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Nas profundezas rasas do corpo: semióticas a-significantes e processos de

subjetivação e dessubjetivação dos marcadores sociais de gênero.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Tudo se inicia pelo corpo. Tudo passa e se passa pelos/nos corpos, nas profundezas rasas dos
corpos. A produção das subjetividades, os processos de subjetivação, a constituição do que
chamamos de Eu, não têm a linguagem, o símbolo, a representação, a memória como esferas
privilegiadas e fundantes. A produção das subjetividades não se reduz a processos e operações
significantes, que se passariam para além ou aquém da materialidade dos corpos, que o tomaria
apenas como superfície de inscrição, como suporte das tatuagens de um social e um cultural que o
circundaria. No início não estão as memórias, nem os conceitos, não estão as expressões, as
performances, os rituais, nem as representações. Como afirmou Gilles Deleuze, a memória possui
um caráter secundário, ela vem depois, para dar duração e extensão as experimentações intensivas
dos corpos, para trazer à superfície e estabilizar em gestos e expressões, em performances o que se
passa na profundidade das carnes. Como afirmou Henri Bergson, a inteligência, a racionalidade, o
conceito também chega ao final de um processo que se inicia nas comoções, nas emoções, nos
movimentos profundos da materialidade das carnes, que se exteriorizam e ganham duração através
da memória, para ao final ganharem sentido, significado através do conceito, da racionalização, da
expressão consciente. O aprendizado do ser, que se dá no tempo, como afirmou Martin Heideguer,
se faz num ente jogado no mundo, num ente, que antes de mais nada, é um corpo, um ente cuja
espacialidade, cuja presença é carnal, condição incontornável do seu ser-aí. Se o lidar com um
mundo à mão é condição ontológica do fazer-se humano, isso se deve ao fato de que a mão, o corpo
constitui sua presença mesma no mundo. Se somos seres que nos constituímos entre o nascimento e
a morte, se somos seres para a morte, é porque antes de mais nada somos um corpo vivo, um corpo
que, embora não tenha pedido para nascer, foi lançado no tempo, no mundo e, antes que advenha a
morte, deve ser, deve se subjetivar como um ser.
Félix Guattari vai nos propor uma maneira de pensar a produção das subjetividades, os
processos de subjetivação que nos afasta de algumas teorias clássicas sobre o tema. Ele se afasta do
estruturalismo ao se contrapor a tese de que as subjetividades são produto apenas das operações
significantes. Para ele, não são os fatos da linguagem e/ou de comunicação que engendram as

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subjetividades. A produção de subjetividades colocaria em ação mais do que os desempenhos ou
operações linguísticas. Ele também vai para longe da fenomenologia e da psicanálise ao não reduzir
os fatos subjetivos à ação de pulsões, afetos, de instâncias intrasubjetivas e de relações
intersubjetivas. Por isso, também ele se livraria daquilo que chama de armadilha das explicações
sociológicas, das explicações baseadas hora num individualismo, hora num holismo metodológico,
ou seja, para ele os processos subjetivos não são nem centrados em sujeitos individuais, nem em
agentes coletivos. Esses processos de subjetivação não devem ser abordados a partir do que ele
nomeia de “complexo de infraestruturas”, ou seja, nem como reflexo de uma estrutura material que
gera uma superestrutura ideológica, como no marxismo, nem como fruto de uma infraestrutura
instintiva que gera uma psique como em Freud, nem mesmo como produto de estruturas sintáticas e
linguísticas profundas que produzem significados linguísticos de superfície.
Como expõe Maurizio Lazzarato, para Guattari a produção de subjetividades coloca em
jogo, para além dos desempenhos e performances linguísticas, dimensões etológicas, fantasmáticas,
semióticas econômicas, estéticas, corporais, territórios existenciais e universos incorpóreos todos
irredutíveis a uma semiologia da linguagem. As subjetividades são produzidas através não apenas
de signos, de semiologias significantes, mas também a partir de intensidades, de fluxos e filos
maquínicos, de agenciamentos de distintas materialidades que atravessam os corpos, de semióticas
a-significantes, aquelas que não são da ordem do sentido, da significação, mas da ordem do efeito,
da produção, do movimento, dos devires. A produção das subjetividades se dá não apenas como
resultado de substâncias de expressão linguísticas, mas também através de substâncias de expressão
extralinguísticas, biológicas não humanas, tecnológicas, maquínicas, estéticas. As subjetividades
são formatadas e moduladas pelas máquinas sociais e pelas máquinas técnicas (digitais,
comunicacionais, midiáticas) que atuam não apenas dentro dos limites da memória e da
sensibilidade, mas também do inconsciente. As dimensões maquínicas, não humanas das
subjetividades seriam irredutíveis as relações intra e intersubjetivas. A produção das subjetividades
é um processo coletivo, que vai além do individual, mas que também não pode ser pensado como
fruto de agentes ou sujeitos coletivos pois ela envolve uma dimensão extrapessoal (sistemas
econômicos, sociais, tecnológicos, linguísticos, maquínicos) e infrapessoal (intensidades pré-verbais
provenientes de uma lógica dos fluxos, das afecções e das intensidades).
No capitalismo a produção das subjetividades se faz no cruzamento entre a sujeição social e
a servidão maquínica. Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, o capitalismo não implica apenas no
funcionamento de uma economia política, tal como descrita por Karl Marx, onde a subjetividade

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pode ser reduzida ao domínio da representação política e linguageira. A produção de riquezas no
capitalismo, o funcionamento do sistema requer mais do que a sujeição social, ela requer a servidão
maquínica, e as subjetividades surgem desse duplo agenciamento, social e maquínico. O
capitalismo além de por em funcionamento uma dada economia política, produz uma economia
subjetiva. Ele nos equipa com uma subjetividade individual, nos atribui uma identidade, uma
profissão, um sexo, um gênero, uma nacionalidade, distribuindo lugares de sujeito através dos quais
se asseguram lugares no mundo social e na divisão do trabalho para os ditos indivíduos, os não
divididos, os seres inteiriços, idênticos a si mesmos, no tempo e no espaço, que seríamos, cada um
de nós. Esses lugares são inventados, descritos, configurados e significados através do
funcionamento de relatos, constituindo uma semiótica significante e representativa da qual ninguém
escapa. O individualismo, crescentes no mundo moderno, que atinge seu ápice nas sociedades
neoliberais, coloca a pessoa no centro da ação, convocando, hoje, que cada um seja empresário de si
mesmo, que se veja e se assuma como capital humano, no mesmo instante em que a crise sistêmica,
associada a centralidade do consumo na configuração e distribuição de identidades, produz a figura
do homem eternamente endividado, o sujeito eternamente culpado por estar em dívida com aquilo
pelo qual tem responsabilidade mas que não tem condições financeiras ou tempo ou saúde ou desejo
de dar conta. Esses sujeitos são produto de processos de disciplinarização, da atuação de saberes e
poderes, são fruto de modos de governamento descritos em varias obras de Michel Foucault. Mas
também são fruto de investimentos de si sobre si mesmos, de processos de subjetivação que levam,
muitas vezes a autoexploração e a autodominação. Assumem-se lugares de sujeito socialmente
distribuídos, investidos de sentidos, de códigos, de normas, de conhecimentos, que encorajam a que
neles se venha habitar. Como já argumentava Marx, o capitalismo implica uma sujeição social que
passa pela personificação dos lugares de sujeito que são distribuídos pela própria relação social
nuclear ao seu funcionamento, assumir a personificação do capital ou do trabalho, encarnar o capital
ou o trabalho, incorporar a propriedade ou a não propriedade fazem dos sujeitos, no capitalismo,
uma derivada dos fluxos do capital, pessoas individuais que encarnam e dão concretude a
quantidades abstratas, a fluxos numéricos.
Mas para Deleuze e Guattari, essa é apenas uma das maneiras pelas quais o capitalismo atua
na produção de subjetividades. A produção do sujeito individuado, da pessoa, das identidades é
apenas uma das faces das produções subjetivas que o capitalismo põe em funcionamento. Para além
ou aquém das sujeições sociais, haveria aquilo que nomeiam de servidões maquínicas, que ao
contrário do que ocorre nos processos de sujeição social se dá através de processos de

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dessubjetivação, Os processos de dessubjetivação mobilizam o que seriam semióticas a-
significantes, que são não representativas ou linguageiras, semióticas funcionais e operacionais, que
agem, atuam, produzem efeitos, afecções, intensidades, que mobilizam, movimentam, provocam
comoções ao rés dos corpos. Na servidão maquínica o sujeito individuado, com suas qualidades e
traços pessoais, de identidade, com sua profissão, seu sexo, seu gênero, visto e dito como
empresário de si mesmo, como escritor de si mesmo, como cidadão, dá lugar a um corpo que
maquina, que entra como peça de uma espécie de engrenagem, ele se deixa agenciar e agencia
fluxos, que atravessam seu corpo, sua vida, seu cotidiano, o arrastando como materialidade que faz
parte de um sistema financeiro, de um sistema de mídia, de um sistema de governo, como parte de
equipamentos coletivos. Servidão aqui não tem o sentido apenas de subordinação, o sentido é
emprestado da cibernética e da ciência da automação, ele significa a pilotagem ou o governo dos
componentes de um sistema. Quando dizemos que o robô faz parte de um sistema servomecânico é
porque ele pressupõe não apenas movimentos repetitivos, contínuos e intervalados, como nos
sistemas mecânicos, mas ele pressupõe a existência de controles e comandos que cadenciam,
distribuem as operações e permitem mudar de direção e sentido as tarefas que executa, ele permite
os fenômenos de conversão, de mudança de direção, de rotação, de inflexão das atividades
sistêmicas. Um sistema tecnológico pilota, governa, subjuga diversas variáveis como temperatura,
pressão, velocidade, força, resultados, garantindo a regulação, o controle e o equilíbrio do sistema.
A servidão maquínica é um modo de governo, de comando, de pilotagem de uma máquina técnica
ou social que tenta garantir seu funcionamento.
Enquanto a sujeição social produz indivíduos, a servidão maquínica produz divíduos, ao
fazer os corpos se conectarem com fluxos de toda espécie que arrastam as subjetividades para
processos de desterritorialização, para linhas de fuga. As servidões maquínicas submetem os corpos
àquilo que David Lapoujade nomeou de movimentos aberrantes, descentrando as formações de
sujeito, abrindo os corpos para conexões com componentes não humanos, com procedimentos
organizacionais, com bancos de dados, com arquivos, com fichas, com máquinas, que são acoplados
a seu próprio corpo, que passam a mediar as relações interindividuais. A servidão maquínica fabrica
sujeitos vinculados a objetos externos através do qual age e se apresenta como ser. A máquina-
objeto se acopla e passa a formar o próprio sujeito. A dicotomia sujeito/objeto deixa de ter
pertinência num mundo de ciborgues, para usar uma expressão cunhada por Donna Haraway, assim
como as dicotomias natureza/cultura, corpo/mente/alma, corpo/subjetividade, palavras/coisas. O
dividual não se opõe às máquinas, nem faz uso dos objetos, elas e eles o constitui, os homens

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acoplados ou atravessados pelas máquinas funcionam em conjunto no processo de produção, onde
se tornam complementares e intercambiáveis, assim como nos processos de comunicação, consumo,
transporte, educação, etc.
Não fazemos apenas uso das coisas, elas são partes de nós, se constituem em entradas,
saídas, em terminais, pontos de conjunção ou disjunção nos processos económicos, sociais,
estéticos, comunicativos, no qual estamos imersos. Vivos e mortos, entes orgânicos e inorgânico
não mais se separam, atuam em conjunto, animados por forças variadas e, muitas vezes,
aparentemente misteriosas, forças que são figuradas, desde o início do século XX, pela ideia da
possessão hipnótica, pela figura da mão invisível da razão ou do mercado, onde corpos são
instrumentos de processos do qual não possuem domínio, como na literatura de Franz Kafka, pela
figura do complô corporativo, tal como tratados por Stefan Andriopoulos. Esse homem pós-
orgânico, tal como o nomeia Paula Sibila, têm seus corpos animados por forças físicas e subfísicas
da matéria, por forças do corpo e mente, humanos e sub-humanos, forças maquínicas, pelo poder
dos signos, pela presença dos objetos, etc. As relações entre agentes e signos não se dá apenas no
campo da representação, da simbolização, não são intersubjetivas, os agentes não são pessoas e as
semióticas não são apenas significantes. Agentes humanos e não humanos, funcionam como pontos
de conexão, de junção e disjunção de fluxos, como nós numa rede de agenciamentos coletivos que
compõem dispositivos coletivos como empresas, sistemas de comunicação, sistemas de governo,
etc. Esses agenciamentos não atuam sobre sujeitos e objetos, mas os desmancham, os dessubjetivam
e os desobjetivam, os desterritorializam, os descodificam, abrindo a possibilidade de inusitadas e
inúmeras conexões e reconexões, inclusive conexões parciais. Esses agenciamentos sociais e
subjetivos não trabalham apenas com as divisões molares, como macho e fêmea, masculino e
feminino, homossexual ou heterossexual, branco e negro, pobre e rico, mas trabalha sobre processos
e divisões moleculares, da ordem do desejo, da afecção, da intensidade, que ocorrem nos corpos
apesar ou para além ou aquém dessas divisões. Elas põem em movimento as potencialidades não
individuais, intensivas, sub-humanas das subjetividades, assim como as potencialidades e
virtualidades não individuadas, intensivas, moleculares da matéria e das máquinas. A servidão
trabalha com fluxos descodificados como fluxos de trabalho abstrato, fluxos monetários, fluxos de
signo, fluxos desejantes, que não estão centrados nos indivíduos e na subjetividade humana, mas os
atravessa, os fragmenta, os desterritorializa, são maquinismos sociais que acoplados com as
máquinas técnicas colocam para funcionar os corpos humanos, são diagramas, máquinas abstratas
que se difundem no e constituem o corpo social.

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Creio que essa noção de corpo social e toda a discussão que fizemos para chegar até ela
interessa de modo particular àqueles que militam no campo dos estudos de gênero que, em grande
medida, ainda estão presos ao campo das semióticas significantes, que enfatizam os processos de
subjetivação ou de sujeição social e que ainda tratam pouco da servidão maquínica dos corpos e dos
processos de dessubjetivação e como eles configuram muitos dos problemas e questões que lidamos
nesse campo. As marcas de campos de pensamento como o estruturalismo, o marxismo, a
psicanálise e a fenomenologia ainda são bastante presentes nos estudos de gênero. A centralidade
das noções de representação, de linguagem, de discurso, de relato, de simbólico nesses estudos
indiciam a forte presença de concepções que Guattari nomearia de linguageiras no que tange ao
tratamento das subjetividades, da produção de sujeitos, quando se trata dos processos de
subjetivação, de produção das chamadas identidades ou figuras de gênero. As semióticas a-
significantes, aquelas que atuam diretamente sobre os corpos, que os agenciam e conectam a
processos maquínicos, que os movimentam, sem que esses movimentos passem necessariamente
pela expressão, pela representação; que os mobiliza, marca, produz sem que necessariamente
passem pela consciência, pelo conceito, pela racionalidade; que neles implantam traços subjetivos
sem que passem pela verbalização, pelo discurso, pela memória, pouco são tratadas ainda nos
estudos de gênero. Muitas vezes o corpo, seus movimentos, suas comoções e emoções quedam
esquecidos nos estudos que tentam entender as identidades que portam, as práticas que realizam, o
desejo que expressam, os sentimentos e valores que materializam. Estamos atentos para os signos,
mas pouco atentos para os índices, para as intensidades, para as afecções, para os fluxos
desterritorializados e desterritorializantes que atravessam os corpos. Pouco falamos dos
movimentos internos ao nosso corpo, àquilo que Bergson nomeou de dados imediatos da
consciência, as vibrações interiores, que possuem diferentes tonalidades e frequências. Para
Bergson, antes que pudéssemos apreender, expressar e conceituar um fenômeno como o da duração,
antes que pudéssemos possuir uma memória, um conceito, antes que pudéssemos expressar através
de alguma forma de linguagem ou representação a experiência do tempo, sentíamos o tempo fluindo
em nós, no nosso corpo. Antes que pudéssemos saber e expressar o que era uma badalada de sino
ela já provocara uma comoção, um ruído, um movimento em nós, antes de podermos representar em
número um dado intervalo de tempo, o sentiríamos escoar em nosso interior. Deleuze e Guattari
nomearão de intensidades essas vibrações que o mundo produz em nós. Nossos corpos são vibráteis,
como diz Suely Rolnik, eles são percutidos pelo mundo, eles ressoam as afecções, os toques que
sofrem do mundo. Após uma espécie de choque, de pontada, de impacto fugaz e momentâneo, uma

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espécie de espetada produzida por um encontro com qualquer tipo de matéria do mundo, inclusive
com o imaterial, uma espécie de onda percorre nosso corpo, fazendo-o se mover, se comover, se
emocionar, obrigando as demais faculdades a vir em socorro da sensibilidade, tentando
inicialmente reter a experiência, papel da memória, inicialmente alojada na própria matéria do
corpo, para depois se tornar representacional, imagética e linguística, nessa tarefa auxiliada pela
imaginação e secundada pela intelecção, pela cognição, que atirará finalmente sobre o
experimentado a rede de conceitos que uma dada cultura e sociedade dispõem para nomear e
significar aquilo que o corpo experimentou através dos sentidos.
Ora, o corpo bergsoniano é um corpo que, embora esteja aberto para o mundo através dos
sentidos e das sensações, tocado e movido pelas emoções que o contato com a vida provoca,
implica ainda um fechamento em si mesmo, ele ainda é uma realidade inicial e ontológica onde o
humano se produz. É um corpo fenomenológico, superfície de partida e de inscrição dos
acontecimentos, experiências e atividades humanas. Assim como em Freud, uma realidade carnal e
institual serve de suporte para a existência de um inconsciente e de um consciente especificamente
humanos, que Lacan alojará completamente no plano da linguagem. Corpo como suporte do
trabalho, locus da força de trabalho que assegura a atividade e a existência propriamente humanas,
para o marxismo. A emergência dos estudos de gênero partiu do pressuposto de que esse corpo,
como realidade material, era marcado pelas categorias e representações sociais que lhe atribuíam
dados sentidos e significados. O corpo como entidade biológica, como materialidade vital passa a
ser pensado em suas relações com o poder, com os saberes, com os conceitos, com as imagens, com
os significados que lhes denotam, conotam e atribuem significações. Enuncia-se a dimensão
construtivista dos enunciados sobre os corpos. Em seguida não apenas as identidades de gênero, o
masculino e o feminino, mas o próprio sexo, aquilo que antes era deixado no campo do estritamente
biológico e natural, passa a ser pensado como implantação nos corpos a partir do caráter
performativo da linguagem, dos discursos, dos enunciados, dos conceitos, dos relatos, das
narrativas. No entanto, a noção de corpo social nascida das reflexões de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, abre definitivamente a noção de corpo no sentido de ser pensado como uma realidade e
uma materialidade coextensiva ao domínio social, como uma realidade aberta a inúmeros
atravessamentos, fluxos, agenciamentos, que surgem no interior das teorias feministas
contemporâneas em formulações como o corpo ciborgue de Haraway, o corpo dildo de Beatriz
Preciado, o corporeidade King Kong de Virginie Despentes, a corporeidade pós-humana de Paula
Sibila. Esse corpo fluxo implica constantes processos de subjetivação e dessubjetivação, de

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territorialização e desterritorialização, processos de individuação e dividuação, de construção e
fragmentação de corporeidades que atravessam as segmentações binárias que costumavam
organizar as reflexões sobre os corpos: biológico/social, natural/cultural, sexo/gênero,
natural/artificial, biológico/tecnológico, real/virtual, macho/fêmea, masculino/feminino,
heterossexual/homossexual. Cada vez mais se ressaltam o papel dos processos de transversalidade,
de atravessamento, de flutuação do próprio corpo como significante, mais de que de seus
significados.
Creio que, no entanto, o que pode trazer um rendimento importante para os estudos de
gênero é ir além do aprisionamento da abordagem do corpo e de suas operações como resultado de
uma semiótica significante, como faz Judith Butler ou Joan Scott, para ficar apenas com aquelas
teóricas feministas muito influentes entre nós, que na esteira de Hanna Arendt ou de Giorgio
Agamben vão afirmar que o ser político dos homens e das mulheres se constitui e se afirma na
linguagem, que é nele que os homens e mulheres põem em jogo a sua própria natureza. Creio que o
aprendizado dos gêneros e dos sexos se dão adjacentes as mensagens significantes com que a
criança se socializa e se humaniza. A implantação de modelos sociais e culturais de sexo/gênero
organizando uma dada corporeidade se passa, em grande medida, através de semióticas a-
significantes, através de afecções, intensidades, de fluxos materiais e imaterias que atravessam as
nossas carnes. Ao invés daquela imagem da corporeidade que nos é dada por Bergson, de um corpo
que comporta um eu de profundidade, um eu que se move, que se comove pelos afetos do mundo e
que através das operações da memória, da imaginação e do conceito se expressa num eu de
superfície, um eu profundo movido pelo contato imediato com o mundo e que conforma um eu
mediado pela representação, pela expressão, por dadas formas de linguagens, como a linguagem das
artes, que seria a única que poderia fazer emergir na superfície do mundo esse eu profundo, de
vibrações e operações confusas e obscuras, pensar uma corporeidade, um corpo que possui uma
profundeza rasa, uma profundidade extensa, ramificante, conectiva, rizomática, pelo dobramento
barroco de sua superfície. Um corpo que se configura, que ganha formas, que adota posturas, que
aparece, que se rostifica, que se formata a partir dos efeitos que dadas entidades do mundo, que
dadas matérias e superfícies, que dados objetos, que dados processos desencadeiam.
O fato de uma criança ser acoplada, desde cedo a uma bola ou a uma boneca, ser exposta a
marcadores de gênero como as cores azul ou rosa, ser envolta em roupas de texturas mais macias ou
mais ásperas, de ser exposta a sonoridades que remetem ao que deveria ser seu sexo e gênero, de ser
acariciada, esfregada, manipulada, ninada de dadas maneiras seriam configuradoras de sua

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corporeidade e das identidades que para ele irá forjar. A pergunta, em que momento e porque se fez
a escolha de objeto sexual, ou porque não se fez essa escolha, é tão difícil de se responder
justamente porque ela remete a processos de produção das subjetividades que seriam marcados por
essas operações a-significantes, onde o significado ainda não está presente. Como poder falar de
operações que se processaram em nós sem passarem pela significação. Não encontramos aí uma
barreira quase intransponível para a expressão, para a significação? Da mesma forma que sabemos
o efeito irritante, enervante que o vermelho exerce sobre o touro, o que sabemos dos efeitos que o
ser vestido de azul ou rosa exerce em nosso corpo de bebê? O que sabemos dos agenciamentos que
o nosso corpo constrói com os brinquedos que são disponibilizados desde cedo para a criança, ou,
ao contrário, dos efeitos da ausência deles? O que sabemos das afecções provocadas pelas
superfícies lisas ou enrugadas, pelas formas redondas ou quadradas sobre nosso corpo e como
interferem na elaboração de nossos esquemas sensório-motores? O que sabemos dos efeitos
provocados pelas paisagens sonoras para a constituição de nossas corporeidades, para as nossas
escolhas afetivas e emocionais? As crianças que hoje forjam suas corporeidades acopladas às
imagens midiáticas, televisivas, cinematográficas, às imagens dos vídeo-jogos, que fazem dos
celulares uma extensão de sua corporeidade e de sua subjetividade, lugar de performance de sujeito,
de construção de máscaras sociais, de expressão de sentimentos e emoções, que identidades de
gênero e de sexo estão forjando? Que movimentos profundos se passam nas superfícies dos corpos
a partir dessas conexões? Se perguntamos a todo tempo uns para os outros: está ligado?, é porque a
conexão com o extra-humano ou o inumano é uma condição intransponível de nossa condição
contemporânea, que conformações subjetivas ganham esses seres conectados a fluxos maquínicos
como esses? Mas, desde os anos quarenta do século passado, se poderia perguntar que
subjetividades foram produzidas na conexão entre mulheres e rádio novela, mulheres e
eletrodomésticos, corpos femininos e tecnologias da beleza e da sensualidade, assim como as
conexões entre homens e automóveis, homens e tecnologias da virilidade, entre corpos masculinos e
máquina industrial?
Estamos acostumados a fazer a história das dimensões significantes e significativas desses
processos, das representações, imagens e discursos que elas deram margem, mas pouco pensamos
sobre os processos que desataram nos próprios corpos. Que comoção o barulho de uma enceradeira
pode ter desencadeado no interior dos corpos a ela acoplados, que sentimentos e sensações pode ter
dado margem: superioridade, poder, modernidade, agilidade, feminilidade, charme, sedução,
irritação, insatisfação, cansaço, tédio, melancolia, desamparo, solidão? Ao acoplar o bobe à cabeça,

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o esmalte às unhas, a renda ao púbis, que corporeidade se origina? O coturno é um símbolo de
masculinidade, de virilidade, mas ao calçá-lo que corpo se configura, será que todo homem o porta
e comporta da mesma forma? Como as dimensões imateriais, fantasmáticas, imaginárias, fazem
corpo com a nossa carne? Pois trata-se sempre dessa pergunta: como uma carne faz corpo com
dados processos, materiais, recursos, como a carne em seus acoplamentos, agenciamentos, conexões
maquínicas faz corpo com o que o mundo social e cultural lhe oferece. Só entendendo o corpo
assim é possível pensar em se fazer corpos sem órgãos, corpos em deriva, em devires, corpos em
fuga, corpos derivando para buracos negros. Que corpo fazemos com as drogas, com os fármacos,
com os alimentos orgânicos, com as próteses, com as órteses, com os suplementos, com os tecidos,
com os adornos, com as tatuagens, com as operações estéticas, com o botóx, com o silicone? Que
monstruosidades e belezas podem nascer desses acoplamentos, desses atravessamentos, dessas
mutações e metamorfoses? Que corpo sexuado construímos com o viagra, com a camisa de vênus,
com o látex, com a borracha, com a seda, com a espuma? Que corpo erótico se produz na conexão
entre carne e mídia, carne e imagem, carne e fantasia? Que moções e comoções movimentam nossa
carne sob o afeto e o efeito dos produtos da industria pornográfica, que nos chegam pelo
computador, pelo smartfone, pelo cinema, pelo vídeo, pelo telefone? No filme Ela, de Spik Jonze,
um corpo erótico se faz através de uma voz digital, um corpo sem órgãos, mas capaz de gozo e
paixão.
Como afirmava Gabriel Tarde, os humanos são seres da imitação, no processo de
socialização copiamos as atitudes, gestos, ações, palavras, práticas daqueles com quem estamos em
contato. O aprendizado dos lugares e hierarquias de sexo/gênero se dão, em grande medida, pela
repetição ritualística daquilo que nos chega, nem sempre, mediante a linguagem, os conceitos, as
categorias. Haveria como parte do processo de subjetivação aquele aprendizado que se passa
anterior à linguagem e a representação, à margem da simbolização, a despeito da consciência. E a
subjetividade assim formada, nunca estaria garantida, podendo ser dessubjetivada, sempre que
outros processos como esse se passassem. As categorias e hierarquias de sexo/gênero seriam como
que tatuadas, implantadas nos corpos, pelo efeito, pelas afecções provocadas por mensagens e
conteúdos a-significantes. Como parte do corpo social, nossos corpos são porosos, são abertos à
recepção direta de mensagens, que se realizam diretamente nos corpos, aquelas que costumamos
nomear de subliminares. Formando parte de sociedades onde as imagens, por exemplo, têm uma
centralidade como nenhuma outra, não estou seguro que saibamos avaliar em toda a sua extensão,
os efeitos que as imagens provocam em nosso sistema nervoso central. Acostumados a decodificar

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nas imagens a sua dimensão significante, sígnica, não sabemos avaliar o tipo de conexão que nossos
corpos podem estabelecer com as imagens. Sabemos da enorme penetração que tem a industria
pornográfica, sabemos do efeito erotizante que dadas imagens exercem sobre nossos corpos, mas
não sabemos exatamente como nos acoplamos a essas imagens, não temos consciência dos
mecanismos psíquicos e inconscientes que são agenciados por essas imagens. Nós não lemos,
decodificamos, significamos as imagens pornô, nós as agenciamos, elas atravessam nosso corpo,
com ele se conectam, elas o mobiliza, o movimenta, o comociona. O mesmo podemos dizer da
propaganda comercial ou política. Que efeitos subjetivos exercem os memes que nos chegam toda
hora pela internet? Como eles capturam nossas subjetividades, como nos deixamos atravessar pelas
imagens que os constituem? Não sabemos direito os efeitos subjetivante e dessubjetivante que uma
dada cor, que uma dada forma de letras, que as expressões faciais daqueles que neles vêm retratados
tem sobre nós. Quais os efeitos políticos e subjetivos têm, por exemplo, as capas das revistas de
circulação nacional? Não faríamos o aprendizado dos lugares e hierarquias de sexo/gênero ao
recepcionarmos os gestos, os comportamentos, as posturas corporais, os modelos de corpos, de
rostos, de cabelos, com os quais entramos em contato desde bebê?
Sabemos que uma dada parte do corpo pode nos mobilizar afetiva e eroticamente, separada
do restante do corpo. Seria essa a situação descrita por Deleuze e Guattari, a partir de uma categoria
encontrada em Artaud, o corpo-sem-órgãos. Fazer um corpo-sem-órgãos é fragmentar aquela
unidade do corpo que é implantada socialmente, é subverter a ideia de organismo, é se
dessubjetivar. Podemos nos apaixonar por ou erotizar uma mão, um pé, um tornozelo, uma coxa,
separados do restante do corpo. Um sorriso, apartado do todo do rosto, pode ser suficiente para
causar uma ereção. Um par de olhos pode se tornar uma espécie de mundo onde nos perdemos. Da
mesma forma que podemos não ter simpatia, esse conceito central em Bergson, por uma dada
pessoa devido a um dado detalhe de seu rosto ou de seu corpo. Aquele detalhe, aquele esgar, aquele
gesto, separado do restante do corpo tem a potência de nos afetar a ponto de não podermos nos
aproximar daquela pessoa. Como sabemos, em Bergson, a noção de simpatia está intimamente
ligada ao conceito de intuição, nuclear em sua filosofia. A intuição, forma privilegiada de acesso ao
mundo, de conhecimento da vida, segundo ele, seria a simpatia através da qual nos transportaríamos
para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único, de inexprimível. A
intuição seria o ato através do qual o sujeito se misturaria com o objeto e captaria a sua verdade
mais interior, de uma só vez. A simpatia seria o que permitiria passar para o interior das realidades,
apreendendo-as desde dentro. Essa mistura com o outro, com o objeto, expressa pela noção de

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simpatia, seria importante para pensarmos como as matérias a-significantes são formadoras e
produtoras de subjetividades, como elas participam dos processos de subjetivação e de
dessubjetivação. Ela supõe a capacidade que teríamos enquanto sujeito de coincidir com os objetos,
de penetrá-los em seu âmago, de intuir o que eles têm de singular. Ora, creio que o que Deleuze e
Guattari propõem vai no sentido de complementar esse movimento de objetivação das
subjetividades presente no bergsonismo. Eles apostam que o movimento na direção contrária
também ocorre, ou seja, os objetos, as coisas do mundo nos penetram, coincidem conosco, tornam-
se as nossas ditas verdades interiores. Da mesma maneira que ocorre uma objetivação dos sujeitos,
ocorreria uma subjetivação dos objetos, das coisas. Georges Didi-Huberman faz uma formulação a
respeito das obras ou objetos de arte e a relação que com eles mantemos que está muito próxima
dessa discussão. Ao propor que somos olhados pelas obras de arte, pelos objetos artísticos, tanto
quanto os olhamos, ele nos faz pensar em como esses objetos nos afetam, como eles causam
afecções em nossas sensibilidades, em nossos corpos, antes mesmo que realizemos qualquer tipo de
intelecção a seu respeito. Que emoções, que comoções, que intensidades as obras de arte provocam
e fazem passar? Quando Deleuze propõe que o papel dos artistas e das obras de arte é o de criarem
perceptos, afirma que os perceptos não são necessariamente decodificados pela razão, as obras de
arte não são necessariamente expressivas, elas podem ser intensivas, apenas fazerem efeito, sem que
passem pelo discurso, pela representação. Solicitar que uma pintura abstrata tenha uma mensagem,
queira dizer algo, representar algo, simbolizar algo, é não entender que o quadro pode ser feito
apenas para provocar efeitos de beleza, de sublimidade, de maravilhamento, de estesia. A tela
intitulada Quadrado branco sobre fundo branco do pintor russo Kasimir Malevich não quer
representar, simbolizar, dizer nada sobre o mundo, a realidade, ou mesmo sobre o seu autor, ela é
uma forma acrescentada ao mundo e que visa produzir em quem a contempla algum tipo de
emoção, pela ação da cor branca diretamente sobre os sentidos e as sensibilidades. Ela é um
conjunto de perceptos a-significantes atuando diretamente sobre o corpo e na subjetividade daqueles
que com ela entra em contato.
Como as pinturas, as fotografias, as imagens de corpos participam da fabricação desse corpo
social do qual fazemos parte? Como os quadros que retratam homens e mulheres atuam na
fabricação de nossas subjetividades, como participam da implantação das identidades de
sexo/gênero? Nós tendemos a responder essas perguntas sempre chamando atenção para a dimensão
expressiva, representativa, discursiva, imaginária das obras de arte, das imagens. Nós historiadores
tendemos a explicar as obras de arte e, portanto, os efeitos de sentido que produzem a partir de sua

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inserção e explicação por um social e um cultural englobante e significante. Muitas vezes
negligenciamos a própria obra em nome do contexto em que ela se insere. Mas nunca nos
perguntamos sobre os efeitos pedagógicos, subjetivos, educativos, políticos, éticos que uma dada
obra possa ter na sua espessura mesma enquanto obra, enquanto materialidade. Estamos
preocupados em ler os signos que essas obras emitem, não em pensar como seus perceptos atuam
sobre nossa carne, como sua materialidade mesma faz corpo conosco. Como fazemos corpo com o
corpo que cintila no quadro? Como fazemos corpo com o olhar que nos mira de soslaio, com a teta
rosada e rechonchuda que pende de um vestido semiaberto? Como fazemos corpo com aquele pé
másculo e delicado que aparece no interior de uma sandália havaiana? Como fazemos corpo com
aquele rosto sério e amargurado que enche a tela naquele close cinematográfico? Como fazemos
corpo com aquele objeto que atrai a nossa atenção pela raridade e pela beleza? Como fazemos corpo
com aquele carro importado que nos seduz numa propaganda de TV? Como fazemos sexo com
aquele líder político bonitão e reacionário que vemos em cartazes e outdoores? Como fazemos
gênero, todos os dias, com cada fragmento do mundo que, em nossa língua, são todos
generificados? Se até a tesoura e o cimento possuem gênero, se a tesoura nasce e morre feminina e
o cimento nasce e morre masculino, por que nós não estaríamos condenados a tal destino? Embora
saibamos a resposta para essa pergunta aparentemente simplória e absurda, somos nós humanos que
atribuímos gênero as coisas, o mesmo objeto pode ser de gêneros diferentes em distintas línguas,
podendo alguns sequer ser generificados em outras tantas, além de não sermos objetos, coisas, mas
gente. Mas será mesmo tão simples assim nos livramos do fato de que há um aprendizado de gênero
ao nos relacionarmos com os objetos e que eles implantam em nós a naturalização e a naturalidade
de se ter um gênero? Tudo o que quero com esse texto é que vocês pensem em coisas
aparentemente tão simples como essas e que não teriam nenhuma relação com o fazer gênero entre
os humanos. Será?

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