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FOI O DESTINO

M. DELLY

BIBLIOTECA DAS MOÇAS


VOLUME 73
M. DELLY
FOI O DESTINO
Tradução de A. BERNARD
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
SÃO PAULO
Do original francês
LA LAMPE ARDENTE'
1954
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
COMPANHIA EDITORA NACIONAL — São Paulo —
que se reserva a propriedade desta tradução.
Impresso nos Estados Unidos do Brasil
Printed in the United States of Brazil

PRIMEIRA PARTE

Com alguns traços rápidos Raimundo terminou o desenho que estava fazendo,
ergueu os olhos e fitou longamente a paisagem que acabara de reproduzir.
Achava-se num terraço pedregoso, cercado de bétulas e pinheiros. Seu
olhar afundava-se pelo desfiladeiro em cujo fundo refervia, invisível,
pequena torrente impetuosa; à sua frente elevava-se enorme penhasco cor
de fumaça, com estrias ruivas, alevantado entre os pinheiros e carvalhos
que cobriam tudo que não era a rocha nua.
Ao cair da tarde cinza, um resto de luminosidade difusa se irradiava do
sol baixo no horizonte, velado por uma grande nuvem côr de pérola. Essa
branda claridade tocava de leve o cimo do enorme penhasco e acariciava os
arbustos que se curvavam para a húmida frescura da torrente, do alto do
despenhadeiro, onde estava o pequenino terraço de balaustrada de pinho
vermelho, florido de roseos gerânios.
Naquela solidão, o silêncio só era perturbado pela efervescência da
torrente. Entretanto, Raimundo percebeu um ruído de passos. Voltou-se e
viu uma moça subindo a álea de pinheiros que ia dar no terraço. A sombra
em redor fazia parecer mais pura a sua fina silhueta num leve vestido côr
de lavanda, a sua tez delicada e os cabelos louros. Seus pequeninos
sapatos de camurça cinza roçavam o chão tapetado de folhagens.
Raimundo perguntou-lhe sorrindo:
— Vens me buscar, Paula?
— Não, Raimundo. São só seis horas. Estou à procura de Ariana, que deve
ter vindo para estes lados.
— Não a vi por aqui.
— Mas virá com certeza. Vamos esperá-la um pouco.
— Sim, mas preciso chegar em casa antes do jantar para vestir o smoking.
Enquanto assim falavam, ela galgava os poucos degraus rústicos que
conduziam ao terraço. Raimundo ofereceu-lhe a mão para galgar o último e
Paula firmou-se nele, agradecendo-lhe com um sorriso.
— Estás desenhando o Penhasco do Inferno?
— Sim, esta é a hora melhor. As sombras o cercam, mas os contornos são
nítidos ainda. Que achas do desenho?
— Ótimo. Estás progredindo, Raimundo. A advocacia tem entre seus membros
um verdadeiro artista.
Riu-se, e Raimundo lhe fez éco.
— A propósito de advocacia, não achas que o sr. Daubrey mudou muito,
depois do seu recente sucesso?
Raimundo deu de ombros, ligeiramente.
— É, ficou mais convencido ainda.
— Convencido? Que idéia!
Havia na voz de Paula um tom de contrariedade.
— O que ele tem é consciência de seu valor, que é bem grande. Dizes isso
devido a seu modo meio frio. Mas sabes perfeitamente que êle é um homem
encantador.
— Desculpa-me não participar do teu entusiasmo por êle. Não faço nenhuma
objeção ao seu valor profissional. Mas, por outro lado, nossas idéias e
opiniões são por demais divergentes para que possamos ser simpáticos um
ao outro.
Paula deu alguns passos até à balaustrada. Como tivesse saído de sob a
sombra dos pinheiros, a suave luz da atmosfera tocava-a agora. Sua tez
tinha a transparência de uma frágil porcelana, levemente rosada. Embora
alta, sua figura delgada e flexuosa dava a impressão de uma graça
ligeira. Com um gesto lento pousou as mãos finas e brancas sobre a
madeira rugosa da balaustrada.
— Aludes decerto a sua descrença, a suas idéias políticas, a sua educação
diferente da tua?
Falava sem olhar para Raimundo. Seus olhos pareciam considerar o penhasco
erguido diante dela como uma gigantesca sentinela guardando o
desfiladeiro.
Raimundo deu uma resposta breve:
— Com certeza é por isso.
Adiantou-se e veio para junto de Paula. O laço de parentesco que havia
entre ambos se patentearia a um observador pela semelhança de alguns
traços, mas esta não era quase notada quando se viam, junto uma da outra,
a fisionomia de Paula, de uma delicadeza quase excessiva, e a de
Raimundo, tão viril não obstante a sua finura, com aquele olhar firme,
ardente, dominador, mas que às vezes se amenizava tanto, como naquele
momento em que pousava em Paula, apoiada com as duas mãos na balaustrada,
inclinando para o sombrio desfiladeiro seu talhe esguio que lembrava o
comprido caule de uma grande flor elegante.
—... Um pouco por isso, mas também porque nossos temperamentos diferem
muito. Tenho alguns camaradas e mesmo um amigo que infelizmente não tem a
mesma crença que eu; alguns têm idéias políticas inteiramente opostas às
minhas; entretanto, embora, divergindo, não deixo de estimá-los, porque
os considero sinceros. O que precisamente reprovo em Daubrey é sua
absoluta falta de convicções, quaisquer que sejam, sua amoralidade
fundamental, de que tive provas, seu desprezo por todas as "velhas
frioleiras", que
é como êle qualifica as coisas que mais respeitamos e que fazem a força e
a honra de uma raça. Êle não passa de um "arrivista" em toda a acepção do
termo, capaz de defender as piores causas, contanto que lhe tragam lucro.
— Creio que exageras. Não tenho absolutamente a mesma impressão. Nem
mamãe. Às vezes és muito severo nos teus julgamentos
Raimundo ergueu os olhos para ela e sorriu, como para atenuar a
reprovação contida em suas palavras.
—... Devemos ser indulgentes com êle, pois não teve, como tu, a sorte de
ser orientado por bons guias desde a infância.
Raimundo pousou a mão sobre o ombro dela e disse com doçura:
— Não passas de uma criança, Paula. Há coisas que não podes compreender.
Ela mostrou um ar contrariado:
— Quer dizer que me consideras uma tola.
Êle inclinou-se, beijou-lhe os cabelos louros e repetiu com brandura, num
tom carinhoso:
— Não passas de uma criança encantadora e eu te amo, minha noiva, minha
Paula.
Todo vestígio de contrariedade desapareceu do lindo rosto. Paula curvou
um pouco a fronte e ofereceu-a ao beijo de Raimundo. Êle enlaçou-a, num
gesto de senhor. Não lhe pertencera ela sempre, essa loura priminha que
conhecera em criança, quando já se dizia: "Paula vai casar com Raimundo"?
Os pais de ambos eram primos irmãos e as duas famílias tinham vivido
sempre na mais afetuosa intimidade. Desde muito estava tacitamente
convencionado que Paula casaria com Raimundo assim que este assentasse a
sua situação na advocacia.
Êle murmurou-lhe:
— Querida, no fim do inverno, nos casaremos. Tenho algumas causas que
espero me darão um nome do qual te orgulharás. Até há pouco eu não
passava de um advogadozinho desconhecido cujos ganhos eram
insignificantes.
— Oh, bem sabes que não precisas te preocupar com isso. Tenho dinheiro, e
mamãe nos dará tudo...
— Não quero ser rico à custa de minha esposa, não o ignoras.
— Bem sei que és orgulhoso.
Paula olhava-o com ternura. Seus olhos, de um azul variável, tinham a
doçura de uma carícia, sob a sombra dos cílios louros que lentamente
baixara.
Êle perguntou, com a mesma voz sussurrante:
— Tu me amas?
— Sim, eu te amo.
Compraziam-se assim em redizer o que já sabiam, como todos os
apaixonados. Paula se acolhia toda entre aqueles braços vigorosos,
protetores. A claridade pálida do poente pousava em seus cabelos louros
sem lhes tirar o mínimo reflexo. Em baixo, no desfiladeiro, o arvoredo
banhava-se nessa luz expirante.
Passou um frêmito pela folhagem e um grande corpo felpudo guiou de uma
moita à borda do terraço. Paula virou-se e disse sorrindo:
— Olha Aby. Ariana não deve estar longe.
— Ainda há pouco falaste da mudança operada em Daubrey. À que se operou
na irmã também é sensível.
— Deves notá-la mais, pois há tempos não a vias. Ela está linda.
— Sem dúvida! respondeu Raimundo, fazendo uma carícia ao cão que se
aproximava.
Ouviu-se um ruído de passos apressados, vindo de um estreito atalho
sinuoso que ia dar ao fundo do desfiladeiro. Paula disse alegremente:
— Essa Ariana é corajosa. Já explorou todos esses caminhos.
Em baixo do terraço apareceu uma moça de vestido cinzento, o rosto
afogueado pela caminhada e pelo ar livre.
Com alguns saltos ágeis alcançou o terraço e chegou junto de Paula e
Raimundo.
— Vim ver outra vez esse famoso Penhasco do Inferno. É a esta hora que
êle fica mais terrível.
— É, sim. Veja-o, senhorita.
A imensa rocha cinzenta estava tenebrosa. A luz fugia-lhe do cimo. O
desfiladeiro era um negro abismo, donde subia o rumor da água
turbilhonante.
De bruços na balaustrada, Ariana curvava para o abismo a cabeça penteada
em leves cachos. Um raio de sol, prestes a desaparecer, parecia querer
demorar sobre aquelas madeixas de um tom mate. Quando ela se ergueu, seus
olhos violeta pareciam iluminados por aquela pálida luz.
— Esse penhasco lúgubre bem merece o nome que tem. Não me disseste, Paula
que êle tem uma história?
— Sim, é uma lenda, que talvez não seja senão a pura verdade. Outróra uma
moça, desesperada, atírou-se lá de cima no abismo, diante do noivo que a
tinha abandonado. Êle estava aqui neste lugar, diz-se. Cheio de remorsos,
êle fugiu, vagueou muito tempo à toa e por fim refugiou-se num mosteiro,
onde, após longos anos de espiação, morreu após grandes padecimentos,
conforme desejara, para obter a salvação da alma de sua noiva.
Um traço de ironia se desenhou nos lábios frescos e rosados de Ariana.
— Pobre moça! Morrer de amor, que loucura!
— Acha que não vale a pena, senhorita? perguntou Raimundo.
Êle atentava com interesse no rosto dela, de uma atraente beleza, o que
estava em grande desacordo com a lembrança que tinha guardado da pequena
estudante risonha que dizia frases engraçadas, vestia-se mal e ria-se ela
própria do seu andar desconjuntado, de seus movimentos desgraciosos, de
seus traços mal feitos.
— Quando eu estiver de toga na bancada dos advogados me confundirão com
meus colegas masculinos, costumava ela dizer.
Naquela época, Raimundo era da mesma opinião, principalmente quando via
Ariana junto de Paula, esta tão fina, elegante e feminina. Agora, porém,
não era mais assim. Sem possuir uma beleza perfeita, Ariana tinha mais do
que isso: a graça dos movimentos, uma fisionomia extraordinariamente viva
e expressiva, a tez de um suave mate, que um sangue vivo e novo por vezes
coloria, e uns olhos que pareciam guardar um mundo de pensamentos, ora
graves, ora alegres.
À pergunta de Raimundo, Ariana teve um riso de mofa:
— Oh, naturalmente que não. O amor é uma coisa que não me interessa.
— Falas assim, mas um dia...
Paula dera o braço à amiga. Ao mesmo tempo, enviou ao noivo um olhar que
significava: "Eu por mim já sei quanto o amor é doce e desejável".
Ariana riu-se novamente.
— Pelo menos, não creio que o amor me enlouqueça a tal ponto. Por
enquanto o meu trabalho, a minha profissão, me bastam. Esses não me farão
sofrer, — do coração, quero dizer. O único sofrimento que temo é este.
Inclinou-se mais uma vez para olhar o fundo do abismo, e Raimundo notou o
lindo tom dourado da sua cabeleira sob o reflexo da luz.
— Creio que está na hora de voltarmos. Tenho que me pentear novamente,
depois de ter passado por esses deliciosos caminhos, onde os ramos sem
nenhuma cerimônia se agarram nos nossos cabelos.
— Não se percebe, disse Paula. Já não és mais a pequena esgadelhada de
antigamente... Lembras-te, Raimundo?
— Muito, disse êle, sorrindo.
Um leve riso soou. A alegria brilhava nos olhos 'de Ariana.
— Eu também me recordo de um moço muito correto que uma vez me fez uma
observação sobre o desmazelo de minha toilette. Foi na praia de Cabourg.
Eu tinha doze anos. Fiquei com raiva de si oito dias, meu senhor, depois
passou.
Um sorriso entreabria-lhe os lábios, subia até os olhos, um fino sorriso
em que havia um pouco de brincadeira, um pouco de ironia.
Raimundo replicou alegremente:
— Teve toda a razão. Meti-me no que não era da minha conta e foi grande
bondade de sua parte não me guardar rancor.
Ela deu de ombros ligeiramente, com um franzido de mofa nos lábios, que
significava igualmente: "É que, no fundo, aquilo não me atingia". Em
seguida inclinou-se para lançar um olhar ao álbum que Raimundo colocara
sobre um banco.
— É seu? Posso ver?
Raimundo apanhou-o e entregou-lhe. Ela folheou-o demoradamente. Paula, a
seu lado, inclinava-se para olhar na severa moldura dos pinheiros.
Apoiado na balaustrada, de costas voltadas para o Penhasco do Inferno,
Raimundo contemplava-as, pensando: "Qual das duas é a mais linda"? E seu
coração enamorado respondia sem hesitar: "É Paula, a minha Paula, de
traços finos e tez de flor apenas desabrochada".
Ariana ergueu os olhos e disse:
— O senhor tem muito talento, de fato. É pena que não tenha seguido a
carreira artística em vez da advocacia... Mas preciso ir andando, já é
hora de me vestir. Não vens, Paula?
— Não, já estou pronta. Fico mais um pouco. É delicioso respirar este ar,
depois de um dia de calor horrível. Raimundo te acompanha, êle também
precisa voltar.
Os dois jovens, precedidos por Aby, meteram-se pela álea de pinheiros que
descia em suave declive. Ariana expressou o seu prazer em conhecer aquele
canto de Périgord, tão pitoresco, e a velha casa, herança de Paula, por
onde várias gerações dos Evennes haviam passado. Nada era mais expressivo
que sua voz de timbre claro, e Raimundo, ouvindo-a, dizia consigo: "Com
esta voz e esses olhos ela ganhará todas as causas".
Ao fundo da álea estendia-se um pátio à moda francesa, que precedia a
casa, vasta construção do século XVII, cuja fachada, dando para o jardim,
quase desaparecia sob a folhagem de tons de cobre. Em pé, junto de um
teixo cortado em forma de cogumelo, um homem alto e espadaúdo contemplava
a casa atentamente. Ao ouvir passos, voltou-se e veio ter com Ariana e
Raimundo.
— Chegaste esta manhã e já andas percorrendo o parque, Ariana? Sem
dúvida, Evennes, descobriu minha irmã em algum atalho de cabras.
Falava em tom de gracejo. Um sorriso lhe adoçou a cara raspada, de traços
fortes, dando súbito brilho aos seus olhos verde-claro.
— Não, absolutamente. Encontrámo-nos no terraço, em frente ao Penhasco do
Inferno.
— Ah, o célebre penhasco. Irei vê-lo amanhã. Ariana disse, com um leve
tom de desdém:
— São coisas que não te interessam. Fernando Daubrey deu pequena risada,
e alisou uma mecha de seu espesso cabelo negro.
— De fato não sou, como tu, um entusiasta da natureza. Em todo caso
apraz-me uma bela paisagem. Dá um certo repouso ao espírito... Evennes,
quando se julga o processo Valliers?
— Lá para dezembro ou janeiro. Estou consultando agora todas as peças dos
autos.
— É uma ótima causa. Um caso que apaixona. Invejo-o, meu caro.
— Não lhe faltam causas, no entanto. Disseram-me que vai ser o defensor
de Vernouroux.
— É exato. Êle não teria a coragem de dirigir-se a si, meu caro. Nas
rodas da alta pirataria todos conhecem bastante a intransigência do Dr.
Evennes.
Esboçara um sorriso; mal se percebia em seu tom um leve sarcasmo.
Raimundo disse com frieza:
— De fato, tenho um grande desprezo por essa gente e não quereria
defendê-los.
Ariana distraía-se a bater na face com uma dália vermelha que acabara de
colher. Seu olhar interessado ia da fisionomia fina e expressiva de
Raimundo à de Fernando, mais rude de traços e não desprovida de uma certa
beleza vigorosa mas que se tornava impenetrável pela rigidez de seus
traços e pelo olhar indecifrável sobre o qual às vezes se baixavam as
grandes pálpebras moles.
Às últimas palavras de Raimundo, Ariana replicou, num tom entre gracioso
e mofador:
— No entanto, defendendo essa gente é que se faz nome. Esses altos
financistas, trapaceiros de alta marca, fazem a fortuna de um advogado e
lhe dão notoriedade. Ora, não é isto que se deseja alcançar, quando se
escolhe uma carreira?
— Esse desígnio deve considerar-se secundário, senhorita. O principal é o
cumprimento do dever social e cristão, a utilização das faculdades no
sentido de melhor servir o próximo e o próprio aperfeiçoamento moral.
Depois disto, então, é permitido buscar o melhor proveito material e a
notoriedade, mas sempre dentro dos limites prescritos pela consciência.
Daubrey franziu um pouco a boca e murmurou com leve ironia:
— Aperfeiçoamento moral... consciência... Belas
palavras.
— Muito lindas, disse Ariana, com um riso fugidio.
Ela curvou-se e enfiou a dália na coleira do cão.
— Vamo-nos preparar, Aby, senão ficamos atrazados.
— Vamos, disse Daubrey, vendo que Raimundo se dirigia também para casa.
Ao chegar à porta envidraçada que dava para o vestíbulo, Ariana voltou-se
e dirigindo ao rapaz um olhar em que se percebia uma espécie de
curiosidade pensativa:
— O senhor acredita nas palavras que acabou de dizer?
— Como, se acredito?
— Devo parecer descortês fazendo uma pergunta desta. Mas sou tão céptica.
Palavras. Belas palavras, como diz Fernando. Quantas vezes as ouvimos!
Mas raramente as ações as confirmam.
— Pois isto acontece muito mais do que julga, senhorita. Lamento vê-la
tão desiludida já nessa idade.
Ela meneou a cabeça. Uma sombra toldava o brilho do seu olhar.
— Em todo caso, é possível. Desejo acreditar na sua sinceridade, mas para
isso precisaria conhecê-lo melhor, — coisa difícil, pois a alma do homem
deve ser qualquer coisa de enganosa.
— Que dizer então das almas femininas? Ela desatou a rir.
— Oh, sim, as almas misteriosas, a Gioconda e o resto. Não, não somos
assim tão cheias de enigma, creia. Os homens é que nos ornam desse
enfeite suplementar, pois nada atrai tanto como o mistério, real ou
suposto.
Ela entrou para o vestíbulo cujo chão de mosaico ressoava sob seus finos
saltos. Raimundo segui-a, admirado da sua atitude resoluta tão em
harmonia com a graça ágil do andar e dos movimentos. Em nada mais
lembrava a adolescente desmazelada, nem mesmo a menina-e-moça prestes a
desabrochar que vira uma vez em casa de Paula, um ano atrás.
Ao chegar ao primeiro andar, Ariana voltou-se e estendeu-lhe a mão:
— Não me guardará rancor pela minha descortesia?
Na penumbra, seus olhos riam. Raimundo apertou-lhe os dedos finos e
respondeu alegremente:
— Não, porque estimo a sinceridade acima de tudo.
- Também eu. Creio que nos entenderemos bem.
E desapareceu no corredor que levava ao seu quarto, enquanto Raimundo
galgava o segundo andar. Êle refletiu:
"Que natureza é a dela? Paula diz que ela é bondosa, franca, de uma
perfeita retidão moral. Mas, minha cara Paula, ela se deixa iludir
facilmente. Em todo caso deve ser um temperamento interessante, pouco
banal. Pobre moça, terá ela a força necessária para passar incólume entre
as armadilhas que a cercam, tão nova e linda, sem um apoio moral, a alma
vazia de Deus".
Depois, reportando o pensamento a Fernando Daubrey, fez a seguinte
pergunta:
"Porque acompanhou êle a irmã até aqui?"
Embora a mãe de Fernando, morta ha dez anos, tivesse sido amiga da sra.
Berta Evennes, e Ariana e Paula fossem íntimas desde crianças, êle nunca
passara das relações as mais cerimoniosas. Naquele ambiente de escola
nada havia que pudesse agradar a um vivedor como êle. Quanto a Raimundo,
quando o encontrava no Foro trocava com êle um aperto de mão sem calor,
algumas palavras e nada mais. Havia entre eles, além do mais, vários anos
de diferença na idade, e enquanto que Daubrey já era considerado um dos
nomes importantes da advocacia, Raimundo Evennes apenas saía da
obscuridade. Como este dissera à prima, as divergências que havia entre
eles eram grandes e não permitiam que uma simpatia recíproca os
aproximasse. Ficara, pois, realmente contrariado ao saber, na tarde
anterior, que Ariana e o pai, o juiz Daubrey, chegariam na companhia de
Fernando, no dia seguinte, a convite da sra. Berta, para passar o mês de
setembro na fazenda dos Pinheirais.
"Êle se ofereceu para nos trazer em seu carro, de passagem para Biarritz,
acrescentara Ariana, e quis aproveitar a oportunidade para cumprimentá-
los."
Naturalmente a sra. Berta convidara-o a ficar por alguns dias e êle
aceitara, com grande surpresa de Raimundo. Que interesse acharia êle em
ficar naquele lugar, por pouco tempo que fosse, naquele casarão isolado
onde não havia, assim como nas cercanias, os divertimentos de que
gostava?
"Afinal, talvez não lhe seja de todo desagradável fortificar-se um pouco
antes de continuar sua vida de prazeres em Biarritz", concluiu Raimundo.
Mas fazia votos pelo momento em que o carro do colega atravessasse a
cancela dos Pinheirais e tomasse o caminho do país basco.
Além disto, o enlevo da sra. Evennes pelo jovem advogado irrítava-o um
pouco. Isto datava de uma brilhante defesa, seguida de uma absolvição
imprevista, que pusera o dr. Daubrey em grande realce. A sra. Berta
admirava os que faziam sucesso. No dia dessa célebre defesa ela estava
presente, acompanhada da filha. Da bancada dos advogados Raimundo via a
linda cabeça de Paula, ornada de um pequeno chapéu de veludo cinza. Nunca
ela lhe parecera mais fina, mais deliciosamente elegante que sob aquela
abobada austera, no meio daquela assistência amontoada ali para assistir
ao sensacional processo. Desagradava-lhe que ela estivesse ali,
precisamente por causa daquela assistência, pois o processo em si não
dava azo a minúcias escandalosas e a sra. Evennes aproveitara a ocasião
para Paula ouvir Daubrey falar.
Quando Raimundo desceu do quarto encontrou a sra. Berta cantando um dueto
com Fernando. Ela ainda cantava bem e a voz de baixo de Fernando era de
timbre agradável. O juiz, afundado numa confortável poltrona, ouvia-os,
esfregando os polegares. Ao mesmo tempo que Raimundo, Ariana e Paula
entravam por outra porta. Paula extasiou-se com a voz de Fernando, a quem
a sra. Evennes fez os maiores elogios. Êle recebia-os com uma atitude de
quem está satisfeito consigo mesmo, o que intimamente irritava Raimundo.
"Como podem elas sentir qualquer simpatia por semelhante indivíduo?"
pensava.
Durante o jantar pouco falou, ocupando-se mais em estudar os novos
hóspedes dos Pinheirais. O juiz, pouco loquaz e dispéptico, bebia água e
quase não comia. Seu rosto magro, enquadrado por umas suiças grisalhas,
tinha de vez em quando uma expressão amável e aprovativa. Era sabido no
Foro que o juiz Daubrey não possuía em alto grau os dons da inteligência,
porém não se podia encontrar pessoa mais condescendente, sempre de acordo
com toda a gente. Dizia-se ainda que só por proteção alcançara as funções
que desempenhava mediocremente, sem nada dever ao próprio mérito em sua
brilhante carreira. Ao sr. Daubrey isso pouco importava. Continuava a
presidir às audiências com a mesma indiferença amável, e a tratar do
estômago, que lhe dava cuidados. Para a esposa, de natureza sensível e
temperamento doentio, fora sempre um desses doces despojos cujo egoísmo
basta para envenenar uma existência. Quanto aos filhos, há muito os
deixara em liberdade absoluta e dizia satisfeito aos amigos: "Criei-os
com toda a liberdade. Aqueles dois não receiam nada na vida".
Tal sistema dava já seus frutos em Fernando. Quanto a Ariana...
Ariana era ainda um mistério. Raimundo contemplava-a, sentada a seu lado,
conversando e rindo. O rosa-pálido de seu vestido dava mais suavidade
ainda a sua pele mate. Quando se animava, seus olhos enchiam-se de um
brilho que ofuscava. Demonstra um contentamento ingênuo e franco.
Raimundo pensava: "Ela parece ser ainda uma moça direita e honesta. Mas
em que se tornará, deixada entregue unicamente ao seu próprio juizo?
Pobre criança".
Em sua frente, Fernando Daubrey ostentava as suas largas espáduas. Fazia
"pose", como há pouco Raimundo dissera à prima. Sabendo que lhe prestavam
toda a atenção, falava muito, aliás bem. Ao contrário da irmã, cuja
fisionomia era cheia de expressão, a dele parecia impassível. O conjunto
de suas feições pareceria frio, se não fossem certos clarões vivos,
penetrantes às vezes, outras caridosos, atravessando-lhe o olhar
inteligente a que o hábil mover das pálpebras dava uma atração
enigmática.
A sra. Berta ouvia o seu hóspede com visível prazer, e Paula também.
Sorria aos ditos espirituosos do jovem advogado, com um sorriso aliás
banal, que quase não se diferençava dos que dirigia aos outros hóspedes.
Mas Raimundo, — sem compreender bem porque — sentia uma impaciência
vizinha do ódio.

II

O dia morrendo envolvia em sua luz os velhos muros de ocre da capela dos
Santos e acendia a púrpura das digitalis que brotavam das inúmeras fendas
que davam a impressão de que em breve o antigo santuário iria ruir. A
sombra parecia mais profunda sob o pórtico ogival, para o qual pendiam os
ramos de um ulmeiro secular. A fachada estreita, ornada de ingênuas
esculturas, se aclarava de móveis claridades, cada vez que um leve sopro
da brisa movia a folhagem de tom amarelado. Esses jogos de luz e sombra
pareciam preocupar Ariana, sentada numa das raízes que brotavam do chão,
mais ainda que o desenho esboçado, entre suas mãos distraídas. Aby dormia
a seus pés. De repente o cão se ergueu, farejou o vento e soltou um rouco
latido, a que outros latidos responderam.
Dois cães de caça acorreram, seguidos de longe por Raimundo em traje de
caçador. De longe, êle saudou a moça que gritou:
— A bolsa vem cheia? — Repleta!
— Tanto peor, feroz carniceiro. Os cães roçavam nela, em busca de cadeias
que ela lhes fez com liberalidade, rindo-se dos olhares desconfiados de
Aby.
Raimundo depôs no chão a bolsa e aproximou-se contente perguntando:
— Está desenhando a capela dos Santos?
— Estou tentando, somente. A fachada é linda, em sua ingenuidade.
Repare...
Com um gesto convidava-o a sentar-se junto dela, num prolongamento da
raiz. Êle sentou-se, depois de ter encostado a espingarda no tronco do
ulmeiro.
Respondendo a Ariana, deu-lhe sua opinião e alguns conselhos. Depois
contou-lhe as velhas lendas que corriam sobre a capela, com um acento de
espiritualidade mixta de poesia, pois sentia que Ariana era capaz de a
compreender.
As mãos cruzadas sobre os joelhos, ela escutava-o e interrogava-o. Quando
a folhagem se movia, uma luz fugidia roçava-lhe os cabelos, aclarava-lhe
o rosto atento e os olhos que tinham a aveludada doçura de uma corola de
flor.
— Como o senhor conta bem essas coisas. Sente-se o quanto ama esta terra
e suas velhas construções. O senhor deve ser um crente.
Êle sorriu com certa malícia.
— Ainda tem dúvida?
Ela ergueu de leve os olhos murmurando:
— Nunca se sabe.
Seu olhar perdeu-se por momento na sombria profundeza do pequeno pórtico,
depois disse pensativa:
— Gostaria de acreditar em alguém, em qualquer coisa... na bondade, na
justiça, no amor, não importa em que...
Raimundo olhou-a surpreso:
— Como, senhora, já assim? Na sua idade?
— Com a educação que recebi, aos vinte anos já se envelheceu. Não tenho
mais ilusões, A humanidade é uma coisa bem feia, a vida uma perpétua
mentira, a morte...
Estremeceu. Sua epiderme rosca pareceu empalidecer, e Raimundo julgou ver
seus olhos se velarem de uma sombra trágica.
— A morte é o fim, e a noite se faz.. A noite, o nada, depois de se ter
vivido, pensado... depois de eu ter sido eu. Não acha que é horrível?
O desenho lhe escorregara dos joelhos sobre a relva que cobria o chão em
redor da capela. Suas mãos juntaram-se, nervosamente. Antes que Raimundo
abrisse a boca para replicar, ela acrescentou vivamente:
— Oh, não, o senhor ignora esse estado. Para si a morte não é o fim de
tudo. Espera uma outra vida, uma vida melhor, até. Isto dá forças para
suportar a existência. Mas eu não possuo. Por isso me pergunto o que será
de mim no dia em que qualquer um dos grandes sofrimentos de que o mundo
está cheio vier a me tocar por minha vez.
Havia cinco dias que Ariana estava nos Pinheirais e Raimundo não vira
nela mais que uma moça alegre, cheia de espírito, sempre em movimento e
em busca de distrações. Êle não esperava descobrir a alma ansiosa e
cansada que ela lhe revelara. Ariana percebeu a sua surpresa e sorriu com
melancólica ironia:
— Admira-se? Julgava-me sempre alegre? Por felicidade, a alegria é o meu
natural, mas isso não me impede de refletir muitas vezes e sentir esse
não-sei-que, esse vazio, esse obcecante mistério cheio de trevas e
incertezas. E a minha alegria não pode fazer com que eu tenha ilusões
sobre a vida.
Raimundo sentiu-se de súbito tomado de compaixão por aquela moça em flor
e já cansada da vida, antes mesmo de a ter provado, moralmente fanada por
uma educação falta de ideal e um conhecimento precoce do mundo. E disse-
lhe emocionado:
— Lamento-a, senhorita. Não julguei que por trás desse sorriso existisse
tamanho desencanto.
Ela moveu a cabeça e os pontos luminosos dansaram em seus cabelos.
— Oh, há muitos como eu, certamente. Não sabemos de onde viemos, para
onde vamos. Enquanto isso, vivemos, gozamos alguns breves prazeres,
sofremos, — tudo isso para que? Decididamente, a vida é incompreensível.
— Muito menos para mim que para si, pois vejo nela uma finalidade eterna.
— Ah, sim, na verdade não nos podemos compreender.
Ela olhava-o sonhadoramente. Como seus olhos, tão risonhos às vezes,
podiam conter graves e profundos pensamentos.
— Eu a compreendo, e sei que, se não fosse a minha fé eu seria igual a
si.
— Porque o senhor também não se contentaria com prazeres efêmeros,
alegrias fugitivas. Sente necessidade do eterno. Sua crença lho promete.
Ao passo que eu não tenho outra perspectiva senão as passageiras
felicidades que às vezes ocorrem na terra. E é muito pouco para uma
natureza igual à minha, que quisera abraçar a vida inteira, e quisera
apoiar-se em qualquer grande força espiritual para não cair em todas
essas baixezas da existência. Ela se levantara enquanto falava e Raimundo
fizera o mesmo. Diante deles, a fachada da capela se cobria de sombra. As
dígítalís, apenas tocadas pela luz que se esvaecia, tornavam-se de um
rosa mais suave. A brisa ao passar trazia o perfume das matas e os odores
do bosque próximo por sobre o qual o sol se punha, dando-lhe uma côr de
âmbar e ferrugem.
Esse reflexo, semelhante a ouro fluido, chegava agora até Ariana,
derramava-se sobre seu leve vestido branco, sobre as ondas dos seus
cabelos e a ardente face moça banhada na atmosfera da tarde. Seus olhos
se erguiam para essa luz prestes a desaparecer, com uma patética
expressão de esperança ou de desejo.
Raimundo considerava-a com pensativa emoção. Pressentia naquela alma
jovem um valor moral bem maior do que a princípio supusera. Aquela que
não há muito dissera não temer senão o sofrimento do coração devia
possuir uma natureza profunda e sensível, sob a máscara de cepticismo.
De repente, ela ergueu os ombros e voltou para o companheiro um olhar
firme, um tanto sardónico:
— É uma tolice não tirar da vida, bem simplesmente, o que ela tem de
agradável, sem nos preocuparmos com o resto. Este é o sistema de meu
irmão. No fundo, êle tem toda a razão.
— Não diga isso. Sei que não pensa assim! contraveio Raimundo com
firmeza.
— Sei lá.
Com esta brusca réplica, Ariana curvou-se para apanhar o grande saco de
cretone que repusera no chão antes de sentar-se. Raimundo adiantou-se e
apanhou-o. Ela agradeceu distraídamente e estendeu a mão para a capela:
— Gostaria de entrar ali. Quem terá a chave?
— O cura de Severac. Posso pedi-la emprestada amanhã. Mas aviso-a que o
interior está num estado deplorável e quase nada subsiste das esculturas
que outrora a ornavam.
— Então é inútil. O vandalismo sempre me entristeceu como sendo a marca
de um espírito baixo e estúpido, que odeia a beleza e o ideal.
Ficou um momento pensativa, olhos fixos na capela. Depois sorriu, olhando
para Raimundo.
— Prendi-o aqui este tempo todo, quando decerto estava ansioso por mudar
de roupa e repousar. Sou muito egoísta. É mais um resultado da educação
que recebi. As belas e sonoras palavras "fraternidade, solidariedade" são
vazias de sentido para mim, para a minha pequenina individualidade que
não reconhece para si nenhum dever, mas unicamente o direito de apossar-
se do prazer onde o encontrar.
— É o resultado lógico do caminho por onde a fazem seguir, senhorita. Mas
com a inteligência lúcida que possue, com seu discernimento claro e
sadio, desde já percebe aonde êle a conduzirá e que desilusões lhe
reserva, sob a sua aparente facilidade. Sabe de antemão que seu
individualismo poderá fazer de si uma desamparada — ou uma revoltada.
— Mais depressa uma revoltada. É mais de acordo com o meu temperamento,
Enquanto isso tomo da vida o que ela me oferece. E hoje ela me deu o
prazer dessa conversa com o senhor, —conversa um pouco séria de mais para
uma tarde tão linda.
Deu uma daquelas risadas frescas e encantadoras
que escapavam naturalmente da sua mocidade. Em seguida ajuntou:
— Vamos quanto antes, a sra. Evennes e Paula devem estar perguntando o
que foi feito de mim.
Raimundo apanhou a bolsa de caça, passou pelo ombro a correia da
espingarda e alcançou a moça que seguia pelo campo precedida pelos três
cães. O sol agora estava baixo. A sombra envolvia os caminhos cobertos de
mato, espraiando-se pelo campo onde as urzes se descobriam. Ao longe, um
rebanho de ovelhas recolhia, mancha clara e móvel sobre o fundo sombrio
do bosque.
Ariana caminhava a passo lento, conversando alegremente. Parecia
esquecida das palavras pronunciadas há pouco. Mas Raimundo considerava-a
muito leal para pensar que ela não tivesse sido sincera, deixando-o
perceber seu precoce desencanto. Moça elegante, sabendo-se inteligente,
bonita, admirada, ela conservava ainda aquela alegria que ela própria
reconhecia ser do seu natural. Mas quando chegasse a hora da sua
experiência, que faria ela, com sua natureza vibrante, apaixonada? Que
faria essa alma jovem que parecia já dizer à vida: "Desprezo-te, pois não
podes me dar a felicidade que eu sonho."
O sol havia quase completamente desaparecido no horizonte, de malva
pálido, quando os dois jovens, após terem atravessado o campo, chegaram
em casa.
Um derradeiro clarão roçava ainda as copas amarelentas das tílias
plantadas geometricamente diante da casa. O juiz e sua hóspeda
conversavam, descansadamente, recostados em confortáveis poltronas.
Através de uma das portas do salão ouvia-se o som do piano e uma voz de
homem que cantava.
Ao ver a filha em companhia de Raimundo, o juiz perguntou com bonhomia:
— Muito bem, Ariana, também foste à caça?
— Não, papai, não gosto dessas coisas. Estava desenhando uma antiga
capela, quando os cachorros do sr. Evennes farejaram Aby e vieram me
fazer uma visita. E voltamos juntos.
— Uma agradável companhia, não acha, Raimundo?
A sra. Berta voltava para o rapaz seu rosto de loura ainda conservado,
que umas poucas rugas sulcavam. Sua fisionomia era pouco expressiva, sua
inteligência medíocre, e tinha uma acentuada tendência para o snobismo, o
que intimamente inquietava Raimundo, temeroso de que Paula sofresse nesse
ponto a influência materna.
Antes que êle tivesse respondido, Ariana disse com um leve riso tocado de
ironia:
— Muito agradável, com efeito. Só lhe falei em coisas aborrecidas... O
que é que Fernando está cantando? Não conheço essa música.
Foi até a porta e maquinalmente Raimundo seguiu-a, depois de ter
descançado a espingarda e a bolsa.
O salão, sombreado pela proximidade das árvores, achava-se em penumbra.
Entretanto, Raimundo distinguiu logo a forma clara de Paula, sentada ao
piano, e suas mãos longas e brancas movendo-se sobre as teclas, de onde
saíam sons entrechocados, de audaciosas dissonâncias. Fernando Daubrey
estava em pé, ao lado dela. Acabara de cantar, soltando uma única nota
bizarramente contrastante, e voltando-se, deu com Ariana e Raimundo. —.
Que ária é essa tão cacofônica? perguntou Ariana, gracejando.
Fernando deu de ombros, lançando à irmã um olhar de desdém.
— Não compreendes nada da música moderna. Estou certo de que a senhorita
Paula a aprecia.
Paula estava meio voltada, no tamborete. Seus olhos erguiam-se para
Fernando, sorridentes e alegres.
— Para dizer a verdade, acho-a um pouco obscura. Mas creio que com o
tempo habituarei o ouvido e acabarei por descobrir-lhe as belezas.
— Habituar o ouvido a isso? Espero que não! disse Raimundo secamente.
Essas estranhas lucubrações não merecem que se procure compreendê-las.
— És bem antiquado, hein, Evennes?
Um vinco sardônico repuxou o lábio grosso de Fernando. Raimundo respondeu
no mesmo tom seco:
— Mas não sou snob. Não compreendo que se fique em êxtase diante da
incoerência e da falta de gosto.
— É isso mesmo! disse Ariana. — Não encontrarás aqui admiradores da tua
música selvagem, meu caro, porque Paula gosta é do gênero, sentimental,
tipo miosotis, romance ao luar, etcetera.
Olhava para a amiga com afetuosa malícia, Paula porém corou um pouco e
mostrou um ar contrariado.
— Também sei apreciar outras coisas, minha cara amiga. De fato a música
moderna surpreende a princípio, mas procurando-se estudá-la e descobrir-
lhe as belezas, acaba-se compreendendo e gostando.
— A senhorita há de chegar lá, com toda a certeza, disse Fernando. Possue
bastante inteligência e compreensão artística para que a nova expressão
da arte musical não a deixe insensível.
Raimundo, cujos nervos estavam excessivamente irritados, reteve uma
resposta que lhe viera à boca e que teria sido em excesso mordaz para
dizer-se a um hóspede. Porém Ariana replicou com ironia:
— Quer dizer que minha inteligência, minha compreensão artística e a do
senhor Evennes estão abaixo da crítica. Fico muito agradecida. Mas pelo
menos tenho o consolo de estar em boa companhia.
Fernando deu de ombros novamente, fitando-a sem amenidade.
— Oh, sempre tiveste umas idéias esquisitas. Sabem qual é a música que
ela gosta? O cantochão gregoriano.
— É uma música incomparável! exclamou Ariana com fervor. Que sobriedade,
que desenvolvimento admirável. Vocês, que têm espírito religioso, não
devem suportar outra música.
Fernando escarneceu:
— Olá! Estão vendo só o entusiasmo dela? Bem, com licença. Preciso
escrever uma carta ainda antes do jantar, para mandá-la pelo chauffeur,
que amanhã cedo deve ir à cidade, a mandado da sra. Evennes. Até já.
Dirigira-se principalmente a Paula, acompanhando as palavras de um amável
sorriso, a que a moça correspondeu.
Ariana afastou-se também e os noivos ficaram sós. Paula, deixando o
piano, apanhou na estante o caderno de música.
— O sr. Daubrey comprou-o ontem em Perigueux, para me dar a conhecer este
gênero de música... Êle tem uma bela voz. Mas gosto mais quando êle canta
outras coisas.
— Porque não lhe disseste isso, em vez de tomares esse ar de quem lamenta
a sua incompreensão?
— De quem lamenta? Eu tinha o ar de quem lamenta? Asseguro-te que falei
daquele modo por mera polidez.
Raimundo tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios.
— Acredito, querida. Mas com esse Daubrey tão cheio de si, é melhor não
parecer respeitar suas idéias, pois lhe será um pretexto para querer
impô-las.
De novo a fisionomia de Paula manifestou surpresa.
— Creio que formas uma opinião errada a respeito dele, meu caro. Hoje
conversamos longamente, e ao contrário acho-o de tacto, de idéias
elevadas. E tão inteligente, além de tudo! Demonstra uma pujança
intelectual que se impõe.
— Quanto a isso, não o contesto. Mas idéias elevadas em Fernando Daubrey!
Isso não, Paula. Não te deixes embair por essa conversa fiada.
Ela fez um muchôcho, enquanto se inclinava para colocar sobre a mesa o
caderno de música.
— Talvez estejas excessivamente prevenido contra êle, Raimundo. Devido a
seus sucessos, êle deve ser invejado por muitos colegas que decerto o
podem caluniar. Em geral costumas ser mais indulgente...
— Há casos em que a indulgência deve ceder o passo à verdade. Asseguro-
te, Paula, que me sentiria feliz em poder julgá-lo de outro modo, mas em
sã consciência não o posso fazer.
Ela ergueu para êle um olhar de novo sorridente:
— Tenho toda a confiança nos teus julgamentos, meu caro Raimundo, mas é
realmente pena que...
Deixou a frase em suspenso e aproximou-se da janela. As tílias estavam
agora em completa sombra.
A sra. Berta e o juiz não estavam mais lá. Solitário, Aby estava
estendido no chão, o focinho entre as patas.
— Preciso subir para perguntar a mamãe se tem outras encomendas a
acrescentar na lista de Barnabé, para amanhã.
Raimundo, que a seguira, curvou-se para ela e disse a meia-voz:
— Como estás linda esta tarde, Paula.
Ela olhou-o, sorriu novamente. Porque teve êle a impressão de que esse
sorriso tinha qualquer coisa de maquinal, como se o pensamento de Paula
estivesse longe e a sua face ficasse quase insensível sob os lábios do
noivo bem-amado?

III

A sra. Berta Evennes tinha a reputação de receber com grande gentileza,


fosse em Paris, fosse na velha casa dos Pinheirais, comumente qualificada
de castelo. Ela não suportava essa estada anual no campo senão com a
condição de ter ali sempre consigo alguns hóspedes. Sem ser muito
mundana, ela gostava contudo de distrações, uma roda agradável de amigos,
os elogios que faziam à sua hospitalidade. Temperamento bastante fútil,
no fundo, não mostrando senão um interesse superficial pelos assuntos
sérios e adotando com facilidade as idéias correntes. Sua filha, pouco
dotada sob o ponto de vista da personalidade, curvava-se facilmente à sua
influência, o que secretamente contrariava Raimundo. O ar de snobismo por
vezes entrevisto em Paula, o prazer que ela manifestava em verse cercada,
elogiada, sua tendência em contentar-se com as aparências, como também em
adotar as opiniões alheias sem procurar formar uma própria, — tudo isso,
e ainda uma certa obstinação que às vezes notava nela, atribuia-o ao
contacto diário com a mãe. Entre esta e ele não existia grande simpatia.
Ela reconhecia suas raras qualidades morais, porém censurava o que ela
chamava sua intransigência, disposta como era a fechar os olhos a certas
coisas que Raimundo reprovava energicamente. Assim, durante os oito dias
em que Fernando Daubrey ali esteve, o tratou como hóspede de escol, com o
secreto desejo talvez de dar uma lição ao sobrinho e futuro genro que se
permitia fazer mau juízo daquele homem agradável, de palestra
interessante, aureolado a seus olhos pelos seus sucessos oratórios, o que
o elevava dentre o comum dos mortais.
Raimundo deu um suspiro de alívio quando, certa manhã, o irmão de Ariana
foi-se embora dos Pinheirais. O juiz e a filha ficaram ainda por mais uns
quinze dias. Havia mais alguns outros convidados, relações parisienses
das senhoras Evennes. Por esse motivo, estando Paula mais ocupada agora,
Raimundo raramente se encontrava com ela a sós. Entretanto, nos anos
anteriores, ela sempre dava um jeito de sair a passeio com êle, quase
todas as manhãs. Andavam pelo campo cheio de um frescor de madrugada, e
iam de visita a alguma casinhola pobre aonde a gentileza de Paula e a
cordial bondade de Raimundo levavam um pouco de conforto, em suplemento à
ajuda pecuniária. Mas, neste ano, raramente Paula tinha o tempo
necessário para esses passeios.
— Tenho tanto trabalho de manhã e nos deitamos tão tarde! dizia ela.
Êle não insistia. Mas ficava com a impressão de que ela não sentia mais o
mesmo prazer em ficar a sós com êle, como antes.
Entretanto ela se mostrava sempre afetuosa e terna. Ela o amava, a sua
doce e linda Paula, êle bem o sabia. Não devia, pois, ser tão exigente,
nem perturbá-la em suas ocupações de dona de casa. Assim que voltassem
para Paris, êle pediria a tia Berta que anunciasse oficialmente o
noivado, o que até agora ela não quisera fazer por não estar ainda
marcado o dia do casamento.
Certa manhã, acabava êle de se vestir, quando Paula lhe mandou dizer que
precisava dar um pulo até a vila e lhe pedia para acompanhá-la.
Êle esperou-a no jardim e à claridade fresca da manhã meteram-se pelo
vale onde ressoava o som agudo de um sino.
— Chegaremos a tempo para a missa, disse Paula. Depois quero ir até a
casa de Miquelína para ver se ela ainda tem daqueles pêssegos de que o
juiz gosta. Diz que são os únicos que não lhe fazem mal ao estômago.
— Acho que êle é um maníaco, e a filha deve sofrer um pouco com êle.
— Também o creio, mas Ariana nunca se queixa, a esse respeito. Ela é
muito corajosa e guarda consigo o que a faz sofrer. Não creio que ela
seja inteiramente insensível, como faz por parecer.
— Oh, decerto que não. Julgo antes que ela finge isso para que não a
lamentem, ou talvez por bravata de um coração moço diante dos rigores da
vida. É um temperamento interessante, de um valor moral notável, —
inteiramente diferente do pai e do irmão. É pena que tenha sido educada
nessa descrença, o que aliás parece pesar-lhe. Talvez se a mãe não
tivesse morrido...
— Creio que seria a mesma coisa. A sra. Daubrey não ousava opor-se à
vontade do marido. Eu me pergunto donde Ariana tirou a sua força de
vontade, pois o Juiz só possue teimosia e não resiste ao filho, que obtém
dele tudo o que quer.
Assim conversando, os dois primos chegaram à vila, cujas casas e jardins
floridos se agrupavam em volta de uma pequenina praça, decorada ao centro
com uma velha fonte de pedra. A simples e antiquíssima igreja erguia-se
ali, oferecendo o refúgio do seu pórtico romano, vestíbulo do santuário.
Dentro, algumas mulheres rezavam diante do altar onde um jovem padre
oficiava. Através dos vitrais azulados passava um pouco do claro sol
matinal espalhando alguns traços luminosos, um dos quais envolvia o rosto
doentio do jovem cura, voltado para o missal naquele instante depositado
à esquerda do altar por um pequeno camponês de faces vermelhas, mal
ajambrado com a sua sotaina estragada e a sobrepeliz esfarrapada e muito
curta.
Raimundo teve nesse dia, durante a missa, distrações que não lhe eram
habituais. Pôs-se a considerar Paula, ajoelhada a seu lado, em atitude
recolhida, e pela primeira vez perguntou a si próprio:
"Que vem a ser para ela a religião? É por ela que regra a sua conduta na
vida?"
Esta idéia trabalhava no seu espírito. Revia Paula criança, menina,
adolescente, exata no cumprimento dos preceitos, devota mesmo, se por
essa palavra se entende a fé exterior. Mas a vida da alma, ativa,
generosa, como a que sua mãe, dele, possuía, essa forte seiva que provém
da fonte mesma de toda perfeição, de todo amor, era Paula dela provida
suficientemente para afrontar a existência?
"Não, dizia-lhe uma voz. Ela é sincera na sua devoção, mas esta não tem
raízes. Ela é caridosa porque é bondosa, por tradição também, mas daria
ela um pedaço de si mesma, do seu coração, ao próximo, como minha mãe
faz?"
Porque se pusera a refletir nessas coisas agora? Conhecia bem a sua
querida Paula. Sabia que havia nela algumas falhas, por culpa da mãe, um
tanto vaidosa e superficial, imbuída de um certo número de idéias falsas.
Mas isso não o inquietava, certo de que seria fácil de remediar quando
ela fosse sua esposa, porquanto o amava e sempre até então condescendera
com prazer a tudo quanto êle queria.
Terminada a missa, saíram por uma pequena porta que dava para o
cemitério. Paula queria dizer uma oração sobre a sepultura do pai. Iam ao
longo de uma estreita álea orlada de cravos emurchecidos. Os túmulos
modestos se alinhavam, ornados de uma cruz de ferro enflorada de
campânulas ou de hera. Ao fundo erguia-se o túmulo dos Evennes, uma
capelinha singela. Em pé, diante de um túmulo próximo, estava Ariana. Ao
ouvir passos, voltou-se, tendo no rosto um ar sonhador.
— Que estás fazendo aí, querida? disse Paula. Ariana estendeu a mão para
a grande pedra sepulcral arruinada, invadida pelo musgo e as sarças. Um
velho olmo estendia-lhe em cima a rama espessa, que mal permitia a
passagem de raros clarões de sol sobre a sepultura abandonada.
O musgo recobria as letras das inscrições; entretanto, podia-se ainda
decifrar uma delas:
Maria Rosa Marchais
falecida aos 20 anos de idade
—Como é possível morrer-se aos vinte anos e com o nome de Rosa?
— A vida terrena não é senão um caminho que conduz à glória eterna.
Ela olhou para Raimundo, meneou a cabeça e afastou-se da sepultura. A luz
do sol batia agora em seu rosto pensativo, um tanto severo. E disse a
meia-voz, como se falasse consigo mesma:
— É que para mim não há outras felicidades senão as da terra.
Paula adiantou-se e tomou-lhe a mão.
— Oh, querida, porque vens para aqui procurar impressões tristes?
Ariana sorriu-lhe. Subitamente sua fisionomia se transformara.
— Gosto dos velhos cemitérios de aldeia. São de uma poesia triste, mas
consoladora... Vieste visitar a sepultura de teu pai, Paula? Neste caso
deixo-te à vontade e volto para casa.
— Espera-nos então e voltaremos juntos.
Ariana fez um gesto afirmativo e foi andando devagar por uma das
estreitas aleias ensolaradas. Em pouco Paula e Raimundo a alcançaram.
Todo vestígio de melancolia desaparecera de sua fisionomia. Enquanto ela
conversava e ria com a amiga, Raimundo refletia: "Que personalidade
curiosa, interessante!"
Mais de uma vez, em dias anteriores, se entretivera com ela tratando de
assuntos filosóficos, discutindo pontos de direito ou de moral. Ela
possuia um espírito vivo e ao mesmo tempo reflexivo, uma inteligência
lúcida e um perfeito bom-senso. Suas faculdades intelectuais eram
notáveis. Não obstante, era extremamente simples, de uma graciosidade
muito feminina, sempre sorridente, na alegria vivaz da sua mocidade,
exceto nos momentos em que, como há pouco, um súbito terror, uma sombra
fúnebre, pareciam apagar o clarão da sua juventude.
Raimundo revia-se em pé diante da sepultura, ouvia-lhe a voz, pungente em
sua doçura triste, pronunciar a frase dolorosa: "É que para mim não há
outras felicidades senão as da terra!"
Pobre criança corajosa, que ia pela vida cegamente, e bem o sabia.
Que diferença entre ela e o irmão. Fernando, tão materialista, tão falso
mesmo, quanto a irmã era sincera... Raimundo não podia ouvir sem
impaciência a sra. Berta, e até mesmo Paula, fazer ao juiz constantes
elogios do filho, e isso sem ser por simples polidez. O dr. Daubrey
parecia havê-las realmente conquistado. É certo que durante todo o tempo
jamais chocara as idéias de suas hóspedas, que, ao contrário, adulava com
subtileza. Se não se tratasse senão da sra. Berta, Raimundo teria mantido
serenidade, mas desagradava-lhe singularmente que Paula se deixasse levar
pelas falsas aparências daquele indivíduo, parecendo até sentir certo
prazer com a corte discreta que êle lhe fazia. É certo que ela gostava de
ser admirada, elogiada, essa pequenina Paula, aliás ingenuamente. Até
então Raimundo não dera grande importância àquilo, confiado no fundo
honesto e sério de Paula, na educação que recebera e na afeição que
nutria por êle. Parecia-lhe, porém, que o instinto de sua alma delicada
devesse afastá-la de um Daubrey, moralmente tão inferior.
No vestíbulo do castelo, o criado entregou à srta. Daubrey e Raimundo a
correspondência que acabava de chegar. Paula perguntou:
— Recebeste carta de tua mãe?
— Sim, aqui está.
— Espero que traga melhores notícias de seu pai, disse Ariana.
Raimundo conhecia-a já bastante para saber que havia um interesse sincero
nessas palavras. Por mais egoísta que se julgasse, Ariana se interessava
sempre por outrem, de modo amável e discreto, com aquela franqueza que
era o seu grande encanto.
A carta da sra. Evennes — dona Helena, como a chamavam em família, para
distingui-la de sua prima Berta — era, como de hábito, longa. Entre ela e
o filho a troca de idéias se fazia com absoluta confiança. Raimundo não
tivera nunca segredos para com aquela mãe amantíssima, de uma firme
solicitude e ternura sem fraqueza, que haviam feito dele um ser enérgico
e reto, incapaz de um deslize de consciência.
Após percorrer as primeiras páginas, disse:
— Minha mãe diz que meu pai melhorou há dois dias e pede para lhe dizer,
senhorita, que seu interesse pelo nosso querido doente muito a
sensibilizou.
— Conheço pouco a sra. Evennes, mas é uma das raras pessoas por quem
sinto uma espontânea simpatia. Tive sempre a impressão, ao vê-la, de ser
pessoa incapaz de uma falsidade, de uma dessas pequenas baixezas e
fraquezas morais que pululam por aí em toda parte e se teme encontrar
mesmo entre os nossos melhores amigos.
— O' suspeitosa Ariana! disse Paula sorrindo. E de nós, que juizo fazes?
Estamos no número desses falsos, desses indignos?
Ariana sorriu levemente.
— O tempo nos dirá, minha linda amiga. Êle nos ensina muita coisa. E as
ilusões vão caindo, caindo... como as folhas.
Riu-se novamente. Sob os cílios de um castanho claro e sedoso, seus
olhos, passando de Raimundo a Paula, tiveram um rápido clarão. Um breve
sorriso, com uma tinta de ironia, distendeu-lhe os lábios.
— Com isto, vou deixá-los. Vou também ler a minha correspondência, isto
é, esta carta em papel azul, que é de uma amiga infeliz, ou que assim se
julga por que quer divorciar-se e não tem nada a alegar contra o marido
que é um homem boníssimo.
— E então?
— Aí está, essa felicidade perfeita a irrita e ela quer provar um pouco
de desgostos com um rapaz tolo que conheço, que decerto neste ponto a
satisfará. Já lhe disse o que penso a respeito, porém ela insiste em se
afogar; que lhe faça bom proveito.
— Pobre criatura desorientada! disse Raimundo com piedade.
— Oh! Tive uma idéia! Vou mandá-la para si, mestre Evennes. Veja se pode
reconduzi-la ao bom caminho.
— Farei todo o possível.
— Muito bem. Está combinado. Por coincidência o advogado dela acaba de
morrer, e ela me pede que lhe indique outro. Estou certa de que o senhor
é capaz de convencê-la a continuar em companhia do marido.
Com essas palavras, Ariana dirigiu-se para a escada, com o passo ágil e
decidido que lhe era peculiar.
— Que confiança ela deposita em ti, Raimundo! disse Paula rindo. Conheço
a amiga dela; a sra. Lancieux, uma moça bem bonita, mas inteiramente
avoada. O marido tem uma esplêndida situação no comércio... Então teu pai
está melhor? Tia Helena deve estar contente.
Raimundo leu alto alguns trechos da carta concernentes ao pai. Paula
ouvia com interesse, a mão levemente apoiada sobre o ombro de Raimundo,
que percorreu com os olhos, rapidamente, as últimas linhas, em que a mãe
acrescentava:
"Admiro-me, como tu, que Berta e Paula se impressionem assim com esse tal
Daubrey. Não achas melhor, meu filho, casar quanto antes para tomar o
mais depressa possível a direção dessa alma ingênua? Tua posição está já
assegurada e tudo indica que futuramente serás um advogado de renome.
Constrói desde já o teu lar, Raimundo, pois esse é também o desejo de
Paula, segundo o que me escrevestes há algum tempo."
Raimundo dobrou a carta e ergueu os olhos para o lindo rosto que lhe
sorria.
— Sabes o que mamãe manda dizer, querida Paula? Que nos casemos quanto
antes.
A longa mão branca escorregou do ombro de Raimundo. O sorriso apagou-se
nos finos lábios, enquanto Paula respondia:
— Acho preferível esperarmos até o ano que vem, como já havíamos
combinado.
— Com efeito, mas parece-me que o adiamento é demasiado longo.
Entretanto, se achas melhor esperar...
Sua voz tinha um tom breve, um pouco seco. Alguma coisa nele acabava de
ser secretamente arranhado.
Paula devia ter percebido, porque logo disse, sorrindo novamente:
— Tornaremos a falar nisso, se quiseres, quando voltarmos para Paris.
— Oh, não quero apressar-te. Talvez seja mesmo melhor que minha situação
se firme.
— Ora, Raimundo, creio que não vais pensar que seja por isso. Ficas
aborrecido comigo por eu querer prolongar um pouco minha vida de
solteira?
Olhava para o primo com um mixto de pesar e de reprovação. Havia em seus
olhos a cariciosa doçura de que Raimundo tanto gostava. Êle tomou-lhe a
mão e beijou-a longamente.
— Não, não fico aborrecido, querida Paula. Será como quiseres.
— Quando voltarmos para Paris, falarás com mamãe. Creio porém que ela tem
alguns projetos para esse inverno, uma temporada em Nice, em casa de tia
Suzana, segundo me disse. Provavelmente há de querer que eu a acompanhe.
— Nesse caso... Bem, até logo, Paula. Vou escrever a mamãe.
— Dize-lhe que lhe mando um beijo e que fiquei muito satisfeita em saber
que tio Henrique está melhor.
Sorriu-lhe e eclipsou-se para o salão enquanto Raimundo subia ao segundo
andar, onde ficava seu quarto.
Ficou-lhe dessa conversa com Paula uma impressão meio penosa. Pouco tempo
atrás ela estava pronta a tornar-se sua esposa quando êle quisesse...
Devia haver ali alguma manobra da mãe dela, desejosa de conservá-la junto
de si o mais possível, e além disso julgaria talvez mais prudente esperar
que o futuro genro adquirisse certa notoriedade.
Ficou um tanto preocupado durante todo o dia. Ninguém pareceu perceber,
salvo Ariana, talvez, cujo olhar sonhador e discretamente interessado
algumas vezes cruzava com o dele. No entanto, lá para a tarde êle
conseguiu afastar aquela preocupação e voltou a ser o conversador
habitual cujas belas palavras e fino espírito a srta. Daubrey tanto
apreciava.
Depois do jantar Ariana aproximou-se de uma das janelas do salão e lançou
um olhar para fora.
— Estou com desejo de ir ver o Penhasco do Inferno ao luar. Queres ir,
Paula?
— Impossível, querida. Tenho de acompanhar a sra. de Brades ao violino.
Mas sem dúvida Raimundo terá prazer nisso.
Paula virou-se para o primo, que imediatamente aquiesceu. Ariana jogou
sobre os ombros uma manta de lã branca e foi ter com Raimundo que a
esperava ao pé das tílias. Atravessaram o jardim, cujos desenhos
geométricos se esfumavam à claridade do luar. A fresca pureza do ar os
envolvia. Ariana aspirava-o e dizia:
— Como está agradável! Que noite!
Uma espécie de avidez vibrava em sua voz. Raimundo via-a como atraída
pela beleza noturna, estremecendo de prazer sob aquela frescura que
parecia ter concentrado nela o sutil perfume dos bosques, dos matos, das
flores adormecidas no jardim.
Maquinalmente pensou:
"Que educação esquisita! Sozinha a esta hora, com um estranho, esta
moça... Paula nunca faria isso. Conservou muita coisa das tradições
severas, dos costumes sérios de nossa família. Ela é bem a mulher de que
preciso, que se aperfeiçoará ao contacto diário com minha mãe."
A lua enviava um pouco da sua pálida claridade sobre a álea de pinheiros.
Ariana e Raimundo caminhavam numa espécie de penumbra, ambos silenciosos.
Ariana parecia sonhar; Raimundo continuava a pensar em Paula. Revia seu
fino rosto de tez suave, seus cabelos de um louro macio, seus olhos
ternos. Porque durante todo o dia sentira essa vaga inquietação? Ela o
amava, a sua querida Paula, e só pelo desejo de não descontentar a mãe é
que se conduzira daquêle modo. No pequeno terraço as bétulas e pinheiros
estendiam grandes manchas de sombra, imóveis na calma da noite. Os
gerânios languesciam em volta da balaustrada, deixando escapar um perfume
levemente acre. Do fundo do desfiladeiro subia o ruído surdo da torrente.
Em torno da grande pedra sinistra, a mata sombria dormia aos raios do
luar. Espetáculo a um tempo pacífico e severo, que Raimundo e Ariana
contemplavam em silêncio.
— Como isto é repousante!
— Sim. Todos os contornos, todas as sombras têm uma doçura ignorada pela
plena claridade do dia. O próprio Penhasco do Inferno parece menos
lúgubre.
— E como é delicioso o ar. Estou contente por ter vindo aqui e agradeço-
lhe por ter-me acompanhado.
— Foi um grande prazer para mim, senhorita.
Ela voltou a cabeça e viu-lhe o rosto sorridente, um pouco malicioso.
— A delicadeza o faz falar assim, mas estou certa que teria sido mais
agradável ficar ao lado de sua noiva.
Seu rosto assim aclarado por aquela meia-luz de sonho ganhava tons de
pérola. Seu pescoço, de uma suave brancura, tinha uma inclinação
graciosa. Em seus olhos, que pareciam mais fundos, um tanto misteriosos,
o contentamento mesclava-se a uma chama de ardente mocidade que lhe
brotava da alma.
Raimundo sentiu uma espécie de deslumbramento. Por um instante fraquejou
ante a sedução, mas acostumado às fortes disciplinas morais, logo se
recompôs. Apenas se notava um leve tremor em sua voz, ao responder:
— Não tenho absolutamente a intenção de monopolizar Paula, que tem
obrigações para com seus hóspedes, mesmo porque ainda não somos noivos
oficiais.
— Não compreendo porquê. Sem dúvida por causa da mãe dela?
— É. Minha tia não quer anunciar oficialmente nosso noivado senão algumas
semanas antes do casamento. Aliás, não vejo nenhum inconveniente nisso.
— Decerto. É uma medida prudente, até, pois talvez um ou outro ainda mude
de idéia.
— Mudar de idéia? Porque mudaríamos de idéia? A voz de Raimundo tinha um
acento de admiração um tanto brusco.
— Nunca se sabe. Há tantas surpresas na vida! Ariana voltou novamente a
cabeça para o outro lado. Olhava para a grande rocha negra e seu perfil
imóvel tinha a nitidez de uma face de mármore.
— Nós estamos comprometidos, e não somos desses que desfazem seus
compromissos sem motivo.
Ariana teve um risinho baixo, levemente irônico:
— Compromissos! Isso vale tão pouco! E o motivo é tão fácil de encontrar!
— Não para uma alma leal.
— Conhece acaso muitas dessas almas leais? A sua talvez...
— E a de Paula.
Ariana silenciou. Curvava-se maquinalmente para a garganta obscura e
parecia aspirar o húmido perfume do abismo. Junto dela, na balaustrada,
ouviu-se o ruído, leve como o amarfanhar da seda, de uma folha que caía,
precocemente solta. Ariana se endireitou e a apanhou entre os dedos.
Considerou-a um instante e depois deixou-a abismar-se na treva.
Sua voz ergueu-se com um acento de tristeza e escárneo:
— Eis aí o que são os compromissos. Uma folha morta que cai. Deve-se
passar adiante e não chorar essas defuntas, que nem mesmo o merecem...

IV

A penumbra envolvia os móveis, os rostos, na grande sala de forro claro,


onde a sra. Evennes desfiava o seu rosário, ao lado do marido afundado em
confortável poltrona. As brasas no fogão eram o único ponto luminoso
naquela meia treva. O coronel perguntou :
— Porque não acende a lâmpada, Helena?
A sra. Evennes levantou-se e aproximou-se da chaminé. Na penumbra
esfumavam-se seu talhe um tanto grosso e os firmes contornos de seu
rosto. Estendeu a mão para um interruptor dizendo:
— Estava pensando em Raimundo, rezando por êle e esqueci a hora.
Uma lâmpada, colocada sobre a mesa ao lado do coronel, iluminou-se. A
luz, suavizada por um vidro opalino, aclarou uns cabelos grisalhos, um
rosto belo ainda apesar das rugas que o sulcavam. Sustado em plena
atividade por uma queda de cavalo o coronel Evennes há quatro anos estava
inutilizado. Arrastava-se penosamente sobre duas bengalas, êle, o
elegante cavaleiro de quem se dizia: "Parece sempre jovem".
Para que êle pudesse estar um pouco ao ar livre sua mulher alugara numa
casa antiga do quarteirão S. Sulpicio um grande pavilhão situado ao fundo
do terreno, dando os fundos para o parque de um palacete, e tendo na
frente um pequeno jardim cercado por uma grade. O coronel passava ali
longas horas, nos dias bonitos, com a mulher ao lado, companheira
devotada e infatigável que êle adorava e de quem dizia: É a minha santa
Helena.
A sra. Evennes aproximou a poltrona da mesa onde se achava sua cesta de
trabalhos, entre os livros do coronel. Seu rosto apareceu na luz; nunca
fora belo, mas sob as rugas dos cincoenta anos conservava o encanto que
ela transmitira a Raimundo, juntamente com a energia do seu temperamento.
— Eu também estava pensando no nosso Raimundo. Há qualquer coisa com
relação a Paula.
— É o que receio. Êle acha-a mudada, menos comunicativa, quase fria no
trato. Eu me pergunto se Berta não está agindo por trás, com o intuito de
desviar a idéia da filha. Ela aceitou tacitamente esse casamento por ser
da vontade do marido, mas sempre tive a impressão de que o fez a
contragosto.
— No entanto, nosso filho não é para desdenhar. Sob o ponto de vista
moral, então, dificilmente ela achará um melhor do que êle.
— Sim, mas provavelmente ela julga que Paula, por ser rica, podia fazer
um casamento melhor. Bem sabe, meu caro Henrique, quanto Berta é
irrefletida. Apega-se facilmente às aparências, a tudo que lhe lisongeia
o amor-próprio. Conquanto a carreira de Raimundo prometa bastante, êle
ainda não tem uma situação brilhante...
— Com a idade que tem, seria verdadeiramente fenomenal! Que ela lhe dê um
pouco de tempo e verá se aquela que fôr sua esposa não se orgulhará
disso!
A sra. Evennes sorriu, fitando a fisionomia animada do marido. Raimundo,
o único filho que lhes restava, era a alegria, a glória do coronel.
Por alguns momentos ficaram em silêncio. A sra. Evennes apanhara na
cesta, um trabalho de croché. O coronel tamborilava com os dedos sobre a
mesa.
Repentinamente observou:
— De fato, Berta e Paula espaçaram as visitas, de um tempo para cá.
— É, e parecem constrangidas, Paula sobretudo. Mas talvez não passe de
impressão nossa.
— Assim o espero, minha querida. Paula ama Raimundo, e deverá amá-lo cada
vez mais. À medida que a personalidade dele se afirme se tornará num
desses homens pelos quais se deixam arrastar apaixonadamente os corações
femininos.
A sra: Evennes, com um movimento maquinal, começou a fazer correr a
agulha na lã rosa. Inclinou a cabeça e a luz fez brilhar os numerosos
fios de prata entremeados em seus cabelos escuros.
— Receio que Paula o olhe ainda com olhos de criança, de priminha querida
que sofre a influência de uma vontade firme e de uma afeição muito terna.
Receio também que ela não compreenda como deve o valor de Raimundo, nem
mesmo a delicadeza de seu sentimento. Berta é cristã, mas como tantos,
mais no exterior. Deu à filha uma educação moral e religiosa muito
superficial... e Paula é dessas que ficam como foram feitas.
Abriu-se uma porta na outra extremidade do salão e uma silhueta masculina
desenhou-se na penumbra.
— Oh, és tu, Raimundo! disse o coronel. Não há mais ninguém na sala de
espera?
— Não. Já despedi o último cliente. Agora vou dar um pulo à casa de
Marbot, advogado do processo Brébeuf. Como está se sentindo esta noite,
meu pai?
— Melhor, meu filho. Marbot, onde mora êle?
— Na rua da Universidade.
— Quer dizer que fica perto da casa de Berta. De passagem, vais ver
Paula?
— Talvez não possa. Tenho muito que fazer hoje.
Pai e mãe perceberam na sua voz calma um tom de dureza.
O coronel replicou:
— Acha-se sempre tempo para ir ver a noiva, meu caro. Mas, dize-me cá, já
é tempo de se tratar desse casamento. Falarei a Berta, na próxima vez que
a vir.
Raimundo disse com vivacidade:
— Peço-lhe que nada diga, meu pai; faço questão que Paula fale em
primeiro. Como já disse, quando perguntei a tia Berta, de volta da
fazenda, se não havia inconveniente em marcar nosso casamento para o
princípio do inverno, ela pretextou querer passar uma temporada no Sul,
em casa da irmã, em companhia de Paula. Estamos já nos primeiros dias de
dezembro e ainda não se tratou dessa viagem. Diante disso, prefiro calar-
me. Paula sabe o que eu desejo, a ela cabe falar agora.
— É justo. Bem, até já, meu filho.
Quando a. porta fechou atrás do filho, o coronel olhou para a mulher.
— Decididamente há qualquer coisa, Helena: Que estará Berta tramando?
A campainha da entrada ressoou nesse instante. Em seguida a porta se
abriu e apareceu aquela de quem o coronel acabara de pronunciar o nome.
Chegou-se até o fogão, dizendo com uma amabilidade meio afetada que lhe
era habitual:
— Vim vê-los um momento, caros amigos.
— Está se fazendo rara, Berta, disse o coronel. Tomou a mão que ela lhe
estendera e apertou-a sem calor.
— Tenho andado muito ocupada. Estou preparando um festival de caridade.
Hoje, por fim, pude encontrar um momentinho.
O ouvido subtil da sra. Evennes percebeu um constrangimento, um certo
nervosismo no tom da visitante. Tal embaraço reafirmou-se quando a
senhora Berta, sentada em frente do fogão, começou a falar do tempo, dos
trabalhos que confeccionava para vender no festival, do reumatismo do
coronel. Tinha, visivelmente, qualquer coisa para dizer e não sabia como
abordar o assunto.
Foi o coronel quem lhe jogou o anzol, perguntando:
— E Paula, que é feito dela? Há no mínimo quinze dias que não a vemos.
— Paula? Oh, ela anda tão atormentada, coitada! Tão desconsolada!
— Desconsolada, porque? perguntou a sra. Evennes.
D. Berta entreabriu um pouco mais sua grande gola de astrakã cinza, como
se sentisse necessidade de mais ar. Tossiu, hesitou, por fim disse:
— O melhor é falar francamente. Vim vê-los a propósito desse casamento...
— Oh, o meu desejo justamente era que arranjássemos isso. Há já muito
tempo que essas crianças esperam. Podíamos casá-los logo.
D. Berta baixou os olhos, revolveu nervosamente a elegante bolsa posta
sobre os joelhos.
— Mas... Henrique, é o contrário...
— Como, o contrário?
— Sim. Asseguro-lhes, meus queridos primos, que muito me custa ter de
dizer-lhes isso... essa mudança de idéia de Paula... Ela julgava amar o
primo. Percebeu que se enganara quando o amor, o verdadeiro, se lhe
revelou. O que ela sentia por Raimundo não era mais que uma afeição de
irmã.
O busto curvado do coronel se endireitou. Seu rosto pálido coloriu-se e
as compridas mãos emagrecidas tremeram sobre os joelhos em que estavam
apoiadas.
— Ah, Paula falta à sua palavra? Paula desfaz seu compromisso?
Sua voz tremia sob a violência de uma emoção mixta de cólera.
— Ela era tão criança quando o fez. Não sabia... Enganou-se quanto à
natureza do sentimento que o primo lhe inspirava. Mas agora que ela
ama... de uma outra maneira...
D. Berta levantou os olhos, já segura de si, o mais desagradável já tendo
sido dito. Junto dela, a mãe de Raimundo ficara silenciosa, as mãos
juntas sobre os joelhos, a boca meio trêmula.
— Quem é êle? perguntou a voz ofegante do coronel.
— Fernando Daubrey.
A senhora Evennes teve um ligeiro sobressalto e o coronel exclamou:
— Daubrey!... É a esse tipo que você vai entregar sua filha?
D. Berta mostrou-se chocada:
— Muito bem. Que tem a dizer dele?
— O que? É um gozador, um sujeito sem escrúpulos, sem moral. Além do
mais, ateu. Acha que não é bastante?
— Oh, por favor, não repita essas acusações ridículas. Tomei informações
quando percebi que Paula estava gostando dele. Naturalmente não é um
santo, mas há muitos piores que êle. Depois de casado se emendará,
principalmente com uma esposa como minha filha, por quem êle está
inteiramente apaixonado. Quanto a suas idéias anti-religiosas, que são
resultado da educação que recebeu, irão se modificando sob a influência
de Paula. Ela o converterá. É mesmo com essa perspectiva que ela se sente
ainda mais atraída por êle.
O coronel não pôde conter uma espécie de escárneo e a sra. Evennes, com
um ar de piedade meio irônico, disse:
— Pobre Berta! Ela o converterá! É mais fácil ela deixar-se influenciar
por êle. Cuidado, não faça a infelicidade de sua filha.
D. Berta se espigou:
— Paula não é mais uma criança. Ela saberá se conduzir e conservar suas
crenças, apesar de tudo!
— Assim o espero!
Espremendo as mãos, que estavam quase geladas, apesar do calor do fogão,
a sra. Evennes acrescentou:
— A Raimundo ela não precisaria converter, e êle lhe daria, com os seus
vinte anos, um passado sem mancha.
O coronel disse entre dentes:
— Talvez seja isso mesmo. Há pessoas que preferem as águas turvas. Grande
bem lhes faça!
Deixou-se recair sobre o espaldar da poltrona. D. Berta, lábios
contraídos, fitava os carvões incandescentes que aluíam num ligeiro
encarquilhamento.
E disse, em tom meio ácido:
— Compreendo a sua decepção, Henrique. Paula tem tudo por si: beleza,
fortuna...
O coronel teve um estremeção e a sra. Evennes, levantando-se, disse com
severidade:
— Não passe daí, Berta! Você nos conhece bem para saber que a riqueza de
Paula em nada influiu no amor de Raimundo nem no nosso prazer de a termos
como filha. Além do que, foi o próprio pai dela quem desejou esse
casamento e disse, em seu leito de moribundo: "Morro tranqüilo, sabendo
que ela se casará com Raimundo".
D. Berta meio constrangida, não replicou. Suas mãos enluvadas em cinza
comprimiam a pequena bolsa de chamalote marcada com uma inicial em ouro.
A sra. Evennes prosseguia, numa voz que mantinha calma, mas em que
vibrava entretanto uma surda emoção:
— Naturalmente, não temos nada que discutir sobre esse assunto. Paula
declara não mais amar Raimundo; de acordo, não iremos suplicar-lhe que
mude de idéia. Esse Daubrey manobrou bem a coisa. Se cai nesta armadilha
a culpa é sua e a você cabe a responsabilidade da infelicidade de Paula.
— Mas não houve manobra nenhuma! Quando êle esteve nos Pinheirais Paula
conheceu-o, admirou-o; êle apaixonou-se logo por ela, mas calou-se,
sabendo pela irmã que ela era noiva.
O coronel teve novamente um risinho de escarneo.
— Não a julgo tão ingênua a ponto de ignorar que há mil maneiras de
apaixonar uma mulher sem lhe dizer uma palavra de amor. Por certo o sr.
Daubrey é forte neste assunto. Desejo que Paula não seja vítima de sua
credulidade e do entusiasmo de você por esse homem.
— Você tem prevenção contra êle, Henrique. Asseguro-lhe que não é assim
tão feio como o pintam.
— Antes assim! Antes assim! Além do mais, isso é com vocês. Eu só tenho a
ver com a dor de meu filho e a ofensa que lhe fazem.
— Ofensa! Na verdade, Henrique...
— Ah, vocês acham que não é nada, para um homem como êle, ver esse
indivíduo ser preferido pela mulher que êle ama e que era sua noiva? Com
os diabos! Ainda que você me acuse de orgulho paternal e de tudo que
quiser, digo bem alto que sua filha não é digna de meu filho.
— Meu bom amigo!
A sra. Evennes inclinava para o marido o rosto ansioso e punha a mão sob
seu braço trêmulo.
— Não fique assim agitado! Isso lhe faz mal!
Êle acalmou-se subitamente sob aquele olhar que exercia tanta influência
sobre êle. Mas lançou a Berta um olhar de irônico desprezo.
— Ver o nosso Raimundo ser tratado assim por Paula, a quem queríamos
tanto, é uma coisa que me põe fora de mim! Mas tem razão, fiquemos
calmos. Com que então, Berta veio nos avisar para que informemos Raimundo
da reviravolta da prima?
D. Berta, os traços contraídos, continha-se visivelmente para não
responder mal à apóstrofe do coronel. Mas detestava discussões,
principalmente quando se sabia sem razão e em face de um interlocutor
decidido. Havia, entretanto, certa agressividade na sua voz quando
respondeu:
— O que lhe peço é que você mesmo lhe diga. Procure suavizar-lhe essa
disilusão. Espero que não seja tão grande quanto julga, pois aquilo
decerto não passava de um amorico de meninos.
— Julga isso? Não, Raimundo não é desses peravilhos que vão de capricho
em capricho, deixando pedaços do coração em cada volta do caminho. Êle
tinha dado o coração a Paula, para sempre. Nunca sua filha será amada
como por êle.
D. Berta deu de ombros.
— Que quer que eu faça? Não posso mudar a inclinação de Paula. Não posso
fazer com que ela ame o primo em vez de Daubrey. São surpresas do
coração.
O coronel remoeu:
— Famosas surpresas, com efeito... e bem preparadas.
D. Berta fingiu não ouvir, enquanto fechava a gola de pelica no pescoço
meio empastado, rodeado por um colar de pérolas. Em seguida olhou
alternativamente para o coronel e sua mulher, antes de perguntar com
afetada doçura:
— Não nos guardarão rancor por isso, não é? Paula estima-os tanto. Se
soubessem quanto lhe custou eu ter de desempenhar essa tarefa!
— Bom, bom, disse o coronel em tom entre sarcástico e furioso. Não vamos
comê-la, a essa tolinha, quando tivermos de nos encontrar. Mas pense bem,
já agora haverá sempre qualquer coisa entre nós.
D. Berta levantou-se. A prima estendeu a mão e pousou-a em seu ombro:
— Nós lhe perdoamos, Berta. Deus queira que ela não se arrependa
amargamente do que fez hoje.
— Mas, afinal, não sei o que é que vocês julgam de Daubrey. Sem valer
tanto, sob certos aspectos, quanto seu filho, pode no entanto tornar-se
um ótimo marido. Além do mais, não seria uma indignidade Paula casar-se
com Raimundo, sentindo-se atraída por outro?
— Sim, se esse sentimento é verdadeiro, se não é um capricho... se Paula,
por vaidade, por ambição, por fraqueza, que sei eu! não se deixa
arrastar!
— Na verdade, minha cara amiga, quero crer que não a conhece!
D. Berta animava-se um pouco, fitando com certa raiva aquele rosto grave
e emocionado, voltado para ela.
—... Ela é muito séria, muito ajuizada, para ceder a sentimentos desse
gênero. Daubrey conquistou-a por sua inteligência excepcional, pelas
qualidades que possue, sob a capa de um amável ceptismo. Enfim, é um
homem notável. E ela o ama. Eis o que resume tudo, pois com o amor não se
discute.
O coronel esboçou um dar de ombros e sua esposa replicou:
— Perdão. Sou de parecer que se deve discutir com êle, porque é cego.
Deve-se avisá-lo do perigo, diante dos precipícios a que êle conduz.
D. Berta teve um sorriso meio desdenhoso de pessoa que se julga
infalível.
— Não há precipício algum, no caso. Acredita talvez que eu teria
consentido, se tivesse dúvida em que ela poderia ser feliz com esse
casamento? Bem, até à vista, minha cara Helena; até mais ver, Henrique.
Não se atormente em excesso. Raimundo esquecerá logo esse pequenino
episódio de sua vida; acredite na minha experiência.
A sra. Evennes disse friamente:
— O que houve entre eles não se esquece assim, pois o que você chama
pequenino episódio, e Paula tão decididamente calca aos pés, é toda a
mocidade de Raimundo e todo o seu coração, que pertencia a ela, somente a
ela.

Havia alguns momentos já que o coronel e sua mulher tinham voltado para o
salão, com o filho, após o jantar,.e ainda nenhum dos dois se decidira a
pronunciar as palavras que iriam fazer Raimundo sofrer tanto. Este, na
poltrona em que estivera sentada a mãe de Paula, percorria um jornal.
Parecia distraído, mas subitamente, erguendo a cabeça, perguntou olhando
para os pais:
— Mas o que é que há? Mamãe quase não comeu e ficaram os dois se
esforçando por conservar a fisionomia habitual.
O coronel depôs sobre a mesa ao lado a revista que fingia ler e a sra.
Evennes interrompeu seu trabalho de crochet. Ela é que respondeu:
— Há, com efeito, qualquer coisa, meu filho. Berta veio aqui esta
tarde...
Ela viu Raimundo preparar-se como para receber um golpe. Sua voz tomou
uma inflexão mais doce ainda, mais terna, para continuar:
— Paula retira a sua palavra. Diz que se enganou, que não tem por ti mais
que uma amizade de irmã.
— Vai casar-se com Daubrey?
O tom breve, quase duro, fez estremecer a sra. Evennes:
— Sim. Como sabes?
— Nos Pinheirais eu tinha já sentido uma mudança nela, durante e depois
que esse indivíduo esteve lá. Na volta, esta impressão se acentuou. Ela
parecia constrangida junto de mim e por vezes manifestava uma frieza
calculada. Não quis interrogá-la a respeito porque não gosto de mendigar
a afeição que me retiram. Mas espacei as visitas, como devem ter
percebido. Não me era agradável impor-me como noivo, não só por Paula ser
rica como porque, no modo de me acolherem agora e durante as conversas,
qualquer coisa me dava a impressão de que não queriam ver em mim mais do
que o primo. De modo que eu já estava preparado para o que acabam de me
dizer. Não quero dizer que por isso sofra menos.
A sra. Evennes levantou-se e, aproximando sua poltrona da de Raimundo,
enlaçou-lhe os ombros vigorosos.
— Meu querido filho!
Toda a sua ternura maternal estava contida nestas palavras.
O coronel bradou, com voz rouca de emoção:
— Essas mulheres são doidas! Não é possível que Paula seja feliz com esse
tal de Daubrey!
— Coitadinha de Paula!
A sra. Evennes sentiu Raimundo estremecer entre seus braços. Que dolorosa
piedade se exprimia nessa última frase!
Paula, a noiva querida, que outrora o amava, Paula afastava-se dele, ia
para outro, para esse Daubrey indigno dela.
— É odioso, disse êle surdamente. Ela se deixa levar por esse gozador,
esse ambicioso sem escrúpulos, mas quando acordar!
O coronel resmungou:
— A mãe é dez vezes mais doida que ela. Esse indivíduo engrolou-a,
decerto, sem grande trabalho. Cabeça sem miolos, essa Berta. O pobre
Roberto sofreu bastante por isso.
— Sim. Ela se entusiasmou por Daubrey e provavelmente fez todo o possível
para que a filha rompesse o noivado. Paula é uma natureza fraca, incapaz
de resistir a uma pressão hábil. Além disso Daubrey é astuto, soube
agradar-lhe e fez-se passar pelo que não é.
— Evidentemente, evidentemente. Com a cumplicidade de Berta era fácil
cercar uma tolinha como Paula. No fundo, meu filho, tudo isso faz descrer
da inteligência e do valor moral de Paula.
— Prova a sua fraqueza, disse Raimundo sucintamente.
Soltou-se brandamente do braço maternal e levantou-se acrescentando:
— Preciso vê-la. Quero que ela própria me diga o que a mãe veio aqui
comunicar.
A sra. Evennes disse ansiosa:
— Meu filho, será um novo sofrimento! Em seguida ajuntou:
— Mas tens razão, vai.
Raimundo aproximou-se do fogão para ver as horas no velho relógio cujas
pequeninas colunas de mármore branco suportavam um mostrador engastado
num arco de bronze dourado e cinzelado.
— Oito e um quarto... Devo encontrá-la em casa, se não jantou na cidade.
Foi até junto da mãe, inclinou-se e depôs um beijo demorado em sua fronte
emoldurada por bandós pretos levemente ondulados.
— Até já, mamãe. Reze por mim.
Alguns instantes depois, lá se ia êle pela noite fria. Mas nada sentia,
nem mesmo se apercebia de que uma neve fina começava a cair. Tinha o
pensamento concentrado em seu sofrimento, no doloroso fim desse sonho que
encantava sua adolescência. Entretanto, o golpe não o pegara
desprevenido, como já dissera aos pais. Desde algumas semanas pressentia-
o. Paula afastava-se, Paula dirigia-se para a miragem.
Quando se achou diante da velha casa, onde D. Berta ocupava o segundo
andar, quando começou a subir a escada de pedra, cujo corrimão era tão
graciosamente lavrado, sentiu um aperto no coração ao lembrar a sua
alegria quando vinha ver Paula e o ar feliz da prima quando êle entrava.
Acabara aquela alegria, acabara aquele terno acolhimento. Tudo isso
pertencia já ao passado.
A criada de quarto introduziu-o no pequeno salão onde passara tantas
tardes junto de Paula. D. Berta estava ali, sentada diante da
escrivaninha antiga, escrevendo. Teve um sobressalto ao vê-lo.
— Tu, Raimundo?... Teus pais já te disseram, com certeza?...
— Estou ao corrente de tudo e vim falar com Paula.
A fisionomia de D. Berta demonstrou uma viva contrariedade.
— Escuta, meu filho, podias evitar isso... esse encontro penoso para
vocês dois.
Enviezou uma olhadela inquieta à fisionomia decidida de Raimundo.
Êle respondeu friamente:
— Tenho o direito de exigir que ela própria de viva voz retire a palavra
dada, do mesmo modo como a empenhou, no dia em que completou dezoito
anos.
— Mas, meu caro...
— A senhora bem pode dar-me essa satisfação "in extremis", minha tia.
Ela enrubesceu, fustigada pelo seu tom irônico.
— Eu desejava evitar mais sofrimentos a Paula... mesmo porque ela está se
sentindo mal e acaba de recolher-se ao seu quarto.
— Oh, nada receie, não vou suplicar-lhe que volte atrás de sua decisão!
Suponho que ela a tenha tomado depois de refletir maduramente. Tampouco
lhe farei reprovações. Mas tenho uma pergunta a fazer-lhe, uma só. A
senhora não pode recusar-me isso.
Ela hesitou, e em seguida levantou-se, dizendo com mau humor:
— Se fazes assim tanta questão!
Saiu do salão. Raimundo ficou de pé, naquele lugar onde tivera tão
demoradas conversas com Paula. Alguns belos móveis antigos, tapeçarias de
tons delicados, um tapete claro circundado de guirlandas de rosas
pálidas, davam-lhe um ar de elegância discreta. Era um quadro de acordo
com a graça fina de Paula, e Raimundo pensara mais de uma vez que em casa
de seus pais ela encontraria uma moldura semelhante.
D. Berta reapareceu, seguida da filha. Paula estava pálida no seu roupão
de crepe-da-china azul-pavão. Mas assim que se achou diante do primo, o
sangue subiu-lhe ao rosto. Dirigiu-se a êle, dizendo:
— Queres falar comigo?
A voz tremia-lhe. Raimundo apertou-lhe ligeiramente os dedos muito frios.
Êle enrijecia todo o seu ser para reprimir a emoção que o invadia ante
esse puro amor da sua juventude, até então associado aos seus projetos de
futuro.
— Sim. Tenho uma pergunta a te fazer. Retiras a palavra dada?
— Mamãe deve ter explicado a teus pais o motivo por que o fiz.
Ela baixava um pouco as pálpebras. Uma de suas mãos crispava-se sobre a
leve fazenda do roupão.
— Sim. Mas eu queria ouvir da tua própria boca. Êle viu os lábios dela
tremerem.
— Porque me perguntas isso, se já o sabes?
— Porque quero que tu mesma me digas que não me amas mais.
Ela teve uma longa hesitação. Depois sua voz, um pouco baixa, respondeu:
— Estimo-te como a um primo, como a um irmão.
— Nunca me estimaste de outra maneira?
Eles se achavam sob o círculo de luz formado pela lâmpada pousada na
escrivaninha. O roupão de Paula tinha reflexos mais vivos; seus braços,
saindo da larga manga, pareciam de uma brancura quase diáfana. Ela ergueu
os olhos e fitou Raimundo, erecto diante dela todo o elegante vigor de
sua juventude, com seu olhar um tanto imperioso que refletia a ardente
vida de sua alma.
Êle repetiu, num tom que mantinha firme:
— Gostaste de mim de outro modo?
Os belos olhos claros se molharam. Novamente esconderam-se sob as
pálpebras, enquanto Paula respondia, a voz meio rouca:
— Não sei... não creio...
— E, hoje, estás certa de que não me amas, já que retiras a tua palavra?
Paula não respondeu logo. Atrás dela, D. Berta contraía os lábios,
enviando a Raimundo olhares sem benevolência.
— Não, não te amo como tu o querias.
E levantando os olhos, Paula acrescentou, num tom doce e constrangido:
— Perdoa-me, Raimundo.
Parecendo não ter, ouvido, êle perguntou:
— Desde quando o percebeste?
— Oh... há pouco tempo.
— Depois que Daubrey começou a te fazer a corte?
Ela fez um gesto de protesto. D. Berta deu alguns passos à frente e
levantou a voz, meio irritada:
— Nem Paula nem eu teríamos permitido que Daubrey cortejasse quem se
considerava naquela ocasião mais ou menos comprometida contigo,
compromisso aliás sem muita razão de ser, é forçoso confessar, pois êsses
namoricos entre primos são em geral pouco profundos. Têm que passar pela
prova do tempo e da vida. Assim aconteceu com Paula. Ela reconheceu que o
que sentia por ti era um sentimento mais fraternal, e seu coração
lançava-se para outro. E lealmente ela te deu a conhecer a situação.
Admitamos que ela não tivesse conhecido Daubrey, casaria talvez contigo,
julgando amar-te sinceramente e só muito tarde se aperceberia do seu
erro. É bem preferível, confessa,
que esse malentendido tenha sido desfeito ainda a tempo de ser remediado.
— Muito preferível, sem dúvida. Daubrey apresentou-se justamente no
momento de evitar essa penosa desilusão a Paula. Êle não lhe fez a corte,
é claro; o coração de Paula atirou-se espontaneamente para êle. Está tudo
muito bem, e considero-te desligada de teu compromisso, Paula, das tuas
juras de amor que não passaram de enganos da mocidade. Apaguemos o
passado, pois; ao menos o mais que pudermos.
Suas palavras caíam com uma nitidez, uma frieza, que pareciam perturbar
Paula. Ela se tornara novamente muito pálida. E perguntou em tom de quem
implorava:
— Não vamos ficar zangados por isso, Raimundo? Continuaremos muito bons
primos, bem unidos, bem afetuosos?
Êle teve uma espécie de sorriso cuja dolorosa ironia escapou a D. Berta,
mas não a Paula.
— Não se trata de zanga. Somente, não poderá ser como antigamente, eis
tudo.
Em seguida, inclinou-se diante de D. Berta com um frio "boa-noite, minha
tia". Paula deu um passo e segurou a mão do primo.
— Não ficas com raiva de mim, não?
Ela implorava-lhe com a voz e o olhar cheios de lágrimas. Depois curvou
um pouco a cabeça, parecendo oferecer a linda fronte ao beijo de
Raimundo, como tantas vezes o fizera. Uma dor aguda pungiu a alma de
Raimundo ao vê-la assim tão junto de si, respirando o perfume da sua
mocidade, dessa frágil beleza que êle tanto amava e sempre considerava
como devendo lhe pertencer. Afastou-se um pouco, olhando-a para guardar a
visão de uma Paula que não era mais sua, mas que não pertencia ainda a
outro. Por um momento seus olhos readiquiriram a suavidade amorosa que
tanta vez Paula vira neles. E disse rapidamente com voz quase
despedaçada:
— Eu me recordarei sempre de que fôste o meu primeiro amor...
Retirou a mão que ela inconscientemente apertava e saiu do salão.
D. Berta foi junto da filha, depôs a mão em seu braço que estremeceu.
— Êle bem poderia ter-te evitado essa comoção, minha querida. Que
temperamento voluntarioso! Tu não ias ser feliz com êle, Paula.
Paula olhava para a porta por onde Raimundo acabava de desaparecer.
Murmurou:
— Acho que sim.
— Não, querida, podes estar certa. Êle é de uma intransigência ridícula,
em tudo. Vocês viveram sempre em choque.
Paula voltou para a mãe uma face alterada:
— É muito penoso para mim fazê-lo sofrer, mamãe.
D. Berta ergueu os ombros.
— Achas que êle tinha um ar assim tão desolado? De minha parte, não tive
essa impressão.
Paula não respondeu. Fechou por um momento os olhos, talvez para
concentrar o pensamento nesse último olhar de Raimundo, em, que ela havia
visto tanta ternura dolorida e tanta dor que se calava.
Num dia de fevereiro, o dr. Raimundo Evennes fez ouvir seu arrazoado no
processo Valliers. A vasta sala do júri não pôde receber todos os que,
com antecedência, tinham lutado por obter um ingresso. O caso era
sensacional. A acusada pertencia a uma antiga família normanda. Pobre,
órfã, fora para a casa de uma tia de sua mãe, em Paris, para servir-lhe
de companhia.
A sra. de Mury, riquíssima, porém avarenta e mal-humorada, não lhe
poupava maus tratos. Um vizinho, o conde de Chamerade, impressionado com
a graça delicada e triste de Antonieta de Valliers, pediu-a em casamento.
A tia deu o consentimento, mas não o dote. Fixou-se a data do casamento.
Poucos dias antes a velha senhora morreu após terríveis vômitos e uma
dolorosa agonia. Desconfiados por certos indícios os médicos fizeram a
autópsia, que resultou na descoberta de arsênico nas vísceras. De prova
em prova, toda a culpa caiu em Antonieta, a parenta mais próxima.
Ela foi presa. A conselho do noivo, pediu ao dr. Evennes que a
defendesse.
Após cada visita à prisão de S. Lázaro, Raimundo saía sempre mais
persuadido de que aquela criança frágil e tímida não era culpada.
Entretanto, provas esmagadoras recaíam sobre ela. Durante o curso do
processo o dr. Evennes reduzira algumas a nada; outras porém restavam,
suficientes, parecia-lhe, para impressionar o júri.
A personalidade conhecidíssima do sr. de Chamerade, ligado a várias
famílias da aristocracia parisiense, fazia desse processo um
acontecimento mundano. O dr. Evennes tinha um auditório de escol. Na
penumbra que envolvia a sala, devido às janelas muito altas mal deixarem
entrar uma claridade frouxa, moviam-se cabeças elegantemente penteadas.
Os olhares corriam da acusada, morena e esguia, de uma palidez trágica,
ao seu defensor, "o belo Evennes", como se dizia no Foro. Raimundo
folheava suas notas tranquilamente. Mas fervia nele o ardente desejo de
obter essa vitória, de salvar aquela jovem, cujo pequenino rosto pálido,
olhos azues cheios de pungente angústia, incessantemente corriam para êle
como a dizer-lhe: "O senhor é a minha única esperança".
O sr. de Chamerade achava-se lá. Por vezes um fugidio tremor percorria-
lhe o rosto glabro, inteligente e bondoso, moço ainda, a despeito de
quarentão.
Cercavam-no amigos. Não se acreditava, em geral, na culpabilidade da
srta. de Valliers. Alguns estavam ainda hesitantes, como os próprios
juizes.
Apontava-se no banco das testemunhas uma prima da vítima, a sra.
d'Arcier.
Ela delatara algumas frases da srta. Valliers, entre outras a seguinte:
"Para mim é terrivelmente penoso ter de esposar, sem dote, o sr. de
Chamerade. Minha tia é uma criatura odiosa". Antonieta protestava nunca
ter dito semelhante coisa, como afirmava nunca ter tido em seu poder o
arsênico encontrado no quarto.
As simpatias estavam mais do lado dela que da sra. d'Arcier. Esta,
mulherzinha magra, de feições duras e sem graça, demonstrara durante o
curso do processo uma inalterável presença de espírito. Mas não escapara
aos juizes, nem a Raimundo, que ela fazia carga contra a acusada, sem
violência, com pérfida moderação. E o dr. Evennes tencionava basear nessa
atitude a sua defesa.
Na bancada dos advogados o dr. Daubrey mostrava sua larga corpulência.
Sistematicamente, embora sem afetação, evitava Raimundo, cuja habitual
frieza para com êle se acentuava de um quê de desprezo. Os deveres
profissionais unicamente os aproximavam. Isto não deixara de ser notado
no Foro, e como tudo se sabe, não se ignoravam as causas. Todas as
simpatias eram do lado de Evennes, muito querido, e que pela dignidade de
sua vida, retidão de suas convicções e força do seu talento, inspirava a
estima geral.
Paula achava-se no auditório, entre sua mãe e Ariana Daubrey. Seu
casamento devia celebrar-se na semana seguinte. Parecia um tanto cansada,
nervosa. D. Berta procurava distraí-la, de compra em compra, de visita em
visita. Paula deixava-se levar sem parecer desejar alguns momentos para
recolher-se antes de empenhar o seu destino.
O juiz Daubrey, que presidia os debates, anunciou:
— Tem a palavra o dr. Evennes.
Raimundo levantou-se. Na tarde já sombria, ergueu-se sua esbelta silhueta
envolta na beca negra. Havia em sua fisionomia aquela expressão de
energia um tanto altiva que a virilizava fortemente, não obstante a
finura de seus traços, e que há tempos vinha se acentuando. Os olhos
mostravam-se firmes e dominadores, na penumbra que envolvia a sala
silenciosa.
Foi uma defesa como há muito não se ouvia no salão do júri. A voz máscula
e sonora ressoou a princípio em períodos do mais puro estilo clássico,
depois tornou-se ardentemente patética, falando com simplicidade, sem
procurar efeitos, da vida de provocações e das virtudes da srta. de
Valliers. Tinha acentos pungentes que faziam correr um frêmito pelo
auditório. Por fim chegando às acusações levantadas contra a moça pela
sra. d'Arcier, o advogado, fazendo ressaltar o ódio dissimulado dessa
testemunha da acusação, bradou de súbito:
— E tudo isto porquê?... Sim, porquê?
Sua voz profunda ressoou na sala, ao lançar a terrível acusação. Depois
silenciou por alguns instantes. O silêncio trágico pairou sobre a
assistência. Viu-se a sra. d'Arcier estremecer e em seguida endireitar-se
para conservar sua postura impassível.
O dr. Evennes continuou sua defesa. As fisionomias, no auditório,
tornavam-se indistintas. Paula curvou um pouco a fronte e amarfanhava
entre os dedos as luvas que descalçara. Os belos olhos ardentes de Ariana
não largavam a face animada e expressiva do orador e não perdiam um dos
seus gestos tão em acordo com as palavras, sempre.
A sala iluminou-se. O dr. Evennes apareceu em plena claridade e as togas
vermelhas dos juizes retomaram os tons brilhantes que há pouco a sombra
suavizava. A ré fitava o seu defensor e grossas lágrimas, das quais
decerto não se apercebia, escorriam-lhe ao longo das faces pálidas.
O juiz suspendeu a audiência. Em meio do brou-ha-ha, todos os membros da
Ordem dos Advogados ali presentes rodeavam Evennes. O presidente da Ordem
de quem Evennes fora secretário, apertou-lhe a mão calorosamente.
— Evennes, está me proporcionando uma das maiores emoções da minha vida!
O entusiasmo era sincero, salvo entre alguns invejosos, como sempre.
Daubrey disse uma rápida palavra, desviando de Raimundo o olhar
surdamente irritado. Apenas tocaram-se as mãos. Daubrey afastou-se, em
busca da noiva.
Raimundo foi até o bar e em seguida voltou a juntar-se à sua cliente. Ao
vê-lo a srta. Valliers teve uma crise de choro e estendeu-lhe os braços.
— O senhor vai me salvar! Oh, diga! diga!
Ela estava de inspirar piedade, alquebrada pela sua fraqueza, na
humilhação atroz daquele processo, que a expunha à curiosidade pública.
Raimundo, segurando-lhe as mãos trêmulas, animou-a, encorajou-a com firme
doçura. Estava com esperanças, com grandes esperanças. A srta. de
Valliers voltaria para o lado do seu noivo!
E pensava consigo:
"Que ao menos esses sejam felizes"!
Todo o calor patético com que fizera o auditório vibrar, provinha daquele
pensamento, daquela dor que acabava de sofrer. Êle pleiteava menos o
triunfo de uma causa que sabia justa do que evitar o desgosto para o sr.
Chamerade de perder uma noiva querida.
Ao recomeçar a audiência, o dr. Evennes terminou sua defesa. Apontou a
surda avidez que, na sombra, espiava a fortuna da velha. Esta não deixara
testamento. Antonieta, sua única sobrinha, era a herdeira legítima. Mas,
posta de lado essa herdeira, por via de sua condenação, quem entraria na
posse dos bens da defunta?
Todos os olhares se voltaram para a sra. d'Arcier, sempre imobilizada na
sua atitude impassível. O dr. Evennes não pronunciaria nenhum nome, não
parecia acusar ninguém, no entanto, por força mesmo da evidência, cada
palavra sua apontava aquela que era, depois de Antonieta, a parenta mais
próxima da sra. de Mury.
Com sóbria habilidade o advogado fazia ressaltar os pontos obscuros da
acusação, as reticências de certas testemunhas, as declarações feitas por
outros em favor da srta. de Valliers. Citou a seguinte frase da criada de
quarto, onipotente e desgraciosa pessoa que dirigia tudo em casa da velha
senhora: "Eu nem sempre fui amável com a srta. Antonieta, mas lamento-a
muito, agora que a vejo acusada de semelhante coisa, pois se há pessoa
capaz de tal, certamente não será ela!"
Sua bela e máscula voz sabia usar todas as inflexões, desde a mais
cariciosa doçura à mais impetuosa indignação. Ora irônica, com finuras,
ora em amplos, períodos de uma clareza admirável, mostrava-se calma,
serena, desapaixonada, continuando a deslindar ponto por ponto a acusação
forjada contra Antonieta de Valliers.
Por fim êle a ergueu para uma pungente peroração, apelando para a razão,
a lógica daqueles que nesse momento iriam proclamar a inocência ou a
culpabilidade da acusada. Em seguida calou-se. Durante um longo momento,
depois que Evennes se sentou, a imobilidade pairou no salão. Raimundo,
ante esse silêncio, compreendeu toda a extensão de seu sucesso. Vinha de
manter sob um encantamento essa multidão, esses velhos advogados, esses
juizes, tudo gente já cansada e indiferente; havia-os subjugado ao
domínio do seu talento, subitamente revelado, brotando.de seu sofrimento.
Sentiu-se um tanto orgulhoso. Era moço, sentia-se em pleno vigor
intelectual e amava a glória, como todos os humanos. Teve a visão súbita
dos triunfos que o esperavam, naquela carreira em que viria a ser um dos
primeiros.
A embriaguez foi breve. Pensou:
"Esses sucessos, eu os ofereceria a Paula. Seria feliz em oferecer-lhe um
nome célebre. Mas, agora !
Os jurados se recolheram. A deliberação foi breve. Quando reapareceram,
houve um longo movimento na multidão. O sr. de Chamerade, ofegante,
inclinou-se um pouco, como para ouvir melhor a sentença, que era tanto
para a sua noiva quanto para si.
O júri reconheceu a inocência de Antonieta de Valliers. Um suspiro de
alívio pareceu percorrer a sala. O sr. de Chamerade ergueu-se, a
fisionomia alterada, os olhos cheios de alegria. A srta. de Valliers
desmaiou. Carregaram-na, inerte, para fora da sala.
Pouco depois Raimundo, fugindo das congratulações, foi informar-se da
moça.
Ela acabava de voltar a si e pedia que chamassem o advogado.
Quando a deixou em companhia do sr. de Chamerade, ainda emocionado com a
felicidade e o reconhecimento deles, viu-se a cada passo impedido de
chegar à galeria de Harlay. Uma moça, vestindo um elegante manto verde-
escuro, esgueirou-se entre os grupos e chegou-se a êle. Era Ariana, os
olhos brilhantes, dizendo com voz entusiasta:
— Permita que esta humilde futura colega o felicite também.
Depois de sua temporada nos Pinheirais, êle não a tinha visto senão de
passagem e raramente. Pareceu-lhe que uma certa frieza sobreviera nas
relações de Paula com ela. Seu primeiro movimento foi de rispidez. Não
era a irmã de Daubrey? Mas afrouxou logo ante aquele olhar firme e
sincero.
—... O senhor me emocionou, me transportou. Houve um momento em que senti
as lágrimas brotarem. Oh, eu nunca choro. Certamente mais tarde não me
faltarão ocasiões para isso. É pois um novo sucesso para si.
Ela fez aquele seu sorriso sutil, meio irônico. Mas seus olhos pareciam
conservar o brilho humido das lágrimas que há pouco as palavras de
Evennes lhe haviam provocado.
Êle replicou, com uma alegria mixta de emoção:
— Foi realmente uma vitória, pois, segundo suas próprias afirmações, não
ignoro o quanto é céptica.
Mas súbito o sorriso apagou-se em seus lábios. D. Berta aproximou-se,
precedendo a filha. Toda amável, tomou a mão do seu jovem parente e
apertou-a com força.
— Meu querido sobrinho, és uma revelação!
— Não previa isso, minha tia?
Ela não compreendeu a intenção mordaz. Mas Paula percebeu, pois seus
lábios tremeram e a transparência de sua tez clareou-se de um rosa vivo,
ao mesmo tempo que desviava o olhar perturbado.
Dirigiu ao primo algumas palavras, a que êle respondeu com fria polidez.
Depois os amigos cercaram Raimundo. Respondendo a todos, apertando as
mãos estendidas para êle, viu Paula afastar-se em companhia de Fernando
que a viera buscar. Raimundo desviou o olhar. Naquele minuto, toda a dor
que guardava escondida, gritou, desfazendo quase a embriaguez do sucesso.
Ao voltar do Foro para casa, pensava:
"Não devia mais pensar nela. Não é quem eu pensava, pois se deixou
apaixonar por um Daubrey!"
Mas fora muito o seu amor de infância, sua ternura forte e protetora, sua
fidelidade constante, para que o seu sonho morresse sem o dilacerar.
Na sala, a sra. Evennes lia para o marido, que não podia ouvir Raimundo.
Quando êle entrou ela levantou a cabeça com uma vivacidade que não lhe
era habitual:
— Então, meu querido?
— Absolvida, mamãe! Foi um grande sucesso para este seu filho.
O coronel exclamou:
— Eu já esperava isso!
Raimundo aproximou-se da mãe e lhe depôs no colo um molho de cravos que
acabara de colher para ela. Em seguida depositou um longo beijo na mão
que ela lhe estendeu. Seus olhos se encontraram Os de Raimundo diziam: "É
a ti, minha querida confidente, minha conselheira, que devo o meu
sucesso".
No olhar da sra. Evennes uma calma alegria se misturava à mais profunda
ternura.
Raimundo sentou-se entre seus pais, e o coronel pondo a mão sobre o ombro
do filho, fitou-o com afetuoso orgulho.
— Ora bem. Conta-nos isso, meu filho.
Enquanto Raimundo falava, a sra. Evennes não lhe tirava os olhos de cima.
Notava-lhe o gesto um tanto nervoso da mão, certa contração no sorriso,
sombras de sofrimento passageiro nos olhos demasiado graves. Pensou:
"Êle viu Paula".
Mas nada perguntou. Ela sabia que nem mesmo a mão de uma mãe pode tocar
em certas feridas, que só o tempo, e sobretudo a fé, viva e profunda, são
capazes de aliviar, de fechar talvez.

SEGUNDA PARTE

I
Certa tarde, durante o intervalo da audiência, o dr. Evennes viu-se
cercado de estudantes que lhe pediam opinião sobre um ponto controverso
em direito. Empurrados pelo movimento da multidão, ao longo da sala dos
Passos-Perdidos, iam eles ouvindo a palavra ardente e clara de Evennes,
trocando olhadelas entre si quando, de passagem, algum olhar feminino se
fixava complacentemente no jovem advogado, cujas defesas tinham sempre um
auditório elegantíssimo, atraído talvez mais pelos encantos físicos do
orador que pela eloqüência.
Um rapaz alto, de tez bronzeada e espessos cabelos crespos, disse a meia-
voz:
— Ali está a maravilha da classe em conversa com o irmão. Coisa rara.
Parece não haver muita harmonia entre eles.
Um outro, a seu lado, murmurou:
— Puxa, como ela é bonita!
Ficaram olhando Ariana Daubrey que caminhava lentamente, ao lado do
irmão, falando com certa animação. A toga caía em longas dobras
flutuantes em volta de seu talhe, que deixava transparecer suas linhas
flexuosas, harmoniosas, sob a ampla veste, junto da fisionomia rígida e
fria de Fernando, a vivaz beleza de seu rosto acentuava-se, e os olhos de
tom violeta pareciam mais atraentes com sua altiva sinceridade, quando
comparados aos de Daubrey, que pareciam sempre velados por uma sombra
inquietante, ao abrigo das moles pálpebras.
Ariana tinha-se formado alguns meses antes, mas ainda não fizera nenhuma
defesa. Contentava-se em receber alguns clientes no gabinete que montara
em sua própria casa. Era sempre vista no Foro, onde ia ouvir os advogados
de fama e pedir conselhos aos mestres juristas, sempre prontos a dar-lhe
esclarecimentos. Sua entrada numa sala de audiência tinha por efeito
desviar do debate, por mais importante que fosse, a atenção dos seus
colegas masculinos. Ela parecia insensível a essa admiração, que mantinha
sempre a distância. Ninguém podia vangloriar-se de ter recebido a
permissão de fazer a corte a Ariana Daubrey, e os audaciosos que o
tentavam sabiam o irônico desdém que acolheria suas ousadias.
Ao terminar a audiência, Raimundo, após um rápido colóquio com o
presidente da Ordem dos Advogados, dirigiu-se para a grande escadaria da
galeria quadrangular, afim de subir à terceira câmara do tribunal. A sala
dos Passos-Perdidos se esvaziara pouco a pouco. De novo as salas de
audiência se enchiam e sob as velhas abóbadas recomeçavam a elevar-se,
frouxas ou eloqüentes, as vozes dos oradores.
Ao chegar aos últimos degraus, Raimundo viu Ariana apoiada na balaustrada
de mármore da galeria, olhando embaixo o imenso hall quase deserto. Ela
viu-o e estendeu-lhe a mão sorrindo.
— Vai falar?
— Não. Vou ouvir Hardy. Admiro a sua eloqüência firme, um tanto seca, mas
nítida, e estou curioso por saber como ele se sairá desse caso espinhoso.
— Eu também ia para lá. Acompanhei todo esse processo com muito
interesse.
— Quando faz a sua primeira defesa?
Ela teve um desses sorrisos suaves e encantadores que lhe iluminavam o
rosto como um límpido raio de luz.
— Ainda não pensei nisso. Confesso, tenho um certo receio.
— Receio?... a senhorita, tão intrépida?
Êle olhava-a sorrindo e mais uma vez notava o desenvolvimento daquela
beleza que já o surpreendera, três anos antes, nos Pinheirais. Depois
daquela data, pouco tinha visto Ariana, até sua entrada para a Ordem. Êle
e seus pais quase não mantinham relações com Paula, que se tornara Madame
Fernando Daubrey. O juiz e sua filha faziam todos os anos, em janeiro,
uma visita à sra. Evennes, e não passavam disso. De tempos a tempos,
Raimundo via a srta. Daubrey, na sociedade ou em alguma audiência no
Foro, principalmente quando êle tinha de falar. Trocavam algumas
palavras, olhavam-se com simpatia, mas um e outro tinham consciência de
que a sombra constrangedora de Fernando se interpunha entre ambos.
Depois que Ariana passou a militar no Foro, Raimundo encontrou-a com mais
freqüência, mas em geral, em suas conversas sempre breves aliás, quase só
tratavam de assuntos profissionais. Jamais falaram em sua temporada nos
Pinheirais. Também nunca falaram em Paula.
Raimundo sentia grande interesse por essa personalidade atraente, nada
banal, a qual há tempos já lhe revelara um recanto da sua alma. Alma
leal, orgulhosa, incapaz de se comprazer nas baixas satisfações — porém
alma ardente, que uma paixão poderia arrastar e lançar fora do caminho
reto, pois os princípios dirigentes não existiam para ela. Quando essa
idéia lhe vinha, Raimundo sentia uma profunda piedade por essa moça ainda
pura, que sem dúvida, a despeito de suas atitudes de cepticismo,
conservava algumas ilusões, e sensível, vibrante, muito havia de sofrer
se um dia a vida a desfolhasse. Para onde, para quem se voltaria ela
então, já que não podia contar com a afeição familiar?
De algum tempo para cá esse sentimento de piedoso interesse se tornava
mais forte. Raimundo se apercebia mais dos perigos que a aguardavam com
vê-la mais vezes, escutando os ecos das admirações masculinas. Ela
possuía aquele encanto que subjuga, que atrai, que prende; fora feita
para inspirar o mais profundo devotamento. Um dia ou outro a paixão
cantaria nela, responderia ao amor que a solicitasse. Se essa paixão
fosse culpável, que barreira lhe poderia opor? Ou então, se a decepção
atingisse seu orgulhoso coração, em que revolta ou em que desespero se
afundaria?
Ariana apoiava-se na balaustrada de mármore dando as costas para o hall
quase deserto agora. Uma de suas mãos sustinha a pasta de marroquim, a
outra pendia, fina e branca, ao longo da estamenha preta. À reflexão de
Raimundo, a moça pôs-se a rir.
— Talvez me ache às vezes demasiado audaciosa. É bem possível que não
aprecie muito as mulheres que se lançam ao assalto das profissões
masculinas.
— Meu parecer é que só excepcionalmente as mulheres devem seguir certas
profissões e isso mesmo levadas por uma vocação irresistível.
— Porque?
— Em primeiro lugar porque, em nossos caminhos atravancados, elas estão
mais desarmadas ainda que os homens diante da concorrência, a não ser que
possuam faculdades acima do comum. Algumas abrirão caminho, outras
morrerão de fome com seus diplomas.
Portanto para que submetê-las a estudos longos, custosos, difíceis e que
por sua natureza mesma, e ainda pelo meio masculino em que são obrigadas
a se moverem, as arriscam a perder qualquer coisa de seu encanto, de sua
delicadeza de alma?
Ariana curvou um pouco o busto, de encontro à balaustrada.
— Então, censura-me ter escolhido esse caminho?
— Não tome essas palavras para si. Sua inteligência a coloca acima do
nível comum. Atingiu brilhantemente e sem esforços a entrada desta
carreira em que se lhe oferecem oportunidades de êxito. Além do mais,
sabe manter-se sempre bem feminina. Tudo isto basta, parece-me, para
justificar a escolha que fez.
Ariana abanou a cabeça.
— Na verdade não foi uma escolha. Por mim preferiria seguir uma carreira
artística. Meu pai é que me fez estudar direito, achando que me traria
vantagens pecuniárias. Mas não é do meu gosto. Entretanto, preciso ganhar
a vida, principalmente agora. Vim a saber ultimamente que nossa fortuna,
que já não era grande, em parte evaporou-se, devido a ter sido por vezes
mal empregada. Meu pai poderá aposentar-se, levar até o fim uma
existência confortável, mas eu tenho de trabalhar para viver e poder
manter a minha independência. Tem pois, diante de si, uma colega de fato,
dr. Evennes.
Ela sorriu, mas seu olhar era severo, resoluto.
— Muito bem, senhorita. Neste caso desejo-lhe um sucesso rápido. Tenho
uma grande admiração pelas moças corajosas que enfrentam audaciosamente a
vida e trabalham para adquirir sua independência, em vez de contar
unicamente com a renda dos pais ou um casamento rico.
— Bem problemático, aliás, quando não se possue um bom dote. E eu casar-
me por dinheiro, isso nunca!
Interrompeu-se, voltando-se para dar um olhar à imensa nave que se
alongava em dois vértices em baixo dela. Raimundo viu-a unir as belas
sobrancelhas de um castanho mais carregado que os cabelos. Fernando
Daubrey saía da primeira câmara e dirigia-se a uma pretoria. Seu andar
firme e vagaroso, o vigor de sua larga corpulência, a impassibilidade de
seus traços duramente talhados, davam uma impressão de força concentrada,
um tanto brutal.
Ariana, afastando-se da balaustrada, voltou-se para Raimundo:
— Sabe que meu pai alugou um apartamento na mesma casa em que o senhor
mora?
— Já sei, a encarregada disse-o a mamãe esta manhã. Sentimos grande
prazer na vizinhança.
Ela meneou a cabeça. Um ar de ironia flutuava em seu olhar, desenhava-se
nos cantos de seus lábios.
— Diz isso por delicadeza, mas... Talvez o senhor sinta alguma simpatia
por mim, mas não gosta de meu pai, cujas opiniões são justamente o
contrário das suas. Além de tudo, há Fernando...
Aproximou-se mais de Raimundo e colocou a mão em seu braço:
—... Nunca lhe falei nisso, mas uma vez por todas quero expressar-lhe o
meu sentimento a respeito do que sucedeu. Depois não falaremos mais no
assunto. Entretanto quero que saiba que fiz tudo para que meu irmão
desistisse de casar com Paula. Conheço-o bem e sei que êle não podia
senão fazer a infelicidade dela. Além do mais achava uma indignidade êle
aproveitar-se da fraqueza e inconstância de Paula para a conquistar. A
ela própria eu disse também, com franqueza, o que eu pensava. Mas estava
envolvida, dominada por meu irmão. Êle é hábil, sabe cativar as mulheres!
— certa espécie de mulheres, pelo menos. A mãe dela levava-o às nuvens,
nos primeiros tempos. Agora creio que já está suficientemente capacitada
do que êle é. Quanto a Paula... Coitada dela!
Interrompeu-se por alguns segundos, e em seguida acrescentou, fitando em
Raimundo o olhar firme e leal:
— Eu e Fernando nunca fomos muito amigos. Nossos temperamentos se chocam,
não existe nenhum ponto de contacto entre nós. Depois de seu casamento,
raramente o vejo, a não ser aqui... Êle poucas vezes vai lá em casa, e eu
o menos possível à casa dele. Paula tornou-se muito mundana para mim.
Além do mais, ficou aborrecida comigo pelo que eu lhe disse por ocasião
do noivado e mais ainda porque constatou que eu tinha razão e que ela
cometeu a maior das loucuras, aconselhada pela mãe, aliás. Por minha
parte confesso que a desprezo um pouco, depois que faltou à palavra
empenhada.
Raimundo disse brevemente:
— Ela fez bem, já que não me tinha amor.
Ariana fez um rápido movimento de ombros, murmurando:
— Não lhe tinha amor!
Seu olhar fixou-se naquele rosto em que o sofrimento passado, o estudo, a
reflexão, a consciência de um valor reconhecido por todos, haviam
impresso um ar de nobreza e de máscula energia, e em que os olhos,
refletindo uma alma ardente e forte, atraíam como dois focos luminosos.
— Ela cedeu, como uma criança, à influência da mãe e à de Fernando, eis
tudo. Eles a convenceram de que não tinha por si mais que uma amizade de
irmã. Fraca, e um tanto vaidosa, ela gostou que um homem de posição como
Fernando lhe fizesse a corte, com tantos agrados e elogios. Enfim, acho
que esse casamento foi em parte um trabalho de sugestão levado a efeito
por D. Berta e meu irmão, o temperamento de Paula prestando-se a isso com
facilidade... Mas mudemos de assunto, deixemos o passado, folhas mortas.
Eu só queria que soubesse que nunca estive de acordo com aquilo e fui
sempre do seu lado.
— Conheço-a bastante, senhorita, para duvidar um instante de seus
sentimentos. É demasiada bondade e delicadeza de sua parte o querer
certificar-me.
Êle considerava emocionado aquele rosto expressivo que, mais ainda que as
palavras, lhe exprimia tanta simpatia e que era tão sincero, tão vivaz,
tão agradável.
— Quero também assegurar-lhe que não tenho culpa se meu pai alugou esse
apartamento... Êle não me consultou...
— Por Deus, não vão imaginar que estejamos descontentes em tê-los por
vizinhos. Ao contrário, minha mãe terá satisfação em vê-los
constantemente.
Porque dizia isso? Nunca a sra. Evennes manifestara desejos de ver
freqüentemente a srta. Daubrey. Mas não lamentou as palavras que lhe
haviam escapado. Sua mãe não escondia que, pelo pouco que conhecia de
Ariana, esta lhe interessava bastante. Raimundo tinha pois a certeza de
que não recusaria receber algumas vezes aquela moça a quem poderia fazer
tanto bem.
Ariana disse a meia voz, pensativa:
— Ah, sua mãe, sua mãe!... Desejaria conhecê-la melhor, para admirá-la.
Bem, agora vamos ouvir o dr. Hardy. Acho que sua defesa deve estar
adiantada, pelo tempo que o retive aqui.
— Ficará para outra vez. Estou satisfeito por me haver falado com tanta
franqueza.
— Verdade? Eu estava sem coragem... receava ser desagradável recordando-
lhe essas coisas.
— Não. São mesmo folhas mortas, como disse há pouco, e seus dedos finos
de mulher delicada podem tocá-las por vezes, sem as romper.
Interrompeu-se e acrescentou, após curto silêncio:
— Eu sempre a considerei à parte. Não obstante a opinião que faço de seu
irmão, nunca deixei de sentir simpatia por si e de estimá-la, pois a
julgo sincera, mesmo em seus erros.
Com um daqueles gestos espontâneos tão encantadores nela, Ariana
estendeu-lhe a mão.
— Sinto um grande prazer nisso!
Seus olhos brilhavam de um contentamento que surpreendeu e comoveu
Raimundo, que apertou demoradamente sua mão quente, de epiderme tão suave
que parecia a de uma pétala.
Foram juntos à terceira câmara. O dr. Hardy, baixinho e grisalho, cuja
voz nítida tinha ressonâncias de metal, exumava naquele momento textos de
leis. Durante alguns instantes Raimundo procurou seguir-lhe as seduções.
Mas logo seu espírito evadiu-se para longe, para aquele passado que
Ariana acabara de recordar.
Seu coração não sofria mais. Depois de ter energicamente recalcado aquele
amor que não tinha o direito de conservar, apercebeu-se certo dia que a
lembrança de Paula, e até mesmo a vista dela, não acordavam mais em seu
íntimo as fibras dolorosas. Amara nela o sonho mais puro de sua
juventude, aureolara-a com o idealismo que tinha em si mesmo. Uma brusca
desilusão lhe havia revelado a vaidosa fraqueza daquele espírito, a
fragilidade de suas convicções religiosas, de seus princípios morais. A
Paula que havia amado não fora mais que um fantasma, uma imagem criada
pela sua imaginação. Êle havia sofrido como todos aqueles que vêem ruir o
seu sonho; mas era um desses espíritos ardorosos e fortes, que se dão
inteiros, exigindo entretanto em troca o mesmo abandono sincero e que
necessitam ter em alta conta a pessoa amada. Paula, tendo aceitado
tornar-se esposa de Dabrey, ateu e devasso confesso, cedendo a uma
conquista vulgar e deixando-se levar pela miragem de ambição projetada à
sua frente pela mãe, provocara a ruina da ilusão e o fim do amor em um
homem da têmpera de Raimundo.
Entretanto, sempre que a revia ou que lhe falavam dela, sentia por
momentos uma impressão penosa. Ela lhe recordava todo o amor da sua
juventude e um grande sofrimento. Não a amava mais, porém não podia
esquecer o passado, o que tinha sido, tudo o que tinha esperado quando
acreditava no amor de Paula, na firmeza de seus princípios, na límpida
beleza de sua alma.

II

Numa tarde clara de Abril, Ariana fez a primeira visita à sra. Evennes.
Foi recebida no jardinzinho que enfeitava a frente do pavilhão. A pequena
grade que o separava do terreno comum era em parte guarnecida de hera,
escondendo aos olhares indiscretos o caramanchão florido de rosas durante
o verão onde o coronel gostava de ir sentar-se. Um leve odor de violetas
perfumava o ar. No canteiro que se estendia ao longo da grade, as flores
da primavera desabrochavam e viam-se as folhas prestes a brotar nos
longos caules das roseiras serpenteando nos velhos tijolos da fachada.
Ariana apresentou as desculpas do pai que não pudera vir, por achar-se
doente.
— Receio que seja obrigado a pedir aposentadoria, acrescentou ela.
O coronel perguntou:
— Isso lhe desagrada?
—- Sim, êle contava trabalhar por mais alguns anos.
A fisionomia do coronel pareceu entristecer-se de súbito. Torceu
nervosamente o bigode que ainda se mantinha quase inteiramente louro.
— Eu bem sei o quanto custa ter a carreira interrompida.
Ariana disse com certa ironia:
— Oh! meu pai não o sentirá tanto como o senhor, coronel. Pelo menos, não
sentirá do mesmo modo.
Ela olhava para o coronel com certa emoção. Sabia por Raimundo o desgosto
que fora para êle a interrupção de sua carreira e quanto a inatividade
pesava a esse homem abatido em pleno vigor, em plena inteligência.
Imediatamente, para desfazer a impressão penosa causada no ambiente,
desviou a conversa para outro assunto.
Seu encanto natural, o reflexo de sua beleza, da vida que animava o seu
olhar, parecia expandir-se em sua volta, alegrando a fisionomia fina,
murcha mas agora sorridente do coronel, e a da sra. Evennes que olhava
com amigável interesse a encantadora visitante.
Quando Ariana quis se levantar, ela a reteve:
— Se não está com muita pressa, fique um pouquinho mais. Vamos tomar um
café com leite, Meu marido deve fazer quatro refeições leves por dia, por
recomendação do médico. Prefere um pouco de chá?
Ariana disse gostar muito de café com leite, e retomou seu lugar sem mais
cerimônias. Sentia-se singularmente bem naquele jardinzinho tranqüilo,
onde ecoavam tão longínquos os ruidos de Paris que a gente se julgava em
um recanto qualquer de província. A voz da sra. Evennes, seu olhar calmo
e suave, davam uma impressão de paz, de serena beleza, que eram um
bálsamo para a alma profunda de Ariana.
A criada trouxe o café, e a moça ofereceu-se para servi-lo. A sra.
Evennes e o marido acompanhavam com prazer os movimentos dela, vivazes e
graciosos. Quando ela apresentou uma chícara ao coronel, este lhe fez uma
cortesia discreta. Ela fez um sorriso tinto de certa ironia. E pensava
consigo: "O pai me faz cortesias; mas o filho, nunca". Entretanto, uma
tarde, no pequeno terraço do Penhasco do Inferno, há tempos, os olhos
dele tinham-lhe falado, durante alguns segundos. Ariana sabia que naquele
momento Raimundo a admirara e quase o confessara. Mas depois disso, nunca
mais...
Tornou a sentar-se ao lado da sra. Evennes. O sol principiava a sair da
frontaria sobre a qual se estendiam grandes panos de sombra. As janelas
abertas deixavam entrever o salão deserto, na penumbra em que o cinza dos
ornatos, a seda amarela de uma almofada, o dourado velho de um quadro,
punham indecisas notas claras.
Chegou uma amiga da sra. Evennes que vinha descansar um pouco, entre duas
visitas de caridade. Era uma senhora baixinha, morena, pálida, de olhos
vivos de meridional, que passava a vida fazendo o bem, discretamente, sob
a capa de uma ágil frivolidade e alegres gracejos. Ela animava com
presteza os seus protegidos, dizia-lhes abertamente seu modo de pensar e
às vezes até se privava para ajudá-los. Contudo, não, tinha ilusões, nem
contava com a gratidão deles, virtude sobrehumana, assegurava ela.
Quando a sra. Evennes lhe apresentou a srta. Daubrey dizendo que ela
exercia a profissão de advogada, a visitante disse cordialmente:
— Tenho grande prazer em conhecê-la, senhorita...
Seu agudo golpe de vista examinou rapidamente a moça. Em seguida,
enquanto se sentava, acrescentou:
— Se precisar de clientes, eu lhe mandarei. Mas previno-a de que não
pagam.
Ariana respondeu alegremente:
— Mande-os. Gosto da minha profissão, não trabalho somente por dinheiro.
— Fala como Raimundo. Êle é muito caridoso e não se importaria de deixar
um negócio rendoso para prestar um serviço a alguém que nada lhe pagasse.
Ariana meneou a cabeça:
— Desconheço a caridade. Ajo segundo a minha fantasia, pelo meu prazer, e
porque em geral acho agradável ir em ajuda dos outros. Não me sujeito a
nenhum dever.
Sem dúvida a sra. Murillon não ignorava o gênero de educação que o juiz
Daubrey dera aos filhos, pois não manifestou a menor surpresa àquela
declaração. A sra. Evennes disse com doçura:
— Nenhum dever? Mas não há senão isso na vida, minha filha!
— Podemo-nos libertar deles, minha senhora.
— Acredita, minha filha, que os que pensam assim sejam os mais felizes?
A sra. Evennes inclinava-se um pouco para ela. Seus olhos cheios de uma
grave piedade encontraram os de Ariana, que se ensombreceram, perdendo
aquela expressão de vida fremente.
— Não. Não são. Não podem ser. Mas quando, desde a infância, lhes
inculcaram o desprezo por toda disciplina moral, quando lhes disseram, ou
lhes deixaram crer, que eram eles próprios a sua própria finalidade e que
não existe de fato nem bem nem mal, mas unicamente o que nos pode
prejudicar pessoalmente, que querem que eles façam?... que querem que
eles façam?
A patética interrogação passou-lhe entre os lábios que tremiam um tanto.
Ariana baixava os olhos, como se quisesse esconder o olhar, em que a
angústia crescia. Em seguida, subitamente, sorriu e o vivo brilho
reapareceu em seus belos olhos de tom violeta.
— Vamos escorregando para as considerações filosóficas. A culpa é minha.
Por isso, vou já embora. Minha visita já foi excessivamente demorada.
O coronel protestou e a sra. Evennes disse amigavelmente:
— Espero que a repita.
A sra. Murillon, vendo a moça afastar-se, cruzou os braços curtos sobre o
peito, num gesto comum às suas horas de reflexão. A seu lado o coronel
murmurou:
— Que moça encantadora!
A sra. Murillon fez com a cabeça um sinal afirmativo. Em seguida
perguntou:
— Ela vem sempre aqui?
— Oh, não. Até agora, não nos fazia mais que uma visita por ano. Mas como
o pai alugou um apartamento no primeiro andar, em frente, é provável que
a vejamos agora mais freqüentemente.
A sra. Murillon descruzou os braços, e observou: — Ela não se parece em
nada com o irmão.
— Não, em nada, felizmente. O coronel exclamou:
— Que cachorro! Quando me lembro que por causa desse tipo Paula abandonou
Raimundo! Quando me lembro disso!
— Ela não demorou muito a se arrepender. O casal não anda muito de
acordo, dizem.
— É exato. Paula é uma infeliz. Para aturdir-se leva uma vida mundana
desenfreada, que não deixa de lhe abalar um pouco a saúde. Berta chora de
arrependida, não na frente dos outros, é claro. O rapaz continua na mesma
vida escandalosa de solteiro e além de tudo desperdiça a fortuna da
mulher. Ah, elas caíram em boa, pobres cegas!
A sra. Evennes, curvada sobre a mesa, arrumava as chícaras vazias numa
bandeja. E disse tristemente:
— Uma existência inutilizada, perdida... eis o que Berta arranjou para a
filha.
Já agora o sol não iluminava mais que o cimo das casas. Uma brisa fresca
acariciava as roseiras, levantava as folhas da revista largada pelo
coronel à chegada de Ariana. De uma janela vizinha, uma voz fresca soltou
um garganteio que se derramou pelo silêncio.
A sra. Evennes acrescentou:
— Se ao menos o filho não tivesse morrido! Seria um consolo para ela.
Nada mais lhe resta, agora, nem mesmo suas crenças resistiram à
influência maléfica de Daubrey.
— Mantém relações habituais com ela?
— Não, cada vez menos. Berta vem raramente aqui e nunca fala nos
desenganos da filha, é natural.
Com um gesto maquinal da longa mão branca, a sra. Evennes espantou um
mosquito que lhe roçava os cabelos. Uma tristeza pensativa expandia-se em
seu rosto. A sra. Murillon declarou:
— Berta é uma avoada. Paula foi mal aconselhada por ela...
O coronel interrompeu-a, em tom peremptório:
— Quando uma mulher é amada por alguém como Raimundo, não se deixa embair
assim, a não ser que seja... a maior das tolas!
— Henrique! disse com brandura a sra. Evennes.
Êle moveu de leve os ombros, dirigindo à mulher um sorriso afetuoso.
— Sim, está bem, eu me calo, santa Helena! Que querem, nunca pude perdoar
isso a Paula. Quanto ao orgulho que meu filho me inspira, a sra. Murillon
já o conhece e o desculpa.
— Não só o desculpo como o aprovo. Sei o quanto vale Raimundo, sob todos
os pontos de vista, e sou de sua opinião, coronel. Paula não era digna de
um homem como êle.
O coronel piscou um pouco o olho para a mulher, como a dizer: "Aí está,
viu?" A sra. Evennes sorriu. E a sra. Murillon prosseguiu, levantando-se:
— Mas não têm pressa de casar Raimundo, creio. Por certo, êle só terá o
trabalho de escolher.
— Não falta quem queira. Mas êle não parece ter pressa. Exige um certo
número de qualidades morais e intelectuais que nem sempre se encontram
juntas numa só pessoa.
— A que fôr escolhida poderá dizer que a vida lhe reservou um bom número.
— Sim, mas quem será ela?
Assim dizendo a sra. Evennes apoiava as mãos na mesa e olhava para diante
de si, pensativamente.
—...Raimundo havia de sofrer tanto se não fosse compreendido! É um
temperamento delicado e, sob sua aparência reservada, um coração
apaixonado. Paula já lhe fez conhecer a desilusão. É preciso que pela
segunda vez êle não entregue o coração a quem não o merece.
Uma fugidia ansiedade passou por seu olhar e seus lábios tremeram um
pouco ao repetir:
— Quem será ela? Quem será?

III

O juiz Daubrey entrou no gabinete da filha e comunicou:


— Vou a Fontainebleau. Não te aflijas se eu chegar tarde. Decerto Rieux
me fará ficar para jantar.
— Está bem, papai.
Ariana, a caneta-tinteiro na mão, olhava para o pai, à sua frente. Êle
dava pancadinhas no colete claro que parecia fazer mais pálida sua tez de
dispéptico. Ariana perguntou:
— Vai de trem?
— Não. Fernando vai me levar. Tem um negócio em Nemours. Na volta,
apanha-me em Fontainebleau e janta também com Rieux. Não vais hoje ao
Foro?
— Não, tenho muito que fazer e marquei encontro a uma cliente.
— Boa cliente?
Ariana pôs-se a rir, reclinando-se no encosto da cadeira.
— Não é bem isso. Talvez não ganhe nada.
O juiz fez uma careta de desprezo que lhe enrugou a cara magra.
— Se tiveres muitas destas!
— Bastantes, com efeito. Uma amiga da sra. Evennes me manda todos os seus
protegidos que precisam de um conselho, de uma direção jurídica. A
excelente senhora conhece gente de toda a espécie, de todas as categorias
sociais. É incrível tanta miséria moral e material! Minha falta de
experiência às vezes me faz ficar embaraçada diante de certos casos
espinhosos. Um, sobretudo, me preocupa e preciso consultar o dr. Evennes.
— Porque não a Fernando?
A boca de Ariana teve uma ruga de desdém.
— Fernando possue grandes conhecimentos jurídicos, mas não pode
acrescentar a esses o conselho moral, indispensável nesta circunstância.
— Conselho moral! Conselho moral!
O juiz abanou a cabeça, em ar de quem diz: "Que tens a ver com isso?"
Pela janela que dava para o pátio entrava uma quente brisa de junho. Em
baixo, viam-se as altas janelas e o telhado do pavilhão, que o sol
iluminava nessas primeiras horas da tarde. Um som de piano chegava até o
gabinete de Ariana.
— É a sra. Evennes que está tocando, disse a moça, vendo o pai atentar o
ouvido. Toca com muita arte.
— Creio que não vais lá muitas vezes.
— Não. Não quero ser indiscreta; mesmo porque fui educada com idéias
inteiramente contrárias às dela.
O juiz deu de ombros.
— Isto não é motivo! Bem sabes, fingidinha, como és bem recebida em toda
parte.
Ela respondeu secamente:
— Em casa dos Evennes não é como "em toda a parte". O critério deles não
é o de todo o mundo, para julgar as pessoas e recebê-las em sua
intimidade.
— Sim, sim, bem sei que vivem atolados em preconceitos excessivos.
Entretanto é força reconhecer que o dr. Evennes sabe bem abrir o seu
caminho. Possue qualidades, é incontestável. Mas creio que seu belo
físico deve ajudá-lo muito em seus sucessos.
Ariana sorriu ironicamente.
— Sim, junto das mulheres. Mas isso produz muito pouco efeito nos
colegas, nos juizes e no público sério. Evennes podia ser o mais feio dos
homens e nem por isso deixaria de ser um orador notável e um jurista de
valor.
— Certamente, certamente. Contudo, a sedução da sua pessoa, da sua voz, é
um acréscimo à força persuasiva de seu talento. Julgo-o por mim.
— O senhor, papai?
Havia uma certa zombaria no tom de Ariana.
— Não o julgava susceptível de sentir essa espécie de influência. Aí está
o que prova mais que tudo, com efeito, o poder mágico do dr. Evennes.
O juiz chacoteou, fazendo estalar os dedos secos.
— Eh! eh! às vezes êle consegue me seduzir um pouco, de fato. Aquele
diabo é mesmo eloqüente e persuasivo. E tu, filhinha, toma cuidado!
Piscou os olhos para a filha, com ar astuto. —...Diz-se que muitas andam
doidinhas por êle, sem que êle ao menos o note.
Ariana teve um gesto de impaciência que quase jogou ao chão os papéis que
tinha em sua frente. Seus olhos violeta se tornaram quase negros, ao
passo que replicava em tom seco:
— Isso me é inteiramente indiferente. Para mim Evennes é um colega, um
excelente colega, nada mais.
O juiz fez o mesmo ar de mofa sutil, um pouco provocante.
— Decerto, um colega, um colega encantador, muito mais agradável de
consultar que Fernando ou qualquer outro desses senhores do Foro. Não te
censuro, minha filha, ao contrário. Mesmo porque sempre te dei inteira
liberdade e podes tentar, se o coração te pede, conquistar o belo
Evennes. Bem, até logo, querida filha.
Fez um vago gesto amigo, virou-se e saiu, com seu passo enrijecido de
reumático.
Ariana ficou um momento imóvel, os lábios cerrados. Um leve rubor subira-
lhe às faces. Levantou-se e deu maquinalmente alguns passos até a janela.
A intensa claridade daquele dia de verão expandiu-se sobre seu lindo
rosto de olhos sonhadores, de boca fremente, sobre o leve tecido rosa de
seu vestido e a brancura palpitante de seus braços nus.
"Que tolice!" murmurou.
Levantou os ombros, acompanhando esse movimento de um sorriso nuançado de
desdém. Tornando à secretária, procurou alguns papéis que guardou numa
pasta, em seguida foi até seu quarto pôr o chapéu. Alguns instantes
depois tocava a campainha da porta do pavilhão.
A sra. Evennes apareceu à janela da sala de jantar. Reconhecendo a
visitante veio sorrindo abrir a porta.
— Veio nos fazer uma visitinha, senhorita?
— Não, minha senhora, agora não. Vim consultar o dr. Evennes sobre um
ponto delicado que me deixa em dúvida.
— Ah! é a meu filho que...
Uma surpresa, uma contrariedade velada, surgiram do fundo de seu olhar
que já não sorria mais. A mão que apertava a de Ariana afrouxou um pouco.
— Êle está, minha senhora?
— Sim, está.
A voz até aquele momento afável tornou-se hesitante, meio fria.
— Entre, senhorita, vou avisá-lo para descer.
— Se êle está em seu gabinete de trabalho prefiro que me receba lá mesmo,
pois venho como uma colega que quer consultá-lo.
— Ah! sim... Venha comigo. Vou mostrar-lhe o caminho.
Entraram. Seguindo sua hóspede, Ariana subiu uma escada meio sombria onde
passos se abafavam num tapete. A sra. Evennes abriu uma porta e disse:
— Raimundo, a srta. Daubrey quer falar contigo. Uma cadeira foi arrastada
e em seguida Raimundo apareceu à porta do gabinete.
— Vim incomodá-lo, disse Ariana alegremente. Que indiscrição de minha
parte, sabendo que está tão ocupado.
Raimundo protestou com calor, apertando a mão que lhe fora estendida. A
sra. Evennes recuara um pouco na sombra do patamar. Olhava para Raimundo
e seu olhar se contraía como sob um ímpeto de angústia. Viu a porta
fechar-se atrás do vestido rosa, enquanto ressoava a risada encantadora
de Ariana. Juntou as mãos e murmurou algumas palavras — uma oração. E em
passo agora apesantado, desceu lentamente.
No gabinete de Raimundo, Ariana, sentada em frente dele, explicava com
clareza o seu assunto. Êle ouvia com atenção. Levava-a a sério, depois
daquela conversa na Conferência. Ela falava bem, dando mostras de
conhecer jurisprudência e denunciando um talento real. Raimundo achava a
um tempo estranho e admirável o contraste da árida ciência jurídica com
tão feminina beleza. Mas nunca essa impressão fora tão forte como agora.
Quase não via Ariana a não ser no Foro, com sua toga de advogada, ou
então num costume de tom neutro. Três ou quatro vezes ela viera em sua
casa, mas êle não estava. Conhecia-a pois muito pouco, sob o ponto de
vista de relação mundana, de mulher elegante, sabendo aliar à sua sedução
natural o ajuste de uma toilette de finíssimo gosto em sua aparente
simplicidade. Entretanto, sendo tão feminina, achava-se bem à vontade
entre textos de leis e fórmulas jurídicas que citava com voz tranqüila,
sem pedantismo, inteiramente absorvida no assunto.
Raimundo deu o conselho pedido, demorando a fazê-lo talvez mais do que o
preciso. Na grande sala severa cujo mobiliário antigo pertencera ao juiz
Evennes, pai do coronel, o vestido rosa de Ariana, a brancura quente de
seu rosto, o brilho vivaz de seus olhos, expandiam como que uma claridade
sutil. Ela estava curvada sobre a secretária onde êle espalhara as peças
dos autos que ela viera submeter à sua apreciação. A cada momento seu
pequenino chapéu de palha flexível, côr de castanha, roçava pelo rosto de
Evennes deixando escapar um suave odor de íris, seu perfume predileto
porque era também o usado por sua mãe. A todo instante seus olhos se
encontravam, iluminados pelo mesmo límpido clarão de juventude ardente.
Ariana, apoiada sobre a secretária, o queixo na mão, ouvia Raimundo. Êle
pensava consigo:
"Que olhar maravilhoso!"
— Fico-lhe muito agradecida. O senhor é de uma complacência sem limites
para com uma pobre colega.
Rindo-se, Ariana recolhia as folhas para pô-las em ordem.
Raimundo olhava os lindos dedos tão destros, tão lestos. Respondeu
alegremente:
— Essa pobre colega sabe muito bem quanto me sinto feliz em lhe ser útil.
E estou sempre à sua inteira disposição, senhorita.
— Provavelmente ainda me utilizarei de sua experiência, porque a minha é
insignificante. E há casos tão difíceis! este, por exemplo.
— A sra. Murillon me disse que está lhe arranjando clientes.
Ariana sorriu.
— Sim, ela me escolheu para advogada de seus protegidos. Que excelente
senhora! E tão divertida! Parece ter gostado de mim. Ontem ela me levou à
casa de uma moça síria, casada com um francês pelas leis de seu país, o
qual a abandonou com dois filhos. Êle agora contesta a validez do
casamento. A pobre criatura está inteiramente sem recursos. Quanta
miséria! Quando penso no marido, nesse covarde!
Ela se ergueu e seus braços tombaram suavemente sobre a pasta aberta
diante de si. O desprezo fulgia em seus olhos, fazia uma ruga no canto de
seus lábios rosados que não sabiam disfarçar.
—... A sra. Murillon quer que eu advogue a causa dela. Mas é impossível.
Sou muito novata ainda. Mesmo deixando-a para o ano que vem, o caso seria
muito difícil para mim. Em sã conciência, não posso arriscar minha
inexperiência numa partida tão difícil em que se jogará a existência de
uma mulher e duas crianças. Já disse isso à sra. Murillon e aconselhei-a
pedir-lhe que seja o advogado da pobre mulher.
— Aceito de boa vontade. Aliás a nossa excelente amiga costuma chamar-me
muitas vezes.
— Ela me disse. Falou-me muito a seu respeito. Ariana enterrou-se na
poltrona funda. Sorria olhando para Raimundo com certa malícia.
— Realmente? Que disse ela?
Êle se inclinava, apoiando-se sobre a secretária. Sorria, êle também, e
em seus olhos havia um brilho de alegria.
— Oh, não vou repetir. Sua modéstia ficaria chocada. Basta que saiba que
ela o admira ao mais alto ponto e não assiste mais às suas defesas porque
sua eloqüência a comove ao ponto de torná-la doente. Aliás, a mim também
o senhor me fez chorar. Lembra-se? No julgamento de Valliers. Eu lhe
disse.
— Lembro-me, sim.
A voz dele tomava uma entonação suave. Uma ardente emoção penetrava-o,
ante aqueles olhos que se tornavam de um violeta profundo, aveludado, e
que continuavam a sorrir entre os cílios abaixados.
— Aquela defesa foi uma revelação. O dr. Melchior-Bardou disse a meu pai:
"Nós sempre esperamos que Evennes fosse um advogado de talento, mas esse
gênio oratório é fora de dúvida uma surpresa para todos".
— Êle também me disse.
Uma sombra passou pela fisionomia de Raimundo. Após um instante de
silêncio, acrescentou:
— É que eu tinha sofrido muito. E para certas naturezas, o sofrimento é a
grande força reveladora, a severa conselheira que acorda em nós
faculdades insuspeitadas e nos eleva acima de nós mesmos.
O sorriso desapareceu dos olhos de Ariana, que ficaram mais doces ainda e
mais profundos. Levantou-se com uma flexibilidade vagarosa. O vestido
rosa farfalhou em volta dela e as pequeninas pedras cor de púrpura que
formavam um colar em torno do pescoço escorregaram pela epiderme
nacarada.
— O senhor tinha sofrido muito. Mas naquele dia vingou-se. Nem sabe
talvez até que ponto foi a sua vingança.
— Que quer dizer? Ela meneou a cabeça.
— Bem. Já vou. Quanto tempo lhe fiz perder! Levantou-se com vivacidade.
Seu olhar tombou num díptico colocado em cima da secretária de Raimundo.
Representava uma "Descida da Cruz". As figuras tinham sido esculpidas no
marfim com infinita delicadeza.
— Oh! que maravilha. Não tinha notado...
Aproximou-se, enquanto falava, e analisou demoradamente o díptico.
Raimundo, que também se tinha levantado e estava de pé ao lado dela,
explicou-lhe tratar-se de um trabalho de um dos seus mais íntimos amigos,
morto aos vinte e cinco anos.
—... O pobre Etienne era grande artista, pois isto é realmente uma obra-
prima.
— Sim, a expressão dessas figurinhas é comovente. E que belo movimento
nesses panejamentos.
Calou-se e contemplou novamente o díptico. Junto dela, Raimundo pensava
consigo, cheio de uma pungente tristeza:
"Ela não vê aí mais que a obra de arte. Essa cena, que acorda em nossos
corações de crentes tantas emoções e recordações sobrenaturais, nada
significa para ela".
Ariana voltou-se para êle. Seu olhar pensativo continha um mundo de
reflexões.
— Não foi somente em lembrança de seu amigo que colocou aí esse díptico?
Quis com isso afirmar também suas convicções, sua qualidade de cristão?
— Com efeito, senhorita.
— Invejo-o. É atroz ir pela vida como um perpétuo desgarrado, buscando um
pouco de luz e não achando senão a treva, sempre a treva.
Falava com uma calma, mas um sofrimento contido vibrava em sua voz.
Raimundo revia naquela fisionomia a mesma sombra trágica, a mesma
angústia de quando, há tempos, junto da capela dos Santos, ela lhe falou
da morte, da noite. Mas desta vez parecia-lhe descobrir no calmo
desespero de Ariana qualquer coisa de mais profundo, de mais doloroso,
esse lapso de tempo havia aumentado seu conhecimento da vida, mostrando-
lhe o horror do vazio em que se debatem tantas almas, em meio às
provações morais e materiais. Antes, seus vinte anos já cépticos haviam
somente pressentido o grande sofrimento desesperado; agora esse
sofrimento se lhe revelava no contacto quotidiano com o mundo, com os
seres que vinham até ela pedir um conselho, uma direção, com esses
tristes heróis dos dramas a cujo epílogo ela assistia sob as abóbadas do
Tribunal.
Raimundo disse com emoção:
—Tenho muita pena de si!
Ela murmurou:
— Oh, se eu tivesse tido uma mãe como a sua!
Seu olhar retornou ao díptico e aí se fixou. Em que pensava ela, ao
considerar assim aquela cena que não podia despertar-lhe mais que uma
sensação artística?
— Lembro-me que minha mãe às vezes me falava do Cristo e da Virgem.
Voltou-se de novo para Raimundo. Êle teve um movimento de surpresa que
ela notou.
—... Mamãe era católica praticante, mas um pouco descurada, parece-me. Eu
tinha seis anos quando ela morreu. Então, tudo se acabou. Fomos criados
sem freio de espécie alguma. Apenas nos traçaram uma vaga direção moral.
Que valia isso? Que valia isso diante da vida e diante da morte?
Voltou-se, dirigiu-se à mesa e apanhou a pasta. De novo o sorriso
voltava-lhe aos lábios.
— Vamos, mestre, ponha-me para fora. Sou por demais indiscreta tomando
assim seu tempo. Mas o senhor é o único a quem posso confiar essas
pequeninas preocupações morais.
— Nunca procurou conhecer a verdade, afastar esse véu que a oprime?
Ela fez com a cabeça um sinal negativo. Depois disse, com um acento de
alegria, que a Raimundo pareceu forçado:
— Bem. Vou-me embora. Mais uma vez, muito obrigada... Não, não se
incomode!
Porém, sem a atender êle desceu com ela a sombria escada. Ao saírem do
vestíbulo, acharam-se no jardim cheio de sol. Sob o caramanchão, a sra.
Evennes lia para o marido. Interrompeu-se e olhou para os dois jovens que
se aproximavam, pois ouvira Ariana dizer: "Ali está o coronel; vou
cumprimentá-lo". Aproximaram-se ambos, moços e belos, inundados de
claridade. O vestido rosa parecia arrastar-se numa glória triunfal. A
sra. Evennes apoiou sobre o livro aberto diante de si as duas mãos que
tremiam um pouco.
Ariana, com a sua graça habitual, informou-se da saúde do coronel. Porém
recusou sentar-se por estar apressada.
—... São quase cinco horas e tenho encontro marcado com uma cliente.
Ficará para outro dia, se permitem...
— Oh, de certo. Dará sempre muito prazer.
— Poderei vir à noite? Quase sempre estou ocupada durante o dia.
— Pois não! A qualquer hora. Dará sempre prazer, não é, Helena?
— Não vejo nenhum inconveniente.
Raimundo olhou para a mãe, surpreso. Parecia-lhe ter percebido no seu tom
uma espécie de hesitante frieza.
— Parece que a senhorita tem um talento especial para dizer versos,
continuou o coronel. Raimundo ouviu-a nos Pinheirais e ficou encantado.
Seria muito amável se recitasse um pouco do meu caro Racine.
— Oh, com todo o gosto. Quer amanhã à noite?
— Creio que nada o impede. Não te parece, Helena?
— Também assim o creio, meu caro.
Desta vez Raimundo não prestou atenção ao tom quase indiferente da mãe.
Olhava para Ariana, em pé diante do coronel e acariciando com mão
distraída o espaldar da cadeira junto dela. Pensava consigo:
"Quero ouvi-la amanhã à noite. Ela deve interpretar bem as heroínas de
Racine".
A sra. Evennes e o filho levaram Ariana até o portão. De passagem, pela
álea estreita, roçavam os rosais em flor. As pétalas esfolhavam-se ao
roçar do vestido rosa. Os dedos de Ariana apanharam do chão algumas,
esfregaram-nas suavemente na palma da mão e em leve gesto as dispersaram
sobre as flores do pequeno canteiro.
— Desejo oferecer-lhe algumas das nossas rosas, disse a srá. Evennes.
Escolha, senhorita.
— Oh, a senhora é tão boa, mas não quero que por minha causa arranque
essas flores de que o coronel gosta, tanto.
Raimundo interveio:
— Meu pai sentiria prazer em oferecê-las êle próprio, como um
agradecimento antecipado do prazer que vai ter em ouvi-la amanhã.
— Pois bem. Então escolha por mim, pois eu as acho todas admiráveis.
Quando Raimundo depôs as rosas colhidas por êle entre as mãos de Ariana,
a sra. Evennes, que não os largava com os olhos, viu no olhar dele o
acariciador sorriso que êle tinha na intimidade para os entes, amados ou
simpáticos, e teve a impressão de um tremor na voz de Ariana ao agradecer
a Raimundo.
Fechado o portão, mãe e filho voltaram para a porta da casa. A sra.
Evennes disse pensativa:
— As pessoas da minha geração custam a se acostumar com esses hábitos
modernos. Acho tão esquisito essa moça tratar-te como colega!
— Não aprova isso, mamãe?
— Sim, de um modo geral. Mas acho isso perigoso para certos
temperamentos.
Haviam parado ao pé dos degraus que iam dar ao vestíbulo. Moscas tontas
de calor revoavam na claridade que inundava a fachada onde as rosas
pendiam as corolas, lassas de tanto calor. Raimundo olhava-as
maquinalmente. Após curto silêncio, disse:
— Verdadeiramente perigoso, sim. Conheço mais de um exemplo. Felizmente a
srta. Daubrey parece dotada de força moral. Embora há tentações subtis
que podem romper, assujeitar sua alma desprovida de outro apoio e outro
conselho que não o da razão. É moça, possue qualidades raras, física e
intelectualmente; é dessas que podem dominar soberanamente a vida de um
homem... Parece possuir um temperamento original, capaz de um grande
devotamento e de um grande amor, mau grado sua atitude. Mas tudo isso,
todos esses bens que recebeu de Deus, poderá perdê-los em qualquer paixão
triste e culpada, entregando o coração a quem não o mereça.
Uma dolorosa piedade vibrava nas palavras de Raimundo — e alguma coisa
mais, que não passou despercebido ao ouvido ansioso da mãe.
—... Se está desiludida, magoada, que fará ela, sem um consolo, sem a fé
e as esperanças sobrenaturais que nos animam, a nós os crentes? Ela sente
a sua indigência, e sofre...
— Ela te disse?
— Sim. Pobre moça.
Um sopro de brisa quente agitou a folhagem dos rosais, roçou pelos rostos
pensativos de mãe e filho. Raimundo olhou para a sra. Evennes com um
reflexo de grave ternura no fundo dos olhos.
— Bem, vou continuar o meu trabalho. Até já, mamãe.
Desapareceu no vestíbulo enquanto a sra. Evennes voltava para junto do
marido. Sentando-se a seu lado, apanhou a cesta de trabalhos.
— Absolutamente deliciosa, essa Ariana Daubrey! disse o coronel! Seus
colegas devem andar todos de cabeça virada!
— Sim... Ah!...
Êle olhou atentamente para a mulher. Em seu rosto severo pequenas rugas
de inquietação se formaram nos cantos dos lábios e embaixo dos olhos
repassados de angústia.
— Que tem, Helena?
— Receio por Raimundo.
Êle pensou um instante, depois abanou a cabeça. Sua fisionomia tornou-se
perplexa.
— Eh! Eh! Com efeito! Não havia pensado nisso...
— Tenho receio da beleza dela, da sua inteligência e sobretudo de seu
coração. Ela é bondosa, sincera, e já o ama, parece-me. E êle... está
encantado, vi-lhe nos olhos.
Cruzou sobre os joelhos as mãos rígidas.
— Ela o atrai também pela inquietação de seu espírito, por tudo o que êle
vê nela de desgosto por uma vida inferior, de que tantas se contentam. É
um temperamento original, e talvez, por certos lados, seja digna dele.
Mas o pai educou-a no ateísmo, fora das tradições, que são as da nossa
gente, e isto, mais que tudo, deve afastá-la de Raimundo. Entretanto, no
dia em que o amor falar, que fará êle? Que debate haverá entre êle e a
sua consciência? Que luta, talvez contra a própria Ariana, se ela estiver
apaixonada por êle? A pobre moça não admitirá obstáculos à sua paixão.
Raimundo é sério, forte de natureza e por educação, mas é homem e pode
ter sua hora de fraqueza. De qualquer modo, — resista ou ceda — será um
sofrimento para êle, muito mais profundo e doloroso que o que Paula lhe
causou, pois êle amará Ariana de outro modo.
O coronel torcia a ponta do bigode, fitando a esposa com ar preocupado.
— Evidentemente, evidentemente. Mas enfim, minha querida, isso são
hipóteses. Não nos inquietemos antes do tempo. Ela é, por certo,
grandemente sedutora, mas Raimundo, como dizes, é forte. Transmitiste-lhe
a tua energia moral com os princípios que até hoje fizeram a regra da sua
vida. E depois, podemos pô-lo em guarda, discretamente.
A sra. Evennes abanou a cabeça.
— Coisa difícil, perigosa e também inútil, provavelmente. De que nos
serviria afastar a srta. Daubrey de nossa casa? Êle a vê quase
diariamente no Foro, ela pode vir procurá-lo aqui, ou atraí-lo a sua
casa, sob o pretexto de assuntos profissionais. Tudo isto, como dizes,
não passa de hipóteses. Mas nosso dever é enfrentar o que pode acontecer.
Até agora eu não tinha mais que um receio mal definido. Mas ao abrir-lhe
a porta há pouco, ouvindo-a perguntar por Raimundo, estremeci! Nunca até
hoje ela me havia dado tão fortemente a impressão do seu encanto, do
poder que ela pode exercer sobre o coração de um homem. Eu quis lhe
dizer: "Não. Meu filho não está". Mas lembrei-me que não o podia fazer e
que seria inútil, porque ela voltaria depois ou lhe pediria que fosse à
casa dela. Então conduzí-a até junto dele, dizendo comigo que talvez lhe
levasse ali a desgraça de sua vida.
Sua fisionomia estava um tanto alterada e toda a angústia de seu coração
se refletia em seus olhos de um castanho quente, como os de Raimundo.
O coronel retorcia ainda mais o bigode que se afilava entre os dedos como
um fio de linha.
— Talvez não, Helena. Talvez essa moça possua boas qualidades.
— Isso ainda é uma hipótese — bem perigosa. Ela pode manter-se incrédula,
e Raimundo sofreria a vida inteira por se ver separado de sua mulher
neste ponto, para êle capital, sem falar nas conseqüências de um tal
estado de coisas para os filhos.
Interrompeu-se e ficou um momento silenciosa, as mãos juntas. Em seguida
continuou, com voz surda de emoção:
— Deus nos livre dessa desgraça... Que Êle nos inspire um meio de impedi-
la.
Houve de novo um longo silêncio. A sra. Evennes semicerrava os olhos,
como absorta numa visão interior. Depois disse a meia-voz, pensativa:
— Vou tentar, talvez...

IV

Raimundo foi passar o verão em casa de um amigo, na Suécia. Ao voltar, em


meados de setembro, passou uns dias nos Pinheirais, que há um ano se
tornara propriedade de seu pai. Daubrey convencera sua mulher a vender a
velha casa familiar, da qual êle não gostava e que para êle representava
um capital parado. Tudo quanto era tradição, amor ao passado, recordações
de família, permanecia incompreensível àquele homem, educado
exclusivamente no culto da própria personalidade, dos próprios prazeres.
Paula deixara-o fazer, com aquela indiferença que parecia votar a todas
as coisas, depois de seu casamento. Os Pinheirais tinham pois passado
para as mãos do coronel Evennes, que não pudera suportar a idéia de ver
estranhos se assenhorearem da velha e querida casa onde êle havia
nascido, como tantos outros Evennes, onde tinha sido criado em companhia
do primo, pai de Paula, e onde vira brincar seus cinco filhos, dos quais
só restava Raimundo.
Abandonada, nos últimos anos, a casa precisava de reparações. Por isso
Raimundo fora passar ali alguns dias. Suaves e amargas recordações o
esperavam lá. A imagem de Paula por toda parte lhe aparecia e de novo
ouvia o murmúrio das ternas palavras trocadas entre eles, nas salas agora
silenciosas, sob as árvores do pequeno parque que haviam visto passar a
noiva de Raimundo Evennes, a loura Paula, que êle adorava por sua graça
subtil e sobretudo pela delicadeza moral, pela forte virtude que
acreditava haver nela. Naquela mesma casa êle tinha tido o pressentimento
da reviravolta que se preparava. Ali Daubrey havia planejado o cerco
dissimulado que devia findar com a conquista de Paula. Fácil conquista!
Um chocalho de ambições agitado diante dela, algumas frases elogiosas, a
influência da mãe, — e todas as promessas, toda a ternura tantas vezes
jurada, jaziam no esquecimento, pouco importando a dor do coração que
acreditara nelas.
Raimundo evocava também uma outra figura, na velha casa. Por toda parte
parecia-lhe rever a graça ardente de Ariana e seu riso sonoro. Na capela
dos Santos, no cemitério, ela era presente, com seus belos olhos
patéticos, onde o terror da vida e da morte passava por breves instantes.
Uma tarde, tendo ido debruçar-se na balaustrada do pequeno terraço,
reviu-a em sua manta branca, sob a suave luz da lua. Durante um longo
momento se perdeu na contemplação, na embriaguez dessa visão. Depois viu
Ariana vestida de advogada, depois de vestido cor de rosa, sentada na
grande poltrona em frente dele, com sua fisionomia móvel e seu olhar
cheio de doçura e de flamas...
Teve um brusco sobressalto. Sua mão apertou com força o pinho da
balaustrada cujas rugosidades lhe penetraram na pele. Um longo frêmito
percorreu-lhe o corpo, subiu-lhe à cabeça. A evidência, de súbito o
aterrava. Amava Ariana!
O odor dos pinheirais errava em torno, no ar húmido. A folhagem
rumojerava na sombra. Do fundo do despenhadeiro subia o tumultuoso rugir
da torrente engrossada pelas chuvas contínuas da última semana. Raimundo,
curvado sobre a balaustrada, oferecia a face que ardia à frescura molhada
do abismo. Êle tremia sob a violência da revelação. Uma ardorosa alegria
invadia-o, afastava-o por um momento de tudo que não fosse essa coisa
maravilhosa: seu amor por Ariana.
As forças afetivas de sua mocidade, desdenhadas por Paula, revivesciam
com violência nunca antes provada. Jamais Paula desencadeara nele
semelhante tempestade. No entanto êle a havia amado sinceramente. Mas não
era assim... não era esse ímpeto fogoso que lhe fazia o coração dar
saltos, essa embriaguez de todo o seu ser.
Afastou-se da balaustrada, deixou-se cair num banco, e tomou a fronte
entre as mãos. Sua forte educação cristã habituara-o a colocar-se em face
da sua consciência e a manter o domínio de si mesmo que eleva o homem
acima dos outros, mais ou menos escravos das suas paixões. Êle tentava
agora serenar-se. Foi uma luta silenciosa na alma daquele homem. Ariana
entrara ali insensivelmente por virtude de seu encanto físico, porém,
mais ainda por suas qualidades raras e sedutoras, talvez também pela sua
simplicidade e pela confiança que mostrava depositar nele. Onde êle não
notara até então mais que uma crescente simpatia, de súbito descobria o
amor, — o amor impossível, pois não podia casar-se com Ariana, a
incrédula, cuja educação não tivera nenhuma base moral e diferia em tudo
da que êle exigia de sua futura companheira.
Pensou:
"Talvez ela mude. Parece ter um caráter tão bom, tão reto. E ela sofre
por esse vazio que sente na alma."
Talvez? É razoável assentar essa obra primordial que representa a
fundação de um lar, sobre uma hipótese tão ligeira? Tinha êle o direito
de se lançar nesse desconhecido?
A voz da razão, da consciência dizia: "Não"!
Levantou-se e deu alguns passos pelo terraço. Suas artérias batiam com
violência, A luta continuava, rude e pungente, naquela alma um momento
obscurecida pela paixão que refervia.
No fim das contas, essa leal Ariana, a despeito de sua educação, não
valia mais que Paula? Ela possuía ânimo, um julgamento firme, claro.
Desdenhava as garridices e se mantinha irreprochável num meio que nem
sempre o era. Essas qualidades fundamentais permitiam esperar uma
transformação moral, sob a influência do marido.
Mas que ele, o crente, e que por esse fato devia dar exemplo às almas
mais fracas, encarasse assim a perspectiva de esposar uma mulher educada
no ateis-mo? Antecipadamente via a reprovação nos olhos de sua mãe, ouvia
a voz triste que dizia:
— Tu, Raimundo?... tu?
Todo êle estremeceu. Do fundo de sua alma, gritou:
"Socorrei-me, Vós que sois toda a força e todo o poder"!
Crispando novamente as mãos na balaustrada de pinho, inclinou para o
abismo a face ardente para receber um pouco de frescor. Começava agora a
reanimar-se. Sua alma tremia ao violento assalto que acabava de suportar,
mas reerguia-se para retomar o rude caminho do dever. Ariana não podia
ser sua esposa, êle devia afogar esse amor, fazê-lo morrer.
Enquanto voltava para casa, pela álea de pinheiros onde a lua escorria um
pouco de sua pálida luz, pensava consigo, trêmulo de angústia:
"Se ao menos eu pudesse deixar de vê-la"!
Na volta, nesse mesmo ano, o dr. Evennes tomou um secretário. As causas
lhe vinham com tal abundância que não podia dar conta da tarefa, a
despeito de sua rara capacidade de trabalho. Novamente nas salas de
audiência repercutiu a sua eloqüência quente e poderosa. Novamente
encontrou Ariana Daubrey e conversaram sobre assuntos profissionais, em
rápidos colóquios que êle abreviara habilmente. Em casa, suas ocupações
lhe serviam de pretexto para não aparecer quando ela ia visitar seus
pais. E estes nunca insistiam com êle.
Levava uma vida de trabalho intenso e interessava-se com zelo apostólico
por seus clientes pobres. Assim conseguia refrear esse sentimento que lhe
nascera sem o perceber, e que levaria tempo a morrer. Mas cada um de seus
encontros com Ariana despertava o sofrimento adormecido.
A srta. Daubrey vinha duas ou três vezes por semana passar uma hora no
pavilhão. Lia alguns poemas para o coronel e em seguida conversavam um
pouco. Sua alegria, seu espírito encantavam o coronel. A sra. Evennes
parecia tomar sempre grande interesse na conversação, que abordava todos
os assuntos. A sinceridade de Ariana não a deixava cair nunca em falta.
Ela dava sua opinião, com simplicidade. Por sua vez, a sra. Evennes
desenvolvia o seu ponto de vista.
Ariana escutava-a com olhar atento. Às vezes dizia:
— Invejo-a por pensar desse modo.
Costumava agora vir visitá-los à tardinha, por ter o coronel reconhecido
que a leitura à noite deixava-o agitado durante o sono. No velho salão em
que se agrupavam os móveis de família, a mocidade e o encanto de Ariana
espalhavam um clarão de alegria. Tinha para com seus vizinhos pequeninas
atenções discretas e a toda ocasião mostrava um tacto delicadíssimo. A
sra Murillon, a quem encontrava freqüentemente, pois continuava a enviar-
lhe clientes, elogiava muito a sua bondade, a sua paciência para com os
indigentes que a iam consultar.
No Foro já se dizia:
— Oh, oh, a srta. Daubrey tem futuro!
Na defesa de suas causas demonstrava um belo talento oratório e uma firme
argumentação. Em geral, por menos interessante que fosse a causa em que
ela aparecia como defensora, a bancada dos advogados se enchia. Ao
terminar a audiência via-se sempre cercada de colegas ansiosos por
apresentar-lhe seus cumprimentos. Só um não estava nunca presente. Essa
abstenção era mais notada ainda por se saber das relações de Ariana com a
família Evennes e por a verem às vezes conversando amigavelmente com
Raimundo durante os intervalos da audiência. No Foro julgavam-nos
inevitavelmente destinados a se apaixonarem um pelo outro. Não escapava
aos observadores que Ariana procurava todas as ocasiões de encontrar
Raimundo e que nessas rápidas conversas ela o escutava com uma fisionomia
atenta, como que absorta, que não tinha com nenhuma outra pessoa. Quanto
a Raimundo, parecia impossível que êle resistisse ao encanto de Ariana,
se ela o quisesse conquistar. Sua reserva, sua ausência das salas de
audiência onde a srta. Daubrey advogava, o cuidado que tinha em nunca ser
o primeiro a abordá-la, exceto por necessidade profissional, tudo isso
era considerado por muitos como hábil manobra para esconder seu amor por
ela. Os temperamentos vulgares custam sempre muito a admitir a excepção
que representa uma superioridade moral. Acreditam pouco nisso, e deixam
de crê-lo inteiramente quando julgam descobrir um indício que justifique
suas dúvidas. Por mais admirado e estimado que fosse Evennes, muitos
tinham inveja dele, menos talvez por seu talento e qualidades físicas que
pelos seus princípios e essa dignidade na vida que perfaziam tão bem sua
bela fisionomia moral. Entre esses, alguns se compraziam em imaginar nele
aquela hipocrisia amorosa e insinuavam a idéia aos outros. Fernando
Daubrey pertencia a esse número. Odiava Raimundo pelos seus sucessos,
pelo seu desdém, pela forte beleza de sua alma, odiava-o por tudo,
dissimuladamente, e encarniçava-se contra êle, na sombra.
Dizia-se mal da vida de Fernando em família e assegurava-se o
desmoronamento de seu lar. Sua jovem esposa, provavelmente para esquecer
suas desilusões conjugais, continuava levando uma vida mundana das mais
febris. Era vista em toda parte, elegantíssima, amável e indiferente,
recebendo gentilmente as homenagens masculinas. Daubrey não a acompanhava
quase nunca. Levava uma existência à parte e os dois esposos viviam quase
como estranhos.
Em fevereiro, o processo d'Arcier foi a júri. Acabavam de descobrir que a
sra. d'Arcier tivera como cúmplice uma criada colocada por ela em casa da
velha parenta. Essa mulher, denunciada por outra criada, por sua vez
acusava a prima de sua antiga patroa, sobre a qual haviam já recaído
suspeitas no curso do processo Valliers. A sra. d'Arcier tomara como
advogado o dr. Fernando Daubrey; a criada escolhera Ariana. O dr.
Evennes, advogado da condessa de Chamerade, achava-se assim em contacto
freqüente com Fernando e a irmã, — contactos ambos penosos por diferentes
razões. Com Fernando, Raimundo era de uma correção glacial. Os dois não
trocavam entre si mais que as palavras estritamente necessárias, e, por
um acordo tático, evitaram os encontros que não fossem indispensáveis.
Com Ariana não podia ser da mesma forma, e Raimundo previa novas lutas
interiores, novos sofrimentos.
Certa tarde teve de ir à casa dela para ter comunicação de uma peça do
processo. Ela acabara de chegar e apareceu ainda com a roupa de sair, no
gabinete onde a criada introduzira Raimundo. Êle viu-a diante de si,
discretamente elegante numa capa de velu-do preto guarnecida de petit-
gris, toda sorridente, com um vivo clarão no fundo dos olhos. Suas faces
tinham ainda o tom rosado que a friagem da rua lhe espertara. Muito à
vontade, muito simples, tratou com Evennes do assunto que o levara lá.
Raimundo, dominando sua violenta emoção, procurava abstrair-se no assunto
profissional. Mas não podia tapar os olhos que sem cessar encontravam o
rosto de Ariana e seus olhos de um violeta quente cujo fulgor o
deslumbrava.
O dia declinava. Os ângulos da sala tornavam-se obscuros e a sombra
cobria a escrivaninha, envolvia Raimundo e Ariana, empalidecia os tons
das pequeninas plumas delicadamente tingidas, que formavam, na sua
cabeleira castanha, uma touca de sóbria elegância. Através das vidraças
veladas por um filó diáfano, o céu cinzento o dia inteiro, tomava a côr
do linho, antes de esvair-se na noite.
Raimundo enfileirava seus papéis numa larga pasta de marroquim posta
sobre os joelhos. Ariana pensava, meio reclinada na poltrona. Descaía um
tanto a cabeça, olhando para Raimundo. Quando êle acabou de fechar a
pasta, ela perguntou:
— Tem visto Paula ultimamente? Êle ergueu a cabeça ao responder.
— Não, há já vários meses. Na véspera de Ano-Bom ela foi visitar meus
pais, mas eu não estava em casa. Mamãe achou-a muito mudada.
— Com efeito, mudou muito. A vida que leva estraga-lhe a saúde, que não é
muito boa, além das duras desilusões. Sabe que já se fala em divórcio?
Raimundo teve um sobressalto.
— Divórcio? Mas Paula nem deve pensar nisso. Ariana teve um leve, riso de
ironia.
— Oh, as convicções dela não são tão arraigadas como as suas. As teorias
de Fernando, as influências mundanas, ajudadas por seu caráter fraco,
depressa mudaram suas idéias neste ponto, como em muitos outros.
— Não creio que ela leve a tal ponto o esquecimento dos ensinamentos que
recebeu. Embora ela me tenha causado uma desilusão, quero crer que sua fé
despertará para a amparar nessa tentação.
Ariana abanou a cabeça. Seus dedos afilados brincavam com a pequena bolsa
de seda que depusera sobre a escrivaninha, ao entrar. Após curto
silêncio, continuou:
— Fernando tem muita culpa, mas Paula também, pois casou-se com êle com
conhecimento de causa. Êle a seduziu, mas não creio que ela o amasse
realmente. Agora ela o odeia.
— Ela lhe disse isso?
— Não, ela não me conta os seus desgostos, pois nossas relações esfriaram
muito depois de seu casamento. Mas eu percebi tudo. Aliás a mãe dela não
se priva de dar a entender.
Raimundo murmurou:
— Coitada de Paula!
Ariana endireitou-se um pouco e inclinou-se para êle:
— Lamenta-a realmente?... sinceramente?
Antes porém que Raimundo respondesse, a mão dela fez o gesto de colocar-
se sobre seus lábios.
— Não, não. Esqueça a minha pergunta. Não a devia ter feito, pois bem
conheço a sinceridade de sua alma. Que tolice de minha parte. O senhor é
o único homem cuja palavra me inspira uma confiança absoluta.
Que terrível e deliciosa, emoção o penetrava, de súbito, até o fundo de
seu ser. Diante dele estava aquele rosto palpitante, aquele maravilhoso
olhar que lhe dizia eloqüentemente a estima entusiasta, a admiração de
Ariana, talvez mesmo mais do que isso...
Ela repetiu:
— O senhor é o único...
Por alguns momentos Raimundo teve a impressão de que sua vida estava
suspensa, que seu cérebro não funcionava mais, que naufragava numa
espécie de embriaguez. Murmurou:
— Ariana!
Mas o nome, pronunciado num sopro, apenas lhe saiu dos lábios. Desviou o
olhar, e conseguiu firmar a voz para replicar, num tom de banal cortesia:
— É uma grande bondade de sua parte, senhorita. Agradeço-lhe muito...
Ergueu-se ao dizê-lo. Ariana imitou-o. Trocaram algumas frases maquinais,
de que não poderiam dizer o sentido em um minuto mais tarde. Suas vozes
não tinham as inflexões habituais. Raimundo despediu-se de Ariana
apertando levemente a mão que ela lhe oferecia. Saiu e ela ficou só na
sala sombria.
Aproximou-se da janela. Mal se distinguia agora a fachada do pavilhão.
Janelas se iluminavam no rez-do-chão. Ariana fixou aí o olhar, que se
tornara tão sombrio como a noite que caía.
Uma porta se abriu por traz dela, sem que ela se voltasse. Um passo forte
passou no tapete. Ariana teve um leve sobressalto ao sentir uma mão
pousar-lhe no ombro.
— Oh, agarrei-te, bela sonhadora!
— Oh, és tu?
Voltou-se e fixou no irmão um olhar frio como a sua voz.
— Sou eu, sim, minha linda irmã. Espero que não te cause incómodo, agora
que Evennes já foi. Encontrei-o na escada.
— Com efeito, veio pedir que lhe mostrasse uma peça do processo.
Daubrey fez ouvir um leve assobio.
— O pretexto é sempre bom e salva as aparências. Ela fitou-o
desdenhosamente e perguntou em tom seco:
— Que queres dizer?
Êle teve um riso de ironia, dando um tapinha no braço da irmã.
— Vamos, filhinha, confessa simplesmente que o belo Evennes não te é
indiferente e vice-versa.
Ela afastou-se num movimento brusco, as sobrancelhas franzidas:
— Ah, é o que imaginas?
Sua voz vibrava de desdenhosa irritação.
—... Nesse caso, enganas-te completamente. Não há entre nós mais que as
relações profissionais e o trato gentil comum a colegas que se estimam.
Se êle tivesse outra coisa em mira, não procuraria dissimular, pois um
homem como êle não procede senão do modo que se julgue no direito de
fazer.
Fernando mostrou um ar de escárneo. Deu alguns passos e manobrou um
interruptor. A luz espalhou-se na sala, em volta dos dois irmãos, de pé
um em face do outro.
— Ah, ah! Bem me parecia, minha querida irmã, que estava com uma toilette
deliciosa... absolutamente deliciosa, e que realça bastante a tua beleza.
Esse chapéu, principalmente, te assenta muito bem! Puxa! Se Evennes te
resistiu, declaro-o o ser mais
extraordinário que há na face da terra! Mas não, êle deve estar vencido,
ou quase, não, minha bela Ariana? Ela respondeu com frio desprezo:
— Não, tu não podes sequer imaginar que exista uma alma como a dele, tu
que nada tens de bom e de puro no coração. Ignoras o que seja um homem
mais forte que as suas paixões, mais forte que a vida que referve nele,
mais forte que tudo, quando o dever o exige. Instintivamente detestas tal
homem, como uma perpétua reprovação às tuas fraquezas desprezíveis, e
procuras então rebaixá-lo. Mas não o conseguirás, podes estar certo.
Daubrey deixou escapar uma risada sardônica.
— Muito bem! Já o amas! Basta que êle diga uma palavra para lhe caíres
nos braços! Quanto ao dever, ah, ah! tu me fazes rir! É tão custoso de
cumprir para êle quanto para os outros.
Ela interrompeu-o, agarrando-lhe bruscamente o braço:
— Cala-te. Um tipo da tua espécie não pode na verdade acreditar na beleza
moral, na delicadeza de uma alma como a dele. Mas tenho por êle tal
admiração, estimo Raimundo Evennes a tal ponto que, mesmo que o amasse e
êle me correspondesse, eu recuaria sempre ante a idéia de ser causa de
uma fraqueza num homem, que havia de sofrer muito por isso e que ficaria
diminuído a meus olhos.
Vendo o espanto estampado na fisionomia do irmão, Ariana sorriu com
desprezo.
— Não podes compreender isso? Achas que esqueci os princípios fáceis em
que nos educaram, a mim e a ti? Que queres? Tenho necessidade, para
viver, de um pouco de ar puro. Agora vai, Fernando. Não tenho paciência
para ouvir o que vieste me dizer... É a propósito do caso d'Arcier?
Êle fez um sinal afirmativo. Sob suas pálpebras moles, os olhos surpresos
e curiosos examinavam Ariana.
— Bem. Volta amanhã, de manhã, à hora que quiseres. Não vou sair.
— Seja. Espero que teus nervos estejam mais calmos, linda caprichosa. E
nunca mais me arriscarei a pronunciar o nome do intangível Evennes; tu o
defendes com excessivo calor.
Ela replicou friamente:
— Peço-te, por favor, não repetir mais tais coisas. Êle tomou-lhe a mão,
perguntando:
— Estás zangada comigo?
— Estarei sempre zangada contigo por não poder estimar-te como queria.
Ela retirou a mão enquanto Daubrey deixava escapar um leve riso.
— Decididamente, a honradez feroz de Evennes está te desbotando. Creio
que está também freqüentando a casa da mãe dele. Cuidado em não imitar
muito essa severa dama.
— A sra. Evennes não tem nenhuma severidade e é a mulher que mais estimo
no mundo. Adeus. Até amanhã.
Êle saiu e Ariana voltou à sua escrivaninha. Sentou-se lentamente. Um
ardente e triste sonho lhe enchia os olhos que fitou a poltrona em que há
pouco Raimundo estivera sentado.
Seus ombros tremeram. Estendeu as mãos, unindo-as, chamou com voz surda,
num brado ansioso e desolado:
"Evennes! Evennes"!
Seu rosto palpitava sob o afluxo da dor. Seus olhos se cobriam de um véu
húmido. Ariana, que um dia tinha dito a Raimundo que não gostava de
chorar porque não faltariam ocasiões de o fazer na vida, — Ariana
chorava.

A sra. Murillon, recurvada sobre a secretária de Raimundo, expunha, com a


sua animação habitual, o motivo de sua visita. Tratava-se de uma de suas
numerosas protegidas, que não ousava vir consultar o dr. Evennes.
— Por mais que eu lhe repetisse que o senhor é bondoso e delicado, não
quis vir. A desgraça tornou a pobre criatura desconfiada e selvagem. E, —
veja só! — não quer nem ouvir falar na srta. Daubrey. Acha que uma mulher
não pode tratar desses assuntos.
Raimundo teve um sorriso forçado.
— Aí está uma que de fato é anti-feminista. Mas creio que duas ou três
entrevistas com a srta. Daubrey a teriam convertido inteiramente.
— Também o creio, pois Ariana me parece bem senhora do seu ofício. É tão
simples, tão natural em tudo! Todas as clientes que lhe mando ficam
entusiasmadas. Além do mais, descobri nela uma maneira boníssima e
discreta de socorrer os mais desafortunados. Por certo não sou muito
partidária de tal carreira para as mulheres, mas reconheço que uma
inteligência e um coração como o dela, podem conseguir muito. É pena,
unicamente, que falte à srta. Daubrey um princípio dirigente. Ela própria
o reconhece.
"— Há momentos, disse-me ela, em que não sei como determinar o que é bom
ou o que é mau, ou o que deve ser aconselhado a essas infelizes que me
vêm contar as suas desgraças".
— Com efeito, é só o que lhe falta. No entanto, é tudo.
Raimundo falava com tranqüila frieza, sem que nada deixasse perceber sua
emoção. Evitando toda afetação, êle fez a conversa voltar ao primitivo
assunto. Quando a sra. Murillon se despediu, foi abrir a porta da sala de
espera. De uma poltrona funda, em que estava estendida numa atitude
lassa, uma mulher se ergueu. Raimundo exclamou:
— Paula!
— Sim, sou eu. Queria falar-te...
Sua voz era um tanto baixa e trémula. Havia como uma imploração ansiosa
no fundo daqueles olhos azues, de um matiz delicado, que outrora êle
tanto amara.
— Estou à tua disposição.
Foi até junto dela, tomou a mão que ela lhe estendia e beijou-a.
— Como vai tua mãe? Soube que ela está doente.
— Ainda não está boa. Os cuidados, a inquietação...
Raimundo encaminhou-a para o gabinete onde ela se sentou junto à
secretária, entreabrindo com gesto maquinal sua capa de peles. Quando
Raimundo tomou lugar em frente dela, a moça disse com visível esforço:
— Venho consultar o advogado... e o primo que outrora foi tão bom para
mim.
Duas janelas aclaravam a sala e através do fino filo das cortinas o sol
entrava livremente, fazendo reflexos no vidro espesso da secretária e
estendendo-se até a poltrona onde estava Paula. Raimundo, que há muito
não via a prima, constatava agora, em plena luz, quanto ela estava
mudada, conforme Ariana já lhe havia dito. A frágil tez, a linda tez tão
finamente rosada não existia mais. Desaparecera sob a maquilagem que
Paula passara a usar depois do casamento, porque Fernando assim o queria.
Outra coisa ainda havia envelhecido aquela fisionomia e mudado a
expressão de olhar, — essa coisa que se chama infelicidade. Com voz
hesitante, Paula prosseguiu:
— Eu não devia talvez dirigir-me a ti. Muitos dirão mesmo que és o último
a quem deveria me dirigir. Mas é-me impossível agir de outro modo, pois
és o único em quem deposito absoluta confiança.
Raimundo teve um leve estremecimento. Outra mulher, algum tempo antes,
lhe havia dito as mesmas palavras. Ariana... Ariana e Paula. O amor de
hoje, o amor de ontem. As duas se encontravam, para dar-lhe esse
testemunho.
Paula continuou:
— O que tenho a dizer-te é penoso, é horrível. E ao mesmo tempo será a
confissão dos meus erros para contigo.
Êle estendeu a mão num gesto de protesto.
— Isso não, Paula. Não falemos mais nisso. Eu já te perdoei. É o passado,
o esquecimento.
Ela murmurou:
— O esquecimento!
Os lábios pintados tremeram. Com um gesto maquinal, Paula retorceu a luva
que tirara. E continuou, com voz ensurdecida:
— Seja. Não falemos mais nisso. Mas os fatos, esses falarão. Se fosses
capaz de desejar vingança, Raimundo, estarias satisfeito, pois sofri
muito em companhia de Fernando. Mas agora é demais... é demais! Não posso
mais suportar!
Via-se no olhar que ela fixava no primo, toda a tragédia de sua vida
conjugal.
— Se soubesses quanto o odeio! Se soubesses! Há muito não tenho senão um
desejo: fugir, romper esses laços odiosos. Êle não quer, — compreendes,
sou rica! — e me ameaça. Mas pouco importa, não posso mais! Quero que me
digas o que devo fazer para ficar livre.
Uma pungente emoção se assenhoreava de Raimundo ante a angústia daquela
mulher outrora amada por êle a quem quisera fazer feliz. Nenhum
sentimento de triunfo lhe provinha daquilo. Não havia nele mais que uma
profunda compaixão pela alma humilhada, torturada, que vinha a êle — como
outrora a pequenina Paula corria para o seu primo Raimundo.
—. Minha pobre Paula! Eu sabia que não eras feliz, mas não pensava que
fosse a esse ponto.
Levantou-se, foi sentar-se junto de Paula e agarrou-lhe as mãos geladas.
Considerava com piedosa doçura aquele rosto que o sofrimento alterava.
— Sim, ninguém sabe de tudo. Mas vou te contar... É preciso que fiques ao
corrente, para me aconselhares.
Raimundo já estava habituado a ouvir essas dolorosas confidências
femininas. Tinha sido iniciado em muitos desses dramas secretos que têm
um lar por teatro. Mas fossem quais fossem as emoções já experimentadas,
nenhuma se podia comparar à de ouvir Paula, — aquela que êle havia
chamado "minha Paula" — confiar-lhe suas horríveis desilusões de esposa,
vê-la ali, diante dele, humilhada, toda trêmula, e sentir-lhe as mãos
tremerem entre as suas.
Ela terminou:
— Eis aí. Sabes de tudo, agora... Compreendes porque quero me separar
para sempre desse homem.
— Para sempre? Em que estás pensando, ao dizer isso?
Ela baixou um pouco os olhos, hesitou durante alguns momentos e disse por
fim:
— No divórcio, naturalmente.—Tu, Paula? Tu?
— Sim, bem sei que é contra as tuas idéias. Mas não tenho mais os mesmos
escrúpulos de antigamente. A simples separação não é suficiente, pois não
quero nem mais usar o nome dele.
— É uma razão muito fraca para opor à proibição da Igreja. E é a ti que
ouço falar assim? Que fizeste das tuas crenças, minha pobre amiga?
Ela disse com amargor:
— Não tenho mais fé. Fernando zombou tanto de mim, no princípio...
— Que ínfimo fantasma de fé era então esse, para ceder tão facilmente?
Vamos, Paula, não é possível que esqueças assim tudo que te foi ensinado.
Ela murmurou com surda veemência:
— Odeio-o! Odeio-o por tudo que me roubou, pela felicidade que me tirou.
Nunca o amei. Pensei que fosse amor, mas não era... Oh, não! o amor não é
isso!
As mãos de Raimundo afastaram-se, largaram as de Paula. Seu olhar
desviou-se daqueles olhos em que se espandia um desespero patético. Com
voz calma, um tanto ensurdecida pela emoção, falou a Paula do seu dever,
de suas crenças passadas que não podiam estar completamente mortas. Sua
eloqüência subjugava os auditórios das salas de audiência, mas entre as
paredes de seu gabinete, não era menos persuasiva. Mais de uma vez, almas
cansadas ou revoltadas haviam saído dali reconfortadas, apaziguadas,
repostas no caminho reto. Sua profissão aparecia-lhe como um apostolado e
os dons que recebera do céu como um mero de cumprir seu dever religioso e
social. Desta vez, aquela a quem cumpria afastar do falso caminho era um
ser outrora muito amado e que despertava ainda nele a recordação de uma
pura ternura. Sua voz tomava entoações mais quentes, encontrava as
palavras mais instantes para lutar contra Paula que repetia:
— Não, não quero mais nada de comum entre mim e êle. Nada, nada!
— Paula, não se separa assim o que Deus uniu. Esse laço não pode ser
desfeito senão pela morte.
Ela dizia "Não, não!" e se mantinha irredutível ante o olhar docemente
enérgico de Raimundo que, com palavras emocionadas, lhe recordou os seus
primeiros anos, a sua juventude devota... O busto da moça dobrava-se, os
braços crispados se amenizavam. Um soluço subiu-lhe à garganta.
— Minha pobre Paula, dize-me que não pensas mais em divórcio.
Ela perguntou baixinho:
— Não queres?
— Não sou eu que não quero, é Deus.
Ela cruzou as mãos sobre a capa e olhou direito diante de si, durante um
longo momento. O sol clareava-lhe o rosto fatigado, os olhos cheios de
uma lassidão desolada. Por fim disse:
— Bem. Renuncio. Quero só a separação. Tratarás disso?
— Impossível, minha pobre amiga. Depois do que houve entre nós, é
impossível. Não compreendes? A boca demasiado vermelha tremeu um pouco.
— É verdade. Então indica-me alguém. Quando eu precisar de um pouco de
ânimo, virei procurar-te. Não sabes o bem que me fizeste. Parece-me ter
bebido numa fonte vivificante.
Ela inclinava um pouco o talhe flexível, fitando Raimundo com a mesma
expressão de antigamente, doce, carinhosa, enternecida. Pela abertura da
capa aparecia o vestido de seda, de fino tom azul-lavanda, sua côr
outrora preferida, porque assentava com o tom delicado de sua pele e
porque era a que Raimundo mais gostava.
Raimundo, ante esse reflexo do passado, sentia que uma emoção melancólica
o penetrava. Seu amor por Paula não era mais que uma recordação. Se
duvidasse disso, estaria convencido agora diante da moça, que retornara à
afetuosa confiança de antigamente e cuja fraqueza desamparada procurava
apoiar-se na sua força. Mas todas as puras alegrias de sua primeira
mocidade reviviam por um momento na figura da antiga noiva. Agora que o
amor se tinha ido, que êle não sofria mais e a via ali arrependida, sua
compaixão pela infeliz prima mesclava-se com terno reconhecimento pelas
pequeninas alegrias sentimentais que ela outrora lhe proporcionara. Não
sentia mais nada contra ela pela decepção que lhe causara, quatro anos
antes, não chorava mais a mulher que se destronara por si própria
casando-se com Daubrey. Mas fosse como fosse, ela personificaria sempre a
simples e ideal ternura dos seus vinte anos, o primeiro e por tanto tempo
único amor do seu coração.
— Vem sempre que quiseres e quando precisares de mim, Paula. Ou melhor,
vai visitar minha mãe. Será melhor ainda. Sabes quanto ela é boa e como
sabe aconselhar.
— Sim, conheço todas as qualidades de tia Helena, as quais herdaste. Irei
vê-la, com toda a certeza. Mas tu, Raimundo, tu me recordas o que tive de
melhor na vida. E isso para mim é tão doce... tão doce!
Ela encurvava-se um pouco mais, apoiando as mãos nos braços da poltrona.
Seus olhos postos em Raimundo pareciam cobertos de um orvalho de
lágrimas.
Êle disse com emocionada tristeza:
— Minha pobre Paula! Ela murmurou:
— Sim, pobre, pobre de mim!
Raimundo desviou de leve o olhar daqueles olhos em que aparecia um pesar
desolado. Paula recomeçou, num tom que procurava tornar firme:
— Dize-me o que devo fazer, a quem me dirigir. Seguirei cegamente teus
conselhos.
Êle deu-lhe as indicações necessárias e o endereço de um advogado em que
ela podia ter toda a confiança. Ela agradeceu e levantou-se dizendo que
ia fazer uma visita.
— Vou levar-te até a porta, disse Raimundo.
Abaixou-se para apanhar a pequena bolsa que Paula deixara cair no chão,
enquanto lhe falava. Ela tomou-a distraidamente. Seu olhar errava em
torno da grande sala de ornatos cinzentos, alegrada a um tempo pelo sol e
pelas belíssimas tulipas dispostas num vaso de velha faiança, colocado
sobre a chaminé.
— São ainda os móveis de teu avô, os bons e velhos móveis de família.
Tens apego à tradição, às recordações. Êle detesta-as. Pobres dos nossos
Pinheirais! Se eu não estivesse moralmente certa de que teu pai compraria
o nosso sítio, nunca teria consentido em vendê-lo. Mas eu preferia mesmo
que êle te pertencesse, porque não tenho filhos. Quanto a mim, não
poderei mais ir lá. Sofreria muito.
Com mão nervosa, fechou a capa. Depois estendeu a mão a Raimundo.
— Não precisas te incomodar, meu bom amigo. Deves ter algum cliente à
espera.
— Não. Não ouvi tocar a campainha. Em todo o caso, acompanho-te até a
escada.
Abriu a porta para ela passar e acompanhou-a até o patamar. Paula pegou a
mão de Raimundo e apertou-a com força.
— Mais uma vez obrigada. Obrigada por me haveres perdoado. Como és bom.
Não sabes que consolo é para mim a tua amizade!
Êle replicou, em tom firme e terno:
— Êsse consolo, procura-o sempre e em primeiro lugar junto ao teu Deus,
que até agora tens deixado esquecido. Adota uma existência séria. Paula,
volta aos costumes cristãos. Precisas de uma possante proteção na vida
que agora terás de levar.
— Sim, tens razão. Poderás me ajudar, tu que és tão crente?
Êle disse com a mesma doçura e firmeza:
— Não, eu não, Paula. Mas minha mãe. Ela se sentirá feliz em ser teu
guia.
Os dedos de Paula se afastaram e deixaram cair a mão de Raimundo. O olhar
cheio de fervor baixou-se e desapareceu sob as pálpebras diáfanas.
— Sim, irei pedir-lhe que me aconselhe. Adeus, Raimundo. Já que tu rezas,
reza por mim.
Inclinado no patamar, êle olhava-a descer. O manto de petit-gris vestia-
lhe elegantemente o longo talhe fino. Um pequeno chapéu de feltro verde
deixava-lhe livres os cabelos louros que tinha agora um tom mais
carregado, — o tom que naquele ano se devia usar para ser uma mulher da
moda.
Uma mulher da moda! Eis no que se tornara Paula, eis o que achara de
melhor para combater seus dissabores conjugais. Agora não era mais que um
fragmento de nau, prestes a afundar se alguém não a socorresse.
Voltando ao seu gabinete, Raimundo demorou em pé uma ruga pensativa na
fronte. Ficara-lhe uma impressão melancólica dessa entrevista que viera
reavivar a sombra do passado, ao mesmo tempo que lhe revelara todo o
drama da existência de Paula. A despeito de tudo, tinha pena da prima.
Sentia piedade pela sua fraqueza de caráter, pela estranha aberração
moral que tão dolorosamente o surpreendera outrora. Paula aparecia a seus
olhos como uma doente da alma, gravemente atingida, mas não de todo
incurável. Ela própria, aliás, implicitamente o reconhecera ao pedir-lhe
a sua ajuda.
Mas essa ajuda, esses conselhos que êle se sentiria feliz em dar à prima,
cumpria-lhe recusar à antiga noiva, à esposa de Daubrey. Durante a
entrevista, tinha compreendido que Paula o amava, — que, na realidade,
provavelmente nunca deixara de o amar e que esse sentimento se
fortificava nela à medida que detestava, desprezava Daubrey. Revoltada,
desamparada, corria para êle, sem ter talvez consciência de que não era
somente ao parente ou ao advogado que pedia socorro e conselho. Com sua
experiência, sua prudência de homem acostumado a manter em dia a
consciência, ele tinha o dever de previnir o perigo, o sofrimento que
disso resultaria para ela. Iria imediatamente pedir a sua mãe que
acolhesse Paula com a ternura de outrora e que a amparasse naquela
aflição.
Um perfume agradável, porém tenaz, ficara na sala. Foi abrir a janela e
ofereceu o rosto ao ar frio que o sol de março já temperava. Seu olhar
dirigiu-se, por um momento, ao apartamento do primeiro andar em que
morava o juiz com sua filha. A imagem de Paula obscureceu-se, sumiu no
esquecimento; êle não viu mais que o palpitante rosto de Ariana, sua boca
sem pintura que possuía um sorriso tão fino, e os olhos ora graves ora
risonhos que deixavam adivinhar-lhe a alma ardente, leal, às vezes
triste.
Ariana... Ariana que saberia talvez amar até a morte aquele que julgasse
digno de tal amor.
Afastou-se e quase bruscamente, fechou a janela e voltou para a
secretária.
O sofrimento comprimiu-lhe o coração, cujos anseios pela bem-amada mais
uma vez devia sufocar. E pensou:
"Que tinha sido o abandono de Paula, diante desse amor que haveria de
custar tanto a morrer?"

VI

O processo d'Arcier terminou pela condenação da acusada, a despeito da


brilhante defesa do dr. Daubrey. A criada, cliente de Ariana, foi
absolvida, após uma hábil defesa da jovem advogada. Ao terminar a
audiência viram-se os confrades apressarem-se a cumprimentar a srta.
Daubrey. Evennes não estava entre eles. No tribunal apertara a mão de
Ariana com palavras de felicitação, e depois parecera não mais se
preocupar com ela. Por seu lado, ela agora parecia evitá-lo.
No Foro começava-se a falar no pedido de separação requerido pela sra.
Daubrey. As simpatias gerais não estavam do lado de Fernando. Lembrava-se
que êle havia casado com a noiva de Evennes, a quem fizera cerco. A
riqueza da moça havia atraído sua cupidez de gozador. Agora êle se
empenhava para impedir que Paula tivesse ganho de causa.
Raimundo absorvia-se nos seus afazeres. Reagia energicamente contra seu
sofrimento íntimo, contra as revoltas do seu coração apaixonado. Ariana
facilitava-lhe a tarefa com a nova atitude. Nas suas relações
profissionais limitavam-se a ser unicamente colegas. Raimundo havia
percebido outrora em seus olhos que ela o amava, e votava-lhe um
reconhecimento profundo por essa delicadeza silenciosa que poupava a sua
alma tanta perturbação, tanta luta.
Mas não era essa nova descoberta no caráter da srta. Daubrey que poderia
enfraquecer seus sentimentos a respeito dela e por vezes se surpreendia a
pensar consigo:
"Se ela se tornasse minha esposa, estou certo de que, com a convivência,
acabaria por adotar as minhas idéias".
E uma reflexão se impunha a seu espírito leal: Não, êle não tinha o
direito de tentar essa aventura, de colocar o destino moral de uma
família entre as mãos de uma mulher sem crenças, por mais bondosa, por
mais virtuosa que fosse, faltaria a base ao lar, e o laço nunca seria
suficientemente estreitado entre ela e ele, se não pudessem pensar no
mesmo modo, crer nos mesmos fins sobrenaturais e ter esperanças na vida
eterna.
Em princípios do inverno o dr. Daubrey apareceu no Foro muito mudado, em
conseqüência de um resinado que lhe deixara uma bronquite que não havia
meio de curar. A separação de corpos fora decretada. Paula estava morando
com a mãe. Freqüentava pouco a sociedade, mas era vista constantemente em
casa da sra. Evennes. Aí ela encontrava Ariana algumas vezes. As duas
cunhadas tratavam-se um tanto cerimoniosamente, sem que voltassem à
amizade antiga. Jamais tocaram em Fernando ou nos fatos que se passaram
durante a vida conjugal de Paula. Punham uma pedra de silêncio sobre
aqueles anos e sobre o homem que Paula detestava e Ariana desprezava.
A sra. Evennes acolhia a sobrinha com suave bondade. Procurava dirigir
aquela alma fraca e mortificada para uma séria compreensão da vida. Paula
vinha sempre visitá-la e demorava-se no grande salão tranqüila, falando
em Raimundo. Não o via senão raramente, em seu gabinete. A sra. Evennes,
discretamente, soube fazer-lhe compreender que na sua situação, sobretudo
devido a seu antigo noivado, visitas daquela espécie, muito freqüentes,
seriam levadas a mal." Muitas vezes, quando Raimundo, ao voltar do Foro,
entrava para sentar-se um instante junto dos pais, encontrava-a lá, e ela
demonstrava uma solicitude que punha um súbito brilho em seus olhos
calmos.
Ariana continuava as suas visitas freqüentes, de preferência às horas em
que supunha Raimundo ocupado. O coronel e a mulher não falavam quase a
respeito dela com o filho. Só incidentemente:
— A srta. Ariana disse isso, contou-nos aquilo.
Mas passavam rapidamente por cima e não faziam apreciação alguma sobre
ela. Raimundo a princípio mostrara-se admirado. Depois, conhecendo a
prudência, a sábia firmeza de sua mãe, a clarividência de que mais de uma
vez lhe dera provas, pensava consigo que ela adivinhara e fazia
cautelosamente o maior silêncio possível sobre aquela que seu filho
amava.
Uma noite, entretanto, eles se encontraram no salão da sra. Evennes.
Ariana viera pedir um conselho para a recepção que o juiz ia dar daí a
quinze dias a fim de retribuir as inúmeras gentilezas de que ela e o pai
haviam sido alvo. Paula estava presente. Voltada para o primo,
interrogava-o sobre um processo que no momento chamava as atenções
gerais, no Foro. Estava muito elegante e o vestido caía-lhe bem, embora
não possuísse mais o mesmo bom-gôsto antigo. Tinha apenas um pouco de
rosa nas faces; mas sua tez não possuía mais a delicada nuance que lhe
dava tamanho encanto. Um círculo malva sob os olhos dava-lhe ao olhar um
langor que não era sem atrativo. Ouvia o primo com atenção fervorosa. Mas
viu-o de repente estremecer, ao olhar para a porta que acabara de se
abrir. Viu o tremor do rosto, o brilho dos olhos dele, ao aproximar-se
Ariana.
Teria Paula compreendido tudo, nesse momento? Teria compreendido, ao ver
surgir aquela radiante beleza? Talvez, pois desviou o olhar e cruzou
nervosamente as mãos que tremiam um pouco.
Ariana dirigiu-se à sra. Evennes, inclinando-se num gracioso movimento de
deferência. A claridade da lâmpada iluminou-lhe os cabelos castanhos, o
rosto rosado pelo frio, o vestido de leve fazenda branca com motivos em
azul pálido. Raimundo surpreendeu-se ao ver sua mãe beijar a linda fronte
que se lhe oferecia. A sra. Evennes não costumava ter efusões dessa
espécie com estranhos. Ariana havia pois feito muitos progressos na sua
simpatia, na sua afeição. Sentiu um sutil prazer e apertou a mão da moça
com mais calor que de costume.
Ariana, sentada entre o coronel e a sra. Evennes, expôs o motivo da sua
visita. Evitava olhar para Raimundo. Acariciava com os dedos,
maquinalmente, o gato da casa, que viera postar-se entre seus joelhos.
Enquanto falava, suas pálpebras se abaixavam, como para cobrir com o véu
o brilho de seus olhos. Em frente dela, Paula estava silenciosa. Seu
rosto e o de Raimundo achavam-se um pouco na sombra. Não obstante, ela
podia observar a fisionomia do primo; notava como seus olhos
incessantemente eram atraídos para a visitante e se desviavam, para logo
tornarem a fixar-se nela. Nunca, parecia-lhe, Ariana estivera tão linda
como nessa noite. Ela fora feita para atrair, monopolizar todas as
atenções masculinas, e o próprio Raimundo, o severo, o invencível
Raimundo...
Paula numa tensão de todo o seu ser, observava-os. Notava também, como
nunca antes tinha feito, a intimidade que parecia existir entre a sra.
Evennes e Ariana, a julgar-se pelo tom da sua conversa. O maternal
interesse de uma encontrava da outra parte uma deferência encantadora. A
irritação crescia na alma de Paula. Não era soberana loucura, imprudência
ilimitada, atrair aquela moça que Raimundo com seus princípios rígidos,
nunca poderia esposar? Não reconhecia mais o seguro bom-senso de tia
Helena. Era possível que Ariana a tivesse enfeitiçado a tal ponto?
Agora que sua atenção despertara, julgava notar tons frementes,
emocionados, na voz de Raimundo e Ariana quando se dirigiam um ao outro.
E um medo ciumento apoderou-se dela quando Raimundo, ao despedir-se de
Ariana, a acompanhou até o jardim.
Os dois dirigiram-se em silêncio até o vestíbulo onde Ariana colocou a
capa nos ombros. Em seguida Raimundo abriu a porta. Ao descerem os três
degraus, êle perguntou:
— Continua satisfeita com a sua profissão, senhorita?
— Muito satisfeita. Ela me dá ensejo de fazer o bem.
Ele parou no último degrau, olhando-a.
— Quer dizer que seu cepticismo antigo já diminuiu e que suas resoluções
de egoísmo foram afastadas?
— Sim, pode julgá-lo assim.
No alto da escada, um globo róseo expandia uma luz discreta sobre eles.
Raimundo viu uma grave doçura subir aos olhos de Ariana.
— Diante de tanta miséria material e moral, como é possível ficar
insensível? Como não tentar suavizar algumas dessas provações e não se
sentir feliz em ser a confidente, a conselheira, a amiga quase, dessas
almas sofredoras, às vezes desesperadas?
Raimundo estava vendo ainda uma Ariana desconhecida para êle. Julgava-a
boa, mas não tão próxima assim do devotamento, da piedade, dessa
verdadeira caridade que chega a fazer dom de si própria para consolação e
socorro dos outros. O egoísmo que ela outrora ostentava era pois
fictício, e seu verdadeiro coração de mulher depressa transpusera aquela
barreira.
— Só as grandes almas provam esse sentimento, senhorita. As naturezas
comuns, ao contrário, não se comovem com as dores que se lhes deparam no
exercício da sua profissão.
Êle tentava dominar-se, falar com calma, refrear a emoção de que se
sentia tomado ante essa Ariana piedosa e enternecida, tão delicadamente
mulher, que sabia aliar tanta graça e tão discreta elegância a um vigor
de pensamento pouco comum e uma cultura de espírito forte e brilhante.
— De modo que, para si, sou uma grande alma?
Um sorriso aflorou aos lábios de Ariana, um sorriso suave e emocionado
que, subindo até os olhos avivou-lhes o brilho veludoso.
— Sim, uma grande alma. Em si, nada é medíocre...
Interrompeu-se. Um afluxo de palavras, que não queria deixar escapar,
borbulhava-lhe nos lábios. Sua alma vacilava como numa vertigem, sob
aquele olhar que era de uma doçura embriagadora. E o seu, não deixava
transparecer a perturbação de todo o seu ser? Maquinalmente baixou as
pálpebras, como para estender um véu entre seu rosto e o de Ariana. Mas
continuava a vê-lo e a sentir o suave calor daqueles olhos que o fixavam.
— Sinto-me feliz ao ouvi-lo dizer isso. Tenho inteira confiança em sua
opinião.
Enquanto falavam encaminhavam-se para o portão. Raimundo abriu-o.
Sorrindo novamente, ela estendeu-lhe a mão.
— Bem, até a vista. Vai amanhã à primeira câmara ouvir Mareuilles falar?
Eu não queria estar no lugar do pobre Janillot. Êle vai ficar esmagado
por tão soberba eloqüência.
Um riso divertido acabou a frase. Raimundo murmurou:
— É mesmo. Pobre Janillot...
Êle não sabia bem o que estava dizendo. A vertigem de novo o assaltava.
As palavras recalcadas, as palavras de amor subiam-lhe aos lábios. Em seu
íntimo elas gritavam. Iriam escapar-lhe?
Retirou a mão dentre os dedos mornos que acabava de apertar com força e
conseguiu dizer com calma:
— Sim, pretendo ir ouvir Mareuilles. Há de ser interessante, como
sempre... Boa noite, senhorita.
Inclinou-se e fechou o portão após a saída da moça. Ao voltar-se, viu
Paula em pé na soleira da porta. Ela desceu os degraus e dirigiu-se para
êle.
— Ja vais, Paula?
— Sim, é tarde.
Sua voz era levemente ofegante, seu olhar fixava-se em Raimundo com uma
expressão de ávida curiosidade. Mas êle estava ainda muito emocionado
para o perceber.
Paula deu alguns passos em direção ao portão, acrescentando, em tom que
se esforçava por tornar indiferente:
— Ariana é tratada como íntima por teus pais. Acho singular, pois suas
idéias diferem tanto das deles!
Raimundo replicou, com secura involuntária:
— Contudo, ela é sincera e bondosa. Eis o que meus pais estimam nela, sem
falar em todas as qualidades de que é possuidora.
Paula deu uma espécie de risada que se abafou na garganta.
— Com efeito, não é diante de um homem, seja êle qual fôr, que se pode
nem de leve criticar Ariana. Você é como os outros, Raimundo...
Êle interrompeu-a com gesto imperativo.
— Faço-lhe justiça, nada mais. É inútil procurar motivos que não existem.
E me darás prazer abstendo-se disso, Paula.
Baixara a voz, mas seu acento se tornara irritado, quase áspero... Paula
corou e balbuciou:
— Como és susceptível! Não disse nada que pudesse causar tal
descontentamento! É natural que... a aches agradável, como os outros. Não
quero dizer que por isso...
Ela procurava o olhar de Raimundo. Mas êle desviava-o e ela não viu mais
que seu perfil impassível. Êle encaminhou-se ao portão e abriu-o. Paula
estendeu-lhe a mão, que êle apertou com frieza.
— Boa-noite, Paula. Meus respeitos a sua mãe.
Um olhar humilde ergueu-se para êle.
— Estás zangado comigo, Raimundo? Êle respondeu friamente:
— Não. Acabou-se. É melhor não falarmos mais nisso.
Ela murmurou: — Farei como quiseres.
Êle parecia não ver os olhos docemente submissos que se fixavam nele.
Após Paula sair, como há pouco com Ariana, êle fechou o portão. Durante
um curto instante, olhou para a moça que atravessava o pátio e se dirigia
para a entrada iluminada da casa fronteira. Mas o que êle via, em lugar
da capa de peles e do chapeuzinho de Paula, era o vestido branco de
Ariana, seus cabelos castanhos de reflexos dourados. Paula não era mais
que uma sombra para êle, incapaz de fazer tremer-lhe o coração.
Voltou para o pavilhão e penetrou no vestíbulo. A sra. Evennes estava ao
pé da escada.
— Vais apanhar um resfriado, meu filho.
— Não, minha mãe, a temperatura abrandou um pouco esta noite.
Pensava consigo, ao responder: "Se eu lhe falasse de Ariana? Se lhe
contasse tudo?"
Embora habitualmente confiasse todos os seus sentimentos a sua mãe, não
lhe falara nunca da perturbação sobrevinda em sua vida moral. Parecia-lhe
que mantendo silêncio sobre aquilo, mais facilmente dominaria a situação.
Somente seu confessor recebera a confidência de seu coração. Contudo,
Raimundo conhecia bem sua mãe, para pensar que ela já não o tivesse
adivinhado.
Não obstante, nada disse. Uma perturbadora agitação convulsionava-o,
nessa noite. Quando estivesse mais calmo, quando readquirisse o domínio
de si mesmo, confiar-lhe-ía tudo e lhe pediria conselho.
— Vais trabalhar, meu filho?
— Sim, tenho muito que fazer. Até já, mamãe.
Ela acompanhou-o com os olhos enquanto êle subia a escada. Sua silhueta
elegante, seu perfil altivo se recortavam na parede batida de luz.
Voltou-se e viu que a mãe o olhava. Sorriu-lhe, então, com ternura.
Súbito, num rápido impulso, tornou a descer e foi enlaçá-la.
— Abraça-me, querida mãe, assim, para me dar coragem, para me infundir a
noção do bem e do dever, custe o que custar.
Os lábios maternos pousaram na fronte do filho. Longamente a tocaram com
um beijo ardente. Toda uma alma de mãe resplandeceu nos olhos que se
fixaram nos do filho. A sra. Evennes pousou-lhe a mão sobre os louros
cabelos dizendo:
— Vai, meu filho, e sê sempre como és hoje: um homem honesto e cristão,
que sabe regrar a vida de acordo com as crenças.
Viu-o novamente afastar-se. Lágrimas vieram-lhe aos olhos, que entretanto
sorriam. E pensava:
"Meu filho amado! Como havias de sofrer, ao lado de uma esposa que não
pensasse como tu!"

VII

Inteiramente absorvida na combinação de uma toilette, a sra. Berta


sobressaltou-se ao ouvir a seu lado a voz da filha.
— Vou sair, mamãe.
— Bem. Vais no carro?
— Não, vou a pé. Preciso fazer um pouco de exercício.
A sra. Berta inspecionou com um olhar prolongado o rosto que mostrava
evidentes traços de fadiga.
— Que tens, filhinha? Parece que não dormiste bem.
Paula respondeu com brevidade:
— Muito pouco e muito mal.
— Estás doente?
— Oh, não. Até logo, mamãe. Afastou-se em direção à porta, mas sua mãe
ergueu-se e reteve-a pelo braço.
— Escuta, filhinha, o que passou, passou. Não penses mais nesse pesadelo
por que passaste. Acabas doente...
Paula interrompeu-a, com uma espécie de riso surdo:
— Não pensar mais que a minha vida está perdida por culpa daquele homem?
Na verdade, isso é impossível. A cada hora, a cada instante, sofro ao
pensar... pensar no que podia ter sido.
Seus lábios se crisparam, tremeram longamente.
— O que podia ter sido! Eu seria hoje a esposa de Raimundo, teria tudo
que se pode desejar: fortuna, nome, uma vida honrosa ao lado do homem
querido acima de todos... e o seu amor.
Sua voz se desfez em soluços. Em volta de seus olhos acentuavam-se as
olheiras, que refletiam uma patética desolação. D. Berta apertou-lhe o
braço com força:
— Que! Tu o choras a esse ponto? Tu... Minha filha!
— Ainda me pergunta se choro um homem como êle? Ah, que erro o seu, que
louco erro!
— Mas tu não o amavas! Assim me disseste, Paula!
— A senhora me persuadiu disso. Pôs em paralelo a situação dele, seu
futuro, com o de Daubrey; elogiava a largueza de vistas deste e me
amendrontava com a pretensa intransigência de Raimundo. Eu era fraca,
ambiciosa, aquele homem me embaía. Depois, naquela época eu não sabia
avaliar o amor de Raimundo, e eu mesma, sob a impressão da nossa amizade
de infância, não compreendia bem a espécie de sentimento que êle me
inspirava. Mas depressa o soube! Antes, até, do meu casamento! Eu devia
tê-lo rompido! Não o fiz por orgulho, e me tornei esposa de um homem que
não amava, que não podia mesmo estimar. O que sofri foi bem merecido. Mas
se a senhora tivesse feito de mim uma moça séria, profundamente cristã,
se me tivesse aconselhado como o faria tia Helena, eu nunca teria pensado
em deixar Raimundo por um Daubrey!
A sra. Berta apertou mais o braço da filha.
O rosto murcho empalideceu, os olhos se encheram de amargurada
estupefação.
— Mas, minha filha... minha filha...
Paula afastou-se um pouco, num gesto de impaciência.
— Deixemos isso, mamãe. Agora não há mais o que fazer. Minha vida acabou-
se... e a dele ainda nem começou. Ah, mulher feliz aquela... E eu teria
podido...
Sua voz abafou-se num soluço.
— Paula!
A sra. Berta procurava tomar-lhe a mão. Mas a moça recuou mais ainda.
— Não, deixe-me, mamãe, deixe-me. Estou num mau dia. Desculpe-me falar-
lhe assim. Estou sofrendo demais.
Saiu do quarto e entrou na pequena sala. Aí, parou alguns minutos para
evocar mais uma vez a cena antiga. Raimundo viera perguntar-lhe se
retirava a palavra dada. Ela se mantivera firme; dissera-lhe mesmo que
não o amava.
As lágrimas vieram-lhe aos olhos que vagueavam pela elegante sala, sempre
florida. Um espelho refletiu-lhe a imagem. Ela se aproximou e olhou-se
longamente.
"Não, não sou mais a Paula que ele amava, pensava ela. Sou bonita ainda,
mas não como antigamente. E perdi seu amor casando-me com Daubrey".
Deu um suspiro que terminou numa espécie de soluço. Rapidamente saiu e
pôs-se a andar apressadamente. Caminhava para a frente, sem destino, com
o único fim de distrair o pensamento lancinante que a mantivera acordada
a noite inteira. Súbito percebeu achar-se junto à igreja de S. Severino.
Maquinalmente deu alguns passos para ela. Porém mudou de idéia e dirigiu-
se para o São Julião-o-Pobre.
Cinco anos antes tinha assistido ali a um ofício do rito grego, que é o
dessa capela. Ao sair, Raimundo lhe dissera:
— Costumo vir sempre aqui rezar. Gosto desta solidão, em que me sinto
mais perto do Deus.
Paula, em seu desconcerto moral, sentia o desejo imperioso de rever os
lugares onde passara ao lado dele, noiva feliz que se deixava amar sem
compreender a extensão de sua felicidade. Vinha ali, sob a influência de
uma inconsciente atração pela atmosfera preferida por aquele cuja
lembrança não a deixava mais. Compreender e amar tudo o que amava o
coração ardente e a forte inteligência de Raimundo, tornara-se de algum
tempo a finalidade de sua vida.
Abriu a porta e entrou. O interior era claro. O sol, através dos losangos
dos vitrais, punha uma luz quente sobre as velhas estátuas colocadas por
baixo das janelas, e aclarava, ao fundo, as douraduras do altar.
Uma só pessoa se achava ali, uma mulher ajoelhada num genuflexório da
primeira fila. Seus pulsos se apoiavam no encosto e mantinha-se direita,
os olhos fitos diante de si. Seu talhe parecia fino, elegante, sob o
manteau bem recortado. Por baixo do feltro preto apareciam os cabelos de
um castanho claro e dourado. Paula teve um sobressalto:
"Parece Ariana!" disse consigo.
Avançou alguns passos. Sim, era Ariana... Ariana numa igreja, de joelhos
ante um tabernáculo católico!
Paula ficou de pé, atordoada, os olhos fixos na cunhada. O puro perfil
desta delineava-se na claridade; os lábios estavam imóveis, mas o rosto
parecia fremer sob o ímpeto de uma emoção, os cílios palpitavam sobre os
olhos que não desfitavam o altar.
Ariana nem se movera ao ruido da porta se abrindo. Não voltou a cabeça ao
ouvir os passos leves de Paula na laje. Ao fim de alguns minutos, curvou
a fronte sobre as mãos e ficou assim um momento imóvel. A luz caiu sobre
a brancura de sua nuca e o castanho leve de seus cabelos. Depois o talhe
elegante se endireitou, as mãos recaíram e Ariana ergueu-se e se voltou.
Teve um movimento de surpresa, de contrariedade talvez, à vista de Paula.
Seus olhares se encontraram um e outro perturbados. Ariana adiantou-se,
apertou a mão da cunhada e ambas em silêncio se retiraram da igreja.
Na rua, Paula parou e perguntou:
— Agora és cristã, Ariana?
O olhar de Ariana retomara a tranqüila firmeza; a Paula esse olhar
pareceu iluminado de uma luz quente, como um incêndio reflexo da alma.
— Sou. Pelo menos em desejo. Vim a esta igreja para refletir, sondar
minha alma, e percebi que tinha fé e que rezava.
— Na verdade, nunca pensei! Que dirá teu pai?
— Meu pensamento é livre. Meu pai sempre me disse: "Acredita no que
quiseres, ou não acredita em nada." Na treva moral em que êle me deixou,
a luz me aparece agora. Mais nada poderá me afastar daqui.
— Como conseguiste isso?
— Como? Oh, Paula, se ainda te resta um pouco da tua crença, deves saber
que as almas são levadas insensivelmente pelos caminhos mais diversos até
à porta da fé, essa em que acabo de entrar neste instante. Eu tinha a
impressão do vazio de todas as coisas em torno de mim, o horror da morte,
— da morte do meu ser pensante e do meu coração, — e mais o desprezo, o
amargo desgosto que me inspiravam as torpezas humanas. Sentia,
entretanto, uma imensa sede de crer em qualquer coisa de grande, de puro,
de incomensurável — de eterno!
Na viva brancura de suas faces o sangue parecia palpitar e expandir-se em
róseo afluxo.
— De eterno! repetiu Paula, maquinalmente, Ela não ouvia direito o que
dizia a cunhada. Pensava olhando: "Que encanto ela possue! E êle a ama!
Êle a ama!"
Ariana continuava a meia-voz:
— Depois, conheci de perto verdadeiros crentes, dos que têm uma conduta
de acordo com a fé. A alma de uma mulher se revelou a meus olhos, bela na
sua concepção cristã do dever, feliz no meio de suas provações, porque
sofria unida ao seu Deus e uma felicidade eterna a esperava. Vi também de
perto as misérias, as tristezas de toda espécie, e constatei quanto uma
crença firme num Deus consolador as acalmava, as enobrecia. Compreendi
que a dor, maldita pelo mundo, pode ser suportada sem desespero e sem
revolta quando se está apoiado naquele que suportou a cruz para nos
salvar.
Paula teve um risinho de mofa:
— Esqueces uma outra razão dessa reviravolta. A fisionomia de Ariana
mostrou certa surpresa:
— Creio que te disse as principais.
— Não disseste a principal... a única talvez, pois nas outras todas eu
não creio. Mas que tu te convertas por amor de Raimundo, isso eu
compreendo.
O tom rosa da face de Ariana tornou-se mais carregado. Os olhares das
duas mulheres se penetraram: o de Paula procurando velar de ironia o
sofrimento enciumado, o de Ariana, altivo e indignado.
— Ah, compreendes? Pois bem, eu nunca o compreenderia! Não procuraria
nunca enganar o homem que estimo acima de tudo. Olha, a princípio receei
ser esse o motivo que me atraía para a religião. E isso me atormentava,
como uma falta de retidão. Naquele momento eu não saberia o que te
responder, se me tivesses falado como agora. Mas minha intenção, obscura
a princípio, tornou-se manifesta. Ainda há pouco, diante do altar, vi
nitidamente que, se Raimundo Evennes em primeiro me tivesse atraído para
a sua crença pelo exemplo da sua fé, da sua elevada vida moral, a
religião de Cristo, estudada, meditada por mim sob a direção da sra.
Evennes, me ensinaria agora a me reprimir. Se eu não estivesse certa
disso, como agora estou, não daria nunca o passo que me separa da fé
praticante, pois não admito que, ainda pelo mais amado dos homens, se
procure enganar a si mesma, e ainda menos enganá-lo.
Paula murmurou:
— Então é verdade? Tu o amas?
— Não o escondo.
— E... êle?
— Nunca me disse nada.
A voz de Ariana era breve, um tanto impaciente. Desviou-se dos olhos que
procuravam sondar-lhe o pensamento, e afastou-se um pouco.
Paula repetia, a meia-voz:
— Êle não te disse nada...
Analisava a cunhada e um amargo ciúme a invadiu ante aquela frescura de
flor nova, aquela graça encantadora que de algum tempo para cá mais se
acentuara ainda, parecia-lhe. E sussurrou, em tom de acre triunfo:
— Eu também já fui amada por êle.
Um reflexo de sol as envolvia, clareando o rosto de Paula, no qual se
viam pequeninas rugas ameaçar-lhe a já frágil beleza, que uma vida de
mundanismo e as preocupações haviam cansado prematuramente. Ariana disse,
com piedade mixta de desprezo:
— Sim, já fôste amada por êle como não o merecias. Preferiste Fernando a
êle... Fernando!
Teve um riso surdo, carregado de ironia.
— Ah, tola, tola! Fernando em vez de Evennes! Paula, que vento de loucura
passou por ti naquele momento?
Os lábios de Paula tremeram, ao murmurar:
— Não sei... Na verdade, eu devia estar louca. Fernando em vez de
Raimundo!
Alguém vinha para a capela. Elas se calaram e se afastaram alguns metros.
Paula estendeu a mão a cunhada. Separaram-se friamente, como se não
tivessem acabado ambas de revelar qualquer coisa do segredo de suas
almas.
Ariana, maquinalmente, dirigiu-se para o Foro, embora não tivesse nada a
fazer lá, àquela hora. As idéias lhe assaltaram o cérebro, após aquele
encontro inesperado. Acabava de surpreender em Paula o ciúme da mulher
outrora amada, que ama ainda e percebe, desesperada, que só a indiferença
lhe responde, e outra tomou o lugar deixado por ela. Ariana pensava.
"Agora ela é minha inimiga. Mas não a temo. Evennes já não a ama. É a mim
que êle ama, e agora mais nenhum obstáculo nos separa".
Uma viva alegria a penetrava. Toda a sua ardente juventude cantava o hino
da felicidade. E uma outra alegria se acrescentava àquela: sentia em si a
fé. Não era mais aquela pobre individualidade atirada ao mundo, sem guia,
sem finalidade, pobre coisa que a morte leva sem deixar subsistir mais
que um pouco de cinza. Agora, por sua crença se ligava a uma filiação
divina; podia apoiar-se numa autoridade indestrutível, crer no amor que
não trai nunca, na justiça sem desfalecimentos, na santidade sem mancha.
Via agora uma vida eterna, uma felicidade sem fim, a cuja idéia se
dissipava o pavor da morte que outrora havia confessado a Raimundo.
Pensava: "É a êle, é à mãe dele que devo essa felicidade. Sem eles,
provavelmente eu ainda estaria nas trevas. Eles apareceram no meu caminho
como uma lâmpada ardente, guiando-me ao caminho reto com a irradiação de
sua beleza moral".
Ariana atravessava agora o Sena. Diante dela alongava-se a avenida do
Foro, onde os carros se cruzavam num incessante vai-vem. Ao atravessar a
praça de Maio, lançou um olhar à fria e monumental fachada cujas três
portas imensas dão acesso à galeria dos Passos-Perdidos. Dizia consigo:
"Cada vez mais êle se imporá aqui, com o seu talento magnífico e a forte
sedução que exerce em toda essa mocidade ávida de ouvi-lo". Uma orgulhosa
alegria insinuava-se nela, a essa idéia. Pouco se importava agora com os
seus sucessos pessoais. Só os do seu amado lhe importavam.
Sentia-se antecipadamente feliz em não ser mais que uma sombra daquele
que elegera senhor da sua vida. Apoiou-se um momento ao parapeito do cais
do Relógio. Em sua frente o Sena fluía num deslumbramento de ardente
claridade. Ao longe, sobre o rio, sobre os telhados, uma bruma luminosa
se estendia. Ariana dizia consigo: "Como tudo é claro, esta manhã! Como
Paris é lindo!" Seus olhos pareciam absorver aquela luz, toda aquela
beleza. Percorria-a um frêmito, comoção deliciosa da sua juventude diante
da felicidade, diante do amor. Como ia já longe aquele cepticismo que
outrora professava, aliás sinceramente! Como fazia calor agora em seu
coração!
Virou-se para deixar o cais. Diante dela erguiam-se as duas velhas torres
redondas, enquadrando a linda porta gótica da Portaria. Sob a viva luz do
sol primaveril elas pareciam rebarbativas com seu revestimento de pedras
enegrecidas, seus orifícios estreitos que pareciam recusar ao sol o
direito de entrar.
Mas, olhando-as, Ariana tinha ainda nos olhos toda a claridade que
acabava de contemplar. Sorriu para as torres sombrias, pensando: "Não
temo mais a vida, nem a morte. Creio num Deus eterno".

VIII

A sra. Evennes entrou no gabinete do filho, vazio àquela hora da tarde.


Deu uma volta por êle, lançando a cada móvel um olhar observador de
perfeita dona de casa. Parou no meio da sala, para admirar o conjunto
severo e sòbriamente elegante que Raimundo formara com os belos e antigos
móveis familiares. Nada ali lembrava o luxo banal de que se cercavam
tantos dos seus confrades ao alcançarem boa situação. Aquele quadro, onde
vagava um doce perfume de tradição, era bem o que convinha a um homem
cuja vida, até aquele dia, se resumia em seus deveres de católico, de bom
filho e de francês.
A sra. Evennes aproximou-se de uma janela aberta. Apoiou as mãos sobre o
balcão e olhou maquinalmente à sua frente, para o pequeno parque da casa
vizinha. Uma úmida frescura subia do chão molhado, do qual subiam os
ramos já guarnecidos de renovos. Um pouco de bruma esgarçava-se ainda
pelas ramagens implexas. A sra. Evennes recuou e fechou a janela. Ao
voltar-se viu Raimundo entrar, com a pasta embaixo do braço.
— Oh, estás aí, meu filho?
— Aqui estou, minha mãe. Vim mais cedo; tinha pouco que fazer no Foro,
hoje.
Depôs a pasta na secretária e foi até junto de sua mãe, com Um sorriso no
fundo dos olhos.
— Veio ver se estava tudo em ordem, mamãe? Domingos limpou e arrumou tudo
direito?
Ela fez um sinal afirmativo. Seus olhos se fixaram no rosto sorridente do
filho. Perguntou:
— Que vais fazer esta noite?
— Tenho de ir a uma conferência, no Luxemburgo. Esqueceu-se?
— Não, em absoluto. Não irás então a recepção do juiz?.
— Não, mamãe, já me desculpei por não poder ir.
— Mas Ariana queria que fosses.
— Não posso. Depois da conferência, voltarei logo para casa. Bem sabe que
não simpatizo com o juiz Daubrey e não mantemos relações. Além do mais,
essas festas mundanas são desprovidas de interesse para mim, e não há
nenhuma obrigação de minha parte em comparecer a essa...
— Não queres ver como a srta. Daubrey deve estar linda com o vestido que
escolhemos juntas?
Êle teve um movimento brusco, olhando para a mãe com uma estupefação
mixta de censura.
—É a senhora que me fala assim? No entanto, estou certo que já
adivinhou... Sim, sabe muito bem que estou louco por ela!
Ela curvou-se, aproximando o rosto ao do filho. O olhar ansioso de
Raimundo pousou naqueles olhos fixos e ternos em que todo o amor materno
se mostrava.
— Sim, meu filho, sei tudo. Receei muito por ti, ao ver despertar esse
amor. Não ignorava a luta que terias de sustentar entre esse amor e o teu
dever. Mas Ariana junta ao seu encanto físico tantas qualidades de escol!
E ela te ama. Meu filho, rezei muito por ti. E tive uma inspiração do
céu. Comecei a estudar essa moça, a conversar com ela. E me convenci das
suas qualidades morais, em terraços incultos, mas facilmente cultivável.
O coração era bom e puro. Só faltava a essa alma a educação cristã e o
retorno às tradições, que eram também as de sua família antes do juiz
desprezá-las. Percebi que era a isso que ela instintivamente aspirava,
pobre alma atormentada pelo problema da vida. Então fiz com que ela me
procurasse mais vezes tornei-me sua amiga, sua conselheira. Tudo isso
muito simplesmente, por um acordo tácito. Ela me procurava porque sentia
que eu gostava dela e tinha um pouco de luz, um pouco de vida para lhe
transmitir. Conversávamos com toda a intimidade. A religião era quase
sempre o assunto de nossas conversações. Depois eu lhe falara das nossas
tradições de família, de tudo aquilo que amamos e respeitamos. E eu via
que sua alma se abria para uma nova vida. Via-a tornar-se cristã, tornar-
se minha filha.
Enquanto falava, a sra. Evennes sentia o filho estremecer entre seus
braços. Via uma ardente alegria brilhar-lhe nos olhos. Quando se calou,
dois braços a envolveram e a voz um tanto ofegante de Raimundo elevou-se:
— Minha mãe! Fez isso por mim?! Ariana, crente! Ariana, minha esposa! E
foi a senhora quem fez isso e a traz para os meus braços toda cheia de
seu espírito, de seus ensinamentos, de seu coração!
— O terreno era ótimo. Toda boa semente germinará nele. Tu continuarás a
tarefa começada e farás dela uma mulher digna de ti.
Beijou a fronte que se apoiava em seu ombro. Raimundo ergueu-se um pouco,
mas um de seus braços ficou enlaçado no ombro materno. A sra. Evennes
olhava-o com aquele ar pensativo que às vezes Raimundo também tinha, e
que fazia tão parecidas as suas fisionomias.
— Sofreste muito, meu filho. Mas lutaste e venceste.
— Sim, sofri muito. Ainda se eu nunca mais a tivesse visto! Mas quase
todo dia eu a encontrava. Oh, amo-a. Querida mãe, temo amá-la demais!
— Meu filho, lembras-te que és cristão e que as paixões humanas são
efêmeras. Ama tua mulher, meu filho, ama-a com todas as forças do teu
coração, mas sem permitir jamais que esse amor terrestre ultrapasse
aquele que deves a Deus nem enfraqueça a tua vida de crente.
Raimundo olhou-a mais uma vez, longamente. Uma ardente alegria parecia
acender aquele rosto de homem. A sra. Evennes disse, pensativa:
— Ela também deve te amar... como tu a amas. Mantém sempre a tua
influência sobre ela, para elevá-la até a ti. Faz dela a rainha de teu
lar, — mas tu, sê o rei. Eis como deve ser. Não o esqueças nunca, meu
filho.
— Não esquecerei nunca que devo, até o mínimo detalhe da minha
existência, mostrar-me digno da mais admirável das mães.
A sra. Evennes sorriu para os olhos que a fitavam com suave ternura.
— E agora, insistes em não ir à recepção do juiz? Êle riu, com acento
vibrante.
— Ah! Agora, querida mãe, irei. Quero ver a minha Ariana, pois já posso
amá-la.
A sra. Evennes murmurou:
— Sim, eu bem sabia que tinhas medo dela... e de ti.
Naquela noite, finda a conferência, Raimundo voltou em casa para vestir-
se a rigor, e em seguida dirigiu-se à casa do juiz Daubrey. Dansava-se no
salão e no gabinete do dono da casa. Ariana, um pouco afastada,
conversava com o presidente da Ordem dos Advogados, que acabara de
chegar, um pouco atrasado êle também e que não podia demorar. Ficou
corada ao ver Evennes inclinar-se diante dela e em sua voz percebia-se a
emoção quando disse:
— Mudou então de resolução? É muita amabilidade de sua parte.
O presidente pôs-se a rir, apertando a mão de Raimundo.
— Êle será recompensado, tornando-se cavalheiro da nossa deliciosa
hóspede. Bem, jovens, vou deixá-los, carregando os meus cincoenta anos
morosos que não têm o que fazer aqui.
Afastou-se e sua magra silhueta perdeu-se entre as casacas elegantes.
Raimundo perguntou:
— Quer dansar, senhorita?
— Não estou com vontade. Sinto-me um pouco fatigada. Vamo-nos sentar e
conversar um pouco.
Foram para o gabinete de Ariana, transformado em pequena sala de repouso.
Sentaram-se num canapé, em ângulo, donde viam os dansarinos evoluírem no
salão vizinho. A princípio, trocaram pequenas frases curtas entrecortadas
de grandes silêncios. Diziam coisas banais, enquanto que uma apaixonada
emoção fremia neles, refletindo-se em seus olhos quando se encontravam.
Cada movimento de Ariana produzia um suave ruido. O filo cinza-prata
ondeava sobre a combinação de seda rosa e o conjunto formava uma nuance
delicada, de uma elegância discreta e rara.
— Minha mãe me disse que a senhorita tinha escolhido esse vestido em
colaboração com ela, é verdade?
— Sim, pedi o seu conselho. Acha-o bonito?
— É a coisa mais deliciosa que já vi.
Ela riu alegremente. A emoção aumentou em seus olhos que acabavam de
notar a fixa admiração dos de Raimundo.
— Os elogios devem ser dirigidos principalmente a sua mãe. Seu fino gosto
me guiou, fazendo-me evitar qualquer exagero chocante.
— Acho que a senhorita também tem muito bom gosto.
Novo silêncio. As banalidades não podiam passar-lhes pelos lábios. A
dansa terminava e Ariana foi novamente atender aos convidados.
Os homens a cercavam. Ela tratava-os com amabilidade reservada, um tanto
altiva. De longe, Evennes, enquanto conversava com um colega, não a
largava com os olhos. Ela aparecia com todo o seu império de mulher, com
todo o esplendor da sua beleza, naquela moldura festiva. Raimundo sentia
o coração bater apressado sob o ímpeto de uma embriagadora alegria.
Escapando do seu interlocutor, deu alguns passos para aproximar-se da
moça. Nesse momento a orquestra preludiou novamente. Ariana respondeu às
instâncias de alguns admiradores que não dansaria mais naquela noite.
Vendo Evennes aproximar-se, tomou-o pelo braço.
— Leva-me lá para dentro. Quero sentar-me um pouco mais.
Raimundo disse a meia-voz:
— Preciso falar-lhe... dizer-lhe algumas palavras.
Ela apoiou um pouco mais a mão, indicando com esse movimento um vão de
janela escondida entre altas plantas verdes.
Estavam os dois ali agora, um em frente do outro.
A sombra das folhagens atenuava o brilho da luz. Estavam sós e Raimundo
disse:
— Já compreendeu? Sabe o que quero lhe dizer?
Ariana baixou um pouco os olhos. Uma emoção nova, muito delicada,
purpureava-lhe a face. Não era mais a independente Ariana, já mulher por
suas maneiras, seu espírito, seus conhecimentos. Raimundo tinha diante de
si uma verdadeira adolescente que esperava, um pouco trêmula, a primeira
declaração de amor.
— Já compreendeu, Ariana? Sabe que a amo?
— Sim, sei. Mas não pode casar-se com uma descrente.
— Minha mãe me disse que já não o era mais.
— E é verdade. Também sou crente. Agora minha alma está em paz. Lembra-se
de que várias vezes lhe confiei as minhas incertezas, as minhas
angústias?
— Sim, lembro-me. E ficava com tanta pena de si. Já agora, se quiser ser
minha esposa, eu a ajudarei a conservar e aumentar essa paz que lhe
nasceu com a fé.
Ela disse simplesmente:
— Bem sabe que também o amo, Raimundo. Serei sua esposa.
Êle tomou-lhe a mão e pousou os lábios nela. Ao levantar a cabeça,
trocaram um olhar de apaixonada ternura.
— Só queria poder dizer-lhe o quanto a amo! — Seus olhos dizem tudo,
Raimundo.
Ela sorria. Seu olhar tinha um brilho de felicidade que deslumbrava
Raimundo.
— Minha bem amada, sofri tanto em pensar que não seria minha.
Ela disse com um acento de fervorosa admiração:
— Como o acho forte! Que bom, poder apoiar-me em si.
A sombra das folhagens estendia-se sobre os seus cabelos castanhos que
tinham, essa noite, suaves reflexos claros. Um pouco de luz banhou-lhe a
face extasiada. Ariana acrescentou:
— Pedi muito à sra. Evennes que me ajudasse a tornar-me igual a ela. A
dignidade, a felicidade de uma mulher e daqueles que a cercam, estão
contidas nos deveres que são cumpridos por sua mãe com toda a
simplicidade, porque ela é uma alma forte e religiosa. E é de uma alma
semelhante que precisa a seu lado, Raimundo.
Sua mão abandonou-se na de Evennes, cujo calor a penetrava. A cada
movimento seu, as pequeninas pérolas do seu colar rolavam-lhe pelo alvo
pescoço.
Êle disse com ardor:
— É de si que preciso.
Apertou-lhe a mão com mais força e acrescentou:
— Vejo-a com os seus defeitos e as suas qualidades, — com seus defeitos
que desaparecerão em nossa atmosfera familiar, com suas qualidades
encantadoras, seu coração sempre puro e a delicadeza de alma que um dia
descobri em si, pois bem sabia que podia perturbar a minha vida, tornar
mais dura ainda a luta entre o meu amor e o meu dever. Podia esperar
vencer-me. E afastou-se para me evitar um grande sofrimento. Compreendi
isso, Ariana, e agradeço-lhe.
Ela disse gravemente, com ternura:
— Eu não podia suportar que se diminuísse a meus olhos, mesmo por amor de
mim, e sentiria desprezo por mim mesma se tivesse a fraqueza de incitá-lo
a faltar ao dever.
Calou-se um momento e acrescentou, com a voz um tanto ensurdecida:
— Entretanto, como eu o amava! Devo-lhe o ter-me arrancado ao egoísmo, ao
amargo desdém por tudo, a que tendia minha alma desiludida. Seu exemplo
falava bem alto. Segui-o de longe, de muito longe, a princípio. Sentia-me
mais forte, então. A vida me pareceu menos dura, com a perspectiva do
dever a cumprir. E eu queria obter a sua estima. Sim, Raimundo, duvida de
que eu tenha evitado todos os desfalecimentos que cercavam a minha
juventude desprovida da guia moral, meu coração privado de afeições
familiares, por querer sempre merecer a estima daquele que representa a
meus olhos toda a honra, toda a beleza moral, toda a energia no
cumprimento do dever? Êle murmurou apaixonadamente:
— Ariana!... minha adorada Ariana!
Ela curvou um pouco a cabeça olhando-o com uma espécie de fervor:
— É doce ouvi-lo dizer isso. Não poderia ouvi-lo de um outro. Ninguém o
teria dito desse modo, Raimundo; nenhum outro teria tido esse respeito,
essa força, na ternura que vejo em seus olhos.
— Respeito e ternura, é bem o que lhe ofereço, e é todo o segredo da
felicidade conjugal.
A orquestra ritmava uma música espanhola de grande sucesso na época. Os
pares passavam dansando diante da cortina de folhagens. Os olhares se
dirigiam para esse lado. Dizia-se baixinho: "A srta. Daubrey está
flertando com o colega, o elegante Evennes".
Ariana murmurou:
—. A sra. Evennes me quererá para sua filha"?
— Minha mãe lhe tem uma profunda afeição. Foi ela quem me revelou o seu
valor e o que é na realidade.
— Eu a estimo tanto! E tenho tanto que aprender com ela! Tal como sou,
durante algum tempo poderia fazê-lo feliz; depois o hábito lhe faria
discernir meus defeitos, as lacunas da minha educação moral. Sofreria com
isso e me teria menos amor. Porém eu quero que me ame sempre como agora,
de outro modo talvez, mas com a mesma intensidade. Quero que encontre em
mim a mulher que o compreende, em toda delicadeza de seu pensamento, em
todo o seu fervor de crente. É preciso que sua alma penetre na minha para
elevá-la ao mesmo nível.
Êle disse surpreso:
— Está dizendo as mesmas palavras que minha mãe pronunciou há pouco,
quando eu lhe disse que a amava. Gostava que ela ouvisse. Sim, Ariana,
serei o seu conselheiro. Serei o seu esposo, em toda a acepção da
palavra, que contém em si tantos deveres.
Interrompeu-se um instante e acrescentou, com terno sorriso:
— E a sua independência? Que dirá ela, ao vêla curvar-se assim ante a
influência marital?
— Minha independência? Não existe mais, agora que o amo e que me ama.
Ponho-a em suas mãos. Imolo-a diante de si. E esse sacrifício, que eu não
faria por nenhum outro, me parece suave.
Fez um movimento que lhe deixou o rosto em plena luz. A emoção aveludava
o violeta de seus olhos que brilhavam de felicidade. O filo cinza-prata
palpitou sobre a seda rosa e as pequenas pérolas rebrilharam-lhe em torno
do pescoço.
Os últimos compassos da dansa espanhola faziam-se ouvir. Ariana disse com
um acento de pesar:
— Agora temos de voltar. Amanhã irei visitar a sra. Evennes.
— Ela a esperará de manhã, caso possa.
— Sim, lá para as dez horas. Estará lá?
— Sim, estarei. Temos muito que conversar. Trocaram uma longa pressão das
mãos e um olhar de ardente ternura. Depois voltaram a misturar-se entre
os convidados. Evennes, alvo das atenções gerais, falava maquinalmente.
Todo o seu pensamento estava junto de Ariana que ria docemente,
respondendo com ar distraído aos seus admiradores e pensando em Raimundo.

IX

COMO era de esperar, o dr. Evennes não terminou aquele dia a sua defesa,
tendo de continuá-la no dia seguinte. Tratava-se de um caso de peculato,
que há meses prendia a opinião pública. Raimundo, advogado da parte
civil, desmontou peça por peça o sistema de defesa de seu adversário, um
dos mais notáveis advogados da época. Manteve os colegas, os juizes, o
auditório, todo o tempo que quis, sob o domínio de sua palavra vibrante e
forte, e subjugou-os com uma peroração em grande estilo, cuja beleza foi
mais realçada ainda pelo timbre quente, sonoro e profundo de sua voz.
Os estudantes comprimiam-se para ouvi-lo. Ariana achava-se entre êles.
Seu coração se dilatava de orgulho. Aquele homem admirado e estimado por
todos, era seu noivo, e amava-a com a forte paixão de um coração sem
mácula. Nessa mesma manhã, diante da sra. Evennes, êle lhe expressara
novamente seus sentimentos, e lhe dera o primeiro beijo de amor. Parecia-
lhe sentir ainda o calor de seus lábios trêmulos que sempre haviam
recalcado com firmeza as palavras que êle nunca poderia dizer a uma
Ariana descrente. Mas agora podiam falar. Tinham falado já, e o que
haviam dito deixava Ariana em plena felicidade.
Indiferente à atenção de que era objeto, ela só via a êle, em pé na
tribuna, dominando toda a sala com a pujança de sua voz e a energia do
seu olhar. Ela não havia notado a presença, na primeira fila, da sra.
Berta e de Paula. Só depois as viu. À claridade morta daquela tarde
chuvosa, a fisionomia de Paula parecia fatigada, seus traços alterados.
Ao ver a cunhada, Ariana sentiu a impressão de piedade mixta de desprezo
que ela sempre lhe inspirara. Pensou consigo:
"Êle a amou e ela o repeliu! Que remorsos deve ela sentir agora! Tenho
pena dela, é uma fraca de espírito. Nunca teria sabido amar Raimundo como
êle o merece. Não o teria compreendido".
Seu pensamento reportou-se a Fernando. Havia um mês que êle estava em
Leysins, tentando melhoras para a doença que o consumia. Segundo os
curtos bilhetes que costumava enviar, seu estado era estacionado. Mas os
médicos não haviam escondido ao juiz que, se êle se curasse, teria de
mudar completamente seu modo de vida.
Ora, Ariana tinha a certeza antecipada de que seu irmão não se submeteria
nunca a uma existência pacífica e não teria nenhuma prudência com a
saúde.
Olhando para Paula, que não tirava os olhos da tribuna da defesa, Ariana
pôs-se a pensar:
"Sem dúvida ela sabe do estado de Fernando e tem como certa a viuvez.
Então tentará novamente conquistar Raimundo".
A esse pensamento, um sorriso de suave triunfo lhe veio aos lábios. Ela
não temia nenhuma mulher no mundo — nem mesmo Paula, a noiva outrora
adorada. Estava certa da fidelidade daquele que, embora apaixonado e
sabendo que ela o amava, tinha recalcado seu coração para obedecer à sua
consciência.
Pensava: "Êle preferiu a mim o seu Deus". E achava que isso era nobre,
justo, e era um traço de firmeza. Os espíritos que se dominam diante das
paixões humanas são aqueles em que nos podemos apoiar com confiança e que
não desenganam.
Terminava a audiência. O juiz, com uma voz que se arrastava em longos
períodos, pronunciou a condenação do acusado e de sua cúmplice. Ariana
manteve-se à parte enquanto todos apresentavam felicitações a Evennes,
Aproximou-se dele quando o viu menos cercado. Seus olhos se encontraram,
longamente. Os de Ariana diziam: "Como falou bem! Sinto-me orgulhosa de
si"! Os de Raimundo respondiam: "Como é linda! Amo-a"!
Cercados de colegas, dirigiam-se conversando para a sala dos Passos-
Perdidos. A sra. Berta e Paula, furando os grupos cerrados, apareceram em
frente de Evennes. Enquanto felicitava o primo, Paula lançou um olhar à
jovem advogada, cuja beleza nada perdia com a severa vestimenta que lhe
caía com graça, e sentiu um arrepio de inquietação ao ver tão límpida
felicidade em seus olhos que sorriam ao fitar Raimundo.
A sra. Berta inclinou-se ao ouvido da filha:
— Aí vem o juiz Daubrey. Vamos embora, Paula.
Durante o processo de separação de corpos, ela tivera com o pai de
Fernando uma violenta altercação, e desde então não se tinham mais visto.
Devido a isso afastou-se logo, acompanhada de Paula que apartara a mão de
Raimundo dizendo:
— Até breve, não? Precisas vir jantar conosco um dia desses.
O juiz aproximou-se da filha. Tinha um telegrama na mão, e uma emoção
incontida lhe alterava os traços do rosto magro, que parecia mais terroso
ainda.
— Um telegrama de Leysins, Ariana. O estado de Fernando agravou-se
subitamente e receia-se um desenlace.
Desapareceu o sorriso do olhar de Ariana. Tomou o telegrama, leu-o e
disse tristemente:
— Pobre Fernando. Irá morrer assim sozinho? Devemos ir para junto dele.
Vamos, papai?
— Vamos já embora. Precisamos consultar o horário dos trens.
Ariana voltou-se para Raimundo:
— Acha que devemos avisar Paula?
— Decerto.
O juiz protestou:
— Que idéia! Está tudo acabado entre eles.
— Não. Ela deve ser avisada. Êle é sempre seu marido.
— Encarregue-se disso então, Evennes. Eu não tenho tempo, nem quero fazê-
lo.
— Bem, eu vou avisá-la. Talvez ainda não tenha saído; vou ver se a
encontro.
Ariana disse:
— Até logo.
E a terna carícia de seus olhos completou o adeus.
Raimundo procurou em vão sua tia e Paula na sala dos Passos-Perdidos.
Resolveu ir à casa delas. Talvez tivessem ido para lá diretamente. Se
não, voltaria lá mais tarde. Devia avisar Paula antes que saísse o trem
noturno.
Enquanto, em seu carro, se dirigia à casa de sua tia, Raimundo meditava
no triste destino daquele homem, deixado entregue a si mesmo desde a
infância, escravo dos próprios vícios, tornado uma ruína moral, e em quem
todos os bons sentimentos pareciam anulados. Por uma misteriosa
disposição da Providência, Ariana tinha sido preservada de um futuro
semelhante. Ela guardava em si um coração sem mácula e uma alma reta,
delicada, que se revoltava contra o mal, capaz de devotar-se a todas as
grandes causas e de manter intacta a honra do seu lar.
A sra. Berta e Paula estavam em casa. A criada introduziu Raimundo na
pequena saleta onde quase em seguida Paula apareceu.
— Tu aqui, Raimundo? Que aconteceu?
Seu acento exprimia surpresa, não inquietação; uma alegria contida se
refletia em sua fisionomia.
— O juiz Daubrey acaba de receber um telegrama de Leysins. Fernando está
muito mal. Êle parte com a filha pelo noturno e encarregou-me de te
prevenir.
Os traços de Paula alteraram-se um pouco; suas pálpebras baixaram
ligeiramente enquanto murmurava:
— Não pensei que êle estivesse tão mal.
— Parece que não há esperanças de salvá-lo. Tens de partir quanto antes,
se queres encontrá-lo vivo.
Ela sobressaltou-se, olhando para o primo com estupefação.
— Eu, ir lá?... tornar a vê-lo? Mas êle não é mais nada para mim!
— Êle nunca deixou de ser teu marido, e está à morte. Tens um dever a
cumprir, ao lado dele.
Ela disse com veemência:
— Não quero mais vê-lo! Não sabes quanto o odeio? Êle arruinou a minha
vida. Por culpa dele sou uma desgraçada. Bem sabes quanto êle me fez
sofrer. Eu te contei tudo... Ou melhor, não! não te contei tudo!.
Seus traços se alteravam, seus olhos tinham um brilho excessivo e a
expressão de indignado sofrimento comunicava uma beleza quase trágica à
sua fisionomia.
Raimundo disse com firmeza.
— Não ignoro o que sofreste por causa dele. Mas sei também que és cristã
e que és sua esposa. Esse homem vai morrer; deves estar ao lado dele para
tentar salvar-lhe a alma.
— Nunca!
— É teu dever, Paula! Ela repetiu:
— Nunca!
Seu rosto tornara-se rígido e desviava-se do olhar de Raimundo.
— Seja! Isso é com a tua consciência. Tens ainda duas ou três horas para
refletir. Espero que mudes de resolução, pois mais tarde talvez te
arrependas.
A voz de Raimundo era nítida e severa, e a expressão de seu rosto
acentuava a reprovação contida em suas palavras. Deu um passo para a
porta, a fim de retirar-se. Paula pôs-lhe a mão no ombro:
— Não vás assim, Raimundo! Eu queria satisfazer o teu desejo, mas o que
pedes é demais. Tornar a vê-lo, agora que o havia eliminado da minha
vida!
— Um laço uniu-te a êle para sempre. Teu lugar é lá, ao lado dele.
Coragem, Paula.
Tomou-lhe a mão e acrescentou em tom suave e compassivo:
— Vai, Paula. Cumpre o teu dever. Eu rezarei por ti.
A mão de Paula tremeu na dele. Viu os ombros da moça estremecerem sob o
veludo do vestido azul turqueza. Seus olhos ardentes de febre fixaram-se
em Raimundo.
— Queres que eu vá, Raimundo?
Êle fez um gesto de protesto, largando a mão de Paula:
— Não se trata da minha vontade; é uma questão de consciência. Eu disse:
"Deves ir para junto de teu marido que está à morte". Mas não tenho o
direito de te impor isso.
Ela balbuciou:
— Sim... sim...
Curvou a cabeça, como outrora, quando Raimundo lhe fazia uma censura
amiga. Seus lábios tinham a mesma ruga de desgosto e as pálpebras muito
brancas se abaixaram docemente sobre os olhos que imploravam: "Perdoa".
Foi uma visão do passado, naquele mesmo quadro que Raimundo vira tantas
vezes, outrora, sentado ao lado da noiva terna e sorridente. Uma emoção
melancólica insinuou-se em seu coração e fez desaparecer de seu rosto a
frieza antes manifestada. Envolveu num longo olhar enternecido aquela que
lhe recordava as doces horas passadas de um amor sincero e protetor. Não
se lembrava mais do sofrimento que ela lhe causara, do seu amor-próprio
ferido. Ou antes, lembrava-se com uma espécie de indulgência,
involuntariamente um tanto desdenhosa, por aquela fraqueza de que podia
agora medir toda a extensão. Paula não era mais capaz de despertar-lhe
outra emoção a não ser a recordação. De há muito, a mágoa desaparecera,
do mesmo modo que o amor.
— Vai para o lado dele, Paula, disse com doçura. Mais tarde me darás
razão de te dar esse conselho, quando sentires a consciência em paz após
os momentos penosos por que terás de passar.
Houve um longo silêncio entre eles. De um vaso, as rosas se esfolharam e
as pétalas caíram sobre o papel frio de uma revista, com leve ruido. O
pequeno lustre antigo expandia sua vaga claridade sobre os dois primos,
um em frente do outro, êle calmo, olhando-a com compaixão, ela hesitante,
ansiosa, tomada de um tremor que perpassava pelo veludo do vestido. Por
fim ela disse, numa voz abafada: — Pois bem, irei, já que achas que é meu
dever. Tu és a luz que me guia neste caos moral, na incerteza em que me
debato. Em quem poderei ter confiança senão em ti, que me perdoaste, que
és tão nobre e tens tanta energia e tanta bondade na alma? Tu aclaras o
meu caminho, tu me sustens com o teu exemplo e o teu conselho. Eu o
aceito, Raimundo, e irei custe o que custar.
— Muito bem, Paula. Não esqueças que esse homem, por mais vil que seja,
tem uma alma que é preciso salvar. Agora vai. Só tens tempo de te
preparar.
Segurou a mão que ela lhe estendia. Ela pediu:
— Beija-me, para me dar coragem.
Os lábios de Raimundo apenas afloraram a fronte que se curvou para êle.
Disse com doçura:
— Adeus, Paula. Não esqueças de rezar. É a Deus que deves pedir que te
ilumine e te dê a força de que necessitas.
Saiu. Paula ficou só na pequena sala. O veludo azul de seu vestido
espalhava reflexos sob a claridade do lustre. Brilhos escapavam dos anéis
em seus dedos que se entrelaçavam, trêmulos, num gesto de angústia.
Murmurou:
"Meu amor... meu amor..."
Duas lágrimas correram-lhe ao longo das faces levemente rosadas. Paula
olhou longamente em torno de si, para aqueles móveis, aqueles objetos,
testemunhas de um amor desaparecido, e que um dia tinham ouvido Paula
Daubrey responder à interrogação de seu noivo: "Não, não te amo como tu o
querias". Curvou a cabeça, pensando com desespero: "Ah, louca, louca"!

A morte de Fernando veio retardar de uns quinze dias o pedido de


casamento que os pais de Raimundo dirigiram ao juiz Daubrey. Este não
procurou disfarçar sua satisfação. Se as idéias de Raimundo Evennes
divergiram das suas, este contratempo era grandemente compensado pela
perspectiva do belo futuro que esperava o jovem e já notável advogado.
Ora, êle não podia dar dote a Ariana. Era portanto um ótimo partido para
ela, e felicitou a filha pela conquista que fizera.
— Sempre duvidei que o conseguisse. Só mesmo uma sereia como tu era capaz
de vencer o altivo Evennes. A única coisa que me aborrece é que êle vai
logo te converter às suas idéias.
Ao juiz não passara despercebida a mudança que se operava na filha.
Em Leysins, vira com estupefação Ariana falar de Deus a Fernando, ampará-
lo no pavor extremo das horas derradeiras com frases de consolação
provindas da mais pura fonte evangélica, enquanto Paula se mantinha de
lado, fria e constrangida. Quando, mais tarde, lhe deu a entender a sua
surpreza, ela respondeu simplesmente:
— Sim, de fato sou cristã, como minha mãe o era e como o senhor mesmo já
foi.
— Mas como... Desde quando?...
— Há já alguns meses. Como consegui isso? Pela reflexão, o estudo, o
contacto com almas nobres, e por uma graça misericordiosa que me
transformou.
O juiz, com leve ar de mofa:
— Acrescenta ainda: por amor a Evennes. Torna-se mais compreensível,
filha.
Ela disse com altiva tranqüilidade:
— Eu já esperava esse juizo. Outros pensarão do mesmo modo vendo-me
partilhar das crenças de Raimundo. Não procurarei convencê-los de seu
engano. Nem a si. Lamento muito, mas afinal a mim me basta que meu noivo
esteja bem certo da minha sinceridade.
Devido ao luto dos Daubrey, o jantar de noivado se realizou dois dias
mais tarde, na intimidade. A sra. Berta e sua filha não estiveram
presentes. Ignoravam mesmo o acontecimento. Paula, de volta de Leysins,
ficara em Lyon em casa de um parente, onde sua mãe a fora encontrar.
Estando próxima agora a sua volta, a sra. Evennes evitara comunicar-lhe o
noivado, certa do desgosto que iria causar a Paula, cujo motivo de pesar
adivinhava.
Paula apareceu uma tarde no gabinete do primo, no momento em que este se
preparava para ir ao encontro de Ariana em casa dos pais.
Paula trazia um luto elegante que assentava muito bem em sua loura
beleza. Raimundo indagou de sua saúde, e da de sua mãe. Ela respondeu com
brevidade e em seguida lhe disse que viera consultá-lo a respeito de
desinteligências que tivera com o juiz Daubrey.
Raimundo interrompeu-a:
— Perdoa, cara Paula, mas peço-te que vás consultar a dra. Landier, que
tratou já do teu processo de separação e com quem me disseste ter ficado
satisfeita. Quanto a mim, não me é possível colocar-me entre ti e o juiz.
Ela perguntou surpresa:
— Porque?
Êle hesitou, no momento de pronunciar as palavras que iriam romper as
últimas esperanças de Paula.
Êle bem sabia do segredo daquela que o havia outrora rechassado e agora
de novo o amava e tentava reconquistá-lo. Sua viuvez acabava de destruir
o obstáculo que os separava. Podia ter esperanças agora e tentar a luta
contra Ariana. Seus olhos mostravam o olhar terno e submisso da Paula de
antigamente, com um brilho de paixão que então não possuíam. Havia
suprimido a pintura, sabendo que Raimundo não gostava, e seu rosto um
pouco cansado, emagrecido, tinha ainda um encanto fino, atraente.
Mas a ilusão morrera para sempre no coração de Raimundo, que dela se
tinha alimentado por muitos anos. Êle sentia que, mesmo que seu coração
estivesse livre de qualquer vínculo, só teria conservado por Paula essa
mesma piedade afetuosa, e nada mais.
Ela repetiu, vendo-o hesitar:
— Porque?
— Porque estou noivo da filha dele.
Ela ficou muito vermelha, seus traços se alteraram e suas pálpebras
baixaram depressa para esconder a dor que viera refletir-se em seu olhar.
E disse, a voz um tanto alquebrada:
— Ah, sim!... Ariana!
Depois o sangue desapareceu de seu rosto. Os lábios ficaram muito brancos
e o busto esguio vacilou um pouco.
— Paula!
Levantou-se aterrado, crente de que ela estava passando mal. Segurou a
mão da moça. Logo em seguida as pálpebras se ergueram. Paula disse, muito
baixo:
— Não é nada... um leve mal-estar... Cansei-me muito em Lyon.
— Vou chamar mamãe. Não é mais preciso, bem vês. Já passou.
Ergueu-se e ficou em pé, apoiando-se ao braço de Raimundo. Naquele fim de
tarde primaveril, o dia que morria envolvia de leve claridade a mulher de
rosto esmaecido cujos olhos se desviavam para não encontrar os de
Raimundo.
—Desculpa vir incomodar-te. Agradeço-te o conselho; vou procurar a dra.
Landier...
Uma leve batida na porta interrompeu-a. Raimundo disse:
— Pode entrar.
A porta foi empurrada e a sra. Evennes entrou acompanhada de Ariana.
O rosto de Paula purpureou-se novamente. Recuou um pouco apoiando-se na
secretária de Raimundo. Este adiantou-se para Ariana e apertou a mão que
se lhe oferecia. O olhar de Ariana fixou-se em seguida na cunhada; não
exprimia nenhuma surpresa, somente compaixão.
A sra. Evennes dirigiu-se a Paula, que não se movia.
— Boa tarde, minha filha. Não sabíamos da tua volta. Como vai tua mãe?
Paula respondeu em tom seco distraídamente. Olhava para Ariana e
Raimundo. Sua mão mal tocou na de Ariana. Ajustou a capa com gesto
maquinal e disse no mesmo tom seco:
— Já vou. Tenho ainda muita coisa a fazer. Recebe meus votos de
felicidade, Raimundo... tu também, Ariana.
Despediu-se com uma espécie de pressa. A sra. Evennes disse ao filho, que
ia acompanhar Paula.
— Não, fica. Eu a acompanho, tenho que lhe falar.
Quando a porta tornou a fechar-se atrás delas, Ariana murmurou:
— Coitada de Paula!
Evennes fitou-a. A luz declinante aclarava-lhe agora os cabelos
castanhos, a brancura da face, os olhos em que boiava uma terna piedade
feminina.
Ariana acrescentou:
— Que felicidade ela perdeu!
Inclinou um pouco a cabeça sobre o ombro de Raimundo. Dois lábios
ardentes pousaram-lhe na face.
— Tenho pena de vê-la sofrer. Bem quisera evitá-lo. Mas não lamento ela
ter me abandonado... Ariana, meu amor, que maravilhosos reflexos de ouro
há em seu cabelo neste momento!
No portão do jardim, a sra. Evennes despedia-se de Paula. E disse,
apertando-lhe demoradamente a mão:
— Vem ver-me sempre. Precisamos conversar. Precisas dirigir melhor a tua
vida, minha filha.
Olhava para o rosto esmaecido, os olhos cansados, com olheiras. Paula fez
um gesto de indiferença:
— A minha vida! Oh, agora ela já está perdida, para sempre!
— Podes ainda aproveitá-la. Promete-me vir aqui mais vezes. À tardinha
estou sempre só. Promete-me, minha filha.
— Pois bem, virei para lhe fazer a vontade. A senhora sempre foi boa para
mim, mau grado os meus defeitos. E depois... sim, sua força. Eu precisava
de uma mãe como a senhora. A minha fez a minha infelicidade.
Estremeceu um pouco e murmurou dolorosamente:
— Minha pobre mãe, é a ti que devo este martírio!
Raimundo e Ariana, após uma temporada de verão na Noruega, foram passar o
mês de setembro nos Pinheirais. Raimundo queria entrar em contacto com a
gente do lugar, da qual se tornara de certo modo o senhorio e usar o
prestígio que a sua situação lhe conferia para exercer influência moral
sobre os espíritos em geral desencaminhados. Pois, por mais apaixonado
que estivesse por Ariana, não era homem que esquecesse seu dever, no
egoismo comum aos amantes, e a jovem esposa mostrava-se tão respeitosa e
orgulhosa da superioridade moral do marido que, se fosse preciso, ela
ainda mais o encorajaria nessa senda.
Uma tarde Raimundo apareceu no pequeno terraço, em frente ao Penhasco do
Inferno, onde Ariana estava bordando. Ela gostava de todas as ocupações
femininas e dirigia seu lar de modo a merecer os elogios da sra. Evennes.
Segundo o desejo do marido, abandonara a advocacia. Raimundo concordava
em que uma mulher exerça uma função que lhe seja um meio de vida, mas,
uma vez casada, deve dedicar-se antes de tudo ao lar, já que o marido
prove às necessidades materiais. Ariana fizera-lhe sem hesitar o
sacrifício de sua independência e contentava-se em ser para ele a
companheira inteligente e compreensiva que seu forte temperamento exigia.
Êle foi sentar-se ao lado dela e estendeu-lhe uma carta aberta.
— É de minha mãe. Diz que Paula não está longe de seguir os seus
conselhos e de tornar a casar-se breve. O dr. Borel gosta dela, parece, e
ela também está disposta a aceitá-lo.
— Borel é um senhor distinto, sério, não muito sentimental, mas bondoso e
correto. Saberá dirigir a esposa. Creio que Paula não será infeliz com
êle. Talvez até consiga amá-lo um dia. Sua natureza não é muito profunda
e decerto logo se consolará ao ver-se esposa de um médico considerado e
com um belo futuro.
— Assim o espero. Mamãe felizmente pôde tomar a si a conduta dessa alma.
— Como fez comigo.
— Oh, tu, Ariana, vais pela mesma trilha. Hás de tornar-te igual a ela.
— É o que desejo.
A luz daquela tarde tinha já a doçura das claridades do outono. Pelo azul
esmaecido do céu passeavam nuvens semelhantes a brancas rendas. Um aroma
de resina misturava-se à úmida frescura que subia da vertente.
Ariana descansou a fronte no ombro do marido e disse com fervor:
— Tua alma e a dela são duas almas de luz belas e fortes. Atraem os
fracos pára reerguê-los, para comunicar-lhes um pouco do seu calor
divino, esclarecê-los com a luz da lâmpada ardente que trazem em si.
Interrompeu-se, encostando a fronte na face de Raimundo. Um grande
frêmito de alegria a percorreu. E disse baixinho:
— Eu tinha tanto medo, de noite! Mas tu vieste; conheci o teu Deus e
acreditei nele. Agora tudo é luminoso diante de mim.
Calou-se um instante. Seu rosto fremia de encontro ao de Raimundo. E ela
repetiu lentamente, arrebatada de felicidade:
— Tu vieste.
Fim
??
??
??
??
M. Delly - Foi o Destino - La Lampe Ardente
2
Digitalização e correção: Zaira fevereiro de 2008
Atenção: Português falado e escrito em 1954 no Brasil.

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