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Liberdade.

Esta palavra
que tanto inspirou a luta de
milhares de pessoas contra
o regime militar no Brasil é
princípio norteador do Código
de Ética da categoria de
assistentes sociais.

Pelos depoimentos aqui


relatados, é possível perceber
O Projeto Serviço Social, Memórias e Resistências contra a Ditadura
que as pessoas também
recupera e dá visibilidade às histórias vividas pelos sujeitos políticos se mobilizaram porque
do Serviço Social, no contexto sombrio da ditadura militar. É um ato defendiam outra concepção
de respeito e uma profunda reverência à resistência e às narrativas de sociedade. uma sociedade
subtraídas da memória oficial. que possibilite, conforme diz
o Código de Ética, um pleno
Com esta publicação, o CFESS encerra o projeto, em um livro com os desenvolvimento para a
depoimentos, imagens que foram possíveis de ser encontradas e um invenção e vivência de novos
DVD, com o vídeo passado na exposição do CBAS (e do ENPESS), com valores, o que, evidentemente,
outro material audiovisual que capta a emoção dos/as presentes ao supõe a erradicação de todos
adentrar o espaço da exposição, e com um arquivo com matérias pu- os processos de exploração,
opressão e alienação.
blicadas pelos CRESS sobre o assunto.
Passados mais de 50 anos
Trazer para novas gerações um período de terror vivido no país, trata- do golpe militar e pouco
se de uma denúncia e contribui para o enfrentamento da banalização mais de duas décadas de
que, por vezes, se ouve hoje em dia de que foi uma ditabranda. Não foi. democracia reestabelecida,
No Brasil, como nos países vizinhos, se ceifaram muitas vidas, proje- é controverso dizer que a
tos e sonhos. sociedade brasileira está livre
por completo da ditadura:
Todos os depoimentos aqui reunidos expressam, ao seu modo, o im- milhares arquivos continuam
pacto nas vidas, em virtude das perseguições e das torturas vividas. ocultos, torturadores estão
Esse foi um período difícil, do qual muitos tentaram, em vão, esque- impunes e há pessoas
desaparecidas. Sem contar
cer. Outros não conseguem falar.
a repressão e a violência
cotidianas que a população
www.cfess.org.br negra e pobre sofre pelo
Estado, tão ou piores do que
as violações cometidas na
época do regime militar.

Resgatando o passado,

CFESS | 2017
contribuímos para nossas
Brasília (DF)
ações presentes e futuras.
2017
Sigamos na luta!
Brasília (DF)
2017
Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS)
Organização e edição de conteúdo
Comissão de Ética e Direitos Humanos - Gestão
Tecendo na Luta a Manhã Desejada (2014-2017)
Tânia Maria Ramos Godoi Diniz (coordenação)
Daniela Neves
Josiane Soares Santos
Maria Bernadette de Moraes Medeiros
Maurílio Castro de Matos
Adriane Tomazelli (assessora especial)

Revisão
Assessoria de Comunicação CFESS
Diogo Adjuto e Rafael Werkema

Projeto gráfico, diagramação, ilustrações e capa


Rafael Werkema

Tiragem: 4.000 exemplares

Brasília (DF), 2017

ISBN: 978-85-99447-29-1

Nosso endereço
SCS Quadra 2, Bloco C, Edf. Serra Dourada, Salas 312-318
CEP: 70300-902 - Brasília - DF
Telefone: (61) 3223.1652
Na internet: www.cfess.org.br - cfess@cfess.org.br

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Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)
Gestão Tecendo na Luta a Manhã Desejada (2014-2017)
Presidente
Maurílio Castro de Matos (RJ)
Vice-presidente
Esther Luíza de Souza Lemos (PR)
1ª secretária
Tânia Maria Ramos Godoi Diniz (SP)
2ª secretária
Daniela Castilho (PA)
1ª tesoureira
Sandra Teixeira (DF)
2ª tesoureira
Nazarela Rêgo Guimarães (BA)

Conselho Fiscal
Juliana Iglesias Melim (ES)
Daniela Neves (DF)
Valéria Coelho (AL)

Suplentes
Alessandra Ribeiro de Souza (MG)
Josiane Soares Santos (SE)
Erlenia Sobral do Vale (CE)
Marlene Merisse (SP)
Raquel Ferreira Crespo de Alvarenga (PB)
Maria Bernadette de Moraes Medeiros (RS)
Solange da Silva Moreira (RJ)

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Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)
Gestão Tempo de Luta e Resistência (2011-2014)*
*Responsável pelo lançamento do Projeto Serviço Social, Memórias e Resistências contra a Ditadura

Presidente
Sâmya Rodrigues Ramos (RN)
Vice-Presidente
Marinete Cordeiro Moreira (RJ)
1ª Secretária
Raimunda Nonata Carlos Ferreira (DF)
2ª Secretária
Esther Luíza de Souza Lemos (PR)
1ª Tesoureira
Juliana Iglesias Melim (ES)
2ª Tesoureira
Maria Elisa Dos Santos Braga (SP)

Conselho Fiscal
Kátia Regina Madeira (SC)
Marylucia Mesquita (CE)
Rosa Lúcia Prédes Trindade (AL)

Suplentes
Heleni Duarte Dantas de Ávila (BA)
Maurílio Castro de Matos (RJ)
Marlene Merisse (SP)
Alessandra Ribeiro de Souza (MG)
Alcinélia Moreira De Sousa (AC)
Erivã Garcia Velasco (MT)
Marcelo Sitcovsky Santos Pereira (PB)

Comissão de Ética e Direitos Humanos - Marylucia Mesquita (coordenação), Alcinélia Moreira


De Sousa, Maria Elisa Dos Santos Braga, Maurílio Castro de Matos e Sâmya Rodrigues Ramos

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Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

Depoimentos
Ana Maria Santos Rolemberg Côrtes......................................... 9
Ana Maria Ramos Estevão......................................................... 12
Ana Maria Tereza Fróes Batalha.............................................. 17
Candida Moreira Magalhães...................................................... 21
Iza Guerra Labelle.................................................................. 37
Joaquina Barata Teixeira ........................................................ 46
José Paulo Netto...................................................................... 53
Maria Beatriz Costa Abramides................................................ 56
Maria Lúcia de Souza............................................................... 63
Maria Rosângela Batistoni....................................................... 68
Marilda Villela Iamamoto........................................................ 75
Mariléia Venâncio Porfírio..................................................... 90
Rosalina de Santa Cruz............................................................ 107
Rute Gusmão Pereira de Azevedo............................................... 115
Vicente de Paula Faleiros....................................................... 119

Anexos
> Trechos do livro Pau de Arara - relatos de Gilse Maria
Cosenza Avelar e de Laudelina Maria Carneiro........................ 131
> As “meninas” de Ibiúna............................................................ 136
> A exposição Serviço Social, Memórias e Resistências contra
a Ditadura............................................................................... 138
> Informações extras sobre os depoimentos............................... 144

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É
com muita emoção que o Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS) entrega o resultado do Projeto Serviço Social, Memó-
rias e Resistências contra a Ditadura Militar. Recuperar e dar
visibilidade às histórias vividas pelos sujeitos políticos de nossa pro-
fissão no contexto sombrio da ditadura militar é um ato de respeito
e uma profunda reverência à resistência e às narrativas subtraídas
da memória oficial.
O projeto, desenvolvido pelo CFESS, expressa a materialização
de uma deliberação do 41º Encontro Nacional do Conjunto CFESS-
CRESS, realizado em 2012 em Palmas (TO). A deliberação propunha
“Efetuar levantamento nacional para coleta e organização de depoi-
mentos de assistentes sociais que tenham histórias particulares de
violações de direitos em função da ditadura”. Os/as participantes
presentes ao 41º Encontro Nacional – evento previsto na Lei de Re-
Conselho Federal de gulamentação da Profissão (Lei 8.662/1993) e considerado o fórum
Serviço Social (CFESS)
máximo de deliberação da profissão – imbuídos pelas atividades de
descomemoração dos 50 anos do golpe militar, instaurado em 31 de
março de 1964, e nas experiências da comissão da verdade, que ocor-
reram no período, certamente deliberaram porque reconheciam que,
na luta coletiva de resistência à ditadura militar, muitos/as assisten-
tes sociais e estudantes de Serviço Social dela participaram.

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O projeto foi desenvolvido em diferentes atividades.
O lançamento se deu em maio de 2013, quando o CFESS, por meio de divul-
gação em diferentes espaços, como a página na internet e no Facebook, lançou o
projeto e indicou um roteiro para que assistentes sociais que sofreram violações
de direitos na ditadura fizessem o seu registro.
No 43º Encontro Nacional, realizado em Brasília (DF) em 2014, o CFESS pro-
moveu uma emocionante mesa-redonda, que contou com depoimentos de cinco
assistentes sociais, que vivem hoje cada um/a em uma das cinco regiões do país.
Quem esteve presente certamente se lembra do silêncio da plateia, misturado ao
som da emoção que se expressou, em vários momentos, por meio das lágrimas.
A plenária, na sua maioria bem jovem, mostrou sua admiração e orgulho pela
geração de assistentes sociais que lhe antecedeu.
No 15º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) realizado em
Olinda (PE) em 2016, houve uma exposição sobre o projeto, em forma de painéis,
reunindo depoimentos, fotos e vídeo. Um momento emocionante foi quando par-
te da plateia se viu nos depoimentos que prestou. Essa exposição também foi
disponibilizada pelo CFESS no 15º Encontro Nacional de Pesquisadores/as em
Serviço Social, promovido pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social (Abepss) em 2016, na cidade de Ribeirão Preto (SP).
Com esta publicação, o CFESS encerra o projeto, em um livro com os depoi-
mentos, imagens que foram possíveis de ser encontradas e um DVD, com o vídeo
passado na exposição do CBAS (e do ENPESS), com outro material audiovisual
que capta a emoção dos/as presentes ao adentrar o espaço da exposição, e com
um arquivo com matérias publicadas pelos CRESS sobre o assunto.
Tornar pública a memória daqueles/as que tiveram seus direitos violados
na ditadura militar é uma ação fundamental. Trazer para novas gerações um
período de terror vivido no país, trata-se de uma denúncia e contribui para o
Apresentação
enfrentamento da banalização que, por vezes, se ouve hoje em dia de que foi
uma ditabranda. Não foi. No Brasil, como nos países vizinhos, se ceifaram muitas
vidas, projetos e sonhos.
Portanto, o projeto Projeto Serviço Social, Memórias e Resistências contra
a Ditadura Militar pretende contribuir para a memória do país e para a defesa
da importância de punição dos algozes da democracia e dos direitos humanos.

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Assim, é uma contribuição à luta pela democracia. Mas esse projeto, especialmente,
visa a mostrar para o mundo que estudantes de Serviço Social e assistentes sociais
foram sujeitos das lutas contra o arbítrio da ditadura militar brasileira.
Todos os depoimentos aqui reunidos expressam, ao seu modo, o impacto nas
vidas, em virtude das perseguições e das torturas vividas. Esse foi um período difícil,
do qual muitos tentaram, em vão, esquecer. Outros não conseguem falar. Isso ficou
nítido na execução desse projeto.
Os depoimentos que você lerá têm diferentes formatos e assim o são porque
foram captados de diferentes formas. Alguns de forma voluntária, seguindo o roteiro
proposto pelo CFESS. Outros são textos escritos pelos próprios sujeitos. Outros são
transcrições de palestras. Tem também transcrição de depoimento a comissões da
verdade e também aqueles textos sintéticos, escritos, com certeza, somente pelos
intensos pedidos do CFESS.
Pudemos perceber, no contato com cada assistente social que aqui traz seu de-
poimento, o quanto é difícil recuperar esse período. E como cada um/a lida de forma
distinta com essa memória. Mas, em todos, pudemos ter a certeza de que era fun-
damental contribuir com esse projeto, para assim colaborar para desvelar o ainda
oculto sofrimento que a ditadura militar impôs. Além disso, para o reconhecimento
de que o projeto contribuiria para o Serviço Social que todos ajudaram e lutaram
para construir. Um Serviço Social comprometido com as históricas lutas da classe
trabalhadora, com a liberdade e a justiça social.
O CFESS deixa aqui registrada a sua admiração, o seu agradecimento e expressa
seu enorme respeito aos/às que nos antecederam e lutaram. Aqui estão dispostos
apenas alguns depoimentos, aqueles que conseguimos reunir, pois sabemos que as-
sistentes sociais e estudantes de Serviço Social, na luta contra a ditadura militar,
eram muito mais. Agradecemos a todos/as que lutaram. Registramos especial agra-
Conselho Federal de decimento àqueles/as que nos ajudaram a transformar em realidade esse projeto.
Serviço Social (CFESS)

Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)


Gestão Tecendo na Luta a Manhã Desejada (2014-2017)

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E
ntre 1963/1964, participei da Ju- Fui levada para o DOI CODI/
ventude Universitária Católica OBAN–SP, sendo torturada por uma se-
(JUC). Em 1967, fui presidente mana, com tortura física e psicológica,
do diretório acadêmico da Faculdade de forçada a depor , completamente despi-
Serviço Social da Universidade Federal da, por equipes que se revezavam inin-
de Sergipe (UFS) e, nesse mesmo ano, terruptamente.
ingressei na Ação Popular (AP). Estando no primeiro mês de gravi-
Em 1968, conclui o curso de gradu- dez, tive ameaça de aborto em consequ-
ação em Serviço Social, mas fui impe- ência das torturas.
dida de diplomação pelos militares. Em No DOI-CODI, estive todo o tempo
1969, na clandestinidade, atuei entre as em cela escura solitária durante cin-
operárias do ABC (SP), trabalhando na quenta e cinco dias.
Trol, em São Bernardo do Campo. No dia primeiro de agosto, 55 dias
Em 1970, também na clandestini- após a minha prisão, fui levada à Dele-
dade, atuei entre os assalariados agríco- gacia do Departamento de Polícia Fede-
las em Pernambuco, trabalhando como ral, em Recife, encontrando no local meu
enfermeira e vendedora ambulante em esposo João Bosco Rolemberg, quando
Palmares (PE). fomos recebidos pelo policial Luís Mi-
No dia 7 de junho de 1974, por volta randa, que se autoidentificou como tor-
das 19h, fui sequestrada por seis homens turador e nos dirigiu insultos e ameaças
armados, que invadiram minha residên- de morte.
cia em Garanhuns (PE), sendo imediata- A partir daí, permaneci no cárcere
mente imobilizada e ameaçada de morte. do Departamento de Ordem Política e
Algemada e encapuzada, fui Social (DOPS) de Recife, sendo retirada
colocada no piso de um carro e levada para interrogatórios no Departamento
para cela do Destacamento de Operações de Polícia Federal (DPF).
Conselho Federal de de Informação - Centro de Operações de Com o agravamento das minhas
Serviço Social (CFESS)
Defesa Interna (DOI-CODI) em Recife condições de saúde e ameaça de abor-
(PE). Fui submetida a sessões continua- to, por ação de familiares e advogado,
das de torturas, pendurada por argolas fui transferida do DOPS para o Hospital
com os pés fora do chão por longos pe- da Beneficência Portuguesa, com a pre-
ríodos, recebendo choques elétricos nas sença permanente de agentes da Polícia
orelhas e nas mãos. Federal, até o mês de outubro, quando

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a Auditoria decidiu pela liberação, respondendo pelo tornando
e p o i m e n t o, estou
Com o d ela qual
processo em liberdade.
Passei por três períodos de prisão: de 7 de junho a e x p e riência p
pública itar,
a 1º de agosto de 1974 no DOI-CODI, Recife; de 1º de
n a d i t a dura mil Não
agosto a 3 de setembro de 1974 no DOPS, Recife; e de 3 passei
e s a e t o rturada.
ui pr
quando f , a
para isso
de setembro a 8 de outubro de 1974 no Hospital Benefi-
b o l o g i a
cência Portuguesa, Recife. tem sim estava
é u m t error. Eu
Em 1º de dezembro de 1976, fui absolvida pelo Con-
tortura o e
e u p r i m eiro filh
selho Permanente de Justiça da Aeronáutica no processo do m
grávida meses. É
36/75 na 7ª CJM.
i s o l a d a por dois
fiquei ara
Em 1975, trabalhei como assistente social da Prefeitu-
u e s e d i vulgue p
te q
ra Municipal de Aracaju, mas fui impedida pelos militares importan orra.
a mais oc
que nunc
de realizar trabalho com as comunidades.
Entre 1975/1979, atuei como membro do Comitê de So-
lidariedade aos Presos Políticos de Itamaracá (PE) e também
como membro do Comitê Feminino de Anistia aos Presos
Políticos em Aracaju.
Em 1980, fui membro da Sociedade Sergipana em Defesa dos Direitos Hu-
manos em Aracaju. Também tive intensa participação na organização política da
categoria, tendo sido presidente do Sindicato dos Assistentes Sociais de Sergipe.
Participei da assembleia que aprovou, em 1983, o desmembramento da seccional
de Aracaju do CRESS da Bahia, e integrei o Conselho Fiscal do Conselho Federal
dos Assistentes Sociais.
Fui Secretária Municipal de Assistência Social na Prefeitura Municipal de Ara-
caju em 1986 e em 2002. Em seguida, fui anistiada política em 2005. Hoje, sou mem-
bro do Comitê Estadual do Partido Comunista do Brasil (PC do B de Sergipe).
Com o depoimento, estou tornando pública a experiência pela qual passei na di- ana maria santos
rolembreg côrtes
tadura militar, quando fui presa e torturada. Não tem simbologia para isso, a tortura
é um terror. Eu estava grávida do meu primeiro filho e fiquei isolada por dois meses.
É importante que se divulgue para que nunca mais ocorra.

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E
studei na Faculdade Paulista de apartamento era comandado pelo ca-
Serviço Social, hoje Pontifícia Uni- pitão de Exército Mauricio Lopes Lima.
versidade Católica de São Paulo Não houve apresentação de qualquer
(PUC-SP) – Noturno da Rua Sabará, entre documento, como ordem de prisão e se-
1969 e 1976. quer identificação de nenhum de seus
Fui presa na tarde do domingo, 11 integrantes, todos em trajes civis.
de julho de 1970, na Av. Liberdade, cida- Todas as pessoas que se encontra-
de de São Paulo, onde residia juntamen- vam no apartamento (moradores e vi-
te com Idinaura Aparecida Marques. A sitas) foram algemados e colocados em
prisão foi efetuada por equipe da Opera- duas peruas Chevrolet - C14. O presi-
ção Bandeirantes (OBAN). dente da UEE, Rafael de Falco Neto, que
No momento da invasão de minha tentou fugir no momento da prisão, foi
casa, encontrava-se presente o presiden- trazido algum tempo depois, baleado e
te da UEE de São Paulo, Rafael de Falco sangrando, tendo sido jogado em cima
Neto, João (que eu não lembro o sobre- de mim e da minha amiga. Fomos venda-
nome) e que era presidente do Centro das com um capuz preto e recebi ordem
Acadêmico da Escola de Sociologia e de não falar com ninguém durante o
Política e Helen, minha colega de facul- percurso, feito em alta velocidade e sob
dade, que haviam ido me visitar. Todos ameaça das armas, até a rua Tutóia, na
ficamos sob a mira de metralhadoras e 36ªDelegacia de Polícia, sede da OBAN,
revólveres. A equipe da OBAN perma- informação que obtive muito tempo de-
neceu em minha casa por uma semana pois. Ao chegar, ficamos sentados, ainda
e prendeu todo mundo que lá esteve. sob a mira de metralhadoras e revólve-
Quando minha família lá esteve para en- res. Ouvi alguém gritando: “quem é Ne-
tregar o apartamento e fazer a mudança, tinha?”. Este é meu apelido de família de
todos os livros, roupas, joias e pertences infância, me declarei e fui empurrada a
pessoais meus e de Idinaura Aparecida subir uma escada, aos tropeções. Ana maria ramos
estevão
Marques haviam desaparecido. Fui levada para a sala de torturas, aos
Esclareço que muitos nomes e refe- tapas e berros, e colocada na “cadeira do
rências citadas a partir daqui, somente dragão”, na qual fui interrogada. Durante
foram obtidas posteriormente. São, en- muito tempo, levei choques na orelha, nos
tretanto, rigorosamente verdadeiras. dedos dos pés, fui amordaçada com um
O grupo armado que invadiu o pano imundo para não gritar. Soube que

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quem me interrogava era um capitão que pernas e braços estavam completamente
se dizia chamar Gaeta. Várias vezes fui in- adormecidos, demorei algum tempo para
terrogada, juntamente com Idinaura Apa- poder me colocar em pé. As sessões de
recida Marques e Rafael de Falco Neto, choque continuaram, a cada vez que che-
que não havia sido medicado e várias gava uma nova equipe para interrogató-
vezes o vi receber pancadas no cotovelo, rio, o que ocorria sempre às 6h da manhã.
onde a bala se alojara e que continuava Lembro-me dos seguintes nomes: capitão
sangrando. Ambos também testemunha- Albernaz (Benone de Arruda Albernaz),
ram as torturas que sofri e eu testemunho capitão Dalmo (Dalmo Luis Cirilo) capitão
as torturas que os mesmos sofreram. Sem- Homero (Homero César Machado), capi-
pre que um torturador se cansava, outro tão Gaeta e capitão Maurício.
ou outros o substituía na maquininha de Depois de transferida para uma das
choque. Durante toda a noite, fomos inter- celas, fiquei em companhia de Idinaura
rogados com este método. Em alguns mo- Marques, Denise Crispim, que estava
mentos, os torturadores paravam os cho- grávida de sete meses e era esposa de
ques, para que eu pudesse ouvir os gritos Eduardo Leite, Ana Burstyn, do Rio de
que vinham das outras salas. Na manhã do Janeiro, e outras que não lembro o nome.
dia seguinte, o plantão foi mudado às 6h Passei um mês na OBAN, tendo
da manhã, entrando a equipe do capitão sido transferida para o Departamento de
Albernaz, que, tão logo chegou, me despiu Ordem Política e Social (DOPS) em 5 de
e colocou no pau de arara, continuando o agosto, haja vista a Ficha de Qualifica-
interrogatório e os choques, desta vez na ção e Lista de Presos Transferidos para o
região do púbis. Às vezes, entrava algum DOPS em anexo.
jovem, segundo eles mesmos do CCC, e jo- Fiquei na cela no 3, em que perma-
gavam água fria em mim para aumentar neci no DOPS por um mês à disposição da
a intensidade dos choques. Não consigo justiça, onde fui interrogada pelo delega-
Conselho Federal de precisar quanto tempo lá fiquei, só consi- do Edzel Magnotti. Voltei ao DOPS para
Serviço Social (CFESS)
go me lembrar de que, num determinado esclarecimentos, várias vezes, mesmo
momento, entrou alguém fardado (depois depois de ter sido transferida para o Pre-
soube tratar-se do coronel Ustra), que dis- sídio Tiradentes em 31 de agosto de 1970.
se ao capitão Albernaz: “ela é muito fraca, É importante ressaltar que estas trans-
não vai resistir, é melhor tirar do pau de ferências do Presídio Tiradentes para o
arara. Quando saí do pau de arara, minhas DOPS eram sempre feitas à noite ou na

14
ória
r e c u p e r ar a mem
nte
É importa e não se
p e r í o d o , para qu
desse s
e p a r a que jamai
esqueç a da
madrugada, de surpresa, sem sabermos o
a m e n t e . A memória
nov
porquê ou para que. Tal fato aumentava aconteça ente,
r e c i s a e star pres ca
luta p
o clima de incerteza sobre nossas vidas.
a c h a m a que bus
Gostaria de relatar que, durante vá- viv a
mantendo o u t ra socied
ade
rios anos, após a última prisão, acordava
uiçã o d e
aos gritos à noite e minhas mãos tremiam a constit b e r d ade e jus
tiça
dad e , l i
involuntariamente, em consequência dos com igual projeto
ra que o
social, pa viço Socia
l e
choques elétricos que recebi. Precisei de
o d o S e r
anos de tratamento psicológico com o dr. itic
ético-pol sional
Ladislau Ruy Unger Glauzius, para que
o d e É t i ca Profis
o Códig vãs ou
palavras
eu pudesse levar uma vida normal.
t o r n e m
não se e grau.
colação d
Numa dessas vezes em que fui ao
i t u a l d e
mero r
DOPS, soube, pelos gritos de euforia do
delegado Sergio Paranhos Fleury, que
Eduardo Leite já era “presunto”, como
ele mesmo fez questão de contar a todos
que lá se encontravam. va e levada de novo à OBAN, que havia se
No DOPS, recebi a visita de minha transformado em Destacamento de Ope-
mãe e meu pai, que me avisaram que ha- rações de Informação - Centro de Opera-
viam contratado o advogado Idibal Pive- ções de Defesa Interna (DOI-CODI), onde
ta para minha defesa. permaneci por uma semana. Sem saber
Quando, no Presídio Tiradentes, re- exatamente porque havia sido presa, fui
cebi visitas do dr. Idibal Piveta, relatei- interrogada, desta vez sem tortura física,
lhe o que havia me acontecido na OBAN mas sob forte pressão psicológica, com
e no DOPS, as torturas, a cadeira de dra- ameaças de prisão de minha família. Fui
gão e o pau-de-arara. solta diretamente da OBAN em início de
Permaneci na ala feminina do Pre- setembro. Helinton Bettetto – diretor da Ana maria ramos
Faculdade Paulista de Serviço Social, foi estevão
sídio Tiradentes até 28 de março de 1971,
após ter comparecido para prestar de- quem autorizou minha retirada de sala
poimento na Justiça Militar e receber o de aula pelos agentes do DOI–CODI e
alvará de soltura. permaneceu no mesmo cargo.
Em 21 de agosto de 1972, fui presa de Em 14 de agosto de 1973, fui pre-
novo, tirada da sala de aula em plena pro- sa outra vez pelo DOI-CODI e arrolada

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como testemunha no Inquérito Policial profissional: fui demitida todas as vezes
nº 23/73 do DOPS, juntamente com Idi- em que fui presa; cada vez que ia presa,
bal Piveta, Tania, Gabriel, etc. Ali, per- perdia o ano letivo por faltas; levei oito
maneci até setembro do mesmo ano. anos para obter o diploma de assisten-
Na primeira prisão, foi por oferecer te social, além das marcas que a tortura
apoio logístico aos militantes do Grupo deixa na alma e que nunca serão apaga-
Tático Armado da ALN e eu também era a das. Após a terceira prisão, casei-me e
presidente do Centro Acadêmico do Servi- fui morar na França, em Paris, com bolsa
ço Social Noturno. Participava ativamente de estudos do Instituto Ecumênico para
do Movimento Estudantil. A segunda foi o desenvolvimento dos Povos (Inodep).
para acareação com pessoas que foram É importante recuperar a memória
presas e citaram meu nome. A terceira vez desse período, para que não se esqueça e
foi por supostamente pertencer ao Movi- para que jamais aconteça novamente. A
mento de Libertação Popular (Molipo). memória da luta precisa estar presente,
Estes fatos foram denunciados ao Con- mantendo viva a chama que busca a cons-
selho Mundial de Igrejas, à Secretaria de tituição de outra sociedade com igualdade,
Justiça do Estado de São Paulo, à Comissão liberdade e justiça social, para que o projeto
de Anistia do Ministério da Justiça, à Comis- ético-politico do Serviço Social e o Código
são da Verdade da Presidência da Republica, de Ética Profissional não se tornem pala-
em São Paulo, Comissão da Verdade do Sin- vras vãs ou mero ritual de colação de grau.
dicato Nacional dos Docentes do Ensino Su- É lutando que manteremos viva a
perior (Andes-SN), a vários jornais, revistas, esperança na defesa da memória de to-
programas de rádio e de TV. dos os companheiros e companheiras,
Busquei o reconhecimento da perse- assistentes sociais ou não, que foram
guição por motivos de ordem politica à Co- torturados, assassinados, desapareci-
missão de Anistia do Ministério da Justiça. dos pela ditadura empresarial-militar,
Conselho Federal de Recebi uma reparação simbólica da porque tiveram a coragem de lutar pelo
Serviço Social (CFESS)
Secretaria da Justiça do Estado de São socialismo e contra a barbárie. É impor-
Paulo e da Comissão de Anistia do Mi- tante lembrar que os crimes da ditadura
nistério da Justiça, o equivalente a um continuam acontecendo todos os dias,
salário mínimo por ano de perseguição. contra os pretos, pobres, moradores da
Destaco várias formas de como as periferia, perpetrados pela repressão, e
violações rebateram em meu cotidiano a luta sempre continua.

16
M
inha participação
nas lutas pela trans-
formação da socie-
dade, que infelizmente ainda
não aconteceu, teve seu ápice
quando caí participando do
30º Cogresso da União Na-
cional dos Estudantes (UNE),
que fora organizado clandestinamente, mentos sociais e partidos clandestinos,
numa conjuntura marcada pela crescen- apesar da intensa repressão da ditadura.
te insatisfação popular contra a ditadura Em 1968, os movimentos sociais
militar. Eu estive presa no 30º Congres- começam a expressar-se amplamente,
so da UNE e não fui torturada. Fui mili- manifestando publicamente sua insatis-
tante durante toda a minha vida. fação com a ditadura militar. Esse ano é
O golpe militar de 1964 reprimiu, marcado pelo inicio das expressões pú-
torturou barbaramente e matou mili- blicas de insatisfação popular, e do con-
tantes politicos que lutavam por refor- sequente enfraquecimento do suporte
mas profundas que eliminassem as desi- social do regime militar, especialmente
gualdades sociais. A crescente repressão por parte da classe média, que deu signi-
militar após o golpe estimulava a busca ficativo apoio ao golpe militar.
de alternativa de transformação da so- Nessa conjuntura efervecente, o mo-
ciedade e o grande desejo, especialmen- vimento estudantil retoma o esforço de
te dos jovens, de participar da política organização, e articula-se para realizar o
e das decisões nacionais. A conjuntura 30º Congresso da UNE, com a seguinte
política internacional, em forte ebulição pauta: conjuntura nacional e internacio-
à época, fora marcada pela referência de nal, reforma universitária, participação
Conselho Federal de grandes revoluções culturais e sociais do movimento estudantil na vida nacio-
Serviço Social (CFESS)
que aconteciam no mundo, tais como: nal e sua articulação com o movimento
crescimento do bloco socialista, revolu- dos trabalhadores do campo e operário,
ção cubana, guerra do Vietinã, revolução eleição da nova diretoria da UNE. O con-
na China, etc., que contribuíam para ali- gresso esperado não chegou a acontecer.
mentar os ideais de luta e fortalecimento Na manhã de 12 de outubro de 1968, acor-
da mobilização e organização dos movi- damos com disparos de rajadas de metra-

18
Esse resgate é importante para manter vivo o espirito de
indignação, resistência e luta, para que não permitamos jamais
que essa história se repita, e para que possamos avançar na
direção de mudanças efetivas, para uma sociedade justa.

lhadoras para o ar e estavamos cercados tortura física direta, naquela ocasião, aos
pela força pública do estado de São Paulo, estudantes oriundos do congresso, além
altamente armada contra estudantes de- da apreensão e expectativa da espera do
sarmados, que se entregaram sem ofere- momento do interrogatório, realizado de
cer resistência. Chovia muito e o acesso forma provocante, para estimular contra-
de carro tornara-se inviável em caminhos dição das respostas. Este foi um dos mo-
de massapê. Andamos em fila indiana mentos mais difíceis desse processo.
por algumas horas, sob mira de armas de Eu, como representante eleita em
fogo, sem direito a falar ou parar, até che- assembleia da Escola de Serviço Social da
gar aos ônibus que estavam à espera para Universidade Católica do Salvador, assim
conduzir-nos ao presídio. As lideranças como todos os estudantes, fui enquadrada
principais foram levadas para o Departa- na Lei de Segurança Nacional. Por ser es-
mento de Ordem Política e Social (DOPS) tudante de universidade particular, pude
e os demais levados para presídios super- proseguir os estudos, enquanto compa-
lotados. Aí, todos ficaram incomunicá- nheiros da Universidade Federal tiveram
veis, foram fichados, interrogados e en- suas matrículas canceladas, trazendo-lhes
caminhados para seus estados de origem, transtornos ainda maiores. As limitações
sob forte escolta policial armada. decorrentes do enquadramento, para mim,
À época, eu participava da Ação Ca- duraram aproximadamente tres anos e fo-
tólica e era simpatizante da Ação Popular. ram superadas após contratação de advo-
Fui presa, portanto, participando do 30º gado, quando pude circular livremente sem ANA MARIA TEREZA
FRÓES BATALHA
Congresso da UNE em Ibiúna (SP), orga- precisar prestar contas ao Serviço Nacional
nizado clandestinamente. Fiquei como a de Informações (SNI), tirar habilitação
maioria dos estudantes, detida em São para dirigir e, por fim, trabalhar.
Paulo, no Presídio Tiradentes e, por apro- Continuei participando das lutas e
ximadamente quatro dias, em Salvador manifestações públicas contra o regime.
(BA). A prisão foi coletiva e não houve Participei do Comitê da Anistia/BA na

19
década de 1970, da APAS (Associação de tra jovens, negros e pobres. Permanece
Profissionais Assistentes Sociais), do Con- ainda a forte truculência do aparelho de
vênio Cultural e do Trabalho Conjunto. O Estado contra a população, os trabalha-
Convênio Cultural foi um importante espa- dores e os movimentos sociais.
ço, amplo e público de debate e resistência, Tem-se hoje, lamentavelmente,
constituído por entidades de profissionais parlamentares e ex-lideranças que, no
liberais, sindicatos e pelo único partido passado, lutaram em defesa de liberdade
político de oposição, que era o Movimento e justiça social, que foram presas e algu-
Democrático Brasileiro (MDB). O Trabalho mas até torturadas, que levantaram ban-
Conjunto era ainda mais amplo e formado deiras revolucionárias de transformação
por lideranças dos movimentos sociais, lí- da sociedade, totalmente cooptadas e
deres de bairros periféricos, pastoral, igre- corrompidas, defendendo o aperfeiço-
jas evangélicas, sindicatos e MDB. amento das estruturas do Estado, para
O regime militar prendeu, torturou, manutenção do “status quo”.
exilou, executou milhares de estudan- A violação de direitos humanos tão
tes, intelectuais, artistas e trabalhado- presente na atualidade alimenta cotidiana-
res brasileiros. Foi o período da política mente o sentimento de indignação e luta.
brasileira em que foi institucionalizada Aos estudantes e colegas que não
a grande escalada da violência contra os vivenciaram esse duro momento de for-
direitos humanos por meio da prática da te violação dos direitos humanos, é fun-
edição de atos institucionais. Estes es- damental o resgate da memória dessa
tabeleciam a legalidade da censura, da história recente, para que se mantenha
perseguição política, tortura, assassina- vivo o conhecimento da trajetória de
to, desaparecimento, prisões arbitrárias, tantos companheiros que tombaram e
supressão total dos direitos constitucio- perderam a vida lutando em defesa da li-
nais, repressão a todos que se manifesta- berdade, da justiça social, da revolução,
Conselho Federal de vam contrários ao regime, enfim, à falta que esperamos que aconteça um dia...
Serviço Social (CFESS)
absoluta de democracia. Esse resgate é importante para man-
O Estado de Exceção desse perí- ter vivo o espirito de indignação, resis-
odo sombrio de nossa historia acabou, tência e luta, para que não permitamos
porém não foi ainda restaurada a plena jamais que essa história se repita, e para
liberdade, nem extinta a violência, que que possamos avançar na direção de mu-
permanece até hoje, especialmente con- danças efetivas, para uma sociedade justa.

20
M
eu nome é Candida Moreira mas eu estudei a cartilha do ABC e a ta-
Magalhães, nascida no dia 7 buada nessa escola. Depois que eu termi-
de abril de 1946, no Sitio Tipi, nei, fui para outra escola que era no sítio
município de Aurora, Ceará. Tenho ori- mais longe – chamava Baraúnas – Maria
gem na vida rural. Meu pai foi, a vida in- de seu Zé Dias era o nome da professora;
teira, agricultor. Perdi meu pai, Vicente era dona Maria, mas era conhecida por
Américo Magalhães, em 2010, quando Maria de seu Zé Dias.
ele tinha 99 anos e 8 meses de idade. Depois de muito tempo é que eu
Minha mãe, Valdelice Moreira Maga- fui compreender que dona Maria esta-
lhães, também a perdi, em 2012, quando va fora do lugar, o lugar tradicional da
tinha 96 anos. Esse fato é bem recente. mulher. Ela era professora, não estava
Apesar de já estar bem após a superação na cozinha, mas, mesmo assim, ela ain-
da morte de meus amados pais, fiquei da era Maria de seu Zé Dias. E aí eu fui
muito abalada, porque eram duas pes- estudar nessa escola e eu ia de jumento.
soas muito importantes na minha vida. Éramos eu, minha irmã Nina, meu outro
Eles eram a minha raiz aqui no mundo, irmão mais novo, Daniel, e a outra irmã,
a minha grande referência na Paraíba, Eridan. Nós íamos os quatro de jumento
porque vieram morar comigo. Então, para essa escola. Eu acordava às cinco
de repente, minha filha única tinha ido horas da manhã, ia pra roça, a lembran-
para Brasília trabalhar e eu me vi muito ça maravilhosa de pisar naquele capim
só, depois que eles fizeram a passagem. com orvalho, o cheiro do mato. Ia pegar
Então, eu fiquei até os doze anos na o jumento, aí tinha uma mochilinha em
zona rural, estudei inicialmente a cartilha que a gente colocava o milho, pendurava
do ABC na escola em que meu avô Joca no pescoço dele para ele comer, e depois
fez uma sala de aula com aqueles bancos dava água, e depois botava a cela e ia
compridos e um quadro negro. Vizinho embora. A gente andava duas horas de
Conselho Federal de à casa dele, ele fez uma escola, onde eu jumento para chegar à escola. Saíamos
Serviço Social (CFESS)
estudei inicialmente. Os bancos da esco- ao meio-dia dia de volta, chegávamos
la eram tão grandes, sem encosto e altos, em casa às duas horas da tarde. Então,
que as perninhas da gente ficavam pen- eram quatro horas de viagem para ir e
duradas. A gente, ainda quando criança, para voltar. Foi nessa escola que eu fiz o
imagina como era ruim estudar naquele primário, que hoje é o ensino fundamen-
banco duro, sem ter nem onde encostar, tal. Eu fiz até a quarta série primária e

22
aí eu fiquei muito chateada, porque a na cidade, está muito difícil a situação
professora disse: “Olha, você já leu to- e você vai ter de voltar; quando chover,
dos os livros, já recordou (que era his- você volta de novo para estudar”. E eu
tória de passar de novo para sedimentar voltei muito triste, porque eu não que-
o conhecimento) e você já viu, já recor- ria ter interrompido de estudar. Aí voltei
dou, agora não tem mais o que fazer e fiquei quase 2 anos sem estudar. Foi
aqui na escola, não tem mais outra série um tempo de muita fome e sofrimento.
para você. Se você quiser estudar, tem Meus irmãos mais velhos, Zildo, Oriel e
de ir para cidade”. Eu cheguei em casa Bosco, trabalharam nas frentes de servi-
e fiquei aperreando meu pai: “Eu quero ço de emergência à seca como cassacos.
estudar, eu quero estudar, papai, eu não Em 1959, houve bom inverno e, nesse
quero parar, eu gosto tanto de estudar”. tempo, meu pai comprou um terreno e
Ele disse: “Eu vou arrumar um jeito”. Aí construiu uma casa e fomos morar, um
falou com um primo que morava na ci- irmão e duas irmãs mais novas, com
dade, era casado e tinha duas crianças, minha mãe para estudarmos. Fiz nossa
se eu podia ficar lá ajudando a mulher matricula no Grupo Escolar Monsenhor
dele, tinha moradia e, em troca, eu podia Milanês. Em 1960, com 14 anos, passei
estudar; aí eles deixaram. E meu pai le- no Exame de Admissão no Colégio Nos-
vava feijão, arroz, a feira para ajudar na sa Senhora de Lourdes das freiras Doro-
manutenção. téia, onde fiz as quatro séries do curso
Então eu fui estudar nessa casa, eu ginasial (de 1961 a 1964) e 1º Pedagógi-
era a babá e a doméstica, eu fazia o traba- co com 19 anos em 1965. Nesse colégio,
lho de limpar casa e cuidar das crianças, já comecei minha militância na JEC, no
só não fazia comida nem lavava roupa. Grêmio Escolar e Associação dos Estu-
Em troca, eu estudava. Eu fui muito fe- dantes Secundaristas da Paraíba.
liz, porque eu ia continuar estudando, só
que veio a seca, uma seca imensa (1958). Crateús e São Paulo (1966-1967) Candida moreira
magalhães
E aí foi uma dificuldade muito grande, Em 1966, com 20 anos, fiz 2º peda-
um sofrimento muito grande para o gógico na Escola Normal Regina Pacis em
sertanejo e meu pai disse: “minha filha, Crateús (CE), onde continuei participan-
você vai ter de voltar, porque está difícil, do de Grêmio Escolar. Em dezembro de
eu não tenho mais como trazer a feira, 1966, fui para São Paulo para estudar e
eu não posso mais ficar aqui andando trabalhar e, pela primeira vez, tirei meus

23
documentos (carteira profissional e titulo moradia. A partir daqui, fui trilhando ca-
de eleitor). Em dezembro de 1966, conse- minhos muito longe da família. Tinha a
gui trabalho, mas não matrícula, porque melhor média e teria direito a uma cadei-
teria que voltar para o primeiro pedagó- ra como professora numa escola do esta-
gico. Aqui se manifesta a discriminação do de Pernambuco, se tivesse feito todo
mais aberrante contra o Nordeste, por- o curso pedagógico no próprio estado.
que, apesar de, na minha certidão do cur- Nesse período, já militava no movimento
so, constar que era válida em todo terri- de jovens JEC e já participava de ativida-
tório nacional, São Paulo não reconhecia. des das Comunidades Eclesiais de Base e
Preferi voltar para o Nordeste para conti- fui escolhida pela turma para ir a Recife
nuar estudando e trabalhando. Em março convidar Dom Helder Câmara para ser o
de 1967, fui para Recife para trabalhar e paraninfo da turma. Durante os anos de
estudar no Colégio São José na Avenida estudos ginasiais e pedagógicos, partici-
Conde da Boa Vista, na condição de em- pei da JEC Juventude Estudantil Católica,
pregada de serviços gerais. Tive que ser em que tive oportunidade de conhecer
transferida para trabalhar e estudar em os problemas da sociedade brasileira e
Pesqueira (PE), no Ginásio Escola Nor- desenvolver o sentimento de responsabi-
mal Santa Dorotéia, onde terminei o 3º lidade de participar de ações que promo-
pedagógico, com 21 anos. Nesse colégio, viam mudanças.
trabalhei na secretaria, serviço de lim- Depois da formatura do curso pe-
peza e de copa, para pagar os estudos e dagógico, no dia seguinte, já viajava para

Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS)

24
Fortaleza para fazer inscrição no vesti- as moradoras. Colocamos nossas coisas
bular de Serviço Social da Universidade pra dentro e, daquele dia em diante,
Federal do Ceará (UFC). Fiz o vestibular conseguimos completar o quadro de 11
em janeiro de 1968 e, em março, viajei mulheres que estavam na mesma situa-
para Fortaleza para matricula na Facul- ção e fizemos lista do que precisávamos.
dade de Serviço Social. Fiquei uma se- Todo dia, após as aulas, ia para o gabi-
mana com uma tia e, durante esses dias, nete do reitor Fernando Leite, para co-
fui ao diretório acadêmico dos estudan- brar colchões, beliches, mesas, cadeiras,
tes, cujo presidente era Jose Genuíno, e fogão, panelas, pratos, talheres, copos e
me informei sobre casa para estudante, tudo para a casa funcionar. Nessa mes-
quando soube de uma na Av. Carapini- ma rua, ajudamos a ocupar mais duas
ma, que estava ocupada por um funcio- casas, uma feminina e outra masculina.
nário da UFC enquanto construía sua Morei na casa universitária durante os
casa. Em conversa com o próprio fun- quatro anos do curso. Durante o 1º ano
cionário, soube que estava preparando a do curso de Serviço Social, com 22 anos,
mudança para sua casa própria. fiquei envolvida com todas as atividades
Comecei a ver no DCE quem ti- do Centro Acadêmico Frederico Ozanan
nha passado no vestibular e estava sem – CAFO. Em 1968, tivemos inúmeras as-
ter onde morar e juntamos 3 mulheres sembleias com os movimentos sociais do
sem moradia e passamos a fazer plantão campo e da cidade na Casa do Estudante
com nossos pertences em frente à casa. Universitário (CEU), onde funcionava o
Na hora em que o morador ia fechando restaurante que chamávamos de Bande-
a casa para sair, fomos até a ele e pega- jão. Era um espaço coberto, mas cercado
mos a chave e dissemos que seríamos com grades baixas, muito amplo e sem

Candida moreira
magalhães

25
divisórias. Nesse espaço, fazíamos debates, assembleias, espetácu-
los musicais, teatrais, literários.
A repressão começa a ficar mais intensa em 1969, e são ini-
ciadas obras no Bandejão, fechando o espaço, colocando bilhete-
ria com uma única entrada e saída. Ficamos cercados literalmente
e já não havia segurança para se realizar qualquer manifestação
no local. Antes acontecia e, quando chegava a repressão, a gente
corria, pulava as grades e fugia pelas ruas. As grandes assembleias
eram no espaço externo em frente à CEU e no jardim da reitoria na
Avenida da Universidade. Mesmo com repressão, fazíamos nossas
reuniões, manifestações e panfletagens nos diversos bairros e no
distrito industrial de Fortaleza. Saíamos sempre em pares, um ho-
mem e uma mulher, para, em casos da repressão, simular namoro,
um par romântico. Fizemos, em maio de 1968, a grande passeata
de protesto à morte de Edson Luis. A repressão nos pegou na Praça
José de Alencar, jogando gás lacrimogêneo, baixando cassetetes em
quem estivesse presente. Nessa ocasião, o preparo físico era impor-
tante, a saída era correr e se esconder. A Lei de Segurança Nacional
nos considerava inimigos da pátria. Em 1969 (23 anos), lançamos
uma chapa que se chamava BANDEJA, porque representávamos es-
tudantes moradores e moradoras das casas universitárias e quem
fazia refeições no Bandejão. Fomos mais de 60 estudantes persegui-
dos, presos e torturados nos anos 1969 a 1972. Fui expulsa, no final
de 1970 (24 anos), do estágio acadêmico no bairro do Cocó, um con-
junto habitacional popular, para onde foram removidas as famílias
que moravam na Praça Portugal em Fortaleza. Acusada de incitar os
Conselho Federal de moradores do conjunto contra os órgãos da prefeitura e Banco Na-
Serviço Social (CFESS)
cional de Habitação, fui proibida de ir a esse conjunto e tive a pri-
meira prisão em 19 de setembro 1970 (24 anos) em Fortaleza. Depois
de cinco dias, fui liberada. Na segunda prisão, em 28 de setembro
de 1970 (fiquei 15 dias), a Polícia Federal invadiu a casa universitá-
ria onde eu morava, vasculharam o quarto onde morava com mais
duas estudantes, reviraram minhas coisas e levaram todos os livros

26
de Educação Popular, Política, Antropo- cei a fazer um trabalho na secretaria. Fiz
logia e Psicologia Social, cadernos com três concursos e fui aprovada em todos.
planos de estágio. A repressão pensava O primeiro, da Associação de Crédito
que eram planos contra a ordem esta- Rural do Distrito Federal (ACAR). Em 17
belecida, porque tinha datas, colabora- de julho de 1972, na semana de assumir
dores e materiais que seriam utilizados; o cargo de Educador Rural, fui seques-
tudo ainda sem especificações. Meus dis- trada, quando entrava em casa, por 4 ho-
cos de Geraldo Vandré, Chico Buarque mens que já estavam dentro da sala, me
(“Apesar de Você”, “Pra dizer que não fa- colocaram capuz preto e algemas e dis-
lei das flores”), que tinham sido proibi- seram que eu ia dar umas explicações. O
dos, foram apreendidos. Nessas prisões, carro seguia em alta velocidade, não via
sofri tortura psicológica e ameaças. Com nada e não tinha ideia para onde estava
dificuldades, consegui terminar o cur- sendo levada. Eu não conhecia Brasília.
so de Serviço Social em 1971 (25 anos), Depois de longo percurso, me puxaram
porque a professora Marta Gradivol, que para fora do carro e conduziram, até
me orientava com medo de ser envolvida que pararam e me tiraram o capuz. Vi
pelos órgãos de repressão, disse que não que estava numa repartição do Exército,
seria mais minha orientadora. Fiquei so- porque passavam muitos homens com
licitando orientadora e, depois de muito farda. Pegaram minha bolsa, meu livro
tempo, a professora Helvia Menezes se e óculos. Em seguida, me mandaram
dispôs, mas já censurando textos que tirar a roupa, aí retruquei: como ficar
havia escrito na monografia. Com a cau- sem roupa ali? Falaram que não ficasse
tela recomendada, escrevi a experiência com conversa, estavam ordenando. Tirei
e defendi em dezembro de 1971(25 anos), o vestido, aí disseram que era pra tirar
recebendo o certificado de graduação. tudo. Eu disse que estava menstruada
Em janeiro de 1972 (26 anos), viajei para e não tinha condição de ficar sem cal-
Brasília com a determinação de estudar ças. Mandaram-me eu abrir a calcinha Candida moreira
magalhães
e trabalhar. Fiz logo matricula na Uni- pra ver o que tinha dentro, comentando
versidade de Brasília (UnB) como aluna que eu poderia estar armada. Depois de
especial no mestrado de sociologia. Pas- identificada, entregaram o vestido e o
sei a estudar para concurso e, em con- sutiã e ordenaram que eu fosse condu-
tato com o Conselho de Serviço Social zida à cela 3. Fui novamente algemada,
para ganhar almoço e passagem, come- colocaram o capuz e me puxaram até a

27
cela. Lá ouvi o barulho da grade sendo de prisão de tantos com quem convivi.
aberta e me empurraram pra dentro, em À noite, quando se ouvia uma grade de
seguida tiraram as algemas e o capuz e cela sendo aberta, já se tinha a certeza
vi aquele espaço mínimo, com um col- de que se escutariam gritos de dor e hor-
chão, uma pia pequena, um cano e uma ror dos que eram interrogados. Essa era
privada de cimento. Falaram: “aqui você uma prática comum. Ninguém dormia e
vai ficar hospedada. Amanhã você vai todos sofriam. Ninguém consegue ava-
dar um passeio”. Era noite e ali sentei liar a intensidade do sofrimento psíqui-
e fiquei noite afora, em total abandono co da pessoa que passa por tortura e, à
e chorei muito. Depois soube que era noite, escuta a agonia dos que estão sen-
o Pelotão de Investigação Criminal do do torturados.
Exército. Os homens que invadiram o Durante o dia éramos levados como
apartamento eram Integrantes do Des- carga, algemados e de capuz, para salas
tacamento de Operações de Informações do Ministério do Exército na Esplanada.
e Centro de Operação de Defesa Interna Os agentes da repressão jogavam uns
(DOI-CODI), dois órgãos que sequestra- sobre os outros de olhos vendados e al-
vam, torturavam e fuzilavam opositores gemados e ainda diziam ironias: “apro-
da ditadura militar, em nome da Dou- veitem”. Sentíamos a respiração ofegante
trina de Segurança Nacional, que tinha e medo do terror ao qual íamos ser sub-
como instituição formadora a Escola metidos. Foram 90 dias incomunicáveis,
Superior de Guerra (ESG). Durante a sendo torturada com choque elétrico nos
ditadura, as residências de suspeitos co- seios e na vagina, afogamento (a cabeça
munistas eram violadas, entravam nas era mergulhada num tanque e empur-
salas de aula sem qualquer cerimônia e rada pra baixo, até eles sentirem que a
levavam as pessoas para serem interro- pessoa estava praticamente afogada, aí
gadas, algumas voltavam e outras eram puxavam pelos cabelos), telefone (uma
Conselho Federal de levadas de um estado pra outro e muitas técnica que batia forte com as duas mãos
Serviço Social (CFESS)
desapareciam. Para o Pelotão de Investi- nos ouvidos deixando a pessoa atordoa-
gação Criminal do Exército, eram leva- da), ameaças de ser estuprada, de ser jo-
dos presos políticos. Pra lá, levaram os gada no lago Paranoá e moralmente ata-
sobreviventes da Guerrilha do Araguaia. cada, por dizerem que eu era amante do
Fui vizinha de cela de Rioko Kayano, Lu- Dom Fragoso, bispo da cidade de Crateús,
zia Reis, José Genoino e contemporânea onde meus pais moravam, e de Manoel e

28
Machado, ambos estudantes universitá- vi; e eu, única mulher, todos proibidos
rios meus amigos, que sofreram prisão e de se comunicarem uns com os outros
torturas em Fortaleza no mesmo período. e algemados. Chegando à Base Militar
As mulheres com atuação política em Fortaleza, os homens foram enca-
eram tratadas como amantes dos políti- minhados para o quartel do exército e
cos de esquerda. Durante esses dias, era eu fui para uma cela na Polícia Federal.
torturada até perder a consciência, quan- Depois de uma semana lá, quando saía
do eles me levavam para a cela desmaia- de uma audiência na sala do delegado,
da. Quando a consciência voltava, via os encontrei no corredor duas advogadas
machucados nos braços, no corpo. Sentia que eu conhecia. Foram visitar os pre-
a sensação de uma fraqueza geral, uma sos políticos que já eram seus clientes,
mente longe, lenta no raciocínio. Era uma e aí me perguntaram se eu estava ali e
sensação de quase morte. Tinha dias em se aproximaram, passaram uma procu-
que eu acreditava que não voltaria viva. ração para eu assinar e afirmaram que
Durante a prisão, o presidente do Conse- iam procurar alguém da minha família
lho de Serviço Social, João Sales de Abreu, e pedir relaxamento da minha prisão.
foi me visitar, mas não permitiram que Essa era sempre a prática de advoga-
ele me visse nem algumas comidas que dos/as que defendiam presos políticos,
ele me levou foram entregues. Não tinha porque sabiam das prisões arbitrárias e
mais ninguém que intercedesse por mim. do sofrimento de torturas. Meu respeito
Em outubro de 1972, fui recambia- e homenagem a duas grandes advoga-
da para Fortaleza, junto com mais 29 das que tiveram a grandeza e generosi-
presos homens, estudantes e professo- dade de defender a mim e milhares de
res da universidade, com quem convi- presos políticos do Ceará sem receber

Candida moreira
magalhães

29
um tostão: Vanda Rita Sidou - OAB/464 o dinheiro para pagar a passagem para
Ceará - e Mary Rodrigues Santabay – casa dos meus pais em Crateús. As pes-
OAB/2132 Ceará. soas tinham muito medo de encontrar e
Depois de um mês, no final da tar- se aproximar de ex-presos políticos, por-
de, me libertaram. Saí da cela, me sentei que temiam ser envolvidos pela polícia.
numa calçada a poucos metros da Polí- Era comum colega ou familiares muda-
cia Federal e chorei tudo que podia por rem de calçadas quando me encontravam
todo esse tempo. Não conseguia calcular nas ruas, temendo serem atingidos pela
a minha dor física e emocional. Uma vida repressão. Passamos por situações seme-
devastada. Meus projetos de trabalho, de lhantes aos portadores de doença conta-
estudo, tudo destruído por uma irracio- giosa, ninguém queria aproximação, por
nal ideologia de Segurança Nacional, que medo da prisão para averiguar e tortura.
prendeu, torturou e matou tantos jovens Nesse mesmo ano, me dirigi à Audito-
da geração dos anos 1950, 1960 e 1970. ria Militar de Fortaleza e pedi autorização
Uma geração que pensava um Brasil com para viajar para o Rio de Janeiro e reco-
educação de qualidade voltada para sua meçar minha vida de forma muito difícil,
população, sua cultura. Depois de muito porque, com ficha de ex-preso político,
chorar, uma senhora que me viu, chegou nenhuma empresa queria empregar uma
perto e perguntou como podia me ajudar. pessoa. Nos dois últimos meses de 1972, fiz
Aí falei que precisava de uma passagem uma pesquisa para o pároco da Paróquia de
Conselho Federal de para pegar um ônibus e encontrar com Osvaldo Cruz/Rio. No primeiro semestre
Serviço Social (CFESS)
uma tia, Nininha, que morava no bairro de 1973, trabalhei no Colégio Imaculado
Barra do Ceará. Nessa casa, passei uma Coração de Maria no Méier (Rio de Janei-
noite sem poder contar nada do que ro) e as freiras, sabendo que era ex-presa,
aconteceu comigo, porque seria convida- já não me aceitavam. No segundo semestre
da a sair, pois havia pavor de ser confun- desse mesmo ano, fiz uma seleção para o
dida com comunista. A tia me emprestou Instituto Brasileiro de Desenvolvimento

30
(IBRADES) e fui selecionada, com direito a uma bolsa de estudo para
fazer o curso Realidade Nacional e Desenvolvimento em regime de
tempo integral.
Em 12 de dezembro de 1973 (27 anos), fui julgada pela Audito-
ria Militar de Fortaleza e absolvida das acusações. No final de 1973
(27 anos), fiz concurso para FUNABEM no Rio, mas a vaga era para
Vitória (ES). Trabalhei na Fundação Espírito-santense do Bem Estar
do Menor, no Programa de Recreação e Aprendizagem de Menores.
Toda pessoa ex-presa política era monitorada onde se encontrasse.
Por diversas vezes, agentes da repressão iam ao meu trabalho, fa-
lavam com a chefia para me vender livros. No sentido de provocar,
mostrava aqueles que estavam proibidos e interrogavam sobre pa-
lestras que eu fazia nas comunidades. Por mais que se tentasse viver
uma vida normal, a pessoa era sempre colocada sob suspeita.
Em 1973 (27 anos), fiz concurso publico para o INPS (atual
INSS) em Vitória, onde trabalhei, depois pedi transferência para o
Rio de Janeiro. Em 1980, entrei para o curso de Direito na Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), período que senti o peso
da ditadura na vida acadêmica. Direito positivo, nada de crítica e
silêncio total sobre o arbítrio, as violações de direitos fundamen-
tais. A vida dos estudantes guardava uma distância e uma diferença
imensa dos anos 1960, quando havia grandes debates sobre a so-
ciedade brasileira. O medo de falar algo que não fosse considerado
normal era presente na vida dos estudantes em geral. A convivência
era pobre, nada de cultura como cinema de arte, teatro, literatura.
Em 1983 (com 37 anos), fui transferida para João Pessoa
(PB), para trabalhar em postos de atendimento da Superinten- Candida moreira
magalhães
dência do INSS. Em João Pessoa, me envolvi com a Associação
Paraibana dos Assistentes Sociais (APAS). Assumi uma gestão e
lutamos para transformar em Sindicato dos Assistentes Sociais
da Paraíba. Posteriormente para ser extinta, porque, com a polí-
tica sindical por ramo de atividade, defendíamos que assistentes
sociais se filiassem aos sindicatos do ramo de atividade em que

31
atuavam. Passei a fazer parte da cate- onora Menicucci de Oliveira, doutora em
goria de trabalhadores da previdência e Ciência Política – aprovada com distinção.
saúde e me filiei ao Sindicato dos Tra- Durante o governo Collor de Melo,
balhadores Federais em Saúde Traba- em 1995 (51 anos), pedi aposentadoria
lho e Previdência do Estado da Paraíba proporcional, por motivo de perseguição
(Sindsprev-PB) e fiz parte da diretoria dentro do trabalho e período de ampla de-
colegiada, sendo responsável pela secre- sestruturação de órgãos públicos, com re-
taria de comunicação. Nesse período, fiz formas administrativas, enxugamento da
parte da Secretaria da Mulher da CUT máquina pública, desregulamentação de
estadual (Central Única dos Trabalha- direitos sociais e trabalhistas – o caminho
dores). Participava de processos de for- construído para a política neoliberal.
mação sobre o feminismo e também fiz Entre os anos de 1994 e 2001, fui
formação para grupo de mulheres do professora visitante do curso de Servi-
campo e cidade. ço Social da Universidade Estadual da
Em 1986, com 40 anos, comecei o Paraíba (UEPB) em Campina Grande e
mestrado em Ciências Sociais na Uni- coordenadora do Grupo Flor e Flor Es-
versidade Federal da Paraíba (UFPB) e tudos de Gênero. Durante esse período,
aprendi a dirigir num fusca azul que se realizamos trabalho de extensão e pes-
chamava Pestana, porque só vivia batido. quisa nos presídios de Campina Grande,
No ano seguinte, houve o nascimen- tanto no masculino quanto no feminino.
to (5 de junho) de minha única filha, Giulia- Em 2001, passo a ser advogada
ne, meu grande amor que me faz festejar a educadora da Fundação de Defesa dos
vida a cada dia, como as flores embelezam a Direitos Humanos Margarida Maria Al-
beira dos caminhos. ves em João Pessoa, estando responsável
Em 1991, defendi a dissertação
de mestrado – Varredoras e Varridas:
Conselho Federal de Condenadas da Precisão – (Trajetória
Serviço Social (CFESS)
de Vidas das Mulheres da Varrição de
João Pessoa, tendo como orientadora
a professora doutora em Antropolo-
gia Lourdes Maria Bandeira e duas
co-orientadoras: Rosa Maria Godoy
Silveira, doutora em História e Ele-

32
inicialmente pelo curso de formação de se preocupavam com a memória histó-
Juristas Populares e, a partir de 2003, rica. O resgate da memória fica mais
assessoria à Rede de Juristas Populares. ligado aos movimentos de resistência e,
Entre 2004 e 2008, fui assessora até serem consolidados os direitos, há
jurídica da Cunhã (Coletivo Feminista), muita demora. Mesmo com a indeniza-
com participação em acompanhamen- ção, a vida teve projetos interrompidos,
to a grupos de mulheres e formação em que não são mais possíveis de retomar. A
Educação Feminista Popular. Em 2005, vida vira de cabeça pra baixo e retomar
após pesquisa realizada pelas amigas um curso normal leva um tempo social,
Gorette Lucena e Solange Norjosa junto histórico e psicológico, permeado por
ao Arquivo Edgard Leuenronth, Centro avanços, paradas, retrocessos e retoma-
de Pesquisa e Documentação Social, do das. Todo sofrimento vivido na prisão,
Instituto de Filosofia e Ciencias Huma- submetida a torturas, é não indenizável.
nas da Universidade de Campinas (Uni- As sequelas são irreparáveis.
camp), encontraram o meu processo e Em 2008, com o valor da indeniza-
foi possível requerer e receber a Certi- ção, viajei com minha filha para o Chile,
dão de Anistiada Política em Julgamento Argentina, Uruguai e Peru, onde resgata-
da Comissão de Anistia Primeira Câma- mos o sentido da articulação da América
ra em 30 de junho de 2005 em Brasília. Latina, o sentimento de sermos um con-
Recebi indenização, mas sem consi- tinente com afinidades, cultura e história
derar o direito de retomar o trabalho na de ditaduras e lutas de resistência.
ACAR, hoje Emater Distrito Federal, por De 2009 a 2011, atuei no Programa Es-
falta de documentos que comprovem. O tadual da Mulher, depois transformado em
Estado, nesse período, passa por refor- Secretaria de Estado da Mulher – Eixo de
mas e o Brasil e instituições públicas não Enfrentamento a Violência contra a Mulher.

Candida moreira
magalhães

33
Em 2010 há o falecimento do meu Esse retorno a Brasília tem uma marca
pai, com 99 anos e 8 meses, e que, nos de alegria, porque hoje podemos cele-
anos de repressão, com mais de 80 anos, brar a democracia e o país que teve como
chegou a ser intimado a depor no 4º presidente um trabalhador. E hoje, uma
Batalhão de Engenharia e Construção, presidenta, ambos com história de luta
porque as filhas Cândida, Eridan, Maria e defesa dos valores democráticos e dos
do Socorro e o filho João Américo foram direitos fundamentais de cidadania do
presos políticos nos anos 1969/1972. povo brasileiro.
De 2011 a 2013 marca o período em Minhas travessias na vida pelo Cea-
que atuo na Secretaria de Estado da Mu- rá, Pernambuco, Brasília, Espírito Santo,
lher e da Diversidade Humana – Gerên- Rio e, por fim, João Pessoa, onde moro.
cia de Enfrentamento à Violência contra Acho que a gente vai se transformando
a Mulher e acompanhamento à Casa ao longo desse tempo de militância e de
Abrigo do Estado da Paraíba. No ano de passagem por todos esses lugares. Pri-
2012, Falecimento da minha mãe em 25 de meiro, eu não saí do Nordeste por uma
maio e o sentimento profundo de orfandade. opção, por querer sair do Nordeste, eu
Em 2013, Encontro-me em Brasília gosto demais do Nordeste, mas foram as
Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS) com minha filha que mora e trabalha contingências. Por exemplo, lá em For-
aqui. Por incrível ironia, por ela, estou taleza, eu era conhecida nos lugares em
reconhecendo Brasília com olhar de que eu ia trabalhar, eu ia ser coordenada
quem recomeçou caminhos e, com mui- sob chefia de pessoas que me persegui-
ta luta, tenta superar as sequelas que ram durante todo o período de estudo
marcaram meu corpo e subjetividade. dentro da universidade, nos campos de

34
te não
u e s u p e r ar, a gen
Eu acho q b astante. H
oje,
u m u d e i
supera. E e s sas marca
s que
t a m b é m
eu tenho eu não ti
nha
a n t e s ,
estágios; então, eu não teria espaço de não tinha e m ida. E ho
je eu
r a d e s t
trabalho. Fui embora, então voltei por medo, eu e o s . Eu tenh
o medo
u n s m e d
tenho alg je já
conta da prisão, de ter perdido todos os
i a , a m u ltidão ho
c
de violên
meus pertences, até roupas. Não recupe-
ando
rei mais nada. A repressão destruía e de-
e i o a s s u stada. Qu
m u não
saparecia com todos os objetos de presos me deixa f e stações, e
a s m a n i
e presas. Sem esses acontecimentos, eu vou para i o lo, no me
io, eu
a r n o m
teria ficado em Brasília nos anos 1970 fa-
quero fic jeito que
eu
r e d e u m
fico semp
zendo o mestrado, doutorado. Com cer-
sair.
teza, teria trabalhado na Emater. Com o
e r , q u e eu possa
r
doutorado, com certeza seria hoje pro- possa cor
fessora da UnB. Foi uma trajetória toda
interrompida e aí você volta, começa
tudo do zero. Morei em muitos lugares, pano dentro da minha boca, me entu-
mas sempre na militância, nunca desis- pia, eu morria quase sufocada. Muitas
ti, sempre aproximada da luta pelos di- noites eu acordo, ainda com aquela si-
reitos das mulheres. Depois venho para tuação de uma coisa que me sufoca. Seu
o Rio e continuo nessa mesma história. corpo registra, é o livro da sua vida, ele
Fui do Sindicato dos Assistentes Sociais registra tudo o que é prazeroso e o que
do Rio de Janeiro, fui do Núcleo do PT também maltrata.
(Partido dos Trabalhadores) no Catete. Eu acho que superar, a gente não
Em termos profissionais, eu fui supera. Eu mudei bastante. Hoje, eu te-
muito afetada, eu tive muitos prejuízos. nho também essas marcas que não tinha
Em termos pessoais, do ponto de vista antes, eu não tinha medo, eu era des-
da tranquilidade, da saúde, tudo isso, temida. E hoje eu tenho alguns medos.
sua subjetividade é atingida profunda- Eu tenho medo de multidão, que já me
mente. Passar por uma prisão, passar deixa meio assustada. Quando vou para Candida moreira
magalhães
por tortura, tudo isso lhe prejudica pro- as manifestações, eu não quero ficar no
fundamente, porque ficam sequelas da miolo, no meio, eu fico sempre de um
memória, fobia para trancar a porta. Eu jeito que eu possa correr, que eu possa
botava uma cadeira escorando a porta, sair. Então, tem um bocado de histórias
nunca tranquei. Durante as torturas, eu que você muda, mas, com relação à luta
gritava: “Assassinos!”. Eles botavam um feminista, eu cada dia me afirmo, eu

35
cada dia vejo que toda essa trajetória valeu a pena, que eu vejo hoje o conjunto das
mulheres no mundo, no Brasil, todas assumindo um papel, tendo atitudes diante da
vida, mulheres que hoje conseguem superar a violência. Tem umas que, às vezes en-
cobrem e chegam a morrer, mas umas são corajosas, enfrentam. Então, até hoje está
valendo a pena toda essa luta. Eu me lembro de que, quando eu me metia nas lutas,
eu me metia com muita coragem, com muita certeza, com muita determinação. E aí a
gente vai amadurecendo nessa história e a gente se mete, mas se mete com incertezas
também, porque todo o contexto, toda a vida é marcada por incertezas.
A gente tem o projeto, a gente luta em direção a ele, mas não é com essa certeza,
acho que também era um pouco de ingenuidade. A gente tinha uma pureza, acredita-
va muito nas pessoas, nos processos, mas não é muito assim, a vida vai ensinando que
tem os retrocessos, que tem as deformações principalmente na política.
Eu acho que o que a gente enfrentou e lutou. Esses frutos, a geração de hoje já
colheu. Eu acho que a gente abriu muitos caminhos, isso faz parte do processo histó-
rico e da vida, porque só tem sentido se houver luta.

Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS)

36
A
minha família é natural da re- Passávamos as férias com nossos
gião do Cariri. Tanto os Guerra pais em Campina Grande e, durante os
quanto os Braz e os Quintans, longos meses de estudo, tínhamos assis-
como a grande maioria dos habitantes, tência dos avós paternos, Vespaziano e
eram fazendeiros de porte médio e se Maria Leopoldina (ambos descendentes
ocupavam com a plantação de algodão, de portugueses) e as três tias ainda soltei-
lavagem de bovinos e caprinos e lavoura ras - Antonia, Alzira, Otacilia - residentes
de sobrevivência. Meus pais, Adalberto em Monteiro. E da família materna: avó
de Alcântara Guerra, funcionário pú- Severina Leopoldina Quintães Braz, viú-
blico estadual, e minha mãe, Ana Braz va de Lucindo Quintães (ambos de origem
Quintans, costureira, casaram-se em espanhola /holandesa), morando com os
Monteiro (PB) em 1937, ele com 21 anos e cinco filhos homens, jovens e solteiros
ela, 20 anos. Em 1947, mudaram-se para na Jurema, pequena fazenda, localizada
Campina Grande (PB), em busca de me- em Sumé, município vizinho. A vida livre
lhores condições econômicas, com seus no campo, brincando de trabalhar com
três filhos pequenos: minha irmã Alba- os tios nos roçados, me fez respeitar os
nita, então com 10 anos, eu com 9 anos e camponeses e desenvolver o gosto pela
meu irmão Vespaziano, com 5 anos. Por liberdade, tão oposta à rigidez da vida no
trabalharem os dois, e visando a uma colégio com normas, obrigações, deveres.
melhor educação para as filhas, nós, as À medida que terminávamos o cur-
meninas, ficamos internas no Colégio so ginasial, as meninas saíam do colégio,
Nossa Senhora de Lourdes, que atendia voltavam para as famílias.
as filhas das famílias da região que dis- Fomos fazer o curso cientifico em
punham de um pouco mais de recursos Campina Grande, minha irmã se pre-
e tinham por missão transformar serta- parava para medicina e eu, engenharia,
nejas do mundo rural em moças de fino para grande desespero da família, por
Conselho Federal de trato, segundo os padrões franceses - não ser uma profissão correta para mo-
Serviço Social (CFESS)
nos ensinam etiqueta, postura, forma de ças; deveria fazer literatura.
andar, falar, sentar-se, servir-se à mesa Durante os anos 1950, vivendo no
e noções de arte, pintura, música. Eu Cariri, conheci o drama da pobreza e
detestava as normas, mas, mais tarde, fome dos retirantes, obrigados a deixa-
nas minhas andanças pelo mundo, lhes rem seus lugares e partirem para o sul
agradeci pelos seus esforços. do país, em busca de trabalho.

38
Quero resolver os problemas do Minas Gerais, São Paulo, sob orienta-
nordeste, construir pontes, canais, es- ção dos padres Henrique Vaz (filósofo),
tradas... Almeri Bezerra, Sena, Romeu Dale (as-
Incentivada por meu pai, um grande sistentes de JUC). Entro em contato com
leitor, leio Raquel de Queiroz, José Amé- os marxistas Paulo Pontes, Adalberto
rico de Almeida, Graciliano Ramos, des- Barreto e estudo Marx com o núcleo de
cubro o Nordeste. marxistas da Paraíba. Passo a integrar
Quero fazer algo maior, lutar con- um grupo de intelectuais do Clube da
tra a fome e a miséria. poesia, formado pelos poetas Virginio da
Entro na Ação Católica, movimen- Gama Melo, Vanildo Brito, Jose Bezerra.
to criado pela Igreja Católica, com uma Leio Mounier, Jacques Maritain, Simone
grande visão social. Descubro o Serviço de Beauvoir, Sartre. Pouco a pouco, vou
Social, uma nova profissão, por meio do formando minha visão da história, do
reitor do Seminário de João Pessoa, as- papel do homem na história, da neces-
sistente da Ação Católica. Opto pela pro- sidade de as mulheres serem reconheci-
fissão, para desencanto da família e dos das por seu justo valor, a descoberta do
professores, por ter escolhido “uma pro- homem como ser histórico, o conceito de
fissão menor, trabalhando numa coisa consciência histórica e da necessidade
que ninguém sabe o que é!”. de uma ética social para orientar a atu-
Apesar dos protestos, vou para João ação política.
Pessoa, capital do estado, procuro trabalho, As dificuldades com a Igreja Católi-
faço concurso para o DNERU, onde sou ca se acentuam e desbordam na visão da
contratada como agente sanitária. Junto profissão. Aproximo-me cada vez mais
dinheiro e me preparo para o futuro. da visão socialista da sociedade e das
Em 1959, faço vestibular, sou apro- suas soluções propostas.
vada. Como trote, devo fazer um dis- Com o movimento político lide-
curso sobre a situação do país, me saio rado pelos militares que não aceitam a
Iza guerra Labelle
bem; marco posição politica. A igreja posse de João Goulart como presidente
investe em mim, me integro à Juventu- do país, os estudantes universitários,
de Universitária Católica (JUC) e, com sob liderança da União Nacional dos
seu apoio, sou eleita vice-presidente da Estudantes (UNE), juntamente com o
UEE. Deixo o trabalho e começo a fazer governador da Paraíba, nos integramos
cursos de formação: em Pernambuco, à cadeia da legalidade, encabeçada por

39
Leonel Brizola, governador do Rio Gran- Educação Popular (Ceplar), que desen-
de do Sul. Assumo a presidência da UEE, volveu um excelente trabalho de pesqui-
devido à renúncia do presidente, e assim sa, alfabetização, educação e cultura em
consolido minha liderança no movimen- diversos bairros de João Pessoa.
to estudantil. Sou procurada pelo exérci- Desenvolvi meu estágio curricular
to, passo um tempo na clandestinidade, no bairro de Varjão, seguindo a linha da
sob amparo de amigos da minha família, Ceplar, e passei a alfabetizar, nos finais
e regresso à faculdade depois da posse de semana e feriados, os camponeses
de Jango. Continuo na UEE, responsável adultos organizados e membros da Liga
pela Diretoria Cultural, trabalhando em Camponesa de Sapé. Neste trabalho,
projetos com Paulo Pontes. tivemos o apoio do advogado Francis-
O grupo de JUC no qual estava inse- co Julião, fundador das ligas, e do líder
rida, assim como a Juventude Comunis- camponês Pedro Teixeira. Com o golpe
ta, compreendemos que nosso trabalho militar, o trabalho foi encerrado e diver-
tanto pedagógico (estágios) como políti- sos participantes presos e líderes campo-
co necessitava dar um salto qualitativo. neses assassinados.
Ouvimos falar do programa de al- Neste período, eu já residia no Rio
fabetização criado pelo professor Paulo de Janeiro, membro da Comissão Nacio-
Freire, da Universidade de Recife, com nal de Cultura Popular.
experiência piloto no Rio Grande do Em setembro de 1963, sendo Mi-
Norte. Decidimos, um grupo de alunos guel Arraes governador de Pernambu-
da Faculdade de Filosofia da Universi- co, foi realizado, em Recife, o 1º Encon-
dade Federal da Paraíba, seguir o curso, tro Nacional de Alfabetização e Cultura
aprender o método e, em seguida, im- Popular, organizado pelo Ministério da
plantar a experiência na Paraíba. Educação e Cultura (MEC), tendo como
Com apoio material do governador ministro o professor Paulo de Tarso.
Conselho Federal de Pedro Godim, da Associação Paraibana Como resultado, foi criada uma Comis-
Serviço Social (CFESS)
de Imprensa (API), do Clube da Poesia e são Nacional de Cultura Popular, com-
de militantes católicos e marxistas, e com posta por representantes de diversas
assistência técnico-pedagógica de Paulo regiões do país: Osmar Fávero, Cosme
Freire e Pierre Furter (pedagogo suíço), Alves, Tereza Aragão, Ferreira Gular,
professores da Faculdade de Educação e Luiz Alberto Gomes de Souza, Paulo
Filosofia UFPB, criamos a Comissão de Pontes e eu. Todos nos deslocamos para

40
o Rio e passamos a trabalhar in-
tegrados ao MEC. Éramos res-
ponsáveis por desenvolver um
trabalho de conscientização em
todo o território nacional, em
complementação ao Programa Na-
cional de Alfabetização.
Em dezembro, com a conclu-
são oficial do curso de Serviço So-
cial, fui contratada pelo MEC, ao
mesmo tempo em que desenvolvia o
trabalho político.
ao desafio da nossa realidade e como re-
Ação Política: criação do movimento corrente de uma análise realista do pro-
político Ação Popular cesso social brasileiro na hora histórica
A relação de militantes da Ação Ca- que nos é dado viver”.
tólica, sobretudo os universitários mili- Foram escolhidos como membros
tantes nos movimentos operários e cam- do Comitê Central e Secretariado Na-
poneses, se deteriora, as divergências se cional, entre outros: Betinho (Herbert de
acentuam, tornando-se impossível, para Souza), Aldo Arantes, Vinicius Caldeira
parte da JUC, continuar integrada à hie- Brant, Maria Angélica Trindade, Cosme
rarquia da igreja. Alves, Luiz Alberto Gomez de Souza,
Em um encontro realizado entre 31 Helgio Trindade, Duarte Pacheco Perei-
de maio e 3 de junho de 1962, em Belo ra, Angélica Duro, Haroldo Lima, Jair
Horizonte (MG), um grupo de cem jo- Ferreira e eu.
vens profissionais, universitários, jor- A AP cresceu no meio dos jovens,
nalistas, provenientes de várias partes em todas as regiões do país, sobretudo
Iza guerra Labelle
do país, criou um movimento, Ação nas capitais, mas o golpe militar de 1964
Popular, que, na introdução do Docu- a encontrou em pleno movimento de
mento-Base, explica: “a Ação Popular é crescimento e consolidação, mas despre-
a expressão de uma geração que traduz parado para enfrentar a dura repressão.
em ação revolucionaria as opções fun- Madrugada de 30 de março, defla-
damentais que assumiu como resposta grado o golpe militar, muitos de meus

41
companheiros passam para a clandesti- transformada em 2 anos e, prescrita, de
nidade ou pedem asilo político em em- acordo com a lei, em novembro de 1977.
baixadas e consulados. Penso que não No Canadá, me foi negado, por par-
sou conhecida e articulo as saídas dos te da embaixada brasileira, registro bra-
companheiros, mas sou informada de sileiro ao meu filho Jair. Situação lega-
que existe ordem de prisão contra mim. lizada em 1980, por ação impetrada por
Entro na clandestinidade e começo a fu- Marcelo Lavenère, da Ordem dos Advo-
gir em direção ao Uruguai, sou presa no gados do Brasil (OAB).
Rio Grande do Sul, por agentes do Centro Também sofri a perda da nacionali-
de Informações da Marinha (Cenimar) e dade brasileira, por ação de Marco Ma-
trazida para a sede do Serviço Secreto na ciel, então governador de Pernambuco.
Praça Mauá, começa o meu périplo! Motivo alegado: ter obtido a nacionali-
Fui demitida do MEC em 1º de abril dade canadense. Nacionalidade recupe-
de 1964, por meio de ação de IPM do car- rada em 17 de outubro de 1985, por inter-
go de membro da equipe de coordenação ferência do governador Leonel Brizola.
do Programa Nacional de Alfabetização Dentre as denúncias que realizei:
(PNA). Posteriormente, presa no Rio de durante o longo período da ditadura, não
Janeiro entre maio de 1964 e março de cansei de denunciar o arbítrio/persegui-
1965, sendo no Centro de Informações ções/torturas (Jornal Correio da Manhã);
da Marinha-Cenimar (maio - junho de livro Torturas e Torturados, de Marcio
1964); no Departamento de Ordem Po- Moreira Alves, 1ª edição,1964, apreendi-
lítica Social (DOPS) e delegacia/presídio da pelo SNI; Centro Intercultural de For-
do Alto da Boa Vista (julho - dezembro mação (Cidoc) - dirigido por Ivan Illich
de 1964) e Complexo de Bangu, presídio e Yvan Labelle, Cuernavaca/México; Or-
feminino Talavera Bruce (janeiro - mar- ganização dos Exilados no Chile; Comitê
ço de 1965). de apoio ao Brasil-Carrefour Internacio-
Conselho Federal de Após a prisão, fui para o exílio de no- nal - Montreal, Canadá; diversas organi-
Serviço Social (CFESS)
vembro de 1965 a dezembro de 1977, pas- zações internacionais.
sando por diversos países: México, Chile, Durante todo o período de prisão,
Canadá, Costa Rica. Acabei condenada, por meio de meus advogados do escri-
à revelia (1967), a 5 anos em julgamento tório Sobral Pinto, Osvaldo Mendonça
pelo Superior Tribunal Militar. Posterior- e Marcelo Cerqueira, constantemente
mente, por ação do advogado, a pena foi foram feitas denúncias públicas e soli-

42
citação de habeas corpus, mudança de As perseguições, prisões, exílio,
sentença, comutação da pena. mudaram completamente minha vida.
Ao regressar ao Brasil em 1977, soli- Refiz os estudos: Planejamento Social e
citamos reintegração ao MEC, aposenta- Econômico na Escolatina em Santiago
doria, reparação pública, nacionalidade do Chile; Sociologia com pós-graduação
de meu filho, recuperação da minha na- em Antropologia na Universidade de La-
cionalidade brasileira e todas atendidas. val no Quebec (Canadá).
Aprofundei minha atuação profis-
Reparações sional no universo da educação popular:
MEC: concedida anistia em 23 de Programa de Alfabetização de Adultos,
março de 1994, com reintegração como as- segundo o método Paulo Freire, dirigido
sistente social no quadro de funcionários aos imigrantes portugueses no Quebec
do MEC; aposentadoria como assistente (experiências nas cidades de Cap Rouge
social do quadro do MEC em16 de março e Montreal); alfabetização dos campone-
de 1995; “Perdão do Estado” - carta do go- ses chilenos integrados ao Programa de
verno do estado do Rio de Janeiro e inde- Reforma Agrária do Chile, durante o go-
nização simbólica em 27 de abril de 2011. verno Eduardo Frei (1966), e dos índios

Iza guerra Labelle

43
No retorno ao Brasil, com um gru-
s /
s s o a s / militante po de oposição à ditadura, participei da
e
Conheci p ; viajei criação do Centro de Cultura Luiz Freire,
o s / c o m panheiros inha
amig e e n contrei m
no cargo de diretora, em Olinda (PE); as-
on t e s , r
vales e m
sessora administrativa da Casa da Crian-
senti
n o r d e stina, me ça, cofundadora, com Daura Lucia, da
famíl i a ana
r a n d e f a mília hum Casa da Mulher do Nordeste, Pernambu-
g
membro da p o r um mun
do co (1978-1983).
e l u t a
que sonha , ético,
Também atuei, no governo Leonel
, ju s t o , solidário Brizola, a convite de Darcy Ribeiro (1984
melho r anos,
o d o s o s seres hum -1986), como assessora da assembleia le-
onde t gênero,
n d e n t e d a etnia, gislativa.
indepe am o
ofia, tenh
Em um retorno às origens, fui pro-
ã o , f i l o s
religi res e
fessora-assistente da Escola de Serviço
e ser liv
direito d
Social da Universidade Federal do Rio de
iguais.
dos como Janeiro (UFRJ), concursada (1989-2008);
reconheci participei da administração da escola na
mapuches, no governo Allende, com as- implantação do curso noturno, do qual
sessoria da FLACSO (1973). fui diretora e, posteriormente, vice-de-
Também atuei com a formação de cana e superintendente da Decania, no
professores em programas financiados campus da Praia Vermelha.
pela Unesco, organizações de mulheres. Ao longo deste longo período, mi-
Outra vertente de atuação que tive: nha vida pessoal, assim como o enga-
a Informação Internacional. Juntos, um jamento militante, foi sendo criada de
grupo de exilados e imigrantes de di- acordo com as circunstâncias, mantendo
versos países, criamos a ONG Carrefour a fidelidade aos princípios políticos, éti-
Conselho Federal de Internacional, com difusão de informa- cos, afetivos. Tive tempo de amar, casei
Serviço Social (CFESS)
ções, denúncias de governos totalitários (Yvan e eu temos mais 50 anos de casa-
e perseguição aos opositores e apoio aos dos), tivemos um filho, Jair Emile, que
exilados do Brasil, Chile, demais países casou com Rosa Peralta, de El Salvador, e
da América Latina, Palestina, África do também duas lindas meninas Julia e Ma-
Sul, atuações contra as Guerras do Viet- rina, alegria da pequena e grande famí-
nã, Angola, Guiné Bissau, Moçambique. lia. Conheci pessoas/militantes/amigos/

44
companheiros; viajei vales e montes, reencontrei minha família nordestina, me senti
membro da grande família humana que sonha e luta por um mundo melhor, justo,
solidário, ético, onde todos os seres humanos, independente da etnia, gênero, reli-
gião, filosofia, tenham o direito de ser livres e reconhecidos como iguais.
O Serviço Social me ajudou, ao longo deste grande caminho a entender o so-
frimento, a dor, a equidade, a fraternidade, mas também a alegria das pequenas/
grandes vitórias.
Sou grata ao universo, que, em condições tão difíceis, me fez ter a sabedoria e
sorte de escolher o lado bom da vida e viver parte do meu sonho de juventude.
Foi e está sendo uma boa vida.
Como disse Violeta Parra – “Gracias a la vida que me ha dado tanto”.

Iza guerra Labelle

45
N
ão se pode compreender o Ser- Érico Veríssimo (1975); da música: Tom
viço Social em tempos de di- Jobim, Vinícius de Moraes, João Gilber-
tadura, sem que se mencione, to; da arquitetura, um Oscar Niemeyer;
ainda que de forma breve, o período an- b) A intensa politização, mobilização e
terior, entre 1960 e 1963, em que mui- luta apaixonada, envolvendo estudantes
tos de vocês ainda não haviam nascido, e sindicatos no mundo inteiro, na Amé-
mas eu sim e era estudante de Serviço rica Latina e no Brasil, ante a expansão
Social . Essa rememoração nos ajuda a e extraordinária sedução, na época, do
entender e contextualizar o regime de ideário socialista e/ou comunista como
arbítrio como parte de uma luta que en- possibilidade concreta de transforma-
volveu poderosas forças sociais e políti- ção econômica, social e cultural. Época
cas nacionais e internacionais, oriundas da Revolução Cubana e das lutas de Che
da luta de classes que se travava e ainda Guevara na América Latina.
se trava no mundo, contrariando uma Tal conjuntura reverberou no já
socióloga que ouvi em Brasília recente- então curso de Serviço social, no início
mente, que afirmou não se poder mais da década de 1960. No Pará, envolvia,
atribuir aos embates políticos atuais sobretudo, estudantes, mais do que pro-
a leitura da luta de classes. Insisto que fessores.
essa luta continua e alcançou formas de Por isso é que, no Serviço Social da
se esconder, de enganar até segmentos Amazônia, a reconceituação entrou pelo
das ciências sociais contemporâneas. movimento estudantil e não pelo movi-
O período anterior à ditadura (e eu mento docente. Os estudantes protago-
vivi nele e tenho gratas lembranças da nizaram as primeiras manifestações de
época) foi, no Brasil, cenário de um ma- contestação às teorias conservadoras
ravilhoso, intenso e ascendente processo que se ensinavam nas escolas de Serviço
cultural, em que destaco dois aspectos: Social, cujas formulações expressavam,
a) A acelerada produção artística, cul- sem nenhum subterfúgio, o pensamen- Joaquina Barata
Teixeira
tural e acadêmica em todos os campos: to da classe dominante da época, para
no campo das artes plásticas, a exem- quem os pobres, os desempregados e
plo de Tarsila do Amaral, que morreu os desvalidos eram “desajustados”, daí
em 1973; Cândido Portinari, morto em que propunham o trabalho social como
1962; Di Cavalcante, em 1976. No cam- “ajustamento”, com todas as suas va-
po da literatura: Jorge Amado (2001); riantes conceituais, desde as formuladas

47
por Thomaz de Aquino até as emanadas Vale registrar o nome de compa-
dos EUA, de Gordon Hamilton. nheiras e companheiros protagonistas
A ALAETS e o CELATS , organiza- desse processo naquele momento. Além
ções depois extintas, eram formadoras de Almerinda Palha Freire (já falecida),
do pensamento acadêmico na América Maria de Lourdes Couceiro Simões, José
Latina e difundiam um Serviço Social Augusto Ponte de Moraes, Yolanda Shir-
reconceituado. Debates e conflitos eram ley Cunha. O que tinha inserção na dire-
frequentes entre estudantes e professo- toria da UAP era José Augusto Ponte de
res de Serviço Social. Eu mesma fui ex- Moraes, apelidado de Juba.
pulsa de uma aula de Serviço Social de Esse era o contexto do Serviço So-
Grupo em 1961, porque contestei o con- cial no período pré-golpe militar, no es-
teúdo positivista da disciplina. tado do Pará.
Segmentos de estudantes de Serviço A ditadura militar interrompeu esse
Social de Belém participavam de todas processo de forma cruel, implacável e
as atividades da então União Acadêmica violenta em 1964, inaugurando uma era
Paraense (UAP) e da União Nacional dos de dor, de tortura, de repressão, de medo
Estudantes (UNE). A referência das lide- e de coragem, de atos covardes e de atos
ranças era a luta pelo comunismo, ainda heroicos, de cooptação, de rendição e de
que, na época, fundados em uma super- valorosos heroísmos e renúncias pessoais
ficial e insuficiente teoria revolucionária, de militantes, entre os quais estudan-
principalmente baseados em uma leitura tes do curso de Serviço Social da UFPA.
de segunda mão, com honrosas exceções. Almerinda e Maria de Lourdes foram
Fui presidente do Diretório Acadê- presas pela ditadura logo em 1964, con-
mico de Serviço Social entre 1960 e 1961. finadas no antigo Presídio da Praça Ama-
As colegas Almerinda Palha Freire e zonas em Belém - hoje um Museu.
Yolanda Shirley foram vice-presidente e Não estava mais entre elas, porque
Conselho Federal de secretária, respectivamente. Ficávamos fiquei grávida sem ser casada (o que era
Serviço Social (CFESS)
na UAP (que funcionava na Av. Gov. José uma heresia e uma vergonha na época) e
Malcher em Belém – depois invadida e fui embora de Belém, primeiro para São
interditada pela ditadura), até de ma- Paulo, onde fiquei três meses, e depois
drugada, todos os dias, discutindo polí- para o Rio de Janeiro, onde meu filho
tica estudantil. Eu nem dormia mais em nasceu em 1962. Ali permaneci por mais
casa (só uma vez por semana). de um ano. Dolores Bahia, Almerinda Pa-

48
lha Freire e Maria de Lourdes Couceiro dura tornou-se cada vez mais assassina,
Simões continuaram os processos de en- mais violenta e mais destrutiva. Durou
frentamento depois que me afastei e, por 20 anos. Criou, por muito tempo, a cul-
isso, foram vítimas diretas da repressão, tura do silêncio e do medo e acabou a
tornando-se prisioneiras políticas. carreira de brilhantes intelectuais, es-
Quando quis retornar como aluna tragou a vida de muitos companheiros
para terminar o curso de Serviço Social, extremamente talentosos, destruiu a as-
a Congregação do curso reuniu-se para censão cultural do país e principalmente
deliberar se meu regresso deveria ser travou o avanço democrático brasileiro.
aprovado ou rejeitado. Os óbices ao meu Na Amazônia, abriu o espaço à expan-
retorno como aluna eram dois: 1) o fato são do capital monopolista. Os estragos
de ter tido um filho e ser solteira; 2) meu desse processo são conhecidos: intrusão
perfil de militante de esquerda. nas terras indígenas, expropriação da
Por maioria, foi aprovado o meu posse dos trabalhadores do campo, de-
regresso, graças às intervenções comba- vastação da floresta, contaminação dos
tivas das professoras Maria Virgínia Gue- rios, formação de grandes latifúndios e
des Gomes da Silva e Maria Tereza Cou- instalação de enclaves. Transformou a
ceiro Simões. E retornei para concluir o Amazônia, antes espaço de abundância,
curso em 1963. A ditadura eclodiu em 1º em reduto de escassez e na segunda re-
de abril de 1964 – Dia da Mentira. Como gião mais pobre do Brasil.
disse, não fui presa na época, mas isso As consequências, todos sabemos:
aconteceu 15 anos depois (meu filho e eu), o crescimento da desigualdade social, da
quando já era professora da universidade concentração da riqueza e da proprieda-
e meu filho estudante do NPI (Núcleo Pe- de e a formação de um mar de miseráveis
dagógico Integrado) da UFPA. e trabalhadores sem terra. A “questão so-
Mas o certo é que, antes disso, cial” chegou ao seu paroxismo e resulta
quando visitei minhas colegas na prisão, no que vemos hoje: a violência, as drogas, Joaquina Barata
Teixeira
tive inveja delas. Queria estar entre elas, o tráfico humano, o trabalho escravo, a
mas a verdade é que todos supunham banalização do crime e a dissolução de
tratar-se de uma repressão passageira, valores morais do mundo contemporâ-
sem grandes traumas. Grande engano! neo. Tudo isso, Rosa Luxemburgo, depois
Como subestimamos o poder e a cruel- Mészáros, Daniel Bensaid e Michel Lowy,
dade da direita! A realidade é que a dita- traduzem no conceito de barbárie.

49
E o que fez o Serviço Social na épo- meu filho que ajudasse a distribuir uns
ca da ditadura, já que os assistentes so- panfletos na saída dos alunos, numa
ciais precisavam trabalhar e prosseguir sexta-feira à noite. Eu deveria ter-me
suas vidas? Houve cooptação? oposto, mas até que não vi grandes pro-
Claro que houve. Cooptação, aco- blemas, por ser uma questão localizada.
modação e medo. Alguns dos melhores Acontece que a diretora acusada perten-
docentes da Escola de Serviço Social cia ao grupo político do coronel Alacid
assumiram cargos importantes de dire- Nunes, que era o preposto da ditadura
ção, muito bem remunerados, na então no governo do Pará.
Superintendência de Desenvolvimento O dia seguinte era um sábado e, no
da Amazônia (Sudam). Alguns deles pro- momento em que voltamos da piscina,
movendo cursos nas frentes de expan- o telefone tocou, e um jovem na linha
são da região, difundindo as teorias do pediu para falar com o Carlos. Pediu ao
Desenvolvimento de Comunidade para Carlos que conseguisse mais panfletos
gestores regionais de todas as áreas, em para outros alunos e marcou um encon-
que o ideário da participação instru- tro na esquina da Avenida João Paulo II
mentalizava a obtenção da adesão popu- (então chamada 1º de dezembro) com a
lacional aos Planos Desenvolvimentistas Travessa Mauriti. Ficamos um tanto re-
da Amazônia: I PND , II PND e III PND, ceosos, mas resolvemos conferir. Meu
todos subjugados aos interesses do capi- filho foi na frente em um carro e eu o
tal monopolista. segui dirigindo outro. Observei de longe
E o que aconteceu, para que meu fi- que ele parou e quatro homens se apro-
lho e eu fossemos presos em 1979? Época ximaram e entraram no carro dele. Meu
em que a ditadura começava a fracassar, coração disparou. Acelerei e fechei o
a perder força e hegemonia, no governo carro. Foi então que um deles, um bruta-
Ernesto Geisel, penúltimo presidente da monte policial civil chamado Estácio do
Conselho Federal de República do regime militar de 1964. Amaral, puxou uma arma e encostou no
Serviço Social (CFESS)
O que aconteceu foi que um grupo peito do meu filho, jogou-o para o banco
pequeno, bem minoritário, de uma an- de trás e assumiu a direção. Eu gritava
tiga Escola Técnica (hoje um Instituto no meio da rua levantando os braços,
Federal – IFPA), travava uma denúncia fazendo sinal para os carros que passa-
contra sua diretora, acusada de corrup- vam. Eles diminuíam a marcha, mas, ao
ção. O líder dessa denúncia solicitou ao ver do que se tratava, respondiam com

50
um sinal de não com os dedos e com a
A derrota da ditadura result
cabeça, aceleravam e iam embora. ou de
muito trabalho, de muito est
O policial disparou pelas ruas de udo,
Belém. E eu atrás. Levou meu filho para de muitas horas de sono per
didas,
a Delegacia Central de Polícia da SEGUP de muitas renúncias, de
(Secretaria de Segurança do Pará), loca-
sacrifícios familiares, de
lizada na rua Santo Antonio, ameaçando
-o todo o tempo com tortura. Lá tiraram
enfrentamento com o poder
a roupa dele, deixaram-no de cuecas e instituído e até de prejuízos
encarceraram-no. Mandei telefonar pra pessoais, por parte de geraçõ
es de
todos os meus amigos e conhecidos e co- profissionais de todas as áre
meçou a chegar gente no prédio da polí- as,
de docentes e de assistentes
cia. Os primeiros que chegaram foram a
professora Maria Elvira e o marido, além sociais, alguns dos quais já
de ex-dirigentes dos partidos de esquer- faleceram, mas deixaram um
legado
da. Levaram-me (só a mim) em um cam- que permanece vivo na pro
burão para um antigo prédio da Polícia
fissão.
Federal na Travessa Castelo Branco (que
hoje é uma creche) e o delegado tomou o eu trabalhava como celetista no Setor de
meu depoimento. A sábia orientação que Pesquisas, demitiu-me sumariamente.
recebi do antigo dirigente do MR-8 foi Não fui demitida da universidade, por-
que, no meu depoimento, tirasse meu fi- que era concursada. Nunca saberei se
lho do ato e assumisse tudo. Foi o que fiz. esse fato influiu para que meu filho, que
Ao ficar frente a frente com o de- conseguiu terminar o curso de engenha-
legado, nunca esqueço as primeiras pa- ria, se tornasse mais tarde um paciente
lavras que me disse: “Vocês têm muita psiquiátrico, em cujos amargos delírios
sorte. Hoje mesmo chegou um comuni- as lembranças da ditadura comparecem. Joaquina Barata
Teixeira
cado do presidente Geisel, suspendendo No Brasil, a ditadura não dissolveu
as prisões políticas. Vamos tomar seu nossas organizações, mas contribuiu
depoimento e liberá-la”. Fomos libera- para seus longos anos de burocratismo
dos no mesmo dia, mas, no dia seguinte e imobilismo, desde a segunda metade
os jornais estamparam nossas prisões e o da década de 1960, o que retardou sem
superintendente da Sudam (Seffer), onde dúvida o seu crescimento.

51
Mas, como diz Rigoberta Menchu A derrota da ditadura resultou de
(uma índia que recebeu o Prêmio Nobel muito trabalho, de muito estudo, de
da Paz em 1992), “não há noite e escuri- muitas horas de sono perdidas, de mui-
dão que aguente muito tempo sem dar tas renúncias, de sacrifícios familiares,
lugar ao amanhecer”. A ditadura findou de enfrentamento com o poder institu-
e, antes mesmo que agonizasse, o curso ído e até de prejuízos pessoais, por parte
de Serviço Social já trabalhava a teoria e de gerações de profissionais de todas as
o método dialético de Marx com as alu- áreas, de docentes e de assistentes so-
nas, avançando para a leitura direta da ciais, alguns dos quais já faleceram, mas
produção clássica. deixaram um legado que permanece
O movimento de resistência ao ar- vivo na profissão.
bítrio uniu amplas forças políticas. O Temos de tirar lições de todos esses
processo de lutas e de democratização acontecimentos. Temos que ter consci-
da década de 1980 se fez presente em ência de que nossas profissões se inscre-
toda a nação, logo, também no Pará. A vem, sim, num embate ético-político de
pressão dos movimentos sociais e do natureza global, e de que temos que to-
povo nas ruas contou com o protago- mar partido, temos que avançar sempre
nismo de docentes e discentes da UFPA e cada vez mais em nossa qualificação,
e de assistentes sociais locais, que par- em nossa educação política e em nos-
ticiparam desse momento por meio de sa união. As forças reacionárias apare-
várias entidades organizativas: sindi- lham-se em todos os campos, no campo
catos, partidos, entidades profissionais do conhecimento, no campo tecnológico,
e outras. Foi reaberta, para o curso de no campo jurídico, no campo militar, e
Serviço Social da UFPA e para o exer- estão prontas para a violência sempre.
cício profissional, a chance de retomar Temos que ser melhores que eles, mais
o seu movimento expansivo e ascen- estratégicos que eles e, principalmente,
Conselho Federal de dente, que culmina nas conquistas que mais unidos que eles.
Serviço Social (CFESS)
o Serviço Social tem hoje, que não são O horizonte da liberdade nos impõe
triviais. Pelo contrário, resultam do permanecermos unidas e unidos, se pos-
amadurecimento conquistado nesses sível, de mãos dadas, como quer o poeta
enfrentamentos, embora reconhecendo Carlos Drumond, porque, como diz ele:
que esse processo atrasou em muitos sozinhos “não podemos explodir a ilha
anos nossos avanços. de Manhatan”.

52
I
ngressei muito jovem no Parti- Não busquei nenhuma reparação do
do Comunista Brasileiro (PCB) e, Estado. De uma parte, porque, quando re-
portanto, na Faculdade de Serviço gressei ao país, dispunha de vigor, saúde
Social da Universidade Federal de Juiz e condições para trabalhar; de outra – e
de Fora, onde me formei entre 1966 e esta foi a razão principal – a forma pela
1969, conduzi-me segundo a política qual se deu a derrota da ditadura (sem
do meu partido. implicar qualquer punição aos torcioná-
Militante do socialismo e, pois, da rios a seu serviço e, mais grave, sem fe-
democracia, quando fiz a opção políti- rir os interesses econômico-políticos das
ca que mantenho até hoje, sabia que se classes dominantes), deixou claro que não
tratava de uma escolha que implicava seriam os seus beneficiários a pagar pelos
riscos – enormemente aumentados com crimes cometidos ao longo de duas déca-
a instauração da ominosa ditadura, que das pelos agentes públicos. Tais benefici-
as franjas mais aguerridas das classes ários – os grandes capitalistas nativos e
dominantes impuseram, com a tutela seus sócios imperialistas, os banqueiros,
militar, ao nosso povo em 1º de abril de os barões da comunicação social, os lati-
1964. Por isso, quando o braço da dita- fundiários incorporados ao agronegócio
dura se abateu sobre mim, em princí- – continuaram/continuam alegremente
pios de 1973 (fui sequestrado e depois com a rédeas do Estado nas mãos.
“legalmente” preso por uns poucos É evidente que a luta pela recupe-
meses), e quando, posteriormente, em ração da verdadeira memória daqueles
1974-1975, a repressão empreendeu sua 20 tenebrosos anos é imprescindível
grande escalada contra o PCB, obrigan- e registrou significativos avanços (de
do-me a sair do país, não me surpreendi que as várias Comissões da Verdade são
nem me vitimizei: fui apenas mais um expressivos). Penso que é tarefa inar-
entre milhares de brasileiros que se in- redável de quem viveu aqueles tempos
Conselho Federal de surgiam contra o regime que servia ao tempestuosos mostrar/revelar às novas
Serviço Social (CFESS)
grande capital. No exterior, contribuí gerações o horror do regime de 1º de
de algum modo para a denúncia do re- abril e demonstrar o desastre nacional
gime de 1964 e, ao retornar ao país, em em que ele se saldou – para tanto, tentei
1979, pude prosseguir na militância que contribuir modestamente com meu lon-
iniciei em 1963 e, sem dela me afastar, go exercício docente e, especificamente,
retomei à minha vida acadêmica. com um livrinho que publiquei na pas-

54
Estou convencido de que ess
a restituição da verdade
histórica – resgatando a
resistência ativa de milhar
de brasileiros, num trajeto es
que teve lances de
generosidade e heroísmo, mas
também de equívocos e
erros – ampliará as bases
elementares para uma nova
compreensão da natureza das
lutas de classes e, muito
provavelmente, dos processos
contemporâneos
experimentados pela socied
ade brasileira.

sagem do cinquentenário do golpe de 1964 (Pequena história da ditadura brasileira.


1964-1985). A restituição da verdade histórica é absolutamente fundamental, para
que as novas gerações se eduquem de modo a jamais permitir e a jamais tolerar – sob
qualquer pretexto – a repetição das práticas econômico-sociais e políticas que foram
impostas pelo regime de 1º de abril à massa dos brasileiros.
Estou convencido de que essa restituição da verdade histórica – resgatando a
resistência ativa de milhares de brasileiros, num trajeto que teve lances de generosi-
dade e heroísmo, mas também de equívocos e erros – ampliará as bases elementares
para uma nova compreensão da natureza das lutas de classes e, muito provavelmen-
te, dos processos contemporâneos experimentados pela sociedade brasileira.

JOSé paulo netto

55
IBIÚNA: O FIO VERMELHO NOS MOVE
12 de outubro de 1968: data do 30º Congresso da UNE!

Q
uarenta e nove anos agora mesmo! Fio vermelho lá e cá! Tinha eu dezenove
anos. Aluna do curso de Serviço Social da PUC-SP. A escola da Rua Sabará.
Logo que entrei na faculdade, me enfiei no movimento estudantil, aprendi
e me convenci que devia ser marxista, socialista, compreender o protagonismo do
proletariado, o internacionalismo de classe, a atualidade da revolução. Lutávamos
contra a exploração do homem pelo homem, contra todo tipo de opressão. Lutamos
contra a ditadura, contra o imperialismo, contra o capitalismo. Apoiamos as greves
operárias de Contagem e, de forma ativa, a greve de Osasco. Entrei para a AP (Ação
Popular) - de orientação Marxista-Leninista -, tendência cuja origem saiu dos qua-
dros da JEC/JOC/JUC (Juventude Estudantil, Operária e Universitária Católica) vin-
culada à Teologia da Libertação, ala progressista da Igreja. Fazia parte do Grupo de
Trabalho Revolucionário (GTR), na frente estudantil. As tendências e organizações
de esquerda tinham, como ainda têm, método tático e estratégico diferenciado face
à revolução social. As teses do movimento estudantil para a universidade eram de
Universidade Critica, Popular, Democrática, em uma luta pela universidade pública,
laica, gratuita, universal, como hoje lutamos.
Lutávamos contra os acordos MEC-USAID, Lei Suplicy de Lacerda, o Decreto
477, que emanavam do imperialismo norte-americano e da ditadura, que tinham,
na mercantilização e elitização do ensino suas premissas no ataque e destruição do
ensino público e na repressão ao movimento estudantil.
Lutávamos contra a reforma universitária da ditadura, assim como lutamos con-
tra as contrarreformas universitárias na democracia burguesa. Lá e cá ancoradas na
orientação programática do grande capital. A União Nacional dos Estudantes (UNE)
"somos nós, nossa força e nossa voz" era nossa palavra de ordem. A UNE estava na Maria beatriz
abramides
clandestinidade, era nossa organização nacional de luta autônoma e independente
do governo, radicalmente oposta à posição majoritária da UNE contemporânea, que
abdica de sua política de independência e de lutas para negociação na institucionali-
dade e, a partir do governo Lula, torna-se estadista, governista.
No dia em que fui presa, chegamos à noite para o 30º Congresso em 1968, que
ocorreria em Ibiúna (SP), após várias horas de maratona, várias escalas, paradas,

57
olhos vedados, mas de fato nada seguro. ela. Os camburões ficavam a 14 km do sí-
Tomamos um sopão e, no dia seguinte, tio em que estávamos. Em filas: rapazes
após a fila enorme do café, num frio da- de um lado, garotas de outro, escoltados
nado, mal iniciava a mesa de abertura, pelos policiais, fomos andando e asso-
fomos surpreendidos pela repressão. biando "caminhando e cantando e se-
Nós mulheres, ao passarmos por visto- guindo a canção...”, música emblemática
ria, éramos chamadas de "putas" pelos para a esquerda revolucionária. Hino em
"gorilas", por termos pílulas anticon- nossas passeatas, seguido do corre-corre
cepcionais conosco. Lutávamos contra a da polícia, dos cavalos, das bombas de
ditadura, o imperialismo, o capitalismo, efeito moral, do gás lacrimogêneo, que,
pelo socialismo, direito à sexualidade e usados lá na ditadura, também o são na
decisão sobre nossos corpos. A luta pelo democracia burguesa contra os sem-ter-
direito ao aborto era parte de nosso de- ra, os sem-teto, operários, estudantes,
bate. Lutas lá em 1968 e da maior atu- professores, quilombolas, indígenas,
alidade cá em 2013. Fomos para Ibiúna populações ribeirinhas, originárias, po-
como se fôssemos para a revolução. Um pulação de rua e contra todos os movi-
montão de erros: primeiro, a posição que mentos sociais de luta, de autonomia e
venceu (ser em Ibiúna). A AP defendia independência de classe.
ser na Universidade de São Paulo (USP), No 30º Congresso da UNE, eu era
com sustentação de massa. Perdemos: delegada de base, eleita em assembleia
fomos para Ibiúna após vários pontos dos estudantes para participar do even-
e consignas. Há muito tempo, sabemos to. Era presidente do Grêmio da Escola
que o nosso esquema de segurança era de Serviço Social (GESS) e também fui
frágil, mas, na época, nem duvidávamos: eleita, em julho de 1968 no congresso
japonas, bonés, bolsas tiracolo, ponchos, estudantil em Fortaleza, membro da di-
tênis gastos, uma revista na mão, óculos reção nacional da ENESSO. Do curso de
Conselho Federal de escuros, calças jeans desbotadas. De lon- Serviço Social da PUC-SP, além de mim,
Serviço Social (CFESS)
ge, reconhecia-se um militante estudan- estudante do período da manhã, foram
til de esquerda, que sonhava e exercitava presas as estudantes Rose Papa (matuti-
a luta pelo socialismo e os nossos "pon- no) e Rosa Haruco Tame (noturno).
tos" não eram nada seguros. De fato, não Primeiro, fomos todos para o presi-
tínhamos ideia da força da ditadura, de dio Tiradentes. Éramos cerca de quaren-
seu poder, embora lutássemos contra ta jovens mulheres em cada cela. O frio

58
era intenso, dormíamos em valete, para disser a verdade, logo será você!”. A noi-
nos aquecer e sentirmos mais próximas te que passei neste cubículo com tortu-
umas das outras .O banheiro era um só, ra a ameaça foi infernal, de verdadeiro
ali mesmo. Estávamos incomunicáveis e terror, aos meus 19 anos, como os outros
não sabíamos nada de que se passava lá mil jovens sob uma tortura psicológica
fora. Os carcereiros nos traziam comida que parecia não ter fim. Sabíamos que
fria em lata de cera. Era ruim... À noite, falaríamos a mesma coisa e que era ver-
ouvíamos berros que, depois soubemos, dadeira: éramos estudantes eleitas pelos
eram para criar um clima de terror (as estudantes, para participar de um con-
torturas não se deram naquele momen- gresso que lutava pelos nossos direitos.
to, afinal eram mais de mil estudantes). A grande maioria de nós foi solta. Nos-
Depois do AI-5, de 13 de dezembro de sos dirigentes estudantis continuaram
1968, o terror se intensifica com as tor- presos, e só saíram da prisão e do país na
turas, desaparecimentos e extermínios. troca pela soltura do embaixador ameri-
Somente pudemos sair para tomar sol cano sequestrado posteriormente.
no pátio com as presas comuns quando Lutávamos e lutamos contra o im-
fomos transferidas para o Carandiru. perialismo, o capitalismo lá na ditadura.
À noite, os carcereiros andavam pelos E hoje, na democracia burguesa, contra
corredores com um molho de chaves e a exploração e opressão de classe, gêne-
iam passando nos ferros das grades das ro raça/etnia. O legado de 1968 e a con-
celas, fazendo um barulho e gritando tinuidade na luta pela democratização
”vocês vão ser ouvidos e ai de quem não do país expressou, em 1977, a retomada
falar a verdade”. do movimento sindical classista, com as
O dia em que levaram uma a uma grandes greves operárias, a Fundação da
para o DEOPS foi de terror. Ficamos cada Central Única dos Trabalhadores (CUT)
uma de nós sozinhas em uma pequena autônoma e independente em 1983. É
sala, aguardando para um depoimento um período de grandes mobilizações Maria beatriz
abramides
horas a fio. Ouvíamos berros, ficávamos e organizações sindicais e populares,
apavoradas envoltas nos nossos 19 anos. no ascenso da luta de classes. A CUT, a
No cubículo de portas fechadas e ouvin- partir dos anos 1990, abdica das lutas de
do lá de fora gritos de pessoas que es- massa, da ação direta, subordinando-se
tavam sob tortura, os policiais gritavam: à institucionalidade em sua posição ma-
”você está ouvindo estes berros? Se não joritária, durante o governo Fernando

59
Henrique Cardoso (FHC), em uma ilusão emancipação humana em uma socieda-
democrática. A partir do governo Lula, de que Marx denominou comunista.
a CUT, em sua posição hegemônica, se Na prisão ficamos incomunicáveis
torna governista, rompendo com a auto- e, sob a coordenação da Madre Christina
nomia e independência de classe. O ano do Sedes Sapientiae, da PUC-SP, nos-
de 1968 nos traz lições com nossos er- sos familiares iam até o presídio, mas
ros, mas também pela convicção teórica, não podiam nos visitar, conseguiam nos
política e ideológica de um fio vermelho enviar, depois do terceiro dia, algumas
que nos moveu e nos move na luta pela coisas para comer e assim sabíamos
igualdade e liberdade. Luta permanente que estavam lá fora. Após uma semana,
pela autonomia e independência de clas- a maioria dos estudantes foi solta e as
se, fim da exploração do homem pelo ho- principais lideranças dirigentes da UNE
mem, do capitalismo, da opressão social, e UEE permaneceram presas, até serem
de gênero, raça, etnia, orientação sexual, trocadas pelo embaixador americano e
pela auto-organização dos indivíduos saírem do país vivendo no exílio até a
sociais livres, a luta pelo socialismo, pela anistia.

Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS)

60
Quarenta e nove anos agora
mesmo! Fio vermelho lá e cá!
Tinha eu dezenove anos. Alu
na do curso de Serviço Soc
da PUC-SP. A escola da Rua ial
Sabará. Logo que entrei na
faculdade, me enfiei no mov
imento estudantil, aprendi
convenci que devia ser mar e me
xista, socialista, compreend
protagonismo do proletariado er o
, o internacionalismo de
classe, a atualidade da rev
olução. Lutávamos contra a
exploração do homem pelo hom
em, contra todo tipo de
opressão. Lutamos contra a
ditadura, contra o
imperialismo, contra o cap
italismo.

Por ter participado do Congresso de processo seletivo no Movimento Bra-


Ibiúna, fui presa , enquadrada na Lei de sileiro para Alfabetização de Adultos
Segurança Nacional, demitida, e sofri (Mobral) e a assistente social que me
tortura psicológica, discriminação e pre- entrevistou declarou que eu havia ido
conceito. E presa nas cadeias Carandiru bem em todo o processo seletivo, mas
e Presídio Tiradentes. como estava sob a Lei de Segurança Na-
Os fatos e violações ocorridos neste cional, não saberia se seria chamada. E
período foram denunciados posterior- não fui. Futuramente fui ao MOBRAL
mente com ações, lutas, resistência. Não e retirei um documento em que meu
podíamos nos organizar em sindicatos, nome constava na lista dos aprovados e
partidos, vivíamos sob a ditadura mili- selecionados e não fui chamada; 2) Em
tar, que se tornou mais violenta a partir 1972, participei de uma seleção para
do AI-5. Decidi não entrar com o recur- assistente social no Hospital das Clíni-
so de reparação. Questiono-me muito se cas. Fui aprovada e comecei a trabalhar.
devemos utilizar este instrumento, não Três meses após o ingresso e já tendo
fui convencida politicamente disto. De- passado o período probatório, em que Maria beatriz
abramides
nunciei coletivamente, atuei, atuo e con- havia sido avaliada positivamente em
tinuarei atuando na luta pela revolução meu desempenho profissional, recebi a
socialista. carta de demissão. Imediatamente tive a
As violações rebateram muito em certeza que a demissão era por ter sido
meu cotidiano profissional: 1) assim que presa. Conversei com meu pai, que acio-
me formei em 1971, participei de um nou um advogado trabalhista, que re-

61
quereu, junto ao DEOPS a declaração de que, para fins civis poderia desempenhar
a atividade profissional. O que não tinha era o direito de ir e vir, sair do país. Mar-
camos uma audiência com o Superintendente do HC, Dr. Oscar Cesar Leite, e fomos
os três: o advogado, meu pai e eu, pois naquele momento, não tínhamos sindicato,
vivíamos sob o regime de exceção, de terror. Fomos atendidos pelo superintenden-
te e um assessor, que começou a ler todas as minhas atividades: participação em
comícios relâmpagos, em manifestações, passeatas, em reuniões com estudantes
no interior, participação nas barricadas da Maria Antônia, enquadramento na Lei
de Segurança Nacional, prisão. O superintendente dizia que, de fato, eu havia sido
avaliada positivamente no desempenho profissional, mas o HC era um hospital de
segurança nacional. Portanto, eu estava demitida por ser subversiva.
Alguns meses depois, o HC abriu concurso público para assistente social e eles
tiveram que aceitar minha inscrição. Ralei nos estudos, passei entre as primeiras co-
locadas e tiveram que me readmitir. Como a ideologia dominante anestesia a maioria
das pessoas, no dia da prova escrita para o concurso, quando entrei na sala, senti um
clima pesado, de olhares de muitas candidatas sobre mim, de desconfiança, de medo,
afinal eu havia sido presa, e sobre isto havia e ainda há muita discriminação advinda
da ideologia dominante reacionária.
A memória, ao ser resgatada, recupera a história de ontem, necessária para
compreender a atualidade da luta
anti-ditatorial, anti-imperialista,
anticapitalista e socialista. No
momento contemporâneo de
barbárie do capitalismo, esta re-
cuperação é mais que oportuna
e lutamos para que, de fato, a
Conselho Federal de Comissão da Verdade apu-
Serviço Social (CFESS)
re as responsabilidades e os
torturadores que ceifaram,
destruíram, desapareceram
e mataram milhares de lu-
tadores sejam punidos.

62
M
eu nome de solteira é Maria ANAS, APAS-BA (até a sua transforma-
Lúcia de Souza e de casada ção em sindicato) e dos congressos.
é Maria Lucia de Souza Car- Fui presa pela primeira vez em 1966,
valho Couto. Estudei na Universidade quando ainda cursava a graduação de
Federal de Alagoas – UFAL (Gradua- Serviço Social, por ocasião do Encontro
ção), Universidade Salvador – UNIFACS da Executiva do Serviço Social, realizado
(Mestrado e Especialização), Católica em Salvador. Sofri vários tipos de tortu-
de Salvador – UCSAL (Especialização) e ras: choque, emergir a cabeça na água,
Universidade Federal da Bahia – UFBA condições insalubres na prisão, violência
(Especialização). psicológica e física. Vivi na clandestini-
Participei do movimento sindical dade por 11 anos, cerceada da convivên-
rural no estado de Alagoas, por meio da cia familiar e dos direitos sociais, civis e
implantação e organização nas diversas políticos mínimos.
áreas do estado, cuja principal atividade Quando me formei, comecei a tra-
econômica era o plantio da cana de açú- balhar no Serviço de Orientação Rural
car. Bem como participei do movimento de Alagoas (Soral), entidade ligada à
sindical do Serviço Social, por meio da 1ª Igreja, que tinha como objetivo orien-

Já naquela época, tinha meu


s passos vigiados, mas não
dedicava muita atenção par
a esse fato: “a gente
subestimava muito o inimig
o, embora ele estivesse sem
nos vigiando”. E foi por con pre
sequência dessa subestimação
que fui presa pela segunda
e última vez, em 6 de janeir
de 1968: “eu ia manter contat o
Conselho Federal de o com um presidente de
Serviço Social (CFESS) sindicato rural para uma
reunião em Palmeira dos Índ
Lá me avisaram para voltar ios.
para casa, porque estavam
minha procura. Mal chegue à
i a casa, fui sequestrada
juntamente com outro trabal
hador”.

64
tar os camponeses na formação de seus sindicatos
de classe, entre eles: a fundação dos sindicatos ru-
rais de União dos Palmares, Porto Calvo, Saúde e
outros municípios alagoanos.
Já naquela época, tinha meus passos vigiados,
mas não dedicava muita atenção para esse fato: “a
gente subestimava muito o inimigo, embora ele es-
tivesse sempre nos vigiando”. E foi por consequên-
cia dessa subestimação que fui presa pela segunda e
última vez, em 6 de janeiro de 1968: “eu ia manter
contato com um presidente de sindicato rural para
uma reunião em Palmeira dos Índios. Lá me avisa-
ram para voltar para casa, porque estavam à minha
procura. Mal cheguei a casa, fui sequestrada junta-
mente com outro trabalhador”.
Graças à atuação de advogados trabalhistas e
às mobilizações de trabalhadores e estudantes, fui
colocada em liberdade meia hora depois de ter rece-
bido o habeas corpus. Chegou uma ordem para que
eu não fosse solta de modo algum. A partir daí, tive
que buscar me refugiar e passar a uma vida clandes-
tina que duraria mais de onze anos.
Ao iniciar a vida clandestina, existia uma pala-
vra de ordem do partido de uma integração na área
de produção. Desse modo, passei quatro anos procu-
rando colocação como operária na Bahia.
Na resistência, me inseri em alguns movimen-
Maria lúcia de souza
tos, como a Associação Marxista/Leninista (AP); o
Partido Comunista do Brasil (PC do B); o Diretório
Acadêmico da Escola de Serviço Social Padre An-
chieta (como vice-presidente).

65
Acabei sendo condenada
pela Auditoria Militar da 7ª CJM,
por crimes de natureza política e
também por subversão, por par-
ticipar do movimento estudantil
e sindical. Cumpri pena na Dele-
gacia de Ordem Política, Social
e Econômica, em Maceió (AL) e
Delegacia do Pilar, no interior
de Alagoas. Denunciei os fatos e
violações sofridas a vários movi-
mentos populares.
Consegui receber, como
reparação do Estado, a aposen-
tadoria proporcional estadual/
DER-AL pela anistia. Porém,
quando do período da clandesti-
nidade, era, também, funcioná-
Conselho Federal de ria pública federal do Ministério
Serviço Social (CFESS)
da Saúde (Departamento de En-
demias Rurais) e fui exonerada
por abandono de emprego. A
esse respeito, ainda busco a re-
paração (no momento sem ação
judicial).

66
As violações que sofremos durante a ditadura causaram sérios danos à minha
vida pessoal e profissional. Como exemplos, a privação do exercício profissional du-
rante os 11 anos de clandestinidade, passando a cumprir a determinação do partido
de integração na produção. E tal atividade se deu em três fábricas, a saber: uma no
nordeste e três no sudeste. Também tive limitações de participação em instituições de
Maria lúcia de souza
ensino regulares; perda da identidade pessoal, pois tive que assumir outras, para não
ser mais vitimizada pela ditadura militar.
Diante disso, destaco que a importância de se resgatar a memória da luta con-
tra o regime militar se revela para evitarmos a repetição da história da repressão
e limitação da capacidade de expressão, em defesa de uma sociedade mais digna,
igualitária e justa.

67
Esse depoimento é orientado pela perspectiva de que

Os homens fazem a sua história, seja lá como for que ela resulte, à medida que cada um
persegue os seus próprios objetivos conscientemente intencionados, e os resultados dessas
muitas vontades agindo em diferentes direções e os seus múltiplos efeitos no mundo exterior
são, precisamente, a história. Trata-se, por conseguinte, também do que querem os muitos
indivíduos. A vontade é determinada pela paixão ou pela reflexão. Mas as alavancas que,
por sua vez, determinam imediatamente a paixão ou a reflexão, são de espécie muito dife-
rentes [...]. Deve-se perguntar que forças motrizes estão, por sua vez, por trás dessas moti-
vações, quais são as causas históricas que se transformam em tais motivações na cabeça dos
que agem? (Engels, 1984: 476-477).

M
inha trajetória de militância de resistência e organização operária,
política partidária situa-se na reafirmação pelo socialismo e a pers-
nas tramas e implicações polí- pectiva da revolução, com mais vigor e
ticas e ideológicas que definiram a gera- adensamento na busca de um ponto de
ção generosa dos anos 1960/1970, como encontro entre compromissos de ordem
expressa Gorender, particularizadas no política e compreensão teórica marxista.
contexto de constituição e crise da di- Assinalo que minha trajetória mi-
tadura de 1964 e a posterior transição litante foi simultânea aos rumos profis-
democrática. Uma inserção política que sionais e acadêmicos trilhados; práticas
ultrapassava o combate à ditadura, ins- estas que se influenciaram mutuamente,
crevendo-se em um projeto de revolução todavia marcando contornos de diferen-
de caráter socialista. Entre o passado e ciação muito nítidos.
o presente, ocorreram derrotas históri- Assumo a militância política a par-
cas que selaram e caíram com toda a sua tir de 1969, período que se segue à decre- maria rosângela
Batistoni
força sobre aquela geração e as que se tação do Ato Institucional nº 5 – o AI-5
seguem. Para mim, resultou em prisão, (de 13 de dezembro de 1968), momento
tortura, condenação pelos tribunais mi- em que a ditadura institucionaliza a re-
litares, afastamento da família, desloca- pressão e violência policial-militar em
mento regional, quase um “exílio” na pá- todo seu alcance e poros do Estado, es-
tria. Mas, sobretudo, a inserção nas lutas tendendo-se para a sociedade.

69
Em 1969, ingresso na Escola de Ser- Cidade Industrial em Contagem (MG),
viço Social da Universidade Católica de região com alta concentração de fábri-
Minas Gerais em Belo Horizonte, que, cas e bairros operários. Ali explodiram
pela condição de universidade privada, as primeiras greves fabris de 1968, com
pela presença de forças progressistas e adesão de cerca de 15 mil trabalhadores
moderadas da hierarquia católica, expe- que, exigindo aumento salarial acima
rimentava rescaldos de uma forte tra- dos índices oficiais, pegou de surpresa
dição do movimento estudantil. Jovens o governo e seu Ministério do Trabalho,
assistentes sociais recém-incorporadas obrigado a ceder. Como se sabe, as gre-
ao quadro docente iriam marcar uma ves de 1968 em Contagem e Osasco (SP)
histórica inflexão na dinâmica de ensino marcaram o protagonismo da classe
da escola e da profissão no país. Situ- operária que saía da defensiva em que
ando melhor, minha origem é da cidade foi posta desde o golpe, com a luta con-
de Varginha (MG); de uma família de tra o arrocho salarial, - sustentação da
pequenos agricultores e comerciantes; política econômica da ditadura. Foram
chegava à capital para estudar, sendo manifestações abertas e diretas contra
a primeira pessoa da família de ambos o regime, com ocupação das fábricas,
os lados a cursar uma universidade. Os piquetes de autodefesa e comissões,
acontecimentos políticos e culturais de cujo desfecho foi invasões policiais nas
1968 tiveram a força de um chamado à fábricas e sindicatos, as intervenções
participação e mudanças e anunciavam- sindicais, cassações e prisões de suas
me respostas às indagações postas no lideranças.
cotidiano familiar e social. Somente com Assim, inicio a militância naqueles
o distanciamento no tempo, é possível anos de chumbo, no processo de reapro-
compreender esses caminhos. Hobs- ximação dos núcleos de resistência nas
Conselho Federal de bawm ensina que a maioria dos seres fábricas, sindicatos e bairros operários,
Serviço Social (CFESS)
humanos atua como os historiadores: só o que germinou, entre outras, as expe-
em retrospecto reconhece a natureza da riências das conhecidas oposições sindi-
sua experiência. cais – centro de minha atuação com con-
Naquele ano, trabalhei como pro- tinuidade em São Paulo, a partir de 1974.
fessora de uma escola pública em curso Aquela ambiência política e ideo-
noturno de alfabetização e supletivo na lógica conduziu-me à adesão pela mili-

70
tância partidária na Ação Popular (AP) obrigada a desfilar nua diante de tortu-
em 1970. No embate de ideias e diver- radores; fui jogada em cela com ratos;
gências, logo deixo a AP e me aproximo recebendo “banhos de mangueira” nos
dos quadros da Organização de Combate porões. Antes de ser presa, encontrava-
Marxista-Leninista (OCML-POLOP), re- me em tratamento dentário de canal,
fundação da Organização Revolucioná- fui “medicada por um dentista” (não
ria Marxista (ORM-Política Operária), vi seu rosto, pelos indícios poderia ser
com a recomposição de seus segmentos um dos médicos torturadores identifi-
e militantes que não aderiram à luta ar- cados); lembro de acordar com a face
mada – reafirmando a estratégia da luta anestesiada; tive sequelas. Era posta
de massas no combate à ditadura. Milito em sessões de torturas de outras com-
na POLOP até sua extinção em meados panheiras, duplicando-se o sofrimento
dos anos 1980. Passo a residir na Cidade psíquico diante de suas dores e pânicos,
Industrial, morando com três operárias mas, por vezes, encorajada por suas for-
metalúrgicas, numa integração ao uni- ças e resistências. Trago muito forte na
verso de vida do operariado. memória o lamento de Zoraide Oliveira,
Fui presa em 17 de dezembro de cuja filha de cinco anos fora sequestra-
1971. Minhas companheiras foram “re- da, então cantava: Beatriz teu nome diz
tiradas” do trabalho e “levadas” por serás feliz!; calavam-lhe com tampo-
agentes repressivos até nossa moradia, namentos. Passei por outros métodos
de onde já saímos encapuçadas. Per- que compõem a tortura: permanecer
maneci por 30 dias nas dependências na mesma posição por horas incalculá-
da Delegacia de Ordem Política e So- veis, perdendo a noção do tempo; ter a
cial (DOPS) de Belo Horizonte, passan- comida intragável em horários diferen-
do pela Delegacia de Furtos e Roubos tes, sem repetições; ser retirada da cela
e 12° Regimento de Infantaria - reco- escura encapuçada para interrogatório, maria rosângela
Batistoni
nhecidos locais de tortura. Permaneci sem saber se é dia ou noite, fazer re-
em prisão, incomunicável, submetida a tornar à cela, sem nenhuma pergunta
torturas físicas e psicológicas: socos, ta- ou fato; ficar sob “os cuidados” de um
pas, choques elétricos em várias partes agente que se comportava com “prote-
do corpo, posta de pé por horas com um tor”, à espera de uma palavra que es-
pneu no pescoço (!). Sob ameaças, era cape. Isto é a tortura - um discurso do

71
torturador no corpo das vítimas. Sub- Fui indiciada pelo Ministério Pú-
verte a mente pela vulnerabilidade do blico Militar, enquadrada na Lei de Se-
corpo, denuncia Weschler. Minha inco- gurança Nacional, em processo judicial
municabilidade foi quebrada por acaso, da Ação Popular - setor operário, com
quando meu irmão, então com 18 anos onze militantes homens e mulheres.
em suas idas quase diárias ao DOPS, Denunciei a tortura e indiquei nomes
viu-me sob escolta. E deixou o recin- de (re)conhecidos e confessos tortura-
to, depois de assinar obrigado que me dores em audiência na Auditoria Mi-
encontrara com boas condições físicas. litar, conforme registrado no impres-
Foi ele o familiar que se pôs em ação; cindível Projeto Brasil: Nunca Mais, de
meu pai cardíaco tivera uma paralisa- livre acesso, assim como parte dos fatos
ção facial ao saber de minha prisão. processuais aqui informados. Mas, com
A tortura imprime solidão e medo o alerta: “os depoimentos de presos po-
dilacerantes; medo da dor, medo de líticos e demais informações inseridas
não resistir… medo que o torturador nos processos judiciais foram obtidas
vença, alcançado o que busca extrair. com o uso da tortura e outros meios
O psicanalista Hélio Pellegrino obser- ilícitos e não podem ser considerados
vou que “a tortura busca, à custa do como absoluta expressão da verdade”.
sofrimento corporal insuportável, in- No retorno imediato à universidade,
troduzir uma cunha que leve à cisão encontro o apoio da equipe de docentes
entre corpo e mente.(....) ela procura, da Escola de Serviço Social de BH e de
a todo preço, semear a discórdia e a colegas de minha turma, a garantia de
guerra entre o corpo e a mente. (…) Na condições institucionais para a conclusão
tortura, o discurso que o torturador do curso. E o (re)encontro com a profes-
busca extrair do torturado é a negação sora Marilda Villela, que regressava após
absoluta e radical de sua condição de a prisão, agora partilhando os vínculos
Conselho Federal de sujeito livre. O discurso que ela busca, de militância e abrindo nossa amizade.
Serviço Social (CFESS)
através da intimidação e violência, é a Tive a efetiva solidariedade de colegas
palavra aviltada de um sujeito que, nas que aceitaram comparecer aos tribunais
mãos do torturador, se transforma em militares em Audiência de Inquirição de
um objeto” (Brasil: Nunca Mais. Tomo Testemunhas: as assistentes sociais Déa
V vol I, 1985, p 2), disponível em http:// Lúcia de Fonseca Mattos e Dilza Siene
bnmdigital.mpf.mp.br. Siqueira Smith. Ainda fui denunciada,

72
Entre o passado e o presen
te, ocorreram derrotas
históricas que selaram e caí
ram com toda a sua força
sobre aquela geração e as
que se seguem. Para mim,
resultou em prisão, tortur
a, condenação pelos tribun
militares, afastamento da ais
família, deslocamento region
quase um “exílio” na pátria al,
. Mas, sobretudo, a inserção
nas lutas de resistência e
organização operária, na
reafirmação pelo socialism
o e a perspectiva da revolu
com mais vigor e adensamen ção,
to na busca de um ponto de
encontro entre compromissos
de ordem política e
compreensão teórica marxis
ta.

juntamente com Marilda, pelo famige- em que setores da hierarquia católica


rado Decreto-Lei n° 477, o “AI-5 para a se movem na denúncia da violação dos
universidade”, instrumento de expulsão direitos humanos e em defesa dos per-
sumária de professores, estudantes e ser- seguidos pelo terrorismo da ditadura.
vidores tidos como “subversivos”. Pro- Na Diocese de Juiz de Fora, a ação do
cesso que não se consumou, pela posição bispado foi de pressionar para que as
em nossa defesa, assumida pelo reitor da mulheres não fossem detidas no Pre-
UCMG - Dom Serafim de Araújo - e seus sídio de Linhares, local de aprisiona-
assessores, recorrendo da decisão do mi- mento de presos comuns e políticos
nistro de Educação e Cultura. em Minas Gerais, oferecendo, à Justiça
Deste processo, temos uma questão Militar, instituições religiosas (inter-
em aberto: houve a ocorrência da cola- natos, conventos) dirigidas por frei-
boração direta de assistentes sociais à ras. Pela ação da Igreja, cumpri a pena
ditadura? abrigada em um internato destinado
Em 9 de outubro de 1973, foi a jul- a meninas pobres até março de 1974,
gamento o referido processo na 4ª Cir- - uma situação especial, diga-se. maria rosângela
Batistoni
cunscrição Judiciária Militar em Juiz O julgamento pelo Supremo Tribu-
de Fora, sendo eu condenada a seis nal Federal ocorreu em 1976 e 1977, com
meses de prisão. Sou “recolhida” aos a manutenção das sentenças.
cárceres (nas dependências da Polícia No plano da militância partidária,
do Exército) para cumprir o restan- os anos entre as duas fases de prisão,
te de cinco meses da pena. Momento inclusos os meses de reclusão, foram

73
dedicados à formação politica na pro- grande capital, de reconstrução da his-
gramática da POLOP, pela iniciação ao tória dos trabalhadores, compreendido
marxismo, à economia política, à histo- como um campo de disputa política e
ria do movimento revolucionário inter- ideológica, formador de memória, he-
nacional, além das análises da depen- gemonia e consciência de classe. Den-
dência latino-americana, de intelectuais tre estas ações, a produção Investiga-
vinculados à organização, e interpreta- ção Operária – empresários, militares
ções sobre o golpe militar na dinâmica e pelegos contra os trabalhadores, re-
da formação social brasileira. sultado de projeto de investigação par-
A mudança para São Paulo em ticipante sobre a repressão cotidiana
1974, após cumprir as imposições do aos anônimos nas fábricas e bairros –
processo judicial, foi de natureza poli- homens e mulheres, jovens, adultos e
tica e partidária, seguindo na organi- idosos. Integramos o grupo de apoio ao
zação junto à base operária da aguer- GT Ditadura e Repressão aos Trabalha-
rida Oposição Sindical Metalúrgica dores, às Trabalhadoras e ao Movimen-
(OSM) de São Paulo - frente autônoma to Sindical da Comissão Nacional da
de trabalhadores, uma referência no Verdade. Seguimos no apoio ao Fórum
ressurgimento do movimento operário dos Trabalhadores por Verdade, Justi-
e sindical nos anos finais da ditadura ça e Reparação, como novas investiga-
militar. Coletivo que teve dois de seus ções, denúncias das violações de direi-
militantes, Luís Hirata e Olavo Hans- tos resultantes da aliança empresarial
sen, mortos sob tortura e Santo Dias militar na ditadura, como a recente
assassinado pela violência policial em denúncia da Volkswagen do Brasil.
piquete fabril na greve dos metalúrgi- Participo, desde 2011, da Comissão de
cos em 1979. No início dos anos 1990, a Estudos do Centro de Referência das
OSM desaparecia no contexto de novas Lutas Políticas no Brasil (1964-1985)
Conselho Federal de derrotas temporárias para os trabalha- Memórias Reveladas.
Serviço Social (CFESS)
dores e para os socialistas. Coloco hoje parte de minha mi-
Integro um coletivo de antigos litância, partilhando os esforços pelo
militantes e colaboradores, que investe resgate da memória das lutas, claman-
forças no autônomo Projeto Memória do por justiça, mas consciente de seus
da OSMSP, um dos arquivos de resis- limites na trama da conciliação política
tência das lutas contra a ditadura do historicamente reiterada no país.

74
H
oje me chamo Marilda Villela dades do DCE, me recordo da invasão
Iamamoto, mas meu nome de da reitoria pela Polícia Militar, na época
solteira é Marilda Soares Vil- da gestão em que estava na direção do
lela. Nasci em Juiz de Fora (MG). Sou DCE o Paulo Villela Lomar e depois a
assistente social, formada na Univer- gestão do Renê de Matos. Então, a nos-
sidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). sa atividade era atividade voltada contra
Atualmente sou professora titular da a reforma MEC-USAID, por mais verba
Universidade do Estado do Rio de Janei- na educação. Lembro-me claramente da
ro (UERJ), também sou aposentada, pro- luta pelo ingresso dos estudantes exce-
fessora titular aposentada na Universi- dentes, que passavam no vestibular, mas
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). não tinham oportunidade de ingressar,
Atualmente eu tenho duas inserções que porque não havia vagas, então, a luta
eu queria registrar. Eu colaboro com a por mais vagas. Nessa época, a União
Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, Nacional dos Estudantes (UNE) tinha
numa pesquisa financiada pela FAPERJ, as executivas estudantis, era por áreas
sobre a repressão no campo no estado de formação profissional. Então, tinha
do Rio de Janeiro. É uma articulação da a Executiva Nacional de Estudantes de
UFRJ, da UERJ e da Universidade Fede- Serviço Social, que era executiva vincu-
ral Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). A lada à UNE, que, por sua vez, já estava
segunda inserção que eu queria regis- na ilegalidade nesse período. E eu repre-
trar é o Projeto Memórias Reveladas. Eu sentei a Faculdade de Serviço Social por
estou no projeto desde a sua criação, na um bom tempo, como representante do
Comissão de Altos Estudos e também no Serviço Social na executiva, que articu-
concurso de teses e monografias, sobre o lava a formação acadêmica e movimento
período da ditadura militar. estudantil.
Eu participei da Igreja Católica, Eu não estive no Congresso da UNE
Conselho Federal de por meio da Ação Católica, Juventude em Ibiúna. Quem esteve representan-
Serviço Social (CFESS)
Estudantil Católica, Juventude Univer- do a faculdade foi a Elizabeth Andrade
sitária Católica e participei ativamente Romeiro, mas eu lembro que a gente fez
do diretório acadêmico da Faculdade uma ampla mobilização na cidade, en-
de Serviço Social no período dos quatro tramos nos ônibus, denunciamos as pri-
anos em que eu estive estudando, 1967 sões, fizemos pequenos comícios Então,
a 1971. Participei do diretório das ativi- a luta política estudantil era uma luta

76
política na universidade, que extrapo- acho que o Serviço Social teve essa pre-
lava para a sociedade a denúncia da di- sença, assim importante. No movimento
tadura. Havia uma aproximação à Ação estudantil local, a gente participou um
Popular, posteriormente Ação Popular pouco de UEE. Eu estive no congresso da
Marxista Leninista, que vem também da UEE, que a polícia cercou em Belo Ho-
esquerda católica, então, nesse campo aí rizonte (MG); foi fechado pela polícia, a
que eu me situei. gente teve um apoio importante dos pa-
A nossa geração foi uma geração dres dominicanos. Enfim, foram essas as
que se beneficiou amplamente da emer- atividades.
gência da cultura dos anos 1960. A dita- Eu nunca participei da luta arma-
dura foi incapaz de abafar a cultura, me da, não tive nenhum vínculo com a luta
lembro da gente acompanhando o tea- armada, eram as atividades que hoje o
tro, o Liberdade Liberdade, Morte e Vida movimento estudantil faz numa instân-
Severina, os concursos da música po- cia democrática, do regime democrático,
pular brasileira, a emergência do Chico pelo menos nos estados de direito, com
Buarque, do Caetano, do Tropicalismo. toda tranquilidade, que naquele mo-
Então, eu acho que foi uma geração mui- mento a gente vivia essas restrições.
to privilegiada, porque viveu a política. A minha presença na AP foi muito
Uma presença muito forte em pensar a diluída, deve ter sido lá pelos anos 1969,
sociedade brasileira, em decifrar essa so- 1970, eu não tenho uma lembrança for-
ciedade. Eu me lembro de que, no curso te, porque a minha militância, ainda que
de Serviço Social, nós fazíamos o grande tivesse vínculo com a AP, era muito do
debate da esquerda daquele momento, movimento estudantil. Então eu acho que
que era rever os clássicos da revolução é por aí: 1968, 1969. Porque era uma coi-
brasileira, que é o Caio Prado Jr., Nelson sa muito interessante na época, esse in-
Werneck Sodré, Moisés Vinhas e outros, gresso na AP é interessante. Porque, para
naquela grande polêmica: como explicar ingressar na AP, você tinha que aceitar, marilda villela
iamamoto
a revolução brasileira. O país é um país mas, para aceitar, você tinha que conhe-
feudal? Um país capitalista? Isso era a cer, mas não podia conhecer antes de
base que sustentava a luta entre as estra- você entrar, entendeu? Então tinha um
tégias políticas, dentro das organizações tal de um documento base, feito pelo Pa-
de esquerda, com propostas possíveis de dre Vaz, que a gente precisava conhecer,
encaminhamento para a luta política. Eu mas só podia conhecer depois que tivesse

77
dentro. Então eram coisas assim bastan- trada na porta da minha casa, eu divi-
tes curiosas nesse processo. Eu tive uma dia apartamento com a Mariléa Venân-
forte interação com a Mariléa Venâncio cio Porfírio, nós morávamos no bairro
Porfírio na faculdade, com Maria Emília da Floresta, na Rua Mármore. Um dia,
Lisboa Pacheco no DCE, com Luiz Antô- pela manhã (eu sabia que eles estavam
nio Sansão, com Renê de Mattos, com o me seguindo, cheguei a avisar à direção
Paulo, o Paulinho, não lembro o sobreno- da faculdade), eu fui sequestrada, enca-
me, é “Paulinho Parceiro”. puzada, colocada num fusca no banco
Enfim, eu acho que foi essa a histó- de trás, e deram várias voltas na cidade
ria de maior força política naquele mo- comigo, até que eu subi umas escadas e,
mento, em que certamente a reação da por acaso, eu reconheci onde estava (no
repressão foi muito desproporcional às DOPS, porque, quando eu mudei para
atividades que de fato nós realizávamos, Belo Horizonte, eu morei numa pensão
que eram essas atividades próprias do exatamente em frente ao DOPS; então,
movimento estudantil. na hora em que eu vi as escadas e tal,
Quando eu me formei, em 1971, eu eu imaginei que podia estar ali). Eu fui
tinha 21 anos de idade, e fui imediata- presa no dia 2 de dezembro de 1971 e
mente para Belo Horizonte, fui convida- fiquei presa no DOI-CODI até 4 de feve-
da para dar aula na Universidade Católi- reiro de 1972, ou seja, dois meses e dois
ca de Minas Gerais, que era UCMG, hoje dias. Eu fiquei por conta do DOI-CODI.
PUC Minas. Comecei a trabalhar e fiz um Quando eu cheguei, eles não tinham
concurso para o então Instituto Nacional imediatamente nada contra mim, eles
da Previdência Social (INPS), hoje o INSS, perguntaram se eu era a Mariléa, por-
um concurso público como assistente so- que eu acho que eles estavam procuran-
cial, passei a ser lotada na Coordenação do a Mariléa e, nos dois primeiros dias,
de Bem-Estar no serviço de assistência ao tive sim interrogatórios subsequentes,
Conselho Federal de menor excepcional. Comecei a trabalhar o dia inteiro, 24 horas sem comer, com
Serviço Social (CFESS)
como assistente social. dificuldade e sem água. Enfim, esse tipo
Importante eu registrar isso, por- de pressão nos dois primeiros dias, sem
que isso tem desdobramentos na minha dormir. Mas, no terceiro dia, começa-
história política daí derivada. Então eu ram as torturas.
tinha esses dois vínculos de trabalho em Eu vou falar um pouco disso, eu
Belo Horizonte e fui presa, fui seques- tenho um documento em que eu regis-

78
tro isso. Eu acho que não é fácil de dizer
e eu queria dizer o seguinte: eu fiquei até
esse ano (2013) sem falar na tortura, tinha
muita dificuldade de encarar o tema. Até
que eu andei conversando com algumas
pessoas, um psicanalista que fez uma tese
afirmando o seguinte: “A tortura não é
para falar, a tortura é para calar, para calar
para o resto da vida”. Na hora em que eu
tomei consciência, disso eu pensei: “Então,
eu vou falar”.
Então, o primeiro depoimento públi-
co que eu fiz sobre a tortura foi em março
desse ano, na aula inaugural da pós-gra-
duação da PUC-RJ, período também em
que o Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS) também começou a estimular o
resgate de parte da história dos assistentes
sociais que tiveram, num período, envolvi-
mento na repressão. Então, eu resolvi falar.
Então, foi o seguinte, nesse período, no
terceiro, quarto dia, começaram as torturas
físicas e começaram com muita pressão,
me tiraram do quarto mediante agressões
físicas, tapas no rosto, telefone, me joga-
ram numa sala com a máquina de choque,
aplicaram choque nos dois dedos, simul- marilda villela
iamamoto
taneamente, tinha um médico do lado pra
ver até onde a gente aguentava. E rodava a
máquina de choque, eu sei que eu pulava
que nem uma bola, assim, literalmente. E
fui interrogada privilegiadamente pelo ca-
pitão Portela, que tinha o codinome de José

79
Joaquim da Silva Xavier. Então, a partir remédio, passei uma noite acordada com
desse momento, foi um período de, não sete homens num quarto. Eles disseram
sei, uns 15, 20 dias subsequentes de todo que eu tinha que tomar e trouxeram um
tipo de agressão. Foi choque nos dedos, líquido num cálice. Se eu não tomasse,
nas mãos, acareações e a questão aper- embaixo ficavam os cães do DOI-CODI,
tou, assim, do ponto de vista da agressão, ameaçavam de me jogar junto aos cães.
com o vinculo com movimento estudantil Eu consegui sair do quarto, que tinha sete
de Juiz de Fora. Eu passei uma noite, por homens, e entrei no corredor, aí foi uma
exemplo, com o pau de arara armado pra visão de cena de horror: muita gente de-
escolher, o que eu preferia: choque ou formada, as pessoas com muito hemato-
pau de arara? Eu sofri muitas agressões, ma, a tortura com uma mangueira que
assim, eu fui inquirida, tiraram roupa, colocavam na boca. Música muito alta
ameaçaram choque no seio, choque na pra abafar os gritos. Então foi realmente
vagina. Agressões, agressões do ponto uma noite de horror no DOI-CODI.
de vista da minha pessoa enquanto mu- Não sofri ameaça de estupro. O que
lher. Então a ideia de ser dependurada. eles fizeram foi o seguinte: tiraram mi-
E as pessoas ameaçavam, por exemplo, nha roupa, me interrogaram, rasgaram
se você não quisesse ser dependurada, minha blusa, me interrogaram semi-
a gente pode te dar um remedinho e a nua, essa coisa de ameaçar o choque no
gente desaparece com você. Então ame- seio, na vagina. Nesse momento, eu tive
aças, assim, violentas de morte. Deram- uma crise emocional muito forte. E um
me um cálice uma noite, para tomar um tratamento muito desrespeitoso da mi-

Eu acho que não é fácil de


dizer e eu queria dizer o
seguinte: eu fiquei até ess
e ano (2013) sem falar na
tortura, tinha muita dificu
Conselho Federal de ldade de encarar o tema. Até
Serviço Social (CFESS) que eu andei conversando com
algumas pessoas, um
psicanalista que fez uma tes
e afirmando o seguinte:
“A tortura não é pra falar,
a tortura é pra calar, pra
calar pro resto da vida”.
Na hora em que eu tomei
consciência, disso eu pensei
: “Então, eu vou falar”.
80
nha condição de mulher, mas ameaça de lizados para você não saber o que era
estupro não. Depois desse processo de verdade, o que era ameaça, ou seja, eles
muita tensão, vinha a técnica da psicolo- diziam: “Você está conosco, aqui nin-
gia, adequada à tortura, não só o médi- guém ouve nada, você não tem nenhum
co apoiando a tortura, mas o psicólogo. contato externo, nós fazemos guerra é
Depois que você levava uma pauleira guerra”. É a ideia da ideologia da segu-
de agressão física, psicológica, emocio- rança nacional. A segurança e o desen-
nal e tal, aí vinha um bonzinho, uma volvimento a metamorfose da ordem
pessoa que se dizia um psicólogo, que e do progresso e a segurança aparecia
não apoiava aquele tipo de método, mas internamente como guerra, interna e,
sempre insistindo nas mesmas questões, portanto, você está numa guerra, tudo
de que a gente poderia falar com tran- é permitido. Então uma noite saíram,
quilidade, sempre inquirindo as mes- por exemplo, comigo, um DC14, que era
mas questões e muitas questões sobre aquela caminhonete grande, com uma
as quais a gente não tinha informações. máquina de choque, cheia de homens e
Esse era o dilema, porque a minha mi- me puseram numa estrada à noite, achei
litância em Belo Horizonte foi pratica- que eles iam me matar, que iam me estu-
mente inexistente, porque eu fui pra lá prar, sei lá. Aí, eles estavam me usando
em fevereiro, fui presa em dezembro, eu como isca pra procurar outras pessoas,
nem conhecia as pessoas que foram en- pra me apresentar, para me por na porta
volvidas no meu processo, eu conhecia da casa da pessoa que eles estavam bus-
os colegas que eram da minha profissão. cando. Isso aí foi muito forte.
Então eram pedidos de informações que Algo assim que eu acho que é muito
eu não tinha como fornecer. À época importante e que permanece hoje é a in-
uma pessoa do Cenimar era especialista vasão de domicílio, quando eu cheguei no
em Ação Popular, então, naquela época DOI-CODI, eles imediatamente descre-
eram álbuns, com fotos de pessoas, pe- veram nosso apartamento, que eu dividia marilda villela
iamamoto
dindo que a gente as identificasse. Não com a Mariléa, como estavam as dispo-
era um policial, era um militar, da Ma- sições dos móveis, a lista de compras, era
rinha, que era um especialista em Ação um apartamento antigo. E tinham docu-
Popular. Então, isso era outra questão. mentos, assim, livros. Eu não tinha nada
Uma outra coisa importante tam- que me comprometesse no apartamento,
bém, eram todos os mecanismos uti- porque eu sabia inclusive que estavam me

81
seguindo, estavam de olho, mas tinha um qualquer momento eles podiam buscar a
livro, eu lembro até hoje, “A Sociologia de gente, seja para esclarecimento, para aca-
Marx” de Henri Lefebvre, da editora Foren- reação pra começar tudo de novo. Isso foi
se, e que era a grande subversão daquele no período de 2 de dezembro de 1971 a 4
momento, a prova. E ao lado desses livros de fevereiro de 1972, foram 2 meses e dois
tipo esse, anexaram uma série de outra do- dias. No período do ano novo minha fa-
cumentação e atribuíram a mim, como se mília foi me ver, mas não deixaram entrar.
fosse tirado da nossa casa. Então, ou seja, Depois deixaram uma vez ter contato com
você teve a invasão de domicílio muito a família, ou seja, estive incomunicável
clara e comprovada. Nesse tempo, fiquei nesses dois meses
não sei quantos dias no DOI-CODI, depois A minha mãe estava na minha casa
eles me levaram, eu e a Mariléa, para uma quando eu fui presa. Ela tinha 64 anos
noite, que eu acho que tinha muita gente, e tinha problema cardíaco, eles usaram
para uma cela de delegacia de bairro, no muito isso também. Inclusive ela teve
Horto, que tinha bicho, que tinha barata. um infarto no dia que eu fui julgada
Passamos a noite com frio. Enfim, jogaram aqui, na Quarta Circunscrição da Jus-
a gente lá e abriram no dia seguinte. Depois tiça Militar. Então eles jogaram muito
disso eu fui para o 12º Regimento de Infan- com isso. Logo que eu fui presa, como
taria, em Belo Horizonte, a Mariléa tam- não tinha ainda nada contra mim, eles
bém foi, mas cada uma ficava num quarto deixaram rapidamente eu encontrar
separado, fechado e com uns soldados com minha mãe e meu pai por interferên-
metralhadora na porta. Então, para você ir cia de um professor da PUC Minas, que
ao banheiro você tinha que bater e o cara dava Estudos dos Problemas Brasileiros
te levava com a metralhadora junto. Eu sei (EPB), que era um militar e que disse
que eu fiquei muito tempo com problema que provavelmente eu seria liberada,
intestinal, enfim, constipação. Era muito mas aí quando deu a conexão com o
Conselho Federal de difícil você saber que você estava ali com movimento estudantil de Juiz de Fora,
Serviço Social (CFESS)
uma pessoa com metralhadora o tempo eles resolveram me guardar. Então nes-
inteiro. Então nós ficamos nesse lugar bas- se dia eu falei para o meu pai assim, si-
tante tempo, e sempre assim, todos os dias lenciosamente, que ali tinha tortura.
chegavam os agentes do DOI-CODI, pra fa- Uma coisa interessante dessa coisa
zer uma visita, para dizer que a gente podia de tortura é que tinha um francês, que
voltar para lá a qualquer momento, que a eu não me lembro o nome, um capitão na

82
época, que depois veio pra Juiz de Fora, e
eu o encontrava frequentemente na rua.
Assim, esses encontros com torturado-
res, eu tive 3 que me marcaram muito.
O primeiro foi com esse francês que eu
sempre cruzava com ele aqui na Aveni- porque foram vários encontros ca-
da Rio Branco, não sei o nome, era um suais. Isso em plena ditadura mi-
nome francês. Ele veio servir em Juiz de litar. Bom, então esses foram os 3
Fora e até eu cheguei um dia, estava com encontros com ex-torturadores.
a minha mãe e meu pai e falei: “Olha, Quando a gente estava no regi-
esse é um torturador”. Depois uma vez mento de infantaria tinha um amigo
eu estava em São Paulo, imediatamente daqui de Juiz de Fora que estava servindo
após esse período de Belo Horizonte, eu lá e era oficial do dia, mas que não chegou
estava na rodoviária, uns torturadores, a nos visitar. Estava servindo e era oficial
mas mais qualificados, capitão, coronel, do dia, não estava ligado à repressão. Mas
não sei, me abordaram na rodoviária, foi uma coincidência assim muito assusta-
perguntando para onde eu ia, o que eu dora, porque que tinha a coisa do silêncio.
estava fazendo. E a terceira coincidência Do despertar, a corneta tocava o desper-
foi atroz. Eu fui pra Belo Horizonte, pri- tar, todos os oficiais faziam formação no
meira vez que eu fui a Belo Horizonte... pátio e do quarto que a gente estava, a
Eu tomei um táxi quando eu cheguei na gente via. Uma coisa interessante também
rodoviária, dei o caminho, a hora que que é uma coisa da solidariedade dentro
eu olho no espelho era um agente do do Exército, bonita, foi um dos oficiais do
DOI-CODI, que não era desses qualifi- dia que estava responsável ele falou assim:
cados, era não sei, menos qualificado “Olha, eu tenho um amigo, Matta Macha-
que tomava conta dos presos políticos. do - que posteriormente foi morto – então
Eu fiquei com muito medo porque eu o você não preocupa não, esse depoimento marilda villela
iamamoto
reconheci, não sei se ele me reconheceu. que você faz nessa fase de tortura e de coi-
E para onde que ele ia me levar, né? Pedi sas falsas. Esse registro e tal que você tem
para parar e desci. Ele não me reconhe- que assinar, depois você vai ter a possibili-
ceu, diferente do da rodoviária que me dade de rever isso na Justiça”, enfim. Sabe,
identificou e desse aqui que certamente então foi uma coisa assim muito bonita da
me olhou me reconhecendo (o francês), parte desse colega.

83
Quando um dia que a gente tava no O Juiz auditor Mauro Seixas acatou
12° regimento, eles mandaram arrumar as a denúncia e aí implicou no julgamento,
coisas porque nós íamos pro DOI-CODI. isso foi um ano depois, mas nesse ínte-
Nós não sabíamos pra onde. Aí chegaram rim entre o período do inquérito policial
lá, nos colocaram num camburão de po- e o julgamento (em que eu fui condenada
lícia, naquele carro que tem aquela parte a 6 meses de prisão) eu voltei a dar aula
atrás, eu, Jussara – que era uma das pes- com a autorização do mesmo juiz.
soas da UEE que dava assessoria aqui em A Universidade Católica de Belo
Juiz de Fora e Mariléa Porfírio. Aí foi já no Horizonte não colocou problema e nes-
final, uma viagem para Juiz de Fora, mas se meio tempo o exército exigiu a apli-
a gente só descobriu no meio do caminho cação por parte do reitor Dom Serafim
para onde a gente ia e levou 8 horas, fu- Fernandes do decreto 477 (esse decreto
rou pneu... Um clima de terror. E a gente lá era contra pessoas que tivessem atos
atrás naquela carroceria. Aí a gente veio, subversivos, alunos, professores, e im-
nos levaram pra 4ª Região Militar ali no plicava a expulsão de qualquer Univer-
Mariano Procópio, nos colocaram na cela sidade brasileira pelo período de 5 anos)
coletiva e foi quando fomos chamados Nós tivemos três pessoas conhecidas
pelo General que afirmava: não existe tor- nessa época do 477. Foi uma colega, as-
tura, não sabia de tortura, que aqui não ti- sistente social, Maria Rosângela Batisto-
nha tortura. Realmente tortura física não ni, um colega do movimento estudantil
teve, mas aconteciam fatos degradantes, daqui de Juiz de Fora, o Luís Carlos, e
como: muita acareação, muita tristeza e eu. Enfim, a Universidade nos absolveu.
muito interrogatório. Aí nós ficamos aqui Primeiro porque eles estavam baseando
um período, acho que uma semana, não a expulsão em inquérito policial, que era
sei quantos dias, não me lembro mais e suspeito, não tinha ainda julgamento.
depois liberaram a gente, isso aí foi dia 4 Segundo porque nós estávamos sendo
Conselho Federal de de fevereiro de 1972. julgados duas vezes pelo mesmo fato,
Serviço Social (CFESS)
Nesse período eu perdi o emprego. Eu uma de forma administrativa e outra ju-
era assistente social do INSS e eles me de- dicial e que não tinha provas suficientes
mitiram. O argumento da demissão foi por arroladas. Então a reitoria bancou, não
abandono de serviço porque eu faltei mais aplicou o decreto 477, mas tive que fazer
de 15 dias. Mas, claro, não falavam que eu a defesa, conseguir advogado enfim...
estava nas mãos do Estado brasileiro. mas a Universidade, é uma coisa impor-

84
É importante resgatar a mem
ória, por mais
difícil que seja, porque o
inconsciente não
tem tempo, as coisas se atu
alizam, mas eu
acho que é importante a gen
te, primeiro,
atribuir transparência ao
tante isso, me manteve como docente,
que ocorreu no
interior da ditadura, é imp
inclusive de licença sem vencimento du- ortantíssimo
abrir os arquivos, é import
rante um bom tempo, não me demitiu. antíssimo que
O meu julgamento foi no dia 22 de essa história difícil da pol
ítica
março de 1973 e eu fui julgada e condenada brasileira tenha visibilid
ade. E, por isso
a 6 meses. Quero registrar, que no julga-
que eu acho que a gente tem
mento, minha mãe teve um infarto. Fiquei que resgatar a
memória, tem que atribuir
presa até 13 julho de 1973. Não tinha pri- visibilidade e
não só pra esclarecer o pas
são feminina em Minas naquele período, a sado, mas no
igreja interveio, por meio de Dom Geraldo compromisso de evitar e que
as novas
de Moraes Penido. Eu fui cumprir minha gerações tenham consciência
pena no Instituto João Emílio em Juiz de dessa história,
pra que isso não se repita
Fora. E uma coisa importante é que a dire- . Então, eu acho
que isso é a responsabilidad
tora da Faculdade de Serviço Social, Elisa e política que
Melo, pediu autorização ao juiz da 4ª região a gente tem de fazer denúnc
ia.
e me enviou dois estagiários de serviço so-
cial e nós fizemos o projeto de implantação mas ele me contratou assim mesmo. Aí eu
de Serviço Social na Instituição. E orientei abri o jogo mesmo e ele me contratou, mas
dois trabalhos de conclusão de curso na teve uma enchente em Tubarão e eu tive
cadeia. Foi muito bonito isso e eu tive um que trabalhar com os militares, eles assu-
apoio enorme da Terezinha Viegas que era miram a prefeitura, tomaram conta da ci-
uma das freiras, irmã do Padre Viegas, que dade, fizeram intervenção de guerra.
foi uma mulher fantástica nesse período. Eu era assistente social da prefeitura
O resultado do julgamento teve re- e eu tive que coordenar toda defesa civil,
percussões claras na minha vida profis- porque não tinha defesa civil naquele mo-
sional, eu me casei e fui morar em um mu- mento com os militares no poder. E até que
nicípio em Santa Catarina, Criciúma, na eu fiz isso, até que no final eles exigiram marilda villela
iamamoto
Prefeitura, quando eu chego lá eles todos que eu fizesse a avaliação da enchente, fi-
sabiam da minha ficha policial, Isso foi zesse uma pesquisa em sete dias, todos os
depois da prisão, depois de cumprir pena. municípios afetados da região porque foi
Eu cheguei e fui procurar um empre- Tubarão que encheu. Eu falei que eu não
go na prefeitura e o prefeito Odamir Bar- tinha condição técnica de fazer, que eu
reto sabia de toda minha situação, enfim, não faria. Aí eu pedi demissão.

85
Eu não sei se a exigência para a rea- São Paulo, aí foi uma coisa da igreja mes-
lização da pesquisa em sete dias era para mo, no Instituto Paulista de Promoção
me forçar a pedir demissão. Mas eu pedi Humana fui eu e, então, meu marido e fi-
demissão e me deram uma carta de refe- camos três meses e no 4º mês eles nos de-
rência. As damas do carvão me deram um mitiram, por caça às bruxas. Aí ficamos
anel de brilhante. Carvão, porque era uma os dois desempregados. Então foi uma
região carbonífera, as “Damas do Carvão” sequência de muitas... nessa enchente,
é porque eu trabalhava, eu assessorava meu marido ao invés de cuidar das aves,
uma entidade de assistência social da elite ele era engenheiro agrônomo, especiali-
local também. Quarenta anos depois, em zado em zootecnia, ele priorizou o aten-
2013, me liga uma senhora que estava em dimento às pessoas, com isso, ele também
uma reunião de assistentes sociais e fa- foi demitido. Então foi um período assim
lou que tinha aprendido a fazer não sei o muito atribulado de um profissional mi-
quê com a Marilda, aí perguntaram qual grante, em decorrência desse processo.
Marilda, aí ela deu o nome e aí as profis- Quando eu saí da tortura, a igreja
sionais falaram de mim. Aí essa senhora estava acionando com a denúncia da tor-
conseguiu o meu contato, me ligou e man- tura. E pediu que eu escrevesse sobre o
dou toda a documentação do que aconte- que eu passei, eu escrevi, mas não con-
ceu com os meus projetos de trabalho que segui, não tive força para concluir e dei
eu desenvolvi na época na cidade. Com o para uma pessoa guardar os depoimen-
atendimento à enchente o prefeito ganhou tos, foi escrito a mão ainda. E, quando em
um financiamento fantástico do governo 2001, eu tive que fazer esse depoimento
federal, com o qual ele reformou a cidade, para a Comissão de Organização dos
aí na época a gente assinou uma institui- Torturados do Estado de Minas Gerais li-
ção que tinha toda a parte de formação gados às vitimas de tortura do Conselho
profissional para adolescente, mas que Estadual de Defesa dos Direitos Huma-
Conselho Federal de estava desativada, aí me trouxe a história nos da Secretaria do Estado de Justiça
Serviço Social (CFESS)
dessa instituição, o encanto das crianças, dos Direitos Humanos, eu procurei essa
enfim e jornais, recortes de jornais de to- pessoa e perguntei se ela tinha o papel
das as frentes de trabalho desse período ainda, ela me disse que tinha. Então eu
muito emocionante! só consegui fazer um depoimento muito
Depois, uma outra consequência foi detalhado porque eu tinha o registro da-
quando eu fui trabalhar no interior de quele período. Eu queria dizer uma coisa

86
que eu escrevi, está aqui, eu digo o se- já no Rio de Janeiro pedindo a minha
guinte no final desse depoimento: reintegração. Bom, isso rolou. Até este
“Certamente as marcas e sofrimen- ano quando ele foi concluso, de 1997 a
tos que ficaram na vida de muitos não 2014. No Supremo Tribunal Federal tive
podem ser eliminadas ou ressarcidas, o parecer favorável e eu estou sendo
elas desafiam o tempo, atualizam-se per- reintegrada ao INSS depois desse tem-
manentemente enraizadas na história de po todo para aposentar. Não sei quais as
vida e nos corações de muitas famílias consequências disso ainda.
brasileiras. Entretanto, o mais importan- O pedido de anistia, eu entrei com
te é que as denúncias dos atos violentos o pedido de anistia em 2002, porque o
e arbitrários do passado iluminem o pre- processo da reintegração estava parado
sente, seus desdobramentos futuros na eternamente. Eu fui anistiada em 25 de
defesa e aprofundamento do regime e nos outubro de 2006, publicado em 2007. Eu
valores democráticos e, que o interesse tinha um grande amigo, meu cunhado,
das grandes maiorias se constitua de fato que trabalhou muitos anos no INSS, ele
no desafio permanente da construção de foi fiscal e ele foi uma pessoa que me
uma nova nação brasileira, sob os princí- apoiou decisivamente nas denúncias,
pios éticos da grande política”. porque ele buscou toda a documentação,
Quando da redemocratização a pri- então, informou todos os processos, hoje
meira iniciativa foi pedir a reintegração ele é falecido, o Paulo Monzani. Eu que-
do INSS do ponto de vista administrati- ria fazer uma homenagem pra ele.
vo que a Constituição depois de 1988, me Eu acho que é importante resga-
permitia. Então eu fiz, ganhei no Estado tar a memória, por mais difícil que seja,
de Minas Gerais e perdi em Brasília com porque o inconsciente não tem tempo,
aquele argumento de sempre: você en- as coisas se atualizam, mas eu acho que
trou na política porque você quis, você é importante a gente, primeiro, atribuir
foi subversiva porque você quis e assu- transparência ao que ocorreu no interior marilda villela
iamamoto
ma as consequências Aí, isso passou al- da ditadura, é importantíssimo abrir os
gum tempo, e em 1997 eu entrei, ainda arquivos, é importantíssimo que essa
antes da Lei da Anistia, ainda com base história difícil da política brasileira te-
no artigo 8º da Constituição com proces- nha visibilidade. E, por isso que eu acho
so na justiça, isso em 1997, foi um pro- que a gente tem que resgatar a memória,
cesso que eu entrei já por um caminho, tem que atribuir visibilidade e não só

87
para esclarecer o passado, mas no com- o sindicato dos trabalhadores, o que
promisso de evitar e que as novas gera- ocorreu com os trabalhadores rurais. E
ções tenham consciência dessa história, urbanos também. Nós estamos buscan-
pra que isso não se repita. Então, eu acho do assessores sindicais daquele período.
que isso é a responsabilidade política Procurando os arquivos dos sindicatos,
que a gente tem de fazer denúncia. os arquivos do Estado. Enfim, é buscar
Hoje eu estou trabalhando em um agulha no palheiro. Mas temos algumas
projeto da Comissão da Verdade do Rio identificações importantes.
de Janeiro, junto com a Universidade. Eu O professor Octavio Ianni tem uma
acho que isso vai ser muito mais difícil análise que eu gosto muito sobre a dita-
com os trabalhadores, principalmen- dura do grande capital. Ele disse o se-
te os trabalhadores rurais, em que tem guinte: foi uma contra revolução, uma
uma particularidade, você não tem só a dupla contra revolução, foi uma contra
repressão estatal, você tem a violência revolução contra o avanço do movimen-
privada, você tem as milícias privadas. to agrário, sindical, das ligas, dos sin-
Então o público e o privado se misturam dicatos, da luta pelas reformas de base,
e esse privado não tem registro. Então contra os trabalhadores rurais. E foi uma
é muito difícil. E são pessoas que tam- contra revolução que Florestan Fernan-
bém não têm uma presença forte, assim. des chama de autocracia burguesa con-
Inclusive naquele livro da identificação tra os estados de direito e as conquistas
dos torturados, a questão do campo é democráticas ainda que precárias que ti-
muito frágil, porque é difícil. Então a vemos de 46 até 64. Porque o que move a
gente está fazendo um trabalho assim, ditadura pra mim, na minha análise, que
no caso do Rio de Janeiro, de buscar os eu consigo entender desse processo, foi
arquivos do Estado, buscar e identificar a abertura do Brasil ao grande capital,
os nomes, para procurar os nomes nas a ditadura do grande capital e para isso
Conselho Federal de fotos, tanto da luta pela terra quanto você teve que obter ordem e progresso,
Serviço Social (CFESS)
do sindicato dos trabalhadores rurais, ou seja: segurança e desenvolvimento e
porque tem outro lado, eu sou assis- daí cercear.
tente social, mas eu também trabalho Calar a oposição. E certamente os
com a questão agrária, então acho que trabalhadores rurais e urbanos, nos seus
é muito importante que a Comissão da mais diferentes segmentos, foram pro-
Verdade procure ver o que ocorreu com fundamente atingidos. Além dos estu-

88
dantes, da classe média, enfim, dos seg- ras. Em que as democracias são interreg-
mentos médios. Então eu acho que esse nos num quadro de luta. Então eu acho
processo, ele tem sentido, a tortura, tudo que desenvolver uma cultura política
isso eu acho que é um embate clássico democrática é absolutamente fundamen-
muito forte que nós tivemos nesse pro- tal para o futuro. E eu me dediquei a isso
cesso, de defesa da hegemonia da aber- no campo profissional, assessorando as
tura para o grande capital, você teve um entidades nacionais, as instituições bra-
salto na expansão capitalista brasileira sileiras de ensino, o Conselho Federal de
nesse período. E isso implicou um custo Serviço Social, dando cursos, rodando a
muito alto, no Brasil grande, de milagre América Latina afora, enfim, eu acho que
brasileiro, em todo esse processo. Que se nessa perspectiva, que é uma militância
expressou do ponto de vista da maioria teórico-política, mas é um compromisso
da população, como arrocho salarial, que a gente tem.
como perda da qualidade de vida. Queria agradecer a oportunidade,
Porque é um desafio que transcor- eu acho que é obrigação da gente regis-
reu a vida. Nasci em 1949 e acho que meu trar. E quero dizer o seguinte: isso que
compromisso é o mesmo e isso me dá eu estou registrando não é só uma his-
muito alento pra viver, ou seja, eles não tória de vida pessoal, isso é expressão
me envergaram. Isso se expressa sobre pessoal de uma realidade que foi coleti-
vários ângulos. Entrei no campo da po- va numa geração, e eu acho que eu re-
lítica profissional, escrevi muita coisa, gistro com esse espírito, por isso mes-
muitos livros, que é uma forma que eu te- mo, uma das coisas pelas quais eu me
nho de expressar meu compromisso, tra- silenciei nesses tempos e hoje quando
balhei muito com os assistentes sociais as pessoas ficam sabendo assustam, é
brasileiros, latino-americanos, numa que eu acho que a gente não pode fazer
perspectiva de uma leitura crítica da so- disso nenhum ato de heroísmo, pessoal.
ciedade, de resgatar o potencial da teoria Mas que chega um certo momento que é marilda villela
iamamoto
social crítica, para pensar e decifrar. Os importante revelar. Revelar para criar o
compromissos éticos, teóricos e o desafio debate, para elucidar o passado e os ca-
de decifrar a sociedade e de contribuir minhos do presente e do futuro. É nes-
para a elucidação desse período difícil da sa direção que eu faço esse depoimento,
sociedade brasileira, mas que não é úni- ele é difícil pra mim, não é fácil, mas eu
co, esse Brasil que viveu muitas ditadu- acho que necessário.

89
E
u nasci em Juiz de Fora (MG), em O primeiro momento em que eu
7 de setembro de 1946, sou assis- comecei a ter a noção da questão de
tente social e depois eu continuei justiça, de pobreza, de desigualdade, já
os estudos, fiz mestrado em Educação, foi em casa. Meu pai em especial, mas a
doutorado em Ciências Sociais. Ao con- minha mãe também, era pessoa de uma
cluir meu curso de graduação em Juiz ligação muito forte com a igreja católica
de Fora, fui trabalhar em Belo Horizon- e meu pai participava de um movimento
te (MG), fiz concurso logo, em feverei- que chamava Vicentinos, e que visitava
ro. Eu me formei em 1969. Em fevereiro os bairros pobres, levando ajuda finan-
de 1970, eu fiz concurso para o antigo ceira em especial. Então, desde criança,
Instituto Nacional de Previdência Social eu ouvi dizer que existiam pobres e ri-
(INPS), hoje Instituto Nacional do Segu- cos. E que Cristo, na medida em que ele
ro Social (INSS), como assistente social era católico, não permitia que essa situa-
e comecei a trabalhar em maio de 1970. ção prevalecesse, mas nós, que tínhamos
Trabalhei até dezembro de 1971, mo- alguma coisa, tínhamos que ajudar.
mento em que eu fui presa e não mais Meu pai era, como se diz hoje, um
retornei ao meu posto de trabalho. A microempresário e um funcionário pú-
partir de 1985, eu fiz concurso, primeiro blico estadual que trabalhava na admi-
para Universidade Federal Fluminense nistração dos grupos escolares de Juiz de
(UFF), no Rio de Janeiro. E a partir de Fora. Era família de classe média baixa,
1991, eu me torno professora da Univer- tinha oito filhos e lutava com muita di-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ficuldade para dar a casa e a escola para
onde estou até hoje. Nesse meio tempo, seus filhos. Mas todos eles sempre ou-
eu trabalhei algum tempo depois que viram dizer que se tinha que repartir e
fui presa, saí da prisão, como assisten- que essa situação era inadmissível. En-
te social. Mas, nesse exato momento, eu tão, com 12, 13 anos, eu fui conhecer as
sou professora, eu estou professora na favelas de Juiz de Fora e aquilo me cha- Mariléia venâncio
porfírio
UFRJ, há oito anos no Núcleo de Políti- mou muita atenção. Ao mesmo tempo,
cas Públicas em Direitos Humanos. Saí eu estudava no colégio Santa Catarina,
do Serviço Social e estou numa unida- que tinha uma freira alemã, que logo ini-
de voltada para as Políticas Públicas em ciou um trabalho chamado de comunitá-
Direitos Humanos. Voltando então ao rio nas favelas de Juiz de Fora. Era um
período de Juiz de Fora. movimento que se chamava Veritas e foi

91
ali que eu comecei a entender que só dar lar. Então, já em 1967, nos primeiros me-
o pão, só dar a roupa, isso não adianta- ses do ano, eu já entro na Ação Popular.
va. O Serviço Social apareceu para mim Aí começo a entender toda a discussão
como sendo uma possibilidade técnica que acontecia no país, já começo a mili-
de sair dessa realidade, a ilusão que, por tar, também já em função dos presos que
meio do curso, isso poderia ser modifi- já existiam, da denúncia das prisões, das
cado de qualquer forma. Então eu fui fa- torturas.
zer o curso de Serviço Social. Minha militância nesse momento
No curso de Serviço Social, eu rapi- se restringiu ao movimento estudantil,
damente percebo que a realidade não se primeiro ao diretório acadêmico, depois
mudava por meio da profissão e da mera cheguei a ser secretaria do diretório cen-
vontade das pessoas, que a situação era tral, participei da UEE, fui no congres-
muito maior, que era uma questão estru- so da UEE em Belo Horizonte, primeiro
tural. Eu entro na universidade no perí- momento em que eu tive contato com o
odo da ditadura militar, em 1966. Esses gás lacrimogêneo. Não fui ao congresso
dois anos de golpe se passaram ilesos. de Ibiúna, que foi outro colega, a Eliza-
Eu não fui, nem apoiei, mas também era beth Schmidt, que foi pela escola. Minha
uma coisa meio nebulosa, na universida- militância na universidade terminou,
de que eu logo começo a entender que mas eu já participava de Ação Popular
alguma coisa estava errada. Bom, mas, durante esse período todo e a orientação
nesse meio tempo, eu já participava do de Ação Popular é de que eu saísse de
movimento. Eu não fui de Juventude Juiz de Fora e fosse para Belo Horizonte.
Estudantil Católica (JEC), mas eu logo Então eu vou para Belo Horizonte, por
comecei a participar de todo um proces- uma orientação da organização.
so que circundava os jovens desse mo- Em Belo Horizonte, a orientação era
vimento. Eu, entrando na universidade, de que eu já começasse a militar voltado
Conselho Federal de eu já entro na Juventude Universitária para os bairros da Cidade Industrial. En-
Serviço Social (CFESS)
Católica (JUC). Já logo entro na militân- tão, eu me formo em 1969, faço concurso
cia de movimento estudantil. Um ano em 1970, vou para o INPS e lá eu tinha
depois, eu já assumo a presidência do varias opções, de trabalhar em vários lu-
diretório acadêmico e rapidamente eu gares. A organização me propôs que eu
começo a participar das reuniões, e aí eu fosse trabalhar num hospital da cidade
sou chamada para entrar na Ação Popu- universitária, Hospital Júlia Kubitschek,

92
que atendia doentes, tuberculosos, ope- te e ir para São Paulo para trabalhar na
rados, em especial, que vinham da mina. produção, aquilo que se falava.
Porque ali seria um espaço também de Então eu iria trabalhar na fábrica. E
militância, na medida em que havia al- era uma coisa que eu realmente gostaria,
guns operários que estavam ali, mas ao de ser uma operária e fazer o trabalho
mesmo tempo, eu deveria concentrar de Ação Popular na fábrica. Eu comecei
minhas atividades na Cidade Industrial, a ser preparada para isso, já durante o
já tendo contato com um movimento ano de 1971. Nesse sentido, eu passei a
operário. ter contato com a alta direção da Ação
Em Belo Horizonte, eu trabalhei no Popular, com pessoa que tinham nomes
hospital, de maio de 1970 a dezembro de de Aníbal. Estou dizendo o nome, pois
1971. Eu participava de reuniões, de dis- acho que tem um significado muito im-
cussões de textos, de panfletagens, co- portante essa figura, que mais tarde eu
mecei a ter contato com poucas pessoas, vou saber que se chamava Edésio Passos.
muito poucas, que eram do movimento Do meio do ano em diante, começamos
operário. Tinha um misto de participa- a ter notícias. Primeiro, parecia que ti-
ção, porque eu participava com algumas nha infiltração em Ação Popular, depois
pessoas que a Ação Popular chamavam parecia que nós estávamos sendo se-
de pequena burguesia e com algumas guidas, mais para o final do ano, eu não
pessoas que eram do movimento operá- me lembro, não consigo me lembrar se
rio. Por que eu estou dizendo isso? Por- foi outubro ou novembro. Eu e Marilda
que depois eu vou ter três processos. E Iamamoto morávamos juntas. Embora
tinha alguns contatos com pessoas que eu trabalhasse na Cidade Universitária,
eram do movimento estudantil, mas se- eu morava num bairro de classe mé-
cundariamente. Primeiro, porque eram dia-média, em Santa Tereza. Nós duas
pessoas de Juiz de Fora e que tinham ido tínhamos apartamento alugado e, nesse
para Belo Horizonte. Então eu acaba- meio tempo, deve ter sido outubro, no- Mariléia venâncio
porfírio
va circulando por esses três segmentos vembro, quando nós ficamos sabendo
dentro da Ação Popular. E, na Ação Po- que parecia que nós estávamos sendo
pular, existia já uma conversa muito for- seguidas, porque outras pessoas já esta-
te, por isso, eu tinha um contato maior vam sendo seguidas e algumas pessoas
com quem estava no movimento operá- da Ação Popular já tinham sido presas. A
rio, de eu me desligar de Belo Horizon- mãe da Marilda foi para Belo Horizonte,

93
para dar uma noção de que nós éramos sim, nós nunca conversamos sobre isso
família, que nós não tínhamos nada com mais. Bom, eu saio, ela sai de casa antes
a questão politica, partidária. Nós tínha- de mim e ela é sequestrada. Eu saio logo
mos algumas atividades de ouvir uma após, eu devo ter saído umas 7h30 mais
música, de sair, mas, nesse tempo, mais ou menos, para ir para o trabalho, eu es-
tarde nós ficamos sabendo, nós ouvía- tava indo para o trabalho normalmente
mos barulho em casa, no sótão, eu via, com a sacola. Quando eu saio, dou uns
na porta de onde eu estava, um mendigo dez passos, alguém me chama. Eu olho
que não saía dali. Então esse mendigo, para trás; no que eu olho para trás, já
depois, mais tarde, na própria prisão, tem três pessoas em cima de mim, já
eles vão dizer, eu fui seguida ali o tem- me agarram, já me põe um capuz, já me
po todo e eles entraram de dia na nossa põem dentro de um carro. A partir dali,
casa e viram nossos livros, viram todas as pessoas dizem: "abaixa, abaixa", eu
as coisas, inclusive chegaram a levar entrei em susto, eu não tive outra reação.
coisas. Nós já estávamos sendo seguidas E rodam, rodam, rodam muito tempo e,
e, como nós estávamos sendo seguidas, logo depois, param em um determinado
mas ainda assim sem que percebessem, lugar, eu entro, subo umas escadas, eu
soubessem, eu me preparei para sair de vou saber mais tarde que eram as insta-
Belo Horizonte e ir para São Paulo, já lações do DOPS.
que eu já tinha programado ir para uma Quando eu chego ao DOPS, entro
nova forma de atividade política. em uma sala fechada, cheia de bancos,
Então no dia 2 de dezembro, eu saio não vejo ninguém ainda, fico ali um de-
de manhã, pego duas sacolas, minhas terminado tempo; mais tarde eu vou co-
sacolas de roupa, dou uma para Maril- meçar a ver algumas pessoas, inclusive
da, vou ao banco, pego todo o dinheiro eu vi a Marilda. Eu não lembro se eu já
que eu tinha, como se fossem hoje mais fui torturada nesse primeiro dia, eu te-
Conselho Federal de ou menos uns 800 a 1.000 reais. Pego as nho impressão de que, mais para a noite,
Serviço Social (CFESS)
minhas roupas, duas sacolas de roupas, eu já comecei a ser torturada. Já sabiam
Marilda leva uma, eu levo outra, por- meu nome e a primeira coisa que me
que eu iria encontrar com ela depois, já causou maior impacto, porque eu nunca
que eu ia embora naquele dia, ou ia fi- tinha ouvido, era o seguinte: "Guerra é
car em Belo Horizonte com alguém. Não guerra, vocês perderam". Então, foi pri-
consigo saber se ela sabia, eu acho que meira coisa que comecei a ouvir, aquilo

94
já me causou um impacto assustador. perguntada por que eles achavam que,
Eu não consigo mais guardar os tempos, quando eu fui presa, eu era alguém da
as datas, só sei esse dia, porque esse dia direção. Porque, como eu tinha conta-
ficou registrado em todos os documen- to com o movimento estudantil, com o
tos. Mas eu acho que, nessa noite, eu já movimento que eles chamavam de pe-
comecei a ir para uma sala e a primei- quena burguesia e com o movimento
ra coisa que fazem (aí eu acho que é o operário, eles imaginavam que eu era.
mais impactante, que causa maior rup- E como eu encontrava com a pessoa que
tura entre você e outro do outro lado), é era o orientador geral da Ação Popular,
te arrancar todas as roupas, e é um ato que era esse Aníbal e ele estava sendo
muito brusco. Eu lembro que eu estava seguido, muito seguido, ele já tinha sido
de calça comprida e de blusa e já come- denunciado de uma prisão que já tinha
ça pela blusa e já começa tirando tudo. acontecido no Rio e depois em Brasília,
Aquilo causa uma perplexidade que você então ele é que foi seguido e que, a partir
não sabe o que vai fazer. E ai já começam dele, é que várias pessoas foram sendo
a te perguntar coisas. Corporalmente, também seguidas, mas ao mesmo tempo
você tem que desnudar também as todas existiam pessoas infiltradas dentro de
as outras coisas, é o que eles querem. No Ação Popular.
primeiro momento, foi ainda de pergun- Eram essas que, de fato, passavam
tar as coisas e eu dizer que eu não sabia todas as informações. Então, quando
de nada, ainda muito aleatoriamente. Eu começavam a me perguntar realmente,
não consigo lembrar como foi passada eu comecei a apanhar e ser torturada,
essa noite, mas eu sei que foi uma pri- porque não era nem que eu não quisesse
meira noite de interrogatório e eu já to- dizer, eu não estava segurando sob o ato
talmente sem as roupas. da tortura o não dizer, é porque eu real-
No dia seguinte, eu começo real- mente não conseguia saber quem eram
mente a ser torturada. O primeiro mo- aquelas pessoas. Então isso me fez apa- Mariléia venâncio
porfírio
mento da tortura começa com tapas no nhar e ser torturada, talvez com mais in-
ouvido, perguntando se eu conhecia tensidade do que é, se soubessem, já de
fulano. Ainda eram todos codinomes e, antemão, que eu não tinha tanta impor-
como as pessoas tinham vários codino- tância quanto é, eles precisavam saber.
mes, então você sabia e você não sabia. Depois dos tapas no ouvidos, eu comecei
Então não conhecia, e eu comecei a ser a ter os dedos enrolados para levar cho-

95
que. Nisso vai indo numa gradação. Isso fotes em cima de mim, me tiram toda
deve ter sido uns cinco dias. Durante a roupa, me põem num canto, nua, e
dois dias, me tiravam dali, me faziam ro- eu fico ali, não sei quanto tempo. Essa
dar na Cidade Industrial, para ver se eu foi a minha única tortura no quartel e,
conhecia algumas pessoas, me punham depois, numa cela onde eu tinha músi-
na porta da fábrica da Belgo Mineira, cas ensurdecedoras. Nunca me pergun-
para ver se, na saída dos operários, s taram absolutamente nada e a tortura
eu apontava alguém, eu realmente não foi só esta. Eu fiquei na cela sem roupa
conhecia. Eu não conseguia. Tinha um durante muito tempo também, depois é
operário que eu conhecia, ele foi preso que me deram minha roupa. Aí eu volto
e depois eu fui vê-lo, mas ali nas instala- do Barão de Mesquita, eu não perguntei,
ções do DOPS. para as pessoas que me levaram, para os
Então, cinco, seis dias depois, eu torturadores o que eu fui fazer lá, o que
não consigo definir muito, eles me põem eles queriam comigo. Muito, muito re-
no carro. Já na estrada, eu percebo que centemente, no ano passado, eu comecei
tinha uma outra pessoa, eles tiram meu a imaginar que eu fui parar ali, para uma
capuz, aí eu vejo que era uma colega mi- pessoa que estava presa em Brasília, que
nha, a Verônica, que tinha sido presa, era o Paulo Fontelles, que ele foi preso
mais ou menos na época. Eu falei: "para com o meu nome e eu também tinha o
onde nós vamos?". Muito tardiamente, nome dele, que eu acho que ele seria um
descobrimos que estávamos na rodovia ponto que dizia que eu iria encontrar
Juiz de Fora - Rio. Não sabíamos o que com ele em São Paulo, para ele ver se ele
ia acontecer conosco. Nós estávamos se- me conhecia, se eu era alguém, se eu era
questradas, para onde nós íamos, o que alguém de nome. Ele não me conhecia!
ia acontecer. Enfim, não tivemos noção. Mas então eu fiquei sabendo muito tar-
Estavam nos levando para o Rio de Ja- diamente que essa poderia ter sido isso,
Conselho Federal de neiro. Depois, eu vou saber que foi o pelas próprias pessoas da comissão da
Serviço Social (CFESS)
quartel do Barão de Mesquita. Anistia e por algumas pessoas do Grupo
Eu vou para o quartel do Barão de Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.
Mesquita. Nós chegamos encapuzadas, Mas não sei se era, eu sei que eu voltei.
ficamos em celas separadas, eu e a Ve- E quando voltei, comecei a sofrer nova-
rônica. Assim que eu chego, eu vou para mente, eu já cheguei sofrendo torturas.
uma sala com uns holofotes, mais holo- Então eles diziam o seguinte: "Você é

96
muito boa, você não fala nada". Mas não não sei o título de Ação Popular no es-
é verdade, porque as pessoas que eu co- tado de Minas inteiro e Espírito Santo;
nhecia me perguntavam se eu conhecia, era uma região, talvez Rio de Janeiro, eu
eu falava que eu conhecia. Perguntavam não sei bem). E aí ele me olha e diz o se-
pelas pessoas com as quais eu circula- guinte: "Olha, escreva tudo, assine isso
va, seja de trabalho, seja que militavam aí, não fique preocupada" e me mostra
comigo: "Você conhece?", "Conheço", "O uma quantidade, volumes e mais volu-
que ela faz?", "Não sei, trabalha". Bem, mes: "Isso aqui já é o meu depoimento,
então o que aconteceu? Então se come- quando eu fui preso, eles já sabiam tudo
çou os tapas, os dedos enrolados, que de mim, Ação Popular está caída, Ação
eu tenho ainda marca das torturas, o Popular está desmoronada e diga tudo já
ouvido, muita tortura no mamilo, tanto de uma vez. Fale tudo, não sofra mais".
que os meus mamilos ficaram retraídos, Porque, nesse tempo, eu já estava já com
eles retraíram, tem um que é extrema- a pele roxeada.
mente retraído. E aí me punham num Eu fiquei perplexa, eu fiquei muito
balde com água, os pés ali e os choques perplexa, eu fiquei muito assustada, eu
nos mamilos, nos ouvidos e nos dedos. acho que eu chorei muito naquela hora.
E perguntando e fazendo perguntas. Eu Primeiro que ele era um grande carisma
fui para o pau de arara duas vezes e sofri da organização. Ele era a pessoa que or-
choque nos ouvidos e nas axilas, lugares ganizava todo mundo, que encontrava
extremamente sensíveis. E nas mamas, meios de atrair o que ele chamava de pe-
que chegavam a sangrar. Eu fui acareada quena burguesia e, do movimento ope-
talvez com duas pessoas só, talvez com rário, ele era o que se dizia um grande
três pessoas. Mas, no décimo segundo quadro.
dia mais ou menos, eles queriam que eu Quando eu escuto aquela pessoa
escrevesse as atividades que eu fazia. E dizer aquilo, foi aí que a ficha caiu para
me puseram numa mesa, com um papel mim. Eu achava que as pessoas estavam Mariléia venâncio
porfírio
que já estava escrito, era para eu ler e ali caindo, sendo torturadas, porque ha-
ver se era aquilo mesmo ou não. Aí eu via gritos, havia choros, até uivos, mas,
estou sentada, parada, não tinha tortura ao mesmo tempo, quando alguém que
ali, estava parada naquele momento e, você encontrou, alguém com quem você
quando eu vejo então a pessoa que era discutiu, alguém com quem você militou
o Aníbal (era o coordenador-geral; eu junto, chega e diz que: "Eu já achei que

97
foi bom, não tem mais jeito, entreguei a partir dele. Porque era ele que reunia
tudo, já está tudo entregue, não apanhe com o grupo de médicos e de engenhei-
mais, não seja mais torturada". Aquilo, ros. Então, aquilo que ele fez comigo, eu
para mim, foi assim, primeiro um misto o vi uma única vez, inclusive eu não sa-
de decepção com a pessoa, mas uma coi- bia que ele estava preso. Ele também foi
sa mais de desespero. O que fazer agora? servido como um grande banquete para
O que fazer? E eu lembro que eu assinei, os militantes que estavam ali presos.
tinha uma quantidade de coisas escritas Nunca mais vi o Aníbal.
e eu, vendo mais tarde, que eu peguei até Sobre a tortura, cabe dizer que ti-
depois no arquivo já de Minas Gerais as nha interrupções. Não era uma coisa
coisas que diziam o que eu fazia, eram assim, doze horas em seguida, cinco em
umas coisas bobas, eu até tenho. Dizia seguida. E tinha uma outra coisa que era
que eu lia documentos, eu estudava, eu o seguinte, você tinha o torturador: o
fazia pichação, eu fazia reuniões, eu tive bonzinho e o bravo. O bonzinho vinha,
livros subversivos em casa, era isso que te falava: "Conta tudo, conta tudo o que
estava escrito. Era essa que era a peça, você sabe, fale tudo o que você sabe". Aí
não é? Essa que é a peça. Fez panfleta- eu digo para vocês que eles achavam que
gem, a peça era esta. Aí me deram aquilo eu era direção: "Diga que você era dire-
para assinar. Eu não me lembro de ter ção, só falta você dizer isto. Fale mais
assinado, mas, ao mesmo tempo, eu acho pessoas que você, que participam e que
que eu assinei. Eu não consegui encon- já não estão presas".
trar documentos que dissessem que eu Porque foi uma queda brutal. Em
assinei, mas eu tenho isso escrito. Esta Belo Horizonte, foi brutal e acho que
peça do IPM. foi sendo em cascata. O advogado, que
Mais tarde, nós ficamos sabendo. A mais tarde foi meu advogado, estava
esposa dele, que também era militante, preso também. Então foi uma coisa as-
Conselho Federal de que também eu conhecia, estava grávi- sim, assustadora, eles não tinham mais
Serviço Social (CFESS)
da e eles fizeram um acordo com ele: ela lugar para colocar as pessoas. As pes-
seria liberada, iria embora ter o filho, se soas ficavam ali sentadas, no chão, nos
ele entregasse tudo. Ele entregou, foi a bancos. Então, eles próprios não imagi-
partir daí que começou a haver muitas navam, porque as quedas foram sendo
quedas. Parece que os médicos todos de como um castelo de cartas, foram cain-
Belo Horizonte, que foram presos, foram do, caindo, caindo. Só que eles também

98
ficavam, o torturador, ele era tão alu- presas ali, eu dizia que conhecia sim,
cinado, ele ficava tão desesperado, eu não deixava de dizer que não conhecia.
acho, em querer mais, mais e mais, ele E aí você saía daquilo ali e ia para o ou-
chegava para as pessoas e torturava, às tro, que você achava que ainda podia te
vezes, talvez mesmo sem necessidade, extrair alguma coisa, voltava novamente
só pelo belo prazer de ver se chegava a a tortura.
mais uma pessoa ou se chegava a mais A tortura era sempre feita com você
um segundo. Pessoas que talvez eles di- desnuda, raramente você estava com
ziam que eram simpatizantes, tanto que roupa. E aí eu descobri uma coisa de
muitas, muitas e muitas pessoas depois que eu não sabia, eu não sabia o cheiro
foram logo liberadas, porque diziam que do suor, qual é, o suor do corpo. Aquilo,
era apenas simpatizantes. Mas isso eram para mim, foi um outro impacto, aqui-
volumes, essa imagem, daquela quanti- lo também é uma tortura, você sentir o
dade de volumes, ela me assusta, porque cheiro do seu suor. Porque a tortura, ela
já eram, acho que dos depoimentos to- fazia você urinar, você evacuar e você
dos, estavam ali para trazer, acho mais suar, e você punha roupa, só tinha uma
um impacto. peça de roupa que eu punha. E aí você
Mas as torturas eram alternadas. punha a roupa, a mesma roupa, que já
Eu acho que, pelo grau de importância estava suja, que já estava suada e isso
que ele dava para as pessoas, pela che- era uma coisa, assim, horripilante, que
gada das pessoas, também para ver se você sentia aquilo horripilante e que,
as pessoas liberavam falar por meio das ao mesmo tempo, você não sabia como
pessoas que estavam sendo torturadas fazer. Porque também eles queriam, du-
fisicamente ou psicologicamente. Então, rante muito tempo, que eu dissesse isso
o torturador bonzinho, chegava e dizia e eu não disse em momento algum. Pri-
para mim assim: "Você é muito novi- meiro que dinheiro era aquele, se aque-
nha, você tem os lábios muito bonitos, le dinheiro era da organização. Eu dizia Mariléia venâncio
porfírio
você tem os olhos muito bonitos, fale que aquele dinheiro era meu, porque eu
logo para você ir embora". E aí eu dizia: estava com aquele dinheiro. Primeiro eu
"Bom, mas eu não sei o que eu vou falar". fiquei desnorteada quando me pegaram
Porque eu, na verdade, se me pergunta- com as roupas. Eu disse que ia levar na
ram se eu conhecia meus amigos que já lavanderia. Depois eu disse que ia viajar,
estavam presos, pessoas que já estavam que eu vinha para Minas, eu vinha para

99
Juiz de Fora e por que aquele dinheiro? uma única vez que eu me recordo. De-
Porque eu ia viajar e ia para Juiz de Fora. pois eu não tive mais. No quartel, eu não
Eu apanhei muito para dizer a questão fui torturada.
das roupas e a questão do dinheiro, né? Fiquei incomunicável durante um
E para quem eu ia dar aquele dinheiro, mês. Eu fui ver o meu pai no dia 1º de
como eu recolhi aquele dinheiro. Mas janeiro. Durante esse período inteiro,
então eu voltava e dizia: "Bom, eu tenho eu não vi ninguém. Eu fiquei incomu-
roupa", mas não me deram as roupas. nicável. Foram 15 dias de intenso, mais
Até hoje, eu não ganhei mais aquelas intenso, depois eles foram sendo abran-
roupas. No dia em que eu saí da pri- dados. Em fevereiro, venho para Juiz de
são, eu tive outra peça de roupa limpa, Fora, fico no quartel aqui perto do Mu-
os meus documentos ficaram todos, eu seu Mariano Procópio, vou para uma
nunca mais revi os meus documentos e acareação de várias pessoas que eu co-
aquele dinheiro também nunca foi en- nhecia e que eu não conhecia, pouquís-
tregue, nunca foi entregue, né? Bom, simas pessoas eu conhecia, eram pesso-
mas aí eu me perdi. as de Juiz de Fora. Sou ouvida aqui em
Eu não consigo me lembrar de ser Juiz de fora, eu não sou torturada fisi-
torturada com outra pessoa e de ter visto camente, eu tenho uns três interrogató-
o outro ser torturado. Eu me lembro de rios, mas eram mais em função de Juiz
ouvir muitos gritos. Mas eu não consigo de Fora. Mas Juiz de Fora, pode-se dizer
me lembrar de tudo. Realmente é uma que foi uma coisa tranquila para mim.
névoa. Aí eu saio, talvez 5 de fevereiro mais
Depois do DOPS, me levam para ou menos, uns três, quatro dias depois
um quartel. No quartel, eu tenho uma eu vou para a casa dos meus pais, que
cela, é onde eu tomo banho. Do quartel, moravam aqui. E aí é quando eu digo
eu voltei ao DOPS algumas vezes, mas aí que fico em prisão domiciliar, fico até
Conselho Federal de era para uma coisa assim, primeiro tinha maio em prisão domiciliar, sem poder
Serviço Social (CFESS)
uma quantidade de livros, era para ver se sair de casa. Em maio, eu sou liberada,
aqueles livros eram meus, outra vez era posso sair da prisão domiciliar. Aí o juiz
para perguntar, tinha algumas fotos e se da auditoria militar mandou um recado
eu conhecia aquelas pessoas das fotos. para mim: que não era para eu voltar
Mas do quartel, depois mais uma única mais para Belo Horizonte. Ou ficar em
vez, que eu tive uma sessão de choques, Juiz de Fora ou ir para outro lugar. Isso

100
Por que eu me dispus a fal
ar? Primeiro, eu acho que,
para a história do país, par
a a formação política
histórica do país, as comiss
ões da memória da verdade
são fundamentais. Essa his
tória ainda é uma história
totalmente desconhecida. Ela
tem que ser desvelada e
muito desvelada. As gerações,
eu dei aula durante
anos, eu falava sobre esse
período e eu não me punha
como sujeito deste período.
Eu sempre fui extremamente
crítica, conscientemente crí
tica, formei alunos
críticos, eu fiz todas as crí
ticas, ainda faço, mas eu
era um sujeito que pairava
no ar. Então eu acho que
isso tem que ser dito. Mas
o início da minha formação
política e ideológica foi aqu
i, nessa história
relatada. Então, para mim,
é muito importante falar.
Penso que essa história tem
que ser construída em
todos os rincões do país das
formas mais variadas.

é maio de 1972. Eu saio, possivelmente do país, porque eles articulavam a mi-


em junho, vou para São Paulo, procuro nha saída?”. Aí eu digo que não, que eu
a organização em São Paulo, eu não con- não ia sair. Eu fico em São Paulo, começo
sigo localizar as pessoas, estavam todas a trabalhar em São Paulo como freelan-
elas em São Paulo presas, inclusive eu cer, porque eu não tinha documentos.
tinha um antigo ponto, eu tento ir várias Consigo tirar uma carteira de identida-
vezes, nunca consegui. Em São Paulo, de em São Paulo. Não é falsa, com o meu
eu vou para a casa de algumas pessoas nome, meu próprio nome. Fico com uma Mariléia venâncio
porfírio
que eram até pessoas antigas ligadas à carteira de identidade, mas não consigo
organização, mas que também estavam trabalhar, começo a fazer pequenos tra-
amedrontadas, chamadas simpatizantes. balhos. Fico na casa de pessoas ligadas à
E aí eu tenho um contato com Dom igreja católica, mas, em março, eu volto a
Paulo Evaristo Arns, que me pergunta: Belo Horizonte, porque aí eu entrego um
“e aí, os advogados dele, se eu quero sair processo, porque tem um fato. Eu tentei

101
me reaproximar de novo do INPS, do Meu processo foi aqui em Juiz de
meu antigo trabalho. E aí me disseram Fora na auditoria militar, que foi a cir-
que eu estava demitida por justa causa. cuncisão de todos que foram presos em
No dia 15 de janeiro, eles me demi- Belo Horizonte nesse processo de Ação
tiram por justa causa e eu ainda estava Popular. Então eu sou condenada a seis
presa, incomunicável. Meu pai conse- meses. Como não tinha prisão feminina...
guiu, do general da 4ª Região Militar, Teve uma figura em Juiz de Fora,
uma declaração de que eu estava deti- que foi fundamental, Dom Geraldo
da, eu não lembro bem as palavras, mas Maria de Moraes Penido. Ele agiu jun-
detida para responder a um inquérito to ao juiz auditor, que era um cristão
policial militar. Meu pai levou aquilo cursilhista, Mauro Seixas, muito ligado
na direção do INPS em Belo Horizonte a Dom Geraldo. E Dom Geraldo parece
e eles não aceitaram. Ficou arquivado que teve uma influência muito forte no
lá, mas não aceitaram, dizendo que não, andamento dos trabalhos com esse juiz.
que eu tinha sido demitida por justa Ele dizia para o meu pai que achava que
causa, porque eu não tinha compareci- essa juventude tinha sido enganada, ti-
do ao trabalho. Vou constituir um advo- nha sido levada, mas era uma juventu-
gado, esse advogado entra com um pro- de muito utópica, mas que, ao mesmo
cesso trabalhista, eu vou responder a tempo, tinha esperanças, que se queria
esse processo trabalhista, já depois que coisas boas. Enfim, um palavreado as-
tinha saído da prisão domiciliar, talvez sim, meio forte, mas ao mesmo tempo
em agosto, mais ou menos. Eu sou ou- meio florido. Mas o que Dom Geraldo
vida, mas perco meu processo traba- então consegue dele? Que as mulheres e
lhista. Bom, em março de 1973, eu sou os rapazes que tinham sido presos, todos
indiciada em três processos. Um que eles, no meu processo, não ficassem em
eles chamavam de movimento estudan- presídios. Então eu vou para o Colégio
Conselho Federal de til, uma da pequena burguesia e outro Santa Catarina, onde eu tinha estuda-
Serviço Social (CFESS)
do movimento operário. E o advogado do, a Marilda vai para o asilo, as outras
Afonso Cruz consegue fazer um único pessoas vão para Belo Horizonte. Tinha
processo, então, e eu fico em um único um médico, ele vai trabalhar no hospi-
processo, que é da pequena burguesia. tal onde ele trabalhava, ele era médico
Então eu sou julgada e condenada a seis do hospital. A assistente social vai ficar
meses de prisão. também num outro colégio. Mais tarde,

102
quando tem uma aluna de Serviço Social a perceber como a diretora do colégio
que também é condenada, ela é de Belo tinha uma atitude, também ali naquele
Horizonte, mas ela vai cumprir pena período, com os alunos de tentar, nas
aqui também num asilo onde a Marilda aulas de, acho que é moral e cívica, já
tinha ficado, e uma operária vai ali para apresentar alguma coisa da realidade
a creche. Vai ficar na creche, fica ali na do país. Mas as freiras sabiam quem eu
Barão de Cataguases e ela tinha uma fi- era, porque eu estava ali, mas os funcio-
lha pequenininha e a filha fica lá junto. nários administrativos não sabiam e os
Era uma creche de irmãs. Então a inter- alunos e os professores não sabiam. Eu
ferência de Dom Geraldo, ela foi funda- podia ter visitas todos os dias. Então o
mental. Tinha o ato humanitário dele, padre Jaime ia, todos os dias, celebrar
um ato de solidariedade muito forte. missa ali, eu ouvia, via meu pai. Meus ir-
Além de Dom Geraldo, teve circuito mãos iam lá continuadamente todos os
que as mulheres ali, dona Leda, de Ação dias, praticamente me visitar. Eu tinha
Católica, padre Jaime, tinha algumas frei- uma irmã de quatro anos que dormia lá
ras, então tinha um grupo que tinha uma comigo, mas os meus irmãos maiores
influência na cidade e que também, por sabiam, os outros não sabiam, o que era
seu lado, tinha também restrições já a esse aquilo, o que a irmã deles estava fazen-
período ditatorial e que já começaram a do ali. Mas eu podia ter visita, então,
entender que realmente existia tortura. esse período ali foi o período que não
Que existia uma exceção, muito forte. Que trouxe mais problemas para mim. Mas
não existia direitos sendo prevalecentes. ele tem um problema, porque, quando
Porque, na verdade, o que se dizia que você esta num presídio com vários ou-
aqueles jovens tinham feito? Nada. A peça tros companheiros, eu acho que você
de acusação era o quê? Que tinham dis- trabalha melhor o processo que você
tribuído panfletos, tinham feito reuniões, vivenciou. Porque a tortura ficou muito
que tinham livros de Marx, de Lênin, que presa em mim, o torturador estava mui- Mariléia venâncio
porfírio
tinham participado de reuniões para dis- to preso em mim. Durante muito tem-
cutir o que fazer do país, que eram contra po, quando eu andava em São Paulo, eu
o regime militar. Incursos na lei de segu- via, a fisionomia do capitão Portela, que
rança nacional em função disto. tinha os olhos verdes. Todos os homens
Então eu vou cumprir pena no de olhos verdes que eu encontrava pela
colégio Santa Catarina. E você começa frente, eu imaginava que fossem ele. Ti-

103
nha outro torturador, capitão Freitas, xei de ir no ginecologista homem, passei
que tinha o rosto todo cheio de Chagas, a ir na ginecologista mulher. Quando
de coisa que eu imaginava, que eu via perguntou do mamilo, aí eu falei: olha,
aquele homem em vários lugares. Todos fui presa durante a ditadura militar, aí
os monstruosos, eu achava que eram eu sofri choque na mama e ela retraiu.
todos monstros. Aí, quando, na minha E aí a resposta: "Tá, vamos ver, vamos
casa, eu não falei nada, quando eu não olhar, vamos ver isso, tal. Na verdade
falava nada com as pessoas, então eu não tem consequências".
me fechei, mais do que eu era fechada Exemplo, eu e Marilda Iamamoto
com relação a esse fato que tinha acon- morávamos juntas, nós conversamos
tecido. Se eu tivesse ficado com todos pouquíssimo sobre isso e eu conversei
os horrores num presídio, eu penso que pouquíssimo com todas as outras pes-
aquele corpo, que era o meu, ele estaria soas, inclusive com os meus amigos.
sendo ao mesmo repassado. Com as pessoas que tinham sido presas
Para os outros que também estavam ali junto comigo. Muito devagar, vaga-
ali passando por problemas, quer dizer, mente, quando se encontra, se fala al-
eu ia para uns presídios que depois eu guma coisa.
vou ver, por exemplo, o presídio do Rio e Os torturadores se revezavam, acho
de São Paulo, que as pessoas passavam. que eles trabalhavam por turnos e ti-
Eu realmente ali era uma interna, com nham que torturar muitas pessoas. Por-
todas as regalias. Mas eu acho que aqui- que era em conjuntos, eram salas, você
lo ali, politicamente e individualmente, entrava e saía, entrava um, entrava ou-
psicologicamente, não foi bom. tro. Eles tentavam não deixar as pessoas
Sobre a tortura, minha mãe me se verem, para as pessoas não se comu-
perguntou alguma coisa, meu pai me nicarem. Não dizer o que um falou, o que
perguntou, mas meu pai já me viu mui- o outro deixou de falar.
Conselho Federal de to mal quando eu estava lá, minha mãe Às vezes, havia momentos de sosse-
Serviço Social (CFESS)
também foi. Eu acho que eles quiseram go, assim como no Barão de Mesquita, o
me preservar. Eu fui falar mais tarde que eu ouvia de gritos e de música alta
para as minhas irmãs, um pouco mais e de passos, como se fosse aquela coisa,
velhas. Mas, na verdade, eu nunca falei aquela marcha, é um negócio assustador.
muito, eu nunca falei o que foi, né? O gi- Isso ficou durante muito tempo na minha
necologista, quando perguntou, eu dei- cabeça, as músicas altas. Eu não escuto

104
música alta até hoje, não suporto músi- um trabalho indiretamente, mas eu tive
ca alta, eu não suporto rock alto, porque um contato muito forte com essas mu-
eu ouvia rock alto no Barão de Mesquita. lheres. Então, são essas mulheres, vítimas
Então as figuras, quando eu vejo, até hoje, de violência doméstica, e trabalhar com
esses vigilantes altos, fortes, morenos, me os direitos humanos é que vai me fazer
lembram a figura dos torturadores. desabrochar uma coisa que estava muito
Então a tortura ficou na minha ca- fechada e da qual eu não falava. A partir
beça, eu não tinha vontade de falar, eu dali, começo a relatar algumas coisas. As
queria esquecer aquilo ali, eu queria pessoas minhas amigas, que eu fiz um
viver outra coisa, eu queria viver mi- novo círculo de amizade, ou de trabalho,
nha vida, sair, ir embora. E aí teve outra elas vão levando susto quando descobrem
coisa: como a Ação Popular acabou, eu um passado meu que não era tão passado,
fui chamada para entrar no PC do B e eu mas no qual eu não dizia absolutamente
circulei pelo partido, mas não entrei. En- nada. Era um grande segredo, que não
tão não entrei mais para organização ne- era discutido na minha casa com a minha
nhuma. Circulei pelo PT, no início dele mãe, depois mais tarde com os meus so-
pelo Rio de Janeiro e depois não entrei brinhos e mais tarde no meu trabalho.
mais, eu tive outras militâncias. Mas aí tem um outro lado. Desde
Há oito anos, eu saio então do Servi- quando eu vou para o Rio, eu tenho um
ço Social e vou trabalhar em uma unidade companheiro que já não está vivo mais e
que é voltada para os direitos humanos. que tinha sido um perseguido político e ele
Essa unidade tem um trabalho, que é um também me ajudou muito, porque ele dizia
centro de referência de mulheres vítimas absolutamente tudo que tinha passado com
de violência doméstica. Aí eu vou come- ele e que também foi anistiado. Essa pes-
çar a fazer a relação do que a agressão de soa conseguiu ir me ajudando lentamente a
uma mulher, vítima de uma violência do- mostrar e dizer as coisas. Então eu vou par-
méstica tem, com o seu torturador. Aquela ticipar do grupo Tortura Nunca Mais, ali as Mariléia venâncio
porfírio
figura, principalmente masculina, que lhe pessoas já sabiam o que tinha acontecido.
tortura e que ela também não consegue às Mas, por exemplo, eu passei por alu-
vezes denunciar ou da qual não consegue nos e mais alunos, que foram descobrir
se desvencilhar, daquela pessoa que está o que tinha acontecido quando eu sou
ali lhe causando todo o tipo de mal. Eu vou anistiada e aparece no jornal e na tele-
atuar diretamente, mas eu vou coordenar visão. Mas eu sou anistiada há dois anos.

105
Mas eu ainda sinto alguma coisa do tor- E aí, veja só, eu fui concursada em 1970,
turador em mim. Então, só para concluir, fiz concurso, fui aprovada, trabalhei, fui
por que eu me dispus a falar? Primeiro, demitida como se fosse por justa causa,
eu acho que, para a história do país, para mas não foi por justa causa. Foi por es-
a formação política histórica do país, as tar presa, ao mesmo tempo eu entro com
comissões da memória da verdade são processos, eu já entrei com três processos,
fundamentais. Essa história ainda é uma primeiro administrativos. Perdi os três e
história totalmente desconhecida. Ela venho perdendo na justiça. A justificati-
tem que ser desvelada e muito desvela- va: "Quem entra na chuva é para molhar".
da. As gerações, eu dei aula durante anos, Então, se eu entrei na chuva, eu tenho
eu falava sobre esse período e eu não me que arcar, eu tinha que saber que aquele
punha como sujeito deste período. Eu meu ato político teria consequências. Sei
sempre fui extremamente critica, cons- que, iguais a mim, há várias pessoas no
cientemente critica, formei alunos crí- país inteiro, operários, não é? Bancários
ticos, eu fiz todas as críticas, ainda faço, e outros profissionais, que perderam seus
mas eu era um sujeito que pairava no ar. empregos e que até hoje vão morrer sem
Então eu acho que isso tem que ser dito. que tenham tido os seus empregos reabi-
Mas o início da minha formação política e litados, reintegrados, por atos ainda dis-
ideológica foi aqui, nessa história relata- cricionários.
da. Então, para mim, é muito importante Então, eu acho que isso também
falar. Penso que essa história tem que ser tem que ser revelado, porque, como eu,
construída em todos os rincões do país tem muita gente ainda passando pela
das formas mais variadas. Eu sou daque- mesma situação. Fico até feliz em poder
las que acha que os torturadores tem que estar passando e revelando, porque não
pagar pelo que fizeram. Eles praticaram foi tranquilo. Embora eu tenha vivido
danos irreversíveis, físicos e psicológicos. minha vida tranquila esse tempo todo,
Conselho Federal de Eu tenho um dano psicológico muito for- eu durmo, já passou, mas tem uma coisa
Serviço Social (CFESS)
te, mas eu quero que eles também sejam muito fechada, então não é tão tranqui-
responsabilizados pelo coletivo do país. lo quanto se imaginava. Esse momento,
Pelo coletivo, a memória desse país ain- para mim, além dessa questão política e
da é uma memória falseada. Ainda não de revelação histórica, tem uma questão
revelada na sua totalidade, então eu pen- pessoal de agradecimento, pela impor-
so que isto é extremamente importante. tância que revelar tudo isso significa.

106
Eu nasci em Recife (PE) cresci em theid que havia na minha cidade, entre
Olinda (PE), sou filha de um médico sa- a classe média, os ricos e os pobres. Foi
nitarista e de uma dona de casa. A minha com as freiras que eu fui conhecer as
mãe é filha de um senhor de engenho, pessoas que eu conhecia apenas quando
uma sinhazinha que se tornou militante trabalhavam na minha casa, mas não sa-
dos direitos humanos e foi indicada en- bia onde elas viviam, os pobres da minha
tre as mil mulheres para o prêmio Nobel cidade, nas atividades assistencialistas
da paz. Hoje ela participa da comissão da realizadas na igreja e na escola.
verdade, com cem anos, foi na audiên- Digo isso, porque essa menina que
cia do meu irmão, o desaparecido políti- fazia tudo isso aos 12, 13, 14 anos , optou
co Fernando Santa Cruz, levando a foto pela luta armada, foi presa e considera-
dele e dizendo: “eu não quero morrer da terrorista. Talvez tenha começado aí a
sem saber em que circunstâncias o meu minha rebeldia, a minha utopia, o desejo
filho foi assassinado, onde está o cadá- de mudar o mundo. Naquele momento,
ver dele, e quais circunstâncias da sua eu pensei que talvez, pra mudar o mun-
prisão e de seu desaparecimento; quero do, eu precisasse distribuir o que tinha,
justiça e punição para os torturadores auxiliar, ajudar, talvez fossem essa as
assassinos do meu filho”. palavras que me levavam naquele mo-
Fui criada nessa família, com gran- mento a mudar aquele mundo.
de liberdade, tanto afetiva como intelec- Só que compreendi, junto com as
tual. Na nossa casa, com nossos pais em freiras, que isso era impossível, e foi na
Olinda e durante toda a ditadura militar, faculdade, na Escola de Serviço Social,
era um espaço de acolhimento dos mi- que, participando da JUC (Juventude
litantes do movimento estudantil. Lá se Universitária Católica) e depois da AP
discutiam MEC-USAID, imperialismo, (Ação Popular), compreendi que, para
Simone de Beauvoir, revolução chinesa, mudar o mundo, precisamos mudar as
Conselho Federal de Cuba, barricadas de paris, cantava-se estruturas. Era preciso construir outra
Serviço Social (CFESS)
Marisa, Nara Leão , declamava-se Vini- sociedade, em que as pessoas não fos-
cius de Moraes e até se falava de amor sem divididas entre quem tinha o capital
livre, transar sem casar , todas essas e quem tinha força de trabalho. Quan-
questões eram discutidas. do aprendi isso, eu aprendi também a
Estudei em colégio de freiras e foi necessidade de fazer a revolução. Uma
com as freiras que compreendi o apar- frase que me acompanhou, durante toda

108
a época da luta pela revolução, que tem que era preciso lutar de forma armada,
uma certa ingenuidade , mas está no para derrubar o capitalismo. A China fez
nosso hino: “ou ficar a pátria livre ou uma revolução em 1945. Cuba em 1959,
morrer pelo Brasil”. Ela inspirou minha mostrando como um pequeno grupo de
geração, aqueles que optaram pela luta guerrilheiros derrubou o imperialismo
armada e, quando optei pela luta arma- norte-americano nas suas barbas, na
da, foi lendo Girap, Mao Tse Tung , os porta dos Estados Unidos, e porque nós
cubanos , e começar a entender que o não podíamos fazer isso? A América La-
mundo inteiro, naquele momento, não tina estava em revolta, Venezuela tinha
era eu e nenhum pequeno grupo de bra- Douglas Bravo fazendo uma guerrilha;
sileiros. Era um mundo acreditando na Che Guevara deixando de ser ministro
importância do socialismo, do comunis- de Cuba, para levar o povo boliviano à
mo e que, para isso, precisava ter uma libertação, o mundo se revoltando , por-
revolução. que nós, brasileiros, também não?
A concepção de revolução que de- Quando voltamos, em 1967, de
fendíamos era de uma revolução profun- Cuba, voltamos decididos a dar nossa
da de estrutura e ela tinha que negar a vida por um mundo melhor, e era isso
opção que tinha feito o partido comunis- em que acreditávamos, que nos éramos
ta da União Soviética. Então nós éramos capazes de lutar, como foi a guerrilha do
fruto de uma geração que protestava e Araguaia. Você ser cercado por tanques,
negava a linha de Moscou, que era a da por aviões, por uma repressão tremen-
politica de massa, que era acreditar que da, 66 guerrilheiros todos mortos, as-
as massas, por meio da sua organização, sassinados e desaparecidos. E foi assim
pudessem transformar o mundo. Nós que eu entrei na luta armada, entrei
começamos a não acreditar, assim, a lendo Fanon, um martinicano que dizia
negar o assistencialismo democrático, a assim: “a violência revolucionária é jus-
“União Soviética”, o pacifismo, porque o ta, porque a ira cruel dos colonizadores Rosalina de
santa cruz
mundo inteiro começou a optar pela luta merece e tem que ter a volta do cipó de
armada. Não éramos apenas nós; na Eu- arueira de quem mandou dar”. Era nisso
ropa, se pegarmos a Alemanha na época, que acreditávamos, em nossa luta, mes-
tinha o comando vermelho; no Irlanda, mo que nosso inimigo fosse um gigante.
tinha o Ira; no País Basco, o Eta; tinha No Vietnã, os “vietcongs” conseguiram
as barricadas de Paris. O mundo dizia vencer e porque nós, não? Isso que nos

109
O desaparecimento político,
como o que aconteceu com
meu irmão, foi uma das coi
sas mais terríveis que a
ditadura inventou. Meu irm
ão foi preso e todos diziam
que não tinha sido. Eu tin
ha certeza absoluta de que
tinha sido preso com um com
panheiro, estão os dois
desaparecidos até hoje. Não
sabemos onde e em que
circunstâncias ele foi mor
to e seu corpo ocultado.

inspirou. Não éramos loucos, sonhado- neses da Baixada Fluminense (RJ). Eu e


res, nós tínhamos um mundo optando o padre da região, que era meu amigo,
pela luta armada, isso é importante para fomos fazer um trabalho de discutir o
entender nossa opção. socialismo e a revolução com os campo-
Sobre a prisão, fui presa em 1971, neses que tinham um trabalho de terra,
no dia 3 de dezembro. Vou dizer a con- posse de terra, e, num dado momento,
sequência da minha prisão para mostrar colocamos para esses camponeses: vo-
o que eu estava fazendo na época. Eu fui cês preferem a luta armada ou a luta de
primeiro para a Venezuela, assim que massa? Os camponeses foram ao Rio de
acabei o curso de Serviço Social, porque Janeiro, não conheciam nem elevador,
a maioria dos assistentes sociais estava perguntaram que chão é esse que brilha
inteiramente desencontrada com essa tanto, onde está o lugar para eu cuspir. E
profissão e, na época, eu tinha que tra- nós ali naquele lugar, junto com o pessoal
balhar com a promoção social. E o que da luta armada, decidimos que íamos fa-
fazer com ela ou com a militância que zer a luta armada no campo, e um compa-
eu queria fazer a transformação radical nheiro que tinha saído junto com a gente
Conselho Federal de do mundo, eu me via cindida entre es- e com Lamarca foi para o campo fazer
Serviço Social (CFESS)
sas duas opções e optei a manter-me na o trabalho com esses camponeses. Dois
profissão, nas suas brechas e nas possi- meses depois, dois camponeses foram
bilidades, mas usá-la para a revolução, mortos, a região invadida, e retiramos os
militância política. camponeses que sobraram e foram para
Fui presa em consequência de um Imperatriz (MA). Eu não sabia o lugar a
trabalho que tinha feito com os campo- que eles tinham ido e fui presa em con-

110
sequência da prisão deles. Eles foram to em São Paulo, eu tinha voltado e o
presos numa busca da guerrilha no norte exército tinha procurado meu irmão.
do país e, quando eles foram presos, fo- E, ao abrir a porta, havia cinco homens
ram no meu processo, tinham uma única armados dentro do meu apartamento e
informação, de onde eles eram e quem meu bebê de cinco meses estava no ber-
tinha iniciado eles nessa política. Então ço, mordendo o berço e todas as pessoas
colocam no depoimento que era eu e o ali armadas, a menina que ficava toman-
padre. A partir disso, fomos presos, im- do conta dele estava no chão, rendida. E
possível com essas informações, sendo eu pensei que aqueles trastes pudessem
preso da forma que eles foram. levar o André para algum lugar, porque
O que me angustia hoje é que a co- ele tinha cinco meses e estava muito as-
missão da verdade não conseguiu locali- sustado e, provavelmente, ia ser levada
zar esses companheiros. Fomos a todas ali e eu amamentava naquele momento.
as regiões do Maranhão e não sabemos Na minha vista, levaram o André até a
aonde esses camponeses foram, não vol- janela e disseram que iam jogar pela ja-
taram para sua região inicial. Para ver- nela do quinto andar, ficamos eu e Ge-
mos como as coisas foram muito mais raldo gritando que não fizessem isso, o
cruéis com as pessoas pobres, campone- André ouvia nossos gritos. Fomos ar-
ses, operários, do que conosco, porque rastados da casa e ficamos durante dois
sou anistiada, tenho uma reparação eco- dias, ficamos mais dias, mas, durante
nômica, continuei, estudei, me formei, dois dias, sem saber o que tinha aconte-
sou doutora, sou professora, fui secretá- cido com André.
ria do Bem-Estar de são Paulo, mas e os Na minha família, nós temos três
camponeses? O que deve ter acontecido crianças, contando com meu filho An-
com eles, que até hoje não sabemos, es- dré, que foram muito atingidas. A minha
tamos na mesma luta, no mesmo proces- irmã, quando soubemos do desapareci-
so, essa é uma coisa que, para mim, colo- mento do meu irmão, fomos procurar Rosalina de
santa cruz
ca a questão da verdade hoje! Do resgate essa minha irmã e ela tinha um envol-
da memória, que ainda é muito parcial. vimento político menor. Fomos à casa
Quando tive minha segunda pri- dela e ela disse: “ tenho uma notícia
são, eu tinha um bebê de cinco meses e boa para dar” , e nós: “temos uma notí-
isso me tocou muito, porque eu cheguei cia péssima”. Quem falaria primeiro? Aí
a casa naquele dia no meu apartamen- nós dissemos: “Fernando foi preso”, ela

111
disse: “eu estou grávida”. Alessandra nasceu nove meses depois da prisão de
Fernando. O meu outro sobrinho, filho de Fernando , quando desapareceu,
tinha um filho de 8 meses e não consegue falar muito sobre a infância. Isso
são exemplos de muitas outras crianças que tiveram sua infância roubada pela
militância dos seus.
Comigo, a tortura foi cruel, passei por todas as formas por que pas-
savam todos os presos políticos, e me lembro do episódio de uma tortura
psicológica, que foi pior que o pau de arara em que fui colocada. Hoje tenho
várias cirurgias adquiridas decorrente dessas torturas, fiquei com 36 qui-
los, em 50 dias de tortura, um ano e três meses presa, e uma segunda vez
com a apreensão do meu filho.
Quando estava no DOI-CODI, um torturador me tirou o capuz e vi a cara
dele, sei inclusive hoje quem é, e ele me disse que eu iria voltar para lá. Disse-
me: “você pode falar o que quiser na auditoria, e aquele seu advogado eu pen-
duro no pau de arara que nem você, então vê lá o que você vai dizer”. Quando
cheguei à audiência, estavam várias pessoas: minha mãe, um juiz e cinco mili-
tares, o padre e dois camponeses (foi a última vez que os vi). O juiz perguntou:
“a senhora tem alguma coisa a declarar?”. Eu tinha pouco mais de 20 anos, e
disse: “eu tenho, vocês me colocaram no pau de arara, abriram minha perna,
me colocaram choque dentro da minha vagina, tive um aborto, vocês me pen-
duraram e me bateram na minha barriga até sangrar”.
Fui contando, até que o juiz suspendeu a sessão. Era muito comum quan-
do havia tumulto, todos foram embora e fiquei ali sozinha. Falei para o juiz:
“eu não volto para o quartel onde estava, não posso voltar”. E, tremendamente
arrependida de ter falado aquelas coisas, fiz a denúncia, não sei se registra-
ram, estou procurando saber. Já eram oito horas da noite e me colocaram em
Conselho Federal de um camburão e ele corria feito louco, e tinha um buraquinho pelo qual eu ia
Serviço Social (CFESS)
olhando. Daí,o portão do DOI-CODI se abriu e eu senti muito medo. Dá uma
coisa no diafragma, a barriga encolhe, não respira, me colocaram um capuz e
desci do camburão. A primeira voz que ouvi foi dizendo: “Rosinha, você vol-
tou! Eu estou aqui”. Aquele negócio me deu uma tremedeira forte, falo isso pra
mostrar que, na tortura, não somos só herói, somos seres humanos. Eu tremia
tanto que batia boca, perna, e o cara dizia: “que comunista covarde, para de

112
O desaparecimento político,
como o que aconteceu com
meu irmão, foi uma das coi
sas mais terríveis que a
ditadura inventou. Meu irm
ão foi preso e todos diziam
que não tinha sido. Eu tin
ha certeza absoluta de que
tinha sido preso com um com
panheiro, estão os dois
desaparecidos até hoje. Não
sabemos onde e em que
circunstâncias ele foi mor
to e seu corpo ocultado.

tremer, para de ser medrosa”. Eu dizia: dos diziam que não tinha sido. Eu tinha
“não tenho medo nenhum, não estou certeza absoluta de que tinha sido preso
com medo de você, só estou tremendo”, com um companheiro, estão os dois de-
porque não conseguia parar de tremer. saparecidos até hoje. Não sabemos onde
Há muitas coisas na tortura e tem nosso e em que circunstâncias ele foi morto e
lado humano do medo da fragilidade. seu corpo ocultado. As duas notícias que
Fui perseguida, os documentos temos, por mais terríveis que sejam, fo-
mostram que, até 1989, havia pessoas ram dadas pela própria ditadura, pelos
que me seguiam constantemente, a mim próprios policiais. A primeira veio quan-
e ao Geraldo. Tinham todos os nossos do um sargento do exército, chamado
passos registrados, coisas comuns, do Marival, resolveu falar e disse que sabia
aluguel da garagem da nossa casa para onde estavam, não sei se ele queria ser
formação do PT, palestras na universi- conhecido ou queria dinheiro. Dizia: “eu
dade. E eu não era uma pessoa tão im- era do DOI-CODI e sei onde estão os de-
portante para ser tão seguida. Imagine saparecidos, foram decepados, jogados
como tudo isso tinha influência nos em sacos plásticos, a cabeça de um junto Rosalina de
santa cruz
nossos filhos e na busca pelo meu irmão, com a de outro, com o pé de outro, de
Fernando Santa Cruz. forma que não fossem identificados, e
O desaparecimento político, como o foram sepultados em cemitérios clan-
que aconteceu com meu irmão, foi uma destinos”.
das coisas mais terríveis que a ditadu- Fomos todos a cemitérios, em valas,
ra inventou. Meu irmão foi preso e to- procurar. Ele cita o nome do meu irmão,

113
isso saiu na revista Veja, não conseguimos investigar, o governo brasileiro também
não nos deu força suficiente para fazer a investigação, não sei por quais implicações.
Agora, o senhor Claudio Guerra vem a público e diz que 14 desaparecidos foram
incinerados em uma usina de Carapicus, em Campos. Fomos à usina, fomos ao go-
verno, queremos saber. O Claudio Guerra disse que, desses 14 desaparecidos, nem
cinza restaram, disse também que parássemos de procurar, que esse episódio estaria
encerrado. Mas continuamos e agora estamos exigindo que os desaparecidos sejam
conhecidos.
Cabe ainda ressaltar o caso do relato do torturador do alto escalão do exército
brasileiro, Paulo Malhães, que recentemente decidiu falar dos desaparecidos políti-
cos. Quem tiver estômago e quiser ir ao youtube, pode ouvir sobre como poderiam
sumir com as pessoas que estavam na casa da morte. Relata Paulo Malhães que era
muito simples, arrancavam os dedos das pessoas para acabar com as impressões di-
gitais. Com relação à arcada dentária, quebravam. Indagado se faziam isso com as
pessoas mortas ou vivas, ele respondeu: “depende”. Esse senhor foi morto por seus
companheiros um mês depois. Não tinha uma marca no corpo, foi sufocado, para que
os outros não falassem.
É isso que vivemos hoje, e nas periferias, com as Cláudias, Amarildos, porque o
pau de arara e o desaparecimento com ocultação de cadáver, tudo isso que foi feito na
nossa geração conosco, continua. Nesse momento, deve ter um jovem negro, pobre,
pendurado em um pau de arara em algum lugar do Brasil e a gente não pode deixar
de discutir o passado, para garantir que, no presente, seja punido, que não se conti-
nue com a tortura, porque ela acontece hoje da mesma forma.

Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS)

114
E
studei Serviço Social na Pontifí- no trabalho por cerca de um ano; a discri-
cia Universidade Católica do Rio minação no trabalho por razão ideológica;
de Janeiro (PUC-RJ). Na época de a ameaça, pela direção do Departamento
minha detenção, já era assistente social de Serviço Social da LBA, por escrito, de
e cursava ciências sociais na então Fa- demissão por razão ideológica; “corredor
culdade Nacional de Filosofia do Institu- polonês” durante a invasão, pela Polícia
to de Filosofia e Ciências Sociais da Uni- Militar, da Faculdade Nacional de Medici-
versidade do Brasil, na mesma cidade. na da Universidade Federal do Rio de Ja-
Em 1970, tive que trancar a matrícula no neiro (UFRJ), quando fui espancada; víti-
curso de ciências sociais, cuja frequên- ma da truculência da Polícia Militar sobre
cia nunca mais retomei. um grupo de estudantes que participava
Inicialmente, participei da Ação de manifestação no pátio do Ministério da
Cristã de Acadêmicos, que existiu no Educação e Cultura, o que trouxe seque-
âmbito das igrejas protestantes e da las físicas e exige permanente tratamento.
União Cristã de Estudantes do Brasil. À E, por fim, dificuldade para a obtenção de
época, eu integrava um núcleo estudan- passaporte quando, em 1975, recebi uma
til da Ação Popular. bolsa do Conselho Britânico para estudar
Na ditadura militar, sofri vários ti- arte na Inglaterra.
pos de violência, como: a invasão de meu As situações de violência pelas
domicílio, quando agentes da Delegacia quais passei aconteceram em diferentes
de Ordem Política e Social (DOPS) vascu- momentos. O “massacre da Praia Ver-
lharam toda a casa. Detenção, tendo sido melha”, conhecido episódio do cerco e
levada para dependências da DOPS, onde invasão da Faculdade de Medicina pela
fui interrogada e fichada. Fui seguida por polícia, do qual participaram cerca de
agentes da polícia durante muito tempo; 600 estudantes, no qual estive presente,
observação por agentes da polícia, do apar- ocorreu em setembro de 1966 e signifi-
Conselho Federal de tamento em que morava; o afastamento cou uma resistência à ditadura pelo mo-
Serviço Social (CFESS)
da subchefia de divisão que ocupava na vimento estudantil e sua luta pela demo-
Legião Brasileira de Assistência (LBA); cracia e autonomia universitária.
o fichamento pelo Serviço de Segurança A manifestação no pátio do MEC, na
da instituição em que trabalhava, a LBA, qual reivindicamos mais verbas federais
dirigido por um general; o isolamento de para a universidade, ocorreu quando eu es-
qualquer tipo de trabalho e convivência tudava ciências sociais e trabalhava na LBA.

116
A experiência de viver num
país sob ditadura é muito
dolorosa e marca para sem
pre a existência dos
indivíduos e das famílias,
a vida da sociedade e a
cultura. As mortes, os seques
tros, os homens e
mulheres que nunca foram
encontrados, o que foi
subtraído da educação, da
cultura, do pensamento, da
experiência social, o que foi
destruído e atrasado
quanto a conquistas sociai
s, econômicas e políticas, é
irresgatável, mesmo que tud
o venha à tona e que os
torturadores paguem por seu
s crimes.

Depois do AI-5, em 1969, o aparta- Meu pai, hoje falecido, era oficial
mento em que eu morava com meu mari- da reserva, conseguiu entrar no prédio e
do no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, me retirar de lá no mesmo dia.
foi invadido e vasculhado por dois agentes Em seguida, eu e meu marido nos
do Serviço de Ordem Política e Social do afastamos do Rio de Janeiro. Decidimos
DOPS. Tinham um mandado de prisão, em morar no interior de São Paulo, onde
que constava meu nome. Apreenderam li- residimos e trabalhamos durante três
vros da nossa estante. Fui levada para um anos. Não cumpri pena
prédio, hoje já demolido, localizado na Na época, não denunciei as viola-
Praça XV. Lá, um oficial da Marinha vas- ções sofridas. Eu e meu marido fizemos
culhou minha bolsa e me interrogou; fui um depoimento no livro de Evandro
fotografada e fichada. Permaneci durante Teixeira, 68 Destinos, Passeata dos 100
algumas horas naquelas dependências. Eu Mil, em que falamos a respeito de nossa
estava incluída num inquérito policial- participação na resistência à ditadura.
militar (IPM). A alegação para minha de- Não recebo reparação do Estado. Nunca
tenção foi o fato de meu nome constar de esperei receber.
um fichário da organização Ação Popular, As violações de direitos da ditadu- rute gusmão
pereira de azevedo
apreendido pela repressão. ra atingiram minha atuação profissio-
Depois da detenção, fui intimada nal. Fui discriminada ideologicamente
a comparecer novamente ao DOPS no na LBA durante muitos anos. De lá, não
mesmo ano, o que fiz acompanhada e pude sair durante a ditadura, para não
orientada por meu advogado, Dr. Lysâ- ficar desempregada, pois, na época, se
neas Maciel. dependia do atestado ideológico para

117
conseguir emprego. Estive prestes a ser e marca para sempre a existência dos in-
demitida por razões político-ideológi- divíduos e das famílias, a vida da socie-
cas, mas alguns colegas souberam me dade e a cultura. As mortes, os seques-
defender na instituição. tros, os homens e mulheres que nunca
Durante décadas, fui vigiada em foram encontrados, o que foi subtraído
minha atividade profissional e militân- da educação, da cultura, do pensamento,
cia por órgãos de segurança, o que cons- da experiência social, o que foi destruído
tatei no habeas data que obtive na Agên- e atrasado quanto a conquistas sociais,
cia Brasileira de Inteligência (Abin) em econômicas e políticas, é irresgatável,
2004, em que é registrada minha parti- mesmo que tudo venha à tona e que os
cipação como vice-presidente da Asso- torturadores paguem por seus crimes.
ciação Nacional dos Servidores da LBA Hoje, se torna fundamental a defe-
no ano de 1989. sa da liberdade, da igualdade, a constru-
Entendo que é dever dos que vi- ção de um projeto para o país, que inclua
venciaram os anos de ditadura resgatar a efetivação das mudanças necessárias,
suas memórias e contribuir para o res- para que possa se tornar política, econô-
gate da história censurada e deturpada mica, cultural e socialmente democráti-
pelos aparelhos dominantes durante dé- co, e seu povo respeitado em seus direi-
cadas, para que a sociedade tenha cons- tos. Ditadura nunca mais!!!
ciência do que aconteceu e as futuras
gerações não permitam
que um regime ditatorial
volte a subjugar este país,
este povo, esta cultura.
A experiência de
viver num país sob dita-
Conselho Federal de dura é muito dolorosa
Serviço Social (CFESS)

118
Introdução em presença, na ótica do materialismo
Este texto se refere ao episódio/ histórico.
situação de minhas prisões no contex- Já refleti sobre o contexto dos anos
to das ditaduras militares do Brasil em da ditadura, destacando-se o livro O tra-
1964 e do Chile em 1973. O contexto balho da política – saúde e segurança
será apenas brevemente caracterizado, dos trabalhadores, publicado pela Edito-
pois já foi objeto de diversas e profundas ra Cortez em 2010 (2a ed.) e o capítulo 4o
análises. do Livro Globalização, correlação e for-
O episódio é um acontecimento ças e serviço social, também publicado
pessoalmente vivido num determinado pela Editora Cortez em 2013.
tempo/espaço referido pela memória Este texto tem cinco partes. Num
da época. Na apresentação da tragédia primeiro momento, falo do golpe de
grega, o episódio (epi+ eisódos) se refere 1964 e do episódio da minha prisão no
à entrada dos personagens na cena de período de estudante. Em seguida, do
teatro, é estar no meio da tragédia. No episódio da prisão em 1967, já como pro-
caso desse depoimento, é estar no meio fissional. Em terceiro lugar, situo-me no
da tragédia real que foram os golpes de Chile. Em seguida, uma reflexão breve
estado no Brasil em 1964, no Chile em sobre o exílio. Finalmente, transcrevo
1973, no exílio de 1970 a 1979. Novos ato- trechos de meu depoimento no Congres-
res entram em cena, tanto no Congresso so da Virada. Não vou me alongar, mas
da Virada em 1979, como nos 30 anos do alinhavar alguns traços desse percurso.
mesmo, a que estive presente.
Trata-se de um depoimento que 1. O golpe de 1964 e o episódio da prisão
mescla reflexão e vivência, história so- Os golpes militares latino-america-
cial e história pessoal, trajetórias políti- nos do século XX são um processo de
cas e percursos de vida. Com efeito, so- rearticulação da hegemonia das classes
Conselho Federal de mos sujeitos sociais, implicando não só a dominantes burguesas, quando se veem
Serviço Social (CFESS)
multidimensionalidade das relações em ameaçadas por uma contra-hegemonia
que estamos envolvidos, mas suas inte- das classes populares, que passam a se
rações e conflitos. O percurso da vida é mobilizar, a conquistar direitos e se re-
conflituoso, não se configurando como presentar politicamente.
correlação de intenções, numa ótica ide- Em 1964 no Brasil, os camponeses,
alista, mas numa correlação de forças os operários e os estudantes se haviam

120
Nos arquivos do antigo Dep
artamento de Ordem
Política e Social (DOPS), enc
ontrei documento em que
se diz: “Vicente Faleiros -
a sindicância foi
provocada pela própria Dir
eção da Faculdade”,
continuando, “Aquele estuda
nte juntamente com a
Susana Vilela, ex-president
e do centro acadêmico,
lideraram um grupo de 15 alu
nos, pertencentes a este
estabelecimento, dessa fundaç
ão e se julgavam donos da
escola. Como minoria ativa
organizada, agitou todo o
meio estudantil Ribeirão-Pre
tano, e produziram a
desmoralização dos seus mes
tres”.

posto em movimento nas lutas por re- melhança com o golpe para derrubar
forma agrária contra o latifúndio, por Dilma Rousseff em 2016 não é mera
avanços na Consolidação das Leis do coincidência.
Trabalho (CLT), na organização sindical Nós, estudantes de Serviço So-
e na previdência social e por democra- cial da Faculdade de Serviço Social de
tização e laicização do ensino. As ruas Ribeirão Preto (SP), formávamos um
foram ocupadas por massas populares. grupo crítico da profissão e do sistema.
A reação veio com a aliança entre Éramos da JUC ou da organização Ação
latifundiários e patrões, por um lado, Popular, ambas presentes no movi-
com organizações civis vinculadas ao mento estudantil, na época articulado
conservadorismo, como setores das à UNE. É dentro da UNE que nos mo- vicente de paula
faleiros
igrejas e de classes médias, por outro. víamos e, nos Congressos de Quitandi-
As suas bandeiras eram a defesa da fa- nha e ABC, formamos a Executiva Na-
mília, combate à corrupção e ao comu- cional de Estudantes de Serviço Social
nismo. Resultou na ação militar para (ENESS, à época).
derrubar o presidente João Goulart, A luta local implicou minha presen-
democraticamente eleito. Qualquer se- ça na discussão pública da política, por

121
exemplo, em coluna no jornal semanal nhões dos “gatos” para o corte de cana,
A Palavra, intitulada Falou, Tá Falado e em geral às 5 horas da manhã.
em reportagens no jornal Diário de No- Para ganhar a vida, dava aulas
tícias. Uma que causou furor na classe particulares para estudantes do se-
média, expressa nas mensagens ao jor- gundo grau, aulas de história da arte
nal, foi desvelar a situação das emprega- na Escola de Artes Plásticas e também
das domésticas, escravidão considerada aulas de português à noite no Ginásio
naturalizada. Municipal. Consegui autorização do
Em nível local, questionávamos a MEC para a docência depois de um
forma como o Serviço Social era ensina- exame de proficiência.
do e fundamos o Centro Acadêmico XV O golpe de 1964 foi ação tanto con-
de Maio, posicionando-se criticamente tra a democracia formal, como contra
frente à direção da então Associação de as lutas e propostas pela reforma agrá-
Ensino de Ribeirão Preto (AERP). Par- ria, reforma educacional, reforma urba-
ticipei do Centro Popular de Cultura na no interesse das massas oprimidas.
(CPC) da UNE. Por causa de uma peça Foi, portanto, contra o que fazíamos na
de teatro num bairro periférico, tomei defesa desses interesses.
uma suspensão de uma semana, o que Nos dias anteriores a 1º de abril de
mostra a aliança entre o ensino pri- 1964, víamos as marchas pela família,
vado e a ordem dominante. A diretora com Deus pela liberdade como articula-
do curso, dona Marina, me convidou a ção da direita. A derrubada do governo
abandoná-lo, por “não ter vocação para João Goulart me levou a escrever um
o Serviço Social”. artigo: Assistentes Sociais de Luto no
Participei do MEB, movimento de Diário de Notícias, contra o golpe. Foi
educação de base do MEC no proces- o dia da corrida para destruir ou escon-
so de alfabetização pelo Método Pau- der textos, inclusive no forro da Repú-
Conselho Federal de lo Freire, com duas experiências, uma blica Pio XII, na Praça 7 de Setembro,
Serviço Social (CFESS)
urbana em Vila Virgínia, e outra rural, onde morávamos 32 estudantes. Infor-
esta interrompida pela pressão dos mado de que estava procurado, tive que
fazendeiros. Ajudei a fundar sindica- buscar esconderijo, recusado em algu-
tos rurais na região de Ribeirão Preto, mas casas, mas aceito no Seminário de
inclusive convidando trabalhadores Brodósqui, onde conhecia o reitor des-
boias-frias quando partiam nos cami- de meus tempos de seminarista.

122
Depois do esconderijo, voltando à Um dos documentos traz a relação
República Pio XII, fui preso e levado de todos os envolvidos na Ação Popular,
ao Corpo de Bombeiros de Ribeirão denominada “marxista –leninista”. Além
Preto em abril de 1964. Em seguida, de fichado como agitador, o era também
levado para a cadeia pública de Itu- como membro da Ação Popular e como
verava, a 100 km de Ribeirão Preto, participante do Partido Comunista
à noite, com centenas de voltas pela (PCB). Assim, estava marcado nas duas
cidade para nos confundir, com mais organizações. A relação dos membros do
um estudante de Direito. O interro- partido comunista estava dividida entre
gatório do Inquérito Policial Militar simpatizantes e ativistas. Estava indicia-
(IPM) teve como referência o oficio nº do como ativista.
69, do Exército de Pirassununga, em Ação Popular e PCB disputavam
que aparecem vários nomes de pesso- concepções sobre as estratégias de ação:
as ligadas ao Serviço Social, incluin- transformação social com o povo versus
do o meu e de outras companheiras, tomada do poder pela burguesia nacio-
denotando o fichamento da liderança nal, conforme propunha o PCB, como o
estudantil por parte do Exército. reconheceu o próprio Luís Carlos Pres-
Nos arquivos do antigo Depar- tes. A Ação Popular tinha uma perspec-
tamento de Ordem Política e Social tiva de revolução, sem passar pela etapa
(DOPS), encontrei documento em que burguesa. Nos movimentos estudantil e
se diz: “Vicente Faleiros - a sindicância sindical, as correntes de esquerda dispu-
foi provocada pela própria Direção da tavam cargos e direções.
Faculdade”, continuando, “Aquele estu- O isolamento em Ituverava trazia
dante juntamente com a Susana Vilela, muita apreensão, pois nem a família
ex-presidente do centro acadêmico, li- teve contato comigo, forçando meu pai
deraram um grupo de 15 alunos, per- a me procurar pelas delegacias, até me
tencentes a este estabelecimento, dessa encontrar em Ituverava. O processo não vicente de paula
faleiros
fundação e se julgavam donos da escola. andou, mesmo sem presença de advoga-
Como minoria ativa organizada, agitou do, tudo era arbitrário na rotina do dia a
todo o meio estudantil Ribeirão-Preta- dia de uma cadeia de polícia do interior,
no, e produziram a desmoralização dos tendo, na maioria das celas, prisioneiros
seus mestres”. Esta é uma acusação da comuns. Pude retomar tarefas de profes-
época, vinda da própria AERP. sor e de estudante, mas foi-me proibido

123
fazer o TCC sobre o Método Paulo Frei- Ação Popular fez essa opção. Mas era ne-
re, devendo escrever sobre metodologia cessário trabalhar com a resistência ao
da pesquisa e desenvolvimento de co- regime, tanto urbana como rural e estu-
munidade. dantil, articulando várias frentes, o que
foi minha opção.
2. A clandestinidade e o episódio da Em Brasília, em 1966, consegui tra-
prisão em 1967 balho na Fundação do Serviço Social.
A ditadura aprofundava a repressão, Na Ação Popular clandestina, participei
aumentando a tortura, o controle da mí- do que se chamava Comando Regional.
dia, o controle da política, dos sindicatos, Por ameaça, um camponês nos delatou.
dos movimentos sociais. Esta radicali- A minha prisão, com toda a direção, foi
zação do poder militar tornava também anunciada na mídia, articulada com o
mais explícito o Estado de Exceção. Exce- sistema de informações da ditadura. As-
ção pela implantação do terror do Estado sim escreveu Ibraim Sued em sua coluna
pela tortura, pelo silêncio da oposição e na Folha de São Paulo: “Guerrilheiros:
a implementação da guerra, na transfor- Atenção! Atenção! Inúmeras prisões de
mação do opositor em inimigo interno do guerrilheiros de Goiás, pelo meu fio es-
regime. No entanto, a situação econômica pecial, estou seguramente informado de
de 1967 a 1973 foi chamada de “milagre que ação de guerrilheiros daquela área
econômico”, combinando crescimento e tem preocupado o comando militar”.
arrocho salarial e político. Continua: “Pois bem, enquanto os
Continuei militando na Ação Po- guerrilheiros continuavam agindo, dois
pular e buscando trabalho como recém- subversivos altamente comprometidos
formado. O trabalho era público, a mili- com as guerrilhas de Uberlândia, obti-
tância clandestina, obrigando-nos a uma veram habeas corpus do Superior Tribu-
“vida dupla”, mas combinando ações, no nal: Vicente Faleiros, Ostir, brasileiros
Conselho Federal de mundo legal, que questionassem mi- natos”(sic!). O nome do outro preso era
Serviço Social (CFESS)
nimamente o Estado de Exceção e não Osdir Brasileiro Matos. Termina sua crô-
pusessem em risco a vida, com ações de nica com a expressão: “A revolução não
resistência. Algumas organizações de pode dormir no ponto”, pois havíamos
esquerda, influenciadas pela estratégia sido soltos por habeas corpus.
guevarista da guerrilha, partiram para Pudemos contar com advogado,
o enfrentamento armado. Uma parte da que conseguiu habeas corpus para nos

124
No Chile, tivemos a solidari
edade de várias
pessoas que nos acolheram,
inclusive Teresita
Quiroz, que me hospedou na
chegada.
A discussão política sobre
a construção do
socialismo com democracia
nos mobilizava e a
prática participativa no pr
ocesso nos
implicava na ação diária
de apoio à
organização da resistência
.

libertar da prisão no Quartel-Geral em prisão e condenação. De fato, a minha


Brasília, onde fiquei um mês detido, acu- condenação a um ano de prisão foi feita
sado pela Lei de Segurança Nacional de posteriormente, à revelia, pois corria o
“tentar derrubar o Estado pela força”. risco de ser preso novamente, no gover-
Na prisão, fomos relegados a celas isola- no Médici, com radicalização do terror
das, nas primeiras 24 horas sem alimen- de Estado. O atestado da minha condena-
to. Após o habeas corpus, pude voltar ção militar brasileira diz: “Certifico que
ao trabalho, mas demitido dos cargos de Vicente de Paula Faleiros foi condenado
confiança e ainda mais vigiado. pelo Conselho Permanente de Justiça do
A perseguição não dá arrego, até Exército a um ano de detenção”.
neutralizar o “inimigo” pelo silêncio, a Com minha mulher, decidimos fu-
submissão, a tortura ou a morte. O pro- gir da repressão para não sermos tru-
cesso contra a AP foi reaberto em 1969, cidados, e seguimos para o Chile, onde vicente de paula
faleiros
quando aparecem 29 pessoas denuncia- tinha contatos em Valparaíso.
das, incluindo eu, processados na Região
Militar de Juiz de Fora, onde fomos inter- 3. A ditadura chilena e o episódio da
rogados. Em seguida, foi aberta a Região prisão no Chile
Militar de Brasília, para onde o proces- Um depoimento sobre o processo
so foi transferido, com ameaça de nova de Reconceituação do Serviço Social

125
nos anos 1970 no Chile foi feito na Uni- articulação político-militar. Os milita-
versidade do Estado do Rio de Janeiro res golpistas, em 1973, bombardearam
(Uerj) em 2015 e deve ser editado. Por o Palácio de La Moneda e forçaram o
isso, somente menciono que estive im- presidente Allende a se suicidar. Em 11
plicado, durante o exílio no Chile, nas de setembro, foi estabelecido o estado de
mobilizações populares contra as for- guerra e, no dia 19, fui preso. Depois de
ças do imperialismo, do latifúndio, da passar pela prisão comum e corredor po-
burguesia. Construímos uma aliança, lonês, com ameaça de ser jogado no mar,
na Escola de Serviço Social de Valpa- fui levado a um barco chamado Lebu.
raiso, com camponeses, operários e lu- Ficávamos no porão e, no convés, havia
tas urbanas. As áreas de estágio eram uma prisão de mulheres. O relato da tor-
respectivamente: camponesa, operária tura, com uma reflexão sobre o arbítrio
e urbana. Também não demos arrego e o canibalismo do torturador, se encon-
às ditaduras. tra no artigo Violência institucional e
No Chile, tivemos a solidariedade violência nos locais de isolamento, cons-
de várias pessoas que nos acolheram, tante da publicação Nenhuma forma de
inclusive Teresita Quiroz, que me hos- violência vale a pena, do VI Seminário
pedou na chegada. A discussão política Nacional dos Direitos Humanos do Con-
sobre a construção do socialismo com selho Federal de Psicologia (2011).
democracia nos mobilizava e a prática No Lebu, estávamos 300 presos
participativa no processo nos implicava em cada porão, nas condições infra-hu-
na ação diária de apoio à organização da manas, dormindo, quando possível, no
resistência. Por exemplo, na formação aço gelado do piso sujo de carvão, co-
de “cordões industriais” que integravam mendo feijão carunchado e acolhendo os
empresas nacionalizadas, de Juntas de torturados que vinham das dependên-
Abastecimentos e Preços-JAP, e na or- cias da Marinha.
Conselho Federal de ganização popular. A Escola de Serviço Do Lebu, fomos levados, sob es-
Serviço Social (CFESS)
Social de Valparaiso estava implicada colta militar, para um refúgio protegido
nesse processo. pelas Nações Unidas, aterrorizados pe-
Por outro lado, a direita se orga- las notícias de centenas de pessoas fu-
nizava para o golpe, com orquestração ziladas. Outras conseguiram se refugiar
da mídia, desabastecimento, greves de em várias embaixadas. Minha mulher
caminhoneiros financiados pela CIA, e com o filho de 2 anos teve que fugir de

126
Valparaiso para Santiago, onde pude en- Universitários, que levou meu currículo.
contrá-los no refúgio. Fomos ameaçados O país que nos deu acolhida com o salvo-
de ser colocados num barco em alto mar. conduto de refugiados foi a Holanda, onde
nasceu o segundo filho. No asilo, vivíamos
4. O exílio da assistência pública, sendo um assisten-
Ao mesmo tempo, tivemos a solida- te social, ao mesmo tempo assistido social.
riedade de igrejas do Comitê Mundial de Tratava-se de um antigo orfanato,
Igrejas, da família no Brasil, da “Vicaria” Huis Ter Schie, em Rotterdam, que pas-
da Arquidiocese de Santiago, bem como sou a receber refugiados do mundo intei-
da Associação Canadense de Professores ro, mas grande parte era oriunda das mi-

vicente de paula
faleiros

127
grações das ditaduras latino-americanas. professores que retornavam ao Brasil.
Com ação dos professores, acima Justamente em 1979, o movimento
citada, foi-me dado visto de imigrante dos assistentes sociais brasileiros orga-
apátrida no Canadá, pois o governo bra- nizava o congresso nacional, que foi cha-
sileiro não nos dava passaporte. Depois mado de Congresso da Virada. O CFESS,
de nove meses num asilo holandês, fo- 30 anos depois, em 2009, promoveu um
mos para o Canadá. Moramos em Que- seminário nacional em que li um depoi-
bec, onde foi possível uma vaga de pro- mento publicado nos anais do evento.
fessor visitante na Université Laval. A proposta ético-política dos assis-
Junto com movimentos populares, os tentes sociais salienta o compromisso da
docentes de “Intervenção Coletiva” fun- transformação social do capitalismo, em
damos um grupo de pesquisa sobre ação aliança com as classes trabalhadoras. Para
popular/movimentos sociais, uma asso- concluir, destaco alguns parágrafos desse
ciação de pessoas que trabalhavam em or- depoimento no Congresso da Virada.
ganização comunitária e um partido polí- “Celebramos essas jornadas de lu-
tico de esquerda para eleições municipais, tas e de sonhos por um mundo de justi-
o RP (Ressemblement Populaire). ça, igualdade, inclusão, sem dominação
Apoiei ativamente os refugiados, do homem sobre o homem, sem explo-
os movimentos de resistência à ditadura ração, sem grilhões que nos atem ou que
no Brasil e Chile. Como herança dessa favoreçam a escravidão, o preconceito, a
memória de luta, nosso filho André Fa- intolerância, a discriminação, a violên-
leiros, que mora em Montreal, acaba de cia, a fome, o sofrimento e a injustiça.
fazer uma doação de uma bolsa de estu- Luta e sonho, que continuam vivos”.
dos a pessoas refugiadas na Universida- “Nossas mãos, nossos pés, nossos
de de Quebec, que seleciona o bolsista. O corpos juntos com os nossos sonhos nos
nome da bolsa é Silveira-Faleiros. fazem juntar forças para abrir caminhos
Conselho Federal de Com a anistia, em 1979, pudemos na barbárie, clareiras na escuridão do
Serviço Social (CFESS)
obter um passaporte de vinda, válido por medo, acender a chama da esperança,
um dia, iniciando uma aprendizagem do soprar as cinzas do desânimo, inventar o
Brasil na prática do dia a dia na cidade mundo da emancipação humana, esse so-
de São Paulo. Buscávamos trabalho, ten- nho de milhões de seres humanos que, na
do a possibilidade na Universidade Fe- forja da sua luta, buscaram o socialismo e
deral da Paraíba, que acolheu, em 1980, a liberdade, a igualdade e a justiça, as con-

128
dições de vida digna e a felicidade. Esse sonho foi sonhado por muitos que deram sua
vida, seu sangue, seus gritos sob a tortura, seus corpos feridos, seus empregos, sua Pátria,
seus amores, para que a terra fosse amorosa, para que os dias fossem amorosos, as políti-
cas redistributivas, o Estado de direito, a pobreza eliminada, as autonomias respeitadas,
a vida dignificada”.
“Esse sangue, essas lágrimas, essas perdas atravessam os anos, podem sumir
na repressão, nas ditaduras, nos infernos insondáveis da brutalidade, mas podem se
tornar rios torrenciais, aprendizados de ser gente, de ser solidário”.
“Ao transformar as relações de poder, aprendemos a ver nosso próprio poder
para exercê-lo. Essa perspectiva foi a tocha do movimento de reconceituação que in-
cendiou academias, depois que as ditaduras haviam queimado livros, na ilusão de eli-
minar ideias. Se a chama cresceu, foi porque a mantivemos acesa em muitas frentes,
juntando a organização com a crítica, pois a crítica é vã sem força; juntando a ética
com a pressão, pois a ética é símbolo abstrato sem a pressão concreta. Companheiras
e companheiros, não alcançamos o sonho, mas sem ele não teríamos rumo. Nossas
mãos estão calejadas, às vezes separadas, mas temos o jeito de juntá-las. A pobreza
ficou menor, mas a desigualdade persiste, o que importa é não desistir.”

vicente de paula
faleiros

129
O
s anexos estão dividos em qua- originais, não só das estudantes de Serviço
tro subseções. Na primeira, re- Social, mas de todas as mulheres detidas,
cuperamos dois depoimentos, foram retiradas do livro Mulheres de Ibiú-
originalmente publicados no livro Pau na, também disponível na internet.
de Arara: a violência militar no Brasil, Na terceira subseção, disponibliza-
de Bernardo Kucinski e Ítalo Franca, da mos algumas fotografias da Exposição
Fundação Perseu Abramo (2013), dispo- Serviço Social, Memórias e Resistências
nível na internet para download. As falas contra a Ditadura, inaugurada durante o
são de Gilse Maria Cosenza Avelar e Lau- 15º Congresso Brasileiro de Assistentes
delina Maria Carneiro, ambas do Serviço Sociais (CBAS), em setembro de 2016, em
Social. Elas relatam os horrores em de- Olinda (PE). Posteriormente, a exposição
corrência da prisão durante a Ditadura. foi replicada no 15º Encontro Nacional
Na segunda parte, extraímos fotos de Pesquisadores/as em Serviço Social
das estudantes de Serviço Social que foram (Enpess), em Ribeirão Preto (SP).
presas durante o 30º Congresso Nacional Por último, indicamos as referên-
da União Nacional dos Estudantes (UNE), cias textuais e inconográficas para a
em 1968, em Ibiúna (SP). As fotografias produção deste livro.

GILSE MARIA COSENZA AVELAR, brasileira, casada, 25 anos,


nascida em 28 de dezembro de 1943 em Paraguaçu (MG),
residente em Belo Horizonte (MG). Assistente social,
graduada pela Escola de Serviço Social da Universidade
Católica de Minas Gerais, em 1967. Tem uma filha nascida
em 27 de fevereiro de 1969. Nome da Assistente
Social
Fui presa em 17 de julho de 1969, sendo conduzida ao Departamento de Instru-
ção, onde se encontravam presas dezenas de pessoas. Durante os dez dias em que ali
permaneci, fui submetida a enormes pressões psicológicas pelos interrogadores (ofi-
ciais do exército e da Polícia Militar de Minas Gerais), que ameaçavam torturar mi-
nha filha, naquela ocasião com três meses de idade. Os oficiais afirmavam que iriam
buscar a criança e descreviam o que pretendiam fazer na minha presença: deixá-la

131
sem alimento, colocá-la em uma bacia de água fria, etc. No dia 28 de junho, junto
com outras prisioneiras, fui transferida à prisão de mulheres Estevão Pinto e fiquei
incomunicável na cela 5, onde permaneci por dois meses, na qual havia uma lâmpada
de 100 watts, o que significa uma claridade ofuscante em um cubículo pequeníssimo
com uma única e mínima abertura. Em 23 de agosto, às 17h, fui levada à presença do
tenente-coronel Waldir Teixeira Góes, no 12º Regimento de Infantaria da 4ª Região
Militar, onde se encontrava o capitão Jofre Lacerda com as presas Delcy Gonçalves de
Paula, Laudelina Maria Carneiro e Loreta Kiefer Valadares. O tenente-coronel Góes
me informou que eu seria entregue aos torturadores capitão Jesu e sargento Léo, da
Polícia Militar, que se encarregariam de me espancar, colocar no pau de arara, se
divertir com meu corpo e, finalmente, me estuprar.
Às 19h, fui conduzida pelo capitão Jesu e o sargento Léo, em um jipe, até um
posto policial isolado, cuja localização me é impossível determinar, por não conhecer
os locais despovoados dos arredores de Belo Horizonte e por ser de noite. Trata-se,
no entanto, de uma pequena construção de três ou quatro peças, à margem de uma
rodovia e no meio rural, situada na direção da estrada que leva ao município de Ne-
ves. Provavelmente continua sendo utilizada como lugar de torturas, pois o sargento
Léo comentava com o capitão Jesu sobre a necessidade de requisitar o lugar para que
ficasse permanentemente à disposição das investigações policial-militares, em vista
de sua localização: “Aqui podemos trabalhar comodamente, porque ninguém vai ou-
vir os gritos dessa gente”, disse.
Nesse local, fui torturada desde as 20h do sábado até às 5h da madrugada de
domingo pelo capitão Jesu e pelo sargento Léo, ajudados por um terceiro homem não
identificado. Sofri as seguintes torturas:
1. Espancamentos: socos em todo o corpo, golpes de caratê no estômago e pescoço,
bofetadas, violentos apertões nos ouvidos e pescoço, beliscões e torceduras nos
Conselho Federal de mamilos, golpes de cassetetes;
Serviço Social (CFESS)
2. “Telefone”: pancadas fortíssimas dadas simultaneamente nos ouvidos que me
deixaram totalmente atordoada;
3. Choques elétricos: fui colocada em cima de uma mesa, onde prenderam, em
meus pés e mãos, fios elétricos de uma pequena máquina com manivela. Um dos
policiais me imobilizava sobre a mesa e o segundo tapava minha boca com um
pano, enquanto o terceiro acionava a manivela produzindo descargas elétricas.

132
Só interrompiam esse tratamento quando percebiam que eu estava quase sem
sentidos, sem sequer conseguir gritar, com os braços e pernas retorcidos, rígi-
dos, e o corpo percorrido por espasmos e tremores involuntários;
4. Latinha: descalça, fui obrigada a permanecer por longos períodos em pé em
cima das bordas abertas de uma ou duas latas de salsichas de diferentes alturas.
Em pouco tempo, as latas começavam a afundar nas plantas dos pés, os múscu-
los das pernas se tornavam rígidos, provocando uma dor enorme. Quando perdia
o equilíbrio e caía, era espancada e colocada de novo no lugar. Ao não conseguir
me manter de pé sobre as latas, era sustentada pelo sargento Léo, que, ao mesmo
tempo, torcia meus mamilos e agregava à dor física a tortura moral, acariciando-
me lubricamente todo o corpo;
5. “Pau de arara”: fui obrigada a abraçar meus joelhos, com os pulsos amarrados,
sendo-me introduzido, no espaço entre os joelhos e os cotovelos, um pedaço de
madeira. Este foi então colocado em posição horizontal a mais ou menos um me-
tro do chão, com uma extremidade apoiada numa mesa e a outra sobre madeiras
empilhadas em uma cadeira. Fiquei pendurada de cabeça para baixo, enquanto
o capitão Jesu operava a manivela da máquina de choques. Ao mesmo tempo, o
sargento Léo me batia nas nádegas, nas pernas e nas plantas dos pés com casse-
tetes. Às vezes, o sargento Léo interrompia o espancamento para praticar atos
sexuais em meu corpo;
6. Torturas sexuais: fui vítima de todo tipo de violências e atentado ao pudor, fal-
tando apenas que o sargento Léo me forçasse a relações sexuais totalmente com-
pletas por temor às consequências de uma possível gravidez. Enquanto estava
colocada sobre as latinhas ou pendurada no pau de arara, ele manuseava todo o
corpo. Em outros momentos, o capitão Jesu se retirava do local, deixando-me só,
de propósito, com o sargento Léo, para que ele tivesse maior liberdade de ação.
Às 5h30 da manhã, fui conduzida novamente à prisão Estevão Pinto pelo sargen- Gilse maria
consenza Avelar
to Léo, sendo recebida pela chefe da guarda, Maria José Araújo. Esta, justamente
com outra funcionária, Justina, é testemunha do lamentável estado físico em que
me encontrava, pois tiveram que me servir de apoio para que conseguisse chegar
até a cela. Outras testemunhas dos fatos citados são: Georgina, funcionária da
prisão; a doutora Nahylda, médica da prisão – chamada com urgência em 24 de
agosto de 1969, domingo, às 8h da manhã, para me atender – e a várias presas.

133
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Fui presa em 15 de julho de 1969, às 17h30, em minha casa em Belo


Horizonte (MG), onde vivia em companhia de minha amiga, Maria do
Rosário da Cunha Peixoto. Minha casa foi invadida pela equipe de di-
ligências dirigida pelo capitão Portela. Em meio a gritos e comentários
grosseiros, fui obrigada a me despir totalmente, sendo levada à cozinha.
Durante cerca de uma hora, fui espancada brutalmente pelo sargento
Léo Machado, a golpes de cassetetes e socos no estômago, ventre, rins e
nádegas, além de receber violentos pontapés nos tornozelos. Em seguida,
o capitão Pedro Ivo me levou ao quarto, passando a me bater no rosto, até
que meus lábios sangraram. Caí várias vezes pela violência dos golpes,
sendo obrigada a me levantar pelo próprio capitão, que apagou um cigar-
ro e um fósforo na pele do ventre. No mesmo dia, às 23h30, fui levada à
2ª seção na Praça da Liberdade, onde fui obrigada, pelo capitão Portela, a
me despir novamente. Ele, além disso, tentou me forçar (junto com outro
oficial) a fazer strip-tease. Nessa mesma noite, o capitão Portela me deu
choques elétricos, aplicando-me umas cinco descargas com a máquina
de choques, uma maquininha que eles chamam de “manivela”, na qual li
a inscrição US Army.
Em consequência das torturas, meus tornozelos ficaram roxos e in-
chados, produzindo dores tão agudas, que praticamente me impediram
Conselho Federal de de caminhar por uma semana. No D.I., onde permaneci por 12 dias, as
Serviço Social (CFESS)
consequências das torturas foram observadas por dezenas de pessoas
presas. Isso também pode ser testemunhado pelas duas enfermeiras do
D.I., que enfaixaram os pés (Vanderléa e Andrade), além do médico que,
horrorizado ao ver o estado de meus tornozelos, pensou em possíveis
fraturas e pediu que fizessem quatro chapas de raios X no hospital mi-
litar (essas chapas estão em poder do meu advogado). Durante minha

134
permanência no D.I., sofri ameaças de torturas físicas e sexuais, que inclusive eram
descritas com riquezas de detalhes pelo tenente Ribas em “conversas amigáveis” na
hora do almoço ou jantar. Em 27 de junho de 1969, fui transportada, junto com outras
presas, ao Presídio de Mulheres, onde permaneci incomunicável por 60 dias.
Em 18 de julho, no consultório médico da prisão, enquanto era interrogada pelo
capitão Jofre Lacerda, do exército, pelo capitão Schubert, da PM, e pelo agente poli-
cial José Perpétuo, da DVS, depois de receber ameaças de todo tipo de torturas físicas
e sexuais, fui obrigada a permanecer durante muitos minutos descalça, equilibran-
do-me com um só pé sobre uma lata aberta de salsichas, cujas bordas se cravavam
na planta dos pés. No dia 19, no mesmo consultório médico, fui novamente à tortura
das latinhas durante 10 minutos. No dia 20, no mesmo local, encheram uma banheira
com água fria, planejando me manter nua e imersa por tempo indeterminado e só
não executaram seus propósitos por temerem maiores consequências, tendo em vista
que eu estava menstruando. Para me pressionarem mais ainda, ameaçaram pren-
der e torturar, na minha presença, meu noivo e minha mãe. O tenente-coronel Góes
chegou a expedir um mandado de prisão contra minha mãe, que foi revogado pelo
general Álvaro Cardoso. Não conseguindo prendê-la, o tenente-coronel Góes passou
a ameaçar minha mãe sempre que ela ia me visitar, chegando a interrogá-la durante
dez horas, em uma ocasião. Minha mãe tinha 46 anos de idade e estava grávida de
três meses, esperando seu segundo filho. Em consequência das pressões psicológicas
e ameaças a que foi submetida, sofreu um aborto. Em 14 de setembro, em uma sala
do 12º RI, para onde fui levada pelo capitão Lacerda, fui torturada até 3h30 da ma-
drugada pelo capitão Sebastião Geraldo Peixoto e pelo capitão Schubert, que me de-
ram mais de 15 descargas elétricas. Só interromperam a tortura quando eu desmaiei,
caindo da cadeira onde me haviam posto. Testemunhas de minha saída e retorno ao
presídio de mulheres: as funcionárias Maria José Araújo, Laurentina, Adelina, Justi-
na e Georgina. Fui testemunha das torturas infligidas a Maria do Rosário da Cunha Laudelina maria
carneiro
Peixoto, Delcy Gonçalves de Paula, Loreta Kiefer Valadares e Gilse Cosenza Avelar.

135
O ano é o de 1968. A cidade é Ibiúna,
localizada a cerca de 70 quilômetros de São
Paulo (capital).

Lá aconteceu o 30o Congresso da União


Nacional dos Estudantes (UNE). Na ocasião,
quase mil estudantes sofreram repressão e
acabaram na prisão. Muitas dessas pessoas
cursavam Serviço Social em universidades de
todo o Brasil.

Reunimos aqui fotografias de algumas dessas


estudantes que estiveram no Congresso e
Conselho Federal de que acabaram presas. Sofreram violência
Serviço Social (CFESS) psicológica e física.

As fotos originais foram extraídas do livro


‘Mulheres de Ibiúna’.

É preciso conhecer, além dos fatos, os rostos


de estudantes e profissionais de Serviço Social
que lutaram contra a ditadura.

136
As meninas de Ibiúna

137
138
A exposição ocorreu em dois momentos: no 15º CBAS (Olinda/PE) e no 15º Enpess (Ribeirão Preto/SP)

A exposição

Os painéis da exposição traziam ilustrações, fotografias e depoimentos

139
Estima-se que cerca de 3500 pessoas assistiram à exposição, nos dois eventos em que ela ocorreu

Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS)

As imagens foram inspiradas em cartazes e outras peças gráficas sobre a Ditadura Civil-Militar

140
Os depoimentos consistiram em extratos de relatos enviados por assistentes sociais ao CFESS

A exposição

A atmosfera criada para a exposição contou com luzes e sonorização especiais

141
Bia Abramides (à esquerda) enviou seu relato para este livro e participou do lançamento da exposição

Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS)

Atenção do público para o vídeo com depoimentos de assistentes sociais que lutaram contra a Ditadura

142
Marilda Iamamoto (sentada à esquerda) enviou seu relato à Comissão Nacional da Verdade

A exposição

Bia Abramides ao entrar na exposição e se deparar com seu depoimento em vídeo

143
Informações gerais sobre os
depoimentos e imagens do livro

Depoimentos enviados ao CFESS em As ilustrações do livro foram inspiradas


resposta ao formulário do Projeto: em documentos iconográficos históricos
Ana Maria Santos Rolemberg Côrtes, referentes à Ditadura no Brasil e na
Ana Maria Ramos Estevão, Ana Maria América Latina, como fotografias,
Tereza Fróes Batalha, Maria Beatriz Costa cartazes e outras imagens.
Abramides, Maria Lúcia de Souza e Rute
Gusmão Pereira de Azevedo Algumas fotografias e fotocópias de
documentos foram retiradas de sites
Depoimentos enviados ao CFESS em especializados sobre a Ditadura. Serviram
diferentes formatos: como fontes de pesquisa:
Iza Guerra Labelle, José Paulo Netto, > Brasil Nunca Mais
Maria Rosângela Batistoni e Vicente de http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/
Paula Faleiros > Comissão Nacional da Verdade
http://www.cnv.gov.br/
Depoimentos apresentados no 43º > Memórias da Ditadura
Encontro Nacional CFESS-CRESS: http://memoriasdaditadura.org.br/
Candida Moreira Magalhães, Joaquina
Barata Teixeira e Rosalina de Santa Cruz As fotos das Mulheres de Ibiúna
foram extraídas do livro de mesmo
Depoimentos dados à Comissão nome, disponível em http://www.
Municipal da Verdade de Juiz de Fora: documentosrevelados.com.br/repressao/
Marilda Villela Iamamoto e Mariléia as-meninas-de-ibiuna-152-fotografias-das-
Venâncio Porfírio estudantes-presas-no-congresso-de-ibiuna/

Depoimentos extraídos do livro Pau As ilustrações das assistentes sociais que


Conselho Federal de de Arara: a violência militar no Brasil, enviaram depoimentos para o CFESS
Serviço Social (CFESS) de Bernardo Kucinski e Ítalo Franca, foram criadas a partir de fotografias
da Fundação Perseu Abramo (2013), disponibilizadas pelas próprias autoras ou
disponível para download em http:// por imagens disponíveis na internet.
novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/
pauararacompleto.pdf. Agradecemos a todas as pessoas que se
Gilse Maria Cosenza Avelar e disponibilizaram e contribuíram para a
Laudelina Maria Carneiro produção desta memória.

144
Liberdade. Esta palavra
que tanto inspirou a luta de
milhares de pessoas contra
o regime militar no Brasil é
princípio norteador do Código
de Ética da categoria de
assistentes sociais.

Pelos depoimentos aqui


relatados, é possível perceber
O Projeto Serviço Social, Memórias e Resistências contra a Ditadura
que as pessoas também
recupera e dá visibilidade às histórias vividas pelos sujeitos políticos se mobilizaram porque
do Serviço Social, no contexto sombrio da ditadura militar. É um ato defendiam outra concepção
de respeito e uma profunda reverência à resistência e às narrativas de sociedade. uma sociedade
subtraídas da memória oficial. que possibilite, conforme diz
o Código de Ética, um pleno
Com esta publicação, o CFESS encerra o projeto, em um livro com os desenvolvimento para a
depoimentos, imagens que foram possíveis de ser encontradas e um invenção e vivência de novos
DVD, com o vídeo passado na exposição do CBAS (e do ENPESS), com valores, o que, evidentemente,
outro material audiovisual que capta a emoção dos/as presentes ao supõe a erradicação de todos
adentrar o espaço da exposição, e com um arquivo com matérias pu- os processos de exploração,
opressão e alienação.
blicadas pelos CRESS sobre o assunto.
Passados mais de 50 anos
Trazer para novas gerações um período de terror vivido no país, trata- do golpe militar e pouco
se de uma denúncia e contribui para o enfrentamento da banalização mais de duas décadas de
que, por vezes, se ouve hoje em dia de que foi uma ditabranda. Não foi. democracia reestabelecida,
No Brasil, como nos países vizinhos, se ceifaram muitas vidas, proje- é controverso dizer que a
tos e sonhos. sociedade brasileira está livre
por completo da ditadura:
Todos os depoimentos aqui reunidos expressam, ao seu modo, o im- milhares arquivos continuam
pacto nas vidas, em virtude das perseguições e das torturas vividas. ocultos, torturadores estão
Esse foi um período difícil, do qual muitos tentaram, em vão, esque- impunes e há pessoas
desaparecidas. Sem contar
cer. Outros não conseguem falar.
a repressão e a violência
cotidianas que a população
www.cfess.org.br negra e pobre sofre pelo
Estado, tão ou piores do que
as violações cometidas na
época do regime militar.

Resgatando o passado,

CFESS | 2017
contribuímos para nossas
Brasília (DF)
ações presentes e futuras.
2017
Sigamos na luta!

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