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As ideias chave de “Uma hora com José Saramago”

à conversa com Ana Vieira de Almeida

“O segredo do Homem é a infância” Dr. João dos Santos


“Deixa-te levar pela criança que foste” José Saramago

2º Encontro "Transições - da 1ª infância à adolescência", em 8 e 9 de Junho de


2000. As Actas foram publicadas em 2002

JS - O livro sobre a minha infância, esse livro que se chamará o “Livro das tentações” e
que tem muita coisa escrita, mas está muito longe do fim, esse vai ter de esperar ainda
um ano ou talvez dois. Neste momento estou ocupado a tentar acabar, espero que
consiga lá para o Verão, um romance que andava já há dois anos na cabeça e que só
a partir do mês de Dezembro é que pude sentar-me a trabalhar. Não sei se sabem que
a primeira condição para escrever é sentar-se. Enquanto a gente não se senta, não
escreve. É certo que o Eça de Queiroz parece que escrevia de pé, e o Fernando
Pessoa também. Mas eu preciso de estar sentado. E só depois deste é que será a vez
do “Livro das Tentações” que, por um lado é um livro que eu quero escrever mas que
por outro lado é um livro que me custa, que eu sei que me vai custar escrever, a julgar
pelo que me custou, de uma certa maneira, os apontamentos que tenho, as notas, as
recordações, as memórias. Como eu tendo a não idealizar nada, e por isso sou sempre
acusado de céptico e de pessimista, também há uma coisa que eu não sou capaz de
idealizar que é a infância em geral, e em particular, a minha. Então, se é certo que vão
aparecer nesses livros, e suponho que são momentos agradáveis, e são agradáveis
praticamente aqueles que eu vivi na aldeia, é certo que vão sair coisas muito tristes,
muito desoladoras, daquelas que podem , e com certeza aconteceu isso comigo, ter
efeitos negativos na formação de uma criança. Mas isso logo saberemos, logo
saberemos.
Como sabem, ou creio que sabem, de certo modo é um livro de memórias, as
memórias que uma criança até aos 14 anos pode ter guardado de si mesma, daquilo
que viu, daquilo que sentiu, daquilo que pensou, daquilo que imaginou, das alegrias e
dos sofrimentos, e tudo isto feito aos setenta e muitos anos. Portanto, há um risco
gravíssimo que é esse de olhar para esse tempo, quando nós queremos por força que
esse seja o da idade de ouro. E isso é falso, só há outra idade pior que a infância, que

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é a adolescência, embora julguem que não, eles mesmo estão convencidos que sim,
embora ache que eles, os adolescentes, começam a suspeitar que não. Então, é essa
história, até aos 14 anos. Recordar, e curiosamente nesse trabalho de escavação na
minha própria memória, apareceram nomes, pessoas, figuras, situações, que eu
julgava completamente esquecidas. É só até aos 14 anos, porque, a partir daí tinha que
ser, necessariamente, outra história que eu não estou interessado em contar. Não é
porque não pudesse. Como não me aconteceu nada de excepcional, a minha vida foi
sempre uma vida muito banal, não me aconteceu nada de muito importante. O que
aconteceu foram coisas banais a que eu dei importância e isso sim, mas sou só eu que
lhes dou importância, para toda a gente serão banais, sei lá, uma noite no campo, ou
um amanhecer, um rio, um barco, essas coisas, uma sombra, um pássaro, tudo coisas
de todos nós, podem de facto transformar-se em elementos quase de “formação
espiritual”. Isto vai entre aspas, porque, entre as coisas que eu detesto está a retórica,
neste sentido.
A partir dos 14 anos, o que é que teria ? As namoradas, as inquietações sexuais,
alguma crise religiosa que eu não tive, mas que eu podia inventar. Não, não interessa.
Para mim, o que fundamentalmente interessa é essa idade da autêntica descoberta. A
partir dos 14 anos eu acho que o mundo já está descoberto. Pode não se conhecer a
teoria da relatividade, nem os quanta, mas o mundo já o temos.
A gente não descobre isto de uma vez, não é a mesma coisa do que chegar às costas
do Brasil e dizer:” Olha o Brasil, acabei de descobri-lo agora”. Não, é uma descoberta
de todos os dias, de todos os minutos, são mil sensações, são mil ideias que nem
sequer são ideias, porque uma criança não se põe a pensar naquilo que viu. Uma
criança vê uma rã e não fica a olhar, recebe a rã, incorpora a rã…
Eu talvez seja capaz de explicar isso com meia dúzia de palavras que constituem a
epígrafe do tal “Livro das Tentações”.
O título também não é para levar muito a sério. As tentações aí, nesse âmbito, no
âmbito daquilo que ele trata, no fundo, é porque o mundo se apresenta aos olhos de
uma criança, ou pelo menos, eu entendi-o assim, como uma infinita tentação. E não é a
tentação óbvia da gulodice, ou de tirar do bolso do pai vinte e cinco tostões – eu
também fiz isso – mas é a tentação de que há qualquer coisa que está por fora de nós
e que nós não sabemos. É a grande tentação. Provavelmente, há qualquer coisa de
demoníaco nisto, porque, no fundo, é a tentação do conhecimento. Deus não quer que
a gente conheça, “olhai os lírios do campo, etc., etc.”, ao passo que o demónio não, o

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demónio é o instrumento, que é o espírito que nega, segundo diziam, agora já não há,
o Papa já disse que não há, é esse apetite do saber, o apetite do conhecimento, que
nem sequer passa por nenhuma elaboração intelectual, passa só por isto: aquilo que
está ali eu não sei o que é. E quando vai tentar saber, não vai com os instrumentos do
conhecimento científico, por exemplo, de que não dispõe. É como que uma tentativa de
passar para o lado de dentro das coisas, continuando do lado de fora, evidentemente.
Ou uma forma de passar as coisas para o lado de dentro, sem essa reflexão prévia. É
receber a impressão. Isso vai mobilando, de uma certa maneira, o espírito dessa
criança. Mais tarde, tudo isso se vai organizar, mas com uma condição. E, se calhar,
esse segredo, como o Dr. João dos Santos lhe chamou, vamos então revelá-lo. Na
epígrafe do tal “Livro das Tentações” ( eu até costumo dizer que a substância de um
qualquer dos meus livros está no título e na epígrafe, o resto não vale a pena ler...) A
epígrafe diz isto : “Deixa-te levar pela criança que foste”.
Eu sei isto, porque não me esqueci de quem fui.
Vamos lá a ver: eu creio que, se alguma coisa fiz na minha vida de bom, foi tomar a
minha vida até hoje, como uma bloco inteiro. Não é que não haja “vidas”. Nós não
vivemos uma vida, vivemos várias vidas. Mas, eu não sei, não estou no espírito das
outras pessoas, não sei o que lá se passa, mas julgando pelo comportamento, os
adultos, provavelmente sem dar conta disso, uma das primeiras operações que fazem,
ou que consideram necessárias para entrar na idade adulta, e na responsabilidade dos
adultos, e nos direitos dos adultos, é esquecer a criança que foram, e, se possível
matá-la, a criança não existiu, eles já saíram armados e equipados da cabeça de
Júpiter. Com a criança que foram, e, nem sequer com o adolescente, não têm nada
que ver. E, por isso, olhamos para eles, e temos dificuldades em vê-los como crianças.
Já nasceram assim.

Comigo não é nenhum mérito especial, é uma questão de temperamento, de feitio,


como se dizia dantes, e provavelmente, com esta vida já longa minha, e como se diz
que as vidas tendem a completar um ciclo, eu vou-me aproximando, cada vez mais,
dessa infância.

E, quando eu olho para esse miúdo, para esse garoto que, enfim, não teve uma vida
nada fácil, pelo contrário, até bastante difícil em alguns aspectos, não em todos, apesar
de tudo, que viveu lá na aldeia, e que viveu em Lisboa, que até aos 13 anos viveu em

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partes de casa, onde havia 3 ou 4 famílias, sempre, com as mulheres todas na cozinha,
a fazer a comida, a discutir, em bairros populares, com coisas um pouco mais
negativas do que isso, que eu não quero chamar aqui, porque me doem demasiado,
mas que provavelmente aparecerão no “Livro das Tentações”, isso tudo coisas que,
como são tão negativas as pessoas tendem a esquecer. E eu não quero esquecer, não
quero esquecer nada.
O que eu quero dizer, quando digo que a minha vida foi um bloco, este bloco, não é
porque tenha que o ser por coerência. Normalmente tomamos a coerência como um
factor sempre positivo, e não é. O assassino profissional é coerentíssimo no seu
comportamento. Eu olho para trás e vejo a minha vida toda e como qualquer coisa em
que cada parte necessita das outras partes, senão não tem sentido. Quer dizer, se eu
olho agora para o homem que sou, e para o momento em que estou, 77 anos, e, se me
permitem, Prémio Nobel de Literatura, eu tenho que perceber que o homem que eu sou
e tudo aquilo que me acontece, e algumas coisas boas, e extraordinárias, me têm
acontecido nos últimos anos, isso tem uma raiz, uma raiz que, em princípio, nega tudo
isso, ou que, em princípio, seria impeditiva de que tudo isso acontecesse.

Eu lembro-me de, quando tinha os meus 17 anos, e agora já estamos em plenas


transições, 16 ou 17 anos, dizer assim: “O que tiver de ser meu, às mãos me há-de vir
ter”. Aos 17 anos ninguém diz isto, é a altura dos projectos, das ilusões, mas eu disse.

E, nos últimos anos, cheguei a esta conclusão, de que essa frase está certa e
corresponde a um retrato, a um dos retratos possíveis da minha vida.

Nunca tive nenhuma ambição, nunca projectei nenhuma espécie de carreira, nunca fui
uma pessoa de dizer assim: tenho este projecto, vou fazer isto para chegar àquilo. O
que é surpreendente hoje, porque toda a gente hoje, ou quase toda a gente tem um
fito, tem algo a que chegar, pode isto parecer estranho. Mas foi efectivamente assim.

Mas a essa frase: “o que tiver de ser meu às minhas mãos me há-de vir parar”, há que
acrescentar, coisa que naquela altura eu ainda não saberia, mas que depois com o
tempo vim a saber : “ o que tiver de ser meu, às mãos me há-de vir parar... se eu fizer
todo o trabalho necessário”. Mas uma coisa não empata a outra...

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E a isto em sequer lhe poderíamos chamar uma convicção. Uma convicção precisaria
de algo mais sólido do que esta espécie de pequena iluminação, que, no fundo, tem
que ver com o meu próprio temperamento – melancólico, muito metido consigo, agora
dizemos “ensimesmado”, que é uma palavra horrível, com uma certa dificuldade de
entender-me com as pessoas, nunca fiz muito mal a muita gente, talvez tenha feito mal
a algumas pessoas, e isso é impossível que assim não seja...

Só assim é que se pode entender que eu tenha publicado um romance, que não é nada
de extraordinário, aos 25 anos, e que o escrevi aos 23, tenha decidido ficar 20 anos
sem publicar nada. Se eu estivesse a apontar-me a uma carreira de escritor, pois
então, escrevia outro, e mais outro, e outro. Mas só voltei a publicar outro livro em
1966, quando tinha 44 anos já, o que é uma idade em que os escritores, apesar de não
terem a sua obra acabada, a têm muito adiantada. E eu não tinha nada. E mesmo em
1975, quando eu perdi o emprego no Diário de Notícias, Novembro de 1975, 25 de
Novembro, sub-director, ou melhor, como então se dizia, director-adjunto do Diário de
Notícias, José Saramago na rua. E o José Saramago não teve ninguém que lhe
dissesse: ”estás desempregado, queres um emprego?”. Ninguém, ninguém, ninguém.
Se, naquela época havia uma ovelha negra, eu era precisamente uma delas.

E, então, foi aí que eu disse para mim mesmo : “ Bom, tens 53 anos, 4 ou 5 livros
publicados, tens que ver o que podes fazer”. Não fui procurar emprego. E foi assim,
parece que isto nega aquilo que disse. É como se eu não tivesse tido pressa de chegar
aonde quer que fosse. Tive a sorte de ter vivido muito. E finalmente, aconteceu o que
aconteceu.

Estou, hoje, aqui a falar com pessoas que destas matérias sabem infinitamente mais do
que eu e são tão tolerantes que até se reuniram todas para me ouvir sobre coisas que
eu não conheço...

Mas a verdade é que eu não me preocupo assim tanto com as crianças, por muito
chocante que isto possa parecer. Aquilo que me preocupa é o ser humano. Porque é
que eu tenho que me preocupar mais com as crianças, ou com os adolescentes, ou os
adultos, ou os moribundos. As crianças não existem, não há crianças, ainda não
passaram a ser outra coisa.

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Somos tentados a fixar um estado, como se ele fosse qualquer coisa de estável, de
significativo em si, qualquer coisa que tivesse em si mesmo o princípio, o meio e o fim,
e eu não vejo assim. Parece que estou a ser desagradável, mas a criança é um
momento da vida do ser humano. O pinto é um momento da vida da galinha ou do galo,
o cachorro é um momento da vida do cão, somos momentos. E, além disso, quando é
que a criança começa? Porque a criança de que estamos a falar aqui não é aquela que
tem 3 dias e está ao colo da mãe, estamos a partir em fragmentos qualquer coisa que
não pode ser fragmentada. No fundo, é como se fosse uma peça única, que tem
tonalidades de cor diferentes, que passa de uma cor a outra, e isso é a passagem do
tempo, e as transformações de um ser que vão acontecendo.

Mas a pessoa é uma só, a criança interessa-me na sua relação com o lugar onde está,
com as pessoas com quem vive, de quem é beneficiária, ou de quem é vítima. Essa
tendência que passou da criança-mártir à criança-rei, isso é um lugar comum, mas que
no fundo corresponde a esta realidade. E se tudo é filho de tudo, embora isto não seja
uma coisa mecânica, damos conta que há umas coisas que parecem impositivas, há
outras que não são tanto. Depois dizemos a criança, depois o adolescente, umas vezes
percebemos que estamos a falar da mesma coisa, outras vezes não percebemos e
queremos estar a falar de duas coisas diferentes, e não estamos. Se realmente há aqui
uma filiação contínua, em que tudo é filho de tudo, então o adolescente, o problemático
adolescente do nosso tempo, é descendente directo da criança, normalmente, não direi
rei em todos os casos, mas normalmente rei.

De que crianças estamos a falar ? Das desprotegidas, para entrarmos por esta
linguagem, aí vamos fazer passar uma criança que vive em condições, enfim, más, e
vamos dar-lhe outras condições, acarinho, educação, alimentação, tudo isso. Mas não
estamos a fazer tudo. Há uma altura em que nós não podemos resolver o problema
das pessoas, individualmente consideradas, se não dermos uma volta à sociedade em
que estamos a viver.

Às vezes, falamos em família, e ou a vemos pelo lado cor-de-rosa, ou a vemos pelo


lado negro. E, quando falamos da família assim, estamos a falar de uma abstracção.
Essa família é constituída por pessoas, pessoas que têm laços sociais, pessoas que

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vivem dentro da família, e fora dela. Há um processo muito complexo, que nós
tendemos a isolar, para não nos perdermos nele, e eu julgo que é uma questão de não
perder a direcção, e depois dizemos: a criança, o adolescente, a família, a escola, isto
e aquilo e o outro...

E isto, no fundo, tem uma relação muito íntima com aquilo que eu disse, quando digo
que a criança que eu fui é tão minha hoje, como eu não era dela então, porque eu
ainda não tinha crescido. Mas eu conservo essa criança.

Essa frase que eu disse que é a epígrafe do “Livro das Tentações”, explica tudo:
“Deixa-te levar pela criança que foste”. E isto vaia mais longe. Imaginemos, agora, que
nós andávamos toda a nossa vida, não um, mas dois : cada um de nós e a criança que
foi, levada pela mão. Era uma situação curiosa, essa. Que responsabilidades tínhamos
nós em relação a essa criança que foi ? Como é que essa criança, que era, estaria a
olhar para nós ? Que juízo faria de nós ?

E isso não é impossível, basta não a esquecer.


Eu tenho uma tese, que é perfeitamente a-científica, que é a de que “quem é, nasce
feito”. Agora que já está prestes a ser decifrado o chamado genoma humano, parece
que já sabemos tudo. Até sabemos que certas doenças são provocadas por um gene
mal comportado, é o determinismo total, estamos determinados a ser determinada
coisa, porque a nossa árvore genética determina a coisa assim.
A minha família, camponeses, pastores, gentes do campo, analfabetos, praticamente
todos eles. A minha mãe nunca aprendeu a ler. Quando eu a quis ensinar a ler, ela
punha-se a rir e dizia que não achava graça nenhuma àquilo. Quer dizer, achava tanta
graça que se ria. O meu pai, de curtas letras, os outros todos analfabetos. Nasci lá na
Azinhaga, nessa casa com chão de barro, ao lado de porcos, todas essas coisas que
eu não quero estar agora a idealizar, mas que são factos.
Onde é que entra aí o Prémio Nobel ?

AMVA - Sabe onde entra?

JS - Se você sabe, não vão faltar Prémios Nobel em Portugal...

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AMVA - Eu julgo que sei. Entra num avô, de quem diz...

JS - Mas não, há que contar com a parte de idealização com que o neto procedeu em
relação ao seu avô...

AMVA - Porque é que me está a decepcionar tanto? Do seu avô disse que “o homem
mais sábio que conheci em toda a minha vida, não sabia ler nem escrever”. Este
homem é tão sábio que lhe conta histórias à noite. É capaz de me dizer quantas
crianças têm a sorte de dormir, à noite, debaixo de uma figueira, com um avô sábio,
que lhe conta histórias?

JS - Há coisas verdadeiramente extraordinárias, no caso desse meu avô, e quando eu


digo o homem mais sábio que eu conheci não sabia ler nem escrever, de uma certa
maneira sim, dessa sabedoria que, provavelmente não serve para nada, senão para
criar ideias de uma possibilidade de qualquer coisa melhor do que aquilo que temos,
não de uma certa ignorância, não estou a defender a ignorância, mas pensamos que
talvez o excessivo conhecimento nos aparte de uma certa forma de ser um ser
humano, talvez nos tornemos demasiado frios, demasiado objectivos, demasiado
práticos, tudo isso, não sei, não tenho a certeza.

Agora, a mim, o que me deixa quase aterrado, porque de facto não encontro nenhuma
explicação, não é que o meu avô me tivesse contado histórias, não é que estivessemos
a dormir debaixo da figueira, não é que eu saísse às 4 da manhã com o gado, o que
me deixa assombrado, e quase aterrado, porque é qualquer coisa quase que me
provoca uma espécie de pânico, é como é que este homem, quando percebeu que ia
morrer foi ao quintal abraçar as suas árvores e ir-se embora. Ninguém faz isto ! Em
princípio não se faz. Está-se demasiado preocupado com a morte próxima... Além
disso, nem sequer era um homem que quisesse deixar a vida com uma frase de efeito,
ou com um gesto de efeito. Não, ele não estava a pensar nisso, não lhe passou pela
cabeça que o neto viria a contar isso. Ele, simplesmente desceu os degraus para o
quintal, o carro que o ia levar à estação já à porta, e ele foi ao quintal, despedir-se das
2 ou 3 figueiras, das oliveiras, das abrunheiras, que eram, no conjunto, umas 10 ou 12
árvores, provavelmente, nem se despediu de todas, abraçando-se a elas e a chorar.

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De repente, aquele homem, parece que nasceu para fazer isto. E é o ter feito isto, que
o engrandece. De repente, este homem ganha uma dimensão com a qual não sonhou
nunca, e que se lhe contassem que a teria, nem acreditaria, porque toda a vida atrás
de porcos, filho enjeitado, foi posto na roda da Santa Casa da Misericórdia em
Santarém, não sabia quem eram os seus. Este homem que tem tudo contra, faz, sem
um projecto, movido não se sabe por quê, talvez movido até pela sua própria
perturbação mental, talvez seja um transtorno mental que já está a passar-se nele que
o leva a fazer aquilo. Não se diz que os génios são loucos ? Pois, aqui podíamos ter
um caso de um homem que, em estado normal, a 100% não o faria... Agora se eu
quiser fazer uma coisa igual, lá no meu jardim, em Lanzarote, toda a gente dirá que eu
estou a copiar o meu avô... Há uma coisa certa, é que eu falo muito com as minhas
árvores, tenho lá umas quantas árvores...
Nós falamos sempre, estamos sempre a falar.

AMVA – Será por isso que afirma sempre que, sem ouvir uma voz que diz o que vai
escrever, o livro não se faz?

JS – Isso é um problema técnico. Isso é um puro problema técnico...


Vamos pôr as questões no seu sítio. Quando eu digo que o livro não avança, enquanto
não ouvir a voz que estaria a dizê-lo, isso compreende-se, uma vez que eu quero que o
leitor o leia como se estivesse a ouvi-lo. Então eu tenho que estar a ouvi-lo para poder
escrevê-lo, isto é perfeitamente claro.

Quanto ao nascimento disto, se eu quisesse até podia dizer: “como o meu avô me
contou histórias, ele era o homem mais sábio do mundo, pois então é daí que vem”. Eu
também não estou em condições de dizer o que é que veio dali e o que é que não veio
dali. Há percursos por onde eu andei, e conheço, isto é como o interior nosso, o íntimo,
a psique, ou lá o que queira chamar, é como um corredor com uma série de portas
fechadas. E há portas que nós abrimos e vemos o que é que lá está dentro. E há
outras que só se nos obrigarem é que a gente quer ver. E há outras que não queremos
abrir porque temos medo daquilo que iríamos encontrar. Quando eu falo de percursos,
entre o que se sabe e o que não se sabe, é precisamente isso.

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Provavelmente, as razões mais profundas são aquelas que eu ignoro, mas dentro do
processo de auto-conhecimento em que eu tenho de me envolver, eu posso chegar a
algumas conclusões. E uma das conclusões, no que se refere a esse estilo tão falado,
nos dois sentidos, tem que ver...

Eu estava a escrever o romance que se chama “Levantado do chão”, que se trata do


Alentejo, conhecia a história que queria contar, tinha tudo para contá-la, mas faltava-
me o “como”. E quem escreve, sabe que tão importante como “O quê” é o “como”. Isto
é um problema de toda a arte. Enfim, como o “como” não me aparecia, pus-me a
escrever o livro. O livro que, então, deveria agradar a todas essas pessoas, porque iria
ter toda a pontuação no seu lugar, as riscas, os dois pontos, tudo, tudo, tudo. Hoje,
seria para essas pessoas um génio, efectivamente, porque tinha feito aquilo que elas
esperavam que aparecesse.
E aí pela página 23 ou 24, eu tenho pena de não ter conservado esse original, de
repente, sem pensar, sem reflectir, sem nada, puz-me a escrever assim: ligando o
discurso directo e o discurso indirecto, introduzindo o diálogo na narrativa, fazendo
todas essas coisas, e percebendo logo que os chamados sinais de pontuação não
faziam falta nenhuma.

Os sinais de pontuação são aquilo que nós, nas estradas, chamamos sinais de trânsito.
A questão que eu ponho é esta: se tirarmos das estradas os sinais de trânsito deixa de
se poder circular nessas estrada? Não, só é preciso circular com mais cuidado. E
provavelmente, com tanto cuidado que, se não houvessem sinais de trânsito, não havia
desastres. O cuidado era tanto que as pessoas não se atreviam.

Ora bem, se eu elimino a pontuação, e elimino, de facto a pontuação, é porque o ponto


e a vírgula não são sinais de pontuação, são sinais de pausa – uma pausa breve e uma
pausa mais longa, como na música.

A música é feita exactamente com os mesmos ingredientes, para lhe chamar assim:
sons e pausas. Toda a música mais genial, e a mais desprezível, e a fala humana, falar
é fazer música, não se está mesmo a ver que isto sobe e desce, que há uma... a que é
que se chamou o “canto chão”, o canto gregoriano? É uma música falada.

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Ora bem, isto pode-se encontrar na literatura, e no caso dos meus livros é aí que eu
quero chegar ( não quer dizer que eu chegue, ou que chegue sempre). Para vos dar
um exemplo do que é que significa, nem sequer se trata do ritmo, trata-se de uma coisa
muito mais profunda, a que chamaríamos o compasso.

Há momentos em que acontece que, uma frase já está terminada no seu sentido, não
há nada mais que eu possa acrescentar-lhe que aclare ou que dê outra percepção,
enfim, enriqueça o seu sentido, e contudo, ainda vão aparecer mais 3 ou 4 apalavras
que não acrescentam nada. E estão lá por razões musicais, porque a frase, embora
completa no sentido, tinha ficado suspensa no compasso.

As pessoas que dizem isso, não podiam ser hebreias, porque, como no hebreu não há
vogais, não saberiam onde pô-las. Quando me lerem, ponham lá aquilo que falta. Às
vezes não querem dar-se ao trabalho, ou então não gostam daquilo que eu escrevo.

JS – Os acentos são uma coisa recentíssima na história da escrita. A própria


pontuação... quantos modos tenho eu de pontuar uma palavra ? Só tenho 3 ou 4 .
Ponho um ponto final, um ponto de interrogação, um ponto de exclamação, ponho uma
coisa esquisita que se chama reticências, que são 3 pontos, e ninguém percebe
porque é que não são 4 ou 2. Às vezes há coisas muito mais tenebrosas, que é pôr um
ponto de interrogação, um ponto de exclamação, e três pontinhos.

Quantos modos de dizer uma palavra há efectivamente ? Tomemos uma palavra


simples, um “sim” ou um “não”. Quantos modos há de dizer “sim”? Ou “não” ? Só tenho
essa coisa, só tenho isso. Não serve, se o leitor está metido na história, se o leitor
percebe a intensidade e a intenção daquele não ou daquele sim, ele não põe ponto
nenhum, porque ele está a viver isso na sua própria sensibilidade, e não precisa de
inventar um sistema de pontuação próprio, simplesmente porque ele sentiu, ele sabe
que aquele não, ou aquele sim, no contexto, tem de ser entendido por ele de uma certa
maneira que está para além da pontuação.

AMVA – Pois não.

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Acerca das preocupações com a leitura

JS – Nós não podemos voltar aos anos 30, nem 20, nem aos anos 10, é fácil dizer que
os rapazes não lêem. Vamos lá a ver, quando nós líamos, os da minha geração, e
mesmo depois, o que é que nós tínhamos além da leitura ? Não tínhamos nada,
rigorosamente nada. Alguns nem livros tinham, como era o meu caso. Mas o que havia
para ter, ou para chegar a, era a leitura.

Hoje não é assim. Tomem os suplementos culturais dos nossos jornais. Antigamente,
palavra um pouco antipática, antes, pegava-se num suplemento cultural e o que é que
encontrávamos à entrada ? Os livros. E depois vinha o teatro, a música. O que é que
acontece hoje ? Os livros passaram para o fim. À entrada está a música. Esta inversão
jornalística só acontece porque aconteceu na sociedade. Não são os jornais que
embirraram e puseram-nos no fim.

Agora, vamos lá a ver, quando são os próprios professores a dizer que o erro de
ortografia não tem grande importância... Na minha 3ª classe já não se faziam erros. E
nem sequer era a palmatória, era essa coisa de não querer ficar mal perante o
companheiro do lado. Agora, chegam à universidade, saiem doutorados . E essa coisa
terrível que é o analfabetismo funcional... No outro dia saiu um inquérito, e parece que
ninguém se preocupa com isso, em que 5 milhões e meio de analfabetos funcionais
existem em Portugal, num país que tem 10 milhões de habitantes. São aqueles que,
embora saibam ler e escrever não entendem aquilo que lêem, desde que sejam coisas
um pouco mais complexas, e têm dificuldade em pôr por escrito umas quantas ideias.

Andamos todos aí a cansarmo-nos a falar de democracia e ninguém percebe que isto é


um problema gravíssimo para a democracia. Pois, se as pessoas não entendem aquilo
que lêem, não vão ler os programas dos partidos, nem são capazes de entender aquilo
que se lhes propõe, então votam na imagem.

Então, se quereis fazer, de facto, uma reforma, essa reforma tem de voltar à
aprendizagem real e efectiva. E acabar com os trabalhinhos de grupo, que são
trabalhinhos para preguiçosos. Numm grupo de 5 ou 6, há um que trabalha e outros
que aproveitam...

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Da relação dos intelectuais com a Educação

AMVA –Eu queria-lhe perguntar: “Não acha que, se a educação faz tanto parte da
cultura, como a ciência, como a arte, porque é que interessa tão pouco aos
intelectuais ?”

JS –Alguma vez o Ministério da Educação chamou os intelectuais para saber o que é


que eles pensam?
Em primeiro lugar, há que atender a uma coisa: o intelectual, o chamado intelectual, o
escritor, este, aquele e o outro, não é um especialista nestas matérias. E quando se
trata de discutir estas matérias, os especialistas tendem a excluir do campo de
discussão aqueles que estão fora, porque nós não dominamos o “jargon”. Vocês têm
um linguajar, com o qual se entendem, como todos os sectores...
É assim, para entrar nesse mundo, em primeiro lugar, seria preciso ter conhecimentos
bastantes, mas sobretudo, e nós sabemos que é assim, a capacidade de usar uma
certa linguagem que muitas vezes supre ou parece suprir a falta do conhecimento.
Desde que uses a linguagem, desde que possas articular um discurso debaixo do qual
não há nada, mas que faz um sentido em si mesmo, isso passa já por um saber. E
estamos, outra vez na história do meu avô sábio, que sabia umas tantas coisas, sabia
aquilo que tinha que ver com o seu trabalho, com os seus animais, as suas plantas, e
ainda por cima, nem lhe dava nomes. Dava-lhes os nomes que tinha herdado do pai
dele, ou do avô dele, ou do meio social ( e não estou a defender a ignorância).

O que eu acho é que não adianta muito conhecer a palavra se nós não soubermos,
realmente, de facto, com as mãozinhas e com a cabeça, o que é que está ali. E no
campo da pedagogia, e da educação, enfim por aquilo que eu, leigo total nesta história,
por aquilo que eu vejo, a educação não pode ser tão complicada como nos parecem
fazer crer.

AMVA – Então, qualquer pessoa pode entrar nela, e deve...

JS – Sim, mas chamem-nos. Nós diremos umas tantas barbaridades, mas talvez
dessas barbaridades saiam pelo menos um certo espevitar e um certo dizer de que é

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que estamos a falar. È a mesma coisa do que saber tudo de uma doença e não saber
curar a pessoa que a sofre. No fundo, é isso, mas isto tanto tem que ver com a
pedagogia, como qualquer outro ramo do conhecimento que anda mais por aí. O
linguajar, o “jargon”, o calão do ofício, acaba por ocupar o espaço daquilo que deveria
ser o conhecimento efectivo e real e concreto das coisas.

E as pessoas podem sair de um debate, e são todos extraordinários, porque são todos
extraordinariamente bem falados e porque é que nós temos tanto a sensação do
vazio ? Há um discurso político que corresponde exactamente a isto, há um discurso
economicista que corresponde exactamente a isto. Não se está a falar de nada. Estão
a pronunciar-se palavras e toda a gente sai contente. As questões ficaram intactas,
falou-se muito mas as questões ficaram intactas.

“Mutatis mutanti” é a história daquele homem que tinha 4 sistemas pedagógicos


infalíveis. Quando chegou ao 4º filho, já não tinha sistema nenhum, porque cada
criança é um caso, como já sabemos.

Agora, a chamarem-nos ? Em primeiro lugar não serão muitos os que estarão


interessados em ir. Mas sempre se encontrará alguns. E talvez num tempo em que se
fala tanto de pluridisciplinaridade, eu tenho impressão que é o tempo em que menos se
pratica. E num tempo em que se fala tanto em multiculturalismo, é justamente um
tempo em que uma determinada cultura pretende esmagar e fazer desaparecer as
outras.

Vamos lá a ver, eu vou deixar-vos aqui uma matéria para pensarem um pouco.
Falamos muito da globalização, e fala-se muito dos direitos humanos. Em 1998,
justamente quando me deram o Prémio, comemoravam-se 50 anos da assinatura da
Carta dos Direitos Humanos, em Nova Iorque, 10 de Dezembro de 1948. Não faltaram
festividades, congressos, selos, inaugurações. Os 50 anos foram celebradíssimos, no
ano seguinte, os 51 já não vale a pena celebrar. Agora. Vamos esperar mais 49 para
que se celebre o centenário. E é assim que a gente vive.

E não se repara numa coisa tão simples, e, tal como eu a vejo, tão óbvia. É que a
globalização económica é totalmente incompatível com os direitos humanos. Ou tens

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direitos humanos, ou tens globalização. Os dois dentro do mesmo saco não cabem. A
globalização devorará os direitos humanos, e os direitos humanos não têm poder
nenhum para deter o processo de globalização para onde ela vai.

Isso leva-me a dizer que a grande batalha do século humano é, precisamente, a defesa
dos direitos humanos. E leva-me a dizer coisas tão insolentes como esta: que os
partidos de esquerda, a começar pelo meu, metam os programazinhos na gaveta,
fechem à chave, porque não vale a pena falar, tal como não valeu a pena falar de
socialismo democrático, sabíamos que ninguém sabia o que era, agora fala-se e é uma
invenção do meu partido, de democracia avançada, que também não se sabe o que é .
São fórmulas. Então, ponham lá isso na gaveta e digam: a nossa bandeira e o nosso
projecto está aqui, chama-se Carta dos direitos humanos. Porque, curiosamente, aquilo
que os partidos se propõem fazer está contido nesse papel, são 37 ou 38 deveres que,
directa ou indirectamente, são os que dão forma e conteúdo a esses programas
políticos. E isto tem de ser entendido, ou vamos ter uma coisa, ou vamos ter outra. E,
curiosamente, já começam os responsáveis pelo caminho que isto levou, a dizer que
convém controlar a globalização. O que é outra forma de nos enganar, com papas e
bolos se enganam os tolos. Porque a gente passa a pensar que se eles estão
preocupados, isto vai. Não, não, ou uma coisa ou outra...

2º Encontro "Transições - da 1ª infância à adolescência", em 8 e 9 de Junho de


2000. As Actas foram publicadas em 2002.

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