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FLÂNEUSE: FOTÓGRAFAS OCUPAM O ESPAÇO URBANO

Marielen Baldissera1

Resumo: O tema deste artigo consiste em mulheres fotógrafas que utilizam o espaço urbano para
criar sua produção. Ao desviar da norma padrão, em que o domínio do olhar e do espaço público é
assumido como masculino, fala-se sobre o poder do olhar relacionado às questões de gênero e como
ele se reflete na produção de imagens e na ocupação das ruas em nossa sociedade atual. Após fazer
um breve histórico citando nomes femininos que são referência para a fotografia de rua, será
apresentado um projeto artístico da autora, que assume o lado ativo no jogo de olhares ao fotografar
homens e seus corpos durante o Carnaval de Rua de Porto Alegre. Nesses movimentos de ir para a
rua fotografar, há a identificação com o conceito de “errância” e a busca do Outro. A palavra feminina
flâneuse surge em contraponto à figura masculina do flâneur, personagem da modernidade que
caminhava pelas ruas das cidades usufruindo do livre acesso permitido aos homens, o que seria
inimaginável para as mulheres. Ocupar a rua e ter o domínio de seu próprio olhar, na recusa de ser
um objeto a ser olhada, ainda se constitui como um ato de transgressão. Interessa-me pesquisar as
mulheres que assumem a posição de quem define, e não de quem é definida, mesmo que seja apenas
no momento de criação de arte. Mulheres fotógrafas existem muitas, mas ao deixar claro que o gênero
é importante, uma tomada de discurso é assumida.
Palavras chave: Gênero, Fotógrafas, Espaço urbano, Fotografia, Corpo.

Introdução

A fotografia de rua e as questões de gênero habitam meu imaginário e minha criação artística
há bastante tempo. O ato de fotografar nas ruas faz parte da história da fotografia e também da minha
história, o que me fez perceber que ocupar esses espaços nem sempre é uma tarefa fácil para uma
mulher. Mas elas os ocupam, nós os ocupamos. Eu, particularmente, ocupo também como fotógrafa
e, por isso, busco minhas semelhantes ao pesquisar fotógrafas de rua.
Um evento urbano que fotografo constantemente é o Carnaval de Rua de Porto Alegre. Nele,
coloco-me como uma observadora a partir do lado de dentro. Sou participante da grande massa de
pessoas que ocupa as ruas. Ao longo de anos de interação e observação, fotografei detalhes das
pessoas que participavam, principalmente dos homens. Ao desviar a câmera das mulheres – que tem
seus corpos constantemente expostos e fotografados durante o carnaval brasileiro - e focar nos
homens, é possível mostrar os costumeiros donos do olhar, desta vez, olhados. Laura Mulvey2 (1983,

1
Mestra em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), na cidade de Porto Alegre - RS, Brasil.
2
Neste artigo, publicado em 1975, Laura Mulvey introduz o termo “male gaze”, referindo-se ao fato de que o espectador
de cinema era assumido como masculino e heterossexual. O termo foi utilizado por diversos autores subsequentes para
falar do olhar masculino que se dá sobre o corpo feminino como um objeto. Recentemente, em uma inovação de conceitos,
muito tem se falado sobre o “female gaze”, em que a mulher assume o controle do olhar, tema importante para minha
pesquisa.

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p.444) fala sobre o poder do olhar e sua divisão binária de gênero: “Num mundo governado por um
desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino.”.
As mulheres fotógrafas passam do lado passivo de observadas para o ativo de observadoras e,
ao fazer isso na rua, vão contra a ideia dominante de que o espaço público é masculino. Antes de
chegar ao trabalho intitulado “Arlequins”, comentarei sobre o conceito de “flâneuse” e trarei algumas
referências femininas da história da fotografia, para assim melhor embasar a ideia por trás do ato de
sair às ruas para fotografar homens.

Flâneuse: mulheres fotografando nas ruas

Na História da Arte, os “gênios” artistas sempre foram os homens, a mulher como criadora
era, via de regra, excluída do mundo da arte. Houve mudanças nessa realidade ao longo do tempo,
principalmente com a Arte Contemporânea, porém, em muitos casos, as mulheres continuam sendo
apenas objetos na representação, representadas por artistas homens. Apesar de o ambiente de estudos
em artes visuais ser mais frequentado por alunas mulheres (VARGAS, 2013), no mercado da arte, o
gênero que ainda adquire maior prestígio e atinge valores de venda mais elevados é o masculino. É
necessário pensar por quais motivos essa situação acontece, como diz Linda Nochlin (2016, p.8),
temos de fazer as perguntas certas para chegar às respostas que levarão a uma mudança.
O acesso das mulheres às artes foi tolhido desde o início. Elas não eram aceitas nas academias
e, quando puderam entrar, não era permitido que estudassem modelos nus. A falta de estudo do corpo
humano as impossibilitava de pintar quadros com grandes temáticas históricas, por exemplo.
Esperava-se daquelas que se aventuravam a entrar nesse sistema que produzissem imagens adequadas
as noções de feminilidade, com motivos de flores, crianças, retratos e naturezas mortas (PERROT,
2015). Mas, para produzir arte, entrar em contato com diferentes realidades e conviver com o outro é
algo enriquecedor, para não dizer essencial. Neste ponto, encontra-se o grande problema. A cidade
não era e não é um lugar de liberdade para as mulheres como o foi e é para os homens, a vivência de
ambos no espaço é bastante diferenciada. As cidades não foram construídas pensando nas
necessidades e problemas das mulheres, talvez pelo consenso inicial de que a mulher pertence ao
mundo privado. O mundo público e o viver social pertencem ao homem (POLLOCK, 1988, p.67).
O lugar da mulher por excelência era o espaço doméstico, fator que não contribuía para que
elas se tornassem grandes artistas. Mary Bashkirtseff, uma artista russa de família nobre3, escreveu

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É importante fazer um recorte de classe, o problema de acesso à rua e à arte era um problema de mulheres burguesas e
com boa condição financeira, pois as mulheres das classes populares saíam às ruas para trabalhar como operárias, serviçais

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longos diários entre os anos de 1860 e 1884, em que contava sobre sua situação e lamentava sobre
como a privação de uma circulação total dificultava seu desenvolvimento no mundo das artes:
O que eu desejo é a liberdade de andar por aí sozinha, de ir e vir, [...] de parar e olhar para as
lojas de arte, de entrar em igrejas e museus, de andar pelas ruas antigas à noite; Isso é o que
eu almejo; e essa é a liberdade sem a qual não se pode se tornar um verdadeiro artista 4
(BASHKIRTSEFF, 1889).

Já os homens tinham todo o acesso às ruas para criar livremente, e usufruíam dele em larga
escala. Era algo tão comum que na modernidade surgiu o famoso flâneur, uma figura masculina que
caminhava pelas ruas da cidade sem compromisso, observando o que acontecia ao seu redor,
mesclando-se na multidão que surgia com o crescimento das cidades modernas. Isso seria algo
inimaginável para as mulheres, pelos motivos que Griselda Pollock cita:
As mulheres não desfrutavam da liberdade de andar anônimas na multidão. Elas nunca foram
as ocupantes normais do domínio público. Elas não tinham o direito de olhar, de encarar,
examinar ou observar. Como o texto Baudelairiano passa a mostrar, as mulheres não
olhavam. Elas estão posicionadas como o objeto do olhar do flâneur. 5 (POLLOCK, 1988,
p.71)

Como ela fala, o poeta Charles Baudelaire (1988) escreveu sobre esse observador urbano,
como também o filósofo Walter Benjamin (1994). O flâneur acabou ficando muito ligado à figura do
fotógrafo de rua, pois basta acrescentar uma câmera ao personagem original. Poderíamos assim fazer
uma relação com essa palavra francesa, colocando a fotógrafa de rua e a artista que perambula pela
rua como o feminino do flâneur, a flâneuse, mas esse jogo de palavras não é tão simples, como explica
Lauren Elkin (2016): “Talvez a resposta não seja tentar fazer uma mulher caber em um conceito
masculino, mas redefinir o conceito em si. [...] Em vez de vagar sem rumo, como seu oposto
masculino, a flâneur fêmea tem um elemento de transgressão: ela vai para onde ela não deveria ir.6”.

Referir-se ao contexto histórico funciona como um agente provocador para que comparações
com o presente sejam feitas. Ocupar a rua e ter o domínio de seu próprio olhar, na recusa de ser um

ou prostitutas há muito tempo e, para elas, pensar em arte seria um luxo (PERROT, 2015). Hoje em dia a situação de
divisão se mantém, mas já há mulheres de todas as classes sociais produzindo arte.
4
Todas as traduções de citações em língua estrangeira foram feitas pela autora. Citação original: “What I long for is the
freedom of going about alone, of coming and going, […] of stopping and looking at the artistc shops, of entering churches
and museums, of walking about old streets at night; that´s what I long for; and that´s the freedom without which one
cannot become a real artist.”
5
“Women did not enjoy the freedom of incognito in the crowd. They were never positioned as the normal occupants of
the public realm. They did not have the right to look, to stare, scrutinize or watch. As the Baudelairean text goes on to
show, women do not look. They are positioned as the object of the flâneur´s gaze.”
6
“Perhaps the answer is not to attempt to make a woman fit a masculine concept, but to redefine the concept itself. […]
Rather than wandering aimlessly, like her male counterpart, the female flâneur has an element of transgression: she goes
where she’s not supposed to.”

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objeto a ser olhada, ainda se constitui como um ato de transgressão. Ao fotografar pela cidade, muitas
mulheres ao longo da história assumiram a posição de quem define, e não de quem é definida.

Fotógrafas de rua na história

Neste resgate do passado, encontramos muitos nomes de mulheres que saíram às ruas para
produzir imagens, que “foram para onde não deveriam ir”. Trago aqui alguns exemplos icônicos de
fotógrafas que utilizaram o urbano como meio para suas criações, e também como um dos assuntos
principais das imagens. Como Berenice Abbott, que documentou a cidade de Nova York na década
de 30, primeiramente de forma independente, e depois para a Federal Art Project (FAP). Abbott
convenceu as autoridades de que o registro visual da arquitetura da cidade era relevante para entender
a história do local, seus esforços culminaram em uma exposição e livro chamados Changing New
York (ROSENBLUM, 2010, p.176). Abbott foi uma grande pesquisadora da obra de Eugène Atget
(1857 – 1927), fotógrafo francês que documentou, até o ano de sua morte, a cidade de Paris e as
mudanças que ocorreram nela ao longo do tempo, passando do medieval para o moderno. Por seu
método de trabalho consistir em perambular pela cidade, Atget pode ser considerado um flâneur.

Nos anos 40, o fotojornalismo e a fotografia documental cresceram com bastante força e, o
fotojornalismo, como disse a fotógrafa Sabine Weiss (1924), era um meio para as mulheres poderem
ver tudo, chegar em todos os lugares, conversar com todas as pessoas (ROSENBLUM, 2010, p.185).
Existem várias fotojornalistas que foram muito importantes para a história da fotografia e para a
história do mundo contado em imagens, como Dorothea Lange (1895 – 1965), Lee Miller (1907 –
1977), e Margaret Bourke-White (1904 – 1971), para citar apenas algumas. Bourke-White era a
fotojornalista mais aclamada na época, ela popularizou o fotojornalismo ao escrever vários livros
sobre o assunto, misturando autobiografia com imagens.

Bourke-White era dos Estados Unidos, mas foram as europeias as pioneiras na fotografia de
rua. Esse método de trabalho foi adotado posteriormente pelas norte-americanas, principalmente
depois da Segunda Guerra, segundo conta Naomi Rosenblum:

[...] as mulheres começaram a retratar a cena urbana diretamente, muitas vezes com uma forte
ênfase no drama humano... Este desenvolvimento pode ser atribuído a vários fatores: a
disponibilidade de aparelhos pequenos e sofisticados (como a Leica) que poderiam ser
transportados facilmente e usados discretamente; o exemplo estabelecido pelas mulheres
refugiadas que foram acostumadas a fotografar nas ruas das cidades europeias; e a

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disponibilidade de mais tempo de lazer devido ao crescimento econômico após a Segunda
Guerra Mundial.7 (ROSENBLUM, 2010, p.227)

Nos Estados Unidos surgem nomes como Helen Levitt (1931 – 2009), Ruth Orkin (1921 –
1985) e Mary Ellen Mark (1940 – 2015). Orkin era uma fotógrafa viajante e, em conjunto com
Ninalee Craig criou a famosa fotografia An American Girl in Italy, em 1951, na cidade de Florença.
Por mais que Craig fale do momento registrado na fotografia como uma mulher independente sendo
apreciada8, a imagem pode ser lida de maneira diferente. Ela traz a sensação de que a rua, o espaço
público, não é um lugar seguro, ou ao menos tranquilo, para uma mulher desacompanhada de um
homem. É uma fotografia que conversa com a temática deste artigo, pois traz as perguntas: a quem
pertencem as ruas? A quem pertence o direito de circular livremente pela cidade? (Fig. 1)

Figura 1: An American Girl in Italy: Ruth Orkin, 1951. Fonte: http://www.orkinphoto.com/ Acesso em Junho de 2017.

Como exemplo histórico mais recente, temos o caso de Vivian Maier (1926 - 2009), fotógrafa
de rua norte-americana. Vivian não teve seu trabalho reconhecido em vida, apenas após a sua morte.
Ela trabalhava como babá e, em seu tempo livre ou quando passeava com as crianças de quem

7
“Instead, women started to depict the urban scene directly, often with a strong emphasis on the human drama being
played out. This development can be attributed to several factors: the availability of small yet sophisticated apparatus
(such as the Leica) that could be carried easily and used discreetly; the example set by women refugees who were
accostumed to photographing in the streets of European cities; and the availability of more leisure time due to the
economics upswing following World War II.”
8
Ninalee Craig deu vários depoimentos ao longo dos anos falando que para ela, a fotografia não era um símbolo do
assédio nas ruas. Uma parte da história pode ser lida em:
http://www.messynessychic.com/2013/04/19/american-girl-in-italy-behind-the-iconic-photo/
Acesso em junho de 2017.

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cuidava, fotografava pelas ruas de Nova York e Chicago. E fotografava muito, durante cinco décadas
de trabalho ela deixou por volta de 100.000 negativos por revelar. Seu trabalho foi descoberto apenas
em 2007, por John Maloof, que começou a revelar, imprimir e reproduzir seu material na internet,
revistas, livros e exposições. Vivian se tornou um marco na fotografia de rua, é impressionante a
quantidade e a qualidade do material que ela deixou.9

Todas essas mulheres, e muitas outras, foram pioneiras no ato de sair para as ruas fotografar
e, poderiam ser chamadas de flâneuse. Abriram caminhos e portas para que cada vez mais mulheres
ocupassem os lugares que não foram destinados a elas. Um nome que não pode deixar de ser citado
quando o assunto é acessar lugares que não deveria, é Diane Arbus (1923 – 1971), fotógrafa conhecida
por ter um gosto pelo inusitado, pelo peculiar, por fotografar pessoas que fugiam ao comum:

Ela começou a rondar a cidade a qualquer hora, iniciando uma conversa com qualquer pessoa
desamparada que ela encontrasse. Foi difícil no início, ela era tão tímida com as pessoas, mas
não tinha medo de Nova York às duas da manhã. (...) Ela parecia estar mais viva no escuro
quando ela viajava sozinha no metrô, carregando com ela suas câmeras. 10 (BOSWORTH,
2005, p.162)

Assim como Diane mostrou, para fazer fotografia é preciso não ter medo do desconhecido,
não ter medo da cidade e de tudo que pode ser encontrado nela. Essas mulheres destemidas servem
de inspiração para mim cada vez que pego a câmera e saio para a rua fotografar.

Arlequins

Pensando no elemento de transgressão da flâneuse ao ir para a rua, as fotógrafas acrescentam


uma segunda camada de desobediência, pois uma artista que toma o controle do olhar e o faz
ocupando o espaço da rua transgride as regras duas vezes. Michelle Perrot (2015, p.157) sinaliza que
“A simples presença de mulheres na rua, agindo em causa própria, é subversiva e sentida como uma
violência.”. Na série que apresento, para tornar o jogo mais interessante, adiciono uma terceira
transgressão, que consiste em uma mulher direcionando seu olhar aos homens e fabricando imagens
sobre eles.

Como mencionado anteriormente, artistas homens produzindo imagens sobre mulheres não é
uma situação nova ou incomum, já o contrário, artistas mulheres representando homens,

9
Seu material e sua história podem ser encontrados no site oficial: http://www.vivianmaier.com/
Acesso em Junho de 2017.
10
“She had begun to prowl the city at all hours, striking up a conversation with any outcast she happened to encounter. It
was hard at first, she was so shy with people, but she wasn´t afraid of New York at two a.m. (…) She seemed to be more
alive in the dark as she traveled by herself on the subway, laden down with her cameras.”

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principalmente seus corpos, é algo mais difícil de encontrar. Como fala Alexandre Santos, a escassez
de imagens sobre o corpo masculino se deve ao papel que a masculinidade ocupa no imaginário social:

Assim, a corporeidade masculina, enquanto incitação ao desejo, é vista como zona interdita,
território inalcançável, que deve ser refutado nas regras latentes da boa fotografia. Daí vem
a pouca recorrência dessa iconografia, comparada à representação do corpo feminino em
circunstância semelhante. O centro do poder social está relacionado à proeminência da
masculinidade no imaginário social, construída como uma espécie de fortaleza inabalável
geradora da ação e, justamente por isso, jamais vista como objeto de uma ação alheia, ainda
que esta se sustente no olhar (SANTOS, 2006, p.146).

Para mim, esta é uma questão que merece ser repensada e, ao desejar produzir mudanças,
proponho-me a criar imagens sobre o assunto. O objetivo é colocar o homem como objeto de uma
ação alheia, da ação de uma artista, de uma fotógrafa, de uma mulher que age através das imagens.
Segundo os conceitos de Donna Haraway, ao realizar tal ação, eu seria um corpo marcado (mulher)
representando o corpo não marcado (homem):

Gostaria de continuar apoiando-me metaforicamente num sistema sensorial muito difamado


no discurso feminista: a visão. A visão pode ser útil para evitar oposições binárias. Gostaria
de insistir na natureza corpórea de toda visão e assim resgatar o sistema sensorial que tem
sido utilizado para significar um salto para fora do corpo marcado, para um olhar
conquistador que não vem de lugar nenhum. Este é o olhar que inscreve miticamente todos
os corpos marcados, que possibilita à categoria não marcada alegar ter o poder de ver sem
ser vista, de representar, escapando à representação. Este olhar significa as posições não
marcadas de Homem e Branco [...] (HARAWAY, 1995, p.18).

A série “Arlequins” foi realizada em saídas para fotografar pela cidade durante o Carnaval de
Rua de Porto Alegre, nos anos de 2015, 2016 e 2017. Participei da multidão que ocupava as ruas e
estava reunida naquele local por um motivo específico: festejar. Nestes movimentos de ir para a rua
fotografar, identifico-me com o conceito de “errância” trazido por Paola Berenstein Jacques, pois, ao
realizá-los, saio em busca do Outro:

A experiência da diferença, do diferente, do Outro, seria então uma experiência da alteridade.


A experiência errática pode ser vista como possibilidade de experiência da alteridade na
cidade. A experiência errática seria uma experiência da diferença, do Outro, dos vários
outros, o que a aproxima de algumas práticas etnográficas e posturas antropológicas. O
errante, em suas errâncias pela cidade, se confronta com os vários outros urbanos
(JACQUES, 2014, p.30).

No meu caso, o Outro que busco capturar em imagens é o homem, o masculino. Ao mesmo
tempo, eu sou o Outro por ser mulher, como fala Simone de Beauvoir (2009, p.17): “A mulher
determina-se e diferencia-se em relação ao homem, e não este em relação a ela: a fêmea é o inessencial
perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro.”.

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Durante o carnaval, por essa festa se realizar na estação do verão e ser um momento de culto
ao corpo, muitos homens estavam sem camisa, com muita pele aparecendo. No resultado final, ficou
evidente a presença do corpo nas fotografias. Um corpo masculino escultural, trabalhado para se
encaixar nos estereótipos de beleza vigentes e, ser exibido quando possível (Fig. 2). Ao fotografar em
um lugar público, não tenho o consentimento desses homens para fazer uso da sua imagem, mas, ao
mesmo tempo, o consentimento está dado pela vontade prévia que existe da parte deles de uma
exibição do próprio corpo.

Figura 2: Fotografias da série “Arlequins”. Leli Baldissera, 2015. Fonte: Acervo pessoal.

Para mim, pegar a câmera e sair na rua para fotografar homens, é um exercício de
empoderamento e não-submissão. Não se trata de uma vingança por ter sido e ainda continuar sendo
objeto de um olhar masculino, mas sim de uma forma de recuperar o poder do olhar, tomar o controle.
O ato em si chega a ser mais importante que as imagens resultantes.

Creio que cabe ao artista saber fazer uso de seu potencial criador para inserir imagens que
fujam ao lugar comum. Um desses consensos sobre ordem social que necessita ser questionado pelos
e pelas artistas é a questão da predominância do olhar masculino sobre o corpo feminino, e a falta de
um olhar feminino sobre o masculino. Ou, pelo menos, o questionamento do modo como esses olhares
se constituem e os estereótipos são construídos. Existem poucos espaços para o culto ao corpo
masculino que não sejam ambientes voltados aos próprios homens gays. Ao pensar em trabalhos
fotográficos relacionados ao tema, nomes como Alair Gomes e Robert Mapplethorpe vêm à mente,
mas para trazer artistas mulheres é necessária uma pesquisa mais minuciosa. Entre os nomes
femininos que me servem de referência, está o de Sally Mann (1951), uma fotógrafa consciente de
que o trabalho que faz como artista e mulher, usando um modelo masculino (no caso, o seu marido)
ainda é algo que choca. Sobre isso, ela pondera:

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Eu sou uma mulher que olha. Dentro de narrativas tradicionais, as mulheres que olham,
especialmente as mulheres que olham com firmeza para homens, foram punidas. Tome a
pobre Psique, punida por todos os tempos por ousar levantar a lanterna para finalmente ver
seu amante. Eu posso pensar em inúmeros homens, de Bonnard a Callahan, que fotografaram
suas amantes e cônjuges, mas estou tendo dificuldades para encontrar exemplos paralelos
entre as minhas irmãs fotógrafas. O ato de olhar um homem de maneira avaliativa, fazendo
contato visual na rua, pedindo para fotografá-lo, estudando o seu corpo, sempre foi um
empreendimento perigoso para uma mulher; no entanto, para um homem, esses atos são
comuns, até mesmo esperados.11

Assim como Mann, busquei produzir imagens em que o fato de ser uma mulher fotografando
seja significativo. Mulheres fotógrafas existem muitas, mas ao deixar claro que o gênero é importante,
assumo uma tomada de discurso. Concordo com Haraway quando ela fala que:

Não buscamos os saberes comandados pelo falogocentrismo [...] e pela visão incorpórea, mas
aqueles comandados pela visão parcial e pela voz limitada. [...] O único modo de encontrar
uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular (HARAWAY, 1995, p.33).

O fato de ser uma artista mulher que se utiliza do corpo de homens muda a maneira como a
imagem será produzida e também analisada. Ao criar fotografias a partir de um lugar marcado de
mulher, utilizando essa marcação como discurso, imagens diversas são inseridas dentro do campo da
cultura visual – que já está tão marcado pela visão masculina predominante – trazendo assim a
possibilidade de diálogo, discussão e de mudança de perspectivas.

Conclusão

A vivência de enfrentamentos específicos do gênero feminino no espaço urbano é comum


para moradoras de grandes cidades. Seria muito mais confortável permanecer no espaço doméstico
que foi reservado às mulheres, afinal, como dizem Michel de Certeau e Luce Giard (2013, p.207), “O
espaço privado é aquela cidade ideal onde todos os passantes teriam rostos de amados, onde as ruas
são familiares e seguras, onde a arquitetura interna pode ser modificada quase à vontade.”. Mas,
muitas mulheres não se contentaram com essa condição e saíram às ruas em busca do outro, e
continuam saindo.

11
“I am a woman who looks. Within traditional narratives, women who look, especially women who look unflinchingly
at men, have been punished. Take poor Psyche, punished for all time for daring to lift the lantern to finally see her lover.
I can think of numberless males, from Bonnard to Callahan, who have photographed their lovers and spouses, but I am
having trouble finding parallel examples among my sister photographers. The act of looking appraisingly at a man, making
eye contact on the street, asking to photograph him, studying his body, has always been a brazen venture for a woman,
though, for a man, these acts are commonplace, even expected.”

Disponível em: <http://jmcolberg.com/weblog/2009/08/sally_mann_proud_flesh/>.


Acesso em Janeiro de 2015.

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Justamente ao apoderar-se do jogo de ver e ser visto é que o ato de produzir imagens se
configura como um ato de domínio que, ao ser tomado por uma mulher, inverte uma lógica pré-
estabelecida pelo sistema das artes. As mulheres, por muito tempo, foram representadas e tiveram sua
imagem criada por outros, não por elas mesmas, e isso é uma questão que remete ao poder, como traz
Deepika Bahiri:

Aqueles que têm o poder de representar e descrever os outros claramente controlam como
esses outros serão vistos. O poder de representação como uma ferramenta ideológica
tradicionalmente faz dele um espaço disputado. A narradora de Zenzele, romance epistolar
de J. Nozipo Maraire, lembra sua filha de que, “até os leões aprenderem a ler, os contos de
caça sempre glorificarão o caçador.” (BAIHRI, 2013, p. 666)

Jogando com essas palavras de Maraire, as mulheres que contam sua história e a história dos
outros, seriam leoas que aprenderam a ler. No caso mais específico deste texto, leoas que aprenderam
a fotografar e a desbravar a selva urbana. Essas mulheres desafiam o sistema, bem como as que
escrevem e pesquisam a história das mulheres artistas negligenciadas no passado. A recuperação
histórica é primordial, mas por si só é insuficiente. É preciso evitar o estereótipo feminino e salientar
a heterogeneidade dos trabalhos existentes, ao mesmo tempo em que se reconhece que mulheres
partilham determinadas vivências em sistemas sociais (POLLOCK, 1988, p.55). É preciso também
que as mulheres artistas e não artistas continuam transgredindo cada vez mais, ao ocuparem as ruas
das cidades na intenção de buscar o domínio de seu próprio olhar.

Referências

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21(2) p. 659-688, maio- agosto, 2013.
BASHKIRTSEFF, Marie. The Journal of a Young Artist, 1860-1884. New York: Cassell and
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BAUDELAIRE, Charles. A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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ELKIN, Lauren. 2016 “A tribute to female flâneurs: the women who reclaimed our city streets”
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HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da
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JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos Errantes. Salvador: EDUFBA, 2014.
MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In. XAVIER, Ismail (Org). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

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PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2015.
POLLOCK, Griselda. Vision & difference. Femininity, Feminism and the Histories of Art. London:
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VARGAS, Rosane Teixeira de. Excluídas da memória: mulheres no Salão de Belas Artes do Rio
Grande do Sul (1939-1962). Trabalho de conclusão de graduação. Universidade do Rio Grande do
Sul – Instituto de Artes, Porto Alegre, 2013.

TITLE: FLÂNEUSE: FEMALE PHOTOGRAPHERS OCCUPY URBAN SPACE

Abstract: This article´s theme consists of women photographers who use the urban space to create
their production. By diverting from the standard norm, where the domain of the look and public space
is assumed to be masculine, we talk about the power of the gaze related to gender issues and how it
is reflected in the production of images and the occupation of streets in our actual society. After
making a brief history with female names that are reference for street photography, will be presented
an author´s artistic project, who takes the active side in the game of looks by photographing men and
their bodies during the Carnaval de Rua de Porto Alegre. In these movements of going to the street
to photograph, there is the identification with the concept of "wandering" and the search of the Other.
The feminine word flâneuse arises in opposition to the masculine figure of the flâneur, a character of
modernity who walked the streets of cities enjoying the free access allowed to men, which would be
unthinkable for women. Occupying the street and having the domain of its own look, in the refusal
to be an object to be looked at, still constitutes an act of transgression. I am interested in researching
the women who assume the position of the one who defines, and not of who is defined, even if it is
only at the moment of art creation. There are many female photographers but by making it clear that
gender is important, a position is assumed.
Keywords: Gender, Female photographers, Urban space, Photography, Body.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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