667
Desenvolvimento sustentável e função ambiental da propriedade...

vantagens e desvantagens de ações; alternativas a longo


e curto prazos. (STAKE, 1991, p.9)

Sendo assim, aventa-se uma nova ordem constitucional,


denominada Estado de Direito Ambiental que, de acordo com
José Rubens Morato Leite e Heline Savini Ferreira4:
[...] atende à necessidade de reformulação dos pilares de
sustentação do Estado, o que pressupõe a adoção de um
novo modelo de desenvolvimento capaz de considerar as
gerações futuras e o estabelecimento de uma política ba-
seada no uso sustentável dos recursos naturais.

A fim de viabilizar a existência de uma cidade efetiva-


mente sustentável, analisando a ordem econômica constituci-
onal ambiental, o Poder Público Municipal deve nortear a po-
pulação através de políticas públicas que asseguram a prote-
ção e a preservação do meio ambiente, que é direito funda-
mental, proporcionando assim uma melhor qualidade de vida à
população.

O ESTATUTO DAS CIDADES SOB O VIÉS AMBIENTAL


A competência para instituir as diretrizes gerais para o
desenvolvimento urbano nacional compete a União, através da
Constituição Federal de 1988. Deste modo, por meio de Lei Fe-
deral é possível aplicar as diretrizes para um desenvolvimento
urbano eficiente, objetivando a aplicação da política urbana
nacional, também regulamentar os artigos 182 e 183 da Consti-
tuição Federal de 1988.
O Estatuto das Cidades é a Lei Federal 10.257 de julho de
2001, que normatiza os instrumentos de política urbana que
necessitam ser aplicados pela União, Estados e Municípios. A

4
LEITE, José Rubens Morato; FERREIRA, Heline Sivini. Tendências e
perspectivas do Estado de Direito Ambiental no Brasil. FERREIRA, Heli-
ne Sivini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri (org.).
In: Estado de Direito Ambiental: tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense Universitária, 2010.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
668
LetíciaThomasi Jahnke & Isabel Christine de Gregori

aplicação dessas normas se ancoram nos princípios constituci-


onais, pois são normas e instrumentos específicos para os mu-
nicípios relacionados à política urbana.
O Estatuto das Cidades é a mais importante norma regu-
lamentadora do meio ambiente artificial, que através do objeti-
vo de desenvolver as funções sociais da cidade e da proprie-
dade urbana, criou-se a garantia do direito a cidades sustentá-
veis.
No seu Artigo 1°, parágrafo único, observa-se a questão
ambiental como um dos focos: “Para todos os efeitos, esta Lei,
denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem
pública e interesse social que regulam o uso da propriedade
urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar
dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.” 5 Buscando
garantir o “direito a cidades sustentáveis, entendido como o
direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à
infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”6.
Cabe salientar, no que consiste o princípio do desenvol-
vimento sustentável para que seja possível alcançar efetiva-
mente uma cidade sustentável referida no Estatuto das Cida-
des. O princípio do desenvolvimento sustentável incide na
“forma como as atuais gerações satisfazem as suas necessida-
des sem, no entanto, comprometer a capacidade de gerações
futuras satisfazerem as suas próprias necessidades"7.
Delimita também Celso Antonio Pacheco Fiorillo, “o prin-
cípio do desenvolvimento sustentável como o desenvolvimento
que atende às necessidades do presente, sem comprometer as
futuras gerações”8.

5
BRASIL. Lei 10.257/01. Estatuto das Cidades. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Aces-
so em 05 abr. de 2013.
6
Idem.
7
Brundtland apud SCHARF, Regina. Manual de Negócios Sustentáveis.
São Paulo, Amigos da Terra, 2004. p. 19.
8
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental. São
Paulo: Saraiva, 2010. p.87.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
669
Desenvolvimento sustentável e função ambiental da propriedade...

Ademais, no artigo 2° do Estatuto das Cidades9, destaca-


se outras referencias ao meio ambiente:
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da
distribuição espacial da população e das atividades eco-
nômicas do Município e do território sob sua área de in-
fluência, de modo a evitar e corrigir as distorções do
crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio
ambiente;
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evi-
tar: [...] a poluição e a degradação ambiental;
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambi-
ente natural e construído, do patrimônio cultural, históri-
co, artístico, paisagístico e arqueológico;
XIII – audiência do Poder Público municipal e da popula-
ção interessada nos processos de implantação de empre-
endimentos ou atividades com efeitos potencialmente
negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o
conforto ou a segurança da população;

A fim de garantir a aplicação dessas normas, o Estatuto


das Cidades, utiliza dentre outros instrumentos para o plane-
jamento municipal, o plano diretor10. A cidade, como é sabido,
é o espaço territorial no qual habitam seus moradores, de mo-
do que “o direito a propriedade não é ilimitado, mas sim con-
dicionado ao cumprimento da função social”11.Mas e quando a
propriedade cumpre com sua função social?
No artigo 182, §§ 1° e 2°, da Constituição Federal de
198812, explicitam que:
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal,
obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitan-

9
BRASIL. Lei 10.257/01. Estatuto das Cidades. Op. Cit.
10
BRASIL. Lei 10.257/01. Estatuto das Cidades. Op. Cit.
11
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental. São
Paulo: Saraiva, 2010. p.439.
12
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em < http://www.
planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Aces-
so em 05 abr. 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
670
LetíciaThomasi Jahnke & Isabel Christine de Gregori

tes, é o instrumento básico da política de desenvolvimen-


to e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação
da cidade expressas no plano diretor.

Ou seja, é a partir do plano diretor que se delibera acerca


da função social da propriedade e da cidade, instituindo outros
instrumentos reguladores, como parcelamento, IPTU progres-
sivo no tempo, transferência do direito de construir, entre ou-
tros.
Na elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua
implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais
garantirão: a promoção de audiências públicas e debates com
a participação da população e de associações representativas
dos diversos segmentos da sociedade, publicidade dos docu-
mentos produzidos e o livre acesso à esses documentos. Para
alcançar um processo de desenvolvimento urbano deve-se im-
plementar conjuntamente a política e o plano diretor, a fim de
que as diretrizes da política de desenvolvimento e a expansão
urbana trabalhem juntas, formando um sistema de desenvol-
vimento, para melhor prover os indivíduos que ali residem.

OS DIREITOS HUMANOS E A SUSTENTABILIDADE


A preocupação com as questões ambientais tem sido as-
sunto de grande relevância em encontros e reuniões de Chefes
de Estado. Partindo dessa premissa, há que se referir o cres-
cente reconhecimento de um direito humano baseado em um
ambiente saudável.
As legislações acerca das duas temáticas: direitos huma-
nos e direito ambiental, de início, são divergentes. Pois a pri-
meira consiste em uma legislação que se prioriza o bem-estar
individual, em contraponto que o direito ambiental se preocu-
pa com o bem-estar coletivo. Mas “tanto os direitos humanos

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
671
Desenvolvimento sustentável e função ambiental da propriedade...

quanto a legislação ambiental são necessários para proporcio-


nar melhores condições de vida para os seres humanos.”13
Partindo da premissa da sustentabilidade, os direitos ca-
recem de complemento, de obrigações. Deste modo, a proteção
dos direitos ambientais não alteraria a ideia de direitos huma-
nos, em razão da visão antropocêntrica desses.
Desde que houve a adoção da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 1948, foi vislumbrada uma restrição
acerca do poder interno dos Estados, limitando assim, a sobe-
rania interna. Pois “nenhum Estado pode se eximir da obriga-
ção fundamental de proteger a vida e dignidade de um indiví-
duo”14, essa ideia é ponderada como consequência intrínseca
aos direitos humanos.
A ideia central é de que se tratando de objeto de prote-
ção, os seres humanos valem mais do que o meio ambiente,
numa perspectiva ético-jurídica. Mas o que deve estar atrelado
a essa ideia é de que há uma interdisciplinaridade entre am-
bos. Porquanto um meio ambiente equilibrado, com o mínimo
existencial, vislumbrando o princípio da dignidade da pessoa
humana, proporciona uma vida digna aos seres humanos, ou
seja os direitos humanos operam num prisma social mas tam-
bém integram o contexto ambiental.
Um dos elos entre o meio ambiente e os direitos huma-
nos, adveio com a Declaração de Estocolmo, em 1972, por
exemplo os direitos humanos dos povos indígenas15, enten-
dendo-se que:
A dimensão ambiental dos direitos humanos é reconhe-
cida no direito internacional e em muitas jurisdições na-
cionais. Embora não haja um reconhecimento consisten-
te, com padrões uniformes, é comumente aceito hoje em
dia que um dano ambiental pode causar uma violação
dos direitos humanos.

13
BOSSELMANN, Klaus. Direitos humanos, meio ambiente e sustentabili-
dade. In.: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado socioambiental de di-
reitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p.75.
14
BOSSELMANN, Klaus. Op. Cit. p.76.
15
Idem. p. 83.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
672
LetíciaThomasi Jahnke & Isabel Christine de Gregori

Posteriormente, o Princípio 1, da Declaração do Rio 1992,


afirma que: “os seres humanos estão no centro das preocupa-
ções com o desenvolvimento sustentável. Eles têm o direito a
uma vida sadia e produtiva em harmonia com a natureza”16,
sendo esse princípio aceito nas reuniões subsequentes da
ONU. Segundo Klaus Bosselmann:
Os direitos humanos e o meio ambiente estão insepara-
velmente interligados. Sem os direitos humanos, a prote-
ção ambiental não poderia ter um cumprimento eficaz. Da
mesma forma, sem a inclusão do meio ambiente, os direi-
tos humanos correriam o perigo de perder sua função
central, qual seja, a proteção da vida humana, de seu
bem-estar e de sua integridade.

Em linhas gerais, as abordagens com viés antropocêntri-


co privam o meio ambiente de proteção objetiva e direta, pois
a vida, saúde, receberão uma proteção primeiro e inclusive se-
rão objeto de proteção ambiental. Ou seja, o meio ambiente só
é protegido como consequência da proteção do bem-estar hu-
mano. Os interesses e deveres dos indivíduos são inseparáveis
da proteção ambiental17.
Sendo assim, o total gozo dos direitos humanos abarca a
proteção do meio ambiente natural, mas também o artificial,
baseando-se no cumprimento da função social da propriedade,
com diretrizes a serem desenvolvidas através do plano diretor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ações do Poder Público Municipal devem estar direci-
onadas à valorização e preservação do patrimônio, constando
de seus programas projetos de educação e conscientização
sobre a importância da preservação do patrimônio cultural.
Para tanto, no atual contexto brasileiro, a inclusão de uma polí-

16
BRASIL. Declaração da ECO-92 sobre Ambiente e Desenvolvimento.
Disponível em: <http://www.abdl.org.br/article/view/1824/1/247>.
Acesso em 07 de abr. de 2013.
17
BOSSELMANN, Klaus. Op. Cit. p.92-93.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
673
Desenvolvimento sustentável e função ambiental da propriedade...

tica pública de preservação/conservação dos bens culturais


pelas gestões urbanas, como estratégia de desenvolvimento,
depende fundamentalmente, das parcerias entre os setores
público e privado, as quais têm potencial para se constituir em
eficazes instrumentos de proteção do patrimônio cultural imo-
biliário urbano.
Os Planos Diretores Municipais tem a função social de dar
o tratamento necessário às questões atinentes à valorização do
patrimônio cultural. É preciso ouvir a comunidade, proporcio-
nar a devida informação, permitir a participação a fim de que
garantir legitimidade ao Plano e o direito constitucionalmente
assegurado ao meio ambiente.
Embora o Plano Diretor ocupe uma posição central na po-
lítica de desenvolvimento e expansão urbana, não se pode
desconsiderar o fato de que este é apenas um instrumento de
planejamento não sendo coerente que se espere mais do que
efetivamente possa representar. Na prática, verifica-se que as
inúmeras dificuldades para solução das demandas envolvendo
conflito de interesses entre os proprietários de imóveis reves-
tidos de valor cultural, não residem seguramente na falta de
previsão legislativa. Pelo contrário, a legislação brasileira é
pródiga em normas que disciplinam a matéria.
É preciso ouvir a comunidade, proporcionar a devida in-
formação, permitir a participação a fim de que garantir legiti-
midade ao Plano e o direito constitucionalmente assegurado ao
meio ambiente. Assegurando, através da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, os Estados possuem a obrigação fun-
damental de proteger a vida e dignidade de um indivíduo, in-
vocando o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por fim, nota-se um paralelo entre a questão ambiental
para com os direitos humanos, pois tendo diretrizes efetivas no
que tange o meio ambiente, aumenta-se a probabilidade de
uma melhor qualidade de vida para o indivíduo, que é o objeto
de proteção dos direitos humanos.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
674
LetíciaThomasi Jahnke & Isabel Christine de Gregori

REFERÊNCIAS
BOSSELMANN, Klaus. Direitos humanos, meio ambiente e sustenta-
bilidade. In.: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado socioambiental
de direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7
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______. Declaração da ECO-92 sobre Ambiente e Desenvolvimento.
Disponível em: <http://www.abdl.org.br/article/view/1824/1/247>.
Acesso em 07 de abr. de 2013.
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SCHARF, Regina. Manual de Negócios Sustentáveis. São Paulo,
Amigos da Terra, 2004.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
BIOÉTICA E O FIM DA VIDA:
EM BUSCA DE UMA MORTE DIGNA

Liana Maria Feix Suski


Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões (URI), campus de Santo Ângelo, RS. Bacharela em Direito pela
URI. Professora do Curso de Direito da FAI Faculdades de Itapiranga-SC.
Advogada. Membro do Grupo de Pesquisa registrado no CNPq “Tutela dos
Direitos e sua Efetividade”. Organizadora de obras jurídicas e autora de ar-
tigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Parecerista de
periódicos jurídicos. (lianasuski@hotmail.com).
Fernanda Michels Müller
Graduanda do 9º semestre do Curso de Direito da FAI Faculdades de Itapi-
ranga-SC. (fernanda.m.muller@hotmail.com).
Janice Demozzi
Graduanda do 9º semestre do Curso de Direito da FAI Faculdades de Itapi-
ranga-SC. (janicedemozzi@hotmail.com).

Resumo
O objetivo deste artigo consiste em analisar se o progresso médico tem respeitado a
dignidade do ser humano, também, no fim da vida. Assim, a partir do estudo da
bioética e seus princípios, verificar-se-á se os avanços científicos, que acontecem
numa velocidade bastante rápida, oferecendo tratamento, aparelhos e remédios
estão sendo utilizados para melhorar a vida dos enfermos ou se sua prática ocorre
de forma indiscriminada, sem avaliar os riscos-benefícios de cada quadro clínico. A
dignidade do homem deve prevalecer e ser respeitada em todas as situações, uma
vez que em muitos casos a tecnologia científica, em vez de auxiliar o enfermo, se
limita a prolongar seu sofrimento e a reduzir sua qualidade de vida. Os métodos
utilizados para estruturar a pesquisa foram: método de abordagem: dedutivo e sis-
têmico, método de procedimento: histórico e hermenêutico, e método de técnicas
de pesquisa: documental indireta.
Palavras-chave: bioética, dignidade da pessoa humana, morte digna.

Abstract
The present article aims to examine whether medical progress has respected the
dignity of the human being, especially at the end of life. Thus, from the study of
bioethics and its principles, it is verified whether the scientific advances, which hap-
pen at a fast speed, on treatment, equipment and medicines, are being used in order
to improve the lives of sick people or its practice occurs indiscriminately, without
evaluating the risks and benefits of each clinical condition. The dignity of man shall
prevail and be respected in all situations, because, in many cases, the scientific tech-
nology, instead of helping, merely prolong the suffering and reduce the quality of
676
Liana Maria Feix Suski, Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi

life. It is adopted the deductive and systemic methods of approach, and historical
and hermeneutical methods of procedure, while the research technique is indirect
documental.
Keywords: bioethics, human dignity, dignified death.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O direito à vida é o bem mais valioso que um ser humano
pode ter. É certo que assim como nascemos involuntariamente,
do mesmo modo vamos morrer, é um ciclo necessário. Nesse
aspecto, quando se fala que todos um dia chegarão ao momen-
to da morte, se torna indispensável falar em um fim da vida de
forma digna.
Os avanços na área médica trazem contribuições signifi-
cativas aos pacientes que ganham a possibilidade de cura de
uma determinada doença, antes sem tratamento. Os benefícios
proporcionados pelos avanços científicos vão desde a cura de
muitas doenças até a possibilidade de manter apenas o corpo
vivo. Não obstante, essas novas técnicas terapêuticas condu-
zem para um grande paradoxo. De um lado, o tratamento e a
cura de diversas enfermidades que não tinham perspectiva
alguma, novas drogas, métodos de fertilização, clonagem hu-
mana, entre outros avanços. Do outro lado, essa superestrutura
que faz com que o paciente tenha uma vida nos leitos dos hos-
pitais e unidades de tratamentos intensivos, nem sempre efi-
cazes e desejados.
O presente artigo buscará analisar se o progresso médico
tem respeitado a dignidade do ser humano, também, no fim da
vida. Assim, a partir do estudo da bioética e seus princípios,
verificar-se-á se os avanços científicos, que acontecem numa
velocidade bastante rápida, e o princípio da dignidade da pes-
soa humana, são respeitados, de forma a proporcionar uma boa
morte.

APONTAMENTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS SOBRE A BIOÉTICA


As ciências biomédicas no decorrer de seu progresso têm
oferecido inúmeras oportunidades de melhoria no atendimento
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
677
Bioética e o fim da vida

à saúde, majorando a quantidade e qualidade de vida da popu-


lação. Porém, paralelo aos benefícios gerados pelos novos co-
nhecimentos médicos, surgem riscos de abuso sobre limites
éticos e jurídicos1.
O primeiro impulso para o desenvolvimento da bioética se
deu em 1962, quando a revista Life Magazin publicou um artigo
sobre os critérios de seleção dos candidatos ao uso dos equi-
pamentos de hemodiálise, recém-planejados. O segundo mo-
mento importante para o nascimento da bioética, foi a publica-
ção no New England jornal of Medicine em 1966, assinado por
Beecher, que resenhava vinte e dois artigos publicados refe-
rentes à temas bioéticos2.
Com o início dos estudos houve a necessidade de discus-
são sobre o que seria bioética e qual a sua importância. Nesse
sentido, alude Pithan:
O termo bioética, neologismo derivado das palavras gre-
gas bios (vida) e ethiké (ética), foi cunhado no ano de
1970 pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer
Potter, em um artigo denominado “Bioethics the Science
of survival”, e no ano seguinte no seu livro “Bioethics:
brideg to the future”, aonde se referia à importância das
ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida
planetária.3

Em 1972, nos Estados Unidos foi aprovado o documento


denominado a carta dos direitos dos doentes dos hospitais pri-
vados americanos. A carta afirmava, em especial, quatro direi-
tos fundamentais do doente: à vida, à assistência sanitária, à

1
PITHAN, Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídi-
co das “ordens de não-ressuscitação” hospitalares. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004. p. 23.
2
FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética: bioética,
aborto, eutanásia, pena de morte, reprodução assistida, manipulação
genética, AIDS, 117drogas, transplantes de órgãos, ecologia. Tradução
de Maria Luisa Garcia Prada. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 16-17.
3
PITHAN, Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídi-
co das “ordens de não-ressuscitação” hospitalares. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004. p. 23

Programa de Pós-graduação em Direito


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678
Liana Maria Feix Suski, Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi

informação e a uma morte digna, além de instituir novos para-


digmas de relacionamento entre profissionais da saúde e os
doentes. Inspirados nesse documento, vários países adotaram
a carta dos direitos dos doentes provocando uma repercussão
na bioética4.
A carta dos direitos dos doentes surge para dar uma au-
tonomia e garantia maior àqueles que se encontram em situa-
ção de total desamparo legal frente ao fim da vida. Como até
hoje não se encontrou a solução do embate entre a vontade do
paciente e a lei, a carta foi um meio de saneamento do conflito
do princípio da autonomia e a lei, ou melhor, a falta desta.
A bioética já vem sendo empregada em questões polêmi-
cas há alguns anos, e surgiu para ajudar na solução dos confli-
tos que ainda não possuem posição sólida. Nesse aspecto, se-
gundo entendimento de Aline Mignon de Almeida:
[...] Bioética é um ramo da ética que, juntamente com ou-
tras disciplinas, discute a conduta humana nas áreas re-
lacionadas com a vida e a saúde perante os valores e
princípios morais.
É um ato da ética porque avalia os prós e contras de uma
determinada conduta, levando em conta os princípios e
os valores morais existentes na sociedade.
[...]
A Bioética busca entender o significado e o alcance das
novas descobertas criando regras que possibilitem o me-
lhor uso dessas novas tecnologias, entretanto, estas re-
gras não possuem coerção. [...].5

A bioética como um todo, mesmo sendo antiga, tem atu-


almente contribuído muito quando se fala em saúde, dentro de
hospitais, em casos de doenças incuráveis e doentes em fase

4
FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética: bioética,
aborto, eutanásia, pena de morte, reprodução assistida, manipulação
genética, AIDS, 117drogas, transplantes de órgãos, ecologia. Tradução
de Maria Luisa Garcia Prada. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 19.
5
ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Lu-
men Juris, 2000. p. 3-4.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
679
Bioética e o fim da vida

terminal. Ela ajuda a entender a situação e a se chegar a um


pensamento mais aberto e concreto em relação a essas ques-
tões.

PRINCÍPIOS NORTEADORES DA BIOÉTICA


Para cumprir sua finalidade, a bioética possui princípios
básicos que se deve ter em mente quando se discute assuntos
ligados à vida e à saúde dos seres vivos. Ressalta-se aqui o
princípio da beneficência que, segundo Fernández:
[...] desempenhou um papel fundamental na função do
médico em nossa cultura. Tradicionalmente, associou-se
a figura do médico à do sacerdote. O médico deve colocar
seus conhecimentos, a ciência adquirida, seus valores
éticos e sua dedicação a serviço do doente. Sua missão
na sociedade é ‘fazer o bem’ ao doente por meio da ciên-
cia médica.6

Desta forma, deve-se zelar sempre pelo bem estar do pa-


ciente. O médico deve fazer de tudo para que sua atitude seja
aquela que melhor satisfaz, ajuda ou cura seu paciente. Deve-
se levar em conta o princípio da beneficência como o ato mais
benéfico. É nesse sentido que Almeida conceitua-o:
Ele aborda a questão da avaliação do risco/benefício na
utilização de determinado procedimento médico, em ca-
da caso particular. O médico deve sempre fazer uma ava-
liação do procedimento a ser usado pelo paciente, para
que este não sofra desnecessariamente sem obter resul-
tados, ou seja, na sua avaliação os benefícios têm que
superar os riscos, assim como os sofrimentos, para vale-
rem a pena. O médico deve informar o paciente acerca
dos riscos e benefícios, além de dar sua opinião sobre o

6
FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética: bioética,
aborto, eutanásia, pena de morte, reprodução assistida, manipulação
genética, AIDS, 117drogas, transplantes de órgãos, ecologia. Tradução
de Maria Luisa Garcia Prada. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 24.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
680
Liana Maria Feix Suski, Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi

caso, mas a decisão final caberá ao paciente, principal in-


teressado.7

A decisão, portanto, deve ser sempre em conjunto. Assim


como o médico tem o dever de ter um diálogo aberto com seu
paciente, informando todos os prós e contras do seu tratamen-
to e estado de saúde, o paciente deve levar em consideração
tudo o que lhe foi dito pelo médico, e, assim, declarar a sua
vontade.
Outro princípio advindo da bioética é o da justiça, que
conforme Dias aborda
O mais delicado dos princípios é o da justiça, em face do
qual se questiona: até que ponto é legal, e não apenas
legítimo, suspender os suportes de vida? Há uma faceta
que sempre é mistificada e escondida e que se encontra
subjacente em motivações de ordem econômica. A morte
passou a ser asséptica dentro do silêncio barulhento das
CTIs. A consciência de todos é aplacada. A consciência
dos que lá trabalham, pois tudo fizeram; a consciência
dos familiares, porque tudo proporcionaram. Esse fato, no
entanto, leva a que os gastos se tornem cada vez mais
assustadores. Na luta entre verbas restritas e gastos in-
compreensíveis, um novo termo, um novo eufemismo foi
criado: o não-investimento.8

Certamente a vida não pode ser rotulada em valores. A


justiça não pode servir de meio para uma contabilização,
mesmo que em diversos casos os exorbitantes gastos surtam
um prejuízo enorme para as pessoas e até mesmo para o Esta-
do. Há casos em que é cessado o tratamento devido à falta de
recursos financeiros, por não possuírem condição de arcar com
os tratamentos, muitas vezes caríssimos, se tornando mais fá-
cil deixar morrer a investir na doença. Esse princípio traz con-

7
ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Lu-
men Juris, 2000. p. 07.
8
DIAS, Maria Berenice. Vida ou morte: aborto e eutanásia. In: MAGNO,
Arthur. GUERRA, Silva. Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Editora
América Jurídica, 2005. p. 210-211.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
681
Bioética e o fim da vida

sigo a mensagem de que ninguém é igual, e por isso, a justiça


deveria garantir o tratamento igual aos iguais e desigual aos
desiguais, não desfavorecendo alguém em relação a outrem
quando se fala na ajuda financeira.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL


A Constituição brasileira traz como principal direito,
constitucionalmente garantido, a dignidade da pessoa huma-
na. Considerada como fundamento de todo o sistema, é a dig-
nidade que dará a direção a ser seguida primeiramente pelo
intérprete9. E, ao fazer a conexão entre a bioética, mais preci-
samente a morte digna, com o sistema jurídico brasileiro é
possível verificar que o princípio da dignidade da pessoa hu-
mana é tido como fundamento indispensável para afirmar ou
negar a legalidade da morte digna.
Após a soberania, a dignidade aparece no texto constitu-
cional como fundamento da República brasileira. Lê-se no arti-
go 1º:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela
União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e
tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana.

Esse fundamento labora como princípio maior para a in-


terpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pes-
soas na Constituição Federal do Brasil. Qualquer interpretação
legal e jurídica deve necessariamente levar em consideração o
princípio da dignidade humana cujo conteúdo é o alicerce de
todas as normas com vistas à aplicação ao mundo real.

9
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
682
Liana Maria Feix Suski, Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi

A dignidade da pessoa humana está explicita na Consti-


tuição Federal de 1988, mas não o seu conceito, visto que seu
valor é o mesmo da vida humana. Entretanto, ao se afirmar que
o processo de morrer faz parte da vida, que como tal deve ser
vivida com dignidade, é aceitável considerar a morte parte da
vida e o direito à vida implica garantia de uma vida com digni-
dade, parecendo possível argumentar pela existência de um
direito à morte digna10.
Dworkin defende a existência de um direito à dignidade,
afirmando que as pessoas têm o direito de não ser vítima da
indignidade, de não ser tratadas de um modo que, em sua cul-
tura ou comunidade, se entende como demonstração de des-
respeito11. Ainda, sobre esse princípio, pode-se dizer que “sem
dignidade, a vida do homem deixa de ser verdadeiramente
humana e se faz dispensável: essa vida já não é vida. Então,
antecipar a morte é a solução apetecível quando a vida perde
sua dignidade”12.
O princípio da dignidade da pessoa humana vai ao encon-
tro do direito à vida, que, também, está expresso na Constitui-
ção Federal de 1988, no seu artigo 5°:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do di-
reito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...] (grifo nosso)

10
PITHAN, Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídi-
co das “ordens de não-ressuscitação” hospitalares. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004. p. 58.
11
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades
individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 334.
12
EICK, Julie; RODRIGUES, Jorge Arthur Moojen. A eutanásia frente ao
direito a vida (fé e constituição). In: GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Hu-
manos, tomo 4: A quarta geração em debate. Porto Alegre: Editoração
eletrônica: Luciane Delani. p. 138.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
683
Bioética e o fim da vida

É importante destacar que a vida é irrenunciável pelo ser


humano, e é o bem mais precioso da humanidade. Por isto, o
Estado não pode ser soberano a ponto de decidir o rumo da
vida de alguém. Aos indivíduos, é garantida a inviolabilidade
da vida, como aludido no artigo supracitado, não podendo ela
ser mero objeto, é necessário ter um motivo plausível para que
possa efetivamente tomar outros rumos que não sua manuten-
ção. Destarte, como destaca Maria Berenice Dias
Ainda que todos tenham como bem maior a vida, não se
pode pensar em tal substantivo sem adjetivações, ou se-
ja, o que se deseja é uma vida boa, saudável e feliz. Ao
confrontar-se a ausência de tais predicados é que cabe
questionar a quem pode ser dado o poder de decidir so-
bre a vida ou a morte [...].13

Portanto, a dignidade é um valor íntimo e único de cada


pessoa, por esse motivo, diz-se que ela acompanha o ser hu-
mano por toda sua vida, do nascimento até a morte, sendo
também um direito irrenunciável e, por isso, implícito, inerente.

O FIM DA VIDA: EM BUSCA DE UMA “BOA” MORTE


Em praticamente todos os ordenamentos jurídicos demo-
cráticos contemporâneos o princípio da dignidade da pessoa
humana ocupa lugar de destaque, sendo considerado o fim
último do Estado Democrático. Vive-se em um tempo marcado
pelo progresso das tecnologias, utilizadas para diversos fins,
principalmente no que diz respeito aos novos experimentos
com seres humanos e a utilização maciça desses recursos para
“salvar” o homem da morte ou proporcionar-lhe mais tempo de
vida. Mas é preciso questionar se as novas tecnologias não
estão agredindo o homem e se estão proporcionando um fim
digno aos enfermos. Essas questões estão em constante dis-
cussão e motivam debates em diversas áreas como a jurídica,

13
DIAS, Maria Berenice. Vida ou morte: aborto e eutanásia. In: MAGNO,
Arthur. GUERRA, Silva. Biodireito e Bioetica. Rio de Janeiro: Editora
América Jurídica, 2005. p. 207.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
684
Liana Maria Feix Suski, Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi

a biológica, a religiosa e, sobre tudo, a bioética. Mostrando sua


preocupação com a realidade complexa que se vive, Gebler
afirma que o direito deve aceitar as descobertas científicas cu-
jas utilizações não se demonstram contrárias à natureza do
homem e de sua dignidade. O direito, como a biologia, parte da
observação. A ciência tem a responsabilidade de ponderar su-
as descobertas, não ignorando a existência do homem14.
Entretanto, muitas técnicas utilizadas pela medicina e
pela ciência acabam por menosprezar a dignidade da pessoa
humana, de forma que o valor da vida não é devidamente ob-
servado. Diniz compartilha essa ideia, enfatizando que a pes-
soa humana e sua dignidade constituem o fundamento e fim
da sociedade e do Estado, sendo esse valor que prevalecerá
sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico15.
Apesar de os avanços científicos ocorrerem numa veloci-
dade bastante rápida, oferecendo novos tratamentos, apare-
lhos e remédios cujo fim é melhorar a vida dos pacientes, am-
pliando seu tempo de vida, nem sempre é possível aplicar es-
ses avanços indiscriminadamente na prática. A utilização da
tecnologia em determinadas situações não tem nenhuma fina-
lidade, especialmente quando o paciente não tem perspectiva
de melhora no seu quadro clínico.
A dignidade do homem deve prevalecer e ser respeitada
em todas as situações, uma vez que em muitos casos a tecno-
logia científica, em vez de auxiliar o enfermo, se limita a pro-
longar seu sofrimento e a reduzir sua qualidade de vida. Ou-
trossim, é importante mencionar as palavras de Diniz, quando
afirma que a ciência deve ser o mais poderoso apoio para que a
vida humana seja cada vez mais digna de ser vivida. Logo,
nem tudo que é cientificamente possível é moral e juridica-
mente admissível. Além disso, o direito somente deve aceitar

14
GEBLER, Marie-Josèphe. Le droit français de filiation et la verité.
Préface de Denis Tallon; exposé introdutif de Pierre Coulombel. Paris:
Libraire générale de droit et de jurisprudence, 1970. p. 16.
15
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva,
2001. p. 336.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
685
Bioética e o fim da vida

as descobertas científicos que não contrariam a natureza hu-


mana e sua dignidade16.
No momento da morte esse princípio deve ser ainda mais
observado e praticado, pois é principalmente na dor e na an-
gústia que o homem necessita que seus valores sejam respei-
tados. A tecnologia não pode aproveitar-se do momento frágil
que passa o enfermo para ignorar seus valores e direitos, entre
eles o da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, é ne-
cessário que as políticas de saúde, destinadas à formação de
médicos, advogados, juristas e profissionais do direito, estejam
orientadas pelos princípios ético-jurídicos e comprometidas
com uma prática mais humanista e adequada ao respeito da
dignidade humana.
A dignidade é um valor individual. Por isso, para ser valo-
rado e reconhecido, necessita ser considerado também social-
mente. Pela característica de associação dos homens, que não
vivem isolados, é essencial a presença de seu semelhante para
estimular seu progresso espiritual, intelectual e afetivo, com-
preendendo-se o ser humano como alguém dotado de valores,
constituindo a vida, por conseguinte, um valor, tanto nas soci-
edades mais complexas como nas mais rudimentares17.
Sarlet reforça a ideia da dignidade como valor essencial
da pessoa humana, afirmando:
A dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa hu-
mana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemen-
to que qualifica o ser humano como tal e dele não pode
ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na
possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma
pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta,
portanto, como qualidade integrante e irrenunciável da
própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida,
respeitada, promovida e protegida, não podendo, contu-

16
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva,
2001. p. 374.
17
DALLARI, Dalmo de Abreu. A vida como valor ético. In: Bioética e direi-
tos humanos. Disponível em: http://www.eurooscar.com/Direitos-
Humanos/direitos-humanos25.htm. Acesso em: 7 jan. 2012.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
686
Liana Maria Feix Suski, Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi

do (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou


retirada, já que existe em cada ser humano como algo
que lhe é inerente.18

Assim, quem não tiver ideia de dignidade se sentirá des-


pertado às reflexões e quem tiver a consciência de sua impor-
tância irá defendê-la e considerar sempre a reflexão sobre o
assunto19. Entretanto, é natural e ao mesmo tempo preocupan-
te que o conceito da dignidade seja reduzido a um único signi-
ficado, em todas as situações na história. Nesse sentido, Fran-
cesco elucida a necessidade de se ter consciência da impor-
tância de uma reflexão sobre a dignidade:
Quem, ao contrário, estiver consciente da fundamental
importância da dignidade humana e da sua defesa para o
próprio destino do homem irá considerar imprescindível
manter sempre aberta e viva a reflexão sobre o assunto.
Porque o tema da dignidade, embora seja considerado
essencial por todos, requer uma constante redefinição,
pois está submetido ao permanente risco de uma espécie
de implosão, capaz de esvaziá-lo completamente e redu-
zi-lo a uma mera fachada sem conteúdo.20

Do mesmo modo, estando a dignidade introduzida na vi-


da das sociedades, é imprescindível destacar sua importância
no controle dos avanços científicos. Assim, a dignidade deverá
ser invocada sempre que a medicina possa ultrapassar os limi-
tes toleráveis dos avanços, adequando-se às rápidas transfor-
mações simbólicas e experiências. A bioética adota a dignida-
de como base para sua consciência, requerendo constante re-
flexão.

18
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fun-
damentais na Constituição Federal de 1988. 2 ed. ver. ampl. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2002. p. 41-2.
19
D’AGOSTINHO, Francisco. Bioética: segundo o enfoque da filosofia do
direito. São Leopoldo: UNISINOS, 2006. p. 73.
20
D’AGOSTINHO, Francisco. Bioética: segundo o enfoque da filosofia do
direito. São Leopoldo: UNISINOS, 2006. p. 73.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
687
Bioética e o fim da vida

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo com a medicina moderna, ainda existem casos em
que esta nada pode fazer para ajudar no tratamento ou na cura
de um paciente. Os benefícios da medicina são indiscutíveis e
de extrema importância, uma vez que seus avanços são res-
ponsáveis pela melhora da qualidade e longevidade da vida
das pessoas. Contudo, é necessário fazer um balanço: até que
ponto os recursos devem ser aplicados, pois nem todos virão
simplesmente para ajudar o paciente, podendo também conter
riscos na sua aplicação (efeitos colaterais).
Sendo obrigação do médico zelar sempre pelo bem estar
do paciente, deve fazer de tudo para que sua atitude seja
aquela que melhor satisfaz, pois o princípio da beneficência,
defendido pela bioética como o ato mais benéfico, nem sempre
é o tratamento. Às vezes, é preferível morrer a submeter-se a
tratamentos extraordinários e excessivos.
Assim, ao se afirmar que o processo de morrer faz parte
da vida humana, que como tal deve ser vivida com dignidade,
parece aceitável tutelar que a morte é parte da vida e o direito
à vida implica garantia de uma vida com dignidade, sendo,
portanto, possível argumentar pela existência de um direito à
morte digna. Em suma, o estudo teve a intenção de defender
que o essencial ao ser humano não é apenas viver, mas viver
bem e com dignidade até os últimos momentos da vida.

REFERÊNCIAS
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Lumen Juris, 2000.
D’AGOSTINHO, Francisco. Bioética: segundo o enfoque da filosofia
do direito. São Leopoldo: UNISINOS, 2006.
DALLARI, Dalmo de Abreu. A vida como valor ético. In: Bioética e
direitos humanos. Disponível em: htto://www.eurooscar.com/
Direitos-Humanos/direitos-humanos25.htm. Acesso em: 7 jan. 2012
DIAS, Maria Berenice. Vida ou morte: aborto e eutanásia. In:
MAGNO, Arthur. GUERRA, Silva. Biodireito e bioética. Rio de Janei-
ro: Editora América Jurídica, 2005. p. 210-211

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
688
Liana Maria Feix Suski, Fernanda Michels Müller & Janice Demozzi

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WMF Martins Fontes, 2009.
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fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2 ed. ver. ampl.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
HANNAH A RENDT:
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM
TEMPOS DE AUSÊNCIA DE MUNDO

Lizandra Andrade Nascimento


Acadêmica do 9º Semestre do Curso de Serviço Social, da Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – São Luiz Gonza-
ga. (luanarambo@yahoo.com.br)
Gomercindo Ghiggi
Professor Orientador. (gghiggi@terra.com.br)

Resumo
O presente artigo aborda o tema dos direitos humanos e da cidadania, com base nas
contribuições da filosofia política de Hannah Arendt e comentadores. A autora abor-
da a questão a partir da análise da condição dos apátridas, criticando a ilusão funda-
cionista dos direitos humanos e formulando o conceito de cidadania como o direito a
ter direitos. Discutir direitos humanos e cidadania, numa visão arendtiana, implica
refletir sobre conceitos como liberdade, ação, pluralidade e espaço público, sem os
quais a noção de cidadania, enquanto participação efetiva dos cidadãos na vida polí-
tica, é destituída de sentido. Por fim, destaca-se a necessidade de reconciliação com
o mundo, para que a cidadania seja realmente vivenciada, assegurando-se um mun-
do comum, onde os cidadãos possam se sentir em casa, assumindo uma atitude de
cuidado e preservação deste espaço.
Palavras-chave: Cidadania. Direitos Humanos. Espaço Público. Liberdade. Amor
Mundi.

Abstract
This article addresses the issue of human rights and citizenship, based on contribu-
tions to political philosophy of Hannah Arendt and his commentators. The author
approaches the issue from the analysis of the condition of stateless, criticizing a
foundationalist illusion of human rights and formulating the concept of citizenship as
the right to have rights. Discuss human rights and citizenship, a vision Arendt implies
reflecting on concepts like freedom, action, diversity and public space, without
which the notion of citizenship as active participation of citizens in political life, is
meaningless. Finally, we highlight the need for reconciliation with the world, so that
citizenship is really experienced, ensuring a common world, where citizens can feel
at home, assuming an attitude of care and preservation of this space.
Keywords: Citizenship. Human Rights. Public Space. Freedom. Word Love.
690
Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi

CIDADANIA É O DIREITO A TER DIREITOS (HANNAH ARENDT)


Hannah Arendt foi uma defensora da cidadania direta,
participativa e ativa, e crítica do encurtamento da esfera públi-
ca e da democracia na sociedade de massas. No entanto, ques-
tiona o conceito de cidadania e de política concebido como
verdade absoluta, abstrata e universal. Esse posicionamento
parte da constatação de que os direitos humanos, a partir de
uma validade fundacional, não foram eficazes na proteção dos
apátridas e refugiados, que destituídos de cidadania e despro-
vidos de direitos humanos, foram vitimados pela violência.
Tal situação revela, segundo Arendt, que o homem mo-
derno vivenciou a frustração das promessas de emancipação e
de felicidade, uma vez que os direitos naturais, o positivismo
jurídico e o universalismo foram se mostraram insuficientes
para assegurar os direitos humanos, conforme previstos nas
Declarações de Direitos.
Assim, a autora enfatiza que não basta o ser humano
possuir direitos, se não lhe for assegurado um lugar no mundo,
uma nacionalidade, a partir da qual possa ter reconhecida a
sua cidadania, a sua ligação à humanidade. Conforme Melle-
gari e Ramos (2011, p. 154), somente os direitos e a proteção
que a nacionalidade outorgava parecia atestarem o fato de que
ainda pertenciam ao mundo civilizado. A concepção tradicional
tomada na proclamação dos direitos humanos tomou como ba-
se o homem em seu estado de natureza singular, não conside-
rando que tais direitos dependeriam da “pluralidade humana”
sob a suposição de que eles permaneceriam válidos mesmo
que o homem fosse expulso da comunidade humana.
Para Arendt, a natureza humana não pode ser o funda-
mento de qualquer direito ou política. No caso dos sem pátria,
confinados nos campos de concentração, ocorre um abandono
à própria sorte, à caridade, não lhes garantindo abrigo sob a
tutela do direito, reduzindo a sua condição à de um animal vi-
vente.
Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça,
que são os direitos do cidadão, está em jogo quando dei-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
691
Hannah Arendt:

xa de ser natural que um homem pertença a uma comu-


nidade em que nasceu, e quando o não pertencer a ela
não é um ato da sua livre escolha, ou quando está numa
situação em que, a não ser que cometa um crime, recebe-
rá um tratamento independente do que ele faça ou deixe
de fazer. Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que
são privados de seus direitos humanos. São privados não
de seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do
direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de
opinarem. Privilégios (em alguns casos), injustiças (na
maioria das vezes) bênçãos ou ruínas lhes serão dados ao
sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem,
fizeram ou venham a fazer (ARENDT, 2006, p. 330).

Para que o direito a ter direitos seja assegurado, o per-


tencimento a uma comunidade humana é indispensável, como
garantia de vínculo com um Estado, na condição de cidadãos,
que mantenha os indivíduos ligados a uma nação, da qual pos-
sam receber proteção jurídica e política.
Frente às críticas ao jusnaturalismo, baseado num concei-
to contemplativo e universalmente abstrato do bem e do dever,
numa visão metafísica e atemporal de humanidade, Arendt
salienta que o direito deve ser construído no “artifício huma-
no”, nem exclusivamente sobre a natureza humana do homem,
tampouco sobre o formalismo vazio do positivismo legal, mas
sobre a condição política do homem como cidadão que se dá
entre iguais no espaço público.
Direito e política relacionam-se e atuam diretamente na
construção do mundo comum, concebido como o espaço que
reúne a pluralidade humana e oportuniza a vivência da ação
política. Assim, o mundo comum, ao mesmo tempo em que une
os diferentes, possibilita a igualdade de todos, vivenciada não
como algo natural, mas como conquista obtida por meio da
organização política dos homens, sendo orientada pelo princí-
pio da justiça. Para Arendt (2006, p. 335), não nascemos iguais:
tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força da
nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente
iguais.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
692
Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi

A autora questiona a afirmação de que todos os homens


nascem livres e iguais em direitos, proposta pela Declaração
de 1789, e posteriormente confirmada pela Declaração Univer-
sal dos Direitos do Homem da ONU, de 1948, uma vez que a
igualdade é uma construção humana. O direito à igualdade
não resulta da natureza humana, como defende o jusnatura-
lismo, tampouco resulta do positivismo jurídico.
Mellegari e Ramos (2011, p. 159) explicam que os direitos
do homem inscritos nas Declarações representavam um anseio
muito compreensivo de proteção e que, por isso, a positivação
das declarações nas constituições que se iniciavam no século
XVIII tinha como objetivo conferir aos direitos nelas contem-
plados uma dimensão permanente e segura. Contudo, a positi-
vação das declarações de direitos não desempenhou esta fun-
ção estabilizadora, pois desde o século XVIII até nossos dias,
os direitos do homem contemplados nas constituições e nos
instrumentos internacionais foram alterados frente às mudan-
ças sociais e históricas.
Segundo os autores, a crítica arendtiana não visa destruir
teorias sobre os fundamentos dos direitos humanos, cujos ar-
gumentos resultaram na concepção de cidadania presente até
nossos dias. Também não ignora os benefícios que as leis posi-
tivadas asseguram aos direitos humanos. Especialmente por-
que a autora concorda que não se pode prescindir da ideia li-
beral de obediência à lei e da importância de normas de con-
duta e para a convivência civilizada entre os homens. Seu en-
foque desloca-se para a necessidade de correção tanto dos
excessos de um racionalismo abstrato (jusnaturalismo), quanto
aos de um positivismo puro, os quais tornam a cidadania im-
permeável à sua necessária capacidade concreta de ação.
Desse modo, Hannah Arendt propõe um conceito radical
de cidadania, pautado na participação efetiva dos cidadãos na
construção da dimensão política dos direitos humanos, cuja
prerrogativa política é o direito a ter direitos, o que só é possí-
vel no espaço público motivado pela ação como atividade pró-
pria do viver político de homens que se realizam como cida-
dãos. Nesse contexto, a liberdade tem papel fundamental, pos-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
693
Hannah Arendt:

to que “a raison d’être da política é a liberdade e seu domínio


de experiência é a ação” (ARENDT, 1972, p. 192).
Também para Bárcena (1997, p. 193), a forma de reflexão
de Hannah Arendt sobre a vida política e sobre os aconteci-
mentos humanos está guiada não por questões que represen-
tam a busca da “verdade” e sim perguntas que expressam a
investigação de um significado, a busca de sentido.
[...] seus escritos visam compreender, opinar e não dizer
a verdade; pensar o totalitarismo, mas, sobretudo, pensar
a respeito das questões e percursos da sociabilidade
humana que configuraram os atuais encurtamentos da
esfera pública e da ação. Não por acaso, mobiliza energi-
as para compreender a novidade do totalitarismo assim
como para interpretar as experiências e noções políticas
da polis grega, da república romana, das antigas e recen-
tes tiranias, dos impérios, dos estados nacionais, ou das
democracias atuais, as quais, não raro, substituem ou
subordinam as atividades e interesses da esfera pública
à garantia do “bem estar social” ou dos interesses priva-
dos (GARCIA, 2006, p. 04).

Arendt vincula a ideia de cidadania e o ideal da civilidade


com discussões acerca da modernidade e suas conseqüências,
dentre as quais se encontram a emergência do valor da subje-
tividade, a universalização do princípio de autonomia moral, e
a crescente divisão da vida social em esferas separadas (o pú-
blico e o privado). Nossas modernas democracias, apesar de
sua natureza procedimental e representativa, acabam não re-
presentando devidamente os interesses dos cidadãos porque a
política foi monopolizada pelos políticos profissionais, que se
escondem por trás de um certo “poder de perícia” (BÁRCENA,
1997, p. 195-196).
É possível elaborar um conceito moral de uma boa cida-
dania – quando a pensamos em termos de uma prática de
compromisso ou atividade desejável. Arendt considera a plura-
lidade como princípio político por excelência, o bem que uma
sociedade busca contemplar tanto as diferenças entre as pes-

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694
Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi

soas, seus interesses e opiniões distintas, como a igualdade


que possuem enquanto cidadãos, ou seja, a solidariedade e a
reciprocidade que cultivam como politicamente iguais.
Segundo Aguiar (2001, p. 76-79), a noção de pluralidade
pode ser lida, na autora, numa perspectiva político-filosófica:
por um lado se opõe às pretensões unicistas, à idéia contem-
plativa de um denominador comum e fundamento último, ga-
rantia, causa e critério de todas as dimensões do real e da vi-
da, ao mesmo tempo em que – por outro lado – é ressaltada a
convivência entre os homens como base dos organismos políti-
cos e como campo apropriação à individualização. A pluralida-
de é a condição básica da ação e do discurso, tem o duplo as-
pecto da igualdade e diferença. Por serem iguais os homens
podem compreender-se entre si e aos seus ancestrais e por
serem diferentes necessitam da ação e do discurso para se fa-
zerem entender.
A isonomia embutida no conceito arendtiano de plurali-
dade considera, assim, a ação como a possibilidade dos
homens viverem distintos e singulares entre iguais; eles
não são por natureza iguais, tornam-se tais na esfera pú-
blica, na qual é dada a todos a possibilidade de iniciar
uma ação e de se fazer compreender através do discurso
(AGUIAR, 2001, p. 79).

Estender essas noções ao campo da educação pode signi-


ficar que, educar para a cidadania implica desenvolver o hábito
de um pensar compreensivo, de uma atividade de pensamento
e juízo hábil, de um saber mover-se na brecha do tempo e da
tradição. Não se trata, portanto, como expresso em muitos dis-
cursos pedagógicos atualmente, em preparar as crianças para
a cidadania ou para transformar o mundo. Trata-se, pois, de
possibilitar o exercício do pensar e compreender o mundo em
que se inserem, respeitando a tradição que as antecede e, ao
mesmo tempo, trazendo à tona a novidade que as caracteriza.
Nesse sentido, Arendt concebe a compreensão como um
exercício reflexivo no marco da ruptura da tradição. A autora

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
695
Hannah Arendt:

adota a posição de pária1 para usar este conceito como ponto


de arranque para o pensamento e a prática do juízo, para a
ação política e a realização deste espaço de liberdade que sur-
ge entre os homens (BÁRCENA, 1997, p. 191).
Arendt é defensora da atividade do pensar, que implica
uma postura crítica, que se contrapõe ao autoritarismo da ra-
zão, à indistinção entre público e privado e à eliminação do
público enquanto espaço do livre exercício da cidadania, onde
a legitimidade reside nos cidadãos, nas suas falas e feitos.
Este espaço público e a política são ameaçados, atual-
mente, pois a participação cidadã ativa deixou de interessar ao
cidadão, que já não se sente capaz de julgar a política e se dá
conta de que o interesse por ela se fechou na política dos pro-
fissionais. A cidadania tornou-se limitada ao exercício ocasio-
nal do voto. Isso porque, como assinalou Arendt, em A Condi-
ção Humana, a época moderna trouxe como conseqüência a
substituição da esfera pública pela social: “o auge da socieda-
de acarretou a simultânea decadência da esfera pública e pri-
vada”. A perda de um mundo comum e de espaços de aparição
em que o cidadão pode manifestar-se como tal, são conse-
qüências de uma modernidade em que “os homens não podem
converter-se em cidadãos do mundo como o são de seus res-
pectivos países” (BÁRCENA, 1997, p. 201).
Com a vitória do homo laborans sobre o homo politicus,
assistimos ao desaparecimento de “um mundo comum”, à de-
cadência da esfera pública como lugar de revelação e expres-
são de nobres palavras e gestos heróicos. Neste contexto, a
crise da educação pode ser considerada como conseqüência da
crise geral do mundo moderno, cujas manifestações são a crise
da autoridade e a crise da tradição.
A partir do século XVIII, a novidade se transforma em
uma ideia política de grande importância em matéria educati-
1
Ser pária significava isso: respeitar os cidadãos, aqueles que estão en-
gajados na ação como seres capazes de decisão. A autonomia do pen-
samento que não se deixa patrulhar e determinar por uma ideologia,
crença etc., deságua na autonomia da esfera pública, na postulação da
radical igualdade de direitos de todos nessa esfera (AGUIAR, 2001, p.
220).

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
696
Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi

va: a educação como um meio da política e esta como uma


forma de educação. E aí se encontra o equívoco, pois conforme
discutimos anteriormente, para Arendt a educação não pode
ocupar lugar nenhum na política. Isso porque, na educação
lidamos com os novos, com os recém-chegados, diante dos
quais é necessário assumir, com responsabilidade e autorida-
de, a tarefa de indicar-lhes como o mundo é, ao passo que, na
política lidamos com pessoas já educadas.
Embora não possa e não deva desempenhar papel na po-
lítica, a educação, como assinala Bárcena (1997, p. 204), é um
fator crucial de preservação de um mundo comum, justamente
aquele que a modernidade aparece ter diluído, na análise de
Hannah Arendt. A educação é também um elemento crucial de
preparação para a capacidade de aparecer, de mostrar-se, de
revelar-se nesse mundo comum e em cada cenário público.
Nisso consiste, substancialmente, e de forma concreta, a
educação política e a construção de compromisso cívico:
preparar para uma ação expressiva, reveladora da pró-
pria identidade, em que o pensamento adquire a forma
de sentido comum: o juízo (político) que funda e dá senti-
do à comunidade (BÁRCENA, 1997, p. 204).

Arendt aponta o desaparecimento da esfera pública como


uma das mais importantes consequências da modernidade. A
esfera pública é o âmbito de revelação em que reinam a liber-
dade e a igualdade, o espaço em que os indivíduos, enquanto
cidadãos interagem por meio da fala e da persuasão e o con-
texto propício em que mostram suas genuínas identidades e
decidem, mediante da deliberação coletiva, sobre assuntos de
interesse comum.
Com a perda da esfera pública se desvitaliza a cidadania
mesma. Por isso, para revitalizá-la, é necessário uma re-
vitalização do público, conceito que define de duas for-
mas. Em primeiro lugar, o público faz referência à apa-
rência, ao que todo mundo pode ver e ouvir. É público o
que pode ser visto, o que resulta, portanto, mais aparen-
te. Em segundo lugar, o público é o comum. Um espaço

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697
Hannah Arendt:

em comum que se interpõe entre os indivíduos. Algo que


une os sujeitos, mas que por vezes os separa e impede,
por assim dizer, que caiam uns sobre os outros
(BÁRCENA, 1997, p. 208-209).

Nas condições modernas, a cidadania passa a ser conce-


bida de forma instrumental, representando seu enfraquecimen-
to mediante ao desinteresse ou impedimento do exercício ativo
da política pelos cidadãos. Tal limitação é devida, em grande
parte, à política representativa, a qual, na opinião de Arendt,
transforma-se num mecanismo político de substituição da par-
ticipação direta, uma vez que os representantes agem como
porta-vozes da vontade dos eleitores.
A ação política deixa, assim, de ser exercida pelos cida-
dãos e é confiada a especialistas. Consequentemente, o espa-
ço público passa ao domínio de uma minoria, que concentra o
poder de decisão, em detrimento da pluralidade e da diversi-
dade de opiniões. A representação somente pode ser aceita
quando se forma “uma opinião considerando um dado tema de
diferentes pontos de vista, fazendo presente em minha mente
as posições dos que estão ausentes; isto é, eu os represento”
(Arendt, 1972, p. 299).
[...] esse processo de representação não adota cegamen-
te as concepções efetivas dos que se encontram em al-
gum outro lugar, e, por conseguinte, contempla o mundo
de uma perspectiva diferente; não é uma questão de em-
patia, como se eu procurasse sentir como alguma outra
pessoa, nem de contar narizes e aderir a uma maioria,
mas de ser e pensar em minha própria identidade onde
efetivamente não me encontro (idem).

Sabendo-se que a pluralidade é condição básica da ação


porque possui em si mesma tanto a finalidade de toda vida
autenticamente política, a comunicação, como seu procedi-
mento, o discurso; e, que toda forma de vida pública é fonte de
revelação da própria identidade, a educação cívica se trans-
forma numa ação discursiva reveladora da identidade pessoal,
conforme afirma Arendt (2005, p. 203-204):

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Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi

Mediante a ação e o discurso, os homens mostram que


são, revelam ativamente sua única e pessoal identidade e
fazem sua aparição no mundo humano [...]. sem a revela-
ção do agente nesse ato, a ação perde seu específico ca-
ráter e passa a ser uma forma de realização entre outras.
Com efeito, então não é menos meio para um fim que o é
a fabricação para produzir um objeto.

A cidadania depende dos direitos políticos formais de li-


berdade e igualdade. Nos posicionamentos arendtianos há um
claro predomínio dos valores de solidariedade, amizade cívica
e dos valores públicos de imparcialidade. As atividades políti-
cas se localizam em um espaço público dentro do qual os cida-
dãos são capazes de se encontrar, de intercambiar opiniões e
de debater suas diferenças com o objeto de encontrar soluções
comuns para seus problemas.
A política exige um espaço comum de aparição pública
em que as diversas perspectivas podem articular-se. As opini-
ões representativas exigem a formação de pensamento exten-
sivo ou representativo (a faculdade do juízo), cuja função é fa-
cilitar a contemplação dos assuntos comuns desde o maior
número de pontos de vista. A unidade da comunidade política
é resultante do compromisso da cidadania nas atividades e
práticas do espaço público e suas instituições. O exercício da
cidadania exige uma ativa participação dos cidadãos na esfera
pública e em seus distintos foros de discussão e deliberação.
Dado que, para Arendt, a pluralidade é elemento essenci-
al da política, o bem que uma comunidade intenta alcançar
sempre se constitui como um bem plural, que reflita as dife-
renças entre pessoas, seus distintos interesses e opiniões e a
comunidade que visam construir como cidadãos: a solidarie-
dade e reciprocidade que cultivam como politicamente iguais.
Então, o bem comum só se realiza pela confrontação, articula-
ção de interesses por meio da deliberação coletiva, pela mútua
persuasão no diálogo, debate e argumentação política
(BÁRCENA, 1997, p. 212-213).
No processo de articulação do discurso político é impres-
cindível a constituição de uma identidade coletiva e a constru-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
699
Hannah Arendt:

ção do sentido de ação política. Ambos os aspectos são cen-


trais para uma cidadania participativa. Daí a necessidade de
reativar a capacidade dos cidadãos mediante a formação de
juízos responsáveis e imparciais, pois a cultura política da ci-
dadania se manifesta, na habilidade do cidadão de ajuizar poli-
ticamente.
A efetivação dos direitos humanos - não apenas como ga-
rantias legais, mas principalmente como instrumentos de pro-
teção e de respeito à dignidade humana - vincula-se, portanto,
com a perspectiva política da cidadania, a qual, por seu turno,
exige a livre ação dos indivíduos no espaço público, recupe-
rando o sentido da participação política ativa, como contrapo-
sição aos mecanismos de dominação, domesticação e controle,
típicos da sociedade de massas.
Por fim, cabe ressaltar que a recuperação do sentido polí-
tico da cidadania vincula-se à noção de amor mundi, definida
por Arendt (2005, p. 732), como aspecto do mundo que se for-
ma como espaço-tempo, na medida em que os homens existem
no plural e em que permanecemos sempre estrangeiros, por-
que somos no singular, cuja pluralidade e somente ela, nos
permite estabelecer nossa singularidade.
Para Arendt (2005, p. 192-193), a “qualidade reveladora
da ação e do discurso vem à tona quando as pessoas estão
com outras, isto é, no simples gozo da convivência humana, e
não ‘pró’ ou ‘contra’ as outras”. Por isso, além do ato em si,
para manifestar-se plenamente, a ação requer o espaço da es-
fera pública e transcende a mera atividade produtiva.
A ação e o discurso ocorrem entre homens, na medida em
que a eles são dirigidos, e conservam sua capacidade de
revelar o agente mesmo quando o seu conteúdo é exclu-
sivamente ‘objetivo’, voltado para o mundo das coisas no
qual os homens se movem, mundo este que se interpõe
ente eles e do qual procedem seus interesses específicos,
objetivos mundanos. Estes interesses constituem, na
acepção mais literal da palavra, algo que interessa, que
está entre as pessoas e que, portanto, as relaciona e in-
terliga (ARENDT, 2005, p. 195).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
700
Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi

A revelação que ocorre através do discurso e o surgimen-


to de algo novo por meio da ação incidem sobre a teia dos ne-
gócios humanos, que é pré-existente. A pré-existência desse
espaço é condição para que possam ser produzidas ‘histórias’,
com a mesma intensidade com que a fabricação produz coisas
tangíveis. Por isso, toda vida pode ser narrada como uma his-
tória. A vida humana constitui uma história e a História vem a
ser o livro de história da humanidade, com muitos atores e nar-
radores, mas sem autores tangíveis, posto que ambas resultam
da ação (ARENDT, 2005, p. 196-197).
Para a ação, a presença dos outros é indispensável, por-
tanto, estar isolado é estar privado da capacidade de agir. A
ação e o discurso necessitam da presença de outros, sendo
circundados pela teia de atos e palavras de outros homens e
estão sempre em contato com ela.
O espaço da pluralidade é descrito por Arendt como o
mundo comum, que é constituído pelos arranjos que o homem
faz para se abrigar e sobreviver, onde todos podem ser vistos e
ouvidos.
O que assegura a realidade no mundo comum é a plurali-
dade, ou seja, o fato de que esses homens, com suas diferentes
posições e diferentes perspectivas, se interessam pelo mesmo
objeto. E, a pluralidade é ameaçada pelo isolamento, onde nin-
guém pode concordar com ninguém, situação característica
das tiranias; e também das sociedades de massas ou de histe-
ria em massa, em que todos se comportam como membros de
uma única família. Nessas condições, os homens se tornam
seres inteiramente privados de ver e ouvir os outros, e, de ser
vistos e ouvidos por eles. São prisioneiros da subjetividade de
sua própria existência singular, que continua a ser singular
mesmo que a experiência seja multiplicada várias vezes.
Como ressalta Arendt (2005, p. 68), o mundo comum aca-
ba quando é visto só de um aspecto e só de uma perspectiva.
Sem a presença dos outros, ou seja, no isolamento, o homem é
privado da possibilidade de ser visto e ouvido por outros, de
ter um mundo comum de coisas, e de realizar algo mais per-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
701
Hannah Arendt:

manente que a própria vida, então, é como se o homem não


existisse.
A natalidade relaciona-se com a capacidade de pensar e
de agir, pois, “o novo começo inerente a cada nascimento pode
fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado
possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir”
(ARENDT, 2005, p. 17).
A reconciliação com o mundo torna-se, dessa forma, in-
dispensável para que possamos estabelecer nossa presença no
mundo comum, compartilhando significados com aqueles que
convivem conosco, desenvolvendo o apreço pelo legado que
recebemos das gerações anteriores e nos responsabilizando
por deixar algo permanente para os que nos sucederão.
Diante disso, o desafio é assegurar um espaço político
onde todos possam participar como cidadãos, tratando de as-
suntos de interesse comum e desfrutando da felicidade públi-
ca. E, ao mesmo tempo terem salvaguardados seus direitos de
agirem como quiserem dentro de suas casas, protegendo a
vida privada, as questões individuais e os assuntos ligados ao
processo vital na esfera privada.
Assim sendo, é graças à capacidade humana de iniciar
novos acontecimentos, que podemos manter a confiança na
possibilidade de respondermos adequadamente às interroga-
ções que a pós-modernidade propõe a todos nós.

REFERÊNCIAS
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Arendt. Fortaleza: UFC Edições, 2001.
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
702
Lizandra Andrade Nascimento & Gomercindo Ghiggi

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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
DIREITOS HUMANOS E
PESSOA PRIVADA DE LIBERDADE

Luana Rambo Assis


Acadêmica do 9º Semestre do Curso de Serviço Social, da Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – São Luiz Gonza-
ga. (luanarambo@yahoo.com.br)
Lucineide Orsolin
Assistente Social, professora da Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI – São Luiz Gonzaga. Mestranda da Linha de
Pesquisa: Direito, Cidadania e Desenvolvimento, pelo Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania da Universidade Re-
gional do Estado (UNIJUI).(lucineideorsolin@bol.com.br)

Resumo
O presente artigo, aborda a temática dos Direitos Humanos e a pessoa privada de
liberdade, resgata de forma breve a origem dos Direitos humanos enfatizando a
Revolução Francesa, processo histórico no Brasil a importância da Declaração Uni-
versal. Ressalta também, a origem das prisões, a Lei de Execução Penal, bem como
as mais diversas formas de violações dos Direitos Humanos no Sistema Penitenciário.
Palavras-chave: Direitos Humanos, Pessoa Privada de Liberdade.

Abstract
This article addresses the issue of Human Rights and the person deprived of liberty,
rescues briefly the origin of Human Rights, emphasizing the French Revolution, the
historical process in Brazil and the importance of the Universal Declaration. It em-
phasizes the origin of prisons, the Penal Execution Law, as well as the various forms
of human rights violations in the Prison System.
Keywords: Human Rights, person deprived of liberty.

Quando nos reportamos a discutir a temática dos Direitos


Humanos, é fundamental que tenhamos uma compreensão
acerca de para quem esses direitos se destinam. É comum no
imaginário social encontrarmos pessoas que saibam que “di-
reitos humanos”, é privilégio apenas de alguns, enquanto ou-
tros ficam totalmente desprotegidos. Essa concepção é equi-
vocada, pois, se falamos em garantir direitos humanos, logo,
704
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin

esses completam todos os seres humanos, independente de


raça, cor, idade, classe social, orientação sexual, religião, etc.
Para nos aproximarmos um pouco mais dos direitos hu-
manos e compreendê-los de forma simples e clara, é necessá-
rio entender afinal o que são os Direitos Humanos. Quando nos
referimos à determinada temática é fundamental associá-la a
ideia de dignidade humana, compreendida como bem estar
social, qualidade de vida, acesso aos direitos e deveres de ci-
dadania. A dignidade humana é algo inerente ao ser humano,
e se materializa na vida cotidiana através do acesso aos direi-
tos civis, sociais e políticos, tais como: saúde, educação, habi-
tação, vida digna, segurança, direito de escolher seus repre-
sentantes militares em partido político. Nesse contexto, a pre-
servação da integridade física, psicológica, patrimonial e cultu-
ral, é entendida como garantia de dignidade humana.
Hoje, no mundo contemporâneo, discute-se muito a ques-
tão dos direitos humanos, diante do exposto, torna-se relevan-
te explanar uma breve compreensão acerca das origens dos
direitos humanos. E é nesse emaranhado que apontamos as
revoluções burguesas como o nascedouro do discurso em torno
dos direitos humanos, principalmente a Revolução Francesa de
1789 que trouxe os valores de igualdade, liberdade e fraterni-
dade, como princípios básicos para discutir a temática. É im-
portante frisar que as Revoluções Burguesas deram uma visibi-
lidade maior aos direitos humanos. No entanto o debate acerca
da temática não se inicia com as revoluções, pode ser encon-
trado em relatos bíblicos e filosóficos, ou seja, a discussão já se
fazia presente há ao menos, cerca de dois milênios. Como vi-
mos acima, a luta pelos direitos humanos é milenar. Uma das
maiores dificuldades em relação ao tema não é fundamentá-los
e sim protegê-los, percebe-se que no decorrer de toda a evolu-
ção histórica dos direitos humanos, o grande empecilho é to-
mar efetivo um direito legalmente reconhecido.
É importante salientar que somente após o término da
primeira e segunda Guerra Mundial, que deixou inúmeras pes-
soas mortas e torturadas, e com a criação das Organizações
das Nações Unidas (ONU), é que os direitos humanos passam
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
705
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

a integrar de maneira universal a agenda do Direito Internaci-


onal. A partir daí, os estados/partes celebram um acordo de
proteção dos Direitos Humanos. A ONU é uma das instâncias
de fiscalização e proteção desses direitos. No decorrer do tem-
po foi criada a Comissão de Direitos Humanos, na qual a pri-
meira grande obra da comissão foi a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, aprovada pela assembleia geral da ONU,
em 1948. A introdução do Direito Internacional trouxe mudan-
ças consideradas positivas, pois, com a sua implantação, o ci-
dadão teve seus direitos reconhecidos e garantidos tanto dentro
do seu país, como fora dele, pois, a proteção é internacional.
Na revisão bibliográfica, podemos encontrar dois tipos de
proteção dos direitos humanos, são eles: os universais e os re-
gionais. Os instrumentos universais se caracterizam como de
proteção em todo o universo, são bastante amplos, já os ins-
trumentos regionais se destinam as regiões, pois, o universal é
demais de amplo e não dá conta da especificação de cada ter-
ritório. Para dar uma breve compreensão acerca dos direitos
humanos, torna-se relevante apontar alguns documentos de
fundamental importância nesse processo:

o Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948);


o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966);
o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1966);
o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direi-
tos Civis e Políticos (1966);
o Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Ho-
mem (1948);
o Convenção Americana sobre Direitos Humanos, “Pacto
São José” (1969).

Cabe salientar novamente que esses documentos elenca-


dos acima tem a finalidade de declarar e proteger os direitos
humanos.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
706
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin

A LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL


No Brasil, a luta pelo reconhecimento dos Direitos Huma-
nos, foi um processo árduo e doloroso, onde muitas pessoas
foram torturadas até a morte. O regime militar em 1964 é um
exemplo concreto de violação de direitos, os cidadãos não ti-
nham seus direitos civis, econômicos, sociais e políticos garan-
tidos. Era um sistema pautado no autoritarismo e na repressão,
os sujeitos não eram considerados portadores de direitos. A
ditadura militar perdurou por aproximadamente 20 anos, a par-
tir daí as pessoas começam a resistir diante de tanto sofrimen-
to e tortura, e passaram a reivindicar direitos e melhores con-
dições de vida. Todo esse processo de resistência e rebeldia
culminou com a promulgação da Constituição Federativa de
1988. Como afirma Freitas:
Hoje já não mais existem prisioneiros políticos e as liber-
dades foram restauradas, ainda que algumas de forma re-
lativa. Diante dessa nova realidade, somos forçados a
concluir que foram reduzidas substancialmente as viola-
ções dos direitos humanos provocados por motivações
mais estritamente políticas, contudo, subjazem ainda as
formas tradicionais de desrespeito aos direitos do ho-
mem. A tortura ao preso comum, continua tão intensa
com antes, mas não é apenas a tortura que configura um
desrespeito à pessoa, outras práticas como a política
econômica governamental, a política habitacional, as
agressões concedidas pelo estado ao Meio Ambiente são
exemplos concretos de violências cometidas contra a vi-
da humana (FREITAS, 1989, p.43).

Conforme foi explanado acima, a Redemocratização do


Brasil trouxe avanços positivos na qualidade de vida das pes-
soas, no entanto ainda há muito a ser feito, pois, podemos en-
contrar parcelas da sociedade, que são vítimas constantes de
violações de Direitos Humanos.
É oportuno aproveitar o espaço para enfatizar a relevân-
cia dos mecanismos de defesa dos direitos humanos. Os gru-
pos de defesa têm um papel preponderante, pois, são eles que

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
707
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

irão mediar à relação entre ESTADO x SOCIEDADE, fazendo


com que o primeiro faça efetivo aos direitos de um cidadão e o
segundo assuma uma postura ativa, de mobilização e reinvin-
dicação pelos seus direitos. Para proteger os direitos humanos,
os grupos de defesa devem fazer uso da legislação e pressio-
nar os órgãos competentes para garantir os direitos reconheci-
dos por lei e fruto de mobilização dos cidadãos. Para exemplifi-
car tomemos a Organização das Nações Unidas (ONU), que é
caracterizada como instância de fiscalização e proteção dos
direitos humanos em nível internacional, já no nível do Estado
do Rio Grande do Sul, tende-se a Comissão de Direitos Huma-
nos da Assembleia Legislativa, que tem como uma de suas
funções primordiais, assegurar que todo o sujeito independen-
te da classe social, raça, religião, orientação sexual, desfrute
de uma vida digna.

A MATERIALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


Na sociedade atual, muito se discute acerca do que são
os Direitos Humanos e como acessá-los, pois, entende-se que é
através destes que os sujeitos terão qualidade de vida. Nesse
contexto, considero de fundamental importância explanar al-
guns dos artigos elencados na Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos, considero o documento de maior relevância
quando se aborda de determinada temática. Entre eles, pode-
mos destacar:
1. Todos os seres humanos nascem livres em dignidade
e direitos.

Perante a lei, todos os sujeitos sociais possuem os mes-


mos direitos, independente de qualquer natureza.
2. Todo ser humano tem direito a vida, a liberdade e a
segurança social.

Quando falamos de direito a vida, esta deve ser digna e


humana, todos possuem liberdade de ir e vir e ter sua segu-
rança garantida.
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
708
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin

5 Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento


ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Todo ser humano, independente da situação que ocupa


ou da infração infligida tem direito a tratamento humanizado,
ficando livre de torturas e humilhações, que são consideradas
crime.
11 Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o
direito de ser presumido inocente até que sua culpabi-
lidade tenha sido provada de acordo com a lei, em jul-
gamento público no qual tenham sido asseguradas to-
das as garantias necessárias a sua defesa.

Ninguém será considerado culpado, até que todas as pro-


vas sejam colhidas e a culpabilidade seja comprovada.
15 Todo homem tem direito a uma nacionalidade.

O ser humano tem o direito de pertencer a um determina-


do país, e ter sua nacionalidade garantida.
21 Todo ser humano tem direito de fazer parte no governo
de seu país diretamente ou por intermédio de repre-
sentantes livremente escolhidos.

Todo cidadão tem o direito e o dever de escolher seus re-


presentantes, bem como militar em qualquer partido político.
23 Todo ser humano tem direito ao trabalho, a livre esco-
lha de emprego, a condições justas e favoráveis de
trabalho e a proteção contra o desemprego.

O ser humano tem assegurado através desta declaração,


bem como de legislação própria, o trabalho digno em condi-
ções favoráveis, direitos trabalhistas, tais como férias, descan-
so semanal remunerado, seguro desemprego, etc.
25 Todo ser humano tem direito a um padrão de vida ca-
paz de assegurar-lhe e a sua família, saúde e bem-
estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cui-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
709
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

dados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e


direito a segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viúves, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu
controle.

O cidadão tem assegurado por meio desta declaração,


bem como da Constituição Federal de 1988, em seu 6º artigo, o
direito a saúde, educação, habitação, assistência social, previ-
dência social, lazer, esporte, alimentação, enfatizado como di-
reito do cidadão e dever do estado.
28 Todo o cidadão tem direito a ordem social e internaci-
onal em que os direitos e liberdades estabelecidos na
presente declaração possam ser plenamente realiza-
dos.

Todo cidadão possui o direito nacional e internacional de


preservação e efetivação dos Direitos Humanos.

Conforme foi exposto acima, a Declaração Universal dos


Direitos Humanos foi um avanço em grande escala, pois, a par-
tir daí se reconheceu os direitos do homem, a uma vida digna,
saúde, habitação e educação de qualidade, a proteção no tra-
balho, à inviolabilidade da integridade física, psicológica e pa-
trimonial de todos os sujeitos. Contudo, a declaração apresen-
ta algumas limitações, tais como: elenca os direitos, mas não
esclarece a forma de acesso dos mesmos, a questão da efetivi-
dade é preocupante, pois, ainda no século XXI, com todo o de-
senvolvimento econômico e industrial, podemos verificar pes-
soas vivendo ou sobrevivendo em condições desumanas, sem
o mínimo necessário para garantir a subsistência.
Portanto, muitos avanços foram conquistados, mas não
devemos nos acomodar e aceitar que tudo está sobre controle,
pois, sabemos que há violações dos mais diversos tipos e gra-
vidades, diante disso, é necessário e urgente pressionar os
órgãos competentes para que garantam na realidade os direi-
tos humanos que já são reconhecidos na legislação. Aqui des-
taco a importância da coletividade, pois, a partir do momento
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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
710
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin

que a sociedade, as mais diversas categorias de profissionais


sair da zona de conforto e da passividade é começar a traba-
lhar e lutar em prol dos direitos, a sociedade aos poucos mudará.
Para ilustrar alguns tipos de violações dos Direitos Hu-
manos, utilizou-se o Relatório Azul de 2010, material elaborado
pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul-
Comissão de Direitos Humanos. A seguir alguns exemplos
concretos e verídicos:
As travestis Jéssica e Amanda, estudantes que frequen-
tam a escola General Alves, no turno da noite, solicitaram
ao diretor do turno que fossem chamadas pelo nome so-
cial. O diretor ignorou o pedido e salientou que na frente
dele tinha dois homens vestidos de mulher e que iria
chamá-los pelo nome de registro. A Comissão de Cida-
dania e Direitos Humanos entende que a postura do dire-
tor no turno não condiz com que prega a Constituição
Federal e nem as normas de respeito aos direitos huma-
nos de travestis, lésbicas, gays e transexuais (Ex.1-
Relatório Azul, 2010, p.141).

Presas da Penitenciária Modulada de Montenegro relata-


ram que em julho de 2010, por ocasião da revista íntima, os
familiares estariam obtendo um tratamento desrespeitoso so-
frendo constrangimentos.
Denunciaram também que as presas estariam passando
muito frio, pois, não havia cobertores. Correu inclusive a infor-
mação de que na primeira quinzena de julho, uma apenada
teria morrido de frio (Ex.2-Relatório Azul, 2010, p.142).
Em 25 de novembro de 2010 na cidade de Porto Alegre
AOM, segundo o relato da esposa, por volta das 15 horas,
foi violentamente agredida por policiais militares, que te-
riam sido chamados ao local, CTG Recanto da Lagoa, em
virtude de AOM estar abrigando-se da chuva em uma
das baias daquela entidade. Após as agressões deixaram
AOM no local, que foi socorrido por populares e por sua
companheira. No dia 30 do mesmo mês, AOM faleceu em
virtude das agressões (Ex.3-Relatório azul, 2012, p.145).

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
711
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

A Comissão dos Direitos Humanos recebeu a denúncia


de GTRL, de que mesmo possuindo autorização judicial
para ocupar uma casa, ainda que em caráter temporário,
o poder público local não autorizava que a empresa de
energia realiza-se o fornecimento. Tratava-se de família
pobre, sendo GTRL doméstica e tendo quatro filhos. A
Comissão dos Direitos Humanos solicitou que a empresa
realizasse o fornecimento de Energia elétrica (Ex.4-
Relatório Azul, 2010, p.152).

Podemos analisar no exemplo 1, um total desrespeito


quanto à orientação sexual dos sujeitos, apesar de existir uma
lei autorizando o chamamento pelo nome social, esta é uma
das violações mais frequentes, pois, a sociedade ainda perma-
nece no patriarcalismo e na cultura machista que evidencia
sinais fortes de preconceito.
O exemplo 2 já elenca algumas das atrocidades cometi-
das dentro de Penitenciárias, lugar este estendido como de
proliferação da violência, como podemos observar, a integrida-
de física das pessoas privadas de liberdade não é garantida.
O exemplo 3 relata a violência perpetuada por policiais
militares, que tem como dever manter a ordem, mas ao invés
abusam do poder a eles concedido, praticando a violência ins-
titucional e levando o cidadão ao óbito.
O exemplo 4 descreve o quanto os direitos sociais como a
habitação de qualidade ficam em segundo plano, a intolerância
dos órgãos competentes demonstra a falta de comprometimen-
to com as necessidades da população.
Conforme exposto e exemplificado, violações dos direitos
humanos acontecem quase que de forma corriqueira, o cuidado
que devemos ter é para não banalizar aquilo que é uma violên-
cia monstruosa e dolorosa.

DIREITOS HUMANOS E PESSOA PRIVADA DE LIBERDADE


Como o presente trabalho tem como finalidade discutir a
temática, “Direitos Humanos e Pessoa Privada de Liberdade”,

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
712
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin

considero oportuno discutir e desmistificar algumas concep-


ções que estão em torno dessa relação. Quando falamos em
Direitos Humanos, devemos associar ao ser humano, ou seja,
qualquer sujeito independente de natureza tem assegurado na
legislação seus direitos e deveres. O grande equívoco que se
percebe no imaginário social é a associação entre PRESO x
DIREITOS HUMANOS, como se fossem as pessoas privadas de
liberdade, os únicos detentores desses direitos. Um dos fatores
que talvez possa contribuir para resolver determinada ideia é o
fato de que as pessoas que estão encarceradas reivindiquem,
lutem pela efetivação de seus direitos como cidadão ativo.
Manzini, nos alerta que “só existe cidadania se houver a práti-
ca da reivindicação, da apropriação dos espaços, da pugna
para fazer valer os direitos do cidadão” (MANZINI, 2010, p.13).
Como vimos acima, as pessoas privadas de liberdade es-
tão apenas exercendo sua cidadania, fato que toda sociedade
deveria fazer, mas não faz, e pior ainda julga, condena, ridicu-
lariza, quanto cidadãos saem da postura passiva e assumem
uma postura ativa de luta e mobilização para tornar a cidada-
nia eficaz.

A HISTÓRIA DA PRISÃO
Antes de adentrarmos na discussão sobre pena privativa
de liberdade, faz-se necessário realizar uma breve explanação
sobre a evolução das prisões. Desde a antiguidade o sistema
prisional é baseado no modelo punitivo e coercitivo, onde os
reclusos eram considerados, “lixo da sociedade”, totalmente
despossuídos de direitos. Como forma de castigo, utilizavam a
pena de morte e para crimes mais graves, o suplício, entendido
como um castigo corporal, cruel e doloroso. De acordo com
Foucault, o suplício é caracterizado uma “Pena Corporal, dolo-
rosa, mais ou menos atroz”, e acrescentava: é um fenômeno
inexplicável à extensão da imaginação dos homens para a bar-
bárie e crueldade (FOUCAULT, 2010, p.35).
Como vimos, o corpo dos sujeitos era mantido como obje-
to de punição e massacre. Entendia-se que a partir do momen-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
713
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

to em que o recluso sentia a dor do Castigo Corporal, este iria


pagar pelo ato que cometeu e poderia até se arrepender. A se-
guir serão explanados os mais diversos tipos de sistemas pri-
sionais desde 1720 até os dias atuais.

Sistema Prisional John Howard (1720-1796)


John dá início ao período de “humanização da pena”, com
vistas à melhorar as condições carcerárias, baseava-se na re-
forma moral pela religião, trabalho diário.

Sistema Prisional Panótico (1748-1832)


Este sistema prisional buscava vigiar com maior seguran-
ça o prisioneiro. Pautado em reforma moral, boa conduta e
educação, entendia que ao privar o homem de sua liberdade, o
preveniria de cometer novos crimes. Neste sistema o prisionei-
ro ficava trancado em sua cela, não tendo nenhum contato com
seus companheiros.

Sistema Prisional de Filadélfia


Este sistema prisional baseava-se em regime extrema-
mente severo, determinando o isolamento absoluto e constan-
te, sem trabalho ou visita, eram permitidas somente leituras
bíblicas.

Sistema Prisional de Auburn


O sistema de Auburn buscava condicionar o apenado pe-
lo trabalho disciplina e mutismo, onde imperava a lei do silên-
cio. Portanto exigia-se do apenado um silêncio absoluto, iso-
lamento noturno e no período diurno o regime era comunitário,
as refeições e o trabalho eram em comum.

Sistema Prisional de Montesinos


Este sistema buscava através do trabalho, regenerar os
apenados, proporcionando trabalho remunerado. Extinguiu os
castigos corporais e seu sistema de segurança era considerado
mínimo.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
714
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin

Como vimos todos seus modelos de sistema prisional


pautavam-se no isolamento, disciplinamento, sofrimento, tra-
tamento degradante e desumano. No entanto, foi a partir do
século XIX que a pena privativa de liberdade teve seu apogeu,
juntamente com o sistema progressivo de regime, abolindo de
vez os sistemas Howard, Panótico, Filadélfia, Auburn e Monte-
sinos. Cabe salientar que a pena privativa de liberdade, com
regime progressivo, é vista como um grande avanço da história
das prisões, pois, possibilita que gradativamente o recluso se
insira na sociedade, reassumindo sua condição de sujeito de
direito. Foi também no século XIX que foi instituído o sistema
progressivo Inglês, que tinha como objetivo melhorar as condi-
ções de vida dos reclusos. Neste sistema havia a liberdade
condicional onde o apenado tinha sua liberdade limitada du-
rante um determinado período. Já em 1835 é inaugurado o sis-
tema progressivo Irlandês, o qual foi um aperfeiçoamento do
sistema Inglês.
É importante destacar que o sistema progressivo de pe-
na, elencado no Código Penal de 1940 e posteriormente na lei
de execução penal nº 7210/84, prevê três tipos de regime, são
eles:
Artigo 110. O juiz, na sentença, estabelecera o regime no
qual o condenado iniciará o cumprimento da pena priva-
tiva de liberdade, observado o disposto no art.33 e seus
parágrafos do Código Penal.

Dispõe o Código Penal:


Art.33. A pena de reclusão deve ser cumprida em regime
aberto, Semiaberto e fechado.
a) Regime fechado à execução da pena em estabeleci-
mento de Segurança máxima ou Média.
b) Regime semiaberto à execução da pena em colônia
agrícola, Industrial ou estabelecimento similar.
c) Regime aberto à execução da pena em casa de Alber-
gado ou Estabelecimento adequado (Lei de Execução
Penal nª 7210, 1984, p. 51).

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
715
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

Conforme foi citado anteriormente, o sistema progressivo


possibilita ao recluso uma aproximação gradativa na socieda-
de, já não se impunha mais o isolamento, a segregação total
dos sujeitos. Apesar desse qualitativo avanço, muito deve ser
feito, pois, ainda prevalece em determinadas Penitenciárias o
tratamento aterrorizante e desumano, marcado pela coesão e
punição que nada contribuem para o processo de inserção so-
cial dos reclusos.

PESSOA PRIVADA DE LIBERDADE


Nesse espaço é oportuno salientar o que significa a pes-
soa estar privada de liberdade. O sujeito que comete ato infra-
cional, crime ou delito dependendo da gravidade do fato, terá
que prestar contas para a justiça. No Brasil uma das formas de
se responsabilizar alguém que cometeu crime é a detenção, ou
seja, a privação da liberdade de ir e vir. O sujeito não escolhe
mais o rumo da própria vida, agora quem o faz é a instituição
conhecida como: Penitenciária, Presídio e Cárcere. No momen-
to em que o sujeito tem sua liberdade privada, a prisão tem
suas responsabilidades para comesse sujeito, ou seja, em um
primeiro momento afasta da sociedade de forma temporária, já
em segundo momento precisa oferecer meios para que o sujei-
to consiga viver de forma harmônica na sociedade. Mas a rea-
lidade vem mostrando que a prisão não vem cumprindo seu
papel, pois, ao invés de acolher o sujeito, exclui, segrega e in-
flige tratamento desumano. Deste modo, concordamos com
Paixão (1987) quando ressalta que:
Prisão significa aprendizagem do isolamento. Segregada
da família, dos amigos e de outras relações socialmente
significativas, o preso espera-se, vai cotidianamente re-
fletir sobre o ato criminoso e sentir a representação mais
direta da punição-preservar os cursos normais de intera-
ção das externalidades do crime. Em outras palavras, a
penitenciária é a escola do sofrimento e da purgação
(PAIXÃO, 1987, p.9).

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716
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Diante do exposto, segundo Paixão, é possível entender o


caráter da prisão no mundo atual, considera-se uma forma vi-
sível de segregação, pois, o recluso acaba ficando distante da
família, dos amigos, da comunidade local, que são considera-
das segmentos importantes na vida de quem cumpre pena pri-
vativa de liberdade. O apoio da família é insubstituível no pro-
cesso de reclusão. O sujeito necessita de acolhimento externo
para que, mesmo de forma morosa, consiga estabelecer rela-
ções saudáveis com o mundo ao seu redor. A prisão ainda pos-
sui seu caráter punitivo e coercitivo, pois, entende-se que é a
partir do isolamento e da segregação que o sujeito se arrepen-
derá e pagará pelo ato cometido. Entendemos que punição e
sofrimento não preparam ninguém para o convívio social, mui-
to pelo contrário, acaba contribuindo com o aumento da reinci-
dência no sistema prisional.
Como estamos abordando a temática pessoa privada de
liberdade, é fundamental debatermos a respeito das institui-
ções que prestam serviço ao recluso. Desta forma, é relevante
esclarecer que as penitenciárias, presídios, ou prisões, são vis-
tas como Instituições Totais, e de acordo com Goffman:
Uma Instituição Total pode ser definida como um local de
residência e trabalho, onde um grande número de indiví-
duos, com situações semelhantes são separados da soci-
edade mais ampla por um considerável período de tempo
e levam uma vida fechada e formalmente administrativa.
As prisões servem como exemplo claro disso, desde que
consideremos que o aspecto característico de prisões
pode ser encontrado em instituições cujos participantes
não se comportam de forma ilegal (GOFFMAN, 1961,
p.11).

Conforme o enunciado de Goffman, fica fácil compreen-


dermos o que é uma instituição total e qual suas característi-
cas básicas. Como vimos acima, uma instituição total tem du-
pla função, nesse mesmo espaço o sujeito que está segregado,
reside e trabalha, ou seja, sua vida diária acontece em torno da
instituição. É na mesma que o sujeito mora, trabalha, estuda,

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
717
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

se qualifica profissionalmente, realiza as atividades de cultura


e lazer. Muitas pessoas dizem que a instituição total leva seus
internos a acomodação, pois, estes não precisam mais pensar
em sua vida, sua rotina diária, a instituição pensa e age por
eles.
Diante de algumas leituras bibliográficas, acredito que as
instituições totais levam os sujeitos ao comodismo, mas de-
fendo muito mais a ideia da mutilação do eu, ou seja, em de-
terminadas instituições consideradas totais, o sujeito após in-
gressar perde completamente sua autonomia, sua identidade
social, e isso acaba mutilando o ser humano, que não pode
mais decidir a respeito de sua vida e história. Nesses espaços,
o sujeito é destituído de autonomia e poder de decisão, não
escolhe a rotina diária, tal como: a hora de levantar e deitar, a
hora de se alimentar e tomar banho, até o direito de interação
é regulado. O sujeito com o passar do tempo, perde sua identi-
dade e não se reconhece mais seus direitos, desejos, anseios,
dependem da organização e da rotina da instituição.
Dentro do sistema prisional essa realidade é considerada
visível, tendo um agravante a mais, nessa instituição total, o
ser humano, na maioria das vezes, não é considerado um cida-
dão de direitos e deveres, e nesse processo a situação se de-
sumaniza ainda mais. Entendo que não é porque o sujeito co-
meteu crime, que este não tenha mais desejos e capacidade de
pensar em sua vida, muito pelo contrário, o mesmo continua
sendo um ser humano e que necessita ter sua cidadania efeti-
vada, para que atinja bem-estar e qualidade de vida. É urgente
pensar formas de responsabilizar o sujeito que praticou crime,
mas de forma a lhe oferecer o mínimo de autonomia e poder de
decisão, pois, afinal, a tarefa da prisão é preparar o cidadão
para o convívio social e não fazê-lo vitima ainda mais. Pois,
compreende-se que violência gera violência, tratamento cruel,
desumano, vexatório, não recupera ninguém, ao contrário, em-
brutece o ser humano. Por entender que a pessoa privada de
liberdade, constitui-se de direitos e deveres, faz-se necessário
abordar, segundo a lei de Execução Penal – 7210/84, quais são
essas garantias.

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718
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SEÇÃO I DOS DEVERES:


Art. 38. Cumpre ao condenado, além de obrigações le-
gais inerentes, ao seu estado, submeter-se as normas de
execução da pena.
Art. 39. Constituem deveres do condenado:
I - Comportamento disciplinado e fiel à sentença;
II - Obediência ao servidor e respeito à quais quer pessoas
com quem deva relacionar-se;
III - Urbanidade e respeito no trato com os demais con-
denados;
IV - Conduta oposta aos movimentos individuais ou cole-
tivos de fuga, subversão a ordem e a disciplina;
V - Execução do trabalho, das tarefas e das ordens rece-
bidas;
VI - Submissão à sanção disciplinar oposta;
VII - Indenização a vítima ou aos seus sucessores;
VIII - Indenização ao estado, quando possível das despe-
sas realizadas com sua manutenção, mediante desconto
proporcional da remuneração do trabalho;
IX - Higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;
X - Conservação dos objetivos de uso pessoal (Lei de
Execução Penal 7.210/84, p. 36).
SEÇÃO II DOS DIREITOS:
Art. 40. Coloca-se a todas as autoridades o respeito à in-
tegridade física e moral dos condenados e dos presos
provisórios.
Art. 41. Constituem direitos do preso:
I - Alimentação suficiente e vestuário;
II - Atribuição de trabalho e sua remuneração;
III - Previdência social;
IV - Constituição de pecúlio;
V - Proporcionalidade na distribuição do tempo para o
trabalho, descanso e a recreação;
VI - Exercício das atividades profissionais, intelectuais,
artísticas e desportivas, desde que compatíveis com a
execução da pena;

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
719
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

VII - Assistência material, à saúde, jurídica, educacional,


social e religiosa do sujeito;
VIII - Proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - Entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - Visita do Cônjuge, da companheira, de parentes, e
amigos em dias determinados;
XI - Chamamento nominal;
XII - Igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências
da individualização da pena;
XIII - Audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - Representação e petição a qualquer autoridade, em
defesa de direito;
XV - Contato com o mundo externo, por meio de corres-
pondência, da leitura e de outros meios de informação
que não comprometam a moral e os bons costumes (Lei
de Execução Penal nº 7.210/84, p. 37).

Como vimos acima, a pessoa que se encontra privada de


sua liberdade, não deixa de ser um cidadão de direitos e deve-
res, até porque está privada da liberdade de ir e vir e ao direito
de votar e não dos demais direitos fundamentais, enquanto
exercício da cidadania. Acontece, no entanto que os direitos e
deveres são reconhecidos na legislação, porém violados na
prática, o que falta é a efetividade dos mesmos.
O Sistema Penitenciário Brasileiro, ainda permanece com
certos resquícios de discriminação e falta de humanização, o
que impede o processo de preparo do sujeito para sua integra-
ção na sociedade. Devemos nos despir de certas visões pre-
conceituosas e discriminatórias e ao invés de punir com toda
vingança e violência, acolher de forma a possibilitar uma nova
cultura, capaz de entender a pessoa privada de liberdade co-
mo alguém que pode construir família, filhos, amigos, que es-
tuda, trabalha, se qualifica profissionalmente, possui qualida-
des e defeitos e que talvez por não encontrar na sociedade,
rígida e preconceituosa, melhores condições de vida, acaba
recorrendo ao mundo da criminalidade, esta sim, sempre esta-
rá com as portas abertas. Com essa colocação não pretendo

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
720
Luana Rambo Assis & Lucineide Orsolin

justificar a criminalidade, mas sim compreender as reais cau-


sas que levam um ser humano a praticar crime.

VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO


BRASILEIRO
Conforme foi abordado anteriormente, a Lei de Execução
Penal-LEP, destaca nos artigos 39 e 41 os direitos e deveres da
pessoa privada de liberdade. No entanto, estes na maioria das
vezes não se concretizam na prática, ocorrendo assim sérias
violações que comprometem todo o período de reclusão. De
acordo com a legislação, o recluso deve seguir e obedecer às
normas da instituição, buscando-se assim o disciplinamento
dos sujeitos. No entanto os direitos não são garantidos na
mesma proporção, ou seja, relegados a segundo plano, afinal,
ainda prevalece no imaginário social de que preso não é deten-
tor de direitos e sim de deveres. De acordo com Oliveira (2007).
O Brasil encarcera mais pessoas do que qualquer outro
país da América Latina e infelizmente os problemas desse
imenso sistema requerem proporções de soluções correspon-
dentes. Desrespeitos aos direitos humanos são cometidos
constantemente em todas as unidades penais, afetando milha-
res de apenados e suas famílias, com o agravante de que a so-
ciedade mantem uma relativa indiferença a tais desrespeitos,
tendo como principal motivo a compreensão de que marginais,
especialmente os assassinos, não devem ter direito a preser-
vação de suas vidas e a integridade Física (OLIVEIRA, 2007,
p.01).
Diante do exposto, é possível afirmar a Falência do siste-
ma prisional brasileiro, que não pensa políticas públicas de
preservação da criminalidade e acaba contribuindo com a su-
perlotação das prisões. O desrespeito aos direitos humanos é
constante, e a sociedade ao invés de acolher esses sujeitos e
pensar em formas de incluí-los na vida da sociedade, excluí de
forma maldosa e violenta, e em determinados casos a socieda-
de das pessoas de bem, acabam por ser mais bandidas do que
o criminoso, pois, aplaudem alegremente quando são informa-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
721
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

das que o preso x foi violentado até a morte, prevalecendo à


ideia de que o sujeito precisa pagar pelo que fez.
Nesse aspecto, é oportuno salientar a total ausência do
Estado Democrático de Direitos Humanos, que devem ou deve-
riam ser de garantia e efetivação dos direitos e deveres nesse
segmento, não há investimento em políticas públicas de aco-
lhimento e apoio a esses sujeitos, que saem do sistema prisio-
nal com o estigma de que não é mais preso. Todo esse proces-
so contribui com o fenômeno da reincidência.
A seguir vamos ver de forma breve algumas das violações
de Direitos Humanos a quais estão submetidas pessoas priva-
das de liberdade, dentre elas destaca-se:
SUPERLOTAÇÃO DOS PRESÍDIOS - A superlotação é um
problema grave que exige resposta dos órgãos competentes,
pois, as prisões na atualidade são consideradas depósitos hu-
manos, onde os sujeitos vivem amontoados;
VIOLAÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA E PSICOLÓGICA -
Os reclusos em algumas penitenciárias são violentados fisica-
mente, tendo o corpo atingido de forma cruel; a alimentação
precária; a saúde debilitada também é considerada um ataque
ao corpo. A violência psicológica está presente em situações
como: humilhações, pronúncia de nomes pejorativos, intimida-
ção, banalização;
FALTA DE ASSISTÊNCIA AOS DIREITOS SOCIAIS - Os
sujeitos ficam desassistidos e relação à saúde, educação, tra-
balho, profissionalização. Quando são oferecidos em determi-
nadas situações são desprovidos de eficácia e qualidade;
PÉSSIMAS CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE - Os re-
clusos em diversas situações residem em lugares com péssi-
mas condições, contraindo doenças como: tuberculose, infec-
ção, doenças crônicas, etc. Os lugares apresentam umidade e
pouca ventilação;
VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL - Os agentes da justiça que
tem a função de promover a cidadania acabam infligindo tra-
tamento desumano e degradante aos reclusos;

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722
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VIOLÊNCIA CONTRA A FAMÍLIA - Por ocasião das revis-


tas íntimas, muitos familiares de reclusos são vítimas de des-
respeito, violação da integridade física e psicológica.
Esses exemplos mencionados acima, são apenas uma
breve aproximação das tantas e quantas possíveis formas de
violação dos direitos humanos. É importante salientar nesse
espaço, o grande fenômeno das rebeliões e motins, tão enfati-
zado na mídia. Esta passa uma ideia de vandalismo, conduta
ilegal, marginalização quando se refere aos motins. Mas é fun-
damental entendermos que talvez esse tipo de manifestação,
pode ser uma resistência e um pedido de socorro, afinal, é fácil
julgar quando não estamos na mesma situação.
Portanto, é urgente que a sociedade civil e os órgãos
competentes saiam da postura passiva e sejam mais ativos em
relação à situação em que se encontra o Sistema Penitenciário
Brasileiro que é caótica, e que em todo esse tempo vem pro-
vando seu fracasso, até porque se não fosse assim, não haveria
um percentual de reincidência tão alarmante. É preciso resol-
ver o problema da superlotação, mas este não perpassa ape-
nas pela criação de novas unidades prisionais, é necessário
trabalhar com métodos preventivos, prevenindo que o sujeito
cometa ato infracional, mas quando não for possível, o sistema
prisional precisa realizar um trabalho de acolhimento e preparo
para o convívio social. Posturas preconceituosas e estigmáti-
cas precisam ser superadas para que o Brasil deixe de ser o
lugar onde existe a maior concentração de pessoas privadas de
liberdade. O momento é agora, é hora da sociedade civil e do
estado lutarem juntos pela melhoria das condições do Sistema
Penitenciário Brasileiro, tornando-o um ambiente humanizado
e que garanta de forma integral a efetivação dos Direitos Hu-
manos, considerados fundamentais na consolidação da cida-
dania.

REFERÊNCIAS
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
723
Direitos humanos e pessoa privada de liberdade

FOUCAULT, Michel. Vigar e Punir. História da Violência nas Pri-


sões. 38. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
FREITAS, Pontes Ricardo. A proteção internacional dos direitos
humanos limites e perspectivas em direitos humanos em debate
necessário. São Paulo: Brasiliense, 1989. V.2.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 7. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1961.
LEI DE EXECUÇÃO PENAL. Lei 7.210. São Paulo: Saraiva, 1984.
MANZINI, Maria de Lour. O que é cidadania. 4. ed. São Paulo, 2010.
Coleção Primeiros Passos.
OLIVEIRA, Câmara Hilderline. A falência da Politica Carcerária Bra-
sileira, Artigo Cientifico. 3ª jornada internacional de politicas pú-
blicas. São Luiz - MA, 2007.
PAIXÃO, Antônio Luiz. Recuperar ou Punir. Como o estado trata o
criminoso. São Paulo: Cortez, 1987. V. 21.
RIO GRANDE DO SUL. Assembleia Legislativa. Relatório Azul. Por-
to Alegre, 2010.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A FLEXIBILIZAÇÃO DOS
DIREITOS TRABALHISTAS NO
CONTEXTO DA EFETIVAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS 1

Lucena Cavalheiro Pletsch


Pós-graduanda da Especialização em Direito do Trabalho pela Universida-
de de Passo Fundo (2012-interrompida). Graduada em Direito pela Uni-
versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2008).
Advogada trabalhista. (lucenacavalheiro@hotmail.com)
Iásin Schäffer Stahlhöfer
Mestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul na linha de
pesquisa de Políticas Públicas de Inclusão Social com bolsa PROSUP provi-
da pela CAPES. Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012). Pós-graduando da
Especialização em Docência do Ensino Superior pela Universidade Lutera-
na do Brasil (previsão de conclusão em Julho de 2014). Graduado em Ci-
ências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (2010),
instituição da qual recebeu a Láurea Acadêmica. Atuou em projetos de
pesquisa e de extensão com bolsa PIBIC provida pelo CNPq. Participante
do Grupo de Pesquisa em Direito da Sociobiodiversidade (GPDS/UFSM) e
do Grupo de Estudos em Desenvolvimento, Inovação e Propriedade Inte-
lectual (GEDIPI/UNISC), tendo trabalhos publicados e apresentados em
eventos nacionais e internacionais. (iasindm@gmail.com)

Resumo
Analisando as frequentes mudanças na hodierna conjuntura social, econômica, polí-
tica, científica e tecnológica, verificam-se diversas implicações no Direito do Traba-
lho. O avanço tecnológico paulatinamente mostra-se mais intenso, provocando,
muitas vezes, a diminuição dos postos de trabalho em larga escala. Este fenômeno
tem fomentado e justificado, para muitos, a ocorrência da flexibilização dos direitos
trabalhistas. O presente trabalho, utilizando-se do método dedutivo, tem por escopo
discutir esta flexibilização no contexto da efetivação dos direitos humanos. Assim
sendo, cotejar-se-á inicialmente a relação histórica entre o Direito do Trabalho e os
Direitos Humanos, para então apresentar os conceitos inerentes à flexibilização dos
direitos trabalhistas e, ao final, refletir se a flexibilização pode vir ou não a compro-
meter a efetivação dos direitos humanos já estabelecidos.
Palavras-Chave: Direito do Trabalho. Direitos Humanos. Flexibilização de direitos.

1
Eixo Temático I - Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos –
do I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia.
726
Lucena Cavalheiro Pletsch & Iásin Schäffer Stahlhöfer

Abstract
Analyzing the frequent changes in today's social, economic, political, science and
technology, there are several implications in Labor Law. Technological advances
gradually seems more intense, causing often the reduction of jobs on a large scale.
This phenomenon has fostered and justified, for many, the occurrence of flexibiliza-
tion of labor rights. The present study, using the deductive method, has aim to dis-
cuss this in the context of the effectuation of human rights. Therefore, it will collate
initially the historical relationship between the Labour Law and Human Rights, and
then it will present the concepts intrinsic of flexibility of labor rights and, ultimately,
reflect the flexibility can come or not to confrontation the effectiveness human
rights already established.
Keywords: human rights. labor rights. flexibilization of rights.

INTRODUÇÃO
O mundo do trabalho vive em constante mudança, haja
vista que a vida em sociedade não é estática, pelo contrário é
dinâmica e suas transformações repercutem em todas as esfe-
ras da organização em sociedade, seja na economia, seja na
política, seja no trabalho. Esse contexto, marcado pela expan-
são do capitalismo, desencadeou o processo da globalização e
o crescente avanço tecnológico que, aliado as crises cíclicas da
economia, tem amparado e justificado o processo de flexibili-
zação das leis trabalhistas.
Ocorre que a flexibilização consiste na supressão daquela
que é a base princípiológica do Direito do Trabalho, ou seja, a
proteção ao trabalhador que está em patamar de desigualdade
frente ao empregador que detém o poder econômico. Ademais,
reduzindo-se os direitos fundamentais dos trabalhadores, dei-
xa-se de contemplar pelo ordenamento jurídico pátrio uma sé-
rie de Direitos Humanos consolidados através dos tempos,
agravando ainda mais a efetividade destes direitos.
Nesta seara, o presente trabalho visa a expor algumas
formas de flexibilização das leis trabalhistas e suas implica-
ções ao trabalhador, como ser humano sujeito de direitos fun-
damentais. Para tanto, utilizar-se-á o método de abordagem
dedutivo, cotejando inicialmente o Direito do Trabalho e os Di-
reitos Humanos, para contextualizar a atual organização do
trabalho e por fim trabalhar com os conceitos inerentes à flexi-
bilização dos direitos trabalhistas.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
727
A flexibilização dos direitos trabalhistas no contexto da efetivação...

DIREITO DO TRABALHO E DIREITOS HUMANOS: COTEJO NECESSÁRIO


O Direito do Trabalho, na concepção que temos hoje, tem
por gênese a Revolução Industrial, que acabou por transformar
o trabalho em emprego. No princípio, o trabalho cabia exclusi-
vamente aos escravos, sendo que Platão e Aristóteles concebi-
am o trabalho como um fator de depreciação humana, eis que a
participação do homem nos negócios deveria se dar por meio
da palavra, o que o dignificaria. Posteriormente, Hesíodo, Pro-
tágoras e os sofistas entendiam que o trabalho tornaria o ho-
mem independente por meio das riquezas que produzisse2. Em
1793, em virtude da Revolução Francesa e dos princípios de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, houve a reformulação da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que passou a
expressar o trabalho como um direito inalienável:
Art. 18. Todo homem pode empenhar seus serviços, seu
tempo; mas não pode vender-se nem ser vendido. Sua
pessoa não é propriedade alheia. A lei não reconhece
domesticidade; só pode existir um penhor de cuidados e
de reconhecimento entre o homem que trabalha e aquele
que o emprega.3

Após a Primeira Guerra Mundial, o Direito do Trabalho


passa a ser constitucionalmente abordado, incluindo-se nos
textos de muitos países “[...] preceitos relativos à defesa da
pessoa, de normas de interesse social e de garantias de certos
direitos fundamentais [...]”4. Nesta seara, a Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das
Nações Unidas, em 1948, dispôs:
Art. XXIII.
I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha
de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e
à proteção contra o desemprego.

2
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 24 Ed. São Paulo: Atlas,
2008. p. 04-05.
3
CONVENÇÃO NACIONAL FRANCESA. Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão. 1793. Disponível em <http://www.dhnet.org.br
/direitos/anthist/dec1793.htm>. Acesso em 09 abr 2013.
4
Ibidem. p. 08.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
728
Lucena Cavalheiro Pletsch & Iásin Schäffer Stahlhöfer

II) Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a


igual remuneração por igual trabalho.
III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remu-
neração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim co-
mo a sua família, uma existência compatível com a digni-
dade humana, e a que se acrescentarão, se necessário,
outros meios de proteção social.
IV) Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a
neles ingressar para proteção de seus interesses.5

A concepção que temos de Direitos Humanos é baseada


na premissa de que eles são universais. Fábio Konder Compa-
rato, ao trabalhar a questão aduz:
O que se conta é a parte mais bela e importante de toda
a História: a revelação de que todos os seres humanos,
apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais
que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como
únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a
verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de
que, em razão dessa radical igualdade, ninguém, nenhum
indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou
nação – pode afirmar-se superior aos demais.6

Paulatinamente se construiu um arcabouço jurídico-


normativo no Direito do Trabalho que assegura a igualdade e,
por vezes protege o hipossuficiente, a fim de limitar, por meio
dos preceitos de Direitos Humanos, a conduta do empregador
– detentor do poder econômico – sobre o empregado. A inter-
nalização dos Direitos Humanos por meio do ordenamento po-
sitivo pátrio transforma o preceito em Direito Fundamental7.
Nesta esteira, especialmente os artigos 5°, 6°, 7°, 8°, 9°, 10, 11,

5
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. 10 dez 1948. Disponível em <http://unicrio.org.br
/img/DeclU_D_HumanosVersoInternet.pdf>. Acesso em 09 abr 2013.
6
COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos
Humanos. 4 Ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 01.
7
LUÑO, Antonio E. Pérez. Derechos humanos: estado de derecho y
constituición. 5 Ed. Madrid: Tecnos, 1995. p. 30-31.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
729
A flexibilização dos direitos trabalhistas no contexto da efetivação...

todos da Constituição da República8, encarregam-se de dar


forma aos direitos fundamentais relativos ao Direito do Trabalho.
Importante consideração Norberto Bobbio traçou em rela-
ção ao expressar que a questão cerne no que tange os Direitos
Humanos “passou a ser a busca pela eficácia, pois apenas
mostrar que são desejáveis não equacionou o problema da sua
realização”9. Destarte, ao se flexibilizar os direitos trabalhistas,
altera-se o ordenamento positivo e poder-se-á afastar a efetivi-
dade dos Direitos Humanos em benefício do capital.

O CONTEXTO DA ATUAL ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO


Sabe-se que imperou por muito tempo como modelo de
gestão os métodos expressos por Frederick Taylor e Henry
Ford, também conhecidos por Taylorismo e Fordismo. A fusão
desses dois modelos visava ao aumento da produtividade em
menor tempo e, com isso, a maximização dos lucros, impondo
um ritmo cada vez mais acelerado para a produção:
As mudanças ocorridas no início do séc XX, em decorrên-
cia da Revolução Industrial, exigiram métodos que au-
mentassem a produtividade fabril e economizassem mão-
de-obra evitando desperdícios, ou seja, “a improvisação
deve ceder lugar ao planejamento e o empirismo à ciên-
cia: a Ciência da Administração.” (CHIAVENATO, 2004,
p. 43). Faz-se importante nesse contexto, uma retrospec-
ção histórica, uma vez que, já no séc. XVII Descartes já
negava todo saber que fosse tradicional, ou seja, baseado
em costumes e crenças, afirmando que esses deviam ser
substituídos pelo racional e no séc. XVIII, o Racionalismo
passou a ser aplicado às ciências naturais e sociais, po-
rém o trabalho ainda não abandonara as antigas técnicas

8
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out 1988.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>. Acesso em 09 abr 2013.
9
GUERRA, Sidney. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Atlas,
2012. p. 54.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
730
Lucena Cavalheiro Pletsch & Iásin Schäffer Stahlhöfer

para adotar “a racionalização da organização e execução


do trabalho.” (MOTTA; VASCONCELOS, 2002, p. 32).10

Com o fim da Segunda Guerra Mundial tanto o modelo


Taylorista quanto o Fordista começaram a mostrar sinais de
esgotamento, situação que decorreu da crise estrutural do ca-
pitalismo. Esse fato, aliado ao crescente avanço tecnológico,
abre espaço ao novo paradigma de organização da produção
conhecido como o Pós-fordismo ou Toyotismo, mostrando-se
um modelo onde a produção é flexível à demanda do mercado.
O [...] Toyotismo é um modo de organização da produção
capitalista originário do Japão, resultante da conjuntura
desfavorável do país. O toyotismo foi criado na fábrica da
Toyota no Japão (dando origem ao nome) após a Segun-
da Guerra Mundial, este modo de organização produtiva,
elaborado pelo japonês Taiichi Ohno e que foi caracteri-
zado como filosofia orgânica da produção industrial (mo-
delo japonês), adquirindo uma projeção global.11

As técnicas de gestão do Toyotismo tem como idéia cen-


tral a flexibilidade produtiva, resultando numa estrutura mais
enxuta, processo de produção mais apurado tecnológicamente
e a consequente redução dos postos de trabalho. O modelo de
produção capitalista toyotismo e a correspondente “produção
enxuta” em contexto de mundialização da economia aliado à
demanda cada vez mais volátil vem a ocasionar o fenômeno do
desemprego estrutural que nada mais é do que a supressão
em definitivo de vagas de emprego.12

10
SOUZA JUNIOR, Adelson Barbosa, et al. Teorias administrativas: a
evolução em decorrência das necessidades. Disponível em <http://
www.administradores.com.br/artigos/administracao-e-negocios/
teorias-administrativas-a-evolucao-em-decorrencia-das-necessidades/
35538/>. Acesso em 08 abr 2013.
11
CERQUEIRA, Wagner de. Taylorismo e Fordismo. Disponível em
<http://www.brasilescola.com/geografia/taylorismo-fordismo.htm>.
Acesso em 09 abr 2013.
12
DANELLI, Sônia Cunha de Souza. Livro Projeto Araribá 8º ano. 2 Ed.
São Paulo: Moderna, 2007. Disponível em
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
731
A flexibilização dos direitos trabalhistas no contexto da efetivação...

A globalização da economia tem alterado o cenário da or-


ganização da produção, na gestão de pessoas e, por conse-
guinte na organização do trabalho. As profundas mudanças
marcadas pelas crises do capitalismo – que enseja um contex-
to de flutuações cíclicas da economia –, aliadas aos avanços
tecnológicos sustentam o discurso da necessidade da flexibili-
zação dos direitos trabalhistas como forma de se adequar ao
novo contexto mundial, “possibilitando as empresas a respon-
der mais rapidamente às contingências do mercado de traba-
lho (de caráter cíclico e estrutural)”13.
A cíclica, e comum, instabilidade econômica da economia
e o desemprego aberto, que segundo Marcio Pochmann “[...]
corresponde aos trabalhadores que procuram ativamente por
uma ocupação, estando em condições de exercê-la imediata-
mente e sem desenvolver qualquer atividade laboral [...]”14 ali-
ado à adoção de políticas neoliberais – menores ingerências do
Estado sobre a economia –, ocasiona a desregulamentação dos
direitos trabalhistas, que é uma forma de flexibilização sutil-
mente imposta.
O avanço tecnológico também tem contribuído para as
mudanças no mundo do trabalho, visto que se entende que o
crescimento econômico depende mais da tecnologia do que da
mão-de-obra, fator que também tem contribuído para o desem-
prego estrutural. Registra-se, por oportuno, que a gestão de in-
formação tem revisto esta relação, fomentando a capacitação
dos colaboradores como forma de êxito para a organização.15

<http://geografianewtonalmeida.blogspot.com.br/2011/09/desemprego-
estrutural-e-desemprego.html>. Acesso em 09 abr 2013.
13
CAMPOS, Ginez Leopoldo Rodrigues de. Cooperativas de Trabalho e
Flexibilização Produtiva: quando “estar juntos” transforma-se em uma
estratégia perversa de exclusão. Salvador: Centro de Recursos
Humanos, 2004, p. 274.
14
POCHMANN, Marcio, et al. Catálogo da produção acadêmica sobre
reestruturação produtiva e relações do Trabalho. Campinas: Fundação
UNITRABALHO/UNICAMP – Instituto de Economia, 1998. passim.
15
Neste sentido, ver: MORITZ, Gilberto de Oliveira; LINHARES, João Nilo.
Gestão empresarial: o desafio das organizações brasileiras no século
XXI. Disponível em <http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivo/

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732
Lucena Cavalheiro Pletsch & Iásin Schäffer Stahlhöfer

Estes fatores citados amparam o discurso de muitos acer-


ca da necessidade da flexibilização dos direitos trabalhistas no
Brasil, que atualmente são taxadas de rígidas em demasia
frente à volatilidade do mercado. Com tudo isso passa-se a
justificar a necessidade de uma reestrutura produtiva para se
adequar a economia e suas flutuações cíclicas, nascendo então
à necessidade de um trabalhador volátil e menos protegido.

FLEXIBILIZAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS


A flexibilização no âmbito do Direito do Trabalho pode ser
definido como eliminação ou diminuição da proteção trabalhis-
ta clássica, com a finalidade de aumentar o investimento, o
emprego ou a competitividade das empresas. A flexibilização,
conforme alguns, é necessária para adaptação das leis traba-
lhistas ao contexto atual e é a forma de promover desenvolvi-
mento econômico e progresso social:
[...] a flexibilização do direito do trabalho como o instru-
mento de política social caracterizado pela adaptação
constante das normas jurídicas à realidade econômica,
social e institucional, mediante intensa participação de
trabalhadores e empresários, para eficaz regulação do
mercado de trabalho, tendo como objetivos o
DESENVOLVIMENTO econômico e o progresso social.16

A flexibilização se dá de diversas formas sendo que uma


de suas formas é a de sregulamentação de direitos, ou seja, a
gradativa retirada da influência do Estado nas relações de tra-
balho deixando as partes mais “livres” para contratar. No Bra-
sil é possível verificar a ocorrência da desregulamentação dos
direitos trabalhistas de forma gradativa com as alterações na
legislação trabalhista que veio a flexibilizar o contrato de tra-
balho.

secex/sti/indbrasopodesafios/nexcietecnologia/Moritz.pdf>. Acesso em
08 abr 2013.
16
ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O moderno direito do trabalho. São
Paulo: LTr, 1994. passim.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
733
A flexibilização dos direitos trabalhistas no contexto da efetivação...

Pode-se citar como exemplo a legislação do Fundo de Ga-


rantia do Tempo de Serviço – FGTS –, primeiramente como op-
cional e posteriormente como obrigatório após o advento da
Constituição da República, extinguindo a estabilidade no em-
prego. Outro exemplo de flexibilização é a diminuição do perí-
odo de férias nos contratos por tempo parcial, consoante dis-
posto no artigo 130-A da Consolidação das Leis do Trabalho
artigo acrescentado pela Medida Provisória nº 2.164-41, de 24
de Agosto de 200117, convertida na Emenda Constitucional nº
3218, que assim dispõe:
Art. 130-A. Na modalidade do regime de tempo parcial,
após cada período de doze meses de vigência do contrato
de trabalho, o empregado terá direito a férias, na seguin-
te proporção:
I – dezoito dias, para a duração do trabalho semanal su-
perior a vinte e duas horas, até vinte e cinco horas;
II – dezesseis dias, para a duração do trabalho semanal
superior a vinte horas, até vinte e duas horas;
III – quatorze dias, para a duração do trabalho semanal
superior a quinze horas, até vinte horas;
IV – doze dias, para a duração do trabalho semanal supe-
rior a dez horas, até quinze horas;

17
BRASIL. Medida Provisória n° 2.164-41, de 24 de agosto de 2001. Altera a
Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, para dispor sobre o trabalho a
tempo parcial, a suspensão do contrato de trabalho e o programa de
qualificação profissional, modifica as Leis nos 4.923, de 23 de dezembro
de 1965, 5.889, de 8 de junho de 1973, 6.321, de 14 de abril de 1976,
6.494, de 7 de dezembro de 1977, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 8.036,
de 11 de maio de 1990, e 9.601, de 21 de janeiro de 1998, e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 27 ago 2001. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/mpv/2164-41.htm>. Acesso em 08 abr 2001.
18
BRASIL. Emenda Constitucional n° 32. Altera dispositivos dos arts. 48,
57, 61, 62, 64, 66, 84, 88 e 246 da Constituição Federal, e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 12 set 2001. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc32.htm>. Acesso em 08 abr
2013.

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V – dez dias, para a duração do trabalho semanal superi-


or a cinco horas, até dez horas;
VI – oito dias, para a duração do trabalho semanal igual
ou inferior a cinco horas.
Parágrafo único. O empregado contratado sob o regime
de tempo parcial que tiver mais de sete faltas injustifica-
das ao longo do período aquisitivo terá o seu período de
férias reduzido à metade.19

A flexibilização também ocorre pelos intérpretes e aplica-


dores do direito com a edição de súmulas pelos Tribunais. A
Súmula n° 342 editada pelo Tribunal Superior do Trabalho
constitui-se em uma exceção à intangibilidade do salário, pos-
sibilitando a redução deste:
Desconto Salarial - Plano de Assistência
Descontos salariais efetuados pelo empregador, com a
autorização prévia e por escrito do empregado, para ser
integrado em planos de assistência odontológica, médi-
co-hospitalar, de seguro, de previdência privada, ou de
entidade cooperativa, cultural ou recreativa associativa
dos seus trabalhadores, em seu benefício e dos seus de-
pendentes, não afrontam o disposto pelo Art. 462 da CLT,
salvo se ficar demonstrada a existência de coação ou de
outro defeito que vicie o ato jurídico.20

Essas são algumas formas de flexibilização dos direitos


trabalhistas, mas não são as únicas formas. A terceirização das
atividades que não são consideradas estratégicas – limpeza,
vigilância, conservação, para citar algumas – amparada pela
lei, surge como forma marcante e inovadora da reorganização
19
BRASIL. Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de Maio de 1943. Aprova a
Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Rio de Janeiro, RJ, 09 ago 1943. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>.
Acesso em 08 abr 2013.
20
BRASIL. Enunciados ou Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho.
Disponível em <http://www.dji.com.br/normas_inferiores/enun
ciado_tst/tst_0331a0360.htm#TST Enunciado nº 342>. Acesso em 08
abr 2013.
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735
A flexibilização dos direitos trabalhistas no contexto da efetivação...

do trabalho que tomou impulso a partir da gerência estatal ne-


oliberal no Brasil e é marcada pela lógica da descentralização
do emprego caracterizado pela substancial diminuição do pa-
tamar dos salários dos empregados21.
Isso ocorre porque o neoliberalismo “[...] prega que a con-
tratação e os salários dos trabalhadores devem ser regulados
pelo mercado, pelas leis da oferta e da procura. O Estado deve
deixar de intervir nas relações trabalhistas, que seriam regula-
das pelas condições econômicas”.22 Fato ignorado é a constru-
ção histórica de direitos humanos adquiridos pelos trabalhado-
res devido justamente à ineficiência do mercado em adminis-
trar satisfatoriamente o aspecto social, em especial a desi-
gualdade.
Percebe-se que a reestruturação produtiva imposta pela
terceirização impactou não apenas na quantidade de empre-
gos, mas principalmente na qualidade dos postos de trabalho
criados. Segundo Giovanni Alves, “surge dessa forma, uma
série de trabalhos precarizados, que inclui o trabalho autôno-
mo, part-time, informal, incluindo o trabalho a domicílio”.23 A
precarização se dá especialmente com a redução substancial
do salário, que é o aspecto econômico da terceirização. Contu-
do, além da minoração salarial verifica-se a tendência a frag-
mentação do coletivo operário, fragilizando a organização de
classe e a conseqüente redução do poder de resistência que é
a dimensão política da terceirização.24
Outra forma de flexibilização que precariza o trabalho são
as cooperativas de trabalho, que fundadas na associação de
pessoas em torno de um objetivo comum de vender a sua força
de trabalho tem sido utilizado em larga escala como meio de
forjar uma situação de associação que nada mais é do que uma
relação hierárquica de emprego, mascarada, mostrando-se um

21
ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho::
reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2000. p. 264-265.
22
MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit. p. 09.
23
Ibdem. p. 265.
24
Idem. p. 266.

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canal de fraude dos direitos trabalhistas utilizado pelo setor


empresarial para diminuir custos e aumentar os lucros. Con-
forme Ricardo Antunes, o trabalhador terceirizado via coopera-
tivas de trabalho nada mais é do que uma nova categorização
de “[...] subproletariado, porque é proletariado precarizado, no
que diz respeito às suas condições de trabalho e desprovidos
dos direitos mínimos do trabalho”.25 Neste mesmo sentido, no
século XVIII, as corporações de ofício foram suprimidas, seja
por leis/decretos, seja por revoluções populares. O fator per-
verso da flexibilização dos direitos trabalhistas é a evidente
precarização do trabalho e, em que pese ter diminuído os pos-
tos de trabalho e o valor do salário, a flexibilização continuou a
propiciar à concentração de renda aumentando significativa-
mente os níveis de desigualdades sociais.
Outrossim, a flexibilização em suas diversas formas de se
concretizar, seja pela legislação, seja jurisprudência ou seja
pela omissão da intervenção estatal na regulação do contrato
de trabalho tem ocasionado a supressão da base princípiológi-
ca do Direito do Trabalho consolidada após séculos de discus-
sões. Faz-se necessário contextualizar que a base princípioló-
gica do Direito do Trabalho é uma vasta gama de princípios de
Direitos Humanos que visam à proteção do trabalhador, fun-
dada no núcleo do Estado Democrático de Direito Brasileiro,
expressa pela Constituição da República, e que corresponde os
direitos humanos fundamentais, em especial aos princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade.

CONCLUSÃO
A existência de cartas de Direitos Humanos é pacífica, fa-
to conflituoso, entretanto, é a efetividade dos Direitos Huma-
nos. Neste contexto, a flexibilização amparada no discurso da
necessidade de adequação a volatilidade do mercado tem se
operado a custo de supressão da legislação protetiva da classe

25
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação
do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 200.
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trabalhadora que é a parte mais vulnerável na relação de em-


prego, e que está em patamar de desigualdade frente à classe
empregadora que é, em sua maioria, detentora do poder eco-
nômico.
Assim, considerando que flexibilizar nada mais é que
possibilitar maior liberdade na contratação de mão-de-obra e
dispensa desta sem obstáculos, coloca-se cada vez mais as
partes envolvidas no contrato de trabalho em igualdade formal
que está aquém de concretizar a igualdade material almejada
pelos Direitos Humanos. Ademais, observa-se que a flexibiliza-
ção é uma forma indireta de inefetivação dos Direitos Huma-
nos, eis que baseada na supressão de direitos fundamentais
relacionados ao Direito do Trabalho.
Fato é que a articulação neoliberal, ocasionada pelo fe-
nômeno da terceirização, acarreta a perda de resistência dos
trabalhadores, pois fragmenta a organização destes em classe.
Destarte, gradativamente o fenômeno da flexibilização das leis
trabalhistas que tem mostrado seu lado perverso com a preca-
rização do trabalho e acúmulo de capital de forma ainda mais
concentrada e aos operadores do direito cabe em seu cotidiano
de trabalho visar à concretude da base princípiológica do Di-
reito do Trabalho e com isso fazer resistência a esse fenômeno
quando ele vem a lesar a proteção ao trabalhador e a ocasionar
a minoração de Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS
ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestru-
turação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo Edi-
torial, 2000.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirma-
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o trabalho a tempo parcial, a suspensão do contrato de trabalho e o
programa de qualificação profissional, modifica as Leis nos 4.923, de
23 de dezembro de 1965, 5.889, de 8 de junho de 1973, 6.321, de 14
de abril de 1976, 6.494, de 7 de dezembro de 1977, 7.998, de 11 de
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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
A CIDADE COMO INSTRUMENTO
PARA A FORMAÇÃO DE UMA
CIDADANIA PARTICIPATIVA

Luciana Borella Camara


Mestranda do Curso de Direitos Humanos da Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.
(lbcamara@bol.com.br).
Elenise Felzke Schonardie
Pós-Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Si-
nos e professora do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Re-
gional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
(elenise.schonardie@unijui.edu.br)

Resumo
A urbanização já atinge metade da população mundial e tende a aumentar com o
decorrer do tempo. Emerge uma modificação da sociedade antes agrária em urbana.
Isso reflete na maciça aglomeração informal da população nas cidades, sem qual-
quer infraestrutura. O atual contexto urbano traz os serviços urbanos cada vez me-
nos capazes de atender essa nova perspectiva, gerando grandes controvérsias acerca
das questões envolvendo a cidade e a urbanização. O direito à cidade é reflexo de
um espaço coletivo diverso dessa realidade, através de um processo educativo que
impulsiona uma visão consciente do cidadão acerca desses problemas, e com isso,
cria condições de que esse espaço público seja melhor utilizado, enfatizando direitos
mínimos e imprescindíveis ao exercício pleno da cidadania e da dignidade da pessoa
humana. A cidade educadora respeita os direitos a uma moradia sadia, a uma edu-
cação emancipadora de seus cidadãos, a cultura do coletivo, e acima de tudo, reflete
sua função social a partir da categoria desse novo direito de natureza difusa.
Palavras-chave: Cidadania. Direito à Cidade. Espaço Coletivo. Educação.

Abstract
The urbanization already reaches half the world's population and tends to increase
with time. Emerge a change in agrarian society before urban. This reflects the mas-
sive informal agglomeration of population in cities, without any infrastructure. The
current urban context brings urban services increasingly less able to meet this new
perspective, generating great controversies about the issues involving the city and
urbanization. The right to the city is a reflection of a diverse collective space that
reality through an educational process that promotes a vision of the citizen aware
about these issues, and in doing so creates conditions that public space is better
utilized, emphasizing rights and minimal essential the full exercise of citizenship and
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Luciana Borella Camara & Elenise Felzke Schonardie

human dignity. The city educator respects the rights to a healthy housing, the eman-
cipatory education of its citizens, the collective culture, and above all, reflects its
social function from this new category of right of diffuse nature.
Keywords: Citizenship. Right to the City. Space Collective. education

INTRODUÇÃO
O direito à cidade é o elemento principal para a constru-
ção de uma vivência cidadã, ou seja, propicia o surgimento de
uma cidade que almeje a cidadania através dos movimentos
educativos, bem como, indica um marco democrático através
da participação do cidadão na governabilidade.
A cidade é o lócus para a expansão de assuntos ligados
aos direitos humanos. Uma cidade civilizada é aquela que
agrega os direitos de todos os grupos sociais. Uma cidade ci-
dadania se dá através de um processo educativo que auxilie na
construção de uma cultura coletiva, de um espaço social, de
participação do cidadão em uma democracia não somente com
o voto, mas também através da informação, do debate de
questões de interesse coletivo.
Pretende-se demonstrar que a educação, dentro desse
contexto urbano da cidade pode servir de instrumento para
construir uma democracia ainda mais participativa do cidadão,
ao passo que ensina a perceber a cidade não só como um es-
paço que abriga grandes complexidades acerca da questão
urbana, mas também, que pode ser um espaço de igualdade,
de tolerância, de convivência participativa, democrática e
principalmente capaz de ensinar a importância do valor e do
respeito às diversidades, reflexos de uma cidadania emanci-
pada.

O DIREITO À CIDADE A PARTIR DA PERSPECTIVA EDUCACIONAL EM


BUSCA DE UMA CIDADANIA DEMOCRÁTICA
Manuel Castell diz que “as cidades são sistemas vivos,
feitos, transformados e experimentados por ser humanos [...]

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A cidade como instrumento para a formação de uma cidadania...

os cidadãos são as raízes da cidade”.1 Freire, por sua vez, diz:


Enquanto educadora, a cidade é também educanda. Mui-
to de sua tarefa educativa implica a nossa posição políti-
ca e, obviamente, a maneira como exerçamos o poder na
Cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a políti-
ca, a serviço de que e de quem a fazemos. 2

A partir disso, hoje é possível perceber o papel educativo


das cidades nas mais diversas áreas, tais como, meio ambien-
te, educação, saúde, lazer, cultura, com base numa idéia de
desenvolvimento local sustentável e de participação da comu-
nidade juntamente com o setor público.
Saule Junior ressalta que o direito à cidade hoje compre-
ende um direito à cidadania, de todos os habitantes em condu-
zir seus próprios direitos, seus meios de subsistência, suas
moradias, e ainda conduzir os direitos à saúde, à educação, ao
transporte público, ao trabalho, ao lazer. Leciona o autor que o
direito à cidade engloba também o direito à liberdade de orga-
nização, o respeito às minorias e à pluralidade étnica, sexual e
cultural, o respeito aos imigrantes e o reconhecimento de sua
plena cidadania, a preservação da herança histórica e cultural
e o usufruto de um espaço culturalmente rico e diversificado,
sem distinções de gênero, nação, raça, linguagem e crenças.3
Nesse mesmo sentido, Schonardie afirma que a partir do
atual contexto da sociedade urbana, a tutela do direito à cida-
de corresponde à efetivação do direito à dignidade de todos os
atores sociais, ao mesmo tempo em que está ligada a outros
direitos como moradia, educação, saúde, lazer, trabalho, além

1
CASTELLS, Manuel. La ciudad de la masas. Sociologia de los
movimientos sociales urbanos. Madrid: Alenza Universidad, 1986.
2
FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993, p. 23.
3
SAULE JUNIOR, Nelson. O Direito à Cidade como paradigma da
governança urbana democrática. Disponível em:<http://www.insti
tutoapoiar.org.br/imagens/bibliotecas/O_Direito_a_Cidade_como_parad
igma_da_governanca_urbana_democratica.pdf> Acesso em 20 nov
2012.

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do equilíbrio entre o ambiente natural e artificial, a preserva-


ção do patrimônio cultural e dos serviços públicos.4
Essa característica da função social da cidade reflete o
uso justo do espaço urbano, de forma a democratizar os espa-
ços de produção, de cultura, de justiça social, de forma a criar
ambientes sustentáveis.5 Ainda com relação à efetivação da
função social da cidade, Cavallazzi afirma ser imprescindível
aliar o espaço público como mediador para estabelecer um
equilíbrio entre o meio ambiente natural e o construído.6
Schonardie salienta que “[...] o espaço público deve ser
referência para a construção e a efetivação das políticas urba-
nas locais, considerando-se o tempo e os diferentes atores so-
ciais que integram esse espaço”.7 A aliança entre a justiça so-
cial e a sustentabilidade ambiental do meio urbano promove o
devido enfrentamento dos problemas que envolvem o acesso à
moradia, o desemprego e até a falta de infraestrutura básica
que assolam grande parte da população urbana.8
Essa perspectiva do espaço da cidade como instrumento
educativo na concretização da cidadania é o indicativo para a
concretização da educação não-formal, isto é, aquela que ul-
trapassa a sala de aula, caracterizada pela informalidade, e
que se constitui em um “processo de formação para a cidada-
nia, de capacitação para o trabalho, de organização comunitá-
ria e de aprendizagem dos conteúdos escolares em ambientes
diferenciados”.9 Esses ambientes encontrados na cidade se

4
SCHONARDIE, Elenise Felzke. Direito à cidade e favelização. In: BEDIN,
Gilmar Antonio (org.) Cidadania, Direitos Humanos e Equidade. Ijuí:
Ed. Unijuí, 2012, p. 251-267.
5
SAULE JUNIOR, op. cit., 2012.
6
CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do
Direito Urbanístico Brasileiro: possibilidades e obstáculos do Direito à
Cidade. In: SAULE JUNIOR, Nelson. Direito Urbanístico: vias jurídicas
das políticas urbanas. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2007, p. 52.
7
SCHONARDIE, op. cit., p. 258.
8
Idem.
9
GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal e cultura política. São
Paulo: Cortez, 1999, p. 98-99.
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constituem em espaços de aprendizagem. Freire nesse sentido


já dizia:
Há um modo espontâneo, quase como se as Cidades ges-
ticulassem ou andassem ou se movessem ou dissessem
de si, falando quase como se as Cidades proclamassem
feitos e fatos vividos nelas por mulheres e homens que
por elas passaram, mas ficaram, um modo espontâneo,
dizia eu, de as Cidades educarem.10

A cidade reflete uma troca de saberes, já que concentra


uma tamanha diversidade cultural, de saberes, o que facilita o
mútuo aprendizado. Gadotti, da mesma forma, entende que a
cidade, além de sua função econômica, social, política e de
prestadora de serviços, pode educar para a cidadania. Com-
plementa ainda acerca da importância de um novo direito à
cidade educadora, uma cidade que propicia ao cidadão a cons-
ciência de seus direitos e deveres, através da democracia, re-
fletida no exercício dos direitos civis à segurança, a locomoção;
dos direitos sociais ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à
educação e à habitação; dos direitos políticos à liberdade de
expressão, ao voto, de participação em partidos políticos e
sindicatos. 11
Isso reflete claramente a ideia de que não há cidadania
sem democracia, e, que, uma cidade educadora oferece condi-
ções para que todos os seus habitantes sejam participativos e
tenham acesso a oportunidades de debater as controvérsias
envolvendo a questão urbana, hoje “marcada pelo déficit habi-
tacional, deficiência de serviços de infraestrutura e transporte
e acentuada degradação ambiental”.12

10
FREIRE, op. cit., p. 23.
11
GADOTTI, Moacir. A questão da educação formal/não-formal. Institut
international des droits de l’enfant (ide). Sion (Suisse), 18-22 oct. 2005.
Disponível em: <http://www.virtual.ufc.br/solar/aula_link/llpt/A_a_H/
estrutura_politica_gestao_organizacional/aula_01/imagens/01/Educaca
o_Formal_Nao_Formal_2005.pdf> acesso em 20 nov 2012.
12
SCHONARDIE, op. cit., 251.

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Com relação a esse déficit habitacional, Freitag caracteri-


za esse problema como fruto do novo padrão de urbanização,
as megalopolizações, ou seja, o aumento excessivo da taxa de
urbanização, principalmente na América Latina:
[...] megalópoles latino-americanas cujas reminiscências
metropolitanas foram sendo apagadas pelas sucessivas
levas de migrantes, que quantitativa e qualitativamente
destruíram a cidade legal preexistente e criaram um pa-
drão de cidade real (legal e ilegal) que já não é metrópole
nem (ainda?) cidade global [...].13

Dessa forma, esse crescimento desordenado emergiu uma


cidade ‘partida’, caracterizada pela população maciça aglome-
rada em áreas irregulares (cortiços, invasões, favelas), deno-
minada de população “marginalizada, periférica ou excluída”,
que vivem de forma improvisada e até mesmo ilegal, sem
qualquer registro, via de regra, sem pagar luz, água ou qual-
quer tipo de imposto, tendo todos os serviços básicos desvia-
dos de forma ilegal.14
Dentro dessa perspectiva que o direito à cidade hoje está
inserido, e partindo do pressuposto de que se vive dentro de
um Estado Democrático de Direito, deve-se partir muito além
do simples respeito aos direitos individuais, mas sim, efetiva-
mente abranger a toda a coletividade, haja vista se tratar de
um direito difuso, e acima de tudo, transindividual, e por tal,
deve ser pensado.15
A cidade oferecerá aos pais uma formação que lhes per-
mita ajudar os seus filhos a crescer e utilizar a cidade
num espírito de respeito mútuo. Todos os habitantes da
cidade têm o direito de refletir e participar na criação de
programas educativos e culturais, e a dispor dos instru-
mentos necessários que lhes permitam descobrir um pro-
jeto educativo, na estrutura e na gestão da sua cidade,

13
FREITAG, Barbara. Teorias da cidade. 4 ed. Campinas: Papirus, 2012, p.
156-157.
14
Idem, p. 157.
15
SCHONARDIE, ibidem, p. 257.
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nos valores que esta fomenta, na qualidade de vida que


oferece, nas festas que organiza, nas campanhas que
prepara, no interesse que manifeste por eles e na forma
de os escutar. 16

A cidade educa quando propicia um espaço cultural de


aprendizado associado aos ambientes escolares, que integram
esse espaço, na construção compartilhada de uma cidadania
compromissada, onde o cidadão se apropria desse espaço e
aprende a gozar do direito de fazer parte da cidade e dela par-
ticipar ativamente na minimização dos problemas, na medida
em que ela propicia essa tomada consciente acerca dos pro-
blemas diários e a compreensão dos dilemas contemporâneos17.
A escola, dentro desse contexto acima colocado, buscan-
do a formação escolar do cidadão de forma emancipada, viabi-
liza a socialização da informação e a criação de uma nova visão
em relação ao espaço da cidade.
Uma cidade que educa é aquela que propõe a partir de
um planejamento urbano a promoção e melhoria das condições
aos seus habitantes, viabilizando o resguardo dos direitos fun-
damentais do indivíduo, imprescindíveis a uma vida digna e de
qualidade. Uma cidade educadora é aquela que distribui equi-
tativamente os benefícios e ônus dos investimentos urbanos, a
partir de uma perspectiva de sociedade sustentável. A cidade
que educa busca criar no cidadão uma consciência crítica, ati-
va, participativa, que se faz educando, aprendendo, ensinando,
conhecendo, criando: “A Cidade é cultura, criação, não só pelo
que fazemos nela e dela, mas pelo que criamos nela e com ela,
mas também é cultura pela própria mirada estética ou de es-
panto, gratuita, que lhe damos. A Cidade somos nós e nós so-
mos a Cidade”18.
Essa responsabilidade compartilhada entre poder público
e sociedade é imprescindível para que seja possível implemen-
tar todas essas medidas em prol de um espaço coletivo que

16
GADOTTI, op. cit. p.6.
17
GADOTTI, idem.
18
FREIRE, op. cit., p. 22.

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propicie condições dignas de moradia e de saneamento. A par-


ticipação do cidadão é um dos marcos indicativos da democra-
cia. É também o principal papel do cidadão, não caracterizan-
do apenas como um direito, mas acima de tudo, um dever.
O’Brien leciona que essa participação, na prática, reflete
a escolha do voto, de estar bem informado, de debater ques-
tões, de freqüentar reuniões comunitárias e cívicas, de ser
membro de organizações voluntárias, em pagar impostos e até
mesmo exercer o direito de protestar19.
Por outro lado, Saule Junior levanta essa perspectiva co-
mo uma utopia ainda a ser alcançada:
As cidades como espaço social que ofereçam condições e
oportunidades eqüitativas aos seus habitantes, de vive-
rem com dignidade, independente das características so-
ciais, culturais, étnicas, de gênero e idade, felizmente
continuam a ser objetivo de muitos indivíduos, grupos
sociais, organizações da sociedade, movimentos popula-
res, instituições religiosas, partidos políticos, gestores
públicos, compromissados em alcançar uma vida melhor,
de felicidade, paz, harmonia e solidariedade para as pes-
soas, nas cidades (2005).

Assim, a cidade hoje deve ser percebida a partir de uma


concepção emancipadora, onde através dos ambientes escola-
res que fazem parte desse espaço coletivo seja possível respei-
tar as diversidades que compõem esse espaço.
Essa ideia deve ser enfatizada a partir da realidade hoje
presenciada nas cidades, com grande concentração de pesso-
as, de grandes edificações, e que sem dúvida, retratam tam-
bém grandes índices de problemas sociais, como violência,
desemprego, falta de habitação, transporte superlotado. De tal
forma, não resta alternativa senão buscar uma nova função
social para a efetivação do direito a uma cidade cidadã.
19
O’BRIEN, Edward L. Como educar a comunidade para a Lei, a
Democracia e os Direitos Humanos. In: ANDREOPOLOS, George;
CLAUDE, Richard P (orgs.) Educação em Direitos Humanos para o
século XXI. Tradução: Ana Luiza Pinheiro. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 2007, p. 591-618.
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Como já ressaltado, esses problemas sociais são fruto do


crescimento mundial da população urbana, já que metade da
população mundial hoje vive em aglomerados urbanos, o que
suscita uma governança democrática e com a participação ati-
va do cidadão em relação aos problemas cotidianos, a fim de
minimizá-los e ao mesmo tempo, difundir uma cultura de res-
peito aos direitos alheios dentro desse espaço coletivo.
Nas palavras de Freire, a cidade pode contribuir para a
construção de uma sociedade saudável, que se transforma
num espaço de formação ético-política de pessoas que se que-
rem bem e por isso têm legitimidade para transformar a vida
da cidade.20
O processo que alia educação, cidadania, dentro do con-
texto urbano da cidade age como instrumento de humanização
desse ambiente coletivo, que deve se voltar ao bem-estar de
que o utiliza. Para isso, é necessária essa intervenção em rela-
ção ao espaço da cidade para tornar possível a todos a percep-
ção de aspectos que passam aos olhos, diariamente sem qual-
quer comprometimento ou preocupação. Exemplo claro disso
são os grandes aglomerados de favelas, concentradas ao redor
das cidades, assim como, a má distribuição de renda que, na
prática, se enxerga diariamente, através dos moradores de rua,
dos mendigos dormindo em calçadas, dos pedintes implorando
por esmolas nos semáforos.
Essa reflexão se dá, nas palavras de através de uma nova
pedagogia da cidade “para ensinar a todos a olhar, a descobrir
a cidade, para poder aprender com ela, dela, aprender a convi-
ver com ela. A cidade é o espaço das diferenças. A diferença
não é uma deficiência. É uma riqueza”. 21
Para efetivamente ocorrer o enfrentamento desses pro-
blemas é preciso que esse espaço coletivo ou essa cidade ci-
dadã, a partir da conscientização do seu cidadão, construa e
compartilhe um ideia de participação ao mesmo tempo em que
fomente um espaço para se exercitar direitos básicos como

20
FREIRE, Paulo. Educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991.
21
GADOTTI, op. cit., 6.

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lazer, cultura, entretenimento e acima de tudo, que promova


constantemente uma reeducação acerca dos reais problemas
da cidade.
Saule Junior ressalta a necessidade de incorporar os di-
reitos humanos no ato de governar a cidade, de modo que isso
resulte ao menos na tentativa de elidir as desigualdades soci-
ais e eliminar toda e qualquer forma de discriminação:
A forma tradicional de buscar a proteção dos direitos dos
habitantes das cidades nos sistemas legais traz sempre a
concepção da proteção de um direito individual, de modo
a prover a proteção dos direitos da pessoa humana na ci-
dade. A concepção do direito à cidade no direito brasilei-
ro avança, ao ser instituído com objetivos e elementos
próprios, configurando-se como um novo direito humano,
e, na linguagem técnica jurídica, como um direito funda-
mental. 22

Em suma, o novo direito à cidade propõe uma nova visão


acerca do espaço público, de forma a propagar os interesses
coletivos e difusos. Da mesma forma, o direito à cidade é inter-
dependente a todos os direitos humanos, isto é, o exercício dos
direitos civis, políticos, sociais, econômicos, ambientais e cul-
turais deve ser operado nos espaços urbanos e rurais que fa-
zem parte da cidade.23
O regramento jurídico constitucional, através dos artigos
18224 e 18325, regulamentados pelo Estatuto da Cidade – Lei nº

22
SAULE JUNIOR, op. cit., p. 2.
23
SCHONARDIE, op. cit., p. 259.
24
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por ob-
jetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado
pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade ex-
pressas no plano diretor. § 3º As desapropriações de imóveis urbanos
serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4º É facultado
ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída
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10.257/01 trouxeram uma nova percepção em relação às dire-


trizes relativas à política urbana, em especial porque “redefi-
niu os limites do exercício do direito à propriedade, visando ao
usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sus-
tentabilidade e justiça social [...]”.26
Percebe-se a partir da constatação dos problemas envol-
vendo a crescente urbanização, bem como, a partir do regra-
mento jurídico em vigência, uma preocupação em reconstruir o
conceito de cidade, de urbanização como um espaço coletivo
que pertence a todos, mas principalmente, de realização de
todos os direitos humanos fundamentais.27
É em virtude da atual relevância desse espaço coletivo
promovedor de uma cidadania participativa e democrática,
sustentada através de uma cidade educadora é que hoje se
percebe o quanto é importante o direito à cidade assim como
os demais direitos individuais fundamentais.

CONCLUSÃO
O direito à cidade hoje é uma necessidade a ser imple-
mentada em prol de toda a coletividade, através da distribui-

no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo


urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu
adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcela-
mento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade pre-
dial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com
pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente
aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos,
em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da in-
denização e os juros legais.
25
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e
cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á
o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou
rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao
homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma
vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
26
Idem, p. 258.
27
Idem, p. 259.

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ção equitativa do espaço público, voltado ao bem-estar de


seus habitantes.
É preciso resguardar os direitos e interesses coletivos
através de uma cidade que educa para o pleno exercício da
cidadania, sem, contudo, abrir mão de um padrão de vida ade-
quado aos habitantes que integram esse espaço coletivo.
Uma cidade que educa é aquela que se volta ao planeja-
mento urbano sustentável de forma a exercitar plenamente a
consciência crítica e emancipadora de seus habitantes ou ci-
dadãos acerca dos problemas cotidianos e dos seus enfrenta-
mentos na tentativa de minimizá-los e até mesmo eliminá-los.
Os ambientes escolares inseridos dentro das cidades de-
vem trabalhar de forma compartilhada em prol da otimização
desses espaços públicos, a fim de que contemplem a efetiva-
ção de todos os direitos individuais tutelados, bem como, pro-
piciem um espaço inteligente e originário para uma cidadania
democrática, efetivando a função social da cidade, em uma
cidade sustentável e capaz de encarar todas as controvérsias
acerca das políticas urbanas.
O direito à cidade que se volta aos direitos básicos do ci-
dadão como o direito à moradia, à saúde, a educação, ao lazer,
a cultura, ao transporte, dentre outros deve ser priorizado den-
tro do espaço coletivo da cidade, de forma a propiciar o mínimo
de uma vida digna ao cidadão e o exercício pleno da cidadania.

REFERÊNCIAS
CASTELLS, Manuel. La ciudad de la masas. Sociologia de los mo-
vimientos sociales urbanos. Madrid: Alenza Universidad, 1986.
CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do
Direito Urbanístico Brasileiro: possibilidades e obstáculos do Direito
à Cidade. In: SAULE JUNIOR, Nelson. Direito Urbanístico: vias jurí-
dicas das políticas urbanas. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fa-
bris Editor, 2007
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UM ESTUDO DAS RELAÇÕES ENTRE A
POBREZA E A GLOBALIZAÇÃO

Luiz Fernando Fritz Filho


Professor Doutor da Faculdade de Ciências Econômicas, Administrativas e
Contábeis da Universidade de Passo Fundo. (fritz@upf.br)
Karen Beltrame Becker Fritz
Professora doutora da Faculdade de Direito da Universidade de Passo
Fundo. (karenfritz@upf.br )
Elenise Felzke Schonardie
Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de Passo
Fundo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universi-
dade Unijuí. (elenise.schonardie@unijui.edu.br)

Resumo
A globalização não é um fenômeno global, pois vive-se em um mundo que gera tanto
crescimento quanto pobreza. As necessidades de inovação competem com as exi-
gências de justiça. O presente estudo identifica as relações entre a pobreza e a glo-
balização, elaborando um breve retrospecto sobre a pobreza e a desigualdade no
Brasil. O período estudado é compatível com aquele em que se instalou a nova or-
dem econômica mundial, a partir da crise dos anos 70. São apresentadas também as
contribuições das instituições financeiras internacionais para o agravamento das
disparidades sociais nos países em desenvolvimento, bem como a importância das
instituições estatais para os pobres.
Palavras-chave: Globalização, Direitos Humanos, Pobreza.

Abstract
Globalization is not a global phenomenon, because he lives in a world that generates
both growth as poverty. Innovation needs compete with the demands of justice. This
study identifies the relationship between poverty and globalization, developing a
brief review on poverty and inequality in Brazil. The study period is consistent with
that which was installed in the new world economic order, from the crisis of the 70s.
Also presented are the contributions of the international financial institutions to the
worsening social disparities in developing countries, and the importance of state
institutions for the poor.
Keywords: Globalization, Human Rights, Poverty.

INTRODUÇÃO
Do fim da Segunda Grande Guerra até o final da década
de 60, a era keynesiana, com estratégias baseadas na inter-
756
Luiz Fernando Fritz Filho, Karen B. Becker Fritz & Elenise Felzke Schonardie

venção do Estado, funcionou em níveis próximos ao ótimo. O


desenvolvimentismo, enquanto projeto ideológico e prática
política nos países da periferia, nasceu nos anos 30, no mesmo
berço que produziu o keynesianismo nos países centrais. Na
verdade, foi uma reação contra a miséria e as desgraças pro-
duzidas pelo capitalismo dos anos 201.
Os resultados desse período, ainda que desiguais, não
podem ser considerados ruins. Comparada a qualquer outro
período do capitalismo, anterior ou posterior, os anos desen-
volvimentistas e keynesianos apresentaram desempenho mui-
to superior em termos de taxa de crescimento do PIB, de cria-
ção de empregos, de elevações dos salários reais e de amplia-
ção dos direitos sociais e econômicos.
O capitalismo do pós-Guerra, com os acordos entre capi-
tal e trabalho, que coordenou a produção e o consumo de mas-
sa, começou a desacelerar com o aumento da competitividade
nos mercados internacionais e a insuficiência de investimento
de capital em novas tecnologias2.
Com a crise econômica e social instaladas, foi criado um
novo modelo de acumulação, que está centrado na globaliza-
ção. Essa nova fase do capitalismo vem sublinhando o cunho
desigual do desenvolvimento capitalista da era keynesia-
na/desenvolvimentista, na medida em que inclui e paralela-
mente marginaliza várias áreas do mundo.
No Brasil, apesar da industrialização, conserva-se uma
série de condições de subdesenvolvimento, muitas vezes
agravadas pelo crescimento econômico, como as disparidades
regionais, desigualdades de renda e uma tendência ao empo-
brecimento das classes subprivilegiadas, enquanto o produto
nacional aumenta. A política de crescimento estimula progres-
sivamente a produção de bens de capital. O Estado, por não
ter mercado interno para bens de capital, adota uma política
para favorecer as maiores empresas. Nesse período ocorre uma
grande ruptura3:

1
Belluzzo, 2004.
2
Bonano, 1999.
3
Santos e Silveira (2003)
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
757
Um estudo das relações entre a Pobreza e a Globalização

Importantes capitais fixos são adicionados ao território,


em dissociação com o meio ambiente e com a produção.
O capital comanda o território, e o trabalho, tornado abs-
trato, representa um papel indireto. Por isso as diferen-
ças regionais passam a ser diferenças sociais e não mais
naturais. (p. 52)

Diferentemente de outras fases do capitalismo, a globali-


zação expressa que a expansão das forças produtivas não ne-
cessariamente se traduz em recursos que poderiam ser em-
pregados para o crescimento socioeconômico. O mercado está
alicerçado na ciência, na técnica e na informação, enquanto o
território ganha novos conteúdos e impõe novos comportamen-
tos, em função das possibilidades de produção, circulação de
insumos, de produtos, de dinheiro, das idéias e informações.
Milton Santos informa que é a “irradiação do meio técnico-
científico-informacional que se instala sobre o território” em
pontos estratégicos.
A globalização não é um fenômeno global, pois vive-se
em um mundo que gera tanto crescimento quanto pobreza.
Ampliando: as necessidades de inovação competem com as
exigências de justiça. É nesta temática que o presente estudo
busca desenvolver-se, ou seja, identificar as relações entre a
pobreza e a globalização. Este ensaio está dividido em cinco
partes. Além desta introdução, a segunda seção buscou elabo-
rar um breve retrospecto sobre a pobreza e a desigualdade no
Brasil entre os anos de 1977-99. O período estudado é compa-
tível com aquele em que se instalou a nova ordem econômica
mundial, a partir da crise dos anos 70. O terceiro tópico objeti-
va então identificar ligações entre a globalização e a pobreza,
evidenciando como instituições financeiras internacionais vem
contribuindo para o agravamento das disparidades sociais nos
países em desenvolvimento. Na quarta seção é destacada a
importância das instituições estatais para os pobres. E no úl-
timo ponto deste trabalho estão as conclusões.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
758
Luiz Fernando Fritz Filho, Karen B. Becker Fritz & Elenise Felzke Schonardie

EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO: DESIGUALDADE E POBREZA NO


BRASIL
De acordo com o estudo intitulado A estabilidade inacei-
tável: desigualdade e pobreza no Brasil4, entre 1977 a 1999, o
Brasil, ratifica uma tendência de enorme desigualdade na dis-
tribuição de renda e altos índices de pobreza. Na visão dos
autores o Brasil pode ser compreendido como:
[...] um país desigual, exposto ao desafio histórico de en-
frentar uma herança de injustiça social que exclui parte
significativa de sua população do acesso a condições mí-
nimas de dignidade e cidadania. (p. 21)

Este estudo empírico dos autores busca retratar como os


elevados níveis de pobreza que afligem a sociedade encontram
seu principal determinante na estrutura da desigualdade bra-
sileira, que pode ser entendida como uma perversa desigual-
dade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão
econômica e social.
Embora pobreza não possa ser definida de uma forma
única, ela refere-se a situações de carência dos indivíduos, e
neste estudo7, considerou-se pobreza em uma dimensão parti-
cular – de insuficiência de renda – na medida em que existem
famílias vivendo com renda familiar per capita inferior ao nível
mínimo necessário para que seja possível satisfazer as neces-
sidades mais básicas. A partir da análise das PNADs do IBGE
e levando-se em conta todo o período estudado pelos autores
(1977-1999), constata-se que o percentual de pobres declinou,
de 40% em 1977 para 34% em 1999. Por conseqüência do pro-
cesso de crescimento populacional, apesar da pequena queda
do grau de pobreza, a quantidade de pobres aumentou em tor-
no de 12 milhões, passando de 41 milhões em 1977 para 53 mi-
lhões em 1999.
Para tentar explicar os determinantes dessa pobreza, os
autores sugerem dois caminhos explicativos: escassez agrega-

4
Barros, Henriques e Mendonça (2000).
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Um estudo das relações entre a Pobreza e a Globalização

da de recursos e a má distribuição dos recursos existentes. No


entanto, ao longo do texto, é demonstrado, de forma exaustiva,
que a origem da pobreza no Brasil não deve ser associada prio-
ritariamente à escassez de recursos, destacando que o País,
apesar do enorme contingente da população abaixo da linha
de pobreza, não pode ser considerado um país pobre. Visando
esclarecer esta questão, comparou-se o grau de pobreza no
Brasil com o observado nos demais países com renda per capi-
ta similar. Os resultados revelaram que o grau de pobreza no
Brasil é significativamente superior à média dos países com
renda per capita similar à brasileira, destacando a relevância
da má distribuição dos recursos para explicar a intensidade da
pobreza nacional. Ou seja, enquanto no Brasil a população po-
bre significa 30% da população total, nos países com renda per
capita similar à brasileira, este índice representa menos de
10%. O relatório de Desenvolvimento Humano definiu como
norma internacional que países com renda per capita equiva-
lente a brasileira imputariam somente cerca de 8% de pobres
na população total. Esse valor, segundo os autores, poderia ser
associado estritamente à escassez agregada de recursos. Mas
toda a distância do Brasil em relação a norma - cerca de 22% -
deve-se portanto ao elevado grau de desigualdade na distri-
buição dos recursos nacionais.
Em nosso País a desigualdade, principalmente a desi-
gualdade de renda, é tão parte da história brasileira que ad-
quire fórum de coisa natural. Assim, como já discutido anteri-
ormente, a pobreza brasileira é determinada pelo extremo grau
de desigualdade distributiva. A seguir serão discutidos argu-
mentos que reforçam esta afirmação.
Os autores desenvolvem a análise da desigualdade a par-
tir da interpretação de quatro medidas tradicionais: coeficiente
de Gini; índice de Theil; razão entre a renda média dos 10%
mais ricos e a renda média dos 40% mais pobres; e razão entre
a renda média dos 20% mais ricos e a renda média dos 20%
mais pobres. O Coeficiente de Gini e o índice de Theil são dois
indicadores que revelam o grau da desigualdade de renda de
uma realidade específica. As duas últimas medidas correspon-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
760
Luiz Fernando Fritz Filho, Karen B. Becker Fritz & Elenise Felzke Schonardie

dem, em termos econômicos, a uma noção de (in)justiça social.


Os dados são do Banco Mundial, do Relatório de Desenvolvi-
mento Humano (PNUD) e PNADs.
Os autores, com dados do Banco Mundial, realizaram uma
comparação internacional entre os coeficientes de Gini para
tratar a estrutura da desigualdade. Os resultados revelam que
apenas a África do Sul e Malavi têm um grau de desigualdade
maior que o do Brasil. Em outra elaboração dos autores, a par-
tir da razão entre a renda média dos 10% mais ricos e a dos
40% mais pobres, para cerca de 50 países, o Brasil é o país com
o maior grau de desigualdade, com renda média dos 10% mais
ricos representando 28 vezes a renda média dos 40% mais po-
bres. Este resultado coloca o Brasil distante, no cenário mundi-
al, de níveis razoáveis, quando se discute justiça distributiva.
Os dados apresentados pelos autores não deixam dúvi-
das sobre a posição do Brasil no que tange ao grau de desi-
gualdade: figura entre os mais elevados do mundo. Dessa
constatação, os autores derivam que o extraordinário grau de
desigualdade de renda no Brasil explica, em grande parte, o
porque do grau de pobreza ser significativamente mais alto do
que em outros países com renda per capita similar.
Quando os autores analisam a evolução da desigualdade
de renda no Brasil, o estudo é desenvolvido a partir das medi-
das de desigualdade descritas anteriormente. Nesta etapa do
trabalho, também se destaca um elevado grau de desigualda-
de sem qualquer tendência de declínio. Ou seja, o grau de de-
sigualdade do ano de 1999 é muito similar ao do início da série
estudada, final da década de 70.
Nas palavras dos autores:
A análise atenta do período de 1977/99 revela, de forma
contundente, que muito mais importante do que as pe-
quenas flutuações observadas na desigualdade é a ina-
creditável estabilidade da intensa desigualdade de renda
que acompanha a sociedade brasileira ao longo de todos
esses anos.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Um estudo das relações entre a Pobreza e a Globalização

Um último destaque, para perturbar ainda mais, revela


que os indivíduos que se encontram entre os 10% mais ricos da
população se apropriam de cerca de 50% do total da renda das
famílias. Enquanto isso, no outro extremo, os 50% mais pobres
da população recebem pouco mais de 10% da renda ao longo
do período estudado. Além disso, o 1% mais rico da população,
detém uma parcela da renda superior à recebida por metade
de toda a população brasileira.
O período estudado pelos autores, de 1977-99, é compatí-
vel com o período em que se instalou a nova ordem econômica
mundial. Em síntese, os resultados, para este período, buscam
evidenciar que o grau de desigualdade na sociedade brasileira
é dos mais elevados em todo mundo e justificar, portanto, por-
que o Brasil, um país com renda per capita relativamente ele-
vada, mantém, ao longo do período, cerca de 40% da sua popu-
lação abaixo da linha de pobreza. Também, os autores, ao in-
vestigar a evolução do grau de desigualdade de renda ao longo
das últimas décadas, buscam inferir que, apesar das diversas
transformações e flutuações macroeconômicas ocorridas neste
período, a desigualdade exibiu uma surpreendente estabilidade.
No entanto, cabe destacar que o atual processo de globa-
lização também tem aprofundado as desigualdades sociais
mesmo dentro dos países que a comandam. De acordo com
Sene (2003) estudos recentes mostram o crescimento da desi-
gualdade na maior parte dos países da OCDE (Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), durante os
anos 80 e 90.
O efeito líquido da globalização na visão de Stiglitz 5, não
somente para os que vivem em países em desenvolvimento,
mas também para aqueles dos países desenvolvidos, da ma-
neira como vem sendo praticada, não satisfez as expectativas
conforme seus defensores prometeram. Em alguns casos não
resultou nem mesmo em crescimento econômico: mas benefi-
ciou alguns à custa de muitos, os ricos à custa dos pobres. Em
muitos casos, interesses e valores comerciais têm substituído
a preocupação com os direitos humanos e a justiça social.
5
Stiglitz (2008)

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
762
Luiz Fernando Fritz Filho, Karen B. Becker Fritz & Elenise Felzke Schonardie

A próxima seção busca retratar então como a pobreza


tem sido mantida e ampliada pelo processo de reestruturação
econômica imposto pelos credores internacionais aos países
em desenvolvimento desde o começo dos anos 80. Evidencia-
se, no entanto, que não será possível encontrar respostas dire-
tas a estabilidade da desigualdade e da pobreza no Brasil, e
sim subsídios que farão referência a condicionamentos, efeitos
e influências internacionais.

A CONTRIBUIÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS INTERNACIONAIS


PARA A POBREZA
Desde meados dos anos 80, os programas de “estabiliza-
ção macroeconômica” e de “ajustes estruturais” impostos pelo
FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo Banco Mundial aos
países em desenvolvimento, como condição para renegociação
da dívida externa, têm levado centenas de milhões de pessoas
ao empobrecimento. Uma minoria social privilegiada acumula
riquezas em prejuízo da grande maioria da população. Essa
nova ordem financeira internacional é nutrida, em grande par-
te, pela pobreza humana6.
O mesmo cardápio de austeridade orçamentária, desvalo-
rização e liberalismo do comércio e privatização é indicado si-
multaneamente em mais de cem países devedores. Estes paí-
ses perdem a soberania econômica e o controle sobre a política
monetária e fiscal, e assim uma “tutela econômica” é estabele-
cida. Ou seja, um governo paralelo, que está acima da socie-
dade civil, é estabelecido pelas instituições financeiras inter-
nacionais.
Evidencia-se que países soberanos ficaram sob a tutela
das instituições financeiras internacionais porque estavam en-
dividadas, o que concedeu às instituições de Bretton Woods o
poder de obrigá-los, por meio das “condicionalidades” anexas
aos “empréstimos de rápido desembolso”, a redirecionar suas
políticas macroeconômicas de acordo com os interesses dos

6
Chossudovsky, (1999).
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Um estudo das relações entre a Pobreza e a Globalização

credores oficiais e comerciais. Os acordos implicados não se


relacionavam, de nenhuma forma, com um programa de inves-
timento como num projeto convencional de empréstimo: sua
finalidade era apoiar mudanças políticas, que eram acompa-
nhadas pelas instituições internacionais, sendo avaliadas com
base no desempenho político.
A natureza desses acordos não favorecem a economia re-
al, pois nenhuma parte do dinheiro era reservada a investimen-
tos. No entanto, outro importante objetivo era cumprido: os
empréstimos de ajuste desviavam os recursos da economia
doméstica e estimulavam os países devedores à importação de
produtos de consumo dos países ricos. O resultado desse pro-
cesso foi a estagnação econômica doméstica, ampliação da
crise do balanço de pagamentos e o crescimento do montante
da dívida.
O total pendente da dívida de longo prazo dos países em
desenvolvimento era de aproximadamente US$ 62 bilhões em
1970, e em 1980 atingiu US$ 481 bilhões. A dívida total (inclu-
indo a de curto prazo) era de mais de US$ 2 trilhões em 1996.
Essa reestruturação econômica mundial sob a orientação
das instituições financeiras nega cada vez mais aos países em
desenvolvimento a possibilidade de construir uma economia
nacional. A internacionalização da política macroeconômica
transforma países em territórios econômicos abertos e econo-
mias nacionais em “reservas” de mão-de-obra barata e de re-
cursos naturais.
Embora adotado em nome da “democracia” e do “bom
governo” os programas de ajuste estrutural requerem o reforço
do aparato de segurança interna: a repressão política – em
acordo com as elites do Terceiro Mundo – e apóia um processo
paralelo de “repressão econômica”, tendendo para uma forma
de “genocídio econômico” através da deliberada manipulação
das forças do mercado. Seus impactos sociais são devastado-
res: afetam a subsistência de mais de quatro bilhões de pessoas.
As implicações sociais dessas reformas têm sido forte-
mente documentadas. Um exemplo é a privatização parcial dos
serviços essenciais do governo e a exclusão de fato de signifi-
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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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cativos setores da população, que não podem pagar as várias


taxas relativas aos serviços de saúde e educação. Deve-se res-
saltar que o PAE (programa de ajuste estrutural) não apenas
resulta no aumento dos níveis de pobreza rural e urbana, como
também implica numa redução da capacidade das pessoas
(inclusive das famílias de classe média) de pagarem pelos ser-
viços de saúde e educação.
Um outro resultado da imposição dessas políticas é o re-
aparecimento de moléstias contagiosas supostamente contro-
ladas, como é o caso da cólera, a febre amarela e a malária na
África subsaariana. Na América Latina a prevalência da malá-
ria e da dengue tem aumentado de forma expressiva, desde
meados dos anos 80. As atividades de controle e prevenção
(diretamente submetidas à redução dos gastos públicos pelo
PAE) sofreram sensível restrição.
As conseqüências sociais do ajuste estrutural são reco-
nhecidas pelas instituições financeiras internacionais. No en-
tanto, a metodologia destas instituições considera que os efei-
tos colaterais indesejáveis não fazem parte do modelo econô-
mico, pois pertencem a um setor à parte: o setor social.

O BRASIL E O SETOR SOCIAL


No Brasil, o setor social estatal vem se mostrando insen-
sível frente ao empobrecimento de sua população. A campa-
nha Cidadania contra a fome e a miséria, iniciada depois do
impeachment de Collor pelo Congresso em 1992 evidenciou um
discurso populista e de suporte ideológico, bem como a perda
do aspecto original - amplo movimento popular democrático
contra as políticas do Estado. A pobreza foi retratada na im-
prensa brasileira de forma estilizada, onde nenhuma ligação foi
feita entre o remédio econômico do FMI e a ocorrência da fome.
A campanha, naturalmente, obteve um amplo consenso nacio-
nal e, portanto, foi muito útil ao objetivo de evitar acusações
diretas ao governo ou às elites privilegiadas do Brasil em rela-
ção ao tema da pobreza.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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765
Um estudo das relações entre a Pobreza e a Globalização

O presidente Fernando Henrique Cardoso em 1994 criou o


FSE (fundo social de emergência), uma estrutura política de
custo mínimo para os credores, que foi teoricamente fundado
com o objetivo de aliviar a pobreza. Na verdade este Fundo
sancionou oficialmente a separação do Estado e dos setores
sociais, transferindo significativa parte da função a estruturas
organizacionais separadas e paralelas. Desde o governo Collor,
organizações não-governamentais (ONGs) já tinham assumido
gradualmente muitas das competências municipais, cujos fun-
dos haviam sido congelados em conseqüência do programa de
ajuste estrutural. Garantido uma parca sobrevivência às co-
munidades locais e com a produção em pequena escala, proje-
tos de artesanato, subcontratação para empresas de exporta-
ção, programas de emprego e treinamento de base comunitária
foram desenvolvidos. Um exemplo dessas atuações encontra-
se em Pirambu, uma pacata área de favelas de 250 mil habitan-
tes da cidade de Fortaleza, onde cada parte do espaço urbano
estava sob a supervisão de uma organização de ajuda interna-
cional ou de uma ONG específica. A comunidade doadora, no
entanto, ao implementar esses modelos, tinha o propósito de
controlar o desenvolvimento de movimentos sociais populares
independentes.
Em áreas rurais os mesmos objetivos: controlar o movi-
mento camponês em benefício da poderosa classe latifundiária
brasileira, enquanto garantia uma parca subsistência a cam-
poneses sem terra erradicados e substituídos pela agricultura
de grande escala. No sertão do Nordeste, por exemplo, em
1993 um programa de frentes de trabalho fornecia emprego (a
US$ 14 por mês) a cerca de 1,2 milhões de trabalhadores rurais
sem terra. Estes, no entanto, eram contratados pelos latifundi-
ários às expensas do governo federal.
No governo Lula, conforme a revista Carta Capital7, em en-
trevistas com famílias que participam dos programas sociais do
Ministério do Desenvolvimento Social – como o Bolsa Família –
revelam que estas iniciativas ajudam, mas não são suficientes.

7
Carta Capital (2005).

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Os atuais programas sociais, chamados pelos críticos de


assistencialistas, avançarão para o desenvolvimento de políti-
cas de capacitação das populações mais carentes, evidencian-
do que essas populações estão em busca de emprego, por tra-
zer-lhes dignidade e inserção na vida comunitária. No entanto,
adverte que o Brasil e o mundo vivem um período de desem-
prego estrutural, fruto do modelo neoliberal, acrescentando
que no caso brasileiro ainda há o entrave da pobreza histórica,
caracterizada pelas comunidades indígenas e quilombolas.
Portanto, não há dúvida que as reformas patrocinadas pe-
lo FMI contribuíram para a polarização social e o empobreci-
mento de todos os setores da população. A seção a seguir en-
fatiza a importância de um Estado soberano para aqueles que
vivem na pobreza, evidenciando que a atual tendência de “li-
vre” mercado não é irreversível.

EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO: A IMPORTÂNCIA DAS INSTITUIÇÕES


ESTATAIS PARA OS DESPOSSUÍDOS
Para Sene8 a globalização tem aprofundado as desigual-
dades entre os Estados e entre os povos, exatamente porque
esse processo tem centros de comando e interesses específi-
cos a defender. Entretanto, essa tendência não é irreversível,
desde que haja vontade política e instrumentos para contrariá-
la e aí torna-se importante o papel do Estado.
O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial (2000/
2001), afirma que os pobres geralmente atribuem baixa classi-
ficação a instituições estatais em matéria de probidade, hones-
tidade, relevância, eficiência, sensibilidade e responsabilidade.
Não obstante, consideram que os órgãos públicos desempe-
nham um papel fundamental nas suas vidas e fazem uma clara
idéia das qualidades que gostariam de ver nas instituições
com as quais interagem. Os pobres almejam por instituições
que sejam justas, atenciosas, honestas, receptivas e confiá-
veis, e não corruptas ou corruptoras. Em Vila Junqueira, Brasil,

8
Sene (2003).
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Um estudo das relações entre a Pobreza e a Globalização

uma mulher pobre assim resumiu o assunto: “Uma instituição


não deve discriminar as pessoas porque não estão bem vestidas
ou porque são negras. Se você usa um terno, é chamado de se-
nhor; se você calça sandálias, é mandado embora9“.
Os destituídos de bens materiais sentem agudamente a
sua carência de voz, poder e independência. Essa impotência
sujeita-os a humilhações, tratamentos desumanos e explora-
ção, infligidos pelas instituições do Estado e da sociedade. A
ausência do primado da lei, a extorsão, a pouca proteção con-
tra a violência, a incivilidade e a imprevisibilidade que cercam
suas interações com autoridades públicas impõe uma pesada
carga aos pobres, impedindo que eles aproveitem oportunida-
des econômicas e se dediquem a atividades que transcendam
sua zona de segurança imediata. As ameaças de força física ou
o poder burocrático arbitrário dificultam sua participação nos
assuntos públicos e a expressão de seus interesses. Além dis-
so, instituições estatais irresponsáveis e insensíveis são uma
das causas da expansão relativamente lenta dos recursos hu-
manos dos pobres.
Dahrendorf10 sugere que é preciso reconstruir as institui-
ções, pois representam o único instrumento capaz de melhorar
as chances de vida das pessoas. Embora seja preciso diminuir
a burocracia, elas representam o canal para a construção da
liberdade.
Por isso, é importante combater os discursos do tipo “fim
do Estado” e para isso é bem-vindo o alerta contra a idéia de
inelutabilidade do processo de globalização, que subliminar-
mente prega desesperança e acomodação. Apenas mal-
informados ou interesseiros podem acreditar que o mercado
pode funcionar sem o Estado.
Cabe então a cada Estado-nação criar as condições para
o enfrentamento destas novas questões. Cabe aos dirigentes
dos respectivos Estados fazer as melhores escolhas para o
bem-estar da sociedade, considerando os interesses nacionais,

9
World Bank, 2000, p.36.
10
Dahrendorf,1992.

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pois a globalização, embora tenha reduzido os espaços de ma-


nobra dos Estados, sobretudo nos países mais pobres, não
acabou com a política.
A pobreza não é resultado somente de processos econô-
micos, é resultado sim das interações de forças econômicas,
sociais e políticas. Mas de modo particular pode ser entendido
como resultado do senso de responsabilidade e da sensibilida-
de das Instituições. No momento em que as Instituições au-
mentarem a influência e o poder dos pobres não só diminui a
exclusão, como faz com que os serviços de saúde e educação
sejam mais orientados para suas necessidades.

CONCLUSÕES
Ao longo do texto procurou-se demonstrar o lado perverso
da globalização. Claramente, levantou-se mais problemas do
que soluções. Mas na visão de Sene a chave para resistir aos
malefícios da globalização deve ser buscada na valorização
das singularidades, das identidades e da diversidade cultural.
O fortalecimento da cidadania em todos os aspectos torna-se
fundamental, enquanto o social deve ser de fato prioridade dos
governantes.
É com a participação de todos os setores sociais que será
possível tomar as melhores decisões a fim de fazer frente aos
processos fragmentadores dos agentes econômicos, pois um
projeto nacional que priorize o ser humano em sua complexi-
dade e riqueza é perfeitamente possível em tempos de globali-
zação.
Por fim, retoma-se uma questão já discutida anteriormen-
te: a globalização não acabou com o Estado, nem com a políti-
ca, pelo contrário, até fortaleceu, pois ensejou novas lutas, no-
vas disputas pelo poder. Além disso, apesar de sua tendência
homogeneizadora, não acabou com as diferenças culturais.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Um estudo das relações entre a Pobreza e a Globalização

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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
ASPECTOS DO TERCEIRO SETOR
FRENTE AO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO 1

Luiz Raul Sartori


Mestre na Linha de Pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento pelo
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento, Gestão e
Cidadania da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul (Unijuí), docente do curso de Graduação em Direito do Departa-
mento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí. (lrsartori@unijui.edu).
Francisco Luis Rui Júnior
Bacharel em Direito pela Fundação Universidade de Cruz Alta/RS (Uni-
cruz), pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação
Universidade de Cruz Alta/RS (Unicruz), e pós-graduando em Gestão Pú-
blica pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Advogado.
(franciscorui@hotmail.com.br)

Resumo
O presente artigo procura abordar, basicamente, dois aspectos do terceiro setor no
Estado Democrático de Direito. O primeiro, como um terceiro setor ligado ao bem
estar comum, com base em princípios como o da solidariedade, fraternidade e vo-
luntariado, que por meio de organizações muitas vezes presta serviços essenciais à
população, especialmente às camadas mais desfavorecidas. Serviços que, não raras
vezes, são de obrigação legal do próprio Estado. No segundo aspecto, um terceiro
setor utilizado como meio de crítica neoliberal às fragilidades do Estado, fazendo
crer que apenas a iniciativa privada é que tem competência para gerir os serviços
essenciais com eficiência.
Palavras-chave: Democracia. Estado Democrático. Terceiro setor.

Abstract
This article seek to address basically two aspects of the third sector in a democratic
state. The first, as a third sector linked to the common welfare, based on principles
such as solidarity, fraternity and volunteering through organizations that often pro-
vide essential services to the population, especially the most disadvantaged. Services
that, not infrequently, are of legal obligation of the state itself. In the second aspect,
a third sector used as a means of neoliberal critique the weaknesses of the state,
making believe than just the private sector is that it has the competence to manage
essential services with efficiency.
Keywords: Democracy. Democratic State. Third sector.

1
Eixo Temático I - Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos.
772
Luiz Raul Sartori & Francisco Luis Rui Júnior

INTRODUÇÃO
A temática do terceiro setor, especialmente numa relação
com o Estado Democrático de Direito, configura-se em um te-
ma importante e atual, diante do cenário vivenciado.
Neste intuito, o presente trabalho visa destacar alguns
pontos da própria democracia e, na sequência, dois enfoques
do terceiro setor dentro do Estado Democrático de Direito: o
primeiro, um terceiro setor como sociedade civil organizada em
busca do “bem comum”; o segundo, como um mecanismo utili-
zado pelo Estado, numa concepção neoliberal, em que o tercei-
ro setor assume as funções essenciais do próprio Estado e,
embasado neste abstrato “bem comum”, serve de instrumento
de manutenção do sistema de dominação existente, asseve-
rando ainda mais as desigualdades sociais, contrariando os
princípios do chamado Estado Democrático de Direito.

A DEMOCRACIA: BREVES APONTAMENTOS


A democracia, atualmente, impera em grande parte dos
países do mundo. Passou por distintas fases em variadas épo-
cas. Derrubou regimes totalitários, como o existente até a dé-
cada de 80 no Brasil e em outros países da América Latina,
buscando contemplar os anseios das respectivas sociedades.
Conforme Bonavides2:
nos dias correntes, a palavra democracia domina com
[...]
tal força a linguagem política deste século, que raro o go-
verno, a sociedade ou o Estado que se não proclamem
democráticos. No entanto, se buscarmos debaixo desse
termo o seu real significado, arriscamo-nos à mesma de-
cepção angustiante que varou o coração de Bruto, quan-
do o romano percebeu, no desengano das paixões repu-
blicanas, quanto valia a virtude.

2
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 267.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
773
Aspectos do terceiro setor frente ao Estado democrático de Direito

A democracia é associada como um governo do povo. To-


davia, no início em Atenas, não era exatamente este o signifi-
cado. Rosenfield3 destaca que “a democracia, na antiguidade
grega, mais particularmente em Heródoto, é uma forma de go-
verno entre duas outras: a monarquia ou governo de um só e a
aristocracia ou governo de alguns”. Esta democracia na verda-
de apenas flexibilizou de maneira discreta a forma de governo,
pois não foi imediato e amplamente aberto o sistema. Este
princípio de democracia apenas cedeu espaço para alguns ou-
tros cidadãos privilegiados inteirarem-se da questão política
de Atenas e tomar parte em determinadas decisões.
É possível distinguir na história das instituições políticas
três modalidades de democracia: a direta, a indireta e a semi-
direta. Segundo Bonavides4, “a Grécia foi o berço da democra-
cia direta, mormente Atenas, onde o povo, reunido na Ágora,
para o exercício direto e imediato do poder político, transfor-
mava a praça pública no grande recinto da nação.”
Nessa democracia direta da Grécia a participação era pri-
vilégio de uma minoria de homens livres apoiados sobre uma
maioria de escravos. Ou seja, estipulou-se uma democracia
minoritária. Foi, no entanto, uma experiência histórica.
Referindo-se à democracia dos gregos, Bobbio5 salienta
que:
o pensamento político grego nos transmitiu uma céle-
[...]
bre tipologia das formas de governo das quais uma é a
democracia, definida como governo dos muitos, dos mais,
da maioria, ou dos pobres (mas onde os pobres tomam a
dianteira é sinal de que o poder pertence ao pléthos, à
massa), em suma, segundo a própria composição da pa-
lavra, como governo do povo, em contraposição ao go-
verno de uns poucos. Seja o que for que se diga, a verda-

3
ROSENFIELD, Denis L. O que é democracia. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 07.
4
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 268.
5
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio
Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 33.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
774
Luiz Raul Sartori & Francisco Luis Rui Júnior

de é que, não obstante o transcorrer dos séculos e todas


as discussões que se travaram em torno da diversidade
da democracia dos antigos com respeito à democracia
dos modernos, o significado descritivo geral do termo não
se alterou, embora se altere, conforme os tempos e as
doutrinas, o seu significado valorativo, segundo o qual o
governo do povo pode ser preferível ao governo de um ou
de poucos vice-versa. O que se considera que foi alterado
na passagem da democracia dos antigos à democracia
dos modernos, ao menos no julgamento dos que vêem
como útil tal contraposição, não é o titular do poder polí-
tico, que é sempre o povo, entendido como o conjunto
dos cidadãos a que cabe em última instância o direito de
tomar as decisões coletivas, mas o modo (mais ou menos
amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que,
através das Declarações dos Direitos, nasce o Estado
constitucional moderno, ao autores do Federalista con-
trapõem a democracia direta dos antigos e das cidade
medievais à democracia representativa, que é o único
governo popular possível num grande Estado.

Numa evolução histórica da democracia, urge salientar o


pensamento de Boaventura Santos6, referindo-se à democracia
no século XX:
o debate sobre democracia da primeira metade do sé-
[...]
culo XX foi marcado pelo enfrentamento entre duas con-
cepções de mundo e sua relação com o processo de mo-
dernização do Ocidente. De um lado, a concepção que
C.B. MacPherson batizou de liberal-democracia (Ma-
cPherson, 1966) e de outro uma concepção marxista de
democracia que entendia a autodeterminação do mundo
do trabalho como o centro do processo de exercício da
soberania por parte de cidadãos entendidos como indiví-
duos-produtores (Pateman, 1970). Desse enfrentamento
surgiram as concepções hegemônicas no interior da teo-
ria de democracia que passaram a vigorar na segunda

6
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os
caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 43.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
775
Aspectos do terceiro setor frente ao Estado democrático de Direito

metade do século XX. Essas concepções estão relaciona-


das à resposta dada a três questões: a da relação entre
procedimento e forma; a do papel da burocracia na vida
democrática; e a da inevitabilidade de representação nas
democracias de grande.

Reportando-se mais ao cenário atual, pode-se falar em


democracia relacionando-a com questões sociais importantes.
Ainda segundo Santos, “pensar a democracia como ruptura
positiva na trajetória de uma sociedade implica em abordar os
elementos culturais dessa mesma sociedade” (2002, p. 52).
Nesta abordagem da democracia, surge como objeto de
estudo a sociedade civil organizada, que desempenhou um
trabalho indispensável na formação do Estado Democrático de
Direito.

ASPECTOS DO TERCEIRO SETOR FRENTE AO ESTADO DEMOCRÁTICO


No contexto brasileiro, os movimentos sociais foram his-
toricamente responsáveis por conquistas de direitos, bem co-
mo protagonistas da transição do Estado ditatorial ao Estado
democrático.
Esta organização da sociedade civil abarca, também, o
terceiro setor, organizado em diversos segmentos da socieda-
de, enaltecido com fins nobres como o voluntariado, a solidari-
edade, a fraternidade e o bem comum.
Vivencia-se uma fase em que as necessidades individuais
e coletivas do cidadão são, em determinados momentos, ocul-
tadas por um capitalismo evidentemente explorador. À medida
que se aprimoram todos os mecanismos de obtenção de lucros,
obviamente que aumenta desiquilibradamente a desigualdade
social.
As necessidades sociais passam a não mais ser atendi-
das de forma satisfatória pelo Estado. Enquanto se globalizam
as fronteiras, as tecnologias, as culturas, etc., também se glo-
balizam os problemas como a pobreza, a criminalidade, as ex-
clusões e muitos outros.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
776
Luiz Raul Sartori & Francisco Luis Rui Júnior

Surge uma percepção de que, apesar de existir um Estado


Democrático que assegure liberdade a todo o cidadão, os mei-
os disponibilizados para que este possa exercer esta liberdade
são extremamente limitados. Ou melhor, ficam limitados quase
que exclusivamente ao poder econômico. A identidade do ci-
dadão passa a ser formada a partir de suas condições financei-
ras.
Fragilizada, a sociedade busca encontrar alternativas pa-
ra assegurar direitos já conquistados e participar ativamente
do sistema. Nesse sentido surge o chamado terceiro setor, que
freqüentemente supre necessidades sociais de obrigação do
Estado, que não está agindo adequadamente ou age de forma
precária. Em uma análise menos apurada, parece ser uma ex-
celente atitude, ainda mais quando divulga sua base em prin-
cípios nobres como solidariedade, voluntariado, fraternidade e
fins não lucrativos. Segundo Gonçalves7:
É indiscutível que, com a crise do Estado, cresce a impor-
tância de uma nova maneira – nem pública nem privada –
de executar os serviços sociais garantidos pelo Estado.
Por outro lado, a mesma crise, convergindo com a de ca-
ráter mais político, revela a necessidade de formas de
controle social direto sobre a administração pública e do
próprio Estado. Como decorrência, aparece o fenômeno
do terceiro setor (ou ainda setor não-governamental, se-
tor sem fins lucrativos, setor público não-estatal), que é
simultaneamente político (controle) e econômico (produ-
ção). Por ele, abre-se o espaço da autonomia, da constru-
ção da Sociedade Civil e reforça-se a cidadania em sua
dimensão política e material.

O espaço criado pelo terceiro setor se configura como


aquele de iniciativas de participação cidadã. As ações que se
constituem neste espaço são de esfera pública, não executa-
das pelo Estado, que é considerado o primeiro setor, e deixa-

7
GONÇALVES, Vânia Mara Nascimento. Estado, sociedade civil e
princípio da subsidiariedade na era da globalização. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 168.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
777
Aspectos do terceiro setor frente ao Estado democrático de Direito

das de lado pelo mercado, tido como o segundo setor. Dessa


forma, restam ao cidadão as providências. Ou seja, a sociedade
civil utiliza, agora, o terceiro setor como forma de resolução de
problemas sociais.
O termo “terceiro setor”, então, é o que melhor se enqua-
dra para designar o conjunto de iniciativas da sociedade que
buscam o bem-estar social. Engloba as demais expressões uti-
lizadas comumente, tais como: não-governamental, sociedade
civil, sem fins lucrativos, filantrópicas, sociais, solidárias, inde-
pendentes, caridosas, de base, associativas, etc. Terceiro se-
tor, segundo Gohn8,
[...]é um tipo de “Frankestein”: grande, heterogêneo,
constituído de pedaços, desajeitado, com múltiplas face-
tas. É contraditório, pois inclui tanto entidades progres-
sistas como conservadoras. Abrange projetos e progra-
mas sociais que objetivam tanto a emancipação dos seto-
res populares e a construção de uma sociedade mais jus-
ta, igualitária, com justiça social, como programas mera-
mente assistenciais, compensatórios, estruturados se-
gundo ações estratégico-racionais, pautadas pela lógica
de mercado. Um ponto em comum: todos falam em nome
da cidadania.

No Brasil, existe uma relação automática do terceiro setor


com as organizações não-governamentais (ONGs), que multi-
plicaram-se significativamente nos últimos anos. As ONGs
constituem uma forma organizada do terceiro setor que, mui-
tas vezes, são criadas com a vocação de prestar serviços in-
dispensáveis, de competência pública (saúde, educação, lazer,
cultura, etc.).
Para Nobre9, o fortalecimento da sociedade civil nos anos
70, opondo-se a um Estado autoritário, é uma das principais

8
GOHN, Maria da Glória Marcondes. Mídia, terceiro setor e MST:
impactos sobre o futuro das cidades e do campo. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 60.
9
NOBRE, Suzana Laniado C. Terceiro setor: os recursos da solidarie-
dade. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2004.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
778
Luiz Raul Sartori & Francisco Luis Rui Júnior

características que impulsionaram o surgimento do terceiro


setor. Posteriormente a redemocratização começa a se estabe-
lecer, sendo que nos anos 90 surge a palavra “parceria” como
forma de relacionamento entre os três setores da sociedade. O
Estado começa a reconhecer as Organizações Não-Governa-
mentais e o mercado passa a considerar a noção de “respon-
sabilidade social”, e passa a ver nas organizações sem fins
lucrativos formas de investimento do setor privado empresarial
nas áreas social, ambiental e cultural.
A emergência do terceiro setor representa uma significa-
tiva mudança de orientação no que diz respeito ao papel do
Estado (primeiro setor) e do mercado (segundo setor) e, em
particular, à forma de participação do cidadão na esfera públi-
ca. Com base nos estudos de Bresser Pereira, Gonçalves10 afir-
ma:
O terceiro setor contribui para assinalar a importância da
sociedade como fonte de poder político, atribuindo-lhe
papel na vontade política e na reivindicação de suas fun-
ções de crítica e controle do Estado. Também implica
atribuir à sociedade uma responsabilidade na satisfação
de necessidades coletivas. E, à proporção que redundam
no desenvolvimento de capacidades e habilidades da So-
ciedade Civil na solução de seus problemas, criam condi-
ções estáveis para a retirada do Estado como produtor
direto de bens e serviços.

Até então, percebe-se um terceiro setor imbuído de uma


missão nobre, comprometida com o bem comum, baseado em
princípios morais elogiáveis. Um terceiro setor que, numa pri-
meira análise, parece realmente preocupado com as questões
sociais e com serviços básicos que o Estado não presta ade-
quadamente, especialmente para a população mais desfavore-
cida.

10
GONÇALVES, Vânia Mara Nascimento. Estado, sociedade civil e
princípio da subsidiariedade na era da globalização. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 168.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
779
Aspectos do terceiro setor frente ao Estado democrático de Direito

Mas esta não é sempre a verdadeira vocação de todo o


terceiro setor. É necessário considerar que este terceiro setor
engloba desde pequeninas associações de moradores de de-
terminados bairros, até enormes fundações como, por exemplo,
a Fundação Roberto Marinho.
As críticas neoliberais ao Estado fazem crer, associadas à
poderosa mídia, que realmente quanto mais atividades forem
destinadas à iniciativa privada, mais eficiente será. O setor
público torna-se o alvo principal da mídia que, conforme a teo-
ria marxista, já tem a vocação de manter pacificamente o sis-
tema de dominação vigente.
O terceiro setor é enaltecido à base de forte crítica ao ser-
viço público, numa ótica neoliberal, em que o privado deve
prevalecer em tudo, pois presta os serviços com eficiência. As-
sim, nesta crítica disseminada pelos meios de comunicação, a
sociedade acaba acreditando ser esta realmente a alternativa
mais correta.
Aquele inocente terceiro setor, baseado nos pilares da so-
lidariedade e voluntariado torna-se, agora, mais um instrumen-
to que é utilizado para justamente manter as diferença e asse-
verá-las.
É esta nocividade que contraria os princípios do Estado
Democrático de Direito. Este Estado passa a ser cada vez mais
enfraquecido e impotente frente ao poder econômico.
O que está se reproduzindo, neste caso, é apenas a ma-
nutenção de um sistema de dominação já existente, visando
fortalecê-lo e perpetuá-lo, contando com a parcimônia da soci-
edade, fomentada pela mídia. Numa equivocada imagem, o
terceiro setor é visto como um instrumento saudável à demo-
cracia e fomentador da solidariedade humana.
O que se observa, então, é uma parte do terceiro setor
disfarçado em aparentes princípios, e que serve como deses-
truturadores do próprio Estado Democrático, servível integral-
mente ao neoliberalismo.
As falhas do Estado são incansavelmente anunciadas pe-
la mídia, fazendo com que a população realmente acredite não

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
780
Luiz Raul Sartori & Francisco Luis Rui Júnior

haver outra saída, senão direcionar o máximo de serviços à


atividade privada, que não tem outro objetivo, senão o lucro.
Aliás, o máximo lucro. E isto assevera ainda mais as desigual-
dades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se buscou demonstrar com o presente trabalho fo-
ram dois lados de um mesmo tema, no caso, o terceiro setor.
De um lado, uma utilização realmente elogiável, onde a
solidariedade e o voluntariado estão desonerados de qualquer
intenção subliminar ou mascarada, com a finalidade real de
trabalhar efetivamente pelo bem comum, ajudando realmente
os que carecem de auxílio.
De outro lado, uma crítica àquela parte do terceiro setor
que apenas utiliza-se da aparente solidariedade, bem comum,
fins não lucrativos e voluntariado, mas que vem revestido de
intenções neoliberais que visam promover o total descrédito da
sociedade no Estado, visando encaminhar à iniciativa privada
todos os serviços, inclusive os considerados básicos, motiva-
dos na eficiência do privado e ineficiência do público.
Não pode ser aceita a idéia disseminada de que o Estado
não mais consegue prestar os serviços de sua obrigação legal,
pois tais serviços quando destinados à iniciativa privada irão
se reger pelo fim maior: o máximo lucro. E isto representa uma
fragilização aos princípios do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Au-
rélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2001.
GOHN, Maria da Glória Marcondes. Mídia, terceiro setor e MST:
impactos sobre o futuro das cidades e do campo. Petrópolis: Vozes,
2000.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
781
Aspectos do terceiro setor frente ao Estado democrático de Direito

GONÇALVES, Vânia Mara Nascimento. Estado, sociedade civil e


princípio da subsidiariedade na era da globalização. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
NOBRE, Suzana Laniado C. Terceiro setor: os recursos da solidarie-
dade. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2004.
ROSENFIELD, Denis L. O que é democracia. São Paulo: Brasiliense,
1994.
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia:
os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2002.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
COMISSÃO DA VERDADE :
UM LOCAL DE MEMÓRIA DA
VERDADE FACTUAL DA VIOLAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Maisa Machado Saldanha


Bacharel em Direito pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul, Advogada e Mestranda em Direitos Huma-
nos pela mesma Instituição. (maisasaldanha@yahoo.com.br)

Resumo
A Constituição Federal de 1988 é um marco para a democracia Brasileira, pois esta-
belece o Estado Democrático de Direito e indica que esse deve se orientar pela des-
centralização administrativa, participação popular e proteção dos direitos humanos.
Neste contexto a Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei N° 12.528/2011,
tem por objetivo apurar situações de violações aos direitos humanos, ocorridas en-
tre 1946 e 1988, analisando casos de torturas, mortes e desaparecimentos identifi-
cando e publicizando os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas a
violações de direitos humanos no País no período da ditadura militar. O presente
artigo busca verificar a importância da Comissão Nacional da Verdade para a cons-
trução de um lugar de memória nacional, mediante o estudo dos casos de violações
dos direitos humanos no Brasil.
Palavras-chave: Comissão da Verdade, Direitos Humanos, Memória, Violação.

Abstract
The 1988 Constitution is an important fact to Brazilian democracy, because it estab-
lishes the Democratic State of Law and indicate that it should be guided by adminis-
trative decentralization, popular participation and protection of human rights. In this
context, the “Comissão Nacional da Verdade”, created by the Law 12.528/2011, has
as objective to investigate human rights violations, occurred from 1946 to 1988,
analyzing cases of tortures, deaths and disappearances, identifying and publicizing
the locations, institutions and the circumstances related to human rights violations
in the Country at the military regime period. This article intent to verify the im-
portance of the “Comissão Nacional da Verdade” to construct a national memory
place, through the study of the cases of human rights violations in Brazil.
Keywords: Comissão Nacional da Verdade, Human Rights, Memory, Violation
784
Maisa Machado Saldanha

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E ALGUNS DESDOBRAMENTOS


A Constituição Federal de 19881 é um marco para a de-
mocracia brasileira, pois estabelece o Estado Democrático de
Direito e indica que esse deve se orientar pela descentraliza-
ção administrativa, participação popular e proteção dos direi-
tos humanos.
Neste sentido é importante referir que além de estabele-
cer a democracia2 como regime de governo a constituição
apresentou um extenso elenco de direitos evidenciando a pre-
ocupação da constituição em não apenas manter a democracia,
mas também, salvaguardar a proteção aos direitos humanos.
Segundo Douzinas

1
“Ainda que popularmente considera-se a década de 1980 como “perdi-
da” em termos econômicos e sociais, é evidente que no campo político
esse período foi altamente significativo, construtivo e relevante. Ao todo,
13 países latinoamericanos lograram completar, até o ano de 1990, im-
portantíssimas transformações de orientação democrática. Mesmo reco-
nhecendo-se que as novas democracias tenham herdado enormes desa-
fios estruturais após décadas de despotismo, é evidente que a mutação
política teve um impacto positivo na questão da ampliação gradual da
cidadania e dos direitos humanos. Eis, por exemplo, o caso da Constitui-
ção cidadã do Brasil, promulgada em 1988”. CARVALHO, José Murilo
de. Cidadania no Brasil/O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2004, p.43.
2
“Da idade clássica a hoje o termo “democracia” foi sempre empregado
para designar uma das formas de governo, ou melhor, um dos diversos
modos com que pode ser exercido o poder político. Especificamente,
designa a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo
povo. Na história do pensamento político, o posto em que se coloca a
discussão a respeito da opinião, das características, das virtudes e dos
defeitos da democracia é a teoria e a tipologia das formas de governo.
Portanto, qualquer discurso sobre a democracia não pode prescindir de
determinar as relações entre a democracia e as outras formas de
governo, pois somente assim é possível individualizar o seu caráter
específico. Em outras palavras, desde que o conceito de democracia
pertence a um sistema de conceitos, que constitui a teoria das formas de
governo, ele não pode ser compreendido em sua natureza específica
senão em relação aos demais conceitos do sistema, dos quais delimita a
extensão e é por eles delimitado”. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo,
Sociedade: Para uma teoria geral da política. Trad. Marco Aurélio
Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 135.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
785
Comissão da Verdade

[...] os direitos humanos representam também os princi-


pais instrumentos de que dispomos contra o canibalismo
do poder público e privado e o narcisismo dos direitos.
Os direitos humanos representam o elemento utópico por
trás dos direitos legais. Os direitos constituem o alicerce
de um sistema jurídico liberal. Os direitos humanos cons-
tituem sua reivindicação de justiça e, como tal, são im-
possíveis e prospectivos. Os direitos humanos são para-
sitas no corpo dos direitos, que julgam a seu hospedeiro.
Existe uma poética nos direitos humanos que desafia o
racionalismo da lei: quando uma criança em chamas foge
de uma cena atroz no Vietnã, quando um jovem se coloca
na frente de um tanque em Beijing, quando um corpo es-
quelético e de olhos apáticos encara a câmera por trás da
cerca de um campo de concentração na Bósnia, um sen-
timento trágico irrompe e me coloca, como espectador,
cara a cara com a minha responsabilidade, uma respon-
sabilidade que não deriva de códigos, nem de conven-
ções ou regras, mas de um sentimento de culpa pessoal
pelo sofrimento no mundo, de uma obrigação de salvar a
humanidade aos olhos da vítima3.

Os direitos humanos4 não são, porém, apenas um conjun-


to de princípios morais que devem informar a organização da
sociedade e a criação do direito, mas sim uma série de normas
jurídicas voltadas a proteger os interesses mais fundamentais
da pessoa humana, dito de outra forma, são normas cogentes
ou programáticas que asseguram direitos aos indivíduos e co-
letividades e estabelecem obrigações jurídicas concretas aos
Estados5.

3
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisi-
nos, 2009. p.252.
4
“[...] o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano
que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de
sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de
condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade huma-
na”. MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria
geral. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p.39.
5
“Com o estabelecimento das Nações Unidas, em 1945, e a adoção de
diversos tratados internacionais voltados à proteção da pessoa humana,

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
786
Maisa Machado Saldanha

Desta forma, a partir da Constituição Federal os direitos


humanos foram incorporados como direitos fundamentais6 da
sociedade brasileira, passando a compor as cláusulas pétreas7
da ordem jurídica nacional. O movimento social formado a par-
tir da promulgação da constituição se mobilizou para projetar
um ideário político voltado para a democratização da vida na-
cional.
A partir de então, foram produzidos Programas Nacionais
de Direitos Humanos -PNDH8 em 1996, 2002 e 2009, os quais

os direitos humanos deixaram de ser uma questão afeta exclusivamente


aos Estados nacionais, passando a ser matéria de interesse de toda a
comunidade internacional. A criação de mecanismos judiciais internaci-
onais de proteção dos direitos humanos, como a Corte Interamericana e
a Corte Europeia de Direitos Humanos, ou quase judiciais como a Co-
missão Interamericana de Direitos Humanos ou Comitê de Direitos Hu-
manos das Nações Unidas, deixam claro esta mudança na antiga formu-
lação do conceito de soberania. É certo, porém, que a obrigação primária
de assegurar os direitos humanos continua a ser responsabilidade inter-
na dos Estados”. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito
Constitucional Internacional. ed. São Paulo: Max Limonad, 2007, p.67.
6
A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública
mundial fundada no respeito à dignidade humana ao consagrar valores
básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade
inerente a toda pessoa humana titular de direitos iguais e inalienáveis.
Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o
requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. A
universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o
legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência
à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como
fundamento dos direitos humanos é concepção que, posteriormente,
vem a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos
humanos, que passam a integrar o chamado Direito Internacional dos
Direitos Humanos. PIOVESAN, 2007, Op. cit.
7
Artigo 60 parágrafo 4°, IV, da Constituição Federal de 1988.
8
“Em 1993, uma convenção realizada em Viena, orientou que os Estados
membros das Nações Unidas constituíssem, objetivamente, programas
nacionais de Direito Humanos. O Brasil foi um dos primeiros países a
promover essa formulação. O Programa Nacional de Direitos Humanos -
PNDH é um programa do Governo Federal do Brasil, e foi criado, com
base no art. 84, inciso IV, da Constituição, pelo Decreto n° 1904 de 13 de
maio de 1996, “contendo diagnóstico da situação desses direitos no País
e medidas para a sua defesa e promoção, na forma do Anexo deste De-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
787
Comissão da Verdade

foram programas assumidos pelo Estado com o fim de incorpo-


rar a educação em direitos humanos como uma reivindicação
indispensável para a sociedade.
O 3º Programa Nacional de Direitos Humanos-PNDH-3 foi
criado pelo Decreto N° 7037, de 21 de dezembro de 2009, e atu-
alizado pelo Decreto N° 7177, de 12 de maio de 2010, o qual
traz no Eixo Orientador VI o Direito à Memória e à Verdade,
juntamente com suas diretrizes, que estabelece9:
A memória histórica é componente fundamental na cons-
trução da identidade social e cultural de um povo e na
formulação de pactos que assegurem a não-repetição de
violações de Direitos Humanos, rotineiras em todas as dita-
duras, de qualquer lugar do planeta. O conteúdo central
da proposta é afirmar a importância da memória e da
verdade como princípios históricos dos Direitos Humanos.
Jogar luz sobre a repressão política do ciclo ditatorial, re-

creto”. http://www.sedh.gov.br/clientes/sedh/sedh/pndh, acesso em 19


de março de 2013.
9
“O PNDH-3 incorpora, portanto, resoluções da 11ª Conferência Nacional
de Direitos Humanos e propostas aprovadas nas mais de 50
conferências nacionais temáticas, promovidas desde 2003 – segurança
alimentar, educação, saúde, habitação, igualdade racial, direitos da
mulher, juventude, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência,
idosos, meio ambiente etc –, refletindo um amplo debate democrático
sobre as políticas públicas dessa área”. Como menciona o Eixo
Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade; Diretriz 23:
Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da
cidadania e dever do Estado; Objetivo Estratégico I: Promover a
apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos
praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no
período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar
o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação
nacional; Diretriz 24: Preservação da memória histórica e a construção
pública da verdade; Objetivo Estratégico I: Incentivar iniciativas de
preservação da memória histórica e de construção pública da verdade
sobre períodos autoritários; Diretriz 25: Modernização da legislação
relacionada com a promoção do direito à memória e à verdade,
fortalecendo a democracia; Objetivo Estratégico I: Suprimir do
ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de
períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os
preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos”.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
788
Maisa Machado Saldanha

fletir com maturidade sobre as violações de Direitos Huma-


nos e promover as necessárias reparações ocorridas du-
rante aquele período são imperativos de um país que vem
comprovando sua opção definitiva pela democracia10.

No tocante à questão dos mortos e desaparecidos políti-


cos do período ditatorial, o PNDH-3 dá um importante passo no
sentido de criar a Comissão Nacional da Verdade com a tarefa
de promover esclarecimento público das violações de Direitos
Humanos por agentes do Estado na repressão aos opositores,
pois somente após se conhecer o que se passou naquela fase
lamentável da vida republicana o Brasil construirá dispositivos
seguros e um amplo compromisso consensual – entre todos os
brasileiros – para que tais violações não se repitam.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE


A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei N°
12.528, de 18 de novembro de 201111, a qual tem por objetivo
apurar violações aos direitos humanos ocorridos entre 1946 e
1988, ou seja, analisar casos de torturas, mortes e desapareci-
mentos, além de identificar e tornar públicos os locais, as insti-
tuições e as circunstâncias relacionadas a violações de direitos
humanos no país no período da ditadura12 civil-militar.

10
BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília:
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República,
2009. Disponível em: www.sedh.gov.br. Acesso em 22 marc. 2013.
11
Lei 12.528/2011, inciso III do artigo 3°, “Compete à Comissão Nacional
da Verdade: identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as ins-
tituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações de di-
reitos humanos [...] suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos
estatais e na sociedade”.
12
“A denominação de ditadura aplicada a todos os regimes que não são
democracias difundiu-se sobre tudo após a primeira guerra mundial,
tanto através do acesso debate sobre a forma de governo instaurada na
Rússia pelos bolcheviques, que se alimentou das várias interpretações
do conceito marxista de ditadura do proletariado, quanto através do uso
feito pelos adversários do termo “ditadura” para designar os regimes
fascistas, a começar do italiano. Esta contraposição da ditadura à demo-
cracia num universo de discurso em que a democracia assumiu um sig-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
789
Comissão da Verdade

A comissão será composta por sete membros, nomeados


pela Presidência da República e seus integrantes poderão ter
acesso a todos os arquivos do poder público referente ao perí-
odo, mesmo que sigilosos, além de promover audiências públi-
cas e convocar para entrevistas ou testemunhos, em caráter
não-obrigatório, pessoas possivelmente envolvidas, tendo o
prazo de dois anos para colher depoimentos, requisitar e anali-
sar documentos que ajudem a esclarecer as violações de direi-
tos humanos.
Desta forma, com a criação da Comissão Nacional da
Verdade13, o Brasil terá a oportunidade de desfazer uma injus-
tiça histórica, ocasiona pelo período ditatorial. Sinale-se que a
comissão não tem o caráter jurisdicional ou persecutório, toda-
via buscará identificar a autoria dos crimes responsabilizando,
ainda que não criminalmente, os perpetradores de tais viola-
ções e àqueles que se beneficiaram, direta ou indiretamente,
da estrutura de um regime de exceção.
Ao final a comissão apresentará um relatório a partir das
informações apuradas, que poderá auxiliar na localização e
identificação de corpos e restos mortais dos desaparecidos
políticos.
É mister frisar que os trabalhos da Comissão da Verdade
constituirão um local de memória da verdade factual14 da viola-

nificado predominantemente eulógico, terminou por fazer de “ditadura”,


contrariamente ao uso histórico, um termo com significado predominan-
temente negativo, que na filosofia clássica era próprio de termos como
“tirania”, “despotismo” e, mais recentemente, “autocracia”. Em 1936,
èlie Halévy podia definir sua própria época com l’èredes tyrannies, mas
hoje ninguém mais usaria esta expressão para definir o vintênio entre as
duas guerras mundiais: os regimes que Halévy tinha chamado de “tira-
nias” passaram à história com o nome de ‘ditaduras’”. BOBBIO, Norber-
to. Estado, governo, sociedade por uma teoria geral da política. Trad.
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012, p.32.
13
Segundo a Cartilha preparada pelo Núcleo de Preservação da Memória
Política de São Paulo, 39 destas Comissões formaram-se no mundo até
2010.
14
“A temática da memória foi, inicialmente, campo dos poetas e, a partir
do século V a.C., dos historiadores e dos filósofos gregos, foi no século
XX que passou a ser importante objeto de reflexão nas ciências huma-

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
790
Maisa Machado Saldanha

ção dos direitos humanos no Brasil, no período da ditadura mi-


litar, representando uma institucionalizada vontade de memó-
ria coletiva cidadã dos males e do desrespeito aos direitos hu-
manos.
Le Goff define a importância da memória para a sociedade:
A evolução das sociedades na segunda metade do século
XX clarifica a importância do papel que a memória coleti-
va desempenha. Exorbitando a história como ciência e
como culto público, ao mesmo tempo a montante en-
quanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos
e em documentos/monumentos, e a aval, eco sonoro (e
vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte
das grandes questões das sociedades desenvolvidas e
das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes
dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo
poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção15.

Assim, a construção e preservação da memória e o escla-


recimento de fatos para uma sociedade é de extrema relevân-
cia haja vista que a memória marca de diferentes formas, tem-
pos e espaços as pessoas e grupos, o que reflete diretamente
nos comportamentos e nos problemas de uma sociedade.
De acordo com o historiador Ivo Canabarro
A problemática da memória e do esquecimento é uma
questão que ocupa um espaço importante na contempo-
raneidade, pois a cada dia assistimos manifestações que
nos fazem lembrar dos acontecimentos que estão vivos
na memória, mas ao mesmo tempo, isso nos parece um
paradigma dual, porque muitos dos acontecimentos es-
tão relegados ao esquecimento. O problema todo está no
que deve permanecer e o que será esquecido. Essa sele-
ção não é voluntária, mas proposital, pois temos um certo
poder de decisão do que deve permanecer na memória

nas”. FÉLIX. Loiva Otero. História e memória: a problemática da pes-


quisa. Passo Fundo: Ediupf, 1998, p.41.
15
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. 4 ed.
Campinas, SP: Editora Unicamp, 1996, p. 475.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
791
Comissão da Verdade

social. Existe todo um conjunto de investimentos de me-


canismos do que deve ser relembrado, ícones de uma
memória para ser celebrada pelos diferentes grupos so-
ciais16.

A memória, no entanto, não é História, pois escolhe, sele-


ciona e é vivida no presente, é carregada por grupos vivos com
a preocupação do futuro. Nora explica muito bem essa diferença:
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos
consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vi-
da, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lem-
brança e do esquecimento, inconsciente de suas deforma-
ções sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipula-
ções, susceptível de longas latências e de repentinas revi-
talizações. A história é a reconstrução sempre problemáti-
ca e incompleta do que não existe mais. A memória é um
fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente;
a história uma representação do passado. Porque é efetiva
e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a con-
fortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas,
globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a
todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A
história, porque operação intelectual e laicizante, demanda
análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança
no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica.
A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer
dizer, como Habwachs o fez, que há tantas memórias
quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla
e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A histó-
ria só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às
relações das coisas. A memória é um absoluto e a história é
um relativo17.

16
CANABARRO, Ivo. Entre Memória e Esquecimento – Quando os Direitos
Humanos são Desconsiderados. In: BEDIN. Gilmar, Antônio. (Org.). Ci-
dadania, Direitos Humanos e Equidade. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2012, p. 100.
17
NORA, Pierre. Entre história e memória. A problemática dos lugares.
Projeto História, São Paulo: PUC, vol.10, n. 10.1993. p. 9.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
792
Maisa Machado Saldanha

Devés, também menciona diferenças:


Memória se assemelha à história, mas a memória é mais
profunda, reside preferencialmente na fala, no íntimo. A
história, se expressando historiograficamente, talvez por
escrita, é mais institucional e pode entrar em confronto
com a memória que quer deixar de lado ou ocultar. Em
todo o caso, o tema da memória tornou-se objeto de his-
toriadores, ensaístas, literatos, comunicadores, cientis-
tas, etc. Sua grande preocupação foi com os mortos e tor-
turados pelos regimes militares, ampliando-se deste te-
ma para outros espaços18.

Assim, a Comissão da Verdade além de garantir direito à


memória será um instrumento importante para o fortalecimen-
to da democracia brasileira, pois se insere na problemática do
que se denomina de Justiça de Transição19, com a passagem

18
VALDÉS, Eduardo Devés. O pensamento latino-americano na virada do
século: Temas e figuras mais relevantes. Trad. Gilmar Antônio Bedin.
Ijuí: Ed Unijuí, 2012, p.34.
19
“Justiça transicional é uma resposta concreta às violações sistemáticas
ou generalizadas aos direitos humanos. Seu objetivo é o reconhecimento
das vítimas e a promoção de possibilidades de reconciliação e consoli-
dação democrática. A justiça transicional não é uma forma especial de
justiça, mas uma justiça de caráter restaurativo, na qual as sociedades
transformam a si mesmas depois de um período de violação generaliza-
da dos direitos humanos. Os governos, em especial na América Latina e
na Europa Oriental, adotaram muitos enfoques distintos para a justiça
transicional. Entre elas figuram as seguintes iniciativas:a) aplicação do
sistema de justiça na apuração dos crimes ocorridos nas ditaduras, em
especial, aqueles considerados como crimes de lesa-humanidade; b) cri-
ação de Comissões de Verdade e Reparação, que são os principias ins-
trumentos de investigação e informação sobre os abusos chave de perí-
odos do passado recente;c) programas de reparação com iniciativas pa-
trocinadas pelo Estado que ajudam na reparação material e moral dos
danos causados por abusos do passado. Em geral envolvem não somen-
te indenizações econômicas, mas também gestos simbólicos às vitimas
como pedidos de desculpas oficiais;d) reformas dos sistemas de segu-
rança com esforços que buscam transformar as forças armadas, a polí-
cia, o poder judiciário e as relacionadas com outras instituições estatais
de repressão e corrupção em instrumentos de serviço público e integri-
dade; e) políticas de memória vinculadas a uma intervenção educativa
voltada desde e para os direitos humanos, bem como práticas instituci-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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793
Comissão da Verdade

de regimes autoritários para a democracia, pelas distintas for-


mas por meio das quais uma sociedade lida com um passado
marcado pela repressão.
Além disso, a Comissão da Verdade terá sua importância
histórica, pois poderá revelar a pais e filhos o paradeiro de de-
saparecidos que lutaram e entregaram suas vidas à causa da
democracia no Brasil. Posteriormente, poderá mostrar às gera-
ções o horror do período, visando evitar que essa triste história
se repita.
Impende observar ainda que o papel dessa Comissão não
se confunde com o da anistia. A anistia20 é um esquecimento
juridicamente comandado de atos cometidos de natureza pe-
nal, não um perdão, que alcança atos do governo e dos que a
ele resistiram, a qual foi juridicamente reconhecida como váli-
da pelo STF21. Não exclui, no entanto, a afirmação de um direito

onais que implementem memoriais e outros espaços públicos capazes


de ressignificar a história do país e aumentar a consciência moral sobre
o abuso do passado, com o fim de construir e invocar a ideia da “não-
repetição”’. GENRO, Tarso. ABRÃO, Paulo. Memória Histórica, Justiça
de Transição e Democracia sem Fim. In: Repressão e Memória Política
no Contexto Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçam-
bique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de
Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais,
2010. Disponível em: <www.dhnet.org.br/verdade/.../a.../livro_ repres-
sao_contexto_al.pdf>. Acesso em:01 de abril de 2013.
20
“é palavra de origem grega, significa esquecimento e tem proximidade
semântica e não apenas fonética com amnésia. A anistia se coloca des-
de Atenas, depois da vitória da democracia sobre a sangrenta oligarquia
dos 30, sob o signo da utilidade política de apaziguamento das tensões
de uma sociedade e não sob o signo da verdade”. FILHO. José Carlos
Moreira da Silva. Dever de Memória e a Construção da História Viva: a
atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à
memória e à verdade In: Repressão e Memória Política no Contexto
Ibero-Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e
Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal:
Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. Disponível em:
<www.dhnet.org.br/verdade/.../a.../livro_repressao_contexto_al.pdf> .
Acesso em 01 de abril de 2013.
21
“Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é a
denominação dada no Direito brasileiro a uma ação de controle de cons-
titucionalidade visando evitar ou reparar lesão a preceito fundamental
resultante de ato do Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e

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794
Maisa Machado Saldanha

de titularidade coletiva da cidadania brasileira da Memória


factual de graves violações de direitos humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se a partir da comissão da verdade o amadure-
cimento democrático do Brasil, que passará a limpo sua pró-
pria história, celebrando a memória de seus verdadeiros he-
róis, podendo olhar para trás sem temer pelo porvir. Os traba-
lhos dessa comissão irão garantir a plena efetivação do direito
à verdade, quer em sua dimensão individual, quer em sua di-
mensão coletiva.
Do ponto de vista da afirmação da democracia, é inegável
a importância da comissão da verdade haja vista o desvela-
mento dos fatos e verdades e, consequentemente, as demons-
trações da transparência do poder, o que é característica de
um regime democrático que se baseia no exercício em público
do poder comum posto que, o que é do interesse de todos deve
ser do conhecimento de todos22.
Desta forma, a importância da Comissão da Verdade se
relaciona à construção da democracia a partir do direito à me-
mória, pois essa visa impedir o esquecimento, contribuindo para
a formação da História, sendo que cada geração tem o direito

municípios), incluindo atos anteriores à promulgação da Constituição.


No Brasil, a ADPF foi instituída em 1998 pelo parágrafo 1º do artigo 102
da Constituição Federal, posteriormente regulamentado pela lei nº
9.882/99. Julgada nos dias 24 e 25 de abril de 2010, a ADPF foi declarada
improcedente pelo STF que validou a interpretação de que a lei de anis-
tia brasileira é bilateral e declarou perdoados os crimes de tortura e le-
sa-humanidade cometidos pela repressão brasileira”. ABRÃO, Paulo.
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da
reparação. In: Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-
Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portu-
gal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Uni-
versidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. Disponível em:
www.dhnet.org.br/verdade/.../a.../livro_repressao_contexto_al.pdf
22
BOBBIO. Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do
jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.
54.
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795
Comissão da Verdade

de escrever a sua própria História, organizando os fatos de


acordo com a sua perspectiva, ou seja, a avaliação do regime
autoritário, em matéria de violação de direitos humanos, não
será mais uma questão de opinião, mas sim da análise e apu-
ração de fatos apurados pela Comissão Nacional da Verdade.
Por fim, é importante mencionar a importância do “direito
à verdade” como instrumento de proteção aos direitos huma-
nos, dito de outra forma, a verdade factual e a sua busca com
objetividade e imparcialidade pela Comissão Nacional da Ver-
dade será uma contribuição para a História e a Memória, pois
se aplicará aos indivíduos, que têm o direito de saber a verda-
de sobre as causas e razões de seu sofrimento, e à sociedade,
que tem o direito de saber a verdade sobre os eventos ocorri-
dos no passado.
Desta forma, a partir da instalação da Comissão da Ver-
dade se poderá dizer que nenhum ato contra os direitos huma-
nos será colocado sob sigilo e que esse, em um Estado Demo-
crático de Direito, não poderá, nunca mais, fornecer guarida à
violação dos direitos humanos, pois esses não podem ser con-
siderados como simples normas declaratórias de direitos, mas
sim devem ser entendidos como processos de transformação
social, com um objetivo maior que é a luta e a busca pela dig-
nidade da pessoa humana.

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Bedin. Ijuí: Ed Unijuí, 2012.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
O ACESSO AO MEIO AMBIENTE
EQUILIBRADO E A ÀGUA ENQUANTO
RECURSO NATURAL COMO
DIREITOS FUNDAMENTAIS

Elenise Felzke Schonardie


Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS, Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC, professora do Programa de Mestrado em Direitos Humanos da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUI, pesquisadora da linha “Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos
Direitos, do PPGDH da UNIJUÍ, e professora da Faculdade de Direito da
UPF. (elenise.schonardie@unijui.edu.br)
Marcos Paulo Scherer
Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul-UNIJUI, Pesquisador da linha “Direitos
Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos” do PPGDH da UNIJUÍ; Espe-
cialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Cata-
rina-UNISUL, advogado. (marcospscherer@terra.com.br).

Resumo
O tema do Meio Ambiente e mais propriamente do Direito Ambiental são relativa-
mente novos no ordenamento jurídico nacional e internacional. Foi a partir do sur-
gimento dos direitos humanos de 2ª geração, a dos direitos sociais, ainda no início
do século XX, que se passou a discutir no mundo o direito a moradia digna, o direito
à saúde, ao acesso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e até mesmo o
acesso à água potável, entre tantos outros direitos fundamentais. Com a proteção
aos bens ambientais, seja pelo direito, seja por outros meios, os homens passaram a
tratar os bens ambientais com mais cautela, dando-se conta da finitude da natureza,
e com isso, alguns bens mais raros ou essenciais passaram a dotar-se de valor eco-
nômico. Esse valor atribuído aos bens naturais é que merecem uma relativização em
face de sua vitalidade, como no caso da água, onde não é possível aceitar que so-
mente quem tenha dinheiro para pagar seu preço ou que tenha acesso mais abun-
dante, tenha efetivamente direito ao seu uso. A água é vital e por isso seu consumo
precisa ser disponibilizado e distribuído a todos, indistintamente. Neste sentido, a
base do presente artigo é o reconhecimento da água como direito fundamental, que
ultrapassa a nacionalidade dos Estados e permite que a humanidade possa comparti-
lhar deste importante bem ambiental.
Palavras-chave: Meio Ambiente; Acesso à água; Direito Ambiental; Direito Funda-
mental; Direitos Humanos.
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Abstract
The theme of the Environment and the Environmental Law more properly are rela-
tively new to the national legal system and internationally. It was from the emer-
gence of the human rights of the 2nd generation, social rights, even in the early
twentieth century, who came to discuss the world the right to adequate housing, the
right to health, access to an ecologically balanced environment and even access to
clean water, among many other fundamental rights. With the protection of envi-
ronmental assets, either by law or by other means, the men began to treat environ-
mental goods more cautiously, realizing the finite nature, and with that, some more
rare or essential goods began to endow be of economic value. This value is assigned
to the natural assets that deserve a relativization given its vitality, as in the case of
water, where you can not accept that only those who have money to pay their price
or who has access most abundant, has the right to effectively use. Water is vital and
therefore its consumption needs to be made available and distributed to all without
distinction. In this sense, the basis of this article is the recognition of water as a fun-
damental right, which exceeds the nationality of States and allows humanity to share
this important environmental good.
Keywords: Environment, Water Access, Environmental Law, Fundamental Rights,
Human Rights.

INTRODUÇÃO
O presente artigo foi desenvolvido para o I Seminário In-
ternacional de Direitos Humanos e Democracia, da Universida-
de Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUÍ, curso de pós-graduação Strictu Sensu - Mestrado em
Direito, Programa de Mestrado em Direitos Humanos. Neste
texto será abordada brevemente a discussão sobre o surgi-
mento do Direito Ambiental, conceituando o Antropocentrismo
e o diferenciando do pensamento Eco-centrista, onde o homem
deixa de ser o centro de todo o Universo, passando a ser parte
dele, dividindo seu espaço com todos os demais seres.
Também neste primeiro momento do texto, é abordado li-
geiramente sobre o tratamento que os bens naturais recebem
pela humanidade, tanto estes bens enquanto direitos humanos
e fundamentais, quanto como bens econômicos, sendo a eles
atribuídos valores que, muitas vezes restringe o seu acesso por
uma parcela dos seres humanos.
A partir do segundo momento, fazendo-se uma aborda-
gem história, os direitos humanos são divididos em direitos de
primeira, segunda e terceira gerações, sendo que para alguns

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O acesso ao meio ambiente equilibrado e à agua como recurso natural...

teóricos essa divisão se daria incluindo uma quarta geração, e


para outros, o termo mais adequado inclusive seria dimensões
e não gerações de direitos.
Quanto aos direitos de quarta geração, quais sejam os di-
reitos de solidariedade, é onde se localiza o tema do acesso à
água potável para todas as espécies vivas, isso porque o aces-
so a tal recurso natural não é restrito a um único estado-nação,
precisando ser enfrentado no âmbito nacional e internacional.
O enfrentamento da temática leva em consideração o processo
de mundialização econômica, social e cultural, apresentado e
representado pelos tratados e acordos internacionais. Dessa
forma, o texto traz informações sobre a crise mundial da água,
o acesso a esse bem e sua imbricação com os direitos humanos
e fundamentais.

O DIREITO AMBIENTAL E O TRATAMENTO DADO AOS BENS


AMBIENTAIS
A ideia que prevaleceu até o início do século XX foi a da
suposta supremacia absoluta e incontestável do ser humano
como centro de tudo e sobre todos os demais seres. Essa era a
concepção Antropocentrista1, que considerava o homem como
centro do Universo como se o restante dos seres vivos existis-
se somente para servir e atender as necessidades humanas.
Esta corrente teve grande força no mundo ocidental, em
virtude das posições racionalistas, partindo-se do pressuposto
de que a razão (ratio) é atributo exclusivo do Homem e se
constitui no valor maior e determinante da finalidade das coi-
sas. (MILARÉ, 2011)
Porém, essa visão extrema do “Antropo+centrismo” (ho-
mem como centro), foi absolutamente oposta e contestada pelo
Ecocentrismo (ecologia como centro). Igualmente radical em

1
Milaré (2011, p.113), ao tratar do Antropocentrismo, diz que “é uma con-
cepção genérica que, em síntese, faz do Homem o centro do Universo, ou
seja, máxima e absoluta de valores” como se todos os demais seres
apenas girassem em torno do ser humano, que ao ser considerado o
maior de todos os seres, tudo pode e nada tem a respeitar ou a cuidar.

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seu pensamento, esse discurso traz a noção de que o centro do


universo não é o homem e sim o meio ambiente.
As ideias que questionam o poder humano sobre os de-
mais seres sempre existiram. Ao longo da história muito se
rebateu quanto a imposição humana de que todos os animais e
vegetais, que todos os seres vivos ou não do planeta, serviriam
apenas para atender as suas necessidades. Não foi absoluta
tal ideia.
Assim reforça Milaré (2011, p.115) que
[...] a passagem de uma cosmovisão antropocêntrica para
a ecocêntrica não se fez sem que decorresse muito tempo
nos processos de mudança. Isto é patente na história das
ciências que se ocupam do meio ambiente. Cabe regis-
trar ainda que na Ética, que é um saber normativo de cu-
nho filosófico – como também o Direito em parte o é – ,
verificou-se uma evolução conceitual e prática bastante
rápida.

Surgiram com essa discussão no início do século passado,


ideias como Ética Global ou Ética Planetária, no mesmo ínte-
rim da criação da Biotecnologia, que originou o Biocentrismo,
onde o valor da vida passou a ser um referencial inovador para
as intervenções do homem no mundo natural, quando a ampli-
ação da consciência sobre a situação do planeta Terra soma-se
com as preocupações criadas pelo processo de globalização.
(MILARÉ, 2011)
A partir dessa discussão, muitas teorias surgiram em tor-
no da defesa do meio ambiente. Muitos movimentos organiza-
dos passaram a defender amplamente o meio ambiente em
inúmeros protestos e entidades organizadas para exigir que o
direito passasse a tratar da questão ambiental como um direito
humano, fundamental e esgotável.
Foi a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente, já na Declaração de Estocolmo de 1972, que se
salientou que o homem tem direito fundamental a ‘adequadas
condições de vida, em um meio ambiente de qualidade’ (Prin-
cípio 1).
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Segundo Paulo Afonso Leme Machado (2005, p.54), ao


abordar em sua obra sobre o princípio do direito à sadia quali-
dade de vida,
[...] a saúde dos seres humanos não existe somente numa
contraposição a não ter doenças diagnosticadas no pre-
sente. Leva-se em conta o estado dos elementos da Natu-
reza – águas, solos, ar, flora, fauna e paisagem – para se
aquilatar se esses elementos estão em estado de sanida-
de e de seu uso advenham saúde ou doenças e incômo-
dos para os seres humanos.

O direito ambiental tem a função principal de estabelecer


as regras que apontem para como se verificar as necessidades
de uso de recursos ambientais. Não basta a vontade de usar
esses bens ou a possibilidade tecnológica de explorá-los. É
preciso ter razoabilidade na utilização dos bens naturais de-
vendo-se, quando não razoável esse uso, negar sua possibili-
dade de utilização. (MACHADO, 2005)
Assim, necessária a regulação para o uso dos bens natu-
rais a fim de atender as necessidades humanas, por inexistir
na atualidade outra forma para que os seres humanos possam
controlar-se uns aos outros, que não pelo regramento do direi-
to. Tratar os bens naturais como um direito fundamental dos
seres ao seu acesso é muito mais necessário e vital do que
considerá-los como meros produtos de uso e gozo dos seres
humanos, dotados, com isso, de valor econômico.

OS BENS AMBIENTAIS DOTADOS DE VALOR ECONÔMICO


Como bem destaca Paulo Bessa Antunes (2005, p.16),
“atualmente percebe-se a existência de vínculos bastante con-
cretos entre a preservação ambiental e a atividade industrial.”
Com isso, é possível perceber que houve certa transformação
na forma de usar ou explorar os bens naturais por parte das
indústrias, o que sempre se fez de forma degradadora e polui-
dora, já que sempre se explorou produtos primários retirados

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da natureza sem qualquer preocupação com a sustentabilida-


de destes recursos.
Sem dúvida, essa mudança cultural e de postura em rela-
ção a exploração ou preservação do meio ambiente se deu a
partir das legislações nacionais que passaram a surgir desde o
início do século XX, como o Código das Águas de 1934, o de-
creto que instituía o primeiro Código Florestal também em
1934, substituído somente em 1965 pela Lei 4771.
Apesar dessas mudanças legais no tratamento do meio
ambiente e seu uso em âmbito nacional, deve ser dito que é
possível constatar-se que as indústrias altamente poluidoras
estão começando a migrar para os países de terceiro mundo,
dando a entender que nos países ditos de primeiro mundo fica-
rão somente as indústrias consideradas “limpas”. Por outro
lado, o mercado sem fronteiras tem surgido como uma realida-
de atual que não se consegue mais fugir, com a abertura total
das nações para a mundialização das relações econômicas.
(ANTUNES, 2005)
Segundo o mesmo autor (2005, p.17) a pergunta que se
coloca é “a de saber em que medida é possível a conciliação
entre o desenvolvimento econômico e a proteção do meio am-
biente, e mais: até que ponto prevalece o interesse da proteção
ambiental ou o interesse do desenvolvimento econômico?”. E
será que os Estados nacionais tem ou terão força para comba-
ter práticas abusivas ou degradadoras dos grandes grupos
industriais?
A prova mais real e atual destas dúvidas suscitadas é a
recente mudança na legislação ambiental, qual seja a entrada
em vigor do Novo Código Florestal, estampado na Lei 12.651
de 25 de maio de 2012. Esta lei trouxe recente mudança na
sustentação princípiológica do Código Florestal Brasileiro,
quando substituiu o já tão consagrado princípio da precaução
(base do código florestal de 65, agora revogado) onde no artigo
1º traz o princípio do desenvolvimento econômico e em seu
inciso IV determina ser “compromisso do país com o desenvol-
vimento” e exige o “uso produtivo da terra com a contribuição
das florestas e demais formas de vegetação nativa”:
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Art. 1º-A. Esta Lei estabelece normas gerais com o fun-


damento central da proteção e uso sustentável das flo-
restas e demais formas de vegetação nativa em harmonia
com a promoção do desenvolvimento econômico, atendi-
dos os seguintes princípios:
IV - consagração do compromisso do País com o modelo
de desenvolvimento ecologicamente sustentável, que
concilie o uso produtivo da terra e a contribuição de ser-
viços coletivos das florestas e demais formas de vegeta-
ção nativa privadas;

Com esse exemplo, a lei vem sofrendo ligeira mudança e


o direito, apesar de não deixar de regular as relações homem x
natureza, vem sendo modificado no intuito de defender uma
utilização das florestas e dos demais bens naturais no claro
intento de desenvolver o país economicamente.
Não é diferente em relação ao direito sobre a água, que
nunca teve tratamento diverso que não o de valor econômico.
O Código de 1934, criado naquela época com o foco voltado
para jurisdicionar o uso das águas dos rios para fins de cons-
trução de grandes centrais geradoras de energia e, ao mesmo
tempo dava a propriedade das águas ao proprietário das terras
onde estavam situados os mananciais aquáticos, foi substituí-
da pela Lei 9433 em 1997. Essa lei, por seu turno tratou de es-
tabelecer que as águas deixavam de ser propriedade particu-
lar, e passavam a ser “bem de todos” e sem a necessária con-
cessão de outorga não se poderia mais utilizá-la livremente.
Parece que a lei e o direito trouxeram, ainda mais depois da
Constituição de 1988, uma evidente relativização do direito de
propriedade do indivíduo, deixando a utilização dos bens ambi-
entais regulados pelas políticas de concessão de outorgas.
Com essa restrição do acesso à água nas propriedades e
a burocratização e custo de obter concessão de outorgas, o
preço também passou a mudar, e o bem natural que apesar de
existir em abundância em determinados países, como é o caso
do Brasil, passou a se tornar igualmente raro e caro, semelhan-
te ao que ocorre em países Europeus como a Espanha ou Por-
tugal.
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OS BENS AMBIENTAIS ENQUANTO DIREITOS FUNDAMENTAIS


Para além desta discussão sobre o tratamento econômico
dos bens naturais, os bens ambientais também têm recebido
outra influência do direito, pelo princípio mais importante do
Direito Ambiental que diz que o direito ao ambiente é um direi-
to fundamental. (ANTUNES, p.31)
Tal princípio decorre do próprio texto expresso na Consti-
tuição Federal, como se pode ver no caput do artigo 225, que
dispõe que:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.

Deste princípio decorrem todos os demais princípios do


Direito Ambiental. Não foi diferente em âmbito mundial para o
tratamento do Direito Ambiental como um Direito Humano e
Fundamental, desde a declaração de Estocolmo, em 1972. O
princípio proclamado em Estocolmo foi reafirmado pela Decla-
ração do Rio, proferida na Conferência da ONU sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento, Rio 92, segundo o qual
Princípio 1 – Os seres humanos constituem o centro das
preocupações relacionadas com o desenvolvimento sus-
tentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em
harmonia com o meio ambiente. (apud ANTUNES, 2005,
p.32)

Os autores Fiorillo e Rodrigues (1997, p.29) afirmam que


Não temos dúvidas de que a afronta e a degradação am-
biental, são, em última análise, uma obstrução do exercí-
cio dos demais direitos humanos, ou ainda, de que prote-
ger o meio ambiente pode, muitas vezes, representar li-
mitações a estes referidos direitos individuais, vez que
há de se prevalecer o direito difuso ao meio ambiente em
face das ditas garantias individuais.

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Assim, dar outro tratamento ao Meio Ambiente e ao direi-


to ambiental que não considerá-lo como direito humano e fun-
damental é fugir de todos os textos normativos existentes, tan-
to no Brasil como igualmente é previsto em âmbito mundial,
através de inúmeras conferências e convenções adotadas no
contexto da Organização das Nações Unidas.

O ACESSO A ÁGUA POTÁVEL COMO DIREITO HUMANO


FUNDAMENTAL
Os direitos humanos refletem um construído axiológico e
compõem uma racionalidade de resistência, pois traduzem
processos que inauguram espaços de luta e de emancipação
com alvo na concretização do princípio basilar da dignidade da
pessoa humana.
Como já oportunamente visto, a Declaração Universal de
1948 introduz a chamada concepção contemporânea de direi-
tos humanos, carcaterizados pela universalidade e indivisibili-
dade, na medida em que estendem-se universalmente a todos
os seres humanos, pois tratam-se de valores intrínsecos a pró-
pria condição humana e porque as suas tutelas, de proteção
dos direitos sociais, econômicos, culturais, não podem vir dis-
sociadas, são sempre únicas, indisvisíeis.
Assim, com a roupagem conferida após a Declaração de
1948 e sucessiva consolidação de sistemas internacionais de
proteção, eles, os direitos humanos, passam à condição de
fundamentos jurídico-políticos transnacionais invocando a cri-
ação de um verdadeiro consenso internacional de proteção.
Nas palavras de Flávia Piovesan (1997, p. 136-137)
[...] o advento da Organização Internacional do Trabalho
da Liga das Nações e do Direito Humanitário registra o
fim de uma época em que o Direito Internacional era, sal-
vo raras exceções, confinado a regular relações entre Es-
tados, no âmbito estritamente governamental. Através
destes institutos, não mais se visava proteger arranjos e
concessões recíprocas entre os Estados. Visava-se sim ao
alcance de obrigações internacionais a serem garantidas

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ou implementadas coletivamente que, por sua natureza,


transcendiam os interesses exclusivos dos Estados con-
tratantes. Estas obrigações internacionais voltam-se à
salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prer-
rogativas dos Estados.

Seja quando invocados em esfera local, regional ou global


os princípios da Declaração de 1948 compõem um conjunto
instrumental de proteção dos direitos humanos, agindo de mo-
do a complementarem-se na tarefa de proteção da dignidade
humana.
Em julho de 2010, após mais de uma década de debates,
a Assembléia Geral da ONU declarou o acesso a água potável
e as instalações sanitárias como direitos humanos. O texto de-
clara que “o direito à água potável limpa e de qualidade e a
instalações sanitárias é um direito humano, indispensável para
gozar plenamente do direito à vida”.
A inclusão de tal direito no elenco dos direitos humanos é
sem dúvida o resultado da constatação de que na atualidade
cerca de um quinto da humanidade, ou seja, mais de um bilhão
de pessoas, não dispõe de água potável, que quase o dobro
desta população não tem acesso ao saneamento básico e que
mais de cinco milhões de seres humanos morrem por ano em
razão de doenças causadas por falta de higiene ou má quali-
dade da água.
Amartya Sen (2007, p. 48) destaca que o uso sustentável
dos recursos naturais “requer instituições efetivas e eficientes
que possam prover os mecanismos através dos quais conceitos
de liberdade, justiça, capacidades básicas e igualdade gover-
nem o acesso e uso dos serviços do ecossistema”.
A pergunta é que instituições serão estas em um mundo
sem fronteiras? Enquanto o Estado moderno foi marcado pela
busca incansável do predomínio e da igualdade entre os Esta-
dos soberanos, pela paz ou pela guerra, “afirmando-se o con-
ceito de interesse nacional como uma das questões fundamen-
tais, em que os valores éticos e jurídicos são submetidos aos
objetivos do poder de cada Estado moderno” (BEDIN, 2011, p.

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35), a sociedade da pós-modernidade inaugura um planeta


aberto à livre circulação de capital e mercadorias, no qual o
que acontece em um canto tem
[...] peso sobre a forma como as pessoas de todos os ou-
tros lugares vivem, esperam ou supõem viver. Nada pode
ser considerado com certeza num “lado de fora” material.
Nada pode verdadeiramente ser, ou permanecer por mui-
to tempo, indiferente a qualquer outra coisa: intocado e
intocável. O bem-estar de um lugar, qualquer que seja,
nunca é inocente em relação a miséria de outro”
(BAUMANN, 2007, p. 12).

A consolidação de um novo modelo de poder transnacio-


nal que inexoravelmente marca a relativização da governabili-
dade soberana dos Estados nacionais traduz-se no fenômeno
das organizações internacionais que “consistem em uma parte
específica do processo de globalização do direito. São o meca-
nismo por meio do qual os Estados instituirão uma cooperação
institucionalizada e permanente no domínio das competências
que lhes forem atribuídas” (MATIAS, 2005, p. 257)
Estes institutos, ou organizações internacionais, promo-
vem então a alteração do conceito tradicional de Direito Inter-
nacional, como a lei que regula a comunidade internacional
clássica, ou seja, das relações entre os Estados nacionais e
acima de tudo rompem com a “noção de soberania nacional
absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano
nacional, em prol da proteção dos direitos humanos”
(PIOVESAN, 1997, p. 138).
De mãos dadas com o fundamento jurídico-político da
pós-modernidade a história de nossa época é o resultado do
progresso e da difusão de conhecimentos tecnológicos. Na
senda da consolidação e proteção dos direitos humanos é pre-
ciso encarar as decisões práticas e sociais como um conjunto
de preocupações da raça humana, mesmo porque, como asse-
vera Ferrajoli (2002, p. 47), na aldeia global em que vivemos,
“graças à rapidez das comunicações nenhum acontecimento

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no mundo nos é alheio e nenhuma parte do mundo nos é estra-


nha”.
É exatamente por conta do desvelamento desta realidade
de “aldeia global”, ou seja, de que estamos juntos neste mun-
do cada vez mais destituído de fronteiras, tornando-nos “cida-
dãos do mundo” que hoje mais do que em qualquer outro tem-
po sentimos a necessidade de uma interação mundial agora
baseada no direito.
Nesse sentido, a temática que vê a água potável como um
direito humano fundamental necessita e poderá admitir a ges-
tão e intervenção no plano nacional, com vistas à proteção da
própria condição humana, sendo essa uma temática que mere-
ce especial atenção.
Como destaca Selborne (2001, p. 20) “os debates sobre a
administração dos recursos hídricos refletem debates mais
amplos sobre a ética social, relacionando-se com o que muitos
consideram princípios éticos [...], segundo o qual todos os po-
vos... têm direito ao livre acesso à água potável em quantida-
des e de qualidades iguais as das suas necessidades básicas”.
A água é símbolo comum da humanidade e seu acesso tornou-
se também um símbolo de equidade, de equilíbrio social, por-
que,
[...] a crise da água é sobretudo de distribuição, conheci-
mento e recursos, e não de escassez absoluta. Assim, a
maior parte das decisões relativas aos recursos hídricos
implicam problemas de acesso e privação. Portanto, pre-
cisamos compreender quais os princípios éticos comuns
que podem ser aceitos como aplicáveis em todas as situ-
ações geográficas, em todas as fases do desenvolvimento
econômico e em qualquer ocasião. (SELBORNE, 2001, p.
23).

Partindo destas premissas, várias conferências internaci-


onais relativas a questão do acesso e gestão dos recursos hí-
dricos postulam a necessidade de que se adote um compro-
misso ético para com o suprimento das necessidades básicas
de água da humanidade.

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Nesse contexto, citando apenas a Conferência das Na-


ções Unidas sobre a Água, segundo a qual “todos os povos [...]
têm direito ao livre acesso à água potável em quantidades e
qualidade iguais às das suas necessidades básicas”, percebe-
se o verdadeiro contorno ético que tem sido conferido aos de-
bates relativos a administração dos recursos hídricos, contorno
que conduz a compreensão do acesso a água potável como um
direito humano fundamental.
De fato, por outro lado, quanto à distribuição e o acesso
da água potável existem fatores conflitantes que tornam difí-
ceis a admissão de princípios éticos universais. As dificulda-
des passam por escolhas políticas, nacionalistas, econômicas,
legislativas, pelas especificidades geográficas e de desenvol-
vimento tecnológico. No entanto, o inter-relacionamento des-
tes tantos conflitos ou escolhas morais precisa-nos forçar a
projeção de luz sobre a identificação de temas éticos para os
quais não mais se admite recuar.
Assim, Riccardo Petrella (2002, p.126) sugere que diante
de um conjunto de situações críticas, “não podemos realmente
contentar-nos com respostas pragmáticas, parcialmente realis-
tas e desarticuladas, ou com visões globais reducionistas ou
simplistas”.
É por meio de um Contrato Mundial da Água que pode
pôr em movimento um processo que, nos próximos quinze a
vinte anos, possibilite, sobre uma base de cooperação e solida-
riedade, eliminar as causas das três situações críticas princi-
pais que compõe o problema mundial da água. (PETRELLA,
2002 p.127)
Neste termo, “longe de ser um documento assinado, la-
crado e entregue de uma vez por todas”, (PETRELLA, 2002
p.127) como alguns possam imaginar, o Contrato Mundial da
Água é uma possibilidade que não está livre de críticas, confli-
tos ou divergências, e até mesmo revisão. O Contrato Mundial
da Água é um projeto onde haveria a participação e associação
de pessoas e não sendo assim, melhor que nem seja.
Por isso, diante da vital importância que o tema da água
tem para a nossa humanidade, ele ainda está esquecido, quase
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apagado, não se sabe se por interesses econômicos escondi-


dos e disfarçados e que, mais dia menos dia aparecerá a um
preço alto, ou se por ser um bem vital tão importante, mas tão
raro nas grandes nações poderosas do globo, sendo abundante
apenas nos países mais pobres do hemisfério sul, onde os seus
possuidores sequer conseguem ter a noção da importância que
isso significa.

CONCLUSÃO
O texto abordou a temática do meio ambiente sendo re-
gulado pelo direito ambiental, e este considerado uma das no-
vas modalidades do direito. Ainda foi apresentada a condição
que o direito ambiental assume enquanto direito humano e
fundamental.
Os bens ambientais recebem por inúmeras vezes valora-
ção econômica, em função do sistema capitalista vigente no
mundo, a par da consideração de direito humano e fundamen-
tal que lhes são inerentes, para atribuir condição mercadológica.
Com a evolução dos direitos humanos e o surgimento dos
direitos de quarta geração, quais sejam os direitos de solidari-
edade, a humanidade passa a reconhecer a necessidade de
compartilhar os bens da natureza e da vida de forma a permitir
o acesso aos bens à todos os seres, de forma humana e iguali-
tária.
A crise do acesso à água potável no mundo por um núme-
ro expressivo de sujeitos demonstra a necessidade premente
de um tratamento mais humano, digno e ético para a água.
Organismos internacionais tem tido papel importante na ad-
ministração mundial dessa crise e, os Estados nacionais,
mesmo que enfraquecidos em sua soberania, necessitam gerir
melhor a questão do acesso à água potável e disposição deste
recurso natural a todos os cidadãos.
Dessa forma, o que aparece como ideal seria uma norma-
tização internacional, mesmo que fosse apenas um tratado ou
por acordo mundial, para fazer uma divisão mais equânime de
acesso a esse recurso natural essencial a vida de todas as es-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
813
O acesso ao meio ambiente equilibrado e à agua como recurso natural...

pécies. O controle sobre o acesso e usos das águas não pode


ficar adstrito a empresas privadas, transnacionais ou, poucas
nações economicamente privilegiadas. Sua disponibilidade a
todos os indivíduos habitantes do planeta, seja os que se en-
contram em situação de vulnerabilidade econômica extrema ou
não, deve ser garantida pelos estados como elemento indis-
pensável para a concretização dos direitos humanos.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
O ESTADO BRASILEIRO E A CIDADANIA :
CONTRADIÇÕES PARADIGMÁTICAS NA
CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS .

Mariane D. Martins
Mariane Denise Martins é graduada em Administração pela Uni-
versidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS e em Sociologia
pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul – UNIJUÍ – (maricomunica@yahoo.com.br)

Resumo
A história das sociedades é a história das relações humanas. Os Direitos Humanos se
inscrevem nesta história de construções e contradições. Este artigo tem por objetivo
colocar na pauta da discussão dos Direitos Humanos a contradição existente entre
Estado moderno e a cidadania. Compreender esta discussão possibilita uma reflexão
mais profunda que pode resultar em uma ação mais eficaz junto a sociedade. O
Estado moderno tem sua origem na necessidade de amenizar o conflito entre as
classes. O Estado brasileiro, constituído a partir da Proclamação da República vai
ficar subjugado aos interesses da burguesia desde a formação. Na história brasileira,
a Ditadura Militar e mais recentemente o Neoliberalismo foram mecanismos da
classe burguesa, na tentativa de conter a classe trabalhadora, diante da ameaça
desta alcançar seus direitos plenos. Os Direitos Humanos se inscrevem nesta história
através da organização de pessoas que, excluídas dos seus direitos de cidadãos/ãs,
organizam-se em prol desta construção. É justamente nesta construção que se expli-
cita a contradição, pois ao buscar os direitos, se percebe que o Estado moderno,
tendo em sua raiz o princípio da liberdade e da igualdade, jamais garantirá os dois,
pois a liberdade individual da classe hegemônica é incompatível com igualdade social.
Palavras-chave: cidadania, contradição, direitos, Estado, humanos.

Abstract
The history of societies is the history of human relationships. The Human Rights are
inscribed in this history of constructions and contradictions. This article aims to put
on the agenda of the Human Rights’ discussion the contradiction which exists be-
tween the modern State and the citizenship. The understanding of this discussion
enables a deeper reflection which might result in a more efficient action towards
society. The modern State originates from the necessity of softening the conflict
between classes. The Brazilian State, constituted from the Proclamation of the Re-
public, has been subdued to the interests of the bourgeoisie since its formation. In
Brazilian history, the Military Dictatorship and, more recently, the Neoliberalism
were mechanisms of the bourgeois class in the attempt to restrain the working class
from reaching its full rights. The Human Rights are inscribed in this history through
the organization of people who, excluded from their citizens’ rights, organized them-
selves in favor of this construction. It is precisely in this construction that the contra-
diction becomes explicit, because in the search for the rights, one can notice that the
816
Mariane D. Martins

modern State, having in its roots the principles of liberty and equality, will never
ensure both, because the individual liberty of the hegemonic class is incompatible
with the social equality.
Keywords: citizenship, contradiction, human, State, rights.

INTRODUÇÃO
A sociedade é um complexo emaranhado de relações
nunca finitas, sempre em movimento. Estas relações são cons-
truídas, e reconstruídas inúmeras vezes. É o desenvolvimento
da sociedade, que vai se dando através do curso que as rela-
ções vão tomando, a partir do jogo de poder, da busca infinita
por uma verdade absoluta da sociedade moderna, da solidari-
edade e tantas outras questões que permeiam e definem as
relações sociais.
A discussão dos Direitos Humanos se inscreve justamen-
te neste emaranhado de relações sociais. As conquistas são
fruto de organização social, de mobilização, de todos os seto-
res da sociedade, seja a sociedade, exigindo a inclusão, ou pro-
testando contra a exclusão social, exigindo acesso aos direitos,
ou lutando pela criação de novos direitos, seja pela produção
científica, vasta nesta área, obviamente mobilizada pelo apelo
da realidade social.
Todas estas mobilizações, organizadas em movimentos
sociais, ou não, são indiscutivelmente importantes para a con-
quista dos Direitos de mulheres, negros/as, gays, classe traba-
lhadora, e tantos outros grupos, excluídos da sociedade. Mas é
importante ressaltar que a exclusão de uma parcela da popu-
lação, do acesso aos direitos básicos, acesso a cidadania, está
imbricada com a formação do Estado brasileiro. E então, a mo-
bilização pelos Direitos Humanos explicita uma contradição, o
próprio Estado brasileiro que deveria ser agente do acesso a
cidadania traz em seu âmago a exclusão.
Este artigo não tem nenhuma pretensão de trazer conclu-
sões ou verdades absolutas para o meio acadêmico ou ao/a
possível leitor/a. Ele pretende simplesmente discutir algumas
contradições, assim vistas por mim, do conceito e formação do
Estado brasileiro e a cidadania, colocando-as na pauta da dis-
cussão dos Direitos Humanos.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
817
O Estado brasileiro e a cidadania

Esta discussão me parece oportuna, pois apesar de não


ter dúvida da importância dos grupos organizados específicos
lutarem por seus direitos, parece-me que, ao não discutirmos
algumas questões que são anteriores, que estão na raiz do
problema da exclusão, estaremos sempre falando de medidas
paliativas. Não se trata assim de abnegar a discussão que co-
mumente é feita, mas de problematizar a fim de irmos além e
podermos construir respostas mais eficientes com a sociedade.
A contradição que pretendo discutir, só será possível de
ser percebidas se compreendermos, um pouco da formação do
Estado e do Estado brasileiro. Assim, inicio este artigo falando
rapidamente da origem do Estado, em seguida decorro sobre a
formação do Estado brasileiro e da Burguesia Brasileira, pas-
sando pela Ditadura Militar, o Neoliberalismo, e a configuração
atual. O próximo passo é descrever sobre a construção dos Di-
reitos Humanos no Brasil, buscando ir um pouco além da dis-
cussão das Constituições. De onde nasceriam as leis, senão de
uma realidade social que, através das relações vai estabele-
cendo necessidades que vão sendo (ou não) incorporadas às
leis?
Por fim, encerrarei, com a discussão da cidadania e as
contradições existentes, construídas através da história da
constituição do Estado brasileiro. Ao colocarmos as duas histó-
rias em paralelo, do Estado brasileiro e dos Direitos Humanos,
a construção dos Direitos Humanos aparece como resultado de
um Estado de privilégios, ou seja, é preciso mobilização para
ter acesso aos direitos, porque o Estado não garante a to-
dos/as, e então aparece uma contradição, entre o Estado e a
cidadania.

A ORIGEM DO ESTADO
A Revolução Industrial e o decorrente projeto de moder-
nidade marcam uma transformação muito grande na história
da humanidade. As mudanças vão avançar sobre todos as di-
mensões da sociedade e terão uma eficácia muito grande. Isso
porque este projeto será constituído a partir de três esferas: a

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
818
Mariane D. Martins

razão, o Estado de Direito e o capitalismo, conforme nos diz


Paludo1
Têm-se, nestas três esferas, os grandes meios conforma-
dores da direção dada ao processo civilizatório pelo pro-
jeto de modernidade: a razão (ilustração), o Estado de Di-
reito (forma reguladora materializada através da lei e de
instituições tais como o Estado, a escola, a família) e o
capitalismo (modo de produção).

Esta demarcação é importante e a retomarei no decorrer


do artigo, mas a origem do Estado, não se encontra aqui, no
projeto de modernidade, ela é muito anterior, nas sociedades
de Atenas, Roma e Germânica, conforme diz Engels2
Atenas apresenta a forma mais pura, mais clássica. Aí o
estado nasceu diretamente e fundamentalmente das
oposições das classes que se desenvolveram no interior
das próprias sociedades gentílicas.
Em Roma, a sociedade gentílica se converteu numa aris-
tocracia fechada, no meio de uma plebe numerosa e man-
tida à parte, sem direitos mas com deveres. A vitória da
plebe destruiu a antiga organização de gens e, sobre suas
ruínas, ergueu o Estado, onde não tardaram a integrar e
confundir totalmente a aristocracia gentílica e a plebe.
Entre os germânicos, por fim, vencedores do império ro-
mano, o Estado surgiu diretamente da conquista de vas-
tos territórios estrangeiros, para cuja dominação a orga-
nização gentílica era de todo impotente.

Podemos perceber neste rápido apanhado de Engels, no


seu livro “A origem da família, da propriedade privada e do
Estado”, que a organização do Estado surge da oposição entre
duas classes, isso fica claro no exemplo de Atenas e se confi-
gura na disputa de território entre os germânicos, de forma
mais indireta.

1
(2001, p. 21)
2
(2009, p 208-209)
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
819
O Estado brasileiro e a cidadania

A partir destes três processos Engels vai definir o propó-


sito do Estado:
O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder que
é imposto de fora da sociedade [...] É antes um produto
da sociedade, quando essa chega a um determinado grau
de desenvolvimento. É o reconhecimento que esta socie-
dade está enredada numa irremediável contradição com
ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis
de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que estas
oposições, classes com interesses econômicos em confli-
to não se devorem e não consumam a sociedade numa lu-
ta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparen-
temente acima da sociedade, chamado a amortecer o
choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”3

E ao falar do Estado moderno Engels4 conclui: “E o mo-


derno estado Representativo é o instrumento da Exploração do
trabalho assalariado pelo capital”.
Maquiavel no seu livro “O Príncipe”, vai descrever o ho-
mem “livre” de um poder superior (deus), com disposição para
o mal e a violência, fatores que justificariam a existência de
uma força maior, o Estado, que organizaria a sociedade, usan-
do a violência, também, quando necessário.
Outra forma de perceber a origem do Estado é dos auto-
res Hobbes, Locke e Rousseau, estes vão trazer a ideia de que
o Estado é o resultado de um contrato da sociedade5. A socie-
dade cria o Estado, dando-lhe poderes de governança em troca
de proteção, um acordo. No entanto, ao assumir esta dimensão
os três autores ignoram o jogo de poder das classes, fruto do
modo capitalista de produção, existente na sociedade, pois,
Como o Estado surgiu da necessidade de conter as opo-
sições de classes, mas ao mesmo tempo surgiu no meio
do conflito subsistente entre elas, ele é, em regra, o Es-
tado da classe mais poderosa, da classe economicamente
3
ENGELS, 2009, p 209
4
(2009, p 212)
5
BEDIN, 1998

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
820
Mariane D. Martins

dominante, classe que por intermédio dele, converte-se


também em classe politicamente dominante, adquirindo
assim, novos meios para a repressão e exploração da
classe oprimida.6

Feita este rápido apanhado da origem do Estado e seus


propósitos, desenvolverei agora, especificamente sobre o Es-
tado brasileiro.

A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO


No Brasil, o processo “civilizatório” da modernidade ocor-
reu de forma bastante particular, devido a singularidade da
história do país. Mesmo no processo de colonização a lavoura
era também exportadora, e assim, mesmo não tendo a dinâmi-
ca de uma empresa, acabava sendo uma empresa exportado-
ra7.
A constituição do Estado brasileiro teve dois impulsos
importantes, o primeiro é o fortalecimento da lavoura de café,
pois este propiciou o fortalecimento da economia interna. As-
sim, os fazendeiros do café, foram importantes para a trans-
formação do Brasil Colônia para o Brasil Nação. O segundo foi
a imigração, a partir da necessidade de mão de obra. Os imi-
grantes que vêm ao Brasil trazem uma concepção diferente da
conservadora oligarquia agrária8.
A efetivação do projeto de modernidade no Brasil foi ex-
plicitada com a Proclamação da República, pois rompe com o
estatuto colonial, e possibilita que as elites nacionais se fortifi-
carem junto com a nação/Estado. Com isso ocorre a internali-
zação dos centros de poder, mesmo que isso não represente
especificamente uma ruptura com os centros de poder já exis-
tentes, na relação externa como Colônia9.

6
ENGELS, 2009
7
FERNANDES, 1976
8
FERNANDES, 1976
9
FERNANDES, 1976
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
821
O Estado brasileiro e a cidadania

A Proclamação da República reflete na formação da bur-


guesia nacional. A “nova” burguesia brasileira é composta pelos
“velhos” senhores rurais, que vão assimilando o processo da
modernidade e, consequentemente, aos poucos, vão se “abur-
guesando”. A estes se somam os comerciantes, que constituí-
am o cenário brasileiro, antes mesmo da independência.
Do novo Estado brasileiro, esta burguesia vai construir
uma relação utilitária. Assim, este Estado, é construído sob as
vontades desta classe.
A nossa burguesia converge para o Estado e faz sua uni-
ficação no plano político, antes de converter a dominação
socioeconômica no que Weber entendia como “poder po-
lítico indireto”. As próprias “associações de classe”, aci-
ma dos interesses imediatos das categorias econômicas
envolvidas, visavam a exercer pressão e influência sobre
o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a
aplicação do poder político Estatal de acordo com seus
fins particulares10.

Esse agir da burguesia brasileira, não é diferente de ou-


tros, pois como já vimos, o Estado tem a origem para controlar
e amenizar os conflitos das classes. A burguesia sempre irá se
preocupar em mantê-lo sob seu comando, pois também de-
pende dele para o seu pleno desenvolvimento, conforme nos
explica Engels, falando da relação da burguesia com o Estado.
Contudo, ela dependia dele e tinha de admiti-lo, procu-
rando, não obstante, manter o Estado e suas forças eco-
nômicas, culturais e políticas, como uma esfera controla-
da e segura do poder burguês (no que era ajudada pelos
efeitos políticos diretos e indiretos do desenvolvimento
desigual interno; e pela estrutura do presidencialismo em
um País no qual o legislativo e o judiciário estão conde-
nados a predominância de interesses burgueses ou pró-
burgueses conservadores)11.

10
FERNANDES, 1976, p. 204
11
ENGELS, 2009, p, 325

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
822
Mariane D. Martins

Podemos concluir da formação do Estado brasileiro que


se temos um conflito de classes, e uma parcela da população
que usa o Estado para seu interesse, vamos ter uma outra par-
cela que ficará desassistida por este mesmo Estado.

O ESTADO NEOLIBERAL
A Ditadura Militar de 1964 e o Estado Neoliberal que, es-
pecialmente, nos anos 1990 se edifica não só no Brasil mas em
toda a América Latina, terão mais uma vez como objetivo o
controle dos conflitos entre as classes. Sobre a Ditadura Militar
nem preciso me estender falando do desrespeito aos Direitos
Humanos e da ação de coação e controle na sociedade.
A reformulação do Estado, no início da democratização
brasileira depois da Ditadura, trás uma particularidade, pois
combina a nova democracia com a velha ditadura, como nos
explica Sader12
Tal aspecto levou a substituição de Ulysses Guimarães
pelo mais moderado Tancredo Neves e, com a morte des-
te a posse de José Sarney, que até poucos meses antes
era presidente do partido da ditadura militar, como pri-
meiro presidente civil pós-ditadura. Assim, o novo regime
democrático combina elementos novos e outros de conti-
nuidade com a ditadura, condenando a um impulso fugaz
o processo de democratização.

Diferente da Ditadura Militar o Neoliberalismo tem novas


estratégias, mas sutis, mas nem por isso, menos violentas,
pois a “olho nu”, ele não demonstrou o grau de violência e con-
trole que trazia, conforme nos afirma Sader, falando da Améri-
ca Latina
As maiores conquistas do neoliberalismo não acontecem
no plano econômico, campo que canalizam suas maiores
promessas, mas nos planos social e ideológico. A combi-
nação entre políticas de “flexibilização laboral” – que na

12
(2009, p. 74)
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
823
O Estado brasileiro e a cidadania

realidade, se trata de precarização laboral, de expropria-


ção do direito ao contrato formal de trabalho –, desem-
prego, resultante de ajustes fiscais em nível governamen-
tal e demissões maciças do setor privado, enfraqueceu
profundamente os sindicatos e a capacidade negociadora
dos trabalhadores, fragmentou e atomizou a força de tra-
balho, deslocou os temas de trabalho e das relações de
trabalho para o debate público. A maioria dos latinos
americanos não pode se organizar, não pode apelar para
a Justiça, não tem identidade pública, não são cidadãos
no sentido de que não são sujeitos de direitos, mas víti-
mas dos piores mecanismos de superexploração do tra-
balho.13

O processo Neoliberal brasileiro foi iniciado pelo presi-


dente Fernando Collor, a partir de privatizações e aberturas
econômicas:
O consenso neoliberal consolidou-se amplamente no
país, ancorado nas aceleradas transformações que o novo
governo implantou: abertura violenta da economia, priva-
tização concentrada das empresas estatais, retirada do
Estado da economia, retração de suas funções sociais,
desregulamentação, promoção do mercado como eixo
central das relações econômicas, criminalização dos mo-
vimentos sociais, desqualificação dos funcionários públi-
cos e precarização das relações de trabalho14.

Apesar do governo Collor ter iniciado o processo do Neo-


liberalismo, é no governo de Fernando Henrique Cardoso que
este processo será efetivado. Paralela a esta efetivação neoli-
beral acontece a reconfiguração de poder interno no Brasil. Era
necessário estruturar e afirmar-se como país democrático, já
que a democracia era historicamente recente, assim como den-
tro da democracia liberal, será necessário afirmar e reconfigu-
rar a estrutura de classe e poder.

13
SADER, 2001, p 51
14
SADER, 2009, p. 76

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
824
Mariane D. Martins

O governo Collor esboçou, mas foi o governo FHC que re-


constitui o bloco de classes no poder, agora sob a hege-
monia do capital financeiro, em aliança com o grande
empresariado industrial, sobretudo com o setor exporta-
dor. A incorporação da socialdemocracia, liderada por um
presidente com características intelectuais, e que havia
participado da oposição a ditadura, fortaleceu o novo
bloco de direita no poder. 15

Depois desse processo, temos recentemente a eleição do


governo Lula e posteriormente Dilma, que do ponto de vista do
Estado, sugere mudanças importantes, especialmente no que
diz respeito aos acessos aos direitos básicos, no entanto, é im-
portante ressaltar que não houve uma ruptura com os centros
de poder construídos durante a história do Estado brasileiro, a
análise de Sader sobre o governo Lula é interessante,
O resultado dessas políticas é um híbrido, de difícil ca-
racterização. Nas próprias palavras do Lula, no momento
de sua reeleição: “Nunca os ricos ganharam tanto, nunca
os pobres melhoraram tanto seu nível de vida”. Qualquer
análise unilateral, conduz a sérios equívocos, a tal ponto
que é mais fácil dizer o que não é o governo Lula do que
aquilo que efetivamente é.16

Este Estado hibrido, por não romper com os velhos inte-


resses que fizeram a história do Estado brasileiro, obviamente,
não será capaz de constru ir um a total e eficaz política de Di-
reitos Humanos, capaz de resolver os problemas de acesso aos
direitos básicos do povo brasileiro.

A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


A história dos direitos humanos é muito antiga. Há bibli-
ografias que indicam que a origem está no período axial antes
de Cristo, quando a filosofia e a religião substituíram a mitolo-

15
SADER, 2009, p. 80
16
SADER, 2009, p. 84-85
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
825
O Estado brasileiro e a cidadania

gia para as explicações que a humanidade sempre buscou17.


Interessa-me aqui, fazer um corte e partirmos da história da
modernidade.
Para Corrêa a tradição cristã tem uma importante influên-
cia na história dos direitos humanos mais recente, a partir da
discussão individualista,
Por outro lado, essa origem histórica dos direitos huma-
nos teve um caráter individualista, para o qual contribui
fortemente a doutrina da igreja. A tradição ocidental cris-
tã, de caráter subjetivista e individualista, estabeleceu a
pedra angular da temática dos direitos humanos: a vida
como sagrada, o homem como ponto culminante da cria-
ção.18

E segundo Mello “é na Reforma, ao defender a liberdade


da consciência, e, como assinalava Max Weber, a ética protes-
tante ao desenvolver o capitalismo, que tem início a luta pelos
direitos do homem”19
A discussão do Direitos Humanos surgem contra um Es-
tado Absoluto e vai se expressar em uma constituição no Es-
tado Burguês
Na concepção liberal-burguesa, impregnada de desconfi-
ança contra o poder do Estado, cabia a este apenas ga-
rantir a moralidade, a defesa da segurança de tal ordem
das coisas. E um dos referentes essenciais do novo pacto
institucional de cunho liberal-burguês era um elenco de
direitos individuais caracterizadores da própria constitui-
ção20

A Declaração Universal dos Direitos de 1948, é um marco


importante na Discussão dos Direitos Humanos, segundo Mat-
teucci21,

17
ALBUQUERQUE, 2012
18
CORRÊA, 2002,p 161
19
MELLO in CORRÊA, 2002,p 162
20
CORRÊA, 2002, p164
21
MATTEUCCI in BIBBIO 1998, p 35

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
826
Mariane D. Martins

Usualmente, para determinar a origem da declaração no


plano histórico, é costume remontar à Déclaration des
droits de l'homme et du citoyen, votada pela Assembléia
Nacional francesa em 1789, na qual se proclamava a li-
berdade e a igualdade nos direitos de todos os homens,
reivindicavam-se os seus direitos naturais e imprescrití-
veis (a liberdade, a propriedade, a segurança, a resistên-
cia à opressão), em vista dos quais se constitui toda a as-
sociação política legítima.

Este Estado, que é o Estado de direito moderno, vai cons-


tituir os direito humanos classificados em três esferas: civil,
político e social, para entendermos um pouco do que se trata
os direitos humanos recorremos ao conceito de Matteucci22,
Finalmente, estes direitos podem ser classificados em ci-
vis, políticos e sociais. Os primeiros são aqueles que di-
zem respeito à personalidade do indivíduo (liberdade
pessoal, de pensamento, de religião, de reunião e liber-
dade econômica), através da qual é garantida a ele uma
esfera de arbítrio e de liceidade, desde que seu compor-
tamento não viole o direito dos outros. Os direitos civis
obrigam o Estado a uma atitude de não impedimento, a
uma abstenção. Os direitos políticos (liberdade de asso-
ciação nos partidos, direitos leitorais) estão ligados à
formação do Estado democrático representativo e impli-
cam uma liberdade ativa, uma participação dos cidadãos
na determinação dos objetivos políticos do Estado. Os di-
reitos sociais (direito ao trabalho, à assistência, ao estu-
do, à tutela da saúde, liberdade da miséria e do medo),
maturados pelas novas exigências da sociedade indus-
trial, implicam, por seu lado, um comportamento ativo
por parte do Estado ao garantir aos cidadãos uma situa-
ção de certeza.

A história dos Direitos Humanos também está inscrita na


história do Brasil. A primeira constituição do Brasil foi a Cons-
tituição Imperial em 1824, desta até a de 1988 houveram algu-

22
MATTEUCCI in BIBBIO 1998, p 354
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
827
O Estado brasileiro e a cidadania

mas23, que foram pouco eficazes no acesso aos direitos. Os di-


reitos sociais, foram e continuam sendo difíceis de serem in-
corporadas às leis, já que a modernidade, tem como eixo o ca-
pitalismo que necessariamente trás a disputa de classes e
conseqüentemente a exclusão de uma delas. Assim, não há
uma consonância entre os direitos, na consolidação dos direi-
tos humanos e a busca disso é sempre uma luta política que
exige a mobilização dos cidadãos/ãs tolhidos/as de seus direi-
tos plenos.
A constituição de 1988 garantiu, por exemplo, aposenta-
doria as mulheres da roça, essa conquista só foi possível com
muita organização de movimentos de mulheres camponesas24.
O direito a aposentadoria neste caso garantiu pela primeira
vez, o reconhecimento do Estado ao trabalho da mulher do
campo. Assim como este, muitos outros exemplos poderiam
ser usados, no caso da incorporação das reivindicações sociais
às leis brasileiras.
É assim, que a história dos Direitos Humanos no Brasil, é
escrita a partir da organização de grupos mais ou menos orga-
nizados, os movimentos sociais. Estes são fomentados à orga-
nização especialmente a partir da Ditadura Militar pela Igreja.
Mais tarde, mesmo com o recuo da Igreja das questões políti-
cas, estes seguirão organizados. Segundo Gohn25 os
Movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas
por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes
classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários
da conjuntura socioeconômica e política de um país, cri-
ando um campo político de força social na sociedade ci-
vil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados
sobre temas e problemas em conflito, litígios e disputas
vivenciados pelos grupos na sociedade. [...] Os movimen-
tos geram uma série de inovações nas esferas públicas
(estatal e não-estatal) e privada; participam direta e indi-

23
Conforme site: <http://www.portaleducacao.com.br/direito/artigos/291
42/a-historia-dos-direitos-humanos-no-brasil#ixzz2PRns0pLa
24
(CONTE; MARTINS; DARON in PALUDO, 2009)
25
(1997, p. 251-252)

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
828
Mariane D. Martins

retamente da luta política de um país, e contribuem para


o desenvolvimento e a transformação da sociedade civil e
política.

As conquistas dos movimentos sociais foram muitas no


Brasil, mas se olharmos para a realidade brasileira, temos mui-
to que construir no que diz respeito aos Direitos Humanos. A
incorporação desta discussão na estrutura do Estado é um
exemplo de conquista. Hoje existe uma Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República, mas esse processo ini-
ciou no governo de Fernando Henrique, que criou o Programa
Nacional de Direitos Humanos em 1996 e em 1997, criou a Se-
cretaria Nacional de Direitos Humanos26, o mesmo governo que
efetivou o Neoliberalismo. Como já dissemos, neste período de
“encolhimento” do Estado, também era necessário fortalecer a
democracia brasileira. Então, mesmo com estes programas de
governo, é importante ressaltar que o Estado Neoliberal, signi-
fica um retrocesso no que diz respeito aos direitos do Homem
(e da mulher), conforme nos diz Bedin27
Por isso, não poderia ser diferente em relação aos direitos
do homem, pois estes principalmente em sua modalidade
de direitos econômicos e sociais exigem grandes inves-
timentos em gastos sociais, um setor público amplo , um
mercado submetido a certas regras do Estado que inter-
venha no mercado, corrigindo, desta maneira, as distor-
ções do mesmo e, garantindo, com isto, um mínimo de
igualdade entre os homens. Por isso, as experiências neo-
liberais significam, em relação aos direitos do homem,
um enorme retrocesso e, como tal, representam uma vol-
ta ao século XVIII e XIX.

A CONTRADIÇÃO ENTRE ESTADO E CIDADANIA


Procurei até agora construir um raciocínio, também histó-
rico, que começou falando da formação do Estado, a partir dos

26
ALBUQUERQUE, 2012
27
BEDIN, 1998, p. 102
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
829
O Estado brasileiro e a cidadania

propósitos de cada sociedade, destacando a sociedade moder-


na e especificamente a formação do Estado brasileiro. Posteri-
ormente falei da construção dos Direitos Humanos, dentro do
Estado moderno, também especificando a realidade brasileira.
A modernidade no Brasil, efetiva o modelo capitalista de
produção e um Estado nacional, rompendo com o modelo colo-
nial. A formação do Estado brasileiro ratifica o paradigma do
Estado, que é anterior, de um produto de uma determinada
sociedade que vai ser responsável, a partir de um aparato, pa-
ra garantir a “ordem” dela. No entanto, como esta sociedade é
capitalista, temos dois desdobramentos: esta ordem está inti-
mamente ligada à proteção da propriedade privada e a propri-
edade privada não é de todos, mas da classe hegemônica, o
que já é contraditório ao princípio da igualdade, do Estado li-
beral.
É justamente sob este Estado, que surge a discussão dos
Direitos Humanos. O Estado de Direito, garantia princípios
constitucionais, mas dentro do princípio liberal-burguês, portan-
to, mantém uma parcela da população desassistida dos plenos
Direitos Humanos que garante uma vida digna. Esta realidade
que é típica das sociedades modernas, mobiliza a sociedade à
organizar-se e buscar seus direitos, ou a ampliá-los.
Esta mobilização é o resultado da busca pela construção
de uma cidadania. Como sabemos todo Estado/nação tem ci-
dadãos/ãs, conforme Sorj28,
A cidadania no mundo moderno é, em primeiro lugar, um
mecanismo de inclusão/exclusão, uma forma de delimita-
ção de quem é parte integrante de uma comunidade na-
cional. Portanto a cidadania é a expressão de uma orga-
nização coletiva que organiza as relações entre os sujei-
tos sociais, que se formam no próprio processo de defini-
ção de quem é, e quem não é, membro pleno de uma de-
terminada sociedade politicamente organizada [...] As-
sim, o acesso a cidadania é o filtro que define quem po-

28
SORJ, 2004, p. 22

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
830
Mariane D. Martins

derá participar do sistema de direitos políticos e sociais


de cada nação.

No princípio da cidadania temos de forma simultânea a


constituição de um indivíduo de direito individual e de liber-
dade, mas também a constituição de uma sociedade soberana,
assim, “Os dois princípios entrelaçados – o da comunidade e o
do indivíduo – embasam as duas idéias fundadoras da cidada-
nia moderna: a soberania do povo e a igualdade dos cidadãos
perante a lei”.29
Como vimos com Matteucci, os direitos humanos podem
ser classificados em três esferas, os civis, que garantem a li-
berdade, os políticos que garantem a participação no Estado e
os sociais, que dizem respeito às reivindicações da sociedade,
de forma que o Estado garanta condições de vida digna. O
acesso à estes direitos, causou a burguesia, sempre um des-
conforto, referente ao medo de perder seu poder. Como afirma
Sorj30
Assim, tanto a passagem cidadania civil à cidadania polí-
tica como a da cidadania política à cidadania social, leva-
ram pânico a uma parte das classes dominantes, temero-
sas de que o voto universal ou os novos direitos sociais
significassem o fim da propriedade privada.

Foi assim que ocorreram as Ditaduras Militares e o Neoli-


beralismo, como formas de tentar frear qualquer organização
que pudesse ameaçar sua propriedade privada.
Se os Direitos Humanos refletem a luta pela cidadania, a
cidadania é a inclusão em um sistema político de direitos de
um Estado e este Estado é por “natureza” excludente, temos
então, nesta construção uma contradição. Esta contradição é
embasada pela reivindicação fundadora da modernidade, con-
forme afirma Sorj31

29
(2004, p. 25)
30
(2004, p 28)
31
(2004, p 28)
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
831
O Estado brasileiro e a cidadania

A base da antinomia de valores dos direitos humanos en-


contra-se na dupla reivindicação fundadora da moderni-
dade: a do pleno exercício da liberdade individual e da
igualdade entre todos os cidadãos dentro de uma comu-
nidade nacional. A primeira supõem valores individualis-
tas, enquanto a segunda, valores supra-individuais soli-
dários; a primeira supõem um Estado que vale por asse-
gurar a liberdade de cada um, e a segunda um Estado
que garanta o acesso dos mais desfavorecidos a condi-
ções mínimas de integração na vida social.

Este paradoxo entre Estado e cidadania na luta pelos Di-


reitos Humanos sempre estará presente em qualquer luta es-
pecífica. Sempre fará parte da estrutura do problema de gru-
pos excluídos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como mencionei no início deste artigo, não tenho como
objetivo colocar pontos finais e conclusões nesta discussão, ele
tem o objetivo, de colocar na pauta na discussão dos direitos
humanos a contradição existente entre o Estado, que é o Esta-
do moderno, e a cidadania. Essa contradição é explicitada na
luta pela construção de direitos humanos, desde de que se fa-
ça um caminho reflexivo histórico, obviamente amparado por
um foco específico teórico.
Portanto, nem toda discussão dos Direitos Humanos vai
perceber esta contradição, no entanto, isso não a minimiza ou
cria ou a torna ineficaz. Esta visão significaria um desrespeito,
a estas lutas, e do ponto de vista teórico, uma unilateralidade
conceitual que não contribui, para a efetiva construção dos
direitos humanos.Toda a discussão, e toda a luta em prol disso,
é valida e merece atenção teórica e política.
O Estado brasileiro foi criado sob os interesses da bur-
guesia e trás na essência a exclusão de uma parcela da popu-
lação à cidadania. Portanto, lutar por ela, sempre explicitará
este paradoxo, pois este Estado nunca poderá garantir a liber-
dade individual (que vai dizer respeito a propriedade privada,

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
832
Mariane D. Martins

inclusive), e a igualdade entre os/as cidadãos/ãs, com direitos


iguais e acessos iguais.
Mesmo que o atual governo brasileiro seja “híbrido”, e
mesmo que ele amplie os direitos sociais, não elimina os direi-
tos de propriedade individuais, o que significa que permanece
uma parcela da população com mais acesso aos direitos, e
consequentemente uma com menos, ou nenhum.
Neste sentido, meu convite é que sempre que fizermos a
discussão sobre os direitos humanos, possamos refletir sobre a
implicabilidade desta contradição apontada, na exclusão deste
grupo.
Isso é possível e trago um exemplo, se pegarmos a luta
das mulheres pelos direitos, poderemos perceber que a subju-
gação destas na sociedade, fruto da cultura patriarcal, que vai
acompanhar a formação do Estado brasileiro (tanto que as mu-
lheres vão galgar direitos de reconhecimento do seu trabalho,
ou de sua condição de mulher, como quando conquistam o sa-
lário maternidade, etc,), fortalece a sociedade moderna, já que,
ao não incluí-la como igual, no modo de produção capitalista, o
proprietário de uma empresa, por exemplo, lucra, porque seu
salário é menor (e isso várias pesquisas provam), fortalecendo
o modelo de produção.
Esta análise, que poderá ser feita, a partir da exclusão
dos negros, dos homossexuais, e de todos os grupos excluídos,
ao meu ver, fortalece e acrescenta uma qualidade (não no sen-
tido moral, mas de caracterização) à discussão dos direitos
humanos, que pode propiciar ações e consequentemente resul-
tados mais eficazes na conquista plena dos direitos humanos,
para verdadeira e efetiva construção da cidadania.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, M. Z. A comunicação cidadã na mídia digital:
Concepções e realizações dos sites MNDH, DH NET e CONECTAS.
2012. 168 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Comunicação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leo-
poldo. 2012.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
833
O Estado brasileiro e a cidadania

BEDIN, G. A. Os direitos do homem e o Neoliberalismo. 2. ed. rev. e


ampl. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 1998.
CORRÊA. D. A construção da cidadania: reflexões histórico-
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ENGELS. F. A origem da família, da propriedade privada e do Es-
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FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de inter-
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GOHN, M. G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos
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PALUDO, C. Educação popular em busca de alternativas: uma lei-
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Disponível em: <http://www.portaleducacao.com.br/direito/artigos
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Acessado em 02 abril 2011
SADER, E. A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino ameri-
cana. São Paulo: Boitempo, 2009.
SORJ. B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e
desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
EDUCAÇÃO AMBIENTAL :
UM ESTUDO A PARTIR DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS CONCRETIZADORAS
DO MEIO AMBIENTE COMO
UM DIREITO HUMANO

Marli Marlene Moraes da Costa


Pós-doutora em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha, com bolsa
CAPES. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina-
UFSC. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito - Mestra-
do e Doutorado - na Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Coorde-
nadora do Grupo de Estudos Direito, Cidadania e Políticas Públicas da
UNISC. Professora da Graduação em Direito na FEMA - Fundação Educaci-
onal Machado de Assis de Santa Rosa. Psicóloga com especialização em
terapia familiar. Coordenadora dos Projetos de Pesquisa: “O Direito à Pro-
fissionalização e as Políticas Públicas da Juventude na Agenda Pública: de-
safios e alternativas para a inserção dos jovens no mercado de trabalho -
um estudo no município de Santa Cruz do Sul - RS.” e “O Direito Vai à Es-
cola: Consumo X Educação para cidadania de crianças e adolescentes na
rede escolar do ensino fundamental”. (marlicosta15@yahoo.com.br)
Rodrigo Cristiano Diehl
Acadêmico do curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul -
UNISC. Integrante dos grupos de pesquisa: “Direito, Cidadania e Políticas
Públicas”, coordenado pela professora Pós-Doutora Marli Marlene Moraes
da Costa; “Direitos Humanos”, coordenado pelo professor Pós-Doutor
Clovis Gorczevski e; “Teorias do Direito”, coordenado pela professora
Doutora Caroline Mueller Bitencourt, ambos do Programa de Pós-
Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC e certificados
pelo CNPq. Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio
Grande do Sul – FAPERGS no projeto de pesquisa “O direito de proteção
contra a exploração do trabalho infantil e as políticas públicas de saúde no
Brasil”, coordenado pela Pós-Doutora. Marli Marlene Moraes da Costa.
(rodrigocristianodiehl@live.com)

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo inicial a conceituação dos direitos humanos,
desde a sua efetiva implementação - no âmbito internacional - no segundo pós-
guerra, como uma resposta às atrocidades cometidas durante este período. Tendo
836
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

isso como base, passar-se-á ao questionamento da possibilidade de integrar o meio


ambiente ecologicamente equilibrado e sadio ao rol dos direitos humanos funda-
mentais, pelo fato de que estaria estritamente interligado com uma melhor qualida-
de de vida do ser humano, e, por consequência, ao princípio superior da dignidade
da pessoa humana. Na sequência, analisar-se-á a educação ambiental como um
direito comum da população, a partir da criação de políticas públicas educacionais
com a finalidade de concretizar o meio ambiente como um direito humano. E, por
fim, trabalhar-se-á também, devido à magnitude dessa empreitada, o porquê do
dever de toda sociedade promovê-la e incentivá-la.
Palavras-chave: Direitos humanos; Educação; Meio Ambiente.

Abstract
This work aims initial conceptualization of human rights, since its effective imple-
mentation - internationally - in the second post-war as a response to the atrocities
committed during this period. With this as a base, it will pass to the questioning of
the possibility of integrating ecologically balanced environment and healthy to the
list of basic human rights, because that would be strictly interconnected with a bet-
ter quality of human life, and, consequently, the higher principle of human dignity.
Further, it will examine environmental education as a right of the common people,
from the creation of educational public policies in order to achieve the environment
as a human right. Finally, work will also, due to the magnitude of this undertaking,
why the duty of every society to promote it and encourage it.
Keyboards: Education; Environment; Human Rights.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Caracterizada como uma das mais brilhantes evoluções
da sociedade contemporânea está a disseminação e concretiza-
ção dos direitos humanos. Neste sentido, o presente trabalho
tem por objetivo inicial analisar o histórico, desde a sua real efe-
tivação no pós-segunda guerra mundial, onde o seu principal
objetivo era responder as atrocidades cometidas naquela época,
até as perspectivas e os desafios dos direitos humanos na atua-
lidade, tanto no plano teórico quanto no prático.
Na sequencia, versar-se-á sobre a proteção ambiental
como método para garantir a manutenção ou as gerações de
condições necessárias para que se tenha um meio ambiente
sustentável, sadio e ecologicamente equilibrado para um pleno
desenvolvimento dos seres humanos. E por conta dessa pro-
ximidade entre meio ambiente e dignidade da pessoa humana,
que o direito ao ambiente pode ser classificado como um direi-
to humano por excelência.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
837
Educação ambiental

E por fim, abordar-se-á um dos principais objetivos do Es-


tado Democrático de Direito para a efetivação dos direitos, a
educação. Sendo assim, a mesma se apresenta como um pro-
cesso de transformação do ser humano, onde a razão é aperfei-
çoada, permitindo um desenvolvimento pleno da cidadania ao
favorecer a participação política do indivíduo. Consequente-
mente, existe a preocupação em garantir as presentes e futu-
ras gerações um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

DIREITOS HUMANOS COMO RESPOSTA A SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL
Uma das questões mais discutidas na atualidade, sem
sombra de dúvida, é referente à aplicação tanto no âmbito na-
cional quanto internacional dos direitos humanos. No entanto,
para que se chegasse a este patamar de discussões, foram tra-
vadas, ao longo da história, diversas lutas, entre elas, aquelas
perpetradas por trabalhadores urbanos, camponeses, mulhe-
res, indígenas e muitos outros segmentos minoritários da soci-
edade, que se posicionarem contra uma elite que resistia em
manter os seus privilégios1.
Nesta perspectiva de surgimento dos direitos, destaca-se
o da pessoa humana, segundo relatório da Plataforma Dhesca2
percebe-se uma certa resposta as atrocidades comentidas du-
rante a Segunda Guerra Mundial. A violência absurda empre-
gada naquele período alertou para a necessidade da criação de
padrões, no âmbito internacional, de tolerância às mais diver-
sas culturas, étnicas e grupos sociais. Nesse sentido, a Orga-
nização das Nações Unidas (ONU) aprovou em 1948 a Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos, prevendo um mundo mais
igualitário, onde todos os seres humanos gozariam de liberda-
de de expressão, de crença e de viverem a salvo de todo a for-
ma de temor.

1
DHESCA, Plataforma. Direito Humano ao Meio Ambiente. Marijane
Lisboa (relatora); Juliana Neves Barros (assessora). INESC – Curitiba,
2008, p. 7.
2
Idem.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
838
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

O último momento especialmente marcante no percurso


histórico da noção de dignidade da pessoa humana é
também o mais chocante. A revelação dos horrores da
Segunda Guerra Mundial transtornou completamente as
convicções que até ali se tinham como pacíficas e ‘uni-
versais’. A terrível facilidade com que milhares de pesso-
as – não apenas alemãs, diga-se, mas de diversas nacio-
nalidades europeias – abraçaram a ideia de que o exter-
mínio puro e simples de seres humanos podia consistir
em uma política de governo válida, ainda choca3.

No entanto, esta mesma Declaração se encontrava em um


plano além, ou seja, seus artigos não estavam sendo aplicados
na vida real das pessoas. Desta forma, chegou-se a conclusão
de que estes direitos deveriam ser definidos em maior detalhe
na forma de um tratado internacional, onde todos os países
participantes da ONU ratificassem e cumprissem o referido
tratado. Porém, tudo isso estava ocorrendo em meio a Guerra
Fria, onde havia uma inegável disputa política de fundo na
questão dos direitos humanos.
Esta disputa dividiu o planeta em dois grandes blocos: o
primeiro com um teor puramente capitalista, liderado pelos
Estados Unidos da América, onde se tinha, como prioritários,
os direitos civis e políticos, como a liberdade de expressão. E
no outro lado do mundo encontrava-se o segundo bloco, co-
mandado pela antiga União Soviética, puramente socialista, e
tendo como viés prioritário a igualdade social e econômica,
como a alimentação, o trabalho, a moradia, entre outros4.
A partir desse grande embate, o texto acabou sendo divi-
do em dois tratados de direitos humanos para que fossem
aprovados mais facilmente pela Assembleia Geral da ONU. Um
deles se denominaria Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos (PIDCP) e o outro de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC), ambos com vigência nos dias atuais5

3
BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia jurídico dos princípios constitu-
cionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 108.
4
DHESCA, op. Cit. p. 8.
5
Ibidem, p. 7.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
839
Educação ambiental

Como visto anterior, a reação da comunidade internacio-


nal, a barbaria do fascismo e do nazismo, em geral, consagrou
a dignidade da pessoa humana no âmbito internacional como
princípio máximo dos ordenamentos jurídicos. Nesta linha,
Barcelos6 disciplina sobre a inclusão em algumas Cartas Políti-
cas da “dignidade da pessoa humana como fundamento do
Estado que se criava ou recriava (Alemanha, Portugal e Espa-
nha, [...]; a Bélgica tratou do tema através de emenda à Consti-
tuição), juridicizando, com estatura constitucional, o tema”.
A partir da admissão desses “novos direitos” nos orde-
namentos jurídicos mundiais, iniciou-se também a discussão
no âmbito acadêmico, pois os mesmo não se encaixavam em
nenhuma dimensão de direitos. Por isso, cria-se uma nova ca-
tegoria baseado no caráter universal, e levando em considera-
ção as suas peculiaridades como, a aplicação genérica a todas
as pessoas e a sua forte ligação com o terceiro princípio encon-
trado na Revolução Francesa, a fraternidade.
Ainda, a Conferência Mundial de Viena (1993), reafirmou
o compromisso mundial pelos direitos humanos e os declarou
como indivisíveis e interdependentes. As características que
definem tais direitos possuem outras prerrogativas como, uni-
versais (valem para todos); interdependentes (um depende do
outro para serem concretizados plenamente), indivisíveis (os
direitos humanos passam a ser considerados como um todo,
não podendo ser divididos) e por último, e não menos impor-
tante, eles se classificam como inalienáveis (não podem ser
trocados, compensados ou vendidos por outros direitos ou ga-
rantias)7.
Sendo assim, após este breve estudo sobre a evolução
histórica e conceitual dos direitos humanos, no capítulo se-
guinte pretende-se conciliar a concreta aplicação destes direi-
tos a partir de um meio ambiente sadio e ecologicamente equi-
librado.

6
BARCELOS, op. Cit. p. 109.
7
DHESCA. Op. Cit. p. 8.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
840
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

O MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO COMO UM DIREITO HUMANO


O processo de formação da sociedade e o sistema político
empregado no Brasil, podem ser elencados como os principais
causadores da lentidão em absorver e aplicar os direitos, tanto
isso ocorreu pela própria estrutura do Estado quanto pela ca-
pacidade que a sociedade reivindica seus direitos. Neste sen-
tido, desde a colonização e da exploração de terras
[...] a construção histórica de nossa identidade foi marca-
da pelo enorme poder dos donos de terras, pelos mais de
300 anos de escravidão que impedia a participação social
dos trabalhadores e pelo autoritarismo da monarquia por-
tuguesa, que usava os privilégios e a corrupção como ins-
trumentos de poder. Este cenário de desigualdade perdu-
ra até os dias de hoje, tanto pela concentração de poder
econômico e político na mão de poucos grupos, quanto
pelo desinteresse e desinformação da sociedade em par-
ticipar dos espaços públicos de tomada de decisão8.

E esta situação de desigualdades é agravada, em grande


parte, pelo rápido avanço tecnológico, e por consequência, a
globalização. Sendo assim, essa denominada perspectiva de
um mundo globalizado pode ser entendida a partir de dois vie-
ses, o primeiro deles se preocupa com a efetividade dos direi-
tos, pelo fato de ter ocasionado a fragilidade dos países, e con-
correntemente, poderá desencadear a fragilização de sua im-
plementação. E o outro viés a ser analisado, disciplina que este
o atual mundo contemporâneo globalizado facilita a formação
de um sistema internacional de proteção dos direitos9.
Não se pode negar que a atual sociedade contemporânea
possui diversos valores, sejam eles religiosos, culturais ou mo-
rais, ou melhor, ela está equipada com uma verdadeira multi-

8
Ibidem, p. 9.
9
RICHTER, Daniela; GORCZEVSKI, Clovis. O Direito Ambiental sob a
ótica dos Direitos Humanos e a importância da educação. In:
GORCZEVSKI, Clovis (org.). Direitos Humanos, Educação e Meio Ambi-
ente. – Porto Alegre : Evangraf, 2007, p. 13.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
841
Educação ambiental

plicidade de valores. Esse pluralismo para Cittadino10, “é uma


das marcas constitutivas das democracias contemporâneas”. E
ainda, de acordo com a mesma autora, essa definição possui
duas significações “ou o utilizamos para descrever a diversi-
dade de concepções individuais acerca da vida digna ou para
assinalar a multiplicidade de identidades sociais, específicas
culturalmente e únicas do ponto de vista histórico”.
Nesta percepção de sociedade contemporânea, de acordo
com um estudo realizado por Richter e Gorczevski, o direito
humano ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado
apresenta-se como um direito de terceira dimensão, pois veri-
fica-se seu caráter individual e ao mesmo tempo coletivo, pelo
fato de a vivencia em um local agradável ambientalmente
sempre estará vinculada ao um outro princípio fundamental, o
da dignidade da pessoa humana. Ou ainda, referente ao meio
ambiente equilibrado e à sadia qualidade de vida estarem pre-
conizados no artigo duzentos e vinte e cinco da Constituição
Federal, ele extrai características tanto dos direitos civis e po-
líticos quanto dos direito econômicos, sociais e culturais11.
Neste sentido, a Constituição Federal no seu artigo 225
disciplina que,
[...] todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.

Compreender o meio ambiente como um direito humano


fundamental, como visto recentemente, significa que a sua rea-
lização é condição primária para a garantia de uma vida mais
digna e sadia a qualquer ser humano. Nesta linha, a própria
sobrevivência do planeta, garantia de um mundo para as pre-
sentes e futuras gerações, depende principalmente da salva-
10
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elemen-
tos da Filosofia Constitucional Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000, p. 01.
11
RICHTER; GORCZEVSKI, op. cit. p. 15.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
842
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

guarda do meio ambiente. Por isso, só se pode falar na concre-


tização de outros direitos, a partir da garantia do maior dele,
que é o direito à vida e ao mundo em que habitamos de um
modo sustentável e saudável12.
Ou ainda, de acordo com Milaré13,
[...] o reconhecimento do direito a um meio ambiente sa-
dio configura-se, na verdade, como extensão do direito à
vida, quer sob o enfoque da própria existência física e
saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da
dignidade desta existência – a qualidade de vida – que
faz com que valha a pena viver.

Pelo fato desses direitos serem individuais, particulares,


a ninguém é dado o direito de destruir ou até mesmo praticar
atos que agridam o meio ambiente, pois se isso ocorrer estará
violando o direito de todos os seres humanos. É um direito do
qual todos são titulares ao mesmo tempo, por isso o mesmo se
classifica como um direito difuso, ou melhor, espalhado por
toda a sociedade. Implica um exercício de solidariedade, de
dever de respeito mutuo entre os seres, que se realiza entre os
mais diversos grupos sociais14.
Por consequência, se extrai da Carta Magna, segundo
Gomes15,
[...] o mais importante princípio do direito ambiental, qual
seja, o princípio do direito humano fundamental. Quando
diz que o meio ambiente é direito de todos, res communes
omnium, dotando-o da nota de essencialidade à vida, não
de qualquer vida, mas da sadia qualidade de vida, a Lei
Maior reconhece expressamente que tal direito é direito
humano do qual não se prescinde. Por outras palavras, o

12
DHESCA. Op. Cit. p. 13.
13
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente – doutrina prática, jurisprudência,
glossário, 2. ed. Revista, atualizada e ampliada, RT, 2001, p. 112.
14
RICHTER; GORCZEVSKI. Op. Cit. p. 15.
15
GOMES, Luis Roberto. Princípios constitucionais de proteção ao meio
ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 16, p. 164-191,
out./dez., 1999, p. 70.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
843
Educação ambiental

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é


um direito essencial, vinculado ao bem jurídico maior,
qual seja, a proteção da vida.

Nesta linha, falar em direito humano ao meio ambiente


ecologicamente equilibrado é falar essencialmente do exercício
da política plena, onde se envolvem diversas relações de poder
entre atores diferenciados por suas identidades, interesses e
até mesmo valores, com distintas capacidade e condições para
intervir, por exemplo, no acesso e uso aos bens naturais16. Por
isso, a importância do meio ambiente, por exemplo, independe
do seu reconhecimento por lei, é mais enraizada em comuni-
dades mais tradicionais, rurais, onde há uma relação de de-
pendência direta desses recursos ambientais, do que em cen-
tros urbanos aonde o consumo de serviços, alimentos e outras
necessidade básicas chegam ao consumidor através de indús-
trias, ou seja, o comprador final não tem grande informação do
todo o processo, nem principalmente no inicio da cadeia de
produção17.
Tem-se como recursos ambientais, segundo Rocha,
[...] o solo, água, vegetação, fauna, subsolo, ar e o homem
organizado em sociedade, constituem o meio ambiente.
Cada um destes recursos tem um padrão de qualidade. O
rompimento de um padrão de qualquer recurso natural
dá origem à deterioração ambiental, e aí se inicia o pro-
cesso de diminuição da qualidade de vida. O homem e a
sociedade só se desenvolvem quando não há deteriora-
ção ambiental (não há rompimento do padrão de quali-
dade).18

Diferentemente dos conglomerados empresariais ligados


à produção de energia, alumínio, papel, produção de alimentos
para a exportação e outros, os grupos sociais como as comuni-

16
RICHTER; GORCZEVSKI. Op. cit. p. 17.
17
DHESCA. Op cit. p. 27
18
ROCHA, José Sales Mariano da. Cartilha ambiental. Santa Maria:
Palotti, 2001, p. 19.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
844
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

dades ribeirinhas que tem uma relação direta com a subsistên-


cia com os rios, ou os seringueiros que retiram a sua subsis-
tência das florestas, ou dos pescadores que retiram do mar o
sustento de sua família, ou ainda os índios que trazem a flores-
ta um forte valor espiritual, tendem a coligar nos mais diversos
atos do cotidiano práticas sustentáveis e um maior respeito no
trato com o meio ambiente em sua forma mais virgem19.
Por isso, o acesso igualitário e justo, direto e indireto, aos
recursos naturais de um país também é elemento primordial
para a concretização do direito humano ao meio ambiente sa-
dio, ou talvez para a realização da justiça ambiental, que asse-
gura que nenhum grupo social, seja ele qual for, tenha que su-
portar uma parcela desproporcional dos efeitos negativos dos
danos ambientais causados por todos. Ou mais, que todos os
indivíduos tenham acesso igual aos recursos ambientais dis-
poníveis e que tenham tanto amplo acesso a informação quan-
to aos processos democráticos na construção de políticas pú-
blicas, planos, programas ou projetos que lhe dizem respeito20.
A partir dessa preocupação que todos possam usufruir,
com responsabilidade, dos recursos ambientes, em junho de
1972, realizou-se em Estocolmo, A Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente Humano, tendo como principal
reflexo no ambiento internacional o marco do nascimento do
Direito Ambiental internacional. Por considerar o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fun-
damental do indivíduo, igualando com outros direitos, como
liberdade e isonomia, como visto no princípio primeiro.
Princípio nº 1: O homem tem o direito fundamental à li-
berdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida
adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que
lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar,

19
DHESCA. Op. cit. p. 13.
20
RBJA, Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Manifesto de lançamento
da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível em
www.justicaambiental.org.br. In: BRASIL, Plataforma Dhesca. Direito
Humano ao Meio Ambiente. Marijane Lisboa (relatora); Juliana Neves
Barros (assessora). INESC – Curitiba, 2008.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
845
Educação ambiental

tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio


ambiente para as gerações presentes e futuras.21

Nesta mesma Conferência, foi criado o PNUMA – Progra-


ma das Nações Unidas para o Meio Ambiente – que se caracte-
riza como uma agencia do Sistema ONU responsável por moni-
torar a ação internacional e nacional para proteger o meio am-
biente em um contexto sustentável, e por conta disso, e pela
vasta biodiversidade brasileira que desde 2004 o PNUMA tem
um escritório no Brasil22.
Assim, é de extrema importância que haja um espaço de
dialogo e cooperação entre os mais diversos atores sociais,
seja para a elaboração e execução de políticas públicas ou pa-
ra ações ambientais. No entanto, além dos espaços institucio-
nais de participação, outras estratégias também se mostram
tão eficientes para a preservação natural, como a educação,
onde, além de conscientizar o indivíduo acerca de seus atos e
reflexos deste no meio ambiente, pode-se incluir esse indiví-
duo no processo de elaboração dos projetos, o que analisar-se-
á na sequencia.

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO FERRAMENTA PARA A EFETIVAÇÃO


DO DIREITO HUMANO AO MEIO AMBIENTE
Com o advento da Constituição Federal de 1988 fora con-
sagrado a educação como direito fundamental do homem, as-
segurando inclusive mecanismos e instrumentos para garantir
a sua efetivação, representando assim um forte investimento
na construção da cidadania.
A educação, de acordo com Saviani23, é algo inerente a
própria condição humana, pelo fato de que desde que o ho-
21
ONU. Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano. 1972. Dis-
ponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-
Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-ambiente-humano.html
Acesso em 25 out 2012.
22
DHESCA. Op. Cit. p. 16.
23
SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação: trajetória, limites e
perspectivas. Campinas, SP: Autores Associados, 1998, p. 37.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
846
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

mem vive em sociedade, ele se desenvolve através da educa-


ção. Para conseguir sobreviver, o homem necessitou adaptar-
se à natureza e transformá-la segundo as suas necessidades, o
que se configura num verdadeiro processo de aprendizagem.
Com o amadurecimento, o conhecimento foi sendo sistemati-
zado e determinou a necessidade de mecanismos de transmis-
são e divulgação do mesmo.
Ainda segundo Peces-Barba24, a educação é um dos prin-
cipais mecanismos para conscientização acerca da importân-
cia dos direitos, do seu significado e também do seu alcance,
lembrando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
afirma que entre as causas de desrespeito e ofensas aos direi-
tos humanos, está o desconhecimento.
Do ponto de vista jurídico, a educação pode ser conceitu-
ada a partir do pressuposto de que a mesma é um direito de
personalidade, ou seja, como afirmado anteriormente, que de-
corre da simples existência do ser humano. É um direito amplo,
que vai além da liberdade de aprendizagem, caracterizando-se
como direito social, uma vez que pode ser exigido que o Esta-
do crie os serviços públicos para atendê-lo. Ademais, o direito
à educação é um direito subjetivo absoluto, intransmissível,
irrenunciável e inextinguível25.
Nesse sentido, a educação para a cidadania deve estar
comprometida com a formação de cidadãos livres, críticos,
responsáveis e comprometidos com a sociedade na qual vivem
e da qual fazem parte. A partir disso, a ideia de uma educação
voltada para o fortalecimento da cidadania é defendida por
Cruanhes quando disciplina que:
Vislumbramos, em uma educação transformadora, algu-
mas possibilidades de educar para que cada um exerça a
sua cidadania, exigindo o cumprimento dos direitos e
cumprindo os seus deveres. Educar para a cidadania! A

24
PECES-BARBA, Gregório. Educación para la ciudadanía y derechos
humanos. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2007, p. 181.
25
MACHADO JUNIOR, César Pereira da Silva. O direito à educação na
realidade brasileira. São Paulo: LTr 2003, p. 103.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
847
Educação ambiental

defesa da educação remetia-nos também para a defesa


dos direitos e deveres constitucionais. O recurso para o
aprendizado do exercício político deixa de ser um produ-
to, uma meta (velho paradigma da educação) para ser um
processo, uma jornada26.

Entende-se, portanto, que a educação é fundamental para


o exercício da cidadania, pois “é o recurso que as sociedades
dispõem para que a produção cultural da humanidade não se
perca, passando de geração a geração”. Através dela, os seres
humanos garantem a perpetuação do seu caráter histórico. Pa-
ro afirma que a “democracia não pode ser imaginada sem a
atualização histórico-cultural de seus cidadãos, proporcionada
pela educação, posto que ela mesma é um valor construído
historicamente a ser apropriado pelos indivíduos”27.
Sendo assim, Lanfredi realiza um paralelo entre a educa-
ção e o meio ambiente.
Com efeito, assim em relação à educação (direito de to-
dos) como ao meio ambiente (todos tem direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado), destaca o legisla-
dor que se trata de um direito comum da população, bem
como, em face da magnitude da empreitada, não incum-
be só ao Estado, mas também à sociedade o dever de
promovê-los e incentivá-los28.

Portanto, como visto e analisado anteriormente, a corres-


ponsabilidade desses deveres, importa, sem dúvida, na difu-
são da educação ambiente como um processo político e peda-
gógico, direcionada principalmente a democratização e ao
exercício concreto da cidadania, de uma maneira que ao pro-
gramar um novo paradigma em parte da sociedade, abriríamos
novos horizontes a toda ela29.

26
CRUANHES, Maria Cristina dos Santos. Cidadania: Educação e Exclusão
Social. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 14.
27
PARO, Vitor Henrique. Por dentro da Escola Pública. São Paulo: Xamã,
2000, p. 11.
28
LANFREDI, Geraldo. Política ambiental: A busca da efetividade de seus
instrumentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 123.
29
RICHTER; GORCZEVSKI, op. Cit. p. 23.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
848
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

A educação ambiental pode suprir muitos vazios ideoló-


gicos desse tempo de extremismos políticos, desperdí-
cios de recursos ambientais, exageros de produção e
consumo. A educação ambiental opera processo que ofe-
recem vantagens práticas, sensíveis, palpáveis e as ve-
zes, imediatas e muito positivas àqueles que prezam os
atos humanitários, o pensamento holístico, a solidarieda-
de, a saúde, o equilíbrio ambiental e a paz. Busca-se, as-
sim, um concerto global para a implementação desse en-
foque educacional, determinante da transformação políti-
cas para a criação de um novo mundo, calcado na susten-
tabilidade, cujos atores serão cidadãos ativos, trabalhan-
do para a obtenção de soluções concretas que visem à
dignidade humana e o bem estar ambiental, através da
ação solidária comunitária.30

Assim, o que se apresenta neste capítulo, representa


muito mais do que uma iniciativa de pesquisadores, mas sim,
um rompimento com uma história de descaso, de degradação
ao meio ambiente. Reproduz uma ação efetiva no plano fático,
que procura basicamente enraizar uma cultura de respeito aos
multiculturalismos existente na sociedade, por meio da estimu-
lação da educação como um processo emancipatório.
Portanto, é imprescindível a conscientização dos indiví-
duos acerca de seus direitos e deveres enquanto membros ati-
vos de uma sociedade, para que num futuro não tão distante,
os resultados das sementes plantadas hoje sejam colhidos de
forma mais eficaz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente trabalho procurou-se analisar a his-
tória dos direitos humanos no plano internacional, e a sua in-
fluência dentro do Estado brasileiro. Ainda, de forma sucinta,
relatou-se a brava luta travada entre os grupos minoritários e

30
COSTA, Jose Kalil de Oliveira. Educação Ambiental, um direito social
fundamental. In: 10 anos da ECO-92. 2002, p. 53.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
849
Educação ambiental

aqueles que ainda resistiam em manter os seus privilégios à


custas do menos desfavorecidos.
Em meio a este conflito surge então o direito humano a
um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, como
um direito decorrente dos dois principais direitos, a dignidade
da pessoa humana e a vida. Por conta disso, o mesmo fora in-
troduzido nas mais diversas cartas políticas como um dos pila-
res para o Estado Democrático de Direito.
Por conta disso, tem-se apresentado como um objetivo a
ser alcançado pelas sociedades globalizadas, a educação am-
biental, visto que, anos atrás não havia nenhuma preocupação
com o meio ambiente, já que não possuíam pesquisas afirmam
de forma induvidosa a estreita relação entre meio ambiente
equilibrado e qualidade de vida dos seres humanos.
Sendo assim, é de extrema importância que haja um es-
paço de diálogo e cooperação entre os mais diversos atores
sociais, seja para a elaboração e execução de políticas públicas
ou para ações ambientais. No entanto, além dos espaços insti-
tucionais de participação, outras estratégias também se mos-
tram tão eficientes para a preservação natural, como a educa-
ção, onde, além de conscientizar o indivíduo acerca de seus
atos e reflexos deste no meio ambiente, pode-se incluir esse
indivíduo no processo de elaboração dos projetos, e a partir
desta participação política ativa, torna-lo efetivamente um ci-
dadão.

REFERÊNCIAS
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tucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janei-
ro: Renovar, 2002.
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Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. 2. ed. Rio de
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CRUANHES, Maria Cristina dos Santos. Cidadania: Educação e Ex-
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
850
Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

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851
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
PROJETO RONDON:
UMA EXPERIÊNCIA
ALÉM DA UNIVERSIDADE

Moisés dos Santos Dutra


Acadêmico e bolsista do Curso de Ciências Biológicas da URI – Campus de
Santiago
Isaque dos Santos Dutra
Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Missões, URI – Campus de Santiago
Jonatas Medeiros Soares
Acadêmico do curso de Web Designe e Programação pela UNISUL – Uni-
versidade do Sul de Santa Catarina

Resumo
O presente resumo tem como objetivo compartilhar experiências vivenciadas junto
ao Projeto Rondon, operação São Francisco, desenvolvido e coordenado pelo Minis-
tério da Defesa e com acompanhamento e logística das forças armadas. A Operação
São Francisco foi desenvolvida no Estado de Sergipe no Município de Neópolis. Entre
os objetivos do Projeto Rondon cita-se a capacidade de gerar multiplicadores de
mudanças a nível nacional, pois as atividades desenvolvidas pelos universitários
voluntários inclui vários temas: Educação, Direitos humanos, meio ambiente, tecno-
logias e produção, desenvolvimento econômico sustentável, saúde, comunicação e o
intercâmbio de cultura e conhecimento que ocorre entre as equipes participantes. O
público alvo dos trabalhos realizados foram crianças, servidores municipais, traba-
lhadores rurais, pescadores, e comunidade em geral dinamizados por acadêmicos de
duas universidades localizadas no Sul e Nordeste do Brasil. Todas as atividades de-
senvolvidas contribuíram de forma significativa para a formação do Universitário,
rompendo paradigmas e ultrapassando fronteiras, integrando-os ao desenvolvimen-
to nacional e mudando hábitos e conceitos de consumo, relacionamento e desenvol-
vimento socioeconômico. Sendo assim o projeto Rondon caracteriza-se como um
dos maiores programas extensionistas de formação universitária desenvolvido pelo
Brasil. Consolida no Universitário o espírito da cidadania, do trabalho em grupo, da
coletividade do conhecimento das reais necessidades da nação.
Palavras-chave: Comunidade, Projeto Rondon, Segipe, Universidade.

Abstract
This summary aimas to share some lived experiences with the Rondon Project, San
Francisco operation, developed and coordinated by the Ministry of Defence and with
monitoring and armed forces logistics. Operation San Francisco was developed in the
state of Sergipe in the city of Neopolis. Among the objectives of the Project Rondon
is the ability to generate multipliers changes nationals because the activities under-
854
Moisés dos Santos Dutra, Isaque dos Santos Dutra & Jonatas M. Soares

taken by university volunteers includes some topics: Education, human rights, envi-
ronment, technology and production, Sustainable economic development, health,
communication and exchange of culture and knowledge that occurs between the
participating teams. The target audience of the work were children, municipal work-
ers, peasants, fishermen, and general community dynamised by academics from two
universities located in the South and Northeast Brazil. All activities contributed sig-
nificantly to the academics formation, breaking paradigms and overcoming chaleng-
es, integrating it into the national development and changing consumer habits and
concepts, relationships and socioeconomic development. Thus the project Rondon
characterized as a major extension of university training programs developed by
Brazil. Consolidates University in the spirit of citizenship, team work, the collective
knowledge of the real needs of the nation.
Keywords: Community Project Rondon University.

INTRODUÇÃO
Coordenado pelo ministério da defesa, da Educação, da
Ciência e Tecnologia e com grande apoio das forças armadas,
entre outros ministérios, o Projeto Rondon, tem como objetivo
geral contribuir para a formação do universitário como cidadão.
Através da inserção em ambientes e culturas diferentes da
realidade vivida revela seu lema de integrar para não entregar.
Inserindo cidadãos ao desenvolvimento nacional e a troca de
culturas por meio de ações participativas sobre a realidade do
País, o projeto oportuniza ao participante trabalhar com o dife-
rente; mostrando aos Universitários voluntários nas atividades,
diferentes culturas, histórias, locais, e até mesmo a desigual-
dade social encontrada nas diversas regiões de nosso Brasil.
Para desenvolver as atividades, conta ainda com a ajuda e co-
laboração dos Governos Estaduais, das Prefeituras Municipais,
da Associação Nacional dos Rondonistas, da União Nacional
dos Estudantes, de Organizações não Governamentais e de
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
Segundo Piovesan (2008, p. 16), o projeto Rondon tem sua
origem na década de 70. Os integrantes do Ministério da Guer-
ra tinham preocupações de promover a participação da cama-
da jovem do país, em atividades de integração e movimentos
voluntários. A ideia disseminou e o movimento que recém co-
meçava esboçar, buscou apoio nas Universidades. A partir de
então houve grande número de reuniões e desde o inicio obte-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
855
Projeto Rondon

ve excelentes repercussões nos mais variados segmentos da


sociedade, estando sempre acompanhando pela a imprensa.
Esse esforço concentrado do governo, dos ministérios e
de algumas Universidades, cresceu, desenvolveu e resultou em
um projeto de excelência nacional que está ampliando e pro-
clamando cada vez mais ações que visam o desenvolvimento
sustentável e ampliam o bem estar comunitário.
Uma dessas ações é a operação São Francisco que ocor-
reu no Estado de Sergipe, região Nordeste Brasileira, entre os
dias 19 de janeiro a 04 de fevereiro de 2013. A ação teve como
Centro Regional a cidade de Aracaju/SE, e atingiu cerca de 20
municípios dos Estados de Sergipe e Alagoas e 400 Rondonis-
tas voluntários de 40 Instituições de Ensino Superior do Brasil.
Todo o trabalho foi dividido em dois conjuntos sendo que o
Conjunto A ficou responsável pelas áreas da Cultura, Direitos
humanos e Justiça, Educação e Saúde. Já o conjunto B com-
prometeu-se com as áreas da comunicação, meio ambiente,
trabalho, tecnologia e produção.
Este abrangente Projeto forma capacitadores, ou seja, as
pessoas é que serão os sujeitos da mudança. Além disso o
Rondom, proporciona ao Acadêmico e ao professor a capacida-
de de disseminar, mobilizar, incentivar e promover um inter-
câmbio de conhecimento e cultura entre as Universidades par-
ticipantes e comunidade Acadêmica em geral. Todas as ações
desenvolvidas buscam uma melhoria na qualidade de vida da
população que recebe o projeto, trazem a comunidade infor-
mações a serem utilizadas no cotidiano o crescimento profissi-
onal e pessoal, elevando sua qualidade de vida.

OBJETIVOS
Consolidar no universitário brasileiro o sentido de res-
ponsabilidade social, coletiva, em prol da cidadania, do desen-
volvimento e da defesa dos interesses nacionais. Estimular no
universitário a produção de projetos coletivos locais, em parce-
ria com as comunidades assistidas. PORTAL DO PROJETO
RONDON (acesso em: 08 de abril de 2013).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
856
Moisés dos Santos Dutra, Isaque dos Santos Dutra & Jonatas M. Soares

Esta publicação também tem como objetivo mostrar para


os participantes uma experiência tão significativa vivenciada
por todos aqueles que têm o privilégio de participar por quase
vinte dias uma realidade social, cultural, ambiental tão diferen-
te dos seus locais de origem.

DIAGNÓSTICO DO ESTADO DE SERGIPE


De acordo com o Portal de Sergipe o estado foi emancipa-
do da Bahia em 8 de julho de 1820. Tornou-se a capitania de
Sergipe del-Rei, e mais tarde uma Província que tinha como
Capital a Vila de São Cristóvão. Atualmente Sergipe é uma das
27 unidades federativas brasileiras, e sua capital, Aracaju,
fundada em 1855, foi a primeira cidade planejada do Brasil.
Segundo Marina (2012), o estado delimita-se ao norte com
o Estado de Alagoas ao Sul, ao Oeste o estado da Bahia e ao
Leste o Oceano Atlântico. O estado de Sergipe apresenta dois
climas acentuados, na zona da mata observamos clima tropical
quente e úmido, enquanto na parcela do interior, mais especi-
ficamente no agreste e no sertão, um clima semiárido com
temperaturas bastante elevadas e de menores precipitações.
Quanto à hidrografia de Sergipe segundo Marina, o esta-
do possui três bacias hidrográficas, sendo elas: São Francisco,
Japaratuba e Sergipe. A bacia do São Francisco é a maior de
todas, sendo um rio de muita relevância para o Estado já que
muitas cidades e povoados são abastecidos por sua água. O
que inclui a capital Aracajú que tem 60% da demanda atendi-
da. Além disso, em suas margens se desenvolvem a cultura da
cana de açúcar (Saccharum officinarum) e a criação de gado.
Todas as bacias hidrográficas de Sergipe deságuam no Oceano
Atlântico.
Quanto à sua vegetação, o estado de Sergipe, conforme o
Mapa Biomas do Brasil do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, IBGE (2004), possui três tipos: a caatinga no interi-
or, mangues no litoral e faixa de floresta tropical.
Os municípios que participarão da operação São Francis-
co-2013 Projeto Rondon foram Campo do Brito, Carmópolis,
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
857
Projeto Rondon

Frei Paulo, Japaratuba, Malhador, Monte Alegre de Sergipe,


Neópolis, Nossa Senhora das Dores, Poço Verde, Propriá, Ribei-
rópolis, Santo Amaro das Brotas.

METODOLOGIA
O desenvolvimento das atividades do Projeto Rondon
buscou de forma clara e simples apresentar para a comunidade
soluções, advertências e inovações que estão proporcionando
melhorias na qualidade de vida de cada cidadão. Mudanças
tais como: saneamento básico para todos, descarte dos resí-
duos de forma correta, informações quanto aos perigos exis-
tentes na má utilização dos resíduos e a reutilização dos mes-
mo de forma correta e sem prejudicar o meio ambiente. Para
isso, aconteceu palestras, mini cursos e apresentações sobre
as possibilidades de reaproveitar resíduos orgânicos através
da compostagem e inorgânicos pela reciclagem.
Todas as oficinas tiveram um forte embasamento nas
questões autossustentáveis, pois, sabe-se que o homem apre-
senta atitudes que merecem ser repensadas, pois, cada vez
mais a sociedade moderna vem retirando recursos da natureza
para suprir a demanda das inovações tecnológicas. Segundo
Barcelos (2008, p. 16), “a natureza deixou de ser um grande
cenário de acontecimentos, para ser tratada como um mero
campo de experimentações”.
A operação foi dividida em dois conjuntos sendo que o
conjunto A ficou responsável pela áreas da cultura, Direitos
humanos e justiça educação e saúde. As propostas foram
apresentadas a partir do diagnóstico do Estado, verificando
suas necessidades as políticas públicas, problemas ambientais
entre outros assuntos que acontecem devido à falta de infor-
mação. As oficinas realizadas estruturavam-se em: assunto,
objetivos, metodologia, recursos e retorno esperado da comu-
nidade.
A seguir uma breve síntese dos trabalhos desenvolvidos
por ambas as equipes: o conjunto A, dentro do tema cultura
procurou desenvolver e disseminar atividades que buscasse a

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
858
Moisés dos Santos Dutra, Isaque dos Santos Dutra & Jonatas M. Soares

valorização da cultura Sergipana local promovendo assim o


intercambio de informações e o consequente crescimento cul-
tural dos envolvidos.
Já na área de direitos humanos o foco estava voltado para
os gestores municipais e conselheiros na gestão de políticas
públicas. Todas as ações davam ênfase ao desenvolvimento
social e ao enfrentamento de situações de trabalho infantil ca-
pacitando os conselhos municipais.
Quanto á área da educação as oficinas partiram da ideia
da contextualização e interdisciplinaridade, demonstrando
através de ações as diferentes formas de ensino e aprendiza-
gem, o relacionamento entre os colegas e tratando da forma
como os professor devem trabalhar com situações e problemas
que aparecem no dia a dia de um Discente.
Na área da saúde procurou-se enfatizar a importância
com o cuidado da saúde bucal, familiar, ambiental além do
planejamento familiar. Também abordou-se assuntos como
doenças sexualmente transmissíveis, prevenção da prostitui-
ção infantil, o uso de álcool e drogas. Incentivo ao esporte e
lazer também foram temas abordados e debatidos no momento
das oficinas.
Em relação ao conjunto B foram realizadas palestras, ofi-
cinas, relacionadas à comunicação, meio ambiente, trabalho
tecnologia e produção.
Na área da comunicação os objetivos, além de formar ca-
pacitadores da gestão municipal, foram trocar ideias e apren-
dizagens com os servidores municipais e maneiras de difusão
para a população usando os meios de comunicação disponível.
Também procurou-se divulgar aos mesmos os benefícios dos
programas que estão sendo desenvolvidos em esfera nacional.
No tocante a área ambiental as atividades voltaram-se
especialmente ao desenvolvimento com sustentabilidade
abordando e capacitando multiplicadores em defesa das ques-
tões ambientais mobilizando campanhas informativas no que
se refere ao descarte correto de resíduos, água, mudanças cli-
máticas, desertificação, aterros sanitários e saúde. Ficou evi-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
859
Projeto Rondon

dente a contextualização dessas atividades envolvendo vários


cursos de Ensino Superior.
As oficinas foram divididas em dois momentos: no primei-
ro momento buscamos de forma clara abordar noções de cida-
dania e participação popular havendo com isso troca de co-
nhecimentos entre acadêmicos, professores e a comunidade
em geral. Já no segundo momento acadêmicos participantes
explanaram ideias, conhecimentos e realizaram colocações
diante das necessidades que estavam sendo debatidas pelos
próprios moradores das comunidades.
Foi grande o retorno dos trabalhos. Envolveu professores,
funcionários públicos, alunos das escolas, trabalhadores e co-
munidade em geral, difundindo ideias de cidadania, democra-
cia e conhecimentos.

Foto tirada em um minicurso sobre soluções autossustentáveis.

No decorrer da execução do referido projeto, enfocou-se


bastante o intercambio de ideias entre acadêmicos e pessoas
da comunidade enfocando temas que estão trazendo alternati-
va para o seu desenvolvimento, ideias e vicissitudes. Todas as
atividades apresentaram uma forte característica a multidisci-
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
860
Moisés dos Santos Dutra, Isaque dos Santos Dutra & Jonatas M. Soares

plinaridade, Sendo assim, cada oficina ou atividade realizada a


comunidade pode vivenciar e aproveitar uma união de conhe-
cimentos que facilitarão o desenvolvimento socioeconômico.

RESULTADOS
O presente trabalho tendo como apoio do Ministério da
defesa apresentou resultados positivos em relação à constru-
ção do conhecimento proposto, abordando temas de grande
relevância nos dias atuais envolvendo as diferentes áreas do
conhecimento como ciências da natureza, ciências humanas,
linguagens e matemática de forma interdisciplinar.
Todas as ações realizadas se mostraram de grande im-
portância tanto na formação inicial dos Acadêmicos bem como
na nossa formação continuada, dos professores envolvidos nas
atividades e da comunidade beneficiada com o projeto. Os ob-
jetivos do Projeto Rondon foram alcançados juntamente com as
novas propostas, valorizando esforços, estudo, dedicação.
Dando ênfase em nossa formação continuada e experiências
formativas muitas destas que só poderiam ser desfrutadas
quando os Acadêmicos já estivessem inseridos em ambientes
similares ou talvez já trabalhando.
O desenvolvimento do trabalho proporcionou ao Acadê-
mico levar consigo e para a vida, habilidades de raciocínio
mais claras e objetivas como o desenvolvimento de atividades
voltadas à construção da consciência ecológica e da sustenta-
bilidade visando a preservação dos recursos naturais e do
Meio Ambiente, uma vez que a experiência se concretizou em
um curso extencionista de envergadura incomparável e assim
trazendo novas maneiras de pensar e agir frente a compreen-
são dos diversos temas apresentados.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
861
Projeto Rondon

Foto tirada no dia do encerramento das apresentações do projeto rondon.

CONCLUSÃO
Fica difícil escrever o legado de aprendizagem que ficou
conosco após a participação no Projeto Rondon. As oficinas, as
famílias que conhecemos, os amigos que deixamos e a comu-
nidade em geral, somando-se as experiências de estar numa
cidade em outra região do país, torna tudo muito surprienden-
te e inesquecível. Uma cultura totalmente diferente da nossa,
as dificuldades desde o momento que deixamos nossas famí-
lias para viajar, tudo teve valia pois fica ainda aquela vontade
de voltar e aprender ainda mais.
O projeto Rondon não envolve somente nosso conheci-
mento intelectual, mas é um projeto onde mergulhamos de
corpo e alma com o diferente se quebra a rotina que levamos,
se erra, mas se aprende a conviver a praticar o trabalho em
grupo a viver de uma forma diferente e muitas vezes muito di-
ferente.
Fica as emoções sentimentos, e lembrança de um povo
acolhedor como bem representaste o povo de Sergipe.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
862
Moisés dos Santos Dutra, Isaque dos Santos Dutra & Jonatas M. Soares

Enfim um projeto de vida, capaz de mudar a vida das co-


munidades e de todos aqueles que participam deste programa.
Daí a importância de compreender o espírito do Projeto
Rondon que permeia toda a sua história, e para tal é necessá-
rio conhecer a História na perspectiva que tiveram seus funda-
dores, de olhar o Brasil de frente, para que os jovens pudessem
conhecer para melhorá-lo.

REFERÊNCIAS
MINISTÉRIO DA DEFESA, Portal do Projeto Rondon. Disponível em:
http://projetorondon.pagina-oficial.com/portal/ Acesso em: 08 de
Abril de 2013.
GOVERNO DE SERGIPE, Portal de Sergipe. Disponível em:
<http://www.se.gov.br/>. Acesso em: 09 de Abril de 2013
BARCELOS, Valdo, Educação Ambiental: sobre princípios, metodo-
logias e atitudes. Ed: Vozes, Rio de Janeiro: 2008.
IBGE. Mapa de Biomas do Brasil, primeira aproximação. Rio de
Janeiro: 2004, Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 07
de abril de 2013.
MARINA, Lúcia; Tércio. Geografia: O espaço brasileiro natureza e
trabalho. Ed. Ática; Volume: 3 São Paulo, 2012.
PIOVESAN, Liceo. Projeto Rondon – RS e Jeunesse Canada Monde
– Uma parceria que deu certo. Porto Alegre/RS. Ed: Faccat, 2008.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A BUSCA DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À
CIDADANIA PELOS POVOS INDÍGENAS
LATINO - AMERICANOS

Monia Peripolli Dias


Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Pós-Graduanda em Direito Penal
e Processo Penal pela Universidade Gama Filho (UGF), Mestranda em Di-
reito pelo Programa de PPGDireito – Mestrado da Universidade Regional
Integrado do Alto Uruguai e das Missões (URI). Integrante do grupo de
pesquisa Mediação de conflitos e justiça restaurativa coordenada pelo .
Prof. Dr. Mauro Gaglietti (monia@san.psi.br)

Resumo
O presente ensaio versará sobre a busca da efetivação do direito à cidadania, concei-
to este que vem sofrendo diversas transformações e está assumindo cada vez mais
um caráter multidimensional uma vez que vem abarcando a questão do reconheci-
mento das minorias étnicas e ampliando a sua titularidade para novos sujeitos antes
excluídos. Sob esse prisma os povos indígenas latino-americanos buscam a igualdade
de oportunidades e condições fundamentais elencadas a todos, mas com respeito às
suas particularidades como a preservação de seu modo de vida, sua cultura e suas
tradições a partir do reconhecimento do direito a diferença, lutando, pelo respeito
as condições peculiares objetivando a valorização daqueles que compõe essa mino-
ria a fim de afirmar-se dentro da sociedade envolvente, que é multicultural.
Palavras-chave: cidadania, efetivação, índios, América Latina.

Abstract
This essay will concentrate on the search for the enforcement of the right to citizen-
ship, a concept that has been undergoing several changes and is assuming more and
more a multidimensional character once that comes from embracing the issue of
recognition of ethnic minorities and expanding its ownership to new subjects before
excluded. In this light the peoples indigenous Latin Americans seek to equal oppor-
tunities and fundamental conditions listed at all, but with respect to their special
features such as the preservation of their mode of life, their culture and their tradi-
tions from the recognition of the right to difference, struggling, by respecting the
conditions peculiar aiming at the recovery of those who compose this minority in
order to assert itself within the surrounding society, which is multicultural.
Keywords: citizenship, realization, indians, Latin America.
864
Monia Peripolli Dias

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ao se abordar a problemática indígena, muitos são os en-
foques que passam a emergir, porém, o presente ensaio versa-
rá sobre a busca da efetivação do direito à cidadania e a luta
pelo reconhecimento desta minoria étnica como “diferentes”,
isto é, o direito serem reconhecidos como índios tendo respei-
tados sua cultura, seus valores, seus costumes e suas tradi-
ções e como tal terem garantidos o gozo pleno dos direitos e
garantias fundamentais em um contexto latino-americano.
Assim, inicialmente a intenção é tecer breves apontamen-
tos acerca da cidadania, como sua construção histórica e seu
tão complexo conceito. Em seguida, procurar-se-á elencar o
reconhecimento da diferença preconizado como um direito,
bem como a construção e afirmação da identidade indígena
como uma minoria étnica que busca a efetivação desse direito
e por consequência uma transformação cultural. E por fim se
buscará elucidar o efetivo exercício da cidadania por meio dos
direitos civis e dos novos “direitos multiculturais” voltados
para as populações indígenas
Portanto, o que essa minoria étnica busca é a valorização
dessa identidade, o respeito às diferenças e o reconhecimento
de sua existência em um contexto multicultural.

FUNDAMENTOS DA CIDADANIA
Para a melhor elucidação do tema a ser abordado no pre-
sente ensaio, inicialmente se faz necessário tecer alguns apon-
tamentos acerca do que é cidadania, termo que é cotidiana-
mente utilizado, mas que possui um significado muito complexo.
A concepção de cidadania no estado Moderno nasceu na
Idade Média e a ampliação desse conceito se deu com a incor-
poração de novos direitos no decorrer da história1.

1
HERKENHOFF, João Baptista. Como funciona a cidadania. 2 ed.
Manaus: Editora Valer, 2001.p. 33.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
865
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

Não obstante isso, a palavra cidadania remonta a Roma


antiga onde era utilizada para indicar a situação política de
uma pessoa e os direitos que esses indivíduos possuíam ou
podiam exercer, salientando-se que somente os romanos livres
tinham cidadania, e destes somente os que possuíam cidada-
nia tiva podiam participar das atividades políticas e ocupar
cargos administrativos2.
No decorrer da história da humanidade, já no início dos
tempos modernos, séculos XVII e XVIII emerge o absolutismo
onde os reis governavam sem nenhuma limitação, com poderes
absolutos e incontestáveis3.
Refere Flávia Piovesan4 que diante do absolutismo, os
burgueses e os trabalhadores já não mais suportavam as arbi-
trariedades e as injustiças praticadas pelos reis e pela nobreza
se fazendo então necessário uma reação destes para evitar os
excessos, o abuso e o arbítrio do poder.
Assim, em face desta ascensão da burguesia, segundo a
mesma autora “o discurso liberal da cidadania nascia no seio
do movimento pelo constitucionalismo e da emergência do es-
tado liberal sob a influência de ideias de Locke, Montesquieu e
Rosseau”5.
Nesse sentido aduz Nelson Saldanha.
O Estado Liberal, teoricamente nascido do consentimen-
to dos indivíduos, tinha por finalidade fazer valerem os
direitos destes. Daí a necessidade de estabelecer os limi-
tes do poder, mais as relações entre este poder e aqueles
direitos. Ou seja, o Estado existiria para garantir tais di-
reitos. No entendimento liberal ortodoxo, portanto, o Es-
tado deveria ter por núcleo um sistema de garantias, e a
primeira garantia seria a própria separação dos poderes.
Daí a fundamental e primacial relevância do ‘princípio’ da

2
DALLARI, Dalmo. A cidadania e sua história. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/sos/textos/historia.htm
3
Idem
4
PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. 3 ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 184.
5
Idem.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
866
Monia Peripolli Dias

separação dos poderes, um tema já legível em Aristóte-


les, retomado por Locke e reformulado com maior eficácia
por Montesquieu.6

Deste modo, pode-se dizer que a cidadania emergiu con-


comitantemente com o surgimento dos direitos humanos que
traz, na concepção de Estado Moderno, em sua essência a re-
flexão acerca das liberdades e da igualdade.
Nesse contexto, pode-se dizer que o indivíduo passa a ser
reconhecido como um sujeito de direitos de cidadania com a
Declaração do Homem e do Cidadão. Tal direto fora institucio-
nalizado ao longo da história de acordo com as novas deman-
das dos cidadãos, em especial, com a afirmação dos direitos
civis e políticos, chamados de primeira dimensão e os direitos
econômicos sociais e culturais, também chamados de segunda
dimensão7.
Os direitos civis e políticos ou direitos de primeira dimen-
são foram afirmados como direitos do indivíduo frente ao poder
soberano do Estado absolutista.8
Os direitos civis surgiram com as declarações de direitos
em 1776, com a Declaração de Virgínia e 1789 com a Declara-
ção Francesa, os direitos políticos por sua vez, tiveram sua
fundação no século XIX e também são denominados de liber-
dades políticas9.
De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet10 estes direitos tem
um cunho negativo ao passo que são regulados a uma absten-
6
SALDANHA, Nelson. O estado moderno e a separação dos poderes. São
Paulo: Saraiva, 1987. p. 38.
7
CORREA, Darcisio. OLIVEIRA, Janassana Indiara de Almeida de. A
questão da cidadania na Reserva Indígena do Guarita. Ijuí: Unijui,
2005. p.26-27.
8
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma
teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.
10 ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009,
p. 46.
9
CORREA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico
políticas. 3 ed. Ijuí: Unijuí, 1999.
10
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma
teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
867
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

ção por parte dos poderes públicos, sendo nas palavras do au-
tor “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.
Os direitos civis, segundo Norberto Bobbio, abrangem
“todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Esta-
do e a reservar para o indivíduo ou para os grupos particulares
uma esfera de liberdade em relação ao Estado.”11
Dentre os direitos civis pode-se elencar as liberdades físi-
cas, aqui incluído o direito a vida, liberdade de locomoção, di-
reito a segurança individual, direito a inviolabilidade de domi-
cílio e direitos de reunião e associação; as liberdades de ex-
pressão que compreendem a liberdade de imprensa, direito a
livre manifestação do pensamento e direito ao sigilo de corres-
pondência; a liberdade de consciência que inclui filosofia, polí-
tica e religião; o direito a propriedade privada; os direitos da
pessoa acusado que contêm o direito ao princípio da reserva
legal; direito a presunção de inocência e direito ao devido pro-
cesso legal, e por último as garantias dos direitos dentre elas o
direito de petição, direito ao habeas corpus, direito ao habeas
data, mandado de injunção e mandado de segurança.
Os direitos políticos, ao contrário dos direitos civis, são
considerados direitos positivos, isto é, são direitos de partici-
par no Estado, na formação do poder político e são classifica-
dos como direito ao sufrágio universal, direito de constituir
partidos políticos e direito de plebiscito, de referendo e de ini-
ciativa popular12.
A segunda dimensão de direitos econômicos, sociais e
culturais nasceu no século XX e foi caracterizado por uma nova
ordem social. Uma das principais causas de sua existência se
deve aos intensivos conflitos de classes, na relação capi-
tal/trabalho, fruto dos movimentos reivindicatórios dos traba-
lhadores. Esta nova ordem social expele uma nova estrutura-

10. ed. rev. atual. e ampl.Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009,
p. 47.
11
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
12
BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o Neoliberalismo. 3.
ed. rev. ampl. Ijuí:Unijuí, 2002, p. 56-57.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
868
Monia Peripolli Dias

ção dos direitos fundamentais não mais sedimentada no indi-


vidualismo puro do modelo anterior.
Fala com propriedade Ingo Wolfgang Sarlet13 ao referir
que:
A nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positi-
va, uma vez que se cuida não mais de evitar a interven-
ção do Estado na esfera da liberdade individual, mas,
sim, na lapidar formulação de C. Lafer, de propiciar um
‘direito de participar do bem-estar social’.

Deste modo, diferentemente da primeira dimensão que


determinava a abstenção do Estado para o livre exercício dos
direitos do cidadão, a segunda pleiteia a efetiva presença do
Estado para assegurar os direitos do homem trabalhador.
Destarte, os direitos fundamentais da segunda geração se
tornam tão essenciais quanto os direitos fundamentais da pri-
meira geração, tanto por sua universalidade quanto por sua
eficácia.
Parte dos direitos de segunda dimensão trata-se de direi-
tos individuais dos trabalhadores, dentre eles o direito a liber-
dade de trabalho, direito ao salário mínimo, direito a jornada
de trabalho, direito de descanso semanal remunerado, direito a
férias anuais remuneradas, e direito de igualdade de salários
entre os trabalhadores iguais14.
Deste modo, os direitos fundamentais de segunda dimen-
são abrangem mais que os direitos de cunho prestacional,
passando a ser considerado como marco distintivo desta nova
fase de evolução dos direitos fundamentais15.
13
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma
teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10.
ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009, p.
47.
14
BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o Neoliberalismo. 3.
ed. rev. ampl. Ijuí: Unijuí, 2002, p. 58.
15
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma
teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10.
ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009, p.
48.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
869
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

Segundo Darcísio Correa e Janassana Indiara de Almeida


de Oliveira16, foi somente no século XX com as Constituições
ocidentais que a afirmação dos direitos a cidadania consegui-
ram êxito através da contemplação dos direitos a solidariedade
incluindo-se aqui os direitos das minorias étnicas e dentre elas
os povos indígenas17.
Ultrapassados os aspectos históricos é importante con-
ceituar cidadania. Para Liszt Vieira18, citando Janoski, “cidada-
nia é a pertença passiva e ativa de indivíduos em um Estado-
nação com certos direitos e obrigações universais em um es-
pecífico nível de igualdade.”
O mesmo autor citando Turner “considera a cidadania
como um conjunto de práticas políticas, econômicas, jurídicas
e culturais que definem uma pessoa como membro competente
da sociedade.”19
Já Correa 20 refere que cidadania “significa a realização
democrática de uma sociedade compartilhada por todos os
indivíduos ao ponto de garantir a todos o acesso ao espaço
publico e condições de sobrevivência digna, tendo como valor-
fonte a plenitude da vida.”
Ou ainda, “[...] a cidadania é fundamentalmente o proces-
so de construção de um espaço público que propicie os espa-
ços necessários de vivencia e de realização de cada ser huma-
no em efetiva igualdade de condições, mas respeitadas as dife-
renças de cada um.”21
Em resumo, por cidadania se entende a igualdade de
oportunidades e condições fundamentais para todos, mas com

16
CORREA, Darcisio. OLIVEIRA, Janassana Indiara de Almeida de. A
questão da cidadania na Reserva Indígena do Guarita. Ijuí: Unijui,
2005.p.26-27.
17
Idem. p.26-27.
18
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. Rio de Janeiro: Record,
2001. p 34.
19
Idem, p 35.
20
CORREA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico
políticas. 3 ed. Ijuí: Unijuí, 1999. p. 217.
21
Idem. p. 221.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
870
Monia Peripolli Dias

respeito às particularidades de cada indivíduo e no caso espe-


cífico dos povos indígenas a preservação de seu modo de vida,
sua cultura e suas tradições a partir do reconhecimento do di-
reito a diferença .

POVOS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA


As questões indígenas na América Latina voltaram a
emergir no cenário político internacional a partir do resgate da
sua identidade etnocultural e pela sua organização política, o
que vem possibilitando a apresentação de suas demandas ao
Estado no que consiste na busca de seus direitos e o reconhe-
cimento de sua existência enquanto pessoas humanas e cida-
dãs, detentoras de cultura e modo de vida próprios, diversos
da cultura preponderante. 22
Para compreender esse resurgimento da identidade indí-
gena ou etnocultural é importante, inicialmente, conceituar o
que é identidade. Para Charles Taylor é a maneira como uma
pessoa, ou um povo se define, são suas características, sua
individualidade, o modo como são reconhecidos por si mesmos
e pelos outros23.
Já Sylvia Caiuby Novaes citando Mezan refere que a iden-
tidade não é mero sentimento subjetivo, mas laços culturais de
classe, de profissão, de sexo, de comunidade lingüística ou
étnica, enfim, é o que torna possível a localização do individuo
no conjunto do socius, por meio dos papeis e funções que cada
qual desempenha nas várias instâncias coletivas24.
Nesse diapasão Chales Taylor refere ainda que:
A tese consiste no fato de nossa identidade ser formada,
em parte, pela existência e inexistência de reconheci-

22
PADUA, Adriana Suzart de Pádua. Nova realidade dos povos indígenas.
Jornal Mundo Jovem, edição nº 405, abril de 2010, p 5.
23
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. p.
45.
24
NOVAES, Sylvia Caiuby. Jogo de Espelhos: Imagens da representação
de si através dos outros. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1993. p. 59.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
871
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

mento, e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorreto


dos outros, podendo, uma pessoa ou grupo de pessoas,
serem realmente prejudicadas, serem alvos de uma ver-
dadeira distorção, se aqueles que os rodeiam reflectirem
uma imagem limitativa, de inferioridade ou de desprezo
pelos mesmos.25

No mesmo sentido, afirma Stuart Hall26 que “A identidade


torna-se uma celebração móvel: formada e transformada conti-
nuamente em relação às formas pelas quais somos represen-
tados ou interpelados nos sistemas cultuais que nos rodeiam”.
O mesmo autor refere ainda que as identidades são cons-
truídas dentro do discurso e da representação narrativa. Vincu-
ladas a interesses de poder e a um processo de invenção ima-
ginária, as identidades são produzidas por intermédio de prá-
ticas discursivas e estratégias enunciativas específicas27.
Neste contexto a comunidade internacional convencionou
aceitar, a priori, o auto reconhecimento, baseado em elementos
constituintes como sua história, relação geográfica, identidade
cultural, social, política, econômica, etc. como parâmetro para
definir a existência de um povo e de seus indivíduos28.
As noções de descendência e de auto reconhecimento es-
tão presentes nas principais definições de povos indígenas,
como por exemplo, a adotada pela Anistia Internacional, ori-
unda da Convenção 169 da Organização Internacional do Tra-
balho (OIT):
[...] indígenas pelo fato de descender de populações que
habitavam no país ou em uma região geográfica a que
pertence o país na época da conquista ou a colonização
ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e
25
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. p.
45.
26
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed.
Tradução de Tomás Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006. p. 13.
27
Idem. p. 270-271.
28
RELATÓRIO AZUL. Povos indígenas, Comissão de Cidadania e Direitos
Humanos – Assembleia Legislativa –RS, 1997, p. 103.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
872
Monia Peripolli Dias

que, qualquer que seja sua situação jurídica , conservam


todas suas próprias instituições sociais, econômicas, cul-
turais e políticas, ou parte delas [...]29

Outra definição importante é a da Organização das Na-


ções Unidas (ONU), formulada pelo Grupo de Trabalho sobre
Populações Indígenas da Subcomissão de Prevenção da Dis-
criminação e de Proteção das Minorias:
[...] Comunidades, povos e nações indígenas são aquelas
que [...], se consideram a si mesmas diferentes de outros
setores da população [...]. Pelo momento eles não são
parte dos setores dominantes da sociedade e estão deci-
didos firmemente a manter seus territórios ancestrais e
sua identidade étnica [...]30

Deste modo, um conceito amplo do que é ser índio seria:


“índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma
comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente di-
versa da nacional e é considerada indígena pela população
brasileira com quem está em contato”31.
Especificamente no Brasil o Estatuto do Índio de 1973 diz
que é indígena “todo indivíduo de origem e ascendência pré-
colombiana que se identifica e é identificado como pertencente
a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem
da sociedade nacional”32.
Diante deste conceito e partindo-se do ponto do resgate
da identidade étnica cultural pode-se dizer que o ressurgimen-
to dos povos indígenas, se deu da necessidade de se afirma-
rem como povos diferentes, com uma identidade, uma cultura,
um modo de ser, de agir, de pensar distinto da cultura prepon-
derante da America Latina.

29
RELATÓRIO AZUL. Povos indígenas, Comissão de Cidadania e Direitos
Humanos – Assembleia Legislativa –RS, 1997, p. 103.
30
Idem, p. 103.
31
Idem, p. 103.
32
Art. Lei nº. 6.001, de 19.12.1973.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
873
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

Essa emergência repercutiu em mudanças legislativas,


em especial das constituições de vários países da América La-
tina, do qual pode-se citar a Constituição do Brasil, da Colôm-
bia, da Venezuela, do Equador e da Bolívia33.
Especificamente tratando-se da Constituição Brasileira de
1988 fora reconhecido e assegurado aos povos indígenas o
respeito à sua organização social, línguas, crenças e tradições,
ou seja, houve uma ruptura na tradição secular ao se reconhe-
cer aos índios o direito de manter a sua própria cultura.
Em outras palavras os preceitos constitucionais reconhe-
cem aos índios o direito à diferença, isto é, de serem índios e
de permanecerem como tal indefinidamente.
Segundo preceitua Antonio Flavio Pierucci34 ao se referir à
produção da diferença este identifica as perspectivas definidas
como “multiculturalistas”, ou seja, afirma-se cada vez mais o
primado da diferença, onde as “múltiplas etnicidades”, as
“múltiplas culturas”, são categorias de análise que caracteri-
zam todo o processo gerado pela valorização da diferença no
mundo contemporâneo.
Assim, na atual conjuntura da sociedade multicultural pa-
rece até mesmo incoerente, a necessidade desses grupos mi-
noritários, como é o caso dos índios, lutarem por uma política
identitária, lutarem pelo reconhecimento do direito de viver a
sua própria cultura, ou seja, de buscarem a afirmação das dife-
renças.
Deste modo, em vista da sociedade atual ser multicultural
se tem uma nova definição do conceito de igualdade, ou seja,
busca-se uma concepção de igualdade na diferença “uma igual
dignidade em sermos reconhecidos como diferentes”35.

33
BELLO, Enzo. Política, Cidadania e Direitos Sociais: Um contraponto
entre os modelos clássicos e a trajetória da América Latina. Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007. Dissertação de Mestrado,
Pontifícia Universidade Católica, 2007. p.142.
34
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: 34, 1998.
35
SANTOS, Andre Leonardo Copetti. A constituição Multicultural. In:
Diálogos e Entendimentos direito e multiculturalismo & cidadania e

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
874
Monia Peripolli Dias

Nesse sentido, verifica-se que houve um deslocamento


dos interesses, pois não se busca mais a afirmação dos direitos
na questão da igualdade posta como a igualdade de todos os
seres humanos, independentemente das origens raciais, da
nacionalidade, das opções sexuais, etc., mas as lutas passa-
ram a se centrar na afirmação da diferença36.
A luta do povo indígena pelo direito à diferença se justifi-
ca e tem como ponto principal a contraposição ao princípio
universalista moderno, uma vez que a condição específica de
alguns sujeitos, no caso os índios, não estão contemplados
nesse âmbito social e político37.
Por esta razão, sendo os índios um grupo étnico diferen-
ciado, vem reivindicando essa identidade a fim de afirmar-se
dentro da sociedade envolvente, que deverá respeitar suas
especificidades, principalmente no que diz respeito ao reco-
nhecimento de serem índios e de permanecerem como tal inde-
finidamente.

A BUSCA PELA EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA NO CENÁRIO


LATINO-AMERICANO
No cenário latino americano a cidadania se desenvolveu
de modo tardio e com um processo histórico diverso do euro-
peu visto que iniciou-se em meio a regimes burocráticos-
ditatoriais e teve a inclusão dos direitos sociais, não como fru-
tos de conquistas populares mas concebidos pelo senso co-
mum como dádivas concedidas por governantes populistas.38

novas formas de solução de conflitos.______ e Florisbal de Souza


Del’Olmo (org). Rio de Janeiro:Forense, 2009, p. 83.
36
CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e intercul-
turalidade:as tensões entre igualdade e diferença. In: Revista Brasileira
de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008.
37
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: 34, 1998.
38
BELLO, Enzo. Política, Cidadania e Direitos Sociais: Um contraponto
entre os modelos clássicos e a trajetória da América Latina.Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007. Dissertação de Mestrado,
Pontifícia Universidade Católica, 2007. p.122.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
875
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

Assim, em muitos países do continente latino-americano


os direitos civis e os novos “direitos multiculturais” voltados pa-
ra as populações indígenas ainda estão sendo implementados39.
Segundo Enzo Bello foi apenas nas ultimas décadas que
se deu o fim dos regimes autoritários e a retomada da demo-
cracia nos países latinos Americanos e que iniciou-se um reco-
nhecendo-se das demandas de grupos sociais minoritários
com a implementação de políticas públicas destinadas à cons-
trução da cidadania40.
Nesse sentido Enzo Belle aduz que:
[...] a cidadania ampliada (ou nova cidadania) representa,
além do reconhecimento de novos direitos a personagens
antigos, e de direitos antigos a novos personagens, a
constituição de sujeitos sociais ativos e de identidades
coletivas em meio a um cenário político e social revigora-
do. Com as devidas escusas pela extensão do texto, vale
conferir as características dessa nova concepção de ci-
dadania – identificada a partir do contexto brasileiro, po-
rém de indubitável verificação no contexto geral da Amé-
rica Latina.41

Neste contexto o Brasil com a promulgação da Constitui-


ção Federal de 1988 reconheceu os direitos indígenas em es-
pecial o direito a diferença conforme já mencionado no tópico
anterior o que possibilitou que esse povo originário pudesse se
organizar e atuar frente ao Estado e organizações supranacio-
nais de maneira mais ativa, ou seja, as lutas sociais indígenas
representam um avanço contra a exclusão históricas a que fo-
ram sujeitados42.

39
BELLO, Enzo. Política, Cidadania e Direitos Sociais: Um contraponto
entre os modelos clássicos e a trajetória da América Latina.Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007. Dissertação de Mestrado,
Pontifícia Universidade Católica, 2007. p.123.
40
Idem. p.123.
41
Idem. p.141.
42
CORREA, Darcisio. OLIVEIRA, Janassana Indiara de Almeida de. A
questão da cidadania na Reserva Indígena do Guarita. Ijuí: Unijui,
2005. p. 35.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
876
Monia Peripolli Dias

Seguindo o exemplo do Brasil vários outros países latino-


amecianos contemplaram as questões inerentes aos povos in-
dígenas e às especificidades sócio-culturais em suas constitui-
ções, dentre eles pode-se citar: “Colômbia (1991): arts. 1, 25,
38, 39, 42 a 77, 150 (19.f) e 215; Paraguai (1992): arts. 1, 6, 66 e
68 a 100; Peru (1993): arts. 2.15 e 4 a 29; Equador (1998): arts. 1,
23.20 e Cap 4 (30-82); Venezuela (2000): art. 2 e 75 a 118; e Bo-
lívia (1967; reformada em 2002): arts. 1, II; 6, III; 7, a, d, e, f, k;
132; 156 a 164 e 177 a 192.”43
Nesse contexto, refere-se que essa previsão legal de di-
reitos impulsionou a tomada de posição dos povos indígenas
no cenário político internacional pela eleição de alguns presi-
dentes índios ou mestiços em países sul-americanos, como Evo
Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, e Hugo Chávez,
na Venezuela o qual têm promovido diversas mudanças consti-
tucionais buscando a garantia e a efetivação dos direitos indí-
genas como por exemplo a diminuição da pobreza e da exclu-
são dos povos indígenas. 44
Porém, não obstante o reconhecimento legal dos direitos
indígenas que visam dar efetividade ao exercício da cidadania
a estes povos o fenômeno da globalização vem comprometen-
do seriamente este objetivo, pois vem acarretando a perda das
raízes socioculturais e das condições econômicas de sobrevi-
vência dos povos indígenas45.
Se está, assim, diante de um paradoxo pois se por um la-
do as identidades étnicas calcadas no direito a diferença estão
lutando em prol de mais reconhecimento, por outro há o fenô-
meno da globalização, que impõe uma homogeneização eco-
nômica e cultural da America latina.

43
BELLO, Enzo. Política, Cidadania e Direitos Sociais: Um contraponto
entre os modelos clássicos e a trajetória da América Latina.Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007. Dissertação de Mestrado,
Pontifícia Universidade Católica, 2007. p.142.
44
PADUA, Adriana Suzart de Pádua. Nova realidade dos povos indígenas.
Jornal Mundo Jovem, edição nº 405, abril de 2010, p. 5.
45
CORREA, Darcisio. OLIVEIRA, Janassana Indiara de Almeida de. A
questão da cidadania na Reserva Indígena do Guarita. Ijuí: Unijui,
2005. p. 32.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
877
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

Nessa linha de entendimento Stuart Hall menciona “O pri-


meiro efeito tem sido o de contestar os contornos estabelecidos
da identidade nacional e o de expor seu fechamento às pressões
da diferença, da “alteridade” e da diversidade cultural.”46
Neste aspecto, não é mais possível pensar em cidadania
como um conjunto de papéis sociais que colocam o indivíduo
em relação direta com o Estado-Nação, como identidade naci-
onal e vinculo político47.
Segundo João Martins Bertaso o grande desafio da atua-
lidade é compreender a cidadania “independentemente das
identidades que possam ter as pessoas e as comunidades em
particular”, pois houve um deslocamento das identidades de
uma única base nacional e o reconhecimento das diferenças
como principais fontes de identidades em sociedades multi-
culturais48.
Nesse sentido refere Liszt Vieira
Nas sociedades multiculturais, a cidadania é uma dimen-
são política diferente da base étnica cultural do Estado-
nação. O estado é o lugar de todos os cidadãos mas a
pessoa humana é mais que um cidadão nacional: é judeu,
católico, mulher, negro etc.49

É neste contexto multicultural que as questões inerentes


aos povos indígenas especificamente quando a efetivo exercí-
cio da cidadania não pode mais ser apenas definidas por legis-
lações e políticas específicas de Estados-Nacionais soberanos,
mas esse processo precisa ser concebido como a construção

46
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed.
Tradução de Tomás Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006. p. 83.
47
BERTASO, João Martins. Cidadania, solidariedade e com-vivencia: a
dimensão do amor da cidadania. In Cidadania e interculturalidade:
produção associada ao projeto de pesquisa “Cidadania e
Interculturalidade”. Organização João Martins Bertaso. Santo
Ângelo:FURI, 2010., p 18.
48
Idem. p 18.
49
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. Rio de Janeiro: Record,
2001. p 35.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
878
Monia Peripolli Dias

de uma “comunidade intercultural”, norteada por regras claras


e estabelecidas por consenso explícito, na qual se expressam e
interagem os interesses e os valores divergentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conceito de cidadania vem sofrendo diversas transfor-
mações e está assumindo cada vez mais um caráter multidi-
mensional uma vez que vem abarcando a questão do reconhe-
cimento das minorias étnicas e ampliando a sua titularidade
para novos sujeitos antes excluídos.
Sob esse prisma os povos indígenas latino-americanos
buscam a igualdade de oportunidades e condições fundamen-
tais elencadas a todos, mas com respeito às suas particulari-
dades como a preservação de seu modo de vida, sua cultura e
suas tradições a partir do reconhecimento do direito a diferença.
Reivindicam, assim, o efetivo exercício da cidadania indí-
gena que ainda é um direito que encontra-se em aberto, lutam
pelo respeito as condições peculiares objetivando a valorização
daqueles que compõe essa minoria a fim de afirmar-se dentro
da sociedade envolvente, que é multicultural.
Portanto, não basta o direito a cidadania e liberdades in-
dígenas estarem positivados se os mesmos não tiverem efeti-
vidade. O que esse povo quer e busca é que na prática os
mesmos sejam concretizados e devidamente respeitados.

REFERÊNCIAS
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3. ed. rev. ampl. Ijuí:Unijuí, 2002.
BELLO, Enzo. Política, Cidadania e Direitos Sociais: Um contraponto
entre os modelos clássicos e a trajetória da América Latina. Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007. Dissertação de Mes-
trado, Pontifícia Universidade Católica, 2007.
BERTASO, João Martins. Cidadania, solidariedade e com-vivencia:a
dimensão do amor da cidadania. In: Cidadania e interculturalidade:
produção associada ao projeto de pesquisa “Cidadania e Intercultu-

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
879
A busca da efetivação do direito à cidadania pelos povos indígenas...

ralidade” Organização João Martins Bertaso. Santo Ângelo:FURI,


2010.
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dade:as tensões entre igualdade e diferença. In: Revista Brasileira
de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008.
CORREA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico
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2005.
DALLARI, Dalmo. A cidadania e sua história. Disponível em: <http:
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Tradução de Tomás Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de
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HERKENHOFF, João Baptista. Como funciona a cidadania. 2 ed.
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NOVAES, Sylvia Caiuby. Jogo de Espelhos: Imagens da representa-
ção de si através dos outros. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1993.
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PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: 34, 1998.
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São Paulo: Saraiva, 1987.
SANTOs, Andre Leonardo Copetti. A constituição Multicultural. In:
Diálogos e Entendimentos direito e multiculturalismo & cidadania
e novas formas de solução de conflitos._____ e Florisbal de Souza
Del`Olmo (org). Rio de Janeiro:Forense, 2009
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma
teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.
10 ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed.,
2009.
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. Rio de Janeiro: Record,
2001.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
O INSTITUTO MEDIAÇÃO
COMO POLÍTICA PÚBLICA DE
INCLUSÃO SOCIAL E FACILITADORA
DO ACESSO À JUSTIÇA

Nadja Caroline Hendges


Acadêmica do curso de graduação em Direito, da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Campus Santo Ângelo, pes-
quisadora. (nadja_locke@hotmail.com)
Janete Rosa Martins
Mestre em Direito pela UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul. Pro-
fessora da graduação e da especialização, pesquisadora em mediação.
(janete@urisan.tche.br)

Resumo
O Poder Judiciário não consegue mais dar conta de suas atividades, seja por falta de
servidores públicos, seja pelo grande número de demanda processual ou pela falta
de sensibilidade de lidar com os conflitos. Para tanto, faz-se necessária a utilização
de novas formas de tratamento para solucionar os conflitos judiciais. A mediação é
um desses institutos que propõem opções diferenciadas aos conflitantes. Diante
disso questiona-se: De que forma a mediação pode atuar como política pública de
inclusão social e facilitadora de acesso à justiça? A mediação é um método alternati-
vo de tratamento de conflito que está cada vez mais presente no mundo globalizado,
sendo considerada, como um novo paradigma na resolução de conflitos, na medida
em que é confidencial, mais econômica, célere, voluntária e preserva o poder das
partes de decidirem qual o melhor acordo, uma vez que nem sempre uma decisão
baseada no direito é a mais justa. A mediação contribui para a cidadania e participa-
ção das pessoas, baseada na autonomia de cada indivíduo, na construção de alterna-
tivas e na decisão da melhor solução aos conflitos. As partes são dessa maneira,
capazes de realizar uma comunicação eficaz, tornando a mediação uma construção
satisfatória de problemas individuais. Para tanto, a busca junto ao Estado de uma
reestruturação que permita a participação da sociedade global de forma diferencia-
da de tratar os conflitos e a criação de novas oportunidades favoráveis ao compro-
metimento com os princípios universais de igualdade, liberdade e solidariedade.
Palavras-chave: Mediação, Políticas Públicas, Inclusão Social, Acesso à Justiça.

Abstract
The judiciary power can’t no longer cope with its activities, either for the lack of
servants, or the great number of procedural demand or the lack of sensitivity to deal
with conflicts. Therefore, it’s necessary to use new forms of treatment to solve legal
disputes. Mediation is one of those institutes wich offer different options to the
conflicting people. Given this wonder: How mediation can act as a public policy of
882
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins

social inclusion and facilitate the access to the justice? Mediation is an alternative
method of handling conflict that is even more present in the globalized world, con-
sidered as a new paradigm in conflict resolution, as it is confidential, more economi-
cal, faster, voluntary and preserve the power of the parties to decive what is the best
deal, since it is not always a decision based on the right the fairest. Mediation helps
to citizenship an people participation, based on the autonomy of each individual, to
build alternatives and decide the best solution to conflicts. The parties are able to
achieve effective communication, making mediation a satisfactory construction of
individual problems. Therefore, the search by the State of a restructuring that allows
the participation of global society in a different way of dealing with conflicts and
creating favorable new opportunities to the commitment with the universal princi-
ples of equality, freedom and solidarity.
Keywords: Mediation, Public Politics, Social Inclusion, Justice Access.

O INSTITUTO DA MEDIAÇÃO COMO MEIO ALTERNATIVO DE


TRATAMENTO DOS CONFLITOS
A mediação1 é um dos institutos mais antigos do mundo,
e, um meio eficaz de resolver conflitos, sem a busca do judiciá-
rio. Uma vez que o poder judiciário está abarrotado de proces-
sos não conseguindo dar conta de todas as questões jurídicas,
além da falta de servidores, e outras questões pertinentes que
impedem a sua funcionabilidade. É nesse sentido, que se pre-
tende analisar a mediação como um instrumento de tratamen-
to de conflitos.
A bíblia já se refere a Jesus como mediador entre Deus e
os homens; o clero mediava as disputas familiares, os ca-
sos criminais e as disputas diplomáticas entre a nobreza.
As comunidades judaicas utilizavam a mediação que era

1
Sales traz um conceito mais adequado que representa o instituto da
mediação atualmente: “A mediação é um procedimento consensual de
solução de conflitos por meio do qual uma terceira pessoa imparcial –
escolhida ou aceita pelas partes – age no sentido de encorajar e facilitar
a resolução de uma divergência. As pessoas envolvidas nesse conflito
são as responsáveis pela decisão que melhor as satisfaça. A mediação
representa assim um mecanismo de solução de conflitos utilizado pelas
próprias partes que, movidas pelo diálogo, encontram uma alternativa
ponderada, eficaz e satisfatória.” (SALES, Lília Maia de Moraes.
Mediação de conflitos: Família, Escola e Comunidade. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2007. p. 23).
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
883
O instituto mediação como política pública de inclusão social...

praticada tanto por líderes religiosos quanto por políticos


para resolver diferenças civis e religiosas.2

A mediação começa quando as partes conseguem inter-


pretar o que as diferenciam umas das outras, e, algumas vezes
se colocando no lugar umas das outras, e analisando o conflito
de forma a reestabelecer o diálogo e a compreensão, deixando
de lado o ódio, dissabores, raiva e vingança. Buscando desen-
volver os conflitos e atentar para o entendimento em que as
partes possam obter um ganha/ganha3.
A mediação é a conduta em que um terceiro alheio ao fa-
to, busca aproximar as partes conflitantes, auxiliando e, até
mesmo instigando a sua composição, que há de ser decidida,
porém, pelas próprias partes.
Para tentar solucionar o conflito, portanto, surge a figura
do mediador, que é o terceiro imparcial. O conflito está na na-
tureza dos homens e deve ser resolvido de forma pacífica.
[...] a humanidade do homem não se cumpre fora do con-
flito, mas sim para lá do conflito. O conflito está na natu-
reza dos homens, mas quando esta ainda não está trans-
formada pela marca do humano. O conflito é o primeiro,
mas não deve ter a última palavra.4

A busca pela paz como prática da cultura no tratamento


de conflitos só vai ocorrer se houver a comunicação entre os
envolvidos e a busca da satisfação das necessidades individu-
ais e coletivas.
Para que haja satisfação das necessidades dos indivíduos
na prática da mediação, bem como a busca da plenitude do
tratamento de conflitos, faz-se necessário o respeito à dignida-

2
_ A evolução histórica da Mediação. Disponível em: ˂http://ufam.edu.br˃
Acesso em: 16 nov. 2013.
3
O ganha/ganha significa que as partes na mediação saem satisfeitas,
uma vez que ambas chegaram a uma solução sobre o impasse que tenha
gerado o conflito.
4
MULLER, Jean - Marie. Não-violência na educação. Tradução de Tonia
Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2006.

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884
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins

de da pessoa humana5, à cidadania e solidariedade entre as


comunidades. Dentro dessas perspectivas, apresenta-se o
princípio fundamental da solidariedade. Em conformidade com
Reis:
O fulcro principal do princípio da solidariedade está em
seu papel otimizador no reconhecimento dos direitos so-
ciais, diante das limitações criadas pelo Estado ao seu
total desenvolvimento. A busca pela identificação do pa-
pel deste princípio tão umbilicalmente ligado ao social, à
cidadania.6

A Mediação manifesta uma forma de autocomposição dos


conflitos, com auxílio de um terceiro imparcial, que nada deci-
de, mas apenas auxilia as partes na busca de uma solução. O
mediador, diferentemente do Juiz, não dá sentença; diferente-
mente do árbitro, não decide; diferentemente do conciliador,
não sugere soluções para o conflito. O mediador fica no meio,
não está nem de um lado nem de outro, não adere a menhuma

5
Em conformidade com Spengler e Bolzan, a mediação e a preocupação
com o respeito aos Direitos Humanos estão interligados. Desse modo,
todos podem usufruir dos seus direitos dentro dos liames do instituto da
mediação, onde deve haver a participação dos cidadãos e principal-
mente dos agentes políticos-jurídicos e sociais: “A preocupação com o
tema dos Direitos Humanos está presente desde há muito tempo nos
trabalhos jurídicos daqueles que se preocupam com a dignidade da vida
quotidiana dos indivíduos, bem como do ambiente [...] os Direitos
Humanos, como conjunto de valores históricos básicos e fundamentais,
que dizem respeito à vida digna jurídico-político-psíquico-econômico-
física e afetiva dos seres e de seu habitat,tanto daqueles do presente
quanto daqueles do porvir, surgem sempre como condição fundante da
vida. Assim, impõem aos agentes político-jurídico-sociais a tarefa de
agirem no sentido de permitir que a todos seja consignada a
possibilidade de usufruí-los em benefício próprio e comum ao mesmo
tempo. Da mesma forma como os Direitos Humanos se dirigem a todos,
o compromisso com a sua concretização caracteriza tarefa de todos, em
um comprometimento comum com a dignidade comum. (Ibidem. p. 15-
18).
6
REIS, Jorge Renato dos; FONTANA, Eliane. Direitos fundamentais
sociais e a solidariedade: notas introdutórias. In: Direitos Sociais e
Políticas Públicas – desafios contemporâneos. Tomo11, Santa Cruz do
Sul: Ediunisc, 2011. p. 114.
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das partes. Dessa maneira o mediador auxilia as partes para


que estas tenham a liberdade para gerir e chegar a uma solu-
ção satisfatória dos seus próprios conflitos.
Com o auxílio do mediador, os envolvidos buscarão com-
preender as fraquezas e fortalezas de seu problema, a fim
de tratar o conflito de forma satisfatória. Na mediação,
por constituir um mecanismo consensual, as partes apro-
priam-se do poder de gerir seus conflitos, diferentemente
da Jurisdição estatal na qual este poder é delegado aos
profissionais do direito, com prponderância àqueles in-
vestidos das funções jurisdicionais.7

Importante ressalatar algumas características do media-


dor8, como pondera Bolzan9 “[...] a paciência de Jó, a pele de

7
BOLZAN; SPENGLER, 2008. p. 134.
8
O autor Luis Alberto Warat em seu livro Surfando na pororoca: o ofício
do mediador, refere-se entre outras atribuições, as principais
características do mediador e da prática do instituto da mediação. Para
tanto, segundo o autor, faz-se necessário praticar o oficio de mediador
sempre com sensibilidade e simplicidade, respeitando o sentimento do
outro: “A mediação, em uma primeira aproximação, não seria outra coisa
do que a realização com o outro dos próprios sentimentos. Fazer
mediação nada mais é que viver, viver em harmonia com a própria
interioridade e com os outros, [...]. A mediação que realiza a
sensibilidade é uma forma de atingir a simplicidade do conflito. Tenta
que as partes do conflito se transformem descobrindo a simplicidade da
realidade. A mediação com sensibilidade é uma procura da
simplicidade.[...] A mediação não é uma ciência que pode ser explicada,
ela é uma arte que tem que ser experimentada. [...] Para ser mediador é
preciso ascender a um mistério que está além das técnicas de
comunicação e assistência a terceiros.[...] Para formar um mediador é
preciso levá-lo a um estado de mediação, ele deve estar mediado, ser a
mediação. Estar mediado é entender o valor de não resistir, de deixar de
estar prermanentemente em luta, tentando manipular em seu benefício,
a energia dos outros.” (WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca:
ofício do mediador. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri
Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2004. p. 28-31-34-38).
9
BOLZAN, José Luiz de Moraes. SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e
Arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p.163.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
886
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins

um rinoceronte, a sabedoria de Salomão, docilidade tanto


quanto vigor para resolver o conflito”, dentre outras.
Com a figura do mediador, o tratamento do conflito passa
a ser tratado de forma diferenciada, pois muitas vezes observa-
se pessoas magoadas, tristes e que por raiva e ódio, deixam e
procurar o diálogo entre si. Dessa forma, as partes sozinhas,
dificilmente irão reestabelecer o liame perdido. Esse reestabe-
lecimento do diálogo, segundo Bolzan e Spengler10 “[...] vai
acontecer diante de uma pluralidade de técnicas que vão des-
de a negociação até a terapia.”
O mediador deve saber se comunicar para o bom anda-
mento da mediação e o tratamento dos conflitos. Nesse senti-
do, Bolzan e Spengler ponderam ao ressaltar que:
É fundamental que o mediador, o responsável pelo bom
andamento do processo, seja hábil a fim de se comunicar
muito bem, sendo capaz de exprimir seus pensamentos
de forma simples e clara, porém apurada, e de receber os
pensamentos provenientes das partes sabendo interpre-
tá-los de acordo com a intenção de quem os exprimiu.
Afinal, é com as informações que recebe das mesmas que
o mediador poderá trabalhar a fim de trazer à tona as
possíveis estratégias de tratamento de conflito. 11

Portanto, é necessário, que o mediador compreenda as


partes para que possa solucionar o conflito de maneira satisfa-
tória, pois o mediador trabalha em função do procedimento.
Nesse caso, o tratamento do conflito é realizado de forma con-
sensual. Todavia, além disso, é necessário que o mediador rea-
lize sua própria tarefa de interpretação, com a hierarquização
axiológica das normas-princípios, a fim de oferecer a mais
adequada solução às partes envolvidas no conflito.
O conflito12 é o desentendimento entre duas ou mais pes-
soas sobre determinado assunto de interesse comum, nesse

10
MORAIS e SPENGLER, 2008, p. 136.
11
Idem, p. 164.
12
Segundo o posicionamento de Sales, o conflito é necessário, podendo
tornar-se positivo nas relações que estão sujeitas à boa administração e
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
887
O instituto mediação como política pública de inclusão social...

sentido, os conflitos representam as dificuldades que as pes-


soas têm de lidar com as diferenças nas relações por não haver
diálogo associado a um sentimento de impossibilidade de inte-
resse e necessidade de ponto de vista. Na relação humana é
normal haver conflitos, o que torna o conflito inexorável, é a
resposta que se dá e que o torna negativo ou positivo, constru-
tivo ou destrutivo.
A sociedade como um todo está acostumada ao conflito e
se baseia para resolver o mesmo através da imposição de deci-
sões, e não de forma negociada, onde as pessoas buscam o
diálogo para o entendimento do conflito entre as partes. Nesse
sentido, a sociedade deve buscar cada vez mais a utilizar o
diálogo como forma de resolver as questões interpessoais e
fazer com que a dignidade de cada pessoa seja respeitada de
forma absoluta no tratamento do conflito existente. Muitas ve-
zes os conflitos existem de forma aparente e não de forma real.
Freund manifesta que o conflito passa a ser uma maneira de
ter razão independentemente do tratamento e que,
[...] trata de romper a resistência do outro, pois consiste
no confronto de duas vontades quando uma busca domi-
nar a outra com a expectativa de lhe impor a sua solução.
Essa tentativa de dominação pode se concretizar através
da violência direta ou indireta, através da ameaça física
ou psicológica. No final, o desenlace pode nascer do re-
conhecimento da vitória de um sobre a derrota do outro.
Assim, o conflito é uma maneira de ter razão indepen-
dentemente dos argumentos racionais (ou razoáveis) [...].
Então, percebe-se que não se reduz a uma simples con-
frontação de vontades, idéias ou interesses. É um proce-

aplicação do instituto da mediação: “[...] o conflito e a insatisfação


tornam-se necessários para o aprimoramento das relações interpessoais
e sociais. O que se reflete como algo bom ou ruim para as pessoas é a
administração do conflito. Se for bem administrado, ou seja, se as
pessoas conversarem pacíficamente ou se procurarem a ajuda de uma
terceira pessoa para que as auxilie nesse diálogo – será o conflito bem
administrado. [...] não é o conflito que é ruim, pelo contrário, ele é
necessário. A sua boa ou má administração é que resultará em desfecho
positivo ou negativo. (SALES, 2007. p. 23-24).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
888
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins

dimento contencioso no qual os antagonistas se tratam


como adversários ou inimigos. [grifou-se]13

O conflito aparente é aquele em que os sentimentos são


expressados de forma errônea e o conflito real explica quais as
causas existentes do conflito, onde os sentimentos não são
demonstrados. A questão principal desse tipo de conflito é es-
condido pela parte e, muitas vezes, são mágoas, decepções,
tristezas, ressentimentos que devem ser tratados de forma a
trazer o indivíduo para o convívio social de forma mais branda.
É nessa situação que o Estado e a sociedade devem se utilizar,
forma eficaz, dos meios alternativos de tratamento de conflitos.
Dentre eles, a mediação.
O sistema da mediação está aberto a qualquer aspecto
que possa estar causando o conflito. O lado emocional e senso-
rial é extremamente importante na Mediação. Nesse sentido,
pondera Warat:
Não é possível abordar um processo de mediação por
meio de conceitos empíricos, empregando a linguagem
da racionalidade lógica. Os conflitos reais, profundos, vi-
tais, encontram-se no coração, no interior das pessoas.
Por isto é preciso procurar acordos interiorizados. 14

Na mediação, é essencial a percepção do conflito como


um todo, para que as partes sintam e respeitem suas diferen-
ças. O sistema jurídico positivo procura mais estabelecer a uni-
formidade, eliminar os desvios, penalizar os culpados, obter a
normalidade comportamental. Assim, o referido instituto traba-
lha, também, com o potencial transformador dos desvios para
integrá-los na formulação de uma nova solução. Ademais, en-
cara o poder emancipatório, que existe em todo sistema jurídi-
co, como fator mais importante do que o poder normativo. Uma

13
MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e
Arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008, p. 46.
14
WARAT, Luis Alberto. O oficio do mediador. Florianópolis, SC: Habitus,
2001. p. 35.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
889
O instituto mediação como política pública de inclusão social...

sociedade para ser justa precisa, sem dúvida, de um mínimo


de leis, porém precisa da indispensável internalização subjeti-
va dos valores éticos e morais. Sendo citada a mediação como
exemplo de ética, pois é um modelo que está em moda e que
procura satisfazer os anseios da sociedade moderna.

A MEDIAÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA DE INCLUSÃO SOCIAL E


FACILITADORA DO ACESSO À JUSTIÇA
Dando continuidade à participação ativa das comunida-
des e da sociedade em geral na busca pela solução dos confli-
tos individuais e coletivos, cabe ressaltar a necessidade da
participação do Estado e esta se dá através da criação de polí-
ticas públicas e o acesso à justiça, no cumprimento dos princí-
pios constitucionais e garantistas de direitos fundamentais a
todos os cidadãos.
As políticas públicas são as ações empreendidas pelo Es-
tado para efetivar as prescrições constitucionais sobre as ne-
cessidades da sociedade, na construção de uma cidadania par-
ticipativa e democrática e igualdade de direitos. Como o pró-
prio ensaio afirma, as políticas públicas devem começar pelo
desenvolvimento local, pois permite uma maior participação
dos cidadãos, proporcionando um sentimento de solidariedade
e estreitando laços de confiança em sua comunidade.
O acesso à justiça é um direito fundamental previsto na
Constituição Federal15 é antes de tudo uma reflexão, deixou de
ser tema teórico para configurar-se no texto constitucional e,

15
O acesso à justiça está previsto na Constituição Federal de 1988
possuindo a seguinte redação: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito.” (BRASIL, Constituição da República
Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2009).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
890
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins

especialmente, tornar-se dinâmico através do operador jurídi-


co16.
Nesse sentido, o acesso à justiça era reconhecido como
um direito natural e estes pertenciam à esfera individual de
conveniências, órbita na qual, o Estado não ingeria. Com isto,
reservava-se a justiça àqueles que tinham conhecimento de
seus direitos e podiam arcar com os custos de sua obtenção.
Aqueles que não tivessem meios ou conhecimento para buscar
a Justiça estavam condenados à própria sorte.
Além das políticas públicas e do acesso à justiça, é ne-
cessário que haja inclusão social. Segundo Sales:
A mediação é um meio de solução de conflitos que requer
a participação efetiva das pessoas [...] como representa
mecanismo informal e simples de solução das controvér-
sias, exigindo ainda um procedimento diferenciado, no
qual há uma maior valorização dos indivíduos do que de
documentos ou maiores formalidades, percebe-se, de lo-
go, um sentimento de conforto, de tranquilidade e de in-
clusão.
[...] dessa maneira, apresenta forte impacto direto na me-
lhoria das condições de vida da população, na perspecti-
va do acesso à justiça, na conscientização de direitos, en-
fim, no exercício da cidadania.17

Por outro lado, para que haja o acesso à justiça e a inclu-


são social, faz-se necessária a participação efetiva do Estado.
Para tanto, afirma-se que a função essencial do Estado Con-
temporâneo deriva da relação íntima entre criadora (a Socie-
dade) e a criatura (o Estado). A atual realidade requer um Es-
tado que além de administrativamente eficaz, tenha uma atua-
ção legítima e dinâmica direcionada à participação consciente
do Homem na busca pelo seu objetivo18.

16
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre:
Fabris, 1998. p. 24.
17
SALES, 2007. p. 37.
18
PASOLD, Cesar Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo.
Florianópolis: OAB/SC, 2003. p. 85-86.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
891
O instituto mediação como política pública de inclusão social...

Isto será feito através da dinâmica social que implica a


utilização do instrumento estatal em favor da criação e da
realização de condições de sensibilidade, racionalidade e
acessibilidade – com igualdade de possibilidades – para
o Homem, frente a alternativas efetivamente existentes
nos planos político, social, cultural e econômico 19.

A ação e o dever agir do Estado “[...] é uma função que se


deve irradiar por toda a estrutura e desempenho do Estado,
determinando o exercício dos seus poderes, a composição e o
acionamento de seus órgãos no cumprimento das respectivas
funções”20. O autor afirma que a Função Social deve atender à
AÇÃO e ao DEVER DE AGIR, entendendo-se por dever de agir,
os compromissos dinâmicos que o Estado Contemporâneo de-
ve ter para com a Sociedade. E, da mesma forma, a ação do
Estado, enquanto conjunto de compromissos claros mantidos
em consonância com o dever de agir, porém ativados no plano
concreto21.
O Dever de Agir compromete-se com políticas públicas
que uma dada Sociedade, num certo momento histórico,
decide devam ser consagradas em normas e ações, unin-
do-se vencidos e vencedores de um saudável conflito de
ideias que, de maneira natural e evidente antecede o es-
tabelecimento das políticas e o Dever de Agir22.

Por isso, a Função Social do Estado Contemporâneo re-


quer ações que, possuem a obrigação de executar, “respeitan-
do, valorizando e envolvendo o seu SUJEITO, atendendo o seu
OBJETO e realizando os seus OBJETIVOS, sempre privilegian-
do os Valores Fundamentais do Ser Humano”23. Nesse sentido,
a Função Social do Estado, busca atingir uma destinação evi-
dente: realizar a Justiça e, sobretudo, a Justiça Social, que, por
sua vez, somente apresentará condições de realização eficien-
19
Idem. Ibidem. p. 86.
20
Idem. Ibidem. p. 87.
21
Idem.Ibidem. p. 92-107.
22
Idem.Ibidem. p. 105.
23
Idem. Ibidem. p. 92-93.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
892
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins

te, se a sociedade contribuir para que cada pessoa receba o


que lhe é inerente à sua condição humana24. Portanto, o Estado
deve cumprir a sua função social e políticas públicas voltadas
ao bem estar dos cidadãos, para que assim, possa garantir a
dignidade humana como forma de inclusão social.
Porém, frente ao acesso à justiça e a inclusão social, exis-
tem outros problemas detectados na atuação do Estado e do
judiciário:
[...] a tutela estatal promovida através do processo está
em declínio, a descrença em tal solução em virtude da
demora e custos elevados, dentre outros fatores, acaba-
ram por conduzir a sociedade e os operadores do direito a
buscarem os chamados meios alternativos de solução de
conflitos.25

Os processos levam muito tempo para serem resolvidos,


enquanto na Mediação o tempo é diferenciado. Segundo Spen-
gler:
Ao contrário do processo e seu tempo, a mediação é um
procedimento de sensibilidade que institui um novo tipo
de temporalidade. No espaço informal da mediação, a
memória e os sentimentos não se encontrarm bloquea-
dos.26

Por sua vez, a Resolução n° 125, de Novembro de 2010 do


Conselho Nacional de Justiça27 ganha destaque pois se preo-
cupa em definir os institutos da mediação e conciliação, bem

24
Idem. Ibidem. p. 94-97.
25
REIS, Suelen Agnus dos. Meios Alternativos de Solução de Conflitos.
Disponível em: ˂http//www.bdjur.stj.gov.br˃. Acesso em: 16 jan 2013.
26
SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Editora Unijuí, 2010. p. 346.
27
Resolução 125 de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política
Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses
no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em:
˂http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323-
resolucoes/12243-resolucao-no-125-de-29-de-novembro-de-2010˃.
Acesso em 16 jan 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
893
O instituto mediação como política pública de inclusão social...

como meios de acesso à justiça entre outras atribuições, como


os meios necessários à sua implementação. Em conformidade
com Spengler e Bolzan:
No caso da mediação/conciliação como política pública
elas cumprem com um objetivo que é tratar de maneira
adequada os conflitos sociais pelos membros da própria
sociedade. Necessitam para serem implementadas da
alocação de meios (recursos humanos, treinamento ade-
quado e estrutura) por parte da administração pública.
Para fins de atingir seus objetivos, as políticas públicas
são formuladas mediante um processo que engloba todo
o procedimento de discussão, aprovação e implementa-
ção das mesmas. [...] a formulação de políticas públicas
enquanto atividade de planejamento sempre leva em
consideração o objetivo que pretende atingir, bem como
a finalidade almejada. [...] a mediação e a conciliação en-
quanto políticas públicas são alternativas que pretender
mais do que simplesmente desafogar o judiciário [...] é
uma forma de tratamento dos conflitos mais adequada,
em termos qualitativos.28

Portanto, para que haja a resolução eficaz dos conflitos


através da aplicação do instituto da mediação é necessária a
criação de políticas públicas, levando em consideração a parti-
cipação ativa de toda a sociedade, bem como do Estado e da
administração pública, sempre respeitando os preceitos cons-
titucionais e os direitos fundamentais. Além da necessidade de
implementar meios para que a mediação possa atingir seus
principais objetivos, a inclusão social e o acesso à justiça.
O tema da mediação como política pública de inclusão
social e facilitadora do acesso à justiça está em voga atual-
mente.Tendo em vista que poder judiciário não consegue mais
dar conta de suas atividades, seja por falta de servidores pú-
blicos, seja pelo grande número de demanda processual ou
pela falta de sensibilidade de lidar com os conflitos, faz-se ne-
cessária a utilização de novas formas de tratamento para solu-

28
BOLZAN; SPENGLER, 2008. p. 168-169.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
894
Nadja Caroline Hendges & Janete Rosa Martins

cionar os conflitos judiciais. Para tanto, a mediação é um des-


ses institutos que propõem opções diferenciadas aos conflitan-
tes.
A mediação possui papel importante na sociedade, sendo
necessária para o exercício da cidadania, bem como política
pública de inclusão social e acesso à justiça. O acesso ao insti-
tuto da mediação é um direito de todos os cidadãos e princi-
palmente dever do Estado, que deve sempre buscar respeitar
os preceitos constitucionais e o respeito aos direitos funda-
mentais, para que dessa forma, haja a participação ativa de
todos e a efetivação do acesso à justiça e da inclusão social.

REFERÊNCIAS
BOLZAN, José Luiz de Moraes. SPENGLER, Fabiana Marion. Media-
ção e Arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo:
Saraiva, 2009.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Ale-
gre: Fabris, 1998.
FERRAZ, Sergio. Manipulações biológicas e princípios constitucio-
nais: uma introdução. Porto Alegre: Sérgio Antonio Babris.
MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Media-
ção e Arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Li-
vraria do Advogado, 2008.
MULLER, Jean - Marie. Não-violência na educação. Tradução de
Tonia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2006.
PASOLD, Cesar Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo.
Florianópolis: OAB/SC, 2003.
REIS, Jorge Renato dos; FONTANA, Eliane. Direitos fundamentais
sociais e a solidariedade: notas introdutórias. In: Direitos Sociais e
Políticas Públicas – desafios contemporâneos. Tomo11, Santa Cruz
do Sul: Ediunisc, 2011.
REIS, Suelen Agnus dos. Meios Alternativos de Solução de Confli-
tos. Disponível em: ˂http//www.bdjur.stj.gov.br˃. Acesso em: 16 jan
2013.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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895
O instituto mediação como política pública de inclusão social...

Resolução 125 de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política


Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de inte-
resses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Dis-
ponível em: ˂http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-
presidencia/323-resolucoes/12243-resolucao-no-125-de-29-de-
novembro-de-2010˃. Acesso em 16 jan 2013.
SALES, Lília Maia de Moraes. Mediação de conflitos: Família, Escola
e Comunidade. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007.
SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma
outra cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Editora Unijuí, 2010.
WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: ofício do mediador.
Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José
Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2004.
WARAT, Luis Alberto. O oficio do mediador. Florianópolis, SC: Ha-
bitus, 2001.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
UMA ANÁLISE DA SOCIEDADE DE
RISCO E DO MEIO AMBIENTE FRENTE
A QUESTÃO DA PROTEÇÃO DAS
ÁGUAS SUBTERRÂNEAS

Natacha John
Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Graduada
pelo Centro Universitário Franciscano – UNIFRA. Integrante do grupo de
pesquisa Alfabetização Ecológica, Cultura e Jurisdição: uma incursão pelas
teorias da decisão (UCS). (natachajohn@hotmail.com)
Rachel Cardone
Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Graduada em Direito e Letras Português/Inglês pela Universidade Federal
de Rio Grande/RS (FURG). Especialista em Direito Civil e Empresarial pela
FURG. Advogada e Professora titular da Faculdade Anhanguera.
(www.rachelcardone.com.br).
Sergionei Correa
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (2005), Pós-
Graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília (2010), Mestre
pela Universidade de Caxias do Sul (2013). Experiência profissional na área
de Direito Previdenciário, tendo em vista o exercicio no cargo de analista
previdenciário no ano de 2006, ainda, experiência em Direito Penal e Pro-
cessual Penal, com ênfase para atuação no Tribunal de Jurí em decorrên-
cia do exercicio no cargo de Defensor Público no Estado do Rio Grande do
Sul no periodo de 2006 e 2007. Por fim, experiência na aréa Consultiva
Federal, em virtude do exercicio no cargo de Advogado da União de agos-
to de 2007 até dezembro de 2009 junto à Consultoria Juridica da União
em Brasília, bem como experiência na aréa Contenciosa Federal, pois atu-
almente trabalha no cargo de Advogado da União junto à Procuradoria da
União em Caxias do Sul. Ainda experiencia docencia junto ao curso de pós-
graduação em direito administrativo da UCS-campus de Vacaria.

Resumo
Este trabalho apresenta como tema central o estudo da proteção das águas subter-
râneas frente à sociedade de risco. Assim, tem-se como objetivo demonstrar como o
processo de modernização contribuiu para o surgimento da chamada sociedade de
risco e os perigos que ela apresenta na contaminação das águas subterrâneas. Desse
898
Natacha John, Rachel Cardone & Sergionei Correa

modo, utilizando o método hermenêutico de pesquisa pela natureza do estudo de-


senvolvido, por se adequar aos objetivos propostos e valendo-se da pesquisa biblio-
gráfica como fonte para a formação argumentativa, constatou-se ser necessária a
mudança nos padrões de comportamento adotados atualmente, tendo em vista a
gama de interesses e conflitos que estão envolvidos na questão da contaminação
das águas subterrâneas e também para prevenção dos riscos que oferecem para
sociedade.
Palavras-chave: Águas subterrâneas. Legislação ambiental. Sociedade de risco

Abstract
This research aims as central theme the study of groundwater protection in front of
the risk society. Therefore, our objective is to demonstrate how the communication
process contributed to the origin of the so called society of risk, and the danger it
represents to the contamination of groundwater. Thus, using the inductive method
of research, by the nature of the developed study, to adapt the proposed objectives
and making use of literature as a source of the argumentative constitution, we veri-
fied the necessary change of the current behavior patterns, considering the rank of
concerns and conflicts involved in the groundwater contamination issue, and also to
prevent the damages they inflict to society.
Keywords:. Groundwater. Environmental legislation. Society of risk.

INTRODUÇÃO
Frente à exploração inconsequente e demasiada do ho-
mem sob os recursos naturais, a crise ambiental consolida-se
como uma crise civilizatória, fruto da relação homem versus
natureza. As modificações geradas na natureza pela atividade
humana ameaçam a qualidade de vida do ser humano e dos
demais seres vivos. A poluição e a contínua degradação do
meio em que se vive causa preocupação com a sustentabilida-
de do planeta.
Assim a humanidade se desenvolve em um ritmo muito
acelerado, onde a visão estritamente econômica a respeito do
crescimento de nossa sociedade faz com que os riscos decor-
rentes deste desenvolvimento sejam, muitas vezes, esqueci-
dos. Desde uma operação individual, até as ações em massa,
todos os acontecimentos presentes na sociedade pós-moderna
acarretam em conseqüências globais e, junto a elas, a possibi-
lidade de danos não previstos. São ameaças que incidirão,
principalmente, no meio ambiente que nos cerca e, por conse-
quência, contra a própria existência do homem na Terra.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
899
Uma análise da sociedade de risco e do meio ambiente frente a...

Neste sentindo, se torna fundamental a análise entre a re-


lação do desenvolvimento da sociedade, expansão tecnológica
os perigos por ela oferecidos, bem como os riscos que esta so-
ciedade contemporânea oferece ao meio ambiente, mais espe-
cificamente em relação à questão das águas subterrâneas1.
Assim, é utilizando o método hermenêutico de pesquisa
pela natureza do estudo desenvolvido, por se adequar aos ob-
jetivos propostos e valendo-se da pesquisa bibliográfica como
fonte para a formação argumentativa. Sendo assim, é feita uma
abordagem da questão do meio ambiente na sociedade de ris-
co contemporânea, bem como a crise da água e a proteção das
águas subterrâneas, para uma posterior análise da proteção
das águas subterrâneas e a legislação ambeintal.
Diante de tais fatos insurge, insurge um debate sobre o
atual comportamento de risco da sociedade e as ameaças am-
bientais dele decorrente, principalmente na questão da pre-
servação da águas subterrâneas.

O MEIO AMBIENTE E A SOCIEDADE DE RISCO CONTEMPORÂNEA


O desenvolvimento da sociedade industrial acabou ge-
rando um cenário de grandes transformações econômicas, polí-
ticas e sociais impulsionando o avanço da ciência e da tecno-
logia. Todo o desenvolvimento que se consolidou através do
capitalismo, trouxe consigo diversos problemas sociais que

1
No presente trabalho, serão utilizados como sinônimos os termos água
(ou águas) e recurso hídrico (ou recursos hídricos), pois não
encontramos diferenciação científica relevante, apesar de parte da
doutrina apontar distinção entre eles. Nesse sentido, Juliana Santilli
destaca “Antes de mais nada cabe indagar: existe distinção entre os
termos recursos hídricos e águas? Para alguns especialistas, o termo
recursos hídricos deve ser empregado apenas quando, ao se tratar das
águas em geral, forem incluídas aquelas que não devem ser usadas por
questões ambientais. Ou seja, sempre que a proteção ambiental das
águas for considerada, o termo águas deve ser substituído por recursos
hídricos”. SANTILLI, Juliana. Política Nacional de Recursos Hídricos:
princípios fundamentais. In: Congresso Internacional de Direito
Ambiental. 7, 2003. Direito, Água e Vida. São Paulo: Imprensa Oficial,
2003, v. 1, p. 647- 662. p. 647.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
900
Natacha John, Rachel Cardone & Sergionei Correa

perduram até hoje, assim, tornou-se imperioso a busca por me-


canismos capazes de frear ou mesmo minorar as ameaças e os
riscos produzidos pela intervenção humana na natureza, bar-
rando também o consumo excessivo de bens e a destruição do
ambiente natural no qual estamos inseridos.
A sociedade de risco é caracterizada pela riqueza indus-
trial que acaba gerando pelo seu desenvolvimento, assim como
pelos riscos decorrentes deste avanço, que muitas vezes so-
mente são percebidos a médio e longo prazo pela coletivida-
de.Em importante afirmação, Beck refere que a principal carac-
terística da sociedade de risco não está na diferença de clas-
ses sociais, mas sim na diferença de riscos, que são na verda-
de bastante “democráticos”2.
Atualmente constata-se que se vivencia uma fase de
grandes avanços tecnológicos e desdobramentos do conheci-
mento, mas ao mesmo tempo percebe-se que adentramos ao
mundo das incertezas. Contrariando as idéias dos filósofos
iluministas e dos pensamentos da modernidade, onde se bus-
cava alcançar a paz e a segurança para todos, hoje vivencia-
mos uma situação de exposição a riscos constantes, inclusive
os de caráter sócio-ambiental, ou seja, são ameaças que incidi-
rão, principalmente, no meio ambiente3 que nos cerca e, por
consequência, contra a própria existência do homem na Terra.

2
“Al contrario que los estamentos o las classes, este destino tampouco se
encuentra bajo el signo de la miseria, sino bajo el signo del miedo, y no
es precisamente uma “reliquia tradicional”, sino um produto de la
modernidad, y ademas em su estado máximo de desarrolo [...]”. BECK,
Ulrich. La sociedad del risgo. Hacia uma nueva modernidad. Barcelona:
Paidós, 1998. p.12.
3
“Hoje em dia, as ações cotidianas de um indivíduo produzem
conseqüências globais. Minha decisão de comprar uma determinada
peça de roupa, por exemplo, ou um tipo específico de alimento, tem
múltiplas implicações globais. Não somente afeta a sobrevivência de
alguém que vive do outro lado do mundo, mas pode contribuir para um
processo de deterioração ecológica que em si tem conseqüências para
toda a humanidade.” GIDDENS, Anthony. “A vida de uma sociedade
pós-tradicional”. In: BECK, Ulrich. GIDDENS, Anthony. LASH, Scott.
Modernização Reflexiva. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 75.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
901
Uma análise da sociedade de risco e do meio ambiente frente a...

Beck4 explica que os riscos não se esgotam em efeitos e


danos já ocorridos. Neles, exprime-se um componente futuro e
este se baseia em parte na extensão futura dos danos atual-
mente previsíveis e em parte numa perda geral de confiança
ou num suposto “amplificador do risco”. Riscos tem que ver
com antecipação, com destruições que não ocorreram ainda,
todavia, que são iminentes, e que já são reais hoje. Os riscos
mostram um futuro que necessita ser evitado. Os riscos ainda
mostram-se simultaneamente reais e irreais. Assim, de um la-
do, muitas ameaças e destruições já são reais, como rios poluí-
dos, destruição florestal, entre outros. De outro lado, a verda-
deira força social do argumento do risco mora nas ameaças
projetadas no futuro. Desse modo, o núcleo da consciência do
risco não reside no presente, mas sim no futuro. Na sociedade
de risco, portanto, o passado deixa de ter força determinante
em relação ao presente.
O autor supra, vai mais longe ao mencionar que devemos
nos tornar ativos hoje para evitar e atenuar, problemas ou cri-
ses do amanhã ou do depois do amanhã, para tomar precau-
ções em relação a eles. Refere que no debate com o futuro nós
temos que lidar com uma “variável projetada”, uma “causa
projetada” da atuação (pessoal e política) presente, cuja im-
portância e significado crescem em proporção direta à sua in-
calculabilidade e ao seu teor de ameaça e que concebemos
para definir e organizar a nossa atuação presente. 5
Segundo Beck, isto pressupõe que os riscos sejam bem-
sucedidos num processo de reconhecimento social. Riscos são
inicialmente bens de rejeição. Assim, as situações de ameaça
precisam romper o privilégio da tabuização que as cerca e
“nascer cientificamente”. Isto ocorre sob a forma de um “efeito
colateral latente” que admite e legitima a realidade da amea-
ça, ou seja, equivale a uma espécie de licença, a um destino

4
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tra-
dução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 39 – 40.
5
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade.
Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 40.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
902
Natacha John, Rachel Cardone & Sergionei Correa

natural civilizatório, que ao mesmo tempo reconhece, distribui


seletivamente e justifica efeitos a serem evitados. 6
De tal modo que a utilização dos recursos naturais excede
a capacidade de regeneração ou substituição por outras fontes
alternativas. Além disso, a forma como vem ocorrendo o de-
senvolvimento tecnológico acaba provocando grandes proble-
mas ambientais, pois a grande produção e o consumo exage-
rado causam um crescente esgotamento das fontes naturais.
Neste seguimento, importante salientar conforme expressou
Jonas7:
[...] a promessa da tecnologia moderna se converteu em
ameaça, ou esta se associou àquela de forma indissolú-
vel.[...] Concebida para a felicidade humana, a submissão
da natureza, na sobremedida de seu sucesso,que agora
se estende à própria natureza do homem, conduziu ao
maior desafio já posto ao ser humano pela sua própria
ação.

Assim, acabamos por originar os denominados passivos


ambientais, sendo a poluição das águas subterrâneas, um dos
resultados do modelo produtivo deste desenvolvimento adota-
do pela sociedade, colocando em risco a saúde de toda coleti-
vidade.
Conforme refere Giddens8 estamos vivendo um momento
de desorientação que a sociedade não consegue conviver com
certas situações e acaba ocorrendo uma falta de controle. De

6
Idem, p. 40 – 41.
7
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para
a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros
Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. da PUC-Rio, 2006, p. 67.
8
“O dinamismo da modernidade deriva da separação do tempo e do
espaço e de sua recombinação em formas que permitem o “zoneamento”
tempo-espacial preciso da vida social; do desencaixe dos sistemas
sociais (um fenômeno intimamente vinculado aos fatores envolvidos na
separação tempo-espaço); e da ordenação e reordenação reflexiva das
relações sociais à luz das contínuas entradas (inputs) de conhecimento
afetando as ações de indivíduos e grupos.” GIDDENS, Anthony. As
conseqüências da Modernidade. Editora UNESP, 1991. p. 25.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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903
Uma análise da sociedade de risco e do meio ambiente frente a...

acordo com Beck9, estamos vivendo uma rescisão da sociedade


industrial clássica, com o declínio de suas instituições, presen-
ciando o surgimento de uma sociedade complexa, marcada
predominantemente pelos riscos, incertezas e constantes
transformações, dominando os sentimentos de dúvida e inse-
gurança quanto aos próximos passos da humanidade.
Diante das considerações referidas, emerge questiona-
mentos acerca do modelo de desenvolvimento adotado, pois
apesar dos grandes avanços tecnológicos, existe o adensa-
mento dos problemas sócio-ambientais em uma grande di-
mensão, expondo a sociedade a riscos e perigos constan-
tes.Neste panorama de falta de apreço dos limites naturais do
planeta em prol ao crescimento econômico, insere-se a impor-
tância da gestão dos recursos naturais e quais suas implica-
ções no manejo dos riscos que os ameaçam.

O CONFLITO DA QUESTÃO DA ÁGUA E A PROTEÇÃO DAS ÁGUAS


SUBTERRÂNEAS
A água possui um valor suntuoso, além de ser imprescin-
dível à vida humana, também é importante para o desenvolvi-
mento econômico, consistindo fator determinante nos ciclos da
natureza para garantir a manutenção dos ecossistemas. Se-
gundo os padrões internacionais, podemos considerar que a
água é insuficiente quando a quantidade disponível, anual, é
menos de 1000 metros cúbicos de água por habitante.
Entretanto, tal situação somente é visualizada em lugares
como o Oriente Médio e o norte da África, sendo que nos de-
mais lugares a “falta da água”, ocorre devido a sua qualidade
e o seu modelo de utilização. 10 Ainda, vale ressaltar que se-
gundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorre anual-
mente 5 milhões de mortes por falta de higiene ou pela má
qualidade da água e cerca de um quinto da humanidade não
9
BECK, Ulrich. La sociedad del risgo. Hacia uma nueva modernidad.
Barcelona: Paidós, 1998. p. 208-210.
10
NOGUEIRA, César. O planeta tem sede. Veja. São Paulo, 17.11.99, p.
154.

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dispõe de água potável para o consumo. E ainda, de acordo


com Organização das Nações Unidas (ONU), 90% da água utili-
zada nos países em desenvolvimento retornam para natureza
sem qualquer tratamento. 11
O Brasil apresenta um grande potencial hídrico, contudo
sua distribuição é de forma muito desigual. Ao passo que a
região Norte apresenta 70%, a região Centro-Oeste apresenta
15%, região Sul e Sudeste 12% e a região Nordeste apresenta
somente 3%12. Ainda, em relação à distribuição hídrica no Bra-
sil, profissionais especializados na área, garantem que mesmo
nas áreas menos favorecidas, conseguem satisfazer suas ne-
cessidades básicas13.
Ana Cláudia Bento Graf14 anota que em muitos países as
águas subterrâneas representam a única forma de abasteci-
mento, como é caso da Arábia Saudita, Dinamarca e Malta. Em
países como Bélgica, França, Hungria, Itália, Suíça entre outros
cerca de 70% do abastecimento ocorre através das águas sub-

11
Idem, ibidem.
12
BORSOI, Zilda Maria Ferrão; TORRES, Solange Domingo Alencar. A
política dos recursos hídricos no Brasil. Revista do BNDS, Rio de
Janeiro, v. 4, n. 8, dez./1997. p. 149-150.
13
“O exame dos textos legais mais representativos revela cuidar-se, no
Brasil, não apenas do aspecto repressivo da poluição, mas da
institucionalização de esquemas administrativos e financeiros, capazes
de assegurar resultados razoáveis e permanentes, dirigidos ao
planejamento da evolução industrial brasileira. A permanente utilização
das leis, bem como as alterações introduzidas no campo institucional,
permitem acreditar que, mesmo em relação às áreas críticas de poluição,
já delimitadas e objeto de medidas especificas, o Brasil está em
condições de controlar, de modo satisfatório, a poluição das águas. Deve
ser salientada, no entanto, a necessidade de maior coordenação entre
vários órgãos que atuam na área, pois como foi visto, quase todos têm
atribuições e, no confronto entre elas, é sempre o controle da poluição
que costuma ser postergada”. POMPEU, Cid Tomanik. Controle da
Poluição Hídrica no Brasil. Revista de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro, n. 130, p. 425-439, ou./dez. 1977. p. 438-439.
14
GRAF, Ana Cláudia Bento. A Tutela dos Estados sobre as Águas. In:
FREITAS, Vladimir Passos de (Org.). Águas: aspectos jurídicos e
ambientais. 2. ed. Curitiba:Juruá, 2003. p. 62.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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905
Uma análise da sociedade de risco e do meio ambiente frente a...

terrâneas15. Ao que refere à utilização das águas subterrâneas,


observa-se ser claramente mais proveitoso para o homem uma
vez que é de melhor qualidade e obtida com um valor inferior
ao da água tratada. O aumento da poluição e o imperativo de
implementação de saneamento básico, fazem com que os cus-
tos para tornar a água adequada para o consumo, sejam cada
vez mais elevados.
Assim, este cenário causa apreensão, haja vista que exis-
te o risco de contaminação dos aquíferos, pois o resultado da
utilização em grande proporção é desconhecido, sendo que
não existe um controle ativo da contaminação das águas su-
perficiais. Deste modo, percebemos que devemos agir com
cautela, aplicando o princípio da precaução, consoante o qual
“as pessoas e o seu meio ambiente devem ter em seu favor o
benefício da dúvida quando haja incerteza sobre se uma dada
ação os vai prejudicar”16.
Leciona Vladimir Passos de Freitas17 que se por um lado
as águas subterrâneas estão mais protegidas da poluição que
os corpos d’água superficiais, por outro lado depois de poluí-
das, demoram milhares de anos para retornarem ao normal. Já
no que se refere aos rios e lagos em 15 ou 20 dias, se reno-
vam.Visível, no caso em tela que se deve cada vez mais inves-
tir em prevenção e proteção dos aquíferos, sendo imprescindí-
vel uma política mundial da água, que vise o gerenciamento
em conjunto de referido recurso ambiental.
Além do mais, o entendimento majoritário no que diz res-
peito a águas subterrâneas é de servir como fonte reserva, ou

15
BORSOI, Zilda Maria Ferrão; TORRES, Solange Domingo Alencar. A
política dos recursos hídricos no Brasil. Revista do BNDS. Rio de
Janeiro, v. 4, n. 8, dez./1997. p. 148.
16
SILVA, Luís Praxades Vieira da. Princípio da Precaução e Recursos
Hídricos. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental. 7., 2003.
Direito, Água e Vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v.1. p. 710.
17
FREITAS, Vladimir Passos de. Sistema Jurídico brasileiro de controle
da poluição das águas subterrâneas. Revista de Direito Ambiental. São
Paulo, a.6, n. 23, p. 53-66. jul./set. 2001. p. 56.

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906
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melhor, de recurso “alternativo”18, que somente seria usada


quando a água superficial não estivesse mais acessível para
consumo ou ainda nas regiões que desprovidas de água acima
do solo.
Importante consideração acerca das águas subterrâneas
assevera no seguinte fato:
Ela é fonte fundamental de suprimento da umidade do
solo que dá suporte ao desenvolvimento da cobertura ve-
getal-natural ou cultivada. Além disso, ela é fonte pri-
mordial de regularização dos fluxos dos rios durante os
períodos de estiagem, e de abastecimento em geral, à
medida que é extraída de forma adequada por meio de
poços, fontes ou nascentes e outras formas de captação.19

Por fim, também precisamos atentar para questão das


águas subterrâneas, uma vez que contamos com o mais vasto
reservatório de água doce do mundo. O Aqüífero Guarani, que
se estende, além do Brasil, pelo Uruguai, Paraguai e Argentina.

A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA E PROTEÇÃO DAS ÁGUAS


PROTEÇÃO DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS NA SOCIEDADE DE RISCO
Inúmeras são as causas que levaram a sociedade ao es-
tágio atual de crise, entretanto o homem não conseguiu tirar os
ensinamentos suficientes, continuando a atuar de forma irres-
ponsável em relação à utilização dos recursos hídricos superfi-
ciais, bem como na questão dos recursos hídricos subterrâ-
neos20.A gestão das águas subterrâneas enfrenta o desafio de
18
“A proteção das águas subterrâneas é uma questão estratégica. No
Brasil, mais da metade de água de abastecimento público provém de
reservas subterrâneas”. SILVA, Solange Teles da. Aspectos Jurídicos
das Águas Subterrâneas. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, a. 8,
n. 32, p. 159, dez. 2003.
19
REBOUÇAS, Aldo da C. Panorama das Água Doce no Brasil. In:
Panoramas da degradação do ar, da água doce e da terra no Brasil. São
Paulo:IEA/USP, 1997. p. 88.
20
“Existem inúmeras evidências que estamos esvaziando os aquíferos em
ritmo totalmente insustentável, mas continuamos a perfurar nossos
suprimentos de água subterrâneos porque não deixamos de poluir a
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25 e 26 de abril de 2013
907
Uma análise da sociedade de risco e do meio ambiente frente a...

resguardar um bem oculto, envolvendo dois recursos da natu-


reza: água e solo, a dificuldade aumenta, uma vez que as
águas subterrâneas dependem da ciência para revelar os peri-
gos e ameaças, tais que não podem ser observados pelos leigos.
Os riscos de dano ambiental podem ter diversas origens,
podendo se asseverar um caráter multidimensional, entretanto
acaba causando uma dificuldade na previsibilidade do risco,
sendo que a relação de dependência com a ciência para con-
seguir constatar se houve ou não algum tipo de dano, é umas
das principais dificuldades apresentadas, uma vez que o con-
trole das águas subterrâneas é pequeno e sua dinâmica ainda
é muito pouco conhecida.
Outro fator relevante que merece ser destacado é a falta
de conhecimento e informação por parte da sociedade, o que
acaba excluindo a população sobre qualquer dinâmica em que
se trata de águas subterrâneas.Cada sociedade mantém “uma
relação com riscos”, uma forma característica de enfrentá-los,
que transparece em um plano cultural. Essa relação de riscos
muda conforme as épocas e os lugares. 21
O direito não poderia ficar impassível a questão dos pro-
blemas ambientais, sendo um dos principais instrumentos pa-
ra constituir a vida em sociedade e para tutela das condições
fundamentais e o seu livre desenvolvimento22.As leis ambien-
tais existentes, não conseguem controlar os riscos da socieda-
de atual e consequentemente as que surgem posteriormente,
espelham-se e perpetuam, por querer ou involuntariamente em
um sistema que já arruinado, propondo uma falsa normalidade23.

água da superfície”. BARLOW Maude; CLARKE,Tony. Ouro Azul. São


Paulo: M. Books 2003. p. 246.
21
BECK, Ulrich. La sociedad del risgo. Hacia uma nueva modernidad.
Barcelona: Paidós, 1998.
22
CUNHA, Paulo. A globalização, a sociedade de risco, a dimensão
preventiva do direito e ambiente. In: Estado de Direito Ambiental:
Tendência: Aspectos Constitucionais e Diagnósticos. Heleni Sivini
Ferreira, José Rubens Morato Leite (Orgs). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004. p. 111.
23
FERREIRA, Heleni Sivini. A globalização, a sociedade de risco, a
dimensão preventiva do direito e ambiente. In: Estado de Direito
Ambiental: Tendência: Aspectos Constitucionais e Diagnósticos. Heleni

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Natacha John, Rachel Cardone & Sergionei Correa

Nossa Constituição Federal, por sua vez, concebeu o ca-


ráter de direito e dever fundamental de todos à preservação de
um meio ecologicamente equilibrado24, assim, impõe tanto ao
Poder Público como à coletividade o dever de preservá-lo e de-
fendê-lo para as presentes e futuras gerações. Observa-se ain-
da ser o nosso sistema jurídico ambiental constituído por vasta
legislação protetiva do ambiente, incluindo as águas.
No entanto, a explícita degradação que o homem vem
causando à natureza e sua inércia sobre a real existência de
uma sociedade de risco demonstra que as normas ambientais
vigentes, embora modernas, carecem de real eficácia, tanto
jurídica quanto social. Em uma época em que as indeterminá-
veis consequências da evolução tecnológica e do desenvolvi-
mento representam concretas ameaças à sociedade, tal cons-
tatação toma graus assustadores e preocupantes25.
Diante do cenário atual, o que se percebe é que a legisla-
ção sobre águas subterrâneas seja ela federal estadual ou mu-
nicipal se tornou muito pouco operacional, cabendo à socieda-
de exigir o seu cumprimento, através dos mecanismos legais

Sivini Ferreira, José Rubens Morato Leite (Orgs). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004. p. 119.
24
“O que é importante – escrevemos de outra feita – é que se tenha a
consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais di-
reitos fundamentais do Homem, é que há de orientar todas as formas de
atuação no campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender
que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer
outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito
ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes
são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não po-
dem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando
se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a tutela da
qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através
dela, o que se protege é um valor maior: a qualidade de vida.” SILVA,
José Alfonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 70.
25
Nas palavras de Ilya Prigogine, “assistimos ao surgimento de uma
ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas,
mas nos põe diante da complexidade do mundo real”. PRIGOGINE, Ilya.
O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Tradução de
Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Unesp, 1996. p. 14.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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Uma análise da sociedade de risco e do meio ambiente frente a...

existentes. No entanto, para que tais medidas sejam adotadas


pela sociedade é necessário à implementação de políticas pú-
blicas para garantir a sustentabilidade dos aquíferos para es-
tas e futuras gerações, ressaltando a contribuição da Lei nº
9.433/97, que estabeleceu literalmente que “a água é um re-
curso natural limitado”. 26
Ao desenvolver políticas públicas neste contexto, ocorre-
ria o reconhecimento da limitação ecológica dos recursos natu-
rais, bem como empecilho da exploração ruinosa até sua fini-
tude27 e uma garantia a capacidade de regeneração e absorção
dos recursos. Contudo, apenas um plano de política pública
isolado não obteria sucesso, para tanto é necessário ações con-
juntas e articuladas com outras políticas de desenvolvimento
atinente a economia, ao social, aos transportes, à habitação, ao
saneamento básico, à saúde entre outras.
Em conformidade com Viegas:
A defesa da propriedade estatal da água não significa
que se esteja sustentando que a gestão da água é tarefa
exclusiva do Poder Público. No ordenamento jurídico bra-
sileiro, a administração hídrica deve ser feita de forma
bem descentralizada e participativa. O Estado, como
proprietário do bem, tem papel fundamental no gerenci-
amento da água, mas este também conta com a partici-

26
Ana Cláudia Bento Graf elucida que “em 08.01.1997 foi editada a Lei
9.433, que institui uma política nacional especifica para os recursos
hídricos, adotando novos paradigmas quanto aos usos múltiplos das
águas, à participação popular na gestão destes recursos e,
reconhecendo que se trata de um recurso finito, vulnerável e, dotado de
valor econômico”. GRAFF, Ana Cláudia Bento. A Tutela dos Estados
sobre as Águas. In: FREITAS, Vladimir Passos de (Org). Águas: aspectos
jurídicos e ambientais. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 52-53.
27
Fernando Quadros da Silva esclarece que “Nossa legislação estava
moldada a uma visão inesgotabilidade dos recursos hídricos e tinha
como preocupação primordial o uso da água com finalidades de
produção de energia”. SILVA, Fernando Quadros da. A Gestão dos
Recursos Hídricos após a Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997. In :
FREITAS, Vladimir Passos de (Org). Direito Ambiental em Evolução.
Curitiba: Juruá, 1998. p. 75.

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910
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pação de outros setores interessados, na forma do Direito


Positivo. 28

Analisando o panorama atual se percebe que indepen-


dentemente da forma como vai ocorrer à participação da popu-
lação nas questões atinentes aos recursos hídricos, ela é fun-
damental. A questão da água era em regra geral resolvida pela
administração pública, que apenas tinha a preocupação em
satisfazer as necessidades com um recurso natural abundante
e gratuito distribuído para todos de forma igualitária e com a
mesma qualidade.
Contudo, a situação atual se alterou, estamos diante de
um recurso finito, escasso em muitos locais e em se tratando
de águas subterrâneas ainda existe os conflitos relacionados à
ocupação do solo. Desse modo, a participação social é muito
importante como forma de exercer a fiscalização e a cobrança
do Poder Público.
Entretanto, para que esta fiscalização e pressão ocorram
de forma adequada, de modo a preservar o meio ambiente e
principalmente as águas subterrâneas é necessário que a po-
pulação tenha conhecimento da necessidade de proteger esse
recurso, assim como as medidas necessárias para tal conscien-
tização.Importante salientar que devem ser feitos esclareci-
mentos básicos, mas de caráter essencial, como explicar o que
é um aquífero, o que são áreas de superexploração e contami-
nação, sendo fundamental para que a população possa atuar
na defesa do patrimônio ambiental.
Ao contrário, o risco da população acabar manipulada e
optar por defender interesses aparentemente atrativos em cur-
to prazo ignorando os efeitos futuros são grandes. Por fim, de
forma ilustrativa podemos citar novamente o Aquífero Guarani,
que embora de forma modesta, já ocorre a participação popu-
lar, no processo de medidas efetivas de proteção. Contudo,
representa ainda os primeiros passos da participação da popu-
lação no gerenciamento dos riscos.
28
VIEGAS, Eduardo Coral. Gestão da água e princípios ambientais.
Caxias do Sul, RS: Educs, 2008. p. 94.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade de risco é caracterizada pela produção in-
dustrial de riqueza e consequentemente pela produção social
do risco. O avanço técnico e científico tão enaltecido por mui-
tos, somente apresenta suas consequências negativas em longo
prazo e infelizmente não são percebidos pela realidade atual.
Na modernidade o desenvolvimento não ocorre de forma
simultânea com os recursos naturais, ou seja, o crescimento
frenético da sociedade não acompanha o processo de regene-
ração ou substituição dos recursos naturais. Em que pese à
questão da água na sociedade de risco, percebe-se que sua
utilização não pode mais ocorrer de forma irracional, uma vez
que já foi constatado a finitude deste recurso natural.
A água é a fonte da vida. Assim, importante mencionar
que ter acesso à água potável em quantidade satisfatória não é
uma questão de opção, mas de obrigação básica, apresentan-
do-se como direito fundamental e elemento essencial para a
dignidade humana.
Vale ressaltar que as águas subterrâneas não podem ser
utilizadas de maneira irresponsável, devido sua estrita relação
com as águas superficiais, tendo como conseqüência a polui-
ção dos aquíferos. Esse problema de ordem ambiental tem de-
safiado o Poder Público e até mesmo a sociedade na procura
de soluções para utilização dos recursos naturais, de modo a
não gerar tantos riscos a coletividade.
A poluição das águas subterrâneas, assim como muitos
outros problemas de degradação ambiental, implica em riscos
para própria humanidade e ao ambiente em todas as suas for-
mas de vida, nos fazendo repensar sobre o modelo de socieda-
de ao qual fazemos parte.
É necessário iniciarmos uma mudança, seja na economia,
na política ou na sociedade, entretanto esta mudança deve
iniciar principalmente no comportamento individual de cada
cidadão e papel que desempenha dentro da coletividade. As
transformações são urgentes e bem vindas para resgatar o
bem de valor mais valioso que possuímos: a vida.

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REFERÊNCIAS
BECK, Ulrich. La sociedad del risgo. Hacia uma nueva modernidad.
Barcelona: Paidós, 1998.
______. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tradu-
ção de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2004.
______. GIDDENS, Anthony. LASH, Scott. Modernização Reflexiva.
São Paulo: Editora Unesp, 1997.
BARLOW Maude; CLARKE, Tony. Ouro Azul. São Paulo: M. Books,
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política dos recursos hídricos no Brasil. Revista do BNDS, Rio de
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gresso Internacional de Direito Ambiental. 7., 2003. Direito, Água e
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FREITAS, Vladimir Passos de. Sistema Jurídico brasileiro de controle
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Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
NO CONTEXTO DOS MEGAEVENTOS
ESPORTIVOS EM PAÍSES PERIFÉRICOS :
APONTAMENTOS DESDE A
COLONIALIDADE DO PODER1

Natalia Martinuzzi Castilho


Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direi-
to da Unisinos. Integrante do Projeto de Pesquisa Teoria e história dos di-
reitos humanos sob a perspectiva dos estudos descoloniais, membro do
Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos (NDH).
Alex Silveira Filho
Estudante de graduação, 4º Semestre do curso de Direito da Unisinos. In-
tegrante do Projeto de Pesquisa Teoria e história dos direitos humanos
sob a perspectiva dos estudos descoloniais, membro do Núcleo de Direi-
tos Humanos da Unisinos (NDH).

Resumo
O estudo analisa, no contexto de aprovação da Lei Geral da Copa 12.663/12, as vio-
lações de direitos humanos, especialmente do direito à moradia e à cidade, decor-
rentes da promoção de megaeventos, como a Copa do Mundo de 2014. Pretende-se
analisar em que medida os discursos que emergem dos conflitos jurídicos e sociais
desencadeados e legitimados pela institucionalidade, conforme se discute no estudo
e a partir das leituras de movimentos e organizações sociais, refletem a continuidade
de estruturas sociais relacionadas à Totalidade moderna/colonial, no campo da efe-
tivação do Estado democrático de direito e do paradigma de defesa dos direitos
humanos. Destacam-se os elementos capazes de fragilizar o status de direitos hu-
manos positivado. Esses movimentos de enfraquecimento do potencial subjetivo dos
direitos humanos são analisados a partir pensamento descolonial e da categoria
colonialidade do poder, capazes de evidenciar as raízes das disparidades entre os
discursos de efetivação dos direitos humanos nessas situações.
Palavras-chave: direitos humanos, megaeventos, pensamento descolonial, coloniali-
dade do poder

Abstract
This study seeks to examine, in the context of the Law 12.663/2012, the violations of
human rights, especially of the right to housing and right to city, that occur from

1
Artigo a ser submetido no Eixo I – Fundamentos e concretização dos
direitos humanos.
916
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

organizing mega events such as the World Cup of Football - 2014. Intents analyses in
which way the discourses that emerge of juridical and social conflicts legitimate
institutions, reflects the continuation of social structures related to the mod-
ern/colonial Totality. By the organization of social movements and autonomous
organizations, it intends to focus on the elements that are capable to weaken the
jurisdictional status of human rights protection. These movements of potential
weakening of the subjective potential of human rights are analyzed from the de-
colonial thinking and the category of coloniality of power, able to show the roots of
disparities between all discourses of realization of these rights at situations ruled by
disputes of interests and control of power.
Keywords: human rights, mega events, decolonial thinking, coloniality of power

INTRODUÇÃO
A realização de megaeventos esportivos provoca debates
profundos, especialmente a Copa do Mundo de Futebol em
países em que esse esporte possui um apelo social e cultural
tão expressivo, como no Brasil. O forte alcance popular do es-
porte, entretanto, não vem se mostrando capaz de camuflar as
consequências da mercantilização cada vez mais acirrada que
envolve as alterações infraestruturais, o embelezamento urbano
e as diretrizes institucionais e administrativas exigidas pela
FIFA e seus organismos e empresas patrocinadoras e parceiras.
Por meio da análise de algumas dessas situações, especi-
almente nos casos de despejos forçados e das disposições, no
mínimo, ética e juridicamente controversas contidas no texto
da Lei Geral da Copa, pretende-se investigar as principais jus-
tificativas para o cenário de flexibilização e anulação, em mui-
tas situações, dos direitos humanos positivados no Brasil e em
âmbito internacional. Para essa tarefa, utiliza-se dos aportes
teóricos dos estudos descoloniais e sua proposta de descolonia-
zação das fontes e formas de produção de conhecimento a par-
tir do conceito de colonialidade do poder (ou matriz colonial de
poder) do sociólogo e teórico político peruano Aníbal Quiijano.
As formas de reestruturação da matriz colonial podem ter o
condão de evidenciar as contradições e ambiguidades nos dis-
cursos de direitos humanos e democracia nos países periféri-
cos e, ainda, refletir de que maneira a as resistências a essa
lógica de reestruturação do espaço urbano, no caso dos mega-
eventos, representam um mecanismo de democratização real
da sociedade.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
917
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

COPA DO MUNDO: OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E SEUS EFEITOS


NA TRANSFORMAÇÃO URBANA
As transformações realizadas nas cidades pela realização
de eventos esportivos de grande porte se intensificaram prin-
cipalmente a partir da II Guerra Mundial (ROLNIK, 2009, p. 2).
Nesse período o movimento olímpico acumulou mais forças por
meio do apoio dos governos no marco do esporte como meta
social, incluída a construção de infraestrutura pública para os
esportes e a promoção das atividades esportivas. No entanto, a
partir de 1980 o Comitê Olímpico Internacional passou a incor-
porar definitivamente o setor privado na promoção dos Jogos
e, nos anos 90, a realização dos jogos articulou de forma deci-
siva os setores do capital financeiro internacional de diversos
ramos (imobiliário, logístico, de infraestrutura, automobilístico,
etc.), conectados segundo uma estratégia de desenvolvimento
econômico dessas cidades e a “melhoria” de suas posições na
economia globalizada. Segundo Cristopher Gaffney (2011), até
os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, havia a ideia de
que se perdia dinheiro com o evento. Em Los Angeles, os em-
preendimentos eram públicos, mas já estavam prontos, e exis-
tiam muitos patrocinadores privados, o que gerou grandes lu-
cros para as empresas investidoras. O auge dessa transforma-
ção das Olimpíadas foi em Barcelona, em 1992.
A transformação de megaeventos esportivos em grandes
espaços de negócios, apesar de ser utilizada como exemplo de
desterritorialização da economia e de supranacionalização do
direito por alguns campos da academia, ainda se articula de
forma intensa com reproduções modernas do capital e, princi-
palmente, com o aparato financeiro estatal2. Apesar do poten-

2
Em entrevista ao IHU Ideias, o mestre em Direito pela Universidade Fe-
deral do Paraná (UFPR), assessor jurídico da Organização Terra de Direi-
tos e integrante do Comitê Popular da Copa de Curitiba, Thiago Hoshi-
no, apresenta dados importantes: “IHU On-Line – A Copa do Mundo no
Brasil é um negócio privado bancado com recursos públicos? Qual a
percentagem do investimento público? Os recursos do BNDES são a
fundo perdido? Thiago Hoshino – Segundo o relatório do Tribunal de
Contas da União – TCU de julho deste ano, dos quase R$ 24 bilhões de

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
918
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

cial para agregar aspectos positivos a partir da oportunidade


de remodelamento das cidades e melhoria efetiva de sua infra-
estrutura urbana verifica-se que os grandes projetos urbanos
advindos da realização dos mega-eventos deixam um legado
obscuro no que tange ao aprofundamento das desigualdades
sociais e econômicas nas cidades, especialmente em relação
ao direito à moradia e o direito à cidade da população mais
pobre. O legado dos eventos especiais no contexto destas pes-
soas é longe de ser positivo (ROLNIK, 2009). Parecem exacer-
bar-se as disparidades existentes, dado que os processos de
regeneração e embelezamento da cidade geralmente se con-
centram nas áreas habitadas principalmente por grupos po-
bres e vulneráveis, que são removidos para as zonas periféri-
cas da cidade sem a estrutura necessária para o exercício do
direito à moradia digna e à cidade (direito ao transporte públi-
co adequado, acesso aos espaços de cultura e lazer, etc.).
De acordo com Gaffney (2011), as melhorias advindas de
tais oportunidades ocorreram em cidades que já possuíam um
plano diretor consolidado e uma estrutura centralizada e
transparente para a organização das transformações urbanas

investimentos federais divulgados, apenas 1,4% corresponde à parcela


da iniciativa privada. Mais de 50% dos recursos advêm de linhas de fi-
nanciamento do BNDES ou da Caixa Econômica Federal. Ainda que se
tente caracterizar essas operações como simples empréstimos, é preciso
lembrar que elas são subsidiadas pelo Estado, isto é, trata-se de con-
cessões a juros mais baixos do que os normalmente praticados. Além
disso, não raro as garantias oferecidas para acessá-las são também títu-
los públicos, numa arriscada engenharia financeira. O suposto ‘legado’
da Copa do Mundo e das Olimpíadas, portanto, está sendo construído
majoritariamente com dinheiro público, em ações que já são ou deveriam
ser de responsabilidade do Estado. E há estudos que apontam orçamen-
tos ainda mais arrojados, ultrapassando R$ 100 bilhões. Contudo, o des-
tino de toda essa verba não está submetido ao debate coletivo, a meca-
nismos de transparência e controle social, ou mesmo às prioridades
elencadas nos Planos Diretores dos municípios.” In: Copa do Mundo: ''o
interesse público está sendo desvirtuado''. Entrevista especial com Thiago
Hoshino, 19 de dezembro de 2011. Disponível em <http://www
.ihu.unisinos.br/entrevistas/505100-copa-do-mundo-o-interesse-publico-
esta-sendo-desvirtuado-entrevista-especial-com-thiago-hoshino> Aces-
so em 4 de fevereiro de 2012. (grifo nosso)
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
919
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

geradas a partir dos eventos. Esse foi o caso de Barcelona, em


1992. No entanto, isso não é o que se depreende da realidade
brasileira, principalmente de experiências anteriores, como o
caso dos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, em 20073.
Das experiências brasileiras, destaca-se o fato de que o
planejamento urbano foi dirigido pelos setores investidores
dos grandes eventos, ou seja, o contrário da lógica esperada
pela população no que diz respeito às expectativas de utiliza-
ção dos grandes eventos para melhorar as cidades. Os altos
impactos econômicos vêm funcionando como catalisadores e
agravadores de problemas sociais estruturais na sociedade
brasileira, e na grande parte dos países periféricos, como os
conflitos relacionados ao direito à moradia. Segundo os estu-
dos e levantamentos dos Comitês Populares da Copa espalha-
dos pelo território nacional, estima-se a remoção forçada, em
massa, de 150.000 a 170.000 pessoas4.

3
Segundo o Dossiê Mega-eventos e violações dos direitos humanos no
Rio de Janeiro (pp. 28-29). Disponível em < http://www.agb.org.br/docu
mentos/dossic3aa-megaeventos-e-violac3a7c3b5es-dos-direitos-huma
nos-no-rio-de-janeiro.pdf > Acesso em 03 de fevereiro de 2013 : “ [...] En-
fim, a experiência do Pan/2007 é esclarecedora, pois serviu de etapa e
ensaio para megaeventos esportivos maiores Copa do Mundo de futebol
de 2014 e Olimpíadas de 2016. E é com este olhar que encontramos o
seu maior e pior legado, pois ficou provado que é possível transferir re-
cursos públicos para a esfera privada, privilegiar as maiores empreitei-
ras do país, alargar as fronteiras de atuação do capital, diminuir os direi-
tos sociais, agravar os conflitos urbanos, reduzir o grau de informação
sobre as atividades públicas e aumentar a desigualdade social. Tudo
camuflado sob o manto de interesses da coletividade que cultua as
competições esportivas.”. Ainda de acordo com Gaffney (2011), sobre os
Jogos Panamericanos de 2007: “O Comitê Organizador para a Copa e
para os Jogos Olímpicos diz que não houve nenhum legado urbanístico
do Pan. [...] a preparação para o Pan foi uma desorganização total, houve
fortes indícios de superfaturamento e tudo foi orçado em 400 milhões e
no fim acabou custando 4 bilhões de reais. A vila do Pan (onde os atletas
se hospedaram) tem uma taxa de ocupação de 35% agora. Fizeram dois
leilões para vender apartamentos. Não conseguiram. O estádio era pra
ter custado 120 milhões de reais, e custou 430 milhões. Desorganização,
falta de transparência.”
4
Dado retirado do Dossiê Megaeventos e violações de direitos humanos
no Brasil, 2012, p.14. Disponível em < http://comitepopulario.files.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
920
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

Essas pessoas são, via de regra, habitantes de comuni-


dades localizadas em regiões que sofreram forte valorização
imobiliária. A pressão imobiliária exercida nesses espaços é
alimentada por um contexto flagrante de desinformação, que
envolve grande parte dessas comunidades em todo o território
nacional5. Dentre os casos citados no relatório, destacam-se as
remoções que estão sendo realizadas no Rio de Janeiro, relaci-
onada a obras de infraestrutura viária. Os moradores da região
do bairro Madureira estão ameaçados de remoção pelas obras
da via Transcarioca. Uma das moradoras, conforme noticiado
inclusive internacionalmente6, recebeu uma comunicação da
prefeitura avisando que, em razão da construção da Transcari-
oca, teria que sair de casa sem direito a nenhuma indenização
por não ter a escritura do imóvel. Outro caso, da cidade de For-
taleza-CE, também chama atenção. Na zona de beira-mar pró-
xima à Praia de Iracema, denominada Poço da Draga, uma área
com ocupação histórica de mais de 100 anos está sendo remo-
vida, apesar de declarada Zona de Especial Interesse Social no
Plano Diretor. As famílias não tiveram acesso ao projeto nem
foram consultadas.
Já em Porto Alegre, a Ocupação 20 de Novembro se loca-
liza no entorno do Estádio Beira-Rio, em área que vem sendo
negociada pela prefeitura com o Sport Club Internacional. A
ocupação surgiu no dia 20 de novembro de 2006, e tornou-se
referência nacional e internacional no debate do uso de imó-
veis no meio urbano para fins ilícitos e sua reversão para mo-
radia de interesse social. Desde 2007, quando ocorreu o despe-

wordpress.com/2011/12/dossie_violacoes_copa_completo.pdf > Acesso


em 03 de fevereiro de 2013.
5
Dado retirado do Dossiê Megaeventos e violações de direitos humanos
no Brasil, 2012, p. 14. Disponível em < http://comitepopulario.files.
wordpress.com/2011/12/dossie_violacoes_copa_completo.pdf > Acesso
em 03 de fevereiro de 2013.
6
Desapropriações no Rio para Copa e Jogos-2016 ignoram lei e cidadãos,
ESPN Brasil, Disponível em < http://espn.estadao.com.br/ historiasdo-
esporte/noticia/211293_VIDEOS+DESAPROPRIACOES+NO+
RIO+PARA+COPA+E+JOGOS+2016+IGNORAM+LEI+E+CIDADAOS
#video. > Acesso em 03 de fevereiro de 2013.
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921
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

jo, as 36 famílias encontram-se assentadas provisoriamente em


área pública na Av. Padre Cacique, nas cercanias do estádio
Beira-Rio, que irá receber os jogos da Copa do Mundo. Até o
momento, não está garantido o reassentamento definitivo na
região e as máquinas já avançam sobre as casas formando
“morros de aterro” que causam alagamentos7.
A falta de informação e notificação prévia geram instabi-
lidade e medo com relação ao futuro das famílias que serão
removidas, além de atentarem diretamente o direito humano à
moradia. O aumento da demanda por espaço para construir
locais esportivos, alojamento e vias públicas não poderia ser
canalizado mediante projetos de reestruturação urbana que
excluem diretamente da participação os moradores atuais, que
terão e já tem suas vidas completamente alteradas a partir da
ameaça de exercício ao seu direito à moradia.
De acordo com o sociólogo Orlando dos Santos, relator da
Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos Sociais,
Culturais e Ambientais (Dhesca) ligada à ONU, o processo de
remoção, em si prejudicial, é agravado pelas evidências de re-
moções sumárias (LIMA, 2011, p. 2). De fato, os despejos for-

7
Ainda nesta cidade, em decorrência de um projeto de urbanização,
foram cadastradas 1.470 famílias que moravam na Vila Dique para serem
removidas e reassentadas no empreendimento. Embora muitos já
tenham sido removidos, para dar espaço às obras do aeroporto, até
agora o reassentamento não foi implantado de forma completa, pois
menos da metade das unidades habitacionais previstas foram
construídas. Não houve análise geotécnica e aproximadamente um terço
da área do reassentamento está comprometidas. As famílias
remanescentes, por sua vez, foram penalizadas com o abandono de
serviços básicos, como coleta de lixo, corte de energia elétrica e
irregularidade no abastecimento de água. Esses três casos foram
retirados do Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da
Copa, intitulado “Megaeventos e violações de direitos humanos no
Brasil”, que relatou e analisou 21 casos de vilas e favelas nas cidades de
Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e
São Paulo que tem como pano de fundo comum o propósito da
higienização social e da gentrificação, por meio da aquisição de terras
de alto valor imobiliário, do repasse dos investimentos estatais à
iniciativa privada e da periferização cada vez mais intensa da população
pobre.

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922
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

çados ocorrem sem o mínimo de diálogo e informação às pes-


soas afetadas. Santos (2011) observou ainda que as normas
impostas pelos tratados internacionais para o desalojamento
das pessoas em virtude de obras de infraestrutura e não vêm
sendo cumpridas.
Esses conflitos de interesse se expressaram de forma
mais latente, no campo institucional, no contexto da aprovação
da Lei Geral da Copa. Ainda no que pese às dificuldades rela-
cionadas à própria organização e ao código de ética da FIFA
(Fédération Internationale de Football Association) 8, é possível
afirmar que o Poder Legislativo brasileiro no contexto de ela-
boração e aprovação da Lei Geral da Copa instituiu mecanis-
mos atentatórios aos direitos humanos e à Constituição Fede-
ral de 1988. A iniciativa de criação da Lei em si, ao movimentar
todo um universo de gestão extraordinário nas esferas federal,
estadual e municipal para suprir a demanda absolutamente
transitória e elitista de promoção dos megaeventos, pode ser
considerada uma aberração política e jurídica. Isso porque se
verifica na prática o esvaziamento de direitos sociais coletivos
e difusos consolidados, pois em detrimento do interesse públi-
co e em benefício de uma parcela de investidores e empresá-
rios o Código do Consumidor, o Estatuto do Idoso, e do Torce-
dor, o direto à meia entrada, ou seja, diversos mecanismos de
proteção desses direitos foram flagrantemente violados9.

8
“Em geral, e em que pesem estes compromissos recentes, é difícil en-
contrar nos procedimentos e normativas da FIFA alguma norma que
ajude a instituição e seus membros a integrar uma perspectiva de direi-
tos humanos em suas atividades cotidianas. Ainda que as mudanças in-
troduzidas na missão da FIFA sejam elogiáveis, é necessário aplicá-las
na prática. [...] os procedimentos da FIFA carecem de informação aces-
sível ao público em geral. A transparência e prestação de contas são
fundamentais para certificar-se de que o evento não reduza, e sim am-
plie, os direitos humanos das populações locais. Além disso, ainda que a
instituição regularmente emita normas de conduta aplicáveis a cada
processo de licitação, não existe um marco normativo que se aplique a
todos eles. (ROLNIK, 2009, p.13-14).
9
Das medidas mais relevantes contidas na Lei 12.663/2012: Restrições ao
trabalho informal, comércio de rua e popular durante os jogos (Artigo
11); obstáculos para que o povo brasileiro possa assistir aos jogos como
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923
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

O status de proteção do direito à moradia digna e à cida-


de, no âmbito nacional e internacional, funciona enquanto um
mecanismo fomentador de diálogo e de pressão, por parte das
populações atingidas, mas na prática não orientam os objeti-
vos e expectativas dos realizadores e promotores dos megae-
ventos esportivos, muito menos do Poder Público dos Estados
que se tornam países-sede. Essas reflexões conectam-se às
perspectivas jurídico-políticas dos direitos humanos, especi-
almente em relação aos desafios de sua positivação e efetiva-
ção nos países latino-americanos, mais suscetíveis, conforme
se discorrerá a seguir, à flexibilização de importantes conquis-
tas coletivas em matéria de direitos nos termos do Estado de-
mocrático. Dessa feita, os aportes relativos ao pensamento
descolonial, mais especificamente ao conceito de colonialidade
do poder, de Aníbal Quijano (2000, 2002, 2005, 2009), mostram-
se capazes de responder aos conflitos sociais gerados e apro-
fundados a partir dos megaeventos como a Copa do Mundo.

CONDIÇÃO PÓS-COLONIAL E A COLONIALIDADE DO PODER –


DESAFIOS A VIVENCIA DOS DIREITOS HUMANOS
As duas grandes ondas de descolonização, a primeira do
último terço do século XVII ao primeiro terço do século XIX, e a

achar melhor, com limitação à sua transmissão por rádio, televisão e in-
ternet (Artigo 16, inciso IV); submissão da União Federal à Fifa por meio
de sua responsabilização por quaisquer ‘danos e prejuízos’ causados ao
evento privado (artigo 22, 23 e 24); criação de novos tipos penais, de tri-
bunais especiais para o seu julgamento e, ainda, isenção de custas con-
cedida à FIFA (Artigos 31 a 34); violação do Estatuto do Torcedor em fa-
vor do monopólio da Fifa (Art. 67); risco ao direito à educação pela redu-
ção do calendário escolar (Artigo 63); permissão excepcional de venda
de bebidas alcoólicas durante os jogos, retrocedendo em relação à legis-
lação existente (Artigo 29); privatização de símbolos oficiais e do patri-
mônio cultural brasileiro pela Fifa através de procedimento especial jun-
to ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI , dando mar-
gem a abusos nas reservas de patente (Artigo 4º a 7º); infração direta ao
Código de Defesa do Consumidor, isentando a Fifa de responsabilidade
civil (art. 27, I), permitindo venda casada (art. 27, II) e cláusula penal
(art. 27, III), além de restrição à liberdade de escolha do consumidor (art.
11).

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924
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

segunda, que vai do final da II Guerra Mundial até os anos


1980, inauguram certas mudanças de paradigma, representan-
do uma condição pós-colonial em um nível primeiramente for-
mal (CAROU, 2009, p. 66). No entanto, o processo de descolo-
nização que correspondeu à independência formal não elimi-
nou a colonialidade de poder, que se mantém vigente nas es-
truturas sociais, políticas e econômicas, especialmente dos
países latino-americanos. As alterações da ordem geopolítica
ocasionadas pelos processos de independência não foram ca-
pazes de romper com as estruturas coloniais de poder que, de
certa forma, continuam sendo fortalecidas a partir do processo
de expansão que se iniciou com a conquista da América.
O fundamento do Estado-nação moderno e de seu poten-
cial de democratização das sociedades europeias, fato que se
reflete também com o espaço ocupado pela proteção dos direi-
tos civis e políticos e, posteriormente, dos direitos econômicos
e sociais, centra-se na perspectiva do pensamento descoloni-
al10. Nesse sentido, a permanência de relações de dominação,
visualizadas a partir da questão específica dos despejos força-
dos e da violação do direito à moradia, representa que os ele-
mentos da colonialidade, que configuram a matriz colonial de
poder, ainda não foram superados.
A outra face do processo de constituição e de consolida-
ção do Estado-nação foi o mundo colonizado, África e Ásia, ou
dependente, como a América Latina (QUIJANO, 2002, p, 13).

10
O pensamento descolonial desprende-se das bases eurocentradas do
conhecimento e implica em um pensar produzindo conhecimentos que
iluminem os silêncios produzidos por uma forma de saber e de conhecer
cujo horizonte de vida se constituiu no imperialismo. (GROSFOGUEL e
MIGNOLO, 2008, p. 34). A descolonialidade como conceito e projeto é o
conector entre pensadores, ativistas, académicos, periodistas, etc. em
distintas partes do mundo (também na União Europeia e nos Estados
Unidos); o conector entre todos aqueles e aquelas que pensam e fazem a
partir do sentido do mundo e da vida que surge na tomada de
consciência da ferida colonial. O projeto Modernidade/Colonialidade se
distancia de assumir a América Latina como um objeto de estudos,
diferentemente dos estudos latinoamericanos dos Estados Unidos,
sugerindo que a globalização deve ser entendida desde uma
perspectiva geo-histórica e crítica latinoamericana.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

Essa reflexão já estabelece uma concepção diferenciada do


próprio surgimento da modernidade, seus sistemas sociais,
econômicos e jurídicos, principalmente porque situa a impor-
tância do processo de dominação e colonização da América
Latina para a conformação geopolítica do sistema-mundo eu-
ropeu11.
A ideia de matriz colonial do poder – ou colonialidade do
poder – centra-se em dois elementos constitutivos da própria
ideia de modernidade, que até então ainda se desenvolvem no
cenário mundial. O primeiro consiste na formação e consolida-
ção da ideia de raça, como um mecanismo intelectual produzi-
do no momento da violência da conquista, que corresponde à
destruição de uma das mais extraordinárias experiências da
espécie humana, as antigas civilizações latino-americanas
(maias, incas e astecas) e à institucionalização da escravidão
como forma de exploração do trabalho e de segmentação soci-
al, cultural e política (QUIJANO, 2002). A colonialidade de po-
der que surge com a conquista também inova por incorporar o
elemento da distribuição racista12 do trabalho no interior do
capitalismo.

11
Segundo Wallerstein (2007, p. 30) o moderno sistema mundo destaca-se
a partir do universalismo europeu, que consiste no conjunto de
doutrinas e pontos de vista éticos que derivam do contexto europeu e
ambicionam ser valores universais globais – aquilo que muitos de seus
defensores chamam de lei natural – ou como tal são apresentados. É
uma doutrina oralmente ambígua porque ataca os crimes de alguns e
passa por cima dos crimes de outros, apesar de usar critérios que se
afirmam como naturais (Id, Ibid, p. 60).
12
“É o que aponta o Instituto Ethos em pesquisa intitulada O Perfil Social,
Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações
Afirmativas. A pesquisa fez um mapeamento sobre a colocação do negro
em cargos de comando. O resultado: Mesmo representando 51,1% da
população brasileira, a disparidade e a sub-representação ainda são
bastante contrastantes. Segundo a pesquisa, os cargos de executivos
das grandes empresas brasileiras são ocupados por 5,3% de negros. A
situação da mulher negra é pior: ela detém uma parcela de 9,3% da base
da escala e de 0,5% do topo, o que representa, em números absolutos,
seis negras (todas pardas) entre as 119 mulheres ou os 1.162 diretores,
negros e não negros – de ambos os sexos – cuja cor ou raça foi informa-
da pelas empresas que responderam este item da pesquisa.” Disponível

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
926
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

O segundo componente consiste no capitalismo mundial,


não somente como relação social, mas como uma totalidade
heterogênea, um complexo no qual todas as formas de explo-
ração social produzem mercadorias para um novo mercado
mundial sob hegemonia do capital (QUIJANO, 2009, p. 6). O
capitalismo mundial pode ser entendido como todo lugar he-
gemônico em que o capital como relação social possui uma
configuração na qual estão presentes todas as demais formas
historicamente conhecidas de exploração do trabalho. Formas
concebidas pela racionalidade eurocêntrica enquanto pré-
capitalistas foram, e continuam sendo articuladas, na matriz
colonial de poder, para servir aos propósitos e necessidades do
capital13.
O entendimento dessa matriz colonial de poder proporci-
ona um desvelamento dos elementos que determinam a fragili-
zação dos direitos humanos assegurados constitucionalmente,
como o direito à moradia, frente às pressões do mercado inter-
nacional em torno dos negócios lucrativos e oportunos que se
tornaram os megaeventos esportivos a partir dos anos 90. Ou-
tro aspecto determinante para as renovações e rearticulações
da matriz colonial de poder nos países periféricos como o Bra-
sil consiste nas descontinuidades do processo de nacionaliza-
ção e democratização desses países. O processo de indepen-
dência dos Estados na América Latina não foi, portanto, um
processo em direção ao desenvolvimento dos Estados-nação
modernos, mas uma rearticulação da colonialidade do poder

em <http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/161/artigo242497-
1.asp>. Acesso em 01 de fevereiro de 2013.
13
“Por ejemplo, el trabajo asalariado existe hoy, como al comienzo de su
historia, junto con la esclavitud, la servidumbre, la pequeña producción
mercantil, la reciprocidad. Y todos ellos se articulan entre sí y con el ca-
pital. El propio trabajo asalariado se diferencia entre todas las formas
históricas de acumulación, desde la llamada originaria o primitiva, la
plusvalía extensiva, incluyendo todas las gradaciones de la intensiva y
todos los niveles que la actual tecnología permite y contiene, hasta
aquellos en que la fuerza viva de trabajo individual es virtualmente in-
significante. El capitalismo abarca, tiene que abarcar, a todo ese com-
plejo y heterogéneo universo bajo su dominación.” (QUIJANO, 2000,
p.350).
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
927
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

sobre novas bases institucionais. Toda essa leitura compreen-


de uma caracterização muito importante para entender os de-
safios da efetivação dos direitos humanos na América Latina.
Sem o entendimento da dimensão da matriz colonial de poder
é impossível compreender de que maneira os obstáculos à efe-
tivação dos direitos humanos se articulam em torno dos ele-
mentos conformadores da matriz colonial de poder. Isso se
manifesta de forma clara nas violações de direitos humanos
denunciadas pelos movimentos e organizações populares que
formam os Comitês Populares da Copa nacionalmente.
Nesses casos, a reprodução do capital se dá a partir do
aprofundamento das desigualdades já existentes, da manipu-
lação dos moradores, da coação e das ameaças em nome da
satisfação de interesses do setor imobiliário e financeiro, arti-
culados especialmente por meio de empresas transnacionais
parceiros, patrocinadores ou apoiadores nacionais da FIFA14. A
partir das relações sociais determinadas por essa matriz de
poder é possível a esses setores, com a conivência ou autoriza-

14
Essa classificação é feita pela própria FIFA. São grandes empresas
transnacionais que atuam como parceiras da FIFA no financiamento do
megaevento, cujas atividades e estratégias ultrapassam as fronteiras
dos países onde as mesmas surgiram, assim, sua atuação alcança, na
maioria das vezes, uma escala global. O conhecimento dessa rede de
financiadores da FIFA evidencia o nível das disputas travam as disputas
que se travam por novos nichos de mercado para tais empresas ou pelo
aprofundamento de sua atuação em outros mercados. “[...] Os interesses
vão desde a divulgação de suas logomarcas diretamente relacionadas à
natureza da competição, como aquelas de material esportivo, até outras
que denotam uma certa inversão de valores quando se prioriza o esporte
como sinônimo de vida saudável. Nesse particular é notável o exemplo
de empresas de alimentação cujos produtos são comprovadamente
inimigos dos princípios da correta alimentação, ou ainda interesses que
podem subverter regras nacionalmente estabelecidas como aquela da
proibição da venda e consumo de bebidas alcoólicas nos estádios.”
Neste estudo, foram listadas as empresas parceiras (no total de seis):
ADIDAS, EMIRATES, VISA, SONY, COCA-COLA, HYUNDAI e KIA
MOTORS; patrocinadoras (composto por até oito empresas): CASTROL,
MACDONALDS, BUDWEISER, JOHNSON&JOHNSON, CONTINENTAL,
SEARA, OI, YINGLI SOLAR; dentre os apoiadores nacionais, destacam-
se ITAU, LIBERTY SEGUROS, NESTLE, FOOTBALL FOR HOPE e
EDITORA ABRIL. (FIRKOWSKI e SILVA, 2011, p. 2-6).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
928
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

ção do Poder Público, realizar uma profunda reconfiguração do


espaço urbano das cidades-sede, contribuindo para um con-
texto de violações institucionais do direito humano à moradia,
promovendo a exclusão ainda maior de segmentos já discrimi-
nados, como apontou o Relatório enviado ao governo brasileiro
e à ONU da Relatora Especial sobre Direito à Moradia. Uma
reconfiguração que, conforme se depreende dos casos apre-
sentados, direciona-se segundo a necessidade de expansão de
novas fronteiras de acumulação do capital, e não se pauta pelo
princípio essencial e basilar do Estado democrático e da Cons-
tituição Federal de 1988, a vivencia integral dos direitos hu-
manos por parte da população.
A confluência das ideias de igualdade social, de liberda-
de individual e de solidariedade social que advém do Estado
democrático moderno constitui a própria base da admissão de
que na sociedade todos têm igual possibilidade de participar
no controle do trabalho, bem como no controle da autoridade
coletiva, que pela primeira vez se torna pública (QUIJANO,
2002, p. 18). A limitação da vivencia dos direitos humanos nos
países periféricos relaciona-se ao fato de que a condição de
efetivação do Estado democrático de direito encontra-se de-
terminada pelo padrão colonial de poder: Todo o processo his-
tórico deste padrão específico de poder tem consistido no con-
tínuo desdobramento de lutas de resistência e de inúmeras
contradições:
[...] de um lado, os interesses sociais que pugnam, todo o
tempo, pela contínua materialização e universalização da
igualdade social, da liberdade individual e da solidarie-
dade social. Por outro lado, os interesses que pugnam
por limitá-las e, enquanto fosse possível, reduzi-las, ou
melhor, cancelá-las, exceto para os dominantes. O resul-
tado até agora tem sido a institucionalização da negocia-
ção dos limites e das modalidades de dominação cidada-
nia é sua expressão precisa. Dos limites da cidadania,
depende a negociação dos limites e das modalidades da
exploração. O universo institucional que resultou dessas
negociações é o chamado Estado-nação moderno. Isso é

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
929
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

o que se conhece como democracia no atual padrão de


poder. (Id, 2002, p. 19).

Verifica-se que a democratização das formas de controle


da autoridade pública passa, necessariamente, por um proces-
so de descolonização das relações sociais, o que de fato ainda
não ocorreu completamente nos países latino-americanos. A
classificação racial do poder e do trabalho e o princípio da
acumulação do capital ainda embasam a existência de formas
de exploração arcaicas – como a escravidão15, por exemplo –
em um cenário de “economia globalizada”; a rápida transfor-
mação das cidades em um mercado de consumo para poucos,
no caso dos megaeventos, com a previsão de mais de 150 mil
pessoas deslocadas compulsoriamente devido às intervenções
urbanas, a grande maioria sem acesso à informação, indeniza-
ção adequadas e muitas vezes, submetidas a moradias em si-
tuação precária ou/e em lugares distantes.

15
“O Atlas também oferece um perfil típico do escravo brasileiro do século
XXI: é um migrante maranhense, do Norte de Tocantins ou oeste do
Piauí, de sexo masculino, analfabeto funcional, que foi levado para as
fronteiras móveis da Amazônia, em municípios de criação recente, onde
é utilizado principalmente em atividades vinculadas ao desmatamento.
É importante observar que existem fluxos, manchas e modalidades
expressivas - e igualmente graves - de trabalho escravo em outras
regiões – principalmente no Centro-Oeste e Nordeste - e em outros
setores, mas o perfil acima referido é decididamente majoritário. Há,
pelo menos, vinte municípios com alto grau de probabilidade de
trabalho escravo localizados nas regiões de fronteira na Amazônia
brasileira. Nestas áreas, coincidem a queima de madeira para a
fabricação do carvão vegetal, as altas taxas de desmatamento, o
trabalho pesado de destoca para formação de pastagem e atividades
pecuárias nas glebas rurais ocupadas. [...] Os dados do MTE são
relativos aos casos em que foi constatada a existência de trabalho
escravo, e indicam o número de trabalhadores libertados pelo Grupo
Móvel entre 1995 a 2008. O número real de trabalhadores escravizados é
sem dúvida maior [...] Entre 1990 e 2006, a CPT registrou denúncias
sobre 133.656 trabalhadores escravizados e, entre 1995 e 2006, o
Ministério do Trabalho libertou 17.961 trabalhadores da escravidão. A
análise dos dados de 1996 até 2006 mostra que a partir de 2001 houve
um crescimento significativo do número de trabalhadores em denúncias
(CPT), bem como de trabalhadores libertados (MTE).” (THÉRY et al,
2009, p. 11-19).

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
930
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

Essa crítica também se volta para a concepção eurocen-


trada dos direitos humanos que, enquanto prática institucio-
nal, expressam geralmente a ideia de uma sociedade organi-
zada a partir de uma ordem única e homogênea, advinda da
globalização do capitalismo ocidental e do consumismo. A di-
mensão contraditória e ambígua dos direitos humanos, tam-
bém abordada por Douzinas (2009, p. 379) se expressa no fato
de que são mobilizados, a partir de uma análise histórica de
sua afirmação global, segundo padrões locais (ocidentais) to-
mados universalmente, cujos valores e princípios constituem
uma tentativa de enclausurar sociedades e impor a elas uma
lógica única. Ao mesmo tempo, representam também um po-
deroso imaginário popular aberto a identidades diversas, tra-
dições heterogêneas e reprimidas.
A busca pela descolonização das fontes epistêmicas,
quando analisadas a partir da ótica dos direitos humanos e da
democracia nos países periféricos, possui o condão de propor a
urgente consideração da matriz colonial de poder no desafio de
concretização dos direitos humanos. Nesse movimento, cai por
terra a teoria hegemônica sobre a democracia, que permite
perpetuar o mito do indivíduo isolado, “[...] concentrado em si
mesmo e contraposto ao social, e do mito que funda a versão
eurocêntrica da modernidade, o mito do Estado de natureza
como momento inicial da trajetória civilizatória cujo apogeu é,
por certo, ‘Ocidente’.” (QUIJANO, 2002, p. 26).
De outro lado, mostra-se igualmente importante valorizar
os espaços de resistência à lógica imposta, no caso dos mega-
eventos, pela reconfiguração urbana determinada pela dinâmi-
ca do capital, principalmente porque tais espaços se confor-
mam a partir da luta pela efetivação dos direitos humanos, pe-
lo respeito e valorização da vida e da qualidade de vida dessas
comunidades e grupos de pessoas discriminados, que sofrem
de forma mais intensa os efeitos negativos desse processo,
como se viu.
A análise teórica proposta pelo pensamento descolonial,
mais especificamente a categoria de colonialidade do poder de
Quijano, mostra-se capaz de, no caso das violações de direitos
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
931
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

humanos no contexto dos megaeventos, afirmar como se arti-


culam as estratégias de reprodução das forças hegemônicas,
que colocam grupos e pessoas em posições desiguais em rela-
ção à vivencia dos direitos humanos (FLORES, 2009, p. 97) e,
ainda, bloqueiam e anulam as bases do modelo democrático
consubstanciado na Constituição de 1988. Destaca-se ainda
que o entendimento da colonialidade como condição da mo-
dernidade, e a subsistência dessa ordem nas relações sociais
dos países latino-americanos, podem dar azo a uma teoria crí-
tica e contextualizada dos direitos humanos, imbuída de con-
dições teórico-práticas para afirmar a libertação real e expres-
são da humanidade nas populações de todo o mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo concedeu enfoque às principais denúncias reali-
zadas no campo dos direitos humanos, especialmente àquelas
relacionadas às violações do direito à cidade e à moradia ade-
quada, no sentido de problematizar algumas questões relati-
vas ao tema da positivação e fundamentação dos direitos hu-
manos no contexto latino-americano. Por meio do extenso ma-
terial produzido por movimentos e grupos populares organiza-
dos foi possível destacar alguns casos emblemáticos, que ex-
pressam as principais deficiências do controle da autoridade
pública em nosso país, principalmente no contexto de um Es-
tado democrático.
As articulações que dão ensejo à matriz colonial de poder
– classificação racial do trabalho e aglutinação de formas ar-
caicas e modernas de exploração visando à expansão das fron-
teiras do capital – podem ser identificadas nos casos apresen-
tados, principalmente devido à constatação, segundo o Relató-
rio Especial organizado pela Organização das Nações Unidas
por meio de sua relatora especial para moradia, a professora
Raquel Rolnik, de que as comunidades pobres e os grupos que
já sofrem discriminação cotidianamente – minorias étnicas,
anciãos, crianças, imigrantes – no histórico de realização dos
megaeventos, foram os mais afetados pelas consequências
negativas.
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
932
Natalia Martinuzzi Castilho & Alex Silveira Filho

Destaca-se também a maneira segundo a qual essa ma-


triz se mostra capaz de anular as estratégias e tentativas de
democratização das sociedades periféricas, especialmente
porque a ruptura dessas nações com o sistema colonialista não
implicou em um processo de descolonização das relações soci-
ais e do controle do poder. Confluindo igualmente para a críti-
ca ao paradigma eurocêntrico e homogeneizante dos direitos
humanos, a categoria colonialidade do poder e os aportes do
pensamento descolonial podem ser capazes de dois movimen-
tos importantes. Tanto de desvelar as articulações históricas
que envolvem a contínua anulação e desrespeito aos direitos
humanos nos países latino-americanos, como o Brasil no con-
texto da realização da Copa do Mundo, quanto de valorizar os
espaços de resistência à lógica de expansão do bloco imperia-
lista mundial enquanto possíveis expressões, tomadas a partir
da produção acadêmica teórico-prática, de concepções de di-
reitos humanos críticas e pautadas pela defesa da vida dos
excluídos.

REFERÊNCIAS
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Unisinos, 2009.
FIRKOWSKI, Olga; SILVA, Glayton R. de. A copa do mundo e os inte-
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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
933
As violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos ...

LIMA, Tatiana. Remoções de moradores abrem espaços para a Copa


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THÉRY, Hervé. Atlas do trabalho escravo no Brasil. Hervé Théry, Neli
Aparecida de Mello, Julio Hato, Eduardo Paulon Girardi. São Paulo:
Amigos da Terra, 2009. Disponível e: <http://amazonia.org.br/wp-
content/uploads/2012/05/Atlas-do-Trabalho-Escravo.pdf>. Acesso
em 07 de fevereiro de 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
OS CUSTOS HUMANOS DA
PIRATARIA MARÍTIMA

Nelson Speranza Filho


Advogado. Professor universitário na Faculdade do Guarujá – FAGU, inte-
grante do Grupo Educacional UNIESP. Professor convidado no Curso de
Especialização em Direito Marítimo e Portuário da Universidade Católica
de Santos – UNISANTOS. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual
Civil e Direito Processual do Trabalho pela Universidade Católica de Santos
– UNISANTOS. Mestrando em Direito Internacional pela Universidade Ca-
tólica de Santos – UNISANTOS. Autor de artigos jurídicos.
(speranza.adv@gmail.com)

Resumo
O presente trabalho científico tem como objetivo o estudo das violações aos direitos
humanos em decorrência de atos de pirataria, de forma a efetuar uma análise quan-
titativa e qualitativa destas violações, ante o fim último de ressaltar a importância do
combate ao mencionado delito. Tal fenômeno é, hodiernamente, questão de grande
preocupação mundial, dadas as frequentes e graves violações ao direitos humanos
dos trabalhadores marítimos, vítimas deste delito que assola parte das costas do
Oeste e Leste da África.
Palavras-chave: Pirataria Marítima; Direitos Humanos; Direito do Mar.

Abstract
This scientific work is aimed at the study of human rights violations as a result of acts
of piracy in order to make a quantitative and qualitative analysis of these violations,
compared to the last end to emphasize the importance of combating crime men-
tioned. This phenomenon is currently, an issue of great concern worldwide, because
the frequent and serious violations of human rights of seafarers, victims of this crime
that plagues part of the coasts of West and East Africa.
Keywords: Maritime Piracy; Human Rights; Law of the Sea.

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa visa analisar as violações aos direi-
tos humanos oriundas da prática de atos de pirataria. Para tal,
é realizada uma análise quantitativa e qualitativa de tais even-
tos, com o objetivo de ressaltar a importância do combate a tal
prática delitiva.
A pirataria marítima é fenômeno de grande preocupação
na sociedade global, dadas as frequentes e graves violações
936
Nelson Speranza Filho

dos direitos humanos dos trabalhadores marítimos, vítimas


das mais diversas e cruéis formas de violência.
Para o melhor entendimento sobre a questão, faz-se im-
perioso discorrer sobre o conceito de pirataria marítima que,
apesar de normatizado, gera grande discussões a respeito de
sua abrangência, bem como das espécies de atos piratescos e
modus operandi.
Após é realizada uma análise a respeito das formas de
violência praticadas por piratas em áreas críticas, fazendo um
levantamento das espécies e quantidade de atos de violação
aos direitos humanos das vítimas de tal crime.
Por derradeiro, verifica-se que tais violações representam
grande preocupação da sociedade global, merecendo, destar-
te, especial atenção quando do tratamento da temática do
combate ao fenômeno da pirataria marítima.

CONCEITO DE PIRATARIA MARÍTIMA


A pirataria marítima, definida hoje como ato ilícito, nem
sempre teve esta conotação:
[...] pirataria era entendida principalmente como um ato
de guerra, quando navios, comandantes e tripulações es-
tavam sob a licença (‘Carta de Marque’) ou os auspícios
de um monarca ou governo para atacar e pilhar a frota de
um Estado competidor numa dada rota comercial consi-
derada monopólio para a aquisição de especiarias, teci-
dos, minerais nobres e presas de animais apreciados pe-
los artesãos europeus. Adicione-se o fato de que o ato
constituía-se de pirataria em qualquer porção do espaço
marítimo, fosse realizado em alto-mar ou não1.

O conceito de pirataria perdeu hodiernamente seu caráter


de ato com participação estatal, passando a ter como essência
a finalidade privada.
1
CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, direito
marítimo e perspectivas num mundo em reforma da ordem
internacional. 2 ed. São Paulo: Lex Editora, 2006, p. 202-203.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
937
Os custos humanos da pirataria marítima

A Convenção sobre o Alto-Mar de 1958 dispôs sobre os


atos de pirataria, em seu artigo 15º, o seguinte:
[...] Constituem pirataria os actos a seguir enumerados:
1) Todo o acto ilegítimo de violência, de detenção ou toda
a depredação cometida para fins pessoais pela tripulação
ou passageiros de um navio privado ou de uma aeronave
privada, e dirigidos:
a) No alto mar, contra um outro navio ou aeronave, ou
contra pessoas e bens a seu bordo;
b) Contra um navio ou aeronave, pessoas ou bens, em lo-
cal fora da jurisdição de qualquer Estado.
2) Todos os actos de participação voluntária para utiliza-
ção de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que
os comete tem conhecimento de factos que conferem a
este navio ou a esta aeronave o carácter de navio ou ae-
ronave pirata.
3) Toda a acção tendo por fim incitar a cometer os actos
definidos nas alíneas 1) e 2) do presente artigo ou em-
preendida com a intenção de os facilitar.

Tal texto, bem como outros regramentos sobre o tema, foi


repetido integralmente na Convenção das Nações Unidas so-
bre Direito do Mar (CNUDM III), de 1982, também conhecida
como Convenção de Montego Bay, que em seu art. 101 define
quais atos são considerados de pirataria, in verbis:
[...] Constituem pirataria quaisquer dos seguintes atos:
a) ato ilícito de violência ou de detenção ou todo ato de
depredação cometidos, para fins privados, pela tripula-
ção ou pelos passageiros de um navio ou de uma aerona-
ve privados, e dirigidos contra:
i) um navio ou uma aeronave em alto mar ou pessoas ou
bens a bordo dos mesmos;
ii) um navio ou uma aeronave, pessoas ou bens em lugar
não submetido à jurisdição de algum Estado;
b) todo ato de participação voluntária na utilização de um
navio ou de uma aeronave, quando aquele que o pratica

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
938
Nelson Speranza Filho

tenha conhecimento de fatos que dêem a esse navio ou a


essa aeronave o caráter de navio ou aeronave pirata;
c) toda a ação que tenha por fim incitar ou ajudar intenci-
onalmente a cometer um dos atos enunciados nas alíneas
a) ou b).

Há três elementos que devem ser avaliados quando da


análise de atos de pirataria:
O objeto do ato deve ser um navio, aeronave ou passagei-
ros/tripulantes destes veículos. O critério geográfico, por
sua vez, estipula que o crime tem que ser perpetrado em
alto mar ou em lugar onde não haja a jurisdição de um es-
tado. Por este critério, deixariam de ser considerados to-
dos os atos cometidos nas águas interiores, mar territori-
al e zona econômica exclusiva (ZEE). [data venia, a rigor,
a jurisdição é exercida somente no mar territorial e águas
interiores, onde o Estado atua na plenitude do uso de
seus poderes, visto que a zona contígua destina-se ape-
nas à fiscalização, um preparo para a entrada no navio no
mar territorial, assim como na zona econômica exclusiva
há somente o monopólio da exploração de recursos natu-
rais, quer sejam de natureza animal (pesca), quer sejam
de natureza mineral (por exemplo petróleo)]
Os dois primeiros critérios – objeto e localização – são ob-
jetivos. Entretanto, a finalidade é subjetiva por natureza,
podendo comportar diferentes interpretações. Por exem-
plo, não há consenso entre os juristas se o animus furan-
di, a intenção de roubar, é elemento necessário ou se atos
de insurgentes procurando derrubar seu governo devem
ficar fora da definição. A jurisprudência das cortes nos
Estados Unidos da América e Reino Unido têm adotado
que qualquer ato não autorizado de violência cometido
no alto mar é pirataria2.

2
CANINAS, Osvaldo Peçanha. Pirataria marítima moderna: história,
situação atual e desafios. Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de
Janeiro, n. 14, 2009, p. 106. Disponível em: <https://www.egn.mar.mil.
br/arquivos/revistaEgn/dezembro2009/Pirataria%20mar%C3%ADtma%20
moderna%20-%20Hist%C3%B3ria%20-
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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25 e 26 de abril de 2013
939
Os custos humanos da pirataria marítima

Diante de tal dispositivo legal há que identificar três tipos


de ato de pirataria: pirataria propriamente dita, participação
na pirataria e instigação ou auxílio à pirataria.
O primeiro tipo tem como elementos característicos: a vio-
lência, seja física (depredação) ou moral (mera ameaça), sendo
frequente o uso da primeira, dadas as proporções dos meios de
transporte das vítimas (navios); e os fins privados, visto que
não se confundem os atos de pirataria com atos típicos do po-
der de império de Estado (presa bélica, captura e apreensão).
Os atos de pirataria referem-se às presas3 piratescas:
Denomina-se presa todo ato de depredação, praticado no
mar por homens que o percorrem roubando, à mão arma-
da, navios de qualquer nação. Diz respeito, principalmen-
te, ao arrebatamento do navio ou à carga por piratas. É o
ato de pirataria4.

O segundo tipo refere-se à participação na pirataria, se-


gundo o qual não se faz necessária para a caracterização do
tipo o elemento da violência, mas sim, apenas, o conhecimento
do uso do navio para cometimento de atos de pirataria. Tal es-
pécie é usualmente cometida pela tripulação dos motherships5
que não praticam propriamente os atos de violência contra as
vítimas de pirataria, mas que tem conhecimento do uso das
embarcações para tal fim.
O último tipo faz menção à instigação ou auxílio à pirata-
ria. Incitar refere-se ao ato de instigar, reforçar a ideia de co-
meter as condutas descritas nas alíneas a ou b do mencionado
dispositivo legal. Auxiliar é a prestação de ajuda material à
prática dos citados atos, como por exemplo os piratas que

%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20atual%20e%20Desafios%20-%20Osvaldo
%20Pe%C3%A7anha%20Caninas.pdf>. Acesso em: 10/09/2012. (sic)
3
Presa significa a tomada de coisa de seu dono.
4
GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do direito
marítimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 234.
5
Navios de maior porte (geralmente navios de pesca) usados para
coordenar atos de pirataria mais elaborados, das quais saem
embarcações menores e mais rápidas.

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940
Nelson Speranza Filho

atuam como assistentes de artilharia, no recarregamento das


RPGs6 utilizadas nos ataques às vítimas.
São equiparados a esses atos os cometidos por navios de
guerra na hipótese prevista no art. 102 da CNUDM III, in ver-
bis:
Os atos de pirataria definidos no Artigo 101, perpetrados
por um navio de guerra, um navio de Estado ou uma ae-
ronave de Estado, cuja tripulação se tenha amotinado e
apoderado do navio ou aeronave, são equiparados a atos
cometidos por um navio ou aeronave privados.

Vale ressaltar que todos esses atos descritos na CNUDM


III, para que possam configurar pirataria, hão de ser praticados
em lugar não submetido à jurisdição de um Estado, sob pena
de serem considerados outros tipos penais previstos na legis-
lação interna de tal Estado, delitos estes classificados pela Or-
ganização Marítima Internacional (International Martime Or-
ganization – IMO) como roubo armado contra navios (armed
robbery against ships), conforme dispõe o item 2.2 do Anexo
Code of Practice for the Investigation of Crimes of Piracy and
Armed Robbery against ships da sua Resolução A.922(22):
‘Roubo armado contra navios’ significa qualquer ato ilíci-
to de violência ou de detenção ou qualquer ato de depre-
dação, ou ameaça, não tipificado como ato de pirataria,
dirigido contra um navio ou contra pessoas ou bens a
bordo de um navio dentro da jurisdição do Estado sobre
tais infrações.

Faz-se mister ainda mencionar que tal assunto é também


disciplinado na Convenção para Supressão de Atos Ilícitos
contra a Segurança da Navegação Marítima (SUA Convention),
que em seu artigo 3º disciplina que:
1. Qualquer pessoa comete delito se, ilícita e intencio-
nalmente:

6
Do inglês rocket-propelled grenade. Lançadores de granadas propelidas
por foguetes.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
941
Os custos humanos da pirataria marítima

(a) sequestar ou exercer controle sobre um navio, pela


força ou ameaça de força ou por qualquer outra forma de
intimidação; ou
(b) praticar ato de violência contra pessoa a bordo de um
navio, se esse ato for capaz de pôr em perigo a navega-
ção segura desse navio; ou
(c) destruir um navio ou causar dano a um navio ou à sua
carga e esse ato for capaz de pôr em perigo a navegação
segura desse navio; ou
(d) colocar ou mandar colocar em um navio, por qualquer
meio, dispositivo ou substância capaz de destruí-lo ou
causar dano a esse navio ou à sua carga, e esse ato puser
em perigo ou for capaz de pôr em perigo a navegação se-
gura desse navio; ou
(e) destruir ou danificar seriamente instalações de nave-
gação marítima ou interferir seriamente em seu funcio-
namento, se qualquer desses atos for capaz de pôr em
perigo a navegação segura do navio; ou
(f) fornecer informações que sabe serem falsas, dessa
forma pondo em perigo a navegação segura de um navio;
ou
(g) ferir ou matar qualquer pessoa, em conexão com a
prática ou tentativa de prática de qualquer dos delitos
previstos nas letras (a) a (f).
2. Qualquer pessoa também comete delito se:
(a) tentar cometer qualquer dos delitos previstos no pa-
rágrafo 1; ou
(b) ajudar na prática de qualquer dos delitos previstos no
parágrafo 1, cometido por qualquer pessoa, ou for, de ou-
tra forma, cúmplice de pessoa que cometa tal delito; ou
(c) ameaçar, com ou sem condição, conforme disposto na
lei nacional, com o objetivo de compelir pessoa física ou
jurídica a praticar ou deixar de praticar qualquer ato, co-
meter qualquer dos delitos previstos no parágrafo 1, le-
tras (b), (c) e (e), se essa ameaça for capaz de pôr em pe-
rigo a navegação segura do navio em questão.

A SUA Convention, também conhecida como Convenção


de Roma de 1988, foi criada com a finalidade de suprir a ano-
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942
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mia existente na CNUDM no sentido de ser elemento da pira-


taria o fim privado do ato, dessa forma, não integrando o tipo
condutas baseadas em outros fins, como por exemplo políticos
e religiosos.
Como se depreende, a Convenção de Roma de 1988, veio
superar a lacuna da CNUDM ao não cobrir atos políticos
ilícitos em suas definições sobre pirataria, superando,
bem assim, a necessidade do envolvimento de dois navi-
os para caracterizar o ato. Ao generalizar a ofensa ou a
ilicitude, as disposições do tratado de Roma se aplicam
tanto aos atos terroristas marítimos – privados ou políti-
cos – quanto à pirataria marítima.7

ESPÉCIES DE PIRATARIA
O International Maritime Bureau (IMB) disciplina que há
três dimensões de atos de pirataria: o Low-Level Armed
Robbery (LLAR), o Meddium-Level Armed Assault and
Robbery (MLAAR), e o Major Criminal Hijack (MCHJ)8.

LOW-LEVEL ARMED ROBBERY


Refere-se à modalidade mais simples de pirataria, sem
destruição de partes do navio ou mesmo sequestro da tripula-
ção, e com menor rentabilidade para os agentes, visto que
consiste muitas vezes em pequenos roubos ou furtos.
O ‘Low-Level Armed Robbery’ é o nível mais baixo da pi-
rataria, no qual os piratas assaltam o navio e a tripulação
e fogem, sendo um dos 942romove942s do assalto o cofre
do navio. Estes tipos de ataques ocorrem, normalmente,

7
CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, direito
marítimo e perspectivas num mundo em reforma da ordem
internacional. 2 ed. São Paulo: Lex Editora, 2006, p. 223.
8
SARAMAGO, Maria Lisa Miranda. A pirataria no século XXI. Academia
de Marinha. 13/05/2009. Disponível em: <http://www.marinha.pt/PT/
amarinha/actividade/areacultural/academiademarinha/Documents/texto
s_conferencias/13JAN09.pdf>. Acesso em: 10/09/2012.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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943
Os custos humanos da pirataria marítima

enquanto o navio está no porto ou no ancoradouro, suce-


dendo-se, normalmente à noite. Ocasionalmente, contudo
raramente, o navio é levado para venda.9

Vale ressaltar que é comum o enquadramento de tal deli-


to no conceito de armed robbery against ships, dado o fato de
ocorrer com maior frequência em portos, área de jurisdição do
Estado em que se situa o porto.
Como exemplo, pode ser citado o evento ocorrido no dia
16 de outubro de 201210, em Conakry, na Guiné, em que seis
assaltantes embarcaram em um navio cargueiro ancorado, fur-
tando carga armazenada em contêineres. A tripulação ficou a
salvo, pois se escondeu nos alojamentos, entrando em contato
imediatamente com o Centro de Denúncias do Internacional
Maritime Bureau, que transmitiu a mensagem às autoridades
competentes. Os assaltantes fugiram com as citadas mercado-
rias ao ver a embarcação da patrulha enviada se aproximando.
Outro caso ocorreu 18 do mesmo mês e ano, em Tanjung Datu,
em Sarawak, na Malasia, onde ladrões abordaram um reboca-
dor que puxava uma balsa, roubaram o dinheiro da tripulação e
fugiram11.

MEDIUM-LEVEL ARMED ASSAUL AND ROBBERY


É uma espécie intermediária de pirataria, em que são
empregados armamentos poderosos, utilizando violência para
a consecução dos atos piratescos e táticas de abordagem das
vítimas.
Segue-se o ‘Meddium-Level Armed Assault and
Robbery’, no qual os actos de pirataria são realizados por
grupos que se encontram bem organizados e que operam
com embarcações rápidas nas proximidades da costa. No
entanto, o raio de acção pode ser alargado pela utilização

9
Loc. cit.
10
Fonte: ICC. Disponível em: < http://www.icc-ccs.org/piracy-reporting-
centre/live-piracy-report/details/117/279>. Acesso em: 29/10/2012.
11
Idem.

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944
Nelson Speranza Filho

de ‘navios-mãe’ (mother-ships), possuindo, frequente-


mente, radar. Neste caso, já estamos perante um maior
nível de brutalidade, com tripulação ameaçada, amarra-
da, e possivelmente ferida. O armamento utilizado
abrange armas automáticas, RPG’s ou morteiros.12

Esta espécie também é classificada normalmente como


armed robbery against ships, dado o fato de comumente visar
navios ancorados. Entretanto, nada impede que seja realizada
em região fora da jurisdição de algum Estado, posto que os
agentes contam com embarcações maiores que lhes dão suporte.
O modus operandi nessa modalidade de pirataria geral-
mente observa o seguinte:
[...] as horas iniciais da manhã são o momento favorito
dos piratas para atacar os navios que estão de passagem
em alto mar. Usualmente, estes atacantes tem um bom
conhecimento de navios e se aproximam dos navios com
rapidez de dezessete nós [aproximadamente 31,5km/h].
Os piratas usam cordas e ganchos para chegarem ao
convés. A partir deste ponto, os procedimentos usados
são similares aos empregados pelos ladrões armados nos
portos. Os piratas de alto mar, entretanto, parecem ser
mais violentos do que seus colegas da costa e geralmen-
te são mais bem armados. Depois de roubarem a tripula-
ção e pegarem tudo o que puderem da carga do navio, os
piratas normalmente trancam os membros da tripulação
em seus aposentos. Os piratas então partem, deixando o
navio se movendo sem ninguém na ponte.13

Como exemplos, podem ser citados os eventos ocorridos


no dia 15 de outubro de 201214, no sul de Brass, na Nigéria, em

12
SARAMAGO, Maria Lisa Miranda. A pirataria no século XXI. Academia
de Marinha. 13/05/2009. Disponível em: <http://www.marinha.pt/PT/
amarinha/actividade/areacultural/academiademarinha/Documents/texto
s_conferencias/13JAN09.pdf>. Acesso em: 10/09/2012.
13
GOTTSCHALK, Jack A. et al.Jolly Roger with an Uzi: the rise and threat
of modern piracy. Annapolis: Naval Institute Press, 2000, p. 130,
tradução nossa.
14
Fonte: ICC. Disponível em: < http://www.icc-ccs.org/piracy-reporting-
centre/live-piracy-report/details/117/283>. Acesso em: 29/10/2012.
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945
Os custos humanos da pirataria marítima

sete piratas armados embarcaram em um rebocador através de


uma lancha lançada de um navio mãe, roubando os pertences
pessoais da tripulação, bem como sequestrando sete integran-
tes desta; e no dia 4 do mesmo mês e ano, em Lomé, Togo, em
que:
Cerca de 10-12 piratas armados com armas automáticas
embarcaram em um navio-tanque à deriva. Os piratas
sequestraram o navio tanque e reuniram toda a tripula-
ção na ponte enquanto esperavam por uma bunker barge
[um navio tanque pequeno de reabastecimento] para
roubar a carga do navio. Quando a bunker barge chegou,
a tripulação do navio foi forçada a preparar as defesas
para o navio atracar ao seu lado. Depois de roubar a car-
ga os piratas trancaram a tripulação na cabine do Co-
mandante, danificando alguns dos equipamentos de na-
vegação, roubaram dinheiro navio, pertences pessoais da
tripulação, provisões e itens eletrônicos e depois deixa-
ram o navio-tanque em 05/10/2012 nas primeiras horas
da manhã. Todos os tripulantes estão a salvo apesar de
algumas lesões físicas.15

MAJOR CRIMINAL HIJACK


Esta é a forma mais grave de pirataria e a mais rentável
das três espécies.
Na dimensão mais elevada distinguida pelo IMB, o ‘Major
Criminal Hijack’, as acções são perpetradas por organi-
zações regionais de grande dimensão, ou mesmo inter-
nacionais. Aqui, o navio é sequestrado, e é pedido um
resgate; há o recurso à violência extrema (por vezes a tri-
pulação é assassinada). Pode acontecer o navio ser repin-
tado, ser-lhe dada outra bandeira e registo sob outro no-
me (Phantom Ship). São uma pequena parte dos crimes
de pirataria ocorridos em todo o mundo, no entanto os
mais rentáveis.

15
Fonte: ICC. Disponível em: < http://www.icc-ccs.org/piracy-reporting-
centre/live-piracy-report/details/117/268>. Acesso em: 29/10/2012.

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946
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Quanto à última espécie, faz-se mister mencionar impor-


tante caso, o do petroleiro MV Sirius Star, o maior navio já se-
questrado por piratas da história. Com carga avaliada em US$
100 milhões16, e tripulação de 25 pessoas, foi sequestrado por
piratas somalis em 15 de novembro de 2008, sendo libertado
após pagamento de resgate no montante de US$ 3 milhões, em
9 de janeiro de 200917.

CUSTOS AOS DIREITOS HUMANOS


Primeiramente, cabe mencionar que, lembrando que so-
mente há prática de atos de pirataria marítima se estes forem
cometidos em local não sujeito à jurisdição de algum Estado,
há apenas duas regiões no mundo onde este delito é endêmi-
co: o Noroeste africano, conhecido como Chifre da África, e o
Golfo da Guiné, no Leste da África.
Conforme já exposto anteriormente, o modus operandi ob-
servado pelos piratas presentes nas zonas de risco africanas
consiste no uso de extrema violência na maioria das vezes, vis-
to que normalmente abordam o navio vítima já abrindo fogo
contra ele, com emprego de armas de grosso calibre (rifles de
assalto, como por exemplo AK-47) ou mesmo explosivos lança-
dos contra o navio (RPGs e morteiros).
No momento da abordagem do navio vítima do ataque o
uso da violência torna-se ainda mais comum, podendo qual-
quer tentativa de resistência por parte dos marítimos resultar
em execução do insurgente ou de toda a tripulação.
Comumente, como se observa nos constantes ataques pi-
ratas, é relativamente baixo o número de mortes de tripulantes
em relação ao número de incidentes. Isto se dá pelo fato de
que a vida dos tripulantes é de extrema valia para os piratas,

16
Hijacked Saudi oil tanker Sirius Star on the move. Disponível em:
<http://www.guardian.co.uk/world/2009/jan/09/somalia-pirates-
supertanker-ransom>. Acesso em: 10/09/2012.
17
NT saudita foi liberado segundo fontes somalis. Disponível em:
<http://www.naval.com.br/blog/2009/01/11/nt-saudita-foi-liberado-
segundo-fontes-somalis/#axzz1t6Xu97FH>. Acesso em: 10/09/2012.
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25 e 26 de abril de 2013
947
Os custos humanos da pirataria marítima

posto que valem vultuosos pedidos de resgate e impedem as


forças militares que patrulham as regiões críticas de efetuarem
ataques massivos às bases piratas.
Um porta-voz da UE informou que aviões marítimos e
uma base de helicópteros de ataque participaram de
ataques aéreos no início da terça-feira [15/05/2012] ao
longo da costa da Somália. Não foram registradas vítimas
nos ataques aéreos, que ocorreram ao longo da costa
central da Somália, na região de Galmudug. Muitos bar-
cos piratas foram destruidos, segundo o comunicado.
O ataque aos piratas somalis foi parte de uma aborda-
gem abrangente para combater a pirataria. As forças da
UE foram transportados de helicóptero para as bases dos
piratas perto do porto de Haradheere. As forças anti-
pirataria têm sido relutantes em atacar bases do conti-
nente, temendo pela tripulação dos navios capturados.
[...]
Um porta-voz acrescentou que a operação foi realizada
com o total apoio do governo da Somália, após ampla vi-
gilância, e o objetivo era negar aos piratas somalis um
seguro paraíso terrestre.
A UE permitiu que seus navios de guerra ataquem alvos
de piratas na costa desde o mês passado, mas o primeiro
ataque a piratas somalis ocorreu terça-feira 15 de maio.18

Mesmo com baixos índices de homicídios, se comparados


ao elevado número de incidentes de pirataria, são diversas as
formas de violência praticadas pelos piratas, representando
preocupantes violações aos direitos humanos, dadas a cons-
tância e quantidade das violações.
O IMB, em seu relatório anual de 201219, classificou e
quantificou os tipos de violência sofrida pelas tripulações víti-
mas de pirataria e assalto armado contra navio no mundo. Tal
classificação obedece o seguinte quadro:

18
Forças da UE no primeiro ataque aos piratas somalis. Disponível em:
<http://www.onip.org.br/noticias/sintese/forcas-da-ue-no-primeiro-
ataque-aos-piratas-somalis/>. Acesso em: 23/03/2013. (sic)
19
ICC-IMB. Piracy and Armed Robbery against Ships: report for the
period 1 january – 31 december 2012. Londres, 2013, p. 11, tradução
nossa.

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948
Nelson Speranza Filho

Ainda de acordo com o mesmo relatório20, pode-se identi-


ficar a espécie e quantidade dos atos de violência praticados
nas regiões críticas africanas no ano de 2012.

Amea- Assalta- Seques-


Tipo de violência Reféns Feridos Mortos
çados dos trados
Costa do Marfim 25 1 0 0 0 0
Gana 0 2 0 1 0 0
Togo 79 0 0 1 0 0
Oeste da África

Benin 19 0 0 0 0 0
Nigéria 61 0 1 7 4 26
Camarões 1 0 0 0 0 0
Guiné Equatorial 8 0 0 1 0 0
Gabão 0 0 0 0 0 0
Subtotal 193 3 1 10 4 26
Somália 212 0 0 1 2 0
Nordeste da África

Golfo de Áden 38 0 0 0 0 0
Mar Vermelho 0 0 0 0 0 0
Mar Arábico 0 0 0 0 0 0
Oceano Índico 0 0 0 0 0 0
Subtotal 250 0 0 1 2 0
TOTAIS 443 3 1 11 6 26

20
Loc. cit.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
949
Os custos humanos da pirataria marítima

Conforme se verifica nas tabelas acima, dos 662 atos de


violência relativos a atos de pirataria ou assalto armado prati-
cado contra navios no mundo, 490 são praticados nas zonas de
risco de pirataria marítima, o que representa aproximadamente
74,02% dos atos de violência praticados.
Vale ressaltar que, segundo o IMB21 com informações atu-
alizadas até 13 de março de 2013, foram noticiados 47 ataques
de pirataria e roubo armado contra navios no mundo, sendo 3
deles sequestros. Na Somália, permanecem em posse dos pira-
tas 5 navios e 65 tripulantes feitos reféns.
O projeto Oceans Beyond Piracy da One Earth Future
Foundation, junto a ICC-IMB, divulgou, em 22 de junho de
2012, um relatório22 sobre os custos humanos causados pela
pirataria na Somália em 2011. Em resumo, chegaram aos se-
guintes números:
A primeira parte do relatório avalia os crimes cometidos
por piratas em 2011. Estes foram cometidos contra marí-
timos transitando por Área de Alto Risco em 2011 que es-
tavam em navios que foram baleados, abordados, ou se-
questrados; marítimos que foram feitos reféns em 2010
mas continuaram cativos em 2011; marinheiros de yachts
particulares abordados e atacados por piratas; e pessoas
no porto, incluindo trabalhadores de ajuda humanitária e
turistas, que foram sequestrados e mantidos em cativeiro
para resgastes.
o 555 marítimos que foram atacados e feitos reféns
em 2011
o 645 reféns capturados em 2010 que permanece-
ram nas mãos dos piratas em 2011 incluindo
 26 reféns estiveram cativos por mais de 2 anos
 123 reféns estiveram cativos por mais 1 ano

21
Idem. Piracy & Armed Robbery News & Figures. Disponível em:
<http://www.icc-ccs.org/piracy-reporting-centre/piracynewsafigures>.
Acesso em: 24/03/2013. Tradução nossa.
22
ICC-IMB; Oceans Beyond Piracy. The Human Cost of Somali Piracy in
2011. Disponível em: <http://oceansbeyondpiracy.org/sites/default/
files/hcop_2011.pdf>. Acesso em: 24/03/2013. p. 4, tradução nossa.

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950
Nelson Speranza Filho

o turistas e trabalhadores de ajuda


 35 reféns morreram em 2011:
 8 foram mortos por piratas durante o ataque ou
depois de serem capturados
 8 morreram de doenças ou má nutrição causada
por acesso deficiente à comida, água, e ajuda
médica adequada
 19 morreram durante os esforços de resgate por
navios da marinha ou na tentativa de fuga, a
maioria estava sendo usada como escudo hu-
mano por piratas
 Os reféns mantidos cativos em 2011 predominan-
temente vieram de países não membros da OECD,
especialmente das Filipinas (17%), China (9%), e
Índia (8%). Somente 7% vieram de países membros
da OECD.
 É estimado que 111 piratas foram mortos em 2011
com base em dados da mídia aberta:
 78 morreram em confrontos diretos com forças
navais
 3 morreram em confrontos com as forças de se-
gurança de Puntland
 30 morreram em lutas com outros piratas por
resgates e reféns
Há ainda sérias acusações em relação à prática de atos
de tortura pelos piratas somalis contra tripulantes feitos re-
féns.
Piratas somalis são conhecidos por praticarem extremas
formas de abuso contra reféns incluindo espancamentos,
confinamento de reféns em freezers, e colocação de al-
gemas plásticas em torno das genitais dos reféns. Em
linguagem comum, muitas pessoas, incluindo as próprias
vítimas, chamam estes abusos de tortura. [...]23

Tais dados estatísticos evidenciam que as áreas assola-


das pela pirataria marítima são realmente uma preocupação,

23
Ibidem, p. 26, tradução nossa.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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25 e 26 de abril de 2013
951
Os custos humanos da pirataria marítima

dada a quantidade de sérias violações aos direitos humanos


das tripulações vítimas destes ataques.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pirataria marítima é fenômeno de extrema relevância
para a sociedade global, visto que os prejuízos dele advindos
são preocupantes e comuns à toda a comunidade mundial.
Conforme visto, tal crime é cometido com o emprego de
extrema violência na maioria dos casos, dessa forma, sujeitan-
do tripulantes oriundos de todas as partes do mundo a diver-
sas espécies de violações de seus direitos humanos, especial-
mente aos concernentes à integridade física e psíquica.
Destarte, faz-se imperiosa a tomada de medidas pela so-
ciedade global no sentido de combater o mencionado fenôme-
no que assola as citadas áreas, mas que afeta, mesmo de for-
ma indireta, toda a comunidade internacional, posto que as
mencionadas violações são praticadas contra membros de di-
versas nacionalidades que integram tripulações, ou contra
mesmo particulares que navegam pelas referidas zonas de risco.
Os alarmantes números evidenciam a incapacidade, ou
mesmo a complacência, dos Estados integrantes das citadas
áreas críticas no combate ao delito de pirataria marítima, fa-
zendo-se ainda mais necessário o exercício da boa governança
para serem buscadas, bem como levadas à cabo medidas efi-
cazes de coibir tão grave delito.

REFERÊNCIAS
CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, direito marí-
timo e perspectivas num mundo em reforma da ordem internacional.
2 ed. São Paulo: Lex Editora, 2006.
CANINAS, Osvaldo Peçanha. Pirataria marítima moderna: história,
situação atual e desafios. Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de
Janeiro, n. 14, 2009, p. 106. Disponível em: <https://www.egn.mar.
mil.br/arquivos/revistaEgn/dezembro2009/Pirataria%20mar%C3%AD
tma%20moderna%20-%20Hist%C3%B3ria%20-%20Situa%C3%A7%C3%
A3o%20atual%20e%20Desafios%20-

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
952
Nelson Speranza Filho

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set. 2012.
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em: <http://www.onip.org.br/noticias/sintese/forcas-da-ue-no-pri
meiro-ataque-aos-piratas-somalis/>. Acesso em: 23 mar. 2013.
GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do direito ma-
rítimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
GOTTSCHALK, Jack A. et al. Jolly Roger with an Uzi: the rise and
threat of modern piracy. Annapolis: Naval Institute Press, 2000.
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supertanker-ransom>. Acesso em: 10 set. 2012.
ICC-IMB. Piracy and Armed Robbery against Ships: report for the
period 1 january – 31 december 2012. Londres, 2013.
ICC-IMB; Oceans Beyond Piracy. The Human Cost of Somali Piracy
in 2011. Disponível em: <http://oceansbeyondpiracy.org/sites/
default/files/hcop_2011.pdf>. Acesso em: 24/03/2013.
NT saudita foi liberado segundo fontes somalis. Disponível em:
<http://www.naval.com.br/blog/2009/01/11/nt-saudita-foi-liberado-
segundo-fontes-somalis/#axzz1t6Xu97FH>. Acesso em: 10 set.
2012.
SARAMAGO, Maria Lisa Miranda. A pirataria no século XXI. Aca-
demia de Marinha. 13/05/2009. Disponível em:
<http://www.marinha.pt/PT/amarinha/actividade/areacultural/acad
emiademarinha/Documents/textos_conferencias/13JAN09.pdf>.
Acesso em: 10 set. 2012.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
O BRASIL E A PROTEÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS NA ESFERA REGIONAL

Patricia Grazziotin Noschang


Mestre e Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Cata-
rina. Professora de Direito Internacional no curso de graduação da Univer-
sidade de Passo Fundo. ( patriciagnoschang@gmail.com)

Resumo
A proteção aos direitos humanos ocorre em duas esferas: universal e regional. Na
esfera regional a competência cabe à Organização dos Estados Americanos através
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, que recebe denuncias do descumprimento da Convenção Ameri-
cana de Direitos Humanos e demais tratados firmados nesse plano. O Brasil é Estado
Parte da OEA e reconhece esse sistema regional de proteção aos direitos humanos.
O objetivo desse trabalho é apresentar o dinâmica funcional desse sistema bem
como a participação do Brasil nessa esfera observando se o Estado brasileiro está
cumprindo com as determinações que lhe foram feitas, pois o problema está no
descumprimento das normas internacionais em que o Estado se propôs a respeitar
quando firmou tratados sobre a matéria. O método de abordagem utilizado é o indu-
tivo e o de procedimento o bibliográfico e documental.
Palavras-chave: Brasil, Direitos Humanos, OEA.

Abstract
The protection of human rights occurs in two spheres: universal and regional. In the
regional competence lies with the Organization of American States through the In-
ter-American Commission on Human Rights and the Inter-American Court of Human
Rights, which receives complaints of violation of the American Convention on Human
Rights and other treaties signed that plan. Brazil is a State Party to the OAS and
acknowledges this regional system of human rights protection. The aim of this paper
is to present the functional dynamics of this system as well as Brazil's participation in
this sphere observing whether the Brazilian State is complying with the determina-
tions that have been made since the problem is in breach of international standards
where the State proposes to respect when signed treaties on the matter. The method
used is the inductive approach and procedure of the bibliographic and documentary.
Keywords: Brazil, Human Rights, OAS.

INTRODUÇÃO
A proteção aos direitos humanos ocorre tanto em âmbito
universal quanto regional. No plano global/universal, cabe a
Organização das Nações Unidas (ONU) através do Conselho de
Direitos Humanos realizar a fiscalização do cumprimento dos
954
Patricia Grazziotin Noschang

tratados firmados sob os auspícios da ONU. Os principais tra-


tados que formam esse sistema são a Declaração Universal de
Direitos Humanos e os Pactos de Direitos Civis e Políticos e o
Pacto de Direitos Econômicos e Sociais.
Já, a proteção em âmbito regional ocorre através de orga-
nizações internacionais com âmbito de atuação regional e pos-
suem tribunais especializados para julgar casos de violações
de direitos humanos de acordo com instrumentos regionais
ratificados pelos Estados que às compõe. Nesse rol estão inclu-
ídas o Conselho da Europa em âmbito europeu, a Organização
dos Estados Americanos (OEA) que atua na proteção dos direi-
tos humanos nas Américas e a União Africana nos Estados do
continente Africano.
O Brasil participa como Estado Parte dos dois sistemas,
ou seja, o universal sob os auspícios da ONU e o regional vin-
culado à OEA. O objetivo deste trabalho é apresentar o siste-
ma regional de proteção aos direitos humanos verificando se o
Brasil cumpre com as disposições impostas pela Comissão In-
teramericana de Direitos Humanos e às sentenças condenató-
rias da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O método
de abordagem é o indutivo e o de procedimento o bibliográfico
e documental.

O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS


HUMANOS

A Organização dos Estados Americanos foi criada pelo


tratado denominado de Carta de Bogotá, em 1948. Juntamente
com esse tratado, foi assinada a Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem, com o objetivo de dar proteção
regional aos direitos humanos aos países americanos.
A Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros
das Relações Exteriores, em 1959, implementou um novo órgão
de proteção aos Direitos Humanos: a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH). Os trabalhos da CIDH começa-
ram no ano seguinte, e tinha como função promover os direitos

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
955
O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional

estabelecidos tanto na Carta de Bogotá como na Declaração de


Direitos e Deveres do Homem1.
No entanto, o Sistema Interamericano de Proteção aos Di-
reitos Humanos torna-se efetivo com a elaboração da Conven-
ção Americana sobre Direitos Humanos, em 1969, também co-
nhecida como Pacto de São José da Costa Rica, a qual entrou
em vigor apenas em 1978, após obter o número mínimo de rati-
ficações necessárias. Esse tratado, também, instituiu a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, com sede em São José
na Costa Rica2 que possui competência da Corte é tanto juris-
dicional como consultiva.
O procedimento jurisdicional no sistema interamericano
inicia com a apresentação de uma reclamação do indivíduo con-
tra o Estado à CIDH, que atua nesta fase representando o indi-
víduo reclamante. Ao Estado réu é concedido o direito do con-
traditório e, nada obsta que haja uma conciliação amigável. A
CIDH decide com base nos fatos e nas alegações das partes se
o expediente deverá ser arquivado ou levado adiante. No caso
de seguir adiante, a CIDH realiza uma investigação minuciosa
dos fatos ocorridos e faz recomendações às partes envolvidas
para resolver o caso no prazo de três meses. Caso isso não ocor-
ra, a CIDH poderá emitir sua própria opinião e conclusão, ou
ainda, nesse prazo submeter à Corte o relatório de mérito3.
O procedimento na Corte inicia com o envio, pela CIDH, do
relatório à Corte. O Juiz Presidente fará o exame preliminar da
demanda, e o secretário notificará os juízes, a(s) vítima(s) e o
Estado que terá um prazo de 04 meses para apresentar a con-
testação. Após é realizada a audiência entre as partes seguindo
da decisão final. A sentença é será definitiva e inapelável4.

1
MAZZUOLI, V. O.(Org.) Coletânea de Direito Internacional. – 5. ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011. p.821.
2
Idem.p.1010.
3
PIOVESAN, F. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo:
Saraiva. 2006.p.90.
4
MAZZUOLI, V. O.(Org.) Coletânea de Direito Internacional. – 5. ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011.p.1011.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
956
Patricia Grazziotin Noschang

Como se pôde observar, no sistema Americano os indiví-


duos não podem peticionar diretamente à Corte. Essa compe-
tência cabe apenas aos Estados-membros e a CIDH. Dois regu-
lamentos recentes trouxeram mudanças no sistema processual
da Corte. O Regulamento aprovado em 2000 possibilitou o lo-
cus standi in judicio ao indivíduo ao permitir que “depois de
admitida a demanda, as presumidas vitimas, seus familiares
ou seus representantes devidamente creditados poderao apre-
sentar suas solicitaçoes, argumentos e provas em forma autô-
noma durante todo o processo”5. A partir de então as vítimas
ou representantes das vítimas fazem parte da demanda junta-
mente com a CIDH. Já o regulamento vigente de 2009 deu
maior protagonismo aos representantes das supostas vítimas e
ao Estados. A CIDH não poderá mais apresentar testemunhas
e declarações de supostas vítimas, e só poderá apresentar pe-
ritos em algumas hipóteses. Também foi criada a figura do de-
fensor interamericano para às supostas vítimas sem represen-
tação perante a Corte.

O BRASIL E O SISTEMA INTERAMERICANO


A Constituição de 1988 abriu as portas para a democrati-
zação do Estado brasileiro, bem como ao desenvolvimento e a
proteção dos direitos humanos. Iniciando, assim, sua partici-
pação na esfera internacional na proteção desses direitos,
além da previsão já existente internamente.
Nesse sentido, o Estado brasileiro aceita que a comuni-
dade internacional fiscalize, através das organizações interna-
cionais que faz parte, as obrigações assumidas, mediante um
sistema de monitoramento efetuado por órgãos de supervisão
internacional. Dessa forma, mesmo em situação de emergên-
cia, deve garantir e proteger um núcleo de direitos básicos e
inderrogáveis6.

5
Art.23. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponí-
vel em: <http://www.corteidh.or.cr/>. Acesso em: 06 abr. 2013.
6
PIOVESAN, F. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo:
Saraiva. 2006.p.92.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
957
O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional

Na esfera regional o Brasil reconheceu a competência ju-


risdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos em
dezembro de 1998. Desde então a relação do Estado brasileiro
com o sistema interamericano foi se intensificando, ao passo
que a democracia foi criando raízes, tratados foram ratificados
e a proteção dos direitos humanos passou a ser considerada
pelo Estado como garantia e direito fundamental. Contudo,
isso não foi o suficiente para que cessassem as violações aos
direitos humanos pois, o Estado brasileiro já foi réu em cinco
processos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos até o momento. Desses cinco processos em apenas um
o Brasil foi absolvido. Além de ter um número crescente de re-
clamaçõ0es na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

AS RECOMENDAÇÕES DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS NAS PETIÇÕES EM QUE O BRASIL FOI ACIONADO
O regulamento da Comissão permite que qualquer pes-
soa, grupo de pessoas ou organização não governamental em
capacidade postulatória encaminhe uma reclamação. Essa
previsão foi inserida no rol de atribuições da Comissão em
1965, na II Conferencia Interamericana Extraordinária, no Rio
de Janeiro e busca aproximar o Sistema Interamericano das
vitimas7.
Segundo Flávia Piovesan no período de 1970 a 2008 a
Comissão admitiu 98 casos contra o Estado brasileiro. “Desse
total, há casos que foram apreciados pela Comissão Interame-
ricana, sendo os respectivos relatórios publicados no relatório
anual da Comissão, e há aqueles – a maioria deles – que estão
pendentes perante a Comissão Interamericana.”8. Os casos
7
MATOS BRITO, S.R.. Direitos Humanos na Organização dos Estados
Americanos: Análise da atuação brasileira ante a Comissão Interameri-
cana de Direitos Humanos. Advocacia Geral da União. Disponível em:
<http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateImagemTextoThumb.a
spx?idConteudo=113927&ordenacao=1&id_site=4922>. Acesso em: 07
abr. 2013.
8
PIOVESAN, F. Direitos Humanos e O Direito Constitucional
Internacional. 13.ed. São Paulo: Saraiva,2012. p.395.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
958
Patricia Grazziotin Noschang

que estão pendentes para análise são considerados confiden-


ciais pela Comissão.
O Brasil9 após ser notificado pela Comissão será represen-
tado através de seus órgãos da Administração Pública: Advocia-
Geral da União, Ministério das Relações Exteriores e a Secretaria
Especial dos Direitos Humanos. É importante que esses órgãos
atuem conjuntamente, cada um no âmbito da sua competência,
na defesa que será apresentada perante a Comissão. De acordo
com Sergio Ramos de Matos Brito, “[...] nenhum desses partici-
pantes deve desempenhar seu papel de forma isolada. A unifi-
cação do discurso e a atuação em coordenação deve ser buscada
no plano interno, a fim de que a defesa estatal seja unissona e
coerente na esfera internacional.”10.
No universo desses 98 casos existem violações de direitos
humanos relacionados aos direitos dos povos indígenas; as-
sassinato e tortura relacionados ao período do regime militar;
sistema penitenciário brasileiro; violência no campo (rural);
violação dos direitos das crianças e adolescentes; violência
contra a mulher; discriminação racial entre outros11. Nesse sen-
tido, cabe mencionar alguns casos que foram apresentados à
CIDH referente à esses temas de forma cronológica.
Um dos casos encaminhados à Comissão em 1996 foi o
caso Eldorado dos Carajás, no qual os peticionários alegaram
9
Segundo VENTURA e CETRA: “entre 1998 e 2011, o Brasil foi alvo de 27
“medidas cautelares” da CmIDH13. Entre 1999 e 2011, 643 petiçoes refe-
rentes ao Brasil foram recebidas pela CmIDH, das quais 93 foram enca-
minhadas ao governo brasileiro.”. VENTURA, D.; CETRA, Raísa. O
BRASIL E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS:
DE MARIA DA PENHA A BELO MONTE. In: SILVA FILHO, J. C.;
TORELLY, M. (orgs.). ustiça de Transiçao nas mericas: olhares in-
terdisciplinares fundamentos e padro es de efetivaçao. Belo Horizonte:
Forum. 2013. (prelo). p.3
10
MATOS BRITO, S.R.. Direitos Humanos na Organização dos Estados
Americanos: Análise da atuação brasileira ante a Comissão Interameri-
cana de Direitos Humanos. Advocacia Geral da União. Disponível em:
<http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateImagemTextoThumb.a
spx?idConteudo=113927&ordenacao=1&id_site=4922>. Acesso em: 07
abr. 2013.
11
PIOVESAN, F. Direitos Humanos e O Direito Constitucional
Internacional. 13.ed. São Paulo: Saraiva. 2012.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
959
O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional

que agentes do Estado brasileiro assassinaram 19 trabalhado-


res rurais e feriu outra dezenas deles ao desalojá-los de uma
rodovia pública onde estavam acampados. O Estado alegou
que os peticionários não haviam esgotados os recursos inter-
nos e a Comissão não tinha competência para analisar o fato. O
argumento foi rejeitado12.
No ano seguinte, 1997, dezesseis indígenas Yanomami,
representados pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Interna-
cional (CEJIL), e outras organizações não governamentais, de-
nunciando suposta negligencia do Governo brasileiro no mas-
sacre dos índios ocorrido em julho de 1993, na região de Ha-
ximu, Venezuela.
Com efeito, os peticionários afirmam que, entre os meses
de junho e julho de 1993, em dois incidentes, garimpeiros
brasileiros assassinaram 16 indígenas Yanomami na re-
gião de Haximu, inclusive anciãos, mulheres e crianças.
Posteriormente, segundo os peticionários, a fim de esca-
par de possíveis retaliações do povo indígena, os garim-
peiros, saíram da Venezuela por aeroportos ilegais da re-
gião, e teriam se refugiado na cidade de Boa Vista, esta-
do de Roraima, no Brasil. Segundo os peticionários, de-
pois do massacre os governos do Brasil e da Venezuela
assinaram um acordo bilateral (“Comissão Bilateral”), pe-
lo qual se decidiu que o Brasil se encarregaria de investi-
gar o ocorrido e punir os responsáveis. Os peticionários
destacam que uma inspeção na área do massacre deter-
minou que os fatos teriam ocorrido em território venezue-
lano, mas que, por se tratar de um crime de genocídio
supostamente perpetrado por garimpeiros brasileiros,
acordou-se que a investigação e o processo do Massacre
de Haximu era da competência da Justiça Federal brasi-
leira. Em sua última comunicação apresentada em 16 de
julho de 2004, os peticionários indicaram que até aquela
data tinham se passado 11 anos desde o Massacre de
Haximu sem que houvesse uma decisão definitiva sobre

12
CIDH. COMISSÃO INTERAMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS.
RELATÓRIO Nº 21/03 Disponível em: < http://www.cidh.org>. Acesso
em: 06 abr. 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
960
Patricia Grazziotin Noschang

os recursos da jurisdição interna. Com base nisso, os pe-


ticionários alegaram que existia atraso injustificado na
decisão sobre os mencionados recursos e que a petição
era admissível, em conformidade com o artigo 46.2.c da
Convenção Americana.13

A Comissão decidiu arquivar a petição levando em consi-


deração que os réus foram julgados e houve recurso até as úl-
timas cortes brasileiras, tanto no STJ quanto no STF. Assim a
Comissão considerou que faltavam elementos necessários para
“determinar se existem ou subsistem os motivos desta petição.
Levando em conta a falta desses elementos, a CIDH decide
arquivar a presente petição, em conformidade com o artigo
48.1.b da Convenção Americana e o artigo 42.1.a do Regula-
mento da CIDH”14.
Em 1998 a petição mais conhecida pelos brasileiros foi
protocolada na Comissão Interamericana, Maria da Penha
Maia Fernandes, representada pelo CEJIL e pelo Comitê Lati-
no-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Os
peticionários alegavam que o Brasil havia sido tolerante com a
violência cometida por Marco Antonio Heredia Viveiros, em
sua residência, contra sua esposa durante os anos que convi-
veram em matrimônio, que culminou numa tentativa de homi-
cídio e novas agressões em maio de 1993. Maria da Penha, em
decorrência “[...] dessas agressões, sofre de paraplegia irre-
versível e outras enfermidades desde esse ano. Denuncia-se a
tolerância do Estado, por não haver efetivamente tomado por
mais de 15 anos [...]” as medidas necessárias, apesar das de-
nuncias realizadas, para processar e punir o agressor15. Assim
a petição denunciou,
[...] a violação dos artigos 1(1) (Obrigação de respeitar os
direitos); 8 (Garantias judiciais); 24 (Igualdade perante a
lei) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana, em
relação aos artigos II e XVIII da Declaração Americana

13
CIDH, 2013.
14
Relatório n. 88/11. CIDH, 2013.
15
CIDH, 2013.
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961
O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional

dos Direitos e Deveres do Homem (doravante denomina-


da “a Declaração”), bem como dos artigos 3, 4, a, b, c, d,
e, f, g, 5 e 7 da Convenção de Belém do Pará. A Comissão
fez passar a petição pelos trâmites regulamentares. Uma
vez que o Estado não apresentou comentários sobre a pe-
tição, apesar dos repetidos requerimentos da Comissão,
os peticionários solicitaram que se presuma serem ver-
dadeiros os fatos relatados na petição aplicando-se o ar-
tigo 42 do Regulamento da Comissão.16

Um dos resultados da petição foi à elaboração de Lei


11.340/2006 com o objetivo de punir os agressores contra a vio-
lência de gênero, e o comprometimento do Estado brasileiro
em realizar campanhas contra esse tipo de violência.
Em 2003, outra petição foi apresentada a CIDH, tendo
como suposta vítima Ivan Rocha (locutor de rádio, cujo nome
verdadeiro era Valdeci de Jesus). Os peticionários alegavam
que a vítima desapareceu em 22 de abril de 1991, “[...] supos-
tamente em represália por suas denúncias sobre grupos de
extermínio que vinham atuando no sul do Estado da Bahia, no
qual estariam envolvidos tanto policiais como um deputado.”17
De acordo com a petição, o desaparecimento ocorreu após a
suposta vítima haver informado em seu programa de rádio “A
Voz de Ivan Rocha” que entregaria a uma autoridade uma lista
com os nomes de vários policiais e de um deputado suposta-
mente envolvidos nos crimes cometidos pelos grupos de ex-
termínio. O peticionário ressaltou que o Estado não encontrou
os autores materiais e/ou intelectuais do crime, nem determi-
nou o paradeiro da suposta vítima18. Posteiromente a defesa do
Estado brasileiro que alegou ser a Comissão incompetente pa-
ra decidir sobre o caso, esssa decidiu ao contrário e determi-
nou que continuassem com o procedimento.
Em 2006, o caso Celso Daniel também chegou a CIDH. O
peticionário, seu filho Bruno José Daniel Filho, solicitou “[...] a

16
CIDH, 2013.
17
CIDH, 2013.
18
Relatorio n.5/11. CIDH, 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
962
Patricia Grazziotin Noschang

intervenção da Comissão para assegurar que as investigações


sobre a morte de Celso Daniel (a “suposta vítima”), ex-prefeito
da cidade de Santo André, São Paulo, fossem realizadas pela
Polícia Federal ao invés da Polícia Civil”19. Segundo o peticio-
nário a investigação realizada pela Policia Civil apresentava
irregularidades e contradições em relação ao seqüestro, deten-
ção e as circunstâncias nas quais ocorreu à morte da suposta
vítima, entre 09 e 10 de janeiro de 2002. A Comissão decidiu
pelo arquivamento da petição devido à falta de “elementos
necessários para adotar uma decisão com respeito à admissibi-
lidade desta petição, apesar das reiteradas solicitações de in-
formação apresentadas ao peticionário”20. A Comissão enten-
deu que não possuía “[...] informações acerca do esgotamento
dos recursos internos e outros requisitos relacionados à ad-
missibilidade, tampouco possui informação sobre se ainda
existem os motivos da presente petição.”21.
Também, nos procedimentos da CIDH foram determina-
das nos últimos anos três medidas cautelares, nos casos: Co-
munidades Indígenas do Xingu (MC 382/10); Adolescentes in-
ternados na Unidade de Internação Socioeducativa (UNIS) (MC
224/09); e Pessoas Privadas da Liberdade na Penitenciaria Po-
linter-Neves (MC 236/08)22. A primeira refere-se à questão da
instalação da hidrelétrica de Belo Monte no Pará e a proteção
da comunidade indígena do Xingu, já as duas últimas as viola-
ções da integridade física dos detentos nas duas casas de de-
tenção, o que não e novidade no sistema prisional brasileiro
que sofre com a superlotação e ausência de gestão adequada.
Em 2012 foram publicados 17 relatórios, desses 08 consi-
derados admissíveis, 06 foram arquivados e 03 considerados
inadmissíveis. Cabe ressaltar, entre eles, o caso do jornalista
Vladimir Herzog e outros, torturado e morto nas dependências
do Exército em 25 de outubro de 1975, no qual a Comissão re-

19
Relatório n.131/10.CIDH, 2013.
20
CIDH, 2013.
21
CIDH, 2013.
22
CIDH, 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
963
O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional

conheceu a competência para continuar analisando o mérito do


caso23.

AS SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS


NOS PROCESSOS EM QUE O BRASIL FOI DEMANDADO
O Estado brasileiro foi réu em cinco processos julgados
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, até o momen-
to. A primeira demanda foi o Caso Nogueira de Carvalho e Ou-
tros vs. Brasil, submetido a Corte em janeiro de 2005, na qual o
Brasil foi absolvido. A sentença foi proferida em 28 de novem-
bro de 200624.
No caso Ximenes Lopes vs. Brasil, que gerou a primeira
condenação do Estado brasileiro no sistema interamericano, a
CIDH apresentou o relatório à Corte em janeiro de 2004 e a
sentença proferida em julho de 200625.. Damião era portador de
deficiência mental, e foi submetido a condições desumanas e
degradantes na sua hospitalização na Casa de Repouso Guara-
rapes, onde faleceu decorrente de maus tratos. A vitima foi
internada em 01 de outubro de 1999 “[...] para receber trata-
mento psiquiatrico na Casa de Repouso Guararapes, um centro
de atendimento psiquiatrico privado, que operava no âmbito
do sistema publico de saude do Brasil, chamado Sistema Unico
de Saude),[...]”, localizada no município de Sobral, Estado do
Ceara. Damião Ximenes Lopes faleceu em 04 de outubro de
1999 na Casa de Repouso Guararapes, após três dias de inter-
nação26. O Estado brasileiro foi condenado por omissão, pois
não processou nem julgou os responsáveis pelos fatos ocorri-
dos com a vítima. A condenação brasileira trouxe à baila a si-
tuação das casas de tratamento psiquiátrico no país. A indeni-
23
CIDH, 2013.
24
COELHO, Rodrigo M. G. Proteção Internacional dos Direitos Humanos: A
Corte Interamericana e a Implementação de suas Sentenças no Brasil.
Curitiba: Juruá. 2007.
25
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/>. Acesso em: 06 abr. 2013.
26
BORGES, N. Damião Ximenes: Primeira condenação do Brasil na Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Revan. 2009.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
964
Patricia Grazziotin Noschang

zação à família de Damião foi paga somente em 17 de agosto


de 2007, um ano após a sentença.27 O Relatório de supervisão
do cumprimento da sentença da Corte é realizado anualmente
e, no último relatório de 17 de maio de 2010 o Brasil ainda não
havia cumprido na totalidade as determinações contida na
sentença do caso Damião28. Essa infelizmente é a característica
brasileira quanto ao cumprimento das sentenças da Corte – a
morosidade em cumprí-las na sua totalidade29.
Dois julgamentos ocorreram em 2009: os casos Escher e
Outros vs. Brasil e Garibaldi vs. Brasil. O caso Escher iniciou
em 20 de dezembro de 2007 quando a CIDH remeteu o relatório
a Corte Interamericana concluindo que o Estado é responsável
internacionalmente “[...] pela violação [dos direitos humanos]
em prejuízo de Arle[i] Jose Escher, Dalton Luciano de Vargas,
Delfino Jose Becker, Pedro Alves Cabral, Celso Aghinoni e
Eduardo Aghinoni’, membros das organizações COANA e
ADECON.”30.
Por sua vez, em seu escrito de petições e argumentos, os
representantes apresentaram uma lista de trinta e quatro
pessoas, que a seu critério seriam as supostas vitimas
deste caso 64. Afirmaram que, em virtude do carater se-
creto do procedimento de interceptação e gravação tele-
fônica previsto na Lei No. 9.296/96, “em nenhum momen-
to, durante o procedimento junto [a Comissao], delimita-
ram as [supostas] vitimas das violações, nomeando-as [,
haja vista que] no ano 2000, quando a denuncia foi apre-
sentada, as organizações peticionarias nao detinham
condicoes de saber a amplitude das interceptações tele-
fônicas ilegais [e] a totalidade das pessoas que tiveram
conversas telefônicas ouvidas e gravadas pela Policia Mi-
litar do Estado do Parana. Sabia-se somente [de] um pe-

27
BORGES, 2009.
28
CORTE INTERAMERICANA, 2013.
29
ALGAYER K.; NOSCHANG,P. O BRASIL E O SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: CONSIDERA OES E
CONDENAÇOES. In: Espaço Jurídico. v. 13, n. 2, jul./dez. 2012. Joaçaba:
Editora Unochapecó. 2012. p. 211-226.
30
CORTE INTERAMERICANA, 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
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O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional

queno grupo de integrantes e lideranças da COANA e


ADECON [, cujas chamadas haviam sido] interceptad[a]s
porque suas conversas foram divulgadas na midia local e
nacional [...]. Por isso, somente em 2004 [...] foi possivel
te[r] conhecimento e acesso a todas as transcricoes das
gravações”.31

A Corte condenou o Brasil ao pagamento de compensa-


ção em danos imateriais no valor de U$ 20.000 (vinte mil dóla-
res) para cada vitima, sendo que essa quantia devera ser paga
diretamente aos beneficiários no prazo de um ano contado a
partir da notificação da sentença32. Na primeira supervisão rea-
lizada pela Corte em 2010 o Estado brasileiro ainda não havia
publicado a sentença em jornal de grande circulação por se
tratar de texto muito longo. O Brasil requereu a publicação do
resumo dessa e foi atendido pela Corte. Novamente destaca-se
a morosidade no cumprimento e ainda pedido de alteração na
publicação total da decisão. O Estado brasileiro parece querer
esconder de sua população a totalidade dos fatos ocorridos33.
No caso conhecido como Sétimo Garibaldi (Garibaldi vs.
Brasil), julgado em 2009 pela Corte, a CIDH alegou a responsa-
bilidade por omissão do Estado brasileiro decorrente do des-
cumprimento da obrigação de investigar e punir “[...] o homi-
cídio do Senhor Sétimo Garibaldi, ocorrido em 27 de novembro
de 1998; [durante] uma operação extrajudicial de despejo das
famílias de trabalhadores sem terra, que ocupavam uma fa-
zenda no município de Querência do Norte, Estado do Paraná”.
O Brasil foi condenado a tomar as medidas adequadas para
processar e julgar os responsáveis pelo homicídio da vitima
bem como pagar indenização aos seus familiares34.
Em 22 de fevereiro de 2011 o Relatório da Corte sobre a
supervisão do cumprimento da sentença apontou que o Brasil
ainda não havia cumprido na totalidade com as determinações

31
CORTE INTERAMERICANA, 2013.
32
CORTE INTERAMERICANA, 2013.
33
ALGAYER; NOSCHANG, 2012.p.219.
34
CORTE INTERAMERICANA, 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
966
Patricia Grazziotin Noschang

da sentença permanecendo a supervisão em aberto. O Brasil


“[...] informou que em 22 de setembro de 2010 foi emitido o De-
creto No. 7.307/10, o qual autorizou a Secretaria dos Direitos
Humanos a dar cumprimento a Sentença da Corte, em particu-
lar o pagamento das indenizações as vitimas”35.
O último caso julgado pela Corte Interamericana contra o
Brasil foi o conhecido Caso da Guerrilha do Araguaia – Caso
Gomes Lund. A Corte analisou as ações do governo brasileiro
que geraram violações aos direitos humanos ao reprimir o mo-
vimento de oposição à ditadura, entre 1972 e 1975, denomina-
do de Guerrilha do Araguaia (formado por membros do Partido
Comunista do Brasil/PC do B e camponeses da região). O jul-
gamento reconheceu que a operação realizada pelo Exército
brasileiro, com o objetivo de reprimir tal manifestação, resultou
em desaparecimento forçado de 70 pessoas, detenção arbitrá-
ria e tortura. Desta forma a Corte Interamericana de Direitos
Humanos determinou, através de sentença, que o Brasil to-
masse uma série de medidas incluindo: a abertura dos arqui-
vos da época em que esteve no poder a ditadura militar, ins-
tauração da Comissão da Justiça, Memória e Verdade, com-
pensação à família das vitimas, encontrar os corpos dos desa-
parecidos para que as famílias pudessem velar seu entes que-
ridos, e também determinou a invalidade da Lei da Anistia (Lei
6683/79)36.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil possui uma tarefa árdua na garantia e proteção
aos direitos humanos no plano universal, regional e nacional
quando observamos a quantidade de tratados firmados e a
própria Constituição Federal.
A responsabilidade no cumprimento destes tratados au-
menta quando os indivíduos passam a buscar a garantia des-
35
CORTE INTERAMERICANA, 2013.
36
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n. 153. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>.
Acesso em: 06 abr. 2013.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
967
O Brasil e a proteção aos direitos humanos na esfera regional

ses direitos em outras jurisdições extrapolando a esfera nacio-


nal que se tornou inócua.
O sistema interamericano se tornou possível e ao alcance
com a reparação alcançada pelos casos Maria da Penha e Da-
mião Ximenes que obrigaram o Brasil a implementar políticas
públicas contra a violência de gênero e o tratamento dos paci-
entes em hospitais psiquiátricos. O sistema apresentou uma
luz no fim do túnel para muitas violações de direitos humanos
deixadas à margem na jurisdição brasileira.
Mesmo que para atingir o sistema interamericano o indi-
víduo tenha que cumprir um dos requisitos que é o esgotamen-
to dos recursos internos, é preciso que seja possível esgotá-los
pois, muitas vezes o princípio do devido processo legal ou do
acesso à justiça é esquecido no plano interno. Desta forma, a
possibilidade de recorrer a jurisdição regional é a solução.
Nesse sentido também o caso da Guerrilha do Araguaia que
condenou o Brasil a regatar a história das violações ocorridas
no período da ditadura militar e formar com o apoio total da
Presidente Dilma Rousseff a Comissão da Verdade. Ainda há
muito a ser feito pelo Brasil.

REFERÊNCIAS
ALGAYER, K.; NOSCHANG,P. O Brasil e o Sistema Interamericano
de Direitos Humanos: considerações e condenações. In: Espaço Ju-
rídico. v. 13, n. 2, jul./dez. 2012. Joaçaba: Editora Unochapecó. 2012.
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Corte Interamericana de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Revan.
2009.
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de Preceito Fundamental n. 153. Disponível em: <http://www.stf.
jus.br>. Acesso em: 06 abr. 2013.
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Patricia Grazziotin Noschang

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Belo Horizonte: Forum. 2013. (prelo). p.1-61.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A LEI 11.977, DE 07 DE JULHO DE 2009,
COMO INSTRUMENTO PARA A
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA SUSTENTÁVEL
EM ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANENTE 1

Patrícia Andreola
Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul (2012). Graduada em Direito pela Uni-
versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2010).
Advogada colaboradora do Escritório de Advocacia Chechi e Ruppenthal.
Possui trabalhos publicados e apresentados em eventos nacionais e inter-
nacionais. (patriciaandreola@hotmail.com)
Iásin Schäffer Stahlhöfer
Mestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul na linha de
pesquisa de Políticas Públicas de Inclusão Social com bolsa PROSUP provi-
da pela CAPES. Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012). Pós-graduando da
Especialização em Docência do Ensino Superior pela Universidade Lutera-
na do Brasil (previsão de conclusão em Julho de 2014). Graduado em Ci-
ências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (2010),
instituição da qual recebeu a Láurea Acadêmica. Atuou em projetos de
pesquisa e de extensão com bolsa PIBIC provida pelo CNPq. Participante
do Grupo de Pesquisa em Direito da Sociobiodiversidade (GPDS/UFSM) e
do Grupo de Estudos em Desenvolvimento, Inovação e Propriedade Inte-
lectual (GEDIPI/UNISC), tendo trabalhos publicados e apresentados em
eventos nacionais e internacionais. (iasindm@gmail.com)

Resumo
O presente trabalho analisa brevemente a Lei nº 11.977 de 07 de Julho de 2009, que
instituiu o programa “Minha Casa Minha Vida”, a fim de verificar a sua contribuição
para o alcance da sustentabilidade urbana, especialmente no que diz respeito à
regularização fundiária de ocupações irregulares em áreas de preservação perma-
nente. Utiliza-se, para tanto, o método de abordagem dedutivo em uma perspectiva
complexo-sistêmica. Aborda-se as áreas de preservação permanente nos espaços
urbanos ressaltando a importância de sua preservação e a possibilidade da regulari-
zação fundiária nestas áreas, demonstrando alguns dos riscos e das dificuldades a

1
Eixo Temático II - Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos –
do I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia.
970
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

serem enfrentadas pelo poder público para atingir o objetivo de garantir o acesso à
moradia adequada a todos e alcançar a sustentabilidade das cidades.
Palavras-chave: Áreas de Preservação Permanente. Direito de moradia. Ocupação
irregular. Regularização Fundiária. Sustentabilidade.

Abstract
This paper briefly analyzes the Law n° 11,977 of 07 July 2009, which established the
“Minha Casa, Minha Vida” (“My House, My Life”), to verify its contribution to the
achievement of urban sustainability, especially in relation to regularization of irregu-
lar occupations in areas of permanent preservation. It is used for both, the method
of deductive approach in a complex-systemic perspective. Approaches the areas of
permanent preservation in urban spaces emphasizing the importance of their
preservation and the possibility of regularization in these areas, demonstrating some
of the risks and difficulties to be faced by the government to achieve the goal to
guarantee access to adequate housing everyone and achieve sustainability of cities.
Keywords: Irregular occupation. Permanent Preservation Areas. Right to housing.
Regularization. Sustainability.

INTRODUÇÃO
Sabe-se que no início do século XX a grande maioria da
população brasileira residia nas áreas rurais, principalmente
porque nestas regiões concentravam-se as atividades que ofe-
reciam melhores condições de subsistência, como a agricultura
e pecuária. Com o passar das décadas, em decorrência da
crescente industrialização e da oferta de melhores oportunida-
des de trabalho nos centros urbanos, esta realidade passou a
tomar contornos diferentes, fazendo com que expressiva parce-
la da população migrasse para as zonas urbanas.
Mas este processo de urbanização acelerada acarretou
inúmeros prejuízos para as cidades, para o meio ambiente e à
própria sociedade, uma vez que a população com menos con-
dições econômicas foi sendo paulatinamente “expulsa” dos
grandes centros, obrigando-se a se instalar no entorno das
áreas mais desenvolvidas e industrializadas. A partir de então,
a pobreza passou a ser escondida nas chamadas periferias ou
favelas e as ocupações irregulares foram se tornando a cada
dia mais frequentes, resultando no cenário que hoje conhece-
mos como “cidades ilegais”.
Estes assentamentos urbanos irregulares além de ofere-
cerem condições impróprias de moradia, provocam inúmeras
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
971
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

modificações no meio ambiente urbano, colocando em risco a


saúde e a vida de seus habitantes, isso porque estas áreas,
devido às suas peculiaridades naturais aliadas à ausência de
infraestrutura urbana são as mais atingidas pelas catástrofes,
como chuvas e deslizamentos de terra. Assim, a fim de verifi-
car as soluções traçadas pela legislação brasileira para enfren-
tar esta problemática será brevemente analisada a Lei nº
11.977, de 07 de Julho de 20092, que instituiu o programa “Mi-
nha Casa Minha Vida” e dispôs sobre a regularização fundiária
dos assentamentos irregulares localizados nas áreas urbanas.
Esta importante legislação trouxe novos conceitos e instru-
mentos para auxiliar na elaboração de uma nova política urba-
na, adequando-se à realidade das nossas cidades, com o claro
escopo de torná-las sustentáveis.

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO


PERMANENTE
A crescente urbanização e o desenvolvimento desorde-
nado das cidades revela um panorama de irregularidade na
constituição do espaço urbano, gerando o fenômeno comumen-
te denominado de “cidade ilegal”. Pela forma como se procede
ao atual processo de urbanização, determinada parcela da po-
pulação é direcionada por falta de opção e de recursos finan-
ceiros às áreas desprezadas pelo mercado imobiliário, ou seja,
às áreas de preservação permanente, que, por suas caracterís-
ticas naturais, dificultam que estas pessoas residam nestes
locais com infraestrutura adequada.

2
BRASIL. Lei n° 11.977 de 07 de Julho de 2009. Dispõe sobre o Programa
Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de
assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no
3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de
1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e
10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24
de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 08 jul 2009. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/lei/L11977compilado.htm>. Acesso em 09 abr 2013.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
972
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

Além do surgimento de problemas socioambientais ad-


vindos da ocupação das áreas de preservação permanente,
reproduzem-se também a cada dia, loteamentos clandestinos
constituídos apenas com a finalidade de arrecadar lucros, sem
a devida observância à ordem urbanística e registral. O objeti-
vo da Lei nº 11.977/2009 é justamente amenizar os problemas
sociais, urbanísticos e ambientais causados por estas ocupa-
ções irregulares, já que estabelece inúmeros dispositivos com
o intuito de “[...] garantir o direito social à moradia, o pleno
desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”3.
Entre as suas disposições, verifica-se que a Lei reforça o
rumo das novas alternativas de enfrentamento das cidades
ilegais, possibilitando, inclusive, a regularização fundiária nas
áreas de preservação permanente, conforme dispõe o parágra-
fo 1º do artigo 54:
Art. 54. O projeto de regularização fundiária de interesse
social deverá considerar as características da ocupação e
da área ocupada para definir parâmetros urbanísticos e
ambientais específicos, além de identificar os lotes, as
vias de circulação e as áreas destinadas a uso público.
§ 1o O Município poderá, por decisão motivada, admitir a
regularização fundiária de interesse social em Áreas de
Preservação Permanente, ocupadas até 31 de dezembro
de 2007 e inseridas em área urbana consolidada, desde
que estudo técnico comprove que esta intervenção impli-
ca a melhoria das condições ambientais em relação à si-
tuação de ocupação irregular anterior.4

É possível concluir pela análise do artigo referido, que a


regularização fundiária em áreas de preservação permanente
somente será admitida para os locais ocupados até 31 de De-
zembro de 2007, desde que inseridas em áreas urbanas conso-
lidadas. Nesse contexto, importante salientar que a Lei nº
11.977/2009 definiu como área urbana consolidada, a

3
BRASIL. Lei n° 11.977 de 07 de Julho de 2009. Op. Cit.
4
Idem.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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973
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

[...] parcela da área urbana com densidade demográfica


superior a 50 (cinquenta) habitantes por hectare e malha
viária implantada e que tenha, no mínimo, 2 (dois) dos
seguintes equipamentos de infraestrutura urbana im-
plantados:
a) drenagem de águas pluviais urbanas;
b) esgotamento sanitário;
c) abastecimento de água potável;
d) distribuição de energia elétrica; ou
e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos;
[...].5

Além destes requisitos, faz-se necessário um estudo téc-


nico elaborado por profissional legalmente habilitado que de-
monstre que a intervenção em área de preservação permanen-
te implica a melhoria das condições ambientais se relaciona-
das à situação da ocupação irregular anterior. Frisa-se que na
hipótese de o Município não ser o órgão competente para a
concessão do licenciamento ambiental, incumbirá ao Estado
esta tarefa, desde que observados os mesmos requisitos men-
cionados acima e que o Município conceda o competente li-
cenciamento urbanístico, conforme estabelece o parágrafo 3º
do artigo 546.
No que tange à regularização de interesse específico7,
dispõe o parágrafo 1º do artigo 61 da Lei que o projeto de regu-
larização fundiária deverá observar as restrições à ocupação
nestas áreas e demais disposições previstas na legislação am-
biental. Por esta razão, determinou o artigo 65 da Lei nº 12.651

5
Idem.
6
Art. 54. [...] 3º A regularização fundiária de interesse social em áreas de
preservação permanente poderá ser admitida pelos Estados, na forma
estabelecida nos §§ 1º e 2º deste artigo, na hipótese de o Município não
ser competente para o licenciamento ambiental correspondente,
mantida a exigência de licenciamento urbanístico pelo Município.
7
Lei nº 11.977/2009 definiu, nos incisos VII e VIII do art. 47, duas
espécies de regularização fundiária, a regularização fundiária de
interesse social, destinada aos assentamentos irregulares ocupados,
predominantemente, pela população de baixa renda, e a regularização
fundiária de interesse específico, reservada aos assentamentos
irregulares que não forem caracterizados como de interesse social.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
974
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

de 25 de Maio de 2012, que na regularização de interesse es-


pecífico de ocupações consolidadas situadas em áreas de pre-
servação permanente, não identificadas como áreas de risco,
deverá ser elaborado o projeto previsto no artigo 51 da Lei que
instituiu o programa “Minha Casa Minha Vida”, instruído com
os seguintes elementos:
I – a caracterização físico-ambiental, social, cultural e
econômica da área;
II – a identificação dos recursos ambientais, dos passivos
e fragilidades ambientais e das restrições e potencialida-
des da área;
III – a especificação e a avaliação dos sistemas de infra-
estrutura urbana e de saneamento básico implantados,
outros serviços e equipamentos públicos;
IV – a identificação das unidades de conservação e das
áreas de proteção de mananciais na área de influência di-
reta da ocupação, sejam elas águas superficiais ou sub-
terrâneas;
V – a especificação da ocupação consolidada existente na
área;
VI – a identificação das áreas consideradas de risco de
inundações e de movimentos de massa rochosa, tais co-
mo deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida
de lama e outras definidas como de risco geotécnico;
VII – a indicação das faixas ou áreas em que devem ser
resguardadas as características típicas da Área de Pre-
servação Permanente com a devida proposta de recupe-
ração de áreas degradadas e daquelas não passíveis de
regularização;
VIII – a avaliação dos riscos ambientais;
IX – a comprovação da melhoria das condições de susten-
tabilidade urbano-ambiental e de habitabilidade dos mo-
radores a partir da regularização; e
X – a demonstração de garantia de acesso livre e gratuito
pela população às praias e aos corpos d’água, quando
couber.8

8
BRASIL. Lei n° 12.651 de 25 de Maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da
vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981,
9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006;
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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975
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

Impende salientar que para fins de regularização fundiá-


ria de interesse específico em áreas situadas ao longo dos rios
ou de quaisquer cursos d’água, determina o parágrafo 1º deste
mesmo artigo que deverá ser mantida a faixa não edificável
com largura mínima de 15 (quinze) metros de cada lado. Devi-
damente demonstrados os requisitos para a implementação do
processo de regularização fundiária em áreas de preservação
permanente, pode-se dizer que sobre esta novidade introduzi-
da pela legislação urbanística, reside um dos maiores debates
sobre a sustentabilidade das cidades, considerando as especi-
ficidades e funções que estes locais representam para os espa-
ços urbanos.
Isso porque as áreas de preservação permanente possu-
em como “função ambiental de preservar os recursos hídricos,
a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facili-
tar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o
bem-estar das populações humanas”9. Por esta razão é que
existem diferentes posicionamentos que predominam acerca
da regularização fundiária nestas áreas. Um deles, partindo de
uma perspectiva ambientalista, defende que a melhor solução
para este tipo de ocupação irregular é o reassentamento dos
moradores em outros locais a fim de preservar os recursos na-
turais nos espaços urbanos. Já a outra corrente, partindo de
uma visão mais urbanística, entende que a melhor solução pa-
ra estes casos seria a manutenção da população nestes locais,
através da regularização, visando garantir os seus direitos so-
ciais, entre eles, o direito à moradia10.

revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de


abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de
2001; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa
do Brasil, Brasília, DF, 28 mai 2012. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2012/Lei/L12651compilado.htm>. Acesso em 09 abr 2013.
9
Idem.
10
BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M.S. Regularização
fundiária em áreas de proteção ambiental: a visão urbana e ambiental.
Disponível em:

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
976
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

De acordo com Maria do Carmo Bezerra e Tatiana M. S.


Chaer, a intocabilidade das áreas de preservação permanente
nas zonas urbanas, especialmente as destinadas a proteger as
faixas dos cursos d’água, não tem sido eficaz para cumprir a
função de proteção ambiental, pois a
[...] proibição de uso cria vazios urbanos propensos a no-
vas ocupações informais. As APPs transformaram-se em
grandes espaços isolados dentro da malha urbana, em
que a proibição de acesso e utilização não tem sido sufi-
ciente para evitar os danos aos recursos ambientais,
sendo fatos corriqueiros o desmatamento e as ocupações
de todo tipo de usos, com o consequente assoreamento e
poluição dos cursos d’água.

Em atenção a isto é que a Lei nº 11.977/2009 introduziu a


possibilidade da regularização fundiária em área de preserva-
ção permanente quando preenchidos os requisitos autorizado-
res expostos anteriormente, respaldando a opinião de urbanis-
tas de que a melhor solução é a manutenção da ocupação nes-
tes locais, desde que haja melhorias na condição ambiental da
área regularizada.
Nesse sentido, Fábio Scopel Vanin complementa ainda
que o apontamento de uma data no parágrafo 1º do artigo 54
da referida Lei,
[...] vai ao encontro do que foi afirmado anteriormente: a
regularização fundiária é instrumento para resolver
questões históricas de falta de planejamento e não pode
ser utilizada como remédio para sanar situações geradas
pela falta de políticas públicas urbanas de administra-
ções presentes. (Grifou-se).11

<http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20CHIS%202010/106-C.pdf>.
Acesso em 09 abr 2013. p. 03.
11
VANIN, Fábio Scopel. A regularização fundiária de interesse social e os
aspectos da sustentabilidade e do planejamento urbano. In:
CONGRESSO DE DIREITO URBANO-AMBIENTAL, 2011, Porto Alegre.
Anais do II Congresso comemorativo aos 10 anos do Estatuto da Cidade.
Porto Alegre: Exclamação, 2011. v. 1. p. 351.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
977
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

Percebe-se, assim, conclui-se que as Leis n° 11.977/2009 e


nº 12.651/2012 conferiram merecida atenção à questão da re-
gularização fundiária nas áreas de preservação permanente,
contudo, é necessário que ambas sejam aplicadas em conso-
nância com o que dispõe a Resolução do CONAMA nº
369/200612, que também permite a intervenção nestas áreas
para fins de regularização fundiária de interesse social13.

OS DESAFIOS PARA A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA SUSTENTÁVEL EM


ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
Ao realizar uma abordagem acerca da sustentabilidade
urbana, não se pode deixar de referir a questão central do de-
senvolvimento sustentável, que está no cerne das cidades sus-
tentáveis. Toma-se, portanto, o conceito consolidado na Confe-
rência das Nações Unidas sobre o meio ambiente urbano, atra-
vés da Declaração de Estocolmo, para a qual o “[...] Desenvol-
vimento Sustentável é aquele que atende as necessidades do
presente sem comprometer a possibilidade de as gerações fu-
turas atenderem as suas próprias necessidades”14. Nas pala-
vras de Maria Luiza Machado Granziera:
O desenvolvimento sustentável consiste no crescimento
com uso de recursos naturais hoje, garantindo-se, porém,

12
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução n° 369 de 28
de Março de 2006. Diário Oficial da União, Edição Número 61, de 29 mar
2006. Disponível em <http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.
cfm?codlegi=489>. Acesso em 09 abr 2013.
13
Art. 2º O órgão ambiental competente somente poderá autorizar a inter-
venção ou supressão de vegetação em APP, devidamente caracterizada
e motivada mediante procedimento administrativo autônomo e prévio, e
atendidos os requisitos previstos nesta resolução e noutras normas fe-
derais, estaduais e municipais aplicáveis, bem como no Plano Diretor,
Zoneamento Ecológico-Econômico e Plano de Manejo das Unidades de
Conservação, se existentes, nos seguintes casos: [...] II - interesse social:
[...] c) a regularização fundiária sustentável de área urbana; [...].
14
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Estocolmo sobre
o Meio Ambiente Urbano. 05 jun 1972. Disponível em
<http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/estocolmo1972.pdf>.
Acesso em 09 abr 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
978
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

através de medidas protetoras, que as futuras gerações


possam utilizar os mesmos recursos naturais. Ou seja,
não se pode esgotar os recursos naturais para a satisfa-
ção das necessidades atuais, se isso comprometer os
usos desses recursos pelas gerações futuras.15

De outra banda, Letícia Marques Osorio e Jacqueline Me-


negassi apresentam outro importante fundamento determinan-
te para a sustentabilidade urbana:
A sustentabilidade de uma cidade também é determina-
da pela qualidade de sua governança. Somente um pro-
cesso de governança urbana transparente e responsável
poderá assegurar o desenvolvimento sustentável das ci-
dades com justiça social e preservação ambiental. Sem
estes componentes a sustentabilidade significará a pre-
servação do status quo. Socialmente, os custos para o al-
cance da sustentabilidade ambiental não serão originari-
amente iguais para todos e muitas pessoas não estão ap-
tas a pagar por eles. Custos e benefícios para diferentes
grupos, para assegurar melhores ambientes, não pode
ser simplesmente alcançado em termos quantitativos,
pois o conceito de “melhor qualidade do ambiente” varia
de acordo com a classe e o nível de pobreza. Sustentabi-
lidade também é integração social: deve-se assegurar a
inclusão de todos os grupos através da garantia de aces-
so à terra, à habitação e ao trabalho como fatores básicos
de melhoria da qualidade de vida.16

Mas a problemática não reside somente na questão do


desequilíbrio urbano e ambiental, e sim no risco que as ocupa-
ções irregulares oferecem à população que ali se encontra. Re-

15
GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Meio ambiente urbano,
regularização fundiária e sustentabilidade. Disponível em
<http://www.ibdu.org.br/imagens/MEIOAMBIENTEURBANOREGULA
RIZAcaOfUNDIaRIA.pdf>. Acesso em 09 abr 2013. p. 07.
16
OSORIO, Letícia Marques; MENEGASSI, Jacqueline. A reapropriação
das cidades no contexto da globalização. In: OSORIO, Letícia Marques
(Org.). Estatuto da cidade e reforma urbana: novas perspectivas para
as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 47.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
979
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

tratos de tragédias ambientais no meio ambiente urbano não


faltam nas páginas de jornais, revistas e na internet e aconte-
cem quase que diariamente. Estas catástrofes ambientais não
ocorrem somente em casos de ocupações clandestinas, pois há
inúmeras cidades construídas quase que em sua totalidade em
áreas legalmente protegidas, como as regiões serranas. Mas as
consequências das edificações nestes espaços são as mesmas,
como se pode ver no desastre natural ocorrido nas cidades de
Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis, todas do estado do
Rio de Janeiro, em Janeiro de 2011, onde centenas de pessoas
perderam suas vidas soterradas.
De acordo com o Relatório de Inspeção da área atingida
na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, publicado re-
centemente pelo Ministério do Meio Ambiente, as maiores
consequências deste desastre ambiental se deram em áreas de
preservação permanente, que foram indevidamente ocupadas
para atividades agrícolas, obras de infraestrutura ou edifica-
ções. Salienta-se, inclusive, que algumas áreas atingidas não
eram consideradas áreas de preservação permanente pela re-
dação do então vigente artigo 2º da Lei nº 4.771 de 15 de Se-
tembro de 196517, pois possuíam inclinação inferior aos limites
protegidos pela legislação ambiental, no entanto, pela fragili-
dade e demais características que apresentavam, deveriam ter
sido declaradas pelo poder público como sendo áreas de pre-
servação permanente administrativas, conforme prevê o artigo
3º do mesmo diploma legal. Este é o caso não só de algumas
áreas atingidas na região Serrana do Rio de Janeiro, mas tam-
bém de Angra dos Reis/RJ e da região de Blumenau, em Santa
Catarina18.

17
BRASIL. Lei n° 4.771 de 15 de Setembro de 1965. Institui o novo Código
Florestal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília,
DF, 16 set 1965. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l4771.htm>. Acesso em 09 abr 2013.
18
SCHÄFFER, Wigold Bertoldo et al. Áreas de preservação permanente e
unidades de conservação & Áreas de Risco: o que uma coisa tem a ver
com a outra? In: MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Relatório de
Inspeção da área atingida pela tragédia das chuvas na Região Serrana
do Rio de Janeiro. Brasília, 2011. Disponível em <http://www.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
980
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

Ainda de acordo com este relatório, a função ambiental


de preservar a estabilidade geológica em topos de morros, en-
costas com declividade superior a 45º, serras e margens de
rios foi ressaltada como a atribuição mais importante destas
áreas de preservação.
Tais áreas, além de importantes para a biodiversidade e
para manutenção e recarga de aquíferos que vão abaste-
cer as nascentes, são em geral áreas frágeis e sujeitas a
desbarrancamentos e deslizamentos de solo ou rochas,
principalmente quando desmatadas e degradadas ambi-
entalmente. O mesmo ocorre com as APPs de margens de
rios, que uma vez desmatadas, degradadas e/ou indevi-
damente ocupadas, perdem a proteção conferida pela
vegetação ciliar, ficando sujeitas aos efeitos de desbar-
rancamentos e deslizamentos de solo ou rochas e o con-
sequente carreamento de sedimentos para o leito dos
rios, promovendo seu assoreamento. Com isso os rios
tornam-se mais rasos, e nas situações de precipitações
mais volumosas, não conseguem conter o volume adicio-
nal de água, potencializando cheias e enchentes.19

Outro dado importante, obtido pelo Centro de Informa-


ções de Recursos Ambientais e Hidrometeorologia de Santa
Catarina (Epagri-Ciram), órgão do Governo do Estado de Santa
Catarina, demonstra que 84,38% das áreas atingidas por desli-
zamentos, no mês de novembro de 2008, na região do Morro do
Baú, que compreende os municípios de Ilhota, Gaspar e Luís
Alves, haviam sido desmatadas ou modificadas pelo homem,
enquanto que apenas 15,65% dos deslizamentos ocorreram em
locais em que havia cobertura vegetal densa e pouco alterada20.
É importante que se diga que a legislação brasileira, ao
poucos, vem se adaptando a nova realidade das cidades brasi-
leiras, a fim de conceder a toda população formas dignas de

mma.gov.br/estruturas/202/_publicacao/202_publicacao01082011112029
.pdf>. Acesso em 09 abr 2013.
19
Idem. p. 15.
20
Idem.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
981
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

moradia e de minimizar, na medida do possível, a ocorrência


dos desastres ambientais. Esta mudança é possível verificar
logo nos primeiros artigos da Lei nº 10.257 de 10 de Julho de
2001, que estabeleceu como uma de suas diretrizes de ordena-
ção do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade,
“[...] a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido
como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambi-
ental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras
gerações”21.
A Lei nº 11.977/2009, que instituiu o programa “Minha
Casa Minha Vida” é outro exemplo desta adaptação pois trou-
xe em seu texto instrumentos que ainda faltavam para promo-
ver o acesso à moradia adequada, especialmente à população
de baixa renda, por meio de dispositivos específicos acerca do
processo de regularização fundiária de assentamentos irregu-
lares, situados, inclusive, em áreas de preservação permanen-
te. Esta norma, além de proporcionar à população que vive ir-
regularmente, condições condizentes com o princípio constitu-
cional da dignidade da pessoa humana, ainda assegura-lhes o
exercício do direito de propriedade.
Ainda, deve-se ter em mente que muitas das áreas atu-
almente ocupadas dificilmente retomarão às suas funções eco-
lógicas se forem removidas as pessoas que ali residem, pois a
mata anteriormente existente, por certo não se regenerará num
local saturado pelo despejo inadequado de lixo e esgoto. Sendo
assim, de nada valerá esta área desocupada, a não ser para
servir de espaço para uma nova ocupação irregular ou para o
depósito de entulhos e lixo.
Não há como ignorar que o crescimento urbano está afe-
tando progressivamente o meio ambiente, sendo que os efeitos

21
BRASIL. Lei nº 10.257 de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182
e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política
urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jul 2001. Disponível em <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em
09 abr 2013.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
982
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

deste desenvolvimento são absolutamente visíveis e identifi-


cáveis no plano das cidades. É por isso que os municípios de-
vem exercer um importante papel neste cenário, a fim de que,
de alguma forma, sejam cumpridos os objetivos trazidos pelo
Estatuto da Cidade e pela Lei nº 11.977/2009 para se alcança-
rem as cidades sustentáveis, em outras palavras, para que seja
possível uma conciliação entre o desenvolvimento urbano e a
preservação do meio ambiente.
Mesmo que, para alguns, possa parecer utópico este
conceito de sustentabilidade urbana, seria de grande valia
para as cidades brasileiras se o poder público municipal con-
siderasse em seu planejamento urbano os objetivos introdu-
zidos pela Lei que instituiu o programa “Minha Casa Minha
Vida” para proporcionar uma melhor qualidade de vida para
a população brasileira.
E este é o principal desafio nos dias de hoje: que as cida-
des, independentemente do seu porte, criem condições para
garantir o acesso à moradia adequada e garantir a qualidade
de vida às presentes e futuras gerações, não interferindo nega-
tivamente no meio ambiente e, principalmente, agindo preven-
tivamente para evitar a continuidade do nível atual de degra-
dação ambiental, notadamente nas regiões habitadas pelos
setores mais carentes, porquanto, são os principais atingidos
pelos impactos ambientais.

CONCLUSÃO
Os assentamentos urbanos inadequados são uma das
consequências do desenvolvimento urbano sem planejamento.
Sabe-se também que esse grave problema assola a grande
maioria das cidades brasileiras e precisa ser enfrentado com a
devida cautela para que seja possível conciliar a preservação
dos recursos naturais nos espaços urbanos e o desenvolvimen-
to das cidades, com a garantia do acesso à moradia a todos.
Considerando que o acesso a moradias adequadas tornou-se
um dos grandes objetivos por parte do poder público, a legis-
lação brasileira foi se adequando a esta finalidade e à realida-
de das nossas cidades.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
983
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

A Lei nº 11.977/2009, que instituiu o programa “Minha


Casa Minha Vida” é o primeiro marco jurídico brasileiro a dis-
por sobre a regularização fundiária em áreas urbanas de ma-
neira específica e abrangente, e a trazer um conceito sobre
este instituto, definindo-o como sendo um conjunto de medi-
das jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à
regularização de assentamentos irregulares e à titulação de
seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia,
o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade
urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Verificou-se que esta Lei reforçou o rumo das novas alter-
nativas de enfrentamento das cidades ilegais ao possibilitar
inclusive, a regularização fundiária nas áreas de preservação
permanente em áreas ocupadas até 31 de Dezembro de 2007 e
desde que inseridas em áreas urbanas consolidadas e realiza-
do um estudo técnico de viabilidade da regularização de acor-
do com as condições ambientais no local.
Sobre esta questão reside um dos maiores debates sobre
a sustentabilidade das cidades, considerando as especificida-
des e funções que as áreas de preservação permanente repre-
sentam para os espaços urbanos. Como visto neste trabalho,
constatou-se que um dos princípios da Lei nº 11.977/2009 é a
prioridade de manutenção da população nas áreas ocupadas,
desde que assegurados os níveis adequados de habitabilidade
e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística,
social e ambiental, ou seja, a finalidade desta Lei não é a lega-
lização dos locais ocupados irregularmente a qualquer custo,
buscando apenas a concessão do título da posse ou proprieda-
de a esta parcela da população.
Ressalta-se que o processo da regularização fundiária
previsto na legislação sob enfoque é um instrumento criado
para resolver questões históricas de falta de planejamento ur-
bano pelos poderes públicos municipais. Ainda assim, embora
haja muitas críticas acerca da possibilidade de se realizar uma
regularização fundiária sustentável em áreas de preservação
permanente, deve-se salientar que a Lei nº 11.977/2009 preo-
cupou-se exatamente este propósito, uma vez que abrangeu

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
984
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

normas de cunho social, urbanístico e ambiental, de forma in-


terligada.
Mesmo que as áreas de preservação permanente repre-
sentem um papel fundamental em nossas cidades, é preciso
reconhecer que não é possível reverter por completo os prejuí-
zos ambientais causados pelas ocupações irregulares já conso-
lidadas. Por esta razão, desde que não haja riscos à saúde e à
vida dos moradores e que sejam preenchidos os requisitos au-
torizadores instituídos pela Lei que instituiu o programa “Mi-
nha Casa Minha Vida”, acredita-se que a solução mais justa e
adequada é a permanência destes no local ocupado, mesmo
em se tratando de uma área de preservação permanente.
Por certo que regularização fundiária dos assentamentos
irregulares em espaços legalmente protegidos constitui-se um
grande desafio para os Municípios, mas é por esta razão que a
Lei nº 11.977/2009 trouxe um conjunto de dispositivos para
regular este procedimento, observando, principalmente, a
compatibilidade da legalização da área com as características
ecológicas do local. O que se pretende com esta previsão da
regularização fundiária nas áreas de preservação permanente
é a efetivação do direito de propriedade e, acima de tudo, a
efetivação do direito à moradia adequada, compreendidas nes-
ta finalidade, a segurança e o bem estar de todos aqueles que
ali residem.

REFERÊNCIAS
BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M.S. Regularização
fundiária em áreas de proteção ambiental: a visão urbana e ambi-
ental. Disponível em: <http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20C
HIS%202010/106-C.pdf>. Acesso em 09 abr 2013. p. 03.
BRASIL. Lei nº 10.257 de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts.
182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da
política urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da] Repú-
blica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jul 2001. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>.
Acesso em 09 abr 2013.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
985
A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, ...

_______. Lei n° 11.977 de 07 de Julho de 2009. Dispõe sobre o Pro-


grama Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiá-
ria de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decre-
to-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de
agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de
maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória
no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diá-
rio Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 08 jul
2009. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2009/lei/L11977compilado.htm>. Acesso em 09 abr
2013.
_______. Lei n° 12.651 de 25 de Maio de 2012. Dispõe sobre a prote-
ção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de
1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro
de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e
7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de
24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 28 mai 2012. Disponí-
vel em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/
Lei/L12651compilado.htm>. Acesso em 09 abr 2013.
_______. Lei n° 4.771 de 15 de Setembro de 1965. Institui o novo Có-
digo Florestal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 16 set 1965. Disponível em <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/l4771.htm>. Acesso em 09 abr 2013.
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução n° 369 de
28 de Março de 2006. Diário Oficial da União, Edição Número 61, de
29 mar 2006. Disponível em <http://www.mma.gov.br/port/ cona-
ma/legiabre.cfm?codlegi=489>. Acesso em 09 abr 2013.
GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Meio ambiente urbano, regu-
larização fundiária e sustentabilidade. Disponível em <http://www
.ibdu.org.br/imagens/MEIOAMBIENTEURBANOREGULARIZAcaOfU
NDIaRIA.pdf>. Acesso em 09 abr 2013. p. 07.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Estocolmo
sobre o Meio Ambiente Urbano. 05 jun 1972. Disponível em
<http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/estocolmo1972.pdf>.
Acesso em 09 abr 2013.
OSORIO, Letícia Marques; MENEGASSI, Jacqueline. A reapropriação
das cidades no contexto da globalização. In: OSORIO, Letícia Mar-
ques (Org.). Estatuto da cidade e reforma urbana: novas perspecti-
vas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2002.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
986
Patrícia Andreola &Iásin Schäffer Stahlhöfer

SCHÄFFER, Wigold Bertoldo et al. Áreas de preservação permanen-


te e unidades de conservação & Áreas de Risco: o que uma coisa
tem a ver com a outra? In: MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Rela-
tório de Inspeção da área atingida pela tragédia das chuvas na
Região Serrana do Rio de Janeiro. Brasília, 2011. Disponível em
<http://www.mma.gov.br/estruturas/202/_publicacao/202_publicac
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VANIN, Fábio Scopel. A regularização fundiária de interesse social e
os aspectos da sustentabilidade e do planejamento urbano. In:
CONGRESSO DE DIREITO URBANO-AMBIENTAL, 2011, Porto Ale-
gre. Anais do II Congresso comemorativo aos 10 anos do Estatuto da
Cidade. Porto Alegre: Exclamação, 2011. v. 1. p. 351.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
MEMÓRIA E TEMPO : A RAZOÁVEL DURAÇÃO
DO PROCESSO PÓS - EMENDA
CONSTITUCIONAL Nº 45/2004 1

Queli Cristiane Schiefelbein da Silva


Mestranda do Curso de Direitos Humanos da Unijuí/RS, Especialista em
Ciências Penais pela Unisul/SC e Técnica Judiciária da Justiça Federal – Su-
pervisora da Unidade Avançada de Atendimento da Justiça Federal em
Ijuí. (quelicss@yahoo.com.br)
Fabiana Marion Spengler
Pós-Doutora pela Università degli Studi di Roma Tre/Itália, com bolsa
CNPq; docente dos cursos de Graduação e Pós-Graduação lato e stricto
sensu da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC – e da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ
(fabiana.spengler@unijui.edu.br)

Resumo
O presente artigo busca demonstrar a ligação existente entre memória, tempo e
processo, a fim de se verificar o que pode ser considerado um tempo de duração
razoável para o processo. Dessa forma, inicialmente é analisada a questão da memó-
ria e do tempo, observando que a memória serve para conservar certas informações,
sendo que há várias concepções da memória, bem como que o tempo é algo difícil
de ser definido, pois as relações temporais são instituídas em diversos níveis, de
forma complexa, havendo várias noções de tempo. Após é observada a questão do
tempo e do direito, que estão intimamente ligados, pois o tempo institui e é instituí-
do, sendo o direito uma instituição temporal e memória da sociedade. Também é
visto que o processo é a memória do conflito institucionalizado, sendo que uma
preocupação global existente gira em torno do tempo de duração do mesmo, pois a
morosidade é um obstáculo à prestação jurisdicional justa e efetiva. Nesse sentido, é
verificado o conceito de razoável duração do processo, observando-se brevemente
as alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004 quanto à garantia de
prazo razoável. E para fins de cumprir com tais objetivos, o método de abordagem
utilizado é o dedutivo partindo da relação entre argumentos gerais, denominados
premissas, para argumentos particulares, até se chegar a uma conclusão. Como
método de procedimento é utilizado o método monográfico, a partir de pesquisas e
fichamentos em fontes bibliográficas, livros e trabalhos relativos ao assunto.
Palavras-chave: Memória. Tempo. Duração razoável. EC nº 45/2004.

1
Texto produzido a partir do projeto de pesquisa intitulado: “Direitos
Humanos, Identidade e Mediação” financiado pelo edital Universal
14/2011 do CNPq, processo nº 481512/2011-0, vinculado ao Mestrado em
Direitos Humanos da Unijuí.
988
Queli Cristiane Schiefelbein da Silva & Fabiana Marion Spengler

Abstract
This paper aims to demonstrate the link between memory, time and process, in
order to ascertain what can be considered a reasonable length of time for the pro-
cess. Thus, initially analyzes the question of memory and time, noting that the
memory used to save certain information, and there are several conceptions of
memory, and that time is something difficult to define, because the temporal rela-
tions are established at various levels, in complex ways, with different notions of
time. Is observed after the issue of time and the right, which are closely linked, be-
cause time is establishing and filed, and the right temporal and memory an institu-
tion of society. It is also seen that the process is institutionalized memory of the
conflict, and existing global concern revolves around the same length of time as the
length is an obstacle to fair and effective adjudication. In this sense, the concept is
seen as reasonable processing time, noting briefly the changes introduced by Consti-
tutional Amendment No. 45/2004 regarding the guarantee of reasonable time. And
for purposes of complying with these objectives, the method of approach used is
based on the relationship between deductive arguments general, called assump-
tions, arguments for individuals until they reach a conclusion. As a method of proce-
dure is used monographic method, based on research and fichamentos in biblio-
graphical sources, books and work on the subject.
Key-words: Memory. Time. Reasonable length. EC No. 45/2004.

INTRODUÇÃO
A memória está relacionada com o passado, logo direta-
mente ligada com o tempo. Todavia, o termo “tempo” é difícil
de ser definido, podendo-se afirmar que é o que se vive (pre-
sente), o que se viveu (passado) e o que se viverá (futuro). É
possível afirmar que as relações temporais são instituídas em
diversos níveis, de múltiplas complexidades, havendo diversas
noções de tempo. Nesse sentido, para Ost2, o tempo “sócio-
histórico” é a medida que se serve simultaneamente para ma-
terialidade do tempo dado e da experiência do tempo vivenci-
ado, reelaborando os seus elementos. Há que se salientar que
com a modernidade, o tempo passou a ser escrito, ter uma his-
tória, podendo ser mudado e manipulado.
Em relação ao tempo e o direito, verifica-se que há uma
interligação entre eles, pois o direito afeta a temporalização do
tempo e este determina a força constituinte do direito. Assim,
é um desafio para os juristas fazer uso adequado do tempo li-

2
OST, François. O Tempo do Direito. Tradução Élcio Fernandes; revisão
técnica Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru, SP: Edusc, 2005.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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25 e 26 de abril de 2013
989
Memória e tempo

gado à memória, ao perdão, à promessa e ao questionamento,


sendo justamente este que liga o direito com a memória, o
perdão e a promessa, fazendo com que ele se torne adequado
a cada caso e se aproxime mais do social.
Na atualidade, considerando que predomina a urgência,
com ações em tempo real, a discussão que passa a ser impor-
tante a se fazer é sobre o direito e o tempo do processo, o qual
está diretamente ligado com ritos e prazos. E em relação a is-
so, observa-se que o tempo do processo é contínuo, com um
começo e um fim, sendo resultado de regras processuais e da
matéria litigiosa, que impõe o ritmo dos procedimentos, o qual
deve integrar as evoluções do litígio.
E na busca para que o processo possua uma duração ra-
zoável, com resposta ao conflito em tempo adequado, a emen-
da constitucional nº 45/2004 acresce ao art. 5º da Constituição
Federal o inciso LXXVIII, que trata especialmente da celerida-
de processual, a fim de agregar uma maior efetividade e utili-
dade à prestação jurisdicional. Observa-se que os motivos que
levaram o legislador a preocupar-se com a questão do tempo
do processo, elevando a discussão ao nível de garantia funda-
mental, demonstram a insatisfação da sociedade com a pres-
tação da tutela jurisdicional. Nesse sentido, há o entendimento
de que a jurisdição não deve ser apenas realizada pelo Estado
como decorrência do direito de ação, mas sim uma tutela efeti-
va, tempestiva e adequada, sendo que é atribuição do Estado
alcançar este objetivo.
Considerando as questões acima mencionadas, o presen-
te artigo inicialmente procura analisar os conceitos de memó-
ria e tempo, para se verificar brevemente o tempo do direito e
o tempo do processo, o qual possui como uma das principais
reclamações dos jurisdicionados a questão de sua duração. Na
sequência será feita uma concisa análise acerca do princípio
da celeridade e da razoável duração do processo através da
Emenda Constitucional nº 45/2004.
Para fins de cumprir com tais objetivos o método de abor-
dagem utilizado será o dedutivo, partindo da relação entre ar-
gumentos gerais, denominados premissas, para argumentos

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990
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particulares, até se chegar a uma conclusão. Como método de


procedimento será utilizado o método monográfico, a partir de
pesquisas e fichamentos em fontes bibliográficas, estudo de
estatísticas ligadas ao tema da pesquisa, além de livros e tra-
balhos relativos ao assunto3.

MEMÓRIA E TEMPO DO PROCESSO


A memória é a presença do passado, é uma construção
psíquica e intelectual que acarreta uma representação seletiva
do passado, que nunca é somente aquela do indivíduo, mas de
um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional4.
Nesse sentido, cabe mencionar que nos estudos de Maurice
Halbwachs, a memória não é somente um fenômeno de interio-
rização individual, mas é também, e sobretudo, uma constru-
ção social e um fenômeno coletivo5. Embora a memória coletiva
tire a sua força e sua duração de um conjunto de homens, estes
são indivíduos, que se lembram, enquanto membros do grupo,
cada qual com uma intensidade, sendo que segundo Maurice
Halbwachs6:
Diríamos voluntariamente que cada memória individual é
um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este
ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e
que este lugar mesmo muda segundo as relações que
mantenho com outros meios. Não é de admirar que, do
instrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo
modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversida-

3
VENTURA, Deisy. Monografia Jurídica: uma visão prática. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2000.
4
MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. História e Memória: algumas
observações. Disponível em: <http://www.fja.edu.br/proj_acad/praxis/
praxis_02/documentos/ensaio _2.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2013.
5
SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as uti-
lizações sociais da memória. Rev. Bras. Hist. v. 22 n. 44, São Paulo,
2002. On-line version ISSN 1806-9347. Disponível em: <http://dx.
doi.org/10.1590/S0102-01882002000200008>. Acesso em: 20 mar. 2013.
6
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004,
p. 55.
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25 e 26 de abril de 2013
991
Memória e tempo

de, voltamos sempre a uma combinação de influências


que são, todas, de natureza social.

Já Jaques Le Goff7, mencionando que o conceito de me-


mória é crucial, afirma que “a memória, como propriedade de
conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a
um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem
pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que
ele representa como passadas”. Para o mencionado autor, há
diversas concepções recentes da memória, sendo que tanto
nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos, os fenô-
menos da memória são “resultados de sistemas dinâmicos de
organização e apenas existem ‘na medida em que a organiza-
ção os mantém ou os reconstitui’”8.
Por esse motivo, alguns cientistas acabaram aproximando
a memória dos fenômenos ligados com a esfera das ciências
humanas e sociais. Nesse sentido, a noção de memória foi en-
riquecida, recentemente, pelos desenvolvimentos da cibernéti-
ca e da biologia, sobretudo metaforicamente e em relação com
a memória humana consciente. Em relação a luta das forças
sociais pelo poder, a memória coletiva foi posta em jogo de
forma importante. Quanto a isto9:
Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é
uma das grandes preocupações das classes, dos grupos,
dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história
são revelados desses mecanismos de manipulação da
memória coletiva.

Neste contexto, o estudo da memória social acaba sendo


um dos meios fundamentais, segundo Le Goff, de abordar os
problemas relacionados ao tempo e a história, visto que em

7
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1996, p.
423.
8
Idem, p. 424.
9
Idem, p. 426.

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relação a eles a memória ora está em retraimento, ora em


transbordamento.
Mas o que é o tempo? Como defini-lo? Essa é uma ques-
tão difícil de ser respondida. Todavia, buscando uma resposta,
observa-se que, segundo o minidicionário Houaiss, entre as
significações para o termo está ser um “período contínuo e in-
definido no qual os eventos se sucedem e criam no homem a
noção de presente, passado e futuro”10. O futuro é o que se es-
pera, o passado é que se recorda e o presente é aquilo sobre o
que se está atento! Logo, futuro, passado e presente são, res-
pectivamente: espera! Memória! Atenção! O tempo é o que se
vive, o que se viveu e o que se viverá!11.
Segundo Aristóteles, não se pode perceber o tempo sem
que se perceba juntamente o movimento, mesmo que seja so-
mente o movimento da mente, visto que o tempo tem que ser o
movimento ou algo relacionado ao movimento12. Nessa linha13:
O tempo, ou melhor, a sucessão temporal é definida a
partir de Aristóteles como o agora (o instante), o antes e
o depois; essas são noções a partir das quais o tempo
pode ser definido como: a medida do movimento segundo
um antes e um depois, segundo um anterior e um poste-
rior. O tempo é uma espécie de número que se mede e só
pode ser medido numericamente. Tempo e movimento
não só se relacionam, mas são interdefiníveis. O tempo é

10
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss
da língua portuguesa. Elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexi-
cografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. 3 ed. rev. e
aum. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 721.
11
SANTO AGOSTINHO apud BONATO, Gilson. O tempo do processo pe-
nal: do discurso da razoabilidade à entropia do tempo esquecido. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciên-
cias Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Curso de Doutorado
em Direito das Relações Sociais. Curitiba, 2008.
12
BONATO, Gilson. O tempo do processo penal: do discurso da
razoabilidade à entropia do tempo esquecido. Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Paraná. Curso de Doutorado em Direito das
Relações Sociais. Curitiba, 2008.
13
Idem, p. 34.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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993
Memória e tempo

medido pelo movimento e o movimento é medido pelo


tempo.

Todavia, o autor segue mencionando que o tempo não é


movimento, embora exista uma afinidade entre o tempo e o
movimento. Isto porque os movimentos variam e são multifor-
mes, todavia o tempo não varia, podendo ser considerado uma
medida uniforme de movimentos multiformes, visto que: “o
tempo é o mesmo, em todo o lugar e para todos os homens”14.
Ainda, Bonato15 refere que um dos movimentos tem o pri-
vilégio de estabelecer a medida do tempo: “é o movimento
eterno e regular da esfera celeste, mais precisamente do sol
em torno da terra”. Dessa forma, o tempo é uma medida fixada
pelo espírito humano a partir de um movimento astronômico,
sendo que ao contrário do movimento, o tempo não existe fora
da alma, sem o espírito. Assim, citando Bernard Piettre, o autor
menciona que “Se o tempo é um número, tem que existir a al-
ma que o numere, pois, para que uma coisa seja numerada ou
simplesmente numerável, é necessário existir um ser que nu-
mere”16.
Tentando definir o tempo na concepção atual, Fabiana
Marion Spengler17 afirma que, simbologicamente, a palavra
“tempo” designa “a relação que um grupo de seres vivos do-
14
WHITROW apud BONATO, Gilson. O tempo do processo penal: do
discurso da razoabilidade à entropia do tempo esquecido. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de
Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Curso de
Doutorado em Direito das Relações Sociais. Curitiba, 2008, p. 35.
15
BONATO, Gilson. O tempo do processo penal: do discurso da
razoabilidade à entropia do tempo esquecido. Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Paraná. Curso de Doutorado em Direito das
Relações Sociais. Curitiba, 2008, p. 35.
16
PIETTRE apud BONATO, Gilson. O tempo do processo penal: do
discurso da razoabilidade à entropia do tempo esquecido. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de
Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Curso de
Doutorado em Direito das Relações Sociais. Curitiba, 2008, p. 35.
17
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 180.

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tados de uma capacidade biológica de memória e de síntese


estabelecida entre dois ou mais processos, um dos quais é pa-
dronizado para servir aos outros como quadro de referência e
padrão de medida”. Dessa forma, percebe-se que as relações
temporais são instituídas em diversos níveis, de múltiplas
complexidades.
E como o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear e
nem respirar, são criados os relógios para ao menos oferecer
orientação ao homem quanto a duração do dia e da noite, pois
a “sensação do passar do tempo” tem central importância para
os sentimentos de consciência18. Todavia, a verdadeira medida
do tempo, segundo François Ost19, “não é nem relojoeira, nem
subjetiva”, como é afirmando por Fernando Pessoa ao referir
não saber o que é o tempo. Para Ost20, o tempo “sócio-
histórico”, produto das construções coletivas da história é a
medida que se serve simultaneamente para materialidade do
tempo dado e da experiência do tempo vivenciado, reelabo-
rando os seus elementos, ou seja, “dá-lhes as palavras e os
instrumentos para se dizer”.
Segundo Fabiana Marion Spengler21 existe diversas no-
ções de tempo, sendo que os tempos artificiais são produzidos
pela combinação da tecnologia com os ritmos de vida das pes-
soas. Nesse sentido, a automatização e a robotização das em-
presas acabaram por romper o tempo tradicional, e a acelera-
ção temporal aproxima o presente do futuro, “conferindo-lhe
uma densidade proveniente da quantidade e alcance dessas
mudanças em curto espaço de tempo”22. Observa-se que na
Era Industrial o tempo não poderia ser desperdiçado, pois as
máquinas não paravam e os trabalhadores tinham que acom-
panhar o ritmo. Assim, com a mecanização houve a aceleração

18
Idem.
19
OST, François. O Tempo do Direito. Tradução Élcio Fernandes; revisão
técnica Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 22.
20
Idem, p. 23.
21
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.
22
Idem, p. 186.
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995
Memória e tempo

do ritmo de vida das pessoas, sendo necessária a divisão de


tarefas (adoção do sistema fordista) para haver economia de
tempo, visto que se exigia resultados a curto prazo e fazer
mais no menor tempo possível, a fim de se obter o lucro do sis-
tema capitalista. Dessa forma, com a modernidade, o tempo
passou a ser escrito, ter uma história e pode ser mudado e ma-
nipulado.
Oportuno salientar a interligação entre o tempo e o direi-
to, pois o direito afeta a temporalização do tempo e este de-
termina a força constituinte do direito. Em termos mais preci-
sos, segundo François Ost23 “o direito temporiza ao passo que
o tempo institui”. Analisando a obra “O tempo do direito”, do
escritor belga François Ost, Leonel Severo da Rocha24 resume
de forma clara quais as características do tempo do direito
dentro das três teses centrais em que está dividida a referida
obra:
Para Ost, claramente inspirado em Castoriadis, o Tempo
do Direito possui três características: a primeira, “o Tem-
po é uma instituição social, é uma construção social”, isto
quer dizer, que não existe o Tempo em si, o Tempo da fa-
talidade, ou dos “bons tempos”. O Tempo é construído
pela sociedade. A segunda que “o Direito tem como fun-
ção principal contribuir com a institucionalização social”,
isto quer dizer, que a função de controle do Tempo do Di-
reito é uma função instituinte, o Direito tem que fazer
com que aqueles instantes, aquelas possibilidades de
construção e de decisão que nós realizamos na sociedade
tenham duração, sejam assimiladas, sejam institucionali-
zadas. Isto é, o Direito tem que fazer com que a socieda-
de exista, o Direito constrói a sociedade. O Direito é um
dos construtores da sociedade, é construtor de institui-
ções, ou seja, de decisões, de valores, de experiências, de
desejos, de atos. De situações que se quer que continu-

23
OST, François. O Tempo do Direito. Tradução de Maria Fernanda Olivei-
ra. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 14.
24
ROCHA, Leonel Severo. Tempo e Constituição. In: COUTINHO, Jacinto
Nelson de Miranda; BOLZAN DE MORAIS, José Luis; STRECK, Lenio Lu-
iz (Org.). Estudos Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 201.

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em, que se mantenham, que se institucionalizam, então o


Direito tem realmente a função de institucionalizar a so-
ciedade. A terceira característica seria que “é preciso
uma dialética entre Tempo como instituição social e o Di-
reito como institucionalização social”.

Segundo Fabiana Marion Spengler25 não existe tempo, di-


reito e sociedade isolados, mas sim, trata-se de uma institui-
ção imaginária, na qual o tempo institui e é instituído, sendo o
direito uma instituição temporal. Para Ost26, a construção jurí-
dica do tempo se estabelece a partir do ritmo da temperança,
que nada mais é do que a sabedoria do tempo, ou seja, a justa
medida de seu desenrolar, uma vez que a aplicação do direito
exige uma justa medida entre a continuidade e a mudança, a
fim de garantir o equilíbrio das relações sociais. Dessa forma,
fala-se em “ligar e desligar o tempo”, exigindo-se temperança
em cada caso concreto. Nesse sentido, é um desafio para os
juristas fazer uso adequado dos quatro tempos: memória, per-
dão, promessa e questionamento.
Assim, conforme disposto por Fabiana Marion Spengler27,
“o Direito é a memória da sociedade”, sendo que é função do
Direito manter a memória, pois não existe Direito sem passado,
memória e tradição. Trata-se aqui de um passado renovado,
construído e reconstruído. E a memória pressupõe o esqueci-
mento, ou o perdão, que é uma seleção do que deve ser esque-
cido, dando a ideia de esquecimento seletivo28. Observa-se que
o direito moderno trabalha com a ideia do perdão, o qual é rea-
lizado por um terceiro, o Poder Judiciário, que, por sua vez,
controla a dialética memória/esquecimento e triangulariza a
relação processual. Dessa relação triangulada se espera uma

25
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.
26
OST, François. O Tempo do Direito. Tradução de Maria Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 17.
27
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 199.
28
OST, François. O Tempo do Direito. Tradução de Maria Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
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997
Memória e tempo

sentença, ou seja, a decisão, o julgamento, que só é pronunci-


ada após um debate contraditório entre as partes, mas que
dispõe sobre o passado, utilizando-se da lei, que dispõe para o
futuro, ocasionando um paradoxo29. Assim, é um desafio para o
jurista pensar as vias de abertura do futuro sob formas durá-
veis, quer dizer, rompendo, porém ao mesmo tempo se apoian-
do no passado considerando-se que o tempo social se apoia no
passado e é nele que se encontra a identidade social30.
A modernidade jurídica pensa sob a forma de promessa, a
qual é exemplificada pela Constituição, que se apresenta sob
esta forma, pois é um instrumento jurídico de ligação com o
futuro. A promessa é uma tentativa de construir uma socieda-
de melhor, tornando-a menos imprevisível. E é justamente o
questionamento que liga o direito com a memória, o perdão e a
promessa, fazendo com que ele se torne adequado a cada caso
e se aproxime mais do social.
Todavia, a sociedade moderna é órfã de memória e acre-
dita na construção de uma identidade nas experiências cotidi-
anas. Assim, atualmente predomina o reinado do instante, do
efêmero, da urgência, com a imposição de ações em tempo re-
al, instantâneo. Dessa forma, a discussão passa para a questão
do direito e do tempo do processo, o qual precisa lidar com
imensidão de ritos e prazos. E o processo é a memória do con-
flito institucionalizado31.
Nesse sentido, em relação ao tempo e o processo, que é
um ritual, observa-se, inicialmente, que o tempo do processo
não é um tempo ordinário. Ele é um tempo contínuo, com um
começo e um fim. É um tempo único (não reproduzível) devido
a autoridade do princípio da coisa julgada, que busca a verda-
de e a garantia de que o acusado/requerido possa se defender.
O tempo do processo é resultado de regras processuais e da

29
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.
30
OST, François. O Tempo do Direito. Tradução de Maria Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
31
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matéria litigiosa, que impõe o ritmo dos procedimentos, o qual


deve integrar as evoluções do litígio. No processo o tempo é
recriado, ou seja, o processo não decorre de um tempo real,
sendo que “o tempo é muito mais ‘longo’ para as partes (espe-
cialmente o acusado) do que para os profissionais da Justiça”32.
Ao analisar o tempo e o processo, Tucci33 assevera que é
patente a preocupação global em torno da duração intolerável
dos feitos, já que esta configura um enorme obstáculo para que
o processo cumpra seus compromissos institucionais. O autor
segue afirmando que o tempo pode causar o perecimento das
pretensões, ocasionar danos econômicos e psicológicos às par-
tes e profissionais operadores do direito, estimular composi-
ções desvantajosas, e consequentemente, gerar descrédito ao
Poder Judiciário e ao Estado como um todo. Salienta-se, ainda,
que o tempo de duração do processo aumentou, na medida em
que a sociedade e as relações que a regem evoluíram e se tor-
naram mais complexas. Também o maior acesso ao Judiciário
colaborou para o seu congestionamento, uma vez que a estru-
tura Estatal não acompanhou o aumento no número de de-
mandas.
A vida social pede para ser regenerada, e esse é o sentido
do tempo judiciário. Todavia, essa recriação da ordem social
não consiste numa simples representação, sendo que o ritual
permite também que a sociedade participe dessa criação. Sali-
enta-se que o tempo da ritualidade judiciária evoca o tempo do
Direito, o qual parece ser insensível ao tempo, pois integra o
passado num presente eterno. E essa elaboração simbólica do
processo é hoje alvo de ataques e críticas, pois na maioria das
vezes a Justiça é acusada de ser demasiada lenta34.
Dessa forma, observa-se que em razão das reclamações
acerca da morosidade (lentidão) da Justiça, o Judiciário Brasi-

32
Idem, p. 212.
33
TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e processo: uma análise empírica
das repercussões do tempo na fenomenologia processual (civil e penal).
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
34
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
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Memória e tempo

leiro passou por uma reforma, estabelecida pela Emenda Cons-


titucional nº 45 (EC/45), que é uma das tentativas na busca de
dar respostas mais céleres aos jurisdicionados, com expectati-
va de que suas alterações possam gerar transformações para
impor uma efetividade quantitativa e qualitativa junto ao Sis-
tema Judiciário Nacional. Nesse sentido, a EC/45 tem incidên-
cia na questão do acesso à justiça, mas principalmente sobre a
tutela jurisdicional que passa a “dever ser” tempestiva, visto
que “não basta apenas garantir o acesso ao poder judiciário e
o meios adequados para defesa, pois para satisfazer o jurisdi-
cionado é preciso ainda que a tutela pleiteada seja conferida
dentro de um razoável prazo, sob pena de se tornar totalmente
inútil”35.
Nesse sentido, importante verificar a questão da razoável
duração do processo com a Emenda Constitucional nº 45/2004,
que será objeto do próximo tópico.

RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO COM A EMENDA


CONSTITUCIONAL Nº 45/2004
A questão do tempo de duração do processo é de grande
importância, pois o Estado é caracterizado, a priori, pela sua
função social, que tem como objetivo assegurar o bem comum
e realizar a justiça social. Dessa forma, a demora na prestação
jurisdicional descumpre esse objetivo, pois como adverte Ro-
drigues36 “não há justiça social quando o Estado, por meio do
poder Judiciário, não consegue dar uma pronta e efetiva res-
posta às demandas que lhe são apresentadas”.

35
SPALDING, Alessandra Mendes. Direito Fundamental à Tutela Jurisdi-
cional Tempestiva à Luz do Inciso LXXVIII do Art. 5º da CF Inserido pela
EC nº 45/2004. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvin (Org.). Reforma do
Judiciário. Primeiras reflexões sobre a emenda constitucional n.
45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 32.
36
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça e prazo razoável na
prestação jurisdicional. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvin (Org.). Re-
forma do Judiciário. Primeiras reflexões sobre a emenda constitucional
n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 285.

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Nesse sentido, cumpre ao ordenamento jurídico atender


ao pedido daquele que buscar exercer o seu direito à prestação
jurisdicional da forma mais completa e eficiente possível. Para
isso, é necessário assegurar ao jurisdicionado de forma efetiva
o seu direito, dentro de um lapso de tempo razoável, ou seja, é
imperiosa que a decisão, além de efetiva, seja também tem-
pestiva. Nessa busca da efetividade do processo, com a missão
social de eliminar conflitos e fazer justiça, vale citar os dizeres
de Pedro Lenza37, citando Bedaque:
[...] em algumas situações, contudo, a demora, causada
pela duração do processo e sistemática dos procedimen-
tos, pode gerar total inutilidade ou ineficácia do provi-
mento requerido. Conforme constatou Bedaque, “o tempo
constitui um dos grandes óbices à efetividade da tutela
jurisdicional, em especial no processo de conhecimento,
pois para o desenvolvimento da atividade cognitiva do
julgador é necessária a prática de vários atos, de nature-
za ordinatória e instrutória. Isso impede a imediata con-
cessão do provimento requerido, o que pode gerar risco
de inutilidade ou ineficácia, visto que muitas vezes a sa-
tisfação necessita ser imediata, sob pena de perecimento
mesmo do direito reclamado.

E com o principal objetivo de reduzir a morosidade (lenti-


dão) da Justiça, ocorreu a reforma do Judiciário Brasileiro, es-
tabelecida pela Emenda Constitucional nº 45 (EC/45), a qual
inseriu de forma expressa o princípio da celeridade processual,
ao acrescentar mais um direito fundamental aos setenta e sete
incisos já existentes no art. 5º. Com essa emenda, dentre ou-
tras diversas alterações, foi acrescentado à Constituição Fede-
ral o inciso LXXVIII, ampliando os direitos e garantias funda-
mentais, o qual refere que “a todos, no âmbito judicial e admi-

37
BEDAQUE apud LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.
13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 722.
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1001
Memória e tempo

nistrativo, são assegurados a razoável duração do processo e


os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”38.
Busca-se ao menos tornar razoável a duração do processo
e concretizar o princípio da garantia constitucional do exercício
da tutela jurisdicional ou princípio da inafastabilidade do Po-
der Judiciário, conforme previsto no inciso XXXV do art. 5º da
CF/88, ou seja, a garantia do acesso à justiça, que é a mais
fundamental modalidade de direitos humanos. Observa-se que
é a partir da codificação dos Direitos Humanos que o fenômeno
da razoável duração do processo passa a ser inserido tanto em
Tratados, Pactos ou Convenções Internacionais, assim como
nas Constituições, que também passaram a incorporar em
seus textos o capítulo dos direitos e garantias fundamentais.
Destaca-se39 que o foco original de disseminação da preo-
cupação com a razoável duração do processo, em proporção
mundial, ocorreu com a Convenção Americana sobre os Direi-
tos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da
Costa Rica, que foi aderida pelo Brasil em 25/09/1992, ressal-
vadas as cláusulas facultativas do art. 45, 1º e art. 62, 1º. Nesse
sentido, observa-se no item 1, do artigo 8º, que trata das ga-
rantias judiciais, que40:
Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas
garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou
Tribunal competente, independente e imparcial, estabe-
lecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer
acusação penal formulada contra ela, ou na determinação
de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer outra natureza - grifei.

38
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/consti
tui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 06 ago. 2012.
39
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos huma-
nos. 7ed. rev. e amp., São Paulo: Saraiva, 2010.
40
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional inter-
nacional. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 628.

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1002
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No mesmo sentido, verifica-se no item 1, do artigo 25, que


trata da proteção judicial, que41:
Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido
ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou
tribunais competentes, que a proteja contra atos que vio-
lem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Cons-
tituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo
quando tal violação seja cometida por pessoas que este-
jam atuando no exercício de suas funções oficiais - grifei.

Salienta-se, ainda, que o âmbito internacional, a Conven-


ção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, também já de-
monstrava preocupação com a demora no trâmite processual,
visto que em seu artigo 6º, § 1º fez constar a garantia de que
toda pessoa tem direito a uma audiência equitativa e pública,
dentro de um prazo razoável, por um tribunal independente e
imparcial.
Dessa forma, a EC/45 não trouxe inovação em relação a
garantia da razoável duração do processo, pois o Brasil já era
signatário do mencionado Pacto desde 1992. Todavia, ao intro-
duzir essa determinação no art. 5º da Constituição Federal,
instituiu esse princípio como um direito fundamental, o qual
deve ter aplicação imediata, pois conforme disposto no pará-
grafo 1º, do artigo 5º, da Carta Constitucional Brasileira42, “as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata”.
O que não se pode é conformar-se com a aludida previ-
são, pois, como determina o comando, são assegurados os
meios que garantam a celeridade da tramitação do processo.
Assim, conforme sinalizado por Grinover, citado por Lenza43:

41
Idem, p. 633.
42
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 06 ago. 2012.
43
GRINOVER apud LENZA, Pedro. Direito Constitucional
Esquematizado. 13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
723.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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1003
Memória e tempo

[...] esses meios devem ser inquestionavelmente ofereci-


dos pelas leis processuais, de modo que a reforma infra-
constitucional fica umbilicalmente ligada à constitucio-
nal, derivando de ordem expressa da Emenda n.º
45/2004. Trata-se, portanto, de fazer com que a legislação
processual ofereça soluções hábeis à desburocratização e
simplificação do processo, para garantia da celeridade de
sua tramitação.

E a fim de cumprir o comando fixado na Reforma do Judi-


ciário, diversas leis foram e estão sendo criadas buscando uma
maior racionalização da prestação jurisdicional. Isso porque,
tendo em vista que a protelação e a morosidade comprometem
a útil e justa entrega da prestação jurisdicional, é necessário
adaptar o Judiciário Brasileiro para que de fato dê ao processo
uma duração razoável. Mas o que é o tempo razoável para a
duração de um processo judicial? Como já foi tentado esclare-
cer o conceito de tempo, necessário agora se faz buscar enten-
der qual o sentido da palavra “razoável”, no contexto de “tem-
po razoável”, ou de duração razoável do processo. Assim, se-
gundo a própria definição do dicionário44, razoável significa ser
aceitável, que tem bom senso, não excessivo, dentre outras
significações. Todavia, conforme Moro45 não é na literalidade
que se encontra a aplicação de se proporcionar a “razoável
duração do processo”, mas sim na interpretação teleológica e
sistemática do texto. Para o autor, na prática caberá ao próprio
Judiciário estabelecer o que é razoável para si, mas como essa
disposição constitucional representa cristalino direito funda-
mental, de aplicação imediata, os advogados deverão atuar
para exigir a aplicação dos princípios da celeridade e da dura-
ção razoável do processo.
44
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss
da língua portuguesa. Elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexi-
cografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. 3 ed. rev. e
aum. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
45
MORO, Luís Carlos. Onde está a razoabilidade. Como se define a “razo-
ável duração do processo”, prevista na Reforma. Consultor Jurídico. Dis-
ponível em: <http://www.conjur.com.br/2005-jan-23/definir_razoavel_
duracao_processo>. Acesso em: 11 ago. 2012.

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1004
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Para José Afonso da Silva46, há duas formas de concreti-


zação desse mandamento constitucional: a) promover altera-
ções na legislação federal, para tornar mais efetivo o acesso à
justiça; e b) os tribunais (e analogicamente dos entes adminis-
trativos) atuarem de forma incisiva, para que tomem providên-
cias face a eventuais membros desidiosos. Já segundo Rodri-
gues47, a ideia de “razoável duração do processo” deve ser in-
terpretada considerando duas hipóteses: “a) tempo razoável é
o tempo legal, expressamente previsto na legislação processu-
al; b) tempo razoável é o tempo médio efetivamente despendi-
do no país para cada espécie concreta de processo”.
Nesse sentido, segundo Fabiana Marion Spengler48:
A primeira opção reproduz um critério objetivo, sofrendo
o desgaste de nem sempre existir, em cada etapa pro-
cessual, tempo previamente definido em lei. Já a adoção
da segunda hipótese traz a negativa da garantia consti-
tucional, pois a média de duração dos processos no Brasil
hoje se encontra muito acima do legal e do razoável.

Na mesma linha, Bolzan de Morais49, discutindo sobre a


expressão “prazo razoável”, afirma que o seu sentido deve ser
“preenchido no caso concreto, tendo como indicativo a melhor
e maior realização da garantia de acesso à justiça na perspec-
tiva de acesso a uma resposta à questão posta qualitativamen-
te adequada e em tempo quantitativamente aceitável”. Dessa
forma, observa-se que a busca pela celeridade processual deve
levar em conta uma resposta qualificada aos conflitos, pois não

46
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed.
rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.
47
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça e prazo razoável na
prestação jurisdicional. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvin (Org.). Re-
forma do Judiciário. Primeiras reflexões sobre a emenda constitucional
n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 289.
48
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 217.
49
BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Judiciário e o acesso à
justiça. In: AGRA, Walber de Moura. Comentários à reforma do poder
judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 16.
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1005
Memória e tempo

basta que uma decisão judicial seja justa e correta, ela deve
ser tempestiva, pois se torna ineficaz quando chega tarde, ou
seja, “quando é entregue ao jurisdicionado no momento em
que não lhe interessa nem mesmo o reconhecimento e a decla-
ração do direito pleiteado”50.
Já Marco Jobim51, embora admita que parte da doutrina e
alguns juízes entendam que o princípio da duração razoável do
processo seja sinônimo do princípio da celeridade processual,
defende a autonomia desses direitos fundamentais e os con-
ceitua da seguinte forma:
A duração razoável do processo tem por finalidade a ga-
rantia ao jurisdicionado que ingressa no Poder Judiciário
de que, em determinado tempo, e que este seja razoável,
o seu processo tenha sido efetivado, ou pelo menos tenha
sua sentença transitada em julgado. Já a celeridade pro-
cessual é garantia ao jurisdicionado de que os atos pro-
cessuais sejam realizados no menor espaço de tempo
possível, numa linha mais de economia processual.

Sobre o assunto, José Afonso da Silva52 afirma que “[...] a


norma acena para a regra de razoabilidade cuja textura aberta
deixa amplas margens de apreciação, sempre em função de
situações concretas. Ora, a forte carga de trabalho dos magis-
trados será, sempre, um parâmetro a ser levado em conta na
apreciação da razoabilidade da duração dos processos a seu
cargo”. Todavia, embora o volume de processos que tramita no
Judiciário inviabiliza, muitas vezes, a observância de um perí-
odo de tempo agradável aos interessados, a obstrução dos ór-
gãos do Judiciário pela quantidade de processos não constitui,

50
SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 218.
51
JOBIM, Marcos Félix. O direito à duração razoável do processo: res-
ponsabilidade civil do Estado em decorrência da intempestividade pro-
cessual. 2 ed. rev. e amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p.
119.
52
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed.
rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 432.

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1006
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por si só, motivação objetiva para a demora injustificável de


alguns provimentos.
Em linhas gerais, há um consenso de que para que haja
uma razoável duração do processo é necessário que o processo
tramite sem dilações indevidas. Para ajudar nessa compreen-
são, observa-se que o posicionamento da Corte Europeia dos
Direitos do Homem estabelece três critérios para verificar a
razoável duração do processo, quais sejam: a complexidade do
assunto, o comportamento dos litigantes e de seus procurado-
res e a atuação do órgão jurisdicional53.
A complexidade da causa é aferida pelas peculiaridades
das questões fáticas ou jurídicas, bem como pelo número de
pessoas envolvidas. No comportamento das partes está incluí-
da a investigação sobre os responsáveis pelo prolongamento
indevido das causas, trabalhando com temas como o abuso de
direito, boa-fé e lealdade processuais, pois não adianta refor-
mas e técnicas para aumentar a efetividade e acelerar os feitos
se os sujeitos envolvidos no processo se desvirtuarem do obje-
tivo da justiça, utilizando-se de fins ilícitos ou com manifesta
má-fé na atuação com o processo. Em relação à atuação das
autoridades, é analisada a conduta dos juízes e serventuários,
isto é, dos agentes públicos que lidam com o processamento e
julgamento dos feitos, o que deve ser feito de forma qualitati-
va, pois não basta averiguar o tempo transcorrido do processo,
é necessário verificar como esse tempo foi empregado, para
verificar se foi compatível com a atividade jurisdicional presta-
da. Assim, não é possível criar critérios lógicos para definir a
duração razoável de uma demanda, mas tão somente, em cada
caso, apreciar se houve o comprometimento dos envolvidos
(partes, juízes, auxiliares), atrelado à complexidade da ação.
Conforme Belo54 verifica-se que os critérios especificados
pela Corte Europeia de Direitos Humanos afastam a doutrina
da fixação de prazos para a verificação da razoabilidade do
53
BELO, Duína Porto. A razoável duração do processo como instrumento
de acesso à justiça. Revista Direito e Desenvolvimento – a. 1, n. 2, ju-
lho/dezembro 2010, p. 55-68.
54
Idem.
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1007
Memória e tempo

tempo processual. Essa dificuldade de estabelecer prazos má-


ximos é em razão de que o “exame da razoabilidade é concreto
e não abstrato”55. Dessa forma, a “prestação da justiça em
tempo hábil não possui uma dimensão temporal delimitada,
justamente por envolver casos concretos. Há que se mensurar,
sempre, a celeridade processual com as demais garantias do
due processo of Law”56. Assim, para que o processo tenha du-
ração razoável, justa, devem ser levadas em consideração as
variáveis concretas.
Na mesma linha, Teixeira Filho57, ao ponderar que a justi-
ça tardia traduz injustiça, mas que a justiça apressada, em de-
terminadas situações, também é causa de injustiça, explicita
que “o problema da justiça ou da injustiça dos pronunciamen-
tos jurisdicionais não está ligado, com exclusividade, ao fator
tempo, senão que, também, a particularidade de cada caso
concreto”.
Observa-se que, nos últimos tempos, a ciência processual
está buscando mecanismos a fim de assegurar resultados a
serem alcançados, concretamente, pela prestação jurisdicional.
A instrumentalidade e a efetividade processual são os alicer-
ces do processo civil contemporâneo, na busca da garantia de
um processo justo para os envolvidos. Assim, mais do que um
processo meramente legalista, o que se procura é um processo
útil às partes, “colocando no primeiro plano idéias éticas em
lugar do estudo sistemático apenas das formas e solenidades
do procedimento”58.

55
NICOLITT apud BELO, Duína Porto. A razoável duração do processo
como instrumento de acesso à justiça. Revista Direito e
Desenvolvimento – a. 1, n. 2, julho/dezembro 2010, p. 62.
56
BELO, Duína Porto. A razoável duração do processo como instrumento
de acesso à justiça. Revista Direito e Desenvolvimento – a. 1, n. 2,
julho/dezembro 2010, p. 62.
57
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Breves Comentários à Reforma do
Poder Judiciário (com ênfase à Justiça do Trabalho): emenda constitu-
cional n. 45/2004. São Paulo: Editora LTr, 2005, p. 22.
58
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil:
teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 47.
ed. São Paulo: Forense, 2007, p. 09.

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Segundo Hoffman59, o processo adequado e justo deve


demorar apenas o tempo necessário para a sua finalização,
observado o contraditório, a ampla defesa, a paridade entre as
partes, o tempo necessário para que o juiz desenvolva sua
compreensão acerca do caso, bem como a realização das pro-
vas úteis e eventuais imprevistos inerentes a qualquer ativi-
dade. Dessa forma, a busca pela duração razoável deve orien-
tar o legislador, o jurista e os operadores do direito “sob pena
de se transformar a atividade jurisdicional em seu todo em
uma grande fábula, um enorme dispêndio de tempo e dinheiro,
que jamais atinge o fito e princípio maior do estado democráti-
co, que é a realização da mais lídima forma de justiça”60.
Salienta-se que, conforme bem analisado por Hote61 “o
que se busca mundialmente é uma Justiça rápida e efetiva,
porém e acima de tudo, sem se perder a qualidade que deve
ser inerente a toda atividade jurisdicional prestada”. Dessa
forma, verifica-se que não existem critérios objetivos para de-
terminar a duração razoável do processo, sendo que sua verifi-
cação deverá ser feita com base no caso concreto, respeitados
os princípios constitucionais e processuais.

CONCLUSÃO
Com o presente artigo verificou-se que a memória está re-
lacionada com o passado, dessa forma, também com o tempo.
Observou-se, ainda, que é difícil de ser definido o termo tempo,
pois as relações temporais são de múltiplas complexidades,
sendo que existem diversas noções de tempo. Uma dessas no-

59
HOFFMAN, Paulo. O direito à razoável duração do processo e a experi-
ência italiana. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 782, 24 ago. 2005.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7179>. Acesso em: 07
set. 2012.
60
Idem.
61
HOTE, Rejane Soares. A garantia da razoável duração do processo como
direito fundamental do indivíduo. Revista da Faculdade de Direito de
Campos, Campo dos Goytacazes, Ano VIII, n. 10, junho de 2007, p. 467-
492. Disponível em: <http://fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/ Revis-
ta10/Discente/RejaneSoares.pdf>. Acesso em: 07 set. 2012, p. 489.
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1009
Memória e tempo

ções é para Ost62 o tempo “sócio-histórico”, o qual seria uma


medida que serve tanto para a materialidade do tempo dado,
como para a experiência do tempo vivenciado. Foi possível
perceber também a interligação existente entre o tempo e o
direito, visto que o direito afeta a temporalização do tempo e
este determina a força constituinte do direito.
Considerando que predomina, na atualidade, a urgência,
sendo que se espera que as ações ocorram em tempo real, a
discussão sobre o direito e o tempo do processo passa a ser
importante, visto que o processo está diretamente ligado com
ritos e prazos, ou seja, é influenciado pelo tempo. Nesse senti-
do, observou-se que o tempo do processo é um tempo contí-
nuo, com um começo e um fim, sendo o processo não decorre
em um tempo real, mas o tempo é recriado nele. Dessa forma,
as regras processuais e da matéria litigiosa é que impõe o rit-
mo dos procedimentos.
E considerando que um dos entraves para a efetivação do
processo diz respeito ao seu tempo de duração, na busca para
que o processo possua uma duração razoável, com resposta ao
conflito em tempo adequado, foi realizada uma reforma no Ju-
diciário Brasileiro, através da emenda constitucional nº
45/2004. Entre as inovações trazidas pela referida emenda, ve-
rifica-se que ela acresce ao art. 5º da Constituição Federal o
inciso LXXVIII, que trata especialmente da celeridade proces-
sual, a fim de agregar uma maior efetividade e utilidade à
prestação jurisdicional.
Por esse motivo, também foi brevemente analisado o
princípio da celeridade e da razoável duração do processo,
sendo que observou-se que já existia a previsão de prazo razo-
ável do processo no Pacto de San José da Costa Rica, assinado
pelo Brasil no ano de 1992. Todavia, a EC45/2004 elevou a di-
reito fundamental a garantia da razoável duração do processo,
ao introduzi-la no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Fe-
deral. Isso demonstra a necessidade de que a prestação da

62
OST, François. O Tempo do Direito. Tradução Élcio Fernandes; revisão
técnica Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru, SP: Edusc, 2005.

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1010
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tutela jurisdicional atenda à realidade sócio-jurídica a que se


destina, tendo atuação como um instrumento de efetiva reali-
zação de direitos.
Nesse sentido, além de facilitar que todos tenham acesso
à justiça é necessário aprimorar constantemente a ordem pro-
cessual, a fim de que o processo possa produzir soluções satis-
fatórias para todos que dele necessitem de forma efetiva e
tempestiva. Para isso, é preciso atender aos conflitos com qua-
lidade, pacificando com Justiça e determinando a razoável du-
ração do processo com base no caso concreto, sempre com
respeito aos princípios constitucionais e processuais.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA PELO
VOTO NAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS
BRASILEIRAS 1

Renê Carlos Schubert Junior


Graduado em Direito, Mestre em Desenvolvimento, linha de pesquisa Di-
reitos Humanos, pela UNIJUÍ-Universidade Regional do Noroeste do Esta-
do do Rio Grande do Sul. Advogado e professor de Direito Constitucional
II, no curso de Direito, das Faculdades Integradas Machado de Assis, em
Santa Rosa, RS. ( reneschubertjunior@yahoo.com.br)

Resumo
A Constituição Cidadã de 1988 pode ser denotada como um marco na história do
processo democrático Pátrio, porquanto criou um arcabouço-jurídico dotado de
direitos e de garantias destinadas aos cidadãos, entre os quais se pode destacar a
efetivação da participação democrática dos brasileiros pelo voto. Entretanto, inte-
ressante se faz estudar a maneira como os pretéritos textos constitucionais brasilei-
ros trataram do tema em questão. Fomentado por isso, o trabalho inicialmente
imergiu nos textos das Constituições Federais anteriores ao Texto da atual, almejan-
do averiguar a participação democrática pelo voto no Brasil, evidenciando suas
eventuais ocorrências e as suas peculiaridades. Por fim, passou-se a analisar o tema
pelo prisma da Carta Republicana em vigor.
Palavras-chave: Constituição Federal. Direitos fundamentais. Participação
democrática. Voto.

Abstract
The Citizen Constitution of 1988 can be denoted as a milestone in the history of the
democratic process Parenting, since created a legal framework-endowed rights and
guarantees for citizens, among which we can highlight the effectiveness of demo-
cratic participation by the Brazilians vote. However, it is interesting to study how to
previous constitutions Brazilians addressed the issue in question. Encouraged by this,
the work initially immersed in the texts of the Federal Constitutions prior to the
current text, aiming to investigate the democratic participation by voting in Brazil,
highlighting their possible occurrences and their peculiarities. Finally, we started to
analyze the issue through the prism of the Charter Republican in force.
Keywords: Federal Constitution. Fundamental Rights. Democratic participation.
Vote.

1
O Brasil já teve seis Constituições Federais anteriores à atual (1824,
1891, 1934, 1937, 1946 e 1967). O itinerário do presente almeja verificar
os textos constitucionais brasileiros entorno da proposta acima
intitulada, dando ao final ênfase à Constituição Federal de 1988 no que
pertine o assunto.
1014
Renê Carlos Schubert Junior

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Anterior às Constituições Federais brasileiras, permite-se
dizer que a história do voto no Brasil começou “32 anos após
Cabral ter desembarcado no País. Foi no dia 23 de janeiro de
1532 que os moradores da primeira vila fundada na colônia
portuguesa - São Vicente, em São Paulo - foram às urnas para
eleger o Conselho Municipal. A votação foi indireta: o povo
elegeu seis representantes, que, em seguida, escolheu os ofi-
ciais do conselho. Era proibida a presença de autoridades do
Reino nos locais de votação, para evitar que os eleitores fos-
sem intimidados. As eleições eram orientadas por uma legisla-
ção de Portugal - o Livro das Ordenações, elaborado em 1603”2.
Ainda, que “somente em 1821 as pessoas deixaram de
votar apenas em âmbito municipal. Na falta de uma lei eleitoral
nacional, foram observados os dispositivos da Constituição
Espanhola para eleger 72 representantes junto à corte portu-
guesa. Os eleitores eram os homens livres e, diferentemente de
outras épocas da história do Brasil, os analfabetos também
podiam votar. Os partidos políticos não existiam e o voto não
era secreto”3.
De forma geral, é possível mensurar desde os primeiros
passos dos textos constitucionais a intensidade da participa-
ção democrática alojada em seus teores. Nessa senda, José
Afonso da Silva4 ensina que o sufrágio é “um direito público
subjetivo de natureza política, que tem o cidadão de eleger, ser
eleito e de participar da organização e da atividade do poder
estatal. É um direito que decorre diretamente do princípio de
que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de re-
presentantes eleitos ou diretamente. Constitui a instituição
fundamental da democracia representativa e é pelo seu exercí-

2
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/93439-CONHECA-
A-HISTORIA-DOVOTO-NO-BRASIL.html. Acesso em 03-04-13, às
20h59min.
3
Idem, ibidem.
4
SILVA. José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 9
ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 309.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1015
A participação democrática pelo voto nas constituições...

cio que o eleitorado, instrumento do povo, outorga legitimida-


de aos seus governantes”.
Nessa conjectura, o direito ao voto é presencialmente
uma ferramenta indispensável de participação democrática na
busca por um Estado de bem-estar-social. Quiçá não se possa
mensurar de igual modo outra forma de participação democrá-
tica. Importante tecer que o princípio democrático tem suas
diretrizes baseadas nos propósitos da igualdade, da liberdade
e da fraternidade, ideais da Revolução Francesa, do século
XVIII. Já o vocábulo democracia, ou seja, o governo do povo,
possui raízes na Grécia antiga.

O VOTO E A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NAS CONSTITUIÇÕES


FEDERAIS BRASILEIRAS ANTERIORES AO TEXTO MAGNO DE 1988
Logo na Constituição Federal de 18245, se observa que
praticamente não existia a participação democrática pelo voto
de toda a população. Os artigos 926 e 947 do Texto faziam refe-
rência ao excluídos do sufrágio. Merece atenção, que naquele
5
A primeira Constituição brasileira era de ordem monárquica. Bonavides,
in História Constitucional do Brasil (1991, p. 90) afirma que “se, por um
lado, os deputados constituintes tinham sido eleitos livremente para
redigir a primeira Carta Magna brasileira, por outro, todos os poderes
monárquicos haviam sido preservados.”
6
Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes. I. Os meno-
res de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados,
e Officiaes Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bacha-
res Formados, e Clerigos de Ordens Sacras. II. Os filhos familias, que es-
tiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos.
III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e
primeiros caixeiros das casas de commercio, os Criados da Casa Imperi-
al, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas
ruraes, e fabricas. IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em
Communidade claustral. V. Os que não tiverem de renda liquida annual
cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos.
7
Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senado-
res, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar
na Assembléa Parochial. Exceptuam-se: I. Os que não tiverem de renda
liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio,
ou emprego. II. Os Libertos. III. Os criminosos pronunciados em queréla,
ou devassa.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1016
Renê Carlos Schubert Junior

período as mulheres não tinham o direito à habilitação como


eleitoras, ficando evidente que o alistamento eleitoral era ba-
seado em um modelo exclusatório, porquanto exercer demo-
craticamente a participação dentro da sociedade era trabalho
de uma pequena parcela da população, não se estendendo aos
demais. Revela Darcísio Corrêa8 que no povo hebreu também
existiam discriminações explícitas quanto às participações
sociais das mulheres, dos escravos e do camponês no Estado.
Gilmar Mendes9 afirma que a Constituição do Império de
1824, excluía de votar nas eleições para deputados e senado-
res do Império “aqueles que não alcançassem renda líquida
anual de cem mil-réis”. Além disso, o autor ainda afirma que
somente poderia ser eleito deputado quem tivesse a renda
anual de duzentos mil-réis.
Ainda na análise da Carta Republicana de 1824, denota-
se que o legislador empregou no texto o verbo “mandar” como
forma de publicizar a ordem para que se cumprisse em todos
os redutos brasileiros o que fora elaborado no texto constituci-
onal. Ou seja, assistir a participação dos cidadãos sem veda-
ções e/ou distinções no processo pela escolha por seus repre-
sentantes perante a Carta Magna de 1824 era verdadeiramente
uma utopia.
Seguindo o itinerário dos textos, passa-se a analisar a
Constituição Federal de 1891 acerca do tema. A partir da leitu-
ra dessa redação constitucional, percebe-se novamente a não
participação democrática pelo voto de todos os membros da
sociedade, havendo explícitas discriminações quanto ao status
em que ocupava o cidadão dentro da sociedade brasileira.
Paulo Bonavides Paes de Andrade10 anota que entre a
“Constituição jurídica e a Constituição sociológica havia enor-
me distância; nesse espaço se cavara também o fosso social

8
CORRÊA. Darcísio. Estado, Cidadania e Espaço Público: as contradições
da trajetória humana. Ijuí: Unijuí, 2010, p.102.
9
MENDES. Gilmar Ferreira Mendes. Curso de direito constitucional. 6. ed.
São Paulo: Saraiva: 2011 p. 744.
10
ANDRADE. Paulo Bonavides Paes. História constitucional do Brasil. Paz
e Terra: São Paulo, 1991, p. 253.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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1017
A participação democrática pelo voto nas constituições...

das oligarquias e se descera ao precipício político do sufrágio


manipulado, que fazia a inalteração da participação do cidadão
no ato soberano de eleição dos corpos representativos”.
O artigo 70, da então Constituição Federal, excluía os
mendigos e os analfabetos do processo de alistamento para as
eleições. Mais uma vez, é notável a espécie do paradigma com
que os legisladores de 1891 deram continuidade à ideia esta-
belecida pela Constituição Federal de outrora. Com pesar, a
participação dos indivíduos no processo eletivo era destinada
não a todos os brasileiros, mas apenas a uma parcela da popu-
lação. A respeito do tema, Gilmar Mendes11 indica que as
Constituições brasileiras, negavam em geral, o direito do su-
frágio ao analfabeto.
Com a revolução de 1930 e com a queda do governo de
Washington Luís, assumia como presidente do Brasil Getúlio
Vargas. Fato marcante, fora a extensão do mandato de Getúlio
Vargas, vez que governou o Brasil por 15 (quinze) anos, entre
os anos de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954. Na história brasileira,
ninguém presidiu o Brasil por igual ou superior período.
É durante o seu governo que é promulgada a Carta Mag-
na de 1934. Entre suas determinações, se destaca o fechamen-
to do Congresso Nacional em 1937, bem como a institucionali-
zação do Estado Novo. Corolariamente, o governo adotara uma
postura centralizadora e controladora, passando a atuar com
poderes ditatoriais. Como forma exemplificativa, cita-se a cria-
ção do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), cujo
objetivo era o controle e a censura de pensamentos e expres-
sões opostas ao modelo de governo.
A Carta Política de 1934 tem como fator que merece ser
colocado em relevo a inclusão da mulher como eleitora, por-
quanto cotejado aos outros dois textos já estudados se aufere
que não se presenciava referida participação. Amartya Sen 12
discorre que “a condição de agente ativa das mulheres não
pode, de nenhum modo sério, desconsiderar a urgência de reti-

11
Idem, ibidem, p. 744.
12
SEN. Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000 p. 222.

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1018
Renê Carlos Schubert Junior

ficar muitas desigualdades que arruinaram o bem-estar das


mulheres e as sujeitam a um tratamento desigual; assim, o pa-
pel da condição de agente tem de concentra-se, em grande
medida, também no bem-estar feminino”.
No entanto, a ideologia empregada pelos legisladores
continuou a mesma. Apesar de ser considerado um enorme
avanço democrático a participação das mulheres no processo
de alistamento eleitoral, remanesceram exclusões quanto a
conquista do direito ao exercício da participação democrática.
Merece aplausos a inserção do artigo 11313, (38) no texto
constitucional da Carta Magna, porquanto o dispositivo asse-
gurava ao cidadão ou a cidadã a possibilidade de interferirem
na órbita estatal, impulsionando a participação democrática.
Nesse sentido, transcreve-se: “Qualquer cidadão será parte
legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação
dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos
Municípios”.
O início do texto da Carta Política de 193714 gerava uma
noção inicial distinta do início das já mencionadas Constitui-
ções. A fim de corroborar o diagnóstico, aduzia o artigo 1º, da
Lei Maior que “O Brasil é uma República. O poder político
emana do povo e é exercido em nome dele e no interesse do
seu bem-estar, da sua honra, da sua independência e da sua
prosperidade”.
Pela primeira vez se falara em “povo” no início de um tex-
to constitucional Pátrio. Todavia, o impresso no artigo 11715 da

13
38) Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de
nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos
Estados ou dos Municípios.
14
Ibidem, 1991, p. 332. Paulo Bonavides Paes de Andrade assevera que a
“geração autoritária se reunia em torno de um princípio básico: a
organização, naquele momento da história brasileira, e que era
considerada mais importante e urgente que a participação. Esse
princípio, adotado pela Constituição de 37, foi intitulado por Getúlio
Vargas em seu próprio benefício, ou seja, a participação foi tão limitada
que passou a ser exclusiva do Presidente, eufemismo para o que se
deveria chamar propriamente de ditador”.
15
Art 117. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de
dezoito anos, que se alistarem na forma da lei. Parágrafo único. Não
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1019
A participação democrática pelo voto nas constituições...

Constituição continuava a manter as raízes de um modelo que


privava o acesso igualitário dos brasileiros à particpação de-
mocrática, tendo em vista que se o indivíduo não pode esco-
lher os seus representantes, consequentemente se tem inatin-
gida a democracia.
Outrossim, outra inovação que merece destaque que fora
trazida pelo texto constitucional de 1937, se refere ao fato de
que a Constituição depois de elaborada e entrada em vigor,
seria submetida ao plebiscito nacional. Mendes16 assevera ao
abordar o tema que o plebiscito ou o referendo atuam como
instrumentos de “democracia direta ou semidireta, procurando
atenuar o formalismo da democracia representativa”. De bom
alvitre, o autor disserta que o “plebiscito configura consulta
realizada aos cidadãos sobre matéria a ser posteriormente dis-
cutida no âmbito do Congresso Nacional, o referendo é uma
consulta posterior sobre determinado ato ou decisão governa-
mental, seja para atribuir-lhe eficácia que lhe foi provisoria-
mente conferida (condição resolutiva)”.
Posterior a renúncia de Jânio Quadros (1961), e a posse
do então vice-presidente João Goulart, o clima no Brasil passa
a tornar-se cada vez mais tumultuado. Vozes de esquerda eco-
avam cada vez mais agudas, e sob o pretexto de evitar uma
guerra civil, João Goulart deixa o país rumando para o Uruguai.
Antecede a Constituição Federal Brasileira de 1967, um
período estigmatizado pela ditadura militar que havia iniciado
em 1964 e terminava em 1985. Em 15 de abril de 1964, Castelo
Branco, general militar, eleito pelo Congresso Nacional, assu-
mia o posto de presidente da República com um discurso inici-
al de democracia, mas logo em seguida veio a descortinar sua
tese autoritária.
Pouco depois, em 1967, sob a presidência do general Ar-
thur da Costa e Silva, referida Carta Política confirmava e insti-

podem alistar-se eleitores: a) os analfabetos; b) os militares em serviço


ativo; c) os mendigos; d) os que estiverem privados, temporária ou defi-
nitivamente, dos direitos políticos.
16
Idem, ibidem, p. 766 e 767.

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1020
Renê Carlos Schubert Junior

tucionalizava o regime militar no País. Pode-se caracterizar a


Carta Magna de 1967, como um texto caracterizado pela au-
sência da democracia, do desaparecimento dos direitos consti-
tucionais, de explícitas reprimendas, de redundantes perse-
guições políticas e de repressão aos que contrariavam a ideo-
logia do regime militar.
Na Carta Maior de 1967, o Brasil já estava sob a forma de
República, sendo estabelecido definitivamente o reconheci-
mento de que todo poder emana do povo. E, além disso, aduzia
o seu artigo 143: “O sufrágio é universal e o voto é direito e
secreto, salvo nos casos previstos nesta Constituição; fica as-
segurada a representação proporcional dos Partidos Políticos,
na forma que a lei estabelecer”. Ainda, o artigo 93, parágrafo
terceiro da Carta Republicana, continuava a privar os analfabe-
tos do direito ao alistamento como eleitores, o que, fora dúvi-
das, elidia suas participações democráticas.
A par disso, verifica-se que no Brasil, longos foram os
anos palmilhados pela ausência da participação democrática,
porquanto se torna notório que a participação do indivíduo
dentro do espaço público somente começa a se descortinar à
medida que se vai abrindo terreno para todos os cidadãos e as
cidadãs participarem dele de forma ativa.

A CONSOLIDAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA PELO VOTO NA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Se aproximando de 1985, o governo militar enfrentava vá-
rios problemas entre eles a inflação e a recessão alta. De outro
lado, a oposição expandia-se através da abertura de novos par-
tidos e do robustecimento dos sindicatos. Nesse viés, em 15 de
janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral nomearia o deputado Tan-
credo Neves, após vitória sobre Paulo Maluf, como o novo pre-
sidente da República do Brasil.
No entanto, Tancredo Neves fica doente e vem a óbito.
Assim, em 1988, assume o Poder Executivo federal o então vi-
ce-presidente José Sarney. Em seguida, é promulgada uma
nova Constituição Federal para o Brasil, composta por 245
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1021
A participação democrática pelo voto nas constituições...

“gordos artigos” 17, cujo paradigma se livra de rastros ditatori-


ais, estabelecendo a democracia como viga mestra desse novo
período.
Nessa conjectura, a partir de agora se analisará o último
texto constitucional, qual seja, a Carta Republicana de 1988,
onde no início do texto já se entende a preocupação do legis-
lador em romper os dispositivos eivados de restrições ou dog-
mas, através de uma gama de fundamentos18.
Introduzindo o assunto, é importante desde o início com-
preender o calibre que possui a Constituição Federal em deba-
te. Nesse propósito, Mendes19 “assegura que o prestígio jurídi-
co da Constituição, no momento presente, é resultante da ur-
didura de fatos e ideias, em permanente e intensa interação
recíproca, durante o suceder das etapas da História. Importa
lançar os olhos sobre essa evolução, até para melhor compre-
ender os fundamentos do direito constitucional da atualidade”.
No que diz respeito sob a existência de uma Constituição
Federal, Mendes20 “salienta que ela atua como fundamento de
validade de ordens jurídicas parciais e central. Ela confere
unidade à ordem jurídica do Estado Federal, com o propósito
de traçar um compromisso entre as aspirações de cada região
e os interesses comuns às esferas locais em conjunto. A Fede-
ração gira em torno da Constituição Federal, que é o seu fun-
damento jurídico e instrumento regulador”.

17
Idem, ibidem, p. 484. Entretanto, salienta-se que a Carta Constitucional
em vigor possui 250 artigos.
18
Art 1º, da CF/88: A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a sobe-
rania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valo-
res sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Pa-
rágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
19
Idem, ibidem, p. 45.
20
Idem, ibidem, p. 829.

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Nos passos de Paulo Bonavides21, o “Brasil teve três épo-


cas constitucionais. A primeira, relacionada com o modelo
francês e inglês do séc. XIX; a segunda, conectada ao modelo
norte-americano e a terceira e atual conexa ao modelo consti-
tucional alemão”.
Para Ângela Kretschmann22, “o constitucionalismo mo-
derno iniciou-se com os Estados Unidos no final do século
XVIII, mas a sua Constituição não continha uma “declaração
de direitos”. Foi depois que as dez emendas supriram o vazio
normativo, ainda que a tradição das colônias inglesas fosse
tomada como implícita. A partir daí, as Constituições escritas
passaram a proteger os direitos civis, conhecidos depois como
direitos de primeira geração, ou liberdades civis, vistos assim
como direitos do ser humano frente ao Estado”.
O poder constituinte sempre existiu na esfera política da
sociedade. A atual Constituição Federal foi estabelecida pelo
referido poder. Nos ensinamentos de Bonavides23, “o poder
constituinte nacional relaciona-se com a representatividade
escolhida pela vontade da população, o que descortina que a
soberania é a responsável pela existência do povo e da nação.
Ou seja, o poder em baila afirma que a primeira ordem emana
da sociedade”.
Nessa esteira, o poder constituinte originário gera e or-
ganiza os poderes constituídos do Estado. A Carta Maior é o
modo de expressão do povo, o qual é a figura dotada de nor-
matividade e de força capaz de manter sua envergadura políti-
ca. Mendes24 acrescenta que o “poder constituinte está adstri-
to a origem do ordenamento jurídico, chegando a afirmar que é
o começo do Direito”.

21
BONAVIDES. Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 563.
22
KRETSCHMANN. Ângela. Universidade dos direitos humanos e
diálogo na complexidade de um mundo multicivilizacional. Curitiba:
Editora Juruá, 2008. p. 175.
23
Idem, ibidem, p. 142.
24
Idem, ibidem, p. 118.
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1023
A participação democrática pelo voto nas constituições...

A participação democrática atualmente é tratada como


tema fundamental no Brasil. Cotejando os textos das constitui-
ções já citadas, emerge-se que o atual texto constitucional
mudou o paradigma estampado nas perpassadas Constitui-
ções. Por exemplo, o analfabeto agora pode alistar-se para
exercer o seu direito à participação democrática, o que antes,
como já explicitado, não ocorria.
É dever salientar que direito à participação democrática
pertence à segunda geração dos direitos humanos25, caracteri-
zados por serem direitos do cidadão de participar do Estado,
ou seja, os direitos políticos, surgidos a partir do século XIX 26.
Alexandre de Moraes27 adverte que a “visão ocidental acerca
da cidadania é caracterizada pelo voto do povo através de elei-
ções para a escolha de seus mandatários, os quais tomarão
decisões sobre a nação”. Complementando, Pedro Lenza28,
analisando o art. 1º, da Carta Maior de 1988, indica que a titu-
laridade do poder pertence ao povo, enquanto que o exercício
do poder se dá pelos representantes escolhidos pelo povo.
Ainda a respeito dos direitos políticos, Mendes29 inscreve
que “a expressão ampla refere-se ao direito de participação no
processo político como um todo, ao direito ao sufrágio univer-
sal e ao voto periódico, livre, direto, secreto e igual, à autono-

25
A divisão original do tema pertence a Karel Vasak, jurista tcheco-
francês, o qual durante a Conferência do Instituto Internacional de
Direitos Humanos, em 1979, elaborou a classificação dos direitos
humanos em três gerações, inspirado no lema da Revolução Francesa
(liberdade, igualdade, fraternidade).
26
Sob o tema, Gilmar Antonio Bedin (2002, p. 129) comenta que: “Esse
deslocamento, de contra o Estado para participar do Estado, é importan-
tíssimo, pois revela o surgimento de uma nova perspectiva da liberdade.
Esta deixa de ser pensada exclusivamente de forma negativa, como não-
impedimento, para ser compreendida de forma positiva, como autono-
mia. Por isso, esta geração de direito representa um momento de expan-
são do Estado moderno de sua versão liberal para a sua forma democrá-
tica”.
27
Curso de Direito Constitucional. Atlas: São Paulo, 2008, p. 31.
28
Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2009, p. 14.
29
Idem, ibidem, p. 743.

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1024
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mia de organização do sistema partidário, à igualdade de opor-


tunidades dos partidos.”
Denota-se que a Constituição Brasileira em vigência está
em consonância com a realidade vivenciada ao longo dos anos
desde a independência deste país, haja vista que a dignidade
da pessoa humana remansada em seu teor revela a preocupa-
ção do legislador em avançar o modelo democrático sobre
qualquer outra tentativa de paradigma contrário. Nos passos
de Konrad Hesse30, “somente a Constituição que se vincula a
uma situação histórica concreta e suas condicionantes, dotada
de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da ra-
zão pode efetivamente desenvolver-se”.
Corroborando a relevância da participação democrática
dos indivíduos na sociedade, estabeleceu-se no artigo 1431 da
atual Constituição, o devido reconhecimento igualitário quanto
ao direito de escolha do cidadão ou da cidadã por seus repre-
sentantes, no anseio de participarem da construção da demo-
cracia brasileira.
Definitivamente, a partir da promulgação e da entrada em
vigor da Constituição Federal de 1988, se permite dizer que a
participação democrática pelo voto dos membros da sociedade
brasileira caminhou a passos largos, pois em nenhum outro
momento na luta pela democracia se teve o reconhecimento
pelo acesso igualitário ao direito de se construir um espaço
público onde todos buscassem condições dignas para lutar por
seus ideais.
Contemporaneamente, tamanha é a magnitude da impor-
tância dada ao direito à participação democrática pelo voto no
Brasil que a atual Constituição Pátria cimentou, nos termos do

30
HESSE. Konrad. A Força normativa da constituição. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris , 1991, p. 16.
31
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo
voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei,
mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. § 1º O alis-
tamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito
anos; II - facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta
anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.
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1025
A participação democrática pelo voto nas constituições...

artigo 60, § 4º, inciso II, que o voto será sempre na forma dire-
ta, secreta e universal, não podendo ser objeto de emenda
constitucional, ou seja, apenas pode ser modificado na eventu-
alidade de uma nova assembleia constituinte.

CONCLUSÃO
Pelo o que se expõe, percebe-se claramente a monótona
evolução que o assunto teve no passar dos textos constitucio-
nais Pátrios. Inegavelmente, a participação democrática pelo
voto somente veio à tona com a devida potencialidade através
da promulgação da Carta Política de 1988, sendo que tal fato
fecundou-se da sucessão de anos permeados pelo caráter ex-
cludente e elitista referente à possibilidade de escolha dos in-
divíduos pelos seus representantes no Brasil.
Por assim ser, o atual modelo constitucional assegura a
todos os indivíduos a partida do mesmo status a quo, não exis-
tindo restrições quanto ao direito fundamental de participação
pelo voto no que pertine à cor, à profissão, à riqueza, etc. Em
suma, o fato de ser brasileiro automaticamente gera o direito
de participar e votar pela escolha de seus representantes.
No mesmo liame, a Carta Política de 1988 procurou equi-
parar os direitos dos homens e das mulheres sob a expectativa
de demonstrar que a participação democrática na sociedade
deve ocorrer independentemente do gênero, pois somente
dessa maneira é possível se acreditar na existência da demo-
cracia dentro de um Estado, sob pena de se emergir unicamen-
te um modelo democrático retórico.
Ao final, vislumbra-se que a Carta Maior de 1988 não fora
cimentada somente pela participação popular em sua elabora-
ção, mas aspirada como a “Bíblia” de consulta que o povo de-
tém para consultar e exigir a efetivação de seus direitos nela
estabelecidos, buscando a efetivação de sua participação de-
mocrática no processo de desenvolvimento do Estado Demo-
crático de Direito.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1026
Renê Carlos Schubert Junior

REFERÊNCIAS
ANDRADE. Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do
Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
BEDIN. Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o neoliberalismo.
3. Ed. Ijuí; Ed. Unijuí, 2002;
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Senado Federal, 1824;
______, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
Senado Federal, 1891;
______, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
Senado Federal, 1934;
______, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
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dições da trajetória humana. Ijuí: Ed.Unijuí, 2010;
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LENZA. Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. São
Paulo: Editora Saraiva, 2009;
MORAES. Alexandre. Curso de Direito Constitucional. Atlas: São
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MENDES. Gilmar Ferreira Mendes. Curso de direito constitucional.
6. ed. São Paulo: Saraiva: 2011;
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diálogo na complexidade de um mundo multicivilizacional. Curiti-
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SEN. Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2000;
SILVA. José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positi-
vo. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 1994;

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
PERFIL SOCIECONÔMICO E EDUCACIONAL
DAS MULHERES DO PROGRAMA MULHERES
MIL DO IF FARROUPILHA – CAMPUS
PANAMBI

Rogéria Fatima Madaloz


Assistente social do IF Farroupilha – campus Panambi, Mestranda em Edu-
cação nas ciências – UNIJUI. (rmadaloz@yahoo.com.br)

Resumo
Este artigo resulta da experiência desenvolvida no IF Farroupilha1 campus Panambi,
e tem como objetivo descrever a experiência do Programa Mulheres Mil. O progra-
ma Mulheres Mil visa selecionar mulheres que se encontram em situação de vulne-
rabilidade socioeconômica para proporcionar qualificação profissional, de acordo
com as necessidades educacionais da comunidade e a vocação econômica da região,
estruturando-se em três eixos: Educação, cidadania e desenvolvimento, objetivando
a inserção no mundo do trabalho através da formação e elevação de escolaridade. O
objetivo deste artigo é apresentar o perfil socioeconômico das mulheres atendidas
no programa. A coleta de dados constante nesse trabalho decorreu da análise das
fichas socioeconômicas das alunas, preenchidas no ato da pré-matrícula, uma vez
que as alunas matriculadas passaram por avaliação socioeconômica, sendo selecio-
nadas para a participação as mulheres em maior situação de vulnerabilidade socioe-
conômica. Após análise, identificou-se que uma parcela significativa das mulheres
inscritas no programa já sofreu algum tipo de violência doméstica 2 em suas vidas.
Acredita-se que os resultados obtidos nesta pesquisa acerca do perfil socioeconômi-
co e educacional possam nortear as ações capazes de promover a emancipação
dessas mulheres.
Palavras-chave: Mulheres, violência doméstica, inclusão social, profissionalização,
perfil socioeconômico.

Abstract
This article is the result of experience developed in Farrukhabad IF Panambi campus,
and aims to describe the experience of the Thousand Women Program. The program
aims to select women Thousand Women who find themselves in vulnerable situa-
tions to provide socioeconomic qualification, according to the educational needs of

1
Instituto Federal de Educação profissional, científica e tecnológica
Farroupilha.
2
A violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser entendida
como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, maus tratos físicos, sofrimento sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial. Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340).
1028
Rogéria Fatima Madaloz

the community and economic vocation of the region, and is structured in three are-
as: Education, citizenship and development, aiming at integration in the workplace
through training and education increase. The objective of this paper is to present the
socioeconomic profile of women attended the program. The data collection work
was held constant in the analysis of the records of socioeconomic students, met at
the time of pre-registration, since the students enrolled passed socioeconomic eval-
uation, being selected for participation women in higher socioeconomic situation of
vulnerability. After analysis, it was identified that a significant proportion of women
enrolled in the program have experienced some form of domestic violence in their
lives. It is believed that the results obtained in this research about the educational
and socioeconomic profile can guide the actions that promote the empowerment of
these women.
Keywords: Women, domestic violence, social inclusion, professionalism, socioeco-
nomic profile.

INTRODUÇÃO
A implantação do Programa Mulheres Mil no Instituto
Federal Farroupilha – Campus Panambi, vem atender uma ne-
cessidade, muitas vezes velada, mas presente no município de
Panambi, que é a promoção do acesso de mulheres à educação
e ao mundo do trabalho, atendendo as políticas públicas do
Governo Federal, através deste Programa Interministerial,
oportunizando, diretamente, 100 mulheres que serão matricu-
ladas e, indiretamente, suas famílias, por meio do crescimento
humano, da melhoria das condições de vida (sociocultural e
econômica) e do reconhecimento dessas mulheres como cida-
dãs, com condições de se tornarem social e economicamente
emancipadas.
O Programa Mulheres Mil vem atender o disposto na Lei
nº 11.892/2008, Institui a Rede Federal de Educação Profissio-
nal, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia, criando mecanismos de aces-
so à educação para as populações tradicionalmente afastadas
da possibilidade de inclusão ao conhecimento à tecnologia e
às inovações geradas nos Institutos Federais.
Desta forma, o Programa Mulheres Mil, desenvolvido nos
Institutos Federais, surge como uma possibilidade de aliar a
educação ao trabalho, visando à diminuição de problemas so-
ciais em comunidades de baixo índice de desenvolvimento

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1029
Perfil socieconômico e educacional das mulheres...

humano. O Programa oferece, também, uma possibilidade de


ampliação da formação de profissionais de modo a contribuir
na resposta à atual demanda por profissionais do setor local.
Em 2012 o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-
nologia Farroupilha IF Farroupilha – campus Panambi aderiu
ao Programa Mulheres Mil tendo como objetivos a garantia do
acesso à educação profissional e à elevação da escolaridade,
de acordo com as necessidades educacionais de cada comuni-
dade e a vocação econômica da região. Estruturado em três
eixos - educação, cidadania e desenvolvimento sustentável – o
programa possibilita a inclusão social de mulheres em vulne-
rabilidade social por meio da oferta de formação focada na au-
tonomia, para a inserção no mundo do trabalho e como conse-
quência, obtenham melhoria na qualidade de vida, estendendo
aos seus pares e as suas comunidades.
O presente trabalho desenvolvido a partir da coleta de
dados, por meio do questionário socioeconômico aplicado as
mulheres no ato da pré-matrícula, tem como objetivo analisar o
perfil das mulheres, com base em suas condições socioeconô-
micas e educacionais. Os resultados que serão apresentados
destinam-se a construção do perfil das 100 mulheres atendidas
no Programa.

MATERIAL E MÉTODOS
Em 2012 o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-
nologia Farroupilha IF Farroupilha – Campus Panambi aderiu
ao Programa Mulheres Mil, após a aprovação a equipe do pro-
grama iniciou os primeiros contatos com a secretaria de Assis-
tência Social do Município, com o objetivo de esclarecer e sen-
sibilizar sobre os objetivos do programa, firmou-se uma parce-
ria onde a secretaria orientou sobre os bairros de maior vulne-
rabilidade socioeconômica do município.
Após os primeiros contatos com o público, iniciou-se a
construção de materiais que dessem conta da análise para a
seleção das mulheres que iriam participar dos cursos, uma vez
que seriam ofertadas 100 vagas, desta forma foi construído um

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1030
Rogéria Fatima Madaloz

questionário socioeconômico. Este questionário foi preenchido


pelas interessadas na pré-matrícula, onde foi anexada toda a
documentação exigida em edital, foi colhido o termo de livre
esclarecimento e explicado que os dados individuais seriam
mantidos em sigilo, servindo para estudo e acompanhamento.
Foram contabilizadas 175 pré-matrículas, no entanto co-
mo o pré-requisito para a matrícula era a situação de maior
vulnerabilidade socioeconômica, foram selecionadas apenas
100 mulheres que se enquadraram nos requisitos, sendo que
restaram suplentes.
Esta pesquisa caracteriza-se como de tipologia documen-
tal , abrangeu todo o universo de alunas efetivamente matricu-
3

ladas nos cursos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após a analise dos questionários socioeconômicos que se
consistiu no processo de seleção das alunas, foi possível realizar
o levantamento e análise de dados objetos em relação ao perfil
das mulheres participantes do programa, bem como a tipifica-
ção das violências por elas sofridas. Essa analise foi baseada
nas informações consolidadas no através da tabulação dos da-
dos, possibilitando assim, a análise dos resultados obtidos.
O perfil socioeconômico e educacional das mulheres do
Programa Mulheres Mil do IF Farroupilha – Campus Panambi,
foi analisado levando em consideração as informações relacio-
nadas à: Estado civil; situação de escolaridade; faixa etária;
exercício profissional; número de filhos; tipos de violência; nú-
mero de vezes que ocorreu a violência; identificação de quem
foi o agressor; atitude em relação à agressão e renda familiar
mensal.

3
A principal característica da pesquisa documental “é que a fonte de
coleta de dados está restrita a documentos, escritos ou não, constituin-
do o que se denomina de fontes primárias”, sendo que “estas podem ser
recolhidas no momento em que o fato ou fenômeno ocorre, ou depois”.
Marconi e Lakatos (2006, p. 62)
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Perfil socieconômico e educacional das mulheres...

Gráfico 1: Distribuição das mulheres por estado civil

Identificou-se que dentre as mulheres atendidas no Pro-


grama, 53% declaram-se casadas. Dentre elas, 16% relatam ter
uma união estável, 13% solteiras, 10% separadas ou divorcia-
das, 8% viúva. Pode-se identificar que a grande maioria das
mulheres participantes do programa no município de Panambi
são casadas, ao fazer-se um comparativo com o gráfico 4, a
maioria das mulheres depende única e exclusivamente da ren-
da do companheiro.

Gráfico 2: Distribuição das mulheres por situação de escolaridade

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1032
Rogéria Fatima Madaloz

O resultado da pesquisa apresenta um quadro de quase


totalidade das mulheres com algum grau de escolaridade, en-
tretanto 82% esta situada na faixa do ensino fundamental, faixa
que, que em si, não oferece possibilidades satisfatórias de in-
serção sócia/profissional, 7% possui o ensino médio completo,
5% declaram - se analfabetas, não sabem ler e nem escrever,
4% o ensino fundamental completo, 1% o ensino médio incom-
pleto e 1% o ensino superior incompleto.
Percebe-se que o grau de escolaridade é relativamente
baixo, muitas das mulheres apesar de declarar ter escolarida-
de, mal sabem ler e escrever, são somente alfabetizadas.

Gráfico 3: Distribuição das mulheres por faixa etária

Em relação à idade das mulheres pode-se verificar que


possuem idades variadas, é formado por um grupo bem hete-
rogêneo, variado de idade de 18 a 70 anos, porém o maior per-
centual de 25% encontra-se com idades entre 53anos e 58 anos
e 19% com idade entre 41anos e 46 anos.

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Gráfico 4: Distribuição das mulheres por exercício profissional

Quanto ao exercício profissional 56% das mulheres decla-


ram-se do lar, ou seja, exercem apenas o trabalho referente aos
cuidados domésticos em seus próprios lares e famílias, 12%
são aposentadas, 21% doméstica/diarista sem carteira assina-
da, o que pressupõe o não vínculo previdenciário.

Gráfico 5: Distribuição das mulheres por número de filhos

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Rogéria Fatima Madaloz

O item número de filhos foi selecionado para análise, pois


representa fator importante na relação e vivencia da situação de
violência doméstica, sendo considerado um fator de vulnerabili-
dade. O gráfico demostra que 45% das mulheres tem 2 filhos,
24% das mulheres tem 3 filhos, 23% tem 1 filho, 5% tem 4 filhos,
1% tem 5 filhos e 2% com 6 filhos ou mais. A presença dos filhos
na vida das mulheres vitima de violência doméstica é fator de
relevância para tomadas de decisões, pois são preocupações
nos momentos de tomadas de decisões e projetos de vida.
Pode-se perceber uma diminuição do número de filhos,
uma vez que 45% das mulheres tem apenas 2 filhos e 23% ape-
nas 1 filho, recente pesquisa do IBGE4 relata essa diminuição e
identificam como resultado das transformações ocorridas na
sociedade e com reflexos diretos na família brasileira, e tem
relação com a inserção da mulher no mundo do trabalho, e
principalmente com os métodos contraceptivos, que possibilita
que as mulheres possam ter mais autonomia sobre o corpo e
consequentemente sobre o planejamento familiar.

Gráfico 6: Distribuição das mulheres se já foram vítimas de violência


doméstica

A senhora já foi vítima de algum tipo


de violência doméstica?
0% 0%
44%
Sim
56%
Não

4
As taxas de natalidade iniciaram sua trajetória de declínio em meados
da década de 1960, com a introdução e a paulatina difusão dos métodos
anticonceptivos orais no Brasil. Com isso, no decênio 1960 - 1970 já se
observa uma discreta diminuição das taxas de crescimento populacional
(2,89%), fenômeno que se confirma ao longo dos dez anos seguintes,
quando se constata uma taxa de crescimento de 2,48%. (IBGE, 2011)
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44% das mulheres declararam já ter sofrido algum tipo de violência


doméstica em suas vidas.

Gráfico 7: Distribuição por tipo/tipos de violência

O item tipo de violência sofrida aponta o tipo/tipos de vio-


lências que é cometido contra as mulheres, o questionário pos-
sibilitou a marcação de mais de um item, como índice de maior
incidência essa pesquisa aponta 27% das mulheres afirmam ter
sofrido violência física5, seguida pela violência psicológica6,
23% relatam ter sofrido mais de um tipo de agressão sendo

5
Qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal. Lei
Maria da Penha (Lei nº 11.340).
6
Qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoe-
stima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e deci-
sões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chan-
tagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à au-
todeterminação. Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340).

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elas física, moral7 e psicológica, 11% das mulheres já sofreram


violência física e moral, 8% relatam ter sofrido com a violência
física, psicológica, sexual8 e moral, e 4% relatam ter sofrido vio-
lência sexual. A violência doméstica ocorre no âmbito familiar,
o medo, a falta de apoio, a dependência financeira, a vergonha,
a maternidade e a cultura são causas frequentes da violência
doméstica contra a mulher. Percebe-se que a violência ultra-
passa os limites da natureza física, pois envolve mais de um
tipo de violência, muitas são cumulativas causando sofrimento
psicológico, emocional, econômico e social.

Gráfico 8: Distribuição por vezes que ocorreu a/as violências

Em relação à frequência da violência doméstica identifi-


cou-se que a grande maioria das mulheres agredidas 69% já
foram vítimas de violência doméstica por 5 vezes ou mais. Este

7
Qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Lei Maria
da Penha (Lei nº 11.340).
8
Qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a partici-
par de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coa-
ção ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qual-
quer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou
que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340).
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Perfil socieconômico e educacional das mulheres...

diagnóstico caracteriza a violência doméstica como uma práti-


ca repetitiva, agravando ainda mais a situação das mulheres.

Gráfico 9: Distribuição por identificação de quem é o agressor

Esse item relação/agressor apresenta importância no de


caracterizar a dimensão da violência e sua relação de afetivi-
dade. E demonstra claramente que a violência é um fenômeno
que permeia as relações afetivas, sejam conjugais ou não. Po-
demos perceber que o maior agressor das mulheres no ambi-
ente doméstico é o marido ou companheiro, com 52% das res-
postas, 20% relatam já ter sofrido violência doméstica do pai,
16% já sofreram violência do marido e do pai, 8% sofreram vio-
lência do marido do pai e do enteado e 4% já sofreram violência
doméstica de amigos. Pode-se verificar que o impacto da vio-
lência nas relações interpessoais é profundo, ocorre o ciclo da
produção e reprodução de modelos de comportamento violen-
tos no cotidiano social e familiar, a mulher sofria violência do
pai e agora é agredida pelo marido.

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Rogéria Fatima Madaloz

Gráfico 10: Distribuição por atitude em relação à agressão

Pode-se verificar que o maior índice de mulheres que já


sofreram agressão silenciou 52%, analisando-se esta situação
de uma forma mais tradicional, que toma a mulher como uma
vítima passiva da violência, evidencia-se a subordinação das
participantes aos interesses de seus companheiros, na medida
em que suportaram a violência em silêncio. De fato, o que se
observa aqui é que as relações com os companheiros são mar-
cadas pelo silêncio e submissão. CUNHA (2008) menciona que
os efeitos e consequências da violência doméstica para o
agredido são: baixa autoestima; tristeza, angústia, ansiedade,
insegurança, incerteza, problemas de autocontrole e condutas
exageradas; dificuldades de concentração, dependência eco-
nômica e emocional; padrões de condutas violentos; depressão
e estresse. A mulher vai perdendo a sua autoestima e cada vez
mais se torna dependente do marido/companheiro, uma vez
que não acredita que é capaz de desfazer o ciclo da violência.

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Gráfico 11: Distribuição por renda mensal familiar

A renda familiar é significativa por representar o contexto


econômico e social em que a mulher está inserida, percebe-se
que o maior percentual concentra 45% das famílias com renda
mensal de até 2 salários mínimos, 30% das famílias sobrevivem
com 1 salário mínimo mensal e 14% relatam renda inferior a
meio salário mínimo mensal. Sabemos que a violência domés-
tica não ocorre somente em famílias de baixa renda, como
afirma Cunha:
O fenômeno da violência não atinge apenas as mulheres
de baixa renda ou de menor nível de escolaridade, mas
se pode presumir que sua incidência ocorra mais em mu-
lheres pobres, em virtude do estresse provocado por pre-
cárias condições de existência, derivadas de baixos salá-
rios, desemprego temporário e desemprego de longa du-
ração (CUNHA, 2008).

No entanto as mulheres objeto desta pesquisa, por faze-


rem parte de um programa social abrangem mulheres que se
encontram em situação de vulnerabilidade social, portanto sa-
bemos que a renda familiar é considerada baixa.

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1040
Rogéria Fatima Madaloz

CONCLUSÕES
A violência doméstica é uma problemática que atinge
mulheres de diferentes classes, origens, escolaridade ou raça.
O enfrentamento e a prevenção da violência contras as mulhe-
res, implica na promoção de conhecimento sobre este fenôme-
no e a percepção social de que a violência doméstica e familiar
são problemas de significativa gravidade.
Devemos considerar que muitos avanços foram alcança-
dos em relação às políticas publicas de gênero, como a implan-
tação de Delegacias da Mulher, a criação de abrigos para mu-
lheres em situação de violência, a criação das coordenadorias
da mulher em diversos governos municipais e estaduais, os
Centros de Referência e também as legislações como a Lei Maria
da Penha (Lei nº 11.340). No entanto, faz-se necessário que se
identifique as situações de modo a apreendê-las e superá-las.
Desse modo, o Programa Mulheres Mil, no qual se inse-
rem as mulheres pesquisadas, busca melhorar a qualidade de
vida das mesmas por meio de ações educativas e de capacita-
ção, visando à geração de trabalho e renda. Priorizando, ações
educativas e de conscientização, a fim de torna-las sujeitos de
direito de fato.
Portanto a melhor forma de minimizarmos e até mesmo
eliminarmos a violência doméstica é através do empoderamen-
to das mulheres, e este representa o principal desafio do Pro-
grama, pois exige uma mudança na dominação tradicional dos
homens sobre as mulheres.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; dispõe sobre
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres
em situação de violência doméstica e familiar. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Ato20042006/2006/Lei/L1134
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25 e 26 de abril de 2013
1041
Perfil socieconômico e educacional das mulheres...

CUNHA, T.R.A. Violência conjugal: os ricos também batem. Publica-


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PROGRAMA MULHERES MIL. Plano de Trabalho IF Farroupilha
campus Panambi, 2012.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
MEDIAÇÃO COMO QUALIDADE DE VIDA :
DEMOCRATIZAÇÃO E AUTONOMIA
PARA TRATAR DOS CONFLITOS
JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS SOB
A LUZ DA TEORIA DO DISCURSO

Sheila Marine Uhlmann Willani


WILLANI, Sheila Marione Uhlmann. Graduada em Direito pela UNISC –
Universidade de Santa Cruz do Sul/RS. Mestranda d URI, Universidade Re-
gional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – RS. É monitora do Grupo
de Pesquisa em Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa. Mediadora.
Ana Paula Cacenotti
CACENOTTE, Ana Paula. Formada pelo IESA, mestranda na Universidade
Regional Integrada do Alto do Uruguai e das Missões – RS na linha de pes-
quisa Cidadania e Novas Formas de Solução de Conflitos. Integrante do
Grupo de Pesquisa em Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa.

Resumo
A mediação tem um contexto histórico muito próprio, que defende a conversa como
a melhor forma de resolver os conflitos sociais e jurídicos. O presente artigo trata
das muitas formas de se expressar a mediação. Das técnicas, que vão desde negocia-
ção (jurídica ou não-jurídica) a terapias profissionais. Explicitando a proposta dela:
tratar o conflito que deu origem ao rompimento, restabelecer os laços que se rom-
peram e reestruturar a relação das partes. Essa é a estrutura que Jürgen Habermas
narra ser imprescindível para que a idéia de uma justiça auto-suficiente e geradora
de responsabilidades e discursos seja real, uma verdadeira democracia deliberativa1.
E seguindo nesta linha de raciocínio, busca-se sustentar a idéia da mediação como
qualidade de vida.
Palavras-chave: Mediação. Solução de conflitos. Qualidade de vida. Autonomia.
Democracia.

INTRODUÇÃO
A mediação é conhecida a pelo menos duas décadas no
Brasil (desde 1980). Enquanto que em outros países já se utili-

1
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 237.
1044
Sheila Marine Uhlmann Willani &Ana Paula Cacenotti

za este meio para solução dos litígios, o Brasil ainda “engati-


nha” buscando elementos característicos aos dos juizados es-
peciais, vindo a influenciar fortemente o legislador brasileiro a
ponto de este incluir a mesma no nosso sistema de estudos-
teste (projetos)2.
Todavia com o tempo o termo “mediação” foi banalizado
trazendo certa descrença aos projetos elaborados. Tornou-se
obscuro o real sentido desta composição dando a mediação um
sinônimo de processo feito de forma trivial ou sem estudo e
preparo, quando na realidade ela exige uma série de prepara-
ções e elementos que dão ao diálogo entre as partes mais se-
gurança, harmonia e equilíbrio3.
Essa estrutura vem sendo cada vez mais bem sedimenta-
da. Isso se demonstra através dos resultados práticos, que tra-
zem à tona a completude da resposta alcançada e a necessi-
dade da sociedade pela busca de uma solução mais ampla-
mente satisfatória.
Conforme Jürgen Habermas, em sua obra “A inclusão do
outro”4, até mesmo uma democracia deliberativa necessita ser
bem estruturada e organizada, para que não se torne uma de-
silusão ou utopia para quem crê numa solução democrática e
autônoma verdadeiramente existente. A mediação vem para
desmistificar isso, e colocar a prova de que há uma estrutura
bastante sólida que comporta todo e qualquer tipo de conflito
que se permita ser tratado.
A palavra mediação desde o seu sentido, invoca o signifi-
cado de centro, de meio, de equilíbrio, dando a idéia de um
terceiro elemento que se encontra entre as duas partes, não
acima e nem abaixo, mas entre elas5. Trata-se de um processo

2
AZEVEDO, André Gomma de (org.). Estudo em Arbitragem, Mediação
e Negociação. Brasília. Editora Brasilia Jurídica: 2002. p. 11.
3
SPENGLER, Fabiana Marion, Mediação e arbitragem: alternativas a
jurisdição! 2. Ed. Porto Alegre: Livrara do Advogado, 1999. p. 12.
4
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política.
São Paulo: Loyola, 2002.
5
BOLZAN DE MORAES, José Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Media-
ção e Arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008. p. 34.
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1045
Mediação como qualidade de vida

no qual um terceiro (o mediador) ajuda aos participantes de


uma situação conflitiva a resolvê-la/tratá-la, permitindo que
posteriormente possa ser dado prosseguimento a comunicação
e harmonia entre eles.
O papel desempenhado pelo mediador é de amparar e
conduzir o diálogo sempre de forma imparcial e harmoniosa,
clareando a visão e a conduta de cada um, dando a eles a opor-
tunidade de mostrar o que lhes é mais benéfico e assim formar
um acordo bom para ambas as partes.
Dentre tantas definições dadas a mediação, as mais ins-
trutivas são as que falam de um processo jurídico alternativo6
informal, onde uma terceira pessoa tenta acarear as opiniões
mantendo uma organização de troca entre as partes e procu-
rando o tratamento para o conflito que as contrapõe.
Dentro da descrição sobre a mediação há de se notar o
desejo de instigar reflexão, da valorização a pluralidade de
identidades, do procedimento democrático e autônomo, enfim
da responsabilidade e da valorização a inclusão, que proporci-
ona diálogo entre igual e entre os diferentes.
Há muitas formas de se expressar a mediação, ela pode
acontecer sempre mediante técnicas, que vão desde negocia-
ção (jurídica ou não-jurídica) a terapias profissionais. Todas
têm uma mesma proposta: tratar o conflito que deu origem ao
rompimento, restabelecer os laços que se romperam e reestru-
turar a relação das partes. Essa é a estrutura que Habermas
narra ser imprescindível para que a idéia de uma justiça auto-
suficiente e geradora de responsabilidades e discursos seja
real, uma verdadeira democracia deliberativa7.
Desta forma, a mediação passa a ser considerada a forma
mais eficaz de se resolver um litígio, pois cumpre papel social
e dá às partes o direito autônomo para compor um acordo. É
democrática por que propicia às partes a formulação da deci-
6
Alternativo(a): “Meio alternativo” – Neste texto, significa dizer, outra
possibilidade, outra saída ou outra escolha para seguir: “Buscar uma
outra alternativa para tratar e solucionar o conflito”.
7
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 237.

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são por ambos, sendo o que for melhor em concordância mú-


tua, e é eficaz porque trata do conflito por vontade própria,
sem imposição e de forma célere, pois a mediação é feita de
forma objetiva e própria, sem abrir brechas para adiamentos
desnecessários.
Em relação ao mediador pode-se dizer que tem um poder
limitado, pois não decide e nem ordena, mas cumpre um papel
qualitativo, onde auxilia as partes de forma igual e imparcial,
destacando sempre que preciso as qualidades e a necessidade
da compreensão e dando ênfase ao “ceder” para chegar a um
consenso. O mediador cumpre ainda um papel de identificador
de idéias e pretensões, onde precisa da sensibilidade no trato
das personalidades e assuntos para poder conduzir a conver-
sação de forma objetiva e harmoniosa. Por isso, torna-se ne-
cessário o estudo de técnicas para a realização da mediação,
visto que nos encontramos em uma sociedade cada vez mais
complexa, plural e multifacetada, produtora de demandas que
a cada dia se superam na quantidade e qualidade8.
Essa é a linha que a mediação reivindica. A da recupera-
ção do respeito e da individualidade de cada ser, dando impor-
tância ao espaço e privacidade, valorizando os sentimentos
fazendo a troca de papéis (princípio da alteridade), minimizan-
do a incompreensão e repudiando qualquer ação invasora ou
dominadora. Desta forma, os conflitos tornam-se menos abra-
sivos e mais fáceis de serem tratadas.
Através dessa visão dos conflitos se chega a uma nova
concepção. Passa-se a ver as divergências como oportunida-
des de compreender o quão interdependente cada ser é, e que
cada caso tem a sua peculiaridade9. Isso parece ser um pen-
samento lógico, mas para a maioria das pessoas não é. Visto
que o ser humano é criado e compelido a participar e a intera-

8
BOLZAN DE MORAES, José Luis. Op. cit. p. 145.
9
DEUTSCH, Morton. The resolution of conflict: constructive and
destructive processes. New Haven and London: Yale University Press,
173. Pp. 1-23; 349-400. Traduzido por Arth ur Coimbra de Oliveira e
revisado por Francisco Schertel Mendes, ambos membros do Grupo de
Pesquisa e Trabalho em Mediação, Negociação e Arbitragem.
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1047
Mediação como qualidade de vida

gir na/com a sociedade, deve pertencer sempre a um grupo


que se identifique com a postura, desejos ou pensamentos se-
melhantes, muitas vezes tendo que incorporar o que na verda-
de não compactua. Isso culmina no momento das divergências,
onde ficam expostos os sentimentos reais e verdadeiros, e que
nem sempre são coligados e facilmente identificados.
O intuito da mediação é então aclarar esses sentimentos,
tratando e dando ao caso uma solução escolhida pelas partes,
tendo como base a interdependência e a vontade de respeitar
o acordo feito, uma vez que foi elaborada pelos mesmos e que
essa é a vontade real e verdadeira. Com o auxílio do mediador
a solução será construída de forma mais harmônica, mostrando
o que antes estando imersos no conflito não conseguiam ver,
aparando as arestas e divergências, identificando as emoções
reprimidas, buscando um consenso que atenda aos interesses
das partes e garantindo o sucesso da paz social.
Desta forma a mediação é composta inicialmente por du-
as formas básicas: a voluntária e a mandatória. A primeira é
definida pelas partes, onde na existência do conflito estas de-
cidem de comum acordo buscarem auxílio na mediação. A
mandatória decorre por determinação legal ou também pela
vontade previamente definida em contrato pelas mesmas, não
podendo ser imposta a nenhuma delas, visto que o acordo de-
pende da vontade de elaborar e formar uma solução própria.
Existem ainda dois tipos de mediação: a institucional e a
autônoma. Nas duas se busca o mesmo fim, a paz no convívio
social, mas de formas bastante diferenciadas10. A mediação
institucional foi chamada pelo poder judiciário a servir a insti-
tuição e aos clientes desta, tendo instituído mediadores que
trabalhassem para atenuar o congestionamento dos tribunais
ao fazer com que estes processos não cheguem até eles, a par-
tir do momento em que são previamente regulados sob o con-
trole do mediador. A autônoma é bem diferente. Ela é compos-
ta por mediadores cidadãos, que são aqueles que naturalmen-
te amparam e conduzem um conflito à sua solução. São gera-
dos pela sociedade e estes têm com naturalidade a sensibili-
10
SPENGLER, Fabiana Marion, op. cit.; p. 14.

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dade de lidar com as desarmonias sociais, levando a pacifica-


ção a todos que a desejam.
As origens diferenciadas são bastante significantes, pois
modificam a conduta e a maneira de agir de um e de outro me-
diador, diferindo assim na forma da aplicação da mesma. Os
mediadores institucionais são em sua essência especialistas
formados para atender a um problema específico, exprimindo
um poder de condução e trazendo respostas aos problemas
evidenciados. Os mediadores cidadãos são levados a constatar
os conflitos somente através de sua sensibilidade. É importan-
te que sejam verdadeiramente um terceiro elemento que se
colocará entre as partes, tomando cuidado para não exagerar
com o peso do seu poder e cuidando para não influenciar, visto
que, muitas vezes, residem na mesma comunidade.
Uma das características da mediação é a privacidade,
uma vez que o processo é desenvolvido somente com as partes
pertencentes ao conflito e em local secreto que será divulgado
somente se for da vontade das mesmas. O mediador precisa
manter esse compromisso e deve também manter todos os as-
suntos em sigilo, zelando pelo bom desenvolvimento dos tra-
balhos. A privacidade somente será quebrada quando houver
interesse público que se sobreponha ao das partes, ou seja,
quando for determinado por decisão legal ou judicial ou então
uma atitude de política pública.
Outra característica da mediação é a oralidade, uma vez
que se trata de um processo informal11 no qual as partes en-
contram um momento para conversar sobre os conflitos que as
envolvem, abrindo caminhos e possibilidades. A oralidade tem
como propósito aproximar as partes através de um diálogo pa-
cífico, visto que é intuito da mediação tratar e sanar os confli-
tos através do debate e do consenso, tendo como objetivo final
a restauração das relações entre os envolvidos. A partir do
consenso advém a autonomia de formular a solução, feita por
ambas as partes por vontade própria, o que evitará uma futura
procura por homologação do Judiciário.

11
SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflito. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004.
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Mediação como qualidade de vida

É necessário fazer constar a economia financeira e de


tempo que a mediação proporciona. Processos que no rito judi-
cial convencional levariam anos para se resolver, podem levar
apenas o tempo de uma “audiência12“ de mediação. Isso ocorre
muitas vezes porque é o único momento onde as partes falam
por elas mesmas, de forma organizada e preparada para isso,
podendo expor seus sentimentos e escutando os do outro tam-
bém. Entretanto, se for produzida uma decisão injusta ou imo-
ral é porque alguma falha ocorreu no processo da mediação.
Não cabe ao mediador oferecer meios de solução, porém é de
sua competência a orientação e manutenção da mesma.
Sendo assim, torna-se a mediação a realização, numa plu-
ralidade de formas, do fim que o Direito (na sua generalidade)
parece negar ao ser na sua individualidade: a chance da deci-
são, da escolha pela melhor solução (feita pelos participantes)
do conflito, visto que a organização estatal age sempre de for-
ma invasiva e juridificada, tirando a oportunidade de uma de-
cisão democrática e autônoma.
Mas como o intuito é de paz e de sempre somar esforços
pelo bem da sociedade, aliar-se aos instrumentos de um e de
outro (processo tradicional e mediação) torna-se imprescindí-
vel para se obter resultados mais céleres, benéficos e eficien-
tes. Pelo fato da mediação ainda não ser amplamente implan-
tada, ela deve respeitar certas normas e regras que não a são
inerentes, mas que permitem que ela se coloque a disposição
da sociedade de forma válida e reconhecida pelo poder judiciá-
rio. Tendo validade perante o Estado.

12
“Audiência”: geralmente são encontradas nos livros relacionados à
mediação as chamadas sessões de mediação, que seriam dadas ao rito
diferenciado, visto que em uma audiência tradicional há a imposição de
posicionamentos e de certo formalidade para com às autoridades,
enquanto que na “audiência alternativa” (sessão de mediação), o
posicionamento das partes e do mediador se dão de forma diferente,
colocando-se na mesma altura e na mesma mesa, pois busca-se a
aproximação das partes, colocando-os de igual para igual, e a única
formalidade pedida é o respeito mútuo, dando ao tratamento um
sentimento de igualdade e imparcialidade, tornando o ambiente mais
harmonioso e equilibrado, extraindo o nervosismo e ansiedade.

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Nesse sentido, traça-se caminho para que a mediação aos


poucos se torne cultural e venha futuramente a ser implantada
e sempre efetuada antes, durante ou até mesmo depois do
processo jurídico.
Dessa maneira, a mediação se adéqua ao ser social e ao
judiciário de forma homogênea, pois objetiva sempre a busca
pela aplicação mais harmoniosa e justa das leis, traduzindo os
sentimentos e as necessidades de ambos para que correspon-
da a criação e aplicação de regras/soluções eficazes. Através
da teoria de Habermas, fica evidenciado que essa idéia nasceu
muito antes do modelo nomeado como justiça alternativa. Ela
nasceu do desejo de uma democracia deliberativa, que inclui e
dá face aos processos.
Assim, com efeito todos os aspectos anteriormente men-
cionados tornam-se parâmetro para um desfecho feliz tanto na
teoria de Habermas, que projetava uma política democrática
auto-sustentável, quanto na prática de uma categoria jurídi-
co/alternativa, desenhando um futuro que salienta mais os an-
seios e desejos (o que realmente está por de trás do pedido
feito nos autos do processo), desmaterializando o engessamen-
to dos sentimentos e tratando o que realmente importa, o con-
flito/sentimento desarmônico, alcançando/incluindo até mes-
mo familiares e pessoas interligadas ao mesmo.

OBJETIVO
Apresentar defesa da teoria de Jürgen Habermas mos-
trando a particular ligação com a mediação e com a estrutura
de comunicação que exemplifica e como isso pode servir de
resposta para o judiciário a fim de dar mais eficácia ao trata-
mento dos conflitos sociais.

METODOLOGIA
A pesquisa foi feita através de revisão bibliográfica e prá-
tica, que consiste no levantamento de bibliografia já publicada
em forma de livros, revistas, publicações avulsas e imprensa
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1051
Mediação como qualidade de vida

escrita, e também nos Foros que utilizam a prática da media-


ção (a prática será comentada em apresentação, pois foi atra-
vés da experiência no Projeto de Mediação desenvolvido em
Santa Cruz do Sul e que vem tendo continuidade, que se bus-
cou desenvolver este artigo).

MEDIAÇÃO E A QUALIDADE DE VIDA


A mediação como forma ecológica13 de negociação, trás
aos participantes do conflito/litígio uma transformação na per-
cepção do seu mundo e ao redor, colocando em prática o prin-
cípio da alteridade e da responsabilidade. Isso modifica radi-
calmente todo um sistema de soluções já previstas e que tor-
nam a reconciliação algo saturado e desinteressante para as
partes. Inicia-se então uma nova era, onde para novos tempos
exigem-se novas proteções contra as “tormentas”14.
Através da mediação abrem-se caminhos antes pouco
evidenciados, que é do tratamento e da valoração dos senti-
mentos. Desde os primórdios a justiça trata do fato ocorrido,
encaixando a lei correspondente, deixando os sentimentos que
motivaram o acontecido desconhecidos e desvalorizados. Des-
sa forma nota-se que, assim como uma erva daninha, o que se
faz com o litígio é ceifar o caule, deixando as raízes ainda to-
das na terra, restando possibilidades para que se refaçam no-
vos brotes.
Ainda que o conflito tenha uma solução justa ao olhos da
lei e a sociedade (não menosprezando as decisões do judiciá-
rio) há sempre um participante do caso conflituoso que se sen-
te prejudicado, isso porque a decisão formada é data por um
terceiro, que por vezes não consegue ter a real dimensão do
que realmente existe por detrás do processo existente. Visto

13
Ecológica: nesse artigo deseja-se expressar o sentido da palavra
ecológica como intenção e desejo de algo saudável. Algo que trás
benefícios e que gera uma melhora no relacionamento entre os
participantes de um conflito/litígio.
14
WARAT, Luis Alberto (org.). Em nome do acordo: a mediação no direito.
Buenos Aires: Almmed, 1999. p. 02.

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que não há melhor solução do que aquela elaborada por quem


sente e vivencia a desarmonia impressa nos autos, pois que é
interna e única, dados os valores que cada ser humano dá às
peculiaridades existentes numa relação afetiva, econômica,
social e tantas outras que envolvem o mínimo de sociabilidade.
A mediação é uma proposta jurídica de solução dos con-
flitos que escapa do normativo,
[...] sendo a melhor fórmula, até agora encontrada, para
superar o imaginário do normativismo jurídico. A media-
ção como a realização do Feminino no Direito. Estou fa-
lando da permanente busca de um sempre-mais-além
dos desejos, que é a característica mais específica do fe-
minino15.

Dessa forma, o rito desempenhado pelas partes e pelo


mediador, torna-se uma composição perfeita, dando a assis-
tência necessária e precisa para cada momento e sentimento
colocado, garantindo segurança e contentamento ao acordo
formado pelos participantes do conflito.
Como anteriormente mencionado, o mediador desempe-
nha papel de lisura, quase de transparência, apenas como foco
de luz que traduz o que antes não se havia dado a correta in-
terpretação. Ele também conduz o diálogo para que este não
se perca nas subjacências do conflito. Ele foca no motivo prin-
cipal, pois que, arrancado na raiz, o restante todo perde a im-
portância anteriormente dada, sendo facilmente tratado e so-
lucionado.
A partir de uma sessão de mediação, pode se evidenciar
ainda outras “raízes” (subjacentes ao conflito tratado) de im-
portância semelhante ou maior do que a primeira, e que tam-
bém podem ser acompanhadas e tratadas com o mesmo trami-
te se for da vontade das partes, porém em outro momento, on-
de o foco seja desta outra.
É através da mediação, que os participantes colocam em
prática o poder da autonomia e da democracia (de escolher o

15
Ibidem, p. 04.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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1053
Mediação como qualidade de vida

que crêem ser o melhor), pois se investe neles a responsabili-


dade da qual lhes falta, a qual aprenderam a “empurrar” ao
judiciário. Essa responsabilidade proporcionando uma melhora
não só no conflito tratado, mas na vida íntima e em sociedade
daquele que pratica os atos e os valores que configuram a me-
diação.
Transformando a mediação em cultura, transformamos
não somente o meio de tratar e solucionar os conflitos/litígios,
mas trazemos a tona a evolução do ser humano e do ser social,
tornando a criança, que antes imatura se socorria ao pai para
resolver seus desentendimentos, em um adulto maduro e res-
ponsável que busca compreender as diferenças, compreender
ao seu próximo e a olhar para os conflitos com outros olhos,
dando a eles perspectivas de novas respostas e soluções, sau-
dáveis e construtivas.

COMBATER E ANULAR X TRATAR E SOLUCIONAR


Muito embora possa parecer estranho, a resolução dos
conflitos gerados pela sociedade é um campo ainda muito novo
para o direito, o que faz com que os caminhos teóricos dos
quais dispomos para lidar com essa questão sejam ainda bas-
tante inseguros16.
Apesar do direito sempre ter lidado com conflitos, é re-
cente o entendimento dos juristas de que esse é um objeto do
qual merece reflexão. Engraçado perceber que a história hu-
mana é repleta de situações onde a reflexão da nossa realidade
não é tematizada. Como por exemplo a escravidão e o direito a
igualdade dos sexos, estes foram temas excluídos por longo
período dos estudos sistemáticos que chamamos normalmente
de ciência ou filosofia, deixando-se de acumular entendimento
do processo evolutivo do ser humano. Porém, em um dado
momento esses fatos passaram a ser entendidos como proble-
16
COSTA, Alexandre Araújo. Cartografia dos Métodos de Composição de
Conflitos. In: AZEVEDO, André Gomma de (org). Estudos em
Arbitragem, mediação e Negociação. Brasília: Grupo de Pesquisa, 2004,
vol. 04, p. 161 e 162.

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mas, e por conseqüência indagados a receberem respostas. Aí


então se iniciaram os degraus de subida para o entendimento,
para o conhecimento e para a evolução do ser humano.
A partir do momento em que se identificou o problema ou
o fato do qual não se encontrou resposta natural ou simples,
iniciou-se uma caminhada em busca de uma nova alternativa,
uma nova possibilidade de resolvê-lo. Isso se fez perceber que
os métodos anteriormente utilizados para solucionar os confli-
tos não eram eficazes, instigando a buscar novas respostas e
abrindo as portas para outros meios de solução.
Normalmente, os juristas viam o conflito como algo a ser
combatido, algo negativo que deveria ser dominado e extin-
guido. Os conflitos são e sempre foram inevitáveis dado a exis-
tência de tantas diferenças sociais, econômicas (para não citar
tantas outras...), de interesses e de desejos, não havendo como
anulá-los.
A estratégia básica do judiciário foi a de compor uma
bancada de juízes que deveriam decidir os conflitos mediante
sua autoridade. Mas em uma sociedade igualitária os juízes
não poderiam decidir de acordo com suas convicções pessoais,
portanto implantaram então as normas jurídicas que estabele-
ceram padrões de julgamento17.
Resumindo e simplificando, essa é uma descrição grossei-
ra do direito moderno, um breve relato do quão igualitário é o
tratamento do individualismo do ser humano pelo judiciário:
onde as pessoas se compõem de diferentes interesses, esses
interesses se conflitam com outros diferentes, e essa diferença
precisa ser anulada mediante a aplicação de regras previa-
mente definidas e aplicadas pelo juiz imparcial.
A partir dessa percepção, há de se notar que o conflito
impera como vilão, como algo negativo a ser anulado. Assim os
juristas reuniram todas as tensões que ameaçavam a paz soci-
al no conceito de conflito18. Sendo algo a ser recusado, domina-
do ou anulado. Na atualidade essa visão encontra-se em crise,

17
COSTA, Alexandre Araújo, op. cit., p. 162.
18
Ibidem.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
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Mediação como qualidade de vida

visto que se desnuda o desdobramento que o conceito da pa-


lavra conflito significa. Pois que esse vai muito além da per-
cepção do impresso nos processos, ele abarca os mais variados
tipos e origens. Exigindo estratégias e meios muito mais flexí-
veis e diversos para o seu enfrentamento.
Isso provocou uma abertura para reflexões gerando um
movimento de formação de alternativas de auxílio ao judiciário
a solucionar esses conflitos. Porém há de se acentuar que o
judiciário permanece como mecanismo padrão de resolução
dos mesmos, pois que, toda alternativa, é uma opção para algo
que se tem como padrão.
Criou-se com isso a concepção de que haveria de ser feito
um acordo entre as partes, que nem sempre poderia se encai-
xar as normas judiciais. Nesse momento então, há um reco-
nhecimento dos limites da técnica jurídica imposta por normas
gerais e também uma valoração dos meios articulados e flexí-
veis que dão mais abertura as estratégias voltadas à criação
autônoma e democrática de normas individuais para a solução
do conflito19.
A partir daí entra-se na questão da identificação da raiz
problemática. Visto que o conflito não é verdadeiramente o
problema, mas uma decorrência do problema. Ele não é algo a
ser anulado, pois demonstra que algo de insatisfatório ou de
mal interpretado, ou ainda, de que algo mal compreendido
existe.
Mais profundamente, se faz necessário notar que há uma
dimensão conflitiva que integra o íntimo das pessoas conflitan-
tes, podendo ainda não haver somente interesses e desejos
opostos, mas também a percepção de mundo que os cercam
diferente, e isso não pode ser anulado, pois violentaria o direito
à identidade.
Isso tudo se encaixa na análise da forma de expressão.
Pois, sendo cada ser “um mundo à parte”, são expressadas
necessidades de formas diferentes, mesmo que por vezes as
necessidades sejam do igual objeto/objetivo. Ou seja, o verda-
deiro e real interesse das partes podem ficar obscuros, dificul-

19
COSTA, Alexandre Araújo, op. cit., p. 163.

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tando uma ou a outra parte de contribuir com uma resposta


clara e objetiva, abrindo-se um vão comunicativo entre elas.
Cabe então aos meios alternativos ampararem e reestru-
turarem essa base que se estremeceu e de reconstruir a ponte
que permitirá a comunicação harmoniosa entre as partes no-
vamente. Por nascerem dessa necessidade, os meios alternati-
vos vêm sendo aperfeiçoados cada vez mais, em busca sempre
de respostas mais eficientes e satisfatórias20.
A mediação vem especificamente estruturada para com-
portar e amparar todo e qualquer tipo de conflito, tendo como
primazia a reestruturação da comunicação. Pois trata a relação
que se encontra enferma com os remédios necessários, abrindo
espaço para a exposição de sentimentos e conversação tran-
qüila, valorando o que sentem necessidade de expor e de me-
lhorar. Dando assim largos passos para uma solução feliz e
saudável, transformando o conflito em algo construtivo.

SOBRE O RITO DA MEDIAÇÃO


Explicando de modo simples, a mediação tem o intuito de
criar uma esfera mais confortável, tranqüila e amistosa, dando
um primeiro passo para que os participantes dela se sintam
atraídos a criarem um acordo/solução. Diferente da audiência
tradicional, o objetivo da mesma é propiciar um ambiente sem
tensões, visto que ali não se busca disputar, mas acordar.
A estrutura da sala de mediação deve ser posta de forma
harmoniosa, com mesa redonda e três cadeiras dispostas em
igual distanciamento em torno dela. Se houverem convidados,
estes sentarão em cadeiras colocadas um pouco mais distante
da mesa. É conveniente ter a disposição lenços de papel e
também chás e balas de sabores suaves e tranqüilizantes, co-
mo forma de descontrair o momento delicado21.

20
BOLZAN DE MORAES, José Luis; SPENGLER, Fabiana Marion.
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Livraria do Advogado, 2008. p. 34.
21
AZEVEDO, André Goma de; Barbosa, Ivan Machado (org.). Estudos em
Arbitragem, Mediação e Negociação. vol. 4, Brasília: Grupo de
Pesquisa, 2007. p. 36.
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Mediação como qualidade de vida

Podem participar se forem permitidos pelas mesmas, fa-


miliares, amigos e colegas. Tudo para que os deixem seguros e
mais confiantes. O advogado deverá acompanhá-los, visto que
servirá como consultoria e amparo legal. Mas neste procedi-
mento quem dialoga são as partes que conflitam, restando ao
advogado apenas aconselhar quando solicitado.
Na abertura dos trabalhos é feita a apresentação/expli-
cação do procedimento para os presentes, acentuando que ali
estão para resolver o conflito que os envolvem, cabendo a eles
a opção de participar ou não. Sendo aceito o procedimento, é
informado que o acordo será elaborado por eles, pois que é um
meio autônomo e democrático de alcançar resultados, e que
ninguém é obrigado a acordar com algo que não lhes aprouver.
Acentua-se que o acordo será firmado a termo e assinado
pelos participantes e seus advogados na sessão ocorrente (nos
casos de acordo) e será homologado pelo juiz posteriormente
em encontro já previamente estabelecido. No caso da não acei-
tação ou da impossibilidade da solução do conflito, o processo
voltará para o judiciário, ocorrendo o rito processual tradicio-
nal. Isso dependerá exclusivamente da escolha das partes.
Seguindo o tramite, o mediador confirma os nomes das
partes, apresenta-se e também faz com que todos os partici-
pantes da sessão se apresentem. Para que não haja troca de
nomes ou confusões, é disponibilizado folhas de ofício para os
mediadores, e também para as partes, para que possam anotar
o que acham importante mencionar no seu momento de fala.
Após, são explicadas as normas e regras do rito, como: da
organização e do tempo das falas de cada um dos participan-
tes, dos tipos de expressões que não são aceitos durante a
sessão e do respeito mútuo que deve existir em todo o desen-
volver do trabalho, não sendo permitido qualquer troca de
agressão física ou verbal.
Explica-se também o papel do mediador, que é de facili-
tar/traduzir a conversação, auxiliando-os a esclarecer seus
próprios objetivos e preferências, também trabalhando na au-
to-avaliação das suas opções, ajudando-os a tomar decisões
eficientes fazendo-os considerar suas situações particulares, e
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ainda oferecer a oportunidade de compreender a visão do ou-


tro22.
Devendo o mediador exercer papel de imparcialidade to-
tal, deverá ele perceber se é próximo ou conhecido de alguma
das partes e questioná-los se é da vontade de ambos que o
mesmo seja o facilitador mesmo assim, caso haja objeção
(também por questões de etnia, sexo, credo, empatia...), deve-
rá haver sempre um co-mediador presente no momento, que
deverá tomar o papel, salvo não havendo também objeção. Ca-
so ainda houver, busca-se substituto ou transfere-se a sessão
para outra data em que haja mediador que se encaixe.
Seguindo sem objeções, é citado o princípio da confiden-
cialidade. Isso significa que no acordo homologado ficam escri-
tos apenas os pontos combinados entre eles e nada mais. As-
sim os sentimentos e as intimidades mencionadas ficarão em
sigilo.
Faz-se imprescindível ainda ao mediador, buscar compor-
tamento tranqüilo, equilibrado e firme, para que possa dar sus-
tentabilidade, respeito e estabilidade à sessão.
A partir disso, o decorrer dos trabalhos ainda ampara
muitas outras peculiaridades que se dão a cada caso em singu-
laridade. Pois o andamento da mesma varia conforme os fatos
vão se dando. Para isso há diversas técnicas e procedimentos
a serem adotadas para que se possa dar total amparo a todas e
quaisquer eventualidades ou surpresas23.
Ao final da mediação, é dada uma folha de ofício onde
devem constar dados como: nome completo, data de nasci-
mento, endereço e telefone, que ficará no cadastro dos media-
dos. Em seguida é entregue uma outra folha, esta com ques-
tões acerca do trabalho feito, perguntando como se sentiram,
se houve imparcialidade, se gostaram do trabalho realizado, se
gostariam de participar novamente da mediação caso houves-
se outra lide, pedindo ainda uma nota de 5 a 10 para o proce-

22
Ibidem, p. 19.
23
Ibidem, p. 22.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1059
Mediação como qualidade de vida

dimento e ao final abrindo espaço para críticas e sugestões.


Nessa a identificação é opcional.

CONCLUSÃO
Toda a exposição acima colocada é apenas uma pequena
síntese da estrutura colocada em prática no Foro da Comarca
de Santa Cruz do Sul – RS, onde no ano de 2010 se obtiveram
porcentagens superiores a 80% de acordos firmados, isso com
acompanhamento e confirmação via telefone após quatro me-
ses do acordo consolidado24.
Estes resultados se dão por respostas obvias, todo o
acordo elaborado pelas partes, vindos dos seus desejos, ansei-
os e necessidades, será sempre mais facilmente cumprido.
Contudo, finaliza-se mencionando a questão do melhora-
mento da relação entre as mesmas e do quanto isso reflete na
vida como um todo e nas relações sociais. Pode-se dizer então
que a prática da mediação trás benefícios incalculáveis a soci-
edade, devendo entrar não somente como uma alternativa ao
judiciário, mas como algo a andar paralelamente ao mesmo.
Não para tomar-lhe o lugar (pois que o objetivo não deve ser de
disputar poderes), mas para angariar um futuro melhor, de paz
e harmonia social. Isso é uma questão de mudança cultural.

REFERÊNCIAS
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ação e Negociação, Brasília: Ed. Brasília Jurídica, 2002.
AZEVEDO, André Gomma de; BARBOSA, Ivan Machado (orgs.). Es-
tudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Vol. 4 – Brasília:
grupos de pesquisa, 2007.

24
Projeto de extensão elaborado pela Dra. Fabiana Marion Spengler
praticado dentro do Foro da Comarca de Santa Cruz do Sul por
intermédio da Universidade de Santa Cruz do Sul. Tendo como título: A
CRISE DA JURISDIÇÃO E A CULTURA DA PAZ: a mediação como meio
democrático, autônomo e consensuado de tratar dos conflitos.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1060
Sheila Marine Uhlmann Willani &Ana Paula Cacenotti

AZEVEDO, Gustavo Trancho. Confidencialidade na mediação, in


AZEVEDO, André Gomma de (Org.), Estudos em Arbitragem, Medi-
ação e Negociação Vol. 02, Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2003.
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COSTA, Alexandre Araújo. Cartografia dos Métodos de Composição
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BARBOSA, Ivan Machado (orgs.). Estudos em Arbitragem, Media-
ção e Negociação. Vol. 4 – Brasília: grupos de pesquisa, 2007.
DEUTSCH, Morton. The resolution of Conflict: Constructive and
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HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política.
São Paulo: Loyola, 2002.
GAGLIETTI, Mauro José; GAGLIETTI, Natalia Formagini (org.). Di-
reito Contemporâneo em Pauta. Passo Fundo: Passografic; Santo
Ângelo: URI – Campus Santo Ângelo, 2012. 446 p.; 21cm.
SPENGLER, Fabiana Marion. Justiça Restaurativa e mediação: polí-
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por Dra. Marli Palma Souza. Florianópolis – 2004.
WARAT, Luis Alberto (org.). Em nome do acordo: a mediação no
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I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
CONTROLE DA INFORMAÇÃO: UMA AMEAÇA
À DEMOCRACIA NA A RGENTINA , NO B RASIL
E NA VENEZUELA

Talita Mazzola
Bolsista Pibic CNPq do Projeto Mídia e Sociedade: o direito à informação,
adscrito ao Mestrado em Direitos Humanos - Unijuí; Acadêmica de Jorna-
lismo - Unijuí. (talitamazzola@gmail.com)
Vera Raddatz
Orientadora do trabalho e coordenadora do Projeto Mídia e Sociedade: o
direito à informação; Professora do Mestrado em Direitos Humanos – Uni-
juí. (verar@unijui.edu.br)

Resumo
Em uma sociedade fortemente marcada pelas desigualdades sociais e o constante
debate sobre os direitos humanos é importante entender a importância dos direitos
fundamentais e da luta por sua garantia na construção de uma sociedade democráti-
ca, além da formação dos cidadãos. Não obstante, cabe uma reflexão sobre como os
meios de comunicação podem contribuir com a democracia e a defesa dos direitos
humanos e como a regulação dos meios de comunicação pode prejudicar esse pro-
cesso e no que pode auxiliar a garantia dos direitos. Pretende-se ainda abordar co-
mo os meios de comunicação podem contribuir com o direito à informação, fazendo
dele um direito meio, ou seja, um mediador para que a população tenha acesso a
outros direitos, bem como discutir de que forma as regulações dos meios de comu-
nicação podem ser uma violação dos direitos humanos. Para isso, faremos uma aná-
lise de como se configura esta regulação em três países da América Latina, sendo
eles: Argentina, Venezuela e Brasil.
Palavras-chave: democracia, direitos humanos, direito à informação, liberdade de
expressão

Abstract
In a society deeply marked by social inequalities and the constant debate on human
rights is important to understand the importance of fundamental rights and fight for
your warranty in building a democratic society, besides the formation of citizens.
Nevertheless, it is a reflection on how the media can contribute to democracy and
human rights and how the regulation of the media can undermine this process and
can assist in safeguarding the rights. Another objective is to address how the media
can contribute with the right to information, making it a right way, ie, a mediator for
the population to have access to other rights, as well as discuss how the regulations
of the means of communication may be a violation of human rights. For this, we will
analyze how to configure this setting in three Latin American countries, namely:
Argentina, Venezuela and Brazil.
Keywords: democracy, human rights, right to information, freedom of expression
1062
Talita Mazzola & Vera Raddatz

INTRODUÇÃO
Assegurados em lei, os direitos humanos existem para
garantir à sociedade uma vida digna e igualitária, sem distin-
ções por classe social, cor ou opção sexual. Desde sua criação,
os direitos humanos tem como princípios promover a liberdade
de pensamento e expressão, e a igualdade perante a lei. Sendo
assim, podemos definir como direitos humanos aqueles que
garantem a igualdade social e econômica, bem como as condi-
ções mínimas para tornarem-se úteis para a sociedade, asse-
gurando uma vida digna com alimentação, saúde, moradia e
educação.
Os direitos humanos estão classificados em duas instân-
cias. A primeira diz respeito aos direitos civis e políticos, como
a liberdade de expressão e o direito de ir e vir. A segunda, por
sua vez, se refere aos direitos econômicos, sociais e culturais,
como a educação, cultura, habitação e outras áreas que exigem
ações por parte do Estado. Entre esses direitos fundamentais,
há ainda um direito essencial para que se assegurem os de-
mais: o direito à informação. Marco Cepik1 define o direito à
informação como um direito que engloba de uma só vez os di-
reitos civis, sociais e políticos:
Os instrumentos legais de garantia do direito à informa-
ção vão desde artigos constitucionais e leis ordinárias em
diferentes esferas do poder (nacional, regional e local)
até decretos do poder executivo e decisões judiciais que
fixam jurisprudência, em alguns casos, tomadas pelas
cortes mais altas do país.

Entendemos direito à informação como um direito meio,


ou seja, é através dele que é possível garantir e lutar pelos
demais direitos. Nesse contexto, os meios de comunicação se
inserem como fiscalizadores dos direitos humanos, ou seja, é
por meio deles que a população tem acesso à informação e ga-
nha voz para defendê-los. Neste artigo, portanto, pretende-se

1
CEPIK, M. Direito à informação: situação legal e desafios. Informática
Pública, Belo Horizonte, 2000. p.34.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1063
Controle da informação

fazer uma reflexão sobre como os meios de comunicação con-


tribuem para a formação de uma sociedade democrática, preo-
cupada com os direitos do cidadão e como a regulação dos
meios pode afetar a chegada da informação e manipulá-la con-
forme os interesses de órgãos públicos ou privados.
Desse ponto de vista, este estudo enfoca três países da
América Latina: o Brasil, que está organizando seu Marco Re-
gulatório e a Argentina e a Venezuela que há algum tempo já
vêm enfrentando as represálias causadas pela regulação dos
meios de comunicação.

DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS PARA CONSTRUÇÃO DA


DEMOCRACIA
Depois da vida, o bem mais importante da humanidade é
a sua liberdade. Após, o direito à dignidade. Esses poderiam
ser considerados o tripé dos direitos humanos, sua base. A
concepção de que qualquer pessoa deveria ser tratada com
respeito e dignidade, independente de sua posição social, cor
ou quaisquer outras diferenças nasceu logo após a maior viola-
ção dos Direitos Humanos, a Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), que teve uma somatória de mais de 45 milhões de mor-
tos. Tamanhas atrocidades serviram para ressaltar a importân-
cia da discussão sobre os direitos da humanidade em nível in-
ternacional. O resultado foi a criação da Organização Geral das
Nações Unidas (1945), quando os líderes mundiais reuniram-se
a fim de elaborar um documento que garantisse os direitos de
todas as pessoas do mundo, buscando combater atrocidades
como as vistas durante a guerra.
O documento foi apresentado em 1946, na primeira As-
sembleia da ONU e repassado à Comissão de Direitos Huma-
nos para que fosse utilizado na preparação de uma declaração
internacional. Conforme os dados apresentados no Ministério
da Justiça do Brasil, a primeira reunião do Comitê aconteceu
em 1947 e foi presidida pela viúva do presidente americano
Franklin D. Roosevelt, Eleanor Roosevelt. A Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos contou com a participação de mais

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1064
Talita Mazzola & Vera Raddatz

de 50 países em sua redação e teve seu primeiro rascunho


apresentado em 1948 e sua redação final redigida menos de
dois anos depois.
Salvo a importância deste documento para a criação de
leis que garantissem os direitos humanos em inúmeros países,
cabe fazer ainda uma reflexão sobre a ligação entre direitos
humanos e democracia e é justamente na Declaração Universal
que isso se explica. Conforme o Artigo 21º do documento:
A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos
poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições
honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal
e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalen-
te que salvaguarde a liberdade de voto.

Bobbio2 define democracia como aquela que pode ser en-


tendida “primeiramente por um conjunto de regras e procedi-
mentos para formação de decisões coletivas e que está previs-
ta e facilitada a participação mais ampla possível dos interes-
sados”. Entende-se assim, democracia como a organização da
sociedade que através de mecanismos de participação direta,
como o voto, garantem a igualdade de todos os cidadãos pe-
rante lei.
O exercício da democracia pode acontecer de duas for-
mas, com a democracia direta ou representativa. A primeira é
quando o povo se manifesta como unidade na votação e deci-
são de cada assunto de forma individual. A segunda, por sua
vez, é quando o povo elege um representante que irá tomar
decisões em seu nome. Entretanto, independente do modelo
democrático adotado, a ideia de democracia é uma só: a de
garantir a todos os cidadãos o direito de expor suas ideias so-
bre quaisquer assuntos.
Com a modernização e o desenvolvimento da sociedade
possibilitar a todos a expressão de suas ideias ganhou alguns

2
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do
jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
p.12.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1065
Controle da informação

aliados. O avanço tecnológico modernizou o campo das comu-


nicações, fazendo com que as fronteiras físicas fossem que-
bradas e a sociedade passasse a se comunicar em uníssono
através da rede mundial de computadores. Salvo isso, há ainda
um dos maiores aliados do povo na defesa dos seus direitos,
em especial do direito à informação: a mídia.

A CONTRIBUIÇÃO DA MÍDIA PARA DEMOCRACIA


Os meios de comunicação tiveram papel fundamental pa-
ra assegurar a democracia de inúmeros países. Já diria Lafer 3:
“o direito à informação é uma liberdade democrática destinada
a permitir uma autônoma e igualitária participação dos indiví-
duos na esfera pública”. As discussões sobre o tema vêm per-
meando os discursos entre filósofos políticos e o reconheci-
mento da importância da mídia fez com que políticas nacionais
fossem desenvolvidas para proteger a função dos meios de
comunicação frente à democracia.
Para Hohlfeldt4, “quase tudo o que sabemos sobre o mun-
do e a sociedade, sabemo-lo através dos mídia”. Por intermé-
dio das informações transmitidas pelo rádio, TV, jornais e –
mais recentemente – a internet, a população pode vir a ter co-
nhecimento de seus direitos básicos. Nessa perspectiva a mí-
dia é vista como o lugar em que as informações estão disponí-
veis, entretanto, cabe salientar que a escola, as instituições e
os grupos sociais a que pertencem os indivíduos são também
instâncias potencializadoras dos debates em torno destas in-
formações.
A mídia é formadora de opiniões. É por meio dela que cir-
culam e são distribuídos os conteúdos que provocam a pauta
de discussão da maior parte dos assuntos do quotidiano, se-

3
LAFER, C. A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. São Paulo, Cia. das Letras, 1991. p.201.
4
HOHLFELDT, Antônio. As possíveis interações do jornalismo com as
ciências humanas e sociais. In: Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação 2005. Rio de Janeiro. São Paulo: Intercom, 2005. p.3.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1066
Talita Mazzola & Vera Raddatz

jam em relação à política, à economia ou qualquer uma das


ciências. Essa atuação é evidenciada por alguns autores:
Aproximando e difundindo informações independente de
nível ou casta social, a comunicação contemporânea atua
como verdadeira aliada na busca pela democracia, cida-
dania e justiça, uma vez que proporciona combater o es-
quecimento social, fortalecendo a participação popular
como forma de garantia de direitos, fazendo com que se
deixe de a democracia meramente representativa e se
adote um modelo que dá prevalência a aproximação do
cidadão à realidade governamental5.

A partir disto é que resulta algum tipo de aprendizado


não formal que irá contribuir para a bagagem do sujeito, so-
mando-se àquilo que a escola ou a universidade vem desen-
volvendo em suas esferas no que diz respeito à produção do
conhecimento e o que as famílias e outros grupos ou institui-
ções sociais realizam na promoção dos valores humanos. É o
conjunto destes elementos que constituem a base da estrutura
para a formação dos pontos de vista e dos argumentos dos ci-
dadãos.
Um dos exemplos mais marcantes do poder fiscalizador
da mídia no Brasil foi o caso do impeachment do então presi-
dente Fernando Collor de Mello, em setembro de 1992 que re-
sultou de inúmeras denúncias feitas pelos meios de comunica-
ção impressos, num primeiro momento, mas que depois ga-
nhou repercussão nacional também pela televisão. Nesse con-
texto, podemos dizer que a mídia foi fundamental para que o
impeachment acontecesse.
Os veículos de comunicação tem afirmado seu espaço na
sociedade como difusores de conteúdos em larga abrangência,
que alcançam um número significativo de pessoas e, por isso,

5
POMPÉO, Wagner Augusto Hundertmarck e MARTINI, Alexandre Jae-
nisch. O papel da mídia na construção da democracia, cidadania e jus-
tiça no mundo globalizado: um estudo voltado aos efeitos das ações
de imprensa e micropolíticas fundadas no espaço local. UFSM, 2012.
p.4.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Controle da informação

assumem uma função importante na formação e propagação


da cultura bem como na formação de identidades, estereótipos
e ideologias. Entretanto, há muitos teóricos que classificam a
mídia como manipuladora, especialmente por estarem na mão
de um pequeno número de pessoas com interesses econômi-
cos, deixando assim de atender seu princípio básico que é o de
representar a população como um todo.
Ríos6 em seu artigo A Revolução Tecnológica dos Meios
de Comunicação e os Desafios do Direito e da Cidadania, res-
salta essa preocupação de que muitos meios de comunicação
atuam apenas com interesses econômicos. Conforme o autor:
“Todas elas compartilham as mesmas características e propó-
sitos: dominar a informação e os mercados em que operam,
sobrepujando os interesses públicos e os interesses da pessoa
humana”.
Partindo do pressuposto de que a mídia é de fundamental
importância para o desenvolvimento da democracia e o princi-
pal meio fiscalizador dos poderes para o povo, como solucionar
o problema dos interesses dos empresários que possuem esses
veículos de comunicação estarem sobressaindo-se aos interes-
ses do povo, aos quais a mídia deveria atender conforme seu
objetivo inicial? Muitos responderiam essa questão propondo a
regulamentação dos meios de comunicação. Entretanto, seria
essa mesmo a solução?

REGULAMENTAÇÃO DA MÍDIA: O CONTROLE DA IMPRENSA NA


ARGENTINA, BRASIL E VENEZUELA
Tendo em vista os já citados problemas da mídia com os
interesses econômicos dos donos das empresas de comunica-
ção sendo colocados em primeiro plano, a regulamentação da
mídia tem sido sugerida como principal saída para solucionar
essa problemática. Entretanto, existem questionamentos sobre
até onde estão os interesses políticos por trás dessa regula-
6
RÍOS, Aníbal Sierralata. A revolução tecnológica dos meios de comuni-
cação e os desafios do direito e da democracia. In: Meritum, Belo Hori-
zonte, vol. 7, nº1, p.305-353, jan./jun. 2012. p.308.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1068
Talita Mazzola & Vera Raddatz

mentação, tendo em vista as constates denúncias feitas sobre


alguns governos.
Os responsáveis pelos veículos de comunicação tem ale-
gado que a pretensão da criação de uma regulamentação da
mídia é a implementação da censura e o cerceamento à livre
circulação de ideias. Por outro lado, os defensores da regulação
afirmam que o setor sofre com monopólios e que uma regula-
mentação baseada na defesa da pluralidade de opiniões é a
única solução. Três países são foco desta análise, no que diz
respeito à regulação dos meios de comunicação na América
Latina. Argentina e Venezuela já tem uma lei em vigor que re-
gulamenta a mídia, o Brasil, por sua vez, ainda está debatendo
a implementação dessa medida.
Na Argentina, entrou em vigor em outubro de 2009 a Ley
de Medios que propõe mecanismos destinados à promoção,
descentralização e incentivo à competição com o objetivo de
baratear e universalizar as novas tecnologias de informação e
comunicação. Na lei, destacam-se questões como a reserva de
33% dos sinais radioelétricos, em todas as faixas de radiodifu-
são e de televisão terrestres em todas as áreas de cobertura
para as organizações sem fins lucrativos; Criação de um Con-
selho Federal de Comunicação Audiovisual; Concessões de
dez anos prorrogáveis por mais dez; Combate à monopoliza-
ção.
Entretanto, apesar da alegação da criação da lei em bus-
ca de maior pluralidade no debate público, a Ley de Medios na
Argentina também atende a um conflito particular entre o go-
verno nacional e o grupo Clarín. O governo dos Kirchner man-
teve sempre uma estratégia de distanciamento da mídia. Os
embates entre governo e o grupo de comunicação, entretanto,
iniciaram em 2008 quando os veículos ligados ao grupo posici-
onaram-se contra a decisão do governo em reter as compulsó-
rias sobre a exportação do girassol e soja, o que resultou em
uma mobilização das entidades patronais representativas do
setor rural para que o governo revogasse a medida. O Clarín foi
acusado pelo partido dos Kirchner por ser o porta-voz dos mo-

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1069
Controle da informação

vimentos, dando início a uma pressão aberta pelo desgaste do


grupo e sua desconcentração.
Discussões importantes como a quebra dos contratos de
exclusividade para transmissão dos jogos de futebol, a lei dos
meios, a pressão por mudanças no controle de Papel Prensa, as
greves para desorganizar as distribuições de jornais, dentre
outras demonstram um interesse de cunho político.
A Venezuela, por sua vez, estabeleceu a Lei Orgânica de
Telecomunicações em 2000. O objetivo é garantir o direito hu-
mano das pessoas à comunicação, a realização das atividades
econômicas de telecomunicações necessárias para consegui-
los sem mais limitações que a Constituição e as leis. A legisla-
ção também regulamenta o mercado secundário de conces-
sões.
Entretanto, assim como na Argentina, a Venezuela apre-
senta interesses políticos na regulamentação da mídia. Um
exemplo disso é a recusa da renovação da concessão pública
da RCTV, uma das principais emissoras críticas do governo,
em maio de 2007. Não obstante, o governo também a retirou do
ar em janeiro do mesmo ano alegando que a emissora estaria
descumprindo a legislação. Embora amparado pela lei, tal ati-
tude demonstra certo abuso de poder por parte do governo em
retirar a emissora do ar. Mesmo assim, há os que ainda defen-
dam que na Venezuela existe liberdade de expressão, citando
como exemplo os jornais que mesmo contrários ao governo
continuam funcionando.
Além dessa atitude, Chavez fez investimentos em meios
de comunicação estatais e estabeleceu com setores de repre-
sentação midiáticos com o objetivo de consolidar um meio de
comunicação direta entre o governo e a população. Tendo em
vista que dos nove canais de comunicação nacionais o governo
é proprietário de três isso lhe garante uma audiência de 10%
do total, entretanto, se forem consideradas as alianças com
outros canais a audiência sobe para 55% o que concretiza o
sucesso do objetivo do governante. É desnecessário dizer en-
tão que não apenas a liberdade de expressão, mas também o
direito à verdade da informação está seriamente comprometido.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1070
Talita Mazzola & Vera Raddatz

Cabe salientar que embora a regulamentação da mídia se


apresente como uma solução rápida e objetiva é preciso obser-
var que tanto no caso da Argentina como na Venezuela exis-
tem interesses políticos sendo colocados em primeiro plano.
Nesse contexto, se arriscarmos em aderir a leis que regula-
mentem a liberdade de expressão baseados em interesses de
determinados governos, estamos colocando em risco outro di-
reito de infinita importância para a manutenção dos demais,
que é o direito à informação.
O Brasil ainda não votou uma legislação mais recente que
regulamente a mídia, todavia, as discussões sobre o marco re-
gulatório já começaram. O debate iniciou na 1ª Conferência
Nacional de Comunicação em maio de 2011, no Rio de Janeiro.
A plataforma apresenta 20 propostas prioritárias para o marco
da comunicação. A justificativa é a mesma utilizada nos de-
mais sistemas regulatórios, ou seja, a ausência da pluralidade
por parte dos meios de comunicação. Outro ponto levantado
para justificar a regulação é o fato de a legislação em vigor ser
antiquada e não estar adequada aos padrões internacionais de
liberdade de expressão.
Dentre os pontos destacados no marco, os que chamam
atenção são: promover a participação popular na tomada de
decisões acerca do sistema de comunicações brasileiro, no
âmbito dos poderes Executivo e Legislativo; garantir a acessi-
bilidade plena aos meios de comunicação, com especial aten-
ção às pessoas com deficiência; proteger a privacidade das
comunicações nos serviços de telecomunicações e na internet;
promover a transparência e o amplo acesso às informações
públicas, etc. São contribuições importantes para democracia,
entretanto, cabe salientar aqui que os meios de comunicação
são fundamentais para esse processo.
É importante observar a promoção da transparência e o
amplo acesso às informações públicas para entender a impor-
tância da mídia. Hoje o Brasil possui o Portal da Transparência,
um portal na internet, responsável pela disponibilização das
informações dos poderes do país. Entretanto, muitas pessoas
não possuem acesso à internet, apesar do avanço tecnológico
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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1071
Controle da informação

hoje a maioria da população brasileira ainda possui apenas à


televisão e ao rádio, ou seja, apesar da ferramenta existir, ela
só poderá ser utilizada de forma efetiva com a mediação dos
meios de comunicação.
Um dos principais objetivos de criar uma regulamentação
para a mídia é de que a sociedade passe a fazer essa fiscaliza-
ção. No entanto, a sociedade está realmente preparada para
fazer isso? E se estiver, de que forma isso vai acontecer? Não
há clareza nessas especificações e tendo em vista a carência
da educação para a mídia e o entendimento de seu funciona-
mento por parte de grande parcela da população é possível
chegar à conclusão de que o caminho do marco regulatório da
mídia no Brasil seguirá o mesmo caminho de seus vizinhos,
sendo articulada através de interesses políticos ou de peque-
nos grupos de pessoas que serão responsáveis por essa fisca-
lização.

IMPORTÂNCIA DA MÍDIA FRENTE ÀS NOVAS TECNOLOGIAS


É importante se ter em mente de que a liberdade de im-
prensa é um dos direitos mais importantes na defesa de outros
direitos, pois quando comprometida, as demais ficarão sem
fiscalização, logo se tornando inativos. Ataíde7 é enfático
quando afirma que: “a mídia é o espelho que reflete o real, o
imaginário e o simbólico social, estes padrões de comporta-
mento logo passam a ser considerados pela massa como uma
via alternativa para a conquista de voz e vez no discurso soci-
al”. Entendemos, dessa forma, que a mídia se configura como
um espaço social, ou seja, disponível para atender as deman-
das da sociedade.
Os meios de comunicação, por auxiliarem na formação da
opinião pública têm como função fundamental defender e pro-
teger os direitos de igualdade e respeito, com o objetivo de
combater o preconceito e o desrespeito aos direitos do homem.

7
ATAÍDE, Y. D.B. A educação e a cultura de paz. Revista da FAEEBA.
Salvador: UNEB. Ano 9, no. 14(Jul/dez), 2000. p.12.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1072
Talita Mazzola & Vera Raddatz

A educação para os meios de comunicação se insere nesse as-


pecto como fator fundamental para formar uma sociedade ca-
paz de fazer a seleção dos conteúdos que podem melhor aten-
der as demandas de sua formação intelectual. A formação para
os meios também auxilia no entendimento das novas tecnolo-
gias.
As redes sociais tem se concretizado cada vez mais como
uma plataforma de discussão, liberdade de expressão e opini-
ão pública. Através delas é possível manifestar os anseios so-
ciais e protestar em favor dos direitos humanos e contra as
represálias que acontecem referentes a essa temática. Engana-
se, entretanto, quem imagina que os meios de comunicação
serão substituídos por essas ferramentas de comunicação em
massa.
Com a sociedade da informação cada vez mais exigente e
o número de informações cada vez maior nas mídias digitais e
a comunicação sem limites, cabe destacar a diferença entre
informação e comunicação: “[...] a informação é a mensagem. A
comunicação é a relação, que é muito mais complexa”8. Toda-
via, o autor ressalta ainda que comunicar é cada vez mais ne-
gociar e conviver, deixando apenas uma pequena parcela para
a transmissão e o compartilhamento da informação. Nesse con-
texto, destaca-se a importância do papel do jornalista para
qualificar a informação transmitida com ética. O mesmo autor
alerta sobre isso quando enfatiza que “Nada mais ingênuo e
perigoso que pensar que amanhã, graças aos sistemas de in-
formação, cada um se tornará seu próprio jornalista, fazendo
caducar a existência, os direitos e os deveres dessa profis-
são”9.

CONCLUSÃO

8
WOLTON, Dominique. Informar não é Comunicar. Porto Alegre. Sulina,
2010. p.12.
9
Idem, p.71.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1073
Controle da informação

O direito à informação e liberdade de expressão é garan-


tido em lei, portanto, é necessário que isso seja levado em con-
sideração na discussão sobre o marco regulatório da mídia.
Thomas Jefferson (1787) já dizia que entre um governo sem
imprensa e uma imprensa sem governo preferia a última op-
ção, pois a imprensa é o oxigênio da sociedade. Através dela é
possível garantir que a democracia seja de fato exercida, pois
atua como um órgão fiscalizador das ações e da defesa dos
direitos humanos, agindo como um mediador da informação e
garantindo esse direito ao povo.
Se o marco regulatório for de fato aprovado, é importante
que aconteça uma discussão mais acirrada sobre como será
feita a fiscalização e quem, de fato, tem o poder de regular a
mídia. Se ao mesmo passo que os empresários responsáveis
pelo veículo de comunicação colocam seus interesses a frente
dos da população, o governo e pequenos grupos responsáveis
pela elaboração dessa regulamentação não estariam fazendo o
mesmo? É importante uma reflexão efetiva e profunda acerca
dos interesses reais da liberdade de expressão, imprensa e o
direito à informação.
A mídia, como visto, contribui – e muito – na formação e
construção da democracia cidadania e justiça no país,
uma vez que propicia o exercício desses ideais aliados a
sempre necessária e fundamental participação popular.
Prestando serviço de ordem social, pública e essencial a
sociedade, difundindo conhecimento e tornando o inatin-
gível, muitas vezes, atingível, a mídia revela-se como lo-
cus de direito a ter direitos.10

Para tanto é necessário que antes de qualquer aprovação


um debate maior com todas as instâncias da sociedade seja
feito de forma mais efetiva a fim de atender de forma efetiva

10
POMPÉO, Wagner Augusto Hundertmarck e MARTINI, Alexandre
Jaenisch. O papel da mídia na construção da democracia, cidadania e
justiça no mundo globalizado: um estudo voltado aos efeitos das
ações de imprensa e micropolíticas fundadas no espaço local. UFSM,
2012. p.10.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1074
Talita Mazzola & Vera Raddatz

não apenas os interesses de parte da população, mas sim para


que todos sejam representados, como tem sido feito por boa
parte da mídia.

REFERÊNCIAS
ATAÍDE, Y. D.B. A educação e a cultura de paz. Revista da FAEEBA.
Salvador: UNEB. Ano 9, no. 14(Jul/dez), 2000.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras
do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
CEPIK, M. Direito à informação: situação legal e desafios. Informáti-
ca Pública, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, 2000.
HOHLFELDT, Antônio. As possíveis interações do jornalismo com as
ciências humanas e sociais. In: Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação 2005. Rio de Janeiro. São Paulo: Intercom, 2005.
LAFER, C. A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. São Paulo, Cia. das Letras, 1991.
POMPÉO, Wagner Augusto Hundertmarck e MARTINI, Alexandre
Jaenisch. O papel da mídia na construção da democracia, cidada-
nia e justiça no mundo globalizado: um estudo voltado aos efeitos
das ações de imprensa e micropolíticas fundadas no espaço local.
UFSM, 2012.
RÍOS, Aníbal Sierralata. A revolução tecnológica dos meios de co-
municação e os desafios do direito e da democracia. In: Meritum,
Belo Horizonte, vol. 7, nº1, p.305-353, jan./jun. 2012.
WOLTON, Dominique. Informar não é Comunicar. Porto Alegre.
Sulina, 2010.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO COMO
MEIO DE CONCRETIZAR O
DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL

Tatiane Kessler Burmann


Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI ; Pesquisadora da Linha de Pes-
quisa Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos, Pesquisadora
CNPq, no projeto de pesquisa “O direito ambiental no contexto da socie-
dade de risco: em busca da justiça ambiental e da sustentabilidade”;
(tati_burmann@hotmail.com)
Daniel Rubens Cenci
Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Professor do DCJS - Depar-
tamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Regional do Noro-
este do Rio Grande do Sul – UNIJUI; Professor do Programa de Pós-
Graduação Mestrado em Direitos Humanos, Coordenador da Linha de
Pesquisa Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos, Coordena-
dor do projeto de pesquisa CNPq “O direito ambiental no contexto da so-
ciedade de risco: em busca da justiça ambiental e da sustentabilidade”;
(danielr@unijui.edu.br)

Resumo
A cidade se apresenta como um centro de magnetismo que atrai indivíduos de dife-
rentes níveis sociais e econômicos. A almejada cidade sustentável converte-se em
meio de disputas socioeconômicas e espaciais, no paradoxal desenvolvimento eco-
nômico, que vêm promovendo o inchaço dos centros urbanos e a exclusão de grupos
sociais cada dia mais numerosos. Um olhar interdisciplinar e crítico sobre o direito à
cidade revela processos crescentes de desrespeito aos direitos humanos, pela sone-
gação do acesso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no espaço urbano -
requisito essencial para a qualidade de vida e a cidadania. O enfrentamento da crise
ambiental requer maiores investimentos e processos de planejamento e gestão de
forma holística e participativa, garantindo acesso aos bens fundamentais e econômi-
cos, ambientais e sociais.
Palavras-chave: Cidadania. Cidade sustentável. Democracia. Direitos humanos. Meio
ambiente ecologicamente equilibrado.

Abstract
The city presents itself as a center of magnetism that attracts individuals from
different social and economic levels. The desired and necessary sustainable city
becomes a means of dispute socioeconomic and spatial paradox in economic
development, which have been promoting the swelling urban centers and exclusion
1076
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

from social groups more numerous every day. An interdisciplinary and critical about
the right to the city reveals processes of growing disrespect for human rights by
withholding access to an ecologically balanced environment in the urban space -
essential requirement for quality of life and citizenship. Confronting the
environmental crisis requires more investment and planning processes and
management in a holistic and participatory, ensuring access to basic goods and
economic, environmental and social.

INTRODUÇÃO
O crescimento acentuado e desordenado das cidades,
acompanhado linearmente pelo aumento de uma série de pro-
blemas socioambientais urbanos, já há longa data clama por
soluções eficazes e desassociadas do populismo político e da
manutenção de regalias e especulações a qualquer custo. Ob-
servados os altos índices de população urbana atuais, não se
pode descuidar do fato de que as mais importantes questões
ambientais ocorrem nas cidades, merecendo, assim, prioridade
de atenção.
A deterioração do espaço urbano resta evidente nos ca-
sos cada vez mais frequentes de catástrofes ambientais - en-
chentes e desmoronamentos -, na carência de moradia e saú-
de, na insuficiência dos serviços de transportes, na falta de
saneamento básico, na ocupação predatória de áreas inade-
quadas e não permitidas, enfim, na ineficiência geral dos ser-
viços que deveriam ser proporcionados de forma digna à popu-
lação. A ocupação do espaço urbano se faz marcada pela
agressão frontal aos direitos humanos, refletindo de forma ne-
gativa na qualidade de vida da maioria da população.
Tal contexto impossibilita o desenvolvimento adequado
das cidades e, por consequência, o bem-estar social dos seus
habitantes. No entanto, é, lamentavelmente, a realidade con-
temporânea - realidade com a qual não se pode conformar. É
fundamental estudar, planejar, projetar o futuro das cidades,
com visão de curto, médio e longo prazo.
A cidade é um lugar de interação social e trocas que per-
mite que as diferenças possam se encontrar, reduzindo pre-
conceitos e fortalecendo a democracia. Porém, nossas cidades

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1077
Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

têm perdido muito dessa capacidade do espaço urbano de ser


o lugar das trocas; elas têm dado muito espaço para a frag-
mentação urbana, a segregação, o isolamento do espaço, seja
dos ricos, seja dos pobres.
Diante desse cenário, imperioso examinar o que pode ser
feito para alcançar um meio ambiente ecologicamente equili-
brado, cidades sustentáveis e assegurar qualidade de vida às
gerações presentes e futuras. Ao que tudo indica, o caminho
para a concretização desses direitos fundamentais está na
gestão democrática e cidadania: o futuro digno das pessoas
humanas e das próximas gerações depende da responsabili-
dade e participação de toda a comunidade.

O DIREITO À CIDADE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL


O desejo do direito à cidade como um direito fundamental
inerente a todas as pessoas urbanas desperta com as conse-
quências do processo de urbanização - crescimento desorde-
nado, desprovido de infraestrutura mínima, com espaços à
margem de qualquer dignidade -, e por uma melhorara da qua-
lidade de vida. Sua trajetória está vinculada ao movimento das
lutas sociais pela reforma urbana, iniciado nos anos 60.
Para chegar ao reconhecimento do meio ambiente urbano
sadio como um direito fundamental de quarta geração, um
longo caminho foi percorrido - os direitos humanos foram evo-
luindo e se delineando ao longo da história. Nesse sentido bem
ilustra o relato bíblico da Criação, lembrado por Comparato1: “o
mundo não surge instantaneamente, completo e acabado, das
mãos do criador. As criaturas vão se acrescentando, umas às
outras, como etapa de um vasto programa, simbolicamente
ordenado na duração de um ciclo lunar.”
A evolução dos direitos humanos encontra-se marcada
por quatro importantes fases. No século XVIII, decorrente da
Independência Americana e da Revolução Francesa, nasceu,

1
COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Hu-
manos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 17.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1078
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

com a Declaração de Virgínia (1776) e com a Declaração da


França (1789), a primeira geração de direitos do homem, de-
nominados de direitos civis ou liberdades civis clássicas. Essa
geração, segundo Bedin2,
[...] abrange os chamados direitos negativos, ou seja, os
direitos estabelecidos contra o Estado. Daí, portanto, a
afirmação de Norberto Bobbio (1992:32) de que entre eles
estão ‘todos aqueles direitos que tendem a limitar o po-
der do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os
grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação
ao Estado.

O indivíduo passa a ser sujeito dotado de direitos, com o


valor em si mesmo, estando em primeiro lugar em relação ao
Estado. Deste modo, os direitos civis estabelecem um marco
divisório entre a esfera pública (Estado) e a esfera privada (so-
ciedade), constituindo uma das características fundamentais da
sociedade moderna que é o pensamento liberal e democrático.
No século XIX surgiu a segunda geração de direitos, a
qual foi conceituada de direitos políticos ou liberdades políti-
cas. Advindos como um desdobramento natural dos direitos da
primeira geração, tais direitos se caracterizaram como direitos
positivos, isto é, de participar no Estado. Nos termos do ilustre
professor Bedin3,
[...] esse deslocamento, de “contra o Estado” para “parti-
cipar no Estado”, é importantíssimo, pois nos indica o
surgimento de uma nova perspectiva da liberdade. Esta
deixa de ser pensada exclusivamente de forma negativa,
como não impedimento, para ser compreendida de forma
positiva, como autonomia.
[...] a definição de direitos políticos proposta por Hauriou,
como sendo aqueles que “permitem a participação no
poder de denominação política, ou dito de outra maneira,
na soberania nacional” (apud Ferreira, 1993:567).

2
BEDIN, Gilmar Antonio. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo.
2.ed. Ijuí: Unijuí, 1997, p. 47.
3
Idem, p. 60-61.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1079
Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

Mas foi apenas no século XX, em face das atrocidades da


Segunda Guerra Mundial, que a ideia de igualdade essencial
entre todos os homens e de dignidade foi formalizada por uma
organização internacional, através da Declaração Universal de
Direitos Humanos de 1948. Tem-se, assim, vinculada a uma lei
escrita, a proclamação de que “todos os homens nascem livres
e iguais em dignidade e direitos”.
Nesse contexto e sob a influência da Revolução Russa e
das Constituições Mexicana de 1917 e de Weimar, originou-se a
terceira geração de direitos, definida de direitos econômicos e
sociais. Tais direitos, como bem elucida Bedin4, compreendem
[...] os chamados direitos de créditos, ou seja, os direitos
que tornam o Estado devedor dos indivíduos, particular-
mente dos indivíduos trabalhadores e marginalizados, no
que se refere à obrigação de realizar ações concretas, vi-
sando a garantir-lhes um mínimo de igualdade e de bem-
estar social. Esses direitos, portanto, não são estabeleci-
dos “contra o Estado” ou direitos de “participar do Esta-
do”, mas sim direitos garantidos “através ou por meio do
Estado”.
Assim, não se trata de um novo deslocamento de noção
de liberdade, por exemplo, como vimos, de não-
impedimento para autonomia, mas sim da revitalização
do princípio da liberdade.

E foi também no século XX, já no final da primeira meta-


de, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
que brotou a quarta geração de direitos, batizada de direitos
de solidariedade. Essa compreende os direitos do homem no
âmbito internacional, ou seja, não se destina à proteção dos
interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determina-
do Estado, e sim, tem por destinatário o gênero humano. “Por
isso não são ‘direitos contra o Estado, direitos de ‘participar do
Estado’ ou direitos ‘por meio do Estado’, mas sim direitos ‘so-
bre o Estado.”5

4
BEDIN, Gilmar Antonio. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo.
2.ed. Ijuí: Unijuí, 1997, p. 66.
5
Ibid., p. 77.
Programa de Pós-graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1080
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

Os direitos humanos acabam por transcender e explorar o


domínio reservado do Estado. E o “gozo dos direitos humanos
reconhecidos internacionalmente depende umbilicalmente do
ambiente. [...]. Sem um meio ambiente saudável ou ecologica-
mente equilibrado não se pode gozar dos direitos básicos re-
conhecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.”6
De acordo com a doutrina do professor Canotilho7,
[...] são os direitos de quarta geração [...] que abrangem
as suas sucessivas sedimentações históricas ao longo do
tempo: os tradicionais direitos negativos, conquista da
revolução liberal; os direitos de participação política,
emergentes da superação democrática do Estado liberal;
os direitos positivos de natureza econômica, social e cul-
tural (usualmente designados, de forma abreviada, por
direitos sociais), constituintes da concepção social do Es-
tado; finalmente, os direitos de quarta geração, como o
direito ao ambiente e à qualidade de vida.

A relação entre direitos humanos, proteção ambiental, ci-


dade sustentável e qualidade de vida é evidente e inegável.
Segundo Betiol8, “o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado é pressuposto lógico e inafastável da realização do
direito à sadia qualidade de vida e, em termos, à própria vida.
Por isso ele pode ser exercido por todos, seja coletiva, seja pela
pessoa humana individualmente considerada.”
O direito à cidade, por sua vez, revela, nas palavras de
Nelson Saule Júnior9, “a defesa da construção de uma ética
urbana fundamentada na justiça social e cidadania, ao afirmar
a prevalência dos direitos urbanos e precisar os preceitos, ins-

6
CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio Ambiente e Direitos Humanos.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 152-156.
7
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da
Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 93.
8
BETIOL, Luciana Stocco. Responsabilidade Civil e Proteção ao Meio
Ambiente. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 20.
9
JUNIOR, Nelson Saule. Direito Urbanístico: vias jurídicas das políticas
urbanas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2007, p. 50.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

trumentos e procedimentos para viabilizar as transformações


necessárias para a cidade exercer sua função social.”
Certo é que a proteção e a preservação do meio ambiente
são essenciais à vida e à dignidade das pessoas. “Em outras
palavras, ao se reconhecer tamanha importância ao direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, estar-se-á condici-
onando o mesmo a um direito fundamental.”10
Mas a história e a justiça dos direitos humanos, e, então
do direito ao meio ambiente sadio e à cidade inclusiva, mesmo
que normatizada, não oferece “uma definição e uma descrição
da sociedade justa ou uma prescrição de suas condições de
existência.”11 E apesar da ausência de uma receita, aposta-se
que na gestão democrática e na cidadania como meio de con-
cretizar o direito ao meio ambiente urbano sadio e recuperar os
direitos que a cidade esqueceu.

O DIREITO À CIDADE E OS DIREITOS QUE A CIDADE ESQUECEU


O direito à cidade, no contexto jurídico brasileiro, ganhou
espaço a partir da Constituição Federal de 1988, com um capí-
tulo de política urbana, e foi ampliado e confirmado pela Lei
10.257/01 que instituiu o Estatuto da Cidade. Novas diretrizes
de gestão urbana foram estabelecidas, redefinindo os limites
do exercício do direito à propriedade e visando uma ocupação
do solo urbano de acordo com os princípios de sustentabilida-
de e justiça social, as quais foram ratificadas pela Carta Mun-
dial pelo Direito à Cidade, aprovada no 3º Fórum Social Mundi-
al de 2005.
De acordo com o Estatuto da Cidade, todos os princípios
da política urbana possuem uma relação direta com os princí-
pios do direito ambiental, da dignidade da pessoa humana e

10
CENCI, Daniel Rubens. O Direito ao Ambiente Ecologicamente Equili-
brado como Direito Fundamental da Pessoa Humana. In: BEDIN, Gilmar
Antonio. (Org.). Cidadania, Direitos Humanos e Equidade. Ijuí: Ed. Uni-
juí, 2012, p. 331.
11
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Traduzido por Luiza
Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 374.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1082
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

da solidariedade. Nesse sentido complementa Elenise Scho-


nardie, ao defender que a tutela do direito à cidade, no contex-
to atual da sociedade urbana brasileira, corresponde
à efetivação do direito à dignidade dos atores sociais –
pessoas humanas – que está ligada a uma gama de ou-
tros direitos como o direito à moradia, à educação, à saú-
de, ao lazer, ao trabalho, ao equilíbrio entre meio ambien-
te natural e artificial, à preservação do patrimônio cultu-
ral e aos serviços públicos, como o saneamento12.

Note que o direito à cidade vai além do respeito aos direi-


tos do indivíduo, atingindo a coletividade, determinada ou in-
determinada de indivíduos, um Estado que necessita ser pen-
sado sob a ótica transindividual e interdisciplinar. Possui titu-
laridade indeterminada para alcançar o conjunto da sociedade
e está diretamente vinculado aos direitos ambiental e ao de-
senvolvimento sustentável urbano.
O desenvolvimento sustentável depende de equilíbrio en-
tre os aspectos socioeconômicos, ambientais, antrópicos e eco-
lógicos. Assim como a concretização do direito à cidade exige
romper com a sociedade da indiferença e caminhar para um
novo modo de produção desse espaço, marcado pelo floresci-
mento e interação igualitária dos diversos ritmos de vida e das
diferentes formas de apropriação.
Nesse sentido, Carrera13 define que cidade inclusiva nada
mais é do que “uma cidade onde se pratica, efetivamente o
desenvolvimento, sustentável, com o objetivo constitucional e
primordial de se garantir o sustento das gerações presentes e
futuras.” É proporcionar a todos aqueles que sequer conhecem
as vantagens positivas do ato de beber agua potável, de che-
gar em casa e ter um vaso sanitário devidamente instalado, de

12
SCHONARDIE, Elenise Felzke. Direito à Cidade e Favelização: as inter-
faces da desigualdade social e do direito fundamental. In: BEDIN, Gil-
mar Antonio. (Org.). Cidadania, Direitos Humanos e Equidade. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2012, p. 257.
13
CARRERA, Francisco. Cidade Sustentável: utopia ou realidade?. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 33-34.
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Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

estar sobre um teto de sua propriedade ou ainda poder sabo-


rear uma refeição adquirida como recursos do seu próprio sus-
tento.
No entanto, o direito fundamental ao meio ambiente sadio
e à cidade não constitui realidade, ao menos para a maioria
dos brasileiros. “O fenômeno da urbanização converteu as ci-
dades brasileiras em cenários de dramas cujo ator principal é o
sujeito de direitos.”14
As cidades cresceram com a força da necessidade e uma
débil estrutura urbanística, com investimentos reduzidos, falta
de planejamento e escassos serviços públicos. Ao mesmo tem-
po em que foram receptivas, tornando-se o lugar da esperança
por inserção social, as cidades também se constituíram em
importante passivo urbanístico, ambiental, social e de segu-
rança pública. Desse modo elas não conseguiram corresponder
plenamente ao formato político-ideológico traçado pelas novas
instituições inclusivas brasileiras.
Como bem coloca Raquel Rolnik15, a cidade é antes de
mais nada um imã.
O espaço urbano deixou assim de se restringir a um con-
junto denso e definido de edificações para significar, de
maneira mais ampla, a predominância da cidade sobre o
campo. Periferias, subúrbios, distritos industriais, estra-
das e vias expressas recobrem e absorvem zonas agríco-
las num movimento incessante de urbanização. No limite,
este movimento tende a devorar todo o espaço, transfor-
mando em urbana a sociedade como um todo.

Nesse cenário, “o ser humano, detentor de todas as ga-


rantias explicitadas no pacto republicano, é justamente o obje-
to sacrificado de ausência ou ineficiência de políticas públicas,
de mãos dadas com a crueldade do capitalismo selvagem.”16

14
NALINI, José Renato. Os Direitos que a Cidade Esqueceu. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 17.
15
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.12.
16
NALINI, José Renato. Os Direitos que a Cidade Esqueceu. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 18.

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1084
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

Apesar de óbvio que os problemas que afligem as pessoas não


distinguem o morador da cidade e o radicado na zona rural, é
no espaço urbano que se protagoniza a maior tragédia do ani-
quilamento dos direitos humanos.
Isso porque a distribuição territorial da rede urbana é pro-
fundamente heterogênea, com grande parte da população se
concentrando nas megacidades e nas cidades grandes. Se-
gundo Lefebvre17, “a concentração da população acompanha a
dos meios de produção. O tecido urbano prolifera, estende-se,
corrói os resíduos de vida agrária”.
Consequentemente a desigualdade social nas cidades
também aumentou. Os setores populacionais mais pobres fo-
ram os que mais cresceram em comparação aos mais ricos. A
cidade informal proliferou com taxas muito maiores do que em
relação à cidade formal. Grandes contingentes populacionais
vivem em situação de total inexistência da estrutura urbana
básica: habitação, água potável, saneamento e transporte.
Ou seja, a grande cidade, a partir dos processos de globa-
lização e urbanização, explodiu dando lugar a duvidosas ex-
crescências: subúrbios, conjuntos residenciais e complexos
industriais, pequenos aglomerados pouco diferentes de burgos
urbanizados. As cidades pequenas e médias tornaram-se de-
pendências da metrópole. Como bem coloca Lefebvre18, “atra-
vés e no seio da sociedade burocrática de consumo dirigido a
sociedade urbana está em gestação”.
Nessa tendência de segregação urbana o “que é social-
mente significativo não é o fato da pobreza ou da discrimina-
ção em si, mas a fusão de certas situações sociais e de uma
localização particular na estrutura urbana.”19 “A fragmentação
do tecido sociopolítico-espacial é o quadro síntese que reúne a
formação de enclaves territoriais ilegais em espaços segrega-

17
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed.UFMG,
1999, p. 15.
18
Ibid., p. 15.
19
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1983, p. 262.
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Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

dos, de um lado, e a proliferação de territórios-cidadela das


elites (condomínios exclusivos), de outro.”20
Assim, “a pobreza humana, no Brasil atual, não impressi-
ona ou assusta somente por sua magnitude, mas também por
seus desdobramentos sociopolíticos.”21 As pessoas não mais
se veem na natureza, e entre elas e esta se instala a realidade
urbana - uma deterioração geral das condições de vida e habi-
tualidade.
Para Mike Davis22,
[...]as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e de
aço, como fora previsto por gerações anteriores de ura-
nistas, serão construídas em grande parte de tijolo apa-
rente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e res-
tos de madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se
aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI ins-
tala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e
deterioração.

A cidade não é apenas vícios, poluições e doenças metal,


moral e social. A alienação urbana envolve e perturba todas as
alienações. A segregação crescente quase impossibilita aceitar
que a implementação dos direitos humanos seja meta atingível.
O desafio é conduzir nossas cidades receptivas, que foram,
para tornarem-se cidades inclusivas, que podem ser. “Onde es-
tiver o ser humano privado dos direitos e garantias postos à sua
disposição no pacto republicano, é urgente resgatar sua digni-
dade. A apatia dominante não pode se eternizar.”23 E o alcance
desse modelo requer conscientização e participação, cidadania e
democracia, dando destaque aos valores éticos e morais, neces-
sários para a continuidade da vida no planeta.

20
SOUZA, Marcelo Lopes de. Alguns Aspectos da Dinâmica Recente da
Urbanização Brasileira. In: FERNANDES, Edesio; VALENÇA, Márcio Mo-
raes (Orgs.). Brasil Urbano. Rio de Janeiro: Manuad, 2004, p. 65-67.
21
Ibid., p. 64
22
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 29.
23
NALINI, José Renato. Os Direitos que a Cidade Esqueceu. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 19.

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1086
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

DEMOCRACIA E CIDADANIA COMO INSTRUMENTOS A EFETIVAR O


DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL
É inegável que mudanças positivas têm acontecido na
política ambiental brasileira ao longo dos últimos anos. Houve
uma crescente na conscientização sobre temas ambientais. No
entanto, atitudes para a solução dos problemas ainda são es-
cassas. Conforme Daniel Rubens Cenci24,
[...] no caso brasileiro, ainda que seja visível o avanço na
distribuição de renda, visualiza-se um alto grau de expo-
sição das camadas empobrecidas da sociedade, aos dife-
rentes problemas ambientais enfrentados, partindo do
acesso ao consumo até a capacidade de enfrentar a di-
mensão das catástrofes naturais da crise ambiental, no-
tadamente pela inexistência de recursos, pela falta de in-
formação e pela inexistência de políticas públicas ade-
quadas.

A concretização do meio ambiente sadio e, então, de ci-


dade sustentável, exige mudanças radicais na estrutura exis-
tente de sociedade organizada. A responsabilidade pela pre-
servação de tais direitos fundamentais não é somente do Poder
Público, mas também da coletividade. Necessária se faz uma
cidadania participativa de ação conjunta do Estado e da cole-
tividade. Assim preleciona José Leite25:
[...] para efetividade deste direito, há necessidade da par-
ticipação do Estado e da coletividade, em consonância
com o preceito constitucional. O Estado, desta forma, de-
ve fornecer os meios instrumentais necessários à imple-
mentação deste direito. Além desta ação positiva do Es-

24
CENCI, Daniel Rubens. O Direito ao Ambiente Ecologicamente Equili-
brado como Direito Fundamental da Pessoa Humana. In: BEDIN, Gilmar
Antonio. (Org.). Cidadania, Direitos Humanos e Equidade. Ijuí: Ed. Uni-
juí, 2012. p. 327.
25
LEITE, José Rubens Morato. Introdução ao Conceito Jurídico de Meio
Ambiente. In: VARELLA, Marcelo Dias; BORGES, Roxana Cardoso Brasi-
leiro. O Novo em Direito Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p.
64.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1087
Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

tado, é necessária também a abstenção de práticas noci-


vas ao meio ambiente por parte da coletividade. O cida-
dão deve, desta forma, empenhar-se na consecução deste
direito fundamental, participando ativamente das ações
voltadas à proteção do meio ambiente.

Note que o importante na defesa desses direitos humanos


é a vinculação Estado-sociedade. A visão democrática ambien-
tal reflete na gestão participativa do Estado, que estimulará o
exercício da cidadania com vistas ao gerenciamento da pro-
blemática ambiental. A vinculação interesses públicos e priva-
dos conduz a noção de solidariedade em torno do bem comum.
Nalini26 destaca para a seriedade de alertar aqueles cujas
consciências ainda não foram suprimidas. Trata-se de um de-
ver da comunidade pensante.
É urgente retirar da inércia a massa letárgica daqueles
eticamente anestesiados, pois a missão do resgate do
semelhante de sua servidão não é exclusiva do governo.
É missão salvífica que deve se encarregar a cidadania. Só
assim se reduzirá a larga distância hoje constatável entre
incluídos e excluídos, entre senhores e servos, entre os
exitosos e os desprovidos de qualquer perspectiva.

Certo é que a gestão ambiental do desenvolvimento sus-


tentável exige novos conhecimentos interdisciplinares e plane-
jamento intersetorial, mas, principalmente, um processo de
governabilidade democrática. De acordo com Leff27,
[...] os princípios de gestão ambiental e de democracia
participativa propõem a necessária transformação dos
Estados nacionais e da ordem internacional para uma
convergência dos interesses em conflito e dos objetivos
comuns nos diferentes grupos e classes sociais em torno
do desenvolvimento sustentável e da apropriação da na-

26
NALINI, José Renato. Os Direitos que a Cidade Esqueceu. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 19.
27
LEFF, Enrique. Saber Ambiental: Sustentabilidade, Racionalidade,
Complexidade, Poder. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 62.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1088
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

tureza. O fortalecimento dos projetos de gestão ambien-


tal local e das comunidades de base está levando os go-
vernos federais e estaduais, como também intendências
e municipalidades, a instaurar procedimentos para diri-
mir pacificamente os interesses de diversos agentes
econômicos e grupos de cidadãos na resolução de confli-
tos ambientais, através de um novo contrato social entre
o Estado e a sociedade civil.

Logo, o direito humano a um ambiente ecologicamente


equilibrado envolve, hoje, não apenas normas constitucionais,
legais ambientais e urbanísticas, mas principalmente qualida-
de política do processo de produção e aplicação dessas leis. É
papel de todos - sociedade e entes governamentais - agrupar
forças e providências para enfrentar as questões socioambien-
tais urbanas. A cidade precisa ser encarada e tratada como
[...] um espaço coletivo cultural culturalmente rico e di-
versificado que pertence a todos os seus habitantes, ou
seja, a todos os cidadãos(ãs) que nela habitam de forma
transitória ou permanente e, além disso, deve ser um es-
paço de realização de todos os direitos humanos e liber-
dades fundamentais.28

Corroborando, sustenta Jacobi29 que a preocupação com o


desenvolvimento sustentável envolve não apenas a questão
sobre a capacidade de suporte, e sim o alcance e limites das
ações para reduzir o impacto dos danos na vida urbana cotidi-
ana. Requer uma sociedade motivada e mobilizada a assumir
um papel propositivo, capaz de se questionar e de exigir inicia-
tivas dos governos a implementar políticas ditadas pelo binô-
mio da sustentabilidade e do desenvolvimento.

28
SCHONARDIE, Elenise Felzke. Direito à Cidade e Favelização: as inter-
faces da desigualdade social e do direito fundamental. In: BEDIN, Gil-
mar Antonio. (Org.). Cidadania, Direitos Humanos e Equidade. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2012, p. 258.
29
JACOBI, Pedro. Impactos socioambientais urbanos – do risco à busca de
sustentabilidade. In: MENDONÇA, Francisco. (Org.). Impactos
Socioambientais Urbanos. Curitiba: Ed. UFPR, 2004.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1089
Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

Como bem sintetiza Edésio Fernandes30,


[...] reforma urbana, reforma judiciária e reforma do setor
público têm de andar de mãos dadas, dentro do quadro
referencial de uma agenda progressista de governança
urbana. Entretanto, o futuro das políticas ambientais
vai depender da mobilização social renovada, dentro e
fora do aparato social. (grifamos).

E conclui-se na transcrição azada das palavras de Fran-


cisco de Mendonça31, que
[...] ante a gravidade dos problemas socioambientais do
presente, e a urgente solução que é demandada pelos
mesmos, parece necessário apelar para que a “cidade
mundana” impere sobre a “cidade de Deus” (HARDT;
NEGRI, 2001), pois torna-se cada vez mais patente o fato
de que , a crise socioambiental e as gritantes injustiças
sociais que afligem a sociedade do presente, não se re-
solvem somente com a perspectiva técnica e tecnológica.
Mudanças muito mais profundas, que estão na essência
da organização social, são necessárias para construir a
cidade com boas condições de vida para a maioria da po-
pulação.

É preciso que se opere uma profunda transformação no


modo de vida contemporâneo, e que esta seja uma opção do
Estado, da sociedade, da ciência e da economia capitalista. A
questão ambiental implica em um novo arranjo social que, pro-
vavelmente, não dispensará nenhum dos âmbitos possíveis de
tratamento - o local, o nacional, o supranacional, o mundial; o
espaço público estatal, o espaço público não-estatal e o espaço
privado -, mas exigirá um conserto social que se constitua a

30
FERNANDES, Edésio. Impacto socioambiental em áreas urbanas sob a
perspectiva jurídica. In: MENDONÇA, Francisco. (Org.). Impactos Socio-
ambientais Urbanos. Curitiba: Ed. UFPR, 2004. p. 114.
31
MENDONÇA, Francisco. S.A.U – Sistema Ambiental Urbano: uma abor-
dagem dos problemas socioambientais da cidade. In: MENDONÇA,
Francisco. (Org.). Impactos Socioambientais Urbanos. Curitiba: Ed.
UFPR, 2004, p. 206.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1090
Tatiane Kessler Burmann& Daniel Rubens Cenci

partir de práticas e vínculos construídos sobre instrumentos de


uma democracia sustentável32.
Tem-se, segundo Del’Omo33, “a participação do cidadão
por meio do exercício da cidadania e a ampla consciência indi-
vidual e coletiva da necessidade permanente da proteção con-
tínua e sistemática da natureza como condição de qualidade
de vida e da própria sobrevivência humana.”
Portanto, para que se possa usufruir plenamente o direito
fundamental à cidade sustentável, imperioso é o cumprimento
do dever de defesa desse espaço - dever esse de toda coletivi-
dade. Não é possível concretizar o direito ao meio ambiente
urbano sadio e inclusivo enquanto não se materializar a obri-
gação jurídica-cidadã de colaborar para sua preservação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda é possível mudar as condições ambientais. Gestão
democrática e cidadania são questões centrais para a concre-
tização do direito ao meio ambiente sadio e, por conseguinte,
do direito à cidade sustentável. Daí decorre a urgência em
construir uma sociedade que tenha como base a democracia, a
participação e a solidariedade.
As legislações positivas garantidoras de tais direitos não
são suficientes. A coletividade - Estado, cidadãos, ciência e
economia capitalista -, alicerçada em uma dimensão participa-
tiva e social, tem o direito, mas também o dever à manutenção
da qualidade ambiental.

32
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Estado Social das “Carências” ao
Estado Social dos “Riscos”. Ou: de como a questão ambiental especula
por uma nova cultura jurídico-política. Caderno de Direito Constitucio-
nal, 2008. Disponível em: < http://www.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/
apg_BOLZAN_COMPLETO.pdf >. Acesso em março de 2013.
33
DEL’OLMO, Elisa Ceriolli. Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado:
direito e dever do cidadão. In: SANTOS, André Leonardo Copetti;
DEL’OMO, Florisbal de Souza (Orgs.) Diálogo e Entendimento: direito e
multiculturalismo e cidadania e novas formas de solução de conflitos.
Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 233.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1091
Democracia e participação como meio de concretizar o direito à cidade...

O momento de recuperar direitos esquecidos e materiali-


zar o direito à cidade inovadora, inclusiva e inteligente é agora
- e logo será ontem. Somos os protagonistas do nosso futuro e
vítimas das nossas atitudes e escolhas.
A complexidade do espaço urbano precisa alcançar o es-
tado de simbiose - um relacionamento duradouro, beneficiando
mutuamente hospedeiro e invasor. Para tanto, primeiro é ne-
cessário reconhecer a existência dos problemas. Segundo, é
entender os conflitos socioambientais e extrair as conclusões
certas. Terceiro, é tomar alguma providência sensata e eficaz.
Atualmente estamos em algum ponto entre os estágios
um e dois. E se quisermos garantir um futuro digno para as
gerações presentes e futuras, com melhor qualidade de vida,
precisamos ingressar, urgentemente, no terceiro estágio, com
a implementação de uma gestão democrática ambiental atra-
vés do exercício da cidadania.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO MEIO
EFICAZ PARA COMPREENSÃO DA
DIVERSIDADE CULTURAL NAS RELAÇÕES
FAMILIARES

Thaís Kerber De Marco1


Mestranda em Direito - Bolsista CAPES pela Universidade Regional Inte-
grada do Alto Uruguai e das Missões - URI Campus Santo Ângelo.
(thaiskerber@hotmail.com)
Júlia Francieli Neves de Oliveira2
Mestranda em Direito - Bolsista CAPES pela Universidade Regional Inte-
grada do Alto Uruguai e das Missões - URI Campus Santo Ângelo e cursan-
do pós-graduação em civil e processo civil no Luis Flavio Gomes - LFG.
(julianeves15@hotmail.com).

Resumo
Este estudo trata sobre a instituição família e a sua diversidade cultural bem como a
construção da identidade e do reconhecimento da mesma e a busca pela resolução
de conflitos extrajudiciais através da mediação, que vem surgindo como uma das
formas mais bem sucedidas para a transformação de conflitos nas relações entre os
membros familiares, pois favorece o diálogo e o entendimento entre as partes e
propõe uma mudança cultural nas interações humanas, pela qual as relações das
divergências pressupõem um diálogo, através de uma comunicação compreensiva e
respeitada entre os membros, que significa a transformação pacífica de pessoas para
uma cultura de paz social.
Palavras-Chave: cultura, família, mediação.

Abstract
This study focuses on the family institution and its cultural diversity as well as the
construction of identity and recognition of same and the search for extra-judicial
dispute resolution through mediation, which is emerging as one of the most success-
ful ways for conflict transformation in relations among family members, as it favors
dialogue and understanding between the parties and proposes a cultural change in

1
Mestranda em Direito - Bolsista CAPES pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI Campus Santo Ângelo. E-
mail: thaiskerber@hotmail.com.
2
Mestranda em Direito - Bolsista CAPES pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI Campus Santo Ângelo e
cursando pós-graduação em civil e processo civil no Luis Flavio Gomes -
LFG. E-mail: julianeves15@hotmail.com.
1094
Thaís Kerber De Marco & Júlia Francieli Neves de Oliveira

human interactions, in which the relations of differences assume a dialogue, through


a comprehensive and respected communication among members, which means the
peaceful transformation of people for a culture of peace.
Keywords: culture, family, mediation.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os últimos anos do final do século XX estão associados às
grandes mudanças ocorridas na sociedade, resultante do apro-
fundamento da diversidade cultural nas relações de família.
Não obstante, as modificações nas estruturas familiares resul-
tantes dos movimentos sociais, dos avanços tecnológicos e da
globalização, levando a uma consequência lógica dessas trans-
formações a disseminação de uma identidade cultural mundia-
lizada.
As modificações da sociedade, resultantes de uma espé-
cie de reação ao processo globalizante verifica-se na constru-
ção de uma civilização com identidade local com hábitos, valo-
res, costumes e culturas, no panorama globalizado. Dada essa
multiplicidade e complexidade social, torna-se cada vez mais
relevante à compreensão da influência das mudanças culturais
na construção da identidade das pessoas e importa reconhecer
a diversidade cultural e seus efeitos na sociedade.
Vê-se que, ao mesmo tempo em que construção da iden-
tidade na sociedade e na cultura influencia no desenvolvimen-
to das relações familiares e na dinâmica dos conflitos interin-
dividuais, refletindo sobre a mediação para a solução dos con-
flitos familiares que surgiram através de tais transformações.
A pesquisa é, portanto, oportuna por delinear algumas
notas sobre a construção da identidade e a influencia da cultu-
ra no desenvolvimento da mesma a partir da diferença, visan-
do contribuir para uma maior compreensão e consciência em
uma área que ainda é incipiente para algumas pessoas no Bra-
sil como é o caso da mediação para a solução dos conflitos fa-
miliares, através de uma cultura solidária e fraterna.
A cultura do conflito esta presente em nossa sociedade,
basta analisar a atual crise que o nosso Poder Judiciário vem
passando por não conseguir controlar a demanda processual.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1095
Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão...

O diálogo e a compreensão estão sendo abolidos da vida coti-


diana e isso vem trazendo consequenciais negativas para a
sociedade que sofre devido aos inúmeros conflitos que surgem
diariamente entre as pessoas e que acabam sendo levados a
resolver perante a justiça.
O direito de família esta diretamente ligada a vida e aos
sentimentos e também disposto a conflitos gerados no âmbito
no seio familiar. Porém tais conflitos se bem desenvolvidos e
resolvidos podem trazer crescimento e melhorar o convívio fa-
miliar trazendo harmonia e satisfação para as partes envolvi-
das na mediação.
A mediação é um método transformador de resolver os
conflitos no âmbito do direito de família. As práticas da media-
ção tratam primeiramente dos sentimentos, que sempre estão
presentes em conflitos familiares e na maioria dos casos é a
questão principal que envolve o problema em discussão.

FAMÍLIA E A DIVERSIDADE CULTURAL


A família é uma instituição básica da sociedade civil, co-
mo em outras áreas o pano de fundo são as mudanças sociais e
culturais a partir dos diferentes momentos históricos, essas
transformações repercutem no processo cultural, político, eco-
nômico e principalmente, no âmbito familiar3.
A ideia de família já não é mais a mesma, as estatísticas
são bem conhecidas. O divorcio aumentou verticalmente em
quase todos os países ocidentais, embora as taxas de alguns
sejam mais altas que em outras. A proporção de pessoas que
vivem sozinhas e de crianças nascidas de pais-não casados se
elevou constantemente4.
Observa-se atualmente que poucas famílias vivem de
maneira “tradicional”, em que pai e mãe são casados e vivem
na mesma casa com seus filhos biológicos, sendo o pai prove-

3
GIDDENS. Anthony. A terceira via. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 5ª
edição. Editora: Record. Rio de Janeiro, S. Paulo, 2005, p..99.
4
Idem, p..99.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1096
Thaís Kerber De Marco & Júlia Francieli Neves de Oliveira

dor e a mãe dona-de-casa, esta tradição cultural vem perdendo


força desde a metade do século passado5.
O papel social da família é extremamente importante, pois
a família é o ponto de encontro de uma gama de tendências que
afetam a sociedade como um todo, como a igualdade crescente
entre os sexos, o ingresso generalizado de mulheres na força de
trabalho, mudanças no comportamento e nas expectativas se-
xuais e a mudança na relação entre casa e trabalho6.
Quanto às famílias do início do século XIX, Anthony Gid-
dens, assim se refere:
A família tradicional era acima de tudo uma unidade
econômica e de parentesco. Os laços de casamento não
eram individualizados como são agora, e amor ou envol-
vimento emocional não eram a base primor dial do casa-
mento, como se tornaram subsequentes.
O casamento tradicional estava fundamentado na desi-
gualdade dos sexos e na posse legal das esposas pelos
maridos – esposas foram bens móveis no direito inglês
até uma altura avançada deste século. Da mesma manei-
ra as crianças possuíam poucos direitos legais7.

Nessa época a família tradicional geralmente envolvia um


padrão sexual duplo, pois as mulheres casadas deveriam ser
“virtuosas”, em parte por causa da importância de se assegu-
rar a paternidade, ao contrário dos homens que possuíam uma
maior liberdade sexual. Famílias grandes, isto é com muitos
filhos eram desejadas, pois haveria maior mão de obra, atual-
mente os filhos já não são um benefício econômico e sim um
considerável custo, mudando profundamente a natureza da
infância e da criação das crianças8.
Segundo Roque Laraia a ideia atual é que a cultura fami-
liar é um sistema de padrões de comportamento socialmente

5
GIDDENS. Anthony. A terceira via. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 5ª
edição. Editora: Record. Rio de Janeiro, S. Paulo, 2005, p..99.
6
Idem, p..99.
7
Idem, p. 99.
8
Idem, p. 102.
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão...

transmitidos que servem para adaptar as comunidades huma-


nas aos seus embasamentos biológicos. Já Bauman reflete que
essa ambivalência reflete a ambiguidade da construção da or-
dem, que é um ponto focal da existência moderna, essa ambi-
guidade presente na cultura estabelece uma oposição cultural,
pois de um lado se tem uma cultura mais livre, e de outro, se
tem uma cultura mais presa pela padronização9.
A ideia de diversidade cultural na família está ligada aos
conceitos de pluralidade, multiplicidade, e, muitas vezes, tam-
bém, pode ser encontrada na comunhão de contrários, na in-
tersecção de diferenças, ou ainda, na tolerância mútua. A Cul-
tura concilia incompatibilidades ostensivas, valores subdeter-
minados, é um mecanismo para limitar escopos, cercar esco-
lhas entre infinitas alternativas, num padrão finito, compreen-
sível e administrável. A Cultura é tanto agente da ordem, como
da desordem, porque ela trabalha tanto para preservar os pa-
drões, como para substituí-los por outro padrão, e assim segue
as mudanças sociais10.
Assim, a capacidade transformadora das estruturas fami-
liares implica igualdade, respeito mútuo, autonomia, tomada
de decisão através da comunicação e resguardo da violência.
Grande parte destas mudanças fornece também um modelo
para os relacionamentos pais-filhos. Os pais mesmo reivindi-
cando autoridade sobre os filhos, esta será mais dialogada11.
Portanto, a diversidade cultural cumpre uma função fun-
damental na criação dos sistemas sociais, intensificado pelas
migrações e pelas mudanças. Há um anseio generalizado pela
família para prover estabilidade num mundo de transforma-
ções, como a flexibilidade e adaptabilidade no local de traba-
lho: o mesmo precisa se aplicar a capacidade de conservar re-
lacionamentos através da mudança, até mudanças radicais
como o divórcio, torna-se central não somente para a felicidade

9
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Trad. Carlos
A. Medeiros. Rio de Janeiro; Zahar, 2012, pg. 18.
10
Idem, pg.24.
11
GIDDENS. Anthony. A terceira via. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 5ª
edição. Editora: Record. Rio de Janeiro, S. Paulo, 2005, pg.103.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1098
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do indivíduo, mas também para a continuidade das relações


com os filhos12.
A respeito das mudanças, a economia e a cultura se
transnacionalizam tanto na família como em outras áreas e ge-
ram confrontos árduos, cada qual demandando reconhecimen-
to e respeito às suas origens valores e ideias, reconhecendo o
multiculturalismo como uma proposta ética e filosófica do res-
peito mútuo que merece cada uma de todas as culturas.

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E RECONHECIMENTO


A cultura de um povo é um dos fatores principais para a
construção da identidade, pois tem uma relação direta entre os
indivíduos e com o meio. Nesse contexto faz-se necessário
compreender o significado da construção da identidade e re-
conhecimento.
Referindo-se à construção da identidade Silva, ressalta
que:
[...] na construção da identidade, é necessária a preser-
vação da memória coletiva dos vários grupos. A memória
coletiva daqueles, cuja cultura não é dominante, será o
agente catalisador da afirmação da identidade étnica. A
busca desta identidade implica o cultivo das tradições
culturais do grupo dominado e a releitura de sua história.
A religião, os mitos, as lendas, a ideologia serão necessá-
rios a este processo de identificação cultural. [...]13

Em relação ao estuo da identidade o autor relata que, em


geral, ao escrever algo sobre certas características identitárias
de algum grupo cultural, tudo que os indivíduos dizem faz par-
te de uma rede mais ampla de atos linguísticos que, em seu
conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que,
supostamente, apenas estamos descrevendo.

12
GIDDENS. Anthony. A terceira via. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 5ª
edição. Editora: Record. Rio de Janeiro, S. Paulo, 2005, pg.104.
13
SILVA, Nelson do Valle. Uma nota sobre ‘raça social’ no Brasil. Caderno
Cândido Mendes. Estudos Afro-asiáticos, 26, 1995, pg.37.
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Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão...

Contudo, há outro fator contribuinte da perspectiva do


discurso de identidade, que é a mudança de valores dos indi-
víduos devido à evolução social, o autor afirma que a identida-
de não é essência; não é um dado ou fato – seja da natureza,
seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, uni-
ficada, permanente. A identidade tão pouco é homogênea, de-
finitiva, acabada, idêntica, transcendental. A identidade é uma
construção, um efeito, um processo de produção, uma relação,
um ato performativo. A identidade é instável, contraditória,
fragmentada, inconsistente, inacabada. O outro é o outro gêne-
ro, outra cor diferente, outra sexualidade, outra raça, outra na-
cionalidade, outro corpo diferente14.
Quanto à identidade cultural, o autor ressalta que o sujei-
to fala, sempre, a partir de uma posição histórica e cultural es-
pecífica. E, ainda, que há duas formas de pensar identidade
cultural a identidade está dividida entre a identidade pessoal
que reconhece o significado do “eu” e a identidade social que
reconhece o significado do “nós”.
Hall argumenta em favor do reconhecimento da identida-
de, mas não de uma identidade que esteja fixada na rigidez da
oposição binária “nós/eles”. Ele sugere que, embora seja cons-
truído por meio da diferença, diante do outro o significado não
é fixo. A posição de Hall enfatiza a fluidez da identidade. Ele
examina de uma forma um pouco mais profunda como o con-
ceito de identidade mudou, segundo ele, cumpre ressaltar que
as diferentes identidades estão relacionadas aos diferentes
significados e ocasiões vivenciadas pelas pessoas e pelos gru-
pos, no seio de cada cultura, compondo identidades múltiplas
e diferenciadas15.
Já no sentido do reconhecimento este ocorre no plano
pessoal e no plano social. No plano pessoal encontra-se emba-
sada em fatores culturais, construídos a partir da diferença
diante do outro, em que as pessoas devem ser reconhecidas
14
SILVA, Nelson do Valle. Uma nota sobre ‘raça social’ no Brasil. Caderno
Cândido Mendes. Estudos Afro-asiáticos, 26, 1995, pg. 38.
15
HAAL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz
Tadeu Silva: DP&A Editora. 7ª edição – São Paulo. 2005, pg.106.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1100
Thaís Kerber De Marco & Júlia Francieli Neves de Oliveira

pelas suas identidades individuais. Já no plano social abrange


desde as sociedades arcaicas até as mais recentes, havendo
um reconhecimento igualitário16.
Diante do reconhecimento da identidade e o reconheci-
mento das pessoas em seus diferentes grupos culturais, bem
como a evolução cultural identidária tanto no âmbito social
como também pessoal, o local onde as diferenças estão bas-
tante à mostra no cotidiano é o ambiente familiar. Para tanto,
apresenta-se a mediação como um instrumento eficiente na
solução dos conflitos familiares, promovendo um espaço de
bom relacionamento entre as pessoas através de um diálogo
respeitoso e ao debate das ideias diferentes, contribuindo para
a construção de uma identidade multicultural de paz dentro e
fora do âmbito familiar.

A CONTRIBUIÇÃO DA MEDIAÇÃO NAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA


A sociedade vem passando por inúmeras mudanças e
transformações culturais e sociais. Junto aos benefícios trazi-
dos pela modernidade ocorre também um aumento significati-
vo de conflitos entre as pessoas.
As relações sociais atualmente encontram-se corrompi-
das em uma sociedade individualista. As pessoas pensam so-
mente no seu próprio bem estar, o diálogo e a compreensão
estão sendo abolidos da vida cotidiana dando lugar para a ge-
ração de novos conflitos.
O poder judiciário encontra-se esgotado devido a grande
demanda de litígios que são postos a sua apreciação. As pes-
soas não conseguem mais resolverem seus próprios problemas
e buscam na justiça uma resposta ao conflito, que foi gerado
muitas vezes pela falta de comunicação e compreensão.
A cultura do conflito esta demasiadamente presente em
nossa sociedade. As pessoas quando estão a frente de um
problema ou conflito seja em âmbito pessoal ou coletivo, ten-

16
MORIN, Edgar. Sete saberes necessários à educação do futuro. São
Paulo: Cortez; Brasilia, DF: Unesco, 2000, pg. 162.
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1101
Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão...

dem a buscar o Poder Judiciário para proclamarem a justiça


que desejam. Warat17 menciona que para a cultura do litigio a
única realidade que importa é a que está nos processos.
Diferentemente com o que ocorre nos conflitos resolvidos
através da mediação, onde para resolver o problema entre as
partes o mediador realiza uma análise de como originou e se
desenvolveu o conflito e reconstrói os sentimentos corrompi-
dos e são as próprias partes que encaram a decisão que elas
mesmas escolheram como sendo o melhor caminho para resol-
ver aquilo que originou o conflito.
A mediação como forma alternativa de resolver conflitos
não se preocupa em regulamentar o direito e aplicar a justiça,
é uma forma de transformar o conflito através do bom sendo e
satisfazer a vontade de ambas as partes sem que tenha que
ser imposta alguma sanção18.
Princípios básicos de nossa Carta Magna são tratados na
mediação, tais como a cidadania, a democracia e os direitos
humanos propondo dessa forma uma melhor compreensão das
partes como seres humanos. Possibilitando na mediação uma
separação do lado emocional do lado econômico que envolve o
conflito para a partir de então verificar os benefícios trazidos
pela mediação19.
Destaca-se que a mediação envolve a democracia, a cida-
dania e a autonomia quando possibilita que as próprias partes
submetam-se a práticas que resolvam o conflito que os divide.
Conforme Warat20:
Falar de autonomia, de democracia e de cidadania, em
um certo sentido, é se ocupar da capacidade das pessoas

17
WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio!: Direitos humanos da
alteridade, surrealismo e cartografia. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2010,
p. 3.
18
WARAT, Luis Alberto. Em nome do acordo. A mediação no direito.
Almed, 2.e.d, 1999, p. 5.
19
CACHAPUZ, Rosane da Rocha. Mediação nos conflitos e direito de
família. Curitiba: Juruá, 2003, p. 136.
20
WARAT, Luis Alberto. Em nome do acordo. A mediação no direito.
Almed, 2.e.d, 1999, p. 7.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1102
Thaís Kerber De Marco & Júlia Francieli Neves de Oliveira

para se auto determinarem em relação e com os outros;


autodeterminarem-se na produção da diferença (produ-
ção do tempo com o outro). A autonomia como uma forma
de produzir diferenças e tomar decisões com relação à
conflitividade que nos determina e configura, em termos
de identidade e cidadania. Um trabalho de reconstrução
simbólica dos processos conflitivos das diferenças que
nos permite formar identidades culturais, - de nos inte-
grar no conflito com o outro-, com um sentimento de per-
tinência comum. Uma forma de poder perceber a respon-
sabilidade que toca a cada um num conflito, gerando de-
vires reparadores e transformadores.

É preciso a sociedade reconhecer a mediação como me-


lhor caminho para o alcance da cultura da paz para que todos
os cidadãos possam dispor de seus direitos e cumprir seus de-
veres perante o Estado Democrático de Direitos. Assim dispõe
Fuga21:
A evolução sociocultural-afetiva de uma sociedade é que
tornará a prática da mediação cada vez mais célere e le-
gitima. Mas não se trata de uma evolução ligada ao pro-
gresso, e, sim, à capacidade de a família entender e viver
a concepção de solidariedade e comunidade entre seus
próprios membros.

As famílias passaram e vem passando por constantes


transformações em sua estrutura e modo de organização e em
consequência disso aumentaram-se os conflitos no âmbito do
direito de família. A mediação destaca-se como meio eficaz na
resolução de tais conflitos, tendo em vista que a sua maioria é
envolvida por sentimentos frustrados e mal resolvidos.
A mediação segundo Warat22 envolve sentimentos. O me-
diador precisa interceder primeiramente no lado sentimental e
ajudar as pessoas a sentir seus próprios sentimentos e deixar

21
FUGA, Marlova Stawinski. Mediação Familiar: quando chega ao fim a
conjugalidade. Passo Fundo:UPF,2003, p. 80.
22
WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: ofício do mediador.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 26.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1103
Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão...

de lado o conflito. A partir daí o conflito vai se transformando.


Quando a intervenção do mediador acontece somente no con-
flito e não nos sentimentos, dificilmente as partes conseguirão
resolver os seus problemas.
O direito de família é envolvido por muitos sentimentos.
Tratar de mediação é tratar de sentimentos, por isso que ela
apresenta-se como uma prática excelente de resolução de con-
flitos familiares. Conforme Warat 23:
A mediação que aponta a sensibilidade, com a ajuda do
mediador, procura que as partes deixem de sentir o con-
flito a partir de seus egos. Tenta que as partes sintam o
conflito tendo por referência os sentimentos que guar-
dam em suas reservas selvagens. O ego e a mente tor-
nam amargurados e violentos os conflitos. A ira provém
da mente e do ego. O ego e a mente são geradores dos
conflitos interiores, instalando-se em nossa alma.

Vezzula24 menciona que as práticas da mediação vem se


destacando, pois possibilitam que nas relações interpessoais
as próprias partes encontrem soluções para os problemas cria-
dos. O mediador apenas prioriza um melhor entendimento da
questão posta em conflito e facilita a comunicação.
Os conflitos no âmbito familiar se mal resolvidos, podem
trazer consequências e danos que repercutem nas relações
interpessoais dos envolvidos e dificultam a convivência pacifi-
ca e o bom relacionamento. Por envolver sentimentos, não é
adequado resolver os conflitos familiares perante o Poder Judi-
ciário, tendo em vista que os sentimentos não serão analisados
e compreendidos em um processo judicial. Conforme Warat 25
“[...] para a cultura do litigio a única realidade que importa é a

23
WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: ofício do mediador.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 32.
24
VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e Prática da Mediação. Paraná:
Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil, 1998, p.15 e 16.
25
WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio!: Direitos humanos da
alteridade, surrealismo e cartografia. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2010,
p. 3.

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1104
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que esta nos processos. Uma ideia que resulta oposta à con-
cepção conflitológica da mediação [...]”.
Temos impregnado em nossa cultura o paradigma ga-
nhar-perder. Não tentamos mais resolver os conflitos e propor
soluções para os problemas, o litigio vem sendo o meio utiliza-
do como proteção e solução para os conflitos, onde sempre se
busca ganhador e perdedor e a lei é que direciona o sentido
que o conflito deve tomar 26.
A mediação usa a linguagem do amor para resolver con-
flitos, de modo que possa tocar o coração dos envolvidos cau-
sando sensibilidade e assim as partes são capazes de transmi-
tir o que sentem e entender o sentimento do outro. Os senti-
mentos negativos envolvidos no conflito só causam sofrimento
e não podem envolver os sentimentos puros e verdadeiros co-
mo é o caso do amor, usado na linguagem da mediação 27.
Nas relações familiares resolvidas perante o Poder Judi-
ciário todos os aspectos emocionais e sentimentais envolvidos
no conflito não são considerados pelo julgador, que apenas
analisará fatos descritos, e muitas vezes a decisão se torna
inútil e sem solução alguma, pois o conflito permanece e a de-
cisão não gera efeito algum 28.
Tratando-se de direito familiar, a mediação pode trazer
resultados que só tendem a beneficiar as partes envolvidas,
tendo em vista que facilita na resolução de controvérsias fami-
liares possibilitando um maior entendimento e compreensão.
Pois as relações familiares muitas vezes perduram, seja pela
convivência de anos, seja pelo laço familiar criado.
Todo e qualquer conflito familiar é repleto de sentimentos
reprimidos, amor, ódio, rancor, desprezo, raiva, todos esses
sentimentos ressentidos impossibilitam o diálogo e a compre-

26
CACHAPUZ, Rosane da Rocha. Mediação nos conflitos e direito de
família. Curitiba: Juruá, 2003, p. 131.
27
WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: ofício do mediador.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 29.
28
CACHAPUZ, Rosane da Rocha. Mediação nos conflitos e direito de
família. Curitiba: Juruá, 2003, p. 132-133.
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1105
Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão...

ensão e o conflito judicial é a forma que as partes encontram


para demostrar o que estão sentindo.
Nesse sentido, dispõe Luis Alberto Warat 29:
Nossa mente cria medos, ódios, ciúmes. Temos que im-
pedir que esses sentimentos (que nos fazem sofrer) criem
conflitos. Eles têm que ser vividos, temos que passar por
eles sem criar problemas. Os sofrimentos devem ficam
sempre na periferia do nosso ser, assim evitamos fazer do
sofrimento uma tortura continua para nossa alma. O re-
comendável é sofrer sem interpretar, sem criar teorias em
torno do nosso sofrimento. As teorias servem para es-
conder-nos do sofrimento e fugir da vida. Para não nos
escondermos é preciso começarmos por ser autênticos,
interior na raiva, na dor e no amor.

A mediação por meio do dialogo e da compreensão faz


com que as partes encontrem soluções pacificas para a ques-
tão conflituosa e proporciona contentamento entre os envolvi-
dos por estabelecer um acordo satisfatório devido a ter sido
resolvido conforme o desejo daqueles que fazem parte do con-
flito30.
Rozane da Rosa Cachapuz apud Jacqueline Mourret31
afirma que a mediação familiar “... é um estado de espírito, que
transforma em esperança o que era desespero, em recomeço o
que parecia fim”. Pois nas relações familiares o vínculo exis-
tente entre as partes é muito maior e mais forte do que os pro-
blemas discutidos no conflito e por essa razão devem ser re-
solvidos de forma pacifica através do diálogo para que haja
uma transformação não somente das partes como também do
conflito que as envolve.

29
WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: ofício do mediador.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 24.
30
SALES, Lilia Maia de Morais. Mediação de conflitos: Família, Escola e
Comunidade. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007, p. 142 .
31
CACHAPUZ, Rosane da Rocha. Mediação nos conflitos e direito de
família. Curitiba: Juruá, 2003, p. 134.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há muitas mudanças ocorrendo no mundo externo, e de-
vemos estar atentos a isso, pois a solução ocorrerá quando a
população se conscientizar que o caminho para os conflitos
familiares não é o litigio e sim a mediação.
Infelizmente, a cultura da litigiosidade é predominante no
Brasil, a nossa cultura ainda tem as amarras que impedem o
diálogo diante dos conflitos. A caminhada da mediação é lon-
ga, é incessante, e devemos ter esperança de que dias melho-
res virão, visando essa recompensa de poder compreender a
evolução sociocultural-afetiva de uma sociedade, evidenciando
na família sentimentos formadores de um caráter mais solidá-
rio e justo nas diferenças entre seus membros.
Assim afirma Warat32 “estamos falando de uma possibili-
dade de transformar o conflito e de nos transformar no conflito,
tudo graças à possibilidade assistida de poder nos olhar a par-
tir do olhar do outro, e colocarmo-nos no lugar do outro para
entendê-lo a nós mesmos”. A partir deste pensamento Warati-
ano observa-se a importância do apreço mútuo, da compreen-
são e do respeito às diferenças entre os membros familiares
bem como a relevância do vínculo familiar que muitas vezes é
perdido devido à falta de diálogo e entendimento dos membros
da família.
Desta forma a estratégia da mediação não é como o Poder
Judiciário que decide os conflitos através do juiz de direito e
da lei. Tal prática apenas facilita a resolução do conflito, as
próprias partes transformam e reorganizam o problema e ten-
tam interpretá-lo, de modo que possam se adaptar ao mundo
de transformações culturais33.
A mediação familiar trata das emoções que fazem parte
do problema a ser resolvido e confere importância as decisões
tomadas e possibilita uma comunicação adequada na resolu-

32
WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: ofício do mediador.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 62.
33
WARAT, Luis Alberto. Em nome do acordo. A mediação no direito.
Almed, 2.e.d, 1999, p. 9.
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25 e 26 de abril de 2013
1107
Mediação de conflitos como meio eficaz para compreensão...

ção do conflito levando em consideração que no âmbito famili-


ar são tratadas questões delicadas, tais como problemas afeti-
vos, psicológicos, relacionais, que merecem certo cuidado ao
serem discutidos e resolvidos 34.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Trad. Car-
los A. Medeiros. Rio de Janeiro; Zahar, 2012.
CACHAPUZ, Rosane da Rocha. Mediação nos conflitos e direito de
família. Curitiba: Juruá, 2003.
FUGA, Marlova Stawinski. Mediação Familiar: quando chega ao fim
a conjugalidade. Passo Fundo:UPF,2003.
GIDDENS. Anthony. A terceira via. Trad. Maria Luiza X. de A. Bor-
ges. 5ª edição. Editora: Record. Rio de Janeiro, S. Paulo, 2005.
HAAL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. To-
maz Tadeu Silva: DP&A Editora. 7ª edição – São Paulo. 2005.
LARAIA, Roque de B. Cultura: Um conceito antropológico. Rio de
Janeiro: Zahar, 1986.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: Como seguir cientistas e enge-
nheiros sociedade afora. Trad. De I. C. Benedetti, Ver. Jesus de P.
Assis. S. Paulo: Ed. UNESP, 2000.
MAGALHÃES, Lívia D. R. Cultura e aprendizagem social. In
LOMBARDI, José C.; CASIMIRO, Ana P. B. S. e MAGALHÃES, Lívia
D. R. (Orgs.). História, Cultura e Educação. Campinas, SP: Autores
Associados, 2006. (Coleção educação contemporânea).
MORIN, Edgar. Sete saberes necessários à educação do futuro. São
Paulo: Cortez; Brasilia, DF: Unesco, 2000.
SALES, Lilia Maria de Morais. Mediação de conflitos: família, escola
e comunidade. Florianópolis: Conceito editorial, 2007.
SILVA, Nelson do Valle. Uma nota sobre ‘raça social’ no Brasil. Ca-
derno Cândido Mendes. Estudos Afro-asiáticos, 26, 1995.
WARAT, Luis Alberto. Em nome do acordo. A mediação no direito.
2º ed. ALMED. 1999.

34
CACHAPUZ, Rosane da Rocha. Mediação nos conflitos e direito de
família. Curitiba: Juruá, 2003, p. 134.

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: o ofício do mediador.


Florianópolis. Fundação Boiteux, 2004.
WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio!: Direitos humanos da
alteridade, surrealismo e cartografia. Rio de Janeiro:Lumen Juris,
2010.
VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e Prática da Mediação. Paraná: Ins-
tituto de Mediação e Arbitragem do Brasil, 1998.

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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
ENTRE A ANEMIA ESTATAL E A ANOMIA
POLÍTICA : ENSAIO SOBRE AS
RESSIGNIFICAÇÕES DO ESTADO E DO
SUJEITO FACE OS DESAFIOS À
CONFORMAÇÃO DOS DISCURSOS EM TORNO
DE UMA SOCIEDADE [QUE SE PRETENDE ]
COSMOPOLITA E DEMOCRÁTICA

Thaisy Perotto Fernandes


Bacharel em Direito pela UNIJUÍ. Mestre em Direito pela UCS. Doutoranda
em Ciências Sociais pela UNISINOS.

Resumo
Perpassando, com horizontalidades e verticalidades, em perspectiva interdisciplinar,
a ciência jurídica e a ciência política, com algumas incursões à filosofia e à ‘física
social’, o ensaio traz, em linhas gerais, a reflexão sobre o Estado e sua
(re)configuração como centro de irradiação do poder, sobretudo face às instabilida-
des e aos novos cenários geopolíticos da ‘arena’ global. Tais remodelações ensejam a
revisitação aos principais elementos constitutivos que conformaram o ente estatal
na modernidade, emergindo ressignificações e fragmentações no núcleo e na perife-
ria dessa instituição. Nessa linha de ideias, as ‘crises do Estado’ são múltiplas e ex-
tensivas: questionam, em perspectiva teórico-conceitual, a definição tradicional;
perpassam o âmago da estrutura e da funcionalidade estatal; os modelos de repre-
sentatividade e de participação na esfera pública; e elucubram, sob o manto consti-
tucional, os condicionamentos institucionais das nações-Estado. Os propósitos cen-
trais conclamam a insurgência de uma ordem jurídica que suplante fronteiras e bar-
reiras burocráticas e culturais, legitimando as novas adjetivações ao Direito – ‘Cos-
mopolítico’, ‘Mundial’, ’Transnacional’, ‘Universal’... ante às evidências - nacionais e
globais, de uma ‘dimensione del vivere comune’. Talvez, em lugar apenas dos discur-
sos dos déficits democráticos e dos descompromissos ‘institucionalizados’ ou ‘her-
dados’, sobretudo no Brasil, possa surgir um horizonte positivo e faticamente demo-
crático. Nessa perspectiva, o resgate ao sujeito pode ser mirado como meio de diri-
mir descompassos locais e ‘além-mar’, freando políticas pautadas em lógicas exclu-
dentes, direcionadas a interesses privados e pragmaticamente utilitaristas, a partir
do momento em que o sujeito assim se reconhece e serve-se da solidariedade como
pressuposto de ação, da indignação [sem violência, mas verbalizada com veemência]
como meio de manifesto de suas insatisfações e da consciência da individualidade
mas também da pluralidade humana que habita em seu entorno como instrumento
de positiva transformação – pensar ‘outramente’ surge, pois, como reflexão derra-
deira desse breve ensaio.
Palavras-chave: Democracia. Estado Constitucional. Política. Soberania. Sujeito.
Transmodernidade.
1110
Thaisy Perotto Fernandes

Due sono le nozioni di politica e possono entrare in


rapporto. La prima è la cooperazione tra sodali, per creare
convivenza e inclusione sociale, cioè, secondo Aristotele,
amicizia. La seconda è conflito tra avversari per il
sopravvento, dove conquista ed esercizio del potere
pubblico sono la posta in gioco. Teniamo per ora sullo
sfondoquesta duplicità: convivenza e competizione [...] In
un'ideale società rigorosamente omogenea, composta di
esseri umani identici per capacità, ideali, interessi, gusti e
aspirazioni, l'adozione delle decisioni collettive potrebbe
essere affidata indifferentemente – da un estremo all'altro
- a un'assemblea che delibera all'unanimità o a unsingolo
che decide in generale, da solo e per tutti. Chi faccia parte
dell'assemblea o chi sia queto solitario legislatore sarebbe,
poi, del tutto indiferente; onde costoro potrebbero anche
scegliersi a caso, tirarsi a sorte. Situazioni di questo
genere si sono realizzatenel tempo della mitologia
constituzionale classica (alludo alla Costituzione degli
Ateniesi),in società che non conoscevano (o celavano
piuttosto le) differenze ed erano perciò felicissime (o, forse
piú verosimilmente, infelicissime). Non è evidentemente
cosí nelle tormentate società democratiche del nostro
tempo, segnate da differenze e divisioni d'ogni genere. Qui
sono oggetto della cura piú attenta non solo le procedure
di decisione ma, prima ancora quelle di selezione dei
governanti, poiché esse comportano selezione di interessi,
ideali e prospettive di vita collettiva. La deliberazione
all'unanimità, poi, è esclusa per l'evidente ragione che
l'assenza di omogeneità la renderebbe impossibile. La
delega casuale a un unico soggetto, infine, è scartataper il
carattere totalmente arbitrario che essa assumerebbe in
una società divissa. Non resta che fare ricorso alla regola
della maggioranza. Ma ciò comporta, come è statodetto,
che i regimi democratici celino una proprietà della quale
non si ama parlare volentieri: impongono alla minoranza
di piegarsi e accettare le decisioni della maggioranza. Può
questa imposizione essere incondizionata?
Possono ammettersi decisioni della maggioranza
totalmente ripulsive per la minoranza? (ZAGREBELZKY
Gustavo. In: ‘Intorno alla legge’)

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1111
Entre a anemia estatal e a anomia política

INTRODUÇÃO
[...] o Estado conhece um conjunto de mudanças que afe-
tam todos os seus elementos constitutivos; essas mu-
danças são vinculadas entre si, realimentando-se umas
às outras; elas são indissociáveis das mudanças mais
amplas que afetam a sociedade em seu conjunto; elas
não são apenas superficiais, epidérmicas ou “cosméti-
cas”, mas se traduzem, efetivamente, numa nova confi-
guração estatal. [...] a hipótese de surgimento de um Es-
tado pós-moderno não é minimamente invalidade, antes
é reforçada pela crise mundial: mesmo que o mito de uma
“mundialização feliz” tenha sido fortemente abalado, o
processo deve ter seguimento conduzindo a uma inter-
dependência cada vez maior dos Estados; e se esses são
conduzidos a intervir mais ativamente na Economia para
remediar os efeitos deletériosda crise, essa intervenção
não significa minimamente que eles sejam isoladamente
capazes de a ela responder.
O Estado pós-moderno permanece, então, um Conceito
pertinente para evidenciar a medida das mudanças que
afetam a consistência e a forma dos Estados contempo-
râneos. ( CHEVALLIER, Jacques. In: ‘O Estado Pós-Moderno’)

Como ponto de partida destas reflexões que se confor-


mam neste breve trabalho acadêmico, a pesquisa toma como
premissa inicial a discussão em torno das rupturas e dos con-
dicionantes que levaram à discussão em torno da fragilidade
das instituições estatais, visando salientar a importância do
discurso relacionado à ‘agonia’ vivida pelos Estados no hori-
zonte da modernidade. O intuito é apresentar, sem amiúdes, o
debate acerca do perfil do Estado contemporâneo e a “ago-
nia/crise” vivenciada pelo mesmo; a segunda busca adentrar
especificamente na crise de soberania e estrutural, trazendo a
questão das migrações entre nações como exemplo fático da
ausência ou ineficaz presença do Estado nos dias atuais. Na
fase derradeira da pesquisa, buscar-se-á na história alguns
parâmetros para trabalhar a crise de representatividade, espe-
cialmente no Brasil e caminhos possíveis para o amanhã.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1112
Thaisy Perotto Fernandes

Primeiramente, a problemática que se apresenta leva em


conta dimensões conceituais e perpassa a ressignificação da
tradicional definição do Estado face a inúmeros processos que
colocam em xeque a dimensão do poder e dos limites de seu
exercício. Nesse sentido, “soberania”, desde seu nascedouro
representa um símbolo do poder característico da autoridade
estatal, e reflete, nas palavras de Bolzan de Morais, a ideia de
sua “absolutização e perpetuidade”. Não obstante, justamente
tais dimensões – absolutização e perpetuidade, Chevalier sou-
be bem apresentar – com o olhar nos tempos atuais, sejam eles
pós-modernos ou ‘transmodernos’ – termo este cunhado por
Warat. Igualmente Ferrajoli e Pietro Costa serão importantes
perspectivas teóricas nessa análise.
A Constituição, enquanto documento jurídico-político,
nasce e efetiva-se de forma peculiar – a conexão entre poderes
(legislativo, executivo, judiciário) permeiam sua existência. O
que se discute, em linhas pontuais, é igualmente a confluência,
a ambivalência ou mesmo a ingerência desses poderes nos
dias que se seguem – e como a confabulação entre essas três
esferas corrobora para a consolidação do Estado constitucional
ou demarca uma espécie de “autofagia” de seus postulados,
pondo em suspenso igualmente a clássica formulação tripartite
consagrada por Montesquieu e que hoje é (re)discutida por
tantos outros.
Subsequentemente, as questões relacionadas à esfera do
poder delineiam a sequência do ensaio. Em Jean Bodin e Tho-
mes Hobbes colhe-se a herança das primeiras manifestações
acerca do “reino encantado” – a soberania ‘real’ e ‘teorizada’.
Isto posto, o recorrente fluxo migratório entre os povos das na-
ções do globo ensejam a elucidação dos discursos em torno da
transcendência do Direito face o esboroamento das fronteiras,
a existência de um corpo normativo que conforme-se à essas
remodelações geopolíticas ensejadas por fatores variados.
Delmas-Marty, Höfre e Zizek representam possíveis de análise.
A dimensão que perpassa o sujeito mas que mira a cole-
tividade traz o embate sobre a possibilidade de os ventos ‘do
norte e do sul’ auxiliarem e/ou forjarem a constituição de uma
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1113
Entre a anemia estatal e a anomia política

ordem democrática em dimensões globais. A par disso, as di-


versas adjetivações que o “poder do povo” tem recebido dos
eminentes estudiosos da atualidade servem como premissa
para a discussão da sua existência – formal e prática – na soci-
edade brasileira. Legados teóricos de Warat são trazidos e ‘li-
teralizados’ neste ensaio, somados a olhares de Carvalho, Mar-
tins e Saramago. O resgate do sujeito, propugnado por Boaven-
tura, Morin e Touraine são, nessa linha de ideias, evidencia-
dos, eis que impulsionam a remodelar o ‘estado atual das coi-
sas’, a resgatar o sujeito, e outros autores elucidam a necessi-
dade de redimensionar a estrutura social e estatal brasileira e
a reescrever o devir sem o ‘peso’ ou a ‘desculpa’ do passado.
Pensar ‘outramente’ remonta não só como possibilidade, mas
com um ‘q’ de imprescindibilidade.

(TRANS)MODERNIDADE – A DIMENSÃO TEMPORAL COMO


PERSPECTIVA DE ANÁLISE
A transmodernidade, em seu sentido positivo, é uma or-
dem política com alta carga afetiva, que exprime certas
atitudes com relação a um passado que requer algumas
distâncias. E o desejo de uma descontinuidade frente a
uma forma de vida que está determinando uma série de
efeitos sombrios. Seria uma ruptura da continuidade mo-
derna que tenta encontrar seu próprio caminho por meio
de uma apropriação reflexiva da história e por uma análi-
se prospectiva sobre os perigos do amanhã. O traanss-
modernismo representa um impulso de emancipação pro-
tegido pela crítica às idealizações criadas pelo projeto da
modernidade. Uma negativa ao santuário da razão. Supõe
a ruptura das condições que determinam a construção-
das identidades na modernidade. Acompanhando os
surdos da racionalidade moderna, surgem atitudes
“trans” que reivindicam umaimpostergável reconstrução
do homem e da sociedade. Não é fácil identificar as frentes.
Existe unicamente a unanimidade no desejo de tentar re-
alizar um projeto deautonomia sem mitos devoradores.
Por trás do sentido emancipatório da transmodernidade,
existe o desejo de reconstrução de mundos vitais.

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1114
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Possivelmente uma crítica a um exagerado aburguesa-


mento da razão e de seus espaços vitais alienados.
(WARAT, Luis Alberto. In: ‘Porque cantam as sereias’)

A máxima de que “nem tudo se perde, muito se transfor-


ma” amolda-se perfeitamente ao ‘homo sapiens’. Após o no-
madismo, o sedentarismo... após a observação do tempo e do
clima, o cultivo, a criação de animais e, a partir do momento
em que tomou-se com afinco a ordem de “multiplicai-vos...”,
instrumentos de regulação social fizeram-se necessários. Ain-
da na antiguidade, de forma rudimentar, esculpiam-se nas pe-
dras regras para direcionar a conduta e harmonizar o convívio.
A demarcação dos primeiros territórios e segmentação, ainda
períodos pré-monárquicos, ensejaram o nascimento do que se
convencionou - Estado.
O que importa extrair dessas primeiras laudas é que o
tempo está intrinsecamente ligado ao processo civilizatório,
conforme bem salienta Elias. E a transposição de uma parte da
história a outra também leva em consideração, além de fatos,
“aprisionamentos temporais”, delimitando, historicamente, o
surgimento de uma nova “Idade”. Nesse diapasão, elucida que
a percepção de eventos que se produzem, “[...] “sucedendo-se
no tempo” pressupõe, com efeito, existirem no mundo seres
que sejam capazes, como os homens, de identificar em sua
memória acontecimentos passados, e de construir mentalmen-
te uma imagem que os associe a outros acontecimentos mais
recentes, ou que estejam em curso1.” (2008, p. 33).

1
Com outras palavras, Elias alude que “[...] a percepção do tempo exige
centros de perspectiva — os seres humanos — capazes de elaborar uma
imagem mental em que eventos sucessivos, A, B e C, estejam presentes
em conjunto, embora sejam claramente reconhecidos como não simultâ-
neos. Ela pressupõe seres dotados de um poder de síntese acionado e
estruturado pela experiência. Esse poder de síntese constitui uma espe-
cificidade da espécie humana: para se orientar, os homens servem-se
menos do que qualquer outra espécie de reações inatas e, mais do que
qualquer outra, utilizam percepções marcadas pela aprendizagem e pela
experiência prévia, tanto a dos indivíduos quanto a acumulada pelo lon-
go suceder das gerações. É nessa capacidade de aprender com experi-
ências transmitidas de uma geração para outra que repousam o aprimo-
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1115
Entre a anemia estatal e a anomia política

No transcurso da modernidade, o indivíduo teve um sin-


gular papel, sendo o protagonista de seu meio e das relações
sociais. Também traz em si processos de rupturas e desconti-
nuidades, fazendo emergir múltiplos olhares sobre algumas
verdades “absolutas”, progressos lineares e mesmo sob a pre-
valença da racionalidade. Não obstante, representou a erupção
de determinados valores ético-políticos (liberdade, igualda-
de...) que embasavam a sociedade burguesa, e que permitiram
ao indivíduo mirar no horizonte e comparar valores pessoais
com os da coletividade.Nesse condão de pensamento emerge
mais a noção de continuidade do que cisão total ou diferença
abissal entre os termos “modernidade” e “pós-modernidade”.
Enfim, ilumina-se a então obscura expressão encontrada em
alguns autores de que “para ser moderno antes é preciso ser
pós” e a reflexão de que, de certa maneira, o “pós” pode ser a
“reescritura” do moderno, ou, mais além, ser fruto de eventuais
crises e fragmentações da sua “aparente solidez”2.
Para além desse recorte da trajetória humana, encontra-
se em vários autores distintas adjetivações aos tempos con-
temporâneos. Ao dissertar sobre essa questão, Warat apresen-
ta a expressão “transmodernidade3“. A par desse breve intrói-

ramento e a ampliação progressivos dos meios humanos de orientação,


no correr dos séculos. É essa função de meio de orientação que hoje
concebemos e experimentamos como sendo o ‘tempo’” (1998, p. 33).
2
[...] a realidade complexa em que vivemos não encontrou ainda palavras
capazes de defini-la. O filósofo francês Jean-François Lyotard, que de-
fende o argumento de que vivemos numa era de transição, afirma que o
pós-moderno não é uma noção autônoma, pois ela só sés define em rela-
ção ao moderno. Para Lyotard, onde há modernidade há pós-moderno
nele contido, “porque todo modernismo contém a utopia de seu final”.
(CARMO, 2007, p. 180).
3
Em sua nada vã filosofia enfatiza que a mesma:[...] não é somente um
“cambalacho” de trivialidades e simulacros, também é a expressão do
novo e do criativo. No saber transmodero, as verdades relativizam-se, as
certezas entram em declive e as convicções que nos iludiram com a ple-
nitude desvanecem-se. Já não há espaço para cultivar as utopias perfei-
tas, o fazer da expectativa revolucionária, uma princesa prometida. Está
começando o eclipse do império dos sentidos já-ditos desde sempre. Um
eclipse que deve ser aproveitado por um trabalho de criatividade para
intensificar o olhar crítico. Isso significa uma aposta nas excelências da

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1116
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to, segue-se o que mais importa – delinear a conexão entre a


modernidade e seu horizonte e as rupturas e remodelações
sofridas pelas instituições estatais ao longo desse processo –
acabado, inacabado ou sequer realizado. Se para Latour “ja-
mais fomos modernos”, não há cientista político que possa
afirmar com tal veemência que “jamais tivemos Estado sob o
nosso céu”. O que se pode perquerir é “qual Estado?”, assim
como “o que vem depois da modernidade?”...
Nesse sentido, os estudos do francês Jacques Chevalier
(2009)4 pautam-se em refletir sobre as questões afetas ao “Es-
tado”, sobremaneira indagando das transformações, em distin-
tos graus, pelos quais sofreram, desde seu nascedouro, e,
igualmente, sob quais princípios foram constituídos. Sobretudo
em momentos de transição-confluência-superação da moder-
nidade, necessário repensar a concepção tradicional de Estado
e munir-se de novos instrumentos de análise – eis a principal
proposta do autor. Caracterizada pelo império da razão e do-
minada pela figura do indivíduo, o Estado inscreve-se plena-
mente na lógica da modernidade. Configurando-se em elemen-
to de racionalização da organização política, nas palavras de
Chevalier, ele possibilita a realização de um subliminar com-
promisso entre “[...] o primado atribuído ao indivíduo e a ne-
cessidade de criação de uma ordem coletiva; o Estado não é
nada além de um artefato (o Leviatã) e o poderio soberano de
que é investido não é senão [...] a expressão do poderio coleti-
vo detido pelos cidadãos.” (2009, p. 15).
Nessa linha de ideias, características essenciais do mode-
lo estatal representam a tradução dos valores subjacentes à
modernidade: a institucionalização do poder (dominação polí-
tica e impessoalidade); a produção de um novo quadro de

autonomia como produtora da subjetividade. Nesse ponto, um rechaço


da catástrofe como expressão do abandono das visões completas e o
ataque aos intelectuais que se apoderaram das verdades. Os donos do
saber, frequentemente, usam a palavra “catástrofe” para referir-se à
perda de seu império. (2004, p. 396).
4
Os parágrafos subsequentes foram elaborados com base na leitura da
obra: CHEVALIER, Jacques. O estado pós-moderno. Trad. Marçal
Justen Filho. Belo Horizonte: Forum, 2009.
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1117
Entre a anemia estatal e a anomia política

submissão (cidadania = ligação excludente); o monopólio da


força (Estado = fronteiras delimitantes de sua soberania); o
princípio fundamental de unidade (unidade de valores resul-
tante da pertinência a uma esfera pública posta como distinta
do resto da sociedade). A difusão desse modelo estatal à esca-
la planetária fez-se com significativas distorções, representan-
do um processo de imposição de valores ocidentais da moder-
nidade que, na visão de Giddens (1990) resultaria da intersec-
ção de três fatores: a dissociação do tempo e do espaço; a des-
localização dos sistemas sociais – por meio da criação de ga-
rantias simbólicas; a reflexividade institucional.
As metamorfoses ocorridas no horizonte da modernidade
traz primeiramente a discussão acerca o que esse representa-
ria. Há que se acautelar em propagar a ideia da pós-
modernidade a todo planeta, eis que o processo de globaliza-
ção não exclui a persistência de configurações sociais signifi-
cativamente distintas. Também há que se vigiar em não emitir
juízos de valor, dotando a sociedade pós-moderna de todas as
suas virtudes, eis que inquietudes e nebulosidades permane-
cem no âmago das sociedades. Compreende-se, no entanto,
que o Estado não teria como escapar ao movimento que agita
as sociedades que entraram na era da pós-modernidade – mu-
danças que afetam todos os seus elementos constitutivos,
sendo vinculadas entre si e “retroalimentando-se”. São mu-
danças, portanto, não “superficiais, epidérmicas ou cosméti-
cas”, mas que remodelam significativamente ou mesmo tradu-
zem uma nova configuração estatal. (CHEVALIER, 2009).
O conceito de “Estado pós-moderno” tem por função es-
sencial fornecer um quadro de análise das transformações que
sofre a forma estatal. No ocidente, a mudança é mais perceptí-
vel, em outros, as situações são significativamente antagôni-
cas. Chevalier salienta igualmente que os estados contempo-
râneos podem dividir-se em três grupos: os “pré-modernos” (a
exemplo do Afeganistão, Somália e Libéria); os “modernos” (a
exemplo da Índia, China e Brasil) e os “pós-modernos” (alguns
países europeus, os Estados Unidos – países onde a soberania
tende a dar lugar a uma nova lógica de interdependência e
cooperação).
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1118
Thaisy Perotto Fernandes

A complexidade dos dias atuais é fruto da intersecção de


vários atores e fenômenos que compõem o sistema social. As-
sim, é pouco cauteloso estudar especificidades desconside-
rando-se o entorno e as interligações com os demais subsiste-
mas. E as questões que se inserem no âmbito estatal são um
claro exemplo dessa sistêmica e necessária análise. Na mesma
linha de ideias, Bolzan de Morais salienta que tais alterações
são significativas ao ponto de fomentarem a discussão sobre
“crise(s)5“, supostamente “[...] frente à desconstrução de para-
digmas que orientaram a construção dos saberes e das insti-
tuições da modernidade, projetando um conjunto de respostas
as mais variadas para o enfrentamento e/ou o tratamento das
desconstruções próprias destes tempos (pós) modernos”.
(2005, p. 9).
Mas... como bem salientou o “ultrapassado” Marx: “tudo
que é sólido se desmancha no ar”... Nesse sentido, Roth (2010,
p. 17-18) explica que a atual crise do Estado é um indicativo de
que mecanismos de regulação (econômicos, sociais, jurídicos)
estão obsoletos face às novas conjecturas. Em suas palavras:
“O Estado Nacional já não está em capacidade de impor solu-
ções, seja de um modo autoritário, ou seja em negociação com
os principais atores sociopolíticos nacionais, aos problemas
sociais e econômicos atuais.”
A globalização, para Chevalier (2009, p. 38) exerce um
efeito dissolutivo sobre a soberania estatal de três maneiras:
5
A esse respeito, esclarece Cassese que desde o século XX discute-se
sobre a “crise do Estado”. Em suas palavras: “Falou-se primeiramente
em crise quando surgiram organismos potentes, como sindicatos e gru-
pos industriais, que questionaram a soberania interna do Estado. Em
seguida, a expressão “crise do Estado” servi para indicar a criação dos
poderes públicos internacionais, que são instituídos pelos Estados, mas
acabam por mantê-los sob controle. O terceiro e mais recente significado
refere-se à inadequação dos serviços estatais em relação às expectati-
vas dos cidadãos e da sociedade em geral. Há ainda outra acepção, mais
semântica, que indica a crise da palavra “Estado” que foi se estendendo
até definir muitas entidades e acabou se tornando inútil, como todas as
palavras polissêmicas. Por fim, nos últimos anos, a expressão tem sido
usada para indicar a diminuição das atividades estatais, por meio de
privatizações e concessão de entidades do Estado a sujeitos privados”.
(CASSESE, 2010, p. 13).
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1119
Entre a anemia estatal e a anomia política

reduz a margem de liberdade dos Estados; favorece o aumento


de poderio de novos atores, que põem fim ao monopólio tradi-
cional detido pelos Estados nas relações internacionais; impõe
a constituições de entidades mais amplas – o Estado não dis-
põe de poderio supremo, daquela autoridade sem comparti-
lhamento que eram reputados serem de sua identidade. Nessa
nova lógica, ressalta que sob o assento colocado sobre o direi-
to internacional e à aceitação do multilateralismo, a interde-
pendência tornou-se um dos dados fundamentais que coman-
dam a construção da nova ordem internacional6.
Estar-se-ia, pois, frente a uma discussão que envolve o
plano interno e externo das instituições estatais. Nesse diapa-
são, a soberania “pós-moderna” apresenta-se com fronteiras
geográficas que tenderiam a ser mais flexíveis e, no foco das
relações internacionais, a questão insere-se na discussão so-
bre a capacidade de autodeterminação dos respectivos esta-
dos7. Sob a ótica interna (ZABREBELSKY, 2003, p. 10-11), a so-
berania indicava “la inconmensurabilidad del Estado” frente a

6
Nas palavras de Ferrajoli, essa crise seria aleatória, verticalizando-se de
‘cima para baixo’ e de ‘baixo para cima’: “O Estado nacional como sujei-
to soberano está hoje numa crise que vem tanto de cima quanto de bai-
xo. De cima, por causa da transferência maciça para sedes supra-
estatais ou extra-estatais (a Comunidade Européia, a OTAN, a ONU e as
muitas outras organizações internacionais em matéria financeira, mone-
tária, assistencial e similares) de grande parte de suas funções – defesa
militar, controle da economia, política monetária, combate à grande cri-
minalidade -, que no passado tinham sido o motivo do próprio nascimen-
to e desenvolvimento do Estado. De baixo, por causa dos impulsos cen-
trífugos e dos processos de desagregação interna que vêm sendo enga-
tilhados, de forma muitas vezes violenta, pelos próprios desenvolvimen-
tos da comunicação internacional, e que tornam sempre mais difícil e
precário o cumprimento das outras duas grandes funções historicamen-
te desempenhadas pelo Estado: o da unificação nacional e a da pacifica-
ção interna.” (2007, p. 48-49).
7
No ensinamento de Bolzan de Morais, “A interdependência que se esta-
belece contemporaneamente entre os Estados-nação aponta para um
cada vez maior atrelamento entre as ideias de soberania e de coopera-
ção jurídica, econômica e social, por um lado, e o de soberania e de in-
tervenção política, econômica e/ou militar, de outro, o que afeta drasti-
camente a pretensão à autonomia em sua configuração clássica. “ (2011,
p. 22, grifo nosso).

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1120
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qualquer sujeito, e, por derradeiro, a não possibilidade de rela-


ções jurídicas entre ambos – a hierarquia do soberano e as re-
lações de sujeição eram a regra. Sob a perspectiva externa, os
Estados apresentavam-se como “fortalezas”, protegidos pelo
princípio “de la no ingerencia”. Ocasionalmente, no entanto,
poderiam ocorrer lutas entre soberanias (guerras) ou mesmo
travar-se espontaneamente relações horizontais entre Estados
(tratados internacionais, por exemplo). O princípio da sobera-
nia embasou a construção do direito público do Estado moder-
no e, do ponto de vista jurídico, a soberania se expressava me-
diante “la reconducçión de cualquier manifestación de fuerza
política a la ‘persona’ soberana del Estado [...] El derecho rela-
tivo a esta ‘persona’ soberana a sus ‘órganos’ era el derecho
del Estado”. (2003, p. 11)8.
Sob o circuito que se delineia no âmbito do direito inter-
nacional, as linhas argumentativas de outrora já não se amol-
dam aos tempos contemporâneos. Entre novos fatos e velhas
promessas ‘apenas prometidas’, Ferrajoli enfatiza que a sobe-
rania externa do Estado sempre teve como sua principal justi-
ficação a necessidade da defesa contra inimigos externos. Ho-
je, a “[...] diminuição dessa necessidade devido ao fim dos blo-
cos contrapostos, a intensificação das interdependências e
também as promessas não mantidas do direito internacional”9

8
Para o jurista italiano, destacam-se alguns fatores que, desde o final do
século XX, tem atuado como “forças corrosivas” à soberania, quais se-
jam: “[...] el pluralismo político y social interno, que se opone a la idea
misma desoberanía y de sujeción; la formación de centros de poder al-
ternativos y concurrentes con el Estado, que operan en el campo político,
económico, cultural y religioso, con frecuencia em dimensiones totalmen-
te independientes del território estatal; la progresiva institucionaliza-
ción, promovida a veces por los propios Estados, de “contextos” que inte-
gran sus poderes en dimensiones supraestatales, sustrayéndolos así a la
disponibilidad de los Estados particulares; e incluso la atribución de de-
rechos a los indivíduos, que pueden hacerlos valer ante jurisdicciones
internacionales frente a los Estados a los que pertencen. (2003, p. 11-12,
grifo nosso)”.
9
A essas, inserem-se todas elas inscritas naquele pacto constituinte que
é a Carta da ONU: a paz, a igualdade, o desenvolvimento, os direitos
universais dos homens e dos povos) estão, ainda nas palavras de Ferra-
joli “[...] produzindo uma crise de legitimação desse sistema de sobera-
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1121
Entre a anemia estatal e a anomia política

acabam por produzir uma crise de legitimação desse sistema


de soberanias desiguais e de relações cada vez mais assimé-
tricas entre países ricos e países pobres, em que a comunidade
internacional se transformou: “[...] um sistema que não parece
ser tolerável, a longo prazo, pelos próprios ordenamentos polí-
ticos dos países avançados, que baseiam sua identidade e le-
gitimação democrática justamente naquelas mesmas promes-
sas e no seu universalismo”. (2007, p. 47-48).
Ao dissertar sobre o recuo da soberania, Cassese (2010,
p. 55) esclarece que é preciso mirar com parcialidade o Estado
soberano como aquele que “controla a força, domina a tecno-
logia e a economia e que reconhece apenas instituições iguais
– ou seja, outros Estados.” A instituição estatal, que até então
detinha o poder regulatório sob sua égide, abre aos ‘novos ato-
res10’ globais grande parcela de poder, de onde evidencia-se a
reflexão acerca de seus limites e de sua autonomia.

‘DIMENSIONE DEL VIVERE COMUNE’: A TRANSCENDÊNCIA


GEOGRÁFICA E A EMERGÊNCIA DE UM “DIREITO UNIVERSAL”
Para conjurar a intolerância e a injustiça, o direito não é
uma fonte toda poderosa, mas ele não é impotentepara
não se enganar de objetivo. O objetivo de um direito

nias desiguais e de relações cada vez mais assimétricas entre países ri-
cos e países pobres, em que a comunidade internacional se transformou:
um sistema que não parece ser tolerável, a longo prazo, pelos próprios
ordenamentos políticos dos países avançados, que baseiam sua identi-
dade e legitimação democrática justamente naquelas mesmas promes-
sas e no seu universalismo”. (2007, p. 47-48).
10
A esse respeito esclarece Bolzan de Morais (2011, p. 35) que “as chama-
das comunidades supranacionais ou, mesmo, os espaços regionais – Co-
munidade Econômica Européia/CEE/União Européia, Nafta, Mercosul,
CAN, etc. – particularmente a primeira, impõem uma nova lógica às rela-
ções internacionais e, conseqüentemente atingiram profundamente as
pretensões de uma soberania descolada de qualquer vínculo, limitação ou
comprometimento recíproco. O que se percebe, aqui, é que uma radical
transformação nos poderes dos Estados parte destas estruturas de cará-
ter supranacional, especialmente no que se refere a tarifas alfandegárias,
aplicação de normas jurídicas de direito internacional sujeitas à aprecia-
ção de Cortes de Justiça supranacionais, emissão de moeda, alianças mi-
litares, acordos comerciais e, particularmente, direitos humanos.”

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1122
Thaisy Perotto Fernandes

mundial não é, por certo, o desaparecimentodos Estados


e do direito nacional.
As instituições estatais permanecem indispensáveis para
conter a extensão dos laços de interesses privados e or-
ganizar os direitos individuais e coletivos, como demons-
tra a tragédia dos povos sem Estado para epresentá-los.
É por isso que oobjetivo não pode ser concebido, no es-
tágio atual do mundo, sobre um modelo federal,nem co-
mo confederado.[...] gostaria de precisar um modelo se-
gundo dois eixos nos quais se encontrará o tema do plu-
ralismo ordenado. De um lado, o eixo do pluralismo, que
convida a imaginar, no plano mundial, estruturas (às ve-
zes para instituições públicas e para a sociedade civil)
que sabemutilizar noções políticas, como a subsidiarie-
dade, ou jurídicas, como a margem nacional de aprecia-
ção, para conjurar democracia e pluralismo. Mas o risco
vem [...]da justaposição, de dispersão ou mesmo de cre-
pitação [...]. Daí a necessidade de um segundo eixo, para
ordenar não apenas a multiplicidade das normas combi-
nando,como se propôs mais acima, unificação e harmoni-
zação, mas também o pluralismo dos Estados e da socie-
dade democrática.Ordenar o pluralismo determinando os
limites, as fronteiras que devem restar intransponíveis,
porque franqueá-las signiifcaria destruir a própria ideia
de humanidade. [...] É integrando essa categoria jurídica
nova “da humanidade”, a fim de conjurar não apenas
democracia e pluralismo, mas também democracia e hu-
manidade, que se poderá tentar conquistar a democracia.
(DELMAS-MARTY, Mireille. In: ‘Três desafios para um
Direito Mundial’)

Há que se ter discernimento de que as circunstâncias vi-


venciadas contemporaneamente apresentam-se como um perí-
odo de crise não menos radical do que aquela pela qual o
mundo passou há quatro séculos, quando nasceu na Europa o
Estado moderno e a comunidade internacional dos Estados
soberanos11.

11
O poder destrutivo das armas nucleares, as agressões sempre mais ca-
tastróficas ao meio ambiente, o aumento das desigualdades e da misé-
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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Entre a anemia estatal e a anomia política

Em tempos “globalizados”, essas mudanças são ainda


mais significativas e ante a “virtual diminuição territorial” que
supera a dimensão estritamente mercadológica, as implica-
ções se dão em proporções ‘além mar’, em várias esferas das
sociedades organizadas, da quase totalidade de nações do
globo. Inúmeras são as indagações circundantes a esta temá-
tica, e consubstanciam-se no fato de que não há como se lan-
çar dados palpáveis e concretos sobre o devir deste fenômeno.
Em verdade, a globalização denota um enigmático paradoxo:
inúmeros são os riscos inerentes, mas também presentes in-
comensuráveis oportunidades12.

ria, a explosão dos conflitos étnicos e intranacionais dentro dos próprios


Estados tornam o equilíbrio internacional e a manutenção da paz cada
vez mais precários. Por outro lado, o fim dos blocos e, ao mesmo tempo,
a crescente interdependência econômica, política, ecológica e cultural
realmente transformam o mundo, apesar do aumento de sua complexi-
dade e de seus inúmeros conflitos e desequilíbrios, numa aldeia global.
Hoje, graças à rapidez das comunicações, nenhum acontecimento no
mundo nos é alheio e nenhuma parte do mundo nos é estranha. É exa-
tamente a soma desses fatores que torna hoje mais urgente e, simulta-
neamente, mais concreta do que em qualquer outro momento do passa-
do, a hipótese de uma integração mundial baseada no direito. (2007, p.
47).
12
Ao ressaltar a harmonização necessária para a condução do processo
que liga o Direito a essa dimensão global, Delmas-Marty aduz que
A humanidade tem, contudo, péssima reputação. Alguns vêem nela um
risco de totalitarismo que solapa o homem, em nome do progresso da
humanidade, enquanto que, para outros, é uma noção profundamente
subversiva que conduz todo direito a um fundamentalismo dos direitos
do homem, pouco compatível com a soberania dos Estados. Sem esque-
cer o sentimentalismo um pouco tonitruante de uma geração humanitá-
ria, cuja solidariedade tomou a forma de uma ‘imensa maternidade’. To-
dos os ‘ismos’ do mundo, se ajudam a evitar os percalços, não devem fa-
zer com que se abandone o projeto de conjugar democracia e humani-
dade, pois, além do pluralismo e da tolerância, há o intolerável. E a única
resposta ao intolerável é o repúdio, justamente em nome da humanida-
de. Resta saber como construir democraticamente nosso repúdio, orga-
nizá-lo com capacidade de resistência que seria, em suma, o ponto cul-
minante de um lento processo de harmonização que começa na pré-
história e permanece sem dúvida inacabado (DELMAS-MARTY, 2003, p.
181).

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Ao refletir sobre a “politização do sujeito” e a “(des)po-


litização do Estado”, várias dimensões de análise se fazem ne-
cessárias. A constituição de uma ordem democrática em di-
mensões globais ser possível – plausível ou urgente é uma de-
las. Nesse sentido, Höfre ensina que, o processo de reinstaura-
ção da democracia, que se impôs em parte contra o feudalismo
e em parte contra o absolutismo, “teve o status de uma segun-
da revolução democrática.” Diante dela, a formação de um Es-
tado Democrático de Direito e constitucional com dimensões
globais, uma “República Mundial subsidiária e federal, signifi-
ca a terceira revolução democrática”. Ao contrário da Revolu-
ção Francesa, ela não surge como uma grande transformação
semelhante a um
[...] ataque-surpresa, nem provocando múltiplas i njusti-
ças por meio da astúcia e da violência. Para fugir a situa-
ções como as protagonizadas pelo Terror jacobino e os
violentos atos ocorridos durante e após a Revolução Rus-
sa, esta terceira revolução acontece pela via das refor-
mas13 [...]

A lição de Ferrajoli é no sentido de repensar o Estado em


suas relações externas à luz do atual direito internacional não
é diferente de pensar o Estado em sua dimensão interna à luz
do direito constitucional. Em outras palavras, analisar as con-
dutas dos Estados “[...] em suas relações entre si e com seus
cidadãos – as guerras, os massacres, as torturas, as opressões
das liberdades, as ameaças ao meio ambiente, as condições de
miséria e fome nas quais vivem enormes multidões de seres
humanos -, interpretando-as não como males naturais e tam-
pouco como simples “injustiças”, quando comparadas com

13
Seja qual for a forma mais próxima assumida pela República Mundial,
existe uma crítica-padrãocontra ela: enquanto ideal, ela estaria distante
da vida. [...] é possível rebater o ceticismo, o que nos leva a repetir a
pretensão normativa: a globalização múltipla cria ou reforça uma neces-
sidade de ação que, se atender às pretensões de Direito, Justiça e De-
mocracia, exigirá uma ordem básica que substituirá a violência pelo Di-
reito, vinculará o Direito a princípios de Justiça e deixará o Direito justo
a cargo de uma República Mundial subsidiária e federal.”
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Entre a anemia estatal e a anomia política

uma obrigação utópica de ser moral ou política, mas sim como


violações jurídicas reconhecíveis em relação à obrigação de ser
do direito internacional vigente, tal como ele já está vergado
em seus princípios fundamentais (2007, p. 46).

RESIGNADOS, INDIGNAI-VOS! O HOMO POLITICUS E OS


(DES)CAMINHOS DEMOCRÁTICOS DA ATUALIDADE
É verdade, os motivos para se indignar atualmente po-
dem parecer menos nítidos, ou o mundo pode parecer
complexo demais. Quem comanda, quem decide? Nem
sempre é fácil distinguir entre todas as correntes que nos
governam. Não lidamos mais com uma pequena elite cu-
jas ações entendemos claramente. É um vasto mundo, no
qual sentimos bem em que medida é interdependente.
Vivemos em uma interconectividade que nunca existi an-
tes. Mas nesse mundo há coisas insuportáveis. [...] procu-
rem um pouco, vocês vão encontrar. A pior das atitudes é
a indiferença, é dizer ‘não posso fazer nada, estou me vi-
rando’. Quando assim se comportam, vocês estão per-
dendo um dos componentes indispensáveis: a capacida-
de de se indignar e o engajamento, que é consequência
desta capacidade.”( HESSEL, Stéphane. In: ‘Indignai-
vos!’)

Em cenários tumultuosos, também o cenário político e o


sistema de representação por excelência tornam-se obtusos e
carentes de revisitação. Nos processos de organização e legi-
timação do poder, o sistema eleitoral é, progressivamente,
concebido com base no modelo concorrencial de mercado, as
eleições são como uma troca comercial, onde, nas palavras de
Zizek, “[...]os eleitores “compram” a opção que promete cum-
prir da maneira mais eficiente a tarefa de manter a ordem soci-
al, combater o crime etc. etc.” Dessa maneira, como que numa
espécie de “[...] fórmula de “menor custo, maior eficiência”, até
algumas funções que deveriam ser de domínio exclusivo do
poder de Estado (como a administração das penitenciárias)
podem ser privatizadas; o Exército não se baseia mais na
conscrição universal e compõe-se de mercenários contratados
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1126
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etc. Até a burocracia do Estado não é mais percebida como a


classe universal hegeliana, como é cada vez mais evidente no
caso de Berlusconi”14. (ZIZEK, 2011, p. 10-11).
O cenário é de desordem. Um mosaico fragmentado em
distintas texturas e diversos materiais. A metáfora é emprega-
da para ilustrar o tumulto da estrutura partidária que anda
‘companheiramente’ à desorientação de grande parte da polí-
tica em matéria institucional. Por inúmeras vezes assistiu-se a
escândalos e acontecimentos diversos que destoam da serie-
dade que lhe deveria ser inerente. No modelo de democracia
representativa, em uma sociedade que se complexificou pri-
meiro, pela experiência, seja por meio do sufrágio universal,
seja em virtude dos entraves técnicos que, em certa medida,
cercearam a política à “[...] referências tecnológicas, das esta-
tísticas, das probabilidades e das valorações macro e microe-
conômicas, além dos detalhes técnicos peculiares aos temas
tratados, o que dificultou/inviabilizou a tarefa política como o
jogo dialético de pretensões” (BOLZAN DE MORAIS, 2077, p.
11 )15

14
O que torna o primeiro-ministro italiano tão interessante como fenômeno
político é o fato de que, como político mais poderoso do país, ele age de
forma cada vez mais desavergonhada: além de ignorar ou neutralizar po-
liticamente as investigações jurídicas a respeito das atividades crimino-
sas que promovem seus interesses comerciais particulares. Berlusconi
também solapa de modo sistemático a dignidade básica do chefe de Es-
tado. A dignidade da política clássica baseia-se em sua elevação acima
do jogo de interesses particulares da sociedade civil: a política é “alie-
nada” da sociedade civil, apresenta-se como esfera ideal do citoyen, em
contraste com o conflito de interesses egoístas que caracteriza o bour-
geois. Berlusconi aboliu essa alienação: na Itália atual, o poder estatal é
exercido diretamente pelo bourgeois vil que, de forma declarada e impi-
edosa, explora o poder estatal para proteger seus interesses econômi-
cos. (ZIZEK, 2011, p. 10-11).
15
“[...] seja, ainda, pelo volume quantitativo de questões postas à solução,
implicando, sobretudo nas sociedades complexas uma atividade full time
que exclui o cidadão (pelo menos o cidadão comum)– ocupado demais
em prover o seu cotidiano – do jogo político, ao mesmo tempo que exclui
o político do debate social dos temas –, tornou-se um instrumento
incapaz de responder adequadamente a todos os anseios, pretensões,
intenções, etc., o que conduz a tentativas de esvaziá-la como lugar
adequado ao jogo da política, a tentativas de fantochizá-la – tornando-a
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Os Direitos Humanos e a sua Proteção
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1127
Entre a anemia estatal e a anomia política

No Brasil, em especial, há carência de muitas coisas, mas


a miopia política é que propicia a precarização e fortalece a
permanência das fragilidades sociais e dos problemas macro-
estruturais. A começar pela questão da consciência da partici-
pação política – que é, no mínimo, relativa (se não deturpada –
e em muitos casos até promíscua...). Nesse sentido, Bonavides
traz sua visão sobre o modelo representativo, enfatizando que
o mesmo, muitas vezes, tende a ignorar, a afastar ou mesmo
eliminar do
[...] do processo competitivo ou participativo as minorias,
estabelecendo uma homogeneidade superficial, aparen-
te, não raro imposta, que esconde, sem anulá-los ou
abrir-lhes válvulas escapatórias suficientes, os elementos
de pressão, geradores dos mais profundos dissídios soci-
ais, acumulados ou contidos até explodirem. (2010, p.
374). [mas... (im)explodirão um dia(?)]

Nas palavras de Hobsbawm, “nosso tempo” tem sido “in-


teressante”, além de ter “alcançado extremos”. Ao debater a
questão da democracia no século XXI e sob o reconhecimento
de sua suposta universalidade, Hobsbawm aduz que os cha-
mados regimes democráticos contemporâneos não abrem mão
de formas de dominação e exploração, tanto interna como ex-
ternamente. Assim como se nota uma expansão de regimes
formalmente democráticos pelo mundo, observa-se um movi-
mento de separação e afastamento dos cidadãos comuns dos
processos políticos, salvo um diminuto envolvimento em pro-
cessos eleitorais – mas, como já mencionado neste ensaio, es-
tes também encontram-se em vias de esboroamento.
A desqualificação da política se conjuga com a diminui-
ção crescente do interesse do conjunto da população pela par-
ticipação política stricto sensu. Como diz Hobsbawm (2007), se

apenas um esteréotipo formal pela ausência de alternativas reais de


escolha –, a tentativas de transformá-la, incorporando instrumentos de
participação popular direta no seu interior ou reconstruindo-a com a
transformação de seu caráter intrínseco”. (BOLZAN DE MORAIS, 2011,
p. 57).

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1128
Thaisy Perotto Fernandes

o critério primeiro da democracia representativa e sua conse-


qüente legitimidade têm sido a eleição popular, fica a pergunta
da representatividade de um processo que envolve cada vez
menos o conjunto da população16.
Nesse contexto, para consolidação e manutenção da do-
minação burguesa, nada mais funcional do que manter as to-
madas de decisão longe dos olhos do público, ou, então, pró-
ximo, mas em uma linguagem diferenciada... fechada... quase
incompreensível. Convém salientar ainda que o modelo da
democracia moderna – de representação – passa por transfor-
mações experimentais de dois níveis, nas lições de Bolzan de
Morais. No primeiro, ela experiência a adoção em seu âmago
de mecanismos de intervenção decisória, através da introdu-
ção de fórmulas de democracia direta, conjugadas com a re-
presentação política.
Não se pode deixar passar em branco que a menção ao
Estado liga-se à questões paralelas, como a economia e a polí-
tica. E que eventuais crises devem ser vistas sob um enfoque
sistêmico, analisando o conjunto de fatores que a desencadeia.
Nesse sentido, conecta-se à eventuais crises do trabalho e do
estado, igualmente esboroamentos na política – que nascem
na inconsciência cidadã e desembocam na fragilização cres-
cente da representatividade. Nesse sentido, ressalta Sorj (p.
113-114) que as diferentes perspectivas expressam [...] um fe-
nômeno real: a crise da cidadania, tal como se cristalizou no
século XX. A cidadania é o mecanismo institucional pelo qual,
nas sociedades democráticas modernas, a ordem jurídica arti-
cula as relações ela própria, a sociedade e o Estado. [...] O Es-
tado, apesar de manter uma função central na regulação social,
tem sua legitimidade diminuída, pelo enfraquecimento das

16
[...] houve um declínio na vontade dos cidadãos de participar da política,
assim como na efetividade da maneira clássica – a única legítima, se-
gundo a teoria convencional – de exercer a cidadania, ou seja, a eleição,
por sufrágio universal, dos que representam 'o povo' e estão por isso
mesmo autorizados a governar em seu nome. Entre as eleições – ou seja,
por vários anos, normalmente –, a democracia existe apenas como ame-
aça potencial à sua reeleição ou à dos seus partidos. (p. 107).
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Entre a anemia estatal e a anomia política

formas de representação partidária, da lealdade à pá-


tria/nação/povo/classe e pelo sentimento de que governar se
transformou em uma prática tecnocrática a serviço das exigên-
cias dos mercados. [...] talvez a principal contradição da vida
política no mundo contemporâneo seja a da globalização das
agendas políticas face à contínua realidade do Estado nacional
como locus central de geração e distribuição de riqueza. (2004,
p. 113-114).
Da revisitação de valores básicos – conformadores da na-
tureza humana e da sociedade que criam, caso efetivamente
possibilitem o repensar da insolidez da infra-estrutura formada
pela “areia da inconsciência”, talvez alguns castelos ainda se-
jam construídos – e não desmanchar-se-ão no ar17.
Por certo inúmeros outros obstáculos à democracia sub-
sistem e não foram enunciados neste ensaio. Mas os sonhos de
Thoreau tomam-se emprestado numa tentativa de passar os
olhos ao horizonte – talvez uma tentativa de falar menos das
impossibilidades e de pensar de forma mais positiva em ma-
neiras, ainda que ‘sonhadoras’, de conviver com o tão dissemi-
nado “poder do povo”. Será que a democracia tal como a co-
nhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de
construir governos? Não será possível dar um passo a mais no
sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nun-
ca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele
venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e indepen-
dente — do qual a organização política deriva o seu próprio
17
Nessa linha de pensamento, igualmente Baudrillard, sem rodeios, com
suas verdades – ácidas ou “in natura”, sob um enfoque temporal e com-
parativo, confronta os dias atuais com os tempos idos, onde a perspecti-
va de mudanças radicais era alardeada e mirada com positividade:
Na teoria revolucionária, havia também a utopia viva do desaparecimen-
to do Estado, do político negando-se como tal, na apoteose e na transpa-
rência do social. Não foi bem assim. O político desapareceu, mas sem
transcender no social; ao desaparecer, ele arrastou consigo o social. Es-
tamos no transpolítico, isto é, no grau zero do político, que é também o
de sua simulação indefinida. Pois tudo o que não foi além de si mesmo
tem direito a um renascer sem fim. Logo, o político nunca acabará de
desaparecer, mas não deixará que surja algo em seu lugar. Estamos na
histerese do político. (1990, p. 17, grifo nosso).

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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poder e a sua própria autoridade — e até que o indivíduo ve-


nha a receber um tratamento correspondente. Fico imaginan-
do, e com prazer, um Estado que possa enfim se dar ao luxo de
ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo respeito-
samente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer
consideraria um perigo à sua tranqüilidade a existência de al-
guns poucos homens que vivessem à parte dele, sem nele se
intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempe-
nhassem todos os deveres de vizinhos e de seres humanos. Um
Estado que produzisse esta espécie de fruto, e que estivesse
disposto a deixá-lo cair logo que amadurecesse, abriria cami-
nho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso; já fiquei a
imaginar um Estado desses, mas nunca o encontrei em qual-
quer lugar (1988, p. 37).
Pois bem... será? Talvez ela exista [utopicamente] em al-
gum lugar. Na dúvida... a exemplo do que propugna Galeano...
se ela está lá no horizonte ou se inexiste... ela serve para que
não se deixe de caminhar. Caminhe-se, pois, ‘nos trilhos cer-
tos’ e não nos vagões da apatia e da subserviência. Sejam
quais forem as “Democracias”18, elas não farão o serviço por
inteiro. A partir do momento que o não desassossego diante de
certos acontecimentos da arena pública, a apatia política per-
sistir ‘ad eternum’... a impressão é que solidificou-se na alma
do brasileiro a não necessidade em exercer a tão propagada
“cidadania”.
Há, pois, que se ter plena consciência de que é em con-
formidade ao estado da sociedade e ao grau de sua “educação
política” e de sua “consciência democrática”, que amolda-se o
respectivo sistema representativo – e não o contrário. Já dizia

18
Bolzan de Morais elucida que nos trilhos da proclamada democracia
participativa “[...] talvez se constituam como alternativas possíveis de
rearticulação de espaços públicos que se apresentem como uma fonte
de autoridade cuja legitimidade ultrapasse até mesmo os esquemas
procedimentais característicos da democracia representativa,
escapando, inclusive, às insuficiências – outras – que esta enfrenta, em
particular no que tange à formação da opinião em sociedades
dominadas por sistemas de informação cujo controle público é
diminuído. (2011, p. 58).
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Entre a anemia estatal e a anomia política

Brecht que o mais desprezível analfabeto é o “analfabeto polí-


tico - ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos
políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do fei-
jão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remé-
dio dependem das decisões políticas”...
E, para encerrar essa sintética alusão à crise democrática
que o século presente nos apresenta, Eduardo Galeano, igual-
mente de maneira breve um dia profetizou que “Temos, há
muito tempo, guardado dentro de nós um silêncio bastante
parecido com estupidez”.... [Não seja ela eterna é o pedido re-
metido ao universo...]

ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM:


REFLEXÕES NADA CONCLUSIVAS
Não podemos falar sobre o futuro político do mundo, a
menos que tenhamos em mente que estamos vivendo um
período em que ah istória, ou seja, o processo de mudan-
ças na vida e na sociedade humana e oimpacto que os
homens impõem ao meio ambiente global, está se acele-
rando a um ritmoestonteante. Neste momento, ela está
evoluindo a uma velocidade que põe em risco o futuro da
raça humana e do meio ambiente natural. [...] não sabe-
mos para onde estamos indo. (Eric Hobsbawm)

Múltiplas indagações e significativas inquietações persis-


tem. Será o tempo pacificador ou amálgama do processo civili-
zatório? Fora ele o elemento central que provocou a fragmen-
tação da modernidade e que nos apresenta um presente per-
meado de incógnitas? Diante das dúvidas sobre a dimensão
temporal, furta-se de Elias (1998, p. 63) o acalento de que o
quer representa “[...]’passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ depende
das gerações vivas do momento. E, como estas se ligam cons-
tantemente, era após era, o sentido ligado a “passado”, “pre-
sente” e “futuro” não pára de evoluir.”
Mas são, sobretudo, tempos onde a aludida colonialidade
do poder ainda exerce seu domínio, na maior parte da América
Latina. Alicerça os entraves para a consolidação da democra-

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1132
Thaisy Perotto Fernandes

cia, para a conquista da cidadania e ao fortalecimento da insti-


tuição central da modernidade, o Estado, que, ante os novos
cenários, também sofre transformações.
Nessas múltiplas paisagens, furta-se de Touraine a pro-
pulsão à ação. O sociólogo francês enfatiza que essa dupla
“[...] visão da impotência dos atores sociais e do poderio das
forças econômicas mundiais se alastrou e se enraizou profun-
damente na vida intelectual” (2009, p. 11). Ciente das urgên-
cias da contemporaneidade, o autor faz uma incursão crítica
pelo discurso interpretativo dominante e confessa que é preci-
so combater a cegueira social, onde é preciso “[...] fazer um
esforço original de analisar as novas maneiras de pensar, de
agir e de falar, a fim de libertarmo-nos de nosso atual senti-
mento de impotência e de vazio.” (p. 22). A essa necessária
mudança de percepção da realidade Touraine denomina de
“sociologia do sujeito” (p. 107), onde a construção de um novo
tipo de pensamento social terá por premissas o repensar a
modernidade, os direitos humanos, os movimentos e o sujeito.
Em especial no Brasil, a respeito da dimensão representa-
tiva, herdou-se do processo “colonizatório” não apenas a lín-
gua portuguesa, mas igualmente uma conflitante estrutura
agrária, aliada a uma gritante desigualdade social. Seguindo o
raciocínio de Carvalho (2005, p. 53), representa fato inconteste
que houve, no Brasil, um significativo retardamento na incor-
poração dos cidadãos à vida política, e que a abolição não
trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirma-
da nas leis, mas negada na prática. E, ainda hoje, apesar das
leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o
desfavorecimento e a humilhação de muitos.
Como abdicar a esta herança? Até que ponto o passado
histórico torna possível a superação de muitos dos males con-
temporâneos? Não obstante o reconhecimento dos fatores ne-
gativos do passado que ainda se fazem sentir – a escravidão, o
clientelismo, a exclusão social – os obstáculos, embora grandi-
osos, não podem ser vistos como insuperáveis. Por mais pesa-
do que seja o legado, há que se buscar afastar, ainda que gra-
dativamente, o peso da frágil nau - a âncora da instabilidade,
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Entre a anemia estatal e a anomia política

da desigualdade e do atraso. Ainda há que se ter esperança de


que o horizonte buscará delinear algumas correções ao pretéri-
to de exploração que o Brasil imprimiu em sua história.
O Estado prescinde, assim, de uma revisitação do ‘esta-
do’ atual das coisas e do ‘estado’ no âmago do sujeito que o
integra. Não se pretendeu sedimentar esse humilde e breve
ensaio em prognósticos ou presságios... talvez residam muito
mais na lógica de constatações ou de devaneios e subjetiva-
ções... Mas, a exemplo do que Victor Hugo enfatiza, “Saber
exatamente qual a parte do futuro que pode ser introduzida no
presente é o segredo de um bom governo.” E um bom governo,
uma boa política, uma eficaz democracia e uma feliz nação es-
tão sob o mesmo céu azul estrelado convivendo simultanea-
mente – ou em estado de guerra, ou em estado de exceção, ou
em relativa paz.
As palavras de Bonavides alicerçam nossas considera-
ções finais: “[...] atravessamos graves perturbações econômi-
cas e transições significativas. Estamos imersos no dilema
Shakespeariano “to be or not to be”, cuja versão pátria, aplicá-
vel ao caso nacional, contém a alternativa euclidiana de “pro-
gredir ou perecer”. Se estamos sentados a beira do caminho,
sob paradigmas falidos, em parte, a história já elucida essa
facticidade. Está-se, pois, ante um desafio fundamental: “qual
Estado para qual desenvolvimento”? Nesse interregno... novas
institucionalidades... numa dialética tensionada entre novos
atores, novos direitos e novas possibilidades. Entre o cidadão
politizado e o analfabeto funcional existe o analfabeto político.
Esses hiatos precisam ser colmatados com políticas culturais –
e o Estado é o melhor caminho para sanear essas lacunas. Mas
“ele” tem que ter vontade de realizar o preenchimento desses
vácuos...
Conclama-se, pois, à não apatia, à não anemia cidadã, ao
“desassossego da alma” como conclama Saramago... Se os lí-
rios não nascem das leis, que venham então das vontades ge-
nuínas do protagonista terrestre. A sociedade humana perpe-
tuará a escrever a sua complexa e fabulosa história, mesmo
que os tempos (pós)modernos e o capitalismo pareçam condu-

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Curso de Mestrado em Direitos Humanos
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Thaisy Perotto Fernandes

zir a uma perspectiva por vezes negativa e instável. Talvez


sejam tempos de reflexão, de oportunidades concretas – e não
líquidas, de se reverter o “estado atual das coisas”. Tempo de
transição – talvez seja esta a expressão mais coerente. Tempos
que nos ensinam, diariamente, a utilizar de maneira distinta o
próprio tempo, eis que talvez o repensar da modernidade eclo-
diu a partir do sentir que suas promessas não se solidificaram,
tampouco disseminaram prosperidade civilizatória. Deixemos,
pois, ao tempo e ao “protagonista do ambiente terrestre” mos-
trarem os verdadeiros porquês e o devir dessa “crise de conti-
nuidade”, dessa crise de “percepções”.Para efetivar a partici-
pação política – não há como engessar a ativação dos eleitos,
mas há como melhorar o ‘nível’ da elegibilidade. Há como ele-
var o nível de nós mesmos. Há como evoluir – per me, per noi,
per tutti...
Para levar o homem a um estado de bem-venturança,de
modo algum seria suficiente que se o transportasse para
um mundo melhor; ainda seria necessáriaa produção de
uma mudança fundamental nele mesmo, que o fizesse
não mais ser o que é, mas, ao contrário,o fizesse se tornar
o que não é. Porém,para isso ele tem de primeirodeixar
de ser o que é. (Schopenhauer)

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25 e 26 de abril de 2013
A ORIGEM DAS PENAS RESTRITIVAS DE
LIBERDADE HÁ PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À
COMUNIDADE

Vagner Poerschke

Resumo
Já dizia Montesquieu, que a norma associada a uma sanção tem um caráter pedagó-
gico, a pena em seu sentido mais amplo tem como incumbência de reeducar o ape-
nado, tranzendo-o de volta a sociedade com uma perspectiva mais ressocializada.
No entanto, isso era um preceito teórico que acabou findando, com a sua crise, ne-
cessitando de uma revisão no seu conteúdo, a partir daí surgem as penas alternati-
vas, com um objetivo mais especifico e com a experiência da prática sendo mais
eficaz no seu objetivo ressocializador, que no qual tem seu maior sucesso com a
pena de prestação de serviços à comunidade, talvez a mais eficaz dentro do rol das
penas restritivas de direitos.
Palavras-chave: Penas, crise, trabalho, comunidade, liberdade, prisão.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A história das penas não é a de sua progressiva abolição,
mas de sua reforma” (Bittencourt, p.433, 2007). Pois a pe-
na é uma instituição muito antiga, cujo surgimento se re-
gistra nos primórdios da civilização humana. E isso deno-
ta uma peculiaridade em cada sociedade de aplicar e efe-
tivar o cumprimento das mesmas, como uma simples
manifestação natural do homem primitivo para a conser-
vação de sua espécie, sua moral e integridade. (OLIVEIRA,
p.21, 1996).

E isso foi se desenvolvendo como um meio de retribuição


e de intimidação, através das formas mais cruéis e sofisticadas
de punição até nossos dias, quando se pretende afirmar como
uma função terapêutica e recuperadora. Etimologicamente, o
termo pena procede do latim “poena”, porém com derivação do
grego “poine” o significado é dor, castigo, punição, expiação,
penitência, sofrimento, trabalho, fadiga, submissão, vingança,
recompensa.
1146
Vagner Poerschke

“A antiguidade desconheceu totalmente a privação de li-


berdade, estritamente considerada como sanção penal”
(Bittencourt, p.433, 2007). E “durante muitos séculos a
pena mais importante, com a qual trabalhava o direito
penal, era a pena capital” (Estefam, p.302, 2010).

AS PENAS NA ANTIGUIDADE
“É inegável que o encarceramento de delinquentes exis-
tiu desde os tempos imemoriáveis, porém não tinha caráter de
pena e repousava em outras razões”(Bitencourt, p.433, 2007).
De acordo com Odete Maria de Oliveira, esse período denomi-
nado de “vingança divina”, baseava se em preceitos oriundos,
supostamente dos deuses. Que na qual apresentava uma rea-
ção primitiva de caráter religioso, em conexão como o sistema
de Talião e da composição. Assim o delito era uma ofensa à
divindade que por sua vez, ultrajada atingia a sociedade inteira.
Para o esclarecimento do direito penal oriental e seu cará-
ter teocrático, torna-se importante o estudo do Código de Ha-
murábi, que aplicava um princípio de igualdade do delito em
relação a pena, ou seja, o velho jargão “olho por olho, dente por
dente”. A pena privativa de liberdade só era aplicada somente
à contenção e guarda dos réus, para preservá-los fisicamente
até o momento de serem julgados.

AS PENAS NA IDADE MÉDIA


A partir desse período, houve os primeiros relatos de pe-
nas privativas de liberdade, na qual teve sua origem nos mo-
nastérios da Idade Média, como punição imposta aos monges
ou clérigos faltosos, fazendo com que se recolhessem às suas
celas para se dedicarem, em silêncio, à meditação e se arre-
penderem da falta cometida, reconciliando-se com deus. “Mas
na realidade, a lei penal dos tempos medievais tinha como ver-
dadeiro objetivo provocar o medo coletivo”. (Bittencourt, p. 435,
2007). Com relação ao exposto por Odete Maria de Oliveira, é a
constatação de um período de vingança pública.

I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia


Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1147
A origem das penas restritivas de liberdade...

Entende Cezar Bitencourt que:


Durante todo o período da Idade média, há um predomí-
nio do direito germânico. A privação de liberdade conti-
nua a ter uma finalidade custodial aplicável àqueles que
foram submetidos aos mais terríveis tormentos exigidos
por um povo ávido de distração bárbara e sangrento.
Nessa mesma época, surge a prisão de estado e prisão
eclesiástica. A primeira surge aos inimigos do poder real
ou senhorial, e na qual apresenta duas modalidades: a
prisão-custódia, onde o réu espera a execução da verda-
deira pena aplicável, ou como detenção temporal ou per-
pétua, ou ainda até perceber o perdão real. A prisão ecle-
siástica, por sua vez, destinava-se aos clérigos rebeldes e
respondia às ideias de caridade, redenção, e fraternidade
da igreja, dando ao internamento um sentido de penitên-
cia e meditação. (Bitencourt, p.436, 2007).

“A pena privativa de liberdade foi produto do desenvol-


vimento de uma sociedade orientada à consecução da felicida-
de, surgida do pensamento calvinista cristão”. (Kaufmann
apud Bitencourt, p. 437, 2007). “O direito canônico contribui
decisivamente para com o surgimento da prisão moderna, es-
pecialmente no que se refere às primeiras ideias sobre a re-
forma do delinquente” (Bittencourt, p. 437, 2007).

AS PENAS NA IDADE MODERNA


“Durante os séculos XVI e XVII a pobreza se abate e se
estende por toda a Europa. Contra os deserdados da for-
tuna que delinquem cotidianamente para subsistir expe-
rimenta-se todo tipo de reações penais, mas todas fa-
lham” (Bittencourt, p. 438, 2007).

Tudo isso logo crescera, e esse fenômeno estendeu-se por


toda a Europa e por razões de política criminal era evidente
que, ante tanta delinquência, a pena de morte não era solução
adequada, já que não se podia aplicar a tanta gente.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1148
Vagner Poerschke

Com o Renascimento e o Iluminismo, novas reflexões


acerca do Estado e do Direito Penal surgem para problematizar
e apresentar novas propostas de criação de uma nova ordem
política concernente com os interesses da nova classe burgue-
sa. O liberalismo previa uma explicação mais utilitária da pena,
rechaçando qualquer fundamentação teológica da mesma.
Houve uma radical transformação do Direito Penal, de caráter
humanista e liberal. (Freitas, 2011)
O surgimento da pena privativa de liberdade ocorre cer-
tamente por vários fatores. Os fatores econômicos não
podem ser desprezados e nem absolutizados. Isto signifi-
ca que não há porque afirmar, por exemplo, que a pena
privativa de liberdade surgiu apenas para substituir a
pena capital, já que se havia tornado inviável matar pes-
soas numa quantidade exorbitante. Ou, pelo contrário,
afirmar que esta surge tão somente para suprir uma ne-
cessidade do capitalismo emergente de então. (Biten-
court, 2001, p. 27-31) apresenta as seguintes causas ex-
plicativas: a) a valorização da liberdade e do racionalis-
mo; b) necessidade de ocultação do castigo para evitar a
disseminação do mal causado pelo delito; c) aumento da
pobreza e da mendicância e ineficácia da pena de morte;
d) razões econômicas da burguesia que precisava disse-
minar o modo de produção capitalista por meio de uma
mão-de-obra dócil e obediente e barata em épocas de
pleno emprego e altos salários. (FREITAS, 2011)

AS PENAS DA IDADE CONTEMPORÂNEA


“Com o iluminismo e a grande repercussão das ideias dos
reformadores, a crise da sanção penal começou a ganhar des-
taque, a pena chamada a intimidar não intimidava, a delin-
quência era uma consequência natural do aprisionamento”.
(Bittencourt, p. 442, 2007). A função essencial da pena que era
a de correção do apenado não se cumpria, provocava a reinci-
dência.
Nesse período constata-se que uma política criminal ori-
entada no sentido de proteger a sociedade, terá de restringir a
I Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia
Os Direitos Humanos e a sua Proteção
25 e 26 de abril de 2013
1149
A origem das penas restritivas de liberdade...

pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessi-


dade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada
vez maior do cárcere.
A pena privativa de liberdade pode ser conceituada, se-
gundo Leal, é a medida de ordem legal, aplicável ao autor de
uma infração penal, consistente na perda de sua liberdade físi-
ca de locomoção e que se efetiva mediante seu internamento
em estabelecimento prisional.
Porém preceitua Leal, criticando a pena privativa de li-
berdade:
A nova filosofia penal, impondo o isolamento do preso do
meio social criminógeno, sujeitando-o ao exercício de
uma atividade laboral e a uma internação continua no in-
terior de uma cela, apesar de ter sido inspirada no ideal
cristão de purificação da alma, não alcançou o objetivo de
recuperar moral e socialmente os condenados da moder-
na justiça criminal. (LEAL, p. 394, 2004)

Não há duvidas que o penitenciarismo fracassou no seu


objetivo de ressocialização do condenado. E a falência do sis-
tema penal, embasado unicamente na punição pelo encarce-
ramento, por vezes aliado à pena de multa, é flagrante.

AS PENAS ALTERNATIVAS
“Diante do reconhecimento universal da crise da pena
privativa de liberdade, novas ideias e projetos vêm despon-
tando com muita ênfase, indicando a adoção de penas alterna-
tivas à prisão” (Oliveira, p. 58, 1996).
Logo com a crise, surgem novos conceitos para definição
do cárcere privado, vindo a fadar a que a liberdade é à regra, a
prisão à exceção, ou seja, é a ultima ratio da sociedade. Então
com o surgimento de medidas e penas alternativas, passasse-
se a afirmar que a pena restritiva de liberdade é exceção, e as
penas restritivas de direitos, assim denominadas pelo nosso
ordenamento, é a regra.

Programa de Pós-graduação em Direito


Curso de Mestrado em Direitos Humanos
1150
Vagner Poerschke

A proposta de penas alternativas surgiu na Ásia e no ex-


tremo oriente, com índices de reincidência altíssimos, com
mais de 80%, necessitava de uma urgente revisão normativa,
para preservação do delito e tratamento do delinquente de es-
tudar a questão, apresentada a proposta foi aprovada sendo
apelidada de regras de tokyo ou regras mínimas das nações
unidas para elaboração de medidas não privativas de liberda-
de. Que no qual detinha o objetivo fundamental era promover o
emprego de medidas não privativas de liberdade.(Capez, 2003)
As penas alternativas constitui toda e qualquer opção
sancionatória, oferecida pela legislação penal para evitar a im-
posição da pena privativa de liberdade. Ao contrário das me-
didas alternativas, constituem verdadeiras penas, as quais
impedem a privação da liberdade, entretanto podem ser divi-
das em duas classificações: Consensuais, que na qual sua
aplicação depende da aquiescência do apenado; e não consen-
suais: independem do consenso do imputado.
O Código penal Brasileiro elenca um rol de penas alterna-
tivas, que se denominam penas restritivas de direitos, no seu
artigo 43, que consistem em prestação pecuniária, perda de
bens e valores, prestação de serviços à comunidade ou a enti-
dades públicas, interdição temporária de direitos e limitação
de final de semana.
Essas penas tem um caráter autônomo e substituem as
privativas de liberdades quando, atendidos os seus requisitos,
implícitos no art. 44 na atual codificação penal, quando aplica-
da a pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o
crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pes-
soa ou qualquer que seja a pena aplicada se o crime foi culpo-
so; o réu não for reincidente em crime doloso; a culpabilidade,
os antecedentes, a conduta social e a personalidade do conde-
nado bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que
essa substituição seja suficiente.
Das penas restritivas de direito, a prestação de serviços à
comunidade (art. 46), apresenta um maior grau de satisfação
de cumprimento da pena, por cumprir efetivamente os objeti-
vos gerais das penas alternativas, que também podem ser di-
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A origem das penas restritivas de liberdade...

minuir a superlotação dos presídios e reduzir os custos do sis-


tema penitenciário, favorecer a ressocialização do autor do fa-
to, evitando o deletério ambiente carcerário e a estigmatização
dele decorrente, reduzir a reincidência, uma vez que a pena
privativa de liberdade, dentre todas, é que detém o maior índi-
ce de reincidência e preservar os interesses da vítima.

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE OU A ENTIDADES


PÚBLICAS
“Contagiados por festejados sucessos que foram alcança-
dos em alguns países europeus, o legislador brasileiro de 1984
acreditou no potencial não dissocializador da prestação de ser-
viços à comunidade” (Bitencourt, p. 495, 2007) E cronologica-
mente de acordo com a indicação do próprio normativo penal,
a primeira das penas restritivas de direitos.
Essa pena consiste em atribuições de tarefas ao conde-
nado junto a entidades assistências, hospitais, orfanatos, e
outros estabelecimentos congêneres em programas comunitá-
rios, ou em benefícios de entidades públicas. (art. 46, CP).
MIRABETE em digressão sobre o instituto considerou que:
O sucesso da inovação dependerá, e muito do apoio que
a comunidade der às autoridades judiciais, possibilitando
a oportunidade para o trabalho do sentenciado, o que já
demonstra as dificuldades do sistema adotado diante da
reserva com que o condenado é encarado no meio social.
Trata-se, porém, de medida de grande alcance e, aplica-
da com critério, poderá produzir efeitos salutares, des-
pertando a sensibilidade popular. (Martins, p. 31, 2001).

A doutrina tem conceituando a prestação de serviços à


comunidade como “o dever de prestar determinada quantida-
de de horas de trabalho não remunerado e útil à comunidade
durante o tempo livre, em benefício de pessoas necessitadas
ou para fins comunitários”.
Segundo mostrou a experiência que é a mais eficaz pena
restritiva de direitos, pois além de evitar o encarceramento,

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1152
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promove a integração do sentenciado com a comunidade em


que vive, obrigando-o à realização de tarefas úteis ao corpo
social.
A prestação de serviços comunitários é um ônus que se
impõe ao condenado como consequência jurídico-penal da vio-
lação da norma jurídica. As características fundamentais para
o cumprimento da pena são a gratuidade, aceitação pelo con-
denado e autêntica utilidade social.
No entanto são inúmeras as dificuldades levantadas, e
vão desde a inexistência de entidades apropriada e pessoal
especializado até a fiscalização do cumprimento e a aceitação
pelo condenado da referida sanção. As principais dificuldades
que se apresentam, de plano, para tornar realidade, essa pena
são quais as instituições, programas comunitários ou estatais
existentes na comunidade, bem como quais suas disponibili-
dades? Como se fará o acompanhamento, fiscalização e orien-
tação do apenado que receber essa sanção? Como será feito o
controle das aptidões dos condenados para destiná–los às ati-
vidades correspondentes?
Em Porto Alegre foi implantado, em 1986, um projeto pilo-
to, atendendo essas questões supra-referidas, que vem obten-
do excelentes resultados. A estruturação do sistema, por se
tratar de uma comarca de grande porte, não avulta economi-
camente, comparando-se com o custo que representam os réus
presos.
No entanto ocorrendo dificuldades na efetivação de tal
reprimenda, sempre se reconheceu sua importância e benefícios:
Com efeito, a primeira vantagem dessa pena alternativa
é que através dela os fins de reprovação e prevenção po-
dem facilmente ser alcançados. Não se pode negar o seu
caráter retributivo. Afinal, o condenado fica vinculado du-
rante meses à obrigação de trabalhar gratuitamente para
comunidade nos finais de semana, com prejuízo de suas
atividades habituais. Nesse aspecto, ela é um mal como
resposta ao mal praticado. Por outro lado, ao trabalho pa-
ra a comunidade, o condenado descobre que pode ser
uma pessoa socialmente útil lhe é muito mais vantajoso

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ajudá-la com o labor sério e honesto do que agredi-la com


o crime. (Martins, p.32, 2001).

O fato de ser cumprida enquanto os demais membros da


comunidade usufruem seu período de descanso gera aborreci-
mentos, angústia e aflição, esses sentimentos inerentes à san-
ção penal integram seu sentido retributivo.
Pensando ainda pelo lado da reintegração social, perce-
be-se também um benefício desta alternativa penal, uma
vez que o fato de não ter sido preso ou não se encontrar
preso, evita o estigma de “ex-presidiário”, facilitando-lhe
oportunidades que são mais difíceis para pessoas egres-
sas do sistema penitenciário a procura de sua reintegra-
ção. (Gundim, 2007).

É exatamente ai que reside a grande diferença entre a


pena de privação da liberdade e as restritivas de direitos, dife-
rença essa que é o que beneficia tanto a sociedade como o su-
jeito transgressor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Prestação de Serviço á Comunidade é mais que uma
pena, é uma medida educativa e útil socialmente, capaz de
garantir princípios basilares como a dignidade da pessoa hu-
mana e, ainda assim reprovar todo mal causado pelo agente
delinquente e prevenir o cometimento de novos delitos, dado
seu caráter restaurador. Acreditamos que as penas de presta-
ção de serviços á comunidade pode constituir poderoso coad-
juvante na justiça social, vez que com certeza apresenta muito
mais utilidade á sociedade do que a privação de liberdade.
Ante o exposto, concluímos que as Penas de Prestação de
Serviços á Comunidade possuem caráter ressocializador, sen-
do capazes de promover uma nova etapa no direito penal e
aplicação de penas, se bem acompanhadas e aplicadas mais
comumente quando possível, podem de fato levar ao alcance
do objetivo da aplicação das penas, qual seja, promover a ple-
na ressocialização dos indivíduos.

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REFERÊNCIA
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FREITAS, Adir. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PENA III - A IDADE
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MARTINS. Jorge Henrique Schaefer. Penas Alternativas. Curitiba:
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OLIVEIRA, Odete Maria. Prisão: Um Paradoxo social. 2. ed. Floria-
nópolis: UFSC, 1996.

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