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ISSN: 1413-7704
secretaria.tempo@historia.uff.br
Universidade Federal Fluminense
Brasil
A trajetória de um intelectual
africano
Entrevista com Toyin Falola *
Entrevistadores: Marcelo Bittencourt e Roquinaldo Ferreira
*
Professor catedrático na University of Texas, Austin, Estados Unidos.
*
Determinação do governo federal americano, que dispõe sobre os centros de pesquisa que
dependem de recursos do governo. Este subsídio governamental viabilizou a emergência de
estudos africanos, latinos americanos e também de gênero.
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A trajetória de um intelectual africano
Eu não era professor universitário du- talizada que vinha desde meados do sécu-
rante esta “época de ouro”. Iniciei minha lo XIX, entrou em rápido declínio na dé-
carreira quando a academia africana come- cada de 1970. Os militares dominaram o
çou a entrar em declínio. Testemunhei a poder e perdeu-se muito do respeito pe-
decadência dos professores universitários los professores universitários. A profissão
nos tempos em que era estudante de gra- começou a perder seu brilho. Professores
duação quando, no outono de 1973, o re- universitários na Nigéria, e na maior parte
gime militar do General Yakubu Gowon da África, responderam da mesma manei-
afirmou, em um pronunciamento na rádio, ra: “se você não pode vencê-los, junte-se
que todos os professores universitários que a eles”. Para participar do poder e do enri-
desobedecessem às instruções do gover- quecimento muitos entraram para a polí-
no seriam obrigados a deixar suas residên- tica ou para o ramo dos negócios. Os pro-
cias oficiais. Parte das vantagens do traba- fessores universitários, a partir de então,
lho era acomodação gratuita, uma herança precisavam prover a si mesmos, criando
dos tempos coloniais. A torre de marfim oportunidades para dispor de dinheiro e
foi destruída por um simples pronuncia- poder economizar para sua aposentadoria.
mento de rádio. Muitos se mudaram, ou- A pesquisa se tornou gradualmente uma
tros aceitaram as condições para manter o ocupação secundária e o compromisso
emprego. O governo interferiu mais e com o ensino declinou.
mais, exercendo seu poder para nomear os Eu mantive o compromisso com a pro-
membros do conselho, os pró-reitores e os dução de conhecimento e o ensino. Ape-
vice-reitores. Centralizava contratações, sar dos obstáculos, consegui publicar
determinava a cota de cada universidade muitos ensaios e livros e contribuí para o
e a proporção de estudantes a serem admi- treinamento de centenas de estudantes
tidos em cada curso. As profissões liberais de graduação e pós-graduação. Encontrei
padeceram, porque o governo acreditava maneiras de conduzir pesquisas que re-
que o país precisava de pessoas graduadas queriam poucos recursos; elaborei inúme-
em profissões nas quais poderiam criar ros projetos com trabalho de campo; fiz
seus próprios empregos. A educação na uso extensivo dos recursos do National
África se tornou um negócio e os profes- Archives da Nigéria, em Ibadan, distante
sores universitários foram convidados a menos de duas horas de onde eu vivia;
plantar inhame e quiabo para vender! gastei a maior parte do meu salário em
Outra grande crise se seguiu: subita- pesquisa. As lições que aprendi ainda me
mente, nos anos 1970, a Nigéria ficou rica são úteis: posso superar desafios e fazer o
com o dinheiro do petróleo. Durante e meu trabalho, como indiquei no meu li-
depois dos anos de boom do petróleo, os vro The Power of African Cultures que des-
que possuíam ligações com os governos taca a cultura como resultado de uma ação
estaduais e federal se tornaram prósperos deliberada.
e poderosos da noite para o dia. A socieda-
de passou a definir o status não em termos 2- Como o senhor descreveria a con-
de conhecimento e educação nos moldes tribuição da Ibadan School of History
ocidentais, mas em termos de riqueza e para o desenvolvimento da historio-
materialismo. A influência da elite ociden- grafia nigeriana?
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TF- A Ibadan School (Escola de Ibadan) já que, como foi dito, parte da justificati-
se baseia na escrita da história africana de va para a dominação colonial era o fato
uma perspectiva afrocêntrica, cujos deta- dos africanos não terem uma história pró-
lhes são apresentados no meu livro pria. As mudanças começaram nos anos
Nationalism and African Intellectuals. A 1950, através de uma reformulação
melhor maneira de apreciar a contribui- curricular que fez com que a história afri-
ção da Escola de Ibadan para o desenvol- cana passasse a ser ensinada nas escolas e
vimento da moderna historiografia africa- viabilizou a produção de livros que per-
na é considerando, de início, a natureza mitiram este ensino e resultaram em no-
da reflexão sobre a África e o tipo de his- vas formas de pesquisa. Na Nigéria, os
tória africana ensinada antes do surgi- cursos ministrados antes da época de
mento da nova disciplina acadêmica, nos Dike contavam a história do Império Bri-
anos 1940. A história africana era ensina- tânico e das atividades dos europeus na
da e tratada como a história dos comerci- África. Por isto ele enfrentou problemas
antes, dos missionários e dos explorado- para desenvolver um novo currículo que
res europeus na África. Devido à ausên- atendesse à nova história: a escassez de
cia de documentos escritos os europeus textos e monografias. Para solucionar este
viam a África e seus povos como destitu- problema Dike organizou inúmeros con-
ídos de história. As sociedades sem uma gressos, reunindo historiadores, arqueólo-
tradição de escrita eram vistas como so- gos, antropólogos e lingüistas. O estudo
ciedades de povos sem história. O degra- das populações africanas ganhou uma di-
dante e desumano tráfico transatlântico mensão multidisciplinar. Ele facilitou a
de escravos e as noções não científicas fundação do National Archives, em 1953;
sobre raça e civilização, popularizadas nas e criou a Historical Society of Nigeria, em
palavras de David Hume, F. Georg Hegel 1955, fazendo com que a historiografia
e Charles G. Seligman foram rapidamen- africana emergisse com toda força. Estu-
te incorporadas e orquestradas por nume- dantes de pós-graduação foram encoraja-
rosos pesquisadores europeus e pelos dos a se especializar em diferentes aspec-
construtores e administradores do impé- tos da história da África pré-colonial e
rio colonial. Noções não científicas de colonial. O uso das tradições orais se tor-
história e mudança deram a justificativa nou aceito como método legítimo de re-
intelectual para a colonização e o domí- construção histórica. A coleção Ibadan
nio da África pela Europa. History Series editada pela Longman, foi
A história do surgimento da Escola de formada a partir de versões revistas da
Ibadan está estreitamente relacionada a primeira leva de teses de doutorado, cons-
Kenneth Onwuka Dike que planejou sua tituindo uma nova história acadêmica da
fundação. Significativamente, a nova his- África. O Journal of the Historical Society
tória africana, da qual Dike foi pioneiro, of Nigeria e o Tarikh, uma publicação
foi importante devido à necessidade de dedicada a diferentes temas, forneceram
demonstrar aos colonialistas que a África os instrumentos para a consolidação da
tinha uma história antes do domínio eu- nova disciplina. O Groundwork of Nigeria
ropeu. A Escola de Ibadan forneceu a History, editado por Obaro Ikime, foi um
arma intelectual para a luta nacionalista, projeto encomendado pela Historical
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ção superior depois das lutas pelos direi- professores universitários (denominada
tos civis. Todavia, não devemos confun- tenure) está sendo atacada.
dir o multiculturalismo liberal, que traz Ademais, a realidade presente e as
consigo um ideal de inclusão, com justi- perspectivas futuras da academia devem
ça racial, que exigiria a consideração de ser entendidas no contexto da expansão
fatores variados, incluindo oportunidades do neo-imperialismo. A ligação entre as
iguais de acesso à educação, fundos para populações negras dos Estados Unidos,
desenvolvimento de infra-estrutura, fim despossuídas de seus direitos políticos, e
da violência racial levada a cabo pelo as vítimas das aventuras americanas no
Estado e participação política substanti- exterior podem não ser facilmente
va. A recente catástrofe em Nova Orleans, identificáveis em instituições de elite
resultante do furacão Katrina, expôs a dura como universidades, mas esta ligação é
realidade de raça, classe social e sua inter- inegável e determinará o acesso, o supor-
relação nos Estados Unidos, porquanto os te, a promoção, assim como as agendas de
discursos em torno do furacão demonstra- ensino e pesquisa. A tentativa do gover-
ram a profunda responsabilidade da hos- no americano de intervir na autonomia das
tilidade racial e da agenda venal de alguns áreas de estudos referidas no Title VI* re-
segmentos da elite política. presenta uma agressão direta às lutas e às
Na educação superior, testemunha- conquistas dos movimentos em prol da
mos as “guerras culturais” das décadas de diversidade cultural. De fato, a comple-
1980 e 1990, que incluíram uma reação xa relação entre educação superior, mer-
contra o aumento no número de profes- cado de trabalho e lideranças políticas e
sores e estudantes negros, assim como a sociais sugere que a luta pela justiça ra-
crescente autoridade moral de grupos cial e pela equidade cultural está longe
que articulavam análises e estratégias de do fim; nós não podemos ter uma posição
desenvolvimento educacional em busca otimista e acreditar que as coisas estão
da justiça social. Vale ressaltar que as lu- melhorando.
tas culturais incluíam ataques contra ações
afirmativas e programas de estudos étni-
cos. De um lado, podemos ver que o ide-
al liberal de diversidade é mais aceito na
academia, com crescentes esforços nos
níveis administrativos, de serviços dirigi-
dos aos estudantes e entre professores
para tornar a diversidade um valor vital nas
práticas institucionais e de formulação de
políticas. De outro lado, a educação su-
perior é a chave para um ajuste estrutu-
ral, o que significa que as regras de finan-
ciamento estão sendo redefinidas, o aces-
so às instituições de elite está sendo res-
trito e a instituição da estabilidade para
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