Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
História
Licenciatura em
História Moderna II
pONTA gROSSA / pr
2010
CRÉDITOS
Universidade Estadual de Ponta Grossa
João Carlos Gomes
Reitor
Colaboradores Operacionais
Edson Luis Marchinski
Joanice de Jesus Küster de Azevedo
João Márcio Duran Inglêz
Maria Clareth Siqueira
Mariná Holzmann Ribas
A Coordenação
SUMÁRIO
■■ PALAVRAS DOs PROFESSORes 7
■■ OBJETIVOS & ementa 9
A
■■
aventura da expansão européia
PARA INÍCIO DE CONVERSA
11
12
■■ SEÇÃO 1- Mercantilismo 12
■■ SEÇÃO 2- As grandes navegações 18
■■ SEÇÃO 3- A ocupação de novos territórios 25
Os Estados Nacionais
■■ PARA INÍCIO DE CONVERSA
37
38
■■ SEÇÃO 1- A centralização do poder 39
■■ SEÇÃO 2- A governamentalidade e o nascimento da biopolítica 45
■■ SEÇÃO 3- O absolutismo 50
As revoluções inglesas
■■ PARA INÍCIO DE CONVERSA
65
66
■■ SEÇÃO 1- A Revolução de 1640 67
■■ SEÇÃO 2- A Revolução de 1688 75
■■ SEÇÃO 3- Política e sociedade 80
O Iluminismo
■■
para início de conversa
87
88
■■ SEÇÃO 1- Ciência e verdade 90
■■ SEÇÃO 2- A idéia de progresso 95
■■ SEÇÃO 3- O homem do Iluminismo 99
Bons Estudos!
OBJETIVOS DO LIVRO
Objetivo Geral
■■ Compreender configurações históricas do período moderno por meio da
discussão de temas correlatos.
Objetivos Específicos
■■ Estudar a estruturação dos Estados Nacionais.
■■ Discutir temas relativos à formação da sociedade moderna.
Ementa
■■ A aventura da expansão européia. Os Estados Nacionais. A Revolução
Inglesa. O Iluminismo.
Plano de Estudo
Unidade Horas
■■ Aventura da expansão europeia 17
■■ II – Os Estados Nacionais 17
■■ III – As Revoluções Inglesas 17
■■ IV – O Iluminismo 17
UNIDADE I
A aventura da expansão
europeia
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Conhecer aspectos da formação do mercantilismo.
ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - Mercantilismo
seção 1
MERCANTILISMO
12
unidade 1
História Moderna II
dade não dizem respeito às temporalidades, mas traduzem expectativas de
historiadores europeus de dois séculos atrás.
Isso aconteceu, por exemplo, quando se procurou dar definições às for-
mas econômicas sociais. Relegar o feudalismo à Idade Média e o mercan-
tilismo à Era Moderna é uma forma simplista, para não dizer simplória, de
abordagem. Esses eventos não se limitam às eras: podemos perceber neles,
e em acontecimentos simultâneos, que as suas temporalidades não são tão
restritas. Existem ainda traços de uma economia feudal em sociedades do
século XX, como também há sinais de uma mentalidade mercantil no século
XI. Dessa maneira, se utilizamos periodizações nesta unidade de estudo, é
devido ao seu simples valor explicativo, e não a um valor heurístico encerra-
do nos períodos ou eras.
13
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nesta data, a Cristandade, no auge
da vigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O
impulso e a difusão da economia monetária ameaçam os velhos valores cristãos. Um
novo sistema econômico está prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver
necessita senão de novas técnicas, ao mesmo do uso massivo de práticas condenadas
desde sempre pela Igreja. Uma luta encarniçada, cotidiana, assinalada por proibições
repetidas, articuladas a valores e mentalidades, tem por objetivo a legitimação do lucro
lícito que é preciso distinguir da usura ilícita. (LE GOFF, 1989, p. 10).
14
unidade 1
História Moderna II
a desconfiança: até onde a riqueza é lícita? Podemos dizer que há uma
mentalidade multissecular com relação às riquezas e ao dinheiro, aquilo que
E. P. Thompson chamou com propriedade “economia moral da multidão”,
quer dizer, uma noção popular do que seria um preço justo. Evidentemente
que Thompson se refere aos séculos XVIII e XIX, mas podemos perceber tal
movimento na Idade Média quando “os dados fundamentais da atividade
econômica, da economia de mercado que começa a funcionar, são o justo
preço e o justo salário (...), a usura é um pecado contra o preço justo, um
pecado contra a natureza (...), tal foi a concepção dos clérigos do século
XIII e dos laicos influenciados por eles.”. (LE GOFF, 1989, p. 28).
Diante disso, como fica a consciência do mercador, do banqueiro?
De modo algum podemos dizer que isso se resolveu placidamente. Dúvidas
pungentes atingiam aqueles que se dedicavam ao comércio e à usura.
Contrições lancinantes, confissões espetaculares, arrependimentos sinceros,
enfim toda uma série de histórias contadas sobre usurários que retomaram
o “bom caminho”, mas também penas eternas, castigos exemplares,
sofrimentos infindos, quer dizer, o contra-exemplo também tinha a sua
eficácia para lembrar a danação daqueles que não se arrependiam.
Essa mentalidade serviu durante muito tempo como um obstáculo
para o desenvolvimento do capitalismo e das atividades mercantis. Foram
necessários alguns séculos para que tal resistência fosse dissipada, porém,
mesmo hoje em dia, podemos ver que ainda existe e ainda pesa sobre a
nossa sociedade alguma desconfiança sobre a riqueza. Mas, de que forma
essa mentalidade foi se modificando? É possível dizer que as mudanças na
confissão espelham as mudanças nas concepções de indivíduo no período
medieval. Vejamos:
15
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
Figura
Jan Van Eyck, Casal Arnolfini, 1434, National Galery, Londres. A burguesia
busca marcar o seu lugar social no século XV.
16
unidade 1
História Moderna II
Este é o caso do capitalismo. A aceitação das práticas mercantis, do lucro,
da cobrança de juros, do pagamento do trabalho em forma de salário,
entre outras coisas, foram possíveis porque a sociedade assim se fazia;
por isso não podemos imputar somente a determinadas forças sociais as
causas das mudanças.
Podemos ver os seus resultados, mas estabelecer suas causas nos
resta como um problema. O sucesso social dos banqueiros, dos usurários
não dependeu unicamente das contradições inerentes ao sistema feudal ou
das necessidades materiais do próprio sistema. Também entraram em cena
desejos e paixões. Sonhos utópicos e promessas de futuro. O capitalismo
pôde, muito bem, preencher o desejo de uma terra de abundância. E é
sabido que vários grupos sociais cultivaram a ideia de uma terra sem
males, os movimentos heréticos podem comprovar isso. (COHN, 1981).
A promessa de riqueza inerente ao capitalismo preenche esses desejos,
pelo menos em parte, pois a promessa não se realiza para todos, somente
para alguns, mas isso é o suficiente para manter a utopia.
Mas um aspecto importante no avanço das práticas mercantis foi
o decisivo apoio que os poderosos lhe deram. O dinheiro de banqueiros
permitiu que muitos reis, príncipes ou potentados gerissem os nascentes
estados nacionais. Aliás, eles foram figuras centrais neste processo. As
riquezas permitiam a monopolização da força, isto é, os reis podiam
contratar exércitos e com eles centralizar o poder. Dessa forma, um
círculo vicioso se instaura, riquezas patrocinam o monopólio do poder e
este permite que os produtores de riquezas ganhem mais. É o princípio
da política mercantilista.
Os reis puderam perceber quanto podiam ter vantagens ao
proteger e permitir a expansão das práticas do nascente capitalismo. A
circulação de riquezas ampliava os recursos obtidos através de impostos
e, consequentemente, permitia que se impusesse o maquinário do
Estado a recalcitrante aristocracia, a qual não desejava abrir mão de seu
poder. Logo, banqueiros, comerciantes, grandes usurários se tornaram
fundamentais para os Estados, e os governantes praticavam o chamado
mercantilismo. Em termos comuns ele pode ser caracterizado da seguinte
maneira:
Metalismo – a riqueza de um Estado era mensurada em ouro ou
prata, portanto o objetivo era conseguir cada vez mais numerário nesses
17
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
metais.
Balança comercial favorável – para conseguir mais ouro e prata era
necessário manter a balança comercial sempre favorável, vendendo mais
e comprando menos dos outros Estados.
Protecionismo – devia-se estimular a produção interna e taxar
significativamente os produtos importados, pois assim seria possível
manter a balança de pagamentos sempre positiva.
Intervenção do Estado na economia – no mercantilismo uma
grande novidade surge: é a intervenção do governo na condução dos
negócios. Até então, os reis não intervinham na economia, mas com
as novas práticas comerciais se tornou importante estimular negócios,
controlar preços, regulamentar e monopolizar a cobrança de impostos.
Essa política seria perfeita se somente um dos Estados, que
concorriam entre si, conseguisse se impor sobre os outros, senão haveria
um jogo de somar zero, pois um anularia o outro, já que todos desejariam
ter vantagens no comércio. Em função disso, inicia-se uma intensa
competição militar e diplomática, na qual Estados buscam melhor posição
na disputa por espaços na Europa: “Entre 1600 e 1760, os exércitos da
Europa clássica quintuplicam em número, conhecem uma multiplicação
por cem do seu poder de fogo e, sobretudo, mudam radicalmente de
método e de técnica”. (CHAUNU, 1985, p. 52).
No entanto, os limites do continente europeu são muito claros
e dificilmente um Estado teria força suficiente para se impor sobre os
outros, já que eram comuns as alianças diplomáticas. Quer dizer, se um
Estado não tivesse força militar suficiente para enfrentar um inimigo, ele
recorria a um sistema de aliança.
Outra saída era o mar, ou melhor, buscar territórios além-mar. Dá-se
início a uma intensa busca por territórios em outros continentes.
seção 2
as grandes navegações
18
unidade 1
História Moderna II
séculos XV e XVI com relação às viagens de descobrimento.
A historiografia marxista, por exemplo, acreditando ter elucidado
o problema, afirmou que as relações materiais de produção determinaram
o comportamento dos homens em relação às viagens. Buscava-se ouro e
riquezas, além do domínio de territórios e populações. Porém, se observarmos
bem, é possível perceber que as grandes navegações foram iniciadas por
Estados não tão poderosos - Portugal e Espanha.
Muitos historiadores procuram explicar de que forma esses Estados
empreenderam as navegações e a expansão colonial. Situam interesses
da burguesia, a necessidade de rotas alternativas para as especiarias, a
situação geográfica. Porém muitos se esquecem de que as navegações e as
conquistas coloniais vieram na esteira da Reconquista.
19
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
Por que razão o infante empreendeu a exploração das costas africanas? Não se poderia
atribuir-lhe, nessa época longínqua, o ‘grande projeto’ de contornar a África para chegar
às Índias. O mais provável é que, navegando o mais longe possível para o sul, o
Infante quisesse, por assim dizer, chegar ao Marrocos pela retaguarda. Essas primeiras
expedições faziam parte da mesma política que levaria à conquista de algumas praças
fortes marroquinas. (TEYSSIER, 1992, p. 14).
____________________________________________________________________________________________
Principais rotas dos navegantes.
20
unidade 1
História Moderna II
As caravelas foram os principais navios utilizados pelos portugueses
nas viagens marítimas e “o que se pôde apurar até agora é que a caravela
dos descobrimentos foi concebida e construída pelos portugueses por
volta de 1430-1440, aperfeiçoando-se ao mesmo tempo dois outros meios
técnicos: a navegação astronômica e a cartografia.” (Idem, p. 75). Assim,
um conjunto de técnicas permitiu a viagem em alto mar.
Porém, essas viagens não podem ser limitadas ao seu caráter técnico.
Como foi dito acima, muitos outros elementos estiveram envolvidos. Para
alguns, a glória e a riqueza; para outros, a possibilidade de liberdade;
outros, ainda, desejavam expandir o catolicismo. Enfim, misturam-se
desejos e condições materiais para realizá-las. Vejamos:
Muitos viajantes da época dos descobrimentos enfrentaram os mares como alguém que,
hoje, entrasse num avião sem a garantia do aeroporto no final da viagem: assim como
os passageiros não podem voar para salvarem-se caso o pouso não seja possível, além
da incerteza dos caminhos, rotas e portos, grande número daqueles navegantes sequer
sabia nadar, morrendo aos montes quando os navios afundavam, às vezes a poucos
metros das praias. Por isso, se o mar fazia-se agitado, olhos de desespero buscavam
os sinais menos evidentes que prenunciavam o naufrágio, provocando sentimentos de
medo e ódio capazes de pôr em disputa dois amigos por um pedaço de madeira que
poderia significar a salvação; cada um a seu modo, todos lutavam concentrando forças
de pânico, coragem ou covardia para escapar da morte – medo maior a assombrar a
vida a bordo. (MICELI, 1994, p. 17).
21
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
Ainda que essa viagem seja muito perigosa e que nela muito se sofra com a falta de
víveres e outros infortúnios – como muitos relataram – considerando-se entretanto o
grande lucro que se obtém, no caso em que a metade da frota se perdesse, nem por isso
se renunciaria a fazer essa viagem, pois – embora ainda menos navios se salvassem –
os ganhos seriam, de qualquer forma, enormes: assim, concluindo, direi que, apesar do
evidente perigo que correm as pessoas e as coisas, essa rota (das Índias) sempre será
freqüentada. (apud LANCIANI, 1992, p. 72).
22
unidade 1
História Moderna II
Porém, a mortalidade nos naufrágios concorria com aquelas devidas
às doenças que grassavam nos navios. As péssimas condições de higiene e
acondicionamento dos alimentos causavam a morte de muitos. A expedição
de Fernão de Magalhães, por exemplo, “partiu de Sevilha, em setembro
de 1519, com cinco navios e 234 tripulantes. Após muitas peripécias e três
longos anos, somente uma nau retornou ao porto de origem, com 18 homens
a bordo, tendo o próprio comandante morrido em combate nas Filipinas.”
(JOANILHO, 2008, p. 48).
As doenças eram dos mais variados tipos, mas a que causava mais
medo era o escorbuto. Sem conhecer exatamente a causa, sabia-se, no
entanto, que alimentos frescos curavam a doença. Porém, era impossível nos
navios armazenar frutas e verduras que durassem mais do que alguns dias;
logo, somente nos portos de escala é que os navios podiam se abastecer. O
problema é que os víveres nunca eram suficientes para as longas viagens.
Além do escorbuto, outras doenças advinham das péssimas condições de
bordo e também aquelas que embarcavam com os marinheiros:
Os que pior (...) passam são os pobres e desamparados, os soldados que é piedade
23
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
ver a má vida que levam, com um biscoito muito negro e às vezes cheio de gusanos,
como eu vi muitas vezes, e às vezes tão amargo, que mais sabe a fel: que o pão e a
água (...) é tão fedorenta pelo grande calor, que creio que nenhum deles por grande
preço, achando-se em terra onde houvesse [o] que comer, [por mais] que fosse
desejoso, a beberia. E têm eles tanta necessidade que não se queixam tanto de ser
ruim, [mas] de ser pouco. Algum vinho que se lhes dá é quase vinagre e muito sujo
(...). Nos dias de pescado não têm outra coisa mais para comer, senão molhar
neste vinagre este pão podre ou muito ruim e manter-se com isto (...). A carne, além de
ser muito pouca, também é muito salgada e não têm onde deixá-la de remolho, porque
na borda da nau ou a comem os peixes ou a tomam (...); finalmente são constrangidos
estes pobres homens a comer e beber da água salgada em que outros cozeram sua
carne. (Padre Marcos Nunes apud MICELI, 1994, p. 158).
A imagem de grandeza projetada por Lisboa exercia forte atração sobre estrangeiros
e sobre os habitantes do restante do país, que procuravam a cidade talvez na crença
de que lhes sobrasse um pouco da riqueza movimentada pela empresa da expansão
e conquista.
Da componente estrangeira que, desde meados do século X, chegou a Lisboa, faziam
parte alemães e italianos, principalmente, além de flamengos, espanhóis e franceses.
Em sua maioria, dedicavam-se ao comércio, mas incluíam técnicos da marinharia,
artistas ou ‘simples aventureiros’. (MICELI, 1994, p. 49).
24
unidade 1
História Moderna II
seção 3
a ocupação de novos territórios
Jan Van Der Straet, 1575 in BRY, Jean-Théodore de, America décima pars.
Oppenheim 1619.
25
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
26
unidade 1
História Moderna II
os para as praças dos mercados para vendê-los como escravos, e os violentavam
então de modo incrível para obter melhor preço (...). (Zaynuddin apud BOUCHON,
1992, p.229 e 230).
Hans Staden, 1557. Uma imagem que aterrorizava os exploradores era a do canibalismo. Ela
permite a desconstrução do Outro, apresentando-o como selvagem e antropófago, o que coloca o
europeu em situação de superioridade, pois é portador da civilização.
27
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
28
unidade 1
História Moderna II
Podemos observar essas duas ações através do trabalho de Tzvetan
Todorov. Ao estudar o sistema linguístico de europeus e indígenas do
período, o autor percebeu que se tratava de dois conjuntos mentais
diferentes. De início, coloca-se o problema da comunicação. Vejamos:
Seria forçar o sentido da palavra ‘comunicação’ dizer (...) que há duas grandes formas
de comunicação, uma entre os homens, e outra entre o homem e mundo, e constatar
que os índios cultivavam principalmente esta última, ao passo que os espanhóis
cultivavam principalmente a primeira? Estamos habituados a conceber somente a
comunicação inter-humana, pois o ‘mundo’ não sendo um sujeito, o diálogo com ele
é bastante assimétrico (se é que há diálogo). Mas talvez esta seja uma visão limitada,
responsável, aliás, pelo sentimento de superioridade que temos nesse campo. A noção
seria mais produtiva se fosse ampliada de modo a incluir, além da interação de indivíduo
a indivíduo, a que existe entre a pessoa e seu grupo social, a pessoa e o mundo natural,
a pessoa a o universo religioso. E é este segundo tipo de comunicação que desempenha
um papel predominante na vida do homem asteca, que interpreta o divino, o natural e o
social através de indícios e presságios, com o auxílio do profissional que é o sacerdote-
advinho. (TODOROV, 1993, p. 67).
Os livros antigos dos maias e dos astecas ilustram essa concepção do tempo, tanto por
seu conteúdo quanto pelo uso que deles se faz. São guardados, em cada região, pelos
adivinhos-profetas e são (entre outros) crônicas, livros de história; ao mesmo tempo,
permitem prever o futuro; já que o tempo se repete, o conhecimento do passado leva ao
conhecimento do futuro; ou melhor, são a mesma coisa. (Idem, p. 81 e 82).
29
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
Montezuma sabia colher informações sobre seus inimigos quando eles se chamavam
tlaxcaltecas, tarascos, huastecas. Mas o intercâmbio de informação era então
perfeitamente estabelecido. A identidade dos espanhóis é tão diferente, o comportamento
deles a tal ponto imprevisível, que abalam todo o sistema de comunicação, e os astecas
não conseguem mais fazer justamente algo que era especialidade deles: a coleta de
informações. (Idem, p. 17).
30
unidade 1
História Moderna II
logo informações sobre os indígenas. O que ele quer “não é tomar, mas
compreender; são os signos que interessam a ele em primeiro lugar, não
os referentes. Sua expedição começa com uma busca de informação, e
não de ouro. A primeira ação importante que executa – a significação
deste gesto é incalculável – é procurar um intérprete.” (Idem, p. 96).
Enquanto Montezuma é informado quase que instantaneamente
do desembarque dos espanhóis e não age, o conquistador busca a ação
através da informação. Utiliza constantemente imagens - como cavalos ou
tiros de canhão - para provocar reações nos indígenas, impressionando-
os e obtendo o que desejava.
Nesse sentido, o europeu reconhecia o outro para torná-lo o mesmo,
isto é, para cristianizar o indígena; já o ameríndio não reconhecia o
outro, pois não fazia parte do seu sistema de signos. Na guerra entre
signos e significantes, quer dizer, entre sinais e acontecimentos, os
europeus levaram vantagem.
Porém, a conquista nunca foi completa. Nas palavras do
dominicano Diego Duran, “esta é nossa principal intenção: prevenir o
clero da confusão que pode existir entre as nossas festas e as deles. Os
índios, simulando a celebração das festas de nosso Deus e dos santos,
inserem e celebram as de seus ídolos quando caem no mesmo dia”.
Ou, ainda: “Superstição e idolatria estão presentes por toda a parte: na
semeadura e na colheita, na conservação do grão, inclusive na lavoura
e na construção das casas, nos velórios dos mortos e nos funerais, nos
casamentos e nos nascimentos”. (apud TODOROV, 1993, p. 202 e 203).
Esse é um dos traços principais da cultura que nasce do encontro
do europeu com o indígena. No lugar de uma sociedade europeizada,
encontramos uma cultura mestiça, fruto do sincretismo e das astúcias de
sobrevivência dos mais fracos. Por toda a América vamos encontrando
essa cultura mestiça. Se o conquistador impôs sua ordem social – Estado,
leis, mercado, religião – os conquistados impuseram suas formas de
reler e dar outro sentido ao que era imposto.
31
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
Pudemos estudar nesta unidade alguns aspectos da expansão europeia e das mentalidades que
acompanham o esforço por conquista de novos territórios.
Assim, na seção I, vimos como a mentalidade capitalista se formou, apesar das resistências e
obstáculos.
Na seção II, estudamos a configuração social que permitiu a expansão, vendo de que forma os
europeus encaravam a viagem marítima e a exploração colonial.
Enfim, na seção III, pudemos ver como se estabeleceu a relação entre o europeu e as populações
indígenas. Os diferentes quadros mentais jogaram um papel fundamental no estabelecimento da
empresa colonial europeia.
Desse modo, foi possível organizar um primeiro painel do período estudado, História Moderna, e
verificar de que forma nesse momento vão se configurando as sociedades contemporâneas.
Para compreender melhor a constituição de outras formas econômicas, leia o texto de MATTOS,
Laura Valladão de. “As razões do laissez-faire: uma análise do ataque ao mercantilismo e da defesa da
liberdade econômica na Riqueza das Nações” in Revista de Economia Política, vol 27, nº 1, São Paulo,
março 2007. Disponível em: http://www.anpec.org.br/encontro2005/artigos/A05A005.pdf
32
unidade 1
História Moderna II
“Neste particular, o ensinamento dos moralistas puritanos que deriva mais diretamente de Calvino está
em marcante contraste com os teólogos medievais e com o de Lutero. A diferença não reside meramente
em uma das conclusões alcançadas, mas no plano em que a discussão é conduzida. O background. não
apenas da maior parte da teoria medieval, mas também de Lutero e de seus contemporâneos ingleses,
é a tradicional estratificação da sociedade rural. É mais uma economia natural, do que monetária,
consistindo nas barganhas miúdas de camponeses e de artesãos no estreito mercado do burgo,
onde a indústria é realizada para a subsistência da família e o consumo de riquezas segue-se quase
imediatamente à sua produção e onde o comércio e as finanças são incidentes ocasionais, mais do que
forças a manter todo o sistema em movimento. Quando criticam abusos econômicos, é precisamente
contra os desvios desse estado natural de coisas — contra a iniciativa, a cobiça do ganho, a competição
inquieta, que perturbam a estabilidade da ordem existente com clamorosos apetites econômicos – que
sua crítica é dirigida. Essas idéias eram o revide tradicional aos males do comercialismo inescrupuloso,
e deixaram alguns traços nos escritos dos reformadores suíços.
[...] Calvino, e mais ainda seus intérpretes posteriores, encetaram viagem rio abaixo. Ao contrário de
Lutero, que mirava a vida econômica com olhos de camponês e de místico, eles abordaram-na como
homens de negócios, nem dispostos a idealizar as virtudes patriarcais da comunidade camponesa, nem
a olhar com suspeita o mero fato da iniciativa capitalista no comércio e nas finanças. Tal como o antigo
cristianismo e o moderno socialismo, o Calvinismo foi em grande parte um movimento urbano; como
eles, em seus primeiros dias, foi levado de país a país em parte por comerciantes e trabalhadores que
emigravam; e seu baluarte residia precisamente naqueles grupos sociais para os quais o plano tradicional
da ética social, com seu tratamento dos interesses econômicos como um aspecto de muito pouca
monta nos negócios humanos, deve ter parecido irrelevante ou artificial. Como era de se esperar [...],
seus líderes dirigiam o ensinamento [...] às classes empregadas no comércio e indústria, que formavam
os elementos mais modernos e mais progressistas da vida da época. Agindo assim, naturalmente
começaram por um franco reconhecimento da necessidade do capital, do crédito e das transações
bancárias, do comércio e finanças em larga escala, e de outros fatos práticos da vida comercial.
Romperam assim com a tradição que, considerando a preocupação com os interesses econômicos
‘além do indispensável à subsistência’ como repreensível, havia estigmatizado o intermediário como um
parasita e o usurário como um ladrão. Colocaram os lucros do comércio e das finanças [...] ao mesmo
nível de respeitabilidade que os salários do trabalhador e as rendas do proprietário.” (TAWNEY, R. H. A
religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 109-111.)
2 – Após ler a seção II (As grandes navegações), analise o mapa abaixo e elabore um texto que
descreva as condições da expansão marítima européia do século XV.
Mapa
Mapa feito por Henricus Martellus, em 1490.
Representa o mundo que os navegantes do
século XV conheciam. (Fonte: www.google.
com)
3 – Após ler a seção III (A ocupação dos novos territórios), analise as imagens da seção e a partir delas
elabore um texto que descreva as diferenças entre europeus e ameríndios.
4 – Leia o documento abaixo, fragmento de um texto de Frei Bartolomé de LAS CASAS, defensor dos
povos ameríndios, e elabore um texto que incorpore as informações do documento com a idéia principal
da seção III, a ocupação dos novos territórios.
33
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
Documento
“Depois das enormes e abomináveis tiranias que estes fizeram na cidade do México e nas cidades
e muitas terras que há por redor, dez, quinze e vinte léguas de México, onde foram mortas infinitas
gentes, passou adiante essa sua tirânica pestilência, e foi infeccionar e assolar a província de Pánuco,
admirável pela multidão de pessoas que tinha e os estragos e matanças que ali fizeram.
Depois destruíram da mesma maneira a província de Cututepeque, e depois a província de Ipilcingo e
depois a de Colima. Cada uma delas é maior que o reino de Leão e o de Castela. Contar os estragos,
mortes e crueldades que fizeram em cada uma será sem dúvida muito difícil e impossível de dizer e
trabalhosa de escutar.
É de se notar que o modo com que entravam e pelo qual começavam a destruir todos aqueles
inocentes e despovoar aquelas terras, que tanta alegria e gozo deveriam causar aos que fossem
verdadeiros cristãos com sua tão grande e infinita população, era dizer que viessem sujeitar-se e
obedecer ao rei da Espanha; caso contrário haveriam de matá-los e fazê-los escravos. E aos que
não vinham rapidamente cumprir tão irracionais e estúpidas mensagens e colocar-se nas mãos de
tão iníquos, cruéis e bestiais homens, chamavam-nos rebeldes e revoltados contra o serviço de sua
Majestade. E assim escreviam para cá ao rei nosso senhor.
E a cegueira dos que regiam as Índias não alcançava nem entendia aquilo que em suas leis está
expresso e mais claro que qualquer outro de seus primeiros princípios, a saber: que ninguém, é nem,
pode ser chamado rebelde, se primeiro não é súdito.
[...] E o que é mais espantoso é que, aos que de fato obedecem, colocam em áspera servidão, com
incríveis trabalhos e tormentos ainda maiores e que duram mais do que os que lhes dão enfiando-lhes
a espada, daí que no final eles perecem, suas mulheres e filhos e toda sua geração.” (LAS CASAS,
Frei Bartolomé de. “Brevíssima relación de la destrucción de las Indias”, in MARQUES, Ademar Martins
et alii (sel.). História Moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 1994.)
34
unidade 1
História Moderna II
35
unidade 1
36
Universidade Aberta do Brasil
unidade 1
UNIDADE II
História Moderna II
Os Estados Nacionais
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender a sociedade de ordens do Antigo Regime.
ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - A centralização do poder
■■ SEÇÃO 3 - O absolutismo
37
unidade 1
Universidade Aberta do Brasil
38
unidade 2
História Moderna II
seção 1
A centralização do poder
39
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
40
unidade 2
História Moderna II
O cerimonial associado ao monarca tem por função tornar visível o imaginário do corpo
simbólico. Quando um soberano morre, seu sucessor não traja luto porque o Rei não
poderia morrer. A etiqueta exige que em tal circunstância esteja vestido de vermelho,
cor que também usarão os membros do Tribunal de Justiça. (...) Cada acontecimento da
vida particular do rei acarreta repercussões no plano de seu corpo simbólico. Quando se
casa, é a nação que cresce e recebe como dote os novos territórios. Quando o príncipe
é derrotado na guerra, é a nação que fica amputada. O delfim não pertence ao rei ou à
rainha, mas ao reino e, por isso, a rainha dá à luz em público. (APOSTOLIDÈS, 1993,
p. 15 e 16).
41
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
A cura das escrófulas A cerimônia que melhor traduz a idéia de incorporação é a entrada real. Essa
ou o toque real era uma manifestação não possui um ritual inflexível como a sagração em Reims, por exemplo.
cerimônia de origem Estreitamente associada à instauração do poder monárquico na França, ela tornou-
obscura, mas que era se mais complexa à medida que a realeza conseguia impor sua ordem. Em fins do
ligada às realezas século XIII, período em que a vida urbana é ainda pouco desenvolvida, é uma simples
francesa e inglesa. cerimônia de acolhimento (...) O desenvolvimento da burguesia urbana transforma o
Acreditava-se que os reis cerimonial. A entrada torna-se um pacto entre a monarquia e a burguesia, que crescem
tinham o poder de curar paralelamente em detrimento dos senhores feudais e do campesinato. A partir do
as escrófulas tocando- século XIV a acolhida encarrega-se de um ritual mais elaborado: o rei é recebido fora
as. A cerimônia consistia dos muros da cidade, a exibição é ruidosa, animada. A entrada torna-se o equivalente
no toque direto seguido político da Festa do Corpo de Deus: o monarca desloca-se sob um pálio; oferecem-lhe
do sinal da cruz. Isso uma sobrepaliz no adro da igreja onde será nomeado cônego de honra. Trata-se (...) de
ocorria um dia após a uma verdadeira Festa do Corpo do Rei. (APOSTOLIDÈS, 1993, p. 17 e 18).
sagração do rei. A partir
do rei Luís IX, São Luís, o
toque se torna periódico. Isso quer dizer que é a própria nação que é entronizada,
Há na historiografia uma
discussão a respeito da
confundindo-se os dois corpos. Afinal, o rei é a nação. Esse é o sentido
decadência da monarquia da famosa frase de Luís XIV, quando diz “l’Etat c’est moi” (O Estado
a partir do reinado de Luís
XV, que, recusando-se
sou eu). Porém muitos historiadores tomaram a frase e a prática como
fazer a confissão pelo fato prova de que os reis eram monarcas absolutos, isto é, impunham a sua
de manter como amante
a Madame du Barry.
vontade em detrimento dos outros corpos da nação, o que não acontecia
Quer dizer: se estava em de fato. O rei devia obediência à sua sacralidade, portanto, não podia se
estado de pecado, não
poderia fazer a cerimônia.
furtar de cumprir todo o cerimonial que se lhe requeria e também devia
Por isso o rei recebeu satisfazer os corpos e comunidades do reino. Em última instância, o rei
enormes críticas além
de ser alvo de chacota,
devia obedecer à própria religião e às imposições do cargo: aplicação da
o que, segundo alguns Justiça, da Soberania, da cura das escrófulas.
historiadores, ajudou
bastante os adversários
A ideia de que o monarca era absoluto ou que tudo podia é quase
do regime monárquico. uma caricatura da configuração de poder do Antigo Regime. Isso não
42
unidade 2
História Moderna II
quer dizer que monarcas não eram autoritários e até mesmo sanguinários,
mas a teoria dos dois corpos e da sacralidade do corpo real não implica
diretamente a caricatura que muitos historiadores cultivaram.
43
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
44
unidade 2
História Moderna II
seção 2
A governamentalidade e o nascimento
da biopolítica
45
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
De modo geral, o problema do governo aparece o século XVI (...): problema do governo
de si mesmo – reatualizado, por exemplo, pelo retorno do estoicismo no século XVI;
problema do governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante;
problema do governo das crianças, problemática central da pedagogia, que aparece e
se desenvolve no século XVI; enfim, problema do governo dos Estados pelos príncipes
(...)
Todos esses problemas, com intensidade e multiplicidade tão características do século
XVI, se situam na convergência de dois processos: processo que, superando a estrutura
feudal, começa a instaurar os grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais;
processo, inteiramente diverso, mas que se relaciona com o primeiro, que, com a Reforma
e em seguida com a Contra-Reforma, questiona o modo como se quer ser espiritualmente
dirigido para alcançar a salvação. Por um lado, movimento de concentração estatal, por
outro de dispersão e dissidência religiosa: é no encontro destes dois movimentos que se
coloca, com intensidade particular no século XVI, o problema de como ser governado,
por quem, até certo ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática geral
do governo em geral. (FOUCAULT, 1979, p. 277 e ss.).
46
unidade 2
História Moderna II
A introdução da economia no exercício político será o papel essencial do governo. E
se foi assim no século XVI, também o será no século XVIII (...) Governar um Estado
significará, portanto, estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em
relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma
forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do pai de família (...) A palavra
economia designava no século XVI uma forma de governo; no século XVIII, designará
um nível de realidade, um campo de intervenção do governo através de uma série
de processos complexos absolutamente capitais para nossa história. (Idem, p. 281 e
282).
Estas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os homens, mas em suas
relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o
território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc.; os
homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as
formas de agir ou de pensar, etc.; finalmente, os homens em suas relações com outras
coisas ainda que poder ser os acidentes ou as desgraças como a fome, a epidemia, a
morte, etc. (FOUCAULT, 1979, p. 282).
47
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
Portanto, uma série de finalidades específicas que são o próprio objetivo do governo. E
para atingir estas diferentes finalidades deve-se dispor as coisas. E esta palavra dispor
é importante, na medida em que, para a soberania (período medieval), o que permitia
atingir sua finalidade, isto é, a obediência à lei, era a própria lei; lei e soberania estavam
indissoluvelmente ligadas. Ao contrário, no caso da teoria do governo não se trata de
impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais táticas do
que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, com que
determinados fins possam ser atingidos. Isto assinala uma ruptura importante: enquanto
a finalidade da soberania é ela mesma, e seus instrumentos têm a forma de lei, a
finalidade do governo está nas coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição,
a intensificação dos processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de
serem constituídos por leis, são táticas diversas. (FOUCAULT, 1979, p. 284).
em primeiro lugar, a teoria da arte de governar esteve ligada desde o século XVI ao
desenvolvimento do aparelho administrativo da monarquia territorial: aparecimento dos
aparelhos de governo; em segundo lugar, esteve ligada a um conjunto de análises e
de saberes que se desenvolveram a partir do final do século XVI e que adquiriram toda
sua importância no século XVII: essencialmente o conhecimento do Estado, em seus
diversos elementos, dimensões e nos fatores de sua força, aquilo que foi denominado
de estatística, isto é, ciência do Estado; em terceiro lugar, esta arte de governar não
pode deixar de ser relacionada com o mercantilismo e o cameralismo. (Idem, 1979, p.
285).
48
unidade 2
História Moderna II
se vê como um ser criado e separado da própria criação, portanto, como
algo autônomo.
Neste breve exemplo podemos distinguir dois modelos sociais: o
holismo e o individualismo. Para o primeiro, vamos falar de um indivíduo
que só pode ser compreendido dentro de um todo social, ou seja, o
indivíduo é parte do todo. Para o segundo, vemos um indivíduo autárquico,
ou melhor, o indivíduo é à parte do todo. O que ocorreu na Europa desde
finais da Idade Média foi a mudança, em termos gerais, de um tipo de
sociedade, a holística, para uma individualista. Vejamos:
49
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
...nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada quanto a partir do momento em
que se procurou gerir a população. E gerir não queria dizer simplesmente gerir a massa
coletiva dos fenômenos ou geri-los somente ao nível de seus resultados globais. Gerir
a população significa geri-la em profundidade, minuciosamente, no detalhe. (Idem, p.
291).
seção 3
O absolutismo
50
unidade 2
História Moderna II
• Príncipe real
• Grão-príncipe
• Príncipe
• Infante
• Arquiduque
• Grão-duque
• Duque (mais importante se da Família Real)
• Conde-duque (título espanhol atribuído aos condes de
Olivares e aos duques de Sanlúcar la Mayor)
• Marquês
• Conde
• Conde-barão (título português oitocentista, atribuído
aos condes e barões de Alvito)
• Visconde
• Barão
• Senhor
• Baronete
• Cavaleiro e Chevalier
• Escudeiro
(Fonte: Wikipédia)
51
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
O cargo (...) permite a seu detentor cumprir em defesa do rei ‘funções essencialmente
ligadas às jurisdições e à administração destas’. O cargo existe em virtude de um edito
ou de ‘cartas de provisão’. Só pode ser criado pelo rei ou por seus agentes devidamente
autorizados (...). O cargo confere honra e privilégios, aí incluídas eventualmente
a nobreza e a isenção de impostos (...). O cargo é estável: o rei só pode destituir o
funcionário muito dificilmente, e isso limita na mesma proporção a arbitrariedade da
monarquia dita absoluta (...). No topo de sua carreira histórica (séculos XVII-XVIII), o
cargo, de maneira legal, pode ser comprado com toda a propriedade por aquele que
se tornará seu titular, depois será revendido, ou legado, herdado (...) Essa proliferação
pode ser encarada sob o ângulo oportunista das necessidades do Estado: de Luís XIII
a Luís XIV, ele cria e liquida sem cessar novos fragmentos de poder público. Lotei-os a
candidatos compradores, a fim de encher seus cofres. Simultaneamente, colocam-se
questões de princípio: o que assim se persegue é o crescimento do Estado monárquico,
e o enquadramento cada vez mais aprofundado da sociedade por este. (LADURIE,
1994, p. 26 e 27).
A monarquia, sob sua forma clássica, liga-se ao funcionamento de uma Corte, centrada
em torno do soberano. Itinerante no tempo dos Valois. Fixada em Paris, Fontainebleau,
e sobretudo Versalhes, sob os Bourbon (...). Na França, Luís XIV prende a si os grandes
senhores e os torna dóceis por uma outorga de pensões que implica a residência em
Versalhes, em tempo parcial pelo menos. Sistema caro, mas rentável em termos de
paz interna do reino. Doravante ‘os nobres estão agrupados em torno do trono como
um ornamento e dizem àquele que ali toma lugar o que ele é’. Apesar dessa evolução
ornamental, os senhores não se tornam por isso escravos do Rei-Sol. No máximo
marionetes! Sua reunião em Versalhes permite a Sua Majestade dominar os fios
aranhosos de uma teia clientelista: os grandes aristocratas (Harcourt, Condé, Villeroy)
estão à frente de uma rede piramidal de relações deferentes (...). Na França, mas
também na Espanha e em Viena, a Corte erige-se em lugar geométrico das hierarquias.
52
unidade 2
História Moderna II
Elas sustentam o sistema monárquico ou são subentendidas por ele. (LADURIE, 1994,
p. 14 e 15).
53
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
prestigiosos (...) e os benefícios que eles traziam podiam ser comprados e vendidos;
mas nem todo mundo podia comprá-los ou vendê-los (...). Foi uma fase depredadora
do capitalismo agrário e comercial, e o Estado mesmo era um dos primeiros objetos de
presa. O triunfo na alta política era seguido por um butim de guerra, assim como a vitória
na guerra era com freqüência seguida pelo butim político. (THOMPSON, 1979, p. 23).
Figura
Michel Dahl, Sir Charles Shuckburgh, 2nd Baronet, 1690, coleção particular. A nobreza
abandona aos poucos o seu caráter bélico e se adapta à corte, adquirindo hábitos e
comportamentos cada vez mais estilizados, opondo a sua conduta àquela dos burgueses.
54
unidade 2
História Moderna II
O interessante dessa disputa, que se inicia ainda na Idade Média,
foi a intensificação da diferenciação dos modos de comportamento e
conduta, especialmente por parte da nobreza. Esta, por sua vez, mesmo
necessitando dos préstimos burgueses, nunca deixou de demonstrar
com desdém a distância que existia entre os seus valores e os valores
burgueses:
A civilização não é apenas um estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o
novo elemento manifesto no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a
corte acreditar ser – em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mas
incivilizada ou mais bárbara – um tipo mais elevado de sociedade: a idéia de um padrão
moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos complexos
semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos membros do
movimento reformista, é ampliada a idéia sobre o que é necessário para tornar civilizada
uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a Constituição, a educação e, por
conseguinte, os segmentos mais numerosos da população, a eliminação de tudo o que
era ainda bárbaro ou irracional nas condições vigentes, fossem as penalidades legais,
as restrições de classe à burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento
do comércio – este processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à
pacificação interna do país pelos reis . (ELIAS, 1990, p. 62).
Isso implica que o conceito de civilização tem sua origem nas classes
superiores e, mais ainda, ela parte da nobreza que vê a burguesia se
aproximar dela própria. A sofisticação dos costumes, a politesse, o modo
de falar, de se vestir, de se comportar visam a marcar a diferença entre
55
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
Se madame du Châtelet pode ainda, no século XVIII, banhar-se nua em frente de seu
criado de quarto, não é apenas porque este não tenha tido acesso a dignidade humana,
mas também porque o corpo aristocrático possui uma imaterialidade que faz dele o
suporte da alma nobre. O cortesão aprende a controlar-se em todas as circunstâncias,
a modelar seu rosto e gestos em função do decoro (...). O cortesão constrói-se como
um castelo, todo de fachadas. Só produz efeito pleno quando olhado de certa distância.
Bem iluminado por velas de cera, a meio caminho do comediante e da estátua,
aprece possuir uma natureza diferente. Velho, não engorda, não se torna calvo, não
muda de aparência: o cortesão é uma essência que escapa à degradação histórica.
(APOSTOLIDÈS, 1993, p. 49).
56
unidade 2
História Moderna II
longo do século XVIII, mostra as fissuras para culminar, num caso, na
Revolução, noutro, num processo de simbiose no qual a própria nobreza
assume valores burgueses.
Para a formação dos Estados nacionais, o enriquecimento material dos reis foi acompanhado
por um conjunto de representações que legitimava seu poder. Na França, por exemplo, a sociedade
terrestre era a representação da sociedade celeste, o rei aparece como representante de Deus na terra
e sua corte, a nobreza, como representante dos anjos, santos e outros personagens divinos.
Do século XVI até o XVIII, em muitos países europeus, o rei e a nobreza foram se associando
cada vez mais à burguesia, que fornecia capital essencial à manutenção da máquina estatal. Esse
capital se tornava essencial quando o Estado passa a ter a responsabilidade de “governar as almas”,
isto é, administrar eficientemente a sociedade.
A crescente participação da burguesia no Estado favoreceu, por um lado, sua ascensão política
e social e, por outro lado, o processo de distinção empreendido pela nobreza, que não queria perder
seu status. Neste sentido a França é exemplar, pois a Revolução Francesa foi o momento de ruptura,
de tomada do poder estatal pela burguesia; e foi a nobreza francesa que provavelmente mais se
esforçou para se distinguir da burguesia, tendo como maior exemplo maior o rei Luís XIV, conhecido
como Rei-Sol.
O processo civilizador
O texto abaixo é do livro de Norbert Elias, O processo civilizador (Jorge Zahar, 1990, p. 201). Nele há
a descrição do que o autor chama de diversão no início do período moderno. A descrição pode se encaixar
muito bem naquilo que historiadores dos Annales chamaram de mentalidades. O objetivo do autor é mostrar
como as sensibilidades mudaram ao longo dos séculos, sem cair em lugares comuns como “evolução”
ou “progresso”. Para Elias, simplesmente, as sensibilidades mudaram porque entraram em cena forças
históricas profundamente humanas, como vimos nesta unidade.
“Um exemplo do século XVI pode servir de ilustração. Foi escolhido entre grande número de outros
porque mostra uma instituição na qual a satisfação visual de ânsia pela crueldade, do prazer em observar a
dor sendo infligida, emerge com especial pureza, sem qualquer justificação racional ou disfarce como castigo
ou meio de disciplinar.
Na Paris do século XVI, um dos grandes prazeres nas festividades do dia de São João (24 de
junho) consistia em queimar vivos uma ou duas dúzias de gatos. Esta cerimônia era famosa. A população
se reunia, música solene era tocada e, sob uma espécie de forca, erguia-se uma pira enorme. Em seguida,
um saco ou cesta contendo gatos era pendurado na forca. O saco ou a cesta começava a queimar, os gatos
caíam na pira e queimavam até a morte, enquanto a multidão se regozijava em meio a enorme algazarra.
Geralmente o rei e a rainha compareciam. Às vezes, concedia-se ao rei ou ao delfim a honra de acender a
57
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
pira. E sabemos também que, certa vez, atendendo a um pedido especial do rei Carlos IX, uma raposa foi
capturada e queimada também.
Certamente este não é, na realidade, um espetáculo pior do que a queima dos heréticos ou as
torturas e execuções públicas de todos os tipos. Apenas parece pior porque o prazer em torturar criaturas
vivas mostra-se tão nuamente e sem propósito, sem qualquer desculpa aceitável pela razão. O asco
despertado em nós pelo mero relato desse costume, reação que deve ser considerada ‘normal’ pelo padrão
moderno de controle de emoções, demonstra, mais uma vez, a mudança a longo prazo na estrutura da
personalidade. Ao mesmo tempo, permite-nos ver com grande clareza um aspecto dessa mudança: grande
parte do que antes despertava prazer hoje provoca nojo. Hoje, como naquela época, não são apenas
sentimentos individuais que estão envolvidos. A queima de gatos no Dia de São João era um costume social,
como o boxe ou a corrida de cavalos na sociedade moderna. E, em ambos os casos, os divertimentos
criados pela sociedade para seu prazer materializam um padrão social de emoções dentro do qual todos os
padrões individuais de controle das mesmas, por mais variadas que possam ser, estão contidos. Todos os
que caírem fora dos limites desse padrão social são considerados ‘anormais’. Por conseguinte, alguém que
desejasse gratificar seu prazer à maneira do século XVI, queimando gatos, seria hoje considerado ‘anormal’
simplesmente porque o condicionamento normal em nosso estágio de civilização restringe a manifestação de
prazer nesses atos mediante uma ansiedade instilada sob a forma de autocontrole. Neste caso, obviamente,
opera o mesmo tipo de mecanismo psicológico com base no qual ocorreu a mudança a longo prazo da
personalidade: manifestações socialmente indesejáveis de instintos e prazer são ameaçadas e punidas com
medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade. Na repetição constante do desagrado despertado
pelas ameaças, e na habituação a esse ritmo, o desagrado dominante é compulsoriamente associado até
mesmo a comportamentos que, na sua origem, possam ser agradáveis. Dessa maneira, o desagrado e a
ansiedade socialmente despertados – hoje representados, embora nem sempre nem exclusivamente pelos
pais – lutam com desejos ocultos.”
O povo e a nação
No texto abaixo, Jean-Marie Apostolidès descreve a participação dos indivíduos nos desfiles
monárquicos feitos por ocasião da entrada do rei nas cidades. Era um ritual comum desde a Idade Média,
quando as cortes eram itinerantes. O rei chega à cidade e seus súditos o acolhem. Com o passar dos anos,
o ritual ganha em pompa, tornando-se um espetáculo da monarquia. Nesse espetáculo realizam-se todas as
formas de distinção e exclusão de ordens e indivíduos, como veremos.
“A nação é constituída pelos indivíduos das três ordens que possuem a maior quantidade de bens.
Forma o embrião da burguesia, na acepção da palavra no século XIX. No momento da entrada, somente
uma minoria vinda das três ordens é chamada para desfilar com o príncipe, a fazer parte do espetáculo
diante do povo que ela representa. O cerimonial monárquico acentua assim uma polarização social que ele
traduz concretamente. A sociedade francesa cristaliza-se através de um ritual festivo cujas imagens servirão
de suporte à nova consciência: conforme se desfila ou não. Pertence-se à nação ou ao povo. Não se trata de
negar a diversidade dos subgrupos que constituem o povo e a nação, mas a separação em dois blocos, latente
na vida diária, tornou-se manifesta à época da entrada. A festa vem a ser uma ocasião para exprimirem-se as
novas divisões sociais. Fornece-lhes um brilho que as sanciona à vista de todos. O visual precede o escrito,
servindo-lhe de esboço: a imagem permite a tomada de consciência de uma dicotomia que a lei mais tarde
reforçará. De um lado, aqueles que tomam parte da procissão, o alto clero, a nobreza da corte, a minoria
poderosa do terceiro estado; na frente, os espectadores comprimidos ao longo da passagem do cortejo. A
milícia burguesa, formando uma ala de honra nas ruas, enfatiza a separação entre os que estão associados à
cerimônia e os que são apenas espectadores. Estes, nos jornais, são genericamente designados como povo,
ou um de seus derivados de conotação pejorativa.
Os detentores de cargo, os que juntaram dinheiro suficiente para conseguir um emprego, são
associados ao desfile, ao passo que são relegados para o lado do público os que exercem trabalho
‘mecânico’, os produtores diretos e os indivíduos que apenas vendem a força de seus braços. Esta separação
em dois blocos concretiza os desejos de Charles Loyseau, um dos principais escritores políticos do início do
século (XVII). Em seu Traité dês ordres, a fim de situar os beneficiários da acumulação primitiva oriundos
da terceira ordem numa relação igualitária com a aristocracia, traça uma linha que separa as profissões
58
unidade 2
História Moderna II
honoríficas das ocupações vis. Para ele, é a possibilidade de exercer um cargo que caracteriza, como
escreveu Boris Porchnev, a natureza iminente de cada burguês, aquilo que o distingue do povo’. No seio
da nação, indivíduos provenientes de horizontes diversos perdem sua especificidade. Experimentam, em
relação uns aos outros, uma espécie de indiferenciação que os define como semelhantes, adquirindo uma
equivalência na honorabilidade que contrasta com a rudeza do povo. São a presa do desejo mimético que se
apoderou de George Dandin ou do senhor Jourdain (personagens de Molière). Participam do mesmo sistema
de compreensão do mundo, enriquecendo segundo as mesmas práticas. Assim se compreende o lugar que
ocupa a cultura no nascimento do espírito burguês: após haver cortado os vínculos que a prendiam ao Antigo
Regime, a classe burguesa encontrará uma nova transcendência na universidalidade de seu gosto e de sua
cultura.
Por sua vez, a massa dos desfavorecidos submete-se ao mesmo processo de indiferenciação. O
povo não se unifica na partilha dos mesmos costumes. Encontra sua equivalência no despojamento de seu
saber e modo de vida tradicionais, despojamento que acompanha uma exclusão da cultura erudita. Possui,
do espetáculo monárquico, uma compreensão diferente da nacional. Para os indivíduos instruídos, a entrada
real guarda um sentido que se trata de reconhecer: as alegorias, as inscrições latinas lhes são familiares, pois
são encontradas em todas as manifestações do espetáculo. É através desse saber que a nação se define,
recuperando em seu benefício o modo de compreensão da aristocracia feudal. Fecha-se nela mesma quanto
à partilha de um saber inacessível. Na alegoria, o importante não é visível de imediato, o significante sugere
algo que não é mostrado. O povo não tem acesso às sutilezas alegóricas recebendo a cerimônia como um
todo. O poder monárquico não lhe dirige conteúdo algum, impondo-se através do monopólio dos signos do
espetáculo.
Os raros representantes do povo admitidos no cortejo desfilam como sinais de riqueza, como posses
dos membros da nação. Na comitiva de Mazarino, os pajens, os cavalos ou os objetos de arte não são
expostos em razão do seu valor de uso, mas como manifestações ostentatórias de poder. Homens, animais
e objetos já não têm função específica, equivalem-se. Coisificados, manifestam equivalência abstrata, aquela
do ouro que o cardeal possui. Todos têm o verniz do espetáculo que os torna inconsumíveis, isto é, sem
valor de uso. A exposição das posses não é senão uma exibição quantitativa do poder social, uma ocasião
para manifestá-lo e aferi-lo. Se Mazarino manda desfilar seus cavalos, seus burros e serviçais em grupos
de 24, o rei manda desfilar os seus em grupos de trinta. No século XVII, as posses não determinam ainda
a classe social, mas são exibidas como sinais de poder. A economia não constitui uma categoria separada
do real. Só se expressa através de um código do espetáculo, como o encenado no dia da entrada do rei.”
(APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1993, p. 21 e 22).
“A coroação e sagração (lê sacre) de Luís ocorreram em 1654 [...]. O ritual teve lugar, segundo
rezava o costume, na catedral de Reims [...]. A cerimônia incluía um juramento prestado pelo rei, prometendo
conservar os privilégios de seus súditos; perguntava-se também à congregação se aceitava ou não Luís
como rei. Seguiam-se a benção dos emblemas reais, entre os quais a chamada ‘espada de Carlos Magno’,
esporas e o anel que o historiador Denys Godefroy descreveu como ‘a aliança com que o dito senhor esposa
o Reino’ [...]. A seguir veio o momento da sagração. O corpo do rei foi ungido com o crisma, o santo óleo da
âmbula sagrada, um frasco que se dizia ter sido trazido do paraíso por uma pomba quando Clóvis, o primeiro
rei cristão de França, foi balizado por São Rémy. O bispo pôs o cetro na mão direita do rei, na esquerda pôs
a ‘mão da justiça’
e na cabeça a ‘coroa de Carlos Magno’. Seguiram-se a homenagem da alta nobreza do reino e a
revoada de um bando de pássaros no ar. O ritual foi assistido por embaixadores estrangeiros e (com mais
dificuldades, do lado de fora da catedral) por uma multidão de gente do povo. [...] Os que perderam os atos
puderam ler as descrições em muitos panfletos e ver as gravuras da coroação oficialmente encomendadas
ao artista Henri d’Avice. [...] O ritual foi assistido por embaixadores estrangeiros e (com mais dificuldades,
do lado de fora da catedral) por uma multidão de gente do povo. [...] O que o historiador precisa descobrir
59
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
não é tanto ‘o que realmente aconteceu’, mas o que aconteceu na interpretação da gente da época. Não
podemos presumir que todos viram as cerimônias sob a mesma luz. Ao contrário, o sacre parece ter sido
interpretado sob duas luzes muito diversas por diferentes tipos de pessoa. O significado do sacre para a
dinastia relativamente nova dos Bourbons era certamente mostrar sua legitimidade, estabelecendo contato
com soberanos anteriores, de Clóvis a São Luís. A cerimônia projetava também a imagem da monarquia
sagrada. Poderíamos dizer — e a gente da época de fato dizia — que o crisma tornava Luís semelhante
a Cristo e o sacre o tornava sagrado. Mais tarde, em suas memórias, Luís afirmou (tal como os teóricos
da monarquia absoluta) que sua sagração não o fizera rei, simplesmente o declarara rei. Acrescentou, no
entanto, que o ritual tornara sua realeza ‘mais augusta, mais inviolável e mais santa’. Essa santidade pode
ser ilustrada pelo fato de, dois dias depois, o jovem rei ter desempenhado pela primeira vez o ritual do toque
real. [...] O poder curativo do toque real constituía um poderoso símbolo do caráter sagrado da realeza.
Nessa ocasião, Luís tocou três mil pessoas. Ao longo de seu reinado, tocaria muito mais.” (BURKE, Peter. A
fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 51-55.)
1 – Após ler o texto principal e a seção “Saiba mais” da unidade II, elabore um texto analítico
sobre as imagens abaixo, que descreva como é possível a partir delas perceber as formas de legitimação
do poder e diferenciação do rei e da nobreza em relação aos outros grupos socioculturais, na época
do absolutismo.
60
unidade 2
História Moderna II
2 – Após ler a seção II (A governamentalidade e o nascimento da biopolítica) e a seção “Saiba
mais” da unidade II, analise o documento apresentado a seguir e produza um texto que explique a
que tipo de governo o documento se refere. Busque utilizar citações do documento e dos textos da
apostila.
“[...] [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante
da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de
camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça
de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas
das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo
de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche
em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado
por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas
lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. Essa última operação
foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de
quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembraras coxas do
infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um
grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-
no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: ‘Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me’.
Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de
sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente. [O comissário de polícia
Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e
mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes
de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a
barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em
seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os
pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que
ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras. Depois
desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem, contudo, blasfemar, levantava a cabeça e se olhava;
o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a
fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a
atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxa, das pernas e
dos braços. O senhor Lê Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar
se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma
como costumamos ver representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor”. Apesar
de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava de vez em quando a cabeça e se olhava
com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer
dores inexprimíveis. O senhor Lê Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria
dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava
conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: “Perdão, Senhor”. Os
cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado
por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas,
foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas
voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram
repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois
cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum. Enfim o
carrasco Samson foi dizer ao senhor Lê Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e
lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor
Lê Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os
cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-
lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar): ‘Beijem-me, reverendos’. O senhor cura de Saint-Paul não
teve coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o na testa.
Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu ofício,
pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura
61
unidade 2
Universidade Aberta do Brasil
de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa. Depois de duas ou três tentativas, o carrasco
Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas
na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas
de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os
braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortaras carnes até quase aos ossos;
os cavalos, puxando com toda f orça, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma
vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar; mas o carrasco informou-
lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar
inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles
levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez
soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta
do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à
palha ajuntada a essa lenha. [...] Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último
pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne
e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais, entre os quais me encontrava
eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos no local até mais
ou menos onze horas. Alguns pretendem tirar conclusões do fato de um cão se haver deitado no dia
seguinte no lugar onde fora levantada a fogueira, voltando cada vez que era enxotado. Mas não é difícil
compreender que esse animal achasse o lugar mais quente do que outro. (apud FOUCAULT, Michel.
Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 9-10.)
62
unidade 2
História Moderna II
63
unidade 2
64
Universidade Aberta do Brasil
unidade 2
UNIDADE III
As revoluções inglesas
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender a mentalidade religiosa e política presente na Inglaterra do
século XVII.
revoluções inglesas.
ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - A Revolução de 1640
66
unidade 3
História Moderna II
seção 1
a revolução de 1640
67
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
Por volta de 1640, a gentry não era constituída nem por fiéis seguidores de um conde
local, nem por obedientes servidores da facção política que controlava o poder na Corte.
Eram cidadãos de pleno direito da nação, homens independentes e com recursos.
Eram eles que lotavam as universidades e os Inns of Courts [Tribunais do Direito
Consuetudinário], que enchiam as fileiras dos Juízes e que na Camâra dos Comuns
começavam a predominar sobre outros grupos sociais. Eram uma força a ser levada
em conta, e todo governo que contrariasse seus interesses ou afrontasse suas crenças
e valores deparar-se-ia certamente com sérios problemas políticos. (STONE, 2000, p.
141).
68
unidade 3
História Moderna II
da Igreja e do Estado rejeitavam completamente” (HILL, 2003, p. 92). O
absenteísmo da Igreja Anglicana, a tradução para o inglês, a impressão
e divulgação da Bíblia e dos textos de seus comentadores levaram um
grande e diversificado número de ingleses a buscarem outras experiências
religiosas e políticas de caráter católico, protestante ou herético radical.
A leitura disseminada da Bíblia favoreceu, também, o questionamento
da doutrina do direito divino dos reis. Em linhas gerais, essa doutrina
entende que a autoridade régia era de “direito divino”, os reis haviam sido
eleitos por Deus para governar o seu povo. A sua realeza era absoluta,
independente de qualquer poder ou autoridade da terra, e só perante
Deus teria que prestar contas do modo como exercera o seu poder. Já no
século XVI, o texto do Salmo 105,14-15, “não toqueis nos meus ungidos”,
foi interpretado por alguns estudiosos como “não toque àqueles que Eu
santifiquei para serem Meu povo”, ou seja, essas palavras serviam para
repreender os reis. Em 1642, durante a Guerra Civil, panfletos anônimos
diziam que essas palavras fariam com que “a monarquia se transformasse
em democracia e eram repetidas para o povo, como se somente eles fossem
sagrados e mais ninguém” (HILL, 2003, p. 94).
Nesse sentido, a Bíblia de Genebra exaltava a submissão pela
consciência. Isto é, “enquanto se tratar de algo legal nos é permitido:
para tudo aquilo de ilegal que nos for ordenado, devemos responder
como ensinou São Pedro, é melhor obedecer a Deus do que aos homens”
(apud HILL, 2003, p. 95). Destarte, a incontestabilidade da realeza cai por
terra, suas ordens ficam submetidas à consciência individual. Entretanto,
adverte Hill: “a ênfase na interpretação individual não deve ser confundida
com um individualismo absoluto. Era na congregação dos fiéis que tais
interpretações se viam testadas e aprovadas” (HILL, 1987, p. 107). Em
relação a questões econômicas, a congregação de Thomas Beard, da qual
fazia parte o jovem Oliver Cromwell, pregava “’Não é justo nem pela Lei
de Deus nem pela dos homens’ que os reis taxem ‘além do possível’”
(HILL, 2003, p. 100). O “possível” era determinado pelo acordo entre as
“consciências da congregação”.
Durante o reinado de Elizabeth I, os conflitos religiosos foram
contidos, mas se difundiu na Inglaterra uma interpretação bíblica de caráter
protestante (presbiteriano e puritano). Não que fosse unânime perante os
ingleses ou da vontade da Coroa e da Igreja Anglicana. Principalmente, não
69
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
[...] Carlos I e seus autoritários partidários, olhavam para o passado, para os reinados
dos ricos e fortes Henrique II, Eduardo I, ou Henrique VIII, quando os poderes do
executivo estavam no seu ápice. Laud pensava com inveja na riquíssima Igreja tardo
medieval, politicamente poderosa e socialmente bem relacionada, enquanto Carlos I e
alguns de seus conselheiros sonhavam restaurar um passado antediluviano, quando a
hierarquia social era mínima e cada qual sabia o lugar que lhe correspondia. (STONE,
2000, p. 104-105).
70
unidade 3
História Moderna II
(ANDERSON, 2004, p. 124-125) – ou de exércitos mercenários. Isto é,
“Os reis Tudor e Stuart não tinham a mínima possibilidade de lançar uma
ofensiva em grande escala contra rebeldes internos sem o suporte militar
voluntário dos seus próprios súditos” (STONE, 1990, p. 122).
Talvez, o pior dos “pesadelos” de Carlos I, tenha sido a desestruturação
da hierarquia social. Na sociedade feudal não existiam homens sem senhor:
sua essência era hierárquica e estável, seu fundamento era a lealdade e a
dependência do servo ao senhor. Porém, lembra Hill:
É claro que a realidade jamais correspondeu a este modelo, e pelo século XVI a sociedade
estava-se tornando relativamente móvel: não eram mais foragidos da lei homens sem
senhor, porém existiam em números alarmantes [...] trinta mil só em Londres, segundo
uma suposição menos cuidadosa, de 1602. (HILL, 1987, p. 55)
71
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
72
unidade 3
História Moderna II
Parlamento, se utilizam de velhas leis e costumes. Todas essas atitudes
foram extremamente impopulares e colocaram vários setores da sociedade,
mormente a plebe e a gentry, contra a monarquia (ARRUDA, 1990, p. 66-
73; HILL, 1987, p. 12-18).
A política Stuart foi praticável em tempo de paz, mas em 1640, sem
exército e vendo o norte da Inglaterra sendo invadido por um exército
escocês, Carlos I foi obrigado a convocar o Parlamento em busca de
recursos. Logo, o Parlamento exige reformas e retribuição pelas vexações;
indignado com as exigências, em três semanas o rei dissolve o chamado
Parlamento Curto. Em desesperada necessidade, reconvoca o Parlamento
ainda em 1640; esse é o chamado Longo Parlamento, que dá início a
Revolução Puritana de 1640 e ordena mudanças no Estado e nas leis.
Segundo Lawrence Stone:
73
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
74
unidade 3
História Moderna II
seção 2
a revolução de 1688
75
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
76
unidade 3
História Moderna II
“O interesse do povo no reino de Cristo não é apenas um interesse de
[...] submissão, porém de consulta, de discussão, de aconselhamento,
profetização e voto” (John Saltmarsh, 1646 apud HILL, 1987, p. 73-74),
ou “‘esses que são chamados ministros’ não tinham ‘maior autoridade
para pregar em público do que qualquer outro indivíduo cristão que
tenha recebido o dom’” (William Erbery, 1646 apud HILL, 1987, p. 74).
Ainda, muitos membros da soldadesca questionavam a propriedade da
terra e profetizavam o dia em que haveria um limite para esta (Cf. HILL,
1987, p. 73-74).
Assim, a partir de 1647, os Levellers (Niveladores) londrinos, uma
espécie de partido político formado por pequenos produtores, viram a
possibilidade – já iniciada espontaneamente – e a necessidade de se
“unificarem ao exército” para concretizar seus “sonhos de futuro”. Ou
seja, é na “organização democrática” do Exército que as ideias dos
Levellers vão se tornar praticáveis. Suas vontades foram expressas no
Acordo do Povo (Agreement of the People), um contrato social leveller,
discutido entre os oficiais e os soldados do Exército e “conformado” por
um de seus lideres, Lillburne:
[...] propunha o comércio livre para os pequenos produtores; a extinção dos monopólios;
a separação entre a Igreja e o Estado; a abolição dos dízimos eclesiásticos, com
indenização; a proteção à pequena propriedade; a reforma da lei dos débitos, proibindo-
se o aprisionamento por dívida; o sufrágio universal masculino, proposta radical do
Coronel Rainborowe, amenizado pelo grupo de Lillburne para o voto familial, com
exclusão dos criados, pedintes e assalariados. Propunham também o fim do cercamento
[...], dando ao seu projeto político um amplo espectro social e, apesar de não se dirigir à
classe dos pobres sem propriedades, o projeto dos Niveladores [Levellers] ficava bem
perto de suas aspirações. (ARRUDA, 1990, p. 81).
77
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
78
unidade 3
História Moderna II
um marceneiro itinerante. Acreditavam que as pessoas podiam resgatar
aqui na terra a pureza e a inocência existente no Paraíso antes da “Queda”,
defendiam a propriedade coletiva e afirmavam que somente o fiel
abençoado pelo espírito de Deus compreende corretamente as Escrituras.
Em suma, era um credo leigo e anticlerical (HILL, 1987, p. 42-54).
Existiam, ainda, as seitas que se destacavam por serem extremistas
ou por terem propostas políticas mais acabadas. Estas floresceram na
década de 1650, formadas por antigos Levellers ou Diggers, eram os
Ranters, Seekers e Quakers. Podem ser definidas da seguinte forma:
79
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
seção 3
Política e sociedade
80
unidade 3
História Moderna II
que necessita da introdução de um “elemento novo” nas práticas e
representações sociais para se concretizar.
Hoje em dia, já não se encontram argumentos para contrariar a
característica revolucionária da Inglaterra do século XVII. Mesmo a
introdução de um “elemento novo” deve ser pensada no contexto do
período, e está claro que durante a Revolução Inglesa ocorreu uma
profunda reorganização social, política e cultural. Acompanhada por uma
enorme atividade mental – entre 1640 e 1661 foram publicados mais de
22.000 panfletos, discursos, sermões e jornais – e material, durante esses
anos uma expressiva e diversificada parcela da sociedade inglesa “praticou
política” e alterou suas instituições (STONE, 2000, p. 102-105).
Na tradição marxista, ocorreram inúmeras comparações entre
as Revoluções Inglesa, Francesa, Russa e outras da “Era Moderna e
Contemporânea”. Como mencionado anteriormente, Thompson – e
parte da Nova Esquerda inglesa – descarta o “modelo de interpretação”,
presente na tradição marxista-leninista e fundado na Revolução Francesa,
como um modelo eficiente para se compreender a Revolução Inglesa.
Parte do problema está na descontinuidade do processo revolucionário
inglês, com avanços e retrocessos que não ocorrem em outras revoluções
(THOMPSON, 2001, p. 203-211). Outra parte está na concepção de política
presente na vertente marxista-leninista, que relega ao segundo plano toda
a efervescência popular do período, atribuindo-lhe o estatuto de práticas
espontaneístas, pré-políticas, reacionárias ou arcaicas.
Segundo uma vertente da concepção materialista da história,
representada em especial por Lênin, as classes trabalhadoras – em sua
acepção objetiva – existem desde as sociedades arcaicas que romperam
com as relações de parentesco. Entretanto, “a consciência de classe
é um fenômeno da era industrial moderna”, ou seja, somente com o
desenvolvimento do capitalismo os trabalhadores começam a adquirir
consciência de si próprios e produzem movimentos sociais genuinamente
políticos e coesos.
Por isso, as classes trabalhadoras provenientes das sociedades arcaicas,
ao adentrarem as sociedades modernas – por vontade própria ou por coerção
–, tendem a apresentar uma consciência de classe indeterminada, ambígua
e/ou conservadora. Gradativamente, já participando das sociedades
modernas, essas classes trabalhadoras começam a se formar como classe
81
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
Fonte: www.imagens.google.com.br
82
unidade 3
História Moderna II
de um modelo ideal – que precede as evidências históricas – e medidas
quantitativas, produzindo uma noção de classe como “categoria estática”.
A noção de classe como “categoria histórica” manifesta dois sentidos
distintos. O primeiro refere-se à classe como conteúdo histórico real,
presente apenas nas sociedades capitalistas, onde as classes se reconhecem
como classes, com interesses opostos e em luta entre si. O segundo diz
respeito à classe como categoria heurística, capaz de organizar evidências
históricas que não possuem correspondência direta com o termo, isto é,
como categoria alternativa de explicação do processo histórico universal
e manifesto de conflito entre “grupos humanos” em sociedades pré-
capitalistas, onde os “grupos humanos” não se reconhecem como classe
(THOMPSON, 1989, p. 33-39).
Desse modo, é por meio da noção de classe como “categoria histórica
e heurística” que se torna possível compreender a ação da plebe durante a
Revolução Inglesa. A “gente mesquinha” não necessita de uma identidade
política formal para mudar o curso da política inglesa, basta possuir
uma identidade cultural e práticas sociais que se opõem à dos grupos
dominantes:
Uma plebe, sem dúvida, não é uma classe operária. Seria necessário para isso que ela
desse de si mesma uma definição consistente, que tivesse uma consciência de classe
afirmada, objetivos claros, uma organização de classe estruturada. Mas a presença
política da plebe, do “populacho” ou da multidão é evidente. Ela pesava sobre a alta
política em um certo número de ocasiões [...]. (THOMPSON, 2001, p. 219).
No século XVII, a Bíblia era aceita como elemento central a todas as esferas da vida
intelectual: não era aceita como um livro ‘religioso’, no sentido moderno e restrito da
palavra religião. A Igreja e o Estado na Inglaterra dos Tudor [e dos Stuart] eram um
só; a Bíblia era, ou deveria ser, o fundamento de todos os aspectos da cultura inglesa.
(HILL, 2003, p. 28).
83
unidade 3
Universidade Aberta do Brasil
84
unidade 3
História Moderna II
Nesta unidade estudamos as revoluções ocorridas na Inglaterra do século XVII. Demos ênfase
à forma como os diferentes grupos sociais entendiam o mundo e projetavam o futuro. Foi por meio da
luta travada entre realistas, parlamentaristas, radicais, etc. que a sociedade inglesa se modificou. Não
foi o desenvolvimento das forças produtivas que gerou as mudanças socioculturais, mas as vontades e
as práticas dos diversos grupos em oposição, que “conformaram” a Inglaterra de 1688.
Ainda pudemos refletir a respeito das diferentes formas ou instâncias políticas. Isto é, não é
necessariamente por meio de um “Partido”, presente no Parlamento, que a plebe vai impor suas vontades
aos grupos dominantes. Na Inglaterra do século XVII, as práticas religiosas eram tão importantes quanto
às práticas políticas formais, como forma de transformar a sociedade e a organização do Estado.
1 – Após ler a unidade 3, faça uma resenha (resumo comentado e crítico) do conteúdo
apresentado, dando ênfase ao debate em torno das “instâncias informais de luta política” descritas
no texto da unidade. Para elaborar os comentários e/ou crítica, pesquise em revistas, textos e jornais
atuais exemplos das diferentes instâncias de luta política.
85
unidade 3
86
Universidade Aberta do Brasil
unidade 3
UNIDADE IV
O Iluminismo
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender ciência e verdade no período Clássico.
ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 -Ciência e Verdade
88
unidade 4
História Moderna II
a historiografia do século XIX que a utilizou à exaustão. Ora, se a
história é progresso, então TODAS as sociedades do passado, cada
uma da sua maneira, representavam uma versão obsoleta da nossa
sociedade. Essa concepção de história e de passado resulta em uma
visão linear dos acontecimentos, apaga todas as outras possibilidades
e as diferenças, transforma a sociedade atual no resultado natural e
racional do progresso humano.
É desse modo que o discurso histórico constitui uma única
narrativa, evitando a questão da alteridade. Porém, se tomarmos outra
atitude em relação aos homens da Era Clássica, veremos que nossa
sociedade não é resultado do desenvolvimento racional e natural das
sociedades passadas, mas de relações de força, de disputas entre
grupos socioculturais distintos e de rupturas. Como são os vencedores
que contam história – pelo menos assim era no século XIX e parte do
XX –, apagaram tudo aquilo que não os enaltecia, que não dava um
sentido racional e natural à história.
É claro que temas que hoje nos são caros apareceram naquela
época, mas não podemos simplesmente colocá-los num degrau abaixo
do nosso, porque, pretensamente, acreditamos que evoluímos. Os
temas aparecem, mas estão naquela sociedade e não nesta, portanto
merecem outro tipo de compreensão, que é o da distância entre o
sujeito do conhecimento e seu objeto. Assim, poderemos reconhecer a
alteridade e aquilo que os fez diferentes de nós e, por que não, aquilo
que nos faz diferentes. Nesta alegoria de
Regnault vemos o
ser humano, alado,
apresentando as opções
da humanidade. De
um lado, a Liberdade
segurando o barrete
frígio, símbolo da
Revolução Francesa, e
com os signos da razão;
e de outro, a Morte,
desprovida de saber,
tenebrosa. Não há acordo
entre as duas opções.
Entretanto, como veremos
adiante, a noção de razão
aqui simbolizada não é
Figura a mesma que a atual,
Jean-Baptiste Regnault, La liberté ou la não estamos no mesmo
mort, 1795, Hamburguer Kunsthalle. “regime de verdade”.
89
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
seção 1
Ciência e verdade
Trata-se (...) de reconstituir uma verdade produzida pela história e isenta de relações
com o poder, identificando ao mesmo tempo as coerções múltiplas e os jogos, na
medida em que cada sociedade possui seu próprio regime de verdade, isto é, ‘os tipos
de discurso que elas acolhem e fazem funcionar como verdadeiros; os mecanismos
e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a
maneira como uns e outros são sancionados; as técnicas e os procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o poder de
dizer aquilo que funciona como verdadeiro [FOUCAULT, Dits ET Écrits, vol. 3, texto nº
184]. (REVEL, 2005, p. 86).
Nesse aspecto, a verdade não é algo que está estabelecido desde o iní-
cio dos tempos. Ela é, antes de tudo, uma forma de discurso sobre algo, so-
bre determinado objeto, sobre o mundo, sobre nós mesmos. O que é verda-
de irrefutável em uma determinada época, em outra é quimera. As crenças
dos gregos em seus deuses se tornaram um grande engano na nossa Era e,
se temos algum respeito pelas suas crenças, não é porque acreditamos que
também possam ser verdades, mas simplesmente porque é politicamente
correto aceitar suas crenças. Tanto que a palavra mito, para nós, significa
histórias inventadas ou ilusórias (vide o dicionário Aurélio).
O mesmo se passa com o século XVIII. Eliminamos das nossas nar-
rativas tudo aquilo que poderia ser ruído. Tudo aquilo que não soa muito
bem. Por que, ao falarmos de Newton, devemos também dizer que ele acre-
ditava na alquimia? Isso não é de bom tom, afinal ele fundou as bases da
matemática moderna, logo suas crenças na alquimia constituíam um desvio
do verdadeiro caminho. Mas qual caminho, o nosso? Se assim compreen-
dermos, é evidente que Newton ainda tinha alguma coisa de atraso; porém,
se nos ativermos às representações sociais, vemos que não havia nenhuma
contradição. O pensamento científico do período estava pleno daquilo que
hoje chamamos de magia.
Os regimes de verdade dos séculos XVII e XVIII não estavam numa
90
unidade 4
História Moderna II
posição hierarquicamente inferior aos nossos, simplesmente eram outras
formas de acreditar e, por isso, não devem ser colocados como parcialmente
incapazes, mas como outra forma de pensar a realidade. A questão é que
o pensamento científico do século XIX impõe a sua lógica como a única
possível para explicar as coisas. Logo, tudo aquilo que não comunga da
sua forma é inapto, falso, irrisório ou incompleto. Toda e qualquer forma de
pensamento fora do discurso científico não responde àquilo que se entende
por verdade. Os pensamentos mitológico, mágico, fabuloso, religioso face à
ciência não passam de quimeras ou formas rudimentares de compreender
a realidade. Esta deve passar pelo crivo do pensamento científico para ser
plausível e compreensível.
No entanto, compreendendo que essa forma de pensamento não
deixa de ser uma construção discursiva, quer dizer, uma forma de verdade
construída historicamente, então é possível constatar que outras formas de
verdade são possíveis e que são tão efetivas quanto as que se colocam para
nós hoje. Nesse sentido, a produção de verdades na Era Clássica não era
simples erro ou uma forma ingênua de perceber a realidade. Era outra for-
ma de pensar.
As bases da ciência não estavam calcadas na pura experimentação,
conforme os procedimentos modernos. Os chamados cientistas da Era Clás-
sica acreditavam não só nas forças físicas como também nas forças metafí-
sicas, aquelas que não vemos e agem sobre a matéria, sobre os homens e
sobre os destinos. A lógica é simples: não existem coisas que os olhos não
veem, como os germens, e que a todo instante os microscópios nos atestam?
O mesmo não poderia acontecer com outras forças que estão em ação no
universo? A gravidade não é uma força invisível e que atua sobre a matéria?
O mesmo não poderia se passar na astrologia, pois os planetas não exerce-
riam também influência sobre as pessoas? É por isso que determinadas for-
ças não visíveis são consideradas nos experimentos e no conjunto teórico.
Para que caibam essas forças invisíveis nas teorias científicas dos
séculos XVII e XVIII, devemos compreender como a ciência era pensada.
O conhecimento foi descrito por Foucault como “mathêsis”,
isto é, a busca por um conhecimento total e sem interrupções, ou seja, a noção de que,
do campo da matemática, o conhecimento passasse para o da filosofia, da medicina,
astronomia e assim por diante, sem descontinuidade, sem quedas. A idéia é a de uma
superfície a ser percorrida, sendo que as paisagens que se modificam ao redor nada
seriam além do cenário familiar inicial. (JOANILHO, 2004, p. 73).
91
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
Os homens dos séculos XVII e XVIII não pensam a riqueza, a natureza ou as línguas
como o que lhes fora deixado pelas idades precedentes e na linha do que logo viria a
ser descoberto; pensam-nas a partir de uma disposição geral que não lhes prescreve
apenas conceitos e métodos, mas que, mais fundamentalmente, define um certo
modo de ser para a linguagem, os indivíduos da natureza, os objetos da necessidade
e do desejo; esse modo de ser é o da representação. Consequentemente, aparece
todo um solo comum, onde a história das ciências figura como um efeito de superfície.
(FOUCAULT, 1981, p. 223).
que ‘não merece semelhante título (letrado) aquele que, com escassa doutrina, cultiva
apenas um gênero de estudos’: ‘A ciência universal deixou de estar ao alcance do
homem; mas os verdadeiros letrados encontram-se na situação de deslocar os seus
passos pelos diversos campos, apesar de não os poderem cultivar todos.’ Neste
aspecto, o homem de letras representa a figura moderna do gramático antigo que ‘era
não só um homem versado na gramática propriamente dita, que é a base de todos
os conhecimentos, mas um homem a quem a geometria, a filosofia, a história geral
e particular não eram estranhas; que fazia sobretudo da poesia e da eloqüência o
seu estudo’. A definição do homem de letras apresentada na Enciclopédia é, então,
a de um enciclopedista: não é um erudito que adquiriu saber profundo sobre uma
determinada disciplina, mas um homem que possui conhecimentos em todas as áreas
do saber. (CHARTIER, 1997, p.119).
92
unidade 4
História Moderna II
campos de ciência, ou pelo menos do que se acreditava ser a ciência. Por
isso, a ciência não lhes era estranha quando investigavam coisas tão próxi-
mas de nós, como a composição do ar, e tão distantes, como o peso da alma.
Cientistas
Daí, para esses cientistas, serem possíveis conceitos que, aos nossos
olhos, parecem confusos e inocentes, quase pueris, mas que, naquele regi-
me de verdade, eram perfeitamente plausíveis e de modo algum lhes eram
estranhos.
É-nos quase que totalmente difícil acreditar que tal fato seria plausível;
no entanto, ao compreender as representações sociais podemos perceber
que os homens da Era Clássica têm suas próprias maneiras de explicar
as coisas. Reafirmando, isso não quer dizer que eles se encontravam num
estágio inferior do conhecimento, era simplesmente outra forma de explicar
e acreditar. Mas eles próprios produziam as formas de elucidação do seu
conhecimento. Para eles, o projeto Iluminista se opõe àquilo que consideram
atraso. Os segredos dos alquimistas, por exemplo, não devem mais imperar
na transmissão do conhecimento. Ele deve ser acessível a todos. É dessa
percepção que nasce a Enciclopédia, quer dizer, a possibilidade de trazer à
luz todos os conhecimentos:
93
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
os mistérios dos antros alquimistas; assim, o caminho para a manufatura vai sendo
calçado com os cacos das corporações.
Com a progressiva decadência da concepção de casta do saber, caem também as
barreiras entre cientista e cientista. Para facilitar a circulação das idéias, trata-se de
reuni-las em academias e esboça-se uma federação de academias que unifique o
saber da humanidade. (LOSANO, 1992, p. 76).
Quando Diderot declara solenemente em 1761 que a ‘Europa racional’ vai certamente
suceder à ‘Europa selvagem’, ‘pagã’ e ‘cristã’, ele exprime uma convicção muito
94
unidade 4
História Moderna II
difundida entre todos os filósofos esclarecidos do continente, mas também uma
autêntica vontade, de uma larga parte do mundo político e intelectual, de transforma
o Antigo Regime. O progresso da civilização européia e a difusão do Iluminismo são
dois fenômenos inextricavelmente ligados junto a Lessing, junto ao abade Raynal ou
junto a Cesare Beccaria: não se trata de puras fórmulas retóricas vazias de sentido,
pois elas encarnam algumas crenças desses homens e pelo o quê eles lutam, como o
cosmopolitismo e a referência à idéia de humanidade nas obras de Kant e Condorcet.
(ROCHE, 1999, p. 499).
seção 2
A idéia de progresso
95
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
puderam mostrar que os homens dos séculos XVI e XVII estavam mais
avançados do que os gregos. É interessante observar que a questão do
acúmulo do conhecimento foi objeto de longas discussões que culminaram
na chamada Querela dos Antigos e Modernos:
E é bom lembrar que havia uma discussão já exaustiva entre filósofos acerca da
superioridade dos modernos sobre os antigos (...) Hoje, pode-se considerar um pouco
exagerada a preocupação com esse debate que animou salões e academias na Europa
moderna, principalmente na França e Inglaterra, e que aconteceu a partir de meados
do século XVII. Contudo, a querela foi de importância fundamental para discussões
posteriores acerca da noção de progresso e conseqüentemente de história. Ela opôs
pensadores de certo peso na época como Racine, La Fontaine, Boileau, do lado
dos antigos, e Fontenelle, Perrault, Bayle e d’Aubignac, do lado dos modernos, para
ficarmos apenas nos franceses. A questão principal era: os antigos eram superiores em
sabedoria em relação aos modernos ou não? Até o século XVII não havia uma clara
percepção sobre a distância entre os filósofos da antiguidade e os contemporâneos e a
noção de que eles eram ainda superiores estava muito presente. Foi a partir do Novum
Organum, de Francis Bacon, que a geração seguinte pôde pensar que ‘os antigos
representavam a juventude do mundo, enquanto o seu próprio tempo era glorificado
pelo conhecimento acumulado pelas épocas. (JOANILHO, 2004, p. 71).
96
unidade 4
História Moderna II
como irrefutável. De qualquer maneira, os homens de ciência da Era
Clássica viam o mundo se transformar e isso graças aos conhecimentos
adquiridos de maneira formal, isto é, por aprendizado especializado.
Tanto que:
97
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
Tal é o objetivo da obra que escrevi, e cujo resultado será de mostrar, pela razão e
pelos fatos, que a natureza não colocou nenhum término para o aperfeiçoamento
das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem é realmente indefinida;
que o progresso dessa perfeição, não obstante independentes das forças que as
querem fazer parar, não tem outro fim que a duração do planeta no qual a natureza
nos colocou. Sem dúvida, esse progresso poderá seguir uma marcha mais ou menos
rápida; mas nunca retrocederá, enquanto a terra ocupar o mesmo lugar no sistema do
universo, e que as leis gerais desse sistema não produzirem sobre o planeta nem uma
transformação geral, nem mudanças que não permitam mais a existência da espécie
humana. (CONDORCET, 1822, p. 3 e 4).
98
unidade 4
História Moderna II
calvinista. Aprendeu a ler e escrever cedo. Com a morte do pai, quando
ele tinha dez anos, foi trabalhar. Adolescente, resolveu sair da cidade
natal. Após vagar foi recebido por uma rica senhora, madame de Warens,
tornando-se amante dela. Assim empreendeu os seus estudos. Já adulto
chega a Paris e logo faz amizades no círculo dos letrados. Diderot o convida
para escrever sobre música na Enciclopédie. Participa de concursos de
academias e ganha vários prêmios, o que lhe dá fama, e torna-se parte
integrante da República das Letras.
A sua obra de maior sucesso é a Nova Heloísa, romance no formato
epistolar, gênero em desuso hoje em dia. Ao referir-se ao amor entre dois
personagens, Julie e Saint-Preux, o romance trata da busca da felicidade
através de virtudes e uso da razão, diferenciando o amor da paixão. Foi
um dos livros mais lidos do século XVIII.
Mas, o que nos chama a atenção é o fato de Rousseau ser
lembrado, hoje, pelo seu livro O contrato social, que, no entanto, foi um
grande fracasso de vendas quando lançado. Nele o autor trata da vida do
homem em sociedade e como atingir um estado de felicidade através da
reordenação política da própria sociedade.
O fracasso de seu livro mais lembrado coloca em questão a própria
noção que temos do século XVIII. Toma-se a trajetória de Rousseau como
exemplar, pois, para os historiadores, ele alcançou um lugar de destaque
social, tornando-se um grande filósofo graças a seus méritos. Mas, se
observarmos mais de perto, veremos que não é bem assim.
seção 3
O homem do Iluminismo
99
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
100
unidade 4
História Moderna II
uma noção do filosófico partilhada por homens cujo negócio era saber o que os
franceses queriam ler. Se a colocarmos em contraste com a visão do movimento
filosófico que piamente vem sendo passada de manual para manual, impossível não
sentir um certo desconforto: a maioria dos títulos é absolutamente desconhecida e
parece sugerir que um monte de lixo acabou se juntando, de alguma forma, à idéia
de filosofia do século. Talvez o Iluminismo fosse mais banalizado que o rarefeito clima
de opinião descrito pelos autores de manuais faz suspeitar, e devêssemos questionar
a visão pretensiosa, sumamente metafísica, da vida intelectual no século XVIII.
(DARNTON, 1989, p. 14).
101
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
102
unidade 4
História Moderna II
Anicet-Charles-Gabriel Lemonnier, Leitura no salão de
Madame Geoffrin em 1755, 1812, Château du Malmaison, Rueil.
Neste quadro o autor, saudosista, retratou a antiga sociedade
de corte. Nobres, artistas, filósofos reunidos numa dos mais famosos
salões do século XVIII em torno do busto de Voltaire.
103
unidade 4
Universidade Aberta do Brasil
Nesta unidade estudamos o homem dos séculos XVII e XVIII e pudemos observar como era a noção
de verdade e ciência do período. De certa forma, o chamado Iluminismo foi precursor dos conceitos
de ciência que portamos hoje.Por mais que se faça referência ao período como aquele que trouxe
a ciência e a verdade para o seu devido lugar, na realidade vemos pessoas com crenças e práticas
completamente diferentes daquelas dos homens contemporâneos. Isso quer dizer que elas tinham
outras formas de verdade e que eram tão críveis quanto aquelas que temos hoje.
Devemos compreender a distância temporal que nos cerca como a distância da alteridade, ou
seja, quando tratamos do passado, estamos falando do outro e não do mesmo. Os homens do século
XVIII são nossos antepassados apenas em termos genéticos, em termos históricos eles pertencem a
outra categoria de humanos, como os nossos índios. É dessa forma que devemos compreender as
sociedades do passado.
“O fracasso estrondoso do Contrato social, o livro menos popular de Rousseau antes da revolução,
levanta um problema para os estudiosos que investigam o espírito radical na década de 1780: se
o maior tratado político da época não conseguiu despertar interesse entre muitos franceses cultos,
qual foi a forma das idéias radicais que efetivamente se adaptou aos seus gostos? Uma forma tal
apresentou-se sob os inverossímeis traços do magnetistmo animal ou mesmerismo. O mesmerismo
suscitou um enorme interesse durante a década pré-revolucionária; embora originalmente não tivesse
qualquer relevância para a política, ele se tornou, nas mãos de mesmeristas radicais como Nicolas
Bergasse e Jacques-Pierre Brissot, uma teoria política camuflada, muito semelhante à de Rousseau.
O movimento mesmerista, portanto, serve como exemplo do emaranhamento, em nível vulgar, entre
política e modas passageiras, proporcionando aos escritores radicais uma causa que poderia prender
a atenção dos leitores sem atrair a da censura (...).
Em fevereiro de 1778, Franz Anton Mesmer chegou a Paris e anunciou sua descoberta sobre
um fluido ultrafino que penetrava e cercava todos os corpos. Mesmer não vira realmente esse seu
fluido; chegou à conclusão de que ele devia existir como o meio para a ação da gravidade, visto que os
planetas não poderiam se atrair num vácuo. Além de imergir todo o universo nesse ‘agente da natureza’
primordial, Mesmer trouxe-o para a Terra, a fim de abastecer os parisienses com calor, luz, eletricidade
e magnetismo, e exaltou particularmente sua aplicação na medicina. Ele sustentava que a doença
resultava de um ‘obstáculo’ ao fluxo do fluido através do corpo, o qual se assemelhava a um imã. As
pessoas poderiam controlar e fortalecer a ação do fluido ‘mesmerizando’ ou massageando os ‘pólos’ do
corpo, e com isso superar o obstáculo, induzir uma ‘crise’, muitas vezes sob a forma de convulsões, e
restaurar a sáude ou a ‘harmonia’ do homem com a natureza.
O que emprestou força a esse apelo ao culto da natureza no século XVIII foi a capacidade de
Mesmer de operar com seu fluido, lançando seus pacientes em espasmos de tipo epiléptico ou transes
104
unidade 4
História Moderna II
sonambúlicos e curando-os de males que iam desde a cegueira até o tédio produzido por um excesso
de atividade do baço. Mesmer e seus seguidores encenavam apresentações fascinantes: sentavam-
se cingindo com seus joelhos os joelhos do paciente e corriam os dedos por todo o corpo da pessoa,
procurando os pólos dos pequenos imãs que compunham o grande imã do corpo como um todo. A
mesmerização exigia habilidade (...).
Por mais extravagante que pareça hoje em dia, o mesmerismo não justifica a negligência
dos historiadores, pois correspondeu perfeitamente ao interesse dos franceses cultos na década de
1780. A ciência conquistara os contemporâneos de Mesmer revelando-lhes que viviam cercados por
forças invisíveis e maravilhosas: a gravidade de Newton, que Voltaire fizera inteligível; a eletricidade
de Franklin, popularizada por uma voga de pára-raios e demonstrações nos liceus e museus elegantes
de Paris; e os gases miraculosos dos aeróstatos Charlière e Montgolfière que assombravam a
Europa ao elevar o homem ao ar pela primeira vez em 1783. O fluido invisível de Mesmer parecia
igualmente miraculoso, e ninguém poderia afirmar que era menos real do que o flogisto que Lavoisier
vinha tentando expulsar do universo, ou do que o calórico pelo qual ele aparentemente vinha tentando
substituí-lo, ou do que o éter, o ‘calor animal’, a ‘natureza interna’, as ‘moléculas orgânicas’, a alma do
fogo e as outras potências fictícias que se encontram como fantasmas a habitar os tratados mortos dos
cientistas do século XVIII tão respeitáveis como Bailly, Buffon, Euler, La Place e Macquer. Os franceses
podiam ler descrições de fluidos muito semelhantes ao de Mesmer nos verbetes ‘fogo’ e ‘eletricidade’
na Encyclopédie [Enciclopédia]. Se quisessem se inspirar numa autoridade ainda maior, poderiam ler
a descrição de Newton sobre o ‘espírito extremamente sutil que permeia e se oculta em todos os
corpos densos’, no fantástico último parágrafo dos seus Principia [Princípios, 1713] ou nas indagações
posteriores de sua Opticks [Óptica].”
“Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física,
porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do
corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral
ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos,
autorizada pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam
alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros,
ou mesmo fazerem-se obedecer por eles. [...]
O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas
bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano
aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes:
“Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos,
e a terra de ninguém!.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. 1755, p. 12, 29-30. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/)
2 – Após a leitura da unidade II, os Estados Nacionais, e da unidade IV, o Iluminismo, assista ao filme
Vatel: Um banquete para o rei (Roland Joffé, França: Miramax Films, 2000) e elabore um texto que
descreva as características e as relações entre a sociedade de corte, o Grand Monde e o Iluminismo.
3 – Após ler a unidade IV, o Iluminismo, elabore um texto que relacione Iluminismo, idéia de progresso,
revolução burguesa e historiografia “tradicional”.
105
unidade 4
106
Universidade Aberta do Brasil
unidade 4
História Moderna II
PALAVRAS FINAIS
Na disciplina de Moderna II pudemos observar, pelo menos em parte,
as mentalidades e as práticas dos homens do período que abarcaria os séculos
XV, XVI, XVII e XVIII. Devemos compreender que as mentalidades não
manifestam uma unidade de pensamento. Muito pelo contrário, expressam
diferentes matizes e crenças “encarnadas” em práticas igualmente diversas,
uma não existe sem a outra, uma não é mais ou menos importante que a
outra.
São os diferentes grupos socioculturais que fundam e empregam as
distintas mentalidades e práticas. Estas – como aqueles – estão em constante
concorrência, para se imporem como verdade histórica, natural e universal.
As navegações, por exemplo, nos mostram os temores e os desejos
de muitos europeus em torno da riqueza, conforto, salvação da alma e
dominação. Já os modos de governo nos apontam para as formas de imposição
de vontades, enquanto a ciência do século XVIII nos diz bastante sobre as
verdades e crenças.
Diante disso, esta disciplina não enveredou pelos caminhos tradicionais,
apesar da temática; buscaram-se maneiras de compreender o período que
pudessem nos dizer mais a respeito dos homens da época e, talvez, de nós
mesmos.
107
PALAVRAS FINAIS
Universidade Aberta do Brasil
REFERÊNCIAS
unidade I
BOUCHON, Geneviève et alii. O espelho asiático. In: CHANDEIGNE,
Michel (Org.). Lisboa Ultramarina: 1415-1580: a invenção do mundo pelos
navegadores portugueses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
MICELI, Paulo. O ponto onde estamos. São Paulo: Editora Página Aberta,
1994.
unidade II
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo:
108
REFERÊNCIAS
História Moderna II
Brasiliense, 2004.
unidade III
ARRUDA, Jobson de Andrade. Revolução Inglesa. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
109
REFERÊNCIAS
Universidade Aberta do Brasil
unidade IV
BLAY, Michel e HALLEUX, Robert (Org.). La science classique. Paris:
Flammarion, 1998.
______. Boemia literária e Revolução. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
110
REFERÊNCIAS
História Moderna II
NOTAS SOBRE OS AUTORES
111
AUTOR