UMA INTRODUCAO
A ARQUITETURA
32 Edigao
— i fl
aEINTRODUGAO
Viviamos os idos de 1965, o Brasil recém-ingresso no auto-
ritarismo do regime militar, e eu me preparava para entrar na
faculdade.
Embora ainda nos orgulhasse o prestfgio internacional que
Nossa arquitetura havia conseguido com a Exposigiio Internacio-
nal de Nova York, com a Pampulha e, sobretudo, com Brasilia,
nao me lembro de que estes fatos tenham tido qualquer influéncia
na minha escolha: faltava-me informagao para tal. Creio mais em
dois fatores: o fascinio do desenho (uma carreira em que eu pu-
_ desse ganhar dinheiro fazendo o que me divertia) e a natureza da
profissaéo, que me daria prestigio semelhante ao da engenharia,
mas com a vantagem de ser ligeiramente... contracultura. Era
uma decisao pouco refletida e emocional, como costumam ser as
grandes decisées de nossa vida.
Nao sabia nada sobre arquitetura. O arquiteto “fazia plantas
de casas”... “desenhava fachadas”... Isto de forma alguma me
satisfazia. Eu precisava saber mais sobre a profissdo que eu havia
escolhido, embora nao tivesse nenhuma dtvida quanto a escolha.
io conhecia nenhum arquiteto, mas perguntava a todos aqueles
ique eu imaginava com alguma condigao de me adiantar os conhe-
cimentos: “Serd somente isso? Desenhar plantas e fachadas?”
Pouco consegui como resposta. Apesar disso, entrei para a facul-
dade, e aos poucos a idéia da arquitetura foi-se formando na mi-
nha cabega.
O texto que se segue consiste nas primeiras palavras que
devem ser ditas a alguém que deseje as informagoes basicas so-
bre arquitetura. O que se deve saber antes de tudo. Partimos do
pressuposto de que o leitor no é pessoa familiarizada com 0 texto
especializado, por isso evitamos a forma académica, fazendo cita-
gdes e assinalando os créditos das idéias expostas. Preferimos a
forma coloquial. Abrimos mao também da linguagem técnica, evi-
tando mencionar conceitos que 0 leitor supostamente no possui.
Estas duas opgées trazem consigo o beneficio da facil comu-
nicabilidade, mas tém um inconveniente: diminuem um pouco a
precisao daquilo que estamos dizendo. Todavia, parte das idéias
expostas poderd ser encontrada nas referéncias bibliograficas men-
cionadas ao final dos capitulos ou na bibliografia basica, fornecida
no final do livro.
Passemos entao ao nosso tema, que pretende ser aquela con-
versa que eu desejava e procurava nos jé distantes anos 60, ¢ que
me traz A memoria aquele jovem que fui, preocupado com 0 meu
destino e do meu pais.
Fagamos uma primeira e definitiva pergunta: “O que é arqui-
tetura?”
Parte I
O QUE E ARQUITETURACapitulo I
CONCEITUACAO DE ARQUITETURA
Comecemos pela palavra arquiteto: tecton, em grego, desig-
naya um artifice ligado & construgao de objetos por jungio de
pegas, como um carpinteiro, ¢ ndo por modelagem ou entalhe; o
prefixo arqui indica superioridade. Assim, arquiteto, etimologi-
camente, quer dizer “grande carpinteiro”. Desconsiderando as
_ variagGes que a palayra pode ter assumido através dos séculos de
cultura ocidental, hoje a empregamos com diversas acepgdes,
dentre as quais destacamos as trés mais importantes.
UMA PROFISSAO
Arquitetura €, em primeiro lugar, uma profissao de nivel su-
perior. O seu currfculo de graduagfio compoe-se de matérias re-
ferentes a trés distintas reas do conhecimento: a drea técnica
_ inclui disciplinas como Mecanica Racional, Resisténcia de Mate-
riais, Calculo Estrutural e Instalagdes Domiciliares; na drea cha-
mada “humanidades” temos as matérias concernentes 4 Historia
21UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA,
e Teoria da Arte e da Arquitetura, Psicologia e Sociologia aplica-
das a arquitetura e ao urbanismo; a terceira area destina-se ao
treinamento e inclui disciplinas relacionadas com a representacao
e composi¢ao de projetos: Geometria Descritiva, Representagao
da Forma, Desenho de Observacdo, Desenho Arquitet6nico
Composicao de Projetos de Arquitetura.
Arquitetura como um curso ou uma profissao € 0 sentido mais
pratico que pode adotar a palavra.
« UM PRODUTO CULTURAL
Imaginemos um estudioso do futuro, um antropdlogo ou um ar-
queélogo, que deseje saber como viviam seus antepassados do sé-
culo XX d.C. O quanto nao lhe poder informar a observagdo e o
estudo de nossas cidades? Saber este estudioso como comiamos,
como trabalhdvamos, como nos divertfamos; como utilizavamos
nossas disponibilidades técnicas e como nos apropridvamos de nos-
sos espagos domésticos e urbanos; como nos agrupdvamos ¢ como
nos segreg4vamos. Da mesma forma, muito do que sabemos sobre
as sociedades e civilizagées anteriores as nossas, 0 aprendemos
pela observacio e anélise da arquitetura desses povos; sabemos
sobre habitos, grau de conhecimento técnico, grau de sensibilidade e
ideologia através do estudo dos seus edificios e rufnas.
Estamos agora falando de arquitetura de uma maneira dife-
rente, naio mais como uma atividade, mas como um produto cul-
tural. No primeiro caso, faldvamos sob 0 ponto de vista do de-
sempenho; agora falamos sob o ponto de vista antropoldgico.
ze
& EXCELENCIA ESTETICA OU — UMA ARTE
Sob 0 critério estético, apenas uma parte do conjunto de edi-
ficios serd considerada arquitetura: somente aqueles que, para sua
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BBY
Parte | - O QUE E ARQUITETURA
concep¢ao e construgio, puderam contar com um arquiteto de
conhecimento, sensibilidade e talento, com 0 local certo, 0 mo-
mento certo, as condigdes materiais necessdrias, 0 tempo e 0 di-
nheiro suficientes. Em todo o processo de produgao, os valores
estéticos sobrepujaram os valores utilitérios ou comerciais. Sob
este terceiro ponto de vista, que chamamos crifério de excelén-
cia estética, predomina a arquitetura como uma arte.
Em nosso trabalho, consideramos sempre a arquitetura como
uma arte, porque assim estaremos incluindo os outros critérios
os ultrapassando. Critérios estes que deveremos sempre ter pre-
sentes, pois sao, de certa maneira, insepardveis: a arte deve ser
uma meta; 0 produto cultural, um fato compulsério; a profissdo,
a formagio académica, um meio.
o
= AS OBRAS-PRIMAS
Cabe porém uma adverténcia. Encarar a arquitetura como
arte nao significa considerar apenas as obras-primas. Esta ob-
servacao é importante, pois, ao folhearmos os livros de Historia e
Teoria da Arquitetura, encontramos um rol de edificios emble-
miaticos do periodo em que se inserem, que sao as obras-primas
da arquitetura. Sao templos gregos; termas,* bastlicas e anfi-
teatros* romanos; catedrais romanicas e géticas; palazzos* e
villas* renascentistas; igrejas e palacios barrocos. No perfodo
moderno, despontam alguns nomes de arquitetos: Le Corbusier,
Frank Lloyd Wright, Walter Gropius, Mies van de Rohe, 0 nosso
Oscar Niemeyer e outros. Os edificios histéricos, as obras destes
arquitetos, vao além do critério de exceléncia estética: so obras
primas.
io o que de melhor a humanidade ja produziu em termos
de arquitetura. Nao é necessdrio ao edificio ser uma obra-prima
para caber dentro do conceito de obra de arte. Assim como temos
grandes obras literérias que nao foram escritas por Goethe ou
23UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA
Dante Alighieri, também podemos ter grandes obras de arquitetu-
ra fora deste rol de obras-primas. Se estudamos através delas é
por motivo didatico. Nelas as a linguagem poética é mais forte e
pura, facilitando pois a apreensao e andlise.
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Capitulo TT
ARQUITETURA COMO ARTE
O EDIFICIO COMO OBRA DE ARTE
Considera-se tradicionalmente a arquitetura como uma das
belas-artes, juntamente com a escultura, a pintura, a mtisica e o
teatro. Este critério exclui grande ntimero de ediffcios ao nosso
redor. Para ser considerado arte, além do atendimento aos requi-
sitos técnicos, como a solidez estrutural e a qualidade dos mate-
riais, e das demandas utilitarias, como a adequacaio dos espagos
aos usos, deve o edificio tocar a nossa sensibilidade, nos incitar
contemplacgao, nos convidar 4 observacgao de suas formas, a tex-
tura das paredes, ao arranjo das janelas, ao jogo de luz e sombras,
as cores, 4 sua leveza ou solidez. E preciso que todos estes ele-
mentos estejam submetidos a um princfpio que hes dé unidade, e
este principio seja claramente perceptivel. Assim, pela observa-
¢ao, podemos descobrir uma intengao de fazer algo destinado a
nos emocionar, como uma bela melodia nos emociona, ou uma
bela pintura. Somente assim poderemos considerar um edificio
uma obra de arte.
25UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA
Fazendo parte da familia das artes visuais, como a pinturae a
escultura, tem a arquitetura suas semelhangas com estas: traba-
Tha com matéria semelhante — luz, sombra, cores, figuras. Com
as outras artes — musica, literatura, danga — possui também
pontos comuns, de natureza mais abstrata. Porém, existem condi-
gGes que fazem a arquitetura tinica, mantendo-a, de certa manei-
ra, tao ligada a um mundo diverso daquele das percepgées sensi-
veis, que muitos chegam a se perguntar se é 14, no mundo da
mitisica, da pintura e da éscultura que deve estar.
LIMITAGOES TECNICAS
Uma curiosidade, constantemente citada nos cursos de Esté-
tica, envolve as palavras arte e técnica: a palavra arte nos vem
do latim ars-artis, cujo equivalente em grego é justamente a pala-
vra techne. Este fato nos mostra que, para nossos ancestrais, nao
havia diferenca entre fazer algo belo e algo correto tecnicamen-
te. Desde a Antiguidade até a Idade Média, a arte era definida
como “a maneira correta de se fazer uma coisa”. A diferenciagio
entre 0 objeto artistico e aquele apenas utilitério ou eficiente tecni-
camente € recente, e nos chega junto com a modernidade e a
Revolugdo Industrial.*
Pois é justamente esse aspecto técnico o primeiro fator de
diferenciagao entre a arquitetura e as outras artes. Toda arte tem
sua técnica: nao se pode conceber um pintor que nao saiba prepa-
rar convenientemente suas tintas, sua paleta de cores ou 0 substrato
da tela — faz parte de sua técnica. O mesmo acontece com 0
miisico, com o escultor. Porém, nestas artes, a técnica desempe-
nha papel secundario, dependente. Na arquitetura aconteceré de
maneira diversa: a técnica antecede a preocupago estética. Pen-
sa-se antes na solidez estrutural, na estanqueidade das paredes
para, depois, pensar-se na expressao. Além disso, a técnica, na
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Parre | -O QUE E ARQUITETURA
arquitctura, tem desenvolvimento independente, podendo influirna
concepcao dos edificios de modo positivo, oferecendo facilidades
para a criacdo, ou de modo negativo, impondo limitacées insupe-
raveis.
O PRETEXTO FUNCIONAL
A qualquer arte pode-se atribuir uma funcao além daquela de
propiciar uma experiéncia estética. Os mosaicos bizantinos, os
vitrais géticos, os afrescos renascenti:
ao representarem te-
mas biblicos, milagres, martirios e atos-de-fé, serviam para divul-
gar e fortalecer 0 catolicismo; as pinturas retratando grandes per-
sonalidades ¢ eventos histéricos eram o tinico registro iconografico
destas personagens e fatos anteriormente ao aparecimento da fo-
tografia; sabemos ainda como as obras de arte tém servido para a
divulgagiio ou protesto a respeito de ideologias diversas. Os exem-
plos mostram fungées da arte diferentes de sua fungao estética.
Com a arquitetura acontece que a func&o antecede qualquer ou-
tro dado, nao a fungao estética, mas a fungao pratica. Antes de se
pensar em um edificio, é necessario que a sociedade precise dele,
que haja uma fungdao para ele cumprir; além disso, 0 uso terd
papel importante na definigao de sua forma. Em nenhuma outra
arte a fungao desempenha papel t&o importante, tao definitivo.
O CONTATO OBRIGATORIO
Qualquer pessoa pode deixar de ler um livro quando este nao
The esté agradando; pode ir ou nao ao cinema conforme sua von-
tade; pode visitar ou nao a exposig&o de um pintor ou escultor
famoso. Toda arte tem seu ptiblico especifico e limitado ¢ a empatia
entre 0 artista e seus admiradores governa esta relagao. Ninguém,
entretanto, pode evitar um edificio que nao lhe agrade, se esta no
27UMA INTRODUGAO A ARQUITETURA
seu caminho. O edificio constréi a paisagem da cidade, o cendrio
de nossa vida cotidiana. A arte da arquitetura nado se expde nas
galerias ou nas salas de concerto, mas nas ruas por onde passa-
mos, por onde se desenvolve a nossa vida.
Esta é a terceira caracterfstica a diferenciar a arquitetura das
outras artes: a presenga localizada e obrigatéria.
Por fazer parte do nosso cotidiano, de maneira tao freqiiente
¢ impositiva (e também por possuir outras fungoes fora da estéti-
ca), faz-se necessdrio um esforgo de distanciamento para que
seja observada como arte: a arquitetura nao se apresenta como
tal; é preciso que nés a descubramos.
Por outro lado, o fato de ser ptiblica Ihe confere caracteris-
ticas de um meio de comunicagio de massas, chamado pelos
especialistas de mass-media, Ora, uma arte que impGe sua pre-
senca tem limitagées e responsabilidades quanto a forma e con-
tetido. O arquiteto nao pode se colocar diante de sua prancheta
com a mesma liberdade que o pintor diante de sua tela; a pintu-
ra, a escultura, a mUsica tém, se comparadas & arquitetura, uma
gama ilimitada de possibilidades de expressdo. O arquiteto so-
frera restriges nao somente quanto as disponibilidades técni-
cas ou quanto ao pretexto funcional, mas também vera seu tema
limitado ao que convém a uma exibigao publica e permanente.
Parte II
OS SISTEMAS DA ARQUITETURA