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Resumo:
A língua Guató é uma língua ameríndia, outrora falada pelo povo de mesmo nome, no
ecossistema pantaneiro. São índios ainda existentes e que clamam pela revitalização de
sua finada língua. A partir dessa demanda desses índios de tradição canoeira, o projeto
“Línguas Indígenas Ameaçadas: Pesquisa e Teorias Linguísticas para a Revitalização”
(CNPq, Edital Universal 2014, Proc. 454950/2014-4), coordenado pela Prof. Dra. Bruna
Franchetto, busca estudar metodologias de Revitalização Linguística para tentar trazer de
volta o que for possível do Guató. É neste sentido que o presente trabalho de Iniciação
Científica se inscreve. Os resultados do projeto, que está por acabar, incluem oficinas de
Revitalização Linguística nas terras indígenas Guató, publicação de trabalhos acadêmicos
sobre seu desaparecimento e, surpreendemente, a coleta de novos dados linguísticos obtidos
com os dois últimos falantes dessa língua milenar: Vicente e Eufrásia Ferreira. O
consequente contato com os últimos falantes do Guató permitiu ao autor deste trabalho,
Walter Alves, estudar aspectos da gramática do Guató. Isto resultou em sua monografia de
conclusão de curso de graduação, onde Alves analisa a classe de palavras dos numerais e
seu sistema de quantificação.
(1)
Contexto: Você foi ao açougue e comprou dois pedaços de carne e fritou. Como
você diz „eu fritei duas carnes„
Além da coleta de dados com os últimos falantes do Guató, foi preciso procurar
as fitas de gravação de elicitação de dados de Palácio para a construção de sua tese de
doutorado na década de 80. Esta tarefa não foi fácil, pois infelizmente suas fitas
desapareceram. Entretanto, o cineasta sul-matogrossense Joel Pizzini, que realizou um
filme sobre a retomada da identidade Guató no começo dos anos 2000, intitulado “500
Almas”, tinha em sua material de gravação algumas das fitas da linguista. Sem hesitar,
Pizzini forneceu a Prof. Dra. Bruna Franchetto tais fitas. Deste modo, o autor Alves
pôs-se a escutá-las, anotando em quais trechos de áudio haviam palavras e frases em
Guató. Também, Alves editou esses arquivos e realizou a transcrição fonológica de
alguns deles. Algumas de suas transcrições das fitas de Palácio seguem abaixo:
Arquivo 69:1
n-ógóg -jo
IND-beber.água-1SG
„eu bebi água‟
Arquivo 70:
na-kí-ga-jo g-otý go-dʒék
IND-pescar-PONT-1SG DET-piranha DET-rio
„eu pesquei piranha no rio‟
Arquivo 71:
na-kí-o go-dʒék
IND-pescar-1SG DET-rio
„eu pesquei no rio‟
Arquivo 72:
na-k ni-o máké
IND-dormir-1SG ontem
Arquivo 73:
na-k ni-o gínɛ
IND-dormir-1SG aqui
„eu dormi aqui‟
Arquivo 74:
na-g -na-jo g-épago
IND-matar-?-1SG DET-bicho
„eu matei bicho‟
1
Abreviação para glosas: 1 – primeira pessoa; 2 – segunda pessoa; SG – singular; DET – determinante;
PONT – pontual; DESC – descritivo; EP – epêntese; INTR – intransitivizador.
da-m -gɨrɨ g-épago mah óvɨ-ru
DESC-ser.muito-INTS DET-bicho lá casa-1SG
„eu tenho muito bicho lá em casa‟
Arquivo 75:
na-g -ga-jo g-épago
IND-matar-PONT-1SG DET-bicho
„eu matei bicho‟
Arquivo 76:
na-g -jo go-gáre-dʒ-ajɛ
IND-matar-1SG DET-branco(não-índio)-EP-ave
„eu matei galinha (ave do branco, do não-índio)‟
Arquivo 77:
na-g -jo go-gáre-dʒ-ajɛ máké
IND-matar-1SG DET-branco(não-índio)-EP-ave
„eu matei galinha ontem‟
Arquivo 78:
dágwá nuni-g -rehe? (rehe pronunciado como rihe - fonética)
onde trabalhar-INTR-2SG
„onde você trabalha ‟
Arquivo 79:
dágwá nuni-g -rehe? (rehe pronunciado como rihe - fonética)
onde trabalhar-INTR-2SG
„onde você trabalhou ‟
Arquivo 80:
dágw(á) ógóg -rehe?
onde beber.água-2SG
„onde você bebe água ‟
Entrevistado Conteúdo
Seu Domingos Conta sobre a história dos aterrados
Guató. e fala das constantes expulsões da
terra as quais sobreviveu (processo de
desterritorialização).
Seu Amâncio Conta sobre o uso de ervas medicinais
indígenas.
Sr. Rondon Conta sobre a época de sua vida
trabalhado em fazendas, realidade comum
de muitos índios Guató, e aproveita para
dar explicações sobre a “religião” desses
índios, já que Pizzini mostrou-se bastante
interessado em assuntos de caráter
“espiritual”.
Maria Rita (professora) Conta a sua longa relação de vida com os
Guató e o ensino de disciplinas escolares.
Dona Leonilza Relembra cantigas e rezas de infância (em
português).
Dona Maria Oferece um depoimento sobre o motivo de
os índios não falarem mais a língua, bem
como diz em Guató algumas palavras e
sentenças das quais se lembra.
Vicente (atualmente último falante de Diz algumas sentenças em Guató na
Guató) presença de Dona Maria.
Tabela 1. Entrevistados de Pizzini e resumo geral do conteúdo de suas entrevistas.
Entrevistado Conteúdo
Manoel de Barros (escritor) Leitura de poema e infância com os
Guató.
Adair Pimentel Palácio (linguista) Comentário sobre a gramática Guató.
Prof. Haas (na Alemanha) Leitura de trabalho do etnólogo Max
Schdmit e explicação sobre o conceito de
colecionismo (em espanhol).
Irma Ada (missionária) Fala da “descoberta” dos Guató e a morte
do militante indígena Celso
Dona Negrinha Conta o mito de formação das baías, fala
da relação dos Guató com a água e
animais (onça e cobra) e conta a história
do cachimbo e do feiticeiro. Também,
depõe sobre a época de trabalho escravo
na fazenda que frequentou.
Seu Amancio História de vida.
Seu Inocêncio História de vida. Diz que a mãe é “pura”
índia.
Seu Zequinha (não Guató) Fala de sua história de vida, ensina a fazer
viola e comenta a morte do militante
indígena Celso. Também depõe sobre a
posse da Ilha Ínsua e sobre ter aprendido
com os índios a fazer chicha.
Arqueólogo (provavelmente Jorge Fala de achados arqueológicos ligados ao
Eremites) Guató
Benedito Trata do esquecimento da língua
Cecília Conta seus sonhos e crenças
Sebastião Trata do esquecimento da língua
Veridiano (parente de Vicente, último Fala sobre o material da viola
falante da língua)
Zulmira Trata do esquecimentoda língua e conta a
história da piranha
Josefina (principal consultora do estudo Conta história de vida e fala sobre o
de Palácio) militante indígena Celso. Depõe sobre seu
aprendizado da língua, que foi com a avó.
Ressalta a importância de casar com índio
Severo (ex-cacique) Fala de hábitos alimentares do passado e
de agora e também da morte do militante
indígena Celso.
Dona Maria Trata do esquecimento da língua e de sua
história de família.
Filha de Dona Maria Fala de parentes que não conhece e
também instiga o filho a falar palavrinhas
em Guató.
Marçal (desconhecido?) Fala sobre a questão da terra indígena e a
indignação dos índios nessa questão..
Idelfonsa Conta a expulsão da Ilha Ínsua
Naelson Fala de seus sentimentos em relação à
morte do militante indígena Celso.
Sr. Rondon Fala de Dona Negrinha.
Tomas Fala da morte do militante indígena Celso.
Índio bororo (não nomeado) e índio Guató Falam sobre ser indígena e a identidade
(provavelmente Seu Domingos) Guató, ressaltando que cada grupo
indígena tem o seu idioma.
Eva Fala de vida após a morte
(espiritualidade).
Noemia Trata da visão de grupos evangélicos
sobre os índios e fala da autoestima
indígena.
Dona Dalva Maria (esposa do ex-cacique Fala sobre os Guató e a localização deles.
Severo e militante da causa Guató)
Benedito Fala sobre Dona Zulmira, dizendo que ela
se lembra de algumas coisas da língua.
Veridiano (parente de Vicente, último Fala sobre a caça de passarinho e sobre
falante Guató) pinturas rupestres.
Vicente (último falante Guató) Fala sobre trabalho na roça, sobre onça e
sobre sua parente Dona Julia
Armando Fala sobre a pesca e os tipos de pena e
ponta usados nela.
índio Guató (desconhecido) Fala do porquê não querer morar na Ilha
Ínsua.
(2)
(3)
(b) Hup:
(hi-) b b’-ni
(FACT-)acompanhar/irmão-existe
„irmãos existem/acompanhado/4‟
(c) Yuhup:
b b - - wǎp
companheiro-ser-quantidade/acompanhar-quantidade
„irmão-existe quantidade/acompanhar quantidade /4‟
(d) Dâw:
’ ’
um irmão
„um irmão existe/4, 6, 8, 10‟
’ ’ ’ h
um irmão NEG
„um não tem irmão /5, 7, 9‟
(4)
(a)
(b)
(5)
(a)
ɾ -p - w - -p
DESC-muito esse DET-jacaré deitado-PER lá DET-calor
Lit: „os jacarés são muitos, eles estão deitados no calor‟
„tem muitos jacarés e eles estão deitados no calor (sol)‟
(b)
ɾ -p -g - -
DESC-muito esse DET-água DET-AUM-rio
Lit: „a água é muita no rio grande‟
„tem muita água no rio grande‟
O autor deste trabalho também comparou o sistema numeral usado na ilha Ínsua,
Aldeia Uberaba (MS), com aquele registrado por Palácio (1984, 1996) a fim de verificar
se os sistemas eram muito diferentes, já que na Ilha Ínsua, por uma iniciativa própria
dos Guató, a sua finada língua é ensinada em fragmentos (palavras e algumas frases
soltas). Alves chegou à conclusão de que o sistema registrado por Palácio e aquele
usado na Aldeia não diferem muito um do outro, somente apresentado diferenças em
termos de ganhos ou perdas fônicas de alguns segmentos nas palavras numéricas.
Em relação às fontes do material analisado por Alves para que soubesse o uso de
numerais em Ínsua, estas vieram de materiais de ensino do Guató fornecidos a Alves
pela ex-professora da aldeia Alice e por Dalva Maria, esposa do ex-cacique Severo, que
por anos anotou em cadernos seus frases e palavras em Guató que obteve dos últimos
falantes da língua – Dalva cuidara de muitos deles durante a doença trazida pela velhice.
A grande semelhança entre os sistemas, porém, permite concluir que os Guató de Ínsua
reproduziram o sistema registrado por Palácio.
Imagem 7. Caderno de Dalva Maria com anotações de palavras e frases em Guató.
Imagem 10. Dalva Maria em entrevista fornecida a Alves, Godoy e Balykova em sua
casa no bairro do Cristo, Corumbá (MS). Dalva conta sobre as dificuldades de ser
liderança indígena e o processo de retomada da identidade étnico-política dos Guató.
4. Conclusão.
O esforço de documentar qualquer língua requer que ele seja traduzido nas
novas mídias digitais que permitem aos linguistas registrarem a memória de seus
falantes. Por isso, todo o material de estudo, bibliográfico ou audiovisual, está para ser
armazenado em um acervo digital no Museu do Índio (Funai-RJ). Em um cenário em
que somente 12% das línguas indígenas brasileiras possuem uma descrição avançada
(Moore et al 2008), estudá-las e registrá-las em acervos digitais é um passo importante
para a sua manutenção ou, em outros termos, sua revitalização, objetivo do projeto
coordenado por Franchetto.
Os Guató anseiam por novos projetos linguísticos em seu território. Em algum
sentido, isto já vêm sendo providenciado por Francisca Navantino Paresi (Chikinha),
que trabalha na SEDUC de Mato Grosso pois, na ocasião da Segunda Oficina de
Revitalização Linguística, Chikinha conversou com os Guató da Terra Indígena Baía
dos Guató (MT) sobre a possibilidade da criação de uma escola indígena lá. A escola
indígena é uma esperança para esses índios, que a desejam, embora seja ainda
necessário realizar com eles uma discussão a respeitode um conceito chamado de “plano
político-pedagógico”. Este plano-conceito é fundamental às escolas e define os
objetivos da comunidade para a escola. Em outras palavras, o que a comunidade quer da
“educação” fornecida pela instituição escolar? A possibilidade de aprender a ler e
escrever? O ingresso de seus futuros alunos em universidades? Enfim, um plano que
trace metas e objetivos imediatos e a longo prazo, comum às escolas.
Todo o trabalho com Eufrásia Ferreira mostrou também que é necessário
continuar a visitá-la para coletar dados linguísticos do Guató. Apesar de Eufrásia ser
uma lembrante da própria língua, ela se mostra muito interessada em ajudar os
linguistas a registrarem o que for possível de suas lembranças. Inclusive, topou ir com
Godoy e Balykova, em Janeiro de 2018, à sua ex-casa Ilha Ínsua, onde visitou parentes
e até mesmo Vicente, o outro falante da língua. Tal registro de encontro foi gravadopor
Godoy e Balykova. O autor deste trabalho não participou desta viagem. Cabe agora,
então, continuar, se possível, com o projeto.
5. Relatório de atividades do bolsista.
Em Outubro:
- Revitalizando uma língua: O caso do Guató, com Dayane Pontes (UFRJ) (39° Jornada
Giulio Massarani de Iniciação Científica, Tecnológica, Artística e Cultural, organizado
por: UFRJ);
Em Agosto:
- Aspectos do sistema numeral Guató (39° Jornada Giulio Massarani de Iniciação
Científica, Tecnológica, Artística e Cultural, organizado por: UFRJ);
- A distinção massivo/contável em Guató, com Gustavo Godoy (UFRJ) (Workshop “A
typology of count, mass and number in Brazilian languages”, organizado por: Suzi
Lima (Uoft-UFRJ) e Susan Rothstein (Bar-Ilan University) no Museu do Índio (Funai-
RJ).
- Um, dois, três, quatro: Numerais Guató (Workshop of undergraduate research on
Brazilian languages, organizado por: Suzi Lima (Uoft-UFRJ) no Museu da República.
Cursos:
Em Março:
A Avaliação da Competência Linguística: Pesquisa e Aplicações, organizado por: Luiz.
A. Amaral (University of Massachusetts Amherst) no Congresso da Abralin
(Associação Brasileira de Linguística) – edição UFF.
Viagens de campo:
Em Fevereiro:
Cidade de Corumbá (MS) para visita à consultante Eufrásia Ferreira.
Em Julho e Agosto:
Terra Indígena Baía dos Guató (MT) e cidade de Corumbá (MS) para realização de
Oficinas de Revitalização Linguística e visita à consultante Eufrásia Ferreira. Pequena
estadia em Cuiabá na casa da colaboradora Francisca Navantino Paresi (Chikinha).
(2016)
Em Novembro:
Curso de capacitação informal sobre o uso dos programas de armazenamento e
transcrição de dados FLEX e ELAN, organizado por: Nathalie Vicek.
7. Avaliação do bolsista sobre a pesquisa.
WILSON, J. 1959. Guató word list. Summer Institute of Linguistics (SIL). Brasília-DF.