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Ciência e humanismo1

2
Attico Chassot

Inicialmente sou reconhecido pela distinção do convite para com esta fala abrir este
importante evento, que se não houvesse qualquer outro indicador para caracterizar a sua
significação, bastaria o numeral que refere que os Congressos Brasileiros de Química já
se aproximam das bodas de ouro. Quantos eventos científicos no Brasil conhecemos que
ultrapassam o número de edições que têm os congressos da Associação Brasileira de
Química?
Quando agradeço a distinção que me foi outorgada pelo eminente presidente de
honra deste evento não a atribuo a meus méritos pessoais. O Professor Airton Marques
da Silva indicou-me para ser o portador daqueles homens e mulheres que escolheram a
Química para com ela fazer Educação. Assim recolho essa homenagem que me faz um
distinguido nesse momento e reconhecidamente a transfiro às professoras e aos profes-
sores que buscam fazer com que o conhecimento químico que transmitem não seja
asséptico, não seja descontextualizado e, especialmente, não deixe de ter presente uma
dimensão política.
Devo dizer-lhes que, desde que em outubro do ano passado, quando recebi o convi-
te para esta fala, tenho em diferentes momentos refletido sobre o que devesse dizer aqui
e agora. Não esqueço o privilégio que tive por estar na festa de natal de 2004 da Regional
da ABQ desta Fortaleza e então entendi, ao ouvir nas colocações de alguns convidados
acerca da presença da Química na sociedade de hoje o porquê de se trazer propostas de
reflexões humanistas para este evento. Vi então também aumentar minha responsabili-
dade para fazer esta fala.
Dentro da dimensão política que exige um congresso que tem um tema tão desafia-
dor, convido-os a recordarem uma charge ligada a essa terrível guerra resultante da inva-
são do Iraque por uma nação prepotente que desrespeita a ONU.

1
Conferência inaugural do XLIV Congresso Brasileiro de Química, promovido em pela Associação Brasileira
de Química, proferida em 20 de setembro de 2004, em Fortaleza, CE.
2
Licenciado em Química. Mestre e doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Educação, pesquisador da Linha de Pesquisa Currículo, Cultura e Sociedade UNISINOS. Endereço eletrôni-
co: chassot@poa.unisinos.br

ACTA
ACTA SCIENTIAE
SCIENTIAE Canoas
– v.6 – n.2 v.6
– jul./dez. 2004 n.2 p. 7 - 18 jul./dez. 2004 7
A cena é conhecida, e mesmo que se Copérnico faz do heliocentrismo apenas uma
refira a um fato acontecido há mais de um hipótese, quando seu livro chega-lhe às mãos
ano, ainda nessa semana ouvimos a conti- pronto, ele tem uma apoplexia e morre. Me-
nuada repetição de mortes e mutilação de nos sorte tem um dos seus principais adep-
inocentes, como é o caso desse menino que tos, Giordano Bruno, que termina na foguei-
sonhava em ser médico antes de ter seus ra, por não se retratar de seus ensinamentos,
braços reduzidos a cotos. Essas e outras entre os quais o heliocentrismo era uma das
guerras parecem querer anestesiar nossa suas principais teses. Com Galileu a Inquisição
sensibilidade. Todavia, elas nos têm feito já foi mais branda, mesmo que o condenasse
envergonhar de nossa situação de humanos. ao silêncio.
Não esquecendo minhas origens de Não muito depois, Newton faz des-
professor de Química, trago um crições matemáticas do Universo e encan-
catalisador para esta fala: “Se acreditamos ta a muitos pois parece que os planetas
que fogo esquenta e a água refresca, é so- obedecem às suas leis e não é sem razão
mente porque nos causa imensa angústia que seu epitáfio diz “A natureza e as suas leis
pensar diferente” David Hume, 1711-1776 jazem ocultas na noite. Deus disse: Que Newton
Seria oportuno queesse catalisador exista! E tudo se fez Luz”. Isso evidencia a
encharcasse não apenas as discussões mo- reverência que a Inglaterra tributou ao seu
tivadas por essa minha apresentação, mas grande gênio. Esse epitáfio escrito pelo
que o alerta de David Hume permeasse um poeta A. Pope para a lápide de sir Isaac
congresso como esse. Newton (1642-1727), que está sepultado
Postas estas considerações preambulares, com reis, rainhas e outros grandes heróis
quero apresentar algumas balizas daquilo que ingleses na abadia de Westminster, em Lon-
apresentarei nesta fala. Por primeiro vou olhar dres, dá a dimensão da genialidade daquele
a Química como Ciência acentuando algu- a quem invocamos com respeito quando
mas das dimensões históricas. Em seguida dizia: “Se vi tão longe, é porque me apoiei
procuro ver a Ciência inserida na Sociedade e em ombros de outros gigantes”.
concluirei com as responsabilidades que te- É de Prigogine, que vou homenagear
mos de trazer o humanismo à Ciência, e nes- adiante uma vez mais, a afirmação, refe-
ta especialmente à Química e aqui já antecipo rindo não apenas Ciência, mas as concep-
o quanto essa não é uma preocupação come- ções de Universo depois das soluções da-
tida exclusivamente a professoras e professo- das por Newton, o novo Moisés a quem as
res e sim a cada uma e cada um que faz da ‘tábuas da lei’ foram reveladas:
Química instrumento profissional. Assim são Doravante é newtoniano tudo o que
estes os três momentos de minha fala, com trata de leis, de equilíbrio, tudo o que
consentidas digressões. reativa os mitos da harmonia onde
Em uma leitura mais centrada em uma podem comunicar a ordem natural, a
ótica eurocêntrica da História da Ciência, se ordem moral, social e política. O su-
coloca na Revolução copernicana o nascimen- cesso newtoniano reúne desde então
to da Ciência moderna. Realmente numa lei- os mais diversos projetos. Certos filó-
tura branca, cristã, machista essa é uma pro- sofos românticos da natureza desco-
posta e não temos dúvidas para ratificar o brem no mundo newtoniano um uni-
quanto deixarmos concepções geocêntricas verso encantado, animado pelas forças
para nos tornarmos heliocêntricos foi algo mais diversas. Os físicos mais ‘ortodo-
complexo, não sem muitas dificuldades, pois xos’ vêem nele um mundo mecânico e
estas implicavam em vencer o matematizável, regido por uma força
fundamentalismo religioso e especialmente o universal. Para os positivistas é o êxito
senso comum. Não foi sem razão que de um procedimento.

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É fácil entender a convulsão do mun- Uma vez mais, esta é uma leitura
do científico de 300 anos atrás com as re- marcada por um viés ocidental. Aliás, nem
percussões dos trabalhos de Newton. A ci- se pode dizer que nessa óptica ele tenha con-
ência newtoniana é uma ciência prática: senso, até porque se atribuímos a Lavoisier o
uma de suas fontes é o saber dos artesãos título de “Pai da Química” os ingleses tem
da Idade Média e dos construtores de má- em Boyle, um século antes, como o funda-
quinas; ao menos em princípio, ela pró- dor da Química Moderna. E se atentarmos
pria fornece os meios de agir no mundo, para suas contribuições vemos que não é sem
de prever e modificar o curso dos proces- razão essa pretensão, quando, por exemplo,
sos, de conceber dispositivos próprios para a Química pneumática resolve problemas
utilizar e explorar forças e recursos mate- importantes da convivência das cidades com
riais da natureza. seus cheiros. A Química, particularmente
Ainda hoje a ciência newtoniana re- trouxe as mais significativas contribuições
presenta um sucesso exemplar. Os concei- especialmente com o tornar salubres os am-
tos dinâmicos que introduziu constituem bientes domésticos. Sempre me permito re-
uma aquisição definitiva que transforma- cordar o que deve ter significado, ainda na
ção alguma da ciência poderá ignorar, isto geração de nossos avós, o gabinete sanitário
pode ser exemplificado com o grande nú- dentro de casa.
mero de leis ou fórmulas que tem o nome Aliás, em termos de discussões e até
de Newton, situação ímpar em relação a de decisões polêmicas, permito recomen-
qualquer outro nome em toda a história dar aos interessados o livro “O oxigênio”
da ciência. recém editado no Brasil, depois de já ser
E nesta olhada talvez bastante orto- sucesso em mais de uma dezena de idio-
doxa chegamos ao século das luzes e nele mas, de autoria de dois cientistas de reno-
os químicos, usualmente colocam a certi- me internacional: Roald Hoffman – prê-
dão de nascimento da Química moderna. mio Nobel de Química por suas descober-
Uma data referência para nós é 1789, que tas sobre cinética das reações químicas e
além de ser o ano da Revolução Francesa é Carl Djerassi – detentor de duas medalhas
aquele em que Lavoisier publica o “Traité estadunidenses de Ciência e Tecnologia
elementaire de Chemie”. Muitas vezes, em pela descoberta da pílula anticoncepcional.
leituras mais rasas ou reducionistas, se co- Oxigênio é uma peça de teatro que alterna
loca a importância do trabalho de Lavoisier situações ambientadas em 1777 e 2001
na lei da conservação das massas. A revo- acerca de quem seria o real descobridor do
lução lavoiserana ocorre com significativa Oxigênio: o químico francês Lavoisier ou
contribuição que determina não apenas o o farmacêutico sueco Scheele ou o pastor
abandono da idéia de flogisto, mas especi- inglês Priestley. A edição brasileira da Edi-
almente a explicação do fenômeno da com- tora Vieira & Lent tem uma primorosa tra-
bustão e da associação desta com a respi- dução de Juergen Maar, que há não muito
ração. Estas são explicações que determi- nos brindou com excelente volume de
nam aquilo que chamamos de revolução “Pequena história da Química - primeira parte
lavoiserana. Isso é decisivo para se definir - dos primórdios a Lavoisier.”
o novo paradigma e traduz a alçada da Realizada essa leitura panorâmica da
Química como uma Ciência que tem pres- história da Ciência, queria acenar, mesmo
supostos teóricos que a faz significativa. que rapidamente para dois suportes teóri-
Saber explicar a combustão representa um cos que têm orientado minhas posturas e que
sucesso não apenas por destronar o aparecem na minha fala. Refiro-me ao livro
flogisto, mas por trazer concepções que A estrutura das revoluções científicas de Thomas
fazem da Química uma Ciência moderna. Kuhn e Contra o método de Paul Feyerabend.

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Kuhn nos ensinou uma maneira di- Latina, assim em uma nova dimensão, se
ferente de fazer Ciência. Fazer Ciência é acena para: i) o desenvolvimento em épo-
como montar um quebra cabeça. Com uma cas pré-colombianas do que chamamos
diferença: podem faltar peças e podem hoje de Arquitetura, Engenharia, Agrono-
sobrar peças. Ele nos trouxe a idéia de pen- mia, Astronomia, Hidrologia, Matemática,
sar na transitoriedade dos paradigmas. Medicina, isto é, a existência de atividades
Paul Feyerabend, que em seu polêmi- científicas relevantes. Nessa dimensão se
co livro “Contra o método” faz esta adver- indica possibilidades de outras duas leitu-
tência: nenhuma teoria pode ser desacre- ras: ii) a influência da relação da Ciência e
ditada que não possa ter algo a oferecer Tecnologia no desenvolvimento de altas
aos teóricos do futuro. Eis um bom exem- culturas na América pré-colombiana; iii) a
plo do pensamento deste assim chamado (re)valorização destes conhecimentos e téc-
anarquista epistemológico, nicas, não apenas para fazer um resgate
...dada uma regra qualquer, por ‘fun- histórico, mas numa tentativa de mostrar
damental’ e ‘necessária’ que se afigu- o quanto a recuperação de conhecimentos
re para a ciência, sempre haverá cir- (quase) perdidos podem ser importantes
cunstância em que se torna conveni- para homens e mulheres latino-americanos
ente ignorá-la, como adotar regra que vivem em situação de pobreza.
oposta. [...] Qualquer idéia, embora Mas agora queria fazer digressões
antiga e absurda, é capaz de aperfei- maiores e ver a presença da Química mui-
çoar nosso conhecimento. [...] o co- tos séculos, ou mesmo milênios, antes. Tão
nhecimento de hoje pode, amanhã, longe quanto possamos recuar vamos en-
passar a ser visto como conto de fa- contrar nos humanos que tentavam domi-
das; essa é a via pelo qual o mito mais nar a difícil arte de manter o fogo e
ridículo pode vir a transformar-se na deslindando os mistérios da cocção, os
mais sólida peça da ciência. predecessores dos químicos. Desde que um
ancestral nosso descobriu, com argúcia,
Não é sem razão que ele é chamado
que com uma vara conseguia apanhar um
em rodas mais fechadas de “terrorista
fruto de uma árvore antes inacessível quan-
epistemológico”, tendo sido chamado por
do começávamos a nos fazer humanos até
alguns físicos, mais recentemente, de “o
quando robôs já tripulam engenhos em
pior inimigo da ciência”, encabeçando uma
outro planeta nossa aurora trimilenar, os
lista em que são nomeados Karl Popper,
homens e mulheres já realizaram façanhas
Imre Lakatos e Thomas Kuhn. Prefiro es-
quase fantásticas. E aqui me permitam uma
tar ao lado de Feyerabend, e não de seus
nota de rodapé, já que falei em robôs. Hoje
críticos conservadores.
já há teólogos, quando discutem os limites
Queria trazer ainda um outro exem-
das fronteiras do humano, que questio-
plo que muitas vezes exige que revisemos
nam-se se deva ou não dar o sacramento
posições, mas ao de trazê-lo me permitam,
do batismo a robôs.
marcado pelas posturas de Feyerabend, tra-
Volto ao texto, para dizer que é um
zer um depoimento muito pessoal. Quan-
pouco dessas histórias, que procuram mos-
do escrevi A ciência através dos tempos que
trar a Ciência como uma linguagem
teve sua primeira edição em 1994, fui
construída para tentar explicar o mundo
reducionista ao me referir aos povos que
natural, que se tenta deslindar para me-
habitavam o que hoje chamamos de Amé-
lhor se poder entender a dimensão pro-
rica. Agora, há um novo capítulo, onde
posta para este congresso. Ao lado da as-
discuto a necessidade de buscar um outro
sim chamada “história oficial”, é preciso
marco zero para outras possíveis leituras
que se busque entrelaçamentos das dife-
de uma História da Ciência na América

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rentes tessituras da história da ciência com então pareciam definitivas. A marca da Ci-
a história da filosofia, das religiões, das ência de nossos dias é a incerteza. Lembro
magias, das artes e também com histórias de Ilya Prigogine, falecido em maio do ano
daqueles de quem usualmente se diz não passado - Prêmio Nobel de Química 1977
ter história. É este um pouco o convite que -, em uma afirmação categórica: “Só tenho
minha fala gostaria de desencadear, que vez uma certeza: as de minhas muitas incertezas3 .”
ou outra nos arrojemos para empreender Assim é preciso que vejamos nesta incerte-
uma apaixonante viagem na qual se tenta za a marca da pós-modernidade uma rea-
conhecer como se deu, dá e dará a cons- lidade e não um estigma. Antigamente a
trução do conhecimento. Esta situação Ciência nos falava de leis eternas. Hoje, nos
muitas vezes não é usual naqueles que se fala da história do Universo ou da matéria
envolvem com a Química como a Ciência e nos propõe sempre novos desafios que
que estuda e faz previsões das transforma- precisam ser investigados. Este é o Univer-
ções que ocorrem na matéria, mas ajuda so das probabilidades e não das certezas.
também a prever novas transformações. Mas ao lado de mudanças de postura – o
Postas estas miradas muito panorâmi- abandono das certezas para ter nas incer-
cas da História e da Filosofia da Ciência, tezas um ancoramento – há algo muito
queria convidar a cada uma e cada um dos maior que, às vezes, se faz trágico.
que vieram a Fortaleza para discutir as di- Já na metade da década passada, co-
mensões sociais da Química, para olhar- meçamos com análises acerca do século e
mos um pouco a Ciência no mundo no do milênio que se completavam. Escolhe-
qual vivemos hoje e levantarmos ram-se, então, as personalidades de desta-
questionamentos para trazermos a que, as descobertas mais importantes, os
temática central deste evento para os ce- eventos mais significativos dos períodos
nários de nossas discussões, marcada pela que o calendário dizia finalizar: milênio e
oportunidade e pela exigência de refletir- século. Eric Hobsbawm, talvez um dos
mos acerca destes assuntos maiores historiadores vivos, disse que o
É oportuno um comentário sobre a século 20, só começara com a Primeira
Ciência, especialmente se a compararmos Guerra Mundial, já terminara em 1989,
com a Ciência da virada do século do sé- com a queda do muro de Berlim e com tér-
culo 19 para o 20, quando se vivia o des- mino da divisão física entre Leste e Oeste.
lumbramento com a Ciência; o mundo Por tais encurtamentos dos limites, ele
parecia ter nas descobertas de então – ele- nominou um dos seus livros mais densos
tricidade, radioatividade, raios-X – a con- de: “O breve século 20”.
sagração de tempos que asseguravam ape- E tivemos surpresas. Recordem, quan-
nas o triunfo e a grandeza da Ciência. Ape- do no ocaso do milênio, acompanhamos dis-
sar das fantásticas descobertas havidas no cussões acerca da data mais correta para iní-
período, a Ciência de então estava assen- cio do novo século: se 1º de janeiro de 2000,
tada em muito mais certezas que a de ago- ou um ano depois: 1º de janeiro de 2001.
ra. Temos, hoje, uma grande certeza: o Hoje análises mais conseqüentes parecem
quanto temos incertezas. Aqui, já lhes trou- definir que século 21 não começou em ne-
xe uma constatação. Vivemos, com a Ci- nhuma das duas discutíveis datas, mas, mais
ência as nossas grandes incertezas. Se vocês precisamente em 11 de setembro de 2001.
me solicitassem para comparar a Ciências Muito provavelmente nenhum de nós que
de hoje com aquela de 100 anos atrás, eu aqui estamos, todos homens e mulheres que
diria que a marca da Ciência do começo
do século 20 era a da certeza. Vivia-se o 3
CHASSOT, Attico. Prigogine: profeta das incertezas.
auge de descobertas significativas e estas, Filosofia UNISINOS. v. 4, n. 7, p. 11-18.jul/dez 2003

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o calendário do mundo cristão fez seres do com pretextos até hoje escamoteados. Nes-
século passado, esquece aquela data que em te ano em 11 de março choramos quase
nossa geografia foi uma manhã primaveril. duas centenas de mortos em Madri. Há
Só referir aqui a data traz, agora, a memória, alguns dias Beslan, uma cidade da qual
de cada qual aquelas cenas que depois vi- nunca talvez houvéssemos ouvido falar nos
mos a rodo na televisão e que presentemente era tão próxima e tanto lá sofremos, que
lotam os cinemas no eloqüente Fahrenheit parecia um dos bairros de nossa cidade.
9/11. Mesmo que se possa contestar o São as marcas dolorosas da aurora
estadunidense Michael Moore quando mos- trimilenar.
tra Bush e seu arquiinimigo Bin Laden como Mas, se daquele histórico 11 de setem-
aliados de ocasião, ninguém de nós deixaria bro de 2001 muito já se chorou, com ra-
de reconhecer a um e a outro como homens zão, cerca de 3.000 mortes inocentes no
que têm visões parecidas de mundo: ambos ataque às torres gêmeas do WTC, atual-
são fundamentalistas, mesmo que no imagi- mente, a cada dia, morrem dez vezes mais
nário ocidental, possa parecer que pessoas devido à falta de água potável. Sim,
fundamentalistas sejam apenas os islâmicos. morrem cerca de 30 mil pessoas no Plane-
Todavia, não bastou reconhecermos, ta, especialmente crianças, a cada dia por
então, por exemplo, a fragilidade defensi- falta de água. Mesmo que, por exemplo,
va da cidade e dos prédios mais arrogante- os apregoadores dos transgênicos apresen-
mente prepotentes da Terra ou se definir tem soluções para a produção de alimen-
que vivíamos mais um novo episódio do tos por menor custo, assistimos o aumen-
embate ocidente versus oriente, já algumas to da miséria, com mais homens e mulhe-
vezes centenário. As cruzadas que foram res, e especialmente crianças, morrendo de
sangrentas, com batalhas entre cristãos e fome. Esse parece ser um retrato ocultado
islâmicos pareciam recomeçar. E o Ociden- do século 21, quando já se comanda robôs
te, através de um belicoso presidente que em outros planetas, se faz feéricas inaugu-
vai a desforra, anunciando uma nova cru- rações e encerramentos de olimpíadas que
zada, invade o Afeganistão em 7 de outu- em tudo rivalizam com os maiores espetá-
bro de 2001 em ações mais cruentas que culos da terra, mas também se faz guerras,
aquelas de Nova York. Pode ser coincidên- onde uma nação prepotente invade a ou-
cia, mas 7 de outubro é uma data históri- tra com pretextos dissimulados e lança
ca. Foi nesta mesma data, em 1571 a vitó- bombas que matam e que destroem como
ria dos cristãos sobre os turcos na batalha se tivesse lançando fogos de artifícios. E
de Lepanto. E, 7 de outubro passou a ser morrem inocentes por falta de água.
o dia da celebração litúrgica de Nossa Se- O sociólogo polonês Zygmunt
nhora do Rosário, instituída pelo papa Pio Bauman refere-se à existência de “resídu-
V, para recordar como o terço (e a espada) os humanos” e fala no crucial dilema que
garantiram a memorável vitória sobre os vive o Planeta diante de um fenômeno
“bárbaros infiéis”. Esta batalha esta represen- novo e sem precedentes que representa
tada no teto de uma das igrejas católicas uma crise aguda, aonde a da “indústria do
do centro de Porto Alegre. Sempre imagi- tratamento de resíduos humanos” se en-
no quanta inculcação não deve ocorrer aos contra sem condições de “efetuar as des-
fiéis durante as celebrações litúrgicas, ao cargas e sem instrumentos de reciclagem,
verem os cristãos decapitando os muçul- ao mesmo tempo em que a produção des-
manos, abençoados por São Domingos ses resíduos não diminui e aumenta rapi-
com o rosário em uma das mãos! damente em volume.” Permitam-me, aqui
Depois do Afeganistão, no ano passa- uma nota de rodapé: Bauman não está se
do o mesmo presidente invade o Iraque referindo a resíduos dos humanos, fazen-

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do que talvez se evocasse a profissão de de espera para aguardar os resultados. Al-
cubeiros, ainda presente nos anos 50 do guns minutos depois, ao invés de grandes
século 20, quando homens coletavam fe- chapas radiológicas, recebe um CD, que
zes domiciliarmente, e sim a resíduos hu- pode conter dezenas de tomadas de seus
manos, ou seja homens e mulheres trata- pulmões e neste mesmo CD consta um lau-
dos como restolhos da humanidade. do com um diagnóstico. Dirão alguns:
Esse é um outro doloroso e cruento nada excepcional, isso também já há no
lado da moeda de uma Ciência aparente- Brasil. Ocorre que este laudo, foi realizado
mente triunfadora. Há um tempo se por um pneumologista que talvez esteja em
dicotomizava a Ciência que como sendo seu consultório em país da Ásia, que por
ora uma fada benfazeja ou ora uma bruxa, ter um salário quase 10 vezes menor que
ficando no eterno duelo entre o Bem e o um médico estadunidense interpreta exa-
Mal; ao fazer outras leituras acerca da bru- mes radiológicos que lhe chegam por cor-
xaria, que estão no livro Educação reio eletrônico. Isso é um exemplo. Nós,
conSciência4 revisitados vários conceitos hoje, não sabemos mais em que país do
acerca das bruxas, passei a falar que a Ci- mundo são fabricados muitos produtos
ência era ora uma fada benfazeja ou ora que consumimos... Há um tempo a Comu-
um ogro maligno, que diferia da anterior nidade Econômica Européia advertiu a
apenas na personificação do Mal; agora, Volkswagen pois ela passara a colocar nos
abandono essa dicotomia, e adiro a uma seus carros “Made in Volkswagen” pois os
outra metáfora para Ciência, que aprendi componentes eram oriundos de tão dife-
com Colins & Pinch (2003), mesmo que rentes países que não era possível identifi-
seja mais polêmica, me parece mais ade- car em que país era fabricado o carro.
quada, dizendo que a Ciência se parece Hoje nós não mais discutimos o quan-
mais ao Golem (Goilem), aquele ente da to vivemos tempos de quase fantásticas
mitologia judaica que é descrito com um transformações tecnológicas. Não preciso
gigante de barro que desconhece sua ver- provar isso, mas a título de exercício olhem
dadeira força e se assemelha muito a um tudo que não conheciam há vinte anos
bobão, mas que tem ações, às vezes, de sá- atrás e vejam o quanto tecnologias como
bio e outras de sabido5 . telefone celular, Internet, fax, CD se incor-
Permitam-me convidá-los para olhar- poraram em nossas vidas em tempos mui-
mos juntos um pouco como ocorrem al- to recentes. Vivemos em uma época de
gumas destas situações. Eis um exemplo. rapidação em termos de mudanças. Vimos
Vou trazer para esta mirada inicialmente surgir e desaparecer profissões. Um exem-
uma cena de uma grande cidade plo: há não muito tempo, perfurador de
estadunidense, até porque nos acostuma- cartões era uma profissão que não conhe-
mos ver lá os modelos de sofisticadas cíamos; ela surge no final dos anos 70 e
tecnologias que nos são vendidos como nos anos 90 desaparece. A profissão de ti-
ícones de novos tempos. Um cidadão vai a pógrafo, que muitos de nós talvez tenha-
uma clínica para realizar alguns exames mos visto maravilhados como se compu-
radiológicos, digamos de pulmão. Realiza nha um pequeno jornal em uma cidade do
os exames com sofisticados aparelhos de interior ou um folheto em uma tipografia
Raios X e é convidado passar para a sala pelo ajuntamento de tipos de chumbo.
Recordem o que eram as agências bancári-
4
CHASSOT, Attico. Educação conSciência. Santa Cruz as há 20 anos se comparadas com os dias
do Sul: EdUNISC. 2003. atuais. Recordo ainda uma profissão que
5
Adaptado de COLLINS, Harry & PINCH, Trevor. talvez a maioria dos presentes não conhe-
O golem: o que você deveria saber sobre ciência. São Pau-
lo: Editora da UNESP, 2003. ceu, mas que foi uma das marcas de mi-

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nha infância: os cubeiros que referi em hoje já nem mais atingem aquelas e aque-
outro momento desta fala. les que pretensamente buscamos
Aceitando que houve / há / haverá fan- (re)educar. Há dias atrás precisei buscar
tásticas modificações no mundo do traba- informações sobre orkut pois desconhecia
lho, com conseqüência que parecem não aquilo que era assunto das conversas de
ser as melhores no que se refere a perdas minhas filhas. Há algumas semanas, nin-
de postos de emprego e minha fala não guém de nós sabia o que era isso, todavia,
quer ser catastrofista, não temos dificulda- só no segundo semestre deste ano o orkut
des em verificar o quanto cresce o abismo já foi assunto de reportagens na maioria
entre a Ciência e a Sociedade frente a cada da grande imprensa brasileira e mesmo em
vez maior mercantilização do conhecimen- jornais universitários. Talvez no ano que
to. Especialmente depois que a Educação vem, nem se fale mais nisso. Quem ainda
passa a ser tratada como uma mercadoria fala hoje em tamagoshi, que há uns anos
nas relações estabelecidas pela Organiza- era um brinquedo que parecia moda vin-
ção Mundial do Comércio. Aqui caberiam da para ficar.
extensas análises, mas fico apenas com Sim, são essas situações paradoxais do
apenas uma sinalização destas situações. Planeta que envia sondas espaciais a ou-
Cada uma e cada de nós, conhece o tros planetas ou onde já há um país que
quanto é cada vez maior o fosso entre o pôs em marcha, no início deste mês, um
conhecimento científico e a maioria da ambicioso sistema de vigilância por satéli-
população. Não tenho pudor em dizer que te, para controlar em detalhes os movimen-
mesmo envolvido com estudos de Quími- tos de pessoas condenadas por delitos se-
ca há tantos anos, hoje quando recebo cer- xuais e contra a propriedade que me le-
tas revistas de Química, mesmo que escri- vam a incluir exatamente o questionamento
tas em português, consigo, às vezes ler pro- à Ciência e à Educação no cenário desta
dutivamente, um em cada dez artigos. As- noite festiva. Mesmo em um evento festi-
sim, é fácil de imaginarmos, o quanto o vo como é solenizar a abertura desse XLIV
saber científico que produz o bem estar tem Congresso Brasileiro de Química é preciso
na distribuição de seus resultados, situa- por primeiro olhar esse mundo que nós
ções que cada vez torna mais desigual as ajudamos a transformar, especialmente
relações daqueles que lhes usufruem as quando estamos aqui para fazer com que
benesses. essas transformações sejam para melhor.
Hoje o que distingue os pobres (pes- Hoje temos uma necessidade de es-
soas ou países) dos ricos não é só que pos- tando no nosso mundo local vivermos
suem menos bens, mas é fato de que a numa dimensão global. Mais do que isso,
grande maioria deles está excluída da cria- nós precisamos estar cada vez mais aten-
ção e dos benefícios do saber científico. tos naquilo que ocorre no mundo maior.
Mas este saber científico está muitos Todavia, não podemos deixar de ser paro-
vezes indisponível também para muitos de quiais para sermos globais, pois é também
nós que pertencemos à elite que freqüenta no nosso mundo menor que se faz a inser-
bibliotecas, têm Internet, usa TV a cabo. ção na teia global.
Muitas vezes, sem que nos demos conta Mas queria mostrar-lhes também o
nos tornamos também excluídos. Assim, quanto essa globalização é orquestrada.
permito-me enfatizar o quanto também Volto às tristezas daquela sexta-feira, dia 3
nós temos que reaprender uma nova lin- deste mês, quando nos comovíamos com
guagem, para que não falemos a ouvintes as notícias das centenas de mortes resul-
surdos. Há de nossa parte um verdadeiro tantes dos ataques terroristas em uma es-
aprendizado, pois muitas de nossas falas cola russa por separatistas tchetchenos.

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Naquele mesmo dia, lamentávamos tam- de uma Ciência exata, asséptica e responsá-
bém o incêndio na biblioteca Anna-Ama- vel por modificações tão importantes na área
lia, em Weimar (Thüringe) - a célebre bi- tecnológica. O que temos nós a ver com esse
blioteca que detinha a mais importante mundo, que parece particularmente marca-
coleção de obras de Goethe do mundo —, do pelos paradoxos que antes descrevi?
quando cerca de 40 mil livros foram atin- Com modificar um pouco um cenário
gidos pela água ou pelo fogo, dos quais 30 sombrio? Mesmo olhando tudo isso parece
mil livros foram irremediavelmente perdi- que possamos, ainda assim, aderir uma vez
dos, entre os quais uma preciosa coleção mais a Bauman, que já referi antes, em en-
de Bíblias. A mínima divulgação que se deu trevista ao Correio Brasiliense no último sá-
a este triste fato, evidencia a dimensão da bado de agosto dizia: “Não concordo que a
não valorização da cultura. Imaginem humanidade está em decadência ou mesmo defi-
como repercutiria se houvesse incendiado, nhando... A humanidade é tão perene que pode-
por exemplo, um estádio de futebol. ria agüentar até mesmo o mais rude inverno. Não
Quando olhamos tudo isso surgem concordo que nós - a geração atual da humani-
interrogações. Temos presente, a cada dia, dade - somos menos humanos que as gerações
nos noticiários, com relatos de uma gama precedentes. Somos cada vez mais sensíveis e me-
muito grande contravenções que vão des- nos tolerantes ao sofrimento humano; tendemos
de bem bolados contos do vigário, seqües- a reclassificar males antes considerados como ine-
tros muito bem tramados, moradores de rua vitáveis. As privações e situações indignas. antes
sendo assassinados enquanto dormem em vistas como” parte da vida “, hoje são injustiças
calçada gelada, seqüestros de humanos ur- que devem ser combatidas e reparadas. O conteú-
didos com perfeições, invasões de hackers do da” humanidade “alarga-se e aprofunda-se.”
a sistemas até então muito seguros de ban- Hoje, pela instantaneidade dos meios de co-
co de dados... a pergunta é: os autores des- municação, sabemos cada vez mais sobre o
tes atos, muitas vezes envolvendo sofrimento humano em lugares geografica-
engenhosidade mirabolante, que desafiam mente distantes. Assim, há alguns dias, uma
os conhecimentos dos mais expertos dos cidade da qual nunca talvez houvéssemos
que me ouvem aqui, não foram alunas e alu- ouvido falar nos era tão próxima e tanto lá
nos de excelentes escolas e até freqüenta- sofremos, que parecia um dos bairros de nossa
ram as mais qualificadas universidades? Não cidade. Realmente temos um problema: este
terão muitos deles inclusive feito Pós-gra- é, onde encontrar, ou melhor, como cons-
duação? Onde estaria o papel da truir ferramentas eficazes e estratégias para
“salvadora” Educação? E então, para que transformar os sentimentos humanos de
serve a Educação que fazemos? Ainda, há compaixão em ações efetivas.
poucos dias, ouvia uma interessante Cada uma e de cada um que está aqui
enquete acerca da genialidade daqueles que esta noite tem nisso, talvez, um dos seus
bolam os contos do vigário. Sempre me ima- encargos maiores, pois este é o maior de-
gino o quanto estudaram aquele que bola- safio de nosso século: tentativas de cons-
ram o cinematográfico e dolorosamente trá- truirmos ferramentas eficazes e estratégi-
gico 11 de setembro. Muito provavelmente as adequadas para transformar os senti-
foram formados nos mais respeitados cen- mentos humanos de compaixão em ações
tros de engenharia aeronáutica. efetivas. É isso que deve redirecionar traje-
Adendro, assim, a terceira e última par- tórias e encontrar novas dimensões den-
te da fala que propus para esta noite. Como tro das propostas que se deu para fazer
vamos inserir o humano na dimensão de deste Congresso um momento de reflexão
homens e mulheres envolvidos com a Quí- sobre nossas responsabilidades de homens
mica, em geral apresentada numa dimensão e mulheres que se envolvem com a Quími-

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ca. Este XLVI Congresso Brasileiro de Enuncio uma utopia, paradoxalmen-
Química nos faz um chamamento para te, factível e inexeqüível: o convencimento
borrar fronteiras que antes nos restringi- de toda a comunidade envolvida com a
am ações e nos alerta para novos territóri- Escola de que cada nível de escolarização
os para nossas ações profissionais. Há es- formal se completa em si, isto é, a escola
paços diferentes daqueles que usualmente infantil não é preparação para o ensino
nos faziam profissionais. Agora, nos cons- fundamental e este não é preparação para
tituímos cada uma e cada um também ensino médio, como também este não é
como sujeitos pedagógicos nos shoppings, preparação para o ensino superior. Tive
nas fábricas, nos presídios, nos acampa- uma meteórica passagem como diretor de
mentos dos sem-terra, nos que vivem nas uma das mais abastadas Escola de Porto
ruas... E esses sujeitos pedagógicos que Alegre. Defendia com convicção essa pro-
refiro não são apenas aquelas e aqueles que posta. Se algum dia, na história daquela
se dedicam ao ensino formal, mas são cada escola se falar de meu nome entre aqueles
uma e cada um que veio a este congresso. que foram diretores da mesma, se dirá
E nestes possíveis lócos de ações para as Chassot, o breve, não durou seis meses. É
quais me permito repetir que temos um muito fácil imaginar o quanto uma propos-
desafio: procurarmos tentativas de cons- ta como esta não tem a adesão entre pais
truirmos ferramentas eficazes e estratégi- cujo sonho é ver o sucesso dos filhos sig-
as adequadas para transformar os senti- nificado pelo ingresso numa Universida-
mentos humanos de compaixão em ações de (pública).
efetivas. A propósito, deixem-me manifes- Trago uma ultima interrogação: Para
tar minha alegria dizendo-lhes que já há que(m) é útil o ensino? Escrevi um livro com
mais de 10 anos tenho envolvimentos na este título7 . Queria propor - mesmo que
formação de professoras e professores para possa parecer reducionista - que aceitemos
os assentamentos e acampamentos do ser a Ciência uma linguagem para que
MST. Os direitos autorais do livro Alfabeti- possamos entender o mundo natural em
zação científica: questões e desafios para a edu- que vivemos. Mais ainda, que essa lingua-
cação6 , em suas três edições são do Depar- gem é construto humano, e mostro no li-
tamento de Educação do MST. vro A Ciência é masculina?8 é uma constru-
Quando proponho o encaminhamen- ção muito mais de homens que de mulhe-
to de minha fala para seu final não posso res. Permito ainda recordar o quanto esse
furtar-me a trazer contribuições da Edu- construto humano é falível e tem verdades
cação nas dimensões que antes propus. apenas provisórias.
Antes de fazê-lo devo repetir que não es- Então, cabe a pergunta: por que ensi-
tou excluindo nenhum dos presentes nas namos Ciência? E, muito provavelmente,
responsabilidades se fazer Educação, pois não se faz isso para que tenhamos homens
cada vez mais temos que valorizar a Edu- e mulheres que saibam, com os conheci-
cação que se faz fora da sala de aula. Mas mentos de Ciências que têm, ler melhor o
agora vou trazer algumas considerações mundo em que vivem. Ainda é preciso ir
pensando mais especialmente na Educa- além: o ensino das Ciências precisa ajudar
ção formal. Serei breve, mas gostaria de para que as transformações que se fazem
compartir algumas idéias que poderão pa- nesse mundo sejam para que um maior
recer nada ortodoxas.
7
CHASSOT, Attico. Para que(m) é útil o ensino? Cano-
as: EdULBRA. (2ª ed.2004). 1994.
6
CHASSOT, Attico. Alfabetização científica: questões e de- 8
CHASSOT, Attico. A Ciência é masculina? São
safios para a educação Ijuí: EdUnijuí. (3ª ed.2003). 2000. Leopoldo: EDUNISINOS. 2003.

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número de pessoas tenham uma vida mais cio de uma cidadania mais crítica. A Quí-
digna. É para isso que se busca hoje fazer mica que ensinamos deve ajudar a trans-
uma alfabetização científica. Nossos alunos formar o mundo, mas transformá-lo para
e alunas, assim, não precisam aprender, por melhor. Não é sem razão que se tem reco-
exemplo, o que são isótonos ou a classifi- mendado às professoras e aos professores
cação taxionômica de um vegetal ou defi- que ensinem menos, mas que os poucos
nições do número um, quase incompreen- conteúdos escolhidos tenham uma real
síveis para os maiores expertos em álgebra. utilidade na vida de alunas e alunos. Aqui
Alguém dos presentes, e vou ficar com um talvez surpreenda a alguns de meus ouvin-
questionamento de nossa área, já precisou tes. O ensino fundamental e o ensino mé-
um dia saber o que são isótonos, salvo para dio não são para formar cientistas.
responder alguma pergunta destas que tes- Parece que merece ser questionado,
tam conhecimentos inúteis. Mas os alunas liminarmente, se essa alfabetização científi-
e alunos de escolas do ensino fundamen- ca seja algo próprio, ou melhor, seja de in-
tal do interior deste Brasil sabem... Esse é teresse apenas daqueles que estão direta-
um dos muitos exemplos de conhecimen- mente ligados à Ciência. Usualmente, co-
tos inúteis que poderíamos amealhar com nhecer a Ciência é assunto quase vedado
facilidade. àqueles que não pertencem a essa esotérica
Luta-se, cada vez mais, para superar comunidade científica. Quanto mais ensi-
tempos em que não se escondia o quanto narmos conhecimentos inúteis, que servi-
a transmissão (massiva) de conteúdos era rão para serem vomitados em avaliações de
o que importava. Um dos índices de efici- conteúdos, estaremos excluindo mais pes-
ência de um professor – ou de um trans- soas do acesso da alfabetização científica,
missor de conteúdos – era a quantidade e assim de uma cidadania crítica.
de páginas repassadas aos estudantes, os Afortunadamente, nos damos conta
receptores. Era preciso que os alunos se – e isso é algo bastante recente – do quan-
tornassem familiarizados (aqui, familiari- to há necessidade de aqueles que ensinam
zar poderia até significar simplesmente disciplinas escolares, especialmente aque-
saber de cor) com as teorias, com os con- las da área de Ciências, fazerem a migra-
ceitos e com os processos científicos. Um ção do esoterismo para o exoterismo, dife-
estudante competente era aquele que sa- rentemente do que defendem alguns, que
bia, isso é, que era depositário de conheci- preferem ver valorizados uns conteúdos
mentos. Talvez mais de um de vocês po- elitistas, assépticos e dogmáticos,
derá recordar quantos conhecimentos inú- desvinculados da formação pedagógica.
teis amealhou - especialmente quando fo- Cabe também a cada uma e a cada um dos
ram feitas as primeiras iniciações na área envolvidos com a Química ajudar a tentar
das Ciências -, e há muito, afortunadamen- abrir a caixa preta em que os cientistas -
te, os deletou. Quantas classificações botâ- com sua linguagem hermética e esotérica
nicas, quantas famílias zoológicas cujos - converteram a Ciência.
nomes ainda perambulam em nossas me- É necessário mostrar que a Ciência
mórias como cadáveres insepultos, quantas não descobre o mundo, mas o quanto é o
configurações eletrônicas de elementos mundo que a descobre. O mundo é (existe)
químicos, quantas fórmulas de Física independente da Ciência. Esta é uma cons-
sabidas por um tempo - até o dia de uma trução humana, que torna inteligível nos-
prova, de uma olimpíada ou de um vesti- so ambiente, e a tecnologia, como aplica-
bular - e depois desejadamente esquecidas. ção da Ciência, modifica esse mundo. Por
Talvez hoje nosso maior desafio seja pro- exemplo, a produção de energia elétrica a
curar ensinar algo que sirva para o exercí- partir de uma queda d’água ou do apro-

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veitamento de ventos é o resultado de uma sões. Algumas delas que podem se conver-
aplicação de conhecimento acerca da na- ter em realidades.
tureza do mundo natural. Isso transforma Ao encerrar gostaria de agradecer
o mundo natural, mas não altera a sua uma vez mais o convite. Fui desafiado por
essencialidade, por exemplo, em termos do várias semanas buscando essas reflexões.
princípio da conservação da energia. Presunçosamente penso que levantei pis-
Assim, parece ser mais difícil, muito mais tas. Sonho, que entre o muito enriqueci-
complexo, ensinar Ciências – e fico na minha mento cultural e científico que cada uma
área, mas provavelmente terei adesão de edu- e cada um amealhará nesse congresso - e
cadores de outras áreas do conhecimento – essa é a razão principal pela qual viemos a
no Ensino Fundamental ou no Ensino Mé- esses eventos - possamos, também, definir-
dio do que no ensino superior. Aceita essa tese mos tentativas de construção de ferramen-
seria fácil defender algumas exigências utó- tas eficazes e estratégias adequadas para
picas acerca de titulação e, principalmente de transformar os sentimentos humanos de
remuneração muito diferenciada por níveis de compaixão em ações e encontraremos en-
ensino daquela que se tem hoje. tão novas dimensões de homens e mulhe-
Trouxe algumas teses, talvez de acei- res que se envolvem com a Química e as-
tação difícil, mas que esforços não sim, talvez, garantamos para um maior
intransponíveis, pretensiosamente acredi- números de homens e mulheres se torna-
to que pode marcar algumas das discus- rem cidadãos e cidadãs mais críticos.

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