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; SANTOS,
J.B. (org.). Teorias lingüísticas:
problemáticas contemporâneas.
Uberlândia: UFU, 2003.
1. Da lingüística do enunciado à lingüística da enunciação
Em seu livro História e Lingüística, Régine Robin(1) analisa as mudanças
ocorridas no campo dos estudos da linguagem, no final da década de 1960, com a
passagem de uma “lingüística da frase” para uma “lingüística do discurso”. Segundo a
autora, a lingüística do discurso pretendeu ultrapassar a análise do enunciado e fazer
estourar o espartilho que apertava o objeto da Lingüística (p. 88), levando-a a
interessar-se por novos objetos - o universo conotativo da linguagem, o jogo das
implicações e das pressuposições, o campo retórico-estilístico, as estratégias dos
argumentos do discurso, etc. – e, conseqüentemente, desenvolvendo novas formas de
encarar a configuração dos saberes. Essa mudança no olhar o seu objeto, fez que a
Lingüística vivesse a hora das revisões fundamentais (p.88), que ela revisitasse a
oposição entre a langue e a parole e que retomasse a discussão sobre as exclusões da
Lingüística saussureana. Essas mudanças tornaram possível o desenvolvimento de uma
teoria da enunciação e provocaram o aparecimento de uma Lingüística que se ocupará
do discurso. No entanto, isso não se deu de forma abrupta, nem, muito menos, tranqüila:
a enunciação ora foi pensada em termos de processo, ora em termos de marcas em uma
enunciação enunciada – e, assim, os pesquisadores hesitaram entre uma concepção
muito ampla e uma concepção muito restritiva dos elementos que haviam sido deixados
em suspenso a partir das propostas de Saussure (o sujeito, a História, o discurso). A
importância e a centralidade que a enunciação assume no interior da “lingüística do
discurso” evidencia que ela não é um conceito já absolutamente consolidado, mas o
signo de um problema.
2. A lingüística do discurso
Vários autores, como Maingueneau (1976)(2), propõem que os formalistas russos
foram precursores da lingüística do discurso, ressaltando, entretanto, que a perspectiva
imanentista impediu que suas pesquisas fizessem avançar a discussão sobre a
enunciação. Nos anos 1960, duas direções estavam desenhadas e delinearam o futuro
dos trabalhos sobre o discurso: de um lado, o estruturalismo americano possibilitou a
ampliação do escopo das abordagens e permitiu a análise das relações transfrásticas; de
outro lado, os trabalhos de Benveniste e de Jakobson trouxeram as questões ligadas à
(1)
Robin, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.
(2)
Maingueneau, Dominique. Iniciação aos métodos de análise do discurso. Paris: Hachette, 1976.
comunicação para o interior das análises lingüísticas. A preocupação com a enunciação
separa, portanto, uma análise do discurso européia de uma linha americana e, segundo
Orlandi (1986, p. 16)(3),
essas duas direções vão marcar duas maneiras diferentes de pensar a
teoria do discurso: uma que a entende como a extensão da Lingüística
(que corresponderia à perspectiva americana) e outra que considera o
enveredar para a vertente do discurso o sintoma de uma crise interna
da Lingüística, principalmente na área da semântica. Assim, a
tendência européia , partindo de ‘uma relação necessária entre o dizer
e as condições de produção desse dizer’ coloca a exterioridade como
marca fundamental e exige um deslocamento teórico, de caráter
conflituoso, que vai recorrer a conceitos exteriores ao domínio de uma
lingüística imanente para dar conta da análise de unidades mais
complexas da linguagem.
(3)
Orlandi, E. A análise do discurso: algumas observações. Em: DELTA, vol. 2, nº 1, 1986.
específico e as redes semânticas que se estabelecem entre os vocábulos).
Da mesma maneira, não se trata do nível propriamente discursivo, sua
estrutura, sua retórica, os mecanismos de enunciação4.
4
Segundo Robin, há, evidentemente, exceções. Alguns historiadores não trabalharam com séries temáticas, mas com uma tipologia de texto; neles a
estrutura lingüística do texto é levada em consideração: é pela mudança do tipo de discurso que o pesquisador vai inferir as grandes rupturas da sensibilidade de
uma certa época. Vovelle, por exemplo, analisou testamentos e verificou que na época barroca eles eram pomposos, o sujeito fazia súplicas aos santos de devoção.
A partir de 1760 houve uma laicização (“despovoou-se o panteão dos intercessores”) e uma individualização do discurso que apontam para uma
“descristianização” da idéia da morte expressa discursivamente nos testamentos.
(5)
MALDIDIER, D. Elementos para uma história da AD na França. Em: Orlandi, E. (org.). Gestos de
Leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
6
Trata-se do artigo “Lexicologia e análise de enunciado”, traduzido em Orlandi, E. (org). Gestos de
Leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
Esse pano de fundo evidencia que Marxismo e Lingüística presidiram o
nascimento da Análise do Discurso, na França do final dos anos sessenta. No entanto, os
dois fundadores enxergavam de maneira distinta essa relação. Para Dubois, a AD seria
uma continuação natural da Lingüística; tratava-se de colocar um modelo sociológico
para estender a análise lingüística à enunciação e o dispositivo de análise tinha como
objetivo o controle das variantes de um corpus contrastivo. Para Pêcheux, tratava-se de
criar um novo campo de investigação e suas preocupações eram a epistemologia, o
“corte saussureano”, a reformulação da parole. Ao propor esse novo campo do saber,
ele interroga a metodologia, propõe um dispositivo analítico a fim de integrar a análise
das condições de possibilidades do discurso, dos processos discursivos. O novo campo
toma um novo objeto (que não é o dado empírico, que é diferente de “enunciado”,
diferente de “texto”): o discurso, cuja espessura opera a articulação entre o lingüístico e
o histórico.
Uma outra grande diferença entre as duas propostas diz respeito ao conceito de
enunciação. Em Dubois há a assunção explícita da categoria da enunciação, a partir dos
trabalhos de Benveniste e de Jakobson, o que determinava a incorporação do conceito
de “sujeito do discurso” por uma via idealista, sem problematização. Já Pêcheux,
adotando a base marxista, pela perspectiva de Althusser, propõe uma teoria não
subjetiva do discurso7.
No panorama histórico posterior à fundação, mudanças políticas e
epistemológicas8 levaram a “AD francesa” a uma incessante reconstrução e retificação.
Inquieto, Pêcheux re-elaborou suas propostas, tendo como base uma reflexão sobre os
contextos epistemológicos e as “filosofias espontâneas” subjacentes à Lingüística9.
7
A partir da clássica discussão althusseriana sobre os aparelhos ideológicos do Estado, Pêcheux
desenvolve uma teoria do sujeito e da sua interpelação pela ideologia. Não há sujeitos individuais, no
discurso, há “formas-sujeito” produzidas pelo assujeitamento à ideologia.
8
Principalmente a problematização do conceito de “história”, “memória”, “interpretação” (com Courtine,
principalmente) e a aproximação com J. Authier-Revuz (cujo trabalho permite pensar as relações entre o
intradiscurso e o interdiscurso).
9
Há vários textos de Michel Pêcheux nos quais ele discute as filiações, as vizinhanças, os contextos
epistemológicos da Análise do Discurso. Traduzidos para o português há, por exemplo, os seguintes
textos: “Os contextos epistemológicos da Análise do Discurso”; “Há uma via para a Lingüística fora do
logicismo e do sociologismo?”; “A desconstrução das teorias lingüísticas”.
pesquisadores colocarem-se como tarefa a problematização permanente das suas bases
epistemológicas10. Dessa problematização permanente decorre que o objeto da AD – o
discurso – seja um lugar de enfrentamentos teórico - metodológicos.
Quatro nomes, fundamentalmente, estão no horizonte da AD derivada de
Pêcheux e vão influenciar suas propostas: Althusser com sua releitura das teses
marxistas; Foucault com a noção de formação discursiva, da qual derivam vários
outros conceitos (interdiscurso; memória discursiva; práticas discursivas; etc.); Lacan e
sua leitura das teses de Freud sobre o inconsciente, com a formulação de que ele é
estruturado por uma linguagem; Bakhtin e o fundamento dialógico da linguagem, que
leva a AD a tratar da heterogeneidade constitutiva do discurso.
A natureza complexa do objeto discurso – no qual confluem a língua, o sujeito, a
história – exigiu que Michel Pêcheux propusesse a constituição da AD como um campo
de articulação entre diferentes teorias, um campo transdisciplinar. No artigo escrito em
conjunto com C. Fuchs, publicado em 197511, Pêcheux apresenta o quadro
epistemológico geral da AD que, segundo ele,
10
Um balanço dessa construção pode ser lida no texto escrito por Pêcheux em 1983 e traduzido para o
português: PÊCHEUX, M. AAD: três épocas. In: GADET, F. e HAK, F. (org.). Por uma análise
automática do discurso. Uma introdução à obra de M. Pêcheux. Campinas: Pontes, 1990.
11
PÊCHEUX, M. & FUCHS, C. Mises aux points et perspectives à propos de l’AAD. In: Langages 37.
Paris: Larousse, março de 1975.
conceitos, fazendo e refazendo rumos12. Do mesmo modo, ao levar para a Análise do
Discurso idéias elaboradas por esses pensadores, Michel Pêcheux não operou apenas
uma transferência de conceitos fabricados em outros lugares; ao contrário, ele os
interpretou e re-elaborou, criando diferenças13.
12
Analisando as relações entre o fazer da ciência e os movimentos históricos, afirma de Certeau (1975, p.
72): aqueles que acreditam que a ciência é ‘autônoma’ (...) consideram como não pertinente a análise
das determinações sociais, e como estranhas ou acessórias as imposições que ela desvela. Essas
imposições não são acidentais. Elas fazem parte da pesquisa. Bem longe de representarem a intromissão
de um estranho no Santo dos Santos da vida intelectual, formam a textura dos procedimentos científicos.
13
Uma discussão mais extendida dessas aproximações, distanciamentos e re-elaborações operadas por
Pêcheux pode ser lida em GREGOLIN, M. R. O sentido e suas movências. In:___ (org). Análise do
Discurso: entornos do sentido. São Paulo, Araraquara: Acadêmica/FCL-UNESP, 2001.
A partir dessas idéias althusserianas, Pêcheux elaborou um conceito de
condições de produção do discurso a partir das relações entre língua e ideologia. Para
ele, há um pré-asserido que se impõe ao sujeito e vai permitir o processo de produção
do discurso. É a tomada de posição do sujeito falante em relação às representações de
que é suporte. O sujeito não é considerado como um ser individual, que produz
discursos com liberdade: ele tem a ilusão de ser o dono do seu discurso, mas é apenas
um efeito do assujeitamento ideológico. O discurso é construído sobre um inasserido,
um pré-construído (um já-lá), que remete ao que todos sabem, aos conteúdos já
colocados para o sujeito universal, aos conteúdos estabelecidos para a memória
discursiva.
14
Foucault já analisara a constituição do saber sobre a medicina e a loucura (A História da Loucura e O
Nascimento da Clínica) e em As Palavras e as Coisas ele analisara a mudança dos saberes da episteme
clássica para a episteme moderna (passagem do século XVIII ao século XIX) com relação aos temas da
vida, da linguagem e do trabalho.
15
Essas propostas de Foucault foram criticadas pelos marxistas althusserianos e motivou a recusa inicial
de Pêcheux em tomar os conceitos foucaultianos. Para os marxistas, a análise de Foucault é feita em
termos de justaposição: ele justapõe elementos da infra-estrutura (processo econômico, trabalho
industrial), que colocam em jogo elementos de classe (processos sociais), elementos da superestrutura
jurídica (regras da jurisprudência), elementos da superestrutura ideológica (sistemas de normas, formas
de comportamento). Como se hierarquizam esses diversos níveis para funcionarem na prática discursiva?
Perguntavam os althusserianos. Evidentemente, Foucault não ficará indiferente a essas críticas, e sua obra
posterior irá voltar-se para a discussão dessa problemática apontada pelos althusserianos e a muitas
outras.
16
Foucault, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de A Sampaio. São Paulo: Ed. Loyola, 1996.
inteiramente (Foucault, 1986, p.32). Foucault propõe buscar as regularidades para
descrever jogos de relações entre enunciados, entre grupos de enunciados, entre
acontecimentos, pois o enunciado, de um lado é um gesto; de outro liga-se a uma
memória, tem uma materialidade; é único mas está aberto à repetição e se liga ao
passado e ao futuro. (1986, p.32)
Apesar de as idéias da Arqueologia do Saber estarem presentes na obra inicial de
Pêcheux17, as diferenças teóricas e ideológicas farão com que ele seja “recusado” por
algum tempo. Serão os trabalhos de J.J. Courtine, no início dos anos 80, que levarão
Foucault definitivamente para o grupo em torno de M. Pêcheux18. Em artigo no qual faz
um balanço dessa construção da análise do discurso fundada por Michel Pêcheux,
Courtine19 analisa as mudanças epistemológicas e sociais ocorridas a partir dos anos 80,
que levaram a AD à necessidade de profundas retificações. Para esse teórico, que foi um
integrante do grupo de estudos de Michel Pêcheux, as idéias de Foucault continuam
sendo fundamentais para os rumos da AD a ser feita atualmente. Segundo Courtine, as
pesquisas devem devolver à discursividade sua espessura histórica e isso só é possível
se elas descreverem a maneira como se entrecruzam historicamente regimes de práticas
e séries de enunciados, rearticulando o lingüístico e o histórico na direção apontada por
Michel Foucault.
21
BAKHTIN,M. (VOLOCHINOV) (1929/1997) Marxismo e filosofia da linguagem Trad. M. Lahud e
Yara F. Vieira. 8 ed. São Paulo, Hucitec.
22
Segundo Maldidier (1990), foi em 1968, em um artigo intitulado “Le mot, le dialogue, le roman”, que
Julia Kristeva introduziu Bakhtin na França. Essa primeira recepção concerne essencialmente a
literatura, o terreno da semiótica literária e das práticas significantes múltiplas. Os lingüistas puderam
ler, no nº 12 de Langages (preparado por Roland Barthes, 1968) um artigo de Bakhtin chamado “ O
enunciado no romance”. Nos anos 1980 começa um segundo período de descoberta de Bakhtin, marcada
pela multiplicação das traduções e dos estudos e a generalização das referências em todos os campos,
notadamente na lingüística. Um pandialogismo parece, então, se instalar, no qual as correntes as mais
diversas se apropriam dele. Remeto, para aprofundamento dessa questão, à leitura que Jacqueline
Authier propôs em DRLAV, 26 em 1982.
23
Se há um “descompasso” entre a produção bakhtiniana em russo e sua tradução na Europa dos anos 60,
no Brasil esse descompasso será ainda mais marcante. A ditadura militar não permitiu que sua obra aqui
circulasse antes da “abertura política” e ela só vai ser traduzida nos final dos setenta e início dos anos 80.
Como na Europa, num primeiro momento, Bakhtin será referência para os estudos literários. A
descoberta de Bakhtin pela lingüística brasileira ocorrerá a partir dos anos 90.
anular a dimensão própria da língua: opondo ao ‘sistema abstrato de formas
lingüísticas’ o ‘fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação e
dos enunciadores’, ele conduz à fusão da lingüística em uma vasta semiologia
(Maldidier, 1990). Pêcheux entendia que Saussure deveria ser considerado como o
inaugurador da ciência da linguagem e, por isso, em torno das propostas saussureanas
deveriam continuar a serem gestadas as grandes questões do formalismo e do sujeito, a
possibilidade de pensar a singularidade do sujeito na língua, assim como a articulação
entre a língua e o inconsciente. O ponto teórico fundamental, em torno do qual se
assentam as críticas de Pêcheux a Bakhtin, é o modelo bakhtiniano da
interindividualidade, que tem na sua base a idéia de interação sócio-comunicativa. Para
Pêcheux, a produção do sentido não pode ser pensada na esfera das relações
interindividuais; do mesmo modo, ela não pode ser tomada em relações sociais
pensadas como interação entre grupos humanos.
Apesar das ressalvas de Pêcheux, a partir dos anos 80, as propostas bakhtinianas
serão incorporadas pelo grupo. Essa incorporação virá através dos trabalhos de J.
Authier-Revuz e trará para a AD a idéia de heterogeneidade do discurso, indicando uma
via para a análise das relações entre o fio do discurso (intradiscurso) e o interdiscurso,
na análise das não-coincidências do dizer.
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