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George Steiner

A Ideia de Europa

Gradiva
Prefácio de José Manuel Durão Barroso

TRADUÇÃO: MARIA DE FÁTIMA ST. AUBYN

Paginação: rodapé – 55 páginas

gradiva

Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura


Especial da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo.
Contactos do Serviço:
Tel: 258 840 010
e-mail: leituraespecial@cm-viana-castelo.pt

Contracapa:

Começa assim...

«A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria


preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos
gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard
passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. [...]
Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores
essenciais da 'ideia de Europa.'»

... e termina assim este ensaio verdadeiramente admirável de George


Steiner:

«Com a queda do marxismo na tirania bárbara e na nulidade económica,


perdeu-se um grande sonho de — como Trotsky proclamou — o homem comum
seguir as pisadas de Aristóteles e Goethe. Liberto de uma ideologia
falida, o sonho pode, e deve, ser sonhado novamente. É porventura
apenas na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido
da vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam constituir-se
como base. É entre os filhos frequentemente cansados, divididos e
confundidos de Atenas e de Jerusalém que poderíamos regressar à
convicção de que 'a vida não reflectida' não é efectivamente digna de
ser vivida.»

ISBN 989-616-022-8
gradiva
9 789896 16022

GEORGE STEINER
A IDEIA DE EUROPA
Ensaio introdutório de Rob Riemen Prefácio de José Manuel Durão
Barroso
gradíva

Título original inglês: The Idea of Europe

© Nexus Publishers, 2004


«A cultura enquanto convite» © Rob Rienten
Tradução: Maria de Fátima St. Aubyn
Revisão do texto: Lídia Freitas
Capa: Multitipo — Artes Gráficas, L/"
Fotocomposição: Gradiva
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, L/'
Reservados os direitos para todo o mundo por:
Gradiva — Publicações, L/"
Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. — 1399-041 Lisboa Telefs. 21 397 40
67/8 — 21 397 13 57 — 21 395 34 70 Fax 21 395 34 71 — Email:
geral@gradiva.mail.pt URL: http://www.gradiva.pt l.'' edição: Setembro
de 2005 Depósito legal n." 231 231 600/2005
gradíva
Editor: Guilherme Valente
Visite-nos na Internet http://w\vvv.gradiva.pt
Prefácio

Cafés, nomes de ruas, as nossas raízes culturais profundas


em Atenas e Jerusalém: com o seu tom aparentemente ligeiro
mas assente em sólida erudição, George Steiner identifica a
essência da ideia de Europa. Nascido em Paris de pais
judeus austríacos, repartindo a sua vida pela Inglaterra e
pela Suíça, este grande intelectual — e esta palavra aqui
tem todo o seu sentido positivo — abre-nos os olhos para
novas formas de encarar o velho Continente.

Fiel à sua natureza de pensador itinerante, Steiner


«explica» a ideia de Europa a partir da escala humana, da
sua geografia, de filósofos, artistas e professores, sempre
em movimento, construindo passo a passo a nossa cultura
comum. E será por coincidência que dá eco às famosas
palavras de Jean Monnet sobre a construção da Europa «passo
a passo»? Porque, na

5
vastidão dos seus conhecimentos, na diversificação dos seus
interesses, no seu espírito crítico e nas suas
surpreendentes sínteses, George Steiner revela-se alguém
profundamente ligado à ideia de Europa.

Para um homem que uma vez se descreveu a si próprio como um


«anarquista platónico», não é surpreendente que considere a
matemática, juntamente com o pensamento e a música, uma das
três actividades que definem e dignificam homens e
mulheres. E para ele, a Europa tem-se distinguido nestes
três domínios, criando um precioso depósito de conhecimento
e beleza para toda a humanidade.

Pode a ideia de Europa sobreviver às atrocidades e ao


barbarismo, em que o continente mergulhou na primeira
metade do século xx? Talvez seja ainda cedo para o
descobrir. Mas George Steiner pensa que pelo menos vale a
pena tentar salvá-la e este curto mas intenso livro
representa um pequeno passo nessa jornada de
reabilitação.Reabilitação, relançamento, reconstrução... O
actual momento europeu, marcado pelo cepticismo e pela
descrença, suscita ansiedades e reflexões quanto ao
«projecto» ou ã «grande ideia» que poderá orientar uma (por
alguns) desejada regeneração da Europa. É aliás
interessante notar que esta conferência de Steiner apontava
já os sinais de desencanto que, mais recentemente, os
resultados negativos dos referendos sobre a Constituição
europeia, em França e na Holanda, vieram expressivamente
confirmar. E neste contexto surge o debate sobre o lugar da
cultura no «projecto europeu».

No processo político da integração europeia a cultura tem


tido, em regra geral, um papel bem secundário e por
contraditórias razões. O pragmatismo de uns aconselha, numa
perspectiva por vezes economicista, a não confundir a
primazia concedida ao mercado e aos bens e processos
materiais. O nacionalismo ou «identitarismo» de outros
recusa qualquer movimento de integração cultural que possa
sugerir uma diminuição de características nacionais ou
regionais, para não dizer étnicas.

E, contudo, é precisamente a cultura e a sua expressão em


termos de unidade na diversidade que nos candidata à
esperança quando pensamos no futuro da Europa. Ao
confrontarmo-nos com a pujança de outros continentes ou das
novas economias emergentes vemos que neste território ao
fim e ao cabo relativamente pequeno que é a Europa
encontramos recursos densamente distribuídos de
inteligência, de sensibilidade, de memória, de imaginação e
de criatividade. E até o pessimismo melancólico — tão
típico de tantos intelectuais europeus — revela um espírito
crítico e auto-crítico que a Europa deveria provavelmente
exportar em maior quantidade para sua vantagem e
seguramente de outros.

Quem diz cultura diz liberdade e diz diferença. A Europa


tem na liberdade e na diferença — de que o pluralismo
linguístico constitui privilegiada expressão — condição e
garantia da sua diversidade. Esta, longe de constituir um
fardo, representa um trunfo na idade da globalização. Ao
colocar tendencialmente em contacto cada um com todos, a
mundialização

torna cada vez mais necessária a capacidade de integrar uma


maior variedade dos nossos sistemas políticos, económicos e
culturais. A diversidade cultural da Europa dá-nos mais
condições e melhores oportunidades para lidar com esta
acrescida complexidade. Enquanto neste continente houver os
recursos de inteligência e de capacidade crítica de
pensadores como Steiner não vejo razões para o derrotismo
de tantos analistas e tantos políticos quanto ao projecto
de liberdade, diferença e cultura que é esta nossa Europa.

José Manuel Durão Barroso


A cultura enquanto convite
Décima Palestra Nexus

Quando Thomas Mann deixou a Europa, em 1938, para se


instalar nos Estados Unidos, observou, com toda a
seriedade, numa conferência de imprensa dada à sua chegada
a Nova Iorque: «Wo ich bin, ist die deutsche Kultur.^> Para
muitas pessoas, esta declaração constituiu mais uma
demonstração da mundialmente famosa arrogância do autor.
Todavia, o seu irmão, Heinrich Mann, soube-a interpretar
melhor. Nas suas memórias, Ein Zeitalter wird besichtigt,
inicia o capítulo «Mein Bruder» com o episódio atrás
mencionado, a que acrescenta: «Sabíamos agora o que o
Fausto de Goethe quis dizer, ao afirmar: 'Was du ererbt von
deinen Vãtern hast/Erwirb es um es zu besitzen.^'» As
palavras de Thomas Mann, segundo o seu irmão mais velho,
não foram uma expressão de arrogância, mas de um profundo
sentido de responsabilidade.

1 «Onde eu estou, está a cultura alemã.» (N. da T.) 2


«Aquilo que de teus pais herdaste/Merece-o para que o
possuas.» (N. do E.)

11

Se há alguém que, na esteira de Thomas Mann, granjeou o


direito de dizer: «Onde eu estou, está a cultura europeia»,
é George Steiner. E se ele fizesse esta declaração, esta
seria, do mesmo modo, não uma expressão de arrogância, mas
de um sentido de responsabilidade.

A décima Palestra Nexus constitui o prelúdio de uma série


de encontros organizados pelo Nexus Institute, nas vésperas
da Cimeira Intelectual a realizar durante a Presidência
Holandesa da União Europeia 2004, que se centrará na
questão de saber se a Europa continua ou não a ser uma boa
ideia e qual é realmente a importância e relevância
política do ideal europeu de civilização. O facto de George
Steiner, mais do que qualquer outra pessoa, estar à vontade
na cultura europeia — que abarca séculos e é essencialmente
cosmopolita — constituiria razão suficiente para o convidar
a proferir esta palestra.
Mas há outra razão, uma razão que está intimamente
relacionada com a história do próprio Nexus Institute. A
publicação da décima Palestra Nexus parece ser a
oportunidade perfeita para dizer mais ao leitor acerca
desta instituição.

II

Antes da criação do Nexus Institute em 1994, foi editado o


primeiro número da revista Nexus, em 1991. Esta revista
nunca teria visto a luz do dia se não fosse uma amizade: a
amizade entre o conhecido editor de Amesterdão Johan Polak
e eu próprio. As

12

nossas inúmeras conversas e cartas acerca da necessidade de


criar uma nova revista sempre se centraram num homem, num
livro e num.a outra revista. Esse homem era George Steiner,
o livro, o seu Language and Silence e a revista, European
Judaism. Johan era co-editor dessa revista, criada no final
da década de 1960. De quando em vez, o conselho editorial
internacional de European Judaism organizava uma
conferência. Em 1969, foi organizada uma dessas
conferências na cidade de Amesterdão, da qual Johan foi
anfitrião. Foi uma ocasião memorável, sobretudo devido à
comunicação inesquecível de um filósofo cultural de
quarenta anos, muito falado: George Steiner. A posição que
assumiu nesse dia foi tão simples quanto horrivelmente
verdadeira: «A Europa suicidou-se, ao matar os seus
judeus.» A destruição de seis milhões de judeus europeus, a
destruição do mundo de Mahler, Alban Berg, Hofmannsthal,
Broch, Kafka, Celan, Karl Kraus, Walter Benjamin — a lista
é infindável — foi também a destruição de Vesprit européen,
da ideia de Europa.Com a perda desta ideia, nada permaneceu
da Europa a não ser uma entidade sem cultura, sem alma, uma
entidade puramente geográfica e económica. Contudo, o
George Steiner que fez esta observação era também o homem
que prescindira de uma carreira ilustre nos Estados Unidos.
Depois da guerra, e após concluir os estudos, regressou à
Europa. Para não conceder a Hitler e aos seus simpatizantes
a última palavra, por lealdade para com uma ideia que nunca
deve morrer. Johan Polak nunca se esqueceu do que George
Steiner nos dissera naquele dia, em Amesterdão. Devo tê-lo
ouvido repetir uma centena de vezes: «George

13

Steiner tem razão. Culturalmente, a Europa do século xx


retrocedeu até à Idade Média. E, tal como os mosteiros de
então, é nosso dever preservar a herança cultural e
transmiti-la por todos os canais que tenhamos à nossa
disposição.» Isso explica a fabulosa biblioteca de Johan, a
sua editora e a sua livraria: Athenaeum, em Spui,
Amesterdão. Foi também por isso que a nossa revista Nexus
teve de ser criada: para servir a cultura europeia, o ideal
europeu de civilização — embora, enquanto veículo
transmissor de uma herança cultural, a Nexus nunca tenha
conseguido ser mais do que um pequeno canal.

III

Em 1934, Thomas Mann teve de redigir o obituário de um


homem que sempre fora como um pai para si: Sammi Eischer, o
seu editor húngaro judeu de Berlim, o homem que, em grande
medida, tornou possível a sua qualidade de autor. Mann
recordou a seguinte troca de palavras, durante o último
encontro que tivera com o homem idoso — já então muito
doente — vários meses antes. Eischer exprimia a sua opinião
acerca de um conhecimento mútuo:

— Kein Europãer, sagte er kopfschúttelnd.


— Kein Europàer, Herr Eischer, wieso denn nichts?
— Von groí?en humanen Ideen versteht er nichts.3

3 — Não é Europeu, disse, abanando a cabeça.


— Não é Europeu? Como assim, senhor Fischer?
— Ele não percebe nada das grandes ideias humanistas. (N.
do E.)

14

As grandes ideias humanistas. Isso é a cultura europeia.


Fora isso que Mann aprendera com o seu mestre, Goethe. E o
próprio Goethe, na sua autobiografia Dichtung und Wahrheit,
indica como data de nascimento do seu humanismo europeu: 25
de Outubro de 1518. Nesse dia, o estudioso e humanista
Ulrich von Hutten escreveu uma carta ao seu amigo Willibald
Pirkheimer na qual explicava que, embora fosse de origem
nobre, não desejava ser nobre sem o ter merecido: «A
nobreza de nascimento é puramente acidental e, por
conseguinte, insignificante para mim. Procuro noutro local
as fontes da nobreza, e bebo dessa nascente.» Aqui, uma vez
mais, podemos testemunhar o nascimento da nobilitas
literária: a verdadeira nobreza é a nobreza de espírito. As
artes, as humanidades, a filosofia e a teologia, a beleza —
cada uma delas existe para enobrecer o espírito, para
permitir à humanidade descobrir e reivindicar a posse da
sua forma mais elevada de dignidade. É a herança cultural,
as importantes obras de poetas e pensadores, artistas e
profetas, que uma pessoa tem de usar para a cultura animi
(a expressão é de Cícero), o cultivo da alma e do espírito
humanos — para que a pessoa possa ser mais do que aquilo
que também é: um animal. Na última página da sua obra
Lições de Mestres*, George Steiner resume a essência da
cultura e da educação liberal numa única frase: «A educação
liberal conduz-nos à dignitas da pessoa humana, ao alcance
do seu melhor eu.» Esta é a tradição do

4 As Lições dos Mestres, Lisboa, Gradiva, 2005. (N. da T.)

15
humanismo europeu em que ele, desde tenra idade, foi
educado pelo pai. Na qual ele próprio se tornou professor,
quando percebeu que tinha um dom: «Convidar os outros para
o significado.» Esta última expressão, «convidar os outros
para o significado», é a própria descrição de George
Steiner, e a mais profunda que conheço, para aquilo que
significa ser Professor de Humanidades.

IV

A obra de George Steiner pode ser entendida, entre outras


coisas, como um código moral intelectual:

O âmago de uma cultura são as suas obras clássicas— ou


seja, intemporais. São intemporais e imperecíveis porque o
seu significado transcende a morte. Nas palavras de
Hõlderlin: «Was bleibet aber, stiften die Dichter.5»

Característico das grandes obras é o facto de nos


questionarem, de exigirem uma reacção. O torso arcaico de
Apoio do famoso poema de Rilke diz-nos, sem margem para
dúvidas: «Du sollst dein Leben ãndern.6»

Não recuemos perante a dificuldade. Espinoza: «Todas as


coisas excelentes são tão difíceis quanto raras.»
Só os néscios ignoram a importância da tradição, do facto e
do conhecimento. Hõlderlin: «Wir sind nur Original, weil
wir nichts wissen.7»
5 «O que permanece, é fundado pelos Poetas.» (N. do E.)
6 «Deves mudar a tua vida.» (N. do E.)
7 «Só somos originais, porque não sabemos nada.» (H. do
E.)

16

Ser crítico significa ser capaz de fazer distinções.


Estar à vontade no mundo da cultura significa estar à
vontade em muitos mundos, muitas linguagens: estar à
vontade na história das ideias, na literatura, na música,
na arte. Requer erudição e a capacidade de ver as relações
existentes entre os vários mundos: o nexus.

Há uma relação entre linguagem e política, entre cultura e


sociedade. Para compreender os desenvolvimentos culturais,
para ver que ideias vigoram e quais as consequências que
terão, é indispensável uma reflexão filosófico-cultural.

É essencial ser elitista — mas no sentido original da


palavra: assumir responsabilidade pelo «melhor» do espírito
humano. Uma elite cultural deve ter responsabilidade pelo
conhecimento e preservação das ideias e dos valores mais
importantes, pelos clássicos, pelo significado das
palavras, pela nobreza do nosso espírito. Ser elitista,
como explicou Goethe, significa ser respeitador:
respeitador do divino, da natureza, dos nossos congéneres
seres humanos, e, assim, da nossa própria dignidade humana.
Resumindo numa única frase o que aprendi com a tradição
intelectual a que pertence George Steiner: o mundo da
cultura tem uma importância vital para a qualidade da vida
humana. Mas a cultura é também vulnerável. Não é por acaso
que uma ditadura silencia os seus poetas e pensadores e
impõe a censura. E, neste período de fascismo da
vulgaridade (nas palavras de Steiner), de censura do
mercado e de «economia do conhecimento», o conhecimento
cultural e a
17

reflexão filosófico-cultural estão a debilitar-se, ou mesmo


a tornar-se impossíveis, mais frequentemente do que nos
apercebemos.
V
O facto de Thomas Mann ter podido dizer «Wo ich bin, ist
die deutsche Kultur»8 a própria razão por que teve de
escrever Doktor Faustus, romance em que tentou mostrar como
o fascismo estava relacionado com a sua bem-amada cultura
alemã. O mesmo se aplica no caso de George Steiner. Uma vez
que ele, como ninguém, está á vontade na cultura europeia,
uma grande parte da sua obra, com início em Language and
Silence, é caracterizada por questões como: Porquê a
traição dos amanuenses.? Porquê a ligação inegável entre
esteticismo e barbaridade? Por que razão a educação liberal
não conseguiu impedir a tortura, os campos de morte, o
Holocausto? Não há necessidade de discutirmos, mais uma
vez, Heidegger e as suas tendências fascistas, ou o oficial
das SS que chegava a casa e tocava Schubert depois de mais
um dia de carnificina. Vemos, repetidamente, que nem o
conhecimento intelectual nem a educação ]
liberal oferece qualquer garantia de juízo moral cor-
recto, quanto mais uma ética melhor. Os espíritos
eruditos podem cultivar o niilismo e há inúmeros
intelectuais que, obcecados com conceitos abstractos como
«mundialismo» e «capitalismo», não hesitam
8«Onde eu estou, está a cultura alemã.» (N. do E.)
18

em legitimar a violência terrorista. Uma vez mais, não é


nada novo. Dostoievski descreveu-o em Os Possessos:
hipocrisia, corrupção intelectual, fascínio pela violência,
vício do poder e um conformismo infinito caracterizam
demasiados intelectuais.

Tudo isto é verdadeiro. Mas igualmente verdadeira é a longa


lista de poetas e pensadores que não caíram nas malhas
desta corrupção intelectual e que permaneceram leais às
suas obrigações morais para com o mundo do espírito. Para
referir apenas alguns: Thomas Mann, Osip e Nadezhda
Mandelstam, Arnold Schõnberg, Dietrich Bonhoefer, Iosif
Brodsky, Her-mann Broch, Albert Camus, Paul Celan, René
Char, Andrei Tarkovski, Václav Havei e o próprio George
Steiner. Steiner, contra a corrente, permaneceu fiel ao seu
próprio código moral intelectual, à sua vocação para
«convidar os outros para o significado», sem ceder ao
niilismo, ao populismo ou à politização.

Além disso, as próprias obras-primas da herança cultural


europeia testemunham a sua importância para a vida humana.
Qualquer pessoa que não tenha ainda experimentado o poder
da arte pode ver, no livro de Primo Levi, como ele reuniu
coragem para querer sobreviver a Auschwitz recordando-se do
Canto de Ulisses na Divina Comédia de Dante. Aleksander Wat
escreve em My Century que sentiu subitamente que conseguia
suportar a Prisão Lubyanka de Estaline, em Moscovo, quando,
numa manhã do início da Primavera, ouviu, à distância, um
fragmento da Paixão Segundo São Mateus, de Bach. Estes dois
exemplos bem conhecidos ilustram que, a existir algo — para
19

além do amor e da amizade — que possa conferir sentido à


vida, é a beleza da arte.

A cultura mais não é do que um convite, um convite ao


cultivo da nobreza de espírito. A cultura fala
discretamente: «Du sollst dein Leben ãndern.9» A sabedoria
que oferece é revelada, não por palavras, nas por actos.
Ser «culto» requer muito mais do que erudição e eloquência.
Mais do que tudo o resto, significa cortesia e respeito. A
cultura, como o amor, não possui uma capacidade para
obrigar. Não oferece garantias. E, contudo, a única
possibilidade de alcançar e proteger a nossa dignidade
humana é-nos oferecida pela cultura, pela educação liberal.
Os artistas e os intelectuais não deviam ser reis, não
deviam sequer ambicionar ser reis ou fazer parte de uma
elite de poder. Mas uma sociedade que ignora o
enobrecimento do espírito, uma sociedade que não cultiva as
grandes ideias humanistas, acabará, novamente, na violência
e na autodestruição.

VI

Bernard de Chartres, filósofo e monge do século xii,


deixou-nos uma das mais belas descrições da relação
existente entre alunos e respectivos mestres: «Anões
empoleirados nos ombros de gigantes.»

Empoleirando-se nos ombros dos gigantes da tradição


humanista europeia, o Nexus Institute procura olhar para a
frente, e para trás e, assim, ser tão eli-
9«Deves mudar a tua vida.» (N. do E.)
20

tista como os gigantes sobre cujos ombros se empoleira. Ou


seja: aceitar a responsabilidade pela existência continuada
do melhor da cultura europeia, respeitar o seu código moral
intelectual, preservar um ideal de civilização: a Ideia de
Europa.

Rob Riemen Director fundador do Nexus Institute


21
A Ideia de Europa

É para mim um enorme privilégio estar de volta ao Nexus


Institute: esta não é a minha primeira visita. Este
instituto tornou-se um dos centros de diálogo europeu e
europeu transatlântico, de discussão, de questões que
ultrapassam em muito a dimensão política. Abarca questões
filosóficas, estéticas, musicais e artísticas. O instituto
ocupa agora um lugar único no mapa da consciência europeia
e transformou Tilburg naquilo que a expressão francesa
corrente e muito poderosa designa como lieu de Ia mémoire,
mas muito mais ainda num local do futuro, un lieu de
Vavenir. É verdadeiramente um privilégio proferir a Décima
Palestra Nexus.

As hastes dos pára-raios têm de ter ligação à terra. Mesmo


as ideias mais abstractas, especulativas, têm de estar
ancoradas na realidade, na substância das coisas. Como é
que isso se aplica, então, à «ideia de Europa»?
25

'
A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da
cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de
Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos
cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus
passeios concentrados, aos balcões de Palermo.Não há cafés
antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da
Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que
estiveram na moda, no século xviii. Nenhuns na América do
Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães.
Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos
marcadores essenciais da «ideia de Europa».
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates
intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou
metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto
a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de
reconhecimento político ou artístico-literário e presença
programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá
com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar
xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o
dia. É o clube dos espirituosos e a posterestante dos sem-
abrigo. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na
Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de
oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés
principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram
a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas
adversárias de estética e economia política, de psicanálise
e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus,
Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar.
16

a que Stammtisch tomar lugar. Danton e Robespierre


encontraram-se uma última vez no Procope. Quando as luzes
se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurès foi
assassinado num café. Num café de Genebra, Lenine escreveu
o seu tratado sobre empiriocriticismo e jogou xadrez com
Trotsky.
Note-se as diferenças ontológicas. Um pub inglês e um bar
irlandês têm a sua própria aura e mitologias. O que seria
da literatura irlandesa sem os bares de Dublin? Onde, a não
existir o Museum Tavern, teria o Dr. Watson encontrado
Sherlock Holmes.' Mas estes estabelecimentos não são cafés.
Não têm mesas de xadrez, não há jornais à disposição dos
clientes, nos seus suportes próprios. Só muito recentemente
o próprio café se tornou hábito público na Grã-Bretanha, e
mantém o seu halo italiano. O bar americano desempenha um
papel vital na literatura americana e em Eros, no carisma
icónico de Scott Eitzgerald e Humphrey Bogart. A história
do jazz é inseparável dele. Mas o bar americano é um
santuário de luzes desmaiadas, muitas vezes de escuridão.
Vibra com música, muitas vezes ensurdecedora. A sua
sociologia e o seu tecido psicológico são permeados pela
sexualidade, pela presença — desejada, sonhada ou real— de
mulheres. Ninguém redige tomos fenomenológicos à mesa de um
bar americano (cf. Sartre). As bebidas têm de ser
renovadas, se o cliente quiser continuar a ser desejado. Há
«seguranças» que expulsam os indesejáveis. Cada uma destas
características define uma ética radicalmente diferente
daquela do Café Central ou do Deux Magots ou do Florian.
27

«Haverá mitologia enquanto existirem pedintes», declarou


Walter Benjamin, um connaisseur apaixonado e peregrino de
cafés. Enquanto existirem cafetarias, a «ideia de Europa»
terá conteúdo.
A Europa foi e é percorrida a pé. Isto é fundamental. A
cartografia da Europa é determinada pelas capacidades,
pelos horizontes percepcionados dos pés humanos. Os homens
e as mulheres europeus percorreram a pé os seus mapas, de
lugarejo em lugarejo, de aldeia em aldeia, de cidade em
cidade. O mais das vezes, as distâncias têm uma escala
humana, podem ser dominadas pelo viajante que se desloque a
pé, pelo peregrino até Compostela, pelo promeneur, seja ele
solitaire ou gregário. Há extensões de terreno árido,
proibitivo; há pântanos; os alpes elevam-se. Mas nada disto
constitui um obstáculo intransponível. Não há Saras,
Badlands, tundras inultrapassáveis. As passagens entre
montanhas têm abrigos como os parques têm bancos. Os
Holzwege de Heidegger atravessam a mais tenebrosa das
florestas. A Europa não tem um Vale da Morte, uma Amazónia,
um outback inacessível ao viajante.
Este facto determina a existência de uma relação essencial
entre a humanidade europeia e a sua paisagem.
Metaforicamente, mas também materialmente, essa paisagem
foi moldada, humanizada, por pés e mãos. Como em nenhuma
outra parte do globo, as costas, os campos, as florestas e
os montes da Europa, de La Coruna a S. Petersburgo, de
Estocolmo a Messina, tomaram forma, não tanto devido ao
tempo geológico como ao tempo histórico-humano.
28

Na ponta do glaciar está sentado Manfred'°. Chateau-briand


fala com paixão dos promontórios rochosos. Os nossos acres,
encontrem-se eles cobertos de neve ou no zénite amarelo do
Verão, são aqueles vividos por Bruegel, Monet ou Van Gogh.
Os bosques mais sombrios têm ninfas ou fadas, ogres
literatos ou eremitas pitorescos. O viajante parece nunca
estar completamente fora do alcance dos sinos da aldeia
mais próxima. Desde tempos imemoriais, os rios têm vaus,
vaus usados também por bois",«Oxfords», e pontes sobre as
quais dançar, como em Avinhão. As belezas da Europa são
inextricavelmente inseparáveis da patina do tempo
humanizado.
Uma vez mais, a diferença em relação à América do Norte,
para não falar de África e da Austrália, é radical. Não é
possível ir a pé de uma cidade americana a outra. Os
desertos do interior australiano, do sudoeste americano, os
«grandes bosques» dos estados do Pacífico ou do Alasca, são
praticamente intransponíveis. A magnificência do Grand
Canyon, dos pântanos da Florida e da Rocha de Ayer na
vastidão australiana é de uma dinâmica tectónica,
geológica, quase ameaçadoramente irrelevante para o homem.
Daí o sentimento, muitas vezes expresso por turistas do
Novo Mundo ou down under na Europa, de que as paisagens
europeias são manicuradas, de
10 Referência a «Manfred», poema dramático de Lord Byron.
(N. da T.)
11 Em inglês, «vaus» e «bois» dizem-se, respectivamente,
fords e oxen. Daí, oxford. (N. da T.j
29

que os seus horizontes sufocam. Daí o sentimento de que os


«grandes céus» americanos, sul-africanos e australianos são
desconhecidos na Europa. Para um olhar americano, até as
nuvens europeias podem parecer domesticadas. Estão povoadas
de divindades antigas, envoltas em roupagens de Tiepolo.
Os componentes integrais do pensamento e da sensibilidade
europeus são, no sentido radical da palavra, pedestres. A
sua cadência e sequência são as do caminhante. Na filosofia
e na retórica gregas, os peripatéticos eram, literalmente,
aqueles que se deslocavam a pé, de polis em polis, e cujos
ensinamentos eram itinerantes. Nas convenções métricas e
poéticas ocidentais, o «pé», o «ritmo», o enjambement entre
versos ou estâncias recordam-nos a intimidade próxima
existente entre o corpo humano ao percorrer a terra e as
artes da imaginação. Grande parte da teorização mais
incisiva é gerada pelo acto de caminhar. O Fufgang diário
de Emanuel Kant — a sua travessia cronometricamente precisa
de Kõnigsberg — tornou-se lendário. As meditações, os
ritmos de percepção em Rousseau são os do promeneur. As
extensas deambulações de Kierkegaard por Copenhaga e seus
subúrbios revelaram-se espectáculo público e objecto de
caricatura. Mas são estas deambulações, com os seus
desvios, as suas mudanças bruscas de itinerário e passo,
que se reflectem nas sincopas da prosa deste pensador. A de
Charles Péguy é provavelmente a mais pulsante, a mais
semelhante a um rufo de tambor, na literatura moderna. As
frases marcham inexoravelmente em frente, as suas
conclusões são
30

marteladas no alvo pela batida daqueles pesados sapatos de


passeio e botas dos soldados de infantaria emblemáticos da
visão de Péguy. Daí o incomparável «hino de marcha» da sua
peregrinação a Chartres e da ode que a celebra.
Numa era americana, que é a do automóvel e do avião a
jacto, mal conseguimos imaginar as distâncias percorridas e
colocadas ao serviço intelectual e poético pelos mestres
europeus. Hõlderlin vai a pé da Vestefália a Bordéus e
volta. O jovem Wordsworth caminha de Calais à Berner
Oberland e volta. Coleridge, indivíduo corpulento, com
várias maleitas físicas, percorre per diem, rotineiramente,
trinta a quarenta quilómetros, através de terreno difícil,
montanhoso, ao mesmo tempo que compõe poesia ou argumentos
teológicos intricados. E considere-se o papel do errante
nalguma da nossa melhor música: nas fantasias e canções de
Schubert, em Mahler. Uma vez mais, a profecia enigmática de
Benjamin acode ao espírito: em toda a alegoria e lenda
europeias, o pedinte que vai de porta em porta, o pedinte
que pode ser um agente divino ou demoníaco disfarçado,
chega a pé.
A história europeia está repleta de longas marchas. Os
soldados de Alexandre marcharam, o que equivale a dizer
«caminharam», desde a Grécia continental às fronteiras da
Índia e ao deserto líbio. A obra A retirada dos dez mil, de
Xenofonte, continua a ser o clássico do desespero, da
exaustão e da resistência do soldado apeado, numa marcha
forçada rumo à sobrevivência. Os quilómetros percorridos
pelas
31

legiões napoleónicas, de Portugal a Moscovo, desafiam a


credulidade, assim como a capacidade de Stendhal de
sobreviver à retirada da Rússia, cobrindo distâncias
intermináveis. A Wehrmacht, durante a Segunda Guerra
Mundial, contou com unidades de infantaria que avançaram a
pé desde a extremidade francesa atlântica mais a Ocidente
até ao Cáucaso. Eloquentemente, Julien Benda intitula as
suas memórias Un Régulier dans le siècle, um soldado de
infantaria deslocando-se a grandes passadas pelo atlas
trágico da história europeia moderna, um mappa mundi que é
também o do tempo europeu.
As ruas, as praças calcorreadas pelas mulheres, crianças e
homens europeus são cem vezes mais designadas segundo
estadistas, figuras militares, poetas, artistas,
compositores, cientistas e filósofos. Este é o meu terceiro
parâmetro. A minha própria infância em Paris fez-me tomar,
em inúmeras ocasiões, a Rue Lafontaine, a Place Victor
Hugo, a Pont Henri IV, a Rue Théophile Gauthier. As ruas em
torno da Sorbonne têm nomes de grandes mestres da
escolástica medieval. Celebram Descartes e Auguste Comte.
Se Racine tem a sua rua, também a têm Corneille, Molière,
Boileau. O mesmo se aplica ao mundo germanófono, à miríade
de Goetheplãtze e Schillers-trassen, às praças que devem o
seu nome a Mozart ou Beethoven. O menino da escola e os
homens e mulheres urbanos da Europa habitam verdadeiras
câmaras de ressonância de feitos históricos, intelectuais,
artísticos e científicos. Amiúde, a placa toponímica não
regista apenas o nome ilustre ou especializado.
32

mas também as datas relevantes e uma descrição sumária.


Cidades como Paris, Milão, Florença, Francoforte, Weimar,
Viena, Praga ou S. Petersburgo são crónicas vivas. Ler as
respectivas placas toponímicas é folhear um passado
presente. E esta pietas não acabou. A Place Saint-Germain
tornou-se Place Sartre--Beauvoir. Francoforte ajcabou de
atribuir a uma praça a designação Adornopslatz. Em Londres,
a prodigalidade de placas azuis identifica as residências
nas quais não apenas se pensa terem vivido cientistas
naturais, artistas e escritores medievais, resnascentistas
ou vitorianos, mas também aqueles associados ao movimento
de Bloomsbury e os modernos.
Observe-se a diferença quase dramática. Nos Estados Unidos,
tais memoranda são escassos. As ruas são interminavelmente
nomeadas como «Pine», «Maple», «Oak» ou «Willow»12. As
grandes avenidas chamam-se «Sunset», a mais nobre das ruas
de Boston é conhecida como «Beacon»13. Mesmo estas
designações são concessões feitas ao humano. As avenidas,
calçadas e ruas americanas são simplesmente numeradas ou,
na melhor das hipóteses, como em Washington, conhecidas
pela sua orientação, sendo o número seguido de «North» ou
«West». Os automóveis não têm tempo de considerar uma Rue
Nerval ou um Largo Copernicus.
Há um lado sombrio nesta soberania da relembrança, na
autodefinição da Europa como lieu de la
12 Respectivamente, «pinheiro», «ácer», «carvalho» e
«salgueiro». (H. da T.)
13 «Pôr do Sol» e «Farol», respectivamente. (N. da T.)
33

métnoire. Os escudos afixados em tantas residências


europeias não falam apenas de eminência artística,
literária, filosófica ou política: comemoram séculos de
massacres e sofrimento, de ódio e sacrifício pessoal. Numa
cidade francesa, uma placa evocativa de Lamartine, o mais
idílico entre os poetas, é confrontada, no lado oposto da
rua, por uma inscrição que relembra as torturas e execuções
de elementos da resistência, em 1944. A Europa é o local
onde o jardim de Goethe quase confina com Buchenwald, onde
a casa de Corneille dá para o largo no qual Joana d'Arc foi
barbaramente assassinada. Os memoriais de assassínios,
individuais ou colectivos, estão por toda a parte. A lista
dos mortos, gravada no mármore, quase parece mais extensa
do que a dos vivos.As decisões tomadas e os métodos
empregados relativamente à reconstrução das cidades
destruídas e da herança artística revelaram-se
problemáticos. É certo que o restauro, milímetro a
milímetro, dos antigos bairros de Varsóvia segundo as
pinturas topográficas do século xviii é um prodígio de
capacidade artística e recordação deliberada. Assim como a
restituição a Dresden de grande parte do seu brilho passado
ou o renascimento fac-similado de grande parte do esplendor
daquilo que foi Leninegrado. Mas caminhando por entre estes
espectros sólidos é-se assaltado por uma sensação sinistra,
de profunda tristeza. Há algo errado em toda aquela
correcção. Como se mesmo as perspectivas de profundidade
fossem meras fachadas. É muito difícil exprimir através de
palavras a calidez, a aura que o tempo autêntico, o tempo
enquanto pro-
34

cesso vivido, confere ao jogo da luz sobre a pedra, os


pátios, os telhados. No artifício do reconstruído, a luz
tem um travo a néon.
A questão é, evidentemente, mais profunda. Até uma criança
na Europa se dobra sob o peso do passado como tão
frequentemente se dobra sob o peso das mochilas escolares
demasiado cheias. Quantas vezes, avançando penosamente pela
Rue Descartes, atravessando a Ponte Vecchio ou passando
pela casa de Rembrandt em Amesterdão, não me senti
avassalado, mesmo num sentido físico, pela questão: «De que
serve? Que pode cada um de nós acrescentar à imensidade do
passado europeu?» Quando Paul Celan entra no Sena para se
suicidar, escolhe o local exacto celebrado por Apollinaire
na sua grande balada, um ponto situado sob as janelas do
quarto em que Tsvetayeva passara a sua última noite, antes
de regressar à desolação e à morte na União Soviética. Um
europeu culto é apanhado na teia de um in memoriatn
simultaneamente luminoso e sufocante.
É precisamente esta teia que a América do Norte repudia. A
sua ideologia tem sido a do nascer do Sol e da futuridade.
Ao declarar que «História é palavreado inútil», Henry Ford
forneceu a senha de acesso à amnésia criativa, a um poder
de esquecimento que subjaz a demanda pragmática da utopia.
O mais elegante dos novos edifícios possui um factor de
obsolescência de uns quarenta anos. A guerra do Vietname
lançou uma sombra quase digna do velho mundo, o onze de
Setembro provocou um estremecimento, um memento mori na
psique americana. Mas
35

estes são motivos excepcionais e quase certamente


transitórios. As recordações mais fortes na sensibilidade e
idioma americanos são as da promessa, daquele contrato com
horizontes vastos que fez do movimento em direcção ao
Oeste, e, rapidamente, da viagem planetária, um novo Éden.
Daí o crescente mal-estar sentido em relação ao mero
pensamento de transformar em memorial a destruição (terá
vida breve) do World Trade Center. Entretanto, um mausoléu
deliberadamente brutal e, em minha opinião, despropositado,
sepultará um espaço central de Berlim. Quão mais
verdadeiros ao manifesto de Jesus: «deixai os mortos
enterrar os seus mortos», são os homens e as mulheres do
Novo Mundo!
O peso ambíguo do tempo verbal pretérito na ideia e
substância da Europa deriva de uma dualidade primordial —
que constitui o meu quarto axioma: a herança dupla de
Atenas e Jerusalém. Esta relação, simultaneamente
conflituosa e sincrética, ocupou o debate teológico,
filosófico e político desde os Doutores da Igreja a Leon
Chestov, de Pascal a Leo Strauss. O topos é agora tão rico
e premente como sempre. Ser europeu é tentar negociar,
moralmente, intelectualmente e existencialmente, os ideais,
afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade
de Isaías.
Somos bípedes capazes de sadismo indizível, ferocidade
territorial, ganância, vulgaridade e todo o tipo de
torpeza. A nossa inclinação para o massacre, para a
superstição, para o materialismo e o egotismo carnívoro
pouco se alterou durante a breve história da
36

nossa estada na Terra. No entanto, este mamífero desgraçado


e perigoso gerou três ocupações, vícios ou jogos de uma
dignidade completamente transcendente. São eles a música, a
matemática e o pensamento especulativo (no qual incluo a
poesia, cuja melhor definição será música do pensamento).
Radiantemente inúteis, por vezes profundamente contra-
intuitivas, estas três actividades são exclusivas dos
homens e das mulheres e aproximam-se tanto quanto algo se
pode aproximar da intuição metafórica de que fomos
realmente criados à imagem de Deus.
A música é indubitavelmente planetária. Não conhecemos
qualquer comunidade étnica, por muito rudimentar, que não
pratique um qualquer modo de música. O que vale a pena
considerar é se quaisquer destes diversos constructos
musicais ou formas executivas implicam os milagres de
sentido dos significados que nos são transmitidos por Bach,
Mozart, Beethoven ou Schubert. Um pequeno número de centros
não-europeus contribuíram de forma fundamental para a
matemática, notavelmente a Índia e, durante algum tempo, o
Islão. Mas a épica da conjectura e da demonstração
matemática, das hipóteses colocadas radicalmente para além
da representação material ou do entendimento comum é, na
sua essência, a da Europa e, por transferência directa, da
América do Norte. Pode muito bem ser que o estudo da
matemática pura, das descobertas axiomáticas de Euclides ã
Hipótese de Riemann, do Teorema de Pitágoras ã recente
demonstração do Último Teorema de Fermat, seja o capítulo
mais sublime, a longa hora
37

do zénite, do ser do homem. Diz respeito á imaterialidade,


à gravidade divertida da investigação metafísica. Uma vez
mais, há momentos e sistemas filosóficos exteriores à
Europa, mas o fluxo soberano da suposição e da
argumentação, nomeadamente em lógica e epistemologia,
dimana, como se por compulsão misteriosa, dos pré-
socráticos a Wittgenstein, de Bergson a Heidegger, de
Plotino a Espinoza e Kant. O nosso legado ontológico é,
como Heidegger insistiu, o do questionamento. E por vezes
tão enigmáticos como os números primos que se prolongam até
ao desconhecido, os três acta cardinais combinam-se. A
matemática habita a música, há uma magia tanto de cadência
como de sequência axiomática na grande filosofia. Como
alguns místicos e lógicos, como Eeibniz, intuíram, quando
Deus fala consigo próprio, canta álgebra. Já aqui o papel
fundamental de Hellas é evidente. Três mitos, que se contam
entre os mais antigos da nossa cultura, falam das origens e
do mistério da música. O que surpreende é a percepção na
Grécia arcaica, através das histórias de Orfeu, das Sereias
e do desafio mortal de Apoio e Mársias, dos elementos na
música para além da humanidade racional, do poder da música
para enlouquecer e destruir. A nossa matemática tem sido
«grega», pelo menos até à proposta da geometria não-
euclidiana e ã crise da axiomática implícita na
Demonstração de Gõdel de incoerência. Pensar, sonhar
matematicamente é seguir as pegadas de Euclides e
Arquimedes, seguir as primeiras conjecturas relativamente à
insolubilidade paradoxal de Zenão. Platão ordenou que não
entrasse
38

na sua academia nenhum homem que não fosse geómetra.


Todavia, ele próprio dirigiu o intelecto ocidental rumo a
questões universais de sentido, moral, direito e política.
Como A. N. Whitehead afirmou celebremente, a filosofia
ocidental é uma nota de rodapé a Platão e, poder-se-ia
acrescentar, a Aristóteles e Plotino, a Pafménides e
Heraclito. O ideal socrático da vida reflectida, a demanda
platónica de certezas transcendentes, as investigações
aristotélicas das relações problemáticas existentes entre a
palavra e o mundo, estabeleceram a via tomada por Tomás de
Aquino e Descartes, por Kant e Heidegger. Assim, estes três
notáveis dignitários do intelecto humano e da formação da
sensibilidade — música, matemática, metafísica — subscrevem
a afirmação de Shelley de que «somos todos gregos».
Mas a herança de Atenas estende-se até muito mais longe. O
vocabulário das nossas teorias e dos nossos conflitos
políticos e sociais, do nosso atletismo e da nossa
arquitectura, dos nossos modelos estéticos e das nossas
ciências naturais permance saturada de raízes gregas, em
ambos os sentidos da palavra. «Física», «genética»,
«biologia», «astronomia», «geologia», «zoologia»,
«antropologia» são palavras derivadas directamente do grego
clássico. Por seu lado, os nomes trazem consigo, tal como a
própria «lógica», uma visão específica, uma cartografia
particular da realidade e dos seus amplos horizontes. É um
exagero, mas um exagero eloquente, da parte de Heidegger,
afirmar que uma falsa tradução do grego «sendo» ou «ser»
para o latim de Cícero determinou o destino da Europa.
39

Mas não é exagero acrescentar que este destino não deriva


menos do legado de Jerusalém. Não existe praticamente nó na
textura da existência ocidental, da consciência e da
consciência de si próprios dos homens e das mulheres
ocidentais (e, consequentemente, americanos) que não tenha
sido tocado pela herança do hebreu. Isto aplica-se tanto ao
positivista, ao teísta e ao agnóstico quanto ao crente. O
desafio monoteísta, a definição da nossa humanidade
enquanto diálogo com o transcendente, o conceito de um
Livro supremo, a noção do direito como algo inextricável em
relação aos mandamentos morais, o nosso próprio sentido de
História enquanto tempo revestido de propósito, têm origem
na singularidade enigmática e na dispersão de Israel. É um
lugar-comum citar Marx, Freud e Einstein (eu acrescentaria
Proust) como progenitores da modernidade, como artesãos da
nossa condição actual. Mas subjacente ao lugar--comum
encontra-se uma situação extremamente complexa: a do
Judaísmo secular e da tradução para termos e valores
seculares de antecedentes profundamente judaicos. A paixão
de Marx pela justiça social e o historicismo messiânico
estão em acordo directo com os de Amos ou Jeremias. A
estranha pressuposição de Freud de um crime original — o
assassínio do pai — espelha, eloquentemente, o cenário da
queda de Adão. Há muito que se encontra maravilhosamente
próximo da promessa dos salmos e de Maimónidas na confiança
que Einstein tem na ordem cósmica e na sua recusa tenaz do
caos. O Judaísmo e as suas duas notas principais de rodapé,
o Cristianismo e o Socialismo Utó-
40

pico, são descendentes do Sinai, mesmo nos locais onde os


Judeus mais não eram que um punhado de pessoas desprezadas
e perseguidas."
As relações nunca foram fáceis. A obsessão pela tensão
entre judeus e gregos levou à invenção da cristandade por
Paulo. Os Doutores da Igreja estão ansiosamente alertas
para o magnetismo dual da Atenas
'* A minha mulher e eu tivemos o privilégio de sermos
convidados por Nadine Gordimer para a sua bela casa na
Cidade do Cabo durante os maus momentos, os momentos que
antecederam a libertação. Ela convidou os chefes do ANC, do
Movimento de Resistência Nacional, incluindo os chefes
militares, para jantar. Os carros da Polícia estavam
estacionados à porta e anotavam os nomes de todos os
convidados, mas não tocaram em Nadine. Estava-se
completamente seguro. Anotavam simplesmente quem chegava
para o jantar. Em toda a minha vida, o meu dom principal
tem sido uma falta de tacto assinalável — confesso-me
culpado. Assim, perguntei finalmente àqueles três grandes
chefes: «Ouçam, a ocupação pelas Waffen SS foi muito má:
eles eram muito bons a ocupar. Mas, de tempos a tempos,
matava-se um dos sacanas. Vocês não tocaram num homem
branco. Nem um. Em Joanesburgo, os números são de treze
para um. Na rua, basta fechar os braços para sufocar uma
pessoa branca. Nem sequer é preciso ter armas. Treze para
um. Que diabo se passa?» Um dos chefes do ANC disse: «Eu
posso responder. Os cristãos têm os evangelhos, vocês,
judeus, têm o Talmude, o Antigo Testamento, o Mishnah, os
meus camaradas comunistas a esta mesa têm Das Kapital. Nós,
negros, não temos nenhum livro.»
Foi um momento tremendo, para mim. A herança de Atenas a
Jerusalém, de que temos um livro, de que temos vários
livros. Aquela foi uma resposta avassaladoramente triste e
persuasiva: «Não temos nenhum livro.»
41

pagã e da Jerusalém hebraica. Como é que a verdade de Jesus


poderia incorporar o legado indispensável da Grécia
clássica? Um legado tornado mais perturbante pela sua
transmissão através do mundo árabe e muçulmano. Muitas
vezes, as polaridades aguçam-se. Existe um neo-paganismo
consciente na filosofia e na estética da renascença
florentina. O puritanismo do século XVII pode ser muito
proximamente definido como uma tentativa de recuperação de
Sião. O helenismo romântico é muitas vezes articulado nos
termos de uma crítica acérrima aos valores hebraico-
nazarenos. Muito frequentemente, o humanismo europeu, de
Erasmo a Hegel, procura diversas formas de compromisso
entre ideais áticos e hebraicos. Mas, após uma vida de
investigação escrupulosa, Leo Strauss, embebido em partes
iguais no Talmude e em Aristó-teles, em Sócrates e em
Maimónidas, concluiu que não pode ser negociado qualquer
entendimento satisfatório entre os imperativos absolutos da
razão científico-filosófica tal como estabelecida na nossa
herança grega e os imperativos da fé e da revelação
proclamados na Torah. O sincretismo, por habilidoso que
fosse, teria sempre falhas. Assim, a «ideia de Europa» é,
na verdade, um «conto de duas cidades».
O meu quinto critério é uma consciência própria
escatológica que, segundo creio, pode ser exclusiva da
consciência europeia. Muito antes do reconhecimento de
Valéry da «mortalidade das civilizações», ou do diagnóstico
apocalíptico de Spengler, o pensamento e a sensibilidade
europeias tinham enfrentado uma finalidade mais ou menos
trágica. A Cristandade nunca
42

abandonou completamente essa expectativa de um fim para o


nosso mundo que marcara tão profundamente os seus dias
primevos, sinópticos. Muito depois daquilo que os
historiadores denominaram como «o pânico do] ano mil», as
profecias de condenação escatológica e as numerologias que
procuram fixar a sua data povoam a imaginação popular
europeia. Mas estas expectativas colheram adeptos não
apenas junto dos menos cultos. Ocuparam o espírito de, nada
mais nada menos, Newton. Num formato secular,
intelectualizado, encontra-se explicitamente na teoria da
história de Hegel um «sentido de um final», tal como se
encontrara na formulação pomposa de entropia, de Carnot, da
extinção inevitável de toda a energia. Pensemos nas
representações panorâmicas das cidades europeias em chamas
ou assoladas por terríveis inundações que constituem um
aspecto deveras curioso da arte romântica. É como se a
Europa, diversamente de outras civilizações, tivesse
intuído que um dia ruiria sob o peso paradoxal dos seus
feitos e da riqueza e complexidade sem par da sua
História.15
Duas guerras mundiais, que, na verdade, foram guerras civis
europeias, conduziram esta intimação ao ponto de ebulição.
Daí o Apocalipse moderno de Os últimos dias da
Humanidade^16, de Karl Kraus. Entre Agosto de 1914 e Maio
de 1945, de Madrid ao
15 A língua alemã tem uma palavra que não podemos traduzir,
como sucede frequentemente: Geschichtsmude — cansado da
História. É uma palavra muito bizarra e obsidiante.
16 Edição portuguesa: Lisboa, Antígona, 2003. (N. da T.)
43

Volga, do círculo árctico à Sicília, calcula-se que cem


milhões de homens, mulheres e crianças tenham perecido
devido à guerra, à fome, à deportação e à chacina étnica. A
Europa Ocidental e a Rússia Ocidental tornaram-se casas de
morte, cenários de uma bestialidade sem precedentes, seja
ela a de Auschwitz ou a do Gulag. Mais recentemente, o
genocídio e a tortura regressaram aos Balcãs. À luz —
dever-se-ia dizer «às trevas»?— destes factos, torna-se
quase uma obrigação moral acreditar no termo da ideia
europeia e das suas habitações. Com que direito deveríamos
sobreviver à nossa própria desumanidade suicida?
Cinco axiomas para definir a Europa: o café; a paisagem a
uma escala humana que possibilita a sua travessia; as ruas
e praças nomeadas segundo estadistas, cientistas, artistas
e escritores do passado — em Dublin, até nos terminais
rodoviários se indica o caminho para as casas de poetas; a
nossa descendência dupla de Atenas e Jerusalém; e, por fim,
a apreensão de um capítulo derradeiro, daquele famoso ocaso
hegeliano que ensombra a ideia e a substância da Europa
mesmo nas suas horas mais luminosas.
E a seguir?

Há duas vozes que nos podem ajudar a encontrar o caminho.


Em Munique, no Inverno desesperado de 1918-1919, Max Weber
proferiu uma palestra sobre o conhecimento e a ciência
(Wissenschaft) enquanto
44

vocação. Embora não completamente registada, a sua


comunicação depressa se tornou um clássico. A Europa jazia
em ruínas. A sua civilização, a sua eminência intelectual,
da qual o ensino secundário alemão tinha constituído
garantia emblemática, revelara-se impotente face à demência
política. Como se podia restaurar o prestígio, a
integridade da vocação do erudito, pensador e mestre?
Profeticamente, Weber previu a americanização, a redução à
burocracia gestora da vida do espírito na Europa. Como
podia o ensino ser unido novamente á investigação
científico-erudita, ao intelecto especulativo de primeira
ordem? A rubrica abjecta da «correcção política» ainda não
fora engendrada. Mas Weber viu e declarou o essencial: «A
democracia deve ser praticada onde é apropriado. A formação
científica, contudo, [...] implica a existência de um certo
tipo de aristocracia intelectual.» Antes de Benda, Weber
estabeleceu o ideal austero de uma verdadeira
intelectualidade: «A quem faltar a capacidade de colocar
antolhos a si mesmo [...] e de se convencer de que o
destino da sua alma depende da correcção ou não da sua
interpretação de determinada passagem de um manuscrito,
será sempre um estranho à ciência e ao estudo.» Os
insensíveis àquilo que Platão designava como «mania», ã
possessão do seu ser pela demanda de verdades tantas vezes
arduamente abstractas, não utilitárias, devem ir para outro
sítio. Os cientistas, os eruditos e os artistas estão, nas
palavras de Weber, comprometidos com um ideal sacrificial,
antigo como os pré-socráticos e característico do génio da
Europa.
45

Num momento não menos trágico, não muito antes da sua morte
solitária, Edmund Husserl proferiu a famosa palestra sobre
«A filosofia e a crise do homem europeu». A Europa, afirma
Husserl, «designa a unidade de uma vida espiritual e uma
actividade criativa». Esta espiritualidade criativa tem o
seu local de nascimento. A «ciência-filosofia», como
Husserl desastradamente lhe chama, originou-se na Grécia
antiga. É o milagre ático, ter entendido que as ideias «de
uma forma maravilhosamente nova, segregam em si próprias
infinidades intencionais». Estes horizontes levam a uma
historicidade nova e determinante. Outras culturas e
comunidades fizeram descobertas científicas e intelectuais.
Mas só na Grécia antiga se desenvolve a dedicação à teoria,
ao pensamento especulativo desinteressado à luz de
possibilidades infinitas. Além disso, apenas na Grécia
clássica, e na sua herança europeia, o teórico se aplica ao
prático sob a forma de uma crítica universal de toda a vida
e seus objectivos. Há uma distinção marcada entre esta
fenomenologia e o tecido «prático-mítico» dos modelos do
Extremo Oriente e da índia. O acto fulcral de conjecturar,
thaumazein, e do desenvolvimento lógico-teórico é platónico
e aristotélico na sua essência. Daí, em última análise, o
avanço da ciência e da tecnologia europeia, e depois
americana, sobre todas as outras culturas. O processo
global é um processo de idealização no qual mesmo a noção
de Deus «é, por assim dizer, logicizada e torna-se mesmo o
veículo do logos absoluto». A Europa esquece-se de si
própria quando se esquece de que nasceu da ideia da razão e
do espí-
46

rito da filosofia. O perigo, conclui Husserl, é «um grande


cansaço».17
No preciso momento em que Husserl se exprimia, o barbarismo
assolava uma vez mais a Europa, tal como não tem cessado de
fazer, de Sarajevo a Sarajevo. Citar as esperanças
orgulhosas de Weber e Husserl é, só por si, convidar a
ironia. Significará isto que a ideia de Europa chegou ao
fim, que não tem qualquer futuro substantivo? Esta é,"
certamente, uma possibilidade distinta. Corresponde aquela
lógica de mortalidade existente em civilizações e
ideologias e que já referi. Ou haverá vias de esperança
ainda a merecer exploração?
Não só os factores relevantes são de uma complexidade e
diversidade que quase impossibilitam a análise responsável.
Não só a previsão é quase grotescamente míope (concebemo-la
sempre num espelho retrovisor), como a competência
requerida em campos como a economia e a política monetária,
a demografia, o direito, as relações industriais e a teoria
da informação, todas interagindo de diversos modos, se
encontra fora do meu alcance. Para alguém assim limitado, a
consideração da ordem de trabalhos de um
^17 É preciso recordar que há muito a recordar. Heródoto
colocou a seguinte questão: «Todos os anos, enviamos a
África os nossos navios, com risco de vidas e grandes
gastos, para perguntar: 'Quem são vocês? Quais são as
vossas leis? Qual é a vossa língua?' Eles nunca enviaram
qualquer navio a interrogar-nos.» Não há correcção política
de liberalismo na moda que consiga destruir esta pergunta.
47

possível renascimento europeu raia a impertinência.


Produzirá, na melhor das hipóteses, intuições
impressionistas; e, na pior, os clichés de retórica e
pathos com os quais inúmeros colóquios, palestras,
publicações e manifestos sobre Ia question d'Europe nos
tornararam entediantemente familiares. Altura em que, é
claro, terei de me sentar.
O pouco que posso propor é a noção de que podemos ter
estado a fazer as perguntas erradas. Que, aparentemente, os
factores dominantes a que aludi não são, na análise final,
completa ou mesmo principalmente determinantes. Pode ser
que o futuro da «ideia de Europa», a haver algum, dependa
menos de um banco central e dos subsídios à agricultura, do
investimento em tecnologia ou de taxas alfandegárias
comuns, do que nos querem fazer crer. Pode ser que a OCDE
ou a OTAN, a maior extensão do Euro ou das burocracias
parlamentares segundo o modelo do Luxemburgo não constituam
a dinâmica primordial da visão europeia. Ou se,
efectivamente, o forem, essa visão dificilmente seja capaz
de empolgar a alma humana.
Assim, permiti-me que aponte, de uma forma inevitavelmente
amadora e provisória, umas poucas possibilidades ou
desiderata a merecer exploração se pretendermos que a
«ideia de Europa» não tombe naquele grande museu de sonhos
passados a que chamamos História.
Os ódios étnicos, o nacionalismo chauvinista, as
reivindicações regionais têm sido o pesadelo da Eu-
48

ropa. A limpeza étnica e o genocídio tentado nos Balcãs


constituem apenas o exemplo mais recente de uma praga que
se estende à Irlanda do Norte, ao território basco e às
divisões entre flamengos e valões. A disseminação mundial
da língua anglo-americana, a padronização tecnológica da
vida quotidiana, a universalidade da Internet, são
legitimamente considerados grandes passos rumo a uma
eliminação de fronteiras e ódios antigos. Diversas
organizações — legais, económicas, militares e científicas
— pugnam por um grau crescente de colaboração e, em última
instância, união europeia. O sucesso fantástico do modelo
americano, do seu federalismo que abarca distâncias imensas
e climas diversos, apela à imitação. Jamais a Europa deverá
sucumbir novamente à guerra intestina.
Este ideal de harmonia é inegável. Inspira importantes
elementos europeus de pensamento e capacidade política,
desde Carlos Magno. Mas, creio, trata-se apenas de um dos
lados da moeda.
O génio da Europa é aquilo que William Blake teria chamado
«a santidade do pormenor diminuto». É o génio da
diversidade linguística, cultural e social, de um mosaico
pródigo que muitas vezes percorre uma distância trivial,
separado por vinte quilómetros, uma divisão entre mundos.
Em contraste com a terrível monotonia que se estende do
ocidente de Nova Jérsia às montanhas da Califórnia, em
contraste com aquela avidez de uniformidade que é
simultaneamente a força e o vácuo de grande parte da
existência americana, o mapa estilhaçado, por vezes
absurdamente divisor, do espírito europeu e sua herança,
tem sido
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Incansavelmente fértil. A expressão ressonante de


Shakespeare «uma habitação local e um nome» identifica um
carácter definidor. Não há «línguas pequenas». Toda a
língua contém, articula e transmite não só uma carga única
de recordação vivida, mas também uma energia em evolução
dos seus tempos futuros, uma potencialidade para o amanhã.
A morte de uma língua é irreparável, reduz as
possibilidades do homem. Nada ameaça a Europa mais
radicalmente — «as suas raízes» — do que a onda detersiva e
exponencial do anglo-americano, e dos valores e imagem
mundial uniformes que o Esperanto devorador traz consigo. O
computador, a cultura do populismo e o mercado de massas
fala anglo-americano desde as discotecas de Portugal ao
império de comida rápida de Vladivostok. A Europa morrerá
efectivamente, se não lutar pelas suas línguas, tradições
locais e autonomias sociais. Se se esquecer que «Deus
reside no pormenor».
Mas como se poderão equilibrar as proposições
contraditórias da unificação económico-política com aquelas
da particularidade criativa? Como poderemos dissociar uma
riqueza salvífica de diferenças da longa crónica de ódios
mútuos.' Não sei a resposta. Só sei que aqueles mais sábios
do que eu têm de a encontrar, e que a hora é tardia.
A «ideia de Europa» está entretecida das doutrinas e da
história da Cristandade ocidental. A nossa arquitectura,
arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-
se saturados de referências e valores cristãos. A literacia
europeia desenvolveu-se a
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partir do ensino cristão. As guerras religiosas entre


católicos e protestantes deram forma ao destino europeu e
ao mapa político do continente. Houve certamente outros
factores que desempenharam o seu papel, mas, absolutamente
inseparável da queda da Europa na desumanidade, a partir da
Shoah, está a designação cristã do judeu como deicida,
enquanto herdeiro directo de Judas. É em nome da vingança
sagrada do Gólgota que os primeiros pogroms varrem a
Renânia na Idade Média. Destes massacres ao Holocausto, o
percurso é certamente complexo e por vezes subterrâneo, mas
também é indubitável. O isolamento, a perseguição, a
humilhação social e política do Judeu tem sido integrante
da presença cristã, a qual foi axiomática, na grandeza e
abjecção da Europa. Os campos de morte são fenómenos
europeus localizados, por uma intuição monstruosa, no mais
católico dos países europeus. Uma vez mais, os crucifixos
escarnecem o perímetro de Auschwitz.
Houve protestos corajosos contra o ódio anti-semita tanto
dentro do catolicismo romano como em vários ramos do
protestantismo. Recentemente, foram expressas desculpas
cosméticas e introduziram-se alterações em alguns dos mais
odiosos textos litúrgicos. Mas isto é muito pouco. A
verdade brutal é que a Europa se recusou, até à data, a
reconhecer e a analisar, quanto mais a retractar-se, o
papel diversificado da Cristandade na hora mais negra da
História. Ignorou simplesmente ou apagou convencionalmente
o enraizamento do seu anti-semitismo nos Evangelhos, no
repúdio de Paulo do seu povo, nos
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inúmeros textos teológicos e ideológicos produzidos desde


então (no início da década de 1520, Lutero exigia a morte
pelo fogo de todos os judeus). Enquanto a Europa não
confrontar o veneno do ódio anti-semita que corre nas suas
veias, enquanto não abordar em termos explícitos a longa
pré-história das câmaras de gás, muitas das estrelas no
nosso firmamento europeu continuarão a ser amarelas.
Actualmente, a cristandade é uma força em declínio. As
igrejas esvaziam-se em muitas regiões da Europa. No próprio
coração do território papal, em Itália, a taxa de
natalidade decresce significativamente. Cerca de mil e
seiscentas igrejas anglicanas foram classificadas como
supérfluas. Que grande voz cristã teológica fala agora pela
Europa culta? A vaga gigantesca de agnosticismo, se não
ateísmo, está a iniciar uma alteração profunda na evolução
milenar da Europa. Esta transmutação, por gradual que seja,
aponta para a possibilidade de uma tolerância sem
precedentes, de uma indiferença irónica aos mitos arcaicos
da retaliação. Pode surgir uma Europa pós-cristã, embora
lentamente e de formas difíceis de prever, das sombras da
perseguição religiosa. Num mundo actualmente nas garras do
fundamentalismo assassino — seja ele o do Sul e Centro
americanos, ou seja o do Islão —, a Europa ocidental pode
ter o privilégio imperativo de produzir, de pôr em prática,
um humanismo secular. Se conseguir libertar-se da sua
própria herança negra, confrontando-a sem receios, a Europa
de Montaigne e Erasmo, de Voltaire e Immanuel Kant pode,
uma vez mais, indicar o caminho a seguir.
52

Esta tarefa pertence ao espírito e ao intelecto. É


disparate supor que a Europa rivalizará com o poderio
económico, militar e tecnológico dos Estados Unidos." Já a
Ásia, e em particular a China, prepara--se para ultrapassar
a Europa em importância demográfica, industrial e, por fim,
geopolítica. Os dias do imperialimo e da hegemonia
diplomática da Europa estão tão longínquos quanto os mundos
de Richelieu, Palmerston e Bismarck. As tarefas e as
oportunidades que agora se nos apresentam são precisamente
aquelas que testemunharam a intensa claridade matinal da
Europa no pensamento grego e na moral judaica. E vital que
a Europa reafirme certas convicções e audácias de alma que
a americanização do planeta — com todos os seus benefícios
e generosidades — obscureceu. Deixai que as formule
brevemente.
A dignidade do homo sapiens é precisamente essa: a
percepção da sabedoria, a demanda do conhecimento
desinteressado, a criação de beleza. Fazer dinheiro e
inundar as nossas vidas de bens materiais cada vez mais
trivializados é uma paixão profundamente vulgar e inane.
Pode ser que, de modos agora muito difíceis de discernir, a
Europa venha a gerar uma revolução contra-industrial, assim
como gerou a própria revolução industrial. Certos ideais de
lazer, de
" Esta semana conheceram-se as estatísticas. Dos europeus
que fazem o doutoramento na América, entre 75 a 80 por
cento não regressam. Não temos nada a oferecer-lhes, claro
que não regressam. Para já, podíamos remunerá-los
adequadamente: neste sentido, sou um verdadeiro
materialista!
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privacidade, de individualismo anárquico, ideais quase
apagados pelo consumo conspícuo e pelas uniformidades dos
modelos americano e americano-asiático, poderão ter a sua
função natural num contexto europeu, mesmo que esse
contexto implique uma certa medida de apetrechamento
material. Aqueles que conheceram a Europa durante as
décadas de penúria, ou a Grã-Bretanha durante a
austeridade, saberão que solidariedades e criatividades
humanas podem despontar da pobreza relativa. Não é a
censura política que mata: é o despotismo do mercado de
massas e as recompensas do estrelato comercializado.
Tudo isto serão sonhos, talvez imperdoavelmente ingénuos.
Mas trata-se de fins práticos a que vale a pena almejar. É
desesperadamente urgente fazermos cessar, na medida do
possível, a saída dos nossos melhores jovens talentos
científicos (mas também humanísticos) da Europa devido às
ofertas edénicas dos Estados Unidos. Se os nossos melhores
cientistas, os nossos mais promissores jovens arquitectos,
os nossos músicos e eruditos abandonarem a Europa; se não
for colmatada a diferença entre a América e a Europa em
termos de salários, oportunidades de carreira, recursos
destinados ã investigação e à descoberta em parceria,
ficaremos efectivamente condenados à esterilidade ou à
segunda mão. A situação é já quase desesperada em domínios
importantes. Contudo, estou convencido de que a correcção
desta situação, tanto económica como psicológica, não se
encontra fora do nosso alcance. Se os jovens ingleses
escolhem classificar David Beckham acima de Shakespeare e
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Darwin na lista de tesouros nacionais, se as instituições


culturais, as livrarias e as salas de concertos e teatro
lutam pela sobrevivência numa Europa que é fundamentalmente
próspera e onde a riqueza nunca falou tão alto, a culpa é
muito simplesmente nossa. Assim como o poderia ser a
reorientação do ensino secundário e dos meios de
comunicação social, por forma a corrigir esse erro. Com a
queda do marxismo na tirania bárbara e na nulidade
económica, perdeu-se um grande sonho de — como Trotsky
proclamou — o homem comum seguir as pisadas de Aristóteles
e Goethe. Liberto de uma ideologia falida, o sonho pode, e
deve, ser sonhado novamente. É porventura apenas na Europa
que as fundações necessárias de literacia e o sentido da
vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam
constituir-se como base. É entre os filhos frequentemente
cansados, divididos e confundidos de Atenas e de Jerusalém
que poderíamos regressar à convicção de que «a vida não
reflectida» não é efectivamente digna de ser vivida. Pode
ser que estas palavras sejam insensatas, que seja demasiado
tarde. Espero que não, só porque estou a dizer estas
palavras na Holanda, onde Baruch Espinoza viveu e pensou.
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