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1. O contexto histórico
Considere-se o campo da psicoterapia do final da década de 40.
Psicanaliticamente orientada, a prática terapêutica definia-se como uma
relação diádica, em que o analista, voltado para um paciente, no que tange ao
seu desenvolvimento histórico único e à sua trajetória enquanto organismo
psíquico, caminhava, por meio do conteúdo da sua linguagem manifesta, para
o conteúdo latente de seu inconsciente. Caracterizada como um modelo
intrapsíquico, a psicoterapia psicanalítica dirigia-se a um sujeito individual,
cujos problemas e manifestações de sintomas decorriam de conteúdos
reprimidos, mantidos inconscientes e, portanto, localizados no seu aparato
psíquico. A escuta do analista orientava-se para a busca do conteúdo da
história passada, portanto centrada na própria experiência do paciente.
Condizente com a epistemologia da época, a teoria psicanalítica via o
comportamento humano regido pelas forças intrapsíquicas, que, como na
física, obedeciam às leis de conservação e transformação da energia.
Historicamente falando, contudo, no final da primeira metade do século,
a psicanálise começou a deixar os institutos, sendo introduzida nas escolas
médicas. Por outro lado, a psiquiatria despontou como uma especialidade
promissora (Guerin, 1978). O continente americano vivia as conseqüências da
Segunda Grande Guerra, do conflito na Coréia e os estragos da bomba
atômica, o que resultou em um aumento da coesão entre os membros das
famílias, dizimadas pelas separações devido à guerra (Guerin, 1978; Hoffman,
1981).
Tudo isso, aliado a uma posição crítica revisionista contra as teorias
psicodinâmicas e a terapia psicanalítica, criou um contexto propício para a
busca de novas alternativas de compreensão e tratamento dos dilemas
humanos. A principal objeção ao modelo psicanalítico dizia respeito ao seu
enfoque voltado para a história passada, mergulhado na experiência interna
expressa em seqüências intrapsíquicas. Assumir tal postura implicava construir
modelos que desconsideravam as condições do ambiente como contexto.
Tentativas de alargar as perspectivas do modelo psicanalítico para a
antropologia cultural, lingüística e teoria de campo surgiam dos próprios
psicanalistas como Sullivan, Horney, Thompson e Fromm-Reichmann
(conforme os dizeres de Don Bloch, prefaciando o livro de Hoffman, 1981). Por
outro lado, e principalmente, havia uma insatisfação com os nada animadores
resultados dos tratamentos psicoterápicos com populações menos favorecidas,
como os pacientes esquizofrênicos e os delinqüentes. Todos esses fatores
configuraram as condições de possibilidade para uma prática clínica
sistemicamente orientada (Guerin. 1978; Hoffman, 1981; Anderson, 1997). O
advento da teoria sistêmica, em cuja formulação von Bertalanffy se envolveu
desde 1930, e da cibernética, proposta como uma nova ciência por Norbert
Wiener, na década de 40, configurou um sistema de inteligibilidade para uma
nova prática psicoterápica que atendia às demandas do momento histórico.
O trabalho inicial centrado na família começou como pesquisa e, na sua
grande maioria, tendo como foco famílias com pacientes esquizofrênicos e
famílias com filhos delinqüentes, que já tinham tido problemas com a lei. Essas
duas populações tinham em comum o fato de ambas não estarem se
beneficiando dos tratamentos convencionais. Entre os que se dedicaram ao
trabalho com famílias com pacientes esquizofrênicos, tiveram especial
participação, nos primórdios da terapia familiar sistêmica, Gregory Bateson.
Don Jackson, Weakland, Haley, Bowen, Lidz, Whitaker, Malone, Scheffen e
Birdwhistle. Muito desse trabalho encontra-se descrito no livro organizado por
Bateson — "Interación familiar" (Bateson et al., 1980). Quanto ao trabalho
inicial com famílias com filhos delinqüentes, o marco inicial pode ser
considerado como o grande projeto Wiltwick, desenvolvido por Minuchin, no
início da década de 60. Minuchin selecionava para seu trabalho famílias com
pelo menos dois filhos considerados delinqüentes, em que ambos já tinham
sido envolvidos em problemas com a lei. Com o trabalho desses dois grupos
pioneiros, nesses dois desafiadores contextos de dificuldades, o foco da prática
terapêutica mudou, assim, do indivíduo para a família, com ênfase nas
interações entre seus membros.
Esse contexto em que surgiu a terapia familiar sistêmica foi bem descrito
por Anderson (1994):
..."circunstâncias clínicas e experiências, combinadas com a
inefetividade das teorias e técnicas prevalecentes para se transferirem de
forma bem-sucedida para essas circunstâncias e experiências, compeliram
para uma busca por novas explicações... Um problema e uma procura por
compreendê-lo e solucioná-lo foram o imã e o catalisador unificante que uniram
os que viriam a ser chamados terapeutas familiares e estabeleceram a arena
para a colaboração" (p. 147-148).
Diferentemente do que aconteceu na psicanálise, cujo contexto
fundacional remete a uma mesma pessoa — Freud — como um teórico e um
clínico, a teoria e a prática sistêmicas remetem a grupos distintos. O
pensamento sistêmico proposto por von Bertalanffy (1975, orig. 1968), casado
com a cibernética, originária das ideias de Wiener do final da década de 40,
derivou-se de campos distantes da psicoterapia e até mesmo da psicologia.
Sua aplicação à prática da psicoterapia deve seus tributos, principalmente, a
Gregory Bateson, que, partindo do campo da pesquisa, ofereceu um contexto
de coerência para a aplicação das formulações dessas duas teorias à prática
clínica.
O advento da terapia familiar foi marcado, portanto, pela
interdisciplinaridade, o que, pode ser dito, favoreceu um diálogo a partir de
múltiplas perspectivas. Em uma das perspectivas centrais estava o olhar do
antropólogo, Gregory Bateson, já nos primórdios da década de 50. Ao dizer
que o observado traz a marca de quem observa, Bateson (1972) antecipou os
futuros desenvolvimentos que o próprio campo da terapia familiar viria a
conhecer no decorrer de sua evolução para um pensamento pós-moderno.
Vindas do contexto da psicoterapia, podiam-se ouvir as vozes do psiquiatra
Don Jackson e da assistente social, Virgínia Salir. De fora desse contexto,
distintos discursos vieram em coro, da antropologia — por meio de Bateson, da
química — por meio de Weakland e da comunicação — com Jay Haley. Assim
constituído, esse grupo variado permitiu que a terapia familiar se iniciasse
como uma polifonia, tentando descrever e explicar os dilemas humanos, dentro
do contexto interacional das relações familiares.
Embora a teoria geral dos sistemas, em parceria com a cibernética,
tenha configurado os limites paradigmáticos para uma teoria da clínica, na
prática, diferentes sistemas de crenças resultaram em distintos modelos de
terapia familiar, caracterizando diversos sistemas de inteligibilidade que,
praticamente, coexistiram (Uma mais exaustiva apresentação desses
diferentes modelos foge ao alcance deste trabalho. Contudo, recomendo,
nesse sentido, a excelente publicação de Lynn Hoffman (1981) como unia
referência fundamental para os interessados na história da terapia familiar e no
desenvolvimento de seus distintos modelos.), (Convém ressaltar também que,
para efeito deste trabalho, optei por considerar apenas a teoria geral dos
sistemas de von Bertalanffy e a cibernética de Norbert Wiener. Contudo, não
posso deixar de destacar a extrema relevância para o desenvolvimento da
terapia familiar e, principalmente, para os primeiros modelos da teoria dos
jogos de von Neumann e Morgenstern e da teoria da informação de Shannon e
Weaver.) Assim sendo, as descrições, interpretações e compreensões
propostas pelas distintas escolas e seus modelos de terapia familiar puderam
divergir, embora estivessem sob o mesmo guarda-chuva paradigmático.
Anderson (1997) ressalta que, na busca de compreensão, alguns retornaram
para os conceitos psicodinâmicos e a prática psicanalítica aplicada, então, a
essa diferente configuração social, caracterizada pela família. Outros, continua
a autora, voltaram-se para conceitos explicativos de fora do campo da saúde
mental, como as ciências sociais, biologia, física, engenharia e filosofia.